RESENHAS
ISSN 2236-7403
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N. 28, Vol. 13, 2023
RESENHA:
PIANO B.: POEMAS – DE ANTÔNIO DONIZETI PIRES
PIANO B.: POEMS – BY ANTÔNIO DONIZETI PIRES
Rafael César PITT1
Se não for lido, Piano B. é um livro de setenta e seis páginas e lombada quadrada
facilmente esquecível entre livros mais grossos nas prateleiras. Se for lido, e lido bem, sua
fina capa vermelha terrosa tende a se comportar como chamariz da tradição da modernidade
lírica. Sua delicada aparência física, formalmente agradável, em quase oposição à sua força
interior, erótica e maníaca, está ilustrada no centro da capa com a silhueta da face de Apolo
Belvedere: assim como o deus, o livro é balanceado pelas forças da razão e da desmedida, do
burilar das palavras e da psiquê degradada do eu lírico, do sublime e do grotesco – de Eros
sobretudo – no que tem de espiritual e ascendente, mas também de carnal e catártico.
O autor de Piano B. é o poeta Antônio Donizeti Pires. Nascido em São Joaquim da
Barra, SP, em 1962, trabalha desde 2004 como docente na área de Literatura Brasileira na
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, em Araraquara. “Poeta praticamente inédito” (PIRES, 2022), tal como se escusa na orelha direita de Piano B., possui apenas
um livro publicado anteriormente. Trata-se de Flor do silêncio (1982), obra com edição esgotada e lançada há quatro décadas em sua cidade natal. O poeta, então, contava com apenas
vinte anos de idade e, supõe-se, dono de jovem idealismo. Tanto tempo sem publicar – em
uma época onde se lançam livros com tanta facilidade – deve-se ao processo de maturação
que o autor passou. Os anos de estudos formais lhe fizeram ver a beleza por trás das regras
horacianas e da paciência cabralina para com as palavras. Foi assim que entre dezembro de
2012 e fevereiro de 2013, possuído por um daimon avassalador, o poeta lapidou os versos de
Piano B. sem se descuidar dos requintes formais dos versos. O resultado deste esforço espiritual é percebido tanto na variada paleta dos sentimentos expressos quanto na composição
madura e sofisticada dos poemas.
1. Doutor em Estudos Literários (UNESP/FCLAr). Professor de Filosofia da Universidade Federal do Amapá. Macapá-AP,
Brasil. Email: rafaelpitt@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4045-6574.
https://doi.org/10.51951/ti.v13i28.p224-227
Recebido em 25/08/2022 – Aprovado em 19/03/2023
Travessias Interativas / São Cristóvão (SE), N. 28 (Vol. 13), p. 224–227, jan-abr/2023.
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Aliás, é sobre composição e maturidade que Piano B. mais chama a atenção. A se
acreditar nas três “Notas” que precedem os versos, o autor de Piano B. é um homem maduro
que faleceu pouco tempo depois de escrever o livro. O poeta, portanto, é pessoa distinta do
professor Antônio Pires, a despeito de toda e qualquer semelhança entre eles. Essa divergência, que a bem da verdade, praticamente nos obriga a negá-la em favor da evidência (Antônio
Pires é um homem de ampla vivência no ano de lançamento de Piano B., logo, pode perfeitamente ser o poeta lírico a cantar os versos em sua maturidade), nada mais é do que uma
imbrincada e bem elaborada brincadeira que o autor faz conosco. Sem mencionar o conceito
em momento algum, esse jogo de personalidades lança-nos desarmados no labirinto polissêmico do conceito de mimesis. A arte imita a natureza, como pensou Aristóteles, ou as palavras são autorreferentes, como projetou Baudelaire? Haverá quem prove a compatibilidade
da identidade do eu lírico com a do RG do professor joaquinense? Há inúmeras saídas desse
labirinto e todas elas são guiadas pela decisão do leitor de a quem se fiar. Nesse sentido, parte
da maturidade de Piano B. e de seu autor está em nos oferecer a sinérgica experiência dos
planos da mimesis, confundindo-nos e infundindo-nos o real e o ficcional.
Outra parte da maturidade de Piano B. está em sua refinada composição. Semelhante a Primeiras estórias (1962), de João Guimarães Rosa, onde a disposição dos contos
conta uma estória em si, o livro de poemas contém trinta e sete composições autorrefletidas
de fora para dentro até seu ápice (ou miolo) de um poema central. Tal arranjo das partes,
mais do que a “injunções numerológicas e cabalísticas” (PIRES, 2022, p. 12) – como gostosamente descrê a “Nota do editor” – deve-se ao movimento calculado de sobrepor, senão
mesmo contrapor, cada poema a seu antípoda natural dentro do plano redacional de Piano
B. Assim, o primeiro poema traz o eu lírico experimentando a abstração tranquila do amor
platônico, enquanto no último poema o eu lírico está cansado de ser maltratado pelos dons
de Afrodite. Pari passu, o segundo e o penúltimo poemas tomam Apolo sob ângulos distintos, assim como o terceiro e o antepenúltimo mostram a sensualidade da carne sob prismas
primos. E assim ocorre com todas as partes.
O movimento redacional dos poemas, “milimetricamente concebido como catarse
(ou exorcismo) de uma paixão doentia, depressiva e não correspondida” (PIRES, 2022, p.
9) – novamente, se se acreditar na “Nota do autor” – aponta para outro nível da maturidade
e do trabalho composicional de Piano B. Antônio Pires é poeta amante dos mistérios de
Orfeu, do simbolismo e do barroco e, também, nutre contida antipatia pelas narrativas pós-modernas. Tal perfil psicológico e teórico o faz buscar na antiguidade, ou melhor, no início
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da poesia lírica seus ícones e leitmotivs prediletos. É assim que o mito de Orfeu aparece em
Piano B. Como uma forma de terapia – como tão bem indicou Solange Fiuza Cardoso Yokozawa2 –, o primeiro conjunto de dezoito poemas cantam a famosa descida do eu lírico até a
raiz de seu inferno passional. Poemas como “Nova prece de Orfeu”, “Pétreo” e “Novo Cristo”
denotam os temas do despedaçamento, da negação e do martírio que acometem o poeta em
sua experiência declinante.
O nadir desta caminhada purgatória se dá no poema central do livro, “Porque B.
se ausenta”, onde o eu lírico encontra-se plenamente consciente de sua solidão. Na minha
modesta opinião, é o poema mais racional de todo o livro e representa, do ponto de vista
da catarse/exorcismo/terapia/jornada órfica, o ponto de mutação para o poeta. O segundo
conjunto de dezoito poemas compõe, por conseguinte, a anábase ou subida do eu lírico para
fora de seu Hades emocional. Poemas como “Teu velho Sátiro”, “B. e mais eu em noite etílica” e “Tempestade solar”, apesar de marcados pela lembrança e pela ausência, não apontam
mais para o horizonte de sofrimento e sim para o de júbilo pelo passado prazeroso. O fim
do percurso erótico – ou, no máximo, o fim de Piano B. – é o delicado poema “Novo hino a
Afrodite”, oração singela de uma alma atormentada e cansada pelos devaneios e desvarios
que Eros impôs ao poeta. Finda a viagem, leitor e eu lírico se veem livres, ou novamente expostos, ao capricho dos deuses: Finis coronat opus.
O livro Piano B.: poemas de Antônio Pires é uma lufada de bom gosto, tradição
e zelo linguístico. O leitor afeito à velocidade da informação terá que se resignar à consulta de um bom dicionário, ainda que digital. O leitor médio, apreciador de arte antiga
e poesia encontrará um texto cheio de detalhes e metalinguagem. O leitor especialista,
por sua vez, terá que se esforçar um pouco para encontrar fraquezas em Piano B. Não
que a obra seja perfeita. Nada disso. Particularmente, não vi o mesmo sucesso na estratégia do autor em nomear alguns substantivos com inicial maiúscula quando comparo,
por exemplo, com o uso que fez do ritmo, dos parênteses e da paronímia. Contudo,
minha percepção é limitada pela complexidade do livro. É certo que permaneceram escondidas pistas literárias que escaparam desta resenha. Que o leitor navegue sua própria
Argo pela poesia lírica de Piano B.
2. Em Live de lançamento do livro encontra-se a íntegra da aguda leitura da Profa. Dra. Solange Fiuza Cardoso
Yokozawa (UFG), leitora de Antônio Pires desde o início dos anos 2000, e também os apontamentos teóricos do latinista Prof. Dr. Brunno Vinicius Gonçalves Vieira (UNESP/FCLAr) e do pesquisador Prof. Dr. Leonardo Vicente Vivaldo
(FNSA/Sertãozinho).
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Referências
LANÇAMENTO DE LIVRO DE POESIAS “PIANO B.” DO DOCENTE TOM PIRES E DEBATE COM
CONVIDADOS. Participação de: PIRES, Antônio Donizeti; VIEIRA, Brunno Vinicius Gonçalves; YOKOZAWA, Solange Fiuza Cardoso. Mediação de VIVALDO, Leonardo Vicente. Produção do Canal tvfclar.
[S.l.: s.n.], 2022 (113 min.) Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=w7iaLLOVjV0. Último acesso em 17/08/22.
PIRES, Antônio Donizeti. Piano B.: poemas. 1 ed. São Paulo: Terra Redonda, 2022.
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