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A INTERICONICIDADE COMO ORDEM DISCURSIVA NA
MATERIALIDADE FÍLMICA DE HORROR
Alex Pereira de Araújo (UESB) 1
Nilton Milanez (UESB) 2
Resumo: Este estudo tem como objetivo central redesenhar a noção de intericonicidade
que surgiu no trabalho desenvolvido por Jean-Jacques Courtine em 2003. Para tanto,
vamos propor a inclusão das utopias e das heterotopias como elementos constitutivos
das imagens. Partimos da tese de que toda imagem tem sua inscrição em espaços
sobrepostos por utopias e heterotopias, ao mesmo tempo, julgamos que as memórias
visuais sempre nos remetem à imagem de coisas situadas nos espaços sejam reais ou
imaginários. Toda imagem ecoa outras imagens que forma uma rede em nossa memória
visual. Esta rede de imagens é chamada por Courtine de intericonicidade. Por meio da
intericonicidade será possível criar uma arqueologia do imaginário humano. Em
relação à questão dos espaços, tomamos o trabalho desenvolvido por Foucault. Com a
noção de intericonicidade e os gestos arqueogenealógicos de Foucault, buscamos
compor nossa metodologia para analisar as imagens produzidas em filmes franceses de
horror. A escolha por este tipo de filme se deve ao fato de que nossas angustias e
medos, representados nessas produções, podem ser analisados como objetos de
investigação histórica.
Palavras-chave: Espaços. Discurso-corpo. Intericonicidade. Heterotopia. Utopia.
Introdução
Este trabalho surgiu no seio das discussões realizadas no LABEDISCO,
precisamente, nos vários encontros em que se discutia a questão de como lidar com o
discurso fílmico, enquanto objeto de estudo constituído pelas imagens em movimento
dos corpos em produções fílmicas, sobretudo, as de horror.
Advertimos que a discussão empreendida aqui se aproxima mais dos trabalhos
realizados por Foucault na medida em que optamos por lidar com a análise
1
Bolsista de doutorado da CAPES pelo PPGMLS da UESB, integra a equipe de colaboradores do
Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo (LABEDISCO/CNPq). Realizou estágio doutoral pelo
PDSE da CAPES na Universidade Paris III em 2014 sob a responsabilidade do prof. Dr. Philippe Dubois
do Departamento de Cinema e Audiovisual (CAV). É ainda pesquisador no Projeto Traduzir Derrida:
políticas e desconstruções da UESC (CNPq). alex.scac@hotmail.com
2
Professor titular do DELL da UESB, tem atuado nos programas de Pós-graduação em Linguística e em
Memória: Linguagem e Sociedade, além de coordenar o Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo
da UESB. Realizou estágio pós-doutoral (PDE/CNPq) na Universidade Paris III em 2006, sob a
responsabilidade de Jean-Jacques Courtine. Também atua como professor no curso de Cinema e
Audiovisual. É orientador do referido doutorando.niltonmilanez@gmail.com
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arqueogenealógica que, no dizer de Dreyfus e Rabinow, “representa o mais importante
esforço contemporâneo não só de desenvolver um método para o estudo dos seres
humanos, mas de diagnosticar a situação atual de nossa sociedade” (DREYFUS;
RABINOW, 1995, p. XV).
Foucault, de quem Courtine se inspirou para aperfeiçoar sua noção, declarou em
A ordem do discurso que “as coisas murmuram, de antemão, um sentido, que nossa
linguagem precisa fazer manifestar-se” (FOUCAULT, 1996, p.48). Neste sentido, devese pensar “o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que
lhes impomos em todo caso” (FOUCAULT, 1996, p. 53). Mas “os discursos devem ser
tratados como práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram
ou se excluem” (FOUCAULT, 1996, p. 52-53).
Ao que tudo indica, Foucault buscou evidenciar que as palavras e as coisas se
encontram nos discursos na medida em que vivemos em sociedades dos discursos, lugar
onde “as estruturas da linguagem dão forma à ordem das coisas” (FOUCAULT, 2000,
p. 81). Dessa maneira podemos dizer que “tudo se torna discurso”, (DERRIDA, 1995,
p.232).
O plano da discussão que apresentamos começa com a seção sobre o nascimento
da noção da intericonicidade, quando aí tratamos do seu percurso evolutivo nos
trabalhos de Courtine e da crítica courtiniana à semiologia de Barthes. Em seguida,
discutiremos sobre a questão dos espaços como componente das imagens sejam elas
fixas ou em movimento. Tratamos ainda da intericonicidade como memória do
acontecimento e de seus espaços, e, ao mesmo tempo como dispositivo de verdade ao
fazer uso de imagens e de discursos, efeitos materiais dos acontecimentos.
Uma crítica à semiologia de Barthes no nascimento da intericonicidade
A noção de intericonicidade aparece como ferramenta teórica central em
Courtine, precisamente, no seu seminário sobre antropologia e a história das imagens
em 2003. Sua preocupação inicial era assinalar o caráter discursivo das imagens para se
afastar dos trabalhos que as aproximavam do modelo de língua esboçado no seio do
estruturalismo saussuriano (cf. COURTINE, 2013, p. 157; MILANEZ, 2013b). Para dar
este caráter discursivo a intericonicidade, Courtine buscou aproximá-la da noção de
interdiscurso muito difundida pela escola francesa de análise do discurso de que fez
parte junto com Pêcheux (cf. MILANEZ, 2013a).
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Nesta perspectiva, o interdiscurso é a uma espécie de “discurso-transverso [que]
atravessa e põe em conexão entre si os elementos discursivos constituídos pelo
interdiscurso enquanto pré-construído, que fornece, por assim dizer, a matéria prima na
qual o sujeito se constitui como sujeito falante” (PÊCHEUX, 1997, p. 167). Ao que
parece, este traço ligado ao interdiscurso ficou naquele momento inicial da história da
intericonicidade quando Courtine ainda buscava aperfeiçoá-la, tendo em vista que logo
depois ele optou em redesenhar sua noção com a arqueogenealogia de Foucault, mas
com olhos na semiologia da imagem de Barthes deixando pra trás o interdiscurso, ou
seja, o próprio Courtine afirma que “devemos voltar a Foucault” porque existem
dois elementos que me parecem essenciais na compreensão da dimensão
antropológica e histórica das imagens: trata-se da noção de ‘domínio de
memória’, condição de possibilidade dos saberes; e, novamente, do
‘dispositivo’, que pode esclarecer os poderes inéditos que se advinham no
processo tecnológico de produção e disseminação das imagens [...]
(COURTINE, 2013, p. 155).
Esses dois elementos de que fala Courtine foram tomados dos empreendimentos
realizados por Foucault; o primeiro da arqueologia do saber e o segundo da genealogia
do poder. O domínio de memória diz respeito aos
enunciados que não são mais nem admitidos nem discutidos, que nem
definem mais, consequentemente, nem um corpo de verdade nem de
validades, mas em relação aos quais se estabelecem laços de filiação,
gênese, transformação, continuidade e descontinuidade histórica
(FOUCAULT, 1987, p. 65).
Quanto ao termo dispositivo, ele aparece inicialmente na maquinaria teórica de
Foucault como “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados
científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas” (FOUCAULT, 1979, p. 137). Tanto a
noção de domínio de memória quanto o sentido inicial de dispositivo em Foucault parecem ter
uma relação com a concepção de linguagem desenvolvida por Barthes na medida em que ela
“não é exatamente a do linguista, é uma segunda linguagem, cujas unidades não são
mais monemas ou fonemas, mas fragmentos mais extensos do discurso; estes remetem a
objetos ou episódios que significam sob a linguagem, mas nunca sem ela” (BARTHES,
1971, p. 12, grifo do autor). Nestes termos, observou Deleuze (1992, p.2), “é curioso
como Barthes e Foucault insistirão mais e mais numa pragmática generalizada” capaz
de a linguística renovar.
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Este fato parece ter sido ignorado por Courtine quando diz que partiu “de uma
crítica da semiologia da imagem, da forma como a encontramos junto a Roland Barthes
e em suas incontáveis réplicas, porque ela assemelhou a imagem ao signo linguístico, no
sentido quase saussuriano do termo” (COURTINE, 2013, p. 41); ou seja, “essa
semiologia que teve, sem dúvida nenhuma, o mérito de existir e de promover a questão
da imagem e de sua análise, se distancia muito da compreensão do que é imagem”
(COURTINE apud MILANEZ, 2013b, p. 45). Mas, por outro lado, Courtine diz que “é
preciso, entretanto, reconhecer em Barthes o interesse pelas intuições ulteriores a
respeito da imagem tais como os estudos sobre o ‘obtuso’ em ‘O terceiro sentido’, ou
ainda sobre ‘punctum’ em A câmara clara” (COURTINE apud MILANEZ, 2013b, p.
45).
Ora, se temos, em Barthes, uma concepção de linguagem bem próxima daquela
que Foucault demonstrou em seus empreendimentos, subvertendo as noções de discurso
e de enunciado, então, a crítica que aparece em Decifrar o corpo, feita por Courtine
sobre a semiologia da imagem, não teria razão de existir e isto nos coloca diante do
desafio de resolver tal impasse. O que Barthes quis dizer é que “qualquer sistema
semiológico repassa-se de linguagem” (BARTHES, 1971, p. 12), ou seja, objetos,
imagens, comportamentos podem significar, mas nunca de uma maneira autônoma.
Os argumentos usados por Barthes parecem está em consonância com a
afirmação de Courtine de que “toda imagem se inscreve numa cultura visual, e esta
cultura supõe a existência junto ao indivíduo de uma memória visual, de uma memória
das imagens onde toda memória tem um eco” (COURTINE, 2013, p. 43). Ora, se
Courtine admite que toda imagem tenha inscrição num cultura visual, então, é preciso
aceitar o fato de que as imagens, os objetos, os comportamentos não podem ser tratados
sem considerarmos a rede de significações que os batizam no universo da linguagem
articulada. Não podemos ignorar que as sociedades humanas se tornaram cada vez mais
complexas por causa da linguagem articulada usada para representar e dar significado às
coisas ações que contam com os recursos audiovisuais e digitais. Ao que parece, nossa
memória visual funciona reciprocamente com a linguagem articulada, ou seja, na sua
forma de discurso.
Foucault demonstrou várias vezes que, desde o século XVII, não há mais uma
relação de semelhança entre as palavras e as coisas (imagens). Em análises de pinturas
como Las Meninas, de Velásquez, e como Ceci n’est pas une pipe, de Magritte, mostrou
que “a pintura cessou de afirmar” (FOUCAULT, 2001, p. 263). Em outras palavras:
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Foucault buscou demonstrar que a pintura, a partir do século XVII, perturbou todas as
correspondências tradicionais da linguagem e da imagem (FOUCAULT, 2001, p. 251).
Já Barthes procurou demonstrar que “o mundo da significação não é outro senão o da
linguagem” e que “nós somos, muito mais do que outrora e a despeito da invasão das
imagens, uma civilização da escrita” (BARTHES, 1971, p. 12). Nestes termos, “a
escrita é, na totalidade, ‘o que está por inventar’, a ruptura vertiginosa com o antigo
sistema simbólico, a mutação de toda uma fase de linguagem” (BARTHES, 1972, p.
167).
Por mais que Courtine critique a semiologia da imagem, esboçada por Barthes,
ele reconhece que “a compreensão do funcionamento das imagens como ‘signos’ tornase desde então uma aposta política e teórica importante” (COURTINE, 2013, p. 37). Há
em Barthes uma preocupação com a linguagem, com a significação que damos as
imagens por meio da linguagem. E neste caso, a questão do signo está na ordem da
linguagem. Mas precisamos entender o que é signo para Barthes? O signo, para Barthes,
“na verdade, insere-se numa série de termos afins e dessemelhantes, ao sabor dos
autores: sinal, índice, ícone, alegoria são os principais rivais do signo” (BARTHES,
1971, p. 39). Mas, em linguística, Saussure tratou logo de eliminar imediatamente este
problema, definindo o signo linguístico “como a união de um significante e de um
significado” (BARTHES, 1971, p. 42). Esta precisão saussuriana, de estabelecer e de
definir o signo linguístico, influenciou Barthes a esboçar o signo semiológico; isto é, o
signo linguístico serviu de modelo para o signo semiológico, mas a diferença está na
substância. Enquanto o primeiro se limita ao universo dos sons articulados pelo falante
de uma língua, o segundo lida com diferentes substâncias como: imagens fixas e em
movimento, comportamentos, objetos (vestuário, alimentos) etc.
Se há um pecado em Barthes, ele é causado pelo princípio limitativo restringe
sua análise à busca de “reconstituir o funcionamento dos sistemas de significação da
língua” (BARTHES, 1971, p. 103); Mas este pecado não é de todo grave, visto que a
língua concebida por Barthes não é aquela de Saussure. Sua concepção de linguagem
nos permite estabelecer um diálogo com a arqueogenealogia foucaultiana. A própria
afirmação feita por Courtine de que “o discurso tanto pode ser um fragmento de imagem
quanto uma centelha de linguagem” (COURTINE, 2013, p. 42), ecoa, não apenas a
perspectiva foucaultiana, mas também a concepção de linguagem adotada por Barthes.
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A intericonicidade como memória do acontecimento e dos espaços
A questão da memória sobreposta à questão dos espaços junto às imagens não é
tão recente quanto parece. Ela está ligada a arte da memória. Provavelmente tenha
surgido ainda “na Antiguidade grega e nos foi transmitidas por alguns grandes textos
latinos (o De oratore de Cícero, a Instituitio oratoria de Quintiliano e a Ad Herennium
de autor desconhecido)” (DUBOIS, 1993, p. 314). Os lugares (loci) e as imagens
(imagines) eram “duas noções completamente fundamentais, todo o tempo retomadas
em todos os tratados” sobre a arte da memória (cf. DUBOIS, 1993, p. 314). Nesta
perspectiva, Cícero nos ensina em seu texto De oratore (II, 86, 351-354 apud DUBOIS,
1993, p. 315) que “os lugares são tabuinhas de cera nas quais se inscreve; as imagens
são as letras que nelas se escrevem”. Estes ensinamentos de Cícero nos servem para
repensar a intericonicidade como algo que articula em sua estrutura os loci (lugares,
espaços).
A difusão planetária das imagens, sejam elas fixas (fotografias) ou em
movimento (vídeos/filmes), tem sido responsável por determinar o que memorizamos
dos acontecimentos. Em Regarding The Torture of Others, artigo publicado no New
York Times (23/05/2004), Susan Sontag constatou justamente isso em relação às
fotografias (cf. COURTINE, 2013, p. 156). Mas por mais que se falem das imagens
situando-as a determinado espaço, os loci sempre aparecem como algo acessório quando
na realidade eles “formam a estrutura do dispositivo de memória” (DUBOIS, 1993,
p.315). Ora, se a intericonicidade diz respeito à “rede de reminiscências pessoais e de
memórias coletivas que religam as imagens umas as outras”, como quer Courtine (2013,
p. 157); então não os loci podem ser negligenciados, visto que eles estruturam o
dispositivo de memória. Se no passado eles estavam ligados à Retórica, por que não
tratar deles na intericonicidade, já que ela é uma noção discursiva e de memória? Esta
questão nos leva a defender a tese de que eles são necessários já que fazem parte do
jogo da arte da memória, tendo as imagens e os loci como complementos fundamentais
(cf. DUBOIS, 1993, p.314). Daí, pode se pensar com Cícero que “a ordem dos lugares
conservam a ordem das coisas, pois as imagens lembram as próprias coisas”. Isso nos
faz lembrar de que “mesmo antes de sua reprodução, qualquer objeto já veicula para a
sociedade na qual é reconhecível uma gama de valores dos quais é representante e que
ele ‘conto’: qualquer coisa já é um discurso em si” (VERNET, 1994, p. 90).
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Estamos vivendo numa época de sobreposições não só dos espaços, do encontro
e do desencontro, como constatou Foucault (2001), mas das imagens, das mídias
digitais, da escrita, do audiovisual, do virtual, do hipertexto. Estes recursos midiáticos
têm sido cada vez mais usados no registro de acontecimentos. A Guerra do Vietnã
talvez tenha sido o acontecimento mais fotografado e filmado no século XX. Tais
registros motivaram protestos em todo o mundo, principalmente no Maio de 68,
acontecimento descrito e analisado por Barthes neste mesmo ano (cf. BARTHES,
1968). Em Araújo e Milanez (2015), tratamos de retomar a questão “como pode um
acontecimento ser escrito?” feita por Barthes para demonstrar que os filmes franceses de
horror da primeira década do século XXI, como Frontière(s) e À l’interieur, trazem de
volta alguns acontecimentos políticos em sua estrutura fílmica por meio do uso das
imagens em movimento destes acontecimentos.
As imagens (1) e (2) são exemplos disso. Quando olhamos para a imagem (1),
fotografia premiada feita por Huynh Công Út em 8 de junho de 1972, não vemos apenas
a menina vietnamita Phan Thị Kim Phúc, figura central desta fotografia, juntamente
com outras crianças e soldados, como se fosse uma espécie de “isso é isso, é tal” (cf.
BARTHES, 1984, p. 14, grifo do autor); mas o registro de um acontecimento. Diríamos
com Foucault (1996, p. 57-58, grifo nosso) que o acontecimento “produz-se como efeito
de e em uma dispersão material”. A fotografia feita por Huynh Công Út é parte desta
dispersão material da Guerra do Vietnã.
Sua difusão pela mídia globalizada a
transformou em memória deste acontecimento que ecoou nos quatro cantos do planeta.
Ela está inscrita em nossa memória coletiva, nesta parte da cultura visual globalizada
que compartilhamos.
Imagem 1 - Guerra do Vietnã
Fotografia feita por Huynh Công Út (1972)
Imagem 2 –
Fotograma de Martyrs (2008)
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Quando vemos a imagem (2), um fotograma do filme francês de horror, Martyrs
do diretor Pascal Laugier, lançado em 2008, logo a associamos à imagem (1). Deste
modo, a imagem (2) é o indício da imagem (1). Para Courtine (2013, p. 45),
este tipo de análise permite compreender, de passagem, um dos aspectos
daquilo que a globalização faz às imagens [...] a difusão e a multiplicação
planetária dos objetos da cultura são proporcionais a sua rarefação e a sua
uniformização.
Ora, se “estamos em uma época em que o espaço se oferece a nós sob forma de relação
de posicionamento”, como quer Foucault (2001, p.413), ao discutir a questão dos
espaços, e “a fotografia constitui um dos quadros sociais essenciais da memória
contemporânea, um dos suportes ao mesmo tempo material e físico da cultura visual de
nossas sociedades”, como quer Courtine (2013, p. 157); então, precisamos ouvir a voz
de Barthes dizendo: “Volte à fotografia” (BARTHES, 1984, p.17) para percebermos que
os objetos dispostos no espaço da imagem (1) são efeitos de um acontecimento, a
Guerra do Vietnã, cuja “fotografia transforma o sujeito em objetos, e até mesmo, se é
possível falar assim em objeto de museu” (BARTHES, 1984, p.26). Diríamos que a
imagem (1) é um registro do lugar que conserva a ordem das coisas no acontecimento
da guerra, neste caso, o lugar das vítimas: crianças, idosos, mulheres. É justamente o
posicionamento de vítima que sofre os efeitos de um conflito armado que o filme de
Pascal Laugier vai explorar para iniciar sua trama fílmica. Por isso, quando olhamos a
imagem (2), nosso olhar discursivo nos convida a acessar a imagem (1) perpetuada pela
história como foto de guerra, cujos sujeitos estão pesos à guerra pelo espaço de guerra
registrado pelo ato fotográfico que captura o ataque aéreo, tornando a enunciação
também uma prisioneira de guerra. É este mesmo olhar que atualiza a imagem (1) na
imagem (2).
Neste sentido, a personagem central do filme Martyrs, Lucie, é tão vítima do
sistema quando a menina vietnamita Phan Thị Kim Phúc, figura central da fotografia de
Huynh Công Út. Tanto a história de Lucie quanto a de Kim Phúc se passa no início dos
anos de 1970, época em que nascia Pascal Laugier, auge da Guerra do Vietnã. Mas, ao
contrário de Phan Thị Kim Phúc, que se tornou embaixadora da boa vontade pelas
Nações Unidades, Lucie atormentada pelas lembranças dos martírios que sofria no
cativeiro, ante de fugir, ela revolve se vingar 15 anos mais tarde, e o faz, até perceber
que tudo não acabou porque deixará ser prisioneira e sempre sofrerá outros martírios
que lembram experiências feitas pelos médicos nazistas na II Guerra Mundial. Ao que
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parece, Lucie nunca deixará de ser vítima das lembranças de seus algozes, como aquelas
crianças da foto. A imagem de Phan Thị Kim Phúc fotografada menina a faz dela
prisioneira perpétua, não de guerra, mas da guerra em sua ordem de desumanizar o
humano ou em sua desordem humana que se torna objeto de guerra fotografado.
Em Araújo (2014), tratei de demonstrar que estas redes de imagens e de
discursos, retomados pelos filmes de horror, são atravessadas pelas utopias e pelas
heterotopias na medida em que a maioria delas se inspira em acontecimentos de crises
políticas e lança mão de suas imagens, efeitos materiais desses acontecimentos, como
tratamos em Araújo e Milanez (2015).
As imagens (3), (4) e (5), fotogramas do filme Frontière(s), assinado por Xavier
Gens são exemplos disso: são imagens reais da Crise dos Subúrbios que começou nos
arredores de Paris em 2005 e se espalho por todas as grandes cidades francesas; são
imagens de outros espaços em outro espaço que circulou e circulará por outros espaços.
São utópicas porque estão num espaço fílmico, idealizado para o horror e heterotópicas
porque remetem a outro espaço. Mas há uma questão latente devemos esclarecer por
que estas imagens estão sendo utilizadas num filme deste tipo?
Imagem 3
Imagem 4
imagem 5
Fotogramas de Frontière(s) (2007)
Diríamos que elas, as imagens (3), (4) e (5), fazem parte do dispositivo (fílmico)
de verdade para dar o efeito de verdade à história mostrada. Ao que tudo indica este
agenciamento da verdade por meio do uso de imagens reais em filmes de horror tenha
surgido na década de 1970, com os trabalhos dos diretores americanos George Andrew
Romero e Wes Craven (cf. ARAUJO; MILANEZ, 2015). Em trabalhos anteriores, o
nomeamos de efeito de verdade, hoje rebatizamos de dispositivo, já que se trata de
agenciamento da verdade para dar o efeito de verdade não apenas nos filmes de horror,
mas de produções que tentam criar um clima de documentário.
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Considerações finais
Prometemos incialmente tratar do tema que aparece no título, mas acabamos
saindo em defesa de Barthes na crítica feita por Courtine; quando nos damos conta já
não havia tanto espaço para explorar, de forma ontológica, mais a relação entre a
fotografia feita por Huynh Công Út com o fotograma do filme Martyrs. Apesar disso,
conseguimos falar, de uma maneira bastante breve, sobre o dispositivo de verdade nos
filmes de horror e dos loci (lugares, espaços) como responsáveis pela estrutura do
dispositivo de memória. Por isso, a questão dos espaços não pode ser negligenciada na
intericonicidade. Neste sentido, a intericonicidade, como noção discursiva, que supõe
relacionar conexões de imagens não pode ser pensada sem o componente espacial, já
que este forma a estrutura do dispositivo de memória e esta é atravessada por utopias e
heterotopias. Mas ainda julgamos que a noção de intericonicidade é tão tributária de
Foucault, quando de Barthes. Mesmo Courtine procurando distanciá-la da semiologia da
imagem de Barthes, isto serve como limite daquilo que ela é e daquilo que ela não é. O
que não foi possível discutir aqui, faremos em futuras discussões.
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