O Mal-estar na Civilização
Sigmund Freud
I
É impossível fugir à impressão de que as pessoas comumente empregam falsos
padrões de avaliação – isto é, de que buscam poder, sucesso e riqueza para elas
mesmas e os admiram nos outros, subestimando tudo aquilo que verdadeiramente tem
valor na vida. No entanto, ao formular qualquer juízo geral desse tipo, corremos o
risco de esquecer quão variados são o mundo humano e sua vida mental. Existem
certos homens que não contam com a admiração de seus contemporâneos, embora a
grandeza deles repouse em atributos e realizações completamente estranhos aos
objetivos e aos ideais da multidão. Facilmente, poder-se-ia ficar inclinado a supor que,
no final das contas, apenas uma minoria aprecia esses grandes homens, ao passo que a
maioria pouco se importa com eles. Contudo, devido não só às discrepâncias existentes
entre os pensamentos das pessoas e as suas ações, como também à diversidade de seus
impulsos plenos de desejo, as coisas provavelmente não são tão simples assim.
Um desses seres excepcionais refere-se a si mesmo como meu amigo nas cartas
que me remete. Enviei-lhe o meu pequeno livro que trata a religião como sendo uma
ilusão, e ele me respondeu que concordava inteiramente com esse meu juízo,
lamentando, porém, que eu não tivesse apreciado corretamente a verdadeira fonte da
religiosidade. Esta, diz ele, consiste num sentimento peculiar, que ele mesmo jamais
deixou de ter presente em si, que encontra confirmado por muitos outros e que pode
imaginar atuante em milhões de pessoas. Trata-se de um sentimento que ele gostaria
de designar como uma sensação de ‘eternidade’, um sentimento de algo ilimitado, sem
fronteiras – ‘oceânico’, por assim dizer. Esse sentimento, acrescenta, configura um
fato puramente subjetivo, e não um artigo de fé; não traz consigo qualquer garantia
de imortalidade pessoal, mas constitui a fonte da energia religiosa de que se apoderam
as diversas Igrejas e sistemas religiosos, é por eles veiculado para canais específicos e,
indubitavelmente, também por eles exaurido. Acredita ele que uma pessoa, embora
rejeite toda crença e toda ilusão, pode corretamente chamar-se a si mesma de religiosa
com fundamento apenas nesse sentimento oceânico.As opiniões expressas por esse
amigo que tanto respeito, e que outrora já louvara a magia da ilusão num poema,
causaram-me não pequena dificuldade. Não consigo descobrir em mim esse
sentimento ‘oceânico’. Não é fácil lidar cientificamente com sentimentos. Pode-se
tentar descrever os seus sinais fisiológicos. Onde isso não é possível – e temo que
também o sentimento oceânico desafie esse tipo de caracterização –, nada resta senão
cair no conteúdo ideacional que, de forma mais imediata, está associado ao
sentimento. Se compreendi corretamente o meu amigo, ele quer significar, com esse
sentimento, a mesma coisa que o consolo oferecido por um dramaturgo original e um
tanto excêntrico ao seu herói que enfrenta uma morte auto-infligida: ‘Não podemos
pular para fora deste mundo.Isso equivale a dizer que se trata do sentimento de um
vínculo indissolúvel, de ser uno com o mundo externo como um todo. Posso observar
que, para mim, isto parece, antes, algo da natureza de uma percepção intelectual, que,
na verdade, pode vir acompanhada de um tom de sentimento, embora apenas da
forma como este se acharia presente em qualquer outro ato de pensamento de igual
alcance. Segundo minha própria experiência, não consegui convencer-me da natureza
primária desse sentimento; isso, porém, não me dá o direito de negar que ele de fato
ocorra em outras pessoas. A única questão consiste em verificar se está sendo
corretamente interpretado e se deve ser encarado como a fons et origo de toda a
necessidade de religião.
Nada tenho a sugerir que possa exercer influência decisiva na solução desse
problema. A idéia de os homens receberem uma indicação de sua vinculação com o
mundo que os cerca por meio de um sentimento imediato que, desde o início, é
dirigido para esse fim, soa de modo tão estranho e se ajusta tão mal ao contexto de
nossa psicologia, que se torna justificável a tentativa de descobrir uma explicação
psicanalítica – isto é, genética – para esse sentimento. A linha de pensamento que se
segue, sugere isso por si mesma. Normalmente, não nada de que possamos estar mais
certos do que do sentimento de nosso eu, do nosso próprio ego. O ego nos aparece
como algo autônomo e unitário, distintamente demarcado de tudo o mais. Ser essa
aparência enganadora – apesar de que, pelo contrário, o ego seja continuado para
dentro, sem qualquer delimitação nítida, por uma entidade mental inconsciente que
designamos como id, à qual o ego serve como uma espécie de fachada –, configurou
uma descoberta efetuada pela primeira vez através da pesquisa psicanalítica, que, de
resto, ainda deve ter muito mais a nos dizer sobre o relacionamento do ego com o id.
No sentido do exterior, porém, o ego de qualquer modo, parece manter linhas de
demarcação bem e claras e nítidas. Há somente um estado – indiscutivelmente fora o
comum, embora não possa estigmatizado como patológico – em que ele não se
apresenta assim. No auge do sentimento de amor, a fronteira entre ego e objeto
ameaça desaparecer.Contra todas as provas de seus sentidos, um homem que se ache
enamorado declara que ‘eu’ e ‘tu’ são um só, e está preparado para se conduzir como
se isso constituísse um fato. Aquilo que pode ser temporariamente eliminado por uma
função fisiológica [isto é, normal] deve também, naturalmente, estar sujeito a
perturbações causadas por processos patológicos. A patologia nos familiarizou com
grande número de estados em que as linhas fronteiriças entre o ego e o mundo externo
se tornam incertas, ou nos quais, na realidade, elas se acham incorretamente traçadas.
Há casos em que partes do próprio corpo de uma pessoa, inclusive partes de sua
própria vida mental – suas percepções, pensamentos e sentimentos –, lhe parecem
estranhas e como não pertencentes a seu ego; há outros casos em que a pessoa atribui
ao mundo externo coisas que claramente se originam em seu próprio ego e que por
este deveriam ser reconhecidas. Assim, até mesmo o sentimento de nosso próprio ego
está sujeito a distúrbios, e as fronteiras do ego não são permanentes.
Uma reflexão mais apurada nos diz que o sentimento do ego do adulto não pode
ter sido o mesmo desde o início. Deve ter passado por um processo de
desenvolvimento, que, se não pode ser demonstrado, pode ser construído com um
razoável grau de probabilidade. Uma criança recém-nascida ainda não distingue o seu
ego do mundo externo como fonte das sensações que fluem sobre ela. Aprende
gradativamente a fazê-lo, reagindo a diversos estímulos. Ela deve ficar fortemente
impressionada pelo fato de certas fontes de excitação, que posteriormente identificará
como sendo os seus próprios órgãos corporais, poderem provê-la de sensações a
qualquer momento, ao passo que, de tempos em tempos, outras fontes lhe fogem –
entre as quais se destaca a mais desejada de todas, o seio da mãe –, só reaparecendo
como resultado de seus gritos de socorro. Desse modo, pela primeira vez, o ego é
contrastado por um ‘objeto’, sob a forma de algo que existe ‘exteriormente’ e que só é
forçado a surgir através de uma ação especial. Um outro incentivo para o
desengajamento do ego com relação à massa geral de sensações – isto é, para o
reconhecimento de um ‘exterior’, de um mundo externo – é proporcionado pelas
freqüentes, múltiplas e inevitáveis sensações de sofrimento e desprazer, cujo
afastamento e cuja fuga são impostos pelo princípio do prazer, no exercício de seu
irrestrito domínio. Surge, então, uma tendência a isolar do ego tudo que pode tornarse fonte de tal desprazer, a lançá-lo para fora e a criar um puro ego em busca de
prazer, que sofre o confronto de um ‘exterior’ estranho e ameaçador. As fronteiras
desse primitivo ego em busca de prazer não podem fugir a uma retificação através da
experiência. Entretanto, algumas das coisas difíceis de serem abandonadas, por
proporcionarem prazer, são, não ego, mas objeto, e certos sofrimentos que se procura
extirpar mostram-se inseparáveis do ego, por causa de sua origem interna. Assim,
acaba-se por aprender um processo através do qual, por meio de uma direção
deliberada das próprias atividades sensórias e de uma ação muscular apropriada, se
pode diferenciar entre o que é interno – ou seja, que pertence ao ego – e o que é
externo – ou seja, que emana do mundo externo. Desse modo, dá-se o primeiro passo
no sentido da introdução do princípio da realidade, que deve dominar o
desenvolvimento futuro. Essa diferenciação, naturalmente, serve à finalidade prática
de nos capacitar para a defesa contra sensações de desprazer que realmente sentimos
ou pelas quais somos ameaçados. A fim de desviar certas excitações desagradáveis que
surgem do interior, o ego não pode utilizar senão os métodos que utiliza contra o
desprazer oriundo do exterior, e este é o ponto de partida de importantes distúrbios
patológicos.Desse modo, então, o ego se separa do mundo externo. Ou, numa
expressão mais correta, originalmente o ego inclui tudo; posteriormente, separa, de si
mesmo, um mundo externo. Nosso presente sentimento do ego não passa, portanto, de
apenas um mirrado resíduo de um sentimento muito mais inclusivo – na verdade,
totalmente abrangente –, que corresponde a um vínculo mais íntimo entre o ego e o
mundo que o cerca. Supondo que há muitas pessoas em cuja vida mental esse
sentimento primário do ego persistiu em maior ou menor grau, ele existiria nelas ao
lado do sentimento do ego mais estrito e mais nitidamente demarcado da maturidade,
como uma espécie de correspondente seu. Nesse caso, o conteúdo ideacional a ele
apropriado seria exatamente o de ilimitabilidade e o de um vínculo com o universo –
as mesmas idéias com que meu amigo elucidou o sentimento ‘oceânico’.
Contudo, terei eu o direito de presumir a sobrevivência de algo que já se
encontrava originalmente lá, lado a lado com o que posteriormente dele se derivou?
Sem dúvida, sim. Nada existe de estranho em tal fenômeno, tanto no campo mental
como em qualquer outro. No reino animal, atemo-nos à opinião de que as espécies
mais altamente desenvolvidas se originaram das mais baixas; no entanto, ainda hoje,
encontramos em existência todas as formas simples. A raça dos grandes sáurios se
extinguiu e abriu caminho para os mamíferos; o crocodilo, porém, legítimo
representante dos sáurios, ainda vive entre nós. Essa analogia pode ser excessivamente
remota, além de debilitada pela circunstância de as espécies inferiores sobreviventes
não serem, em sua maioria, os verdadeiros ancestrais das espécies mais altamente
desenvolvidas dos dias atuais. Via de regra, os elos intermediários extinguiram-se, e só
os conhecemos através de reconstruções. No domínio da mente, por sua vez, o
elemento primitivo se mostra tão comumente preservado, ao lado da versão
transformada que dele surgiu, que se faz desnecessário fornecer exemplos como
prova. Quando isso ocorre, é geralmente em conseqüência de uma divergência no
desenvolvimento: determinada parte (no sentido quantitativo) de uma atitude ou de
um impulso instintivo permaneceu inalterada, ao passo que outra sofreu um
desenvolvimento ulterior.
Esse fato nos conduz ao problema mais geral da preservação na esfera da
mente. O assunto mal foi estudado ainda, mas é tão atraente e importante, que nos
será permitido voltarmos um pouco nossa atenção para ele, ainda que nossa desculpa
seja insuficiente. Desde que superamos o erro de supor que o esquecimento com que
nos achamos familiarizados significava a destruição do resíduo mnêmico – isto é, a sua
aniquilação –, ficamos inclinados a assumir o ponto de vista oposto, ou seja, o de que,
na vida mental, nada do que uma vez se formou pode perecer – o de que tudo é, de
alguma maneira, preservado e que, em circunstâncias apropriadas (quando, por
exemplo, a regressão volta suficientemente atrás), pode ser trazido de novo à luz.
Tentemos apreender o que essa suposição envolve, estabelecendo uma analogia com
outro campo. Escolheremos como exemplo a história da Cidade Eterna. Os
historiadores nos dizem que a Roma mais antiga foi a Roma Quadrata, uma povoação
sediada sobre o Palatino. Seguiu-se a fase dos Septimontium, uma federação das
povoações das diferentes colinas; depois, veio a cidade limitada pelo Muro de Sérvio e,
mais tarde ainda, após todas as transformações ocorridas durante os períodos da
república e dos primeiros césares, a cidade que o imperador Aureliano cercou com as
suas muralhas. Não acompanharemos mais as modificações por que a cidade passou;
perguntar-nos-emos, porém, o quanto um visitante, que imaginaremos munido do
mais completo conhecimento histórico e topográfico, ainda pode encontrar, na Roma
de hoje, de tudo que restou dessas primeiras etapas. À exceção de umas poucas
brechas, verá o Muro de Aureliano quase intacto. Em certas partes, poderá encontrar
seções do Muro de Sérvio que foram escavadas e trazidas à luz. Se souber bastante –
mais do que a arqueologia atual conhece –, talvez possa traçar na planta da cidade
todo o perímetro desse muro e o contorno da Roma Quadrata. Dos prédios que outrora
ocuparam essa antiga área, nada encontrará, ou, quando muito, restos escassos, já que
não existem mais. No máximo, as melhores informações sobre a Roma da era
republicana capacitariam-no apenas a indicar os locais em que os templos e edifícios
públicos daquele período se erguiam. Seu sítio acha-se hoje tomado por ruínas, não
pelas ruínas deles próprios, mas pelas de restaurações posteriores, efetuadas após
incêndios ou outros tipos de destruição. Também faz-se necessário observar que todos
esses remanescentes da Roma antiga estão mesclados com a confusão de uma grande
metrópole, que se desenvolveu muito nos últimos séculos, a partir da Renascença. Sem
dúvida, já não há nada que seja antigo, enterrado no solo da cidade ou sob os edifícios
modernos. Este é o modo como se preserva o passado em sítios históricos como Roma.
Permitam-nos agora, num vôo da imaginação, supor que Roma não é uma habitação
humana, mas uma entidade psíquica, com um passado semelhantemente longo e
abundante – isto é, uma entidade onde nada do que outrora surgiu desapareceu e
onde todas as fases anteriores de desenvolvimento continuam a existir, paralelamente
à última. Isso significaria que, em Roma, os palácios dos césares e as Septizonium de
Sétimo Severo ainda se estariam erguendo em sua antiga altura sobre o Palatino e que
o castelo de Santo Ângelo ainda apresentaria em suas ameias as belas estátuas que o
adornavam até a época do cerco pelos godos, e assim por diante. Mais do que isso: no
local ocupado pelo Palazzo Cafarelli, mais uma vez se ergueria – sem que o Palazzo
tivesse de ser removido – o Templo de Júpiter Capitolino, não apenas em sua última
forma, como os romanos do Império o viam, mas também na primitiva, quando
apresentava formas etruscas e era ornamentado por antefixas de terracota. Ao mesmo
tempo, onde hoje se ergue o Coliseu, poderíamos admirar a desaparecida Casa
Dourada, de Nero. Na Praça do Panteão encontraríamos não apenas o atual, tal como
legado por Adriano, mas, aí mesmo, o edifício original levantado por Agripa; na
verdade, o mesmo trecho de terreno estaria sustentando a Igreja de Santa Maria
sobre Minerva e o antigo templo sobre o qual ela foi construída. E talvez o observador
tivesse apenas de mudar a direção do olhar ou a sua posição para invocar uma visão
ou a outra.
A essa altura não faz sentido prolongarmos nossa fantasia, de uma vez que ela
conduz a coisas inimagináveis e mesmo absurdas. Se quisermos representar a
seqüência histórica em termos espaciais, só conseguiremos fazê-lo pela justaposição no
espaço: o mesmo espaço não pode ter dois conteúdos diferentes. Nossa tentativa
parece ser um jogo ocioso. Ela conta com apenas uma justificativa. Mostra quão longe
estamos de dominar as características da vida mental através de sua representação em
termos pictóricos.
Há outra objeção a ser considerada. Pode-se levantar a questão da razão por
que escolhemos precisamente o passado de uma cidade para compará-lo com o
passado da mente. A suposição de que tudo o que passou é preservado se aplica,
mesmo na vida mental, só com a condição de que o órgão da mente tenha
permanecido intacto e que seus tecidos não tenham sido danificados por trauma ou
inflamação. Mas influências destrutivas que possam ser comparadas a causas de
enfermidade como as citadas acima nunca faltam na história de uma cidade, ainda
que tenha tido um passado menos diversificado que o de Roma, e ainda que, como
Londres, mal tenha sofrido com as visitas de um inimigo. Demolições e substituições
de prédios ocorrem no decorrer do mais pacífico desenvolvimento de uma cidade.
Uma cidade é, portanto, a priori, inapropriada para uma comparação desse tipo com
um organismo mental.
Curvamo-nos ante essa objeção e, abandonando nossa tentativa de esboçar um
contraste impressivo, nos voltaremos para o que, afinal de contas, constitui um objeto
de comparação mais estreitamente relacionado: o corpo de um animal ou o de um ser
humano. Aqui também, no entanto, encontramos a mesma coisa. As primeiras fases
do desenvolvimento já não se acham, em sentido algum, preservadas; foram
absorvidas pelas fases posteriores, às quais forneceram material. O embrião não pode
ser descoberto no adulto. A glândula do timo da infância, sendo substituída, após a
puberdade, por tecidos de ligação, não mais se apresenta como tal; nas medulas ósseas
do homem adulto posso, sem dúvida, traçar o contorno do osso infantil, embora este
tenha desaparecido, alongando-se e espessando-se até atingir sua forma definitiva.
Permanecem o fato de que só na mente é possível a preservação de todas as etapas
anteriores, lado a lado com a forma final, e o de que não estamos em condições de
representar esse fenômeno em termos pictóricos.
Talvez estejamos levando longe demais essa reflexão. Talvez devêssemos
contentar-nos em afirmar que o que se passou na vida mental pode ser preservado,
não sendo, necessariamente, destruído. É sempre possível que, mesmo na mente, algo
do que é antigo seja apagado ou absorvido – quer no curso normal das coisas, quer
como exceção – a tal ponto, que não possa ser restaurado nem revivescido por meio
algum, ou que a preservação em geral dependa de certas condições favoráveis. É
possível, mas nada sabemos a esse respeito. Podemos apenas prender-nos ao fato de
ser antes regra, e não exceção, o passado achar-se preservado na vida mental.
Assim, estamos perfeitamente dispostos a reconhecer que o sentimento
‘oceânico’ existe em muitas pessoas, e nos inclinamos a fazer sua origem remontar a
uma fase primitiva do sentimento do ego. Surge então uma nova questão: que direito
tem esse sentimento de ser considerado como a fonte das necessidades religiosas.
Esse direito não me parece obrigatório. Afinal de contas, um sentimento só
poderá ser fonte de energia se ele próprio for expressão de uma necessidade intensa. A
derivação das necessidades religiosas, a partir do desamparo do bebê e do anseio pelo
pai que aquela necessidade desperta, parece-me incontrovertível, desde que, em
particular, o sentimento não seja simplesmente prolongado a partir dos dias da
infância, mas permanentemente sustentado pelo medo do poder superior do Destino.
Não consigo pensar em nenhuma necessidade da infância tão intensa quanto a da
proteção de um pai. Dessa maneira, o papel desempenhado pelo sentimento oceânico,
que poderia buscar algo como a restauração do narcisismo ilimitado, é deslocado de
um lugar em primeiro plano. A origem da atitude religiosa pode ser remontada, em
linhas muito claras, até o sentimento de desamparo infantil. Pode haver algo mais por
trás disso, mas, presentemente, ainda está envolto em obscuridade.
Posso imaginar que o sentimento oceânico se tenha vinculado à religião
posteriormente. A ‘unidade com o universo’, que constitui seu conteúdo ideacional,
soa como uma primeira tentativa de consolação religiosa, como se configurasse uma
outra maneira de rejeitar o perigo que o ego reconhece a ameaçá-lo a partir do mundo
externo. Permitam-me admitir mais uma vez que para mim é muito difícil trabalhar
com essas quantidades quase intangíveis. Outro amigo meu, cuja insaciável vontade
de saber o levou a realizar as experiências mais inusitadas, acabando por lhe dar um
conhecimento enciclopédico, assegurou-me que, através das práticas de ioga, pelo
afastamento do mundo, pela fixação da atenção nas funções corporais e por métodos
peculiares de respiração, uma pessoa pode de fato evocar em si mesma novas
sensações e cenestesias, consideradas estas como regressões a estados primordiais da
mente que há muito tempo foram recobertos. Ele vê nesses estados uma base, por
assim dizer fisiológica, de grande parte da sabedoria do misticismo. Não seria difícil
descobrir aqui vinculações com certo número de obscuras modificações da vida
mental, tais como os transes e os êxtases. Contudo, sou levado a exclamar, como nas
palavras do mergulhador de Schiller: ‘…Es freue sich, Wer da atmet im rosigten
Licht.’
II
Em meu trabalho O Futuro de uma Ilusão [1927c], estava muito menos
interessado nas fontes mais profundas do sentimento religioso do que naquilo que o
homem comum entende como sua religião – o sistema de doutrinas e promessas que,
por um lado, lhe explicam os enigmas deste mundo com perfeição invejável, e que, por
outro, lhe garantem que uma Providência cuidadosa velará por sua vida e o
compensará, numa existência futura, de quaisquer frustrações que tenha
experimentado aqui. O homem comum só pode imaginar essa Providência sob a
figura de um pai ilimitadamente engrandecido. Apenas um ser desse tipo pode
compreender as necessidades dos filhos dos homens, enternecer-se com suas preces e
aplacar-se com os sinais de seu remorso. Tudo é tão patentemente infantil, tão
estranho à realidade, que, para qualquer pessoa que manifeste uma atitude amistosa
em relação à humanidade, é penoso pensar que a grande maioria dos mortais nunca
será capaz de superar essa visão da vida. Mais humilhante ainda é descobrir como é
vasto o número de pessoas de hoje que não podem deixar de perceber que essa religião
é insustentável e, não obstante isso, tentam defendê-la, item por item, numa série de
lamentáveis atos retrógrados. Gostaríamos de nos mesclar às fileiras dos crentes, a
fim de encontrarmos aqueles filósofos que consideram poder salvar o Deus da religião,
substituindo-o por um princípio impessoal, obscuro e abstrato, e dirigirmos-lhes as
seguintes palavras de advertência: ‘Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão!’
E, se alguns dos grandes homens do passado agiram da mesma maneira, de modo
nenhum se pode invocar seu exemplo: sabemos por que foram obrigados a isso.
Retornemos ao homem comum e à sua religião, a única que deveria levar esse
nome. A primeira coisa em que pensamos é na bem conhecida expressão de um de
nossos maiores poetas e pensadores, referindo-se à relação da religião com a arte e a
ciência:
Wer Wissenschaft und Kunst besitzt, hat auch Religion; Wer jene beide nicht besitzt,
der habe Religion!
Esses dois versos, por um lado, traçam uma antítese entre a religião e as duas
mais altas realizações do homem, e, por outro, asseveram que, com relação ao seu
valor na vida, essas realizações e a religião podem representar-se ou substituir-se
mutuamente. Se também nos dispusermos a privar o homem comum [que não possui
nem ciência nem arte] de sua religião, é claro que não teremos de nosso lado a
autoridade do poeta. Escolheremos um caminho específico para nos aproximarmos
mais de uma justa apreciação de suas palavras. A vida, tal como a encontramos, é
árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas
impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos dispensar as medidas paliativas. ‘Não
podemos passar sem construções auxiliares’, diz-nos Theodor Fontane. Existem talvez
três medidas desse tipo: derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz de nossa
desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que nos
tornam insensíveis a ela. Algo desse tipo é indispensável. Voltaire tinha os derivativos
em mente quando terminou Candide com o conselho para cultivarmos nosso próprio
jardim, e a atividade científica constitui também um derivativo dessa espécie. As
satisfações substitutivas, tal como as oferecidas pela arte, são ilusões, em contraste
com a realidade; nem por isso, contudo, se revelam menos eficazes psiquicamente,
graças ao papel que a fantasia assumiu na vida mental. As substâncias tóxicas
influenciam nosso corpo e alteram a sua química. Não é simples perceber onde a
religião encontra o seu lugar nessa série. Temos de pesquisar mais adiante.
A questão do propósito da vida humana já foi levantada várias vezes; nunca,
porém, recebeu resposta satisfatória e talvez não a admita. Alguns daqueles que a
formularam acrescentaram que, se fosse demonstrado que a vida não tem propósito,
esta perderia todo valor para eles. Tal ameaça, porém, não altera nada. Pelo
contrário, faz parecer que temos o direito de descartar a questão, já que ela parece
derivar da presunção humana, da qual muitas outras manifestações já nos são
familiares. Ninguém fala sobre o propósito da vida dos animais, a menos, talvez, que
se imagine que ele resida no fato de os animais se acharem a serviço do homem.
Contudo, tampouco essa opinião é sustentável, de uma vez que existem muitos animais
de que o homem nada pode se aproveitar, exceto descrevê-los, classificá-los e estudálos; ainda assim, inumeráveis espécies de animais escaparam inclusive a essa
utilização, pois existiram e se extinguiram antes que o homem voltasse seus olhos para
elas. Mais uma vez, só a religião é capaz de resolver a questão do propósito da vida.
Dificilmente incorreremos em erro ao concluirmos que a idéia de a vida possuir um
propósito se forma e desmorona com o sistema religioso.Voltar-nos-emos, portanto,
para uma questão menos ambiciosa, a que se refere àquilo que os próprios homens,
por seu comportamento, mostram ser o propósito e a intenção de suas vidas. O que
pedem eles da vida e o que desejam nela realizar? A resposta mal pode provocar
dúvidas. Esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer.
Essa empresa apresenta dois aspectos: uma meta positiva e uma meta negativa. Por
um lado, visa a uma ausência de sofrimento e de desprazer; por outro, à experiência
de intensos sentimentos de prazer. Em seu sentido mais restrito, a palavra ‘felicidade’
só se relaciona a esses últimos. Em conformidade a essa dicotomia de objetivos, a
atividade do homem se desenvolve em duas direções, segundo busque realizar – de
modo geral ou mesmo exclusivamente – um ou outro desses objetivos.
Como vemos, o que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do
princípio do prazer. Esse princípio domina o funcionamento do aparelho psíquico
desde o início. Não pode haver dúvida sobre sua eficácia, ainda que o seu programa se
encontre em desacordo com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o
microcosmo. Não há possibilidade alguma de ele ser executado; todas as normas do
universo são-lhe contrárias. Ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o
homem seja ‘feliz’ não se acha incluída no plano da ‘Criação’. O que chamamos de
felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência, repentina) de
necessidades represadas em alto grau, sendo, por sua natureza, possível apenas como
uma manifestação episódica. Quando qualquer situação desejada pelo princípio do
prazer se prolonga, ela produz tão-somente um sentimento de contentamento muito
tênue. Somos feitos de modo a só podermos derivar prazer intenso de um contraste, e
muito pouco de um determinado estado de coisas.
Assim, nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa
própria constituição. Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar. O
sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à
decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a
ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra
nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos
relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte
talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro. Tendemos a encará-lo como uma
espécie de acréscimo gratuito, embora ele não possa ser menos fatidicamente
inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes.
Não admira que, sob a pressão de todas essas possibilidades de sofrimento, os
homens se tenham acostumado a moderar suas reivindicações de felicidade – tal como,
na verdade, o próprio princípio do prazer, sob a influência do mundo externo, se
transformou no mais modesto princípio da realidade –, que um homem pense ser ele
próprio feliz, simplesmente porque escapou à infelicidade ou sobreviveu ao
sofrimento, e que, em geral, a tarefa de evitar o sofrimento coloque a de obter prazer
em segundo plano. A reflexão nos mostra que é possível tentar a realização dessa
tarefa através de caminhos muito diferentes e que todos esses caminhos foram
recomendados pelas diversas escolas de sabedoria secular e postos em prática pelos
homens. Uma satisfação irrestrita de todas as necessidades apresenta-se-nos como o
método mais tentador de conduzir nossas vidas; isso, porém, significa colocar o gozo
antes da cautela, acarretando logo o seu próprio castigo. Os outros métodos, em que a
fuga do desprazer constitui o intuito primordial, diferenciam-se de acordo com a fonte
de desprazer para a qual sua atenção está principalmente voltada. Alguns desses
métodos são extremados; outros, moderados; alguns são unilaterais; outros atacam o
problema, simultaneamente, em diversos pontos. Contra o sofrimento que pode advir
dos relacionamentos humanos, a defesa mais imediata é o isolamento voluntário, o
manter-se à distância das outras pessoas. A felicidade passível de ser conseguida
através desse método é, como vemos, a felicidade da quietude. Contra o temível
mundo externo, só podemos defender-nos por algum tipo de afastamento dele, se
pretendermos solucionar a tarefa por nós mesmos. Há, é verdade, outro caminho, e
melhor: o de tornar-se membro da comunidade humana e, com o auxílio de uma
técnica orientada pela ciência, passar para o ataque à natureza e sujeitá-la à vontade
humana. Trabalha-se então com todos para o bem de todos. Contudo, os métodos
mais interessantes de evitar o sofrimento são os que procuram influenciar o nosso
próprio organismo. Em última análise, todo sofrimento nada mais é do que sensação;
só existe na medida em que o sentimos, e só o sentimos como conseqüência de certos
modos pelos quais nosso organismo está regulado.O mais grosseiro, embora também o
mais eficaz, desses métodos de influência é o químico: a intoxicação. Não creio que
alguém compreenda inteiramente o seu mecanismo; é fato, porém, que existem
substâncias estranhas, as quais, quando presentes no sangue ou nos tecidos, provocam
em nós, diretamente, sensações prazerosas, alterando, também, tanto as condições que
dirigem nossa sensibilidade, que nos tornamos incapazes de receber impulsos
desagradáveis. Os dois efeitos não só ocorrem de modo simultâneo, como parecem
estar íntima e mutuamente ligados. No entanto, é possível que haja substâncias na
química de nossos próprios corpos que apresentem efeitos semelhante pois
conhecemos pelo menos um estado patológico, a mania, no qual uma condição
semelhante à intoxicação surge sem administração de qualquer droga intoxicante.
Além disso, nossa vida psíquica normal apresenta oscilações entre uma liberação de
prazer relativamente fácil e outra comparativamente difícil, paralela à qual ocorre
uma receptividade, diminuída ou aumentada, ao desprazer. É extremamente
lamentável que até agora esse lado tóxico dos processos mentais tenha escapado ao
exame científico. O serviço prestado pelos veículos intoxicantes na luta pela felicidade
e no afastamento da desgraça é tão altamente apreciado como um benefício, que tanto
indivíduos quanto povos lhes concederam um lugar permanente na economia de sua
libido. Devemos a tais veículos não só a produção imediata de prazer, mas também
um grau altamente desejado de independência do mundo externo, pois sabe-se que,
com o auxílio desse ‘amortecedor de preocupações’, é possível, em qualquer ocasião,
afastar-se da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com
melhores condições de sensibilidade. Sabe-se igualmente que é exatamente essa
propriedade dos intoxicantes que determina o seu perigo e a sua capacidade de causar
danos. São responsáveis, em certas circunstâncias, pelo desperdício de uma grande
quota de energia que poderia ser empregada para o aperfeiçoamento do destino
humano.
A complicada estrutura de nosso aparelho mental admite, contudo, um grande
número de outras influências. Assim como a satisfação do instinto equivale para nós à
felicidade, assim também um grave sofrimento surge em nós, caso o mundo externo
nos deixe definhar, caso se recuse a satisfazer nossas necessidades. Podemos, portanto,
ter esperanças de nos libertarmos de uma parte de nossos sofrimentos, agindo sobre
os impulsos instintivos. Esse tipo de defesa contra o sofrimento se aplica mais ao
aparelho sensorial; ele procura dominar as fontes internas de nossas necessidades. A
forma extrema disso é ocasionada pelo aniquilamento dos instintos, tal como prescrito
pela sabedoria do mundo peculiar ao Oriente e praticada pelo ioga. Caso obtenha
êxito, o indivíduo, é verdade, abandona também todas as outras atividades: sacrifica a
sua vida e, por outra via, mais uma vez atinge apenas a felicidade da quietude.
Seguimos o mesmo caminho quando os nossos objetivos são menos extremados e
simplesmente tentamos controlar nossa vida instintiva. Nesse caso, os elementos
controladores são os agentes psíquicos superiores, que se sujeitaram ao princípio da
realidade. Aqui, a meta da satisfação não é, de modo algum, abandonada, mas
garante-se uma certa proteção contra o sofrimento no sentido de que a não-satisfação
não é tão penosamente sentida no caso dos instintos mantidos sob dependência como
no caso dos instintos desinibidos. Contra isso, existe uma inegável diminuição nas
potencialidades de satisfação. O sentimento de felicidade derivado da satisfação de um
selvagem impulso instintivo não domado pelo ego é incomparavelmente mais intenso
do que o derivado da satisfação de um instinto que já foi domado. A irresistibilidade
dos instintos perversos e, talvez, a atração geral pelas coisas proibidas encontram aqui
uma explicação econômica.
Outra técnica para afastar o sofrimento reside no emprego dos deslocamentos
de libido que nosso aparelho mental possibilita e através dos quais sua função ganha
tanta flexibilidade. A tarefa aqui consiste em reorientar os objetivos instintivos de
maneira que eludam a frustração do mundo externo. Para isso, ela conta com a
assistência da sublimação dos instintos. Obtém-se o máximo quando se consegue
intensificar suficientemente a produção de prazer a partir das fontes do trabalho
psíquico e intelectual. Quando isso acontece, o destino pouco pode fazer contra nós.
Uma satisfação desse tipo, como, por exemplo, a alegria do artista em criar, em dar
corpo às suas fantasias, ou a do cientista em solucionar problemas ou descobrir
verdades, possui uma qualidade especial que, sem dúvida, um dia poderemos
caracterizar em termos metapsicológicos. Atualmente, apenas de forma figurada
podemos dizer que tais satisfações parecem ‘mais refinadas e mais altas’. Contudo,
sua intensidade se revela muito tênue quando comparada com a que se origina da
satisfação de impulsos instintivos grosseiros e primários; ela não convulsiona o nosso
ser físico. E o ponto fraco desse método reside em não ser geralmente aplicável, de
uma vez que só é acessível a poucas pessoas. Pressupõe a posse de dotes e disposições
especiais que, para qualquer fim prático, estão longe de serem comuns. E mesmo para
os poucos que os possuem, o método não proporciona uma proteção completa contra o
sofrimento. Não cria uma armadura impenetrável contra as investidas do destino e
habitualmente falha quando a fonte do sofrimento é o próprio corpo da
pessoa.Enquanto esse procedimento já mostra claramente uma intenção de nos tornar
independentes do mundo externo pela busca da satisfação em processos psíquicos
internos, o procedimento seguinte apresenta esses aspectos de modo ainda mais
intenso. Nele, a distensão do vínculo com a realidade vai mais longe; a satisfação é
obtida através de ilusões, reconhecidas como tais, sem que se verifique permissão para
que a discrepância entre elas e a realidade interfira na sua fruição. A região onde
essas ilusões se originam é a vida da imaginação; na época em que o desenvolvimento
do senso de realidade se efetuou, essa região foi expressamente isentada das exigências
do teste de realidade e posta de lado a fim de realizar desejos difíceis de serem levados
a termo. À frente das satisfações obtidas através da fantasia ergue-se a fruição das
obras de arte, fruição que, por intermédio do artista, é tornada acessível inclusive
àqueles que não são criadores. As pessoas receptivas à influência da arte não lhe
podem atribuir um valor alto demais como fonte de prazer e consolação na vida. Não
obstante, a suave narcose a que a arte nos induz, não faz mais do que ocasionar um
afastamento passageiro das pressões das necessidades vitais, não sendo
suficientemente forte para nos levar a esquecer a aflição real.
Um outro processo opera de modo mais energético e completo. Considera a
realidade como a única inimiga e a fonte de todo sofrimento, com a qual é impossível
viver, de maneira que, se quisermos ser de algum modo felizes, temos de romper todas
as relações com ela. O eremita rejeita o mundo e não quer saber de tratar com ele.
Pode-se, porém, fazer mais do que isso; pode-se tentar recriar o mundo, em seu lugar
construir um outro mundo, no qual os seus aspectos mais insuportáveis sejam
eliminados e substituídos por outros mais adequados a nossos próprios desejos. Mas
quem quer que, numa atitude de desafio desesperado, se lance por este caminho em
busca da felicidade, geralmente não chega a nada. A realidade é demasiado forte para
ele. Torna-se um louco; alguém que, a maioria das vezes, não encontra ninguém para
ajudá-lo a tornar real o seu delírio. Afirma-se, contudo, que cada um de nós se
comporta, sob determinado aspecto, como um paranóico, corrige algum aspecto do
mundo que lhe é insuportável pela elaboração de um desejo e introduz esse delírio na
realidade. Concede-se especial importância ao caso em que a tentativa de obter uma
certeza de felicidade e uma proteção contra o sofrimento através de um
remodelamento delirante da realidade, é efetuada em comum por um considerável
número de pessoas. As religiões da humanidade devem ser classificadas entre os
delírios de massa desse tipo. É desnecessário dizer que todo aquele que partilha um
delírio jamais o reconhece como tal.
Não pretendo ter feito uma enumeração completa dos métodos pelos quais os
homens se esforçam para conseguir a felicidade e manter afastado o sofrimento; sei
também que o material poderia ter sido diferentemente disposto. Ainda não
mencionei um processo – não por esquecimento, mas porque nos interessará mais
tarde, em relação a outro assunto. E como se poderia esquecer, entre todas as outras,
a técnica da arte de viver? Ela se faz visível por uma notável combinação de aspectos
característicos. Naturalmente, visa também a tornar o indivíduo independente do
Destino (como é melhor chamá-lo) e, para esse fim, localiza a satisfação em processos
mentais internos, utilizando, ao proceder assim, a deslocabilidade da libido que já
mencionamos,ver [[1]]. Mas ela não volta as costas ao mundo externo; pelo contrário,
prende-se aos objetos pertencentes a esse mundo e obtém felicidade de um
relacionamento emocional com eles. Tampouco se contenta em visar a uma fuga do
desprazer, uma meta, poderíamos dizer, de cansada resignação; passa por ela sem lhe
dar atenção e se aferra ao esforço original e apaixonado em vista de uma consecução
completa da felicidade. Na realidade, talvez se aproxime mais dessa meta do que
qualquer outro método. Evidentemente, estou falando da modalidade de vida que faz
do amor o centro de tudo, que busca toda satisfação em amar e ser amado. Uma
atitude psíquica desse tipo chega de modo bastante natural a todos nós; uma das
formas através da qual o amor se manifesta – o amor sexual – nos proporcionou nossa
mais intensa experiência de uma transbordante sensação de prazer, fornecendo-nos
assim um modelo para nossa busca da felicidade. Há, porventura, algo mais natural
do que persistirmos na busca da felicidade do modo como a encontramos pela
primeira vez? O lado fraco dessa técnica de viver é de fácil percepção, pois, do
contrário, nenhum ser humano pensaria em abandonar esse caminho da felicidade
por qualquer outro. É que nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento como
quando amamos, nunca tão desamparadamente infelizes como quando perdemos o
nosso objeto amado ou o seu amor. Isso, porém, não liquida com a técnica de viver
baseada no valor do amor como um meio de obter felicidade. Há muito mais a ser dito
a respeito. [Ver [1]].
Daqui podemos passar à consideração do interessante caso em que a felicidade
na vida é predominantemente buscada na fruição da beleza, onde quer que esta se
apresente a nossos sentidos e a nosso julgamento – a beleza das formas e a dos gestos
humanos, a dos objetos naturais e das paisagens e a das criações artísticas e mesmo
científicas. A atitude estética em relação ao objetivo da vida oferece muito pouca
proteção contra a ameaça do sofrimento, embora possa compensá-lo bastante. A
fruição da beleza dispõe de uma qualidade peculiar de sentimento, tenuemente
intoxicante. A beleza não conta com um emprego evidente; tampouco existe
claramente qualquer necessidade cultural sua. Apesar disso, a civilização não pode
dispensá-la. Embora a ciência da estética investigue as condições sob as quais as coisas
são sentidas como belas, tem sido incapaz de fornecer qualquer explicação a respeito
da natureza e da origem da beleza, e, tal como geralmente acontece, esse insucesso
vem sendo escamoteado sob um dilúvio de palavras tão pomposas quanto ocas. A
psicanálise, infelizmente, também pouco encontrou a dizer sobre a beleza. O que
parece certo é sua derivação do campo do sentimento sexual. O amor da beleza parece
um exemplo perfeito de um impulso inibido em sua finalidade.’Beleza’ e ‘atração’
são, originalmente, atributos do objeto sexual. Vale a pena observar que os próprios
órgãos genitais, cuja visão é sempre excitante, dificilmente são julgados belos; a
qualidade da beleza, ao contrário, parece ligar-se a certos caracteres sexuais
secundários.
A despeito da deficiência [de minha enumeração, ver ([1])], aventurar-me-ei a
algumas observações à guisa de conclusão para nossa investigação. O programa de
tornar-se feliz, que o princípio do prazer nos impõe,ver [[1]],não pode ser realizado;
contudo, não devemos – na verdade, não podemos – abandonar nossos esforços de
aproximá-lo da consecução, de uma maneira ou de outra. Caminhos muito diferentes
podem ser tomados nessa direção, e podemos conceder prioridades quer ao aspecto
positivo do objetivo, obter prazer, quer ao negativo, evitar o desprazer. Nenhum
desses caminhos nos leva a tudo o que desejamos. A felicidade, no reduzido sentido em
que a reconhecemos como possível, constitui um problema da economia da libido do
indivíduo. Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de
descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo. Todos os tipos de
diferentes fatores operarão a fim de dirigir sua escolha. É uma questão de quanta
satisfação real ele pode esperar obter do mundo externo, de até onde é levado para
tornar-se independente dele, e, finalmente, de quanta força sente à sua disposição
para alterar o mundo, a fim de adaptá-lo a seus desejos. Nisso, sua constituição
psíquica desempenhará papel decisivo, independentemente das circunstâncias
externas. O homem predominantemente erótico dará preferência aos seus
relacionamentos emocionais com outras pessoas; o narcisista que tende a ser autosuficiente, buscará suas satisfações principais em seus processos mentais internos; o
homem de ação nunca abandonará o mundo externo, onde pode testar sua força.
Quanto ao segundo desses tipos, a natureza de seus talentos e a parcela de sublimação
instintiva a ele aberta decidirão onde localizará os seus interesses. Qualquer escolha
levada a um extremo condena o indivíduo a ser exposto a perigos, que surgem caso
uma técnica de viver, escolhida como exclusiva, se mostre inadequada. Assim como o
negociante cauteloso evita empregar todo seu capital num só negócio, assim também,
talvez, a sabedoria popular nos aconselhe a não buscar a totalidade de nossa
satisfação numa só aspiração. Seu êxito jamais é certo, pois depende da convergência
de muitos fatores, talvez mais do que qualquer outro, da capacidade da constituição
psíquica em adaptar sua função ao meio ambiente e então explorar esse ambiente em
vista de obter um rendimento de prazer. Uma pessoa nascida com uma constituição
instintiva especialmente desfavorável e que não tenha experimentado corretamente a
transformação e a redisposição de seus componentes libidinais indispensáveis às
realizações posteriores, achará difícil obter felicidade em sua situação externa,em
especial se vier a se defrontar com tarefas de certa dificuldade. Como uma última
técnica de vida, pelo que menos lhe trará satisfações substitutivas, é-lhe oferecida a
fuga para a enfermidade neurótica, fuga que geralmente efetua quando ainda é
jovem. O homem que, em anos posteriores, vê sua busca da felicidade resultar em
nada ainda pode encontrar consolo no prazer oriundo da intoxicação crônica, ou
então se empenhar na desesperada tentativa de rebelião que se observa na psicose.
A religião restringe esse jogo de escolha e adaptação, desde que impõe
igualmente a todos o seu próprio caminho para a aquisição da felicidade e da proteção
contra o sofrimento. Sua técnica consiste em depreciar o valor da vida e deformar o
quadro do mundo real de maneira delirante – maneira que pressupõe uma
intimidação da inteligência. A esse preço, por fixá-las à força num estado de
infantilismo psicológico e por arrastá-las a um delírio de massa, a religião consegue
poupar a muitas pessoas uma neurose individual. Dificilmente, porém, algo mais.
Existem, como dissemos, muitos caminhos que podem levar à felicidade passível de ser
atingida pelos homens, mas nenhum que o faça com toda segurança. Mesmo a religião
não consegue manter sua promessa. Se, finalmente, o crente se vê obrigado a falar dos
‘desígnios inescrutáveis’ de Deus, está admitindo que tudo que lhe sobrou, como
último consolo e fonte de prazer possíveis em seu sofrimento, foi uma submissão
incondicional. E, se está preparado para isso, provavelmente poderia ter-se poupado o
détour que efetuou.
III
Até agora, nossa investigação sobre a felicidade não nos ensinou quase nada que
já não pertença ao conhecimento comum. E, mesmo que passemos dela para o
problema de saber por que é tão difícil para o homem ser feliz, parece que não há
maior perspectiva de aprender algo novo. Já demos a resposta,ver [[1]] pela indicação
das três fontes de que nosso sofrimento provém: o poder superior da natureza, a
fragilidade de nossos próprios corpos e a inadequação das regras que procuram
ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na
sociedade. Quanto às duas primeiras fontes, nosso julgamento não pode hesitar muito.
Ele nos força a reconhecer essas fontes de sofrimento e a nos submeter ao inevitável.
Nunca dominaremos completamente a natureza, e o nosso organismo corporal, ele
mesmo parte dessa natureza, permanecerá sempre como uma estrutura passageira,
com limitada capacidade de adaptação e realização. Esse reconhecimento não possui
um efeito paralisador. Pelo contrário, aponta a direção para a nossa atividade. Se não
podemos afastar todo sofrimento, podemos afastar um pouco dele e mitigar outro
tanto: a experiência de muitos milhares de anos nos convenceu disso. Quanto à
terceira fonte, a fonte social de sofrimento, nossa atitude é diferente. Não a admitimos
de modo algum; não podemos perceber por que os regulamentos estabelecidos por nós
mesmos não representam, ao contrário, proteção e benefício para cada um de nós.
Contudo, quando consideramos o quanto fomos malsucedidos exatamente nesse
campo de prevenção do sofrimento, surge em nós a suspeita de que também aqui é
possível jazer, por trás desse fato, uma parcela de natureza inconquistável – dessa vez,
uma parcela de nossa própria constituição psíquica.
Quando começamos a considerar essa possibilidade, deparamo-nos com um
argumento tão espantoso, que temos de nos demorar nele. Esse argumento sustenta
que o que chamamos de nossa civilização é em grande parte responsável por nossa
desgraça e que seríamos muito mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às
condições primitivas. Chamo esse argumento de espantoso porque, seja qual for a
maneira por que possamos definir o conceito de civilização, constitui fato
incontroverso que todas as coisas que buscamos a fim de nos protegermos contra as
ameaças oriundas das fontes de sofrimento, fazem parte dessa mesma civilização.
Como foi que tantas pessoas vieram a assumir essa estranha atitude de
hostilidade para com a civilização? Acredito que seu fundamento consistiu numa
longa e duradoura insatisfação com o estado de civilização então existente e que, nessa
base, se construiu uma condenação dela, ocasionada por certos acontecimentos
históricos específicos. Penso saber quais foram a última e a penúltima dessas ocasiões.
Não sou suficientemente erudito para fazer remontar a origem de sua cadeia o mais
distante possível na história da espécie humana, mas um fator desse tipo, hostil à
civilização, já devia estar em ação na vitória do cristianismo sobre as religiões pagãs,
de uma vez que se achava intimamente relacionado à baixa estima dada à vida terrena
pela doutrina cristã. A penúltima dessas ocasiões se instaurou quando o progresso das
viagens de descobrimento conduziu ao contacto com povos e raças primitivos. Em
conseqüência de uma observação insuficiente e de uma visão equivocada de seus
hábitos e costumes, eles apareceram aos europeus como se levassem uma vida simples
e feliz, com poucas necessidades, um tipo de vida inatingível por seus visitantes com
sua civilização superior. A experiência posterior corrigiu alguns desses julgamentos.
Em muitos casos, os observadores haviam erroneamente atribuído à ausência de
exigências culturais complicadas o que de fato era devido à generosidade da natureza
e à facilidade com que as principais necessidades humanas eram satisfeitas. A última
ocasião nos é especialmente familiar. Surgiu quando as pessoas tomaram
conhecimento do mecanismo das neuroses, que ameaçam solapar a pequena parcela
de felicidade desfrutada pelos homens civilizados. Descobriu-se que uma pessoa se
torna neurótica porque não pode tolerar a frustração que a sociedade lhe impõe, a
serviço de seus ideais culturais, inferindo-se disso que a abolição ou redução dessas
exigências resultaria num retorno a possibilidades de felicidade.
Existe ainda um fator adicional de desapontamento. Durante as últimas
gerações, a humanidade efetuou um progresso extraordinário nas ciências naturais e
em sua aplicação técnica, estabelecendo seu controle sobre a natureza de uma maneira
jamais imaginada. As etapas isoladas desse progresso são do conhecimento comum,
sendo desnecessário enumerá-las. Os homens se orgulham de suas realizações e têm
todo direito de se orgulharem. Contudo, parecem ter observado que o poder
recentemente adquirido sobre o espaço e o tempo, a subjugação das forças da
natureza, consecução de um anseio que remonta a milhares de anos, não aumentou a
quantidade de satisfação prazerosa que poderiam esperar da vida e não os tornou
mais felizes. Reconhecendo esse fato, devemos contentar-nos em concluir que o poder
sobre a natureza não constitui a única precondição da felicidade humana, assim como
não é o único objetivo do esforço cultural. Disso não devemos inferir que o progresso
técnico não tenha valor para a economia de nossa felicidade. Gostaríamos de
perguntar: não existe, então, nenhum ganho no prazer, nenhum aumento inequívoco
no meu sentimento de felicidade, se posso, tantas vezes quantas me agrade, escutar a
voz de um filho meu que está morando a milhares de quilômetros de distância, ou
saber, no tempo mais breve possível depois de um amigo ter atingido seu destino, que
ele concluiu incólume a longa e difícil viagem? Não significa nada que a medicina
tenha conseguido não só reduzir enormemente a mortalidade infantil e o perigo de
infecção para as mulheres no parto, como também, na verdade, prolongar
consideravelmente a vida média do homem civilizado? Há uma longa lista que poderia
ser acrescentada a esse tipo de benefícios, que devemos à tão desprezada era dos
progressos científicos e técnicos. Aqui, porém, a voz da crítica pessimista se faz ouvir e
nos adverte que a maioria dessas satisfações segue o modelo do ‘prazer barato’
louvado pela anedota: o prazer obtido ao se colocar a perna nua para fora das roupas
de cama numa fria noite de inverno e recolhê-la novamente. Se não houvesse ferrovias
para abolir as distâncias, meu filho jamais teria deixado sua cidade natal e eu não
precisaria de telefone para ouvir sua voz; se as viagens marítimas transoceânicas não
tivessem sido introduzidas, meu amigo não teria partido em sua viagem por mar e eu
não precisaria de um telegrama para aliviar minha ansiedade a seu respeito. Em que
consiste a vantagem de reduzir a mortalidade infantil, se é precisamente essa redução
que nos impõe a maior coerção na geração de filhos, de tal maneira que, considerando
tudo, não criamos mais crianças do que nos dias anteriores ao reino da higiene, ao
passo que, ao mesmo tempo, criamos condições difíceis para nossa vida sexual no
casamento e provavelmente trabalhamos contra os efeitos benéficos da seleção
natural? Enfim, de que nos vale uma vida longa se ela se revela difícil e estéril em
alegrias, e tão cheia de desgraças que só a morte é por nós recebida como uma
libertação?
Parece certo que não nos sentimos confortáveis na civilização atual, mas é muito
difícil formar uma opinião sobre se, e em que grau, os homens de épocas anteriores se
sentiram mais felizes, e sobre o papel que suas condições culturais desempenharam
nessa questão. Sempre tendemos a considerar objetivamente a aflição das pessoas –
isto é, nos colocarmos, com nossas próprias necessidades e sensibilidades, nas
condições delas, e então examinar quais as ocasiões que nelas encontraríamos para
experimentar felicidade ou infelicidade. Esse método de examinar as coisas, que
parece objetivo por ignorar as variações na sensibilidade subjetiva, é, naturalmente, o
mais subjetivo possível, de uma vez que coloca nossos próprios estados mentais no
lugar de quaisquer outros, por mais desconhecidos que estes possam ser. A felicidade,
contudo, é algo essencialmente subjetivo. Por mais que nos retraiamos com horror de
certas situações – a de um escravo de galé na Antiguidade, a de um camponês durante
a Guerra dos Trinta Anos, a de uma vítima da Inquisição, a de um judeu à espera de
um pogrom – para nós, sem embargo, é impossível nos colocarmos no lugar dessas
pessoas – adivinhar as modificações que uma obtusidade original da mente, um
processo gradual de embrutecimento, a cessação das esperanças e métodos de
narcotização mais grosseiros ou mais refinados produziram sobre a receptividade
delas às sensações de prazer e desprazer. Além disso, no caso da possibilidade mais
extrema de sofrimento, dispositivos mentais protetores e especiais são postos em
funcionamento. Parece-me improdutivo levar adiante esse aspecto do problema.
Já é tempo de voltarmos nossa atenção para a natureza dessa civilização, sobre
cujo valor como veículo de felicidade foram lançadas dúvidas. Não procuraremos uma
fórmula que exprima essa natureza em poucas palavras, enquanto não tivermos
aprendido alguma coisa através de seu exame. Mais uma vez, portanto, nos
contentaremos em dizer que a palavra ‘civilização’ descreve a soma integral das
realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados
animais, e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a
natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos. A fim de aprendermos mais,
reuniremos os diversos aspectos singulares da civilização, tal como se apresentam nas
comunidades humanas. Agindo desse modo, não hesitaremos em nos deixar guiar
pelos hábitos lingüísticos ou, como são também chamados, sentimento lingüístico, na
convicção de que assim estamos fazendo justiça e discernimentos internos que ainda
desafiam sua expressão em termos abstratos.
A primeira etapa é fácil. Reconhecemos como culturais todas as atividades e
recursos úteis aos homens, por lhes tornarem a terra proveitosa, por protegerem-nos
contra a violência das forças da natureza, e assim por diante. Em relação a esse
aspecto de civilização, dificilmente pode haver qualquer dúvida. Se remontarmos
suficientemente às origens, descobriremos que os primeiros atos de civilização foram a
utilização de instrumentos, a obtenção do controle sobre o fogo e a construção de
habitações.Entre estes, o controle sobre o fogo sobressai como uma realização
extraordinária e sem precedentes, ao passo que os outros desbravaram caminhos que
o homem desde então passou a seguir, e cujo estímulo pode ser facilmente percebido.
Através de cada instrumento, o homem recria seus próprios órgãos, motores ou
sensoriais, ou amplia os limites de seu funcionamento. A potência motora coloca
forças gigantescas à sua disposição, as quais, como os seus músculos, ele pode
empregar em qualquer direção; graças aos navios e aos aviões, nem a água nem o ar
podem impedir seus movimentos; por meio de óculos corrige os defeitos das lentes de
seus próprios olhos; através do telescópio, vê a longa distância; e por meio do
microscópio supera os limites de visibilidade estabelecidos pela estrutura de sua
retina. Na câmara fotográfica, criou um instrumento que retém as impressões visuais
fugidias, assim como um disco de gramofone retém as auditivas, igualmente fugidias;
ambas são, no fundo, materializações do poder que ele possui de rememoração, isto é,
sua memória. Com o auxílio do telefone, pode escutar a distâncias que seriam
respeitadas como inatingíveis mesmo num conto de fadas. A escrita foi, em sua
origem, a voz de uma pessoa ausente, e a casa para moradia constituiu um substituto
do útero materno, o primeiro alojamento, pelo qual, com toda probabilidade, o
homem ainda anseia, e no qual se achava seguro e se sentia à vontade.
Essas coisas – que, através de sua ciência e tecnologia, o homem fez surgir na
Terra, sobre a qual, no princípio, ele apareceu como um débil organismo animal e
onde cada indivíduo de sua espécie deve, mais uma vez, fazer sua entrada (‘oh inch of
nature’) como se fosse um recém-nascido desamparado – essas coisas não apenas
soam como um conto de fadas, mas também constituem uma realização efetiva de
todos – ou quase todos – os desejos de contos de fadas. Todas essas vantagens ele as
pode reivindicar como aquisição cultural sua. Há muito tempo atrás, ele formou uma
concepção ideal de onipotência e onisciência que corporificou em seus deuses. A estes,
atribuía tudo que parecia inatingível aos seus desejos ou lhe era proibido. Pode-se
dizer, portanto, que esses deuses constituíam ideais culturais. Hoje, ele se aproximou
bastante da consecução desse ideal, ele próprio quase se tornou um deus. É verdade
que isso só ocorreu segundo o modo como os ideais são geralmente atingidos, de
acordo com o juízo geral da humanidade. Não completamente; sob certos aspectos, de
modo algum; sob outros, apenas pela metade. O homem, por assim dizer, tornou-se
uma espécie de “Deus de prótese”. Quando faz uso de todos os seus órgãos auxiliares,
ele é verdadeiramente magnífico; esses órgãos, porém, não cresceram nele e, às vezes,
ainda lhe causam muitas dificuldades. Não obstante, ele tem o direito de se consolar
pensando que esse desenvolvimento não chegará ao fim exatamente no ano de 1930
A.D. As épocas futuras trarão com elas novos e provavelmente inimagináveis grandes
avanços nesse campo da civilização e aumentarão ainda mais a semelhança do homem
com Deus. No interesse de nossa investigação, contudo, não esqueceremos que
atualmente o homem não se sente feliz em seu papel de semelhante a Deus.
Reconhecemos, então, que os países atingiram um alto nível de civilização
quando descobrimos que neles tudo o que pode ajudar na exploração da Terra pelo
homem e na sua proteção contra as forças da natureza tudo, se suma, que é útil para
ele – está disponível e é passível de ser conseguido. Nesses países, os rios que ameaçam
inundar as terras são regulados em seu fluxo, e sua água é irrigada através de canais
para lugares onde ela é escassa. O solo é cuidadosamente cultivado e plantado com a
vegetação apropriada, e a riqueza mineral subterrânea é assiduamente trazida à
superfície e modelada em implementos e utensílios indispensáveis. Os meios de
comunicação são amplos, rápidos e dignos de confiança. Os animais selvagens e
perigosos foram exterminados e a criação de animais domésticos floresce. Além
dessas, porém, exigimos outras coisas da civilização, sendo digno de nota o fato de
esperarmos encontrá-las realizadas nesses mesmos países. Como se estivéssemos
procurando repudiar a primeira exigência que fizemos, reconhecemos, igualmente,
como um sinal de civilização, verificar que as pessoas também orientam suas
preocupações para aquilo que não possui qualquer valor prático, para o que não é
lucrativo: por exemplo, os espaços verdes necessários a uma cidade, como playgrounds
e reservatórios de ar fresco, são também ornados de jardins e as janelas das casas,
decoradas com vasos de flores. De imediato, constatamos que essa coisa não lucrativa
que esperamos que a civilização valorize, é a beleza. Exigimos que o homem civilizado
reverencie a beleza, sempre que a perceba na natureza ou sempre que a crie nos
objetos de seu trabalho manual, na medida em que é capaz disso. Mas isso está longe
de exaurir nossas exigências quanto à civilização. Esperamos, ademais, ver sinais de
asseio e de ordem. Não concebemos uma cidade do interior da Inglaterra, na época de
Shakespeare, como possuidora de um alto nível cultural, quando lemos que havia um
grande monte de esterco em frente à casa de seu pai, em Stratford; também ficamos
indignados e chamamos de ‘bárbaro’ (o oposto de civilizado), quando nos deparamos
com as veredas do Wiener Wald cobertas de papéis velhos. A sujeira de qualquer
espécie nos parece incompatível com a civilização. Da mesma forma, estendemos nossa
exigência de limpeza ao corpo humano. Ficamos estupefatos ao saber que o emanava
um odor insuportável, meneamos a cabeça quando, na Isola Bella nos é mostrada a
minúscula bacia em que Napoleão se lavava todas as manhãs. Na verdade, não nos
surpreende a idéia de estabelecer o emprego do sabão como um padrão real de
civilização. Isso é igualmente verdadeiro quanto à ordem. Assim como a limpeza, ela
só se aplica às obras do homem. Contudo, ao passo que não se espera encontrar asseio
na natureza, a ordem, pelo contrário, foi imitada a partir dela. A observação que o
homem fez das grandes regularidades astronômicas não apenas o muniu de um
modelo para a introdução da ordem em sua vida, mas também lhe forneceu os
primeiros pontos de partida para proceder desse modo. A ordem é uma espécie de
compulsão a ser repetida, compulsão que, ao se estabelecer um regulamento de uma
vez por todas, decide quando, onde e como uma coisa será efetuada, e isso de tal
maneira que, em todas as circunstâncias semelhantes, a hesitação e a indecisão nos são
poupadas. Os benefícios da ordem são incontestáveis. Ela capacita os homens a
utilizarem o espaço e o tempo para seu melhor proveito, conservando ao mesmo
tempo as forças psíquicas deles. Deveríamos ter o direito de esperar que ela houvesse
ocupado seu lugar nas atividades humanas desde o início e sem dificuldade, e podemos
ficar admirados de que isso não tenha acontecido, de que, pelo contrário, os seres
humanos revelem uma tendência inata para o descuido, a irregularidade e a
irresponsabilidade em seu trabalho, e de que seja necessário um laborioso
treinamento para que aprendam a seguir o exemplo de seus modelos celestes.
Evidentemente, a beleza, a limpeza e a ordem ocupam uma posição especial
entre as exigências da civilização. Ninguém sustentará que elas sejam tão importantes
para a vida quanto o controle sobre as forças da natureza ou quanto alguns outros
fatores com que ainda nos familiarizaremos. No entanto, ninguém procurará colocálas em segundo plano, como se não passassem de trivialidades. Que a civilização não
se faz acompanhar apenas pelo que é útil, já ficou demonstrado pelo exemplo da
beleza, que não omitimos entre os interesses da civilização. A utilidade da ordem é
inteiramente evidente. Quando à limpeza, devemos ter em mente aquilo que também a
higiene exige de nós, e podemos supor que, mesmo anteriormente à profilaxia
científica, a conexão entre as duas não era de todo estranha ao homem. Contudo, a
utilidade não explica completamente esses esforços; deve existir algo mais que se
encontre em ação.
Nenhum aspecto, porém, parece caracterizar melhor a civilização do que sua
estima e seu incentivo em relação às mais elevadas atividades mentais do homem –
suas realizações intelectuais, científicas e artísticas – e o papel fundamental que
atribui às idéias na vida humana. Entre essas idéias, em primeiro lugar se encontram
os sistemas religiosos, cuja complicada estrutura já me esforcei por esclarecer em
outra oportunidade. A seguir, vêm as especulações da filosofia e, finalmente, o que se
poderia chamar de ‘ideais’do homem – suas idéias a respeito de uma possível
perfeição dos indivíduos, dos povos, ou da humanidade como um todo, e as exigências
estabelecidas com fundamento nessas idéias. O fato de essas criações do homem não
serem mutuamente independentes, mas, pelo contrário, se acharem estreitamente
entrelaçadas, aumenta a dificuldade não apenas de descrevê-las, como também de
traçar sua derivação psicológica. Se, de modo bastante geral, supusermos que a força
motivadora de todas as atividades humanas é um esforço desenvolvido no sentido de
duas metas confluentes, a de utilidade e a de obtenção de prazer, teremos de supor
que isso também é verdadeiro quanto às manifestações da civilização que acabamos
de examinar, embora só seja facilmente visível nas atividades científicas e estéticas.
Não se pode, porém, duvidar de que as outras atividades também correspondem a
fortes necessidades dos homens – talvez a necessidades que só se achem desenvolvidas
numa minoria. Tampouco devemos permitir sermos desorientados por juízos de valor
referentes a qualquer religião, qualquer sistema filosófico ou qualquer ideal. Quer
pensemos encontrar neles as mais altas realizações do espírito humano, quer os
deploremos como aberrações, não podemos deixar de reconhecer que onde eles se
acham presentes, e, em especial, onde eles são dominantes, está implícito um alto nível
de civilização.
Resta avaliar o último, mas decerto não o menos importante, dos aspectos
característicos da civilização: a maneira pela qual os relacionamentos mútuos dos
homens, seus relacionamentos sociais, são regulados – relacionamentos estes que
afetam uma pessoa como próximo, como fonte de auxílio, como objeto sexual de outra
pessoa, como membro de uma família e de um Estado. Aqui, é particularmente difícil
manter-se isento de exigências ideais específicas e perceber aquilo que é civilizado em
geral. Talvez possamos começar pela explicação de que o elemento de civilização entra
em cena com a primeira tentativa de regular esses relacionamentos sociais. Se essa
tentativa não fosse feita, os relacionamentos ficariam sujeitos à vontade arbitrária do
indivíduo, o que equivale a dizer que o homem fisicamente mais forte decidiria a
respeito deles no sentido de seus próprios interesses e impulsos instintivos. Nada se
alteraria se, por sua vez, esse homem forte encontrasse alguém mais forte do que ele.
A vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria mais
forte do que qualquer indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os
indivíduos isolados. O poder dessa comunidade é então estabelecido como ‘direito’,
em oposição ao poder do indivíduo, condenado como ‘força bruta’. A substituição do
poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da
civilização. Sua essência reside no fato de os membros da comunidade se restringirem
em suas possibilidades de satisfação,ao passo que o indivíduo desconhece tais
restrições. A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a
garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo.
Isso não acarreta nada quanto ao valor ético de tal lei. O curso ulterior do
desenvolvimento cultural parece tender no sentido de tornar a lei não mais expressão
da vontade de uma pequena comunidade – uma casta ou camada de uma população
ou grupo racial –, que, por sua vez, se comporta como um indivíduo violento frente a
outros agrupamentos de pessoas, talvez mais numerosos. O resultado final seria um
estatuto legal para o qual todos – exceto os incapazes de ingressar numa comunidade
– contribuíram com um sacrifício de seus instintos, que não deixa ninguém –
novamente com a mesma exceção – à mercê da força bruta.
A liberdade do indivíduo não constitui um dom da civilização. Ela foi maior
antes da existência de qualquer civilização, muito embora, é verdade, naquele então
não possuísse, na maior parte, valor, já que dificilmente o indivíduo se achava em
posição de defendê-la. O desenvolvimento da civilização impõe restrições a ela, e a
justiça exige que ninguém fuja a essas restrições. O que se faz sentir numa
comunidade humana como desejo de liberdade pode ser sua revolta contra alguma
injustiça existente, e desse modo esse desejo pode mostrar-se favorável a um maior
desenvolvimento da civilização; pode permanecer compatível com a civilização.
Entretanto, pode também originar-se dos remanescentes de sua personalidade
original, que ainda não se acha domada pela civilização, e assim nela tornar-se a base
da hostilidade à civilização. O impulso de liberdade, portanto, é dirigido contra
formas e exigências específicas da civilização ou contra a civilização em geral. Não
parece que qualquer influência possa induzir o homem a transformar sua natureza na
de uma térmita. Indubitavelmente, ele sempre defenderá sua reivindicação à
liberdade individual contra a vontade do grupo. Grande parte das lutas da
humanidade centralizam-se em torno da tarefa única de encontrar uma acomodação
conveniente – isto é, uma acomodação que traga felicidade – entre essa reivindicação
do indivíduo e as reivindicações culturais do grupo, e um dos problemas que incide
sobre o destino da humanidade é o de saber se tal acomodação pode ser alcançada por
meio de alguma forma específica de civilização ou se esse conflito é irreconciliável.
Permitindo que o sentimento comum assumisse o papel de nosso guia quanto a
decidir sobre quais aspectos da vida humana devem ser encarados como civilizados,
conseguimos esboçar uma impressão bastante clara do quadro geral da civilização;
contudo, é verdade que, até agora, não descobrimos nada que já não fosse
universalmente conhecido. Ao mesmo tempo, tivemos o cuidado de não concordar
com o preconceito de que civilização é sinônimo de aperfeiçoamento, de que constitui
a estrada para a perfeição, preordenada para os homens. Agora, porém, apresenta-se
um ponto de vista que pode conduzir numa direção diferente. O desenvolvimento da
civilização nos aparece como um processo peculiar que a humanidade experimenta e
no qual diversas coisas nos impressionam como familiares. Podemos caracterizar esse
processo referindo-o às modificações que ele ocasiona nas habituais disposições
instintivas dos seres humanos, para satisfazer o que, em suma, constitui a tarefa
econômica de nossas vidas. Alguns desses instintos são empregados de tal maneira
que, em seu lugar, aparece algo que, num indivíduo, descrevemos como um traço de
caráter. O exemplo mais notável desse processo é encontrado no erotismo anal das
crianças. Seu interesse original pela função excretória, por seus órgãos e produtos,
transforma-se, no decurso do crescimento, num grupo de traços que nos são
familiares, tais como a parcimônia, o sentido da ordem e da limpeza – qualidades que,
embora valiosas e desejáveis em si mesmas, podem ser intensificadas até se tornarem
acentuadamente dominantes e produzirem o que se chama de caráter anal. Não
sabemos como isso acontece, mas não há dúvida sobre a exatidão da descoberta. Ora,
vimos que a ordem e a limpeza constituem exigências importantes de civilização,
embora sua necessidade vital não seja muito aparente, da mesma forma que revelam
indesejáveis como fonte de prazer. Nesse ponto, não podemos deixar de ficar
impressionados pela semelhança existente entre os processos civilizatórios e o
desenvolvimento libidinal do indivíduo. Outros instintos [além do erotismo anal] são
induzidos a deslocar as condições de sua satisfação, a conduzi-las para outros
caminhos. Na maioria dos casos, esse processo coincide com o da sublimação (dos fins
instintivos), com que nos achamos familiarizados; noutros, porém, pode diferenciar-se
dele. A sublimação do instinto constitui um aspecto particularmente evidente do
desenvolvimento cultural; é ela que torna possível às atividades psíquicas superiores,
científicas, artísticas ou ideológicas, o desempenho de um papel tão importante na
vida civilizada. Se nos rendêssemos a uma primeira impressão, diríamos que a
sublimação constitui uma vicissitude que foi imposta aos instintos de forma total pela
civilização. Seria prudente refletir um pouco mais sobre isso. Em terceiro lugar,
finalmente – e isso parece o mais importante de tudo –, é impossível desprezar o ponto
até o qual a civilização é construída sobre uma renúncia ao instinto, o quanto ela
pressupõe exatamente a não-satisfação (pela opressão, repressão, ou algum outro
meio?) de instintos poderosos. Essa ‘frustração cultural’ domina o grande campo dos
relacionamentos sociais entre os seres humanos. Como já sabemos, é a causa da
hostilidade contra a qual todas as civilizações têm de lutar. Também ela fará
exigências severas à nossa obra científica, e muito teremos a explicar aqui. Não é fácil
entender como pode ser possível privar de satisfação um instinto. Não se faz isso
impunemente. Se a perda não for economicamente compensada, pode-se ficar certo de
que sérios distúrbios decorrerão disso.
Mas, se quisermos saber qual o valor que pode ser atribuído à nossa opinião de
que o desenvolvimento da civilização constitui um processo especial, comparável à
maturação normal do indivíduo, temos, claramente, de atacar o problema. Devemos
perguntar-nos a que influência o desenvolvimento da civilização deve sua origem,
como ela surgiu e o que determinou o seu curso.
IV
A tarefa parece imensa e, frente a ela, é natural que se sinta falta de confiança.
Mas aqui estão as conjecturas que pude efetuar.
Depois que o homem primevo descobriu que estava literalmente em suas mãos
melhorar a sua sorte na Terra através do trabalho, não lhe pode ter sido indiferente
que outro homem trabalhasse com ele ou contra ele. Esse outro homem adquiriu para
ele o valor de um companheiro de trabalho, com quem era útil conviver. Em época
ainda anterior, em sua pré-história simiesca, o homem adotara o hábito de formar
famílias, e provavelmente os membros de sua família foram os seus primeiros
auxiliares. Pode-se supor que a formação de famílias deveu-se ao fato de ter ocorrido
um momento em que a necessidade de satisfação genital não apareceu mais como um
hóspede que surge repentinamente e do qual, após a partida, não mais se ouve falar
por longo tempo, mas que, pelo contrário, se alojou como um inquilino permanente.
Quando isso aconteceu, o macho adquiriu um motivo para conservar a fêmea junto de
si, ou, em termos mais gerais, seus objetos sexuais, a seu lado, ao passo que a fêmea,
não querendo separar-se de seus rebentos indefesos, viu-se obrigada, no interesse
deles, a permanecer com o macho mais forte. Na família primitiva, falta ainda uma
característica essencial da civilização. A vontade arbitrária de seu chefe, o pai, era
irrestrita. Em Totem e Tabu [1912-13], tentei demonstrar o caminho que vai dessa
família à etapa subseqüente, a da vida comunal, sob a forma de grupos de irmãos.
Sobrepujando o pai, os filhos descobriram que uma combinação pode ser mais forte
do que um indivíduo isolado. A cultura totêmica baseia-se nas restrições que os filhos
tiveram de impor-se mutuamente, a fim de conservar esse novo estado de coisas. Os
preceitos do tabu constituíram o primeiro ‘direito’ ou ‘lei’. A vida comunitária dos
seres humanos teve, portanto, um fundamento duplo: a compulsão para o trabalho,
criada pela necessidade externa, e o poder do amor, que fez o homem relutar em
privar-se de seu objeto sexual – a mulher – e a mulher, em privar-se daquela parte de
si própria que dela fora separada – seu filho. Eros e Ananke [Amor e Necessidade] se
tornaram os pais também da civilização humana. O primeiro resultado da civilização
foi que mesmo um número bastante grande de pessoas podia agora viver reunido
numa comunidade. E, como esses dois grandes poderes cooperaram para isso, poderse-ia esperar que o desenvolvimento ulterior da civilização progredisse sem percalços
no sentido de um controle ainda melhor sobre o mundo externo e no de uma
ampliação do número de pessoas incluídas na comunidade. É difícil compreender
como essa civilização pode agir sobre os seus participantes de outro modo senão o de
torná-los felizes.
Antes de continuarmos a indagar sobre de que direção uma interferência
poderia surgir, o reconhecimento do amor como um dos fundamentos da civilização
pode servir de pretexto para uma digressão que nos capacitará a preencher uma
lacuna por nós deixada num exame anterior,ver [[1]]. Mencionáramos então que a
descoberta feita pelo homem de que o amor sexual (genital) lhe proporcionava as mais
intensas experiências de satisfação, fornecendo-lhe, na realidade, o protótipo de toda
felicidade, deve ter-lhe sugerido que continuasse a buscar a satisfação da felicidade em
sua vida seguindo o caminho das relações sexuais e que tornasse o erotismo genital o
ponto central dessa mesma vida. Prosseguimos dizendo que, fazendo assim, ele se
tornou dependente, de uma forma muito perigosa, de uma parte do mundo externo,
isto é, de seu objeto amoroso escolhido, expondo-se a um sofrimento extremo, caso
fosse rejeitado por esse objeto ou o perdesse através da infidelidade ou da morte. Por
essa razão, os sábios de todas as épocas nos advertiram enfaticamente contra tal modo
de vida; apesar disso, ele não perdeu seu atrativo para grande número de pessoas.
Apesar de tudo, uma pequena minoria de pessoas acha-se capacitada, por sua
constituição, a encontrar felicidade no caminho do amor. Fazem-se necessárias,
porém, alterações mentais de grande alcance na função do amor antes que isso possa
acontecer. Essas pessoas se tornam independentes da aquiescência de seu objeto,
deslocando o que mais valorizam do ser amado para o amar; protegem-se contra a
perda do objeto, voltando seu amor, não para objetos isolados, mas para todos os
homens, e, do mesmo modo, evitam as incertezas e as decepções do amor genital,
desviando-se de seus objetivos sexuais e transformando o instinto num impulso com
uma finalidade inibida. Ocasionam assim, nelas mesmas, um estado de sentimento
imparcialmente suspenso, constante e afetuoso, que tem pouca semelhança externa
com as tempestuosas agitações do amor genital, do qual, não obstante, se deriva.
Talvez São Francisco de Assis tenha sido quem mais longe foi na utilização do amor
para beneficiar um sentimento interno de felicidade. Além disso, aquilo que
identificamos como sendo uma das técnicas para realizar o princípio do prazer foi
amiúde vinculado à religião; essa vinculação pode residir nas remotas regiões em que
a distinção entre o ego e os objetos, ou entre os próprios objetos, é desprezada. De
acordo com determinado ponto de vista ético, cuja motivação mais profunda se nos
tornará clara dentro em pouco, essa disposição para o amor universal pela
humanidade e pelo mundo representa o ponto mais alto que o homem pode alcançar.
Mesmo nessa etapa preliminar da discussão, gostaria de apresentar minhas duas
principais objeções a essa opinião. Um amor que não discrimina me parece privado de
uma parte de seu próprio valor, por fazer uma injustiça a seu objeto, e, em segundo
lugar, nem todos os homens são dignos de amor.
O amor que fundou a família continua a operar na civilização, tanto em sua
forma original, em que não renuncia à satisfação sexual direta, quanto em sua forma
modificada, como afeição inibida em sua finalidade. Em cada uma delas, continua a
realizar sua função de reunir consideráveis quantidades de pessoas, de um modo mais
intensivo do que o que pode ser efetuado através do interesse pelo trabalho em
comum. A maneira descuidada com que a linguagem utiliza a palavra ‘amor’ conta
com uma justificação genética. As pessoas dão o nome de ‘amor’ ao relacionamento
entre um homem e uma mulher cujas necessidades genitais os levaram a fundar uma
família; também dão esse nome aos sentimentos positivos existentes entre pais e filhos,
e entre os irmãos e as irmãs de uma família, embora nós sejamos obrigados a
descrever isso como ‘amor inibido em sua finalidade’ ou ‘afeição’. O amor com uma
finalidade inibida foi de fato, originalmente, amor plenamente sensual, e ainda o é no
inconsciente do homem. Ambos – o amor plenamente sensual e o amor inibido em sua
finalidade – estendem-se exteriormente à família e criam novos vínculos com pessoas
anteriormente estranhas. O amor genital conduz à formação de novas famílias, e o
amor inibido em sua finalidade, a ‘amizades’ que se tornam valiosas, de um ponto de
vista cultural, por fugirem a algumas das limitações do amor genital, como, por
exemplo, à sua exclusividade. No decurso do desenvolvimento, porém, a relação do
amor com a civilização perde sua falta de ambigüidade. Por um lado, o amor se coloca
em oposição aos interesses da civilização; por outro, esta ameaça o amor com
restrições substanciais.
Essa incompatibilidade entre amor e civilização parece inevitável e sua razão
não é imediatamente reconhecível. Expressa-se a princípio como um conflito entre a
família e a comunidade maior a que o indivíduo pertence. Já percebemos que um dos
principais esforços da civilização é reunir as pessoas em grandes unidades. Mas a
família não abandona o indivíduo. Quanto mais estreitamente os membros de uma
família se achem mutuamente ligados, com mais freqüência tendem a se apartarem
dos outros e mais difícil lhes é ingressar no círculo mais amplo da cidade. O modo de
vida em comum que é filogeneticamente o mais antigo, e o único que existe na
infância, não se deixará sobrepujar pelo modo cultural de vida adquirido depois.
Separar-se da família torna-se uma tarefa com que todo jovem se defronta, e a
sociedade freqüentemente o auxilia na solução disso através dos ritos de puberdade e
de iniciação. Ficamos com a impressão de que se trata de dificuldades inerentes a todo
desenvolvimento psíquico – e, em verdade, no fundo, a todo desenvolvimento
orgânico.
Além do mais, as mulheres logo se opõem à civilização e demonstram sua
influência retardante e coibidora – as mesmas mulheres que, de início, estabeleceram
os fundamentos da civilização pelas reivindicações de seu amor. As mulheres
representam os interesses da família e da vida sexual. O trabalho de civilização
tornou-se cada vez mais um assunto masculino, confrontando os homens com tarefas
cada vez mais difíceis e compelindo-os a executarem sublimações instintivas de que as
mulheres são pouco capazes. Já que o homem não dispõe de quantidades ilimitadas de
energia psíquica, tem de realizar suas tarefas efetuando uma distribuição conveniente
de sua libido. Aquilo que emprega para finalidades culturais, em grande parte o extrai
das mulheres e da vida sexual. Sua constante associação com outros homens e a
dependência de seus relacionamentos com eles o alienam inclusive de seus deveres de
marido e de pai. Dessa maneira, a mulher se descobre relegada a segundo plano pelas
exigências da civilização e adota uma atitude hostil para com ela.
A tendência por parte da civilização em restringir a vida sexual não é menos
clara do que sua outra tendência em ampliar a unidade cultural. Sua primeira fase,
totêmica, já traz com ela a proibição de uma escolha incestuosa de objeto, o que
constitui, talvez, a mutilação mais drástica que a vida erótica do homem em qualquer
época já experimentou. Os tabus, as leis e os costumes impõem novas restrições, que
influenciam tanto homens quanto mulheres. Nem todas as civilizações vão igualmente
longe nisso, e a estrutura econômica da sociedade também influencia a quantidade de
liberdade sexual remanescente. Aqui, como já sabemos, a civilização está obedecendo
às leis da necessidade econômica, visto que uma grande quantidade da energia
psíquica que ela utiliza para seus próprios fins tem de ser retirada da sexualidade.
Com relação a isso, a civilização se comporta diante da sexualidade da mesma forma
que um povo, ou uma de suas camadas sociais, procede diante de outros que estão
submetidos à sua exploração. O temor a uma revolta por parte dos elementos
oprimidos a conduz à utilização de medidas de precaução mais estritas. Um ponto
culminante nesse desenvolvimento foi atingido em nossa civilização ocidental
européia. Uma comunidade cultural acha-se, do ponto de vista psicológico,
perfeitamente justificada em começar por proscrever as manifestações da vida sexual
das crianças, pois não haveria perspectiva de submeter os apetites sexuais dos adultos,
se os fundamentos para isso não tivessem sido lançados na infância. Contudo, uma
comunidade desse tipo de modo algum pode ser justificada se vai até o ponto de
realmente repudiar essas manifestações facilmente demonstráveis e, na verdade,
notáveis. Quanto ao indivíduo sexualmente maduro, a escolha de um objeto restringese ao sexo oposto, estando as satisfações extragenitais, em sua maioria, proibidas como
perversão. A exigência, demonstrada nessas proibições, de que haja um tipo único de
vida sexual para todos, não leva em consideração as dessemelhanças, inatas ou
adquiridas, na constituição sexual dos seres humanos; cerceia, em bom número deles,
o gozo sexual, tornando-se assim fonte de grave injustiça. O resultado de tais medidas
restritivas poderia ser que, nas pessoas normais – que não se acham impedidas por
sua constituição –, a totalidade dos seus interesses sexuais fluísse, sem perdas, para os
canais que são deixados abertos. No entanto, o próprio amor genital heterossexual,
que permaneceu isento de proscrição, é restringido por outras limitações,
apresentadas sob a forma da insistência na legitimidade e na monogamia. A
civilização atual deixa claro que só permite os relacionamentos sexuais na base de um
vínculo único e indissolúvel entre um só homem e uma só mulher, e que não é de seu
agrado a sexualidade como fonte de prazer por si própria, só se achando preparada
para tolerá-la porque, até o presente, para ela não existe substituto como meio de
propagação da raça humana.
Naturalmente, isso configura um quadro extremado. Todos sabem que ele se
mostrou inexeqüível, mesmo por períodos muito breves. Apenas os fracos se
submeteram a uma usurpação tão ampla de sua liberdade sexual, e as naturezas mais
fortes só o fizeram mediante uma condição compensatória, que será posteriormente
mencionada. A sociedade civilizada viu-se obrigada a silenciar sobre muitas
transgressões que, segundo os seus próprios princípios, deveria ter punido. Mas, por
um outro lado, não devemos errar, supondo que, por não alcançar todos os seus
objetivos, uma atitude desse tipo por parte da sociedade seja inteiramente inócua. A
vida sexual do homem civilizado encontra-se, não obstante, severamente prejudicada;
dá, às vezes, a impressão de estar em processo de involução enquanto função, tal como
parece acontecer com nossos dentes e cabelos. Provavelmente, justifica-se supor que
sua importância enquanto fonte de sentimentos de felicidade e, portanto, na realização
de nosso objetivo na vida, diminuiu sensivelmente. Às vezes, somos levados a pensar
que não se trata apenas da pressão da civilização, mas de algo da natureza da própria
função que nos nega satisfação completa e nos incita a outros caminhos. Isso pode
estar errado; é difícil decidir.
V
O trabalho psicanalítico nos mostrou que as frustrações da vida sexual são
precisamente aquelas que as pessoas conhecidas como neuróticas não podem tolerar.
O neurótico cria em seus sintomas satisfações substitutivas para si, e estas ou lhe
causam sofrimento em si próprias, ou se lhe tornam fontes de sofrimento pela criação
de dificuldades em seus relacionamentos com o meio ambiente e a sociedade a que
pertence. Esse último fato é fácil de compreender; o primeiro nos apresenta um novo
problema. A civilização, porém, exige outros sacrifícios, além do da satisfação sexual.
Abordamos a dificuldade do desenvolvimento cultural como sendo uma
dificuldade geral de desenvolvimento, fazendo sua origem remontar à inércia da
libido, à falta de inclinação desta para abandonar uma posição antiga por outra nova.
Dizemos quase a mesma coisa quando fazemos a antítese entre civilização e
sexualidade derivar da circunstância de o amor sexual constituir um relacionamento
entre dois indivíduos, no qual um terceiro só pode ser supérfluo ou perturbador, ao
passo que a civilização depende de relacionamentos entre um considerável número de
indivíduos. Quando um relacionamento amoroso se encontra em seu auge, não resta
lugar para qualquer outro interesse pelo ambiente; um casal de amantes se basta a si
mesmo; sequer necessitam do filho que têm em comum para torná-los felizes. Em
nenhum outro caso Eros revela tão claramente o âmago do seu ser, o seu intuito de, de
mais de um, fazer um único; contudo, quando alcança isso da maneira proverbial, ou
seja, através do amor de dois seres humanos, recusa-se a ir além.
Até aqui, podemos imaginar perfeitamente uma comunidade cultural que
consista em indivíduos duplos como este, que, libidinalmente satisfeitos em si mesmos,
se vinculem uns aos outros através dos elos do trabalho comum e dos interesses
comuns. Se assim fosse, a civilização não teria que extrair energia alguma da
sexualidade. Contudo, esse desejável estado de coisas não existe, nem nunca existiu. A
realidade nos mostra que a civilização não se contenta com as ligações que até agora
lhe concedemos. Visa a unir entre si os membros da comunidade também de maneira
libidinal e, para tanto, emprega todos os meios. Favorece todos os caminhos pelos
quais identificações fortes possam ser estabelecidas entre os membros da comunidade
e, na mais ampla escala, convoca a libido inibida em sua finalidade, demodo a
fortalecer o vínculo comunal através das relações de amizade. Para que esses objetivos
sejam realizados, faz-se inevitável uma restrição à vida sexual. Não conseguimos,
porém, entender qual necessidade força a civilização a tomar esse caminho,
necessidade que provoca o seu antagonismo à sexualidade. Deve haver algum fator de
perturbação que ainda não descobrimos.
A pista pode ser fornecida por uma das exigências ideais, tal como as
denominamos, da sociedade civilizada. Diz ela: ‘Amarás a teu próximo como a ti
mesmo.’ Essa exigência, conhecida em todo o mundo, é, indubitavelmente, mais antiga
que o cristianismo, que a apresenta como sua reivindicação mais gloriosa. No entanto,
ela não é decerto excessivamente antiga; mesmo já em tempos históricos, ainda era
estranha à humanidade. Se adotarmos uma atitude ingênua para com ela, como se a
estivéssemos ouvindo pela primeira vez, não poderemos reprimir um sentimento de
surpresa e perplexidade. Por que deveremos agir desse modo? Que bem isso nos
trará? Acima de tudo, como conseguiremos agir desse modo? Como isso pode ser
possível? Meu amor, para mim, é algo de valioso, que eu não devo jogar fora sem
reflexão. A máxima me impõe deveres para cujo cumprimento devo estar preparado e
disposto a efetuar sacrifícios. Se amo uma pessoa, ela tem de merecer meu amor de
alguma maneira. (Não estou levando em consideração o uso que dela posso fazer, nem
sua possível significação para mim como objeto sexual, de uma vez que nenhum desses
dois tipos de relacionamento entra em questão onde o preceito de amar meu próximo
se acha em jogo.) Ela merecerá meu amor, se for de tal modo semelhante a mim, em
aspectos importantes, que eu me possa amar nela; merecê-lo-á também, se for de tal
modo mais perfeita do que eu, que nela eu possa amar meu ideal de meu próprio eu
(self). Terei ainda de amá-la, se for o filho de meu amigo, já que o sofrimento que este
sentiria se algum dano lhe ocorresse seria meu sofrimento também – eu teria de
partilhá-lo. Mas, se essa pessoa for um estranho para mim e não conseguir atrair-me
por um de seus próprios valores, ou por qualquer significação que já possa ter
adquirido para a minha vida emocional, me será muito difícil amá-la. Na verdade, eu
estaria errado agindo assim, pois meu amor é valorizado por todos os meus como um
sinal de minha preferência por eles, e seria injusto para com eles, colocar um estranho
no mesmo plano em que eles estão. Se, no entanto, devo amá-lo (com esse amor
universal) meramente porque ele também é um habitante da Terra, assim como o são
um inseto, uma minhoca ou uma serpente, receio então que só uma pequena
quantidade de meu amor caberá à sua parte – e não, em hipótese alguma, tanto
quanto, pelo julgamento de minha razão, tenho o direito de reter para mim. Qual é o
sentido de um preceito enunciado com tanta solenidade, se seu cumprimento não pode
ser recomendado como razoável?
Através de um exame mais detalhado, descubro ainda outras dificuldades. Não
meramente esse estranho é, em geral, indigno de meu amor; honestamente, tenho de
confessar que ele possui mais direito a minha hostilidade e, até mesmo, meu ódio. Não
parece apresentar o mais leve traço de amor por mim e não demonstra a mínima
consideração para comigo. Se disso ele puder auferir uma vantagem qualquer, não
hesitará em me prejudicar; tampouco pergunta a si mesmo se a vantagem assim
obtida contém alguma proporção com a extensão do dano que causa em mim. Na
verdade, não precisa nem mesmo auferir alguma vantagem; se puder satisfazer
qualquer tipo de desejo com isso, não se importará em escarnecer de mim, em me
insultar, me caluniar e me mostrar a superioridade de seu poder, e, quanto mais
seguro se sentir e mais desamparado eu for, mais, com certeza, posso esperar que se
comporte dessa maneira para comigo. Caso se conduza de modo diferente, caso
mostre consideração e tolerância como um estranho, estou pronto a tratá-lo da mesma
forma, em todo e qualquer caso e inteiramente fora de todo e qualquer preceito. Na
verdade, se aquele imponente mandamento dissesse ‘Ama a teu próximo como este te
ama’, eu não lhe faria objeções. E há um segundo mandamento que me parece mais
incompreensível ainda e que desperta em mim uma oposição mais forte ainda. Tratase do mandamento ‘Ama os teus inimigos’. Refletindo sobre ele, no entanto, percebo
que estou errado em considerá-lo como uma imposição maior. No fundo, é a mesma
coisa.
Acho que agora posso ouvir uma voz solene me repreendendo: ‘É precisamente
porque teu próximo não é digno de amor, mas, pelo contrário, é teu inimigo, que deves
amá-lo como a ti mesmo’. Compreendo então que se trata de um caso semelhante ao
do Credo quia absurdum.Ora, é muito provável que meu próximo, quando lhe for
prescrito que me ame como a si mesmo, responda exatamente como o fiz e me rejeite
pelas mesmas razões. Espero que não tenha os mesmos fundamentos objetivos para
fazê-lo, mas terá a mesma idéia que tenho. Ainda assim, o comportamento dos seres
humanos apresenta diferenças que a ética, desprezando o fato de que tais diferenças
são determinadas, classifica como ‘boas’ ou ‘más’. Enquanto essas inegáveis
diferenças não forem removidas, a obediência às elevadas exigências éticas acarreta
prejuízos aos objetivos da civilização, por incentivar o ser mau. Não podemos deixar
de lembrar um incidente ocorrido na câmara dos deputados francesa, quando a pena
capital estava em debate. Um dos membros acabara de defender apaixonadamente a
abolição dela e seu discurso estava sendo recebido com tumultuosos aplausos, quando
uma voz vinda do plenário exclamou: ‘Que messieurs les assassins commencent!
O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão
dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser
amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são
criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de
agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante
potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele
a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizálo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo,
causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. – Homo homini lupus. Quem, em face de
toda sua experiência da vida e da história, terá a coragem de discutir essa asserção?
Via de regra, essa cruel agressividade espera por alguma provocação, ou se coloca a
serviço de algum outro intuito, cujo objetivo também poderia ter sido alcançado por
medidas mais brandas. Em circunstâncias que lhe são favoráveis, quando as forças
mentais contrárias que normalmente a inibem se encontram fora de ação, ela também
se manifesta espontaneamente e revela o homem como uma besta selvagem, a quem a
consideração para com sua própria espécie é algo estranho. Quem quer que relembre
as atrocidades cometidas durante as migrações raciais ou as invasões dos hunos, ou
pelos povos conhecidos como mongóis sob a chefia de Gengis Khan e Tamerlão, ou na
captura de Jerusalém pelos piedosos cruzados, ou mesmo, na verdade, os horrores da
recente guerra mundial,quem quer que relembre tais coisas terá de se curvar
humildemente ante a verdade dessa opinião.
A existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós
mesmos e supor com justiça que ela está presente nos outros, constitui o fator que
perturba nossos relacionamentos com o nosso próximo e força a civilização a um tão
elevado dispêndio [de energia]. Em conseqüência dessa mútua hostilidade primária
dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada de
desintegração. O interesse pelo trabalho em comum não a manteria unida; as paixões
instintivas são mais fortes que os interesses razoáveis. A civilização tem de utilizar
esforços supremos a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e
manter suas manifestações sob controle por formações psíquicas reativas. Daí,
portanto, o emprego de métodos destinados a incitar as pessoas a identificações e
relacionamentos amorosos inibidos em sua finalidade, daí a restrição à vida sexual e
daí, também, o mandamento ideal de amar ao próximo como a si mesmo,
mandamento que é realmente justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente
contra a natureza original do homem. A despeito de todos os esforços, esses empenhos
da civilização até hoje não conseguiram muito. Espera-se impedir os excessos mais
grosseiros da violência brutal por si mesma, supondo-se o direito de usar a violência
contra os criminosos; no entanto, a lei não é capaz de deitar a mão sobre as
manifestações mais cautelosas e refinadas da agressividade humana. Chega a hora em
que cada um de nós tem de abandonar, como sendo ilusões, as esperanças que, na
juventude, depositou em seus semelhantes, e aprende quanta dificuldade e sofrimento
foram acrescentados à sua vida pela má vontade deles. Ao mesmo tempo, seria injusto
censurar a civilização por tentar eliminar da atividade humana a luta e a competição.
Elas são indubitavelmente indispensáveis. Mas oposição não é necessariamente
inimizade; simplesmente, ela é mal empregada e tornada uma ocasião para a
inimizade.
Os comunistas acreditam ter descoberto o caminho para nos livrar de nossos
males. Segundo eles, o homem é inteiramente bom e bem disposto para como seu
próximo, mas a instituição da propriedade privada corrompeu-lhe a natureza. A
propriedade da riqueza privada confere poder ao indivíduo e, com ele, a tentação de
maltratar o próximo, ao passo que o homem excluído da posse está fadado a se rebelar
hostilmente contra seu opressor.
Se a propriedade privada fosse abolida, possuída em comum toda a riqueza e
permitida a todos a partilha de sua fruição, a má vontade e a hostilidade
desapareceriam entre os homens. Como as necessidades de todos seriam satisfeitas,
ninguém teria razão alguma para encarar outrem como inimigo; todos, de boa
vontade, empreenderiam o trabalho que se fizesse necessário. Não estou interessado
em nenhuma crítica econômica do sistema comunista; não posso investigar se a
abolição da propriedade privada é conveniente ou vantajosa. Mas sou capaz de
reconhecer que as premissas psicológicas em que o sistema se baseia são uma ilusão
insustentável. Abolindo a propriedade privada, privamos o amor humano da agressão
de um de seus instrumentos, decerto forte, embora, decerto também, não o mais forte;
de maneira alguma, porém, alteramos as diferenças em poder e influência que são mal
empregadas pela agressividade, nem tampouco alteramos nada em sua natureza. A
agressividade não foi criada pela propriedade. Reinou quase sem limites nos tempos
primitivos, quando a propriedade ainda era muito escassa, e já se apresenta no quarto
das crianças, quase antes que a propriedade tenha abandonado sua forma anal e
primária; constitui a base de toda relação de afeto e amor entre pessoas ( com a única
exceção, talvez, do relacionamento da mãe com seu filho homem). Se eliminamos os
direitos pessoais sobre a riqueza material, ainda permanecem, no campo dos
relacionamentos sexuais, prerrogativas fadadas a se tornarem a fonte da mais intensa
antipatia e da mais violenta hostilidade entre homens que, sob outros aspectos, se
encontram em pé de igualdade. Se também removermos esse fator, permitindo a
liberdade completa da vida sexual, e assim abolirmos a família, célula germinal da
civilização, não podemos, é verdade, prever com facilidade quais os novos caminhos
que o desenvolvimento da civilização vai tomar; uma coisa, porém, podemos esperar;
é que, nesse caso, essa característica indestrutível da natureza humana seguirá a
civilização.
Evidentemente, não é fácil aos homens abandonar a satisfação dessa inclinação
para a agressão. Sem ela, eles não se sentem confortáveis. A vantagem que um grupo
cultural, comparativamente pequeno, oferece, concedendo a esse instinto um
escoadouro sob a forma de hostilidade contra intrusos, não é nada desprezível. É
sempre possível unir um considerável número de pessoas no amor, enquanto
sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade. Em
outra ocasião, examinei o fenômeno no qual são precisamente comunidades com
territórios adjacentes, e mutuamente relacionadas também sob outros aspectos, que se
empenham em rixas constantes, ridicularizando-se umas às outras, como os espanhóis
e os portugueses por exemplo, os alemães do Norte e os alemães do Sul, os ingleses e os
escoceses, e assim por diante. Dei a esse fenômeno o nome de ‘narcisismo das
pequenas diferenças’, denominação que não ajuda muito a explicá-lo. Agora podemos
ver que se trata de uma satisfação conveniente e relativamente inócua da inclinação
para a agressão, através da qual a coesão entre os membros da comunidade é tornada
mais fácil. Com respeito a isso, o povo judeu, espalhado por toda a parte, prestou os
mais úteis serviços às civilizações dos países que os acolheram; infelizmente, porém,
todos os massacres de judeus na Idade Média não bastaram para tornar o período
mais pacífico e mais seguro para seus semelhantes cristãos. Quando, outrora, o
Apóstolo Paulo postulou o amor universal entre os homens como o fundamento de sua
comunidade cristã, uma extrema intolerância por parte da cristandade para com os
que permaneceram fora dela tornou-se uma conseqüência inevitável. Para os
romanos, que não fundaram no amor sua vida comunal como Estado, a intolerância
religiosa era algo estranho, embora, entre eles, a religião fosse do interesse do Estado e
este se achasse impregnado dela. Tampouco constituiu uma possibilidade inexeqüível
que o sonho de um domínio mundial germânico exigisse o anti-semitismo como seu
complemento, sendo, portanto, compreensível que a tentativa de estabelecer uma
civilização nova e comunista na Rússia encontre o seu apoio psicológico na
perseguição aos burgueses. Não se pode senão imaginar, com preocupação, sobre o
que farão os soviéticos depois que tiverem eliminado seus burgueses.
Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não apenas à sexualidade do
homem, mas também à sua agressividade, podemos compreender melhor porque lhe é
difícil ser feliz nessa civilização. Na realidade, o homem primitivo se achava em
situação melhor, sem conhecer restrições de instinto. Em contrapartida, suas
perspectivas de desfrutar dessa felicidade, por qualquer período de tempo, eram
muito tênues. O homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de
felicidade por uma parcela de segurança. Não devemos esquecer, contudo, que na
família primeva apenas o chefe desfrutava da liberdade instintiva; o resto vivia em
opressão servil.Naquele período primitivo da civilização, o contraste entre uma
minoria que gozava das vantagens da civilização e uma maioria privada dessas
vantagens era, portanto, levada a seus extremos. Quanto aos povos primitivos que
ainda hoje existem, pesquisas cuidadosas mostraram que sua vida instintiva não é, de
maneira alguma, passível de ser invejada por causa de sua liberdade. Está sujeita a
restrições de outra espécie, talvez mais severas do que aquelas que dizem respeito ao
homem moderno.
Quando, com toda justiça, consideramos falho o presente estado de nossa
civilização, por atender de forma tão inadequada às nossas exigências de um plano de
vida que nos torne felizes, e por permitir a existência de tanto sofrimento, que
provavelmente poderia ser evitado; quando, com crítica impiedosa, tentamos pôr à
mostra as raízes de sua imperfeição, estamos indubitavelmente exercendo um direito
justo, e não nos mostrando inimigos da civilização. Podemos esperar efetuar,
gradativamente, em nossa civilização alterações tais, que satisfaçam melhor nossas
necessidades e escapem às nossas críticas. Mas talvez possamos também nos
familiarizar com a idéia de existirem dificuldades, ligadas à natureza da civilização,
que não se submeterão a qualquer tentativa de reforma. Além e acima das tarefas de
restringir os instintos, para as quais estamos preparados, reivindica nossa atenção o
perigo de um estado de coisas que poderia ser chamado de ‘pobreza psicológica dos
grupos’. Esse perigo é mais ameaçador onde os vínculos de uma sociedade são
principalmente constituídos pelas identificações dos seus membros uns com os outros,
enquanto que indivíduos do tipo de um líder não adquirem a importância que lhes
deveria caber na formação de um grupo. O presente estado cultural dos Estados
Unidos da América nos proporcionaria uma boa oportunidade para estudar o
prejuízo à civilização, que assim é de se temer. Evitarei, porém, a tentação de
ingressar numa crítica da civilização americana; não desejo dar a impressão de que eu
mesmo estou empregando métodos americanos.
VI
Em nenhum de meus trabalhos anteriores tive, tão forte quanto agora, a
impressão de que o que estou descrevendo pertence ao conhecimento comum e de que
estou desperdiçando papel e tinta, ao mesmo tempo que usando o trabalho e o
material do tipógrafo e do impressor para expor coisas que, na realidade, são
evidentes por si mesmas. Por essa razão, ficaria feliz em desenvolver o tema se isso
levasse à conclusão de que o reconhecimento de um instinto agressivo, especial e
independente, significa uma alteração da teoria psicanalítica dos instintos.
Veremos, no entanto, que a coisa não é bem assim, e que se trata simplesmente
de focalizar de modo mais nítido uma mudança de pensamento há muito tempo
introduzida, seguindo-a até suas últimas conseqüências. De todas as partes lentamente
desenvolvidas da teoria analítica, a teoria dos instintos foi a que mais penosa e
cautelosamente progrediu. Contudo, essa teoria era tão indispensável a toda a
estrutura, que algo tinha de ser colocado em seu lugar. No que constituía, a princípio,
minha completa perplexidade, tomei como ponto de partida uma expressão do poetafilósofo Schiller: ‘são a fome e o amor que movem o mundo’. A fome podia ser vista
como representando os instintos que visam a preservar o indivíduo, ao passo que o
amor se esforça na busca de objetos, e sua principal função, favorecida de todos os
modos pela natureza, é a preservação da espécie. Assim, de início, os instintos do ego e
os instintos objetais se confrontavam mutuamente. Foi para denotar a energia destes
últimos, e somente deles, que introduzi o termo ‘libido’. Assim, a antítese se verificou
entre os instintos do ego e os instintos ‘libidinais’ do amor (em seu sentido mais
amplo) que eram dirigidos a um objeto. Um desses instintos objetais, o instinto sádico,
destacou-se do restante, é verdade, pelo fato de o seu objetivo estar muito longe de ser
o amar. Ademais, ele se encontrava obviamente ligado, sob certos aspectos, aos
instintos do ego, pois não podia ocultar sua estreita afinidade com os instintos de
domínio que não possuem propósito libidinal. Mas essas discrepâncias foram
superadas; afinal de contas, o sadismo fazia claramente parte da vida sexual, em cujas
atividades a afeição podia ser substituída pela crueldade. A neurose foi encarada
como o resultado de uma luta entre o interesse de autopreservação e as exigências da
libido, luta da qual o ego saiu vitorioso, ainda que ao preço de graves sofrimentos e
renúncias.
Todo analista admitirá que, ainda hoje, essa opinião não soa como um erro há
muito tempo abandonado. Não obstante, alterações nela se tornaram essenciais, à
medida que nossas investigações progrediam das forças reprimidas para as
repressoras, dos instintos objetais para o ego. O decisivo passo à frente consistiu na
introdução do conceito de narcisismo, isto é, a descoberta de que o próprio ego se acha
catexizado pela libido, de que o ego, na verdade, constitui o reduto original dela e
continua a ser, até certo ponto, seu quartel-general. Essa libido narcísica se volta para
os objetos, tornando-se assim libido objetal, e podendo transformar-se novamente em
libido narcísica. O conceito do narcisismo possibilitou a obtenção de uma
compreensão analítica das neuroses traumáticas, de várias das afecções fronteiriças às
psicoses, bem como destas últimas. Não foi necessário abandonar nossa interpretação
das neuroses de transferência como se fossem tentativas feitas pelo ego para se
defender contra a sexualidade, mas o conceito de libido ficou ameaçado. Como os
instintos do ego também são libidinais, pareceu, por certo tempo, inevitável que
tivéssemos de fazer a libido coincidir com a energia instintiva em geral, como C. G.
Jung já advogara anteriormente. Não obstante, ainda permanecia em mim uma
espécie de convicção, para a qual ainda não me considerava capaz de encontrar
razões, de que os instintos não podiam ser todos da mesma espécie. Meu passo
seguinte foi dado em Mais Além do Princípio do Prazer (1920g), quando, pela primeira
vez, a compulsão para repetir e o caráter conservador da vida instintiva atraíram
minha atenção. Partindo de especulações sobre o começo da vida e de paralelos
biológicos, concluí que, ao lado do instinto para preservar a substância viva e para
reuni-la em unidades cada vez maiores, deveria haver outro instinto, contrário àquele,
buscando dissolver essas unidades e conduzi-las de volta a seu estado primevo e
inorgânico. Isso equivalia a dizer que, assim como Eros, existia também um instinto
de morte. Os fenômenos da vida podiam ser explicados pela ação concorrente, ou
mutuamente oposta, desses dois instintos. Não era fácil, contudo, demonstrar as
atividades desse suposto instintode morte. As manifestações de Eros eram visíveis e
bastante ruidosas. Poder-se-ia presumir que o instinto de morte operava
silenciosamente dentro do organismo, no sentido de sua destruição, mas isso,
naturalmente, não constituía uma prova. Uma idéia mais fecunda era a de que uma
parte do instinto é desviada no sentido do mundo externo e vem à luz como um
instinto de agressividade e destrutividade. Dessa maneira, o próprio instinto podia ser
compelido para o serviço de Eros, no caso de o organismo destruir alguma outra
coisa, inanimada ou animada, em vez de destruir o seu próprio eu (self).
Inversamente, qualquer restrição dessa agressividade dirigida para fora estaria
fadada a aumentar a autodestruição, a qual, em todo e qualquer caso, prossegue. Ao
mesmo tempo, pode-se suspeitar, a partir desse exemplo, que os dois tipos de instinto
raramente – talvez nunca – aparecem isolados um do outro, mas que estão
mutuamente mesclados em proporções variadas e muito diferentes, tornando-se assim
irreconhecíveis para nosso julgamento. No sadismo, há muito tempo de nós conhecido
como instinto componente da sexualidade, teríamos à nossa frente um vínculo desse
tipo particularmente forte, isto é, um vínculo entre as tendências para o amor e o
instinto destrutivo, ao passo que sua contrapartida, o masoquismo, constituiria uma
união entre a destrutividade dirigida para dentro e a sexualidade, união que
transforma aquilo que, de outro modo, é uma tendência imperceptível, numa outra
conspícua e tangível.
A afirmação da existência de um instinto de morte ou de destruição deparou-se
com resistências, inclusive em círculos analíticos; estou ciente de que existe, antes,
uma inclinação freqüente a atribuir o que é perigoso e hostil no amor a uma
bipolaridade original de sua própria natureza. A princípio, foi apenas
experimentalmente que apresentei as opiniões aqui desenvolvidas, mas, com o
decorrer do tempo, elas conseguiram tal poder sobre mim, que não posso mais pensar
de outra maneira. Para mim, elas são muito mais úteis, de um ponto de vista teórico
do que quaisquer outras possíveis; fornecem aquela simplificação, sem ignorar ou
violentar os fatos, pela qual nos esforçamos no trabalho científico. Sei que no sadismo
e no masoquismo sempre vimos diante de nós manifestações do instinto destrutivo
(dirigidas para fora e para dentro), fortemente mescladas ao erotismo, mas não posso
mais entender como foi que pudemos ter desprezado a ubiqüidade da agressividade e
da destrutividade não eróticas e falhado em conceder-lhe o devido lugar em nossa
interpretação da vida. (O desejo de destruição, quando dirigido para dentro, de fato
foge, grandemente à nossa percepção, a menos que estejarevestido de erotismo.)
Recordo minha própria atitude defensiva quando a idéia de um instinto de destruição
surgiu pela primeira vez na literatura psicanalítica, e quanto tempo levou até que eu
me tornasse receptivo a ela. Que outros tenham demonstrado, e ainda demonstrem, a
mesma atitude de rejeição, surpreende-me menos, pois ‘as criancinhas não gostam’
quando se fala na inata inclinação humana para a ‘ruindade’, a agressividade e a
destrutividade, e também para a crueldade. Deus nos criou à imagem de Sua própria
perfeição; ninguém deseja que lhe lembrem como é difícil reconciliar a inegável
existência do mal – a despeito dos protestos da Christian Science – com o Seu poder e
a Sua bondade. O Demônio seria a melhor saída como desculpa para Deus; dessa
maneira, ele estaria desempenhando o mesmo papel, como agente de descarga
econômica, que o judeu desempenha no mundo do ideal ariano. Mas, ainda assim,
pode-se responsabilizar Deus pela existência do Demônio, bem como pela existência
da malignidade que este corporifica. Em vista dessas dificuldades, ser-nos-á mais
aconselhável, nas ocasiões apropriadas, fazer uma profunda reverência à natureza
profundamente moral da humanidade; isso nos ajudará a sermos populares e, por
causa disso, muita coisa nos será perdoada. O nome ‘libido’ pode mais uma vez ser
utilizado para denotar as manifestações do poder de Eros, a fim de distingui-las da
energia do instinto de morte. Deve-se confessar que temos uma dificuldade muito
maior em apreender esse instinto; podemos apenas suspeitá-lo, por assim dizer, como
algo situado em segundo plano, por trás de Eros, fugindo à detecção, a menos que sua
presença seja traída pelo fato de estar ligado a Eros. É no sadismo – onde o instinto de
morte deforma o objetivo erótico em seu próprio sentido, embora, ao mesmo tempo,
satisfaça integralmente o impulso erótico – que conseguimos obter a mais clara
compreensão interna (insight) de sua natureza e de sua relação com Eros. Contudo,
mesmo onde ele surge sem qualquer intuito sexual, na mais cega fúria de
destrutividade, não podemos deixar de reconhecer que a satisfação do instinto se faz
acompanhar por um grau extraordinariamente alto de fruição narcísica, devido ao
fato de presentear o ego com a realização de antigos desejos de onipotência deste
último. O instinto de destruição, moderado e domado, e, por assim dizer, inibido em
sua finalidade, deve, quando dirigido para objetos, proporcionar ao ego a satisfação
de suas necessidades vitais e o controle sobre a natureza. Como a afirmação da
existência do instinto se baseia principalmente em fundamentos teóricos, temos
também de admitir que ela não se acha inteiramente imune a objeções teóricas. Mas é
assim que as coisas se nos apresentam atualmente, no presente estado de nosso
conhecimento; a pesquisa e a reflexão futuras indubitavelmente trarão novas luzes
decisivas para esse tema.
Em tudo o que se segue, adoto, portanto, o ponto de vista de que a inclinação
para a agressão constitui, no homem, uma disposição instintiva original e autosubsistente, e retorno à minha opinião,ver [[1]] de que ela é o maior impedimento à
civilização. Em determinado ponto do decorrer dessa investigação ver [[1]], fui
conduzido à idéia de que a civilização constituía um processo especial que a
humanidade experimenta, e ainda me acho sob a influência dela. Posso agora
acrescentar que a civilização constitui um processo a serviço de Eros, cujo propósito é
combinar indivíduos humanos isolados, depois famílias e, depois ainda, raças, povos e
nações numa única grande unidade, a unidade da humanidade. Porque isso tem de
acontecer, não sabemos; o trabalho de Eros é precisamente este. Essas reuniões de
homens devem estar libidinalmente ligadas umas às outras. A necessidade, as
vantagens do trabalho em comum, por si sós, não as manterão unidas. Mas o natural
instinto agressivo do homem, a hostilidade de cada um contra todos e a de todos
contra cada um, se opõe a esse programa da civilização. Esse instinto agressivo é o
derivado e o principal representante do instinto de morte, que descobrimos lado a
lado de Eros e que com este divide o domínio do mundo. Agora, penso eu, o
significado da evolução da civilização não mais nos é obscuro. Ele deve representar a
luta entre Eros e a Morte, entre o instinto de vida e o instinto de destruição, tal como
ela se elabora na espécie humana. Nessa luta consiste essencialmente toda a vida, e,
portanto, a evolução da civilização pode ser simplesmente descrita como a luta da
espécie humana pela vida. E é essa batalha de gigantes que nossas babás tentam
apaziguar com sua cantiga de ninar sobre o Céu.
VII
Por que nossos parentes, os animais, não apresentam uma luta cultural desse
tipo? Não sabemos. Provavelmente alguns deles – as abelhas, as formigas, as térmitas
– batalharam durante milhares de anos antes de chegarem às instituições estatais, à
distribuição de funções e às restrições ao indivíduo pelas quais hoje os admiramos.
Constitui um sinal de nossa condição atual o fato de sabermos, por nossos próprios
sentimentos, que não nos sentiríamos felizes em quaisquer desses Estados animais ou
em qualquer dos papéis neles atribuídos ao indivíduo. No caso das outras espécies
animais, pode ser que um equilíbrio temporário tenha sido alcançado entre as
influências de seu meio ambiente e os instintos mutuamente conflitantes dentro delas,
havendo ocorrido assim uma cessação de desenvolvimento. Pode ser que no homem
primitivo um novo acréscimo de libido tenha provocado um surto renovado de
atividade por parte do instinto destrutivo. Temos aqui muitas questões para as quais
ainda não existe resposta.
Outra questão nos interessa mais de perto. Quais os meios que a civilização
utiliza para inibir a agressividade que se lhe opõe, torná-la inócua ou, talvez, livrar-se
dela? Já nos familiarizamos com alguns desses métodos, mas ainda não com aquele
que parece ser o mais importante. Podemos estudá-lo na história do desenvolvimento
do indivíduo. O que acontece neste para tornar inofensivo seu desejo de agressão?
Algo notável, que jamais teríamos adivinhado e que, não obstante, é bastante óbvio.
Sua agressividade é introjetada, internalizada; ela é, na realidade, enviada de volta
para o lugar de onde proveio, isto é, dirigida no sentido de seu próprio ego. Aí, é
assumida por uma parte do ego, que se coloca contra o resto do ego, como superego, e
que então, sob a forma de ‘consciência’, está pronta para pôr em ação contra o ego a
mesma agressividade rude que o ego teria gostado de satisfazer sobre outros
indivíduos, a ele estranhos. A tensão entre o severo superego e o ego, que a ele se acha
sujeito, é por nós chamada de sentimento de culpa; expressa-se como uma necessidade
de punição. A civilização, portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão
do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e estabelecendo no seu interior um
agente para cuidar dele, como uma guarnição numa cidade conquistada.
Quanto à origem do sentimento de culpa, as opiniões do analista diferem das dos
outros psicólogos, embora também ele não ache fácil descrevê-lo. Inicialmente, se
perguntarmos como uma pessoa vem a ter sentimento de culpa, chegaremos a uma
resposta indiscutível: uma pessoa sente-se culpada (os devotos diriam ‘pecadora’)
quando fez algo que sabe ser ‘mau’. Reparamos, porém, em quão pouco essa resposta
nos diz. Talvez, após certa hesitação, acrescentemos que, mesmo quando a pessoa não
fez realmente uma coisa má, mas apenas identificou em si uma intenção de fazê-la, ela
pode encarar-se como culpada. Surge então a questão de saber por que a intenção é
considerada equivalente ao ato. Ambos os casos, contudo, pressupõem que já se tenha
reconhecido que o que é mau é repreensível, é algo que não deve ser feito. Como se
chega a esse julgamento? Podemos rejeitar a existência de uma capacidade original,
por assim dizer, natural de distinguir o bom do mau. O que é mau, freqüentemente,
não é de modo algum o que é prejudicial ou perigoso ao ego; pelo contrário, pode ser
algo desejável pelo ego e prazeroso para ele. Aqui, portanto, está em ação uma
influência estranha, que decide o que deve ser chamado de bom ou mau. De uma vez
que os próprios sentimentos de uma pessoa não a conduziriam ao longo desse
caminho, ela deve ter um motivo para submeter-se a essa influência estranha. Esse
motivo é facilmente descoberto no desamparo e na dependência dela em relação a
outras pessoas, e pode ser mais bem designado como medo da perda de amor. Se ela
perde o amor de outra pessoa de quem é dependente, deixa também de ser protegida
de uma série de perigos. Acima de tudo, fica exposta ao perigo de que essa pessoa mais
forte mostre a sua superioridade sob forma de punição. De início, portanto, mau é
tudo aquilo que, com a perda do amor, nos faz sentir ameaçados. Por medo dessa
perda, deve-se evitá-lo. Esta também é a razão por que faz tão pouca diferença que já
se tenha feito a coisa má ou apenas se pretenda fazê-la. Em qualquer um dos casos, o
perigo só se instaura, se e quando a autoridade descobri-lo, e, em ambos, a autoridade
se comporta da mesma maneira.
Esse estado mental é chamado de ‘má consciência’; na realidade, porém, não
merece esse nome, pois, nessa etapa, o sentimento de culpa é, claramente, apenas um
medo da perda de amor, uma ansiedade ‘social’. Em crianças, ele nunca pode ser mais
do que isso, e em muitos adultos ele só se modifica até o ponto em que o lugar do pai
ou dos dois genitores é assumido pela comunidade humana mais ampla. Por
conseguinte, tais pessoas habitualmente se permitem fazer qualquer coisa má que lhes
prometa prazer, enquanto se sentem seguras de que a autoridade nada saberá a
respeito, ou não poderá culpá-las por isso; só têm medo de serem descobertas. A
sociedade atual, geralmente, vê-se obrigada a levar em conta esse estado mental. Uma
grande mudança só se realiza quando a autoridade é internalizada através do
estabelecimento de um superego. Os fenômenos da consciência atingem então um
estágio mais elevado. Na realidade, então devemos falar de consciência ou de
sentimento de culpa. Nesse ponto, também, o medo de ser descoberto se extingue;
além disso, a distinção entre fazer algo mau e desejar fazê-lo desaparece inteiramente,
já que nada pode ser escondido do superego, sequer os pensamentos. É verdade que a
seriedade da situação, de um ponto de vista real, se dissipou, pois a nova autoridade, o
superego, ao que saibamos, não tem motivos para maltratar o ego, com o qual está
intimamente ligado; contudo, a influência genética, que conduz à sobrevivência do que
passou e foi superado, faz-se sentir no fato de, fundamentalmente, as coisas
permanecerem como eram de início. O superego atormenta o ego pecador com o
mesmo sentimento de ansiedade e fica à espera de oportunidades para fazê-lo ser
punido pelo mundo externo.
Nesse segundo estágio de desenvolvimento, a consciência apresenta uma
peculiaridade que se achava ausente do primeiro e que não é mais fácil de explicar,
pois quanto mais virtuoso um homem é, mais severo e desconfiado é o seu
comportamento, de maneira que, em última análise, são precisamente as pessoas que
levaram mais longe a santidade as que se censuram da pior pecaminosidade. Isso
significa que a virtude perde direito a uma certa parte da recompensa prometida; o
ego dócil e continente não desfruta da confiança de seu mentor, e é em vão que se
esforça, segundo parece, por adquiri-la. Far-se-á imediatamente a objeção de que
essas dificuldades são artificiais, e dir-se-á que uma consciência mais estrita e mais
vigilante constitui precisamente a marca distintiva de um homem moral. Além disso,
quando os santos se chamam a si próprios de pecadores, não estão errados –
considerando-se as tentações à satisfação instintiva a que se encontram expostos em
grau especialmente alto –, já que, como todos sabem, as tentações são simplesmente
aumentadas pela frustração constante, ao passo que a sua satisfação ocasional as faz
diminuir, ao menos por algum tempo. O campo da ética, tão cheio de problemas, nos
apresenta outro fato: a má sorte – isto é, a frustração externa – acentua grandemente
o poder da consciência no superego. Enquanto tudo corre bem com um homem, a sua
consciência é lenitiva e permite que o ego faça todo tipo de coisas; entretanto, quando
o infortúnio lhe sobrevém, ele busca sua alma, reconhece sua pecaminosidade, eleva as
exigências de sua consciência, impõe-se abstinência e se castiga com penitências. Povos
inteiros se comportaram dessa maneira, e ainda se comportam. Isso, contudo, é
facilmente explicado pelo estágio infantil original da consciência, o qual, como vemos,
não é abandonado após a introjeção no superego, persistindo lado a lado e por trás
dele. O Destino é encarado como um substituto do agente parental. Se um homem é
desafortunado, isso significa que não é mais amado por esse poder supremo, e,
ameaçado por essa falta de amor, mais uma vez se curva ao representante paterno em
seu superego, representante que, em seus dias de boa sorte estava pronto a desprezar.
Esse fato se torna especialmente claro quando o Destino é encarado segundo o sentido
estritamente religioso de nada mais ser do que uma expressão da Vontade Divina. O
povo de Israel acreditava ser o filho favorito de Deus e, quando o grande Pai fez com
que infortúnios cada vez maiores desabassem sobre seu povo, jamais a crença em Seu
relacionamento com eles se abalou, nem o Seu poder ou justiça foi posto em dúvida.
Pelo contrário, foi então que surgiram os profetas, que apontaram a pecaminosidade
desse povo, e, de seu sentimento de culpa, criaram-se os mandamentos superestritos
de sua religião sacerdotal. É digno de nota o comportamento tão diferente do homem
primitivo. Se ele se defronta com um infortúnio, não atribui a culpa a si mesmo, mas a
seu fetiche, que evidentemente não cumpriu o dever, e dá-lhe uma surra, em vez de se
punir a si mesmo.
Conhecemos, assim, duas origens do sentimento de culpa: uma que surge do
medo de uma autoridade, e outra, posterior, que surge do medo do superego. A
primeira insiste numa renúncia às satisfações instintivas; a segunda, ao mesmo tempo
em que faz isso exige punição, de uma vez que a continuação dos desejos proibidos
não pode ser escondida do superego. Aprendemos também o modo como a severidade
do superego – as exigências da consciência – deve ser entendida. Trata-se
simplesmente de uma continuação da severidade da autoridade externa, à qual
sucedeu e que, em parte, substituiu. Percebemos agora em que relação a renúncia ao
instinto se acha com o sentimento de culpa. Originalmente, renúncia ao instinto
constituía o resultado do medo de uma autoridade externa: renunciava-se às próprias
satisfação para não se perder o amor da autoridade. Se se efetuava essa renúncia,
ficava-se, por assim dizer, quite com a autoridade e nenhum sentimento de culpa
permaneceria. Quanto ao medo do superego, porém, o caso é diferente. Aqui, a
renúncia instintiva não basta, pois o desejo persiste e não pode ser escondido do
superego. Assim, a despeito da renúncia efetuada, ocorre um sentimento de culpa. Isso
representa uma grande desvantagem econômica na construção de um superego ou,
como podemos dizer, na formação de uma consciência. Aqui, a renúncia instintiva não
possui mais um efeito completamente liberador; a continência virtuosa não é mais
recompensada com a certeza do amor. Uma ameaça de infelicidade externa – perda de
amor e castigo por parte da autoridade externa – foi permutada por uma permanente
infelicidade interna, pela tensão do sentimento de culpa.
Essas inter-relações são tão complicadas e, ao mesmo tempo, tão importantes,
que, ao risco de me repetir, as abordarei ainda de outro ângulo. A seqüência
cronológica, então, seria a seguinte. Em primeiro lugar, vem a renúncia ao instinto,
devido ao medo de agressão por parte da autoridade externa. (É a isso, naturalmente,
que o medo da perda de amor equivale, pois o amor constitui proteção contra essa
agressão punitiva.) Depois, vem a organização de uma autoridade interna e a renúncia
ao instinto devido ao medo dela, ou seja, devido ao medo da consciência. Nessa
segunda situação, as más intenções são igualadas às más ações e daí surgem
sentimento de culpa e necessidade de punição. A agressividade da consciência
continua a agressividade da autoridade. Até aqui, sem dúvida, as coisas são claras;
mas onde é que isso deixa lugar para a influência reforçadora do infortúnio (da
renúncia imposta de fora),ver [[1]] e para a extraordinária severidade da consciência
nas pessoas melhores e mais dóceis ver [[1]]?Já explicamos essas particularidades da
consciência, mas provavelmente ainda temos a impressão de que essas explicações não
atingem o fundo da questão e deixam ainda inexplicado um resíduo. Aqui, por fim,
surge uma idéia que pertence inteiramente à psicanálise, sendo estranha ao modo
comum de pensar das pessoas. Essa idéia é de um tipo que nos capacita a
compreender por que o tema geral estava fadado a nos parecer confuso e obscuro,
pois nos diz que, de início, a consciência (ou, de modo mais correto, a ansiedade que
depois se torna consciência) é, na verdade, a causa da renúncia instintiva, mas que,
posteriormente, o relacionamento se inverte. Toda renúncia ao instinto torna-se agora
uma fonte dinâmica de consciência, e cada nova renúncia aumenta a severidade e a
intolerância desta última. Se pudéssemos colocar isso mais em harmonia com o que já
sabemos sobre a história da origem da consciência, ficaríamos tentados a defender a
afirmativa paradoxal de que a consciência é o resultado da renúncia instintiva, ou que
a renúncia instintiva (imposta a nós de fora) cria a consciência, a qual, então, exige
mais renúncias instintivas.
A contradição entre essa afirmativa e o que anteriormente dissemos sobre a
gênese da consciência não é, na realidade, tão grande, e vemos uma maneira de
reduzi-la ainda mais. A fim de facilitar nossa exposição, tomemos como exemplo o
instinto agressivo e suponhamos que a renúncia em estudo seja sempre uma renúncia
à agressão. (Isso, naturalmente, só deve ser tomado como uma suposição temporária.)
O efeito da renúncia instintiva sobre a consciência, então, é que cada agressão de cuja
satisfação o indivíduo desiste é assumida pelo superego e aumenta a agressividade
deste (contra o ego). Isso não se harmoniza bem com o ponto de vista segundo o qual a
agressividade original da consciência é uma continuação da severidade da autoridade
externa, não tendo, portanto, nada a ver com a renúncia. Mas a discrepância se
anulará se postularmos uma derivação diferente para essa primeira instalação da
agressividade do superego. É provável que, na criança, se tenha desenvolvido uma
quantidade considerável de agressividade contra a autoridade, que a impede de ter
suas primeiras – e, também, mais importantes – satisfações, não importando o tipo de
privação instintiva que dela possa ser exigida. Ela, porém, é obrigada a renunciar à
satisfação dessa agressividade vingativa e encontra saída para essa situação
economicamente difícil com o auxílio de mecanismos familiares. Através da
identificação, incorpora a si a autoridade inatacável. Esta transforma-se então em seu
superego, entrando na posse de toda a agressividade que a criança gostaria de exercer
contra ele. O ego da criança tem de contentar-se com o papel infeliz da autoridade – o
pai – que foi assim degradada. Aqui, como tão freqüentemente acontece, a situação
[real] é invertida: ‘Se eu fosse o pai e você fosse a criança, eu otrataria muito mal’. O
relacionamento entre o superego e o ego constitui um retorno, deformado por um
desejo, dos relacionamentos reais existentes entre o ego, ainda individido, e um objeto
externo. Isso também é típico. A diferença essencial, porém, é que a severidade
original do superego não representa – ou não representa tanto – a severidade que dele
[do objeto] se experimentou ou que se lhe atribui. Representa, antes, nossa própria
agressividade para com ele. Se isso é correto, podemos verdadeiramente afirmar que,
de início, a consciência surge através da repressão de um impulso agressivo, sendo
subseqüentemente reforçada por novas repressões do mesmo tipo.
Qual destes dois pontos de vista é correto? O primeiro, que geneticamente
parecia tão inexpugnável, ou o último, que de maneira tão bem-vinda apara as arestas
da teoria? Claramente, e também pelas provas de observações diretas, ambos se
justificam. Não contradizem mutuamente e, até mesmo, coincidem em determinado
ponto, pois a agressividade vingativa da criança será em parte determinada pela
quantidade de agressão punitiva que espera do pai. A experiência mostra, contudo,
que a severidade do superego que uma criança desenvolve, de maneira nenhuma
corresponde à severidade de tratamento com que ela própria se defrontou. A
severidade do primeiro parece ser independente da do último. Uma criança criada de
forma muito suave, pode adquirir uma consciência muito estrita. No entanto, também
seria errado exagerar essa independência; não é difícil nos convencermos de que a
severidade da criação também exerce uma forte influência na formação do superego
da criança. Isso significa que, na formação do superego e no surgimento da
consciência, fatores constitucionais inatos e influências do ambiente real atuam de
forma combinada. O que, de modo algum, é surpreendente; ao contrário, trata-se de
uma condição etiológica universal para todos os processos desse tipo. Pode-se também
asseverar que, quando uma criançareage às suas primeiras grandes frustrações
instintivas com uma agressividade excessivamente forte e um superego
correspondentemente severo, ela está seguindo um modelo filogenético e indo além da
reação que seria correntemente justificada, pois o pai dos tempos pré-históricos era
indubitavelmente terrível e uma quantidade extrema de agressividade lhe pode ser
atribuída. Assim, se passarmos do desenvolvimento individual para o desenvolvimento
filogenético, as diferenças entre as duas teorias da gênese da consciência ficam
menores ainda. Por outro lado, uma nova e importante diferença aparece entre esses
dois processos de desenvolvimento. Não podemos afastar a suposição de que o
sentimento de culpa do homem se origina do complexo edipiano e foi adquirido
quando da morte do pai pelos irmãos reunidos em bando. Naquela ocasião, um ato de
agressão não foi suprimido, mas executado; foi, porém, o mesmo ato de agressão cuja
repressão na criança se imagina ser a fonte de seu sentimento de culpa. Nesse ponto,
não me surpreenderei se o leitor exclamar com raiva: ‘Então não faz diferença que se
mate o pai ou não – fica-se com um sentimento de culpa do mesmo jeito! Pedimos
licença para levantar algumas dúvidas. Ou não é verdade que o sentimento de culpa
provém da agressividade reprimida, ou então toda a história da morte do pai é uma
ficção e os filhos do homem primevo não mataram os pais mais do que as crianças o
fazem atualmente. Além disso, se não for ficção, mas fato histórico plausível, seria o
caso de acontecer algo que todos esperam que aconteça, ou melhor, uma pessoa se
sentir culpada porque realmente fez algo que não pode ser justificado. E para esse
evento, que afinal de contas, constitui uma ocorrência cotidiana, a psicanálise ainda
não forneceu qualquer explicação.’
Tudo isso é verdade, e temos de corrigir a omissão. Tampouco existe qualquer
grande segredo quanto ao assunto. Quando se fica com um sentimento de culpa depois
de ter praticado uma má ação, e por causa dela, o sentimento deveria, mais
propriamente, ser chamado de remorso. Este se refere apenas a um ato que foi
cometido, e, naturalmente, pressupõe que uma consciência – a presteza em se sentir
culpado – já existia antes que o ato fosse praticado. Um remorso desse tipo, portanto,
jamais pode ajudar-nos a descobrir a origem da consciência e do sentimento de culpa
em geral. O que acontece nesses casos cotidianos é geralmente o seguinte: uma
necessidade instintiva adquire intensidade para alcançar satisfação, a despeito da
consciência, que, afinal de contas, é limitada em sua força, e, com o
debilitamentonatural da necessidade, devido a ter sido satisfeita, o equilíbrio anterior
de forças é restaurado. A psicanálise encontra assim uma justificativa para excluir do
presente exame o caso do sentimento de culpa devido ao remorso, por mais
freqüentemente que tais casos ocorram e por grande que seja sua importância prática.
Mas, se o sentimento humano de culpa remonta à morte do pai primevo, tratase, afinal de contas, de um caso de ‘remorso’. Por ventura não devemos supor que
[nessa época] uma consciência e um sentimento de culpa, como pressupomos, já
existiam antes daquele feito? Se não existiam, de onde então proveio o remorso? Não
há dúvida de que esse caso nos explicaria o segredo do sentimento de culpa e poria fim
às nossas dificuldades. E acredito que o faz. Esse remorso constituiu o resultado da
ambivalência primordial de sentimentos para com o pai. Seus filhos o odiavam, mas
também o amavam. Depois que o ódio foi satisfeito pelo ato de agressão, o amor veio
para o primeiro plano, no remorso dos filhos pelo ato. Criou o superego pela
identificação com o pai; deu a esse agente o poder paterno, como uma punição pelo
ato de agressão que haviam cometido contra aquele, e criou as restrições destinadas a
impedir uma repetição do ato. E, visto que a inclinação à agressividade contra o pai se
repetiu nas gerações seguintes, o sentimento de culpa também persistiu, cada vez mais
fortalecido por cada parcela de agressividade que era reprimida e transferida para o
superego. Ora, penso eu, finalmente podemos apreender duas coisas de modo
perfeitamente claro: o papel desempenhado pelo amor na origem da consciência e a
fatal inevitabilidade do sentimento de culpa. Matar o próprio pai ou abster-se de
matá-lo não é, realmente, a coisa decisiva. Em ambos os casos, todos estão fadados a
sentir culpa, porque o sentimento de culpa é expressão tanto do conflito devido à
ambivalência, quanto da eterna luta entre Eros e o instinto de destruição ou morte.
Esse conflito é posto em ação tão logo os homens se defrontem com a tarefa de
viverem juntos. Enquanto a comunidade não assume outra forma que não seja a da
família, o conflito está fadado a se expressar no complexo edipiano, a estabelecer a
consciência e a criar o primeiro sentimento de culpa. Quando se faz uma tentativa
para ampliar a comunidade, o mesmo conflito continua sob formas que dependem do
passado; é fortalecido e resulta numa intensificação adicional do sentimento de culpa.
Visto que a civilização obedece a um impulso erótico interno que leva os seres
humanos a se unirem num grupo estreitamente ligado, ela só pode alcançar seu
objetivo através de um crescente fortalecimento do sentimento de culpa. O que
começou em relação ao pai é completado em relação ao grupo. Se a civilização
constitui o caminho necessário de desenvolvimento, da família à humanidade como
um todo, então, em resultado do conflito inato surgido da ambivalência, da eterna luta
entre as tendências de amor e de morte, acha-se a ele inextricavelmente ligado um
aumento do sentimento de culpa, que talvez atinja alturas que o indivíduo considere
difíceis de tolerar. Aqui, somos lembrados da comovente denúncia dos ‘Poderes
Celestes’, feita pelo grande poeta:
lhr führt in’s Leben uns hinein,lhr lasst den Armen schuldig werden,Dann überlasst
lhr den Pein,Denn iede Schuld rächt sich auf Erden.
E bem podemos suspirar aliviados ante o pensamento de que, apesar de tudo, a
alguns é concedido salvar, sem esforço, do torvelinho de seus próprios sentimentos as
mais profundas verdades, em cuja direção o resto de nós tem de encontrar o caminho
por meio de uma incerteza atormentadora e com um intranqüilo tatear.
VIII
Chegando ao fim de sua jornada, o autor se vê obrigado a pedir o perdão dos
leitores por não ter sido um guia mais hábil e por não lhes ter poupado as regiões mais
ásperas da estrada e os desconfortáveis détours. Não há dúvida de que isso poderia ter
sido feito de forma melhor. Tentarei, já findando o dia, proceder a algumas correções.
Em primeiro lugar, desconfio que o leitor tem a impressão de que nosso exame
do sentimento de culpa quebra a estrutura deste ensaio; que ocupa espaço demais, de
maneira que o resto do tema geral, ao qual não se acha sempre estreitamente
vinculado, é posto de lado. Isso pode ter prejudicado a estrutura do trabalho, mas
corresponde fielmente à minha intenção de representar o sentimento de culpa como o
mais importante problema no desenvolvimento da civilização, e de demonstrar que o
preço que pagamos por nosso avanço em termos de civilização é uma perda de
felicidade pela intensificação do sentimento de culpa.Qualquer coisa que ainda soe
estranha a respeito dessa afirmação, que constitui a conclusão final de nossa
investigação, pode ser provavelmente localizada no relacionamento bastante peculiar
– até agora completamente inexplicado – que o sentimento de culpa mantém com
nossa consciência. No caso comum de remorso, que encaramos como normal, esse
sentimento se torna claramente perceptível para a consciência. Na verdade, estamos
habituados a falar de uma ‘consciência de culpa’, em vez de um ‘sentimento de culpa’.
Nosso estudo das neuroses, ao qual, afinal de contas, devemos as mais valiosas
indicações para uma compreensão das condições normais, nos leva de encontro a
certas contradições. Numa dessas afecções, a neurose obsessiva, o sentimento de culpa
faz-se ruidosamente ouvido na consciência; domina o quadro clínico e também a vida
do paciente, mal permitindo que apareça algo mais ao lado dele. Entretanto, na
maioria dos outros casos e formas de neurose, ele permanece completamente
inconsciente, sem que, por isso, produza efeitos menos importantes. Nossos pacientes
não acreditam em nós quando lhes atribuímos um ‘sentimento de culpa inconsciente’.
A fim de nos tornarmos inteligíveis para eles, falamos-lhes de uma necessidade
inconsciente de punição, na qual o sentimento de culpa encontra expressão. Apesar
disso, sua vinculação a uma forma específica de neurose não deve ser superestimada.
Mesmo na neurose obsessiva há tipos de pacientes que não se dão conta de seu
sentimento de culpa, ou que apenas o sentem como um mal-estar atormentador, uma
espécie de ansiedade, se impedidos de praticar certas ações. Deveria ser possível
chegar a compreender essas coisas, mas, até agora, não nos foi possível. Aqui, talvez,
nos possamos alegrar por termos assinalado que, no fundo, o sentimento de culpa
nada mais é do que uma variedade topográfica da ansiedade; em suas fases
posteriores, coincide completamente com o medo do superego. E as relações da
ansiedade com a consciência apresentam as mesmas e extraordinárias variações. A
ansiedade está sempre presente, num lugar ou outro, por trás de todo sintoma; em
determinada ocasião, porém, toma, ruidosamente, posse da totalidade da consciência,
ao passo que, em outra, se oculta tão completamente, que somos obrigados a falar de
ansiedade inconsciente, ou, se desejamos ter uma consciência psicológica mais clara –
visto a ansiedade ser, no primeiro caso, simplesmente um sentimento –, das
possibilidades de ansiedade. Por conseguinte, é bastante concebível que tampouco o
sentimento de culpa produzido pela civilização seja percebido como tal, e em grande
parte permaneça inconsciente, ou apareça como uma espécie de mal-estar, uma
insatisfação, para a qual as pessoas buscam outras motivações. As religiões, pelo
menos, nunca desprezaram o papel desempenhado na civilização pelo sentimento de
culpa. Ademais – ponto que deixei de apreciar em outro trabalho –, elas alegam
redimir a humanidade desse sentimento de culpa, a que chamam de pecado. Da
maneira pela qual, no cristianismo, essa redenção é conseguida – pela morte sacrificial
de uma pessoa isolada, que, desse modo, toma sobre si mesma a culpa comum a todos
–, conseguimos inferir qual pode ter sido a primeira ocasião em que essa culpa
primária, que constitui também o primórdio da civilização, foi adquirida.
Embora talvez não seja de grande importância, não é supérfluo elucidar o
significado de certas palavras, tais como ‘superego’, ‘consciência’, ‘sentimento de
culpa’, ‘necessidade de punição’ e ‘remorso’, as quais é possível que muitas vezes
tenhamos utilizado de modo frouxo e intercambiável. Todas se relacionam ao mesmo
estado de coisas, mas denotam diferentes aspectos seus. O superego é um agente que
foi por nós inferido e a consciência constitui uma função que, entre outras, atribuímos
a esse agente. A função consiste em manter a vigilância sobre as ações e as intenções
do ego e julgá-las, exercendo sua censura. O sentimento de culpa, a severidade do
superego, é, portanto, o mesmo que a severidade da consciência. É a percepção que o
ego tem de estar sendo vigiado dessa maneira, a avaliação da tensão entre os seus
próprios esforços e as exigências do superego. O medo desse agente crítico (medo que
está no fundo de todo relacionamento), a necessidade de punição, constitui uma
manifestação instintiva por parte do ego, que se tornou masoquista sob a influência de
um superego sádico; é, por assim dizer, uma parcela do instinto voltado para a
destruição interna presente no ego, empregado para formar uma ligação erótica com
o superego. Não devemos falar de consciência até que um superego se ache
demonstravelmente presente. Quanto ao sentimento de culpa, temos de admitir que
existe antes do superego e, portanto, antes da consciência também. Nessa ocasião, ele é
expressão imediata do medo da autoridade externa, um reconhecimento da tensão
existente entre o ego e essa autoridade. É o derivado direto do conflito entre a
necessidade do amor da autoridade e o impulso no sentido da satisfação instintiva,
cuja inibição produz a inclinação para a agressão. A superposição desses dois estratos
do sentimento de culpa – um oriundo do medo da autoridade externa; o outro, do
medo da autoridade interna – dificultou nossa compreensão interna (insight) da
posição da consciência por certo número de maneiras. Remorso é um termo geral
para designar a reação do ego num caso de sentimento de culpa. Contém, em forma
pouco alterada, o material sensorial da ansiedade que opera por trás do sentimento de
culpa; ele próprio é uma punição, ou pode incluir a necessidade de punição, podendo,
portanto, ser também mais antigo do que a consciência.
Tampouco fará mal que passemos mais uma vez em revista as contradições que
nos confundiram durante algum tempo, no correr de nossa investigação. Assim, em
determinado ponto, o sentimento de culpa era a conseqüência dos atos de agressão de
que alguém se abstivera; em outro, porém – exatamente em seu começo histórico, a
morte do pai –, constituía a conseqüência de um ato de agressão que fora
executado,ver [[1]]. Encontrou-se uma saída para essa dificuldade, pois a instituição
da autoridade interna, o superego, alterou radicalmente a situação. Antes disso, o
sentimento de culpa coincidia com o remorso. (Podemos observar, incidentalmente,
que o termo ‘remorso’ deveria ser reservado para a reação que surge depois de um
ato de agressão ter sido realmente executado.) Posteriormente, devido à onisciência do
superego, a diferença entre uma agressão pretendida e uma agressão executada
perdeu sua força. Daí por diante, o sentimento de culpa podia ser produzido não
apenas por um ato de violência realmente efetuado (como todos sabem), mas também
por um ato simplesmente pretendido (como a psicanálise descobriu).
Independentemente dessa alteração na situação psicológica, o conflito que surge da
ambivalência – o conflito entre os dois instintos primitivos – deixa atrás de si o mesmo
resultado,ver [[1]]. Somos tentados a procurar aqui a solução do problema da relação
variável em que o sentimento de culpa se acha para com a consciência. Pode-se pensar
que o sentimento de culpa surgido do remorso por uma ação má deve ser sempre
consciente, ao passo que o sentimento de culpa originado da percepção de um impulso
mau pode permanecer inconsciente. Contudo, a resposta não é tão simples assim. A
neurose obsessiva fala energicamente contra ela.
A segunda contradição se referia à energia agressiva da qual supomos dotado o
superego. Segundo determinado ponto de vista, essa energia simplesmente continua a
energia punitiva da autoridade externa e a mantém viva na mente,ver [[1]], ao passo
que, de acordo com outra opinião, ela consiste, pelo contrário, na própria energia
agressiva que não foi uti lizada e que agora se dirige contra essa autoridade
inibidora,ver [[1]]. A primeira visão parecia ajustar-se melhor à história e a segunda à
teoria do sentimento de culpa. Uma reflexão mais adequada resolveu essa contradição
aparentemente irreconciliável de modo quase excessivamente completo; o que restou
como fator essencial e comum foi que, em cada caso, se lida com uma
agressividadedeslocada para dentro. A observação clínica, ademais, nos permite de
fato distinguir duas fontes para a agressividade que atribuímos ao superego; ou uma
ou outra exerce o efeito mais forte em qualquer caso determinado, mas, em geral,
operam em harmonia.
É este, penso eu, o lugar para apresentar a uma consideração séria uma opinião
que anteriormente recomendei para aceitação provisória. Na literatura analítica mais
recente, mostra-se predileção pela idéia de que qualquer tipo de frustração, qualquer
satisfação instintiva frustrada, resulta, ou pode resultar numa elevação do sentimento
de culpa. Acho que se conseguirá uma grande simplificação teórica, se se encarar isso
como sendo aplicável apenas aos instintos agressivos, e não se encontrará quase nada
que contradiga essa afirmação. Pois, como devemos explicar, em fundamentos
dinâmicos e econômicos, um aumento no sentimento de culpa que aparece no lugar de
uma exigência erótica não satisfeita? Isso só parece possível de maneira indireta se
supusermos que a prevenção de uma satisfação erótica exige uma agressividade
contra a pessoa que interferiu na satisfação, e que essa própria agressividade, por sua
vez, tem de ser recalcada. Se as coisas se passam assim, é em suma, apenas a
agressividade que é transformada em sentimento de culpa, por ter sido recalcada e
transmitida para o superego. Estou convencido de que muitos processos admitirão
exposição mais simples e mais clara, se as descobertas da psicanálise sobre a derivação
do sentimento de culpa forem restringidas aos instintos agressivos. O exame do
material clínico não nos fornece aqui uma resposta inequívoca, porque, como nossa
hipótese nos diz, os dois tipos de instinto dificilmente aparecem em forma pura,
isolados um do outro, e uma investigação dos casos extremos provavelmente apontaria
para a direção por mim prevista.
Sinto-me tentado a extrair uma primeira vantagem dessa visão mais restrita do
caso, aplicando-a ao processo da repressão. Conforme aprendemos, os sintomas
neuróticos são, em sua essência, satisfações substitutivas para desejos sexuais não
realizados. No decorrer de nosso trabalho analítico, descobrimos, para nossa
surpresa, que talvez toda neurose oculte uma quota de sentimento inconsciente de
culpa, o qual, por sua vez, fortifica os sintomas, fazendo uso deles como punição.
Agora parece plausível formular a seguinte proposição: quando uma tendência
instintiva experimenta a repressão, seus elementos libidinais são transformado sem
sintomas e seus componentes agressivos em sentimento de culpa. Mesmo que essa
proposição não passe de uma aproximação mediana à verdade, é digna de nosso
interesse.
Alguns leitores deste trabalho podem ainda ter a impressão de que já ouviram,
de modo demasiado freqüente, a fórmula sobre a luta entre Eros e o instinto de morte.
Ela foi não só empregada para caracterizar o processo de civilização que a
humanidade sofre,ver [[1]],mas também vinculada ao desenvolvimento do indivíduo
ver [[1]] e, além disso, dela se disse que revelou o segredo da vida orgânica em
geral,ver [[1]]. Acho que não podemos deixar de penetrar nas relações existentes entre
esses três processos. A repetição da mesma fórmula se justifica pela consideração de
que tanto o processo da civilização humana quanto o do desenvolvimento do indivíduo
são também processos vitais – o que equivale a dizer que devem partilhar a mesma
característica mais geral da vida. Por outro lado, as provas da presença dessa
característica geral, pela razão mesma de sua natureza geral, fracassam em nos
ajudar a estabelecer qualquer diferenciação [entre os processos], enquanto não for
reduzida por limitações especiais. Só podemos ficar satisfeitos, portanto, afirmando
que o processo civilizatório constitui uma modificação, que o processo vital
experimenta sob a influência de uma tarefa que lhe é atribuída por Eros e incentivada
por Ananké – pelas exigências da realidade –, e que essa tarefa é a de unir indivíduos
isolados numa comunidade ligada por vínculos libidinais. Quando, porém,
examinamos a relação existente entre o processo desenvolvimental ou educativo dos
seres humanos individuais, devemos concluir, sem muita hesitação, que os dois
apresentam uma natureza muito semelhante, caso não sejam o mesmo processo
aplicado a tipos diferentes de objeto. O processo da civilização da espécie humana é,
naturalmente, uma abstração de ordem mais elevada do que a do desenvolvimento do
indivíduo, sendo, portanto, de mais difícil apreensão em termos concretos; tampouco
devemos perseguir as analogias a um extremo obsessivo. Contudo, diante da
semelhança entre os objetivos dos dois processos – num dos casos, a integração de um
indivíduo isolado num grupo humano; no outro, a criação de um grupo unificado a
partir de muitos indivíduos –, não podemos surpreender-nos com a similaridade entre
os meios empregados e os fenômenos resultantes.
Em vista de sua excepcional importância, não devemos adiar mais a menção de
determinado aspecto que estabelece a distinção entre os dois processos. No processo de
desenvolvimento do indivíduo, o programa do princípio do prazer, que consiste em
encontrar a satisfação da felicidade, é mantido como objetivo principal. A integração
numa comunidade humana,ou a adaptação a ela, aparece como uma condição
dificilmente evitável, que tem de ser preenchida antes que esse objetivo de felicidade
possa ser alcançado. Talvez fosse preferível que isso pudesse ser feito sem essa
condição. Em outras palavras, o desenvolvimento do indivíduo nos parece ser um
produto da interação entre duas premências, a premência no sentido da felicidade,
que geralmente chamamos de ‘egoísta’, e a premência no sentido da união com os
outros da comunidade, que chamamos de ‘altruísta’. Nenhuma dessas descrições
desce muito abaixo da superfície. No processo de desenvolvimento individual, como
dissemos, a ênfase principal recai sobretudo na premência egoísta (ou a premência no
sentido da felicidade), ao passo que a outra premência, que pode ser descrita como
‘cultural’, geralmente se contenta com a função de impor restrições. No processo
civilizatório, porém, as coisas se passam de modo diferente. Aqui, de longe, o que mais
importa é o objetivo de criar uma unidade a partir dos seres humanos individuais. É
verdade que o objetivo da felicidade ainda se encontra aí, mas relegado ao segundo
plano. Quase parece que a criação de uma grande comunidade humana seria mais
bem-sucedida se não se tivesse de prestar atenção à felicidade do indivíduo. Assim,
pode-se esperar que o processo desenvolvimental do indivíduo apresente aspectos
especiais, próprios dele, que não são reproduzidos no processo da civilização humana.
É apenas na medida em que está em união com a comunidade como objetivo seu, que
o primeiro desses processos precisa coincidir com o segundo.
Assim como um planeta gira em torno de um corpo central enquanto roda em
torno de seu próprio eixo, assim também o indivíduo humano participa do curso do
desenvolvimento da humanidade, ao mesmo tempo que persegue o seu próprio
caminho na vida. Para nossos olhos enevoados, porém, o jogo de forças nos céus
parece fixado numa ordem que jamais muda; no campo da vida orgânica, ainda
podemos perceber como as forças lutam umas com as outras e como os efeitos desse
conflito estão em permanente mudança. Assim também as duas premências, a que se
volta para a felicidade pessoal e a que se dirige para a união com os outros seres
humanos, devem lutar entre si em todo indivíduo, e assim também os dois processos
de desenvolvimento, o individual e o cultural, têm de colocar-se numa oposição hostil
um para com o outro e disputar-se mutuamente a posse do terreno. Contudo, essa luta
entre o indivíduo e a sociedade não constitui um derivado da contradição –
provavelmente irreconciliável – entre os instintos primevos de Eros e da morte. Tratase de uma luta dentro da economia da libido, comparável àquela referente à
distribuição da libido entre o ego e os objetos, admitindo uma acomodação final no
indivíduo, tal como, pode-se esperar, também o fará no futuro da civilização, por mais
que atualmente essa civilização possa oprimir a vida do indivíduo.
A analogia entre o processo civilizatório e o caminho do desenvolvimento
individual é passível de ser ampliada sob um aspecto importante. Pode-se afirmar que
também a comunidade desenvolve um superego sob cuja influência se produz a
evolução cultural. Constituiria tarefa tentadora para todo aquele que tenha um
conhecimento das civilizações humanas, acompanhar pormenorizadamente essa
analogia. Limitar-me-ei a apresentar alguns pontos mais notáveis. O superego de uma
época de civilização tem origem semelhante à do superego de um indivíduo. Ele se
baseia na impressão deixada atrás de si pelas personalidades dos grandes líderes –
homens de esmagadora força de espírito ou homens em quem um dos impulsos
humanos encontrou sua expressão mais forte e mais pura e, portanto, quase sempre,
mais unilateral. Em muitos casos, a analogia vai mais além, como no fato de, durante
a sua vida, essas figuras – com bastante freqüência, ainda que não sempre – terem
sido escarnecidas e maltratadas por outros e, até mesmo, liquidadas de maneira cruel.
Do mesmo modo, na verdade, o pai primevo não atingiu a divindade senão muito
tempo depois de ter encontrado a morte pela violência. O exemplo mais evidente dessa
conjunção fatídica pode ser visto na figura de Jesus Cristo – se, em verdade, essa
figura não faz parte da mitologia, que a conclamou à existência a partir de uma
obscura lembrança daquele evento primevo. Outro ponto de concordância entre o
superego cultural e o individual é que o primeiro, tal como o último, estabelece
exigências ideais estritas, cuja desobediência é punida pelo ‘medo da consciência’,ver
[[1]]. Aqui, em verdade, nos deparamos com a notável circunstância de que, na
realidade, os processos mentais relacionados são mais familiares para nós e mais
acessíveis à consciência tal como vistos no grupo, do que o podem ser no indivíduo.
Neste, quando a tensão cresce, é apenas a agressividade do superego que, sob a forma
de censuras, se faz ruidosamente ouvida; com freqüência, suas exigências reais
permanecem inconscientes no segundo plano. Se as trazemos ao conhecimento
consciente, descobrimos que elas coincidem com os preceitos do superego cultural
predominante. Neste ponto os dois processos, o do desenvolvimento cultural do grupo
e o do desenvolvimento cultural do indivíduo, se acham, por assim dizer, sempre
interligados. Daí algumas das manifestações e propriedades do superego poderem ser
mais facilmente detectadas em seu comportamento na comunidade cultural do que no
indivíduo isolado.O superego cultural desenvolveu seus ideais e estabeleceu suas
exigências. Entre estas, aquelas que tratam das relações dos seres humanos uns com os
outros estão abrangidas sob o título de ética. As pessoas, em todos os tempos, deram o
maior valor à ética, como se esperassem que ela, de modo específico, produzisse
resultados especialmente importantes. De fato, ela trata de um assunto que pode ser
facilmente identificado como sendo o ponto mais doloroso de toda civilização. A ética
deve, portanto, ser considerada como uma tentativa terapêutica – como um esforço
por alcançar, através de uma ordem do superego, algo até agora não conseguido por
meio de quaisquer outras atividades culturais. Como já sabemos, o problema que
temos pela frente é saber como livrar-se do maior estorvo à civilização – isto é, a
inclinação, constitutiva dos seres humanos, para a agressividade mútua; por isso
mesmo, estamos particularmente interessados naquela que é provavelmente a mais
recente das ordens culturais do superego, o mandamento de amar ao próximo como a
si mesmo.Ver [[1].] Em nossa pesquisa de uma neurose e em sua terapia, somos
levados a fazer duas censuras contra o superego do indivíduo. Na severidade de suas
ordens e proibições, ele se preocupa muito pouco com a felicidade do ego, já que
considera de modo insuficiente as resistências contra a obrigação de obedecê-las – a
força instintiva do id [em primeiro lugar] e as dificuldades apresentadas pelo meio
ambiente externo real [em segundo]. Por conseguinte, somos freqüentemente
obrigados, por propósitos terapêuticos, a nos opormos ao superego e a nos
esforçarmos por diminuir suas exigências. Exatamente as mesmas objeções podem ser
feitas contra as exigências éticas do superego cultural. Ele também não se preocupa de
modo suficiente com os fatos da constituição mental dos seres humanos. Emite uma
ordem e não pergunta se é possível às pessoas obedecê-la. Pelo contrário, presume que
o ego de um homem é psicologicamente capaz de tudo que lhe é exigido, que o ego
desse homem dispõe de um domínio ilimitado sobre seu id. Trata-se de um equívoco e,
mesmo naquelas que são conhecidas como pessoas normais, o id não pode ser
controlado além de certos limites. Caso se exija mais de um homem, produzir-se-á
nele uma revolta ou uma neurose, ou ele se tornará infeliz. O mandamento ‘Ama a teu
próximo como a ti mesmo’ constitui a defesa mais forte contra a agressividade
humana e um excelente exemplo dos procedimentos não psicológicos do superego
cultural. É impossível cumprir esse mandamento; uma inflação tão enorme de amor
só pode rebaixar seu valor, sem se livrar da dificuldade. A civilização não presta
atenção a tudo isso; ela meramente nos adverte que quanto mais difícil é obedecer ao
preceito, mais meritório é proceder assim. Contudo, todo aquele que, nacivilização
atual, siga tal preceito, só se coloca em desvantagem frente à pessoa que despreza esse
mesmo preceito. Que poderoso obstáculo à civilização a agressividade deve ser, se a
defesa contra ela pode causar tanta infelicidade quanto a própria agressividade! A
ética ‘natural’, tal como é chamada, nada tem a oferecer aqui, exceto a satisfação
narcísica de se poder pensar que se é melhor do que os outros. Nesse ponto, a ética
baseada na religião introduz suas promessas de uma vida melhor depois da morte.
Enquanto, porém, a virtude não for recompensada aqui na Terra, a ética, imagino eu,
pregará em vão. Acho também bastante certo que, nesse sentido, uma mudança real
nas relações dos seres humanos com a propriedade seria de muito mais ajuda do que
quaisquer ordens éticas; mas o reconhecimento desse fato entre os socialistas foi
obscurecido, e tornado inútil para fins práticos, por uma nova e idealista concepção
equivocada da natureza humana.Ver [[1].]
Creio que a linha de pensamento que procura descobrir nos fenômenos de
desenvolvimento cultural o papel desempenhado por um superego promete ainda
outras descobertas. Apresso-me a chegar ao fim, mas há uma questão a que
dificilmente posso fugir. Se o desenvolvimento da civilização possui uma semelhança
de tão grande alcance com o desenvolvimento do indivíduo, e se emprega os mesmos
métodos, não temos nós justificativa em diagnosticar que, sob a influência de
premências culturais, algumas civilizações, ou algumas épocas da civilização –
possivelmente a totalidade da humanidade – se tornaram ‘neuróticas’? Uma
dissecação analítica de tais neuroses poderia levar a recomendações terapêuticas
passíveis de reivindicarem um grande interesse prático. Eu não diria que uma
tentativa desse tipo, de transportar a psicanálise para a comunidade cultural, seja
absurda ou que esteja fadada a ser infrutífera. Mas teríamos de ser muito cautelosos e
não esquecer que, em suma, estamos lidando apenas com analogias e que é perigoso,
não somente para os homens mas também para os conceitos, arrancá-los da esfera em
que se originaram e se desenvolveram. Além disso, a diagnose das neuroses comunais
se defronta com uma dificuldade especial. Numa neurose individual, tomamos como
nosso ponto de partida o contraste que distingue o paciente do seu meio ambiente, o
qual se presume ser ‘normal’. Para um grupo de que todos os membros estejam
afetados pelo mesmo distúrbio, não poderia existir esse pano de fundo; ele teria de ser
buscado em outro lugar. E, quanto à aplicação terapêutica de nosso conhecimento,
qual seria a utilidade da mais corretaanálise das neuroses sociais, se não se possui
autoridade para impor essa terapia ao grupo? No entanto, e a despeito de todas essas
dificuldades, podemos esperar que, um dia, alguém se aventure a se empenhar na
elaboração de uma patologia das comunidades culturais.
Por uma ampla gama de razões, está muito longe de minha intenção exprimir
uma opinião sobre o valor da civilização humana. Esforcei-me por resguardar-me
contra o preconceito entusiástico que sustenta ser a nossa civilização a coisa mais
preciosa que possuímos ou poderíamos adquirir, e que seu caminho necessariamente
conduzirá a ápices de perfeição inimaginada. Posso, pelo menos, ouvir sem indignação
o crítico cuja opinião diz que, quando alguém faz o levantamento dos objetivos do
esforço cultural e dos meios que este emprega, está fadado a concluir que não vale a
pena todo esse esforço e que seu resultado só pode ser um estado de coisas que o
indivíduo será incapaz de tolerar. Minha imparcialidade se torna mais fácil para mim
na medida em que conheço muito pouco a respeito dessas coisas. Sei que apenas uma
delas é certa: é que os juízos de valor do homem acompanham diretamente os seus
desejos de felicidade, e que, por conseguinte, constituem uma tentativa de apoiar com
argumentos as suas ilusões. Acharia muito compreensível que alguém assinalasse a
natureza obrigatória do curso da civilização humana e que dissesse, por exemplo, que
as tendências para uma restrição da vida sexual ou para a instituição de um ideal
humanitário à custa da seleção natural foram tendências de desenvolvimento
impossíveis de serem desviadas ou postas de lado, e às quais é melhor para nós nos
submetermos, como se constituíssem necessidades da natureza. Também estou a par
da objeção que pode ser levantada contra isso, objeção segundo a qual, na história da
humanidade, tendências como estas, consideradas insuperáveis, freqüentemente
foram relegadas e substituídas por outras. Assim, não tenho coragem de me erguer
diante de meus semelhantes como um profeta; curvo-me à sua censura de que não lhes
posso oferecer consolo algum, pois, no fundo, é isso que todos estão exigindo, e os mais
arrebatados revolucionários não menos apaixonadamente do que os mais virtuosos
crentes.
A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que
ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida
comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição. Talvez,
precisamente com relação a isso, a época atual mereça um interesse especial. Os
homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle, que, com sua ajuda,
não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros, até o último homem.
Sabem disso, e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua
infelicidade e de sua ansiedade. Agora só nos resta esperar que o outro dos dois
‘Poderes Celestes’ ver [[1]], o eterno Eros, desdobre suas forças para se afirmar na
luta com seu não menos imortal adversário. Mas quem pode prever com que sucesso e
com que resultado?