POR UMA HISTÓRIA DAS IMAGENS DA NORMATIVIDADE DO DIREITO
Alexandre da Maia
Faculdade de Direito do Recife
Universidade Federal de Pernambuco
A vida entrava como uma senhora despótica: ele não a conhecia, e
mesmo assim entrava em seu corpo, em sua mente; entrava como
versos, como uma inspiração. E o significado dessa palavra pela
primeira vez revelou-se a ele em toda sua plenitude. Os versos são
aquela força vitalizadora que ele viveu. Precisamente isso. Ele não
viveu por causa dos versos, ele viveu os versos.
Varlam Chalámov (1907-1982). “Xerez” in Bruno Barreto Gomide
(org.). Nova antologia do conto russo (1792-1998). São Paulo: Ed.
34, 2011, p. 575.
1. Da história dos conceitos à história das imagens da normatividade do
direito.
O objetivo deste trabalho é tentar construir a possibilidade de
compreensão da história das imagens no campo jurídico, mais especificamente
no debate da normatividade do direito. A proposta de uma história das imagens
vem como continuidade do projeto de percepção da subjetividade no direito a
partir da contingência na comunicação entre sistemas psíquicos e socais por
meio do diálogo entre a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann e a história dos
conceitos, encabeçada pelo historiador Reinhart Koselleck.
Mediante a utilização de tais marcos teóricos, iniciamos o trabalho de
construção de uma história das imagens do direito. Em texto anterior,
conceituamos imagem como projeção contingente da fragmentação da
subjetividade. Tentaremos aqui verificar como uma teoria das imagens pode ser
frutífera para compreender as nuances da normatividade do direito.
Em termos de determinação dos campos fronteiriços, a história dos
conceitos pressupõe a possibilidade de certo grau de estabilidade das estruturas
temporais, algo que uma história das imagens problematiza.
O próprio Koselleck, a partir da obra de Heiner Schultz1, esclarece as
possibilidades para analisar a mudança recíproca dos conceitos e das
circunstâncias da seguinte forma:
a) “O significado da palavra, assim como o das circunstâncias apreendidas
nela permanecem sincrônica e diacronicamente constantes;
1 KOSELLECK, Reinhart. Historia de los conceptos y conceptos de historia. Ayer 53/2004 (1), p.
31.
b) O significado da palavra permanece constante, mas as circunstâncias
mudam, distanciando-se do antigo significado. A realidade transformada
“deve novamente ser conceitualizada”;
c) O significado da palavra muda, mas a realidade previamente apreendida
por ela permanece constante;
d) O significado da palavra e as circunstâncias por ela apreendidas se
desenvolvem em separado, de forma que a correspondência
anteriormente existente não possa mais resistir por mais tempo.”
Segundo Koselleck, só uma “história dos conceitos” forneceria o método
capaz de reconstruir e estabelecer quais realidades seriam correspondentes a
que conceitos.
O que se propõe aqui é ir além. A história dos conceitos avança em termos
de metodologia histórica no que diz respeito às continuidades e rupturas entre
conceitos e circunstâncias por eles apreendidas. Mas uma história das imagens
pretende historicizar a própria relação entre “permanência” e “mutabilidade”,
elementos que funcionam quase como categorias na postura de Koselleck.
Pela história das imagens, a relação entre permanência e mutabilidade é
contingente. Quando se descreve algo em relação ao passado – e essa descrição
só pode ocorrer em determinado presente – há, em maior ou menor grau,
representações contingentes de percepção e de avaliação desse passado. Para
tanto, há que se travar o debate entre as palavras, as circunstâncias no medium
da subjetividade fragmentada. Essa fragmentação aponta para percepções
contingentes tanto da linguagem quanto das circunstâncias por ela apreendidas.
Trazendo tal debate para o direito, a história das imagens propõe
historicizar a compreensão doutrinária e jurisprudencial das relações entre
permanência e mutabilidade no direito. Quando o STF trava o debate sobre a
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, o que se discute como pano de
fundo é aquilo que permanece e aquilo que muda – aquilo que é e o que não é
parte do sistema jurídico. Só que a diferença entre esse “ser” e “não ser”
conforme o direito é também um retrato contingente do tempo.
A proposta deste artigo é esboçar uma proposta de história das imagens
da normatividade do direito, buscando construir mais hipóteses que certezas.
2.
Uma teoria das imagens: pontuações teóricas principais2.
Todo observador, ao observar, está imerso no sentir, e esse sentir
funciona como meio para a cristalização das imagens projetadas por ele.
Esse sentir, portanto, não trabalha com o dualismo racional/irracional, tão
próprio das imagens das teorias jurídicas tradicionais. Pelo contrário: é admitir
as pretensas luzes da razão apenas como uma forma contingente de projeção de
possibilidades da subjetividade, e não como a única possibilidade. Ou seja, tanto
os discursos que buscam erigir modelos diferentes de racionalidade quanto os
que desconfiam de qualquer defesa de uma “racionalidade prática” na
Um esboço inicial dessas ideias está em MAIA, Alexandre da. O direito subjetivo como imagem
in ADEODATO, João Maurício e BITTAR, Eduardo Carlos Bianca (orgs.). Filosofia e Teoria do
Direito – homenagem a Tercio Sampaio Ferraz Jr. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 138-167.
2
compreensão nada mais fazem do que lançar determinadas imagens, entendidas
aqui, de forma genérica, como projeções contingentes da fragmentação interna da
subjetividade.
Não queremos afirmar que o sentir é uma categoria de uma teoria do
conhecimento, nos moldes aristotélicos. Pelo contrário: o que se quer é
condensar numa expressão comunicativa mais simples todas as possibilidades e
vivências dos desejos, das frustrações, das expectativas, dos sentimentos, das
paixões, das invejas, dos estágios de consciência etc. que não se cristalizam nem
ficam hipostasiadas no tempo. Enfim: de tudo aquilo que muitas vezes podemos
falar, mas que as palavras não expressam necessariamente como esses
elementos se processam no interior dos nossos sistemas psíquicos. Aliás, muitas
vezes nem nos damos conta deles quando estamos imersos neles, o que nos
mostra que, na linha de uma teoria da observação construída por Luhmann, o
observador, ao observar e fazer distinções, não consegue perceber suas próprias
distinções ao observar. Eis o ponto cego de toda e qualquer observação3.
Por conta disso, há uma complexidade infinita nas possibilidades,
impedindo uma sedimentação de um sentir racional, a não ser, claro, como
imagem. O sentir não é uma categorização, mas um acontecer paradoxal de
possibilidades nos sistemas psíquicos, utilizando a terminologia da teoria dos
sistemas. Uma observação que se faz a partir da distinção verdade/falsidade não
pode observar se essa distinção feita pelo observador é ela mesma verdadeira ou
falsa. Simplificando: nenhuma observação pode descrever-se a si mesma a ponto
de sedimentar uma indicação “completa”, “integral” do que quer que seja,
inclusive da própria subjetividade. E mesmo nos casos de auto-observação, o que
se observa é só uma “imagem seletiva” (expressão de Elena Esposito) daquilo
que se observa. Por isso que a observação está fundada num paradoxo. Esse
problema será abordado mais adiante quando da imagem do direito subjetivo
como algo que torna invisíveis os paradoxos no direito4.
No caso das imagens, e como uma tentativa de discutir os mecanismos
envolvidos na compreensão, é possível, para fins unicamente didáticos, tematizar
o problema das diferenças que se sedimentam quando das respectivas e plurais
projeções.
Primeiramente, vale ressaltar que o primeiro grupo de imagens é o que
projeta, no interior dos sistemas psíquicos, aquilo que cada subjetividade
fragmentada observa de si mesma, ou seja, da percepção dos seus próprios
pensamentos. É aquilo que a teoria dos sistemas chama de “representação”5. As
percepções, portanto, também envolvem a auto-observação paradoxal
(representação), já que a observação do “ser” e do “não ser” só podem ser
construída na própria observação, não a partir de um critério transcendente. E o
paradoxo se afirma quando esse “não ser” só pode ser compreendido como parte
LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 61-62.
KASTNER, Fatima. The paradoxes of justice: the ultimate difference between a philosophical
and a sociological observation of law. Paradoxes and inconsistencies in the law. Oren Perez
and Gunther Teubner (eds.). Oxford and Portland: Hart Publishing, 2006, p. 167-180 e
LUHMANN, Niklas. La individualidad de los sistemas psíquicos. In: LUHMANN, Niklas. Sistemas
sociales: lineamientos para una teoría general. Barcelona/ Mexico: Anthropos/ Universidad
Iberoamericana, 1998, p. 236-254.
5 GUIBENTIF, Pierre. Os direitos subjectivos na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann.
Luhmann e os direitos fundamentais (workshop, paper). Germano Schwartz e Leonel Severo
Rocha (orgs.). São Leopoldo: Unisinos, 2008, p. 7.
3
4
da própria imagem projetada de forma fragmentada no sistema psíquico. Essas
projeções serão aqui chamadas, unicamente para fins didáticos, de imagens de
representação.
Além dos mecanismos de produção imagética no âmbito da
representação, temos também as projeções que são lançadas pelas consciências
para observar o seu entorno, mediante acoplamentos entre os sistemas de
consciência e os sistemas sociais, ou, na linguagem sistêmica, pela
interpenetração 6 . São a partir dessas imagens que construímos os mais
diversos tipos de observações sobre a sociedade-mundo, incluindo os
respectivos sistemas parciais, dentre os quais o direito. Chamá-las-emos de
imagens de primeira ordem ou de interpenetração. Diante da fragmentação
da subjetividade, projetamos imagens as mais variadas sobre o mundo, os seres
humanos, a sociabilidade, os direitos, os discursos morais e religiosos etc. A
multiplicidade das possibilidades comunicativas não exclui a fragmentação da
subjetividade ao imaginar e tematizar essa abertura ao ainda não vivido, aos
espaços ainda não demarcados de construção de novas relações e construções
teóricas e práticas, ao “outro lado”, aquele dark side habitualmente não abordado
pelas teorias preocupadas com a razão, nas suas mais variadas e possíveis
acepções.
Essas imagens de primeira ordem, como todas as imagens, são lançadas
na dupla contingência. Ou seja, as consciências são inacessíveis reciprocamente
àqueles que se comunicam. Não conseguimos perceber plenamente o que o outro
pensa ou quer. Assim, toda comunicação só acontece na dupla contingência.
Além da contingência em relação ao outro com quem porventura podemos nos
comunicar sobre nossas impressões e visões de mundo, temos também a
contingência das representações: a possibilidade de uma leitura múltipla da
subjetividade pela sua própria consciência (respeitados, claro, os limites do
ponto cego de cada observação), já que aquilo que percebemos sobre nós
mesmos também é uma imagem contingente que criamos num determinado
ponto presente, o que não quer dizer que essa representação permaneça de
forma hipostasiada, como já mencionado anteriormente.
Isso cria um campo infinito de possibilidades de auto-observação
(imagens de representação) e de observação do ambiente por cada sistema
psíquico (imagens de interpenetração). Esse “campo infinito”, na sociedade
hipercomplexa como é a moderna, tenta ser “contido” a partir da emergência dos
sistemas sociais parciais da sociedade mundial, já que essas múltiplas e plurais
imagens que projetamos sobre o mundo e sobre nós mesmos vão sedimentando
expectativas incontroláveis, desejos que não são necessariamente racionalizáveis
etc. É exatamente para que se possa criar um “controle de expectativas” que os
sistemas sociais parciais projetam outras imagens que funcionariam como uma
espécie de “filtro de contenção” dessa multiplicidade, sem jamais aniquilá-la. É
como uma tentativa de controle de expectativas que, numa linha de pensamento
luhmanniana, poderíamos projetar a função do direito: a “estabilização de
expectativas normativas” 7 , muito embora seja possível criticar essa divisão
proposta, tema que
não será abordado nos limites deste texto. Essa
generalização só ocorre por meio da projeção de imagens de contenção, ou
6
7
LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad (n. 3), p. 58, 79 e 295.
LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 181 s.
imagens de segunda ordem. Essas imagens de contenção já são o reflexo de,
dente as inúmeras imagens de primeira ordem que podem ser projetadas,
apenas tais e quais farão parte, por exemplo, do sistema jurídico. E o conceito de
normatividade do direito está inserido em tal quadro, funcionando ao mesmo
tempo como elemento de identificação do sistema e o que determina a distinção
do “sistema jurídico” em face dos demais sistemas da sociedade.
Como essas imagens são contingentes, é preciso, sob o argumento de
sedimentar uma “teoria da sociedade”, reduzir as possibilidades de admissão
dessas projeções no sistema jurídico. O direito então projeta imagens de
segunda ordem, que trabalham a partir da associação de outras imagens de
primeira ordem que conseguem penetrar nas estruturas jurídicas, projetando-se
como “modelos” e, para certas teorias, “formas moralmente estruturadas do bem
viver, das quais o direito seria um caso especial” ou “juridicamente “lícitas”. Os
argumentos, que podem ser tratados na modernidade como diferentes,
terminam se coimplicando, já que essas imagens, quando projetadas, não
conseguem perceber os mecanismos de distinção que são usados na
simultaneidade do acontecer da percepção.
Quando o doutrinador, como observador, projeta o que ele entende, por
exemplo, por “dignidade humana”, ele lança imagens de segunda ordem, como
numa tentativa de, a partir de um determinado ponto de análise, sedimentar uma
delimitação do que pra ele tal expressão significa. Porém, essas observações de
segunda ordem, muito embora tentem “conter” a pluralidade de possibilidades
de projeção das imagens do direito, não conseguem plenamente lograr êxito. É
como se esse mecanismo de controle fosse apenas uma necessidade de “redução
de complexidade”. Mas mesmo esses mecanismos de redução já se constroem no
sentir, assim como não há garantias quaisquer de que a projeção das imagens de
segunda ordem conseguirá conter as possibilidades de percepção dos sistemas
psíquicos, bem como represar as comunicações nos sistemas sociais.
Por mais que o direito, por meio das suas observações de contenção, tente
controlar o futuro cada vez mais incerto e imprevisível, é exatamente por conta
dessa imprevisibilidade que muitas vezes o desejo de aprisionar o futuro escapa
da contenção do direito, como grãos de areia escorrendo mansa e
desafiadoramente pelas mãos, sem que nada consiga fazer para recuperar esses
grãos que já se dão e se vão na dinâmica do tempo. A “estabilização de
expectativas” sedimentadas nas imagens de segunda ordem não se materializa.
Afinal, no próprio manejo dessas determinações estruturais das imagens de
segunda ordem, pretensamente estabilizadoras (leis, jurisprudência, doutrina
etc.), surge a possibilidade de múltiplas imagens de primeira ordem por dentro
das estruturas, oriundas da manifestação do desejo e, em última análise, do
poder de quem decide8.
É preciso insistir num ponto importante: a divisão das imagens aqui
proposta tem o fito unicamente didático, para facilitar o entendimento daquilo
que está aqui sendo projetado. Essas dimensões se coimplicam, sendo muito
difícil concretamente criar os mecanismos de distinção entre elas, pois é no
Estudos importantes sobre decisão jurídica vêm sendo sedimentados nos textos de STAMFORD
DA SILVA, Artur. Da legalidade à decisão ilimitada. A construção semântica social da
videoconferência no Direito Penal brasileiro: sobre o lugar da incompletude consistente. In:
Cláudio Brandão, Francisco Cavalcanti e João Maurício Adeodato (Orgs.). Princípio da
legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito (n. 3), p. 13-40.
8
acontecer da projeção que todos esses elementos estão mesclados, o que mostra
que as imagens que projetamos do mundo são lançadas a partir de bases de
representação nem sempre racionalizáveis e, por conta da simultaneidade do
acontecer e do observar, não conseguimos percebê-las, atuando como um ponto
cego de nossa observação. Ou seja, tudo aquilo que na tradição iluminista é
colocado sob o tapete é tão parte dos processos de percepção que a distinção
entre o racional e o irracional não passa de uma projeção contingente da
fragmentação da subjetividade. Ou seja, uma imagem.
Também é preciso ter cuidado para não confundir imagem com “imaginário”,
quando, por exemplo, se utiliza o argumento do “imaginário” ou do “senso
comum teórico” dos juristas etc. Numa teoria das imagens, o senso comum
teórico já seria um redutor de complexidade incompatível com as múltiplas
“projeções” que a doutrina jurídica lança no tempo. Dentre essas projeções,
temos a de “norma jurídica” na teoria do direito.
Depois de um panorama sobre as imagens da normatividade do direito no
Séc. XX, veremos dois casos que parecem trazer à tona uma diferença entre uma
pluralidade de possibilidades em estratos de tempo diferentes e no mesmo
estrato de tempo. Usaremos como referência, respectivamente, o Mandado de
Injunção e o crime de estupro.
3. Imagens da normatividade na teoria do direito do Séc. XX
No plano filosófico-jurídico, as imagens da “racionalidade” moderna caem
como uma luva às pretensões de dominação oriundas das revoluções liberais,
exatamente por conclamar a necessidade da verdade sob os auspícios da
“segurança”. Nesse esteio, as imagens da normatividade no direito tornam-se
centrais. Afinal, a projeção do direito como fenômeno normativo aponta para
essa dimensão de poder e controle.
Nesse sentido, projeta-se a imagem de que o direito, para ser ciência,
deveria ser norteado por um método de obtenção de segurança e previsibilidade.
Tudo isso lastreado na base de segurança que a normatividade do direito traria à
metodologia jurídica.
Vemos a construção de trabalhos de monta com tal objetivo, tais como a
Teoria Pura do Direito (1. ed., 1934. 2. ed., 1960) de Hans Kelsen (1881-1973),
que tenta mostrar um modelo normativo de organização do direito e do Estado
baseados na estruturação nomodinâmica da ordem jurídica, em contraposição à
estrutura estática da Jurisprudência dos Conceitos, afastando toda e qualquer
perquirição axiológica e maximizando a distinção entre o mundo do ser e o do
dever-ser, criando a chamada “dupla purificação” do direito.
Tal “dupla purificação” parte da distinção central em busca de uma “teoria
geral do direito positivo”: ciência do direito e direito positivo. A ciência do
direito descreve o direito positivo, composto por normas jurídicas. O papel da
ciência do direito não é fazer criar novas normas jurídicas, mas sim descrever
sua estrutura e funcionamento. Aqui percebemos que a pureza consiste portanto
na atividade de descrever tal direito positivo de forma pura, jamais determinar
que o direito é puro. A pureza envolve portanto a ciência do direito, nunca o
direito positivo, como muitos equivocadamente imaginam. Já vemos aqui mais
projeções contingentes que a própria teoria do direito faz a respeito de Kelsen.
Consiste essa dupla purificação na necessidade de, como primeira forma
de estabelecimento da pureza, efetuar a separação nítida entre o mundo do ser e
o do dever-ser, concentrando o direito no plano normativo, típico do dever-ser.
Para uma teoria pura do direito, não há como defender a existência de um direito
que surja autonomamente fora do Estado. Pelo contrário, a própria inclusão do
direito consuetudinário será efetuada por uma norma estatal que venha a inserir
o costume como critério aferidor do direito.
A forma de purificação narrada acima não resolve o problema da Teoria
Pura, exatamente por ainda haver a possibilidade de mescla entre elementos do
direito e da moral, por exemplo. Para isso, a segunda purificação tenta solidificar
as noções de coação estatal e coercitividade como características inerentes
apenas ao direito. Com isso, a ciência do direito estaria purificada de todos os
elementos axiológicos e ideológicos que prejudicariam a configuração do direito
como uma ciência, que descreve o funcionamento de um modelo formal de
direito: o direito positivo, eminentemente prescritivo.
Com base em tais premissas metodológicas, Kelsen estruturará a ordem
jurídica que se verá unificada a partir da chamada teoria da norma jurídica,
fazendo com que os teóricos do direito posteriores identificam o pensamento de
Kelsen com uma das representações possíveis do chamado positivismo
normativista. No que tange à teoria do ordenamento jurídico, vale mencionar as
três categorias inerentes à ordem jurídica: a unidade, a coerência e a
completude. No aspecto da unidade, ressalta-se que, apesar de distintas entre si e
por possuírem função determinada, as normas jurídicas todas surgem de um
mesmo ponto-de-partida, que configuraria sua validade formal. Todavia, pelo
prisma da coerência, há a necessidade de mecanismos de supra e infraordenação
das normas no ordenamento. Assim, determinada norma jurídica retiraria seu
fundamento de validade de outra norma anterior no tempo e superior no espaço.
Se assim sucede, há a necessidade do exercício de um poder criador da nova
norma, cuja base está contida em outra, criando o seguinte gráfico:
Norma
Poder
Norma
Poder
Norma
Por conta de tal estrutura, para manter os referenciais de unidade e
coerência, se toda norma jurídica positiva é fruto de um exercício de poder
contido em outra, parece claro que a norma constitucional também deveria advir
de um poder. Há a necessidade de justificação da Constituição como fruto de um
determinado poder, chamado na teoria política de Poder Constituinte.
Ainda na tentativa de manutenção da coerência, Kelsen determina que tal
Poder Constituinte, por gerar norma, deve ser fruto de uma outra norma,
chamada pela teoria de norma fundamental, que não possuiria conteúdo
nenhum, mas apenas e tão-somente seria, no caso do exemplo dado, a condição
de possibilidade do Poder Constituinte.
Norberto Bobbio, analisando o problema, afirma que não há que se buscar
o conteúdo (ou o fundamento) da norma fundamental, haja vista ser um
postulado. E, por ser postulado, não requer nenhum tipo de fundamentação,
sobretudo por ser, à diferença da ordem estatal, pressuposta, e não posta9. Além
disso, há fórmulas dogmáticas para a solução de possíveis antinomias na ordem
jurídica, como a lex posterior derrogat priori, por exemplo, que tentariam
solucionar conflito de leis no tempo, fazendo com que se tenha uma ordem
jurídica coerente e segura de que, havendo conflitos, a dogmática traz outros
postulados para solucioná-lo, evitando, assim, a multiplicidade e a controvérsia
de interpretações sobre a validade ou não de, por exemplo, uma norma legal.
Quanto à completude do ordenamento jurídico, surge a noção de que a ordem
estatal é uma só, e, portanto, não há que se falar em pluralismo jurídico, como se
todo o direito estivesse dentro do ordenamento e nenhum direito existisse fora
dele.
Curioso é estudar um dos capítulos mais interessantes e menos falados da
Teoria Pura do Direito: o oitavo, que trata sobre a interpretação jurídica. Nele,
Kelsen traça linhas inovadoras em relação ao que se produzia acerca da
metodologia jurídica do Século XIX. Enquanto os modelos de herança cartesiana
buscavam encontrar a melhor forma de interpretar, que geraria, por
conseguinte, a forma correta de significação da norma, Kelsen rompe com tal
visão e afirma claramente aquilo que denominou “relativa indeterminação do ato
de aplicação do direito”10. Relativa porque o intérprete está ao menos adstrito
aos limites impostos pela representação simbólica da norma. Tal indeterminação
se dá de forma intencional ou não-intencional.
Na indeterminação intencional, o ente criador da norma deixa claramente
expressa a indeterminação. Tomemos a seguinte situação: existe na lei a
tipificação de um crime, prevendo como sanção uma pena de 02 (dois) a 05
(cinco) anos de detenção ou multa. Neste caso, a indeterminação é intencional,
pois: a) o intérprete, em princípio, não sabe se aplica a pena ou não (ou seja, se a
pessoa a ser julgada cometeu ou não o delito penal tipificado na lei deste
exemplo), o que é uma forma de indeterminação; b) não há uma determinação
clara sobre qual das sanções deve ser utilizada. No caso em apreço, ou uma pena
privativa de liberdade ou uma pena pecuniária; c) supondo que, num caso
concreto, o magistrado, no exercício de suas funções, decida aplicar a pena
privativa de liberdade, ainda assim a indeterminação persiste, pois entre 02
(dois) e 05 (cinco) anos de detenção existem múltiplas possibilidades de decisão
e que, no entender de Kelsen, todas seriam possíveis, por estarem adstritas aos
limites da representação da norma, que forma uma moldura dentro da qual o
intérprete, por ato de vontade, irá decidir.
A indeterminação não-intencional, por seu turno, seria aquela que é
originária da pluralidade de significados das palavras, expressões e demais
signos. Assim, mesmo que o criador da norma não tenha contemplado a
indeterminação intencional, sempre haverá um relativo grau de imprecisão,
justamente pela vagueza e ambiguidade das palavras e dos demais signos
9
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: UnB, 1996, pp. 58 s.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1985, p. 364.
10
representativos da normatividade. E como o direito só se manifesta por meio da
comunicação, ele é necessariamente, por conta da estruturação da linguagem,
vago e ambíguo, cabendo ao intérprete determinar a multiplicidade de
significados e, por conseguinte, qual o sentido possível a ser aplicado a um
determinado caso concreto.
A interpretação desse modo só cria “direito” se for proferida por um órgão
aplicador da norma. No caso da chamada “interpretação da ciência jurídica”, o
intérprete não cria direito, pois está apenas em busca dos significados
semânticos que determinada proposição jurídica poderia abarcar, sem instituir
uma situação jurídica nova a quem quer que seja. Mas, em todo caso, o
intérprete estará adstrito à “moldura”, e dentro dela estarão os núcleos
significativos possíveis que serão (ou podem ser) extraídos a partir daquela
proposição.
Como se vê, a vagueza e a ambiguidade em Kelsen são fruto não da inclusão de
elementos axiológicos e de outras formas de pensar na interpretação jurídica,
mas sim pela impossibilidade de determinação de um único significado às
expressões utilizadas na representação simbólica de normas jurídicas,
enaltecendo o aspecto semântico na metodologia jurídica.
No plano das imagens da normatividade projetadas pelas teorias da
argumentação jurídica, a possibilidade argumentativa geraria uma pluralidade
de opiniões que, por conta dessa abertura, seus argumentos, apesar de distintos,
diafônicos, possuiriam a mesma força enquanto argumento11. Por conseguinte,
os argumentos não poderiam se sobrepor uns aos outros. Pelo contrário:
tenderiam a um equilíbrio das forças em disputa e a consequente suspensão do
juízo (epocké) sobre o que deva prevalecer, restando ao filósofo a abstinência em
determinar qual o argumento preponderante. Tais noções teriam influenciado as
teorias da argumentação jurídica, sobretudo naquilo que chamamos de mito da
identificação 12 . Apesar de atestarem a pluralidade e uma pretensa “nova
racionalidade” do direito, as teorias incorrem quase sempre na identificação, e
caem no mesmo abismo epistemológico que tanto criticaram.
Por outro lado, a ideia de uma racionalidade argumentativa trabalha com
a normatividade a partir de várias imagens, trazendo o direito como um caso
especial da assim chamada “razão prática geral”. A forma de construção das
imagens da “nova racionalidade” enaltece normativamente a impossibilidade de
uma verdade que seria aferida por um modelo rigoroso de método. Na assim
chamada “nova racionalidade”, os elementos do conhecimento sempre são
prováveis, possíveis, nunca verdadeiros e acabados.
Como vimos acima, a normatividade do direito apresenta múltiplas
imagens de si mesma nas leituras desenvolvidas pelas teorias, o que já mostra a
impossibilidade de uma descrição uniforme do que seja “direito” e “norma
jurídica”.
ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo:
Saraiva, 2002.
12 MAIA, Alexandre da. Da epistemologia como argumento ao argumento como racionalidade
jurídica: pela dogmática jurídica da multiplicidade (tese de doutorado defendida junto ao
programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE). Recife: o autor, 2002.
11
4. Uma história das imagens do mandado de injunção.
O tipo de raciocínio desenvolvido pelas teorias da argumentação jurídica
parte de uma normatividade necessária ao direito, mas submetida a pretensos
novos parâmetros de racionalidade. A distinção “novo/ velho”, no caso das
teorias do direito indicadas acima, buscam fundamentar suas pretensões de
validade e de reconhecimento partindo de pressupostos problemáticos, que
elevam o “novo” ao privilégio de ser mais adequado a dar tal ou qual explicação.
Nesse sentido, a “nova racionalidade” seria um conceito antitético assimétrico,
de forma a colocar o “velho” como expressão simbólica equivalente a superado,
démodé, fora de contexto e de época, enquanto o “novo” é a vanguarda, com mais
poder de explicação e mais poderoso em termos científicos.
Poderíamos dizer, de outra forma, que a busca por uma racionalidade no
direito, seja ela qual for, já é a projeção contingente do desejo de fazer do direito
aquilo que ele não pode fazer: prever o futuro. Afinal, todo o discurso alardeador
da racionalidade envolve o discurso da previsibilidade, daquilo que deve
permanecer por ser racional. Mas, como afirmamos anteriormente, o que “fica” e
o que “sai” nem sempre se constroem de forma tão antitética.
Nesse ponto, fica latente que a produção do direito no campo dos
Tribunais se dá como forma de controlar o futuro por meio dos mais variados
argumentos, dentre os quais o da segurança jurídica. Mas a própria segurança
evocada é susceptível às circunstâncias específicas que ela mesma imagina
conter.
Vejamos um caso em que podemos observar tal susceptibilidade: o
Mandado de Injunção.
Na projeção das imagens dos direitos fundamentais, o Mandado de
Injunção aparece no rol das garantias constitucionais da seguinte forma:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LXXI - conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta
de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e
liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à
nacionalidade, à soberania e à cidadania;
Em 1989, Supremo Tribunal Federal, no MI 107-3-DF, relatado pelo
Ministro Moreira Alves, fixara inicialmente a natureza mandamental do writ, nos
seguintes termos:
Em face dos textos da Constituição Federal relativos ao mandado de
injunção, é ele ação outorgada ao titular de direito, garantia ou
prerrogativa a que alude o art. 5º., LXXI, dos quais o exercício está
inviabilizado pela falta de norma regulamentadora, e ação que visa a
obter do Poder Judiciário a declaração de inconstitucionalidade
dessa omissão se estiver caracterizada a mora em regulamentar por
parte do Poder, órgão, entidade ou autoridade de que ela dependa,
com a finalidade de que se lhe dê ciência dessa declaração, para
que adote as providências necessárias, à semelhança do que ocorre
com a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (artigo 103, §
2º., da Carta Magna), e de que se determine, se se tratar de direito
oponível contra o Estado, a suspensão dos processos judiciais ou
administrativos de que possa advir para o impetrante dano que não
ocorreria se não houvesse a omissão inconstitucional.13
Essa interpretação compreende que a decisão julgando procedente
pedido formulado em sede de Mandado de Injunção teria o efeito declaratório de
inconstitucionalidade por omissão, em que o STF comunicaria ao ente público
para que ele, no exercício de sua discricionariedade política, legisle sobre a
matéria cuja eficácia aguarda regulamentação.
Em 2007, no julgamento do MI 607/ES, que tinha por objeto o direito de
greve dos servidores públicos, o STF determinou que enquanto não for
promulgada lei regulamentadora do direito de greve dos servidores públicos,
aplicar-se-á a esse grupo a Lei regulamentadora do direito de greve no setor
privado. Ou seja, ao invés de, como no entendimento anterior, declarar a
inconstitucionalidade por omissão, o mesmo Tribunal cria uma imagem ao
Mandado de Injunção diferente daquela até então por ele usada.
No caso do Mandado de Injunção, o marco temporal de distância parece
apontar para uma possibilidade de projeção de imagens em tempos históricos
diferentes. Veremos agora, com o exemplo do crime de estupro, como é possível
também a projeção de múltiplas imagens da normatividade do direito no mesmo
estrato de tempo.
5. Modificação legislativa no crime de estupro e o problema da
simultaneidade temporal das imagens do direito
A Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009, modificou sensivelmente o tipo penal
do estupro, albergado no art. 213 do Código Penal. Até então, “estupro”, do ponto
de vista jurídico-penal, envolvia o constrangimento da mulher à conjunção
carnal, mediante violência ou grave ameaça. Com a nova Lei ora em destaque, o
tipo penal do estupro passou a ter a seguinte redação:
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a
ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se
pratique outro ato libidinoso.
As mudanças são muito claras e significativas. Primeiramente, o sujeito
passivo do crime de estupro a partir da promulgação da nova lei pode ser
qualquer ser humano que tenha sofrido a violência nos moldes indicados pela
13
Diário da Justiça, 21 set. 1990, p. 09782; grifo nosso.
nova redação do art. 213 do Código Penal. Até então, apenas a mulher poderia
ser vítima de estupro.
Em segundo lugar, e talvez o mais relevante para o que se pretende
debater aqui, é que a normatividade do direito relativa ao crime de estupro
abrange outros atos para além da conjunção carnal, tal como é possível
identificar na segunda parte do caput do art. 213.
Usando a classificação indicativa de Koselleck enumerada no item 1 deste
texto, poder-se-ia, em princípio, afirmar que estaríamos diante daquela situação
na qual o conceito se modifica, mas o mesmo não acontece com a realidade por
ele referida. Ou seja, a despeito da modificação do conceito jurídico do ponto de
vista não apenas legislativo, mas também doutrinário e jurisprudencial, não
haveria como determinar prima facie a modificação não apenas da realidade,
mas também da percepção dessa modificação conceitual nos acontecimentos da
sociedade.
Em síntese, não há como determinar prima facie a percepção da sociedade
sobre essa alteração conceitual, o que nos permite levantar uma hipótese sobre o
tema: a despeito da determinação legislativa do que seja estupro, haveria na
sociedade, exatamente por sua complexidade, múltiplas formas distintas de
projetar as imagens do estupro. Quando se noticia o aumento dos casos de
estupro, por exemplo, não há como determinar se aquela notícia oriunda da
imprensa leva em consideração a modificação legislativa indicada. Ou seja, o
ambiente do sistema jurídico é tão mais complexo que pode projetar múltiplas
imagens do estupro, desde aquelas que se fiam a entender o estupro unicamente
como conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça àquelas que se
orientam a partir da compreensão de que, pela nova Lei, pode haver estupro sem
conjunção carnal.
Ainda na especulação de hipóteses, não de verdades, haveria várias
imagens plurais e simultâneas da normatividade do estupro por meio da
contingência na relação sistema/ambiente; direito/sociedade. Essa
multiplicidade de imagens não envolveria necessariamente alteração de
conceitos, como pretende Koselleck. Por isso que uma história das imagens
parece ser mais interessante para construir uma percepção mais adequada à
complexidade sistêmica.
Portanto, ao contrário do que vimos no panorama da normatividade do
direito no Séc. XX, o problema da percepção das imagens não se dá a partir de
uma observação do direito como linguagem. Muito ao contrário: os elementos de
vagueza e ambiguidade da linguagem dizem respeito a apenas um dos aspectos
da normatividade do direito, ocultando tantos outros que não estão envolvidos
no campo sintático-semântico.
Esses outros tantos aspectos envolvem os elementos da realidade referida
pelas imagens. Um bom exemplo pra compreender é o que Koselleck fornece ao
analisar Mein Kampf, o livro de Hitler que acaba de entrar em domínio público.
Koselleck afirma que tal livro quando publicado não foi levado a sério pelos
intelectuais da época. É como se fosse o manifesto de um lunático qualquer, sem
importância. Todavia, quando depois da II Guerra os olhares se voltam ao mesmo
livro, a interpretação já é outra. Não pela vagueza e ambiguidade da linguagem,
mas pelos acontecimentos a ela referidos que são contingentes. Como já vimos, e
as imagens do estupro mostram isso, “permanência” e “mutabilidade” não são
elementos cristalizados.
Nas palavras do autor:
A história que levou a Auschwitz não pode ser deduzida como
consequência necessária de Mein Kampf. Havia a possibilidade de a
história seguir outro rumo. O fato de ter ocorrido o que ocorreu não é
uma questão de texto ou de exegese textual. A realidade foi aquela
porque os homens a produziram – no sentido literal, com a produção
industrial da morte. A realidade foi mais forte do que qualquer
dedução ou documentação textual ex post.
Após Auschwitz, altera-se também o status de Mein Kampf. O que
Hitler escreveu foi ultrapassado de forma imensurável pelos fatos, e
assim seu discurso adquiriu novo sentido, um sentido que antes não
pôde sequer ser percebido.14
Mas o que temos aqui é a possibilidade de uma simultaneidade de imagens do
direito, como aventado no debate sobre o estupro. Isso nos mostra que a
normatividade do direito pode ser entendida como na epígrafe deste texto:
muitas vezes como versos inspiradores, outras tantas como a afirmação da
morte.
14
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro:
Contraponto/PUC Rio, 2014, p. 108.