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Dpf.dissertação

Dissertação de mestrado. Narrativas metropolitanas: experiência urbana e subjetividade.

DIEGO PEREIRA FLORES NARRATIVAS METROPOLITANAS: EXPERIÊNCIA URBANA E MOBILIDADE Mestrado em Psicologia Orientador: Luis Antonio dos Santos Baptista Niterói 2010 DIEGO PEREIRA FLORES NARRATIVAS METROPOLITANAS: EXPERIÊNCIA URBANA E MOBILIDADE Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Psicologia, na área de concentração Subjetividade, Política e Exclusão Social. Orientador: Prof. Dr. Luis Antonio Dos Santos Baptista NITERÓI 2010 Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá NARRATIVAS METROPOLITANAS: EXPERIÊNCIA URBANA E MOBILIDADE DIEGO PEREIRA FLORES Aprovado em 25 de Agosto de 2010 - Niterói - RJ BANCA EXAMINADORA _____________________________________ Prof. Dr. Luis Antonio dos Santos Baptista Universidade Federal Fluminense _____________________________________ Prof. Dra. Lília Ferreira Lobo Universidade Federal Fluminense _____________________________________ Prof. Dra. Analice de Lima Palombini Universidade Federal do Rio Grande do Sul ______________________________________ Prof. Dr. Marcelo Santana Ferreira Universidade Federal Fluminense AGRADECIMENTOS Agradeço especialmente aos Mestres, aqueles que nos sugerem caminhos e com os quais pude construir uma trajetória até hoje. Ao Mestre amigo Luis Antônio Baptista, que orienta com a sensibilidade de quem saboreia o saber. Aos professores Lília Lobo, Analice Palombini e Marcelo Ferreira pela leitura atenta e generosa deste trabalho. Aos meus pais Antonieta Flores e Paulo Flores, que seria de mim sem eles e suas lições de vida? À minha companheira Leiliane Pedrosa, uma flor que germinou minha alma seca. Ao Mestre Juramidam. Aos amigos que acompanharam de algum modo esse trabalho: A todo pessoal do Olho do Boi Elísio – Rodrigo Martins, Fernanda Guimarães, Pedro Cachaça, Lili Fortes, Charles Zipi, Bruno Kury, Dally Schwarz, Incêndia e Javier Decuba, com os quais experimentei e tenho experimentado a cidade de um modo lúdico e mágico. Aos colegas de nossa inquieta turma, em especial ao parceiro de viagem, Tiago Régis. A todo brasileiro que pagando seus tantos impostos financia essa universidade pública, e no meu caso, também a bolsa CAPES que recebi. RESUMO: Esta dissertação levanta algumas discussões sobre a relação entre subjetivação e mobilidade na cidade. O processo de urbanização que emerge entre os séculos XVIII e XIX na Europa, forjou uma cidade regularizada na qual a circulação tem papel importante não apenas como forma de organização espacial. Intrínseco ao processo de produção capitalista em transformação na época, esse modo específico de mobilidade também produz experiências urbanas e modos de subjetivação. Se nem a cidade nem a subjetividade têm uma natureza, urge discutir que políticas da mobilidade tem sido produzidas na cidade e alguns de seus efeitos. Destacamos dentre estes a produção de uma subjetividade privatizada ou individualizada, e apontamos outras possibilidades de mobilidade no espaço público urbano que de certo modo questionam a forma hegemônica oferecida pelo modelo da circulação. Refizemos o percurso da pesquisa transdisciplinar empreendida, os desvios da problematização que redefiniram nossos objetivos levando-nos a destacar na discussão da mobilidade o metrô, um dos principais meios de transporte de massa da cidade do Rio de Janeiro. Ele foi campo de uma experimentação em que propomos um uso diferenciado de seus espaços e com a qual tecemos algumas narrativas metropolitanas em que a história monumental se equivoca nas histórias cotidianas da cidade. Palavras - chave: cidade, mobilidade, subjetividade, experiência urbana. ABSTRACT: This dissertation raises some discussions about the relation between subjectivity and mobility in the city. The urbanization process that emerges between the eighteenth and nineteenth centuries in Europe, forged a regularized city in which the circulation has important paper not only as form of space organization. Intrinsic to the process of capitalist production in transformation at the time, this specific way of mobility also produces urban experiences and modes of subjectivity. If neither the city nor the subjectivity have a nature, it is urgent to discuss that politics of mobility have been produced in the city and some of its effect. Among these we highlight the production of a subjectivity privatized or individualized, and point out other possibilities for mobility in urban public space that somehow question the hegemonic model offered by the circulation. Redesigning the route of transdisciplinary research undertaken, the deviations of questioning that have redefined our goals leading us to highlight the discussion of mobility, the subway, a major means of mass transport in the city of Rio de Janeiro. It was a field trial in which we propose a differentiated use of their space and with which we make some metropolitans narratives, where monumental history if makes a mistake in daily histories of the city. Keywords: city, mobility, subjectivity, urban experience. SUMÁRIO: Estamos no metrô carioca:--------------------------------------------------------------------------------- 8. I: “Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho.” Orientação transdisciplinar nos percursos entre a rua e a Academia. ------------------------------ 21. II: Histórias, narração e experiência na cidade dos poetas. ------------------------------------------ 35. III: Experiência urbana e mobilidade – Urbanismo, modernidade e o metrô carioca. ----------- 60. IV: Fim da linha. ------------------------------------------------------------------------------------------- 86. Referências bibliográficas--------------------------------------------------------------------------------- 90. Hoje como o desejo de livre locomoção triunfou sobre os clamores sensoriais do espaço através do qual o corpo se move, o indivíduo sofre uma espécie de crise táctil: deslocar-se ajuda a dessensibilizar o corpo. Esse princípio geral vem sendo aplicado a cidades entregues às exigências do tráfego e ao movimento acelerado de pessoas, cidades cheias de espaços neutros, cidades que sucumbiram à força maior da circulação. Richard Sennett, Carne e Pedra. Estamos no metrô carioca, são cinco e cinqüenta de uma tarde de sexta-feira. Na estação Cinelândia, no centro da cidade, uma das mais movimentadas da linha um, a multidão de prontidão aguarda o próximo carro do metrô. A todo instante as escadas rolantes continuam a derramar mais usuários, que descem e vão se espalhando nos poucos metros que a plataforma tem entre um trilho e outro. Alguns posicionam-se próximos à faixa de segurança amarela marcada no chão, que margeia a plataforma em toda sua extensão, olhando para o túnel. Aglomeram-se preferencialmente à frente dos trechos contíguos na faixa sobredemarcados pela frase – atenção com o vão entre o trem e a plataforma. É mais ou menos ali que as portas automáticas vão encostar quando o trem parar, e cada corpo se prepara para uma pequena batalha ao fim de mais um dia de trabalho. Homens de farda preta, munidos de cassetetes e rádios fazem a segurança da estação, transitando e observando. Se precisar, avisam aos desatentos ou ansiosos que há que se respeitar a fronteira da longa faixa amarela, que as mochilas precisam ser postas à frente das costas, que os vagões rosados são exclusivos para mulheres naquele horário, entre outras regras anunciadas nos alto-falantes. Elas também estão escritas em cartazes afixados nas paredes, mas a presença dos homens de farda negra garante que elas sejam cumpridas. Eles não são muitos, mas as câmeras os ajudam, são seus olhos eletrônicos e supostamente vigiam bem. Para muitos usuários, trazem uma sensação de conforto que lá fora, na superfície da cidade, já não conseguem sentir. Tudo precisa ser bem ordenado no subterrâneo da Cinelândia. A Cinelândia, nome com o qual ficou conhecida a Praça Marechal Floriano Peixoto, foi criada pelo prefeito Pereira Passos no início do século XX. De um lado da praça levantou-se o Teatro Municipal, símbolo maior da modernidade republicana; ao lado oposto o Palácio Monroe, que seria demolido em 1976. Nessa época aconteciam ali obras de construção da estação do metrô e a fim de evitar as fundações do prédio histórico o trajeto foi desviado. Mas o presidente Geisel não queria o Palácio ali, pois atrapalhava o trânsito e a visão do Monumento aos Mortos da Segunda Guerra e ordenou sua demolição. Restou a curva na estação abaixo. No espaço liberado surge a Praça Mahatma Gandhi, um estacionamento e uma estátua do líder indiano, caminhando com seu cajado. Um monumento à não-violência abre caminho aos carros e ao monumento à violência da guerra. Estranhos desvios da história monumental. Os primeiros sons cigarreados elétricos sobem dos trilhos, anunciam a aproximação do metrô e já inquietam alguns. Eles vão aumentando, eletrizando também os corpos cansados dos trabalhadores, num misto de excitação e alívio, pois é o fim do dia e início do fim de semana. Os faróis clareiam o túnel, o metrô se aproxima... Desponta retumbante se esparramando na estação curvilínea. Numa rajada de vento ele passa, embaraça cabelos, assusta a criança, refresca por um instante o corpo quente de quem fechou quarenta horas de labuta, atrai os que estavam distantes, quer engolir a multidão que precisa ir. O trem para, suas entradas coincidem com as marcas previstas, onde dezenas de usuários já se postaram previamente. As portas se abrem soando uma sirene aguda e gemida e agora a pequena batalha é contra o tempo e os corpos dos outros. É preciso entrar no vagão cheio em alguns segundos, e o olhar dos que estão lá dentro é de um incômodo desafio mas também de resignação. Afinal, para usar o metrô naquele horário há que se aceitar os contatos compulsórios com desconhecidos e descobrir movimentos que facilitem a alocação no espaço exíguo. O que os une, que faz de todos ali comuns – a necessidade de mobilidade, todos precisam ir. Na aceleração cotidiana regida pelo tempo do trabalho, eis o momento de pausa que os coloca lado a lado, inertes encapsulados no metropolitano veloz que corta a cidade. Se todos ali necessitam, se cada um vai para seu bairro e quer chegar em casa o quanto antes, a batalha se faz escolha. A proximidade concreta, quente e incômoda da multidão espremida no metrô lotado é aceita. A sirene é breve. Ela cessa e as portas se fecham, mordiscam um último passageiro, homem pequeno e magro que desceu correndo as escadas rolantes, para não perder a viagem, ou ganhar minutos. A máquina prateada tem fome, ela faz a mágica da mobilidade urbana, engolindo a massa as cinco e cinqüenta e dois da tarde abafada de dezembro, fabricando mobilidade – encaixotar, encaixar e carregar... Ainda não saímos da fábrica? A luta por espaço no carro exige do corpo força, certo ímpeto, alguma elasticidade. Encaixar-se ali dentro, como peças de uma máquina, é o que pede um painel na parede do vagão, em cores básicas de tons intensos. O texto do painel diz “Quando cada um faz sua parte, tudo se encaixa” acima do desenho de um brinquedo de encaixe esférico. Nessas horas de pico tais mensagens estão encobertas pela multidão, não podem ser vistas. Supostamente educaram o usuário num outro momento, com o vagão suficientemente vazio para serem legíveis. Falam para quem futuramente estará no vagão superlotado, contam com sua memória e alimentam uma culpa travestida de responsabilidade cidadã. A maquinaria é complexa, devora e alimenta a um só tempo. Compõe um dispositivo cujas peças fundamentais talvez sejam os corpos de quem o usa. É preciso saber para tomar um metrô na hora do rush. Um saber de corpo, uma disciplina de contorcionismos, movimentos súbitos no compasso do tempo maquinal. A estação é quente, a multidão ainda mais. Ela aquece de rubores os limites individuais que a subjetividade privatizada tanto preza. Ali os usuários sentem na pele o calor pesado de sua privacidade diluída em suores compartilhados. É verão no Rio de Janeiro, o ar condicionado parece não funcionar, mas todos ali querem ir. E vão, fazem sua viagem num fortuito coletivo que se refaz a cada estação. As costas suadas de um senhor idoso, tecido de linho colado à pele, são amparadas pelos cotovelos de uma menina estudante, que abraça sua mochila à frente do corpo seguindo as instruções freqüentemente repetidas, mas principalmente preservando seu colo púbere; um grupo, provavelmente colegas de trabalho, conversa animadamente sobre assuntos ininteligíveis em meio ao burburinho. É que as sextas-feiras são particularmente mais barulhentas nos vagões do metrô, há uma excitação incomum que nesse dia da semana se sente, uma agitação algo festiva, quase ritualística da última viagem semanal da massa trabalhadora. Ao lado desse grupo uma senhora reclama para si mesma, resmunga quase baixo, como que insinuando uma conversa, em vão já que sua feição é carrancuda e não conquista interlocutores dispostos... Na estação Carioca a multidão ganha reforços e a pressão aumenta, assim como os rumores. Os que estão em pequenos grupos se ajeitam e até brincam, gastam sua tensão entre si. Mas a maioria de solitários guardam suas impressões, apenas observam, agüentam. Rostos que se olham sem falaram-se, desviam-se olhares encabulados. Algo de uma fragilidade de refém mistura-se a uma estranha cumplicidade pela experiência fortuita e intensa na multidão paralisada em movimento. Algo é dito mesmo que nada seja pronunciado. Nessa pausa móvel que se experimenta no metrô, os corpos dos usuários precisam se encaixar. Rotina que resiste a se tornar hábito nesses encontros passageiros de uma “comunidade” incômoda, fabricada no cotidiano e desfeita na fugacidade. Carioca é o nome do Largo onde a estação desemboca, da rua ao seu lado, do rio cujas águas serviam o chafariz que havia ali, descendo pelo aqueduto desativado que hoje chamamos Arcos da Lapa; carioca é quem nasce na cidade do Rio de Janeiro, mas significa em tupi-guarani, “casa de branco”. Foi em torno de uma imponente e estranha “kari oca”, como diziam os nativos indígenas nos primórdios da cidade, que ela foi crescendo, sendo povoada e dominada pelos colonizadores portugueses liderados por Estácio de Sá. Da casa soterrada na história resta apenas os nomes: estação, largo, rio, rua e o gentílico em cada ordinário nativo da cidade. A respiração de uma moça alta de pele clara, bochechas avermelhadas, olhar assustado, parecendo estrangeira, confunde-se com a do rapaz de terno à frente, que ouve rock pesado em fones de ouvido, aparentemente no último volume. Graças ao diminuto aparelho portátil, imperceptível, camuflado no paletó, ele pode abstrair-se com o choro gritado dos solos de guitarra e mantém um ar blasé. Os corpos que o apertam não tem a força da bateria que impacta seus tímpanos, seu olhar se perde enquanto provavelmente relembra imagens de videoclipes que viu na Internet. A moça estrangeira está tensa e o inglês da locutora nos alto-falantes, anunciando a próxima estação, quase inaudível em meio à barulheira, aos seus ouvidos ganha destaque - next stop Uruguaiana station. Traz familiaridade e um conforto identitário breve. Sua língua é sua certeza, ela foca a atenção naquela voz monótona que lhe parece algo maternal, temendo se perder na multidão rumorosa e quente e não encontrar seu destino. Seu corpo branco é velado ao rapaz de terno cinza, que parece nada mais sentir, além da música pesada da banda norte-americana. Indiferenças que protegem o citadino cosmopolita. Ao lado, um senhor com os braços esticados para o alto tem o teto como ponto de equilíbrio, só ali ele pode apoiar-se, malabarista sem corda na linha um. As pontas dos dedos dão uma estabilidade provisória, e raspam os letreiros alaranjados que pedem para que não se pare em frente às portas. Mensagem imperativa que o momento carrega de ironia, numa imagem de um caos que se quer, em vão, ordenar. Haverá criação no metrô carioca, além das invenções que um corpo instável precisa fazer com o que tem disponível ao alcance das mãos ou dos olhos? Na estação Presidente Vargas poucos descem e alguns ainda conseguem entrar. A grande “artéria” foi aberta pelo presidente ditador que lhe deu seu próprio nome, derrubando cortiços, praças, igrejas, prostíbulos, redutos de imigrantes, o berço do samba e da malandragem. Uma mistura indesejada de culturas. Diversidade perigosa, que as linhas retas da avenida cuidaram de homogeneizar. Vargas fazia questão de glorificar seu nome na história, no caso, ainda que tivesse que destruir outras tantas histórias anônimas. A avenida monumental no entanto é mal ocupada, imensos vazios em seu entorno lembram ainda hoje a solidão de um “herói” que amava a morte mas não podia suportar incômodas misturas e diferenças. Dezenas de braços irradiam-se agarrados à barra de aço vertical. Um relógio prateado, de ponteiro, marca cinco para as seis em uma mão de pêlos grisalhos; anéis dourados em dedos finos, sendo um aliança, e unhas pintadas em grená encaixam-se logo abaixo, um perfume adocicado não se deixa capturar, cheiro sem dono na barra de metais e mãos; acima das duas uma grande e espaçosa, um tanto suja, ocupa com força e sem dificuldade seus centímetros no suporte, já também aquecido e um tanto engordurado. Íntimos desconhecidos vão juntos, mãos que se conjugam em toques contingentes, personagens fragmentários, aguardando que a brevidade da viagem faça do encontro casual nada mais que uma necessidade urbana inevitável, que não atrapalhe a solidão passageira, que quer apenas chegar em casa, seu refúgio. Alguns escapam, outros vão se encaixando, conquistando brechas na barra, formando um mosaico instável de mãos e braços, corpos que agarram a máquina que os engoliu e agora os leva juntos. Como num estranho jogo sem regras, em que cada centímetro é concorrido e preenchido, a barra de aço é o troféu que alguns podem agarrar nessa luta pelos espaços. Luta sem vencedores nem inimigos, cada um tem um destino inimaginável aos outros, mas ali vão, caoticamente perfilados. Por quanto tempo, por quantas estações, precisarão se encaixar silenciosamente? Na estação Central desce quem vai fazer integração com alguns dos trens da Central do Brasil, ou com uma das muitas linhas de ônibus que partem de lá para todas as partes da região metropolitana. Em seguida, a estação Praça Onze está praticamente vazia, o metrô para ali brevemente, para absorver passageiros em algum outro vagão. Na superfície não há mais praça alguma, houve um dia, mas o nome continua, anunciando fantasmas que contam histórias da cidade, enterradas, subterrâneas como nossa viagem. Na superfície, uma efígie de Zumbi em traços algo caucasianos lembra que as histórias de insurreições e lutas anônimas nunca foram bem contadas pela história oficial. Os vidros das janelas servem como espelho, já que não há paisagem. Lá fora a escuridão ampara como fundo o brilho das luzes brancas do vagão. Não há saída para o olhar na linha um, ela toda é subterrânea Referência implícita à “Naval e Carcerário” de Certeau (2007), do qual falaremos adiante.. A iluminação artificial de todas as horas do ambiente reflete seu espaço interno num quadro de imagens etéreas. Quem quer que mire a janela em busca de perspectivas amplas e fugidias, durante a viagem encontra apenas o próprio olhar vaidoso, vizinhos ensimesmados, alguns outros que encaram ou resvalam o olhar refletido, braços pra cima, ondas freadas trazendo e levando um rosto qualquer, curiosidades anônimas que o “bom senso” quase sempre prefere calar. Nas passagens entre as estações, os túneis são as câmaras escuras criando a cada trajeto retratos em movimento da vida contemporânea numa grande metrópole. A janela se faz tela e o personagem se vê ali refletido, observa em contornos translúcidos as testemunhas da viagem, sabendo que os ombros que ali se encostam têm um rosto que provavelmente jamais será mirado diretamente. O que os impediria de um encontro demorado nessa fugaz experiência? Imagens inéditas que se repetem diariamente, corpos passageiros na cidade que não para. Alguns minutos depois, já na estação Estácio, onde acontece a transferência para a linha dois, (destino da maioria dos que ainda estão ali) as portas se abrem... Como num estouro de boiada a massa se lança para fora freneticamente, deixando pra trás o vagão subitamente esvaziado. Os que ficam tem agora espaço de sobra, o ar corre entre as portas abertas dos dois lados do vagão e os bancos coloridos vagos convidam o corpo cansado a sentar. Vislumbram-se os doze metros de extensão do vagão, clara e silenciosamente livres da multidão que há poucos segundos os preenchiam. Alguns usuários remanescentes experimentam um prazer premeditado e ingênuo, num suspiro de alívio que se alonga no espaço aberto e iluminado. Já são dezoito horas, mas é na distância protetora e reconfortante entre os indivíduos que se anuncia para eles a chegada da noite naquele carro do metrô. Ritmos próprios ao urbano vão compondo hábitos em invenções cotidianas, montagens entre corpo e máquina. O tal painel colorido e brilhante aparece agora, mas não faz sentido, este se foi com a multidão que escoou de repente, rumo à linha dois. Nesta, outros tantos malabaristas continuarão sua viagem com destino aos subúrbios mais distantes da zona norte carioca. *** Imagens que narram o cotidiano do Rio de Janeiro no início do século XXI, mas que falam de experiências urbanas que acontecem em outras tantas metrópoles no mundo. Mobilidade em uma cidade povoada por multidões, máquinas acelerando e dispersando os encontros, um tempo próprio ao urbano e modos de subjetivação que só nele se forjam Entendemos a subjetividade não como propriedade intimista de um sujeito, mas como produção, invenção, desprovida de qualquer natureza intrínseca . Não há um eu imutável, verdadeiro e essencial ao humano, pois este vive em constante subjetivação - um processo contínuo e inacabado de montagem de modos de existência, a partir de forças heterogêneas. “A subjetividade é, assim, o nome que se pode dar aos efeitos da composição e da recomposição de forças, práticas e relações que tentam transformar – ou operam para transformar – o ser humano em variadas formas de sujeito, em seres capazes de tomar a si próprios como os sujeitos de suas próprias práticas e das práticas de outros sobre eles.” (ROSE, 2001:141). A cidade tem histórias para contar sobre os homens que a habitam e se movem nela, subjetividades construídas nas montagens que se produzem em espaços tão comuns e singulares como uma rua, uma estação de metrô. Contar histórias é fazer escolhas políticas, é forjar em aço, (a dura matéria que o saber compõe com o que extraiu da terra) armas de ataque e defesa nas lutas. Instrumentos que atualizam as forças de um corpo, pontos de apoio nos percursos cotidianos mais banais, que nos lembrem sempre de sua finitude e de que são necessários apenas enquanto se escolha tê-los como esteio, até que outras montagens nos ponham em novas viagens. Pois bem, a viagem que percorremos na presente pesquisa iniciou-se a partir de um incômodo, que é esse de habitar uma cidade e desejar usá-la , experimentá-la de outros modos que não aqueles definidos pelas normas, medos, e consensos anestesiantes. Um incômodo sentido mesmo no corpo, que nos levou a encontrar outros citadinos inquietos, cujos anseios de experimentar uma certa “liberdade” tão próxima como possibilidade, mas ainda distante de nossos corpos, nos fez e tem feito pensar e agir juntos. Um coletivo de “intervenção urbana” Nesse contexto intervenções ou interferências urbanas são práticas, coletivas ou não, que usam o espaço público de modo criativo e/ou crítico, por vezes tidos como arte urbana, em ocupações, instalações, performances, happenings, entre outros. Algumas intervenções têm ainda um estilo mais ativista, contestatório. Mais adiante veremos, no entanto, que o termo intervenções urbanas surge no urbanismo, e refere-se à própria interferência desse saber no espaço da cidade., que começou a ser montado há mais de dois anos, iniciando-se a partir de uma idéia disparada na rede de internet : Tomar o metrô e mugir dentro dele, num momento determinado no meio de uma viagem, na hora do rush. Um sobressalto crítico nos corpos inertes dos passageiros, inclusive nos nossos. Um simples gesto, que experimentado coletivamente, por um grupo, que afetasse a compacta passividade da multidão dócil - que é carregada todos os dias, espremida no vagão lotado – e usando principalmente o som do corpo, um som que não é palavra, mas atuaria um pensamento. Modo de compor com o metrô uma outra experiência nessa viagem banal e cotidiana em que parece que os encontros não acontecem, que tudo é sempre igual. Ali iniciava esse coletivo, numa idéia agregadora, que não foi, ela mesma, posta em prática, mas que gerou outras intervenções e aproximou estranhos, possibilitou encontros que até hoje acontecem, criando laços de amizade entre pessoas que a princípio queriam apenas se manifestar, sair de uma sensação de anestesiamento e impotência, sem no entanto recair em catarses rebeldes. Encontros políticos e existenciais, banais mas sempre incomuns, simples e criativos, alegres. Sem dúvida, o coletivo Olho do Boi Elísio, como o chamamos, foi disparador de questões que ressoaram em nossa prática de pesquisa, em nossa gana de usar a cidade, ocupá-la, experimentá-la, subvertê-la em suas regras implícitas, que se querem ingênuas e que normalmente nem enxergamos, mas que seguimos na pressa cotidiana, na desatenção do dia-a-dia , numa leitura apressada do que acontece em nossa vida ordinária de pedestre ou usuário de um equipamento como o metrô. Assim, a pesquisa inicialmente pretendia discutir a relação entre práticas de intervenção urbana e os processos de subjetivação na cidade, se possível tomando as experimentações do coletivo como material. No decorrer da pesquisa percebemos um outro caminho que surgia como um desvio, ou uma bifurcação daquele inicial. Talvez o melhor fosse não visibilizar as intervenções urbanas como objeto, e o coletivo como um caso em que esse objeto seria analisado. Lançar esse foco talvez não fosse tão potente para o coletivo nem para a pesquisa, pois seria necessário evitar uma modelização heroificante e pseudo-revolucionária, que de certo modo, permeia algumas dessas práticas e alguns discursos sobre elas. Abriu-se uma outra linha nessa viagem que é a pesquisa acadêmica transdisciplinar, uma bifurcação que seguiu seu percurso próprio mas em constante atravessamento, já que as experiências do coletivo continuam acontecendo e reverberando em nosso pensamento, como se poderá perceber. Em todo caso, a pesquisa deslocou-se de um foco no “objeto” intervenção urbana a partir de sua problematização. Pela generalidade de práticas que assim se auto-intitulam, (inclusive algumas delas inseridas em estratégias publicitárias); pela polissemia do termo, que emerge no urbanismo; pela opção por não enveredarmos em discussões para a qual não teríamos fôlego, (sobre arte contemporânea, principalmente), esse deslocamento foi se dando, nos levando a discutir questões anteriores. Assim, a relação entre mobilidade e experiência urbana apareceu como caminho viável na pesquisa, ao nos perguntarmos que urbe é essa à qual se intervêm; que problemas elas vem afetar, criticar, transformar ou simplesmente visibilizar ou fazer referência. Ora, a cidade que a intervenção urbana (essa dos coletivos e/ou indivíduos que praticam uma certa arte urbana) afeta pelo choque, pela desordem, pelo estranhamento, é feita ela mesma desses conflitos, multiplicidades e heterogeneidades, historicamente objetos de um controle governamental e principalmente do urbanismo. Criações no espaço urbano, longe de serem exclusividade de artistas ou ativistas, estão acontecendo cotidianamente; habitar a cidade, mover-se nela, usá-la é exercício de invenção e experimentação que os anônimos nas ruas, os ordinários passageiros de um trem ou metrô, que o citadino, enfim, talvez pratiquem na banalidade diária do ir e vir, sem planejamentos. Interferir na cidade é algo que está dado àquele que por ela se move. Assim, o problema a ser pesquisado está na relação tensa entre a cidade urbanizada e seus habitantes, tomando nessa relação a idéia de mobilidade como um fator especialmente importante, que constitui muito do que podemos chamar de experiência urbana. Nessa linha que se desviou, queremos narrar algumas dessas pequenas invenções, que acontecem sem alarde, em detalhes que experimentamos na cidade, nos encontros cotidianos. Histórias, no sentido fragmentário que Michel Foucault e Walter Benjamin nos ensinam; ainda que supostamente pequenas, incertas, infames, buscadas em minúcias aparentemente insignificantes, podem nos servir como disparadoras de uma outra atenção para o tempo que vivemos, para as políticas da subjetividade que o contemporâneo nos apresenta em envolvimentos que, de outro modo, menos cuidadoso, podem passar despercebidos. Com eles o passado não se confunde com o obsoleto, pois está ainda vivo, nas lutas que se travaram e reverberam ainda em nossa vida, apesar de soterradas nos registros épicos e monumentais. Uma ética da atenção nos permite desdobrar a temática das intervenções urbanas, recuando à materialidade bruta das ruas e dos corpos, equivocando um pensamento que prevê, porque apressado, e portanto não vê; que já saberia o que encontrar na urbe, ao invés de deixar, como diria Larrosa (2004) que ela nos aconteça enquanto experiência. Então, dentre as histórias que se pode narrar com a cidade, buscamos aquelas que se entrelaçam na constituição da experiência urbana em relação estreita com as políticas da mobilidade. A cidade da pluralidade e da circulação “livre”, mas que se quer ordenada, regulada por uma racionalidade governamental; que nos apresenta paradoxos entre o múltiplo e o individuado, multidões e solidões, carne e máquina acoplados em conexões sutis, mas poderosas; pausas velozes que não se excluem nos seus espaços de mobilidade. Não é esta cidade que se inaugura na modernidade, que se transforma e se complexifica a cada dia, que é ao mesmo tempo uma experiência coletiva, heterogênea e algo de local e persistente; não é esta cidade urbanizada em que vivemos tão fértil na discussão das políticas de subjetividade, no modo como a entendemos? Vimos nas imagens iniciais que uma simples viagem de metrô no horário de pico narra a vida contemporânea em um centro urbano, diz muito mais do que se pode supor numa visada rotineira e automatizada, ou mesmo analítica, puramente sociológica ou psicológica. Fala-nos dos modos de subjetivação que ali se inventam e se fabricam, tendo a cidade como matéria e obra. A mobilidade produzida no metrô não apenas leva citadinos para extremos da cidade, ela produz corpos, modos de subjetivação e de relação. Sem dúvida, Michel de Certeau foi uma grande inspiração, especialmente em seu “Naval e Carcerário” (Certeau, 2007: 193-197). Nele, o autor narra uma viagem de trem e a experiência que se produz na mescla de movimento e inércia, na relação entre a paisagem que passa lá fora, na visão da janela, e a percepção expectadora do passageiro, confortavelmente instalado, num domínio ocular distanciado, desapegado daquilo que vê. O aço dos trilhos e o vidro da janela produzem a mobilidade veloz da máquina, mas também a experiência solitária, a realidade de sonho que se produz no dispositivo, desiludida no momento em que o passageiro deixa o trem e o vê de fora, parado na estação, como um “Deus desmanchado” (Certeau, 2007:197) Voltaremos a esse importante ensaio no capítulo 3.. Portanto, na mudança de caminhos em nossa pesquisa, o metrô persistiu. Ele reaparece como espaço da cidade que privilegiaremos, dispositivo de mobilidade que atravessa o território da cidade em sua superfície e em seu subterrâneo, costurando histórias metropolitanas. Será nosso campo, esse “outro espaço” Veremos adiante no segundo capítulo a noção de heterotopia (FOUCAULT, 2007) dentro da cidade, maquinaria que fabrica uma mobilidade supostamente inquestionável , altamente valorizada e explorada pelo capital privado. Produzindo algumas narrativas acerca desses espaços urbanos tão peculiares, fazemos de duas linhas, (linhas 1 e 2 do metrô carioca) outras linhas descontínuas de histórias anônimas, a fim de apontar a relação histórica entre experiência urbana e mobilidade como um dos vetores de subjetivação contemporâneos. A viagem por narrativas metropolitanas é então uma aventura por histórias da urbanidade atravessadas por percursos do metropolitano do Rio de janeiro. Um dispositivo de mobilidade que completou trinta anos e já se faz fundamental no transporte da população carioca, convoca o usuário a uma certa disposição corporal, suscitando um tempo e um ritmo no seu uso. Mais que um dispositivo, o metrô, não só o carioca, é tido como um símbolo da modernidade e da metrópole, da velocidade que rege sua temporalidade acelerada. De algum modo contribui para o esvaziamento dos encontros nas ruas da cidade ao instituir o subterrâneo como via mais rápida para a população circular, evitando os conflitos do asfalto. Que políticas da mobilidade podemos encontrar nesses lugares pelos quais, em tese, apenas passamos? Buscamos, então, um pouco da história desse dispositivo. Desde as primeiras obras de sua construção, que ainda não acabou e vem se arrastando por mais de trinta anos, o metrô afetou e afeta a vida do carioca. Uma intervenção urbana inacabada cujos inúmeros projetos prometem uma cidade mais veloz, mais moderna e ainda apelam para uma utopia de cidade a ser realizada na modernização da mobilidade das massas. As discussões que levantaremos nesse trabalho são sustentadas especialmente por alguns interlocutores: Foucault e Benjamin trazem noções de história e narração fundamentais para nós. Contribuições não apenas conceituais, pois os modos de pesquisa e escrita apresentadas por eles, que se aproximam ao trilharem a história descontínua, de algum modo norteiam nossa aposta transdisciplinar. As suas práticas intelectuais apontam para uma certa ética na produção do saber, e vem nos ensinando a fazer de um corpo passageiro não aquele que é apenas carregado, mas um que possa dar passagem a forças que a todo instante estão nos convocando a sermos sujeitos atentos ao nosso tempo, às possibilidades de enfrentamento cotidiano às nossas limitações históricas. Certeau e Sennett potencializam nossa pesquisa, lançando germes de estranhamento às imagens da cidade e de seus ordinários habitantes, que em suas “artes de fazer” quebram lógicas viciadas em totalizar e homogeneizar os movimentos dos corpos nos espaços urbanos. Outros parceiros no caminho nos encontram, deixam rastros em nosso pensamento e pedaços dos seus em nossa escrita. Autores que evidenciam um plano político que está aberto, nas ruas, nas convivências cotidianas, na história. Mostram-nos algumas pistas para se pensar a mobilidade como política que atravessa a história, em arranjos diferenciados entre o corpo humano e o corpo da cidade, entre projetos utópicos e a materialidade cotidiana de “carnes e pedras”. Mais especificamente, trazem ferramentas úteis na discussão de nosso problema: como historicamente as políticas da mobilidade na cidade urbanizada tem produzido modos de subjetivação, mais do que simples ordenações e deslocamentos espaciais, nos apontando para uma discussão maior, que não cabe aqui, mas que se anuncia: sobre uma perspectiva ética da atenção, na relação entre movimento e subjetividade no contemporâneo. Cada capítulo inicia-se com narrativas metropolitanas: imagens do metrô carioca que remetem-nos a experiências que se compartilham em uma metrópole como o Rio de Janeiro. Estas imagens de algum modo repercutem alguns conceitos tratados em toda a dissertação. O primeiro capítulo trata do processo da pesquisa, a caminhada que se fez desde o projeto inicial até as escolhas metodológicas e problematizações que nos fizeram achar o rumo da pesquisa. Procurando demonstrar a relevância de uma orientação ética transdisciplinar na pesquisa acadêmica em psicologia, na qual o conceito de subjetividade opera algumas críticas. No segundo capítulo apresentamos a concepção de história que utilizamos numa aproximação entre Foucault e Benjamin a partir da noção de descontinuidade, questionando a narrativa historiográfica monumental ou progressista. Essa noção é desdobrada nos conceitos de narração e experiência em um experimento urbano-literário onde aparecem também o metrô e o conceito de heterotopia. O terceiro capítulo mostra como a experiência da modernidade se relaciona com a emergência da cidade urbanizada entre fins do século XVIII e decorrer do XIX na Europa. A mobilidade e a circulação nesse espaço regularizado e a importância da técnica nesse contexto. O urbanismo surgindo no modelo da Paris de Haussmann e sua aplicação no Rio de Janeiro da belle époque. Passando pelos bondes e pelos automóveis chegamos a implantação do metrô carioca já nos anos setenta, seus projetos e intervenções na cidade. O arrastado processo de abertura de novas estações que se acelera com a privatização em fins dos anos noventa e a precarização que vem junto com ela. I : “ALGUÉM ME AVISOU PRA PISAR NESSE CHÃO DEVAGARINHO” Verso do samba “Alguém me avisou” de Dona Ivone Lara. ORIENTAÇÃO TRANSDISCIPLINAR NOS PERCURSOS ENTRE A RUA E A ACADEMIA. Descendo os primeiros degraus das escadarias da estação Uruguaiana, o mergulho nesse ambiente subterrâneo já convoca o corpo a se agitar. No fim da tarde eis o ritmo frenético das multidões que escorrem por esse “ralo” da cidade num ritmo que contagia, que arrasta. Hábito. É quase automático o ímpeto de aceleração, andar apressado, seguir o fluxo. É preciso lembrar-me de que não vou a lugar algum – não há compromisso a cumprir, não há lugar preciso a se chegar, não há trem a perder, nenhum destino previsto. Experimentar plenamente esse espaço é antes de tudo desfazer um corpo apressado. Exercício corporal de desautomatização. Quebrar o hábito da correria. De início, uma reflexão... Calma! Pensamento e corte. As pernas costumam descer nervosamente de dois em dois degraus, mas agora precisam sentir na sola do sapato cada uma das faixas ásperas antiderrapantes que margeiam cada um deles. Nada a vencer, nada a perder. Encontrar outro movimento no fluxo de passageiros apressados é deixá-los ir com sua pressa, resistir a não ir com eles ou à frente deles no longo e sinuoso caminho. Não há disputa, mas ficar para trás e percebê-los passando por mim a princípio causa um certo desconforto. Atenção. Deixá-los ir é manter-me num ritmo outro, diferenciar-me, num movimento que no contraste parece vagaroso. São corpos apressados passando em volta, eles têm pressa e se o movimento que faço é lento essa sensação de lentidão só existe mesmo no meio de todos esses passos acelerados. Parece que a atenção ao movimento do próprio corpo nesse espaço coletivo de fluxo intenso exige que atentemos para os outros corpos. Nessa multidão de passageiros em trânsito todos seguem uns aos outros, mas não seguem ninguém. Para onde vão tais andarilhos nesse subterrâneo espaço de velocidade também não sabemos, mas o modo como vão me ajuda a enxergar meu próprio movimento, que tende ao automático. Aos poucos os passos aceitam esse ritmo e o inicial esforço de desaceleração já não se sente. Agora, mover-me com a brandura de quem passeia traz até algum prazer, uma leveza lúdica que permite observar com cuidado esse ambiente peculiar. Para carregar-me de experiências aqui é preciso desfazer o corpo acelerado que tenderia a seguir ensimesmado, interrompê-lo. - Os outros também têm um corpo! Inventar nessa tensa relação um corpo passageiro, que possa experimentar no seu percurso um cuidado com isso que lhe passa, que lhe toca, abrindo lacunas: - Para onde irão com tanta pressa? *** Uma viagem, a rigor, tem sempre um início, um ponto de partida. Dali parte-se, dali nos lançamos em direção a um destino imaginado, desejado, mas não previsível. Se os primeiros passos de uma caminhada não dizem exatamente aonde chegaremos, é claro que sem eles o percurso tampouco poderia ter sido feito. Não se narra uma viagem sem que as passagens apareçam - todos os seus percalços, os atalhos, as saídas e estratégias usadas. Se o caminho a percorrer não está pré-estabelecido, atenção e cuidado devem ser levados consigo. Atenção com aquilo que pode orientar nessa incerta viagem, as marcas, os sinais pelos quais uma errância pode ser experimental e criativa, ao testar constantemente nossos desejos e medos. Esse teste é o de escrever uma história num modo próprio mas não íntimo, que diga daquilo que tem uma relevância maior que uma particularidade mas que passa por ela e a desarranja, se fazendo criação. Atenção que pode minimamente orientar, mostrar direções. Falamos de marcas, pontos de referência em cada momento do trajeto. Somente quem tem um corpo pode escolher que caminho tomar dessa forma. O desafio da viagem que é pesquisar e lançar seu pensamento no mundo é arriscar-se na impermanência do que não sabemos. O corpo do pesquisador deixa rastros na pesquisa que o transforma. Um corpo passageiro, pois dá passagem ao pensamento à medida que embarca na viagem da pesquisa. Desafio maior ainda, essa viagem é acadêmica! O cuidado nos relembra a importância dos códigos que se exigem em cada território. Não basta abrir caminhos e dar passagem, há que se fazer entender, não viajamos sozinhos mas em coletivos. Cuidado com as palavras, conceitos e ferramentas teóricas que clamam para serem usados, refeitos, montados, mas só por opção e certa coragem o são. Atenção e cuidado é o que levamos de início nessa viagem. Uma bagagem ética, pois é com ela que faremos as escolhas metodológicas, entendendo que seus efeitos vão muito além dela. Viajar é sempre perigoso e nessa que fizemos embrenhamo-nos pela cidade, um território não muito comum à psicologia, especialmente num modo arriscado em que se pretende contagiá-la com outros saberes. Partimos com uma orientação transdisciplinar apostando que com ela possamos reinventar caminhos para a pesquisa em psicologia, na medida em que se equivoque uma suposta especialidade, politicamente mais empobrecedora do que necessária. As marcas para as quais atentamos surgem na percepção de que o campo de pesquisa exige uma certa interlocução entre saberes que atravessam o problema pesquisado. No caso, história, filosofia, urbanismo, literatura, contribuem na construção de um objeto não totalmente determinado a priori, mas que no percurso da pesquisa pode ganhar contornos inesperados. Alguns desvios no processo acontecem e não são apartados como erros, já que o que nos move é a problematização Foucault deixa claro o que vem a ser a problematização em uma pesquisa, (no caso, a sua História da Sexualidade) na qual se conduz “um tanto cegamente” e por fragmentos: “... analisar, não os comportamentos, nem as idéias, não as sociedades, nem suas ‘ideologias’, mas as problematizações através das quais o ser se dá como podendo e devendo ser pensado, e as práticas a partir das quais essas problematizações se formam.” (FOUCAULT, 1984:15), mais do que o esgotamento descritivo ou analítico de um território circunscrito a um objeto pré-determinado. O erro aqui não é desqualificado, como numa lógica matemática, já que não se está em busca de soluções, mas antes, de reformular ou criar outros problemas. Ou seja, uma abordagem transdisciplinar admite a errância como movimento de construção de uma trajetória de pesquisa. Isso não a faz menos rigorosa. É sem dúvida uma opção ética pautada numa definição clara - é da materialidade das práticas que devemos partir, e não das idéias pré-definidas nos sistemas de pensamento que se acumulam em ordenações disciplinares bem limitadas. Na verdade, muito mais do que uma simples interlocução entre saberes, essa orientação ética transdisciplinar impõe a criação de novos modos de problematização e de conceitos, já liberados de qualquer delimitação disciplinar. Que tragam como força a capacidade de disparar discussões num dado campo de pesquisas e / ou de trabalho, com questões colocadas de um ponto de vista no qual o saber não está de antemão reservado àqueles que tenham autoridade discursiva, ou seja, aos especialistas. Tais conceitos e problematizações, no entanto, exigirão àqueles que desejarem ou necessitarem operar com eles uma abertura à multiplicidade que perpassa o campo de sua intervenção. Que a palavra seja desprivatizada, que ela seja liberada de qualquer obediência a esquemas hierárquicos pré-determinados, ou à autorização especialista. Daqueles que fazem uso do saber se exigirá que possam também transformá-los às pertinências da prática. Montá-los, desmontá-los, mantendo porém a potência ética e política que trazem – fidelidade ao problema no modo como pôde ser construído conceitualmente, mais do que a qualquer lógica abstrata interna a um sistema do qual faça parte. Portanto essa orientação transdisciplinar prescinde da autoridade do especialista, cria problematizações às quais o que importa é sua efetividade no sentido de abrir discussões e conexões com outros saberes em sua dimensão prática – seja um prática discursiva ou não. Cabe retomar problematizações desqualificadas, tidas historicamente como parciais ou impuras, construindo novas percepções sobre os usos e os efeitos do saber-poder e principalmente, sem a pretensão consensual, seja universalizante e / ou reducionista. Afirmar a prática da pesquisa numa orientação transdisciplinar se coloca para nós, portanto, como uma escolha ética – pois se trata de por em questão no processo da pesquisa não só a produção do saber e seus efeitos sociais mas também aqueles que dizem respeito à condução de nós mesmos como sujeitos nas relações de poder. E estratégica, pois atenta ao território do qual parte - a academia que produz e tende a fortalecer as fronteiras entre os saberes disciplinarizados cientificamente. Ressaltamos esse caráter ético da orientação transdisciplinar também a fim de demarcar algumas diferenças na aposta que fazemos daquela que vemos, por exemplo, na “Carta de Transdisciplinaridade”. As considerações que ela traz deixam clara sua visão humanista em um caráter conciliatório que se pretende forjar entre os saberes. Uma espécie de pacto, que seria necessário e urgente em função da “complexidade de nosso mundo e [do] desafio contemporâneo de autodestruição material e espiritual de nossa espécie” (FREITAS, MORIN & NICOLESCU 1994:1) e a medida em que um “olhar global do ser humano” vai ficando cada vez mais distante. “O ponto de sustentação da transdisciplinaridade reside na unificação semântica e operativa das acepções através e além das disciplinas. Ela pressupõe uma racionalidade aberta, mediante um novo olhar sobre a relatividade das noções de “definição” e de “objetividade”. O formalismo excessivo, a rigidez das definições e o absolutismo da objetividade, comportando a exclusão do sujeito, levam ao empobrecimento. (...) A ética transdisciplinar recusa toda atitude que se negue ao diálogo e à discussão, seja qual for sua origem - de ordem ideológica, científica, religiosa, econômica, política ou filosófica. O saber compartilhado deveria conduzir a uma compreensão compartilhada, baseada no respeito absoluto das diferenças entre os seres, unidos pela vida comum sobre uma única e mesma Terra. (FREITAS, MORIN & NICOLESCU 1994:1:3) Persiste no documento a idéia de evolução, capitaneada por uma ciência que deixaria de ser cientificista para se tornar holística, e assim promover uma transformação na vida humana na terra. Ou seja, nessa perspectiva a transdisciplinaridade se pretende revolucionária, mas é sim extremamente conservadora e perigosa, pois reivindica uma unidade do conhecimento como forma de retomar um destino perdido com as disciplinas, e mais que isso, alcançar uma unidade global, humana, baseada no “respeito às diferenças” que os saberes compartilhados garantiriam. Promete-se uma comunidade planetária, um discurso quase religioso a professar um renovado “paraíso terrestre”, agora globalizado. Se concordamos com a proposta de uma ética que recuse a negação ao diálogo, discordamos que este “deva” conduzir a uma compreensão universalista, o que nos levaria de volta a uma moral. Assim essa orientação é entendida como momento em um processo no qual o que está em jogo é, sim, mais do que os limites entre as disciplinas, a hierarquia entre os saberes. Com isso não só as disciplinas em suas especialidades devem ser questionadas, suas formalizações funcionais que sepultam conteúdos históricos e processuais tidos como irrelevantes ou impróprios. Também a dominação do saber científico, acadêmico, erudito, sobre os “saberes ingênuos, hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível requerido de conhecimento ou de cientificidade.” (FOUCAULT, 2008a:170). No entanto, esse duplo processo de diluição das fronteiras disciplinares e crítica à desqualificação operada pelo discurso científico não se dá de modo tranqüilo, pacífico; não é uma questão de convencimento, não dá garantias de um mundo melhor ou de uma ciência evoluída. Ela insere sim uma discussão urgente mas ainda muito incipiente, que precisa ser levada adiante não só na academia – mas se possível partindo dela - sem que se busque de antemão qualquer solução humanista ou global como garantia de ordem, mas que possa atacar as relações de saber-poder naqueles locais e circunstâncias específicas em que elas estão acontecendo agora. E sem nos enganarmos de que esse poder seja algo que um pacto universalista vá desfazer, alcançando um estado geral de consenso. “A humanidade não progride lentamente, de combate em combate, até uma reciprocidade universal, em que as regras substituiriam para sempre a guerra; ela instala cada uma de suas violências em um sistema de regras, e prossegue assim de dominação em dominação. É justamente a regra que permite que seja feita violência à violência e que uma outra dominação possa dobrar aqueles que dominam. Em si mesmas as regras são vazias, violentas, não finalizadas; elas são feitas para servir a isto ou àquilo; elas podem ser burladas ao sabor da vontade de uns e de outros. O grande jogo da história será de quem se apoderar das regras, de quem tomar o lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para pervertê-las, utilizá-las ao inverso e voltá-las contra aqueles que as tinham imposto; de quem, se introduzindo no aparelho complexo, o fizer funcionar de tal modo que os dominadores encontrar-se-ão dominados por suas próprias regras.” (FOUCAULT 2008b:25) Certamente algumas discussões introduzidas pela genealogia foucaultiana vem clarear esse campo estratégico, evidenciando que se trata de uma luta em que consensos apaziguadores são inaceitáveis, pois tendem a mascarar ou negar as relações de poder, dificultando qualquer trabalho que se proponha aberto à discussão ética de seus procedimentos. Se Foucault em nenhum momento defendeu uma prática transdisciplinar, também jamais chegou a conceber a genealogia como metodologia explícita. Mas sem dúvida, um dos principais efeitos de seu trabalho foi permeabilizar as fronteiras disciplinares e equivocar discursos e práticas tidos como neutros, humanistas a apolíticos. Em todo caso, a própria genealogia acabou se tornando valorizada academicamente, perdendo muito de sua potência ao ser confundida com um método a ser reproduzido. Preferimos remeter essa discussão ético-metodológica a uma orientação transdisciplinar, demarcando mais do que uma filiação teórica uma postura na relação com a produção de conhecimento – postura que, podemos dizer, foi a de Foucault, mas não exclusivamente dentre as referências desse trabalho. Benjamin de certo modo também teve uma postura transdisciplinar anos antes e sofreu os efeitos de sua ousadia. Foi duramente contestado por praticar uma filosofia não sistemática, mas voltada ao cotidiano em toda sua pluralidade contemporânea – marxismo, judaísmo, arte, mídia, atravessam seu pensamento atento às urgências do tempo em que viveu. Foucault, no entanto, foi mais explícito com relação às suas escolhas metodológicas, fazendo questão de descrever o processo, o passo-a-passo de suas pesquisas produzidas sempre no meio acadêmico e legitimadas por este. Nesse sentido ele inspira-nos na discussão “metodológica” a forjarmos nossas orientações e procedimentos de acordo com as pertinências da pesquisa acadêmica. Pesquisar é entrar nesta luta dos saberes, os caminhos que cada batalha nos leva são imprevisíveis e as armas necessárias precisam ser montadas e, quando necessário, rejeitadas. Pisando devagar em cada chão, há que cultivar nas práticas às quais cotidianamente estamos envolvidos o pensamento crítico e experimentar tentativas de ruptura às fronteiras que se fazem autoritárias, que exigem obediência e bloqueiam possibilidades de criação e experimentação outras. Em nosso caso, criticar os limites disciplinares, o plano de cientificidade que academicamente se exige, na qual o espaço e o tempo do processo estão de antemão determinados por uma metodologia prescritiva que almeja a verdade. Experimentar a produção de pesquisas nas quais o pesquisador não se pretenda neutro, ou apolítico, mas que esteja suficientemente aberto à possível equivocação dos próprios discursos, à mudança em seus planos, à medida que suas formulações e seu próprio pensamento sejam transformados durante a pesquisa. Enfim, que o pesquisador/professor, esse que tem em mãos um certo poder, possa questionar na sua própria prática a manutenção daquele “corpo ileso” (Baptista 2010:104) que supostamente ilumina territórios desqualificados, e “dá voz” à diferença. Pesquisar é, além de um processo de produção de saberes, também de subjetivação, que o pesquisador experimenta e que o transforma de algum modo, assim como àqueles que possam estar sendo “pesquisados”. Não uma transformação “interior”, como resíduo pessoal de um conhecimento adquirido, mas transformação que ocorre entre o desejo de saber e os riscos de se ver desprovido de suas convicções, na sua experiência com o problema que investiga; entre sua vida e os limites que nela se evidenciam ao serem confrontados com seu objeto de estudo. Transformação que afeta o corpo do pesquisador que não se imuniza na neutralidade, mas para quem pesquisar faz parte da própria vida. De todo modo, nessa batalha temos que partir de algum lugar autorizado, o qual, em nosso caso, é por formação a psicologia. Claro que um lugar ao qual habitamos senão com uma série de ressalvas, às quais já ficaram bem claras, e sempre como um estrangeiro de passagem por uma terra estranha. Um habitar atento mas não totalmente à vontade como alguém que esteja “em casa”. Em todo caso, partimos não de conceitos que definam um objeto específico supostamente psicológico, mas sim da noção de processo de subjetivação, que é a linha central de nossa discussão. Entendemos o que é hegemonicamente chamado individualidade, como um modo de subjetivação construído na forma de uma subjetividade privatizada. Construção que a limita politicamente ao passo que se expande psicologicamente, num mundo interno e pleno de sentido em si mesmo. A subjetividade privatizada é forjada e mantém suas fronteiras bem definidas em tantas práticas cotidianas pulverizadas na sociedade capitalista, em técnicas disciplinares instrumentalizadas em um sem número de equipamentos e dispositivos. Práticas quase sempre fundamentadas e estimuladas por discursos psicológicos, que se difundem com força de verdade científica, que há muito já não são (ou talvez nunca tenham sido) exclusividade do psicólogo. Os saberes e as autoridades psi tem gerado técnicas para moldar e reformar os eus, as quais tem sido reunidas. [...] com os aparatos dos exércitos, das prisões das salas de aula, dos quartos de dormir, das clínicas. [...] Dessa forma, as disciplinas psi estabeleceram uma variedade de ‘racionalidades práticas’, envolvendo-se na multiplicação de novas tecnologias e em sua proliferação ao longo de toda a textura da vida cotidiana: normas e dispositivos de acordo com os quais as capacidades e a conduta dos humanos têm se tornado inteligíveis e julgáveis. ROSE (2001:147). Esses discursos têm a peculiaridade de se alastrarem, pela criação de identificações facilmente palatáveis, supostamente ingênuas, nos mais diversos meios. Afinal o discurso psicológico é uma fonte formidável da noção liberal e romântica de indivíduo que o capitalismo precisa para justificar o modo de vida privatizado; e a psicologia, um saber que se “democratiza” com a força do apelo a um reino interior inquestionável e solipsista, ao qual se precisaria desvendar. O conceito de subjetivação vem apontar essa construção, desmistificar a individualidade enquanto suposta natureza humana e com isso disparar discussões sobre as éticas inerentes a tais produções de saber, os efeitos que podem ter e os mecanismos de docilização que empreendem. Nesse sentido, reconhecemos que no próprio ato da pesquisa empreendida essas questões se atualizam, que a escrita requer um exercício de atenta reinvenção de nossas práticas e do uso das forças que estão à disposição na universidade, na prática profissional e mesmo na vida política e social cotidiana. O papel do intelectual não é mais o de se colocar ‘um pouco a frente ou um pouco de lado’ para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da “consciência”, do discurso.” (FOUCAULT, 2008c:71) Assim, situamos nossa tarefa enquanto pesquisadores como a entrada num território de confrontos, no qual não existe um caminho pré-estabelecido, mas uma certa ética na produção do saber, que nos serve de guia. Essas questões ético-metodológicas aparecem no trabalho, no fazer da pesquisa e da escrita, nas problematizações e discussões levantadas, na produção de um saber que ouse testar as fronteiras do próprio pensamento, nessa posição um tanto incômoda, mas extremamente desafiadora, de se experimentar produções não disciplinares na academia. Sem que essa criação queira ser mais uma verdade a ser reproduzida e enclausurante de outros pensamentos, eruditos ou mesmo ordinários, que ousem suas próprias aventuras, mas convite a elas. - DA RUA À ACADEMIA: A REDEFINIÇÃO DE UM PROBLEMA Em nosso projeto inicial de pesquisa, nosso foco eram as intervenções urbanas, um “objeto” bastante mal acabado, mais intuitivo do que propriamente bem definido. Ele serviu especialmente como disparador de um projeto de pesquisa, movendo-se pela força de experiências que estávamos sofrendo a época, forças muito intensas que levaram-nos a querer desdobrá-las em pesquisa acadêmica. A experimentação do espaço urbano, naquele modo de uma interferência pensada e produzida por um grupo ou “coletivo”, como se diz, tinha algo de novo, de urgente. Vinha quase como uma necessidade, forçando-nos a buscar aqueles outros dispostos a aventurar-se em tomar a rua como espaço experimental, na invenção de intervenções que eram, antes de tudo (apesar de só percebermos isso depois), no próprio corpo, em nosso próprio modo de subjetivação. Partia-se de uma experiência de cidade que deixa nos corpos uma marca que se sente, que é compartilhada por muitos, mas que não estamos totalmente certos de como é feita. Uma certa produção urbana que é percebida como algo que é feito de nossa vida, de nosso modo de viver nesse espaço. Uma ambígua experiência, ao mesmo tempo de constrição, de cerceamento, mas também de uma certa liberdade que se experimenta na rua - forças estranhas que nos atravessam cotidianamente. Seria uma boa pesquisa acompanhar o processo experimental de interferir nos movimentos e nos espaços urbanos, e discutir algumas dessas produções ditas coletivas, que vem ganhando força nas grandes cidades brasileiras. O que pretendem, como surgem, no que interferem, quem são estas pessoas que criam tais coletivos? Mas assim como o processo de produção dessas interferências, experimentadas no grupo do qual fazemos parte, era aberto, incerto, experimental, lançamo-nos à pesquisa com essa abertura, trazendo as inquietações que nos levaram à rua, para a academia. Um outro espaço que constrange-nos de outro modo, que desafia-nos também de outros modos e para os quais outras estratégias precisam ser criadas. Inicialmente o que fizemos foi revisitar alguns temas ligados a intervenções urbanas, sites de coletivos constituídos, inclusive encontros com algumas pessoas que praticam esse tipo de intervenção. Também a pesquisa bibliográfica sobre o tema e principalmente sobre cidade e experiência urbana. Foi evidenciando-se um campo problemático que as intervenções urbanas atacam, questionam, mas de um modo que, por vezes, enfatiza mais o aspecto reativo e rebelde do que o criativo e experimental. De certo modo essa ênfase estava presente já em nosso projeto, que propunha conceituar a intervenção urbana como “prática de resistência” em uma “sociedade de controle”. Percebemos que era preciso voltar alguns passos atrás, fazer um desvio na caminhada que potencializaria a pesquisa, na medida em que seu foco se lançasse para a experiência urbana e a mobilidade na cidade. Afinal, o incômodo que nos levava a interferir na cidade apareceu como questão mais importante, pois remetia sim a história da urbe e de modos de experiência que se constituem nela. Além disso, o saber acadêmico exige todo um cuidado ético e político para com aquilo que pesquisamos. Há que se afinar o discurso numa prática escrita que se esquive de “iluminar” o objeto. Mas pesquisar, escrever, é sim jogar um foco, é trazer à atenção, é concretizar um pensamento. Pois então o desafio que se apresenta para o pesquisador é o de produzir problematizações com clareza, no sentido de não nos tornarmos herméticos, que não sejamos lidos somente por aqueles que compartilhem de um mesmo vocabulário conceitual. Ao mesmo tempo não se tornar tão convincente, ou tão claro, que nossa produção venha a ser como uma luz que ilumina o objeto, ou um problema, tão fortemente que nada reste como dúvida, como incerteza, o que seria a morte do pensamento crítico. O primeiro desvio se deu aí, nessa questão ética que nos fez rever o projeto, caminhando numa outra direção. Na passagem da rua para a academia, atentamos para o fato de que estamos em um outro território que exige uma certa delicadeza na lida com as forças que ali operam e com o que resolvemos levar para lá. Foi então que encontramos uma ponte semântica que ligaria o sentido das intervenções urbanas artísticas e /ou ativistas à intervenção urbana como conceito do urbanismo. Neste, entende-se intervenção urbana como a atuação prática, concreta desse saber que a partir de um dado projeto de urbanização de um espaço da cidade vai até ele efetivar a transformação projetada. Portanto, seria a última etapa da intervenção de um saber que se inicia no projeto, ou mesmo antes dele, na concepção de cidade que conduz seu planejamento. Sem dúvida, historicamente ela traz a idéia de uma operação de ordenação do espaço, uma atuação sobre o corpo da cidade como a da medicina sobre o corpo humano - uma operação que visa à sua saúde. Portanto o urbanismo opera, intervêm, a partir de uma saber técnico e bem programado, uma certa violência, destrutiva e construtiva, que se admite por ser o caminho para uma melhora de um estado considerado doentio, para restabelecer a tal “saúde” da cidade-organismo. O higienismo propagado pelo saber médico influenciou fortemente o urbanismo, como veremos. Ora, as intervenções urbanas artísticas e /ou ativistas, ao fazerem referência nominal a esse procedimento técnico-científico que ordena e higieniza a cidade, se colocam de certo modo como uma resistência a essa ação ordenadora que idealiza uma cidade perfeita, saudável. E era justamente esse caráter de contraposição, que incomodava-nos, no que podia ter de presunção pseudo-revolucionária, vanguardista, um tanto reativa (ainda que tida como resistência no sentido foucaultiano, como pretendíamos ainda no projeto). Uma certeza ou esperança de que a cidade urbanizada precisa retomar um certo estado libertário, revolucionário ou comunitário que houvesse se perdido. Arte urbana, interferências e “invasões artísticas” viriam trazer à cidade a crítica, uma reapropriação do espaço e do tempo urbanos, pela criatividade com que a arte os subverte Ver, por exemplo, GONÇALVES, F. e ESTRELLA, C. (2007); PALLAMIN, V. (2002). Nesse modo polarizado de entendimento, a cidade é opressiva, racionalizada, dominada e uma arte / ativismo vem expor e criticar algumas destas produções que nela se faz. De antemão uma cidade é visibilizada e é a ela que a interferência urbana vem se contrapor, se confrontar. Percebemos que seria equivocado seguir essa trajetória algo dicotômica, simplificadora, que de fato parte de uma separação entre subjetividade e espaço, paralela àquela que se faz entre privado e público, interioridade e exterioridade. Afinal, inúmeras cidades existem dentro da cidade, a experiência urbana não está totalmente determinada como um produto de forças às quais se justificaria um embate direto, com pretensão rebelde ou revolucionária. Alguns dos discursos que atualmente tratam de tais práticas de intervenção urbana não resistem a enveredar por esse caminho polarizado, que acaba facilmente capturado pelas máquinas capitalistas de produção de subjetividade, gerando novos modismos pré-fabricados. Queríamos tratar de algo que está para além de uma rebeldia juvenil ou de novos modos de atuação de artistas contemporâneos. Nesse sentido, foram cruciais algumas das questões trazidas por Certeau (2007) que aposta nas astúcias do fraco, do ordinário, do anônimo, que jamais se submete totalmente à disciplina e experimenta percursos desviantes aqui e ali, em “maneiras de fazer” muitas vezes “ilegíveis” aos mecanismos ordenadores. Ao se imaginar uma totalização do controle nos espaços, uma submissão passiva das práticas aos mecanismos de docilização e disciplinarização, até o mais “implicado” dos críticos pode acabar tomando por ingênuos aqueles que muitas vezes inventam cotidianamente modos impensáveis de jogar com forças dominadoras e assujeitadoras. Ele nos aponta um outro espaço que atravessa aqueles lugares codificados pelo poder, no qual as “artes de fazer” acontecem sem planejamentos, subvertendo a força dos códigos, ainda que muitas vezes despercebidas por aqueles que pretendem vitimizar e defender os “fracos”. Apropriações singulares dos espaços forjam caminhos não previstos nos projetos de controle e vigilância, que se pretendem totalitários pelo olhar panóptico em um espaço regularizado. DA ACADEMIA À RUA ... E AO METRÔ. Então, decidimos retomar o problema por um outro caminho, partindo do ponto que a intervenção urbana como prática do urbanismo tem aquele ideal de ordenação da cidade e no qual a mobilidade seria um dos fatores de maior importância. Esse ideal foi construído em determinado momento histórico, no encontro de forças produtivas que levaram à exponencial urbanização das cidades. Uma volta à história se fez necessária, a fim de recortarmos no passado algumas linhas que nos levarão a compreender melhor de que modos foram se constituindo algumas das experiências urbanas que hoje vivemos. Nos concentrando na questão da mobilidade no espaço urbano, atentando para as aberturas e fechamentos não totalmente determinados que ela põe a funcionar, situamo-nos num campo de pesquisa no qual os processos de subjetivação são produzidos entre a subjetividade e a cidade. Com isso, saímos das grandes análises macroscópicas ou daquelas determinadas a denunciar um sistema complexo que serializa subjetividades, como que desvirtuando uma resistência que lhe é anterior. A história vem trazer não uma clareza que fortaleça nossas convicções ou nossas resistências, mas fragmentos com os quais seja possível recontar o momento presente, trazer estranhamento e possibilidade de criação no cotidiano - espaço e tempo em que vivemos, que não tem nada de espetacular, mas quando e onde a história é escrita. O metrô carioca foi escolhido como campo de pesquisa que privilegiamos dentre tantos espaços da cidade, por trazer com ele histórias do Rio de Janeiro, do urbanismo e da mobilidade. Além disso, é um meio de transporte típico das metrópoles, tido como fundamental em seus funcionamentos por promover uma circulação aperfeiçoada às características de uma grande cidade. O metrô traz possibilidades de contarmos histórias da subjetivação urbana e de políticas de mobilidade; desde os projetos que há muito tempo o sonhavam e que ainda são refeitos, passando por sua efetivação como intervenção urbana, nas obras que interferem na cidade; e ao atravessá-la todos os dias, carregando a população. Nosso procedimento daí em diante se dividiu então em dois momentos: um é a pesquisa bibliográfica, histórica e literária, que busca fragmentos que nos sirvam como peças na montagem das narrativas. Para isso, percorremos algumas marcações históricas que servem como balizas teóricas, sendo especialmente importantes aí, as concepções históricas de Michel Foucault e Walter Benjamin. Essas narrativas traçam imagens compostas também de experimentações realizadas, que não se justificam por qualquer pretensão experimental, no sentido científico de uma comprovação, mas sim no sentido de que a pesquisa não pode se esquivar de absorver algumas experiências que o pesquisador acaba por passar, no processo de pesquisa em um campo no qual ele mesmo vive. Nesse outro momento, nos propomos experimentar um uso diferente do habitual do metrô, ou seja, experimentar usá-lo sem a finalidade de ir a algum outro lugar específico, sem um destino pré-determinado: fazer viagens percorrendo as linhas um e dois, experimentar os encontros que acontecem nessa disposição diferenciada, mais lenta e atenta do que a que normalmente temos quando o usamos como meio de transporte, como mero deslocamento entre um ponto de origem e um destino. De algum modo habitar o metrô, demorar-se em seus espaços, observar, no sentido amplo de um corpo que se dispõe a errar nos itinerários demarcados, feitos para serem percorridos de modo rápido e certeiro. Impressões e experiências de cada viagem foram registradas e algumas puderam ser usadas nas montagens de nossas narrativas metropolitanas; outras foram válidas simplesmente como um modo de aproximação com o campo da pesquisa. Propomos uma prática experimental no sentido mesmo de afirmar a possibilidade de narrar a partir da experiência, de uma abertura, com certeza arriscada e difícil, mas possível, para encontros inesperados que ocorrem ao dispor-nos como passageiros – um corpo pesquisador que dê passagem à experiência, à escrita, à cidade. A experiência, a possibilidade de que algo nos passe ou nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempo que correm: requer parar para pensar, para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, 2004:160) Portanto usar o metrô, experimentá-lo nessa peculiar condição, de modo lento e atento em meio à circulação e à velocidade, à multidão indiferente que se esquiva, aos estímulos intensos que a todo momento chegam ao corpo do citadino passageiro. Experimentar a cidade exercitando esse gesto que interrompe a “atitude blasé” (SIMMEL,2005), tida como adaptação mental necessária na metrópole, a fim de evitar um estado mental insuportável de hiperestimulação. Um desafio de desassossego como o de Fernando Pessoa, que segundo Vianna (1999) faz um registro da cidade rejeitando as saídas da antipatia e da reserva, mas experimentando “os perigos típicos da metrópole”, movimentando-se na cidade de um modo em que entre esta e o indivíduo, entre o que seria objetivo e o subjetivo, já não se detectam fronteiras tão bem estabelecidas. Experiência urbana que não se confunde com mero relato do que acontece na urbe, ou aquele inventário de opiniões colhidas à cerca do que um e outro vivenciam na cidade, casos insólitos e histórias curiosas. Que não se restringe a uma simples e obsessiva descrição pormenorizada dos movimentos e dos espaços percorridos, mas que narre o constante “por à prova”, conflitualidade e perigo que nela se sente quando aquele gesto de interrupção se faz ato. Não o perigo anunciado do assalto ou da violência, (que no metrô carioca parece ser algo raro em meio a tantas câmeras e homens de farda negra), mas o perigo de se misturar com a heterogeneidade radical, perigo de se transformar, de provar, saborear sentidos outros que na velocidade não se encontram. Narramos experiências urbanas, dispostos a testar outros sentidos para as vias sinalizadas, que pedem que se esteja atento às linhas de fronteiras, às placas, às mensagens imperativas, apenas para que o destino não se perca. Na contramão daquilo que é a utopia de uma cidade ordenada, urbanizada de modo a fazer circular e jamais errar, transitar sem que se contagie com aquilo que passa ou que está perigosamente parado em uma esquina, ou sentado em uma sarjeta, ou mesmo em olhares anônimos que viajam a nosso lado. Experimento transdisciplinar inspirado, entre outros, no que Vianna faz ao por em interlocução Simmel e Pessoa. Algo de uma estranha arte literária e antropológica irrompe em registros desassossegados que o poeta português pode fazer, ao experimentar a metrópole de um modo terno, desafiando aquela indiferença que o sociólogo austríaco anunciava como caráter do homem metropolitano, no inicio do século XX. Talvez essa arte tenha um nome ou uma chave: ternura. Fernando Pessoa, em seus instantes mais otimistas, nos propõe uma antroplogia terna, que parta do princípio de que somos transeuntes ‘de tudo’, de que nada nos diz nada, e de que muitas vezes é um tédio de nojo’ (e não a educada simpatia de Simmel) que nos liga a nossos semelhantes, mas que possa, apesar de tudo (e não superando tudo), criar um espaço de compreensão do modo de vida e da visão de mundo dos Outros. (VIANNA,1999:118) Assim, estamos aqui para narrar uma viagem em que o leitor foi chamado a ser também passageiro. E como parece ter aceitado, cabe o aviso: pisemos devagar, pois como na roda de samba, entramos em territórios demarcados, com regras próprias e fronteiras muitas vezes implícitas. Mas não vale a pena resistir a entrar na roda, dela saímos com “muito o que contar”... II : HISTÓRIAS, NARRAÇÃO E EXPERIÊNCIA NA CIDADE DOS POETAS. Nessas andanças pelos espaços do metropolitano privilegiei mesmo os horários de pico. Momentos do dia que nos remetem diretamente ao mundo do trabalho, esse principal regulador da vida urbana, e à experiência da multidão. Esta continua a ser fascinante e assustadora, mas cada vez menos a cidade nos oferece oportunidade de estar em meio a ela. Cotidianamente só as horas de rush nos dão a certeza de encontrar as multidões urbanas. De preferência nas regiões onde há comércio e certamente nos arredores das estações de metrô. Nele a multidão é carregada de modo veloz, sem as interrupções do tráfego, sem os engarrafamentos. Por definição o metrô se diferencia do trem comum pela constância, os carros estacionam nas estações, nem tão distantes uma da outra, a cada cinco, seis minutos. É o trem tipicamente urbano, emblema da mobilidade, sonho das cidades que almejam entrar no rol de metrópoles modernas. Dentro do vagão tem-se a rara experiência de estar em meio a uma massa inerte. Paradoxo do transporte coletivo, que locomove num breve momento em que para se movimentar é preciso estar parado. Mas aqui essa experiência é ainda mais rara pelas condições especiais do ambiente. A estação já é um outro lugar muito diferente da cidade, sobretudo as estações subterrâneas da linha um. O ordenamento e a segurança desses lugares de algum modo possibilitam que a multidão que agora o ocupa mantenha-se como aglomeração de indivíduos em geral bastante dóceis. Na fila para a venda de passagens os usuários são chamados por um breve sinal sonoro emitido de um letreiro digital que mostra o número do guichê disponível, como aqueles usados nos bancos. Estou dentro do longo caminho demarcado por faixas multicoloridas dispostas em zigue-zague. Uma espécie de “curral” que organiza a multidão numa fila coerente e racionaliza o uso do espaço do mezanino – como se chama esse setor entre a rua e a plataforma de embarque. Em outros momentos, em que a estação não está cheia e nem mesmo existe fila para comprar o cartão de embarque, há quem faça todo o longo percurso desenhado pelas faixas até o guichê. E há quem faça cara feia quando um ou outro, como eu, passa direto pela lateral, evitando o inútil e estranho percurso no vazio, movimento realmente um tanto ridículo. No metrô carioca parece que a obediência às fronteiras imperativas é maior do que em outros espaços da cidade. Mas no meio da fila com os outros, por volta de oito horas da manhã, resta obedecer ao curral repleto de gente. Alguns já catam suas moedas e separam o dinheiro da passagem de metrô mais cara do país. Todo tempo economizado será lucro nesse ambiente acelerado! Ao lado da longa fila uma funcionária da empresa anuncia a tentadora oferta aos apressados e /ou impacientes enfileirados: ela vende ali fora o cartão no valor de dez passagens. Melhor: é recarregável e não tem prazo para uso, diferentemente dos cartões unitários comuns que precisam ser usados em no máximo dois dias. (Algumas estações sustentam em suas paredes painéis adesivos gigantescos, deduzo uns cinco ou seis metros de altura, avisando em letras garrafais que os cartões são válidos apenas por dois dias.) Uma mulher comenta a “cara-de-pau” de haver um caixa ambulante que só vende esse tipo de passagem em pacote. Aparecem somente nos momentos oportunos, quando vale a pena despender um funcionário apenas para oferecer ainda mais agilidade aos usuários, de certo modo lembrando-os de que “perdem” preciosos minutos ali, naquela fila que marcha ziguezagueante. Em volta passam direto todos que já compraram sua passagem antecipada ou os trabalhadores munidos de seus vale-transportes eletrônicos, assim como idosos e estudantes que têm gratuidade. Dessa seleta fila podemos apenas ouvir as inúmeras catracas contando a passagem de cada passageiro, o retumbar dos trens chegando e partindo la embaixo, sua sirene confundindo-se com o sinal do letreiro eletrônico, mirado atentamente pelos que vêem sua hora chegar... Ela soa chamando o próximo – 03. Um senhor se dirige ao terceiro guichê e diz à vendedora : bom dia! Olha, eu tô desempregado e tá faltando vinte centavos da passagem, pode ser? Pra meu espanto a moça na bilheteria diz que não há problema, e lhe dá o cartão unitário. O homem agradece e parte no fluxo da multidão... - 03... *** A história não é tão homogênea como às vezes pode parecer, ela é muito mais porosa, imperfeita, do que lisa e coerente como uma verdade. E o que dizer então da cidade? O Rio de Estácio de Sá nunca foi o mesmo de Getúlio Vargas, tampouco é esse mesmo que habitamos hoje. Mas ainda poderíamos recontar o Rio deles através de outros personagens menos conhecidos. E se ainda há histórias da cidade para serem contadas é porque o artifício é sua alma, sua força intensa e drástica está justo no fato de que ela é o que já não se pode chamar de natural, mas invenção, produção, maquinaria a desmontar os tempos que a natureza oferece gratuitamente. No urbano toda natureza se subverte, nele a magia de um mundo coerente, contemplável na distância da obediência ao desconhecido e sagrado, foi desmistificada pelo saber da razão que ilumina. O tempo cronometrado quebra em segundos e minutos o degradê incerto do sol, instaurando ritmos maquinais, fabris, à vida cotidiana e ao corpo que não pode errar em seus movimentos. A luz que ilumina noites e subterrâneos é a marca homogeneizadora dos espaços urbanos, retirando deles as incertezas da escuridão e da penumbra, insinuando um território que se quer livre pelo alcance de um olhar que enxerga e calcula, e que já não tem tempo para qualquer contemplação. Sobre as mudanças trazidas às cidades européias, com o surgimento da luz artificial a partir do século XIX, ver Roncayolo (1999). Estamos falando portanto não da cidade como objeto que se transformaria no decorrer dos séculos, mas de uma certa cidade que emerge em determinado momento histórico - a urbanização marcando um corte que se precisa visibilizar como algo que não é jamais uma evolução, superação das antigas cidades medievais. Certamente a cidade urbanizada guarda algumas características passíveis de generalização, não por serem sua essência, mas por falarem de modos de gestão que nos últimos séculos atuam sobre ela como objeto de estudo e portanto, de poder. A irrupção do tema do urbano na cidade só pode ser compreendida se vista numa perspectiva que desconsidera qualquer continuidade no que diz respeito à história da cidade. Ou, dito de outra forma, a história da cidade não é a história do urbano. Epistemologicamente, o urbano deve ser visto como ruptura, momento novo onde os discursos sobre a “cidade” serão a tentativa de formar um novo objeto. [...] Por isso mesmo não se pode dizer que ele seja “natural’ da cidade, isto é, tenha surgido com a cidade: onde existe a cidade não existe necessariamente o urbano; mas onde existe o urbano existe a cidade. (PECHMAN, 1993:126) No urbano não lidamos simplesmente com um certo espaço material de convivência, de encontros e trocas, mas com um espaço abstrato, construído no atravessamento de processos econômicos e sociais diversos, pautados por um tempo que também se tornou abstrato. No tempo da produção, da mercadoria e da técnica a velocidade virá impor ao espaço organizações específicas em função de um controle que concatene as forças produtivas de um modo ordenado. Não cabe buscar as origens de uma cidade que hoje viveria uma ordem urbana, imaginando que sua história primordial viria encontrar os sentidos disso que contemporaneamente está posto. É preciso não embarcar na ilusão dos nomes - eles se mantêm, denominam supostamente a continuidade de algo que se transforma, mas os objetos são outros, nenhum sentido original permanece subjacente. A história descontínua se esquiva da ânsia de descobrir a essência original da coisa, numa busca na qual o que se encontra de fato “é a discórdia entre as coisas, é o disparate” (FOUCAULT, 2008b:18). Nenhum mito fundador determina as escolhas, batalhas e acasos que movem essa história. As lendas já perderam sua força, não se adequam ao modo de vida de um homem urbano que se quer racional. Ficam bem guardadas, sepultadas, nos recônditos ancestrais da História, lá atrás onde o passado se torna sempre ultrapassado, na distância marcada por um futuro sempre mais grandioso. Mas lá também onde a imagem de uma origem persiste sombria como a mãe velha da História, a quem deve o respeito dessa necessária distância, como garantia da evolução que supostamente lhe faz caminhar em linha reta e ascendente ao futuro. Essa História evolutiva enterra junto à cova profunda das lendas, todo um passado de lutas, rebeliões, insurgências, que redimidas, ruiriam os monumentos à memória dos que venceram, evidenciando-lhes o fictício. Se a origem prossegue sombria e tem lugar na superfície homogênea dessa História, é vista como negativo da luz que ilumina os monumentos mostrando-os perfeitos, marcos incontestes da conquista da cidade, da dominação do território e do tempo. É da emergência que partimos, do corte que a história produz no encontro de forças múltiplas, instáveis, dispersas, cujo sentido só pode remeter mesmo ao momento histórico no qual aparecem como algo novo e sempre inacabado. “A emergência é portanto a entrada em cena das forças; é sua interrupção, o salto pelo qual elas passam dos bastidores para o teatro...” (FOUCAULT, 2008b:24). Essa definição de Michel Foucault nos ajuda a perceber onde ele se aproxima de Walter Benjamin no que tange à concepção de uma história descontínua, e evitar mal entendidos no que diz respeito à questão da origem, que ambos tratam de um modo diferenciado, mas não tão distanciados. Benjamin traz justamente a noção de ursprung (que pode ser traduzida como origem) mas destacando nela a idéia de salto (sprung) para criar sua noção de origem como salto para fora da sucessão cronológica, como quebra na lógica da história cujo discurso é nivelador. Trata-se muito mais de designar, com a noção de ursprung, saltos e recortes inovadores que estilhaçam a cronologia tranqüila da história oficial, interrupções que querem, também, parar esse tempo infinito e indefinido (...) Parar o tempo para permitir ao passado esquecido ou recalcado surgir de novo (ent-springen, mesmo radical que ursprung), e ser assim retomado e resgatado no atual. (GAGNEBIN,2007:10) Assim, a origem (ursprung) que salta não é aquela presa como sombra monumental de um passado grandioso, mas se aproxima do conceito foucaultiano de emergência. São momentos de interrupção, de cesura, as lacunas que a história oficial não evidencia – uma pausa que interrompe criticamente a “marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo”. (BENJAMIN, 229:1996). Eles aparecem nos cortes que as promessas de antigas batalhas disparam ao as encontrarmos nas marcas deixadas na cidade, palco dos conflitos e batalhas cotidianas no qual as histórias, por menores que sejam, podem ter a força capaz de contar versões desestabilizadoras daquela superfície planificada da História contínua. Nas calçadas e bueiros de uma avenida como a Presidente Vargas, nas sarjetas de uma praça poderosa como a Cinelândia, nas escadarias profundas de uma estação do metrô, ou em tantos espaços ermos que restam como refugos dos projetos - vestígios da cidade lembram àquele que está atento que os heróis não deixam pegadas, já que transitam transcendentes, pelos altos pedestais de mármore e bronze e não na sujeira vulgar dos percursos cotidianos dos pedestres. Ali, como diria Certeau (2007) são os ordinários transeuntes que embaralham ordens utópicas e escrevem outras histórias de seu tempo em percursos inusitados. Nessa cidade dos anônimos os monumentos não narram apenas a suposta verdade dos heróis, mas servem também como escora dos mendigos, lar dos deserdados e poleiro dos pombos. Compõem a imagem de uma história feita de sujeiras inconfessáveis, errâncias malditas, estratégias insólitas, casuais encontros e conflitos, escusos jogos de poder, acordos abstratos em códigos novos, línguas desconhecidas e fugidias criadas entre as gírias e os estrangeirismos, inconstância jamais linear, caminhos tortuosos. A cidade que narra tais histórias é brava em sua intensidade, mas não se confunde com a bravura ingênua das estátuas em poses magnânimas, que ousam anunciar no império da morte um degrau na evolução do bem. Assim como a história descontínua que ela narra, a cidade não tolera ingênuos, até algumas árvores que sobrevivem no asfalto tiveram que aprender a transformar esgoto em seiva. Falamos aqui, com Benjamin e Foucault, de histórias que rejeitam as mistificações da evolução e da origem primeva essencial, que abdicam dos consensos, dos grandes marcos, querem justamente os pequenos desvios que trazem rupturas na constância dos discursos hegemônicos, se apresentando numa pluralidade de impensável homogeneização. Histórias, que no jogo político da “verdade” podem não ter visibilidade, mas que postas em foco, denunciam lacunas insuspeitas, quebras na lógica linear que supostamente reafirmam o sujeito como fundamento verdadeiro e natural de práticas privatizantes e hierarquizantes. A narração destas histórias se faz com uma certa atenção ao presente ao mesmo tempo em que uma rememoração escuta nele os ecos de um passado. É uma certa disposição, uma atitude que busca os limites históricos daquilo que nos faz sermos o que somos, e na qual vozes do passado nos tiram dos cômodos lugares de um saber neutro; insinuam que as batalhas ainda não terminaram, e que seu lugar é agora, nos cacos encontrados na sarjeta da história oficial. “O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história.” (BENJAMIN,1996:223) Portanto, para “contar a cidade” e recontar algumas de suas histórias, dispomo-nos um pouco como esse cronista que é também historiador, que habita as descontinuidades históricas e assim encontra e recolhe detalhes, fragmentos rejeitados ou esquecidos. Contar a cidade é contar as cidades que existem numa cidade, a heterogeneidade que a constitui. Forjar mosaicos narrativos entendendo que essa operação vale-se muito menos das histórias monumentais, da suposta verdade que elas determinam, mas de todas aquelas outras que tenham a força de abalar justamente essas certezas oficias que insistem em desqualificar como ficção tudo o que pode ameaçá-las. Narrar deve ser então uma experiência em que ficção e realidade não estão separados de modo tão claro, já que existem sempre inúmeras versões ou modos de contar. Se a cidade está aberta como a história, poetas urbanos podem ser também “historiadores”. Continuemos, então, caminhando com eles. Carrancas do São Francisco As carrancas do rio São Francisco largaram suas proas e vieram para um banco da Rua do Ouvidor. O leão, o cavalo, o bicho estranho deixam-se contemplar no rio seco, entre cheques, recibos, duplicatas. Já não defendem do caboclo-d'água o barqueiro e seu barco. Porventura vem proteger-nos de perigos outros que não sabemos, ou contra assaltos desfecham seus poderes ancestrais o leão, o cavalo, o bicho estranho postados no salão, longe das águas? Interrogo, perscruto, sem resposta, as rudes caras, os lenhados lenhos que tanta coisa viram, navegando no leito cor de barro. O velho Chico fartou-se deles, já não crê nos mitos que a figura de proa conjurava, ou contra os mitos já não há defesa nos mascarões zoomórficos enormes? Quisera ouvi-los, muito contariam de peixes e de homens, na difícil aventura da vida de remeiros. O rio, esse caminho de canções, de esperanças, de trocas, de naufrágios, deixou nas carrancudas cataduras um traço fluvial de nostalgia, e vejo, pela Rua do Ouvidor, singrando o asfalto, graves, silenciosos, o leão, o cavalo, o bicho estranho... (Andrade, 1986:165) As carrancas de Drummond não conseguem dizer das histórias fantásticas às quais um dia foram testemunhas; histórias que se perderam na correnteza seca e veloz da vida moderna. Ele, poeta urbano que é, pergunta às carrancas, expostas como relíquias ancestrais em um banco do Rio de janeiro, por um passado dos qual já não se pode ouvir contar, relegado à distância enevoada dos mitos. As estatuetas que serviam como proteção e ornamento às barcas de remeiros que percorriam o rio São Francisco, entre meados dos séculos XVIII e XX, (NEVES, 2003) têm agora um valor folclórico. Expostas no salão, talvez protejam dos assaltos ou de “perigos outros” supõe o poeta, tentando perscrutar algo de mágico na presença inquietante das figuras de proa em plena metrópole carioca. A imagem silenciosa e grave das carrancas arrancadas dos barcos, tornadas peças de museu, anunciam sim, diria Walter Benjamin (1996), o fim da “arte de narrar”. O modo tradicional de narração naquelas sociedades que ainda se organizavam por uma temporalidade contínua, no compasso lento e contemplativo da produção artesanal. Tempo no qual se valorizava a sabedoria - saberes práticos que podiam e deviam ser transmitidos, de geração em geração, tecendo e conservando um universo histórico e cultural compartilhado. A experiência (Erfahrung), cultivada coletivamente, sustentava um modo de vida comum, ao qual os narradores recorriam para contar suas histórias. Hoje esse universo já não se compartilha,e os narradores tendem a desaparecer. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narra devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e alienável: a faculdade de intercambiar experiências. (BENJAMIN, 1996:200) Um dos “representantes arcaicos” dentre os grandes narradores anônimos da tradição oral é, segundo Benjamin (1996), o marinheiro comerciante, o marujo que em seu ofício de navegar recolhe experiências de outras terras e povos distantes, com os quais faz comércios, permutas. Mas também das águas salgadas e doces pelas quais se aventura, repletos de seres misteriosos e temíveis, perigos e surpresas às quais respeita por desconhecer. A narrativa do navegante, mesmo que por vezes se insinue em heroísmos e bravuras, seria marcada pelo reconhecimento de sua fragilidade frente o desconhecido, desvelado aos poucos, mas nunca totalmente, no encontro com o estrangeiro e com forças insólitas de uma natureza ao qual respeitava e temia. O tempo do antigo navegador (assim como o do camponês, outro mestre narrador, por sua vez sedentário, ligado à terra) era regido pelos caminhos confiáveis e distantes do sol e das estrelas, que de todo lugar se deixam fazer de guia. Ele podia narrar, pois contava histórias de um mundo experimentado por ele, mas que se compartilhava com todos, já que a matéria de suas palavras era a mesma que compunha a vida dos ouvintes. Como bom narrador, sabia dar conselhos, entendendo, como Benjamin, (1996:200) que “aconselhar é menos responder uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada.” Ao narrador não se exigia explicações. Havia um lugar importante mesmo para as fantásticas “histórias de pescador”, para além de qualquer julgamento de verdade. Elas ensinavam, traziam alguma utilidade prática, eram portanto legítimas. A carranca na proa do remeiro lembrava os perigos que se podia encontrar, e aconselhava-o a continuar viajando, preservando na memória coletiva experiências que precisavam continuar sendo contadas e recontadas. Mas há muito ela deixou o barco, assim como os mistérios que conjurava, um a um, vão sendo desfeitos; os narradores, raros, já não têm com quem contar e a sabedoria se extingue. Porém esse processo vem de longe. Nada seria mais tolo que ver nele um ‘sintoma de decadência’ ou uma característica ‘moderna’. Na realidade, esse processo, que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo da uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução secular das forças produtivas.( BENJAMIN, ibid:201) As transformações que o capitalismo introduziu na vida cotidiana, que passa gradativamente a acompanhar os tempos de produção impostos pela técnica, minam o solo antes seguro da tradição, aumentando a distância entre quem narra e quem ouve, já que parece não haver mais tempo e nem palavras em comum. A cidade urbanizada desfaz as antigas comunidades, regulando racionalmente os espaços e as trocas sociais. O ritmo fabril, fragmentado e veloz, inaugura uma outra relação com o tempo – surge o tempo calculado do relógio, da produção, que se experimenta de modo muito diverso daquele contínuo e contemplativo. O trabalho racionalizado impõe a abstração de movimentos, a reflexão e o planejamento de acordo com funções específicas, operacionais. Palavra e gesto serão apartados no corpo reduzido à sua efetividade mecânica. Na relação fria com a máquina, o gesto se automatiza, já não se liga à palavra ou ao pensamento, como o artesão que dava forma à matéria diretamente com as próprias mãos. O papel da mão no trabalho produtivo tornou-se mais modesto, e o lugar que ela ocupava durante a narração está agora vazio. Pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervêm decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito. BENJAMIN (Ibid:221) A disciplina fabril adestra o corpo do artesão, desqualifica sua produção lenta e imperfeita, baseada na experiência, fazendo-o funcionar como corpo operário – funcional, restrito a movimentos precisos cujo sentido só aparece no consumo do produto bem acabado. Na experiência artesanal há o que ser dito, a feitura da obra conta uma história que se dá na relação sensual entre a mão e a matéria que ela molda. Na fábrica não há essa relação, a mão desconhece as sutilezas do que manipula; ela opera repetições instrumentais numa matéria dominada por um saber que lhe é exterior. Em fins do século XIX as inovações técnicas já estão de tal modo presentes no cotidiano das cidades, que a perda que elas traziam já se podia sentir. A Europa que se industrializava assistia o rápido crescimento da população nos centros industriais, a expansão e urbanização das cidades, o surgimento das primeiras metrópoles. Benjamin vê no estilo de vida da burguesia da época uma reação à derrocada das referências tradicionais da Erfahrung, na valorização dos espaços privados, na criação de refúgios intimistas ao homem desenraizado, em... “...um duplo processo de interiorização. No domínio psíquico, os valores individuais e privados substituem cada vez mais a crença em certezas coletivas, mesmo se estas não são nem fundamentalmente criticadas, nem rejeitadas. A história do si vai, pouco a pouco, preencher o papel deixado vago pela história comum.(...) Benjamin situa nesse contexto o surgimento de um novo conceito de experiência, em oposição àquele de Erfahrung (Experiência), o do Erlebnis (vivência), que reenvia à vida do indivíduo particular, na sua inefável preciosidade, mas também na sua solidão. Essa interiorização psicológica é acompanhada por uma interiorização especificamente espacial: a arquitetura começa a valorizar, justamente, o “interior”. A casa particular torna-se uma espécie de refúgio contra um mundo exterior hostil e anônimo.” (GAGNEBIN, 2007:59) A urbe demarcará fronteiras claras entre público e privado, repartidos em dois mundos opostos, um perigoso e instável, o outro seguro e fixo. Paradoxalmente, as aglomerações urbanas terão como efeito uma redução das possibilidades de encontro aos círculos familiares, privados, na segurança dos “interiores”. Por outro lado, na urbe que se constituía tendo como modelo a fisiologia da circulação, o ‘corpo’ da cidade saudável é feito de indivíduos em movimento, assim como mercadorias, informações e todos os fluxos que a interligam. Circular livremente significará também banalizar, menosprezar os encontros que se dão nesse espaço de fluidez e velocidade, enfraquecendo a potência política da cidade como espaço de encontros. Esse indivíduo da Erlebnis vivencia experiências na solidão de suas escolhas, libertas de qualquer outro que interfira em seus caminhos e projetos, mas também desprovido de conselhos. As vivências são recolhidas como peças caras que se encaixam na feitura de uma identidade estabilizadora, que compense a ausência de parâmetros tradicionais, coletivos, no turbilhão inquieto da vida urbana. Corpos individuais que transitam pela cidade tornam-se cada vez mais desligados dos lugares em que se movem e das pessoas com quem convivem nesses espaços, desvalorizando-os por meio da locomoção e perdendo a noção de destino compartilhado.(SENNET, 2008:326) Cada homem terá a liberdade de mover-se, escrevendo suas próprias histórias solitárias, em meio à multidão, em viagens pelas artérias e vias urbanas; ou naquelas puramente imaginárias, ainda mais íntimas e seguras, que só no conforto do lar tem seu lugar. O indivíduo passa a carregar em si um mundo particular e rico, inalcançável ao outro, confortável, ainda que conflituoso, que alimentará a literatura da época. O romance, com seus heróis solitários, mergulhados nas fantasias e desventuras do eu, é o primeiro indício, diz Benjamin (2006:201), do desaparecimento do narrador. Em busca do “sentido da vida”, o romance se fecha no grand finale, que não convida o leitor a ir adiante na história, mas sim à introspecção, à reflexão interior, ao mergulho nas riquezas de sua própria alma. Contudo, será a informação, o modo de comunicação instantâneo da notícia, que ameaçará ainda mais a narrativa, assim como o próprio romance. Seu valor está na novidade; sua força na clareza imediata e ágil, auto-explicativa, que não exige do leitor nenhuma participação, nenhuma memória, imaginação ou conservação. Ela move-se e extingue-se com a rapidez necessária para homens que não tem muito tempo a perder com o que logo se tornará supérfluo. No entanto, declarar o fim da “arte de narrar” com a dissolução da experiência coletiva na vida capitalista e moderna não se justifica como uma perda irreversível, e puramente nostálgica, de um passado que se quisesse reconstituir ou lastimar. Benjamin (2006) aponta sim para outras possibilidades de narrativa a serem forjadas em nosso tempo, com todas as limitações que a vida fragmentária e individualizante impõe, mas que escapem à redução empobrecedora da vivência, da experiência sedutora de um eu entronizado no seu reino interior. Tais narrativas terão que recusar a tentativa de restauração de uma plenitude obediente à tradição, hoje arruinada, (não obstante ser a todo tempo ofertada como produto, em amostras consumíveis, descartáveis, para a curiosidade turística Segundo Bauman (1998), o turista é uma imagem do consumidor contemporâneo, da sociedade de consumo, para o qual consumir é viajar livremente, se movimentar numa busca constante e inquieta de novas sensações, logo suplantadas por outra atração que encontra em seguida, e assim indefinidamente: “... caçadores de emoções e colecionadores de experiências, (...) eles percebem o mundo como um alimento para a sensibilidade, uma matriz de possíveis experiências, (...) e o mapeiam de acordo com elas.”). Recusarão, sobretudo, a segurança encarcerada do eu, sempre fortalecido, ainda que multiplicado em inúmeras formas que se intercalam ao sabor do mercado das subjetividades. Tarefa árdua, mas necessária do historiador, será recolher nos escombros da narrativa perdida a possibilidade de rememoração que faz o passado assaltar o presente. Tal rememoração implica uma certa ascese da atividade historiadora que, em vez de repetir aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras. A rememoração também significa uma atenção precisa ao presente, em particular a estas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não esquecer o passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente. (GAGNEBIN, 2006:55) Nesse sentido, a ausência da experiência coletiva, essa mudez que diz muito, aparece como corte no presente que se quer pura passagem, caminho vazio para um futuro sempre mais grandioso. O passado cavado no presente vem acordá-lo do sonho infinito e utópico da evolução, e restituir seu caráter radical de agora (BENJAMIN,1996:229) plano de ação e atualização histórica. Abrindo esse buraco na história progressista a miragem teleológica esvaece, restando a materialidade suja e porosa, nem um pouco acabada ou compacta, de histórias, no plural. Histórias sujas porque nenhuma assepsia de neutralidade científica ou filosófica se encontra nelas, apenas alguns rastros que ficaram na memória de povos inteiros, marcas de sangue que não se apagam, pois de algum modo estão inscritas nos corpos de seus descendentes. Porosas, pois não encerram qualquer verdade impermeável, a desqualificar outras versões, elas coexistem e se atravessam, evidenciando a multiplicidade de forças históricas díspares movidas por homens anônimos, acasos e acidentes - muito além dos grandes heróis que parecem convergir o destino de todos em direção à verdade histórica, que ele simboliza. Essa escavação está atenta aos vestígios de vidas e batalhas que ainda não foram contadas, ou que foram esquecidas, mas que exigem de quem as encontra a ousadia de imaginar um outro presente, já que tampouco o passado que supostamente o determinou é conhecido totalmente. Ao historiador cabe narrar o passado não em busca de causas, pois seu ato de recolher histórias expõe as forças vivas no presente,“exatamente aquele presente em que ele mesmo escreve a história.” (BENJAMIN, 1996:230) Essa é também a tarefa que Foucault (2006) chama “atitude de modernidade” – uma “extrema atenção” ao real, às fronteiras que agora delimitam o que chamamos liberdade. Esses limites são testados pela memória atenta ao presente, que reconta acidentes e lutas que os construíram, de modo a evidenciar seu caráter artificial. Essa desnaturalização das fronteiras que determinam nossa atuação como sujeitos da história no presente, abre possibilidades de ruptura, e convoca uma “atitude experimental” (FOUCAULT, 2006:348). Uma experimentação que é prática, local, e que testa problematizações levantadas pela pesquisa histórica na atualidade, pondo em questão os modos de constituição de nós mesmos como sujeitos. Ora, testar os limites do atual só é mesmo possível se o tomarmos criticamente, (e portanto ao próprio sujeito), não como produto de uma evolução natural, mas como artefato, produção, montagens estratégicas e fragmentárias em meio às contingências e ao acaso. O sujeito da história é confrontado em suas fronteiras definidas por uma razão obediente, profanando o tempo homogêneo que nivela diferentes versões à verdade histórica universalizante, cujo sentido é sempre o futuro. No que nos é apresentado como universal, necessário, obrigatório, qual é a parte do que é singular, contingente e fruto das imposições arbitrarias. Trata-se, em suma, de transformar a crítica exercida sob a forma de limitação necessária em uma crítica prática sob a forma de ultrapassagem possível. Desse modo ele pode ser transfigurado, experimentado por sujeitos aos quais um incômodo persiste em forçar que se pensem como produto e produtor de seu próprio tempo. (FOUCAULT, 2006:347) Se a carranca no salão que Drummond interroga, testemunha e proteção dos navegantes do Velho Chico de outros tempos, é a imagem de uma experiência coletiva perdida, o que ele procura são as histórias incríveis daquele passado esquecido. Quisera ouvi-las em plena metrópole carioca. Mas e em vão, as palavras não vieram junto com ela para a cidade grande, ficaram nas águas passadas do longínquo rio, na proa abandonada... Porém, tomado pela nostalgia de um mundo desconhecido, que se apresenta à sua frente em fragmentos, eis que o poeta vê, aqueles “bichos estranhos” movendo-se pela via carioca. O que pode querer ele, ao nos convidar a mergulhar no “traço de rio” marcado nas esculturas, imaginando em meio a concretude cinzenta do asfalto uma cena surreal como essa? Há um corte. Outra imagem se apresenta nessas carrancas urbanas, que circulam graves e silenciosas, no centro da cidade do Rio de Janeiro. O poeta experimenta uma abertura ao passado nas peças que o encaram sem nada ‘dizer’, mas fazendo sua imaginação despertar no presente, vazando pela cidade afora, indica uma abertura na história narrada. Resgate suas radiografias antigas, que estão guardadas nas profundezas daquele armário onde se amontoam todas as coisas das quais não se quer desfazer, mas que tampouco são usadas. Certifique-se de que elas não têm mais nenhuma utilidade aparente na sua vida, nem terão na sua morte. Já não servem para contar a história médica de como seu pulmão vem se degradando, (e o médico pedindo que pare de fumar “pois assim terá pouco tempo de vida”); ou como foi feia aquela ruptura de ligamentos há anos atrás, quando ainda não era totalmente sedentário e arriscava o “futebol com os amigos no fim de semana”; ou ainda aquela outra, maior, que precisou fazer quando as dores nas costas o deixavam torto e calado, como o berimbau velho e sem arame que também ocupa um espaço no armário empoeirado, repleto de lembranças escondidas. Tais radiografias que expõem seu corpo por dentro serviram para que dores e doenças fossem investigadas, mas agora interessam apenas porque são resistentes, translúcidas, flexíveis e ajudarão você a fazer outras coisas de seu corpo. Um poeta e sua literatura querem sempre algo mais, algo que só aparece quando o leitor a encontra, disposto compartilhar e ao mesmo tempo romper os limites do que é narrado. É preciso continuar imaginando, arriscar ir além na escrita inacabada, numa história interrompida, não para dar-lhe um sentido majestoso e definitivo, mas para encontrar outros caminhos insuspeitos, perturbando a apatia de um pensamento linear e solipsista. Assim, ainda que o poeta narre uma experiência que, possivelmente, tenha sido realmente vivida por ele; ainda que inicie a narrativa com versos que até parecem a chamada de uma (estranha) notícia, ele não sucumbe ao cárcere do eu e tampouco põe um ponto final no que diz, no sentido de fechar um pensamento e coroar uma forma poética perfeita. Ele narra uma experiência de estranhamento, uma abertura que se faz em seu encontro com objetos de um passado do qual não tem senão vestígios, informações históricas ou folclóricas. Ele se faz poroso, não para absorver das imagens um mistério que venha definitivamente alimentar qualquer solitude interior, mas para experimentar, na incongruência de carrancas expostas num banco, a força atordoante que o passado ainda pode ter no presente. E se é assim, ele lança as carrancas diretamente às ruas, não pode guardá-las dentro de si, desafia o leitor com uma imagem inquietante, inexplicável, que não podemos justificar como simples capricho de um poeta. Há que se aceitar suas reticências como o conselho do narrador: a história continua para quem sabe lê-la. Encontre na Internet e imprima em preto a fotografia do governador de seu estado, aquela que espalhou-se pelas ruas nas últimas eleições, saturando a todos com seu falso sorriso jovial, criado no photoshop. Dele, nos será útil apenas o terno bonito e caro que usa, naquela pose semi-diagonal em que se dispõe, mostrando o alinhamento do candidato que rejuvenesce a cada quatro anos. Então recorte a cabeça, ela não nos interessa, fique apenas com o tronco e a pomposa vestimenta que o adorna. Agora precisamos de uma boa cabeça de boi, busque uma que tenha um belo par de chifres, que apresente uma iluminação com contrastes bem definidos e um “olhar” desafiador. Ela precisará encaixar no corpo do governador, portanto, tenha paciência e encontre a escala correta antes de imprimir, cuidando para que a impressão seja feita em alto contraste. A literatura inacabada, assim como a história fragmentária, ensinam-nos a persistir subvertendo uma leitura que se quer decodificadora, que não ousa nada mais que o esgotamento de informações em busca da verdade plena ou do sentido único. E na cidade, a palavra poética que experimenta imaginar e testar fronteiras, aparece sugerindo leituras errantes, embaralhando os itinerários seguros e os percursos retilíneos, supostamente ordenados, em circulação. Retorcendo a língua, testando seus limites no espaço urbano, oferece caminhos inseguros, porque desconhecidos, no pensamento e na cidade, mas necessários àqueles não resignados à perfeição fechada e entediante do círculo. Entendemos agora o valor insubstituível da errância e do erro nesse itinerário da cidade e no pensamento. Somente a experiência do errar, em todos os seus sentidos, nos faz apalpar, como que pelo avesso, a experiência de uma verdade que não seria, primeiramente, a coerência de nosso pensamento, mas sim o movimento mesmo de sua produção: hesitante, avançando ‘aos solavancos e aos pedaços’ (Adorno), abrupto, atravessado por ritmos diversos. Errar é, simultaneamente, perda das referências conhecidas e aprendizagem do desconhecido, apavorante e apaixonante.” (GAGNEBIN,1996:245) Poesia urbana, abrindo imagens da cidade em experimentos metafóricos, serve-nos como guia à cidade heterogênea, aberta, que nunca conhecemos totalmente já que nela nada é fixo, nem repetitivo, mesmo nos movimentos habituais. O que quer um poeta se não que seu pensamento desdobre-se, corrompa-se, provocando o leitor em seu descanso, tirando-o da previdente da solidão expectadora? De posse da cabeça de gado e do corpo de terno, cole-os, adquirindo uma nova forma, um homem-boi, uma espécie de “minotauro contemporâneo”. Ponha em cima da figura um papel vegetal, e decalque nele com uma caneta nanquim somente as sombras da imagem e tudo o que for muito escuro: o paletó, as reentrâncias da orelha e narinas, a dobra da gravata, a face sombreada, etc. Abaixo do terno escreva com letras bem legíveis a frase – VIDA DE GADO. Separe. Outra folha de papel vegetal deverá ser usada sobre a figura, agora riscando, também com nanquim, as partes iluminadas e brancas do homem-boi – os chifres, o focinho, a camisa, a face esquerda, etc. Por fim uma terceira folha será decalcada com as partes que não são nem brancas nem pretas, o meio termo entre a luz e a sombra. Sobrepondo as três folhas, as marcas negras se complementam, delineando uma forma compacta e sombria de nosso estranho personagem. Longe das artes do espetáculo “À medida que a necessidade se encontra socialmente sonhada, o sonho se torna necessário. O espetáculo é o sonho mau da sociedade moderna aprisionada, que só expressa afinal o desejo de dormir. O espetáculo é o guarda desse sono.” (DEBORD, 2007:19), que servem como diversão catártica e anestesiamento massivos, tal literatura não é passatempo, pelo contrário, sacode o pensamento e acorda-nos do sono em vigília, do hábito, do automatismo que faz o gesto desconhecer a palavra que sai da boca. Seu tempo é o da criação, o que requer uma atenção ao presente, uma parceria entre corpo e tempo, rara e trabalhosa, sem dúvida. A vida acelerada da contemporaneidade, não por puro acaso, nega essa atenção ao presente, quer vencê-lo. Fazendo-o passar - no entretenimento e no lazer, ou ultrapassando-o - no trabalho e todos as demais competições cotidianas. Mas a poesia inacabada, que testa as fronteiras do sujeito, não é para quem dorme, requer corpos cujo pensamento estejam sedentos de algo mais que livrar-se do supérfluo e da tensão cotidiana. Corpos capazes de reverberar algo além do que seu próprio temor ou gozo, que ousem experimentar viagens não programadas. Poesia pirata, feita para corpos passageiros, dispostos a navegar em mar desconhecido. Larrosa (2004) traça, a partir de uma análise etimológica da palavra experiência em diversas línguas, uma noção que definiria o sujeito da experiência como aquele que se dispõe como superfície de passagem, como abertura, pela qual o que passa deixa alguma marca, alguma transformação. Experiência é prova, no sentido de experimentar, mas também travessia, viagem e perigo. O sujeito da experiência teria um quê de pirata, que tem etimologicamente o mesmo radical. Assim, sujeito da experiência é também esse poeta, que escreve uma história aberta, convite ao passageiro, no sentido em que é uma viagem que pode carregar o leitor por caminhos distantes de si. A poesia quer, mais que o poeta, a quem cabe dar passagem e cavar os desvios numa linguagem que ainda se possa compartilhar. Sua criação pirata, penetrando as narrativas históricas, dilui os limites do que se pode chamar de verdade ou ficção, abrindo no presente possibilidades de desvio nas rotas supostamente definidas. Agora, pegue aquelas três radiografias, as folhas decalcadas, e leve tudo para a mesa de vidro da sala. Embaixo desta posicione o abajur, ligado de modo que a luz a - atravesse. Comece com a radiografia do pulmão. O papel vegetal que delineou as sombras e partes escuras ficará embaixo dela; cole-as com um durex para que fiquem firmes na mesa. O pulmão aparece misturado com as sombras do homem-boi, mas não atente para seu órgão. Você desistiu de se consultar com aquele doutor e prefere continuar fumando, ainda que agora esteja freqüentando como nunca as calçadas e sarjetas, desde que a lei anti-fumo o proibiu de usar tabaco em recintos fechados. A história do carbono no seu pulmão não está em foco, mas sim as sombras do “minotauro contemporâneo”, que em breve será mais um habitante das ruas. Sigamos, então, caminhando pela cidade dos poetas, continuemos nessa lúdica deriva que a literatura inspira. Façamos com que a Rua do Ouvidor do poeta brasileiro desemboque naquela “grande planície empoeirada, sem trilhas, sem gramado, sem um cardo, sem uma urtiga”, na qual Baudelaire (1995:283) é testemunha de uma imagem chocante. O poeta francês não apenas vê uma insólita cena, está imerso nela. Encontra e dialoga com homens que caminham curvados, carregados de pesadas e fantásticas quimeras, cada um levando a sua às costas. Mas a monstruosa besta não era um peso inerte, ao contrário, ela envolvia e oprimia o homem com seus músculos elásticos e potentes; ela agarrava-se ao peito de sua montaria, com suas duas vastas garras e a cabeça fabulosa sobrepunha-se à fronte do homem, como um desses capacetes horríveis com os quais os antigos guerreiros esperavam aumentar o terror dos inimigos. (BAUDELAIRE,1995:283) Espanta-se ao perceber que o monstro mitológico entranhado como um parasita no corpo de cada um dos homens viajantes não os incomoda, nem os irrita, como se “fazendo parte deles mesmos” (BAUDELAIRE, 1995:283) que caminham sem saber bem para onde, fatigados, sérios, ensimesmados, resignados, impulsionados por uma “invencível vontade de andar”. O cortejo passa por ele, vão para o “algum lugar” desconhecido, além do horizonte, deixando perplexo o poeta, ainda que por pouco tempo. “E durante alguns instantes eu me obstinava em querer compreender este mistério, mas logo uma irresistível Indiferença se abateu sobre mim e eu fiquei mais pesadamente oprimido do que eles próprios por suas esmagadoras Quimeras.” (BAUDELAIRE, 1995:283) A cidade de Baudelaire era a Paris de meados do século XIX, da qual ele testemunhou a transformação brutal nas obras urbanísticas levadas a cabo pelo prefeito Haussman e pelo imperador Napoleão III, que a conceberam tendo como modelo o corpo humano. Desenvolveram a paradigmática relação entre a função da circulação do sangue no corpo humano saudável e uma circulação urbana que manteria a saúde da cidade. Esta seria atravessada por vias e artérias, ruas e avenidas que garantiriam sua saúde ordenada por fazerem fluir livremente os homens e os produtos. Essa nova Paris que se erguia sobre as ruínas da velha cidade medieval era, assim, revolucionária; os amplos bulevares davam espaço para um tráfego que fluía em velocidades jamais observadas. O ideal liberal se concretizava numa cidade na qual a liberdade de movimentos seria garantida – uma mobilidade específica, capaz de congregar multidão, velocidade, visibilidade e ordem, ou seja, a utopia de uma cidade saudável. Modelo que logo foi seguido por tantas outras cidades no mundo, ávidas pela modernidade que a capital francesa inaugurou, (entre elas o Rio de Janeiro do início do século XX). Baudelaire acompanhou essa transformação, narrada em seus escritos dessa época. Enquanto trabalhava em Paris, a tarefa de modernização da cidade seguia seu curso, lado a lado com ele, sobre sua cabeça e sob seus pés. Ele pode ver-se não só como um espectador, mas como participante e protagonista dessa tarefa em curso; seus escritos parisienses expressam o drama e o trauma aí implicados. Baudelaire nos mostra algo que nenhum escritor pode ver com tanta clareza: como a modernização da cidade simultaneamente inspira e força a modernização da alma de seus cidadãos. (BERMAN, 2007:177) Esse clima de assombro está evidente na prosa, que não faz referência específica à Paris, mas na qual podemos ver não apenas ela, mas uma cidade urbanizada qualquer, com seu chão empoeirado e sem vegetação, na qual homens curvados caminham apressados. Sem dúvida, um paradoxal deserto povoado, seco também pela pobreza de experiência de andarilhos ensimesmados, solitários. Eles não podem parar, mas nem mesmo sabem para onde vão, já que precisariam parar para pensar nisto! Passam rápidos, mas nada passa por eles, pois não podem perder tempo. O corpo obediente dos carregadores de quimeras não percebe nada além de seu impulso caminhante, estão imersos nas próprias fantasias, que levam cravadas como algo muito íntimo. É a hora do estilete, arrume um. Com firmeza e cuidado, corte na radiografia as partes desenhadas no papel vegetal que se destacam com a luz do abajur. Se tudo der certo, você terá uma matriz, ou “máscara”, como chamamos, das partes negras da imagem do homem-boi. Seu pulmão radiografado agora está cheio de furos. Já não é possível reconhecê-lo com tantas incisões, que darão passagem às sombras, ao terno e à frase. Faça o mesmo com as outras duas radiografias e papéis vegetais desenhados. Ao fim de tudo, você terá três máscaras – uma para aplicação da tinta preta, uma para o branco, e outra para a tinta colorida, o que conferirá uma boa tridimensionalidade à imagem. Se as carrancas são a imagem da ausência do narrador e aparecem carregadas da nostalgia de uma experiência coletiva perdida, a pesada quimera encravada no corpo do viajante é a imagem sombria de uma experiência urbana, moderna. Aqui não há saudade, e só o que há em comum entre os andarilhos é cada um estar igualmente montado por sua quimera particular, além do andar apressado numa direção precisa, mas que não se perguntam qual seja. Nada podem narrar já que nada lhes acontece, sua sensibilidade esta limitada pela fera que lhe toma todas as forças e que de algum modo espanta aqueles que se aproximam. Cada qual com seus sonhos particulares, que não podem compartilhar com mais ninguém, e pelos quais se escravizam resignadamente. Podemos dizer, com Simmel (2005) que tais andarilhos, como homens da cidade grande, protegem-se com sua atitude blasé, não reagem, se adaptam a um ambiente ao qual não vale a pena atentar ou reagir, pois ameaça sua integridade, sua individualidade. A essência do caráter blasé é o embotamento frente à distinção das coisas; não no sentido de que elas não sejam percebidas, (...) mas sim de tal modo que o significado e o valor da distinção das coisas e com isso das próprias coisas são sentidos como nulos. Elas aparecem ao blasé em uma tonalidade acinzentada e baça, e não vale a pena preferir uma em relação às outras. (SIMMEL, 2005:581) Como o céu de Baudelaire (1995), sua percepção é também acinzentada, nela nada se distingue, assim como o corpo do viajante protegido pela quimera é forte em sua insensibilidade. O blasé reserva-se, o mundo “lá fora” é indiferente, mas também repulsivo. A bagagem-capacete horripilante do andarilho blasé é pesada, mas carregá-la é o preço que se paga pela liberdade individual de ir e vir – no entanto, quase sempre continuam caminhando em círculos, no automatismo pesado de uma “irresistível indiferença” (BAUDELAIRE,1995:283) que não poupa nem mesmo o poeta. A quimera – metáfora da fantasia, do sonho, da utopia, foi acoplada ao corpo individualizado. Afinal o fantástico não tem mais lugar nas histórias do homem racional, científico, cosmopolita. As narrativas não mais alimentam mitos, realidade e ilusão foram separadas como dois pólos opostos e incompatíveis. No mundo interior caberia à fantasia persistir, desde que bem encarcerada na fortaleza da intimidade. Bagagem pesada que se precisa carregar para todo lado já que não se pode mais compartilhá-la com ninguém, tampouco parece possível livrar-se dela. Ora, que lugar melhor, então, para as carrancas urbanas nessa cidade de andarilhos autômatos, senão também no corpo forte e resignado? Onde mais encontrá-las aqui, longe das proas, no asfalto da grande cidade, senão agora como metáfora, na imagem do corpo individualizado e móvel, temeroso e reservado, do homem urbano, se protegendo não só dos assaltos, mas dos demais “bichos estranhos” (ANDRADE,1986:165) que habitam essa mesma cidade? As carrancas urbanas, se transitam pelas ruas, estão no rosto de homens e mulheres que fecham-se à experiência, ainda mais desafiadora, de encontro com a heterogeneidade urbana. Servem como proteção do viajante das ruas, em sua circulação cotidiana pretensamente previsível, mas intensa e muitas vezes chocante. O que se quer afastar com as carrancudas cataduras são os “perigos outros”, (Ibid.) perigos dos outros, da alteridade e da própria liberdade, que levada ao extremo, questionaria a mobilidade frenética que não é sinônimo de transformação, mas quase sempre produz anestesiamento e adaptação. Perigo da experiência intensa da multidão, do estranho que a todo tempo esbarra numa calçada ou com o qual se defronta, como se num duelo, nas travessias de sinais e nos “coletivos” transportes públicos. Perigo de se perder na caminhada, de errar o rumo, de sair do seu círculo. Carrancas urbanas afastam preventivamente tudo aquilo que ameace a individualidade carregada de fantasias privadas, antes que possam penetrar seu corpo com experiências as quais podem por em cheque todo o peso de sua bagagem opressiva. Compre sprays em loja de tintas, nas cores preta, branca, vermelho magenta, azul ciano, laranja e verde, bem vibrantes. Chame os amigos para a praça numa tarde de domingo sem chuva. Os do futebol talvez não apareçam, levam a sério demais a pelada que você teve que abandonar. Mas quem sabe você encontrará parceiros mais ousados, no caminho ou por lá mesmo. De todo modo haverá poucas pessoas na rua, é o dia em que quase todos descansam, mas ainda há muito trabalho a ser feito, aliás a melhor parte. E que seja feito à luz do dia pois na noite a experiência parecerá criminosa, escondida, se tornando por isso mesma visível aos olhos caçadores do ilegal na cidade. A luz solar os protegerá dos radares programados para detectar o proibido que só sai à noite. Além disso, sua claridade fará reluzir sobre você uma aura de artista, em seu dever inofensivo e admirável de “exprimir-se”. É bom que pensem assim, pois o deixarão em paz na labuta de compor outros corpos com a cidade. É domingo mas você tem muito trabalho... Em nossa montagem literária, carrancas urbanas, quimeras, máquinas, fantasias e ilusões, se confundem com corpos humanos que se defendem da cidade aberta, imprevisível, recusando-se a escrever outras linhas na própria vida e ativar a força histórica do presente; mergulhados nas suas próprias certezas, encurvados e oprimidos por algo que desconhecem em si mesmos e que tampouco conseguem ouvir como conselho dos companheiros de viagem. Mas outros mergulhos acontecem. O rio nunca é o mesmo, ainda que seco, e nele cabem piratas. Outras máscaras podem dialogar com as carrancas urbanas, supostamente mudas, e desfazer-lhe o temor e a sisudez, nem que por breves instantes. Quem sabe as carrancas urbanas não tenham também outras coisas a dizer em seu insólito passeio? Nada é tão definitivo numa cidade em que a poesia não foi dizimada pela pressa. Na segunda feira, a Praça Saens Peña amanheceu com algumas cores diferentes. Em cada uma das entradas subterrâneas para a estação de metrô, que se espalham por toda a praça, a imagem do homem-boi se repete em estênceis, grafitados em preto, branco e cores fluorescentes. Uma cabeça bovina de grandes chifres usa terno e gravata, sobre a frase – Vida de Gado. As cores berrantes são as mesmas que o metrô usa em seus anúncios informativos e publicitários. Nessa manhã, como em toda manhã pesada e preguiçosa de segunda; naquele espaço de tempo em que tudo é mais intenso na cidade, no qual as ruas estão mais cheias, por tanta gente que vai trabalhar... Nesse tempo tenso do rush, em que as carrancas urbanas se acirram, as escadarias do metrô são a extensão do rio seco do asfalto. Mergulham no subterrâneo em busca de rapidez essas multidões apressadas, terão elas tempo e corpo para enxergarem a “vida de gado” colorida? Ou será que entram pra baixo do asfalto tão automaticamente que o grafismo repetido nas muretas em volta se diluem em seu olhar acinzentado? O estêncil é um dos artefatos que compõe o arsenal de grafiteiros, na feitura de suas espalhafatosas artes de rua. Mas pode e é também usado sozinho, em imagens menores, menos pretensiosas, que não se alardeiam. Discretas, ficam perdidas em qualquer pedaço de concreto, chão, placa, ou tampa de bueiro. O estêncil não se pretende única e rara obra de um artista contemporâneo, já nasceu sem a “aura” da autenticidade Nesse contexto, a idéia de aura, como pensada por Benjamin, trata de uma certa dessacralização da obra de arte com o surgimento das técnicas de reprodução, como a fotografia e o cinema, que transformaram as concepções clássicas do que seja arte, seu alcance social, seu valor, etc. “Mesmo numa reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra. (...) O aqui e agora do original constitui o conteúdo da sua autenticidade, e nela se enraíza uma tradição que identifica esse objeto, até os nossos dias, como sendo aquele objeto, sempre igual e idêntico a si mesmo.” (BENJAMIN, 1996:167). Foi feito mesmo para ser reproduzido, montando com os diferentes espaços urbanos outras relações de visibilidade, uso e ocupação, não triviais. A imagem do estêncil pode ser pensada, desenhada e reproduzida numa cidade por muitas pessoas, mas tampouco podemos garantir ou exigir que se possa chamá-las de artistas por isso. Estênceis não evidenciam seus autores, são anônimos. Eles são repetidos em diferentes pontos, como carimbos urbanos, decalcados em cantos insuspeitos e provavelmente invisíveis para blasés, carrancas e carregadores de quimeras. Não orientam ninguém, costumam sim, trazer mensagens muito estranhas e ininteligíveis à primeira vista, que propositalmente querem fisgar o transeunte. Exigem de quem conseguir percebê-los que pare por um momento. Ainda que não pare a caminhada, talvez carregue junto à bagagem pelo menos uma dúvida, um vírus pirata no pensamento preguiçoso e no movimento habitual, um parceiro poético a profanar destinos pré-determinados. São sinais no trânsito que dizem algo, mas que não levam a lugar algum, mas podem servir para desorientar passos acelerados e reconectar, com mensagens enigmáticas, gesto e pensamento. Quem os enxerga não necessariamente entende, e quanto mais tempo se demorar na busca da explicação, melhor. São armadilhas para bichos estranhos que circulam; fazem cortes em trajetórias mapeadas, interrompem itinerários, confundem autômatos. Sinalizam furos na cidade ordenada e podem atingir aqueles que não se fecham totalmente por medo dos perigos urbanos ou por excesso de velocidade. São brincadeiras, jogos de rua, que querem despertar as carrancas urbanas de sua cegueira cinza, seu medo mudo de experimentar o espaço público, abandonado na dicotomia de sua subjetividade privatizada. São risíveis, mas podem causar sobressaltos. Pescam quem estiver atento a detalhes e ainda puder usar a rua, além de passar por ela, nem que por algum breve tempo, antes da próxima tarefa ou da abertura do sinal fechado. O homem obediente, que segue o rebanho, que percorre os mesmos itinerários conhecidos para não se perder, que não sai de si mesmo enquanto segue fluxos no meio da multidão, esse provavelmente não ousa imaginar que a cidade tenha surpresas agradáveis ou desafiadoras além das que já conhece. Seu caminho é circular, previsível, jamais arriscaria encontrar minotauros ou qualquer outro ser que pudesse ameaçar embaralhar os sinais que o orientam numa viajem sempre bem governada. A rua não lhe parece um lugar seguro, “legal” ou “bacana” “ Zona Sul legal” e “Copabacana” são nomes-fantasia de políticas de “limpeza urbana” implementadas na cidade do Rio de Janeiro nos últimos anos, que assim como o “Choque de Ordem”, promove a retirada das ruas de pessoas pobres, que dormem ou mesmo habitam-nas, entre outras ações de cerceamento que garantiriam a “sensação de segurança” da classe média. para se ficar parado. Um estêncil poderá ficar por muito tempo invisível para ele, ainda que repetido em todas as entradas da estação do metrô que pega todos os dias; ainda que imitando, estrategicamente, as cores que a publicidade usa para informar-lhe para onde e porque ir. “A vida é melhor aqui”, ela diz ao passageiro. É mais veloz, é mais confortável, é mais seguro que outros transportes, quiçá que a própria cidade “caótica” na superfície. Foucault (2007) aponta para a importância do espaço na técnica contemporânea, constituindo –se a partir de relações de posicionamento. Ou seja, vivemos em um espaço de tal modo organizado, esquadrinhado, planejado que os elementos humanos que nele se distribuem estão em constante relação entre si. São essas relações de vizinhança que estabelecem posicionamentos, de certo modo irredutíveis uns aos outros. Por exemplo, (FOUCAULT, 2007:414) posicionamentos de repouso constituiriam a casa, o quarto; posicionamentos de passagem, se dariam em lugares como as ruas e trens. No entanto o interessa falar de certos espaços que estão ligados a todos os outros mas que ao mesmo tempo contradizem os outros posicionamentos, e que seriam de dois tipos. Um, as utopias, que seriam posicionamentos sem lugar real; o outro as heterotopias, “... lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis.” (FOUCAULT, 2007:415) Descreve ainda alguns princípios pelos quais se definiriam: estão presentes em todas as culturas; podem funcionar de modo diferente no decorrer da história; tem o poder de justapor em um só lugar real, vários espaços ou posicionamentos incompatíveis; estão ligados a cortes no tempo tradicional; supõe sempre um sistema de abertura e fechamento que exige algum tipo de permissão para entrada nele; e por fim, tem em relação ao espaço restante uma função, (que aparece entre dois pólos extremos) - ou criando um “espaço de ilusão que denuncia como mais ilusório ainda qualquer espaço real” (id, ibid:420) ou ainda, e pelo contrário, “criando um outro espaço, um outro espaço real, tão perfeito, tão meticuloso, tão bem arrumado quanto o nosso é desorganizado, mal-disposto e confuso.” (id, ibid:421) Esta que seria a heterotopia, não de ilusão, mas de compensação. Dentre alguns exemplos que ele oferece como heterotopias comuns, temos o cemitério, o cinema, o museu e principalmente o barco, “a maior reserva de imaginação,(...) a heterotopia por excelência”.( id, ibid:422) Podemos entender o metrô como heterotopia de compensação, (id, ibid: 421) pois oferece uma mobilidade urbana aperfeiçoada, forja em seus espaços uma viagem asséptica e veloz, que magicamente diminui as distâncias na cidade, cortando-a pelos subterrâneos. “A vida é melhor aqui”, pois dentro do metrô uma cidade quimérica, utopia da metrópole da ordem e da velocidade, parece realizada, ainda que parcialmente. Na quarta a praça já amanheceu limpa! Fazia tempo que tanta tinta cinza não era usada, em todas as entradas da estação e também nos seus tantos respiradores. As imagens gravadas nas fronteiras, entre os espaços privatizados e subterrâneos do metrô e o espaço público da cidade, tiveram seu termo na camada de cinza totalitário que os cobriu, lambendo a praça inteira. A brincadeira acabou, mais rápido do que se podia imaginar, antes que pudesse ser perigosa em sua ludicidade crítica. A sujeira colorida veio ironizar o trem metropolitano e sua promessa de uma vida melhor dentro de seus espaços, que atravessam a cidade de norte a sul. Mas tamanha é a necessidade de se mantê-lo meticuloso, de preservar sua imagem e justificar seus slogans, que rapidamente tal sujeira teve que ser coberta, como se não fosse suficiente para desfazer sua perfeição a própria experiência cotidiana do passageiro que o usa. A praça ganhou uma beleza melancólica, uma assepsia triste. A tinta cinza homogeneizou ainda mais o espaço como fundo neutro, pelo qual rebanhos fantásticos passam, destacando tons e formas singulares nas caminhadas de cada indivíduo. Uma ética da atenção resiste, mesmo com a limpeza que encobriu tudo, pois o fundo planificado contrasta com toda a impureza à sua volta, inspirando-nos a prosseguir atentos, experimentando montagens poéticas que despedacem a cidade mapeada e sugerindo outros movimentos a seus habitantes. “Esta aposta ética requer o estar atento ao que se passa, ao que acontece, ao que nos passa arrancando-nos dos limites daquilo que somos, e dos hábitos que anestesiam a potencia daquilo que não podemos nomear; um estar atento desencadeador de peculiares formas de mobilidade.” (BAPTISTA, 2009:7) Apesar de todo o risco, há que se achar os espaços de experiência na cidade, em meio ao cinza que insiste em embaçar a percepção, em fechar os céus e as entradas. Outros sprays já se sacodem para estrear a tabula rasa daquela praça, instalar armadilhas poéticas caçadoras de carrancas, ou quem sabe, deixar pedaços de quimeras esquecidas pelo asfalto. Pois se é verdade que “nas civilizações sem barcos os sonhos se esgotam, a espionagem ali substitui a aventura e a polícia, os corsários” (FOUCAULT, 2007:422), de algum modo as histórias continuam sendo escritas, em letras cada vez mais estranhas, no corpo da cidade. Histórias fragmentárias, permeadas de cortes, narradas de modo atento aos movimentos, e evidenciando um espaço de indeterminação nas trajetórias aparentemente contínuas que se traçam entre a mobilidade e a subjetividade. III- Experiência urbana e mobilidade – Urbanismo, modernidade e o metrô carioca. Ele ia andando pela rua meio apressado Ele sabia que tava sendo vigiado Cheguei para ele e disse: Ei amigo, você pode me ceder um cigarro? Ele disse: Eu dou, mas vá fumar lá do outro lado Dois homens fumando juntos pode ser muito arriscado! Disse: O prato mais caro do melhor banquete é O que se come cabeça de gente que pensa E os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensam Porque quem pensa, pensa melhor parado. Desculpe minha pressa, fingindo atrasado Trabalho em cartório mas sou escritor, Perdi minha pena nem sei qual foi o mês Metrô linha 743 Raul Seixas (1984). Estou sentado num dos bancos da estação Central, a uma certa distância da longa faixa amarela no chão na beirada da plataforma. Elas estão três vezes mais grossas e com placas táteis de alerta, avisando agora de modo mais incisivo (ou seriam aos cegos?) do perigo de atravessá-las. As faixas que demarcam as entradas agora estão mais complexas, com grandes setas apontando por onde se deve sair e por onde entrar. Uma mulher senta-se do meu lado aguardando a vinda de um metrô menos cheio do que este que encontra-se na estação no momento. Ele se prepara para partir, cerra suas portas gementes, mas uma delas não fecha totalmente, justamente a que está quase a nossa frente. Um pequeno sinal luminoso acima dela continua aceso mostrando que ali não houve o total fechamento, sem o qual não se pode partir. Uma segurança da estação se aproxima, uma mulher grande e corpulenta que empurra com força e cuidado os pedaços de corpos que aparecem no vão entre as portas e as força para que fechem. Eu e a mulher a meu lado olhamos com curiosidade e espanto para a insólita cena. Depois de alguns instantes o sinal apaga, a segurança consegue fechar a porta e a mulher que dividia comigo a posição de observador privilegiado da cena conclui: - Olha só pelo que a gente passa! A integração entre as linhas um e dois também mudou, agora passa-se direto da estação que nos encontramos para a estação São Cristóvão, na dois, e daí em diante até a Pavuna que é a estação final dela. Nunca mais poderemos ver a imagem das multidões descendo ou subindo as escadarias entre os dois níveis da estação Estácio, na qual se fazia a transferência. O grande espaço central para o qual as escadas confluíam e pelo qual passavam os usuários em transferência agora está completamente esvaziado, a estação extremamente grande e multinivelada de certo modo tornou-se um elefante branco. Naquele espaço de confluência havia dois quiosques vendendo salgados e bebidas e uma loja de roupas, no paredão um gigantesco painel de mais de oito metros de largura e uns cinco de altura com anúncio da operadora de telefonia móvel Vivo. Acima de um dos quiosques um platô do qual nunca entendi qual seria a função projetada. Comprido e levando a lugar nenhum, servia, porém, como ótimo observatório. Dali podia-se ver do alto as ondas de usuários escorrendo pelas duas passagens de saída da linha um para a dois, a cada carro que estacionava. Por volta das cinco da tarde vi certa vez uma funcionária terceirizada da limpeza fazendo seu serviço – varria a passagem entre as linhas, recolhendo sujeiras, papéis e levando-os até o lixo. Fazia isso atenta aos trens que estacionavam, ficando ali até o último momento antes de correr para não ser “atropelada” pela multidão com pressa. Na frente desta quase sempre vinham homens, em geral jovens, puxando um batalhão logo atrás, correndo para buscar lugar sentado nos vagões da linha dois, sempre muito lotados e disputados. A grande maioria parecia mesmo se divertir nesse momento. Os mais cansados ou que talvez não fossem para tão longe vinham em seguida e aos poucos, resignados. Mas a funcionária que varria atenta saía da frente com sua vassoura e pá, ficando num cantinho observando a massa escoar. Quando os últimos passavam ela voltava e retomava seu serviço, recolhendo outros rastros deixados pela multidão. Agora, no entanto, essa passagem não acontece mais. Somente aos fins de semana, quando não há a mesma quantidade de passageiros. Nada mais resta na grande área central de passagem entre as escadas: nem quiosques, nem anúncios, somente uma fita amarela e preta proibindo a passagem. Mas aqui na Central foi o contrário. Muito mais gente desembarca aqui depois da mudança, pois é a linha na qual acontece a bifurcação. Vejo funcionários novos, com coletes alaranjados com a frase: posso ajudar? Ficam beirando a plataforma e somente nessa estação. Parecem estar ali para informar as mudanças e ajudar quem está confuso. Dois deles conversam animadamente com adolescentes estudantes. Uma mulher de mais idade chega até eles cumprimentando-os pelo nome. Eles avisam que estão em sua última semana de trabalho, a mulher pede que deixem seus contatos para, quem sabe, se reunirem em sua casa para comer um baião de dois. Enquanto eles anotam seus dados pergunto-lhes porque sairão. São serviços temporários, me explicam. Duram apenas três meses. Precisam circular antes que a empresa precise contratá-los. O que não acontecerá, pelo menos não com eles. Aproxima-se da estação o trem Devassa. Toda sua lataria está coberta com imagens da cerveja requintada que está sendo popularizada. A boca enche-se de água. De todo modo, não é permitido beber no metrô nem viajar embriagado, como diz o cartaz de proibições, mas ao contrário do que dizem as campanhas de lei seca no trânsito. O trem vai para a Zona Norte, sentido Pavuna. Está bem cheio. Aqueles que vão nesse sentido embarcam com aquele esforço habitual, empurrando-se uns aos outros em ondas e contorcionismos. Vai-se o trem cerveja. Alguns ficam. Devem estar indo para o sentido Saens Peña. Na parede do outro lado, um painel de cerca de dois metros por dois e meio, vermelho intenso, mostra os favoritos do Mc Donalds, seis burguers diferentes que são os mais consumidos. Pode incitar a fome de quem gosta desse tipo de comida. Permanecer nesse espaço super saturado de informações visuais é, nesse sentido, realmente desgastante. Muita gente passando, assim como os trens de cada lado da plataforma dupla, tantas informações confundidas com propagandas. As placas informativas apontam - Sentido Pavuna - Linha 2; a seu lado, outra - Saens Pena, Linha1/ Renew tira as marcas - e a imagem de uma mulher de toalha na cabeça e creme no rosto. Se a vida cotidiana envelhece e dá fome, tudo parece ter uma solução nesse espaço pelo qual se passa. *** Continuamos nossa viagem e nela vamos entendendo aos poucos o que se quer dizer com experiência urbana – experiência que remete a uma coletividade, mas num modo muito singular encontrado no urbano, nesse espaço do anônimo individualizado em meio às multidões. O momento histórico de emergência da cidade urbanizada testemunha a formação dessa experiência em meio às novidades trazidas pelas transformações técnicas que apareciam com a força do progresso e nos passos de uma utopia – a Modernidade. Uma experiência de assombro e promessa de que adiante a evolução reservaria novas superações, uma vida melhor, talvez a “liberdade” que as revoluções liberais almejavam. Descobertas de novos saberes científicos, com revolucionárias concepções de verdade, além de sua aplicação técnica, abalavam certezas antigas, sustentadoras de um mundo que via sua derrocada frente ao poder das luzes e suas verdades provisórias. A modernidade como essa experiência nova e desestabilizadora confrontando o homem a seus limites e suas tradições, instaurando um desenraizamento insolúvel e paradoxal. Até as experiências aparentemente mais concretas, como a do próprio corpo e da cidade, passariam a ser concebidas numa valorização radical do movimento e na afirmação da instabilidade, da transitoriedade, como condição da existência no modo moderno de experimentar e conceituar o mundo. O sentido de desenraizamento expresso na perda de identidade social e de formas de orientação multisseculares, aparece de forma recorrente elaborando a imagem de uma crise de proporção e conteúdos inéditos. (...) Máquinas, multidões, cidades: o persistente trinômio do progresso, do fascínio e do medo. O estranhamento do ser humano em meio ao mundo em que vive, a sensação de ter sua vida organizada em obediência a um imperativo exterior e transcendente a ele mesmo, embora por ele produzido. (BRESCIANI,1985:37) O desenraizamento que se inaugura na modernidade e que na cidade urbanizada tem sua força concreta e efetiva é a marca dessa estranha condição que o homem alcança então. À medida que parece se livrar das amarras de um mundo mediado pela obediência a Deus, vê-se num limiar indeterminado, na qual a racionalidade e a técnica não garantem a estabilidade perdida, mas lançam-no em meio a experiências para as quais não existem parâmetros. Como esse homem lidará com tantas incertezas, se sua autonomia se apequena frente a forças incrivelmente novas e avassaladoras? O que significará ser “livre” nesse mundo instável que criou? É por volta de fins do século XVIII e no decorrer do XIX que essa experiência de modernidade caracterizada tão fortemente no modo de vida urbano emerge na Europa. Tempo de transformações aterradoras marcadas pela produção industrial - o aparecimento da máquina a vapor e de outras técnicas desdobrando-se em inovações que alteram completamente a vida na cidade e mesmo as noções de espaço e tempo até então vigentes. A presença da fábrica sinaliza bem a cidade que emergia em imagens de um cotidiano insólito e chocante: as massas operárias, multidões regidas pelo tempo útil da produção, não deixavam de amedrontar aos que temiam sua ameaça revolucionária e sua pobreza; a máquina e seu poder espantoso de potencializar a força produtiva do frágil corpo humano e ao mesmo tempo de encerrá-lo numa dinâmica de trabalho extenuante. Essa cidade trazia repentinamente experiências muito novas, impondo ritmos que o corpo precisava aprender a se adaptar, disciplinar-se não só no trabalho fabril, mas também no dia-a-dia nas ruas, cheia de estímulos intensos, velocidades e arquiteturas em proporções absurdas para as quais a percepção nunca esteve preparada. Fenômenos inéditos incitavam “a formação de uma nova sensibilidade, uma completa reeducação dos sentidos do citadino” (BRESCIANI, 1994:23) a qual pudesse tolerar o choque urbano, sua imprevisibilidade e seus estímulos sensoriais até então insuportáveis, ainda que à custa da destruição da “experiência poética” (op.cit:24). Multidões que ameaçam a ordem das ruas, coletivos ruidosos e informes, atemorizam o citadino devido à perda da estabilidade de si e da conquistada identidade. Locomotivas, iluminação, equipamentos fabris, novos desenhos e funções de objetos impelem-no a circular, produzir, consumir, sugerindo a inesgotabilidade da criatividade humana no lastro da promessa de felicidade anunciada pelo progresso. Nas fábricas, a matéria-prima, em ritmo acelerado, transforma-se em outra coisa; nas ruas, a qualquer momento, acontece algo imprevisível; no citadino, para o seu tormento, o contorno nítido do seu rosto e da sua alma poderá se esvaecer como as imagens do lado de fora do seu habitat. Choques urbanos, provocados pela perda do universo onde os astros e os deuses protegiam suas angústias e esperanças, dilaceram totalidades do que seja a vida ou do que seja o sujeito. A fragmentação do tempo, do espaço, do corpo, na exigência de formas singulares de experiência, atormentou o citadino da cidade luz. (BAPTISTA 2010:10) Nascia algo que ainda hoje ressoa nos discursos sobre a vida nas metrópoles: o “medo urbano” (FOUCAULT, 2008d:87). As grandes aglomerações traziam sem dúvida muita preocupação, primeiramente com relação às doenças que podiam se proliferar nesses novos ambientes. A medicina social surgia na França no fim do século XVIII, uma “medicina das condições de vida e do meio de existência” (id,ibid: 92.) Era na relação entre o meio (ainda que essa noção não tivesse sido criada) e os corpos que tal medicina interferia a princípio. Era preciso portanto acabar com os acúmulos de tudo o que pudesse gerar doenças - nesse sentido o problema maior eram os cemitérios, que foram sendo levados para as periferias da cidade, afastando a morte do convívio dos vivos. A circulação das “coisas”, de elementos como a água e o ar, era também crucial. No ar, aliás, se espreitava um grande perigo pois na época se acreditava que ele seria capaz de proliferar miasmas e com isso toda sorte de doenças em locais fechados, abafados, desprovidos de uma boa ventilação. Isso justificaria desde intervenções nas moradias, na arquitetura das casas e costumes domésticos até nas ruas da cidade incitando a construção de grandes espaços abertos, longas avenidas e a destruição de tudo o que significasse estagnação do ar. A noção de cidade-organismo, vigente pelo menos desde o século anterior como uma crença iluminista irrefutável (SENNET, 2008), determinava ser preciso tratar o espaço urbano numa perspectiva científica a partir do modelo médico-fisiológico – ou seja, uma cidade seria formada por órgãos bem determinados em suas funções (ainda que estas fossem múltiplas), postos em comunicação constante pelos sistemas de circulação. Uma falha em qualquer ponto de um desses canais significaria estagnação, doença, desordem. A circulação vinha como a receita coerente para a saúde da cidade que precisava se ver liberta de um passado escuro, sujo, desordenado, nem um pouco condizente com os ares da modernidade, mas também pouco produtiva ao capital que também precisava circular. Já no século XIX a importância de uma higiene pública estava estabelecida, esse olhar médico se tornara intrínseco ao planejamento urbano, se interessando também pela saúde do operário, ou melhor, da manutenção de sua força de trabalho e prevenção de costumes e comportamentos considerados doentios, promíscuos e imorais. Na Inglaterra, cujo desenvolvimento industrial era adiantado, as camadas operárias estavam também bastante aumentadas e o perigo das revoltas se fazia pesar. Foi lá que a medicina social passou a visar especialmente o corpo operário, em medicalizá-lo, controlando o perigo político-sanitário que a pobreza proletária representava. Prevenção se tornava a tônica nas práticas de uma medicina com poder de polícia, visando reformar a cidade e instaurar novos hábitos no cotidiano, condizentes com a salubridade e a paz social. Certo que a medicina como um dos “primeiros administradores do espaço coletivo” (FOUCAULT 2008e:214) influenciou fortemente o trabalho dos urbanistas, que intervinham na cidade concreta planejando reescrever em linhas bem demarcadas uma história nova, progressista, que teria a urbe como palco ordenado e regularizado. A cidade moderna, esse modelo de cidade ideal a ser concretizado precisava ser um espaço higienizado, amplo e principalmente no qual se produziria a circulação de seus cidadãos, anônimos e livres para se locomover, trabalhar e consumir. O sonho liberal se via materializado, ou pelo menos estruturado nos mapas cujos desenhos anunciavam no presente a obsolescência de um passado renegado e a avassaladora força do novo. A PARIS DE HAUSSMANN – MODELO DE URBANISMO Sem dúvida foi a Paris surgida com as reformas urbanísticas do Barão Haussmann no fim dos oitocentos a cidade emblema da modernidade e dessa nova organização espacial na qual a mobilidade aparecia como questão crucial. Era em nome do progresso que se justificavam mudanças tão radicais na vida de homens e mulheres que assistiam a demolição da velha capital e o erguimento de uma nova em seu lugar. Uma cidade expandida, devassada por enormes bulevares que cortavam em linha reta o território desfazendo pequenos lugarejos sombrios, ruelas intransitáveis para carruagens, becos escuros e sujos, cheios de marcas da pobreza e de um passado medieval que precisava ser apagado. Espaços perigosos, mais do que pela falta de higienização, sobretudo por serem propícios a construção de barricadas e a toda sorte de rebeliões e insurgências populares. Era preciso que a cidade luz fosse suficientemente aberta, (o mercado há muito já não podia tolerar cidades encerradas em muralhas), interligada racionalmente entre seus bairros, ao contrário de toda a mistura e confusão que até então Paris congregava. Assim, a operação haussmanniana punha em comunicação pontos extremos da cidade, unificando-a como um sistema integrado. A vasta rede de bulevares representam apenas uma parte do amplo sistema de planejamento urbano, que incluía mercados centrais, pontes, esgotos, fornecimento de água, a Ópera e outros monumentos culturais, uma grande rede de parques. (...) O empreendimento pôs abaixo centenas de edifícios, deslocou milhares e milhares de pessoas, destruiu bairros inteiros que aí tinham existido por séculos. Mas franqueou toda a cidade, pela primeira vez em sua história, à totalidade de seus habitantes. Agora, após séculos de vida claustral, em células isoladas, Paris se tornava um espaço físico e humano unificado. (BERMAN, 2007: 180-181) A cidade revolucionária deveria ser condizente com o ideal de uma “sociedade transparente” (FOUCAULT, 2008e:215), não teria o que esconder, mas ser iluminada e espaçosa o suficiente para que os movimentos ficassem expostos ao olhar de todos. Função do olhar na ordem de uma cidade capitalista - as paisagens longínquas de um bulevar que atravessa Paris trazem, imersos na beleza das arquiteturas retilíneas, as formas propícias para a vigilância, ou ao menos, para um “tipo de funcionamento em que o poder poderá se exercer pelo simples fato de que as coisas serão sabidas e de que as pessoas serão vistas por um tipo de olhar imediato, coletivo e anônimo. Um poder cuja instância principal fosse a opinião não poderia tolerar regiões de escuridão”(id, ibid:216-217) O modelo panóptico de Bentham foi construído basicamente como dispositivo de vigilância em espaços fechados, mas a idéia principal – estruturar mecanismos de poder capazes de forjar um espaço em que numa multiplicidade se produz individualidades – essa idéia está viva na valorizada estética urbana das linhas retas e dos espaços amplos. No caso, “mecanismos muito mais sutis que permitiam a regulamentação dos fenômenos da população, o controle de suas oscilações, a compensação de suas irregularidades.” (FOUCAULT, 2008:222).. Ruas de calçadas amplas, espaços urbanos vastos, paradoxalmente não incitam os encontros, mas à movimentação livre e individualizada em que cada citadino enxerga o outro a distância, no conforto cosmopolita da privacidade de ser anônimo. Os espaços públicos, no sentido próprio que se inventava ali, não estão simplesmente abertos a qualquer forma de mobilidade, antes são “reservados para indivíduos em locomoção, mais do que para multidões em movimento.” (SENNETT 2008:263). As ruas largas e retas favoreciam sobretudo a circulação de carruagens que podiam alcançar velocidades inéditas beneficiadas também pelo macadame que cobria as vias facilitando seu tráfego. Emerge a figura do pedestre como esse citadino que orbita em torno da via, subjugado ao imperativo do trânsito livre, a um passo de suas violentas velocidades. Choay (1999) vê no procedimento efetivado pelas obras de Haussmann o “planejamento regularizador” que de certo modo prenunciava o que viria a ser a prática do urbanismo em sua vertente pragmática - “regularizar e organizar com a maior eficácia o crescimento e o movimento dos fluxos demográficos assim como a mutação das escalas dos equipamentos e das construções induzidos pela revolução industrial” (CHOAY, 1999:71). Mas concomitante a este procedimento o urbanismo aparece também designando uma prática teórica cuja pretensão científica pautava-se numa crítica da cidade existente e visava construir a partir da modelização urbana a cidade ideal. Almejando “o domínio completo do fato urbano” (id, ibid:70) essa disciplina se dividia em duas correntes teóricas – a progressista e a culturalista. A primeira, desconectada do passado, opera no presente a ordenação geometrizante, abstrata e funcional; almeja o progresso e a modernidade flertando francamente com o utópico. A segunda faz referência ao passado, mas numa acepção histórica contínua. Busca em valores culturais e estéticos da cidade antiga a imagem a ser projetada nos modelos atuais. Visão histórica nostálgica pretendendo recriar no presente algo que o objeto perdera em seu passado pré-industrial. Não obstante suas diferenças, ambas focam-se nos modelos, na reforma social a ser operada pela transformação do espaço urbano em sintonia com visões utópicas. Descompromissados com as relações históricas que condicionaram as transformações que viviam, seus planejamentos respondiam às expectativas frente a um futuro próspero e a ânsia de construir a cidade perfeita, racionalizada e coerente com a grandiosidade do amanhã. Em todo caso a cidade sonhada por estes teóricos contemplava muito mais interesses político-econômicos do que propriamente estéticos e higienistas, mesmo que estes fossem enfatizados nos discursos que a anunciavam. As intervenções urbanas - como cirurgias no corpo de uma grande cidade como a Paris dos oitocentos, até então tida como doente, desordenada - expurgariam do espaço público urbano os obstáculos para uma sociedade capitalizada. No arrasamento da velha cidade as imagens chocantes da destruição, os espaços esvaziados repentinamente, esse hiato em que a história é interrompida seria um remédio amargo mas eficiente, desassossego que só poderia se agarrar nas promessas. O ar da vastidão, a clareza na paisagem - impalpáveis como o sonho esperançoso num futuro incerto – tocam sutilmente o corpo do citadino, invocam-no a refazer-se junto à cidade em ruínas. Levantando-se no vazio, a cidade luz chocaria então pelos excessos, pela grandiosidade, pela velocidade. A intervenção mesmo em seu aspecto construtivo era violenta, pois o preenchimento da tabula rasa exigiria do citadino refazer-se da medonha perda de um passado em meio ao fascínio de tão estrondosas obras. Nessa confusa confluência de experiências, desterro e deslumbre, forças históricas arregimentavam-se no anúncio de um futuro, mas criando no presente condições para outras formas de subjetivação e de vida. Todo o espanto impedia o que só mais tarde seria compreendido. Dali em diante as formas de convivência se coadunariam a um complexo sistema produtivo, paradoxalmente unindo destinos individuais a projetos muito maiores. O homem da urbanidade seria ao mesmo tempo indivíduo e população, incitado a um individualismo calcado no livre arbítrio, mas governado como força abstrata numa massa, pura função produtiva. Suas escolhas nunca tiveram tanta importância ao passo que estariam inevitavelmente imersas, e em muito condicionadas, aos territórios demarcados pela liberdade que lhe caberia exercer. (...) a liberdade no sentido moderno que essa palavra adquire no século XVIII : não mais as franquias e os privilégios vinculados a uma pessoa, mas a possibilidade de movimento, de deslocamento, processo de circulação tanto das pessoas como das coisas. E é essa liberdade de circulação, no sentido lato do termo, é essa faculdade de circulação que devemos entender, penso eu, pela palavra liberdade, e compreendê-la como sendo uma das faces, um dos aspectos, uma das dimensões da implantação dos dispositivos de segurança O espaço urbano tem papel especial na função de governo dos fenômenos tipicamente populacionais, e constitui-se no principal exemplo do que Foucault chama de “espaço de segurança”. As urbes que emergiam no século XVIII deflagravam fenômenos de massa ensejando o estabelecimento de novos dispositivos, que não substituiram os disciplinares, mas que seriam capazes de governar esse objeto abstrato – a população, já entendida como a grande riqueza de uma nação. Nesse nível a circulação passa a ter grande importância na função de gerir a população, fazê-la produzir, controlar suas taxas de natalidade e de mortalidade, administrar o consumo de alimentos, ou seja, todas essas questões muito mais estatísticas do que “concretas”, ou pelo menos não no nível do indivíduo (ainda que tenha efeitos de individualização) mas que tratam desse corpo coletivo ao qual não se controla totalmente, mas se regula os excessos, mantendo limiares aceitáveis. Os dispositivos de segurança atuam nesse espaço em que uma liberdade específica é permitida - a circulação como mobilidade necessária e produtiva, fundamento de uma nação capitalista e liberal. (FOUCAUL, 2005.). (FOUCAULT, 2005:63) Portanto o problema político da mobilidade, suas funções, seus perigos, seus usos, aparecem como paradoxo a ser resolvido pelo urbanismo no traçado da cidade moderna, inserido num problema maior que é o da população: como manter uma mobilidade suficientemente livre para que os fluxos comerciais e econômicos aconteçam – situando aí também o problema da mobilidade da mão de obra operária entre casa e fábrica – mas numa medida em que todo esse liberalismo não recaia no perigo do descontrole das massas? Como manter um ideal burguês de liberdade sem o custo de permitir que ela descambe para a insurgência ou o ócio? Como permitir que os homens “livres” sejam, na medida de sua liberdade, suficientemente produtivos e obedientes? A urbanização como esse “procedimento regularizador”, emergindo repleta dos adornos da modernidade em teorias utópicas e formas arquitetônicas monumentais, introduziria novos modos de subjetivação. Ao regular o espaço público da cidade ela o transforma num espaço de segurança, um território que pode abarcar a heterogeneidade coletiva ao inseri-la em redes codificadas. Malhas físicas, comunicacionais, mercadológicas, canais que fazem fluir todas essas “coisas” (e ai incluem-se os habitantes) importantes para a sobrevivência desse sistema integrado, mas também codificadas pelo valor monetário, que de algum modo planifica esse fluxos, coisifica o homem. Essa regulação que se faz na mobilidade não cessa de se sofisticar, o que não pode ser visto, entretanto, como evolução. Mais importante para nós é entender que mobilidade e circulação não são sinônimos, ainda que a segunda, historicamente, tenha sido adjetivada como modo aperfeiçoado da primeira. Afinal, tudo nessa cidade detalhadamente planejada parece ter que se adequar a uma mobilidade veloz mas coerente e regulada a uma rede complexa, construída para dar conta de uma metrópole que se industrializava nos moldes do capitalismo liberal. Essa nova ordem política e econômica entendia a necessidade da circulação monetária e precisava gerar mercados produtores também suficientemente ágeis, móveis. O trabalho e as próprias relações humanas capitalizadas passam a responder a um valor abstrato que nivela a ordem social a partir das funções que nela cada atividade passa a ter, seu lugar na cadeia produtiva, seu lugar na cidade. A Roda da Fortuna precisa girar! A cidade é forjada como território adequado para essa nova condição política e econômica, sustentada e em certo sentido, condicionada pelas transformações que a técnica impunha. Nesse ponto cabe ressaltar a importância da técnica nessa história do espaço urbano. Dentre as forças que compõem a emergência histórica dessa cidade as inovações técnicas tem um peso enorme. Essa referência é importante ao nos desviar de uma leitura que tende a supervalorizar as intenções humanas no campo de forças da história, e apontar para essas outras forças que tem muito mais a ver com a matéria e os acasos, até mesmo daquilo que se produz como ciência. Desde os novos materiais que aparecem na segunda metade do século XIX, como o ferro, concreto e o vidro; a eletricidade e as máquinas que com ela surgem, as construções em dimensões inéditas; mas sobretudo com relação às técnicas de transporte - primeiramente com o surgimento da estrada de ferro, depois o metrô e o automóvel - o espaço da cidade se refaz completamente, em geral se adaptando a estas maquinarias. A cidade da circulação e da velocidade vai aos poucos se rendendo aos veículos, ao tempo acelerado que eles determinam assim como o citadino, relegado à condição de pedestre ou passageiro, precisará treinar suas percepções a este ambiente no qual sua presença se torna coadjuvante. O espaço social só pode ser remodelado na medida em que sua dimensão concreta é invadida por materiais cada vez mais artificiais, forças físicas inéditas capazes de forjar mecanismos e estruturas novas em ambientes habitáveis. Técnicas que não respondem simplesmente à racionalidade da mente humana, mas desmontam e reconstroem o espaço e as relações que nele/ com ele acontecem, produzindo subjetivação. Certeau (2007) belamente nos apresenta uma imagem dessa relação na experiência de um passageiro na sofisticada máquina que o carrega. A viagem configura-se numa complexa montagem subjetiva que acontece entre eles. Na base, entre as percepções de um corpo imóvel e aquilo que é possibilitado pelo arranjo de uma série de materiais que compõem o artefato locomotor. A longa citação se justifica pela força das palavras em extrair de uma simples viagem de trem a análise poética e crítica da experiência tipicamente moderna e urbana, em sua correlação com a técnica. A vidraça permite ver, e os trilhos permitem atravessar (o terreno). São dois modos complementares de separação. Um modo cria a distância do expectador: não tocarás. Quanto mais vês, menos agarras – despojamento da mão para ampliar o percurso da vista. O outro traça, indefinidamente, a injunção de passar: como na ordem escrita, de uma só linha, mas sem fim: vai, segue em frente, este não é teu país, nem aquele tampouco – imperativo do desapego que obriga a pagar o preço de um abstrato domínio ocular do espaço deixando todo lugar próprio, perdendo o pé. A vidraça e a linha férrea repartem de uma lado a interioridade do viajante, narrador putativo e, do outro, a força de sê-lo, constituído em objeto sem discursos , poder de um silêncio exterior. Mas, paradoxo, é o silêncio dessas coisas colocadas à distância, por trás da vidraça que, de longe, faz as nossas memórias falarem ou tira da sombra os sonhos de nossos segredos. O isolador produz pensamentos com separações. CERTEAU (2007:194) Novamente aqui o olhar ganha preponderância, a vidraça impele ao “domínio ocular” tipicamente urbano, ao passo que a mão precisa se desapegar de tocar o que pode ver. A imagem separada do tato, abstração que impele à interiorização – “toca-se” com os olhos, passa-se a vista, fugacidade e força da imagem na transitoriedade da experiência moderna. O ferro dos trilhos substitui os pés. A máquina por um lado sobrepuja o corpo pedestre, que por outro se reinventa no mesmo processo em que se adapta ao ambiente. Ou os trilhos aqui seriam a extensão desses pés, seu prolongamento, sua superação numa “hibridação homem-máquina” ? (FURTADO 1998:32.) Redimensionar o papel da técnica e mais especificamente da máquina na experiência urbana não equivale a estabelecer uma continuidade entre elas. A montagem subjetivante que se forja nessa experiência potencializa seus alcances e efeitos, mas mesmo essa conexão é artificial, nada tem de natural tampouco de evolutiva. Discordar de que uma “cossanguinidade entre o homem e o instrumento define a essência de ambos” (FURTADO 1998:32), é aceitar o paradoxo: Nem uma suposta natureza humana é corrompida pela máquina, mas tampouco uma essência artificial significaria continuidade entre máquina e homem. Corremos sempre o risco de antropomorfizar a máquina ou de mecanizar o homem, ao fazer do artifício uma outra natureza ao invés de reconhecê-lo como processo fragmentário de diferenciação. Difícil é sustentar essa relação ambígua em que a artificialidade de ambas seja remetida tão somente á uma operação de montagem, que não significa encaixe perfeito ainda que forje coerências, seja funcional e produtor de sentidos. O espaço urbanizado da cidade e todos os dispositivos técnicos que o constituem são exigentes na interação com o homem e de fato transformam-no, permitem que se conecte a multiplicidades distantes nesse espaço mapeado e alteram sua relação com o tempo. Contudo, entre os extremos da defesa de uma utopia maquinal (ou ainda cibernética, contemporaneamente) e de uma crítica puramente negativa à possível desumanização operada pela técnica, parece-nos prudente olharmos alguns efeitos dessa relação, com os paradoxos que apresentam, na questão da mobilidade na cidade. O espaço urbano sofre uma homogeneização operada principalmente pelas redes de circulação, que são funcionais graças aos dispositivos técnicos que as sustentam. O corpo humano, as percepções, a subjetividade enfim, constituem tais dispositivos e são constituídos por eles, ao mesmo tempo. A montagem subjetiva que se forma nas conexões entre corpo e técnica facilita a mobilidade dos indivíduos no espaço homogeneizado, e ao mesmo tempo produz aquelas “separações”, cortes, sem os quais a subjetividade não seria capaz de suportar o volume de informações e sensações percebidas. A proteção na abstração e o embotamento blasé são, de certo modo, um desses cortes que marcam a subjetividade urbana produzida num ambiente técnico. Em todo caso, as possibilidades de mobilidade no cotidiano da vida urbana são vastas, desde o modo mais simples, caminhar, até os mais sofisticados usando os meios de transporte e mesmo de comunicação. Os espaços de uma cidade, por mais que sejam planejados, não são praticados pelo citadino apenas naquilo que o projeto previu como uso. Se por um lado o urbanismo define caminhos específicos de circulação no espaço tecnológico e mapeado da urbe, é certo que outros percursos podem ser experimentados. Outros modos de mobilidade, para além da circulação, possibilitam experiências de cidade que não negam as sofisticações técnicas e funcionais, mas subsistem como possibilidade inventiva peculiar à subjetivação. Há uma enorme discrepância entre a cidade conceitual dos mapas, com suas escalas funcionais desenhadas do alto, que só dialogam com o olhar na orientação de caminhos precisos e o espaço urbano praticado cotidianamente numa “mobilidade opaca e cega” (CERTEAU 2007:172). Nas lacunas dessa gestão distanciada operada pelo “deus voyeur” (id, ibid:173) as errâncias do homem ordinário escreve percursos ilegíveis, “práticas estranhas ao espaço ‘geométrico’ ou ‘geográfico’ das construções visuais, panópticas ou teóricas.”(id, ibid: 173) Numa cidade como o Rio de Janeiro, (não obstante renitentes políticas de “ordem urbana” que promovem através de “choques” um controle violento de práticas tidas como ilegais ou desordeiras), não é ainda possível uma experimentação de seus espaços numa mobilidade que não estritamente demarcada e esquadrinhada pelos caminhos projetados, e de temporalidades outras, que não aquelas impostas pelo ritmo veloz dos carros e da circulação financeira? Não falamos aqui de uma negação dos limites impostos pelas regulações e disciplinas que insidem sobre o citadino, já que não o vemos também como vítima de um sistema muito maior e apartado dele. Entretanto, a questão da mobilidade precisa ser encarada não apenas como discussão sobre o trânsito, sobre as inúmeras dificuldades que a população tem para se locomover numa metrópole como o Rio de Janeiro, no qual perde-se horas do dia nos deslocamentos entre casa e trabalho. Ainda que seja um problema urgente e muito pouco investimento seja feito no sentido de resolvê-lo e melhorar a qualidade de vida da população, a questão vai além. Pensar a mobilidade nesses termos, como sinônimo de circulação, nos impede de questionar os modos de subjetivação que se forjam para além dos projetos e dos circuitos que ordenam o uso do espaço público urbano. Nesse sentido, Certeau (2007) nos aponta uma pista para esse entendimento de uma mobilidade que não se restringe à circulação, ao referir-se aos “praticantes ordinários da cidade”. (id, ibid.) Eles não são heróis, tampouco precisam ser anunciados como uma forma de resistência, o que os amarraria como modelos. Aliás, não cabem em qualquer tipologia, pois se definem por sua prática e por sua ordinariedade. Definição que impede que sejam retirados de seu contexto, mostrando-os mais como possibilidade prática, desvio, do que um personagem. Uma possibilidade sempre aberta ao anônimo que usa a cidade e que mesmo quando é consumidor, pode inventar outros modos de fazê-lo. Praticantes ordinários da cidade atuam e criam uma cidade que eles mesmos percorrem, que eles praticam, não a mesma que o urbanista projeta do alto, aquela dos mapas, mas uma que experimenta passo-a-passo, na caminhada. “Os jogos dos passos moldam espaços. Tecem os lugares. Sob esse ponto de vista as motricidades dos pedestres formam um desses ‘sistemas reais cuja existência faz efetivamente a cidade’, mas ‘não tem nenhum receptáculo físico’. Elas não se localizam, mas são elas que espacializam”. (CERTEAU, 2007:176) Assim, ainda que a cidade seja objeto de um saber e de ações que constantemente a mantém demarcada e sobrecodificada, outras mobilidades e temporalidades estão cotidianamente sendo criadas, formas não hegemônicas de convívio cotidiano e, principalmente, de relação de co-produção entre subjetividade e cidade. Nessa relação está em jogo a criação de modos singulares de experimentação perceptiva e corporal da cidade. Nesse sentido Jacques (2006) traz questões valiosas com relação às errâncias urbanas, práticas de “se perder” na cidade, justamente o contrário do que pretende o urbanismo. Mais do que uma crítica a este, chega a propor a errância como um novo método a ser praticado pelo “urbanista errante” (id, ibid.) Não entrando no mérito dessa questão metodológica, ela traça um breve histórico das errâncias e descreve algumas características comuns que atravessam essas diferentes experiências. Esses traços que ela destaca na errância – o perder-se, a lentidão e a ‘corporeidade’ – confluem numa experiência urbana que escaparia àquela forjada nos fluxos da cidade organismo. O corpo do citadino e o corpo da cidade se encontram num registro outro, aquém da clareza certeira que visão e velocidade escrevem funcionalmente. Na dimensão da experiência urbana possibilitada por essa forma de mobilidade o corpo errante se abre a outros níveis sensoriais, a uma atenção diferenciada, talvez poética, no sentido de criar outros sentidos para a vida urbana que vivemos. Os urbanistas teriam esquecido, diante de tantas preocupações funcionais e formais, deste enorme potencial poético do urbano e, principalmente, da relação inevitável entre o corpo físico e o corpo da cidade que se dá através da errância, através da própria experiência – do se perder, da lentidão, da corporeidade – do espaço urbano, algo simples, porém imprescindível, para possibilitar uma outra forma de percepção ou apreensão da cidade. (JACQUES, 2006:134). Dessa perspectiva vemos a mobilidade como objeto privilegiado de discussão acerca da subjetivação na cidade, nessa relação intensa nos/com os espaços urbanos, ao mesmo tempo inventando espaços políticos de encontro e se reinventando para além da subjetividade individualizada. Porém, cabe frisar que essa linha de pensamento não se dicotomiza, pautando uma cidade ideal que se faça “livre” das regulamentações, como se houvesse uma certa natureza na cidade ou mesmo na subjetividade, que estariam sendo “dominadas” ou transviadas pelo poder e que caberia restituir. Se há outras possibilidades de experiência na cidade, elas se dão nisso que o citadino encontra cotidianamente, inclusive em meio aos dispositivos de controle e segmentação que são eles mesmos, a cidade em sua materialidade. HAUSSMANIZAÇÃO E URBANISMO NO BRASIL No Brasil da Belle Époque o modelo de urbanização inaugurado por Haussmann em Paris foi prontamente importado para o Rio de Janeiro, então distrito federal. Os mesmos ideais modernistas adaptavam-se num discurso remetendo à realidade de nosso país: precisávamos deixar para traz, em nosso caso, o passado colonial e escrever a história progressista republicana. Nos primeiros anos do século XX, mais especificamente em 1902, o engenheiro Pereira Passos é nomeado prefeito pelo presidente Rodrigues Alves para operar uma intervenção radical na cidade. A modernização do porto e a abertura da Avenida Central foram as obras de maior apelo - a primeira melhorando as condições para escoamento de produtos ao mercado exterior e atraindo mão-de-obra imigrante, a segunda tendo como objetivo principal desafogar o trânsito no centro da cidade, reproduzindo o modelo da grande artéria que o faria fluir saudavelmente. Como em Paris, a força progressista da modernidade e da beleza arquitetônica a ser implantada não via a derrubada de casas populares e mesmo monumentos e espaços históricos como empecilhos. Pelo contrário, o discurso higienista fortalecia e justificava o “bota-abaixo”, como popularmente ficou conhecida a intervenção, que até 1905 remodelou todo o centro da cidade. Isso fica evidente no caso do Morro do Castelo, cuja importância histórica desde a fundação do Rio de Janeiro foi ignorada em nome da saúde e do progresso. Parte dele foi arrasado na abertura daquela avenida, e com ele, inúmeras casas populares também foram derrubadas. A antiga noção higiênica da importância da circulação de ar ainda justificaria seu desmonte total na década de 20. O fato é que ali moravam cerca de 4.000 pessoas de baixa renda e o espaço aberto renderia bons lucros com a venda de terrenos tão bem situados. (FURTADO & REZENDE, 2008). Mas em todo o espaço da cidade velha ocorreram desocupações forçosas, milhares de famílias pobres e trabalhadores tiveram que se deslocar para regiões mais afastadas, de certo modo dando início às primeiras favelizações na periferia da cidade Já na década de 1870, violentas epidemias de febre amarela suscitaram a discussão sobre a necessidade de ações de planejamento urbano que dessem conta de higienizar a cidade. As moradias proletárias coletivas, os cortiços nas regiões central e portuária, superpopulosas e insalubres, eram vistas como principais focos da epidemia. Já se pensava em “cirurgias” que dessem fim a esse tipo de moradia, mas o destino de tanta gente a ser desabrigada e os prejuízos com desapropriações inibiram a medida, que só seria posta em prática na gestão Pereira Passos. Uma das soluções encontradas mais tarde seriam as vilas operárias, construídas dentro de todo um referencial arquitetônico higienista. (BENCHIMOL, 1990).. Mas também muitos comerciantes tiveram que se resignar em receber indenizações por desapropriação de seus imóveis, muitas delas em valores considerados inadequados. (BENCHIMOL, 1990) Abria-se espaço também para a ampliação da rede de bondes, que em sua maioria partiam do centro da cidade e tiveram papel crucial na expansão da cidade. A primeira experiência com veículos coletivos sobre trilhos, ainda com tração animal, acontecera em 1859, com uma linha ligando a região central à Tijuca. Chamados de “maxabombas”, esses carros funcionaram por pouco tempo e precariamente. Sua atuação foi dificultada, desde o início, principalmente pelas gôndolas, que procuravam impedir a mobilidade do concorrente, atrapalhando a passagem dos carros e provocando acidentes, o que não era muito difícil, na medida em que as pessoas não estavam acostumadas com os veículos sobre trilhos, nem com a velocidade que esse sistema permitia dentro do perímetro urbano. O número de acidentes assustava os possíveis passageiros, e a população recebeu com algum receio o novo transporte coletivo. (WEID, 2010:7) Além da escassez de capital nacional disposto a investir em um empreendimento arriscado, os primeiros bondes sofreram muita resistência da elite, que se recusava ter que dividir espaço com pessoas de classe social inferior. Somente em 1868, com a entrada de investidores estrangeiros, teve início o funcionamento das primeiras linhas que vingariam, ligando o centro à zona sul. Essas linhas valorizavam as áreas ainda despovoadas zona sul adentro, gerando lucro também pela especulação imobiliária na oferta de novos bairros para a elite. Partindo do centro e atravessando Glória, Catete, Largo do Machado, Flamengo, Botafogo, Gávea... Gradativamente os bondes traçariam os contornos de um Rio de Janeiro elitizado pela mobilidade, inaugurando um estilo de vida cosmopolita europeu associado às especificidades geográficas da beleza natural. Em 1892 já circulariam os primeiros bondes elétricos, que ainda mais espanto e fascínio causariam na população. Nesse ano as primeiras linhas alcançariam também Copacabana, num percurso através do litoral extremamente atraente ao citadino carioca em busca de lazer longe das mais agitadas ruas da capital. Ao iniciar as viagens para a orla marítima, a Companhia Jardim Botânico fez uma intensa propaganda do novo espaço que se abria, primeiro com viagens gratuitas, depois através de grandes tabuletas fixadas na porta das estações com anúncios : "Quereis gozar de boa saúde? Ide à Copacabana. Bondes em quantidade" ou "Passeio agradável e refrigerante : Copacabana. Bondes até as duas horas da manhã", e até quadrinhas : "Graciosas senhoritas, moços chics, Fugi das ruas, da poeira insana, Não há lugares para pic-nics Como em Copacabana.” (WEID, 2010:16) A região de São Cristovão, assim como a da Tijuca, também seria bem servida de bondes, mas vai perdendo nos últimos anos do século o status de bairro de elite, tornando-se aos poucos um bairro industrial. As regiões da zona sul tampouco deixavam de ter suas vilas operárias e fábricas e o próprio comércio e atividades domésticas atraíam camadas da população de menor poder aquisitivo, crescendo juntamente com a elite burguesa. Surgem bondes destinados a transporte de carga e passageiros, com passagens bem mais baratas e nos quais se permitiam modos e trajes menos refinados. “Esses bondes bagageiros tiveram desde logo o apelido de "caraduras" e, mais tarde, de "taiobas", e neles podia-se viajar descalço, em meio a trouxas de roupa, tabuleiros de verduras, frutas ou doces dos ambulantes, jacás de galinhas e outras aves, e todo tipo de mercadoria”. (WEID, 2010:17). De uma disputa, nos primeiros anos, entre várias companhias que visavam o lucrativo empreendimento, (rentável não só diretamente com a venda de passagens, mas também por estarem associadas ao capital imobiliário), por volta de 1900 já vemos algumas poucas empresas de carris dominando e dividindo entre si as regiões da cidade. Capital privado nacional associado ao estrangeiro em monopólios segmentavam o mercado do transporte coletivo urbano – os bondes estavam expandindo a cidade com sua mobilidade útil e eficiente à uma cidade em processo de modernização. De fato no decorrer dos últimos anos do século a população carioca crescia num ritmo enorme, a industrialização aumentava ao passo que a mão de obra escrava já se tornava inviável, até que a abolição e o fim do Império sacramentassem definitivamente a passagem ao sistema capitalista moderno. Imigrantes e muita gente do interior do país chegavam à capital em busca de trabalho. As intervenções de Pereira Passos viriam resolver de modo drástico e definitivo (ou assim pretendiam) os problemas de uma cidade despreparada para todo crescimento que a industrialização trazia. Mais que isso, era preciso fazer jus à modernidade republicana, aos ideais tão novos e ao mesmo tempo tão distantes da realidade de uma cidade ainda marcada fortemente por seu passado colonial e escravocrata. Assim, a receita Haussmann foi reproduzida em terras brasileiras de modo fiel, casando perfeitamente com os ideais positivistas republicanos. Ordem e progresso era o lema de um país que via sua capital ser bruscamente reformada, na mesma época em que um novo sistema político (tardio) pretendia transformar o que era um império decadente numa nação ordenada. Se os bondes tiveram papel decisivo na mobilidade urbana nessa virada de século, no decurso deste o automóvel – este sim o símbolo maior da modernização, com sua mobilidade privada - se tornaria o foco das políticas de transporte no Brasil. A escolha pela malha rodoviária preponderou nos investimentos em circulação que almejavam ligar o imenso país e aproximá-lo das grandes potências desenvolvidas. Nada mais simples e direto para nos apresentar essa política do que o conhecido lema do presidente Washington Luis – Governar é abrir estradas. Máxima inspirada no ideal de modernização sempre perseguido, ainda que distante da realidade brasileira, e sustentada pela força do fordismo que revolucionava os meios de produção incitando a formação de novos mercados consumidores. A posse do presidente em novembro de 1926 é também uma imagem emblemática: A cerimônia de posse transcorreu conforme o protocolo, com a presença de autoridades as mais diversas e dos imprescindíveis Dragões da Independência. O que destoava das cerimônias precedentes era a presença destacada de um artefato que chamava a atenção entre o cortejo que acompanhava a posse. Tratava-se do automóvel que levava Washington Luis e seus correligionários ao Palácio Presidencial e que guiava pelas ruas do Rio de Janeiro o tradicional grupo que acompanhava a cerimônia de posse. Em carro aberto, o presidente demonstrava o novo paradigma de modernização que, daquele momento em diante, consolidar-se –ia no projeto político nacional encampado por Washington Luis e seu grupo.” (SÁVIO, 2003:15) Essa política de transportes preponderantemente rodoviária favoreceu sobretudo as elites que podiam ter acesso a um automóvel e custear sua cara manutenção. Se na década de 20 ainda era um produto raro e que somente uma alta burguesia podia ostentar, vemos principalmente a partir dos anos 50 o automóvel se tornar um bem de consumo desejado pela classe média. As cidades vão gradativamente sendo projetadas em torno do automóvel, como veículo principal de circulação, ainda que grande parte da população não tivesse acesso a ele. O american way of life difundido pelos Estados Unidos no pós-guerra baseava-se na imagem do carro como emblema da liberdade – pautada num universo privado, numa mobilidade veloz, desenraizada e indiferente na voracidade consumista. Um modo de vida que corroborava o esvaziamento do espaço público, relegado cada vez mais a espaço de passagem dos carros em alta velocidade nas autopistas e recheado de publicidades a forjar uma sociabilidade de consumo. FONTENELLE (2007) analisa o surgimento da rede de fast food, Mc Donalds como restaurante de estrada até se tornar uma marca mundialmente conhecida. A partir desse caso aponta relações entre a arquitetura contemporânea das cidades feitas para o carro e o consumo como fonte de segurança e identificação no espaço público esvaziado. Um dos efeitos dessa cidade midiática que se constitui aí seria uma sociabilidade da indiferença. O METRÔ CARIOCA – DOS PROJETOS À PRIVATIZAÇÃO. É fato que os transportes coletivos foram sempre colocados em segundo plano nos grandes planejamentos urbanos no Brasil, especialmente depois que o país entrou de vez no rol dos maiores mercados consumidores das multinacionais automobilísticas. Com o metrô não foi diferente, como veremos no caso do Rio de Janeiro, onde ele aparece somente no fim dos anos setenta quando sua necessidade já se fazia por demais evidente. O primeiro plano urbanístico para a cidade a prever a construção de um metrô foi o Plano Agache, no fim da década de 20. A insuficiência do transporte público na cidade já era constatada, mas a prioridade era dada à circulação rodoviária, com o projeto de um sistema de vias expressas interligando o município a toda região metropolitana e outras estados. O metrô era visto como um substituto aos bondes, considerados grandes vilões dos congestionamentos. No entanto, ficou apenas como projeto. Outros planos elaborados nos anos seguintes ainda citavam o metrô e reconheciam a urgência na melhoria do sistema ferroviário, então principal meio de transporte da população do subúrbio e baixada. (HEIDE, 2007:127-128). Nos anos sessenta o governo do recém criado Estado da Guanabara encomendou um novo grande projeto de urbanização para a cidade, o chamado Plano Doxiadis. Ele marcaria o planejamento da tecnocracia militar focada em superplanos, nos quais muito do que se projetava era de difícil implementação, dada as proporções amplas de abrangência das intervenções e a burocracia na execução das obras. O Plano Doxiadis seguia a tendência progressista e utópica do urbanismo modernista, [...] primava pela construção de linhas expressas (dentre as quais as atuais Linhas Vermelha e Amarela) e pela introdução do metrô no sistema de transportes da metrópole em formação. Na verdade, o referido plano pretendia promover uma racionalização técnico-científica do espaço urbano do Rio de Janeiro, atribuindo uma maior funcionalidade ao mesmo. (HEIDE, 2007:128) Em 1966 o governo deu início então aos estudos sobre a viabilidade técnica e econômica da construção do metrô. Priorizou-se então uma primeira linha que ligaria Ipanema à Tijuca, passando pelo centro da cidade, a ser construída até 1975; depois ela se estenderia até Jacarepaguá em 1990. A linha dois, que ligaria Pavuna à Niterói já estava também projetada, mas era a terceira na lista de prioridades. No entanto os atrasos somente permitiram que o metrô fosse inaugurado em 1979 com apenas cinco estações, mas com toda a pompa de mais uma grande obra da ditadura militar. Estamos entregando o seu metrô. Ele é um dos resultados de quatro anos de trabalho do governo da fusão. Foi uma prioridade, é uma realidade. O metrô chega para ajudar você a viver melhor, numa cidade mais humana. A sua cidade. O metrô é o começo do fim das horas perdidas em engarrafamentos, do desperdício de combustível, da poluição, do desconforto. É um novo tempo, de transporte confortável, seguro, rápido e eficiente. É o transporte do futuro e é todo seu! Com o metrô a cidade também ganha uma nova face. As ruas e calçadas se alargam, as praças se ampliam e ficam mais bonitas, surgem pistas para o tráfego circular melhor. São mais lugares para o lazer, novos caminhos para facilitar sua vida. O metrô chegou para ser orgulho de todos os cariocas. Para ser o símbolo de uma cidade melhor. Participe desse novo tempo. CONHEÇA O METRÔ. (JORNAL DO BRASIL, 4/3/1979) Assim o governo do Estado do Rio de Janeiro anunciava seu feito na véspera da inauguração do metrô carioca, em março 1979. Depois de nove anos de obras que abalaram o cotidiano da cidade, o governo enfim entregava a população as primeiras estações do metropolitano. O texto citado foi lançado na Revista de Domingo do Jornal do Brasil, e anuncia o metrô como uma grande revolução na cidade. Porém a nova face que a cidade ganharia dali em diante seria muito mais visível para a elite carioca. Afinal, as primeiras estações privilegiaram as áreas nobres da cidade, abarcada pela linha um, que se estenderia da Tijuca até Botafogo, trecho finalizado totalmente só mais tarde, em 1982. O Pré-Metrô fora aberto no ano anterior, 1981, partindo da estação Estácio e indo até São Cristóvão e Maracanã, dando início ao que seria a linha dois, em direção à zona norte, que em 1983 ganha mais três estações. Somente em 1988 é aberta a estação Triagem; em 1991, Engenho da Rainha e em 1996 Tomás Coelho e Vicente de Carvalho. Cabe ressaltar que o Pré-Metrô utilizava o VLT (veículo leve sobre trilhos), com capacidade bem mais reduzida que o Metrô e sem ar condicionado. Desde o início o Metrô carioca se caracterizava por uma clara diferença entre as duas linhas, que servem a diferentes camadas da população, como veremos melhor adiante. O texto publicitário com que o Governo apresenta o Metrô como “transporte do futuro” (ibid.) numa “cidade mais humana” (ibid.) não faz referência aos inúmeros transtornos causados em suas obras. Diferentemente de outro texto publicitário, lançado no jornal o Globo no dia da inauguração. DESCULPA O MAU JEITO. O metrô levou anos pedindo desculpas pelos buracos, pelas desapropriações, pelo mau jeito. Mas valeu. Hoje ele oferece ao Rio de Janeiro uma das mais significativas realizações urbanas que uma cidade pode querer. Nós das Organizações TED estamos orgulhosos porque contribuímos qualificando e selecionando mão de obra para esta realização. A obra esta aí. E, pelas desculpas? Não há de quê. (O GLOBO, 5/3/1979) Inúmeros problemas ocorreram nas regiões afetadas pelas obras, tais como falta de água, de energia e interrupção de linhas telefônicas, além de todos os contratempos advindos da interrupção do tráfego em grandes áreas altamente transitadas, e mesmo a dificuldade na mobilidade dos pedestres em calçadas tomadas por tapumes de canteiros de obras. O velho problema das desapropriações ressurgia, assim como a questão da especulação imobiliária. Além disso tudo, que de certo modo era um preço a ser pago inevitavelmente, salvo a desorganização de todo o processo, evidente nos atrasos, a mão de obra utilizada nas obras fora sim outro motivo de críticas. Segundo Valladares (1981) os operários, em sua grande maioria migrantes recentes de outras regiões do país, especialmente de Minas Gerais e do Nordeste, trabalhavam em condições precárias e insalubres de segurança e moradia, (já que mais de sessenta por cento deles morava nos alojamentos situados nos próprios canteiros de obras) - alimentação escassa e de péssima qualidade, inúmeros acidentados que tinham seus direitos trabalhistas burlados, jornadas extenuantes que podiam chegar a 36 horas em regime de dobra. Uma série de problemas que acabaram desencadeando revoltas e quebra-quebras nos principais lotes, entre os anos de 1977 e 1978, quando o atraso já era grande e a mão de obra escassa, pondo em risco uma obra de significado político e econômico tão importante Vale a pena assistir ao filme “A Queda” de Ruy Guerra e Nelson Xavier, de 1976. Apesar de ser uma obra de ficção é um documento que retrata com crueza o que se passava nessas obras e o clima político da época. Ele narra a história de um operário que morre acidentado por falta de segurança numa obra do metrô carioca e a luta de um colega para que sua mulher recebesse da empresa que o contratou o dinheiro que tinha direito. O filme traz imagens reais dos canteiros de obras e dos operários e as condições em que trabalhavam. O clima de precariedade que envolve as imagens dos canteiros e da vida cotidiana dos trabalhadores é contrastada com as disputas entre grandes empreiteiras pelas concessões públicas para construção das inúmeras estações projetadas. Numa dessas disputas, o caso do operário morto se torna denúncia jornalística encomendada, cujo interesse era desqualificar a empresa que o contratara e abrir espaço para a concorrente. No fim, o colega que insistia em lutar pelos direitos da viúva acaba sendo tido como subversivo, se tornando fugitivo.. Basta lembrar que a construção do metrô mobilizava mais capital (acima de um bilhão de dólares) e força de trabalho que qualquer das outras grandes obras em andamento no Rio, na época. Por outro lado a “Operação Metrô” não se limitava a uma proposta em termos de transporte de massa para a população da região metropolitana, mas significava também uma intervenção visando ao reordenamento do uso do solo em áreas de alto valor especulativo.” (VALLADARES, 1981:90) Uma intervenção urbana tamanha retalhando a cidade em cirurgias que escavaram seu solo redefinindo seus valores, se justificava pelo benefício que trariam à circulação da população, depois que os tormentos cessassem e as estações fossem abertas. Mas nos terrenos lodosos de suas obras eram corpos operários - mal pagos e mal tratados - gente vinda de outros cantos do país em busca de trabalho, a maioria com baixíssima instrução e muitos sem carteira assinada, que arriscavam a vida ao abrir no corpo da cidade os caminhos para o “novo tempo” que o Metrô anunciava. A mobilidade do êxodo trazia para a metrópole carioca a força de trabalho mais barata, era essa sua qualificação tão selecionada, tornando ainda mais lucrativo o empreendimento que prometia dar à cidade meios para uma circulação mais moderna. E assim, com todo atraso e problemas que cercaram sua construção o Metrô foi inaugurado. Em seu primeiro mês de funcionamento as viagens eram gratuitas. Era preciso que a população aprendesse a utilizar esse veículo tão diferente e tão exigente. Campanhas publicitárias foram lançadas na mídia, mais de um milhão de folhetos explicativos distribuídos. “Você sabe andar de metrô?” A pergunta abria o panfleto, que trazia todas as explicações e coordenadas desenhadas para o correto uso do dispositivo. (O Globo, 19/02/1979). Era preciso que o usuário se acostumasse com o ambiente de segurança da estação e dos vagões, além de saber usar os bilhetes magnéticos. Uma entrevista concedida pelo presidente da Companhia do Metropolitano percorrendo as estações que seriam inauguradas alguns dias depois, apresentava à mídia esse ambiente de extrema segurança e sofisticação, um outro espaço no qual o citadino deveria se portar como usuário. Explicou que [nas estações] não haverá banheiros ‘É apenas passagem dos usuários, que ficarão poucos minutos. Além do mais em banheiro subterrâneo viceja tudo o que é proibido por Deus.’ Nas estações não haverá bancas de jornal e bares. ‘Será muito difícil tomar o trem errado, pois as indicações estão em locais visíveis, sem margem para qualquer confusão.’ Também não haverá dúvidas sobre o que é proibido: conduzir animais, fumar, viajar embriagado, estar armado ou com explosivos e corrosivos, colocar os pés na parede, cuspir e jogar detritos no chão, impedir o fechamento ou abertura das portas, usar o alarme sem justificativa. [O presidente da Cia Do Metrô] acha que os passageiros não criarão problemas e manterão as instalações limpas. ‘De modo algum as estações serão iguais a certas rodoviárias imundas e desorganizadas’ (JORNAL DO BRASIL, 3/3/1979) O metrô surgia desde o início como esse espaço altamente regularizado que se destacaria inclusive de outros lugares como a Rodoviária, e porque não, da própria cidade. Ali não haveria lugar para sujeira, desordem e caos – como heterotopia de compensação o metrô seria produzido e visibilizado como um espaço da cidade diferente, que estaria de certo modo imune aos perigos da violência, dos engarrafamentos, da poluição. Além disso, seria um transporte de massa sofisticado, se comparado aos ônibus e trens, mais veloz e que impele o usuário a uma interação maior com todos os dispositivos tecnológicos que o compõem – desde o bilhete, (ou atualmente o cartão), passando pelas catracas, todos os aparatos de vigilância como câmeras e monitores; os alto-falantes que anunciam constantemente informações, o próprio trem, enfim. Caiafa (2008) criou a noção de ambiente maquínico para caracterizar esse espaço, no qual também vê características de uma heterotopia de compensação em relação à cidade e que em muitos casos pode ser intimidador e de difícil acesso a alguns usuários menos adaptados à tecnologia. O ambiente maquínico do metrô apresenta ao passageiro uma série de dispositivos técnicos que ele tem que abordar para entrar no metrô, embarcar no trem e seguir viagem. São dispositivos em algum grau automáticos e que exigem que uma relação se estabeleça com a máquina.[...] Consiste num espaço exigente e regulado e que envolve um forte componente tecnológico. Um elemento local desse ambiente é, portanto, um tipo de ordem que contesta a dos espaços ordinários da cidade. (CAIAFA, 2008: 5-9) Em todo caso, são visíveis as diferenças entre as duas linhas que compõem o sistema do metrô carioca. Como dissemos anteriormente, a linha dois sempre foi desprivilegiada em relação à um. É preciso deixar claro que esta se estende da Tijuca, bairro da zona norte mas predominantemente de classe média, passando pelo centro da cidade e chegando, atualmente, até Ipanema – ou seja, percorrendo áreas nobres e turísticas. A linha dois parte do Estácio, área central da cidade e se dirige até a Pavuna, fronteira entre o município e a baixada fluminense, percorrendo os subúrbios em que vivem predominantemente classes mais pobres. Ela, ao contrário da linha um, é toda em superfície, o que barateou seus custos. Suas estações, em geral, são bem mais simples em suas arquiteturas. A superlotação nessa linha é um problema antigo, até pelo fato dos carros, por muito tempo, terem sido menores e os períodos de espera entre um trem e outro, maiores. Mas nos últimos anos esse problema vem sendo “democratizado”. De fato, muita coisa mudou depois que a operação e a manutenção do metrô carioca foram concedidas ao capital privado, num processo que iniciou-se em 1998 e terminou em 1999, época em que as privatizações de empresas estatais estavam em voga. A propriedade do patrimônio continuaria sendo do Estado, assim como a responsabilidade sobre as expansões, aumento do número de trens, etc, e a fiscalização do serviço oferecido. Já no início dessa parceria entre capital público e privado, em 1999, foram abertas as estações Cardeal Arcoverde, (a primeira em Copacabana), na linha um, além das de Irajá, Colégio, Coelho Neto, Acari/Fazenda Botafogo, Engº Rubens Paiva e Pavuna, na linha dois, que deixava de operar no sistema de Pré-Metrô. Nesse ano já se observou um aumento de até 27% no número de passageiros e até 2005 esse número já chegava a 150%, depois que foram criadas linhas expressas de ônibus fazendo integração com o metrô, além da integração com os trens da Supervia, que percorrem outros bairros suburbanos e toda a baixada fluminense. (HEIDE, 2007:133). Ou seja, com a privatização o metrô passava gradativamente a atender um número muito maior de usuários, afinal era agora um transporte que precisava gerar lucro. O aumento da passagem, se tornando a mais cara entre todos os metrôs brasileiros, foi uma diferença que se fez sentir de imediato no bolso dos usuários. Mas também pôde se perceber uma queda na qualidade do serviço oferecido, as superlotações se tornaram comuns, pois o incremento no número de usuários parece não ter sido acompanhado por uma expansão no número de trens. Coincidentemente ou não, no ano de 2006 foi criada a lei estadual Lei 4733/06, de autoria de Jorge Picciani e aprovada pela então governadora Rosinha Matheus , garantindo que nas horas de pico existam vagões exclusivos para mulheres, não só no metrô como nos trens. Nestes, porém, a lei não vingou. No metrô podemos ver nesses horários os seguranças correndo pela estação para retirar homens que entram nos vagões exclusivamente femininos, caracterizados por um aviso escrito numa faixa rosa acima das portas automáticas. No fim de 2009 foi inaugurada a linha 1A que nada mais é do que uma ligação direta entre as linhas um e dois. Na época houve muita confusão com essa mudança, e ainda há, não só dos passageiros que precisavam estar mais atentos ao destino dos carros, mas da própria empresa em dificuldade de operar o novo sistema. Desde então passaram a ser constantes as panes e interrupções nas viagens, muitas vezes mais longas do que o de costume. As críticas, que já eram muitas antes de tudo isso aumentaram levando o Ministério Público a intervir “Justiça dá 30 dias para fim de problemas no metrô do Rio”. G1 (16/03/2010). Em todo caso, a privatização trouxe a possibilidade de abertura de mais estações (além das citadas, ainda foram abertas mais duas em Copacabana e uma em Ipanema. Para 2014 promete-se outra na Tijuca e em 2016, a linha quatro, que chegará à Barra da Tijuca servindo especialmente ao Jogos Olímpicos que se realizarão nesse ano) e maior integração com outros meios de transporte de massa. Mas também trouxe uma precarização, concomitante à popularização. O metrô carioca que era esse transporte público sofisticado, algo elitizado e também bastante restrito em sua extensão em relação aos projetos iniciais, cresceu e passou a lidar com seus usuários na condição de clientes. Caiafa (2008b) vê essa outra relação que se forja entre o usuário-consumidor e o metrô evidenciar-se nas publicidades que a empresa passa a estampar em seus espaços. Apesar da precarização do serviço, slogans como “A qualidade de vida anda aqui”, ou “A vida é melhor aqui” e o atual, “Caminhos para uma vida melhor” parecem querer anunciar um produto diferenciado - a locomoção passa a ser também uma forma de consumo, e o usuário que sofre sua “degradação em cliente” (Caiafa, 2008b:113) tem que ser convencido de que faz um bom investimento. Mas não apenas as publicidades do próprio metrô passam a compor esse ambiente. Cada pedaço de parede, degrau de escada e mesmo toda a lataria dos trens serve como espaço publicitário para diversos produtos, não apenas os tradicionais anúncios culturais de filmes e peças de teatro, mas qualquer marca que se disponha a pagar. Assim, o espaço do metrô vem se tornando também midiático, se coadunando com um fenômeno contemporâneo que faz das cidades meio (mídia) para o consumo. A cidade midiática (FONTENELLE, 2007) corrobora a idéia de segurança como necessidade primaz nas cidades assoladas pelo medo da violência e em última instância, do “outro”. Tais cidades são feitas para serem vistas, mais do que experimentadas. A lógica do consumo faz do olhar a exacerbação de uma experiência urbana protegida na segurança do reconhecimento, da familiaridade trazida pelas marcas. Uma sociabilidade forjada no ato do consumo permite que se sobreviva a esse ambiente desolador com que se desenha o espaço público, relegado a espaço de passagem na cidade da velocidade e da circulação. Assim, mais do que uma crítica à privatização de um meio de transporte, apontamos aqui para o fato de que toda essa midiatização do metrô remete-nos a urgência de uma cidade que impele por ser habitada. Relegada a lugar de medo, de insegurança, de consumo e passagem ela no entanto continua aberta à alteridade, que não pode ser traduzida como perigo, como os discursos pertinentes ao modo de vida calcado na privatização e no consumo apontam. As histórias acerca do metrô são muito vastas, desde a época em que não passava de um sonho projetado, até hoje, quando ainda tantos mapas traçam novas linhas a serem abertas futuramente. A cidade do Rio de Janeiro, que será sede da Copa do Mundo em 2014 e Olimpíadas dois anos depois, vê renovarem-se os discursos reformistas em novas promessas de que a idílica cidade maravilhosa será restaurada. A região portuária começa a ser “revitalizada”, apesar de lá já viver muita gente, que no entanto não foi sequer consultada sobre as transformações que ali acontecerão gerando lucro estupendo para os investidores “Comunidade da zona portuária rejeita proposta de revitalização da prefeitura do Rio” . Jornal do Commércio - on line.. Favelas sendo tomadas pela polícia estão sendo “pacificadas”, valorizando os bairros em que se situam, abrindo novos horizontes para a especulação imobiliária. Algumas já são cercadas por muros para conter sua expansão. O choque de ordem com que a atual gestão da prefeitura abriu seu mandato, já não ganha tantos holofotes na mídia. O espetáculo da ordem parece ter se normalizado ou simplesmente já não acontece com a mesma força. A cidade imersa em políticas de segurança se prepara para receber convidados de todo o mundo nos dois grandes espetáculos do esporte, movidos por investimentos bilionários. O metrô é uma peça crucial nesse novo quadro que se desenha sobre o Rio. Ele precisará confirmar que a cidade está no nível das grandes metrópoles européias e americanas, que é capaz de organizar eventos desse porte e carregar os espectadores com velocidade e conforto até os estádios. O que está em jogo, porém, é muito mais do que isso. Trata-se de novos dispositivos que não só forjam uma cidade mais ordenada aos olhares turistas, ávidos por consumo, mas que prometem ainda, e novamente, futuros grandiosos. Essa nova onda desenvolvimentista, potencializada por discursos políticos populistas que vêem o Brasil emergir como potência mundial, vem justificando no presente novas políticas de homogeneização e regularização de práticas cotidianas banais. O metrô tem papel importante nessa história e ainda muitas outras estão para serem escritas nos percursos que fazem os seus usuários cotidianamente. IV - FIM DA LINHA: Na última estação há dois destinos possíveis. Continuar no vagão e voltar para trás, refazer o trajeto ao inverso. Ou descer e seguir a multidão que sobe as escadas em busca da superfície. A viagem percorrida aqui teve muito daqueles retornos. A volta para trás ajuda a entender histórias que ficaram esquecidas em outras estações. No ir e vir do metrô a linha do tempo é equivocada. De fato não há uma linha, ou duas, tampouco uma ou duas direções possíveis, nem um ponto final peremptório. A malha descrita pelo mapa ignora saídas insuspeitas, traçados que a subjetividade inventa no jogo urbano. Debaixo do asfalto a máquina corre veloz, sempre almejando o progresso, mas carregando histórias anônimas que talvez nunca deixem a pequenez de sua condição, detalhes cotidianos. Essa condição não é sua fraqueza, pelo contrário. Elas assim podem continuar insinuando invenções que subvertem os planos monumentais da História, escrevendo histórias perdidas nos túneis escuros entre uma estação e outra da grande cidade. Mas por hoje a viagem será interrompida e tomar as escadas se faz necessário. Depois de muito tempo lá dentro, subir à superfície é, como diria Caetano, “uma outra alegria”. É noite, a cidade está aberta em sua vastidão barulhenta, sem os ecos do espaço fechado. Tenho agora por teto somente o céu e no chão estão inscritas fronteiras implícitas, perdidas em meio ao caos dos vendedores ambulantes e da luz de mercúrio que ilumina sem exterminar as sombras. Aqui fora tem-se a sensação de que saímos de um jogo, a passagem entre os dois ambientes tem um efeito de estranhamento. A rua cá fora parece inspirar outras ludicidades, de regras menos claras e também perigos de intensidades outras. Trago uma calmaria, um corpo mais atento que de costume, sigo pra casa carregado de reticências sobre a cidade que ainda tenho muito que conhecer. *** O fim da linha abre outras viagens, a conclusão só pode ser mesmo uma pausa antes de outro percurso. Nela recolhemos o que ficou não como certeza, verdade, mas como marcas que nos orientem nos próximos encontros e batalhas. Uma lista de experiências emaranhadas de conceitos que potencializam nossa posição no mundo. Vestígios de uma viagem que não se pode refazer, cada vez que a contamos são outros rastros que despontam. Mas saímos diferentes, um pouco mais confiantes ainda que sem entender de todo o que significará ser mestre: apenas mais um título? Um novo caminho se abrindo? Ou algo que se fecha antes de um novo momento? Deixemos o tempo e as marcas dizerem. Por hora, estamos cara a cara com uma fronteira, mais uma dentre tantas que dão medo mas pedem, urgem para serem testadas. Atitude perigosa, mas fundamental, que Foucault (2006) inspira sugerindo imaginação obstinada frente o presente. Uma aventura em que o saber é uma força parceira, mas que tem ela mesma seus próprios limites frente à vastidão de um desconhecido que está sempre um passo adiante. Nas palavras do pensador que recusava ser o mesmo “a experiência teórica e prática que fazemos de nossos limites e de sua ultrapassagem possível é sempre limitada, determinada e, portanto, a ser recomeçada.” (FOUCAULT, 2006:349). Nas fronteiras é pertinente operar essa reflexão ética pela qual o exercício da liberdade é pensado ao problematizarmos o modo como nos constituímos enquanto sujeitos, na relação com os jogos de poder e verdade em nosso tempo histórico. Esse exercício de atenção, também pensado como a construção de uma estética da existência, não é algo simples, no sentido de um suposto livre-arbítrio, mas um confronto que põe em cheque nossos modos de relação – conosco, com os outros, com o mundo. No caso do sujeito do conhecimento, sua relação com o saber que produz e que o recoloca constantemente no circuito da verdade e do poder só pode ser de fato transformada eticamente quando sua experiência é posta em cheque, incorporada ao próprio exercício do saber. Não para fortalecê-lo como sujeito, mas justamente ao diluir isso que ele é, que se confunde com o tempo que vive, e poder abrir possibilidades de outros pontos de partida na história que agora se faz. Na caminhada que fizemos aqui essa difícil tarefa foi ensaiada, experimentada em viagens metropolitanas nas quais os limites que nos constituem foram em alguma medida abalados. Impossível estar na cidade do mesmo modo, depois que banalidades que constituem nosso cotidiano são desnaturalizadas pela história, acordando-nos para detalhes antes insuspeitos. As fronteiras que regulam a cidade são inumeráveis, mas entre elas existem algumas que partem do próprio corpo de quem move-se nela. A atenção que se pede nas linhas demarcatórias, como as do chão na estação do metrô, não é a mesma que irrompe no corpo passageiro, aquele que da passagem à experiência de estar na cidade não como expectador transeunte, mas que testa sensorialidades outras além da visão. Esse corpo evidentemente não é algo pronto, um ideal a ser alcançado ou um novo modelo. São momentos num difícil exercício sempre incompleto, já que a cidade oferece sua heterogeneidade e seu caos a todo instante e suportá-los não é algo simples. Dar passagem à experiência urbana requer essa outra atenção que na circulação tendemos a ignorar, afinal quando os percursos já estão definidos a atitude blasé é suficiente e eficiente. Passa-se pela cidade com o intuito de chegar ileso a um destino, o caminho se torna mera passagem, não nos diz nada nem nada teremos a dizer dele. O que se perde nessa travessia segura é a força política da cidade, restando nesta o vazio deixado por corpos apressados, um vazio de descuido a nos interrogar sobre o que estamos fazendo de nós mesmos. É nesse sentido que uma ética da mobilidade ganha relevância ao percebermos que a circulação é um modo de mobilidade dentre tantos outros e que, portanto, temos escolhas a fazer e outras possibilidades de experimentar o espaço urbano. Afinal o modo como nos movemos na cidade condiciona a percepção que temos dela e de nós mesmos. Uma mobilidade mais ousada, ou seja, que não se restrinja sempre aos cômodos caminhos da circulação, que não se contente com essa forma de liberdade calcada na segurança e na indiferença, pode nos acordar para o fato de que outras heterogeneidades habitam ainda a vida urbana, desde que esta seja encarada numa disposição mais atenta e cuidadosa. Uma atenção que se tem com todo o corpo, não apenas com o olhar. Uma mobilidade atenta até mesmo, e sobretudo, quando o movimento é de pausa. De certo as possibilidades de experiência urbana são múltiplas, mas a indiferença produzida pela circulação e pela privatização dos espaços e das sociabilidades na cidade tem dificultado que possamos inventar novos modos de compartilhá-las. Pode parecer que já não há espaço para experiências que não aquelas inseridas nos códigos do mercado e das legislações que tão fortemente tem incidido sobre o espaço público, como no caso do Rio de Janeiro. Uma cidade tão singular em que estão evidentes as tremendas desigualdades sociais mantidas atualmente por um sistema capitalista neoliberal, mas cujas proveniências remetem à sua história, ou melhor, às inumeráveis histórias que seu passado guarda e que ainda nos afetam. É uma dessas cidades que não se homogeneízam de todo, mas opera misturas insistentes em desviar as linhas que tendem a regular a vida de seus habitantes. Ante forças conservadoras, adornadas pelo discurso contemporâneo da globalização, que ainda prometem nos colocar lado a lado com as superpotências do primeiro mundo, cabe a nós apontarmos outras urgências, outros mundos cotidianos que agora estão constituindo alternativas a esse modelo. Essas outras possibilidades, nem sempre evidentes e muitas vezes desencorajadas, dependem talvez de algo como aquela atitude obstinada de imaginar. Ato não de crença, mas atenção plena ao tempo presente como momento histórico, (portanto sempre aberto, imprevisível, a ser escrito) e ao passado que nele ecoa. Imaginar outras mobilidades possíveis em meio aos fluxos da circulação que não param, exige certa recusa, o contrário de uma sofisticação, algo como um despojamento bastante incomum em dias tão acelerados em que as noções de tempo e espaço são constantemente redefinidas por máquinas informacionais e cibernéticas. É que imaginar parece ser cada vez menos necessário em um mundo de “diversidades” quase sempre circunscritas a uma polaridade: a que oferece por algum preço o conforto do consumo ou relega os que não podem pagar à escassez da falta. Nesse cenário a criação aparece como capricho poético, ingênuo até que se torne produto, ou improviso de quem tem que se adaptar com pouco. Obstinação de imaginar é sim, mais do que nunca, necessária. E talvez possa nos abrir saídas para os problemas de uma cidade cheia de desigualdades e heterogeneidades, sem que tudo isso seja planificado sob a força de políticas pautadas principalmente em interesses econômicos e de segurança. Urge nos perguntarmos que políticas da mobilidade queremos para a cidade, inventando em nossa vida cotidiana e com nossos corpos as respostas possíveis. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, C. O poder ultrajovem e mais 79 textos em prosa e verso. Rio de janeiro: Record, 1986. BAPTISTA, L. Noturnos urbanos. Interpelações da literatura para uma ética da pesquisa. Estudos e Pesquisas em Psicologia. Ano 10, n. 1 – UERJ, 2010. ____________ . Tartarugas e vira-latas em movimento. Políticas da mobilidade na cidade. In. BRITTO & JACQUES, Corpocidade: debates, ações e articulações. Salvador: EDUFBA, 2010. BAUDELAIRE, C. A cada um sua Quimera. In. Charles Baudelaire- Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Ed. 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