[ensaio de imagem]
Amir Brito Cador
São Paulo, 1976. Graduando em Artes Plásticas na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Este texto foi apresentado como parte do projeto de Iniciação Científica "A imagem e a Escrita" e
contou com o apoio da Fapesp.
Mutus Liber
Esta gravura surgiu a partir de um desenho de observação feito em um
caderno de folhas finas, um pouco transparentes. O Marcos, meu amigo, foi me
visitar e eu aproveitei para desenhá-lo em duas folhas consecutivas do caderno
enquanto ele folheava um livro. Em uma página fiz apenas as pernas cruzadas e o
livro aberto apoiado no colo, deixando a cabeça e o tronco na página seguinte. Ao
virar a página, acontece uma inversão do desenho, ficando uma parte de frente
para outra.
Inicialmente, pensei em fazer uma gravura apenas, com o primeiro
desenho, uma figura incompleta de pernas cruzadas. Comecei gravando como de
costume, marcando um contorno com a goiva para depois remover o linóleo da
parte circundante, deixando apenas as linhas grossas e irregulares formando um
desenho. O material retirado seguindo um mesmo sentido criou linhas paralelas
que dão movimento ao desenho, como se as pernas estivessem se cruzando
indefinidamente. Para facilitar a remoção de uma parte maior da placa, utilizei uma
serra tico-tico. A placa de linóleo foi recortada e o desenho apareceu como um
quebra-cabeça, as três partes se encaixando para formar um retângulo, uma
página. Daí veio a idéia de aproveitar as duas partes que restaram da matriz inicial
para fazer outras gravuras com um formato irregular.
A gravura em linóleo oferece a resistência do material a ser vencida. Este
embate é o que oferece a possibilidade de desenvolver um pensamento através
das imagens, que é característico do meio escolhido. As marcas deixadas pelo
linóleo evidenciam o gesto do gravador. Esta atitude e o seu registro se
aproximam de um tipo de escrita, o que me faz lembrar do termo grego graphein,
origem comum do desenho e da escrita.
Olhando para o caderno novamente, a imagem invertida sugeriu um leitor
sendo refletido por um espelho. Para mim, uma imagem adquire significado pelo
o
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potencial que tem a ser desenvolvido, pela elaboração mental que permite depois
de pronta, ela não se encerra em si mesma. A associação com o Mutus Liber, o
livro mudo da alquimia, que o Marcos havia falado a respeito em outra ocasião,
surgiu do ato de ler um livro em branco (um livro mudo) representado nesta
gravura. Este livro é uma narrativa em imagens que mostra a transmutação da
matéria, uma metáfora para a transformação espiritual do homem, que acontece
através do autoconhecimento. Vejo o artista como uma espécie de demiurgo, que
transforma a matéria de acordo com sua vontade, sendo também transformado
neste processo.
É atribuída a Hermes Trismegisto (Thot para os egípcios) a criação da
escrita, assim como da alquimia, da matemática, da medicina e da astrologia. Ler
os sinais é fundamental em todas estas disciplinas.
"Ora, lê, lê, relê, trabalha e descobrirás". Esta é a única frase escrita do
livro, que aparece inserida em uma imagem, como nas iluminuras medievais.
Mesmo nas edições publicadas na França e na Alemanha aparece em latim.
Preferi manter neste idioma, pois qualquer palavra escrita em um idioma
desconhecido atrai o olhar pelo seu desenho. O latim acrescenta outra informação:
era o idioma em que foi escrito o "Discurso do Método" de Descartes, obra que
marca a cisão corpo-espírito, que se repete na divisão da figura em sua metade
superior (cabeça-mente-espírito) e inferior (pernas, tronco, o sexo, o corpo).
As letras, ao serem gravadas, não foram todas invertidas como deveriam.
Ao desenhá-las, escrevi da direita para a esquerda, como se escreve em árabe,
mas ao invés da letra "g" gravei a letra equivalente ao "u" do alfabeto árabe.
Preferi manter deste jeito, o acaso e os atos falhos fazem parte do processo, parte
da obra.
Esta gravura foi realizada enquanto eu estudava a história da xilogravura e
a história do livro, que caminharam paralelas até o início do século XX. A relação
que se estabelece entre o olho e a obra é diferente da pintura. Pelas dimensões
da gravura, ela foi feita para ter por perto, carregar consigo. É uma relação tátil:
tocar com os olhos, ver com as mãos.
O formato retangular dos rolos e pergaminhos é algo que o olhar percorre,
tem um sentido, uma direção. O espaço em branco, com as figuras dispostas lado
a lado, permite uma leitura que avança em diversas direções. A imagem e o texto
são integrados pela reflexão: o que o texto sugere é explicitado pela imagem
refletida de uma pessoa lendo. O que ele vê? O livro aberto, em branco, o texto
em latim no centro da folha ou ele olha para si mesmo? Ele parece ler, mas seus
olhos estão fechados, o que remete à visão interior do Mestre Eckhart: " Nenhum
homem pode ver Deus, a não ser que esteja cego".
Estudar as imagens em sua relação com os textos despertou o interesse
pela história da leitura. Nos incunábulos, que marcam o início da xilogravura no
Ocidente, a narrativa através de imagens tem um sentido didático, conta uma
história com um determinado fim, deixar na memória uma cena conhecida, algo
que instrua as pessoas como devem proceder. As imagens do Mutus Liber propõe
uma narrativa ao mesmo tempo que negam, dizendo: "você só encontra aqui
aquilo que é capaz de encontrar".
Eu aprendo com as imagens que crio, e a única lição que posso dar é
esta: mostrar o caminho percorrido, afirmar esta possibilidade de prática da leitura.
Bibliografia
BARTHES, Roland (trad. e posfácio de Leyla Perrone-Moises). Aula. São Paulo:
Cultrix, 1989.
CARVALHO, José Jorge de (ensaio introdutório, comentários e notas). Mutus
Liber: o livro mudo da alquimia. São Paulo: Attar, 1995.
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador: conversações com
Jean Lebrun. São Paulo : Ed. da UNESP, 1998.
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