Intellèctus
Ano XV, n. 1, 2016
ISSN: 1676-7640
Herbert Daniel e a luta contra o estigma da AIDS
Herbert Daniel and the Fight Against the Stigma Associated with AIDS
João Nemi Neto
Doutor em Hispanic and Luso-Brazilian Literatures and Languages pela City University of New York
Professor do Departamento de Latin American and Iberian Cultures da Columbia University
jn2395@columbia.edu
Resumo: Este artigo pretende discutir e
analisar a obra ensaística e ficcional de
Herbert Daniel desde seu retorno do exílio em
início dos anos 80 até a sua morte em
decorrência da AIDS em 1992. Através da
análise de seus textos, pretende-se mostrar
que Herbert Daniel levanta questões
importantes para a disseminação do
preconceito contra as pessoas com HIV e
também discute o pânico moral instaurado
com a epidemia e a morte civil dos pacientes e
pessoas com HIV. Os textos de Daniel
propõem um diálogo amplo e irrestrito em
relação ao preconceito decorrente da epidemia
da AIDS traçando assim um detalhado painel
que contribui para uma compreensão mais
ampla da história da AIDS no Brasil.
Abstract: This paper aims at discussing and
analyzing both fictional and essayistic works
by Herbert Daniel from his return to Brazil
after the exile in the beginning of the 1980s
until his death due to complications related to
AIDS in 1992. Through the analysis of his
books, this paper will show that Daniel raises
important questions in order to disseminate
the prejudice against PLWH – People Living
with HIV/AIDS. Daniel also discusses the
moral panics the epidemics brought into light
and the civil death of PLWH. Daniel’s texts
propose a broad and unrestricted dialogue in
regards to the prejudice due to the AIDS
epidemics creating a detailed description that
contributes to a better understanding of the
history of AIDS in Brazil.
Palavras-chaves: HIV/AIDS, Herbert Daniel,
morte civil.
Keywords: HIV/AIDS, Herbert Daniel, civil
death.
João Nemi Neto
Introdução
Na literatura recente, vários livros têm-se destacado ao lidar de maneira direta
sobre questões relacionadas à AIDS e HIV. Depois daquela viagem, de Valéria Piassa
Polizzi e Uma vida positiva, de Rafael Bolacha são dois exemplos que merecem
destaque por trazerem à tona questões importantes para o debate e conscientização. O
primeiro escrito ainda no final dos anos 90 ajudou, entre outros sucessos, a diminuir o
estigma associado ao vírus e levar a discussão de maneira aberta às escolas e jovens do
Brasil e de outros países. O segundo, publicado em 2013, além de manter a importante
discussão sobre o estigma e preconceito, apresenta aos leitores questões relacionadas às
pessoas que vivem com o vírus após os avanços da medicina que a autora do primeiro
livro presenciou logo no início.
Tais textos são importantes para o constante diálogo que ainda se faz necessário
a respeito da AIDS e HIV nos dias de hoje. Já são mais de trinta anos desde a detecção
do vírus e início de tratamentos e campanhas preventivas. Contudo, muitas pessoas
ainda são infectadas diariamente e o estigma associado à doença também é uma questão
importante para as pessoas que vivem com o vírus.
Muito tem-se escrito sobre a AIDS no Brasil e a evolução do ativismo político,
da ciência e das maneiras como o preconceito tem marcado a vida das pessoas afetadas
– direta e indiretamente – pela epidemia (GALVÃO, 2000; NUNN, 2009; MARQUES,
2003; BASTOS, 1999 entre outros). Este artigo pretende contribuir com a discussão
trazendo à luz um dos primeiros ativistas brasileiros e vozes contra a discriminação
contra as pessoas soropositivas: Herbert Daniel. Ao voltar para o Brasil após sua
demorada anistia política, Daniel empenhou-se na luta pelos direitos humanos e já nos
anos 80 tornou-se uma das principais vozes na luta contra a AIDS e os estigmas
associados à doença. Ele esteve associado à ABIA – Associação Brasileira
Interdisciplinar de Aids – desde a sua criação e até a sua morte em 1992 produziu
ensaios, romances e outros textos procurando discutir temas relacionados à AIDS e ao
HIV. Daniel acabou se tornando referência no combate ao vírus e ao estigma associado
à doença estabelecendo canais de comunicação entre o Brasil e o mundo.
Mesmo não terminando os estudos médicos (Herbert Daniel abandonou a
faculdade de medicina no quarto ano), seu trabalho no combate à AIDS/ HIV e ao
estigma se associou aos trabalhos na área de medicina e antropologia provando de
extrema importância para a história da doença e dos agentes relacionados a ela. Neste
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artigo, pretende-se discutir alguns de seus textos e de que maneiras Herbert Daniel, exestudante de medicina, aproveitou-se do discurso médico-legal para tentar debater
questões relevantes, não só para as pessoas vivendo com o vírus, mas também para toda
a sociedade. Através de seus textos teóricos, ensaios, manifestos e romances, Herbert
Daniel deixou uma obra de extrema importância para entendermos as primeiras reações
à epidemia no Brasil nos anos 80 e traçarmos juntamente com os estudos médicos,
antropológicos e legais uma possível historiografia da epidemia no Brasil através de
seus principais agentes.
Herbert Daniel
Herbert Eustáquio de Carvalho ou Herbert Daniel, nome escolhido após o exílio
durante a ditadura, foi um importante membro da guerrilha contra o regime ditatorial
brasileiro durante as décadas de 60 e 70 até o seu exílio, primeiro em Portugal e depois
para a França. Mencionado por quase todos os participantes dos movimentos de
190
guerrilha no Brasil como importante figura durante a ditadura, ele participou entre
outras ações do sequestro do embaixador alemão ao lado de Alfredo Sirkis. Após seu
retorno ao Brasil envolveu-se com questões relacionadas aos direitos humanos,
ecologia, movimento homossexual e AIDS/ HIV chegando a ser um anticandidato à
presidência nas eleições de 1989. No vídeo de lançamento da sua campanha, Herbert
Daniel diz que resolveu ser candidato porque,
no momento em que descobri que estava doente da AIDS, descobri que
fundamental é garantir a sua própria vida e dizer eu estou vivo apesar do
preconceito que condena o doente de AIDS à morte civil. Este é o pior tipo
de preconceito, quando você não tem mais direito nenhum porque você já
está morto. Isso é uma coisa que o doente de AIDS tem em comum com
todos os brasileiros. (FUNDAÇÃO, 1989.: s.p).
Mineiro de nascença, “Estudante de medicina na UFMG; 1,64m, crítico de
cinema no rádio, Belô...” (DANIEL, 1982: s.p.), Daniel chegou a ser chamado de “o
último exilado” por Henfil e Alfredo Sirkis já que mesmo após o retorno de todos os
políticos exilados, ele encontrou resistência dentro até dos grupos de anistia. Sirkis
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(1998) no posfácio de seu livro “Os carbonários: memórias da guerrilha perdida” diz
que,
Daniel, no entanto, só pôde regressar dois anos depois. Permaneceu em Paris
e ficou sendo conhecido como o “ultimo exilado”, o que inspirou até um
personagem do Jô Soares, o Sebá. Enquanto esperava a solução do seu caso,
Daniel lia e escrevia muito e trabalhava numa sauna gay. Finalmente de
regresso, em 81, Daniel lançou alguns livros que preparara em Paris e
escreveu vários outros, alguns autênticas preciosidades, mas que nunca
chegaram a um grande público (SIRKIS, 1998: s.p.).
Sobre o seu regresso, em 1979 Herbert Daniel escreveu uma carta explicando
que ainda não havia recebido anistia. Lampião da Esquina (março, 1980), um jornal de
ativismo homossexual foi o único meio que publicou sua carta que dizia, entre outras
coisas, “sou um dos poucos exilados que restam fora das margens que o governo quer
impor entre anistiáveis e condenáveis” (DANIEL, 1980: 10).
As razões não eram claras, mas de acordo com o autor, o consulado brasileiro na
França disse que ele deveria terminar sua sentença até 1981, contudo como explicar a
“anistia ampla, geral e irrestrita” propaganda pelo governo em 1979? Em seu livro
Passagem para o próximo sonho, Daniel explica que sua homossexualidade talvez
tenha sido um dos motivos de seu “não-retorno”. Daniel menciona uma reunião do
Comitê Brasil pela Anistia no qual a carta (que seria publicada no “Lampião da
Esquina”) não foi lida porque ele era “simplesmente uma bicha”.
Vários autores que escreveram sobre a ditadura mencionam a “questão” sexual
de Daniel. Na biografia da presidenta Dilma Rousseff, por exemplo, Amaral diz que,
“na barra-pesada de 1969, Dilma era uma das poucas que entreviam a segunda angústia
de Herbert, nos papos que ela costumava regar com batida de limão, preparada na
cozinha do aparelho”. (AMARAL, 2011: 55)
Daniel escreveu sobre o exílio e a homossexualidade em Passagem para o
próximo sonho (livro que teve o título sugerido de “O último exilado”, mas Herbert
Daniel resistiu às pressões do mercado e manteve seu título mais metafórico). Após seu
retorno ao Brasil, Herbert Daniel tornou-se um ativista pelos direitos da população
LGBT, direitos humanos e ecologia ao mesmo tempo em que ele passou a escrever
sobre HIV/AIDS tanto no âmbito ensaístico quanto na literatura.
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Nos primeiros anos de sua volta ao Brasil, Herbert se filia ao Partido dos
Trabalhadores, o PT. Após divergências, em 1986, juntamente com outros dissidentes
do PT, participa da fundação do Partido Verde no Brasil. Pelo PV, Herbert Daniel lança
uma anticandidatura à presidência da república para as eleições de 1989, ano em que é
diagnosticado com tuberculose ganglionar e descobre ser portador do vírus HIV. Apesar
de convalescido, a campanha, no entanto, é mantida. Essa foi a primeira e a única vez
que um candidato assumidamente homossexual e soropositivo se candidatou a tal cargo
político no país. Como explica João Silvério Trevisan:
Há também o gesto significativo de Herbert Daniel: após deixar clara sua
situação de homossexual infectado pelo vírus da Aids, integrou-se na chapa
de Fernando Gabeira, como candidato à vice-presidência da República, em
1989, pelo Partido Verde. Seu gesto foi sem dúvida simbólico daquilo que
vinha ocorrendo no decorrer da década: homossexuais tomavam seus lugares
para além do gueto e, na condição de cidadão/ãs, reivindicavam sua parcela
de culpa no pecado de ser brasileiro. (TREVISAN, 2004: 319)
192
Já em 1989, Daniel passa a fazer parte, juntamente com Betinho e outros
intelectuais e ativistas, da ABIA – Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids. A
ABIA desde o início, de acordo com Bastos (1999: 84) mantinha um estilo acadêmico
que uniu antropólogas como Jane Galvão e Carmen Dora Guimarães e ativistas como
Herbert Daniel. Em um dos boletins da ABIA, de 1989, Daniel juntamente com
Guimarães e Galvão publicam “A questão dos preconceitos” (ABIA 1989a: 5). Tal texto
debate os estigmas e preconceitos associados à doença que vão além da questão de
saúde pública.
AIDS e o estigma social
Desde os primeiros casos detectados, o HIV e AIDS foram ligados a práticas
sexuais entre homens. Chegou a ser conhecido como “câncer gay” e GRID – Gay
Related Imuno Deficiency. As primeiras notícias tanto nos Estados Unidos e Europa
quanto no Brasil relatam uma ‘misteriosa doença’ entre homossexuais. A Revista Veja
de 28 de novembro de 1984, por exemplo, publicava estatísticas sobre a doença dizendo
que 70% dos infectados eram homossexuais. Ainda que as estatísticas já desde os anos
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90 comprovem que não se pode falar em ‘grupos de risco’, tal estigma acabou marcando
os homens que praticam sexo entre homens e, de certa maneira, formando a identidade
homossexual – gay – nos anos 80 e posteriormente. Em 1993, por exemplo, o conselho
nacional de pesquisa norte-americano (National Research Council) publicou um estudo
afirmando que a AIDS teria um impacto muito pequeno na vida da maioria dos
americanos (BERSANI, 1995: 21).
Além dos textos médicos, os primeiros textos já falavam dessa marca social, ou
metáfora, que tal doença deixava em alguns corpos profundamente marcados pela(s)
epidemia(s), desde pânicos morais até ostracismo social. Susan Sontag, em 1988, deixa
claro a marca social da AIDS em seu livro seminal “Aids and its metaphors”. A autora
diz que receber o diagnóstico positivo (em suas palavras, “to get AIDS” ou como diziase à época no Brasil, “pegar AIDS”) significava ser revelado, na maioria dos casos até o
momento como membro de um certo grupo de risco, uma comunidade de párias (29).
Assim como no texto de Sontag, Herbert Daniel procurou desde o início da epidemia
discutir os efeitos da crise epidêmica além dos dados médicos, preocupado com esses
efeitos sociais que o HIV/ AIDS deixava nas pessoas. Como disse Alfredo Sirkis,
193
Resistiu quatro anos durante os quais lutou, lutou, lutou, incessantemente,
viajando pelo mundo, dando palestras, escrevendo artigos, negociando
articulações internacionais. Herbert Daniel mudou a história da AIDS no
Brasil. (SIRKIS, 1998, s.p.)
Mais recente, o livro de Lina Meruane também fala dessa marca no corpo
homossexual ao discutir textos de autores como Pedro Lemebel, Severo Sarduy,
Reinaldo Arenas e Mario Bellatin. Meruane discute a ideia de contágio discursivo:
Ese contagio del discurso se inició con la primera sospecha del misterioso
mal. El sida y la muerte que cundía a su alrededor no solo detonarán la
necesidad de relatos destinados a explicar la epidemia desde viejos
parámetros del movimiento que remiten a las pestes pretéritas (MERUANE,
2012: 22)
João Silvério Trevisan (2004: 366) diz que Daniel foi um dos primeiros a
“engajar-se nas campanhas nacionais contra a Aids”. O primeiro texto de Herbert
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Daniel, de 1983 já fala da síndrome do preconceito (GUIMARÃES et all, 1989: 5). Nos
anos 80, Herbert Daniel já rascunhava ideias que seriam fundamentais mais tarde no
combate ao HIV/ AIDS e ao estigma que o vírus deixava em alguns corpos. Herbert
Daniel responde de maneira precisa ao que Casper e Moore chamam de “moral panics”
que veremos mais adiante.
Os textos de Herbert Daniel
Desde o seu retorno ao Brasil em 1981 até a sua morte em 1992, Daniel publicou
vários textos. O mais conhecido, o seu relato sobre os anos da ditadura (nos moldes de
vários outros volumes publicados à época) ainda é citado por muitos como referência
aos anos da ditadura no Brasil. Todavia, Herbert Daniel também publicou para teatro,
romances mais experimentais como “Meu corpo daria um romance” e “A fêmea
sintética”, passando por manifestos e textos teóricos e ensaios, alguns desses em
conjunto com pesquisadores e outros autores como Richard Parker e Leila Míccolis.
194
Após o seu texto inicial em que relata os anos de resistência política e exílio, a
literatura de Daniel assume um caráter experimental discutindo temas como a
homossexualidade, a liberação sexual e a epidemia da AIDS. Assim, pode-se dizer que
a obra de Herbert Daniel reflete os primeiros anos da epidemia. Fase em que Daniel
tenta desmistificar a doença que já havia chegado antes mesmo do vírus no Brasil
(contágio discursivo como vimos acima). Herbert Daniel diz em “A terceira epidemia”
que “o primeiro impacto da AIDS no Brasil ocorreu sobretudo no imaginário social”
(DANIEL, 1991).
Seus primeiros textos sobre o assunto deixam claro a confusão inicial que o tema
gerou no público, nos jornais e na comunidade científica. O próprio termo – AIDS –
ainda não havia se solidificado na linguagem acadêmica. Uns usavam SIDA, termo que
acabou sendo adotado em espanhol e francês, outros mantinham a sigla em inglês
original. O texto de Daniel usa os dois termos procurando traçar uma genealogia da
chegada do vírus HIV e do estigma da doença. Em “Alegres e Irresponsáveis abacaxis
americanos: Imagens dos dias do medo (Dias, aliás que é anagrama de Aids)”, o autor
testa os limites do significado do termo médico traçando um paralelo com ‘dias’ já no
início do livro.
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Para Daniel a ideia da doença chegou no Brasil antes mesmo dos primeiros casos
reportados aqui. A SIDA, para Daniel, quando aparecem os primeiros casos, chega
tardiamente em comparação à AIDS, “algo, o enigma AIDS, funciona como tal
unanimidade: a SIDA deixa de ser meramente uma doença, uma questão de saúde
pública, e passa a ser o “lugar do problema”. (DANIEL, PARKER, 1990: 85). Daniel
distingue, portanto, a ideia de aids da doença AIDS, como nos explica Cristiana Bastos
em Global Responses to AIDS: Science in Emergency” afirmando que Daniel usa o
termo “aids” em letras minúsculas para se referir ao fenômeno ideológico e político, um
termo com muitos mais significados que a doença conhecida pelo acrônimo AIDS (68).
Caio Fernando Abreu, escritor brasileiro, contemporâneo de Herbert Daniel também
observa a chegada do pânico no Brasil antes da chegada do vírus mesmo, ou seja, dos
primeiros casos noticiados pela imprensa. Na biografia de Abreu escrita por Paula Dip,
há dois momentos significativos em que a opinião do autor corrobora a tese de Daniel.
Primeiro em uma carta pessoal Caio F. Abreu diz:
É então, quando essa peste começa a sair das páginas dos jornais para atingir
pessoas conhecidas, que você para e pensa: Meu Deus, a tal doença parece
que existe mesmo. E dá medo. Porque te ameaça no que você tem de mais
precioso: a sexualidade. Medo, medo, medo. (DIP, 2009: 209)
O segundo momento é um depoimento para a revista Isto é em que Abreu diz
que “desde 1984, carrego a suspeita de estar contaminado. Meu psicanalista dizia:
‘Você não precisa fazer o teste, porque mentalmente já está infectado’” (DIP, 2009:
265). Herbert Daniel procura, na sua obra, mostrar não só os efeitos do vírus e da
epidemia no corpo das pessoas, mas também os efeitos, muito mais fortes, na sua
opinião, do vírus moral, da infecção social que chegara antes do vírus HIV.
O trabalho de Daniel como ativista reflete-se na sua obra literária e ensaística.
Desde os primeiros passos da criação de um movimento social que lidasse com a crise
epidêmica da AIDS no Brasil, Herbert Daniel figurou como peça central na tentativa de
lidar com a questão. Como discute Amy Nunn:
In 1989, after a major AIDS conference in Montreal, many NGOs and AIDS
activists, including Betinho, Herbert Daniel, Paulo Teixeira, and many
others, began organizing to exchange information and develop broad
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strategies to influence public policy related to AIDS in Brazil. This resulted
in Brazil’s first NGO network and first joint articulation of several NGOs
overarching human rights objectives, entitled the Declaration of Rights of
Individuals Living with AIDS. The declaration outlined the movement’s
principles of nondiscrimination, social equity, democratic accountability,
and participation of PLWHA in policy development (NUNN, 2009: 50).
O projeto humanista de Daniel fica claro em seus textos. Durante os anos 80 e
90, período em que exerceu seu ativismo político, Daniel procurava humanizar os
doentes de AIDS evitando a vitimização, dando-lhes agência (termo que seria discutido
mais tarde), ou seja, evitando o que Daniel chamava de morte civil, ou a perda do
direito à vida mesmo vivos. De acordo com Daniel, o momento de detecção do vírus
correspondia ao momento da morte civil das pessoas infectadas e era preciso lutar
contra essa morte forçada. Também, ele procura tirar a AIDS do gueto, mostrando que
como questão de saúde afeta a todos, não somente ao grupo inicialmente destacado
como vítimas – os homossexuais masculinos. Para o autor, “a AIDS veio aumentar a
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lista de análises etnocêntricas e racistas” (DANIEL; PARKER, 1991: 36).
Daniel, em sua obra ensaística e literária antecipa as ideias relacionadas ao
estigma e ao preconceito que a aids trouxe para o Brasil ainda antes da chegada do HIV
e da detecção dos primeiros casos em São Paulo. Como diz o editorial do boletim da
ABIA de junho de 2015:
O retorno do vírus ideológico marca de forma definitiva o retrocesso que,
nos últimos anos, impulsionado pelo conservadorismo, tem impactado
negativamente a sociedade brasileira na resposta à AIDS no país. Afinal,
como nos antecipou o brilhante Herbert Daniel, o vírus ideológico é muito
mais difícil de ser confrontado do que o vírus biológico. (ABIA 2015: 1)
Tantos os romances de Daniel quanto os textos ensaísticos mostram bem a
paranoia que se formou quando o assunto era AIDS. Gilbert Herdt discute a noção de
pânico moral (moral panics, no original) em seu livro “Moral Panics, Sex Panics – Fear
and the Fight over Sexual Rights”. Para o autor pânicos morais são característicos em,
states that experience times of divided public opinion, changing social, economic and
political circumstances, and a clash between state mechanisms of control and the free
expression and individual elaboration of sexuality” (HERDT, 2009: 32).
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A AIDS era um caso de crise de saúde pública: “everyone discussed. It was a
frightening epidemic that (…) generated changes in activism, public health practices,
clinical research, funding streams and sexual politics” (CASPER; MOORE, 2009: 85).
A epidemia colocou em evidência a homossexualidade, e com isso os pânicos
relacionados a tais práticas sociais. A imediata associação da doença com o exótico, o
elegante e os ricos que havia acometido os Estados Unidos é traduzida para os
noticiários brasileiros. Bastos nos lembra do primeiro caso brasileiro noticiado na mídia,
do costureiro Markito:
The first publicized case of AIDS in Brazil reinforced its stereotype as a
disease of the rich and famous. The disease struck São Paulo’s well-known
gay designer Markito in 1983. Markito was seen as a cosmopolitan gay
traveler who was believed to have contracted AIDS in New York. He was
also portrayed as the irresponsible type who went back to the metropolis for
fun and partying instead of getting treatment (BASTOS, 1999: 72).
Caio Fernando Abreu, outro autor que também morreu em decorrência do HIV
escreveu sobre a epidemia não só na sua obra ficcional, mas também em seus textos
pessoais e com cunho ensaístico. Fernando Arenas diz que suas histórias são produtos
de “an era besieged by panic over the body, fear of sex and AIDS” (ARENAS, 2002:
16). Assim como Abreu, os romances de Herbert Daniel também respondem aos anseios
de uma época em que há medo do corpo, medo do sexo, como disse Caio Fernando
Abreu,
São Paulo atualmente é uma cidade tomada pela paranóia da AIDS. Pelo
menos na faixa de gente como a gente (…) Conheço pessoas que não se
tocam mais. O que é que se faz quando aquilo que era possibilidade de
prazer – o toque, o beijo, o mergulho no corpo alheio capaz de nos aliviar da
sensação de finitude e incomunicabilidade – começa a se tornar
possibilidade de horror? Quando amor vira risco de contaminação? (BESSA,
1996: 82)
Caio Fernando Abreu nos remete à comunidade de párias que Susan Sontag
observa em seu livro de 1988. Herbert Daniel entende essa comunidade de párias e tenta
dar visibilidade a um grupo que ganha espaço social, primeiramente como produtos da
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medicina, doentes pela homossexualidade, e agora doentes, mais uma vez, pela aids. De
acordo com Sontag, temos dois tipos de pessoas, os culpados que estão sendo punidos
por suas perversões e os inocentes, afetados por tais comportamentos. A comunidade
descrita no romance “Alegres e irresponsáveis...” entra em choque no momento em que
os “cidadãos de bem” sentem-se ameaçados pelos comportamentos de risco dos
homossexuais da vila. Herbert Daniel em sua obra ficcional e ensaística mostra que não
há culpados ou inocentes e sim, cidadãos que precisam de atenção do estado
independentemente de sua condição social, racial ou status médico. Como ele diz em
uma reportagem produzida pela TV Manchete em 1989:
Eu sou escritor homossexual e estou doente de AIDS. Isso me torna um
cidadão absolutamente comum, um brasileiro como quase todos os outros.
Oprimido, mas cheio de esperança. (DANIEL, 1989b: s.p.)
A obra ficcional de Herbert Daniel
198
Em termos de problematização e levantamento de temas importantes, a ficção de
Daniel é tão eficiente quanto os ensaios. Os projetos literários de Daniel não
metaforizam a aids, ele menciona o vírus e a doença em decorrência do HIV sem
floreios. Mais do que uma metáfora, a AIDS é parte do cotidiano das pessoas e serve
como ponto de discussão para os problemas que ele observa em um país recém-saído de
uma ditadura tentando se reestruturar economicamente e socialmente. Como diz Bessa:
A habilidade de Daniel ao tratar a AIDS é mais bem-sucedida em
depoimentos e ensaios (ver 1983,1989e 1991), onde ele consegue discorrer
sobre inúmeros assuntos (como, por exemplo, a inoperância governamental
frente à AIDS, a estigmatização dos chamados "grupos de risco", a
clandestinização do doente de AIDS) com uma lógica e uma clareza
incomuns (BESSA, 1997: 69).
Alegres e Irresponsáveis Abacaxis Americanos. Imagens dos dias do medo
(Dias, aliás, é anagrama de Aids) publicado em 1987 apresenta como parte do enredo
personagens que sofrem discriminação por serem portadores do vírus HIV ou por serem
possíveis portadores do vírus. O romance conta a história de vários personagens que
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vivem em uma mesma vila em uma grande cidade. Nos moldes d’O Cortiço de Aluísio
de Azevedo, “Alegres e Irresponsáveis Abacaxis...” reúne em um mesmo espaço
urbano, personagens típicos, ou “tipos” literários que apresentam suas narrativas em
paralelo a questões sociais.
A vila é ameaçada pelos sonhos empreendedores de um dos filhos da dona de
todas as casas. Em suas casas, vivem, entre outros personagens, Ia, uma viúva de um
desaparecido político. Dona Rita, uma outra viúva, mais velha, que toma conta da vida
de todos e instala o pânico moral. Dona Carlota, a dona de todas casas, com seus filhos
e netos. O filho mais velho, um poeta, que se exibe para os outros e acredita numa vida
mais pacata. O outro filho, empreendedor, que pretende vender as casas para uma
grande imobiliária. Ao redor da vila ainda vivem um médico e um padre que procuram
trazer a voz da ciência e da moral para os moradores acometidos pelo medo da
contaminação.
Herbert Daniel inicia o romance narrando sobre o estigma no corpo
homossexual. As cenas inicias se dão durante o velório de Gau, ‘acusado’ de ser gay e
como tal de haver “morrido de AIDS” (DANIEL,1987: 28). Roi, o carteiro da vila em
que a ação do romance se desenvolve tenta explicar aos vizinhos que a “peste” não
“pega” no ar, mas o pânico, sim. Rita, a senhora mais velha diz durante o velório:
“Hortencília, cuidado, é preciso tomar muito cuidado! Não se sabe do que
ele morreu. Pode ser da tal de Aids. Você sabe que ele desmunhecava. Essa
gente, todo mundo sabe, está espalhando isso. (DANIEL, 1987: 21)
Daniel não poupa nenhum cidadão do pânico moral e do medo da contaminação.
Ainda no velório Adílio implora a Deli, seu amigo para ir embora do velório já que
“Aids mata bicha num piscar de olho” (DANIEL, 1987: 22). Como discutimos
anteriormente, ainda que as pessoas não estejam sujeitas ao vírus, o discurso já está
contaminado.
Na terceira sequência do romance, Daniel exemplifica a ideia de pânico moral de
Herdt com uma cena em que os vizinhos queimam a casa do morto para evitar a
contaminação. O pânico moral toma conta da população local e vê o incêndio e
destruição de todos os pertences do recém-morto como única solução para que todos se
salvem. Ainda sobre o pânico e a contaminação do discurso. Dona Rita em determinado
momento espalha a ideia de que as lágrimas dos homossexuais podem contagiar as
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pessoas: “Esta foi uma notícia que recortei especialmente para a senhora. Está aí com
todas as letras: é um perigo, as lágrimas dos homossexuais. Estão cheias de Aids”
(DANIEL, 1987: 87). O contraponto discursivo surge através das vozes de Roi, o
carteiro e do padre local. O primeiro procura acalmar a população tentando manter a
razão frente aos discursos de pânico propagados. Por exemplo, Roi diz para os vizinhos
que “por causa das invasões epidêmicas e do pânico. Isto é capaz até de exterminar com
a solidariedade aos mortos e feridos...” (DANIEL, 1987: 85). Já Padre Félix diz que,
Há um pânico irracional se disseminando aos poucos, por causa do
sensacionalismo, da irresponsabilidade da divulgação dos dados... Cria um
campo de cultivo para maiores calamidades – quase suplica Felix – O mais
importante é esclarecer todos sobre a realidade da Aids... (DANIEL,1987:
107)
Daniel coloca na voz de seus personagens, a voz do preconceito – através do
pânico moral – e a voz da razão, através da ciência (mesmo criticando em seus ensaios a
200
maneira como a medicina e a ciência elaboram o seu discurso a respeito da AIDS).
Ambos discursos pretendem mostrar maneiras de lidar com a epidemia e com o
preconceito. Como dissemos antes, a epidemia maior, no projeto político-literário de
Daniel é, na verdade, a desinformação, essa sim contagiosa e perigosa. Herbert Daniel
não minimiza a epidemia e seus efeitos, pelo contrário, ele afirma constantemente que
não tem “a mínima intenção de diminuir a gravidade da doença” (DANIEL, 1991: 11),
porém ela deixa claro a terceira epidemia, o contágio do preconceito.
Dois trechos próximos, parte de um longo diálogo entre as lideranças da vila
exemplificam esses dois tipos de vozes ao longo do romance. Primeiramente o médico
procura explicar aos seus amigos a questão dos grupos de risco (ainda em discussão à
época do romance) dizendo que “os homossexuais são um grupo de risco e não um
agente da epidemia. Eles se arriscam a pegar a doença, não necessariamente a espalhar a
epidemia pela vizinhança” (DANIEL, 1987: 123). Mais adiante Hermírio diz que não é
preconceituoso e segue explicando: “até tenho amigos homossexuais. Mas não sei
como nos misturar com os ... despaginados” (DANIEL, 1987: 126). Portanto, a sua obra
literária, ainda que ficcional, procura, através da voz de seus personagens explicar
questões importantes para o leitor.
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Daniel mantém até o final do romance a ideia do pânico ser o inimigo público número
um. Nas últimas páginas, momento em que a polícia precisa retirar os moradores da vila
para que as construções comecem, um policial ameaça matar Adílio ao saber que ele
tem o vírus:
Aids?! – espanta-se o policial. Apontando a metralhadora para a Adílio,
comando: - Não se mova daí, senão atiro. Atenção, todos! É um caso de
peste. Atirem para matar, se ameaçar se aproximar. Chamem a Higiene
Pública. Urgente. Chamem também a Companhia Municipal de Lixo, para o
transporte. (DANIEL, 1987: 309)
O texto de Daniel pretende trazer luz aos problemas que surgem durante uma
possível epidemia. O autor traz à luz a comunidade de párias que Sontag menciona e
mostra que a epidemia funciona não só como uma metáfora de controle sob os corpos
dentro um modelo Foucaultiano, mas também dentro de um sistema capitalista que
coloca o lucro pessoal acima da comunidade (através da expulsão dos moradores para a
construção de um grande empreendimento imobiliário). Através de seu trabalho de
construção literária, ele procura informar complementando o seu trabalho ensaístico.
Seus textos se complementam como um diário acadêmico e pessoal destacando a
importância de se entender a epidemia como agente em primeira pessoa, tanto como um
ativista político como um indivíduo preocupado com o seu meio.
A obra ensaística
Herbert Daniel escreveu três livros de ensaios discutindo a homossexualidade e a
epidemia da AIDS no Brasil nos anos 80. O primeiro, em 1983, em parceria com Leila
Míccolis, “Jacarés e Lobisomens: dois ensaios sobre a homossexualidade”. O segundo,
“Viver a vida”, obra bilíngue em português e inglês pensando na divulgação e troca de
ideias com ativistas de outras partes do mundo. E por fim, escreveu com Richard
Parker, “Aids a terceira epidemia: Dois olhares se cruzam numa noite suja”, publicado
em 1991. Além dos volumes citados acima, Daniel escreveu para o Boletim da ABIA e
para jornais e revistas da época.
Assim como já demonstramos na obra ficcional, nos textos ensaísticos de
Herbert Daniel mais do que o vírus, há a doença moral que se instalara na sociedade
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antes até que o próprio vírus. Herbert Daniel diz que a sociedade está doente de aids,
mas não da síndrome da imunodeficiência adquirida, e sim do preconceito e do pânico
moral. Voltamos a ressaltar que ele não pretendia diminuir a gravidade da epidemia,
mas entender a gravidade do pânico moral:
Pode-se dizer, sem nenhum recurso a nenhuma metáfora, que a nossa
sociedade está doente de Aids. Doente de pânico, de desinformação, de
preconceitos, de imobilismo diante da doença real. Medidas eficazes contra a
epidemia de HIV passam por medidas concretos no combate ao vírus
ideológico.
Isto
significa:
informação
correta,
ações
eficientes,
desmistificação do medo, esvaziamento dos preconceitos, exercício
permanente da solidariedade. (DANIEL, 1989: 21)
Durante o início da década de 80, a imprensa brasileira noticiava a doença de
maneira sensacionalista usando termos como “enigma” (Revista Veja de 15 de junho de
1983: “O enigma que mata”), associação direta com a homossexualidade (Revista Veja
202
de 17 de julho de 1982) e também a ideia de ser uma doença que vinha dos países
desenvolvidos. Existia quase um desejo local de que fossem detectados casos dessa
misteriosa doença como forma de alinhamento a essas superpotências ocidentais. A
associação do vírus com partes mais pobres da sociedade se daria mais tarde, já no final
da década de 80 e começo dos anos 90 quando a epidemia se espalha pela África e por
grupos sociais menos favorecidos (ou grupos menos favorecidos passam a ganhar
visibilidade). Como observamos anteriormente, a primeira personalidade brasileira a ser
noticiada como vítima da AIDS, Markito, um conhecido ‘jet-setter’ acabou reforçando
os preconceitos que vinham da imprensa internacional. Como diz Daniel, “a primeira
vítima registrada de AIDS, no Brasil, foi um famoso costureiro. Certamente adquiriu o
vírus em terras americanas” (DANIEL, 1983: 123) .
Herbert Daniel analisa o momento em questão observando que, “antes mesmo
que qualquer médico registrasse um único caso verificável de AIDS, a imprensa,
sobretudo a sensacionalista, marcava a chegada da “peste gay”, no Brasil, com uma
inevitabilidade” (DANIEL, 1991: 33). Já em “Jacarés e Lobisomens” escrito com Leila
Míccolos em 1983, Daniel faz um levantamento de notícias dos mais variados veículos
de informação mostrando como as notícias passam “sutilmente do relatório médico ao
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pregão profético, embarcando pelas viagens de ficção científica”, sem “esquecer da
galhofa” (DANIEL, 1983: 124) .
Já em 1983, Herbert Daniel alerta para os perigos dos preconceitos relacionados
ao vírus. O discurso vigente da época reproduz o que se dizia sobre a sífilis e outras
doenças venéreas ainda no século XIX. Como diz Marques (2003: 28), “A luta contra a
sífilis no Brasil, naquele período, e os conceitos de moral, sexualidade, marginalização
e outros foram utilizados como pontos de comparação para a discussão sobre a Aids e a
possível repetição daquela história”. Daniel mantém-se atento a tal prática discursiva e
procura discutir maneiras de diminuir o preconceito em relação a práticas sociais e/ou
sexuais mostrando que as opções individuais e orientações sexuais não poderiam ser
vítimas de escrutínio médico e social.
A crítica em relação a chegada da aids antes da AIDS no Brasil leva Daniel a
pensar na relação entre o Brasil e os países mais ricos, especialmente Estados Unidos e
França e a forma como no Brasil se adotou, de início, um modelo exportado sem levar
em consideração as caraterísticas únicas da realidade brasileira. Daniel aponta que no
Brasil, “anunciou-se uma epidemia que “parecia” com a norte-americana, esperou-se
uma epidemia que seguisse o padrão ocidental, investigou-se, nos consultórios e nas
tabelas da epidemiologia local, o modelo preconcebido” (DANIEL, 1991: 34). Tal
modelo importado acaba em, de acordo o autor, em desastrosas consequências já que ao
se adotar um modelo que não condiz com a realidade brasileira, rejeita estruturas
identitárias e práticas sociais comuns no Brasil.
Richard Parker, coautor com Daniel em seu último ensaio sobre a AIDS/ HIV
levanta essa problemática em “A Construção da Solidariedade: AIDS, Sexualidade e
Política no Brasil” publicado em 1994, mostrando que é preciso compreender as
práticas sexuais e sociais no Brasil para que se possa discutir formas de prevenção mais
eficientes tendo em vista que nem todo modelo internacional funcionaria no Brasil.
Daniel e Parker na introdução de “A terceira epidemia” nos alertam que é “preciso
analisar as determinações culturais da epidemia de AIDS, para não só melhor entender
sua evolução, como para fundamentar políticas preventivas mais eficientes”, pois, de
acordo com os autores, a “AIDS, certamente, tem a cara da cultura da sociedade que se
desenvolve” (DANIEL, PARKER, 1991: 10).
Toda epidemia tem, em si, uma característica viajante (“viajera” como descreve
Lina Meruane em “Viajes Virales”). A epidemia da AIDS não fugiria de tal predicado.
Enfermidades têm viajado e cruzado fronteiras por séculos, o que seria diferente nessa
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epidemia contemporânea? Daniel nos alerta para a sua associação com a
homossexualidade. Desde os primeiros casos, a AIDS e o HIV – quando isolado –
foram associados à praticas sexuais “dissidentes”. De início, uma doença de
homossexuais ricos, depois uma doença de homossexuais em geral e viciados em
drogas. A ainda frágil identidade homossexual em formação no Brasil passa a ser
associada ao uso de drogas e à morte por uma doença que ataca àqueles que se recusam
a manter uma vida dentro do padrão. Como afirma Leo Bersani, nada fez o homem gay
mais visível do que a AIDS (1995: 19). A uniformização de todas as identidades de
gênero e orientações sexuais que não respondiam ao anseio cis-gênero e heterossexual
colocou uma parcela grande da população visível através do pânico de uma doença que
afligia a todos que estavam foram dos valores morais:
O esquematismo faz uma salada onde se lê: Homossexualidade =
promiscuidade e “vida libertina” = uniformização de um grupo socialmente
homogêneo = doença.
A confusão que faz da homossexualidade uma “doença” é uma forma de
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preconceito tradicional. (DANIEL, 1983: 129).
Aos finais do século XIX a homossexualidade passa a ser medicalizada e
analisada e passa-se a falar do surgimento do homossexual como categoria, ou seja, a
homossexualidade converte-se em uma doença. A partir dos anos 50 com os primeiros
grupos de liberação gay na Europa e mais tarde nos Estados Unidos, passa-se a dissociar
a ideia de homossexualidade como doença. Surgem em várias partes do mundo
movimentos de liberação homossexual como o grupo Somos na Argentina e o ativismo
através da revista Lampião da Esquina no Brasil. Com a epidemia da AIDS, a
homossexualidade passa a ser diretamente associada à doença. Ela carrega uma doença
e tal doença mata. Tais preconceitos ficam visíveis no discurso médico-legal da época e
também na impressa. Daniel pretende mostrar através de seus livros como tal discurso é
muito mais nocivo que a própria doença em si.
Conclusão
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Herbert Daniel falava em morte cívica dos “doentes” de aids, uma morte
anunciada. Daniel argumentava que morrer, todos iriam incluindo o próprio autor no
grupo. Estar vivo, para ele, já era um ato de desobediência civil, portanto mantê-lo vivo,
em textos e em ideias é tentar manter tais atos de desobediência civil, ainda tão
importantes hoje em dia. O trabalho de Herbert Daniel, mencionado em todos os livros
que lidam com a história da epidemia no Brasil, é de extrema importância para quem
pretende estudar a história da AIDS dentro de uma perspectiva brasileira. Entender seus
textos, traz à luz questões que foram – e ainda são – fundamentais para
compreendermos de que maneira uma epidemia com as dimensões que a AIDS/ HIV
possui pode afetar a sociedade de maneira geral. Ainda que, trinta anos depois muita
coisa tenha mudado, especialmente no quesito linguagem, não se fala em “ter aids”,
“pegar aids”, “morrer de aids” e “aidético” (uma ingrata invenção da linguagem médica
dos anos 80) ter se tornado politicamente incorreta, o discurso ao redor da infecção e
agentes afetados pelo vírus ainda traz uma carga grande de preconceito. Portanto, falar
dele e de sua obra é importante porque apesar dos avanços ainda há estigma e marcas no
corpo da população guei (como ele escrevia gay).
A desobediência civil de Daniel é muito importante para todos nós ainda hoje.
Herbert Daniel não teve tempo de ver uma nova geração achando que se pode viver com
o vírus, não viu as festas barebacking se proliferando, bug chasers.... Herbert Daniel não
pôde em vida, durante a sua desobediência civil, ver os avanços políticos da distribuição
universal de remédios no Brasil, das vitórias para os “doentes” na OMS, ou até dos
profiláticos hoje em dia, porém o seu trabalho resiste de maneira atual e precisa quando
falamos de uma possível história da AIDS no Brasil e de que maneiras os primeiros
ativistas nos anos 80 trilharam o caminho para as futuras gerações que trabalham no
campo ou experienciam questões relacionadas ao HIV/ AIDS nos dias de hoje e no
futuro.
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Artigo recebido em 20 de fevereiro de 2016.
Aprovado em 25 de março de 2016.
DOI: 10.12957/intellectus.2016.23841
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