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Anais do III Seminário Internacional de Políticas Públicas 19 e 20 de outubro de 2017 ISSN 2358-0135 (on-line) AIDS: MORTE SOCIAL E ESTIGMAS NO CONTEXTO DAS REDES DE APOIO Francisco Arseli Kern1 André Michel dos Santos2 Betina Alves Graeff3 Resumo: O presente artigo aborda a relação inerente entre a AIDS e as redes sociais, a medida em que as últimas poderão ser promotoras da vida. Reflete acerca do papel do Serviço Social enquanto potencializador do fortalecimento das redes sociais, junto à perspectiva do direito à vida. Considera as novas configurações, projeções e reprojeções da vida dos sujeitos soropositivos que terão que ser construídas num novo caminho a ser percorrido, apesar de serem construídos dentro de uma perspectiva carregada de dor e significados socialmente tidos como negativos. Vai ainda referir sobre papel das instituições e a influência que as mesmas poderão ter nas pessoas com AIDS. Palavras – chave: AIDS. estigma, vida. redes sociais. 1 INTRODUÇÃO Falar sobre as teias e redes sociais, acima de tudo, é partir da premissa de que a vida é um direito incondicional de todos. Potencializar teias e redes é construir fundamentos para que a vida tenha a sua continuidade, mesmo que ameaçada sob todos os aspectos. Relacionando as teias e redes ao contexto da AIDS, percebe-se que existe uma particularidade no resgate e na promoção da vida quando se confronta esta perspectiva com uma realidade em que: Mais do que uma doença, a AIDS configura-se como um fenômeno social de amplas proporções, impactando princípios morais, religiosos e éticos, procedimentos de saúde pública e de 1 Assistente Social, Doutor em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. 2 Assistente Social, Doutorando em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. 3 Assistente Social, Doutoranda em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Anais do III Seminário Internacional de Políticas Públicas 19 e 20 de outubro de 2017 ISSN 2358-0135 (on-line) comportamento privado, questões relativas à sexualidade, ao uso de drogas e à moralidade conjugal, isto para ficar nas problemática mais evidentes (SEFFNER, 1998, p. 53). Uma vez que esta doença se configura no plano social como um fenômeno impactante na vida das pessoas, as relações sociais tomam a mesma proporção de doença. Não se trata de simplesmente convivência relações que adoecem na medida em que, à própria social, mas sim de doença da AIDS estão vinculadas a representação dos excesso da promiscuidade ou a contravenção de drogas, prostituição entre outros. Assim, a AIDS assume um caráter ligado ao desvio e ao desviante. Fala-se aqui em redes sociais construídas, outras em construção com lacunas nas histórias de vidas. Acredita-se que é no espaço deixado por essas lacunas que o Serviço Social oferece a sua contribuição através de seu processo de trabalho com a finalidade de ampliação da rede e potencialização da vida de cada sujeito que a vivencia. Não se trata de um encaminhamento puro e simples, mas a intervenção do Serviço Social está colocada na sua especificidade que produz o suporte da rede que garante aos sujeitos uma reconfiguração em seus projetos de vida. Porque ainda se acredita que o Serviço Social trabalha na ótica da qualificação e da potencialização das relações sociais que promovem o humano a sua condição de ser existente na sua dimensão social. 2 AS TEIAS E AS REDES QUE POTENCIALIZAM E FRAGILIZAM A VIDA Na aceitação de que o ser humano vive vinculado a conexões em redes sociais, ARENDT (1999, p.192) ensina que todas as atividades humanas são condicionadas pelo fato de que os homens vivem juntos; mas a ação é a única que não pode ser imaginada fora da sociedade dos homens. Projetar-se e vincular-se socialmente na ontologia do ser, que na dimensão complexa do “ser eu mesmo”, estabelece uma relação também complexa com a alteridade. Assim, o agir humano na expressão da ação está enraizado no sentido do seu próprio ser que se reconhece e se realiza no vínculo nas conexões estabelecidas em redes sociais. Neste campo, entende-se as redes de relações das pessoas que vivem com AIDS como espelhos do mundo social em relação aos fenômenos vividos pelos Anais do III Seminário Internacional de Políticas Públicas 19 e 20 de outubro de 2017 ISSN 2358-0135 (on-line) mesmos. A sua repercussão social expressa-se nas relações estabelecidas pelo seu portador com o mundo social. O vínculo com as redes da saúde, na maioria das vezes, antecede o vínculo com a família ou com as pessoas mais próximas. As instituições da área da saúde, na forma como se constituem, passam a representar um primeiro significado à pessoa que vive com AIDS, pois é a representação da recorrência ao mundo da salvação. Tem-se então presente o processo pelo qual passa a pessoa que vive com AIDS, a partir do momento em que toma conhecimento da contaminação e no agravamento de sua saúde. Trata-se de um processo de reelaboração e reconfiguração de seu projeto de vida. Este projeto tem uma concepção original na concepção do homem projeto, reprojetando a sua própria existência. Pode-se depreender, a partir dos relatos das pessoas que passaram por esse processo, que esta re-projeção possui na sua essência um ponto de partida pautado em duas concepções: a primeira, de se partir do nada, recomeçando de um vazio como se a trajetória histórica de sua existência tivesse sido exterminada; a segunda, permeada por um processo de reflexão, em que são retomados valores e princípios, sonhos e fantasias, e estas constituem-se em elementos fundamentais para a reconfiguração e o recomeço. Por que a pessoa que vive com AIDS passa pelo processo de re-elaboração e reconfiguração de seu projeto de vida? A AIDS, apresenta-se como um incidente no percurso de vida. Agora é uma nova realidade, um mundo com novo horizonte, talvez menos belo, mais restrito, mais angustiante e menos feliz. A idéia de projetar-se ao descobrir a existência da AIDS é sem dúvida dramática: é um projetar-se porque a existência continua, embora limitada! É um projetar-se sem ter muita esperança, como se o fim da vida fosse o caminho mais evidente a ser percorrido. É um reconfigurar das próprias teias de relações na construção de novas redes sociais na dimensão subjetiva e intersubjetiva em que a inter-relação das redes entre si formam a conexão da potencialização: “tomando como ponto de partida a idéia de circularidade e presença do comunitário e social para a compreensão das formas de vinculação e organização que o homem constrói, entendemos as redes sociais como maneiras de interatividade. Expressam os Anais do III Seminário Internacional de Políticas Públicas 19 e 20 de outubro de 2017 ISSN 2358-0135 (on-line) intercâmbios e relações complexas existentes entre ambos e são constituintes da teia social”. (GRUPO E.I.E.M., 1998, p.8) A interatividade das redes entre si baliza a construção dos sentidos da mesmas num processo social construindo-se o tecido das tramas de relações, procurando satisfazer as necessidades das pessoas que a elas se vinculam: “A partir dessa perspectiva podemos defini-las como entidades relacionais complexas e de caráter coletivo em que pode-se distinguir propriedades interativas estruturais e funcionais que lhes são próprias. Têm por finalidade a satisfação das necessidades de seus membros”. (GRUPO E.I.E.M., 1998, p.8) A chegada repentina da AIDS faz com que o projeto de vida do portador ou do doente seja repensado por ele próprio. Esta reelaboração não é privada e nem isolada. Carrega consigo a trajetória histórica da construção da existência humanosocial. Para compreender a construção do projeto de vida das pessoas que vivem com AIDS, como ato de vontade e de possibilidade, têm-se como ponto de partida o conceito elaborado com relação, como: “o ato de vontade que sugere ação na qual o sujeito se projeta, segundo as suas possibilidades e limites humanos e sociais que decorrem das vivências significativas do seu cotidiano” (KERN, 1998, p.44). O ato de vontade da pessoa soropositiva só é fortificado quando existe um impulso para a ação. Se o projeto de vida é um ato consciente, a ação também é consciente. Se o ato de vontade não pressupusesse uma ação não haveria um caminhar em direção da realização do projeto de vida, porque os mesmos permaneceriam acomodados e simplesmente aceitariam a vida da forma como esta se apresentasse, sem oportunidade de escolha e de expressão de suas vontades. O ato de vontade é permeado pela intencionalidade da vivência significativa no sentido de elaborar um pensamento ou uma reflexão sobre o objeto de significado que esta vivência representa. Como as pessoas soropositivas possuem uma experiência de uma vivência significativa, elas próprias estabelecem uma intencionalidade sobre este significado. Na Filosofia da conceituação de projeto, ABBAGNANO (1982) expressa que o mesmo tem um sentido de “antecipação das possibilidades: isto é, qualquer previsão, predição, predisposição, plano, ordenação, predeterminação, etc.” Entende-se por “antecipação de possibilidades”, que as pessoas que vivem com HIV/AIDS e/ou Anais do III Seminário Internacional de Políticas Públicas 19 e 20 de outubro de 2017 ISSN 2358-0135 (on-line) doentes de AIDS, ao construírem ou reconstruírem os seus projetos de vida, têm presente a racionalidade de perspectivas de um possível crescimento pessoal que se estende ao mundo onde vivem. Pois da forma como estabelecem-se as vivências para um mundo social mais amplo, eles já passam a retratar a imagem da projeção que eles próprio fazem para a sua transformação humana e social. A AIDS considerada como construção social, em muitos casos, muda o rumo da configuração e reconfiguração do projeto de vida, expressando a representação social da doença de modo que a caracterização inicial da AIDS apresentada à população pela ciência médica incluía domínios de fortes investimentos afetivos configurados pela morte, pelo contágio, pelo sexo. Esta representação foi significativamente reforçada pela mídia, resultando em uma espécie de força que passou a se caracterizar como: São domínios que implicam em componentes emocionais profundamente enraizados pela morte, pelo contágio, pelo sexo. São domínios que comportam componentes emocionais profundamente enraizados em diferentes culturas e que causam enorme impacto no plano simbólico. Representações ligadas a catástrofes, a maldições, a pestes foram (re)criadas e difundidas na mesma intensidade da perplexidade que tomou conta de uma sociedade que se percebeu novamente vulnerável (PAULILO, 1999, p.40). Assim, passa a conter em si o conjunto de significados da repercussão da doença nas teias de relações existentes, tanto no meio familiar, na escola, na convivência com os amigos, no sistema de saúde, bem como no mundo do trabalho, enfim, no mundo social. Em termos da construção de teias e redes sociais evidenciase que as instituições na corporação de instâncias sociais existem por si só, compondo a rede social de cada sujeito, na medida em que as mesmas são acionadas através das teias de relações que são estabelecidas. Neste sentido, uma rede social está em função do serviço que presta, como também em função da necessidade que usufrui. A rede social de cada sujeito social possui, em sua dinâmica inviabilizar o objetivo a que serve. social, o poder de viabilizar ou de Anais do III Seminário Internacional de Políticas Públicas 19 e 20 de outubro de 2017 ISSN 2358-0135 (on-line) 3 AIDS: UMA “MORTE SOCIAL” QUE PRECEDE A MORTE FÍSICA Não se tem o poder de julgar o que seja mais doloroso: a morte social ou a morte física num contexto quando Sem dúvida, a AIDS que a condição de discute-se o resgate imprime marcas de do valor da vida. depreciação na vida das pessoas em cidadania cria seus próprios limites. No estudo sobre a doença enquanto metáfora, implica também em uma cidadania mais onerosa, afirmando que as pessoas vivas parecem possuir uma dupla cidadania, uma que se manifesta no reino da saúde e outra que se manifesta no reino da doença”. A perda de direitos sociais evidencia-se no reino da doença num contexto brasileiro em que a política de saúde mostra-se como um caos social. Necessariamente, a morte social não somente se evidencia no plano das políticas sociais, como da mesma forma, entende-se reduz ao fato da pessoa ter seus que a direitos cidadania plena garantidos não se dentro de suas necessidades. Segundo SEFFNER (1984, p. 54), a doença é muito mais do que um evento biológico, tornando-se às vezes, “secundário frente às situações sociais que decorrem do fato da pessoa Ter uma tal ou qual doença”. Decorrente da AIDS, a pessoa poderá morrer socialmente no seu trabalho, nas suas relações, no acesso aos seus direitos sociais básicos, mas também poderá experimentar a morte da dignidade, da liberdade e da esperança. Em se tratando do fenômeno da AIDS, a questão econômica jamais será o determinante único da morte social que precede a morte física. O problema, portanto, é bem mais profundo, pois mostra que a morte social possui suas origens naquilo em que se acredita, nos valores que se defende. E, quando a questão da AIDS torna-se o instituinte em frente ao instituído socialmente, a morte social poderá ser uma conseqüência letal que poderá acabar levando à morte física. Antes de o homem conhecer a AIDS, acreditava-se numa onipotência humana principalmente quando sabia-se que o câncer era a última frente à morte, doença mortal a ser combatida. Uma vez que as normas institucionais de uma sociedade são criadas pelo próprio humano, e neste sentido são instituídas, confrontam-se com forças instituintes que se contrapõem ao instituído. A morte social é produzida e Anais do III Seminário Internacional de Políticas Públicas 19 e 20 de outubro de 2017 ISSN 2358-0135 (on-line) não isolada do contexto da construção da trama de relações sociais que compõem a sociedade. Se existe morte social, é porque ela é produzida socialmente. É importante perceber que a morte social causada pela AIDS se basicamente nas redes tradicionais. Neste sentido, sociais que envolvem espaços fundamentainstitucionais busca-se na obra de GOFFMANN (1987), uma compreensão a respeito das instituições totais. Em seu estudo, o autor analisa as instituições totais a partir da descrição do mundo do internado e rapidamente do ponto de vista da equipe dirigente. Com base na definição e caracterização dos aspectos comuns das instituições, o autor descreve os processos de mortificação, degradação do eu. A instituição total passa a ser vista como um local de residência e trabalho onde um grande número de pessoas com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla, levam uma vida fechada e formalmente administrada. Permitem, assim, a instauração de uma nova cultura em que a própria identidade das pessoas se deteriora, bem como confrontam-se com a perda da mesma. A morte, em suas dimensões humanas e sociais, tem sido sentida pela nossa cultura como um acontecimento traumático e uma interrupção da vida. Na dinâmica da vida, o homem é motivado e condicionado a se projetar como se a morte não existisse. São construídos sonhos, projetos e ideais e quando o ser humano se dá por conta, estes acabam sendo ceifados pela morte. Construiu-se uma cultura que encara a morte como um tabu, principalmente, quando esta está vinculada à questão de uma doença como a AIDS. A angústia provocada pelo HIV desencadeia uma histeria social que promove a morte social mesmo antes que a morte física aconteça. Como diz BLANK, (1984, p.23): “A morte deles já começa com a morte social muito antes do próprio fato de a vida acabar. E ao acontecer finalmente a morte física, o indivíduo submerge na imensa massa daqueles que não tem voz nem nome”. Quando BLANK diz que a morte social começa antes da vida acabar, fundamenta-se no real fato de que a vida se mostra sem sentido, banalizando o próprio ato de existir e o ato de morrer, fazendo com que: “ a perda do significado da vida não poupa nem mesmo a questão da morte do ser humano; pelo contrário, a conseqüência de uma vida sem sentido, é uma morte também sem sentido”(BLANK, 1984, p. 27). Anais do III Seminário Internacional de Políticas Públicas 19 e 20 de outubro de 2017 ISSN 2358-0135 (on-line) Quando a pessoa descobre estar contaminada com o vírus da AIDS, introjeta a pressão social de ser um doente de AIDS. O medo e a angústia que se fazem presentes trazem o reflexo de uma sociedade que não permite este tipo de doença, não por ser doença, mas pelo fato desta estar vinculada a um falso moralismo de preconceitos e discriminações, fazendo com que: A vivência do morrer inicia-se muitas vezes com a vivência de morte social, muito antes da morte clínica. Na experiência de milhões de pessoas, a vida toma um significado negativo, transformando-se em um verdadeiro ‘viver-para-a-morte (BLANK, 1984, p.29). Esta vivência para a morte não se dá em um processo utópico ou de fantasia da morte. Ela se concretiza quando as respostas dadas pela rede social da pessoa negam o direito básico adquirido que pode ser verificado nas denúncias descritas pelo Relatório Azul da Comissão de Direitos Humanos, onde vislumbra-se denúncias relacionadas à criança não aceita em creche, demissão por discriminação, agressão de doente de AIDS em ônibus. A referência a estas denúncias mostra claramente que a “morte social” é aplicada na medida em que as pré-concepções a respeito são capazes de atitudes de maus tratos. Neste sentido, a partir das atitudes que são tomadas, a reação imediata é a introspecção da culpa de caráter subjetivo, o que permite que os portadores e/ou doentes de AIDS se anulem frente a certas situações, até para evitarem o constrangimento e a denúncia pública. Isto é constatado claramente nas denúncias que dizem respeito às demissões injustas do trabalho, demarcando uma condenação à morte social, ao que PACHECO, 2000 diz: Afirmo sem medo de errar que, ao trabalhador portador do vírus da AIDS são garantidos os mesmos direitos e deveres que aos demais. Contudo, em contrapartida, lhe é cobrada uma infame submissão ao empregador, como se sua condição sorológica o revestisse de uma marginalidade suficiente para que a manutenção de seu emprego se transformasse em caridade da empresa. A “morte social” se configura também com a culpa. O vírus da AIDS não é introjetado à força na pessoa. O vírus HIV é adquirido nas relações que são estabelecidas, sejam estas vinculadas ao sexo, à drogadição, ou à transfusão de sangue. A “morte social” provocada pauta-se principalmente em comportamentos que são abominados pela sociedade. A questão não é abominar, e sim mudar Anais do III Seminário Internacional de Políticas Públicas 19 e 20 de outubro de 2017 ISSN 2358-0135 (on-line) comportamentos e ter a prevenção como princípio de estabelecimento de relações sociais. Na medida em que entende-se a “morte social” como um castigo e como punição, são introjetados como penalização e a entrega à morte total, sendo este apenas um percurso que reproduz a culpa, ou seja: Com isso, a convicção de que a vida continua de fato depois da morte, representa para a maioria das pessoas uma carga a mais. Conseqüentemente, a morte se torna abominável, por colocar o ser humano face a face com a sua culpa (BLANK, 1984, p. 50). Na experiência crucial de vida quando a AIDS se faz presente, o sentido de continuar vivendo e o sentido de morrer socialmente ou fisicamente acabam se cruzando e atribuindo ao portador de HIV e/ou doente de AIDS, a responsabilidade de decisão. Mesmo encontrando-se diante de um fim definitivo ou de um fim desejado (construído socialmente), a pessoa com AIDS experimenta a sua impotência total frente a esta situação de morte. Por intermédio da AIDS, a morte se fez novamente presente na vida das pessoas. Faz-se presente de uma forma diferente: a morte social e a morte física. Mesmo diferente ou com outra face frente a doenças como lepra, câncer, a morte relacionada à AIDS, hoje se configura sob outros aspectos: ela traz consigo tabus que ainda não se sabe resolver, processos de culpalização, exclusão e discriminação social. É conhecido que não é o vírus HIV que mata, mas sim a dinâmica que desencadeia-se nas profundezas do ser humano, muitas vezes já antes da infecção com o vírus. Ela é que faz do homem o autor da sua própria morte. (BELOQUI apud PAIVA (1992, p. 35). Em seu estudo sobre a polaridade vida-morte e AIDS, BELOQUI nos diz que a AIDS foi mistificada e que: A sua desmistificação só se procederá se aceitarmos sem pavor, mas com respeito, a morte que ela provoca. Aqueles que não conseguirem superar o preconceito social e seu próprio preconceito; aqueles que determinarem morrer, ou ainda, aqueles cujo ego não tenha mais força de resistência e de influência sobre os processos destruidores de seu inconsciente, estes sucumbirão. Mas os que querem, estes viverão (BELOQUI apud PAIVA, 1992, p. 37). Entende-se, a partir de tal colocação, que é atribuído ao portador de HIV e/ou doente de AIDS, a responsabilidade de reconfigurar-se em sua existência. Concorda-se que a responsabilidade é pessoal e intransferível, mas ao mesmo tempo não é tão fácil como parece ser. Não é compreensível analisar a questão da AIDS Anais do III Seminário Internacional de Políticas Públicas 19 e 20 de outubro de 2017 ISSN 2358-0135 (on-line) no plano individualizado de cada ser que vivencia esta situação, já que a AIDS é um fenômeno social que se construiu socialmente e não cabe a cada um resolver a sua situação. Entende-se que a centralidade não é a de se fazer um esforço incontrolável para superar o preconceito. A questão é combater a discriminação e a exclusão social que é gerada com base no preconceito com relação à AIDS. A determinação em querer continuar vivendo ou em se entregar à morte vai além do simples ato de vontade subjetivo. O humano é um ser social e nesta condição projeta-se à existência ou à morte. A “morte social” somente poderá ser superada na medida em que a integridade do ser humano possa ser reconhecida. A construção de uma rede social potencializada é que poderá garantir a reconfiguração da vida. Uma rede social que seja emancipatória e que possa proporcionar relações de autonomia e de fortalecimento frente a tudo o que se impõe relacionado à AIDS e às pessoas que vivem na condição de soropositivos e/ou doentes de AIDS. 4 O ESTIGMA DA AIDS Ao compreender-se o estigma da AIDS enquanto uma temática a ser abordada a partir dos depoimentos coletados, parte-se do pressuposto de que ter AIDS compreende também ter consciência do que significa introjetar atributos depreciativos. HUSSERL ensina que toda a consciência é consciência de algo. A consciência volta-se para o mundo externo, intersubjetivo, para os outros, para si mesmo, para o seu ego, para os sentimentos, entre outros. Nesta lógica de raciocino, a consciência de ter AIDS envolve uma trama de relações sociais, a representação do que significam as pessoas que tem a doença ou são portadores do vírus HIV, a consciência de ser diferente, a consciência de uma morte social, da necessidade de recomeçar. Assim são atribuídos conceitos e preconceitos que variam entre os depreciativos aos excludentes e discriminatórios. Portanto, parte daí a origem de ser diferente, e assim, a origem do estigma de ter AIDS. GOFFMANN (1982, p. 13) inova com seu estudo sobre o estigma no que refere-se à identidade deteriorada. É escassa a bibliografia que fala sobre esta Anais do III Seminário Internacional de Políticas Públicas 19 e 20 de outubro de 2017 ISSN 2358-0135 (on-line) temática. GOFFMAN vem contribuir para com esta temática, abordando os conceitos de estigma e identidade social, alinhamento grupal e a identidade pessoal, entre outros. O estigma, na forma de atributo depreciativo, diferencia as pessoas no sentido de conferirem pré-julgamentos sobre concepções que são emitidas a seu respeito, sem ter um conhecimento prévio e de experiência. A questão do estigma mostra-se como um problema humano e social, justamente pelo fato do ser humano que é portador deste fenômeno, encontrar à sua frente dificuldades na necessidade de socializar-se e de estabelecer teias de relações sociais. Relacionando o estigma à realidade da AIDS, a pessoa que carrega consigo o rótulo de ser portador de HIV e/ou doente de AIDS depara-se com um meio social pouco receptivo que já possui estereótipos formados a seu respeito. Em que aspectos fundamenta-se o estigma? O termo estigma foi criado pelos gregos para se referirem a sinais corporais, “com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava” (GOFFMANN, 1982, p. 11). Desta forma, o portador que era marcado com sinais de corte ou fogo no corpo, identificava a sua identidade como um escravo ou criminoso. A pessoa que trazia esta marca era evitada em contatos, principalmente públicos. Na Era Cristã, o estigma foi considerado como os sinais corporais da Graça Divina, como exemplos que possam ser citados, as marcas da crucificação em Jesus Cristo, a opção pela pobreza de São Francisco de Assis, e outros. Os exemplos acima descritos são considerados estigmas corporais, no sentido de diferenciação. Como pode-se ver, existem inúmeros tipos de estigma, como abominações do corpo, culpas de caráter individual, estigmas tribais, entre outros. Relacionando-se estigma ao tema da AIDS, entende-se que o estigma da AIDS manifesta-se como um fenômeno vivenciado pela consciência da pessoa soropositiva. Mesmo que este fenômeno possa ser considerado como um objeto de consciência, deve-se levar em conta que o mesmo constrói-se no processo de socialização e de estabelecimento de teias sociais na perspectiva da construção da rede social. Anais do III Seminário Internacional de Políticas Públicas 19 e 20 de outubro de 2017 ISSN 2358-0135 (on-line) A consciência de ser diferente torna-se um impacto que leva a pessoa a construir uma identidade, muitas vezes, em duplo sentido. Uma caracteriza-se de forma a permitir a imagem escondida, frente às relações que se estabelecem. A outra é para não comprometer estas relações, tornando-se uma identidade invisível. O estigma da AIDS é visivelmente percebido no relato de um dos entrevistados em uma das pesquisas desenvolvidas com pessoas soropositivas em 2001: Ele escondeu a cuia e a chaleira. Fiz de conta que não vi, até pelo medo de que as pessoas descubram que estou doente e depois ficarem me culpando” e ainda: “os meus amigos me convidam para sair, mas como vou tomar o remédio na frente deles. Nas denúncias do Relatório Azul, temos que: A. S. foi discriminada na creche por ser HIV; P.R. foi demitido por ser portador de HIV; G.V. doente de AIDS foi agredido no ônibus. I.H. foi demitida de seu trabalho por ser portadora de HIV. Considerando de extrema importância as denúncias da discriminação no trabalho e dos maus tratos sofridos no ônibus, procura-se dar atenção especial às denúncias de demissão do trabalho. Infelizmente, o trabalhador mover-se livremente soropositivo ou doente de AIDS não pode em seu local de trabalho, comentando a sua condição sorológica, a sua emoção em relação a isto, as suas dificuldades ocasionadas com o saber-se portador do vírus da AIDS. De acordo com PACHECO (2000): A este trabalhador são proporcionadas apenas duas situações: ou calar-se escondendo a sua sorologia, para não conviver diurnamente com a discriminação originada no preconceito dos colegas ou de sua chefia, ou então, declarar-se portador de HIV e enfrentar as dificuldades que, naturalmente, aparecem no convívio no local de trabalho. A questão de vivenciar a AIDS enquanto um estigma é o peso que todo portador ou doente de AIDS carrega consigo. Para esconder este estigma, a atitude muitas vezes faz com que o trabalhador se submeta ao esconderijo ou à submissão, evidenciando a desigualdade social no que diz respeito ao seus direitos: Pois eles só poderão perder seu emprego em qualquer uma das hipóteses legais que justifique a despedida de um trabalhador. Assim, a gratidão ao empregador, ainda que compreensível, Anais do III Seminário Internacional de Políticas Públicas 19 e 20 de outubro de 2017 ISSN 2358-0135 (on-line) demonstra a desigualdade de direitos do trabalhador soropositivo em relação aos demais trabalhadores. Com efeito, na situação em análise, transforma-se o direito do trabalhador em um imenso favor, o que execrável. A este cidadão é conferida a benesse da manutenção do que já é seu por direito (PACHECO, 2000). Considerar que o fenômeno estigma associado à AIDS apresenta-se como a soma de tudo é compreendê-lo em seu todo. É impossível negar que o fenômeno estigma da AIDS compreende todas as relações vivenciadas que influenciaram ou contribuíram para a sua ocorrência. Contudo, estas relações são vivenciadas no cotidiano da pessoa que vive com AIDS, sobre as quais estabelece sua experiência de mundo, pois segundo CORETH (1973, p. 72) “à totalidade de experiência do mundo, portanto, não pertencem só conhecimentos teóricos, mas também, não menos, experiências práticas da vida”. Na perspectiva fenomenológica existencial quando direciona-se a investigação para o mundo vivido da pessoa com AIDS, aproximando-se da vivência do fenômeno que apresenta uma estrutura que retrata a realidade vivenciada que para seu sentido humano, é depreciativo e de culpa, porque diferencia a sua realidade. Neste sentido, o aspecto da introspecção da culpa de caráter individual é vivenciado de forma subjetiva pela pessoa portadora do vírus HIV e/ou doente de AIDS. A questão das pré-concepções que são emitidas a respeito contribuem para uma socialização nas construção de teias sociais deficitárias, o que implica na real situação de que os estereótipos são os responsáveis pela criação de preconceitos. Para quem não vivencia o estigma mas se relaciona com o estigmatizado, há uma percepção do visível e do invisível. Se para o não estigmatizado o problema da depreciação é invisível, para o doente o mesmo se torna visível e concreto, confirmado na vivência e experiência da exclusão social. Na teia de relações que o sujeito com AIDS estabelece, torna-se visível e concretizada a estigmatização da identidade humano-social. Esta identidade repercute nas primeiras instâncias, como família, escola, trabalho, amigos, e os reflexos do espelho social emitindo os raios do medo, da desconfiança, da falta de ética, da falta de valores e princípios morais que deveriam primar pela dignidade humana. Anais do III Seminário Internacional de Políticas Públicas 19 e 20 de outubro de 2017 5 REDES DE APOIO VINCULADOS À TEMÁTICA ISSN 2358-0135 (on-line) DA AIDS: POSSIBILIDADES E LIMITES DA POTENCIALIZAÇÃO DE UMA REDE SOCIAL Sem dúvida, um dos aspectos mais importantes, não só em termos de Brasil, mas como também em outros países, no que diz respeito ao trato com a AIDS, foi a criação de mecanismos sociais que possibilitassem a participação da sociedade civil na construção de respostas frente à epidemia da AIDS. Para falar-se em ONG, buscou-se o sentido original da palavra que tem sua origem no vocabulário das Nações Unidas para designar uma categoria especial de participantes do sistema da ONU. Consideradas como instituições independentes, as ONGs não caracterizam-se como uma parte orgânica de estruturas maiores da sociedade. Uma ONG pode e passa a ser reconhecida a partir do que faz e não a partir daquilo que passa a representar. Uma vez que estas entidades não se auto-sustentam e fornecem serviços sociais à comunidade conseguem se manter através dos recursos e fundos que provém de terceiros. Uma vez que as ONGs nasceram dentro dos circuitos de cooperação global, elas curta. No contexto em governamentais, não possuem uma trajetória histórica significativamente que surgiram, passaram a se caracterizar como não visam lucros, não fazem parte de estruturas maiores e não financiam. A sobrevivência das mesmas se dá em meio a um mundo competitivo em que a sua prática deve estar voltada à produção de projetos específicos que se tornem interessantes execução com razoável para possíveis sucesso para financiadores. É preciso que haja uma garantir um próximo investimento e financiamento. Relacionada à eficiência de trabalhos sociais que as ONGs desenvolvem, constituem-se na sociedade e no plano da representação social um importante instrumento de resgate da cidadania. No Brasil, mais especificamente nos últimos anos, as ONGs passaram a se constituir em espaço significativo de debate e ações de cidadania voltadas à comunidade. Em se tratando da temática deste estudo, Anais do III Seminário Internacional de Políticas Públicas 19 e 20 de outubro de 2017 canalizou-se discussão para a problemática das ONGS e ISSN 2358-0135 (on-line) a construção do social vinculado ao contexto da AIDS. Com o surgimento da AIDS e todas suas decorrentes complexidades, inúmeras ONGs foram fundadas, passando a prestar serviços específicos nesta área. Independentemente de as filosofias religiosas, partidárias, ONGs vêm assumindo importante papel na sociedade no combate à AIDS através de ações práticas individualizadas, grupais e/ou comunitárias, sendo o que define a trajetória do movimento do real na construção do social vinculado ao tema da AIDS. Entende-se que, para fazer a compreensão da produção do social, é preciso compreender o processo histórico da instituição, porque é este processo que define a identidade institucional. Buscar alternativas para a questão da igualdade social, na tentativa de eliminação do pré-conceito social que exclui e marginaliza, é colocar-se em ação para uma visão mais solidária. A responsabilidade de cada um na construção da igualdade social contribui para a construção da igualdade coletiva. Estas interrelações constituem-se numa teia de relações, fazendo com que todos se reconheçam como sujeitos de uma mesma comunidade humana. Dada a complexidade que envolve a vida do portador de HIV e da pessoa que vive com a AIDS, deduz-se que a discussão/reflexão sobre esta questão deva ser tratada, considerando as relações sociais estabelecidas na sociedade com relação à cultura, ao sexo, às relações familiares, entre outras. Objetivamente, isto é possível de ser percebido no simbólico institucional que se expressa na linguagem que é falada entre os agentes, na linguagem visual através de cartazes, folders, informativos e formativos. Paralelamente, expressa-se também o imaginário e o poder. A imagem virtual da instituição projeta-se no imaginário da ajuda, uma vez que o portador de HIV/AIDS, projeta na instituição uma expectativa de ajuda no confronto com a doença. Na vivência e na construção das relações, tendo como base o simbólico e o imaginário, o poder institucional constitui-se num elemento de base para a compreensão das relações interpessoais. Se FOUCAULT ensina que o poder tem a missão de produzir a verdade na realidade da AIDS, o confronto que o portador faz Anais do III Seminário Internacional de Políticas Públicas 19 e 20 de outubro de 2017 ISSN 2358-0135 (on-line) consigo próprio e com o mundo social constitui-se como o palco de construção de uma rede de relações. A pessoa com AIDS, ao vincular-se a uma determinada Organização Não Governamental ou projeto social pode estar sendo beneficiada pelos serviços que esta disponibiliza: serviços de orientação, aconselhamento, encaminhamentos, serviços médicos, serviços de assistentes sociais, psicólogos, jurídicos e outros que permitem a potencialização de sua rede social. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Sendo assim, compreendemos que o mundo da AIDS é também o mundo em si, uma vez que o ser humano está impregnado das representações que são construídas em relação a esta doença. Trata-se de um fenômeno em processo de construçãodesconstrução na medida em que se avança na compreensão da temática nas teias e redes sociais que se tecem em meio a este contexto. Em vista disso, pode-se perceber a intrínseca relação entre as redes sociais e a AIDS. Convivem junto ao sujeito que vive com AIDS, estigmas sociais que não se conformaram de forma positiva, bem como inúmeros significados. Há também a necessidade de uma nova construção e replanejamento da vida desse sujeito. As instituições, portanto, têm um papel a desenvolver nessa nova configurações de vida, papel esse que pode ser responsável pela dupla morte dos sujeitos, mas também pode ser responsável por proporcionar movimentos emancipatórios dos mesmos. REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Traduação de Alfredo Bosi. São Paulo, Mestre Jou, 1982. ARENDT, Hannah. A condição humana. Universitária, 1993 Rio de Janeiro : Forense ASSAGIOLI, Roberto. O ato da vontade. São Paulo, Cultrix, 1973 BLANK, Renold J. Viver sem o temor da morte. São Paulo: Paulinas, 1984 CASTORIADES, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Tradução por Guy Reynard. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. Anais do III Seminário Internacional de Políticas Públicas 19 e 20 de outubro de 2017 ISSN 2358-0135 (on-line) COMISSÃO DE CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS. Relatório Azul. Assembléia Legislativa do RS. 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