atinentes à disponibilidade da ação penal.133
Nos Estados Unidos da América, que respeitam uma
forma federalista, o processo penal é essencialmente
acusatório,134 com o Promotor de Justiça assumindo o papel
principal,135 que exercita de modo equilibrado com a reserva
de direitos fundamentais atribuída à defesa pela Constituição
Federal. A prova, em processo oral e público, é produzida
exclusivamente pelas partes, quer perante o júri, onde existe,
funciona ou o réu o aceita, quer perante o magistrado
singular, havendo, ainda, ampla disponibilidade sobre o
conteúdo da pretensão deduzida.
A respeito do sistema processual penal vigente no
Brasil, empreenderemos a abordagem, por questão de ordem
metodológica, no último item deste capítulo.
3.2. Características do Sistema Acusatório
Cumprindo a trajetória que demarcamos, é nosso dever
tentar aclarar certos conceitos e estabelecer algumas
mínimas definições, para, assim, examinarmos as algumas
leis especiais e observarmos, em que medida e de que forma,
confrontam o modelo de estrutura processual penal
constitucionalmente eleito.
133 Bovino, Alberto. ―La Persecución Penal Pública en el Derecho Anglosajón‖,
in Pena y Estado, ano 2, nº 2: O Ministério Público, Buenos Aires: Del
Puerto, 1997, pp. 35-79.
134 Farnsworth, E. Allan. Introdução ao Sistema Jurídico dos Estados Unidos,
Rio de Janeiro: Forense, 1963.
135 Até o final do século XVII, início do século XVIII, por influência do direito
dos colonizadores, nos Estados Unidos a vítima demandava privadamente.
Acredita-se que a imigração holandesa haja levado consigo a figura do
persecutor público, porém sem alterar, na essência, o modelo processual
penal, que ficou imune às demais experiências do sistema romanocanônico. Os Promotores de Justiça, como órgãos públicos responsáveis
pela persecução penal, são acreditados como representantes da sociedade,
no desempenho de uma tarefa política, motivo por que, em 46 dos 50
Estados da Federação, são eleitos, enquanto no plano federal são indicados
pelo Presidente da República e estão subordinados formalmente ao
Procurador Geral (U.S. Attorney General), segundo Alberto Bovino (La
Persecución Penal Pública en el Derecho Anglosajón, ob. cit., p. 54).
3.2.1. PRINCÍPIO E SISTEMA ACUSATÓRIO: DIFERENCIAÇÃO
Com efeito, a primeira abordagem resulta da exigência
de extremarmos as definições de sistema e princípio
acusatórios. Para isso, vamos nos valer das singularidades
ordinariamente referidas às duas categorias.
Giovanni Leone136 apresenta, como características do
sistema acusatório, o poder de decisão da causa entregue a
um órgão estatal, por sua vez distinto daquele que dispõe do
poder exclusivo de iniciativa do processo. Acrescenta que,
deduzida a acusação, o magistrado se libera da vinculação às
iniciativas do autor, impulsionando oficialmente a
persecução penal, que se desenvolverá conforme os
princípios do contraditório, com paridade de armas,
oralidade e publicidade.
Por seu turno, Riquelme137 alinha também a
legitimidade popular do juiz, que será o próprio povo ou se
constituirá de significativa parte dele, despido, por isso, do
dever de fundamentar sua decisão, haja vista sua soberania,
ao que, conseqüentemente, soma-se a irrecorribilidade das
decisões que profere, em processo que se desenvolve na
forma de um duelo público, oral e contraditório, entre
acusador e acusado, perante um juiz inativo e imparcial.
Mittermaier138 igualmente alude ao princípio do juiz
popular, como da essência do sistema acusatório,
salientando, justamente, que sólo puede ser Juez el pueblo o
delegados escogidos de su seno, celosos y vigilantes
defensores de las libertades, enquanto Alcala-Zamora e
Levene139 mencionam também a acusação popular e a
liberdade de apreciação judicial das provas, cabendo a Julio
136
137
138
139
Leone, Giovanni. Ob. cit., p. 8.
Fontecilla Riquelme, Rafael. Ob. cit., pp. 36-37.
Mittermaier, Karl Joseph Anton. Ob. cit., p. 56.
Alcala-Zamora y Castillo, Niceto e Levene, Ricardo, Hijo. Ob. cit., pp. 217218.
Maier140 a observação, segundo nos parece, da existência de
poderes de conveniência, oportunidade e disponibilidade,
referentes ao exercício da ação penal, em contraposição,
naturalmente, ao dever inevitável de perseguição penal,
característico do sistema inquisitivo.
Ortega diferencia princípio acusatório do sistema que
lhe empresta o nome. Este autor sublinha que, ao lado do
princípio propriamente dito, encontramos a publicidade e a
oralidade como traços constitutivos do sistema acusatório.141
Conso,142 autor das obras que mais se aprofundaram no
exame da matéria, registra, ao lado do que já foi consignado
(necessidade de acusação ofertada por órgão distinto do
julgador, publicidade e oralidade do procedimento, paridade
de armas entre as partes e exclusão da iniciativa judicial no
recolhimento das provas), ser característica a liberdade
pessoal do acusado, ao menos até a sentença condenatória
definitiva.
Cordero acentua a semelhança (―remota ascendência‖)
entre o processo acusatório e os duelos. ―As técnicas
acusatórias são juízos de Deus intelectualmente
elaborados‖.143 Segundo o professor italiano, a ação decisória
se converte em um trabalho mental sobre dados positivos,
porém cabe aos contendores aduzir e discutir os dados em
uma típica ―batalha intelectual‖. O valor do processo
acusatório está na observação das regras, insensível à
sobrecarga
ideológica
derivada
da
observação
inquisitorial144. Finaliza advertindo que a ação penal
obrigatória e irretratável, os poderes instrutórios de ofício e
pedidos que nunca são vinculantes distinguem o modelo
italiano do anglosaxão.
140 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana: Su Comentario
y Comparación com los Sistemas de Enjuiciamiento Argentinos, p. 43.
141 López Ortega, Juan J. ―La Dimensión Constitucional del Principio de la
Publicidad de la Justicia‖, in Revista Del Poder Judicial, Madrid: Consejo
General del Poder Judicial, nov/1999, p. 52.
142 Conso, Giovanni. Istituzioni di Diritto Processuale Penale, p. 8.
143
Cordero, Franco. Op. cit., p. 87 (tradução livre).
144
Idem, p. 86.
É certo, conforme ao nosso juízo, que, se pretendemos a
definição de um sistema acusatório como categoria jurídica
composta por normas e princípios, não há como, pura e
simplesmente, justapô-lo com exclusivadade a um preciso
princípio acusatório, pois a identidade entre um e outro
resultaria, por exigência lógica, na exclusão de uma das duas
categorias, pela impossibilidade de um princípio ser, ao
mesmo tempo, um conjunto de princípios e normas do qual
ele faça parte, numa relação de continente a conteúdo.
Fica mais clara a incompatibilidade da justaposição,
quando, pela simples resenha classificatória, notamos a
significativa disparidade de elementos invocados como da
própria essência de uma das categorias, no caso, do sistema.
Assim, sustenta-se neste trabalho a premissa de que,
por sistema acusatório compreendem-se normas e
princípios fundamentais, ordenadamente dispostos e
orientados a partir do principal princípio, tal seja, aquele do
qual herda o nome: acusatório.
Em que consiste então, nesta perspectiva, o princípio
acusatório?
3.2.2. CARACTERÍSTICAS DO PRINCÍPIO ACUSATÓRIO
I - A resposta deve ser construída por exclusão,
afastando o que não integra o princípio.
Assim, a compreensão daqueles elementos que vão aos
poucos, historicamente, integrar o sistema acusatório é o
resultado da eliminação de outros elementos que não afetam
o núcleo básico de um tipo característico do processo, isto é,
aquele alicerçado na idéia da divisão, entre três diferentes
sujeitos, das tarefas de acusar, defender e julgar.
Com efeito, como assinala Cordero – e também James
Goldschmidt – ―as regras do jogo‖ distinguem o processo
acusatório do inquisitório.145 Este último se satisfaz com o
resultado obtido de qualquer modo, pois nele prevalece o
145
Cordero, Franco. Op. cit., p. 88.
objetivo de realizar o direito penal material, enquanto no
processo acusatório é a defesa dos direitos fundamentais do
acusado contra a possibilidade de arbítrio do poder de punir
que define o horizonte do mencionado processo.
Assim, como as ―regras do jogo‖ não se concretizam sem
a interferência dos sujeitos que participam do processo, não
há dúvida de que são os atos que estes sujeitos praticam que
hão de diferenciar os vários modelos processuais.
É preciso ter em mente que a análise puramente
objetiva, que visualiza os atos sem entender quem são os
sujeitos que os praticam, descarna o processo. Gestão da
prova e acusação são atividades que não dizem nada se não
olharmos quem – que sujeitos (históricos) – realiza estes
atos. Até porque com a identificação dos sujeitos será
possível compreender os porquês das coisas.
Quando focalizamos estes atos – que expressam a
obediência dos sujeitos às regras do jogo -, temos de
classificá-los, identificando o que há de comum, por
exemplo, entre os diversos atos que o juiz pratica ao longo do
processo. O ponto de convergência destes atos é aqui
denominado ―tarefa‖, porque defendemos que os atos
processuais atendem a funções, não são desinteressados,
ainda que muitas vezes estas funções não sejam percebidas
com clareza ou imediatamente.
Como nas linhas antecedentes ficou registrado, a função
predominante do processo inquisitório consiste na realização
do direito penal material. O poder de punir do Estado (ou de
quem exerça o poder concretamente) é o dado central, o
objetivo primordial.
No sistema inquisitório, portanto, os atos atribuídos ao
juiz devem ser compatíveis com o citado objetivo. Em
linguagem contemporânea equivale a dizer que o juiz cumpre
função de segurança pública no exercício do magistério
penal.
Essa linha de raciocínio permite abarcar todos os atos
judiciais inquisitórios em um só plano. Exercer a ação penal
no lugar de terceiro, quer originalmente como previa o artigo
531 do Código de Processo Penal brasileiro, quer de modo
superveniente, interferindo na delimitação do objeto do
processo (como ocorre com a mutatio libelli), significa
prestigiar a idéia de que a punição não pode depender de um
autor de ação penal independente e livre para apreciar se
deve ou não acusar e o que deve (ou não) incluir na acusação.
Da mesma maneira, atribuir ao juiz o poder de produzir
provas de ofício deforma o ―duelo intelectual‖ a que se refere
Cordero. Supor que a atividade probatória está desvinculada
do exercício dos ―direitos processuais― (James Goldschmidt)
e imaginar, por outro lado, que juiz exerce ―direitos‖ no
processo importa controlar o material da decisão para
reduzir as brechas da impunidade.
É também o que acontece com o denominado recurso de
ofício. O juiz que ―recorre‖ da própria sentença para
submetê-la obrigatoriamente a exame por tribunal de
segundo grau, em hipóteses em que a decisão originária é
favorável ao réu, suspeito ou investigado, concorre para a
política de segurança pública de que se torna protagonista.
O elemento comum entre o exercício da ação penal pelo
juiz, a produção de provas de ofício e o recurso igualmente
de ofício está na consecução de tarefas que a moderna
doutrina do processo assevera que compõem o chamado
direito de ação (e o co-respectivo direito de defesa).146 Como
todas estas tarefas apontam para a prevalência do interesse
em punir sobre o de tutelar os direitos fundamentais do réu,
elas podem ser reunidas sob a rubrica de tarefas de acusação.
A acusação consiste na imputação a alguém da prática de um
crime com ―pedido‖ de condenação.
A construção teórica do princípio acusatório há de
consumar-se mediante oposição ao princípio inquisitivo. São
antagônicas as funções que os sujeitos exercem nos dois
modelos de processo. É desse antagonismo, portanto, que as
146
Historicamente, o discurso inquisitório atribui o acúmulo de funções em
mãos do juiz ao generoso propósito de evitar a punição de inocentes. Não é
preciso recorrer às inquisições eclesiásticas para compreender a falsidade do
argumento. Basta ver que é este modelo, fundado na busca da verdade real, que
mesmo nos subterrâneos da persecução penal contemporânea facilita a
aceitação da tortura.
diferenças devem ser extraídas.
Assim, se na estrutura inquisitória o juiz ―acusa‖, na
acusatória a existência de parte autônoma, encarregada da
tarefa de acusar, funciona para deslocar o juiz para o centro
do processo, cuidando de preservar a nota de imparcialidade
que deve marcar a sua atuação.
Nisso consiste a base teórica em cima da qual
procederemos à análise do princípio acusatório.
Ao aludirmos ao princípio acusatório falamos, pois, de
um processo de partes, visto, quer do ponto de vista estático,
por intermédio da análise das funções significativamente
designadas aos três principais sujeitos, quer do ponto de
vista dinâmico, ou seja, pela observação do modo como se
relacionam juridicamente autor, réu, e seu defensor, e juiz,
no exercício das mencionadas funções.
II - Nem sempre foi, ou ainda é, predominantemente
oral e público o processo acusatório, nem, necessariamente,
só será acusatório pelo fato do próprio povo, ou segmentos
numericamente significativos dele, julgar.147
Até mesmo o dever de fundamentar a decisão não reduz
ou amplia a acusatoriedade da base processual, como
provam o júri e o juiz ou colegiado profissional. Por sua vez,
147 Na medida em que o princípio acusatório decorre do princípio
democrático, o valor de legitimidade do exercício do poder há de ser objeto
de alguma consideração. Atualmente, é possível afirmar, com Frederico
Marques, que, vindo os juízes togados do seio do próprio povo de que
emana conceitualmente a sua autoridade, somente em nome do povo, ao
menos nos governos democráticos, podem distribuir justiça (A Instituição
do Júri, p. 22). A tal consideração convém aditarmos que o exercício da
função jurisdicional corresponde à atividade de um ramo de governo — do
Poder Judiciário — de sorte que não se pode falar ou mesmo mentalizar um
ramo de governo que não seja político (significando, aí, o exercício de um
poder público, estatal, em nome e para a polis) em relação ao qual não
caiba as responsabilidades, deveres e poderes inerentes à soberania
derivada do povo (Zaffaroni, Eugenio Raúl. Estructuras Judiciales, p. 112).
Estas são, possivelmente, as motivações do reconhecimento, na Lei
Fundamental de Bonn (artigo 20, nº 2) e na Constituição Espanhola (artigo
117, nº 1), de que a Justiça emana do povo, não subsistindo,
modernamente, a objeção oposta por Mittermaier.
não acontece tal redução ou dilatação (de acusatoriedade) à
vista da possibilidade de o acusado responder preso ao
processo.
Desta forma, pode-se começar assinalando, com
Conso,148 que a idéia de acusação só tem sentido, como
elemento essencial de um princípio dentro do processo,
contraposta à idéia de defesa, ainda que, sobre esta última
possa haver alguma imprecisão quanto aos seus contornos.
Jorge de Figueiredo Dias, com sua incontestável
autoridade, ressalta que, por direito de defesa, compreendese uma categoria aberta, à qual devem ser imputados todos
os concretos direitos, de que o arguido dispõe, de codeterminar ou conformar a decisão final do processo,149 o
que coloca o acusado, e, dadas as especificidades técnicas
relativas ao mecanismo de co-determinação e conformação
da decisão judicial, também seu defensor,150 na condição de
sujeitos de direitos, deveres, ônus e faculdades.
Ora, um princípio fundado na oposição entre acusação e
defesa, ambas com direitos, deveres, ônus e faculdades, só se
desenvolve regularmente em um processo de partes,
centrado nas relações recíprocas que se estabelecem.
Como se fosse uma fotografia, veremos inicialmente
como estão consolidados os estatutos jurídicos dos sujeitos
do processo, de acordo com o princípio acusatório.
Depois, passaremos ao exame da dinâmica processual,
isto é, como reagem os diversos sujeitos à ação dos demais.
Equivale à tentativa de captar a atuação dos sujeitos como
em um filme.
A opção por este modo de análise tem vantagens e
desvantagens de que se deve advertir o leitor.
148 Conso, Giovanni. Accusa e Sistema Accusatorio: Atti Processualli Penali,
Capacità Processualle Penale, Milano: Giuffrè, 1961.
149 Dias, Jorge de Figueiredo. ―Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código
de Processo Penal‖, in Jornadas de Direito Processual Penal, Coimbra:
Almedina, 1992, p. 28.
150 Figueiredo Dias assinala para o defensor o estatuto jurídico próprio de um
órgão de administração da justiça, atuando exclusivamente em favor do
acusado (idem, p. 11).
A principal vantagem – razão da eleição do método –
está em permitir comparar aquilo que a ordem
constitucional e as leis atribuem aos principais sujeitos do
processo penal (visão ―estática‖ do que fazem o juiz, o
Ministério Público, o querelante, o acusado e seu Defensor) e
o que de fato estes sujeitos praticam a partir da cultura
consolidada e com amparo na jurisprudência (perspectiva
dinâmica).
A desvantagem repousa na aparente ―repetição‖ de
temas. Assim, por exemplo, o leitor observará que sobre a
mutatio libelli (alteração da acusação) há uma apreciação de
acordo com os poderes do juiz, do ponto de vista estático, e
outra, complementar, quando se visualiza ―o processo em
movimento‖.
Atento a isso o leitor deverá cuidar de ―enquadrar‖ o
exame das categorias do processo levando em conta a dupla
perspectiva.
3.2.2.1. Da Perspectiva Estática do Processo: Poderes,
Deveres, Direitos, Ônus e Faculdades dos Sujeitos
Processuais
I. DO JUIZ
Carnelutti151 sublinha exatamente, na perspectiva
estática do processo, que este pode ser visto como uma
categoria que simultaneamente envolve, enlaça, uma série de
relações jurídicas, ou seja, de poderes e deveres do juiz, das
partes e de terceiros, visualizando-se sua dinâmica a partir
do procedimento adotado, ou, dito de outra forma, da
maneira como os atos processuais, em realidade,
ordenadamente se sucedem.
Sendo assim, a natureza verdadeiramente acusatória de
um princípio processual constitucional demanda, para
verificar-se, não só a existência de uma acusação (mesmo os
151 Carnelutti, Francesco. Derecho Procesal Civil y Penal, México: Editorial
Pedagógica Iberoamericana, 1994.
procedimentos inquisitoriais podem conviver com uma
acusação), mas tanto, e, principalmente, que esta acusação
revele uma alternativa de solução do conflito de interesses ou
caso penal oposta à alternativa deduzida no exercício do
direito de defesa, ambas, entretanto, dispostas a conformar o
juízo ou solução da causa penal.
Em outras palavras, ambas, acusação e defesa, surgem
como propostas excludentes de sentença.
Tal conformação só admitirá a influência das atividades
realizadas pela defesa, se o juiz, qualquer que seja ele, não
estiver desde logo psicologicamente envolvido com uma das
versões em jogo.
Por isso, a acusatoriedade real depende da
imparcialidade do julgador, que não se apresenta meramente
por se lhe negar, sem qualquer razão, a possibilidade de
também acusar, mas, principalmente, por admitir que a sua
tarefa mais importante, decidir a causa, é fruto de uma
consciente e meditada opção entre duas alternativas, em
relação às quais se manteve, durante todo o tempo,
eqüidistante.
Carnelutti assevera, pois, que justamente da
contraposição entre acusação e defesa, perante um juiz
imparcial, surgem as condições indispensáveis à eleição da
melhor solução. Convém, nestes termos, reproduzir a
preciosa lição do mestre italiano:152
La verdad es que si el desdoblamiento, del
cual se há hablado, entre el juez y el ministerio
público, o sea entre jurisdicción y acción, es
necesario para la garantía de la imparcialidad y,
com ésta, para la justicia del castigo, no es, sin
embargo, suficiente. Al final, el juez debe tomar
una decisión; y decidir quiere decir elegir... Es
claro que tanto mejor está el juez en situación de
elegir más claramente se le presentan delante las
dos soluciones posibles. El peligro es que la duda
152 Carnelutti, Francesco. Derecho Procesal Civil y Penal, p. 302.
no se le presente, no que él sea atormentado por
ella. Ahora, bien, el medio para proponerle la duda
es el contradictorio; ayuda aquí la raíz común
(duo) de dubium y duellum. Per eso, la separación
del ministerio público respecto del juez, es decir, de
la acusación respecto del juicio, no basta para
garantizar la justicia de este último. El ministerio
público, si está solo junto al juez, es insuficiente. La
acusación debe ser contrapesada y por eso
integrada por la defensa.
A posição equilibrada que o juiz deve ocupar, durante o
processo, sustenta-se na idéia reitora do princípio do juiz
natural — garantia das partes e condição de eficácia plena da
jurisdição — que consiste na combinação de exigência da
prévia determinação das regras do jogo (reserva legal
peculiar ao devido processo legal) e da imparcialidade do
juiz, tomada a expressão no sentido estrito de estarem
seguras as partes quanto ao fato de o juiz não ter aderido a
priori a uma das alternativas de explicação que autor e réu
reciprocamente contrapõe durante o processo.
Com efeito, o juiz que antecipadamente está em
condições de ajuizar a solução para o caso penal (que em
algumas hipóteses sequer foi objeto de pretensão do
interessado), na prática torna dispensável o processo, pois
tem definida a questão independentemente das atividades
probatórias das partes, comportamentos processuais que
devem ser realizados publicamente e em contraditório.
Ocorre que o devido processo legal só constitui, de fato,
mecanismo civilizado de resolução de causas se o resultado
não puder ser determinado antecipadamente, isto é, só há
processo penal real se no início do procedimento ambas as
teses — de acusação e de resistência — puderem ser
apresentadas em condições de convencer o juiz (Otto
Kirchheimer153).
153 Kirchheimer, Otto. Justicia Política, México: Unión Tipográfica Editorial
Hispano Americana, 1968.
É claro que, nestes termos, o juiz não estará em
condições de julgar e, portanto, deverá ser excluído e
substituído, se não oferecer às partes suficiente credibilidade
quanto à sua imparcialidade.
A rigor, a imparcialidade do juiz é vista a partir de dois
parâmetros: há os casos de impedimento, pelos quais se
objetiva excluir o juiz que possa ter interesse no resultado da
causa; e existem as hipóteses de suspeição, normalmente
voltadas a permitir a substituição do juiz interessado nas
partes. De modo geral, as questões que envolvem o primeiro
conjunto — causas de impedimento — são impessoais, mas
guardam certo vínculo direto com a pessoa do magistrado,
enquanto as causas de suspeição são dotadas de caráter
predominantemente pessoal (ex. da primeira: ter o juiz
funcionado anteriormente, no mesmo processo, como perito;
da segunda: ser o juiz amigo pessoal da vítima).
No processo penal brasileiro a existência do inquérito
judicial para apurar crimes falimentares – artigos 103 e
seguintes do Decreto-lei n. 7.661/45 – instituía investigação
criminal preliminar, preparatória para o exercício da ação
penal condenatória, em tese dirigida pelo juiz154. Embora na
prática o juiz pouco participasse do inquérito judicial, parece
evidente que não ostentaria a qualidade exigida para exercer
jurisdição, tal seja, a imparcialidade mencionada linhas
Na tentativa de salvar a ―constitucionalidade‖ do inquérito judicial da
falência autores chegaram a defender a existência de contraditório neste
inquérito. Sustentou-se que o artigo 106 da antiga Lei de Falências previa a
resposta do falido, em cinco dias, e que isso equivalia ao contraditório. Parece
evidente que a noção de contraditório aí é bastante lmitada, comparável à idéia
de contraditório no inquérito policial, no artigo 14 do Código de Processo Penal,
que estabelece a possibilidade de o Delegado de Polícia realizar diligências
requeridas pelo investigado. Em verdade, o procedimento do inquérito judicial
era inquisitorial, conduzido pelo síndico da falência e pelo perito, com apoio do
Ministério Público e na prática sob as ordens dos funcionários do cartório onde
era processada a falência. Tudo, praticamente, sem intervenção do falido.
Recomenda-se a leitura de Lei de Falências Comentada, 2ª ed., de Manoel
Justino Bezerra Filho, São Paulo, RT, 2003, p. 346-7.
154
atrás.155
A Lei n. 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, que passou a
regular a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do
empresário e da sociedade empresária estabelece o inquérito
policial como método de investigação, a ser instaurado por
ordem do Ministério Público, nos termos do artigo 187, e fixa
a competência do juiz criminal da jurisdição onde tenha sido
decretada a falência, concedida a recuperação judicial ou
homologado o plano de recuperação extrajudicial para
processar e julgar o caso.
Com isso, a Nova Lei de Falências aproxima-se do
modelo constitucional, pois que de forma intencional cria as
condições necessárias ao julgamento do caso com
imparcialidade.156
Voltando à regra fundamental é preciso destacar, no
entanto, que nas hipóteses de impedimento e suspeição a
filosofia que orienta a preservação da imparcialidade deve
cuidar de restringir os casos de recusa do juiz, desde que não
prevaleça o pensamento autoritário que dedica ao
magistrado função punitiva, em substituição àquela que as
constituições lhe impõem juridicamente, tal seja, a de
apreciar e resolver de forma isenta a questão levada a juízo.
A questão da imparcialidade do juiz, conforme o
princípio acusatório, contudo, não fica limitada aos termos
postos anteriormente. O exercício da jurisdição, em um
Estado Constitucional Democrático, está, tanto quanto o
exercício de qualquer outro poder no âmbito deste Estado,
condicionado a regras de impessoalidade.
Não basta somente assegurar a aparência de isenção dos
juízes que julgam as causas penais. Mais do que isso, é
155
Pelo artigo 109 do citado decreto, o juiz da falência era competente para
receber ou rejeitar a denúncia. Somente depois de proferir essa decisão é que
deveria transferir o processo para o juiz criminal (§2º).
156
Objeções acerca do conhecimento técnico de que deve estar dotado o juiz
criminal, nestes casos, devem ser superadas pela idéia de que nos dias atuais os
magistrados deverão estar continuamente se aprimorando e se preparando para
as sofisticadas causas criminais com que se deparam. Isso, é evidente, sem
prejuízo da prova técnica que caracteriza a maioria destes processos.
necessário garantir que, independentemente da integridade
pessoal e intelectual do magistrado, sua apreciação não
esteja em concreto comprometida em virtude de algum juízo
apriorístico.
Trata-se aqui, talvez, de uma compreensão invertida da
máxima pela qual não basta à mulher de César ser honesta.
No caso, ao juiz não é suficiente parecer honesto; terá de sêlo verdadeiramente, inclusive do ponto de vista intelectual.
Exemplo claro de causa de impedimento, derivada desta
ordem de coisas, reside na impossibilidade de o juiz que
tenha requisitado a instauração de inquérito policial vir a
processar e julgar acusado em processo penal iniciado em
razão desta investigação.
Observe-se que nesta hipótese o juiz poderá se sentir
habilitado a apreciar com isenção as teses que a Defesa
venha a apresentar. Todavia, o réu não poderá confiar em
um juiz que, independentemente de qualquer causa penal, já
se manifestou a princípio pela existência de uma infração
penal, ainda que ao nível de um juízo sumário, provisório e
superficial.
De fato, nestas circunstâncias, poderá haver inversão do
ônus da prova, com o réu se sentindo impelido a demonstrar
que o juiz inicialmente não tinha razão. A confiabilidade das
partes na isenção do juiz emerge como condição de validade
jurídica dos atos jurisdicionais. Ausente tal requisito
estaremos diante de atos absolutamente nulos.157
Também por esse motivo o antigo inquérito judicial da
falência, citado neste tópico, violava o princípio acusatório e
era inconstitucional.
II. DA ACUSAÇÃO
Por igual, não se deve controverter a respeito do
157 Esta foi a conclusão do e. Superior Tribunal de Justiça no julgamento do
RHC nº 4.769-PR, 6ª Turma (j. 7/11/1995 – RT 733/530), rel. Ministro
Luiz Vicente Cernicchiaro, malgrado o e. Supremo Tribunal Federal não
tenha se sensibilizado totalmente com a tese (Habeas Corpus nº 68.784, 1ª
Turma, rel. Min. Celso de Mello, DJU 26/3/1993, p. 5.003).
significado e alcance daquilo que se entende por acusação.
Não se trata, a nosso juízo, somente de oferecer uma petição
inicial, em processo penal pelo qual se pretenda a
condenação de alguém.
Não se resume a isso, a só um ato, de acordo com
Conso,158 mas, sem dúvida, acusar implica em referir-se a
uma função e ainda a um órgão, a um conjunto de atos e a
um determinado sujeito.
Conso, todavia, assevera que acusação e ação penal
condenatória não se confundem, uma vez que haveria, em
algumas situações excepcionais, acusação sem exercício da
ação penal.159.
É necessário ter em mente que a acusação cuida da
atribuição de uma infração penal, em vista da possibilidade
de condenação de uma pessoa tida provavelmente como
culpável, enquanto a ação penal consiste em ato da parte
autora, concretado por sua dedução formal em juízo.
Conso refere-se, indiscutivelmente, ao processo penal
de ofício, muito semelhante ao procedimento penal
brasileiro previsto para as contravenções e crimes de
homicídio e lesões corporais culposos, a partir do artigo 531
do Código de Processo Penal, e da Lei no 4.611/65, não
recepcionados pela Constituição da República em vigor.160
Cremos, no entanto, que, se acusação e ação penal
158 Conso, Giovanni. Accusa e Sistema Accusatorio: Atti Processualli Penali,
Capacità Processualle Penale, p. 7.
159 Idem, pp. 13-14.
160
O desaparecimento dos processos condenatórios instaurados de ofício, pelo
juiz, por auto de prisão em flagrante ou portaria, e ainda iniciados da mesma
forma pela autoridade policial (artigo 531 do Código de Processo Penal), não fez
desaparecer o procedimento sumário. No caso, caberá ao titular da ação penal
iniciar o processo mediante oferecimento de denúncia (artigo 129, I, da
Constituição da República) ou queixa (ação penal privada) e depois disso o
procedimento seguirá com o recebimento da inicial, citação e interrogatório do
acusado, audiência das testemunhas arroladas pela acusação e audiência de
instrução e julgamento, com a inquirição das testemunhas arroladas pela Defesa
e a apresentação de alegações finais orais. Este procedimento está
expressamente indicado na Nova Lei de Falências (artigo 185 da Lei n.
11.101/05) e será aplicado exceto no caso de infração penal de menor potencial
ofensivo contemplado na citada lei.
podem não se confundir, haja vista o fenômeno da jurisdição
sem ação, acima mencionado, o certo é que o princípio
acusatório funde acusação e ação penal, justamente por não
admitir a existência de processo condenatório sem iniciativa
da parte autora (nemo iudex sine actore), e, em vista dele,
somente se a ação penal for proposta e desenvolvida ao longo
do processo haverá, após a contraposição da atividade de
defesa, autorização jurídica para a prolação de decreto
condenatório.
Aqui não é lugar (ou hora) para a crítica sobre o
conceito de ação transplantado do processo civil para o
penal. Ainda assim, é conveniente que sejam feitos alguns
esclarecimentos.
O leitor perceberá que as ações condenatórias que se
entrega ao Ministério Público, no Brasil, são obrigatórias
(desde que haja indícios de autoria e da existência da
infração penal). Como o conceito de ação elaborado pelo
processo civil, em fins do século XIX, estava historicamente
vinculado ao de direito subjetivo, para atender a exigências
políticas concretas fundadas na ideologia liberal da época, as
marcas dessa categoria (ação civil) foram igualmente
transmitidas à ação penal.
O simples fato de colocar o Ministério Público no lugar
da vítima simboliza a impropriedade de pensar a ação penal
nos moldes liberais de defesa de direitos disponíveis (origem
da noção do direito de ação civil).
Até mesmo nos sistemas jurídicos que adotam o
princípio da oportunidade da ação penal pública (o
Ministério Público tem margem de decisão sobre acusar ou
não), a ―liberdade‖ do Ministério Público é inconfundível
com a ―faculdade‖ do autor civil. A liberdade do Ministério
Público estará sempre dirigida pelo princípio da legalidade,
protegendo a comunidade das decisões pessoais de cada
integrante da referida instituição, enquanto as motivações
estritamente pessoais podem estar na base da decisão de não
se promover a ação civil clássica.
No entanto, a decisão de instaurar um processo penal
condenatório será de um sujeito distinto do juiz.
A nosso juízo, o princípio acusatório, avaliado
estaticamente, consiste na distribuição do direito de ação,
do direito de defesa e do poder jurisdicional, entre autor,
réu (e seu defensor) e juiz. Tal consideração conduz ao
esclarecimento, pelo menos sucinto, do que se considera
direito de ação penal condenatória.
Vale a pena tornar a sublinhar que para a maioria dos
doutrinadores o direito de ação é concebido como direito
público subjetivo, instrumentalmente conexo à pretensão de
exigir do Estado a prestação jurisdicional, em determinado
caso concreto, isso ao menos desde a evolução iniciada em
meados do século XIX, com o desdobramento das posições
ardorosamente defendidas por Windscheid (La acción del
derecho civil romano desde el punto de vista del derecho
actual) e Muther (Zur Lehre von der Römischen Actio),161
passando por Adolf Wach, até chegar aos dias de hoje.
Não se esgota, porém, na simples provocação do Estado,
primeiro ato do exercício do citado direito.162
Assim compreendido o direito de ação - e naturalmente
o direito de defesa – aquele foi percebido por Ada Grinover
como não limitado ao poder de impulso, e, no caso da defesa,
ao recurso às exceções, englobando o conjunto de garantias
que, no arco de todo o procedimento, asseguram às partes a
possibilidade bilateral, efetiva e concreta, de produzirem
suas provas, de aduzirem suas razões, de recorrerem das
decisões, de agirem, enfim, em juízo para a tutela de seus
direitos e interesses.163
Visto dessa forma, pode-se acrescentar, relativamente à
ação penal condenatória, que, ao atribui-la a sujeitos
distintos daquele que julgará o pedido formulado — seu
principal elemento e junto com a ―causa de pedir‖
161 Chiovenda, Giuseppe. La Acción en el Sistema de los Derechos, Bogotá:
Temis, 1986. Muther, Theodor e Windscheid, Bernhard. Polemica Sobre La
―Actio‖, Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1974.
162 Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. I, pp.
282-291; Afrânio Silva Jardim, Ação Penal Pública: Princípio da
Obrigatoriedade, p. 33; e Grinover, As Garantias Constitucionais, ob. cit.
163 Grinover, O Processo Constitucional em Marcha, p. 11.
corporificação da acusação —, obedece-se também a uma
lógica de distribuição de funções que respeita a divisão entre
os poderes do Estado, bem ao estilo proclamado por
Montesquieu, como observa, percucientemente, Karl-Heinz
Gössel.164
Assim compreendida a ação penal, o princípio
acusatório postulado demandará, para sua real fixação, na
via do autor, a determinação de algumas premissas:
• o direito de ação, tanto como o de defesa, está voltado
à conformação da decisão jurisdicional, em um caso
penal concreto;
• é exercitado por pessoa ou órgão distinto daquele
constitucionalmente incumbido de julgar;
• não se limita a iniciar o processo, pois o autor
pretende ver a pretensão que deduz reconhecida,
embora o não-reconhecimento não implique em
afirmar-se a inexistência do direito de ação;
• inclui, por certo, o direito de provar os fatos que
consubstanciam a acusação deduzida e de debater as
questões de direito que surgirem;
• a acusação integra o direito de ação e, na medida em
que dela se defenderá o acusado, delimita o objeto da
contenda, tal seja o objeto pretensamente litigioso do
processo;
• e, por fim, legitima o autor a preparar-se
adequadamente para propô-la, na medida em que,
afetando gravemente o status dignitatis do acusado,
não deve decorrer de um ânimo beligerante temerário
ou leviano, mas fundar-se em uma justa causa
(indícios de autoria e da existência da infração penal).
Com efeito, visto pela perspectiva do direito de ação o
princípio acusatório inclui entre seus elementos o princípio
164 Gössel, Karl-Heinz. ―Ministerio Fiscal y Policia Criminal en el
Procedimiento Penal del Estado de Derecho‖, in Cuadernos de Política
Criminal, nº 60, Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, 1996, pp. 614616.
da demanda, que não se confunde com o princípio
dispositivo, corrente no processo civil, bem como não lhe é
contraposto, em que pese a opinião de alguns autorizados
doutrinadores165. Da mesma maneira, enquanto princípio de
iniciativa do processo, não está prejudicado pela
obrigatoriedade da ação penal, no caso brasileiro, da pública.
Para efeito de distinguir o princípio acusatório do
dispositivo é precioso assinalar quais são os elementos
habitualmente invocados como componentes do segundo,
como o faz Barbosa Moreira,166 sublinhando os pontos
sensíveis da problemática, que envolvem, quase sempre, os
seguintes aspectos: iniciativa da instauração do processo;
delimitação do objeto do litígio e do julgamento; impulso
processual; aquisição do material de fato e de direito a ser
utilizado na motivação da sentença; extinção do processo por
ato dispositivo.
Conforme aduz o ilustre processualista, a doutrina
alemã caminhou em direção à tendência de distinguir duas
classes de situações, uma relacionada com a liberdade do
titular do direito de utilizar ou não o instrumento do
processo para a respectiva vindicação, outra com o modo
de funcionar do mecanismo processual no tocante aos fatos
e à prova destes,167 prevalecendo, atualmente, a concepção
em relação à qual por princípio dispositivo compreende-se o
poder de decidir sobre a instauração do processo, respectiva
subsistência, e delimitação do litígio, enquanto um princípio
de debate se caracterizaria pelos poderes de aquisição e
introdução das provas no processo. Badaró irar usar as
expressões princípio dispositivo material e princípio
dispositivo processual para distinguir as mesmas
165 Chiavario, Mario. Processo e Garanzie Della Persona, p. 5. É valioso
investigar a conceituação aceita por Gustavo Badaró acerca do princípio
dispositivo. Ônus da Prova no Processo Penal, São Paulo, RT, 2003, p. 96 100.
166 Moreira, José Carlos Barbosa. O Problema da Divisão do Trabalho entre
Juiz e Partes, p. 35.
167 Moreira, José Carlos Barbosa. Ob. cit., pp. 39-40.
situações.168
Finalmente, há, na referida resenha de Barbosa
Moreira, menção ao princípio da demanda, sob a designação
de parteibetrieb, integrado pelo poder de instauração do
processo, diferente do princípio dispositivo stricto sensu,
visto como poder de dispor sobre o objeto do processo já
pendente.
Pensamos que, por princípio dispositivo, há de se
entender aquele que permita dispor sobre o objeto do
processo em tramitação, não sendo caracteristicamente
acusatório ou inquisitório. Em processo por crime de ação
penal privada, conforme o Direito brasileiro, ocorrerá a
perempção, por exemplo, sempre que o autor abandonar o
processo (artigo 60 do Código de Processo Penal),
implicando em verdadeira disposição sobre o conteúdo
deste.
De outra maneira, não é impensável um procedimento
inquisitorial, iniciado para apurar o cometimento, por
alguém, de uma infração penal, que não se conclua por
deliberação exclusiva do juiz-inquisidor, motivado por
questões de política criminal.
É bem verdade que principalmente no direito
estrangeiro há quem vincule o princípio dispositivo ao
princípio acusatório, em virtude da possibilidade de retirada
da acusação ou pedido de absolvição influindo na
determinação da concreta providência a que o tribunal
estaria conectado.169
A nosso juízo, porém, a questão corretamente enfocada
envolve a natureza do direito material em disputa e a
consideração que se faça, em um determinado contexto
histórico e político, a respeito do titular deste direito.
Como atualmente predomina a concepção da natureza
168
Badaró, ob. cit., p. 97-98.
169 Asencio Mellado, José Maria. Principio Acusatorio y derecho de defensa en
el proceso penal, Madrid: Trivium, 1991, p. 22. É a posição de Paulo
Rangel, em Direito Processual Penal, 8ª edição, Rio de Janeiro, Lumen
Juris, p. 63-65.
pública do conflito de interesses penal, que se transforma em
caso penal, sendo a sanção penal170 pública e portanto
resultante de uma atribuição estatal, a vedação cada vez
menos rigorosa à disponibilidade do conteúdo do processo
penal está guiada pela assunção do interesse público
subjacente.
Diferente seria se inseríssemos a ação penal
condenatória em um contexto meramente formal, em virtude
do qual pudéssemos confundi-la exclusivamente com o
poder de iniciativa, quando então todos os demais atos, dos
quais os de instrução são talvez o principal exemplo,
ficassem à mercê dos poderes de investigação do juiz. Não
haveria aí disponibilidade do conteúdo do processo não
porque a natureza jurídica do direito material levado à pugna
a interditasse, mas por força de ser o juiz e não o dominus
litis, isto é, o Ministério Público, a personificação do Estado
como titular do direito material em questão.
E a rigor quem não é o titular do direito dele não pode
abdicar. Também seria diferente se admitíssemos a retirada
da própria acusação e, apesar disso, a emissão de sentença
de mérito pelo juiz. Neste outro caso, teríamos de concordar
com Mellado e assinalar que a decisão judicial importaria em
verdadeiro exercício de acusação de ofício, pelo tribunal.171
Mas como o critério de disponibilidade deve ser ditado
pelo direito positivo, levando em conta a natureza do direito
de punir (aspecto material e não processual), vinculando
obrigatoriamente o Ministério Público naqueles casos
reputados de prevalecente interesse público pelo legislador,
o princípio dispositivo em si, relacionado com a disposição
sobre o objeto do processo, não integra ou se opõe ao
princípio acusatório, sendo importante, porém acidental. A
prevalência do interesse público tem a ver com a inibição da
iniciativa particular a remarcar o caráter não vingativo mas
de composição do processo penal.
170
A sanção penal é tomada como conseqüência jurídica da infração penal
perseguida pela atividade processual do autor da ação penal.
171 Asencio Mellado, José Maria. Ob. cit., p. 23.
Isso não significa dizer que o juiz está autorizado a
condenar naqueles processos em que o Ministério Público
haja requerido a absolvição do réu, como pretende o artigo
385 do Código de Processo Penal brasileiro172.
Pelo contrário. Como o contraditório é imperativo para
a validade da sentença que o juiz venha a proferir, ou, dito de
outra maneira, como o juiz não pode fundamentar sua
decisão condenatória em provas ou argumentos que não
tenham sido objeto de contraditório, é nula a sentença
condenatória proferida quando a acusação opina pela
absolvição.173
O fundamento da nulidade é a violação do contraditório
(artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República).
Como destaca Badaró, ―a regra da correlação entre
acusação e sentença é uma decorrência do princípio do
contraditório‖.174 Avançando sobre o tema, o culto professor
paulista sublinha que, na atualidade, não é correto limitar a
idéia – e o alcance – do contraditório apenas ao debate sobre
questões de fato.175 Também as questões de direito estão
afetas ao contraditório, pois que podem estar marcadas pela
controvérsia a ser esclarecida mediante escolha entre duas
ou mais teses pertinentes ao mesmo tema.176
172
O texto no corpo do livro, seguinte à nota, foi incluído na terceira
edição para sanar qualquer dúvida acerca da posição do autor sobre
o tema.
173
Não é este o entendimento do Supremo Tribunal Federal. No acórdão
proferido em HC 82.844/RJ, 2ª Turma, Relator Min. Nelson Jobim, publicado
em 28/05/04, fixou-se que é significativo o fato de o Ministério Público ter
sugerido a absolvição do réu, sugestão acatada pelo juiz de primeiro grau, para
determinar a absolvção. No caso o Assistente do Ministério Público recorreu da
sentença absolutória e obteve a condenação em segundo grau. Esta condenação
foi atacada por Habeas Corpus.
174
BADARÓ, Gustavo Henrique R. Ivahy. Correlação entre acusação e
sentença, São Paulo, RT, 2000, p. 27.
175
Idem, p. 32.
176
Exemplo disso é a questão sobre a insignificância de determinada ação não
negada pelo réu. O único debate no processo pode ser acerca da qualificação de
comportanto insignificante – e atípico – ou não. Negar o contraditório sobre
este ponto é esvaziar o princípio constitucional e retornar ao tempo do
Assim, quando em alegações finais o Ministério Público
opina pela absolvição do acusado o que ocorre em concreto,
no processo, é que o acusador subtrai do debate
contraditório a matéria referente à análise das provas que
foram produzidas na etapa anterior e que possam ser
consideradas desfavoráveis ao réu. Como a defesa poderá
reagir a argumentos que não lhe foram apresentados? Esta é,
em resumo, a posição de Santiago Martínez, ao avaliar a
posição dos tribunais argentinos sobre o assunto.177
É interessante notar certa peculiariade do processo
penal brasileiro: a figura do Assistente de Acusação. Com
previsão no artigo 268 do Código de Processo Penal, o
Assistente poderá habilitar-se ao processo e participar dos
atos processuais. Em alegações finais o Assistente se
pronunciará antes da Defesa.
Nestes termos, se o Assistente do Ministério Público,
devidamente habilitado, se pronunciar em alegações finais
pela condenação, opondo argumentos que poderão ser
respondidos pela Defesa, a exigência do contraditório terá
sido atendida.
No caso do direito brasileiro o ofendido fiscaliza a
obrigatoriedade do exercício da ação penal pública (artigo
5º, inciso LIX, da Constituição da República). Essa
fiscalização é realizada, via de regra, por meio da ação penal
privada subsidiária da pública (artigo 29 do Código de
Processo Penal). Todavia, se a ação pública foi
oportunamente proposta, fica para o ofendido apenas a
possibilidade de acompanhar o processo, habilitando-se
como assistente178. Caso não o faça, creio que estará
paleopositivismo, abandonado pela ideologia de princípios da Constituição da
República de 1988, no Brasil.
177
MARTÍNEZ, Santiago. La acusacion como presupuesto procesal y alegato
absolutorio del Ministerio Publico Fiscal,: observaciones sobre una cuestión
recurrente, Buenos Aires, Fabian J. Di Placido, 2003.
178
Por coerência sistêmica não se pode esquecer que o direito de ação é
exercido pelo Ministério Público ao longo do processo, não se esgota com a
apresentação da denúncia. Assim, além da inércia inicial, superável pelo
oferecimento de queixa substitutiva da denúncia (artigo 29 do Código de
impedido de recorrer da sentença absolutória, apesar dos
termos do artigo 598 do Código de Processo Penal, pois a
condenação em segundo grau violará, ela própria, o
contraditório e a correta função do segundo grau, definida no
Pacto de São José da Costa Rica, que prevê recurso exclusivo
da Defesa.
Voltando ao ponto inicial: nos processos inquisitórios
nada obsta a que o juiz/acusador desista do processo e o
encerre mediante arquivamento. Isso não transformará o
processo inquisitório em acusatório.
No processo acusatório, porém, o juiz não poderá
condenar o réu diante de um requerimento/alegação final do
acusador (Ministério Público ou querelante) pela absolvição,
sob pena de ofender o contraditório.
Ultrapassada esta fase, as demais questões são, a nosso
juízo, próprias do princípio acusatório, uma vez que se
referem ao poder de iniciativa (demanda, com exclusão,
portanto, da atuação inquisitorial do juiz), delimitação do
objeto (por meio da acusação, elemento da própria ação
penal) e demonstração da verdade dos fatos e argumentos
(direito à prova).179
Por sua vez, a oficialidade do processo penal
condenatório e a obrigatoriedade da ação penal pública,
Processo Penal), há também a possibilidade de inércia superveniente, a ser
combatida pela atuação do Assistente.
179 Em excelente trabalho, intitulado Direito à Prova no Processo Penal,
Antonio Magalhães Gomes Filho traça o perfil do que conceitua como direito à
prova, lembrando que a inserção da figura do juiz, como protagonista da tarefa
de aquisição das provas, representou uma postura metodológica fundada no
escopo específico do processo, subordinado ao ideal de defesa social contra a
delinqüência, e inspirado num conceito de Estado que pretendia organizar a
vida dos indivíduos e conduzir a sociedade. Por sua vez, a aceitação da prova
como direito das partes, conseqüente aos direitos de ação e de defesa,
pressupunha uma organização estatal preocupada apenas em manter o
equilíbrio social, preservando a autodeterminação dos indivíduos. Acatando-se
uma visão não interventiva do Estado, no campo processual, chega-se, conforme
Gomes Filho, a uma concepção de prova como argumentum, que não pode
prescindir do momento de persuasão, sendo a verdade por ela perseguida
própria das coisas humanas, que sem a pretensão de ser absoluta, não exclui
uma probabilidade contrária, mas é escolhida por razões de caráter ético (O
Direito à Prova no Processo Penal, São Paulo: RT, 1997, p. 39).
malgrado reflitam uma postura de preocupação com o valor
segurança e, por igual, intransigência referente à apuração e
repressão das infrações penais, não desnaturam a
acusatoriedade do processo, na medida em que a ação penal
não é deduzida por quem haverá de julgá-la, não implicando
sempre, ou necessariamente, em que o réu se veja diminuído
em suas condições de resistência.
Neste sentido, Navarrete tem completa razão ao frisar
que, frente a tendências doutrinárias amparadas
principalmente no modelo alemão, alguns doutrinadores
opõem-se, sem razão, ao reconhecimento de um processo de
partes, salientando unicamente a existência de partes
formais.180
Tal concepção, sob a ótica de Navarrete, não reproduz a
verdade dos fatos, porquanto o órgão acusador funciona
substancialmente como parte, interessado no proveito de
direito material perseguido, em virtude do qual atuará
durante o processo.181
Esta é, também, a razão por que há de ser prestigiada a
autonomia do acusador (Ministério Público ou ofendido), até
mesmo no que respeita à convicção da ausência do suporte
mínimo probatório ou da presença de algum fator
180 Lorca Navarrete, Antonio María. El Proceso Penal de La Ley de
Enjuiciamiento Criminal, p. 52.
181 Em realidade, se Carnelutti está certo, quando assevera que a atitude de
advocatus diaboli, adotada pelo Ministério Público, ao início e durante o
processo penal, é imprescindível à conformação dialética do processo de partes
(e à operação do princípio acusatório, acrescentamos), motivo por que deve
resultar de uma autêntica convicção do órgão de acusação sobre a procedência
do seu pedido. É inegável, também, a correção da tese contida na observação de
Jorge de Figueiredo Dias, no sentido de que, ao Ministério Público interessa
incondicionalmente o descobrimento da verdade e aplicação da justiça,
atendendo a critérios de estrita legalidade e objetividade. Em vista disso,
compreende-se possa o Promotor de Justiça pedir a absolvição do acusado se,
ao final do processo, estiver convencido da inocência dele, ou recorrer a favor do
condenado. Nestas duas hipóteses, não há prejuízo à máxima acusatoriedade
possível, isto porque, ao longo do processo de conhecimento, funcionou
plenamente a estrutura dialética, ensejando a produção, em síntese, de um
convencimento oposto ao da pretensão deduzida mas conforme os princípios de
justiça, a que o Ministério Público rende vassalagem (Sobre os Sujeitos
Processuais no Novo Código de Processo Penal, p. 25).
juridicamente inibidor da propositura da ação penal. Assim,
o juiz fica excluído, por imperativo lógico, da tarefa de
controlar o princípio processual da obrigatoriedade, quando
exigível, nos casos de não-exercício da ação penal182.
Acrescente-se, por oportuno, ao ensejo de se conceber
um princípio de obrigatoriedade, que não exclui a
acusatoriedade nem com ela se confunde, mas se contrapõe
tão-somente
aos
princípios
de
conveniência
e
183
oportunidade , que tal obrigatoriedade impelirá o órgão de
acusação a se interessar pelo desenvolvimento das
investigações criminais necessárias à colheita de material
que sirva ao propósito de demonstrar a viabilidade da
pretensão que se deseja deduzir.
Sendo assim, ainda na fase pré-processual é possível
vislumbrar o princípio da acusatoriedade, o qual aparecerá
sempre que, de algum modo, o titular da ação penal atuar
com vista à aquisição de elementos de formação da convicção
judicial, mesmo que superficial, voltada ao recebimento da
denúncia ou queixa.
É imperioso ressaltar, sobre este tópico, que também o
princípio acusatório, refletindo o duelo entre acusação e
defesa, obstará o reconhecimento da validade dos meios de
prova adquiridos e conservados nesta fase pré-processual,
salvo no tocante ao objetivo de conferir suporte mínimo
probatório à pretensão ou se a defesa intervier, plenamente,
corroborando para a sua aquisição, em atividade
antecipatória da aquisição e preservação de provas para o
futuro, sob o signo do contraditório, conforme o modelo das
providências cautelares.
III. DA DEFESA
É a posição de Marcellus Polastri Lima, avançada em Curso de Processo
Penal, vol. 1, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002, p. 147-150, neste passo
simétrica a de Paulo Rangel (Direito Processual Penal, op. cit., p. 182).
183
Princípios que, de acordo com determinados modelos, conformam o
chamado espaço de consenso.
182
Por sua vez, sobre a Defesa é válido relembrar a lição de
Jorge de Figueiredo Dias, referida anteriormente:
compreende-se como categoria aberta, à qual devem ser
imputados todos os concretos direitos, de que o arguido
dispõe, de co-determinar ou conformar a decisão final do
processo.184 Isso coloca o acusado, e, dadas as
especificidades técnicas relativas ao mecanismo de codeterminação e conformação da decisão judicial, também
seu defensor, na condição de sujeitos de direitos, deveres,
ônus e faculdades.
É preciso pontuar a tendência acentuada, revelada nos
últimos anos, de comprimir o espaço do direito de defesa no
processo penal. Ora o direito de defesa é substituído por
comportamentos processuais do acusado, aos quais se
atribui eficácia jurídica no plano da resolução da questão
principal — assim são as chamadas soluções de consenso —,
ora pura e simplesmente este espaço é reduzido, a pretexto
de controlar as formas graves de criminalidade que estão se
manifestando nos dias atuais.
Como ao nosso juízo o princípio acusatório se
distinguirá do inquisitivo não somente em virtude da
diferenciação forçada entre acusação e julgamento, portanto,
entre acusador e juiz, tarefas a cargo de sujeitos que não se
confundem, entrará em cena aí a problemática derivada das
novas maneiras de o imputado participar do processo.
Com efeito, desde o início salientamos que a
legitimidade democrática do processo penal - e da solução
que ele adjudica - depende do valor de verdade
consubstanciado na sentença.
A verdade é aí concebida como relação possível ou
adequada entre a imagem que o juiz constrói acerca do fato e
a forma real como este fato supostamente ocorreu. É claro,
tivemos a oportunidade de ressaltar, que a verdade que se
pode alcançar no processo e que oporá esta forma de
solução, baseada no saber, a outras, fundamentadas em
convicções de variada natureza, é contingente e histórica e
184 Ver nota nº 122.
dependerá de o Estado atuar ele próprio conforme o Direito.
Daí, no entanto, é impossível conceber soluções de
natureza penal que não levem em conta tal verdade,
contentando-se com comportamentos processuais do
imputado, pois quando isso ocorre termina anulada a
atuação da Defesa em busca da efetivação da contraposição
dialética no processo.
A marca característica da Defesa no processo penal está
exatamente em participar do procedimento, perseguindo a
tutela de um interesse que necessita ser o oposto daquele a
princípio consignado à acusação, sob pena de o processo
converter-se em instrumento de manipulação política de
pessoas e situações.
O espaço de consenso deve ser medido cuidadosamente,
para evitar prejuízo ao princípio acusatório, observando ao
menos:
a) que a publicidade interna do procedimento no
interior do qual se pretende desenvolver a solução
consensual não seja restringida. Restrição dessa
ordem equivale a recusar ao imputado acesso a
informações vitais para balisar sua conduta
processual e isso independe da formalização da
condição de acusado;
b) que o imputado tenha à sua disposição todas as
informações necessárias a respeito do significado da
adoção dos comportamentos processuais possíveis,
com esclarecimentos acerca das conseqüências de
adotar tal ou qual caminho;
c) que o imputado possa até mesmo agregar
informações relevantes para que se decida sobre a
conveniência da aplicação das medidas consensuais,
exercitando contraditório compatível com a espécie
de procedimento simplificado, que de um modo geral
identifica as espécies de solução de consenso;
d) finalmente, que não haja redução ou eliminação da
presunção de inocência, com inaceitável inversão do
ônus da prova mediante pressão sobre o imputado
para que aceite soluções consensuais, muitas vezes
orientadas pragmaticamente ao fim de desafogar os
serviços judiciários, com independência da justiça
das composições185.
O princípio acusatório pode igualmente aparecer
prejudicado de forma séria, no plano da Defesa, quando
estivermos diante das modalidades de procedimento cujo
objeto se caracteriza por ser infrações penais consideradas
graves.
Com efeito, a limitação da publicidade interna do
procedimento afeta primordialmente o contraditório e deste
modo atinge as posições defensivas, impedindo o imputadoacusado e seu Defensor de terem acesso a informações
importantes, de poderem contrariá-las e, destarte, de
contribuírem para a formação da convicção do juiz. As
estratégias de combate à criminalidade organizada, por meio
da infiltração de agentes policiais, do estímulo à cooperação
de arrependidos e, principalmente, por conta das restrições
que impõem à publicidade interna do processo, negando ao
imputado participação nos procedimentos preliminares,
mesmo quando se trata de medidas de natureza cautelar,
correspondem a métodos pré-modernos de atuação da
justiça penal cujo propósito é tornar efetivo o direito penal a
qualquer preço.186
Note-se que há significativa diferença entre a necessária
185
A violação da presunção neste caso ocorre quando o juiz ou o Ministério
Público advertem o autor do fato (artigo 76 da Lei n. 9.099/95) para os riscos de
recusar a proposta de aplicação direta de pena e partir para o processo
tradicional. Essa ―advertência‖ embute consideração prévia da ―culpa‖ do
investigado, pessoa que segundo a Constituição da República deve ser tratada
como inocente (artigo 5º, inciso LVII).
186 De algum modo, todas estas formas eram conhecidas ao tempo em que
predominava, na Europa Ocidental, o processo inquisitorial de influência
eclesiástica. O e. Supremo Tribunal Federal tem enfrentado com freqüência a
questão e decidido pela inoponibilidade do sigilo do inquérito policial ao
advogado do indiciado. HC 82354 / PR – PARANÁ HC - Relator: Ministro
Sepúlveda Pertence. 1ª Turma. Julgamento em 10 de agosto de 2004.
Publicação: DJ DATA-24-09-2004 PP-00042 EMENT VOL-02165-01 PP00029.
busca de suporte probatório, pelo acusador, para
posteriormente deduzir sua acusação, e as atuações durante
a fase preliminar, voltadas à limitação ao exercício de
direitos fundamentais do imputado.
Há atos de investigação que precisam permanecer sob
sigilo, durante algum tempo, sob pena de fracassarem os fins
da própria investigação. Entre eles não se inclui, certamente,
a produção antecipada de provas, que somente estará
justificada diante do risco de perda da prova em virtude da
natural demora do processo, e as ações que visam restringir
o exercício de direitos fundamentais do imputado — tais
como a prisão processual e a interceptação das comunicações
telefônicas —, que só poderão ter validade jurídica se
submetidas ao contraditório pelos menos diferido, isto é,
realizado em um momento posterior ao da adoção da
providência187.
Com isso, a compatibilidade com o princípio acusatório
dependerá de a Defesa concretamente estar em condições de
participar em contraditório do processo com as
características acima mencionadas.
Os atos de natureza cautelar que são levados a cabo sem
audiência prévia da parte contrária - inaudita altera pars -,
dependerão do contraditório a posteriori para estarem
revestidos de validade jurídica.
De todo modo, quando as condições de participação da
Defesa são canceladas, os atos eventualmente realizados
podem estar entre dois extremos: são simplesmente
informativos, e o juiz não poderá considerá-los no processo.
Quando muito os levará em conta para ajuizar a presença de
justa causa para a ação penal; ou não valerão de modo
algum. Nesta categoria será possível inscrevermos a
187
O procedimento das interceptações é autuado em apartado, nos termos da
Lei n. 9.296/96. Permanece em sigilo durante o período de captação das
conversas telefônicas (prazo de quinze dias, prorrogável por mais quinze) e
depois deve ser objeto de controle dos interessados. Ver do autor o livro Limites
às Interceptações Telefônicas e a Jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005.
denominada delação premiada188, isoladamente insuscetível
de ser alcançada pelo contraditório, pois contrapõe com
exclusividade versões apresentadas por interessados, sendo
meramente uma questão de fé o convencimento dela
derivado.
Também neste âmbito se enquadra a infiltração,
medida que consiste, do ponto de vista filosófico, no fato de o
Estado permitir aos seus agentes que participem pelo menos
do crime de formação de quadrilha a pretexto de controlar e
combater a criminalidade. A par da grave concessão de
ordem ética, haverá sempre a possibilidade de se atribuir a
priori valor superior às informações adquiridas desta
maneira em oposição aos demais elementos de convicção
introduzidos no processo pelas partes, reconduzindo o
sistema das provas tarifadas ao ambiente processual,
dissimuladamente189
Por fim, ressalte-se que a atuação do imputado e de seu
Defensor deverá se projetar no processo de execução penal,
porque nele o comando contido na sentença poderá tornarse realidade.
Da participação efetiva da Defesa na execução penal
dependerá a natureza processual, ou apenas administrativa,
desta modalidade de procedimento.
188
Há vários dispositivos legais que cuidam da delação premiada. O mais
abrangente está definido no artigo 14 da Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999,
pelo qual é possível reduzir a pena em até dois terços, desde que o acusado haja
colaborado voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal,
visando a identificação de co-autores e partícipes, a localização da vítima com
vida e a recuperação total ou parcial do produto do crime. O artigo 13 da citada
Lei chega a prever o perdão judicial para o agente colaborador, desde que a
personalidade do beneficiado, a natureza, circunstâncias, gravidade e
repercussão social do fato criminoso indiquem a conveniência da medida.
189
O texto Da Lei de Controle do Crime Organizado: Crítica às Técnicas de
Infiltração e Escuta Ambiental, publicado originalmente no Livro Escritos de
Direito e Processo Penal em Homenagem ao prof. Paulo Cláudio Tovo (Rio de
Janeiro, Lumen Juris, 2002), sob coordenação de Alexandre Wunderlich, está
ao fim, como Anexo I. Trata da matéria e o autor acredita que será útil
complemento ao que está sendo examinado neste trabalo.
3.2.2.2. Da Perspectiva Dinâmica do Processo: Da Atuação
dos Sujeitos Processuais
Na linha do que se refere ao autor, ao acusado e ao juiz,
considerados estaticamente, são essas a nosso juízo as
principais observações. Como foi sublinhado antes, é hora de
passarmos ao exame da dinâmica processual e ver como
reagem os diversos sujeitos à ação dos demais. Equivale à
tentativa de captar a atuação dos sujeitos como em um filme.
É válido, no entanto, acrescentar, pelo que há de
comum a acusado e acusador, que a modalidade de
configuração dos respectivos estatutos jurídicos, erguida em
bases de liberdade com responsabilidade, caracteriza a
moderna concepção das partes como sujeitos do processo
penal.
Começaremos pelo estatuto da Defesa em movimento,
porque este é, em nossa opinião, o que mais diretamente
sofre com as ―novas‖ interpretações que de um lado
resgatam a inquisitorialidade e do outro vestem com figurino
acusatório o que necessariamente não é. Como parece que o
fenômeno decorre da prevalência da ideologia de lei e ordem,
para restringir os direitos da Defesa no processo, como
afirmamos na última parte do item 3.2.2 III, é oportuno
examiná-lo em primeiro lugar.
I. -O Estatuto da Defesa em Movimento: O Conflito entre os
Interesses do Defensor e do Acusado e o Limite às
Soluções de Consenso
Com efeito, sobre o acusado deve-se sublinhar, com
reservas, que não corresponde ao anseio de justiça qualquer
proposta fundada na idéia de que não possa dispor da
capacidade de autodeterminação, que não é um direito, mas
uma característica inerente à sua condição de ser humano.
Pode, pois, em uma lógica não-paternalista, mas
responsável desde que consciente da situação gerada pelo
processo e dos cenários hipotéticos que a eleição de algumas
alternativas de comportamentos poderá implicar, escolher
mesmo soluções que resultem na disposição sobre o
conteúdo do processo acusatório.
É claro que em um Estado Democrático, que aspira a
consecução da máxima justiça social, tais eleições inspiramse no propósito de resolução justa dos conflitos de interesses
penais, razão pela qual a lógica da produtividade, verificada
em ordenamentos jurídicos coincidentemente acusatórios,
não é válida. Não se trata de viabilizar acordos penais para
aumentar o número de pessoas condenadas.
Ponderando-se, porém, os bens e interesses em jogo
com a disciplina da autodeterminação de um ser, que
compreende em seu particular estatuto essa característica
como essencial, é válido considerar a importância e o relevo
que tem a vontade do acusado para o desfecho de um
processo penal de natureza acusatória. O limite das
possibilidades da autodeterminação no campo jurídico-penal
se põe principalmente quando outra característica inerente à
condição de ser humano puder ser suprimida, tal como, por
exemplo, a liberdade pessoal.
Entre as edições anteriores do Sistema Acusatório e a
atual (3ª) há o hiato no qual foi pesquisado e produzido o
livro Elementos para uma Análise Crítica da Transação
Penal, fruto de tese de doutorado.
As conclusões da pesquisa, para a qual remeto o leitor,
recomendam cuidado na interpretação e reconhecimento do
espaço de decisão de que o acusado pode dispor acerca de
uma série de direitos e garantias processuais que lhe são
assegurados pela Constituição da República e pelos tratados
internacionais de direitos humanos.
Assim, o afastamento do paternalismo no tratamento
dispensado ao acusado não pode levar a supor que as
condições concretas de funcionamento do Sistema Penal
proporcionem igualdades de toda natureza, a ponto de ser
sempre considerada válida a decisão pessoal de não se
defender!
As desigualdades materiais não desaparecem por
decreto, como a história não chega ao fim simplesmente
porque um cientista social decreta o ―fim da história‖!
E a criminologia crítica irá demonstrar que as
desigualdades sociais no mínimo são responsáveis pela
definição da criminalidade de determinados setores da
sociedade. O emprego do poder de selecionar condutas
delituosas está na base do princípio da reserva legal, mas na
realidade os Parlamentos contemporâneos ainda o põem a
funcionar para conter grandes massas sociais190.
Desse modo, não é razoável admitir igualdades
materiais onde elas não existem e hipoteticamente transferilas para o processo penal, que muito pouca contribuição
pode oferecer para superar essas desigualdades.
O chamado processo penal consensual se esforça para
realizar essa tarefa inatingível. Baseado no princípio da
autodeterminação do acusado, que não se coloca em cheque,
sustenta a possibilidade de o réu decidir não se defender e
aceitar, diretamente, uma pena ou medida criminal (é o que
ocorre com a transação penal e a suspensão condicional do
processo, ambas previstas nos artigos 76 e 89 da Lei dos
Juizados Especiais Criminais).
O problema está em que o réu tem chances reduzidas de
não ser punido, desde o processo de criminalização primária,
que seleciona condutas em que na maioria das vezes ele está
previamente enquadrado por pertencer a certo grupo social,
até a hora em que a pressão do tempo191 e o ambiente, ambos
desfavoráveis, termina pesando para que aceite as soluções
penais aparentemente mais generosas, sob pena de ter que
encarar o rigoroso processo tradicional! Em suma, o acusado
é ameaçado com a presunção de culpa!
As chamadas soluções consensuais não estão no círculo
temático do Sistema Acusatório (como foi sublinhado antes),
pois visam resolver conflitos extra-processuais e, portanto,
190
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados
Unidos, Rio de Janeiro, Ed. Freitas Bastos, 2001.
191
A abordagem de Aury Lopes Jr. sobre o papel do tempo no processo, levada
a termo no livro Introdução Crítica ao Processo Penal: Fundamentos da
Instrumentalidade Garantista), (Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004), é
sugestiva.
não objtivam apurar fatos para com base nisso arbitrar
responsabilidades.
Há de se pensar uma dogmática apropriada para elas,
tarefa-desafio segundo Alberto Binder192.
As decisões pessoais do acusado são relevantes no
processo penal acusatório (confessar ou não, recorrer ou
não, falar por si mesmo em audiência, não apenas no ato
formal de interrogatório, indicar provas), mas não devem ser
confundidas com aquelas outras, do processo consensual,
que podem ser oportunas e talvez funcionem como estratégia
de abrandamento do rigor punitivo, todavia sistematizadas e
difundidas levam paulatinamente ao retorno do modelo
inquisitorial que mira a pessoa, o corpo do acusado, como
alvo da ação estatal.
Em que pesem as oposições existentes,193 o estatuto do
defensor no processo penal, por sua vez, coaduna-se com
propósitos de resolução justa do caso penal, observada a
adequada tutela jurídica dos direitos e interesses do acusado.
Assim, é lícito acentuar que o advogado ou defensor
exerce um munus público (contribuindo em grande parte
para a resolução da causa conforme o direito) equilibrado
por tudo quanto, no exercício da sua atividade, imponha a
atuação ou omissão, ambas necessárias à preservação ou
conquista de posições jurídicas de vantagem para o acusado,
conforme o direito.
Essa é a razão pela qual se concebe, em um processo
acusatório, a positivação de poderes do advogado do acusado
para se opor à vontade deste último, sempre que divise, nas
conseqüências da manifestação dela, a operação de grave
prejuízo jurídico. Daí porque se constata uma dualidade de
estatutos — defensor/acusado —, apta a ensejar a
juridicidade do recurso da defesa contra a vontade do réu.
192
BINDER, Alberto. O descumprimento das formas processuais: elementos
para uma crítica da teoria unitária das nulidades no Processo Penal, Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 44, citado anteriormente.
193 Referidas e analisadas por José Narciso da Cunha Rodrigues (―Sobre o
Princípio da Igualdade de Armas‖, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal,
ano 1, nº 1, Lisboa: Aequitas, jan-mar/1991, pp. 77-103).
II. -O ESTATUTO DA ACUSAÇÃO EM MOVIMENTO: A
OPORTUNIDADE REGULADA NA AÇÃO PÚBLICA E A VEDAÇÃO
ORDINÁRIA À INVESTIGAÇÃO DIRETA
Sobre o estatuto do acusador, em decorrência do
princípio de liberdade responsável, também são devidas
algumas considerações.
A. A Oportunidade Regulada na Ação Pública
A primeira delas reside na seguinte premissa, segundo
nosso pensamento, fundamental: a oficialidade do exercício
da ação penal e, conseqüentemente, da tarefa de dedução da
acusação, não modifica substancialmente o estatuto do
acusador, a ponto de criar uma absoluta incompatibilidade
entre decisões de conveniência ou oportunidade e de estrita
obrigatoriedade.
Com efeito, não há exercício de função pública salvo por
seres humanos e a liberdade de autodeterminação é, como
assinalamos em lance anterior, da natureza humana.
É evidente que, no exercício da função pública,
submete-se o agente ao império da legalidade, que, no
campo penal, em consideração à máxima da isonomia,
obedece a princípios de moralidade e impessoalidade. Apesar
disso, sempre há um espaço no qual é possível eleger
alternativas e se os critérios de escolha variam conforme seja
o acusador particular ou oficial, para o último hão de levar
em conta a moralidade, impessoalidade e, via de
conseqüência, a objetiva isonomia, que não o impedirão de
contribuir decisivamente para a implementação da política
criminal mais justa.
Neste caso, a perspectiva histórica há de por acento no
fato de o Ministério Público ter nascido, com a sua
conformação próxima à atual, como fruto do processo de
revisão crítica do exercício do poder, provocada pela
Revolução Francesa,194 objetivando desempenhar decisivo
papel na persecução penal, mas inserido em um projeto
orgânico de vigência real do conjunto de garantias
indispensáveis à dignidade da pessoa humana.
Em um modelo acusatório, que historicamente se funda
no protagonismo das partes, há de se conceder espaço para
uma atuação mais flexível do Ministério Público, porquanto
a noção da persecução penal em todas as circunstâncias,
referida a todas as infrações penais (ainda que consideremos
somente as noticiadas), rende louvor ao fim de defesa social,
perseguido no processo inquisitório, acima e além dos
limites de humanidade necessários à harmônica convivência
social.
Um estatuto jurídico do acusador que reprima
completamente as suas potencialidades de conformação da
política criminal, a pretexto de vincular a ação do Ministério
Público à legalidade, esconde deliberadamente a
possibilidade da legalidade surgir em ambientes de
flexibilidade, de acordo com critérios de impessoalidade e
moralidade e também de acordo com propostas de redução
do caráter flagrantemente elitista da justiça penal,
redistribuindo as forças de persecução conforme uma mais
coerente e justa avaliação do que deve merecer o dispêndio
de energia do Estado.
Na perfeita compreensão de Maximiliano Rusconi,
sobre o estatuto jurídico do acusador público no âmbito do
sistema acusatório e de acordo com o princípio acusatório,
centrado na idéia do justo processo, alerta-se:195
El principio de oportunidad como elemento
para racionalizar el uso de poder de persecución
criminal, evitar una selección ‗irregular y
194 Rusconi, Maximiliano A. ―Luces y Sombras en la Relación Política
Criminal — Ministerio Público‖, in Ministério Público, Revista
Latinoamericana de Política Criminal, ano 2, nº 2, Buenos Aires: Editores
del Puerto, 1997, p. 156.
195 Rusconi, Maximiliano A. ―Luces y Sombras en la Relación Política
Criminal — Ministerio Público‖, ob. cit., pp. 158-159.
deformante‘ y dirigir los recursos del Estado al
control sobre el tipo de criminalidad que mayor
costo social genera y más dificultades manifiesta
en la investigación, representa sin duda una
opción de limitación del poder penal del Estado...
Además de las razones expuestas, es preciso
insistir en una de máxima importancia: que el
Ministerio Público sea el operador de los criterios
de desjudicialización a través de la aplicación
concreta del principio de oportunidad, asegura
que dicha aplicación no viole la garantía
constitucional de ‗igualdad ante la ley‘ debido a
que por su especial función de formulación de la
política criminal del Estado y gracias a que ciertos
principios aseguran que esa formulación sea
coherente...
E, conclui, objetivamente, com a observação de que
princípios de unidade, hierarquização e verticalidade,
configurando o Ministério Público, asseguram às pessoas
que estarão sempre submetidas às mesmas regras e não a
uma arbitrária disposição de vontade do acusador.
Nestes termos a realidade coloca o Ministério Público
diante da possibilidade/necessidade de se organizar de modo
eficiente e orientar a aplicação de seus recursos na direção de
políticas
criminais
democráticas,
definidas
com
transparência e em documentos discutidos internamente e
com representantes da comunidade.
Cumprida esta etapa, em homenagem aos princípios
constitucionais mencionados linhas atrás, cada Promotor de
Justiça ou Procurador da República terá conhecimento dos
parâmetros que nortearão escolhas entre acusar ou requerer
o arquivamento das investigações criminais e até sobre
recorrer ou não de sentenças.
A interpretação constitucionalmente adequada do artigo
129, inciso I, da Constituição da República, é esta. Não se
trata, apenas, de assegurar ao Ministério Público o
monopólio do exercício da ação penal pública, na forma da
lei. Nos dias de hoje é concebível extrair da norma
constitucional a autorização para definir critérios e casos de
atuação, sempre tendo em mente os princípios da
moralidade e impessoalidade.
Por último, não custa lembrar que a dogmática penal
avançou o suficiente para engendrar critérios de definição de
crimes, de tipicidade penal, bem mais exigentes que a mera
subsunção da tipicidade objetiva tradicional.
A potencialidade de dano da conduta, a ofensividade a
bens jurídicos, a própria dimensão do dano provocado e o
desvalor da ação são elementos que o Direito Penal oferece
ao Ministério Público para determinar as hipóteses de
atuação ou não.
B. A Vedação Ordinária à Investigação Direta196
Em contrapartida à maior liberdade de ação, que deve
inspirar a atuação do Ministério Público, em um processo
penal democrático, temos que, além dos mencionados
controles, funcionam outros, direcionados a impedir ou a
coibir os excessos e a tentar garantir que o valor de verdade
da sentença penal não venha a naufragar por conta de uma
acentuada e irracional atividade probatória.
Por conta disso, convém dedicarmos alguma atenção à
matéria prova penal e às atividades de investigação
diretamente a cargo do Ministério Público.
Com efeito, o estudo sistemático da teoria jurídica
relativamente à questão da prova está a demonstrar que não
se trata simplesmente de problemas de método de aquisição,
introdução e avaliação das provas no processo.
No campo da prova há também aspectos subjetivos, isto
é, referidos à perspectiva de quem pode provar, além de
outros objetivos, ambos importantes, que estão a merecer
196
Sobre o assunto, recomendo a leitura do livro Investigação Criminal
Direta pelo Ministério Público: Visão Crítica, 2ª ed. de Paulo Rangel, tema
de sua dissertação de mestrado (Lumen Juris, 2005) e o Crime e
Constituição: a legitimidade da função investigatória do Ministério Público,
2ª ed., de Lenio Luiz Streck e Luciano Feldens, Rio de Janeiro, Forense,
2005.
tutela jurídica por intermédio de procedimentos de garantia
previstos nas Constituições.
No plano específico do princípio acusatório exige
extraordinário cuidado o saber como articular estes
procedimentos e a teoria jurídica.
Assim é que, ao se falar em proibição de prova no
processo penal, está se afirmando que o juiz não poderá levar
em consideração determinado elemento de convicção, no
momento de proferir a decisão, se este elemento de
convicção foi obtido indevidamente.197 Mas a proibição da
prova vai muito além do mero dado procedimental.
Para entendermos o fenômeno que orienta a atividade
probatória, é preciso compreender como a teoria do
conhecimento cuida do assunto e perceber que provar é
convencer, que a atividade probatória consiste em introduzir
no processo elementos que servirão para formar a convicção
do juiz.
Portanto, a atividade probatória é atividade de
ministrar elementos de conhecimento. O juiz deverá
conhecer determinado fato e este conhecimento se dará
indiretamente,198 porque o juiz não presenciou o fato. Ao
final, o convencimento do juiz representará a formulação de
uma idéia acerca do fato. Da comparação desta idéia com a
pretensão deduzida pela acusação e com a pretensão de
resistência deduzida pela Defesa nascerá a decisão.
Diante das conseqüências advindas da consideração de
que um fato está ou não provado no processo é necessário
levar em conta que, em primeiro lugar, a atividade
probatória é uma atividade de pesquisa.
É assim em qualquer ramo do conhecimento e não pode
ser diferente quando o objeto do conhecimento é um fato
ideal — a suposição a respeito da existência de uma infração
penal.
197 A Constituição da República estabelece, em seu artigo 5º, inciso LVI, que
são inadimissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.
198
Evidentemente, se o juiz for testemunha da infração penal, não
poderá julgar. Artigo 252, inciso II, do Código de Processo Penal.
Neste sentido convém recordar que os pesquisadores a
princípio definem o que se pretende pesquisar. Em termos
de Processo Penal, o objeto da pesquisa é um fato com
coloração diferenciada, dada pelo Direito Penal.
A pesquisa só será possível se o pesquisador tiver em
mente um fato da realidade, hipoteticamente ocorrido, a que
terá de somar os elementos peculiares à adequação típica,
pois apenas a infração penal lhe interessará.
Duas notas distintas passam a ser objeto da atividade
mencionada: a existência de um fato, propriamente dito; e a
presença das características que poderão atribuir a este fato
relevância jurídico-penal. Em outras palavras e a título de
exemplo, no processo penal interessa saber se houve morte
de alguém e se esta morte pode ser derivada de conduta
dolosa ou culposa prevista como crime. O processo penal não
deve perseguir a prova de fatos atípicos!
Verifica-se, agora sim, que a atividade probatória não se
limita a um debate no processo, com introdução de provas, a
não ser que entendamos que a produção de provas é sempre
produção de provas direcionada a determinação da
existência e da vinculação subjetiva de um fato típico, ilícito
e culpável, ou seja, de uma infração penal.
Mesmo quando, aparentemente, a lei é clara na
definição da infração penal, sempre se exigirá um mínimo
processo de interpretação que passa tanto pela
reconstituição do fato no plano das idéias, o que dependerá,
é certo, da qualidade dos elementos que serão oferecidos ao
juiz, como pela compreensão do significado das palavras
empregadas na Lei para indicar o crime ou contravenção.
Saber se a interrupção voluntária da gravidez de feto
anencéfalo configura aborto ou fato atípico é algo que impõe
antes estabelecer consenso sobre o que significa a expressão
―provocar aborto‖, prevista no artigo 124 do Código Penal
brasileiro.
Como não há verdade absoluta, verdade real, a maneira
mais segura de se alcançar o melhor resultado certamente
não justificará o desrespeito aos valores fundamentais da
pessoa humana.
Por essa razão, até mesmo de acordo com a lógica
imperante em determinado modelo de funcionalismo, se a
verdade é sempre contingente e histórica, o uso da tortura e
o emprego de recursos que historicamente foram criados e
ditados para produzir uma verdade real não têm peso
algum. Neste caso, o resultado da atividade probatória
objetivamente estará sujeito ao mesmo tipo de crítica cabível
em todas as pesquisas e eticamente representará a opção por
mecanismos tão censuráveis quanto a infração penal que se
pretende apurar.
A restrição relativa aos meios de prova, no processo
penal, tem a ver com o conjunto de valores sociais
considerados conforme o estatuto ético da sociedade.
Do ponto de vista objetivo, a proibição de provas
exprime as hipóteses de violação a este estatuto ético,
previsto principalmente na Constituição. Desse modo, são
inadmissíveis no processo as provas obtidas por meios
ilícitos conforme a idéia de que o meio utilizado para
obtenção da prova viola valores éticos mínimos considerados
essenciais para a existência de uma sociedade civilizada, ou,
usando a expressão de Schmidt-Leichner,199 o Estado não
pode se tornar receptador de material probatório.
Do ponto de vista objetivo há um limite,
tradicionalmente investigado: a prova ilícita não pode ser
introduzida no processo. Caso seja introduzida, não poderá
ser avaliada pelo juiz porque o Estado não pode atuar
criminosamente para investigar o crime.
Do ponto de vista subjetivo, ninguém, nem mesmo o
juiz, pode ter a pretensão de dominar toda a realidade, de
enunciar a verdade real. A atividade de busca da verdade
processual deve se desenvolver de acordo com princípios
republicanos e democráticos.
O processo penal não pode fugir, na essência, à
estrutura do Estado e da sociedade onde está fadado a atuar.
É necessário que seja assim, porque a consolidação da forma
199 Apud Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em
Processo Penal, Coimbra, 1992, p. 44.
jurídica do Estado, na Constituição, estabelece que os
poderes emanam do povo e que no seu exercício concreto
devem ser distribuídos entre diversos órgãos, e executados
por diferentes agentes de modo a que possa haver controles
recíprocos e eficazes.
A estrutura democrática se contrapõe à forma
autoritária de Estado, de sorte que em um processo penal
democrático as funções acabam distribuídas entre órgãos
distintos obedecendo a esta mesma lógica.
Há uma conexão que vincula os três principais sujeitos
do processo, de modo que a um deles se entregue a atividade
de exercer a ação penal, a outro a atividade de defesa e a um
terceiro, eqüidistante e imparcial, a atividade de julgar.
O sistema de controle das atividades processuais, que se
desdobra em função dos meios e recursos colocados à
disposição das partes, termina por alcançar também a
atividade de polícia judiciária, na medida em que tal
atividade representa, por si só, uma espécie de poder capaz
de afetar gravemente o patrimônio de direitos da pessoa
investigada.
A atividade de polícia judiciária, que consiste na
apuração das infrações penais e sua autoria, amiúde invade a
esfera de privacidade alheia e atenta, legalmente, contra a
reputação pessoal da pessoa sob suspeita. É muitas vezes
imprescindível que seja dessa maneira, pois a aquisição de
informações demandará pesquisa a respeito da vida privada
do investigado. As fronteiras entre o permitido e o proibido
durante uma investigação criminal aparecem pois marcadas
por balisas tênues e não raro, em busca de maior eficiência, o
investigador cede à tentação de violar determinadas normas
jurídicas de proteção da intimidade e da vida privada do
investigado. Quanto mais grave a infração penal e mais
convencido o investigador a respeito da procedência da sua
suspeita, maiores são as chances de não ser rigoroso quanto
à obediência aos direitos fundamentais do indiciado.
Por conta disso, os parâmetros de legalidade na
investigação criminal são sempre bem definidos e em
praticamente todos os ordenamentos jurídicos que seguem a
linha do brasileiro há uma instituição, a rigor o Ministério
Público, que fica encarregada de fiscalizar os atos de
investigação.200
Em vista dessa opção legislativa, o Ministério Público
não pode investigar diretamente, prescindindo da polícia,
sem atentar contra o princípio republicano de controle.
Nicolas Becerra, Chefe do Ministério Público Federal da
Argentina, salienta o seguinte:201
Como ponto de partida o Ministério Público
deve garantir que no exercício do Poder de Estado
se respeitem OS PARADIGMAS DO MODELO
REPUBLICANO. Como um dos operadores centrais
do sistema penal, o Ministério Público deve ser
consciente de quem tem em suas mãos uma
ferramenta que lhe permite executar uma das
formas mais violentas de exercício do poder do
Estado. Este exercício por fim deve demarcar-se no
programa constitucional, que não só institui o
modo de relação institucional entre órgãos, senão
que, ao estabelecer o sistema de divisão no
exercício do poder por intermédio de freios e
contra-pesos, exige também o controle externo.
E conclui com aquilo que é o ponto mais importante:202
Neste controle externo o Ministério Público
deve colaborar com a consolidação de um sistema
no qual, ninguém, ninguém deve ser NEM BOM,
NEM MAU GUARDIÃO DE SEUS PRÓPRIOS ATOS, o
que significa entre muitas outras coisas, que quem
investiga não pode ao mesmo tempo controlar.
200 No Brasil, a Constituição da República prescreve, em seu artigo 129, inciso
VII, que é atribuição institucional do Ministério Público exercer o controle
externo da atividade policial.
201 Becerra, Nicolas. El Ministerio Público y los Nuevos Desafíos de la Justicia
Democrática, Buenos Aires: AD-HOC, 1998, p. 12 – tradução livre.
202 Idem.
Por que a polícia pode investigar, por exemplo, e o
Ministério Público não pode investigar? Que tipo de
conseqüência jurídica, poderia advir de uma investigação
realizada por quem não está incumbido de fazê-lo
constitucionalmente?
À vista do exposto, as possibilidades de o Ministério
Público investigar diretamente dependem da previsão legal
de disposições regulando a investigação, de tal sorte que as
lesões decorrentes do abuso na investigação possam ser
objeto de reclamação perante o Judiciário — princípio da
inafastabilidade da jurisdição — e que o sistema de freios e
contra-pesos possa funcionar.
Além
disso,
é
imprescindível
assinalar
a
excepcionalidade desta atuação, que tão-só estará justificada
naqueles casos em que o sucesso da pesquisa impõe
extraordinária reserva em relação a quem está sendo
investigado.
É o caso das investigações criminais acerca do
envolvimento sistemático de policiais com ações de
corrupção ou criminalidade acentuada no âmbito da própria
polícia.
Caberia à lei fixar estes contornos de forma clara, pois
também para a investigação criminal do Ministério Público
prevalece a garantia constitucional do devido processo legal.
A excepcionalidade dos casos de investigação criminal
do Ministério Público, de lege ferenda, há de ser
compreendida, do ponto de vista do direito, como emanação
do critério da proporcionalidade. Nos limites do devido
processo legal, sacrifica-se o ideal de afastamento do
Ministério Público da investigação criminal, pelo qual é
viabilizado o controle constitucional da atividade de polícia
judiciária, para permitir a investigação de crimes que de
outra maneira não seriam investigados.
Ora, isso impõe limites à própria lei que porventura vier
a ser editada. Esta não poderá atribuir ampla liberdade ao
Ministério Público para escolher o que investigar. Não cabe,
por exemplo, deixar em mãos do Ministério Público a
pesquisa da ocorrência de crime de furto de que foi vítima
um Governador de Estado, por mais chocante que o fato
possa parecer à opinião pública. Por outro lado, o
reconhecimento de que a polícia está limitada em certas
circunstâncias, por ausência de autonomia, além de ser uma
constatação servirá para permitir que polícia e Ministério
Público atuem em conjunto, visando o melhor proveito da
investigação, que de outro modo estaria condenada a chegar
a lugar algum.
E isso nada tem a ver com uma função pós-moderna do
Ministério Público ou com a natureza diferenciada dos
chamados bens jurídicos penais transindividuais ou
coletivos.
Agora, a investigação criminal na grande maioria dos
casos não se enquadra no modelo excepcional citado acima e
o aspecto subjetivo termina ganhando importância neste
contexto, pois não se trata apenas de demonstrar alguma
coisa, mas de saber quem deve demonstrar e a quem deve ser
demonstrado.
Quando o padrão de legalidade na apuração dos fatos
não é respeitado também em sua perspectiva subjetiva, a
prova dele decorrente é igualmente ilícita.
Provar é atividade de sujeito. Prova-se um fato que tem
determinada qualidade, mas se prova por intermédio da
atividade de sujeitos e as Constituições hoje não podem ficar
limitadas em sua interpretação, quando se cuida da
proibição de provas no processo penal, aos casos de obtenção
de provas por meios ilícitos. Também deverão dirigir a
atenção à questão a respeito de quem foi o sujeito produtor
daquela prova, quais são os limites subjetivos da produção
da prova e o que ocorre quando um sujeito que não poderia
realizar atividade probatória a realiza, fazendo valer o
sistema de ineficácia dos atos jurídicos.
Por último, não custa destacar que os Sistemas
Processuais são configurados historicamente. O que é
atribuído a cada Ministério Público depende muito do papel
que a instituição exerceu ao longo do tempo. O mesmo
ocorre com a tarefa incumbida à autoridade policial.
No Brasil, durante muito tempo a autoridade policial
esteve encarregada de investigar e processar. Essa realidade
do Império, retratada no Código de Processo Criminal de
1832 fica como ―permanência‖ até a promulgação da
Constituição da República de 1988, que afastou de juízes e
delegados de polícia o poder de iniciar processos por crimes
de homicídio e lesão corporal culposa e por contravenções
penais (Lei n. 4.611/65 e artigo 531 do Código de Processo
Penal). Desde então, somente o Ministério Público está
autorizado a promover a ação penal pública.
Acontece que a história da investigação criminal
brasileira é também história de repressão e autoritarismo,
com abusos em investigação e recurso freqüente à tortura. O
distanciamento que a Constituição da República de 1988
impôs ao Ministério Público é coerente com a sua função de
fiscal das atividades de polícia judiciária, criando estrutura
confiável de controle dirigida à redução dos abusos.
Quando o Ministério Público abdica disso retorna ao
passado, fundindo funções, pois a questão não está no nome
da instituição que investiga, mas na função que as
instituições exercem. Quem investiga exerce função de
polícia judiciária. Pode ser o juiz, como no passado
brasileiro; poderá vir a ser o Ministério Público, como alguns
doutrinadores pretendem. Não importa, porque se houver
investigação será necessário criar estruturas de controle
dessa investigação e não fará sentido pensar em um outro
Ministério Público do Ministério Público.
Porque as linhas deste estudo são traçadas pelo
princípio acusatório não convém avançar mais, valendo
notar, porém, que as fronteiras probatórias instituídas pelas
leis e pela Constituição devem valer não somente em relação
ao Ministério Público mas até mesmo quando se tratar de
Comissão Parlamentar de Inquérito.
III. -O ESTATUTO DO JUIZ EM MOVIMENTO: LIVRE
CONVENCIMENTO E OS PODERES DE INVESTIGAÇÃO DO JUIZ
— A MUTATIO LIBELLI
Agora cumpre dedicar ao órgão de resolução do caso
penal algumas considerações, pertinentes ao seu
enquadramento conforme o princípio acusatório e a relação
que se estabelece entre ele, juiz (lato sensu considerado),
acusador e acusado.
Com efeito, excluídas desde logo a iniciativa para o
processo e a tarefa de aquisição das provas na fase
precedente203, resulta que o princípio acusatório repercute
no estatuto judicial, conferindo ao magistrado reserva da
função jurisdicional.
Destaque-se que o juiz não produz provas na
investigação criminal não só porque a preparação da ação
penal, respeitada a máxima acusatoriedade, implica em
afastamento do juiz da fase preparatória,204 mas também
pelo fato de a presunção da inocência comportar, até o
trânsito em julgado da condenação, uma postura de
preservação pelo juiz de um papel de verdadeira
imparcialidade,
A implicância prática da reserva em questão consiste,
segundo pensamento dominante, na garantia da liberdade de
avaliação das provas, convicção fundada sobre a qualificação
jurídica da infração penal e arbitramento motivado da
correspondente sanção.
A. Livre Convencimento e os Poderes de Investigação do Juiz
203
As objeções opostas ao extinto inquérito judicial, na falência (ver item I, em
3.2.2.1) são igualmente válidas quando se trata da investigação de magistrados.
Com efeito, a Lei Complementar 35, de 14 de março de 1979, ainda em vigor até
a edição do Estatuto da Magistratura, em seu artigo 33, parágrafo único, prevê
que a investigação da prática de crime atribuído a magistrado deverá ser
realizada pelo Tribunal ou Órgão Especial competente. Além do óbvio
desrespeito ao princípio da igualdade de tratamento, que exigiria outro livro
para ser explicado e contestado à luz da Constituição da República de 1988, há a
questão prévia de se atribuir à autoridade encarregada do julgamento a
atribuição para apurar o fato.
204 A intervenção do juiz, nesta fase, só se explica, conforme o princípio
acusatório, quando necessária para, conforme a Constituição, preservar ou
comprimir, legitimamente, o exercício de direitos fundamentais, porquanto o
julgador não tem interesse jurídico na propositura da mencionada ação.
Comecemos, portanto, pela análise da tarefa de
avaliação das provas. A primeira e mais importante
observação deriva da necessária distinção entre as ações de
introduzir e avaliar as provas no processo penal
condenatório.
A propósito, salienta Gomes Filho que, em um modelo
processual duelístico, como o adversary, existente na
Inglaterra, por exemplo, a iniciativa da atividade probatória
incumbe preponderantemente aos próprios litigantes, daí
decorrendo o papel de mero moderador e mediador,
desempenhado pelo juiz que preside o julgamento, o qual
raramente intervém, como os jurados.205
Nessa direção, fundamenta-se uma estrutura processual
preocupada em evitar injustificadas e errôneas privações de
direitos e em garantir a participação e o diálogo dos
interessados no processo de decisão.206
Por outro lado, convém assinalar que, no modelo
inquisitório, o princípio é justamente o oposto, refletindo a
proeminência da figura do juiz e a subalternidade das
partes na tarefa de obtenção do material probatório, o
dogma da verdade real, a preocupação com a economia
processual e, sobretudo, uma concepção peculiar de livre
convencimento, visto, consoante precisamente remarca
Gomes Filho, como liberdade absoluta na própria condução
do procedimento probatório, e não na sua real e histórica
dimensão de valoração desvinculada de regras legais, mas
incidente sobre um material constituído por provas
admissíveis e regularmente incorporadas ao processo.207
Ora, se estamos convencidos, o que é certo, da
vinculação entre direito de ação (e, naturalmente, também
de defesa) e direito à prova, é razoável supor que haja mais
do que uma simples relação jurídica, pela qual o segundo
205
Gomes Filho, Antonio Magalhães. O Direito à Prova no Processo
Penal, pp. 59-60.
206 Idem, p. 60.
207 Idem, p. 63.
seja considerado conseqüência do primeiro.
A ordem das coisas colocadas no processo permite,
pragmaticamente, constatarmos que a ação voltada à
introdução do material probatório é precedida da
consideração psicológica pertinente aos rumos que o citado
material possa determinar, se efetivamente incorporado ao
processo.208
Ao tipo de prova que se pesquisa corresponde um
prognóstico, mais ou menos seguro, da real existência do
thema probandum, e, sem dúvida, também das
conseqüências jurídicas que podem advir da positivação da
questão fática.
Quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar e
isso, em termos de processo penal condenatório, representa
uma
inclinação
ou
tendência
perigosamente
comprometedora da imparcialidade do julgador.
Desconfiado da culpa do acusado, investe o juiz na
direção da introdução de meios de prova que sequer foram
considerados pelo órgão de acusação, ao qual, nestas
circunstâncias, acaba por substituir. Mais do que isso, aqui
igualmente se verificará o mesmo tipo de comprometimento
psicológico objeto das reservas quanto ao poder do próprio
juiz iniciar o processo, na medida em que o juiz se
fundamentará, normalmente, nos elementos de prova que
ele mesmo incorporou ao processo, por considerar
importantes para o deslinde da questão. Isso acabará
afastando o juiz da desejável posição de seguro
distanciamento das partes e de seus interesses contrapostos,
posição essa apta a permitir a melhor ponderação e
conclusão.
Entre os poderes do juiz, por isso, segundo o princípio
acusatório, não se deve encontrar aquele pertinente à
investigação judicial, permitindo-se, quando muito, pela
coordenação dos princípios constitucionais da justiça
208 Ver críticas à investigação direta pelo Ministério Público, texto
acrescentado a esta edição.
material209 e presunção da inocência, que moderadamente
intervenha, durante a instrução, para, na implementação de
poderes de assistência ao acusado, pesquisar de maneira
supletiva provas da inocência, conforme a(s) tese(s)
esposada(s) pela defesa.
Neste caso, assimila-se a real natureza do princípio
acusatório como garantia que comporta para a defesa do
imputado conforme assinala Grau.210 O destinatário da
posição jurídica favorável não pode ser prejudicado pela
aplicação, contra si mesmo, daquele benefício instituído pela
Constituição.
Ao mesmo tempo, incrementa-se, por meio desta
excepcional e restrita iniciativa judicial, o princípio da
paridade de armas de modo efetivo, tal seja, garantindo, pela
intervenção mediadora do juiz, tratamento desigual aos
desiguais, sobretudo em face da ausência de identidade entre
as partes, agindo assim em busca do equilíbrio no processo,
razoavelmente justificado à luz de critérios de reciprocidade
e evitação de um dano irreparável.
Teresa Armenta Deu pensa, todavia, diferentemente,
defendendo a tese da possibilidade da introdução de
elementos de prova, pelo juiz, de forma limitada, mesmo na
fase de debates, visando completar o panorama sobre o qual
recairá o juízo211. Giza a referida autora que, nas
circunstâncias, a importação de elementos de prova pelas
mãos do juiz será controlada pelo sucessivo contraditório e
209 O princípio de justiça material, conforme o magistério de Canotilho,
remete à Constituição um fundamento de ―reserva‖ e ―garantia‖ da justiça,
pelo que se assinala a intencionalidade do Direito Constitucional não
esgotar a positividade das normas da Constituição na mera edição formal,
mas sim na correspondente justiça deste direito. Portanto, a função de
―reserva de justiça‖, mencionada pelo mestre português, sugere a
fundamentação dos princípios que se constituem em favor rei, desde o da
presunção da inocência, justificando a compressão de outros princípios,
como, por exemplo, o acusatório, em vista da referida reserva de justiça
(Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional, p. 3).
210 Grau, Joan Verger. La Defensa del Imputado y el Principio Acusatorio, p.
13.
211 Teresa Armenta Deu defende ponto de vista diverso em Principio
Acusatorio y Derecho Penal, pp. 27-28.
pela impossibilidade de interdição da defesa.
Em que pesem o respeito e admiração que merece a
doutrinadora, que profundamente estudou o princípio
acusatório, não é possível concordar com ela porque o
contraditório é medida de duelo, como categoria processual
que reúne a ciência do ato praticado pela parte contrária à
possibilidade de uma atitude em sentido contrário ou
objetivando contrariar o prefalado ato. Difícil será, a nosso
juízo, estabelecer-se um duelo entre o acusado e o juiz, pois
este último detém o poder de decidir a causa, elegendo, como
assinalou Carnelutti, a alternativa de solução que lhe pareça
mais viável.
Há de se acrescentar, por oportuno, que, se o princípio
da paridade de armas não integra o princípio acusatório,
reduzido este à divisão tricotômica de funções, é, todavia,
importante para a implementação da justa solução do caso
penal, a ponto de ser considerado integrante de um sistema
cuja base é a acusatoriedade (novamente aí a distinção entre
sistema e princípio, entre continente e conteúdo).
Por isso, cabe destacar, com Chiavario212, que a parità
fra le armi fornece um critério resoluto fundado não no
sentido de simetria das situações das partes, porém
justamente na dissimetria de posições, observável na prática,
de tal sorte que não é razoável admitir um Ministério Público
despreparado para o exercício dos direitos de ação e prova,
enquanto, lamentavelmente, acontece de se encontrar
defensores inaptos para a melhor forma de representação
dos interesses do imputado.
Para ser assimilada pelo princípio acusatório, a
estrutura de cooperação do processo jurisdicional penal
moderno, de que nos fala Ada Grinover,213 há de ser filtrada
pelo contraditório, que opõe de forma dialética as teses da
acusação e da defesa, levando em consideração a
desigualdade real entre as partes e a necessidade imperativa
de equilíbrio técnico e de posições jurídicas visualizadas
212
Processo e Garanzie Della Persona, pp. 27-28.
213 Grinover, O Processo Constitucional em Marcha, pp. 8-9, 14-15 e 19-21.
reciprocamente.
A estrutura de cooperação busca o resultado prático da
conversão das garantias das partes em garantias da própria
jurisdição.
Daí porque a doutrinadora, consolidando seu
pensamento, assevera que existe um perfil objetivo de defesa
a condicionar a validade do processo penal e legitimar a
própria jurisdição, cumprindo ao juiz zelar para que a
desigualdade real não desemboque em desigualdade
processual comprometedora da verdade que deve alicerçar a
sentença penal.
No fundamento desta desigualdade, cuja constatação
nos dias de hoje dispensa comentários, é possível identificar
na estrutura de cooperação citada certa semelhança com o
processo trabalhista, no qual a inferioridade econômica do
trabalhador, numa estrutura capitalista, cria novos hábitos
assistenciais ao juiz.214
De toda sorte, a intervenção judicial na atividade
probatória a favor do acusado há de ser moderada, como
antes frisamos, enquanto estará interditada em relação à
acusação, que nos dias de hoje dispõe de aparato
suficientemente bem constituído para pelejar em juízo.
A supressão ou redução dos poderes de investigação
judicial esbarra, contudo, na cultura desenvolvida
secularmente com base nos ordenamentos jurídicos de
inspiração européia continental, acostumados, pela
experiência haurida na ordem jurídica romano-canônica, à
busca da verdade real, de sorte que a máxima
acusatoriedade postulada pelo princípio em questão, na
equação juiz penal versus prova, quase sempre é bastante
limitada.
E é com inspiração nestes modelos que configuram um
processo acusatório mitigado ou temperado pelo princípio da
investigação judicial, segundo Manuel da Costa Andrade, que
vem tomando corpo no Direito Brasileiro a tese da distinção
entre o sistema acusatório de estrutura adversarial e outro,
214 Idem, p. 19.
acusatório contemporâneo, que atribui poderes probatórios
ao juiz.
Gustavo Badaró, por exemplo, assinala que:
―...embora seja característica histórica do processo
acusatório a inércia probatória do juiz, que tinha apenas
uma função passiva em relação à atividade instrutória,
tal aspecto não lhe é fundamental. A evolução de tal
modelo, principalmente em decorrência da publicização
do processso, fez surgir um processo em que há clara
separação de funções entre acusação, defesa e julgador,
a despeito de o juiz poder ser dotado de poderes
instrutórios‖.215
Badaró remete para posição secundária a inércia do
juiz, salientando que há características secundárias que
possibilitam a existência de um processo acusatório à
semelhança do júri inglês, em que o juiz não tem poderes
instrutórios, e um pretenso processo acusatório do tipo
brasileiro ou português no qual o juiz pode determinar a
produção de provas de ofício.
Marcos Alexandre Coelho Zilli é partidário da posição
assumida por Badaró, em sua análise sobre o sistema
adversarial216.
Não é necessário lembrar que o artigo 156 do Código de
Processo Penal brasileiro, em sua parte final, que contempla
o juiz com poderes probatórios, na linha do artigo 209 do
mesmo código, é fruto do processo penal do Estado Novo,
período autoritário em que a supressão das liberdades
contava com apoio do Sistema de Justiça Penal, para fazer
valer os interesses da ditadura Vargas.217
215
BADARÓ, Gustavo. Ônus da prova, op. cit., p. 137.
ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no
processo penal, São Paulo, RT, 2003, p. 44-45.
217
Artigo 156 do Código de Processo Penal: ―A prova da alegação incumbirá a
quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir
sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto
relevante‖ e artigo 209: ―O juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras
testemunhas, além das indicadas pelas partes‖.
216
Supor generosidade, espírito científico ou público em
regimes ditatoriais significa desconhecer a lógica que domina
o manejo, a manipulação do Sistema de Justiça Penal em tais
circunstâncias.
No caso brasileiro, a regra de produção de provas pelo
juiz, de ofício, tão-só consolida aquilo que desde as
Ordenações, passando pelo Código de Processo Criminal do
Império, de 29 de novembro de 1832 e pelas Reformas
Prcessuais de 3 de dezembro de 1841 e 20 de setembro de
1871, tornara-se regra em um ambiente em que a
Intendência, espécie de Secretaria de Segurança Pública, fora
desde o início entregue a um Desembargadior, juiz de corte
superior.
Hoje, a volta a esse estado de coisas não pode ser
compreendida como evolução. A artificial designação de
sistema adversarial, para definir o acusatório em que a
inércia probatória do juiz é regra, para distingui-lo de outro
sistema acusatório em que o juiz tem poderes instrutórios, só
atende ao propósito de tentar prolongar a vida do Código de
Processo Penal de 1941, da era autoritária, naquilo que nele é
central, tal seja, a filosofia de que se trata de instrumento da
política de segurança pública do Estado e não de previsão
das regras do devido processo legal, conforme a Constituição
da República de 1988.
O alegado caráter público do caso penal, para justificar
a ação probatória do juiz, conforme Badaró, merece reflexão
histórica e técnica. Em termos de Justiça Penal a palavra
―público‖ será tomada no sentido de algo derivado do
exercício do poder político. Não havia nada mais ―público‖,
no sentido de expressão de poder político, que o processo
penal da Inquisição.218 Tampouco havia algo mais sigiloso
que este mesmo processo.
O público na citada acepção deve ser compreendido
como em oposição ao privado. Para o processo da Inquisição
os interesses privados eram secundários. Importava a
218
MAIER, Julio. Derecho Procesal Penal. I. Fundamentos., Buenos Aires,
Editores del Puerto, 2002, p.151.
repressão aos hereges e a manutenção da ordem. E essa
repressão era feita em sigilo. Talvez seja possível encontrar
neste sigilo a simetria com as motivações do juiz na
determinação da prova de ofício, uma vez que a declaração
dos reais motivos da produção da prova pode implicar préjulgamento.
A simetria entre processo inquisitório e regimes
autoritários não é gratuita e não se fixa exclusivamente nos
regimes políticos, inscrevendo-se na cultura dos povos. Não
por acaso o Brasil resiste como um dos poucos Estados da
América do Sul a ter ultrapassado a fase de transição
democrática sem ter editado um novo Código de Processo
Penal em seguida à sua Constituição.
Por essa razão é importante insistir no ponto delicado
da dogmática do processo. O estudo das formas de
conhecimento dos fatos não é próprio à disciplina do Direito.
O Direito se apropria ―politicamente‖ do discurso sobre a
―verdade real‖, mas o próprio Direito não está dotado de
instrumentos científicos para investigar a possibilidade de
ser estabelecida uma verdade real.
Johannes Hessen recordará que é a epistemologia que
se dedica a investigar as possibilidades de conhecimento219 e
Juan Antonio Nicolás e Maria José Frápolli resenharão as
sete principais correntes de pensamento sobre a Verdade no
Século XX, com seus desdobramentos, a enterrar
definitivamente o conceito de verdade real e a retirar o
sujeito do conhecimento da posição de aparente neutralidade
que a filosofia positivista do século XIX entronizara.220
O juiz é o destinário da prova e, sem dúvida alguma,
sujeito do conhecimento. Quando, porém, se dedica a
produzir provas de ofício se coloca como ativo sujeito do
conhecimento a empreender tarefa que não é neutra, pois
sempre deduzirá a hipótese que pela prova pretenderá ver
219
HESSEN, Johannes. Teoria do Conhecimento, São Paulo, Martins Fontes,
2000.
220
NICOLÁS, Juan Antonio e FRÁPOLLI, María José. Teorías de la verdad en
el siglo XX, Madrid, Tecnos, 1997.
confirmada. Como as hipóteses do processo penal são duas:
há crime e o réu é responsável ou isso não é verdade, a prova
produzida de ofício visará confirmar uma das duas hipóteses
e colocará o juiz, antecipadamente, ligado à hipótese que
pretende comprovar.
Assim, por exemplo, se uma testemunha X afirma sem
muita convicção que viu o réu subtrair o carro da vítima e
que estava ao lado de outra testemunha Z, não arrolada, a
decisão do juiz, de ofício, de ouvir a mencionada testemunha
Z só pode ser determinada pela convicção honesta de que a
testemunha Z confirmará o fato. É evidente que se a
testemunha Z negar o fato, o juiz tenderá a levar isso em
consideração. Caso, porém, a testemunha confirme as
declarações da outra, dificilmente o réu poderá acreditar que
o juiz dará crédito a testemunhas que vier a arrolar para
desmentirem as duas primeiras. Com isso estará quebrado o
frágil equilíbrio em que se sustenta a imparcialidade do juiz
no processo penal.
No exemplo anterior o juiz não pesquisou fontes de
prova, ressalva feita por Badaró para tentar fixar algum
limite à atividade probatório de ofício do juiz.221
De todo modo, aceita a tese da inércia judicial,
prosseguimos no plano específico da avaliação do material
probatório recolhido pelas partes, para averbarmos que a
plena liberdade de avaliação cede hoje, fora do Sistema
Acusatório, perante duas distintas situações: o valor de
compromisso da confissão do acusado, como assunção de
um princípio de autonomia da vontade, nos casos de justiça
penal consensual para os quais a resposta penal implique em
uma solução mais favorável ao réu; e a admissão de um
conjunto mínimo de provas legais negativas.
221
De acordo com Gustavo Badaró (Ônus da prova..., p. 119) a busca da prova
pelo juiz não fere a imparcialidade desde que tais poderes de instrução sejam
exercitados dentro de determinados limites. Para Badaró o juiz não está
autorizado a buscar ―fontes de prova‖, atividade propriamente investigativa,
mas poderá agir diante da notícia de uma prova, ―como a informação de que
certa pessoa presenciou os fatos‖.
A.1. -Do Livre Convencimento e a Confissão do Acusado —
Soluções Consensuais
Com efeito, uma nova concepção de retribuição,
arrimada no propósito de provocar recíprocas influências
entre acusado, vítima e sociedade, aproximando-os, resgata
o valor da confissão para o processo penal, dessa vez,
diferentemente do passado inquisitório, voltada a uma
solução de compromisso que restaure a paz social.
A idéia é evitar o processo de marginalização induzido
pela pena de prisão, sacrificando, em uma mínima porção e
nos limites que o próprio acusado e seu defensor
entenderem razoáveis, o patrimônio jurídico do primeiro.
Para tanto, renove-se a advertência, há de se conceber o
acusado como ser dotado de autodeterminação e
responsabilidade, que não podem ser legítima e
paternalmente tuteladas, reivindicando-se, nessa postura,
uma reação do juiz limitada pelo definido espaço de
consenso e não subordinada à busca da descoberta da
verdade real a qualquer preço.222
Neste ponto, modificamos parcialmente o entendimento
esposado até esta edição (3ª). Sustentamos no passado que
não havia dúvida de que a implementação do princípio
acusatório, na hipótese, consideraria não somente o conjunto
de poderes, direitos e deveres dos sujeitos processuais,
perspectivados estaticamente, mas ainda nas suas relações
sucessivamente desenvolvidas.
Com base nisso, ao se analisar a posição do acusado e
seu defensor em um regime inspirado no princípio
acusatório, novamente em que pese à força dos argumentos
de Teresa Armenta Deu,223 teríamos de reconhecer que o
exercício concreto do direito de defesa pode ser renunciado,
sublinhe-se, excepcionalmente, desde que admissível à luz
da Constituição e conforme os interesses peculiares do
222 Dias, Jorge de Figueiredo. Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código
de Processo Penal, p. 29.
223 Deu, Teresa Armenta. Principio Acusatorio y Derecho Penal, pp. 26-28.
acusado, interditada a resposta penal tradicional, tal seja, a
prisão ou outra qualquer, de significativa gravidade.224
Na realidade, o princípio acusatório oferece pouca
contribuição na análise das soluções consensuais,
especialmente fundadas na renúncia ao direito de defesa.
Com efeito, toda construção acusatória foi concebida
para edificar o direito de defesa. A partir da experiência das
práticas judiciais não-penais, que há séculos reconheciam a
importância do direito de defesa, os autores iluministas e os
primeiros penalistas do século XIX, Carrara à frente,
sustentaram a importância de levar a Defesa ao processo
penal.
A principal diferença prática entre os processos
acusatório e inquisitório, além da distinção entre juiz e
acusador, consiste na previsão de defesa.
Portanto, quando o processo abre mão das atividades
defensivas clássicas – de resistência à pretensão de
condenação -, caminha-se para trás, ressuscitando o modelo
inquisitório.
É certo que os modelos de solução consensual da
atualidade – como a transação penal e a suspensão
condicional do processo – não podem ser comparados às
práticas brutais da inquisição.
A configuração constitucional de várias garantias, como
as que proíbem o juiz de considerar as provas obtidas por
meios ilícitos, vedam a tortura e estabelecem a
224 Sobre a renúncia ao exercício de direitos fundamentais em consideração à
relação jurídica estabelecida entre o sujeito titular do direito e o Estado,
devedor, convém examinar Novais, Jorge Reis, in Renúncia a Direitos
Fundamentais: Perspectivas Constitucionais, vol. I, org. Jorge Miranda,
Coimbra, 1996. Salienta textualmente o autor, forte nas lições de Dworkin,
que, se a titularidade de um direito fundamental é uma posição jurídica
de vantagem do indivíduo face ao Estado, é um ―trunfo‖ nas mãos do
indivíduo... então da própria dignidade da pessoa humana e do princípio
da autonomia e de autodeterminação individual... decorre o poder de o
titular dispor dessa posição de vantagem, inclusivamente no sentido de a
enfraquecer, quando desse enfraquecimento, e no quadro da livre
conformação da sua vida, espera retirar benefícios que de outra forma
não obteria (p. 287).
inviolabilidade do domicílio, das comunicações telefônicas e
de dados tutelam a dignidade da pessoa humana e acabam
funcionando como barreira ao retorno automático e
irreversível ao princípio inquisitório.
Os modelos consensuais da atualidade, portanto, estão
em um meio caminho. Inspirados, por um lado, na ideologia
da inquisitorialidade, organizam o procedimento de sorte a
torná-lo mais célere, para tanto requisitando o
consentimento do próprio suspeito ou acusado. Limitados,
por outro lado, pelas garantias constitucionais acima
referidas, só servem ao direito processual penal do Brasil
para evitar a aplicação de pena de prisão e, assim, reduzem o
nível de violência que normalmente marca o funcionamento
dos Sistemas Penais da periferia.
Embora fora da matriz acusatória o consentimento do
acusado em sofrer pena sem se defender pode, porém,
beneficiar-se do Sistema Acusatório. Com efeito, como a
defesa é da essência do citado sistema, as possibilidades de
se abrir mão dela devem proporcionar a preservação da
liberdade do imputado, no grau máximo de desvantagem a
que estará sujeito o réu. Caso o acusado esteja sujeito a
sofrer pena privativa de liberdade, risco que corre no
processo tradicional, o procedimento automaticamente se
transforma, convertendo-se naquele que garante ao réu o
direito ao devido processo legal.
A condição de validade indispensável à produção de
efeitos da dispensa de defesa está vinculada ao direito de o
acusado ser cabalmente informado da acusação e das
alternativas que lhe são postas, conhecimento inerente ao
princípio do contraditório que, por sua vez, integrando
aquele conjunto de direitos invocado por Figueiredo Dias,
serve à conformação da convicção judicial e, portanto,
também é condição de eficácia do princípio acusatório.225
Vale frisar que o comportamento processual do
225 No sentido do direito à informação integrar o princípio contraditório e este,
por seu turno, o princípio acusatório, ver, por todos, Joan Vergé Grau, La
Defensa del Imputado, pp. 119-120, ao contrário de Teresa Armenta Deu.
acusado, caracterizado por aceitar passivamente a inflição de
pena sem defesa, é equiparado à confissão porque na
perspectiva psicológica é assim que as pessoas sentem e
reagem ao fenômeno.
O fato de as leis, como a brasileira, proibirem a
consideração da transação penal como causa de reincidência
e não extraírem conseqüências civis, vedando a produção de
efeitos civis em favor do lesado, não muda a realidade. O réu
é tratado como culpado, não incidindo aqui a presunção de
inocência. Outros efeitos, civis e penais, que não se
produzem são opções de política criminal para estimular a
aceitação da proposta de pena sem defesa.
Ao juiz nestas hipóteses fica muito pouco a fazer. A sua
atuação é residual. Deve comprovar a existência das
condições para a formulação e aceitação das propostas de
consenso e diante destas condições deverá homologar as
soluções. Neste aspecto o convencimento do juiz fica restrito
aos limites construídos consensualmente pelas partes.
A.2. Das Provas Legais Negativas
O segundo limite a considerar, relativamente ao
estatuto jurídico do juiz, no processo penal condenatório,
tem a ver com o reconhecimento de que as decisões judiciais
não são emanações de um poder divino e que a divindade
que podem em si mesmas carregar é aquela própria ao que
de sublimemente divino é inerente a todo ser humano.
Assim, temos de aceitar o erro como algo típico da
natureza humana e admitir que o juiz, por mais ponderado,
sensível e preparado que seja, não está imune a errar.
Ocorre, todavia, que o erro em desfavor do acusado, no
processo penal, quando é descoberto converte-se em um
drama público que afeta a quase todas as pessoas e, quando
permanece encoberto, corresponde à mais terrível das
injustiças, porquanto o acusado não tem sequer meios de
compartilhá-la.
Deste modo, a instituição de provas legais negativas tem
inequívoco valor garantístico, assim compreendidas estas
provas como postulações da limitação ao livre
convencimento do juiz, para condenar.226 Isso acontece
sempre que as provas legais negativas resultarem de uma
medida de cautela do legislador, adotada ponderada e
restritamente, em observância às regras retiradas da
experiência ordinária.
A exigência do exame de corpo de delito, estatuída no
artigo 158 do Código de Processo Penal, para
reconhecimento do fato típico que deixa vestígios, serve de
exemplo de prova legal negativa. Sem o exame de corpo de
delito, em regra, o juiz não poderá reconhecer o fato típico e
sequer poderá afirmar o vínculo de causalidade.227
O princípio acusatório é um princípio de garantia e,
pois, não pode ser incompatível com uma regra também de
garantia, extraída da incontestável comprovação da
falibilidade humana.
Na projeção da divisão de poderes do Estado, no
processo penal, típica do princípio democrático,
conformador do acusatório, enquanto ao juiz cabe julgar, isto
é, apresentar imperativamente a solução do caso penal, e ao
executivo deduzir a pretensão condenatória ou encarregar-se
da investigação criminal, ao legislador incumbe prover as
regras de garantia que viabilizem o justo processo.
Neste equilíbrio que tantos vezes é precário, a previsão
legal de determinado tipo de prova para a proclamação do
veredicto condenatório é perfeitamente assimilável, assim
como é aceitável a proibição, em tese, da aquisição e
ingresso, no processo, de determinados meios de prova, em
alusão a princípios éticos.
B. Da Alteração dos Fatos
226 Gomes Filho, Antonio Magalhães. O Direito à Prova no Processo Penal,
pp. 32-33.
227
O artigo 167 do Código de Processo Penal prevê, excepcionalmente, a
possibilidade de suprir a ausência do exame por prova testemunhal, em virtude
de haver desaparecido os vestígios. De toda maneira, em nenhuma hipótese será
aceita a confissão do acusado para suprir a ausência do citado exame.
Para finalizarmos a abordagem relativa ao estatuto do
juiz, de conformidade com o princípio acusatório, é
necessário ainda enfrentarmos dois pontos nevrálgicos: a
convicção fundada sobre a qualificação jurídica da infração
penal; e, conseqüentemente, o arbitramento motivado da
correspondente sanção.
Trata-se, dito de outra maneira, do princípio da
congruência ou da correlação entre acusação e
sentença.228Pode o juiz, validamente, condenar o réu por fato
distinto daquele que é imputado na denúncia ou queixa?
É básico o princípio jura novit curia, em vista do qual o
juiz certamente pode resolver a questão de mérito de acordo
com a qualificação jurídica que estime mais ajustada aos
fatos provados.
Porém, em se tratando de processo penal condenatório,
cabem alguns cuidados, em vista do fim de evitação de
prejuízo ao exercício da defesa e, principalmente, com o
objetivo de preservar a dinâmica dialética, pela qual às
partes incumbe a apresentação de tese e antítese e ao juiz,
como coroamento do processo, a produção da síntese ou a
escolha da tese que reputa mais acertada.
Enrique Ruiz Vadillo assinala o seguinte:229
Es imprescindible que entre el objeto de la
acusación y el qui sirve de soporte a la condena
haya homogeneidad. La razón de la exigencia es la
misma: la proscripción de toda indefensión. Son
todas ellas manifestaciones del mismo principio. Si
228 Sobre o tema, além dos textos adiante referidos, cumpre examinar duas
obras de inequívoco valor: Contributo alla Teoria della Sentenza Istrutoria
Penale, de Pietro Nuvolone, Padova: Cedam, 1969; e ―La Correlazione fra
Accusa e Sentenza nel Processo Penale‖, de Giuseppe Bettiol, in Scritti
Giuridici, tomo I, Padova: Cedam, 1966. No direito brasileiro há também
os extraordinários trabalhos: A Sentença incongruente no processo penal,
de Diogo Malan (Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2003) e Correlação entre
acusação e sentença, de Gustavo Badaró (São Paulo, RT, 2000).
229 Vadillo, Enrique Ruiz. El Principio Acusatorio y su Proyeccion en la
Doctrina Jurisprudencial del Tribunal Constitucional y Tribunal
Supremo, p. 27.
alguien es acusado de hurto y de este delito se
defiende, si se encuentra, después, com una
condena por coacciones, aunque la pena sea
inferior y hasta le pueda producir satisfacción
espiritual el cambio del título de imputación, por
tener este último una menor carga de reproche
social, no cabe duda de que há quedado indefenso
porque frente a esse delito de coacciones no se há
podido defender de una manera eficaz.
Como mencionamos, ao aludirmos ao estatuto jurídico
do autor, uma das suas facetas mais importantes está em
determinar o objeto do processo, em relação ao qual serão
deduzidas as provas e haverá de se circunscrever a sentença.
Trata-se de exercício da função de acusar, pois fundada
em um juízo provisório da existência de determinada
infração penal (a existência de justa causa), coloca-se ao réu
a infração que se lhe imputa, no plano duelístico peculiar à
relação processual.
É exatamente isso, ou, com outras palavras, cuida-se
aqui do fenômeno da imputação, ao qual em um processo
penal democrático há de corresponder a atividade de defesa,
por força das garantias das convenções internacionais.
Assim, quando por exemplo o Ministério Público atribui ao
réu a prática de determinado furto, imputando-lhe esse
furto, permite que o réu se defenda dessa imputação. O
acusado pode confiar na eficiência da defesa, pois sabe que é
o acusador que lhe imputa o delito e não o juiz.
Também Grau, na linha de pensamento aduzida por
Vadillo, concorda que, com independência de suas mais ou
menos amplas faculdades de modificar a qualificação
jurídica do fato, não pode o Tribunal alterar o objeto do
processo, nem, e isto é sumamente importante, condenar por
fatos de que o acusado não tenha podido defender-se.230
Caso seja admitida a alteração substancial dos fatos, por
iniciativa do tribunal, ainda quando seja dada oportunidade
230 Grau, Joan Vergé. La Defensa del Imputado, p. 43.
ao contraditório, do ponto de vista psicológico sem dúvida
estará sensivelmente diminuída a possibilidade de o acusado
se defender de verdade. A partir do exemplo anterior,
podemos imaginar como deve se sentir o acusado ao saber
que é o juiz que lhe imputa o crime de furto.
A alteração da acusação equivale à alteração do pedido e
da causa de pedir da ação penal, caso se queira trabalhar
com categorias herdadas do processo civil, e a
implementação da alteração da acusação representa
modificação de elementos capitais da ação, direito do autor.
Ao fazê-lo, isto é, ao se permitir que o juiz altere o teor da
acusação, na verdade o que ocorre é que se admite que o juiz
revolva a substância do direito da parte, que não lhe
pertence. Voltando ao exemplo anterior, podemos imaginar a
posição do acusado diante do quadro criado por uma
acusação do Ministério Público por receptação,
transformada em acusação de furto pelo juiz.
Um contraditório porventura instaurado nestes termos
é irreal, pois não há reação possível se o ato de conformação
da acusação não parte do adversário mas do julgador, ou, de
outra maneira, se o julgador se transforma em adversário. De
que adiantará ao réu receber os autos do processo por oito
dias para falar e, se quiser, poduzir provas (artigo 384,
caput, do Código de Processo Penal brasileiro) se está
evidente que será condenado por furto?
Assinale-se com isso que não se trata de retornar ao
tempo da teoria da individualização da causa de pedir,
superada nesta quadra do desenvolvimento do processo
penal pela teoria da substanciação.231 Em termos gerais,
contudo, podemos aduzir que se a identificação da causa de
pedir, base da pretensão, está determinada pelo suposto de
fato, tal seja, pelo elemento fático invocado, a realidade é que
tal elemento só tem relevância no processo penal na medida
em que está abrigado em uma moldura normativa definida
(tipo penal de crime) e vem descrito, com seus elementos e
circunstâncias, no ato formal de acusação, como exige o
231 Mellado, ob. cit., p. 39.
artigo 41 do Código de Processo Penal brasileiro. Conforme o
caso, matar alguém é crime ou não e poderá caracterizar
ação dolosa ou culposa. Não são irrelevantes as distinções
(homicídio doloso, culposo, latrocínio, indiferente penal por
culpa exclusiva da vítima etc.).
Ao juiz caberá, de acordo com o princípio tantas vezes
aludido — jura novit curia —, a dicção do direito aplicável à
espécie. Assim, ao reconhecer que o fato provado é diverso
daquele imputado ao réu pelo acusador, o juiz não poderá
proferir decisão condenatória. Não é possível tomar o lugar
do juiz nesta tarefa de reconhecer o direito que regula a
situação concreta.
O juiz não poderá, entretanto, levar em consideração
suposto de fato, ainda que verdadeiro, diferente daquele
posto em causa pela acusação, nem tampouco deverá propor
qualificação jurídica distinta daquela apresentada pelo autor
da ação penal se isso significar surpresa para a defesa em
razão das peculiaridades do processo penal, como é o caso do
concurso aparente de normas (de tipos penais coexistentes),
para cuja solução nem sempre doutrina e jurisprudência
estão pacificadas.232
Podemos acentuar que o princípio da substanciação no
processo penal é mitigado, em face do princípio da ampla
defesa.
Apenas critérios de obrigatoriedade da ação penal, de
economia processual e da necessidade de reafirmação do
poder do Estado frente à criminalidade, os dois últimos
tipicamente decorrentes do princípio inquisitório, que
232
Pela atual redação o artigo 383 do Código de Processo Penal brasileiro
permite que o juiz atribua nova qualificação jurídica ao fato imputado ao réu,
para corrigir erro de qualificação, ainda que em razão disso venha a aplicar pena
mais grave. É a denominada emendatio libelli, descrita nestes termos: Art. 383.
O juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da que constar da queixa ou
da denúncia, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave.
Com essa redação e a pretexto de corrigir erro de qualificação da denúncia, o
juiz poderá, por exemplo, reconhecer o concurso material entre o crime de falso
e o de estelionato, quando o Ministério Público imputou somente o de
estelionato em virtude de entender que este crime absorveu o falso (crime fim
absorvendo o crime meio). E tudo isso sem a audiência prévia do réu.
repudiamos, conferirão suporte a atitudes do tipo que
autoriza o juiz, de ofício, a proceder à modificação da causa
de pedir.
Em percuciente análise acerca da correlação entre
acusação e sentença, no direito brasileiro, Diogo Malan
talvez seja hoje o único autor a chamar atenção para a
permanência inquisitorial embutida no Código de Processo
Penal de 1941, nesta área específica e para a política de
segurança pública que ela expressa.
Assinala Malan:
―O golpe de Estado de 1937 foi justificado pela
necessidade de se reforçar a autoridade governamental,
garantindo-se a ordem pública, a legalidade e as
instituições sociais – em meio a uma conjuntura de
crise de autoridade, causada pelas tensões sociais: a
autoridade nacional pressupõe uma ordem una e
orgânica, e o princípio da autoridade é reforçado como
um pilar em torno do qual se constrói a
nacionalidade‖.233
Acrescenta Malan:
―As ferramentas que serviram a essa restauração
da autoridade estatal foram o estado de guerra, o
Tribunal de Segurança Nacional, a reforma da Lei de
Segurança Nacional e o próprio Digesto Processual
Penal: o terreno da lei surge, assim, como um espaço
privilegiado para a racionalização da autoridade e
para a ocultação do discurso da violência, uma vez que
este utiliza a linguagem da ordem e da lei‖.234
Ora, quando ocorre de o processo penal assumir as
prerrogativas de Estatuto de Segurança Pública, no lugar de
Código de implementação de garantias constitucionais, o
processo se afasta, naturalmente, do leito seguro e
democrático de um processo de partes, conforme o princípio
233
234
MALAN, Diogo Rudge. A Sentença..., op. cit., p. 4.
Idem.
acusatório, pelo qual responsavelmente o autor avalia e
ajuíza a sua pretensão, consoante a compreensão que detém
da qualificação jurídica dos fatos provados.
Supor que o Ministério Público não saiba qualificar
juridicamente os fatos apurados no inquérito policial é estar
em rota de colisão com a realidade. Eventuais erros materiais
podem ser corrigidos pelo juiz, ouvido o acusador e o réu.
Pontos de vista diferentes sobre a qualificação jurídica,
porém, não podem ser impostos ao acusador, sob pena de o
juiz tomar o lugar dele.
É razoável que se possibilite ao acusador modificar, em
face das provas surgidas durante a audiência, a qualificação
jurídica do fato, quer reconhecendo outro mais grave, quer
reconhecendo outro de igual ou menor gravidade que o
original. Porém, admitir que o juiz o faça afronta o princípio
acusatório, o que não é aceitável, mas se admite, quando
muito, em uma medida de preservação das garantias do
acusado, modificando-se a qualificação jurídica do fato para
outra, que corresponda à infração de igual ou menor
gravidade.
São, contudo, condições sine qua non de validade da
alteração que o fato novo esteja descrito na acusação inicial
(ou no chamado aditamento), portanto deve estar contido
nela com todas as suas circunstâncias, e à defesa deve ser
oferecida oportunidade de debater e, eventualmente, se
entender o defensor necessário, produzir provas, para que
somente então seja proferido decreto condenatório. A
desclassificação de roubo para furto, por exemplo, será
possível porque o fato furto está contido no roubo. Não será
possível, porém, reconhecer uma qualificadora do furto não
descrita de forma expressa na denúncia por roubo.
O ideal, conforme o princípio acusatório, é que apenas
ao autor seja permitido alterar a qualificação jurídica do
fato, em qualquer hipótese. Se o acusador persistir na
posição original, com a qual o juiz não concorda, cabe a este
absolver o acusado, o que não impediria o processo pelo fato
realmente verificado, já que este não foi objeto de
deliberação, com força de coisa julgada.
Aqui, entretanto, mudamos nossa opinião em relação às
duas edições antecedentes do Sistema Acusatório. No início
defendíamos que não afetava a hipótese o princípio da
proibição de bis in idem235 porque o fato julgado,
independentemente da qualificação jurídica que as partes lhe
atribuam, é diferente do fato real, revelado ao longo do
processo.
Não é bem assim, A regra é que ninguém será
processado duas vezes pelo mesmo fato. A exceção em
termos de garantia em prol do acusado só pode favorecer o
acusado. Assim, independentemente de o fato real ser
reconduzido de alguma forma ao tipo de crime expressado
na causa de pedir da ação penal deduzida no processo
concluído, numa relação qualquer de continente a conteúdo
(como no exemplo de furto e roubo, em que o furto está
contido no roubo), o segundo processo está proibido.
A oportunidade de a acusação demonstrar o fato sobre o
qual funda a sua pretensão é única. De acordo com a
Convenção Americana de Direitos Humanos (Decreto n.
678/92) ou o acusador demostra a correção da sua pretensão
ou não poderá mais processar o réu.
Assim ocorre, segundo defendemos, como conseqüência
das implicações políticas e jurídicas do princípio do favor
rei, atuando como obstáculo aos abusos que inevitavelmente
poderiam advir da divergência de juízos entre o acusador e o
julgador.
Em conclusão, diga-se também que mesmo o simples
ajustamento da qualificação jurídica da infração penal, em
obediência ao princípio jura novit curia, ainda quando a
petição inicial acusatória descreva minuciosamente o fato,
haverá de ser promovido antes da emissão da sentença,
assim como as partes têm de ser provocadas para se
manifestarem sobre circunstâncias que agravam ou
diminuem a pena, tornando a matéria alvo do debate
contraditório, que é o núcleo fundamental da máxima
235 Ver artigo 8º, nº 4, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos Decreto nº 678/92.
acusatoriedade.236
Na Espanha, decidiu o Tribunal Constitucional, sobre o
assunto, da seguinte forma:
Correspondiendo, ante todo, al Tribunal la
calificación jurídica de tales hechos en virtud del
principio iura novit curia, sin que pese a ello esa
calificación sea aleja al debate contradictorio, el
cual recae no sólo sobre los hechos, sino también
sobre su calificación jurídica. (STC. 105/1993, de
23 de novembro de 1993)237
Em Portugal, onde há constitucional previsão da adoção
do sistema acusatório, a disciplina da alteração substancial
dos fatos está condicionada à seguinte máxima: Para além
da introdução do facto em juízo, à acusação tem por função
a delimitação do âmbito e conteúdo do próprio objecto do
processo, é ela que delimita o conjunto dos factos que se
entenderem consubstanciarem um crime.238 Assim, há para
236
O artigo 385 do Código de Processo Penal brasileiro dispensa a audiência
prévia da defesa e da acusação nos casos em que o juiz reconhece agravantes
não alegadas pelo autor da ação penal. Isso também viola o princípio acusatório.
237 Grau, Joan Vergé. La Defensa del Imputado, p. 121. Enrique Ruiz Vadillo
também, por sua vez, traz à luz decisão do Tribunal Superior Espanhol,
proferida em 28 de setembro de 1989, cujos termos são, literalmente, os
seguintes: No se puede penar un delito más grave que el que haya sido
objeto de acusación; No se puedem castigar infracciones que no hayan
sido objeto de acusación; No se puede considerar un delito distinto del que
fue objeto de acusación, aunque las penas sean iguales o incluso cuando la
correspondiente al delito innovado sea inferior a la del delito objeto de
acusación a menos que reine entre ellos una patente y acusada
homogeneidad; No puedem apreciarse circunstancias agravantes o
subtipos penales que no hayam sido invocados por la acusación... (El
Principio Acusatorio y su Proyeccion en la Doctrina Jurisprudencial del
Tribunal Constitucional y Tribunal Supremo, pp. 33-34). Acrescenta este
último que o processo penal é um tríptico, sendo imprescindível que exista
um acusador, um acusado e um juiz, o qual não pode ocupar outra posição
que não seja a de julgar, porque, de outro modo, estará sendo, ao mesmo
tempo, acusador e juiz.
238 Isasca, Frederico. Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no
Processo Penal Português, Coimbra: Almedina, 1992, p. 54.
o juiz limitação temática, traçando-se as fronteiras da
pesquisa das provas. A ampliação da acusação, como
registramos, demanda a iniciativa do acusador e, a partir de
determinada etapa do processo, consentimento do próprio
réu em se ver processado conforme a alteração, dando
origem ao chamado caso julgado de consenso.239
O foco no poder de definição do crime imputado ao réu
e o tratamento dispensado à matéria pelo Código de Processo
Penal brasileiro de 1941, inspirado no Código Rocco,
demonstram que a manipulação das funções processuais
para atribuir ao juiz atividade de parte autora, com
independência da gestão da prova, encarna a política
criminal da inquisitorialidade.
A gestão das provas nas mãos do juiz também
caracteriza a inquisitorialidade. E é assim porque deduzir
provas e deduzir a acusação são comportamentos
processuais das partes que se movem no processo motivadas
por interesses distintos do interesse do juiz. Este é ditado
pela imparcialidade e a presunção de inocência atua como
princípio constitucional de controle dessa imparcialidade.
Modificar o teor da acusação e produzir provas de ofício são
atividades que, em suma, atentam contra a presunção de
inocência.240
239 Isasca, Frederico. Ob. cit., p. 59.
240
Comissão instituída no âmbito do Miistério da Justiça, mediante Aviso n.
1.151, de 29 de outubro de 1999, presidida por Ada Pellegrini Grinover,
apresentou diversos anteprojetos de reforma do Código de Processo Penal
brasileiro. Entre eles está o que se transformou no Projeto de Lei n. 4.207/01,
que cuida da emendatio libelli e da mutatio libelli, respectivamente previstas
nos artigos 383 e 384 do Código de Processo Penal. Para adequar os citados
dispositivos legais ao princípio acusatório estes passaram a ter a seguinte
redação: Art. 383. O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia
ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em
conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave. § 1º. As partes, todavia,
deverão ser intimadas da nova definição jurídica do fato antes de prolatada a
sentença. §2º. A providência prevista no caput deste artigo poderá ser adotada
pelo juiz no recebimento da denúncia ou queixa. §3º. Se, em conseqüência de
definição jurídica diversa, houver possibilidade de proposta de suspensão
condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o disposto na lei. §4º.
Tratando-se de infração da competência do Juizado Especial Criminal, a este
De tudo quanto foi exposto, acredita-se tenhamos
abordado os elementos que emolduram o princípio
acusatório, quer avaliado na estática observação das funções
primordiais no processo, quer em vista da dinâmica
determinada pelas relações sucessivas e ordenadas entre os
principais sujeitos: autor, réu e juiz.
Cabe, do que foi referido, mencionar que a presença, no
ordenamento jurídico, do princípio acusatório, é
fundamental para a constituição do sistema acusatório, mas
não suficiente.
Os clássicos autores, citados na introdução deste item,
tiveram, a nosso juízo, a lucidez de perceber que o princípio
democrático projetado no processo penal não se esgota, tãosomente, no modo como os sujeitos processuais se portam,
em relação à lide ou ao caso penal. É indispensável, também,
estabelecer um estatuto do próprio processo, concernente à
forma como aparece perante a sociedade, na qualidade de
instrumento legítimo de solução deste caso.
Nesta hipótese, as normas e princípios sobre a forma
processual estão reciprocamente vinculados ao modelo de
processo penal democrático, apenas uma das variáveis
possíveis, mas aquela escolhida politicamente para ser
implementada. Aí entram em jogo a oralidade e a
publicidade.
3.2.3. CARACTERÍSTICAS DO SISTEMA ACUSATÓRIO
serão encaminhados os autos. Art. 384. Encerrada a instrução probatória, se
entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova
existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida
na acusação, o Ministério Público poderá aditar a denúncia ou queixa, se em
virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública,
reduzindo-se a termo o aditamento quando feito oralmente. §1º. Ouvido o
defensor do acusado e admitido o aditamento, o juiz, a requerimento de
qualquer das partes, designará dia e hora para a continuação da audiência, com
inquirição de testemunhas, novo interrogatório do acusado, realização de
debates e julgamento. §2º. Aplicam-se ao previsto no caput deste artigo as
disposições dos §§ 3º e 4º do art. 383. §3º. Havendo aditamento, cada parte
poderá arrolar até três testemunhas, no prazo de três dias. §4º. Não recebido o
aditamento, a audiência prosseguirá.
Com efeito, Ferrajoli destaca que a oposição dicotômica
entre acusatório e inquisitório implica em designar uma
dupla alternativa: de um lado, modelos opostos de
organização judicial; de outro, métodos diferentes de
averiguação judicial.
Do primeiro ponto defluem distintas concepções de juiz
penal, enquanto do segundo dimanam dois tipos diversos de
juízos.241 Na seqüência, adverte o doutrinador que se pode
chamar acusatório a todo sistema processual que concebe o
juiz como um sujeito passivo rigidamente separado das
partes e o juízo como uma contenda entre iguais iniciada
pela acusação, a quem compete o ônus da prova,
enfrentada a defesa em um juízo contraditório, oral e
público e resolvida pelo juiz segundo sua livre convicção.
A organização da Justiça Criminal, portanto, configura
o ambiente em que o processo será instaurado e se
desenvolverá. E as estruturas processuais terminam
contaminadas pelas modernas burocracias em que se
constituem os Poderes Judiciários atuais, de tal modo que a
Justiça Criminal será mais ou menos acusatória, com
independência da previsão legal do princípio da tripartição
de funções, conforme forem mais ou menos favoráveis a isso
as próprias burocracias estatais.
O princípio acusatório não sobrevive em modelos de
Justiça Criminal dominados pela escrituração. Tampouco
tem espaço em processos sigilosos.
É isso que será examinado nos itens subseqüentes.
3.2.3.1. Da Oralidade
Na lição clássica de Francisco Morato,242 compreendese por oralidade a forma procedimental em virtude da qual
estão reunidos os seguintes caracteres:
241 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 564.
242 Morato, Francisco. ―A Oralidade‖, in Processo Oral, Rio de Janeiro:
Forense, 1940, pp. 1-24.
• a predominância da palavra falada;
• a imediatidade da relação do juiz com as partes e com
os meios de prova;
• a identidade física do órgão judicante em todo
decorrer do processo;
• a concentração da causa no tempo.
Não se concebe procedimento penal no curso do qual
atos de instrução criminal, tal seja, de aquisição e
conservação das provas e de debates sobre o material
incorporado, para o fim de conformação da convicção
judicial, desdobrem-se no tempo, distantes uns dos outros e
praticados perante diferentes juízes.
Desde o interrogatório do acusado, nas hipóteses legais
em que esteja previsto, até a audiência das razões finais das
partes, a concentração dos atos processuais é imperativo de
bom senso e de respeito ao direito ao julgamento justo, o que
demanda, dadas as peculiaridades da expressão oral,
fundamente o juiz sua decisão sobre aquilo com o que
diretamente teve contato.
Deve ser salientado que não é necessário que a sentença
seja proferida oralmente, desde que seus fundamentos
tenham decorrido da força do contato imediato com as
provas, que vão impregnar o raciocínio judicial. Nem
tampouco se dispensa a documentação dos atos praticados.
Porém, o que é virtualmente da natureza do sistema
acusatório, como proposição de uma estrutura voltada à
efetivação do justo processo, é que, consoante há mais de
cinqüenta anos afirmava Chiovenda, a audiência seja
utilizada para o trato da causa.243
Lúcio Bittencourt advertia com precisão que livre
convencimento sem processo oral é pura ficção.244
243 Chiovenda, Giuseppe. ―A Oralidade e a Prova‖, in Processo Oral, Rio de
Janeiro: Forense, 1940, pp. 1-24 e 129-149.
244 Lúcio Bittencourt apud José Frederico Marques, in Elementos de Direito
Processual Penal, vol. I, p. 73.
Há que se considerar também, como faz Hassemer,245
que o caráter do processo penal reflete com grande clareza a
racionalidade de uma cultura jurídica e a discussão política
acerca das posições jurídicas na produção do caso e na
preparação da sentença,246 postulado fundamental em
nosso pensamento a respeito do sistema acusatório. O
processo penal tem caráter histórico e político.
Este tipo de processo se orienta em direção a uma
espécie de procedimento que assegure a máxima
contraposição dialética, sem perder de vista a noção básica
de que não há dialética sem possibilidade de diálogo (dia:
reciprocidade; logos: razão). E o diálogo pressupõe a
compreensão do caso e das posições que os sujeitos
processuais legitimamente devem ocupar, assim como a
existência de um espaço onde possa ser travado.
Explicando: a ênfase na oralidade como componente
democrática do processo penal e elemento constitutivo do
sistema acusatório tem a ver com o reconhecimento de que
os métodos de aplicação do direito, ou melhor, de
interpretação das regras jurídicas e de sua efetiva aplicação
aos casos concretos, não abrangem toda a atividade
intelectual do juiz quando sentencia.
Os que conhecem a atividade de decidir têm clara a
idéia de que a valoração dos fatos pelo juiz não se expressa
de forma completa na sentença. Novamente recorrendo a
Hassemer, vale dizer que haverá sempre uma parte de dita
valoração que permanece oculta, que fica no âmbito da
CONVICÇÃO ÍNTIMA.247 Nem mesmo o dever de motivação
das decisões tem o poder de fazer revelar todas as forças que
combinaram para levar o julgador a adotar determinada tese.
Mais do que isso, na constituição da conclusão a
propósito da existência da infração penal e da
responsabilidade do imputado há a tendência de o juiz levar
245 Hassemer, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal, Barcelona: Bosch,
1984.
246 Ob. cit., p. 172, tradução livre.
247 Hassemer, Winfried. Ob. cit., p. 145.
em conta as impressões registradas por ele durante o
processo, formando sua convicção com base nelas, mas
explicitando-a por meio de referência a métodos de
interpretação — gramatical, histórica, teleológica ou
sistemática — que em verdade servem apenas para expor
racionalmente a própria conclusão, definida com
anterioridade.
Os que têm experiência forense sabem que não
raramente as partes acreditam, em virtude do modo como o
juiz dirige a audiência, que determinado tipo de prova está
exercendo significativa influência na formação da convicção
do julgador e acabam se surpreendendo quando leêm a
sentença e descobrem que para o juiz a prova decisiva era
outra, sobre a qual as partes não perceberam qualquer
espécie de atenção diferenciada. Isso ocorre quando o
mesmo juiz preside o processo do início ao fim e é ainda
mais grave e perigoso quando são diferentes juízes, cada qual
participando de uma etapa processual, os responsáveis pela
aquisição e ingresso da prova no processo e por sua avaliação
definitiva.
Daí Hassemer distinguir, a nosso juízo com razão, entre
os métodos de produção e de apresentação do resultado do
processo, relacionando as chamadas técnicas de
interpretação ao último caso.248
Para que a análise dos casos penais não se perca em um
círculo de interpretação de textos — dos textos que
registram, nem sempre fielmente, os depoimentos das
testemunhas, aos das razões das partes e da sentença — é
indispensável que o diálogo processual tenha lugar em um
ambiente apropriado, no qual as provas sejam produzidas, as
partes possam debater livremente e o juiz decida
compreendendo na maior e melhor dimensão possível o que
provavelmente aconteceu.
A interpretação de textos será sempre atribuição de
significados pelo intérprete; no entanto, como sublinha Lage,
248 Hassemer, Winfried. Ob cit., p. 148.
todo texto implica versões ou teorias sobre os fatos,249 razão
por que não existe texto descomprometido, o que em
processo penal pode constituir veículo de injustiças e de
perseguição política, social ou econômica.
A oralidade deixa de ser, exclusivamente, uma questão
de predominância da palavra falada para se constituir em
exigência de que uma causa não seja decidida por juiz que
não haja tido contato direto com as provas e com os
argumentos das partes, em um ambiente capaz de
proporcionar condições ideais de diálogo.
Conseqüência do que está assinalado é que, além da
natural identidade física do juiz, o julgamento dos recursos
deve ficar restrito ao conhecimento de matéria
exclusivamente jurídica, a não ser que seja permitido às
partes desenvolver atividade probatória em segundo grau de
jurisdição; ademais, o emprego das modernas tecnologias de
comunicação terá de considerar a possibilidade de o juiz,
destinatário das provas, ouvir, pessoalmente, as testemunhas
mas não se deve aceitar que a inquirição delas, do réu ou
mesmo que toda audiência tenha lugar em um ambiente
hostil à liberdade de todos os envolvidos.
O Tribunal Constitucional Espanhol, na sentença
96/1987, decidiu que o vínculo entre o Estado de Direito e a
exigência de imparcialidade do julgador impunha a
declaração de nulidade de julgamento levado a cabo em
prisão de segurança máxima, onde supostamente foram
cometidas pelos funcionários as agressões contra os
detidos.250
Não custa lembrar, com María Josefina Martinez, que a
tensão entre forma escrita e oral do processo penal foi
resolvida no século passado (Séc. XX), em favor da forma
escrita, porque os autos do processo (registro escrito dos atos
processuais) tornaram-se espécie de ―produto direto‖ da
249 Lage, Nilson. Controle da Opinião Pública, Petrópolis: Vozes, 1998, p. 103.
250 López Ortega, ob. cit., p. 87.
tradição burocrática do Estado moderno.251
A admissão de que a forma oral faz diferença – e não é
mero capricho da moderna doutrina do processo penal -, está
ditada pela compreensão da ideologia que orientou a
escrituração no início do Séc. XX.
Com efeito, como bem ressaltou Josefina Martinez, a
forma escrita foi implementada como resultado do
reconhecimento da superioridade da razão. A suprema
capacidade humana de compreender a sua existência e
perceber as leis da natureza que a regem refletia a postura
científica positivista dominante no início do século passado.
Quebrar as amarras com o divino (com suposta ordem
natural emanada de Deus) e descobrir fórmulas racionais de
regulação de todos os fenômenos passou a ser a obsessão
daqueles tempos.
O governo dos homens também haveria de ser
orientado pela racionalidade e as burocracias deveriam
exprimir esse domínio da razão em todas as etapas da gestão
pública dos conflitos.
Paradoxalmente, a realidade é que em termos de
processo penal a burocracia da Inquisição fora a primeira a
se instalar na Europa, muito antes do sucesso do positivismo
e do direito natural fundado na razão. E a funcionalidade da
burocracia do Sistema de Justiça Criminal da inquisição,
com a previsão de seus recursos de ofício e a forma escrita
dos atos processuais, revelara-se eficiente mecanismo de
controle social.252
Assim, apesar de um primeiro momento de Reformas
Processuais ter-se voltado à oralidade,253 o século XIX e o XX
251
JOSEFINA MARTÍNEZ, María. Expedientes, in: Sistemas Judiciales, Ano 4,
n. 7, Buenos Aires, Centro de Estudios de Justicia de las Americas – CEJA,
2004, p. 4.
252
MAIER, Julio. Derecho Procesal Penal. I. Fundamentos., Buenos Aires,
Editores del Puerto, 2002, p.261.
253
Vale a pena acompanhar a resenha de Franco Cordero acerca do
desaparecimento e da reencarnação da Ordenação Criminal francesa de 26 de
agosto de 1670, eliminada entre 1790 e 1800 e ressurgida dos debates
viram florescer os processos penais da matriz européia
continental (de que o nosso Código de Processo Penal de
1941 é herdeiro direto) construídos em cima de estruturas
burocráticas da inquisição.
Como foi dito, a forma escrita subtrai o contato do juiz
com acusado e testemunhas. Incensada pelo culto à razão,
faz supor que este contato é desnecessário: afinal, o que a
visão direta da audiência pode ministrar que já não esteja
nos autos?! O que não está nos autos não está no mundo!
O mesmo poder de dominação que a Justiça Eclesiástica
exercia por meio da Inquisição, em um mundo de poucos
letrados e multidões de analfabetos, passou a ser exercido
pelos órgãos do Estado, que manejavam (manejam) a
linguagem técnica do Direito (e ainda mais técnica dos
autos) para impor o Poder do Estado ao ditar decisões
penais.
Novo paradoxo: ninguém poderá escusar-se de cumprir
a lei por alegar ignorância, desconhecimento da lei! Ainda
que seja analfabeto. Todavia, as fórmulas escritas dos
procedimentos penais estão acessíveis a poucos! Como
controlar o conteúdo de justiça da sentença penal se não se
compreende os termos da sentença fora do linguajar técnicojurídico? E, também e mais importante, como participar do
―diálogo‖ processual se a maioria das intervenções no
processo é escrita e, por isso, essas intervenções exigem
habilidade especial de que só advogados, Ministério Público
e juízes são dotados?
A oralidade converte-se em condição de participação
efetiva no processo. Sem a mediação da forma escrita o
acusado poderá se fazer ouvir, a vítima e as testemunhas
também, e as decisões não terão como se ocultar em
linguagens estranhas à vida cotidiana.
Neste ponto percebe-se que oralidade não é mera
questão de forma. A matriz acusatória depende dela para
definir os papéis concretos exercitados pelos sujeitos
legislativos, na forma do Código de Instrução Criminal de 1808. CORDERO,
Franco. Procedimiento..., op. cit., p. 26-59.
processuais. A defesa oral, na frente do réu, exige que o
defensor demonstre conhecimento da causa e se empenhe
em busca do resultado mais favorável ao acusado. Não
bastam reiterações de manifestações escritas anteriores. Da
mesma maneira a acusação deverá se posicionar sobre a
prova. E o juiz exporá as razões de sua decisão. A troca de
papéis (mutatio libelli) entre acusação e juiz é bastante
dificultada.
É bem verdade que a cultura autoritária, legado da
Inquisição, produz suas permanências. Assim, é válida a
advertência de Josefina Martinez quanto à tendência de
transformar os processos orais criados com as Reformas na
América Latina em processos escritos, na prática, com a
recolocação da escrituração no centro mediante recurso a
apresentação de memoriais após as audiências.254 O cuidado
está em não permitir que isso signifique a renovação da
centralidade da escrituração, com todos os defeitos acima
enunciados, preservando-se a identidade física do juiz e o
pronunciamento fundamentado das partes.
Meios mecânicos ou eletrônicos de registro fiel das
intervenções de partes e testemunhas contribuirão, por
certo, para a adoção da filosofia da oralidade.
3.2.3.2. Da Publicidade
A publicidade também se insinua como característica do
sistema acusatório, na medida em que o segredo, como ficou
assentado em outra passagem, é compatível, como regra
geral, exclusivamente com regimes autoritários e processos
penais inquisitórios.
I. DA PUBLICIDADE TRADICIONAL
Cumpre dizer, em abono ao acima mencionado, que a
publicidade tanto pode ser analisada como decorrência da
254
JOSEFINA MARTÍNEZ, María. Expedientes, op. cit., p. 6.
necessidade de participação do público na gestão da coisa
pública, inclusive, evidentemente, na gestão das decisões
judiciais sobre os casos penais, como pode ser vista na
condição de dar ao público, na qualidade de espectador,
satisfação a respeito da maneira como os agentes do Estado
exercem as suas funções.
Neste último caso, frisa com seguro fundamento Vicente
Greco Filho, atende a publicidade à função de garantia das
outras garantias, inclusive da reta aplicação da lei,255 por
cujo meio podem os cidadãos controlar, de forma adequada,
o cumprimento da exigência de respeito aos direitos básicos,
além da moralidade e impessoalidade da ação estatal. Sem
perigo inaceitável para o sistema, a publicidade fica limitada
somente nas situações pertinentes à preservação de outros
direitos fundamentais, por meio da coordenação do exercício
de tais direitos, de acordo com o princípio da
proporcionalidade.
Justamente em virtude das restrições designadas
expressamente na Constituição da República de 1988,
classifica-se em publicidade para as partes e em geral e, sob
outro aspecto, em imediata e mediata, definindo-se a
publicidade interna como orientada com exclusividade às
partes.256
A eleição da publicidade como elemento comum e
permanente do processo permite-nos chegar à conclusão de
que, contemporaneamente, o próprio processo pode ser
definido como procedimento público em contraditório.
Reduzida a publicidade, fora dos casos expressamente
previstos nas Constituições e nas leis (no Brasil, na
Constituição da República), os atos processuais não estarão
aptos a produzir efeitos jurídicos, sendo, por isso, inválidos.
De acordo com o magistério de López Ortega, a
publicidade para as partes, ou interna, significa que todos os
255 Greco Filho, Vicente. Tutela Constitucional das Liberdades, São Paulo:
Saraiva, 1989, p. 113.
256 Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. 1, p.
75.
atos processuais das partes, do juiz e dos demais sujeitos
deverão ser conhecidos na totalidade e tempestivamente pela
parte adversa,257 razão por que defende que este modelo de
publicidade está ligado ao princípio do contraditório.
É evidente que os atos de investigação criminal
(inquérito policial e outros) dependerão, na maioria das
vezes, da preservação do sigilo para que conduzam a
resultados positivos. Pode-se dizer, então, que estes atos,
embora procedimentais e sujeitos ao princípio da legalidade,
não têm valor processual, não são atos processuais, e,
independentemente de passarem pelo filtro do contraditório,
nunca estarão dotados da aptidão para produzir efeitos
jurídicos. Todavia, no curso da investigação preliminar, atos
processuais de natureza cautelar poderão ser necessários e
deverão ser praticados. Neste caso, a publicidade interna
funciona como referimos anteriormente, ao tratarmos da
Defesa, de forma diferida, muito embora não se possa
recusar à Defesa acesso às informações porventura obtidas e
aos procedimentos adotados por ordem judicial.
Em perspectiva parecida colocam-se as questões dos
procedimentos híbridos, que não são exclusivamente
investigação criminal (etapa de preparação para o exercício
da ação penal) e também não são processos penais em sua
inteireza, pois nem sempre estão munidos de eficácia
jurídica para dar ensejo a soluções de mérito definitivas,
capazes de submeter decisões à qualidade de coisa julgada
material.
No Brasil, temos o termo circunstanciado, previsto no
artigo 69 da Lei no 9.099/95, que substitui o inquérito
policial em relação às chamadas infrações penais de menor
potencial ofensivo. Trata-se, sem dúvida, de modalidade de
investigação criminal cuja instauração define a priori quem é
o investigado e quem é o suposto ofendido, de sorte a
estabelecer posições processuais que serão importantes
conforme o desenrolar do procedimento.
A rigor, como procedimento de investigação, o termo
257 López Ortega, ob. cit., p. 41.
circunstanciado deveria estar protegido pelo sigilo peculiar a
toda investigação criminal. No entanto, as regras dos artigos
74, 75 e 76 da Lei, prescrevendo a possibilidade de o
investigado, do ofendido e do Ministério Público chegarem a
acordo sobre a composição do conflito em torno de infração
penal de menor potencial ofensivo, transação a ser
homologada por sentença, gera a necessidade de dotar estes
procedimentos do mesmo tipo de publicidade que
acompanha os processos penais tradicionais.
De outra maneira, estaríamos subtraindo do público os
mecanismos de solução destes conflitos de interesses, cuja
solução, em que pese não importar em aplicação de pena
privativa de liberdade, poderá representar frustração aos
princípios de moralidade, legalidade e impessoalidade.
Convém ressaltar que no caso brasileiro a Emenda
Constitucional n. 45, de 08 de dezembro de 2004, modificou
a redação do artigo 93, inciso IX, da Constituição da
República, no trecho em que trata do sigilo.
A redação original era a seguinte:
Art. 93. [...]
IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder
Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as
decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse
público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às
próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes.
Este dispositivo está em harmonia com o artigo 5º,
inciso LX, da Constituição da República brasileira, que não
foi alterado pela referida Emenda:
Art. 5º. [...]
LX – a lei só poderá restringir a publicidade dos atos
processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse
social o exigirem.
Pela nova redação, trazida pela Emenda 45, o artigo 93,
inciso IX, da Constituição da República brasileira passa a ter
a seguinte redação:
IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder
Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as
decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a
presença, em determinados atos, às próprias partes e seus
advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a
preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo
não prejudique o interesse público à informação.
Em nossa opinião, a mudança do dispositivo
constitucional há de ser interpretada com todo cuidado. A
regra permanece sendo a publicidade dos atos processuais. A
exceção não pode prejudicar o direito de defesa a ponto de
inviabilizá-lo. Portanto, a cláusula ―em casos nos quais a
preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo
não prejudique o interesse público à informação‖ há de ser
interpretada como exigência de ponderação dos interesses
em jogo, com prevalência do interesse público à informação.
Somente quando o predomínio deste interesse público
transformar-se em causa de dano à honra, imagem ou
qualquer outro direito protegido por estar inserido na esfera
de intimidade da pessoa afetada (que, por exemplo, pode ser
a vítima do processo), caberá ao juiz, fundamentadamente,
restringir o sigilo.
Não será possível inverter a regra de tutela prevista na
Constituição para restringir sempre a publicidade e limitar
os casos de presença do acusado em sala de audiências, e
somente em casos excepcionais autorizar a presença dele.
A publicidade externa será tratada no item subseqüente,
tendo em vista as características dos atuais meios de
comunicação.
II. DOS JUÍZOS PARALELOS DA IMPRENSA
É preciso salientar que nos dias atuais a nota de
democracia referida ao moderno processo penal há de
propor nova reflexão no tocante à publicidade, por conta da
modificação tanto da esfera pública, que não mais se
restringe ao Estatal ou não se confunde com ele, como em
virtude da verdadeira revolução proporcionada pelo
desenvolvimento das tecnologias de comunicação e sua
forma de penetração e influência na complexa sociedade de
massas.
Habermas recorda a trajetória liberal do princípio da
publicidade, focalizando o fato de, nos tempos das
revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX, na Europa
Ocidental, a publicidade procurar submeter a pessoa ou a
questão ao julgamento público, tornando as decisões
políticas sujeitas à revisão perante a opinião pública.258
Nos dias de hoje, porém, o controle empresarial dos
meios de comunicação de massas, a lógica da
competitividade e do mercado que orienta a atuação deles e a
distorção da própria noção de publicidade, que, antes de
incentivar a participação democrática da maioria das pessoas
relativamente aos negócios da sua cidade e de seu país, anula
essa participação, constroem uma nova realidade,
paradoxalmente virtual ou espetacular.
No mesmo texto, Habermas provoca nossa observação,
acentuando que:259
Na mudança de função do Parlamento, tornase evidente a natureza problemática da
‗PUBLICIDADE‘ enquanto princípio de organização
da ordem estatal: de um princípio de crítica
(exercida pelo público), a ‗PUBLICIDADE‘ teve
redefinida a sua função, tornando-se princípio de
uma integração forçada (por parte das instâncias
demonstrativas — da administração e das
associações, sobretudo dos partidos). Ao
deslocamento plebiscitário da esfera pública
parlamentar corresponde uma deformação no
consumismo cultural da esfera pública jurídica.
Com efeito, os processos penais que são
suficientemente
interessantes
para
serem
documentados e badalados pelos meios de
comunicação de massa, invertem, de modo
análogo, o princípio crítico da ‗PUBLICIDADE‘, do
258 Habermas. Mudança Estrutural da Esfera Pública, Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984, p. 235.
259 Habermas. Mudança Estrutural da Esfera Pública, ob. cit., pp. 241-242.
tornar público; ao invés de controlar o exercício da
justiça por meio dos cidadãos reunidos, serve cada
vez mais para preparar processos trabalhados
judicialmente para a cultura de massas dos
consumidores arrebanhados.
Garapon igualmente adverte para o poder (contrapoder)
da mídia e a maneira como é empregado especialmente nos
casos penais,260 ao tempo em que Pierre Bourdieu analisa
com competência a influência da sociedade espetacular, da
ansiedade midiática e da informação como mercadoria de
consumo sobre os juízes, destacando que há aqueles que nem
sempre são os mais respeitáveis do ponto de vista das
normas internas do campo jurídico mas que podem servirse da televisão para mudar as relações de força no interior
de seu campo e provocar um curto-circuito nas hierarquias
internas.261
Nos mesmos moldes, em 1995, chamávamos atenção
para isso no artigo ―Opinião Pública e Processo Penal‖,262
preconizando nova postura diante do fenômeno da mídia e
das suas relações com o processo penal.
A exploração das causas penais como casos
jornalísticos, com intensa cobertura por todos os meios, leva
à constatação de que, ao contrário do processo penal
tradicional, no qual o réu e a Defesa poderão dispor de
recursos para tentar resistir à pretensão de acusação em
igualdade de posições e paridade de armas com o acusador
formal, o processo paralelo difundido na mídia é superficial,
emocional e muito raramente oferece a todos os envolvidos
igualdade de oportunidade para expor seus pontos de vista.
A disparidade de tratamento que, em muitas ocasiões, é
260 Garapon, Antoine. Juez y Democracia, Espanha: Flor del Viento, 1997, pp.
90-110.
261 Bourdieu, Pierre. Sobre a Televisão, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.
81.
262 Prado, Geraldo. ―Opinião Pública e Processo Penal‖, in Ensaios Críticos
sobre Direito Penal e Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 1995.
tratada como cobertura isenta e lisa do meio de
comunicação, que procura acentuar sua liberdade em face
dos investigados quando porventura estes integram ou são
vistos como parte das elites políticas, econômicas ou
intelectuais, na verdade está a descobrir um fato e produzir
algumas danosas conseqüências: a presunção de inocência
sofre drástica violação, pois a imagem do investigado é
difundida como da pessoa responsável pela infração penal; e
em vista disso, o desequilíbrio de posições que os sujeitos
têm de suportar durante o período de exposição do caso pela
mídia transfigura os procedimentos seculares de apuração e
punição, passando subliminarmente a idéia do caráter
obsoleto e ineficiente das garantias processuais, a que se
soma a percepção do processo penal como meio demorado
de se fazer justiça em comparação com a ―célere‖ e ―perfeita‖
investigação da mídia.
É indiscutível que em semelhante situação o devido
processo legal e a liberdade de imprensa sofrem e assim esta
última, que se apresenta como direito civil elementar em
uma sociedade democrática, pode terminar produzindo em
seu extremo aquilo que deveria evitar: um modelo
autoritário de exercício de poder, em virtude de que os
procedimentos acabam tendo valor exclusivamente formal.
Convém aprofundar um pouco mais a análise para
trazer à tona a questão dos procedimentos ilegais de
apuração dos fatos, de que os meios de comunicação se
socorrem em muitas oportunidades, e que transmitem a
imagem do crime flagrado enquanto ocorre (a antiga
verdade real, agora com nova roupagem), amplamente
documentado e provado, supostamente cabendo à Justiça
tão-só sacramentar o veredicto de condenação e punir o
culpado.263
Como consignado na primeira parte deste trabalho, a
263
Renovo aqui a sugestão da leitura do texto de Aury Lopes Jr. sobre
evidência, prova, tempo e processo penal. Introdução Crítica ao Processo Penal:
Fundamentos da Instrumentalidade Garantista, Rio de Janeiro, Lumen Juris,
2004.
organização do sistema de direitos fundamentais em sua
etapa inicial considerou a necessidade histórica de conter o
poder do Estado, opondo-lhe barreiras consistentes nas
liberdades públicas.
Era e de alguma maneira ainda é assim porque ao
Estado são conferidos poderes cujo exercício implica em
virtual interferência na esfera privada das pessoas,
ameaçando o status de dignidade de que devem ser
portadores todos os seres humanos, independentemente de
quaisquer outras considerações.
No plano do processo penal, a proibição do emprego da
tortura, a garantia da inviolabilidade física, do domicílio, das
comunicações e do patrimônio, conjugam-se como regras
destinadas a proteger a honra, a liberdade e a vida dos
indivíduos, sendo que a crônica do exercício arbitrário do
poder registra o emprego do processo penal como forma de
exclusão e controle dos grupos sociais indesejáveis,
naturalmente ao mesmo tempo em que se procurava
controlar as ações que realmente atentavam contra
interesses expressivos das comunidades.
Ter tudo em um mesmo conjunto sempre facilitou o
poder no instante de encontrar um pretexto para
excepcionar o emprego de meios processuais racionais e
éticos de apuração das infrações penais, de sorte que a defesa
social fundamentou discurso de compressão de exercício de
direitos fundamentais em condições de justificar o processo
penal dos regimes autoritários de meados do século XX, na
Europa Ocidental.
Apesar disso, o movimento de internacionalização dos
direitos fundamentais, iniciado após o fim da Segunda
Guerra Mundial, ocupou espaços e detonou irreversível
conscientização do caráter inalienável e irrenunciável destes
direitos, obrigando o Estado a perseguir o delito e punir o
delinqüente com as armas dispostas em um regime de estrita
legalidade e eticidade.
Ocorre que o desenvolvimento da comunicação de
massas, em um contexto de sociedade capitalista e tomando
a forma cada vez mais acentuada de empresas transnacionais
de comunicação (as grandes corporações, que monopolizam
estes meios), edificou novo tipo de poder, neste caso fora do
Estado.
A lógica de freios e contra-pesos não funciona em
relação a eles, que preconizam auferir legitimidade em
virtude do consumo massivo das informações que veiculam.
O emprego da censura não é aceitável, pois no lugar de
eliminar a doença mata o paciente, abrindo caminho para o
extermínio da liberdade de informação e expressão.264
Embora se saiba que, no tocante ao funcionamento
geral das corporações do ramo, a liberdade de imprensa é
ditada por interesses mercadológicos, sobrevive em
importante medida a liberdade de informação de que fazem
uso os operadores da imprensa e que tem sido fundamental
para esclarecer as pessoas (detentoras do direito a serem
informadas) a respeitos de fatos relevantes da vida pública e
social.
Com base nisto, parece que o controle das situações de
conflito entre liberdade de imprensa e devido processo legal
está em se proibir à imprensa aquilo que é igualmente
proibido ao Estado, isto é, fazer uso de informações obtidas
criminosamente.
Como a censura prévia é impossível,265 duas alternativas
podem ser consideradas: o recurso aos mecanismos de
responsabilidade tradicional, de natureza reparatória; e a
intransigente proibição de que as partes do processo lancem
mão das provas obtidas dessa maneira, a qualquer título.
Ademais, a fidelidade ao sistema acusatório implica em
estipular que a sede para a solução dos conflitos de
264
Sobre censura é indicada a leitura de Liberdade de Informação e o Direito
Difuso à Informação Verdadeira, de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de
Carvalho, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 129-135, que no mesmo trabalho
pesquisa o projeto da chamada ―Lei da Mordaça‖.
265 López Ortega refere a experiência do direito inglês, com as limitações
prévias à liberdade de informar asseguradas pelo emprego da medida
denominada contempt of court, prevista no Contempt of Court Act, de 1981.
Assinala que na Grã-Bretanha o interesse do público na liberdade de expressão
deve ceder ante o interesse do público de não impedir ou ameaçar gravemente
o curso da justiça. Ob. cit., p. 70.
interesses de natureza penal é — e sempre deverá ser — o
processo judicial. Portanto, o ponto de vista defendido em
―Opinião Pública e Processo Penal‖, em 1995, continua
válido. Nos casos de intensa exploração pela mídia, é
conveniente que se proceda ao desaforamento temporal,
suspendendo o curso do procedimento enquanto durar o
estado de excitação social.
Finalmente, visando resguardar a coerência interna
entre os diversos elementos constitutivos do sistema
acusatório, quando confrontados com a publicidade pósmoderna, convém seguir e ampliar o exemplo espanhol, pelo
qual, em virtude da ordem ministerial de 27 de novembro de
1959, completada pelo ofício circular de 22 de abril de 1985,
o Ministério Público está autorizado a emitir comunicados
escritos, destinados à imprensa, a fim de evitar informações
errôneas.266 A propósito destes comunicados, deve a lei
garantir à parte que se sentir prejudicada o direito de fazer
uso de igual expediente, assegurando-se, assim, não só a
liberdade de informação como também o exercício desta
liberdade verdadeiramente como função social.
É sempre bom lembrar que as portas fechadas aos
esclarecimentos públicos
—
que
devem
ocorrer
excepcionalmente, em casos de repercussão, quando
flagrantemente uma informação tida como errônea ganha
curso livre e é capaz de conformar a opinião pública — são
ultrapassadas por conta de práticas clandestinas,
insuscetíveis de serem controladas.
O processo penal democrático necessita da publicidade
dos seus procedimentos e assegurá-la pode impedir que se
coloque no seu lugar a publicidade espetacular dos atores
que deles tomam parte, além de facilitar o controle e coibir
os excessos.
3.2.4. A TÍTULO DE CONCLUSÃO
São estas, em síntese, as características de sistema e
266 López Ortega, ob. cit., p. 74.
princípio acusatórios, pesadas e sopesadas as correntes
doutrinárias envolvidas em seu estudo. Várias também são,
como vimos, as opiniões, algumas das quais são até mesmo
opostas ou conflitantes entre si, motivo por que é
conveniente encerrar este tópico com a advertência de José
António Barreiros:267
Não há, assim, um conceito aprioristicamente
fundado de estrutura acusatória — a que os
concretos ordenamentos processuais penais se
tenham que sujeitar — mas uma filosofia da
máxima acusatoriedade possível, que só após a
análise especificada de cada ordenamento
processual
penal
se
poderá
delinear
concretamente no que à sua caracterização
fundamental respeita.
A aferição da constitucionalidade de um
sistema processual penal passa, deste modo, não
pela subsunção estática dos institutos jurídicos
concretos que ela admita aos comandos abstractos
da Constituição mas pela análise ponderada da
respectiva estrutura constitutiva, tendo em vista
recortar-lhe os grandes princípios estruturadores,
reconstituir-lhe o jogo de inter-relações dos vários
agentes nele participantes, extractar-lhes os
módulos, fases e graus de procedimento.
Trata-se, ao invés de muitos outros casos em
que a constitucionalidade esteja em causa, de
aferir um sistema, com toda a globalidade de
inter-relações, uma estrutura, com toda a
complexidade do seu modo particular de
configuração.
267 Barreiros, José António. ―A Nova Constituição Processual Penal‖, in
Portugal — O Sistema Político Constitucional. Mario Batista Coelho
(coord.), Lisboa: Instituto de Ciências Jurídicas, 1989, p. 769.