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atinentes à disponibilidade da ação penal.133 Nos Estados Unidos da América, que respeitam uma forma federalista, o processo penal é essencialmente acusatório,134 com o Promotor de Justiça assumindo o papel principal,135 que exercita de modo equilibrado com a reserva de direitos fundamentais atribuída à defesa pela Constituição Federal. A prova, em processo oral e público, é produzida exclusivamente pelas partes, quer perante o júri, onde existe, funciona ou o réu o aceita, quer perante o magistrado singular, havendo, ainda, ampla disponibilidade sobre o conteúdo da pretensão deduzida. A respeito do sistema processual penal vigente no Brasil, empreenderemos a abordagem, por questão de ordem metodológica, no último item deste capítulo. 3.2. Características do Sistema Acusatório Cumprindo a trajetória que demarcamos, é nosso dever tentar aclarar certos conceitos e estabelecer algumas mínimas definições, para, assim, examinarmos as algumas leis especiais e observarmos, em que medida e de que forma, confrontam o modelo de estrutura processual penal constitucionalmente eleito. 133 Bovino, Alberto. ―La Persecución Penal Pública en el Derecho Anglosajón‖, in Pena y Estado, ano 2, nº 2: O Ministério Público, Buenos Aires: Del Puerto, 1997, pp. 35-79. 134 Farnsworth, E. Allan. Introdução ao Sistema Jurídico dos Estados Unidos, Rio de Janeiro: Forense, 1963. 135 Até o final do século XVII, início do século XVIII, por influência do direito dos colonizadores, nos Estados Unidos a vítima demandava privadamente. Acredita-se que a imigração holandesa haja levado consigo a figura do persecutor público, porém sem alterar, na essência, o modelo processual penal, que ficou imune às demais experiências do sistema romanocanônico. Os Promotores de Justiça, como órgãos públicos responsáveis pela persecução penal, são acreditados como representantes da sociedade, no desempenho de uma tarefa política, motivo por que, em 46 dos 50 Estados da Federação, são eleitos, enquanto no plano federal são indicados pelo Presidente da República e estão subordinados formalmente ao Procurador Geral (U.S. Attorney General), segundo Alberto Bovino (La Persecución Penal Pública en el Derecho Anglosajón, ob. cit., p. 54). 3.2.1. PRINCÍPIO E SISTEMA ACUSATÓRIO: DIFERENCIAÇÃO Com efeito, a primeira abordagem resulta da exigência de extremarmos as definições de sistema e princípio acusatórios. Para isso, vamos nos valer das singularidades ordinariamente referidas às duas categorias. Giovanni Leone136 apresenta, como características do sistema acusatório, o poder de decisão da causa entregue a um órgão estatal, por sua vez distinto daquele que dispõe do poder exclusivo de iniciativa do processo. Acrescenta que, deduzida a acusação, o magistrado se libera da vinculação às iniciativas do autor, impulsionando oficialmente a persecução penal, que se desenvolverá conforme os princípios do contraditório, com paridade de armas, oralidade e publicidade. Por seu turno, Riquelme137 alinha também a legitimidade popular do juiz, que será o próprio povo ou se constituirá de significativa parte dele, despido, por isso, do dever de fundamentar sua decisão, haja vista sua soberania, ao que, conseqüentemente, soma-se a irrecorribilidade das decisões que profere, em processo que se desenvolve na forma de um duelo público, oral e contraditório, entre acusador e acusado, perante um juiz inativo e imparcial. Mittermaier138 igualmente alude ao princípio do juiz popular, como da essência do sistema acusatório, salientando, justamente, que sólo puede ser Juez el pueblo o delegados escogidos de su seno, celosos y vigilantes defensores de las libertades, enquanto Alcala-Zamora e Levene139 mencionam também a acusação popular e a liberdade de apreciação judicial das provas, cabendo a Julio 136 137 138 139 Leone, Giovanni. Ob. cit., p. 8. Fontecilla Riquelme, Rafael. Ob. cit., pp. 36-37. Mittermaier, Karl Joseph Anton. Ob. cit., p. 56. Alcala-Zamora y Castillo, Niceto e Levene, Ricardo, Hijo. Ob. cit., pp. 217218. Maier140 a observação, segundo nos parece, da existência de poderes de conveniência, oportunidade e disponibilidade, referentes ao exercício da ação penal, em contraposição, naturalmente, ao dever inevitável de perseguição penal, característico do sistema inquisitivo. Ortega diferencia princípio acusatório do sistema que lhe empresta o nome. Este autor sublinha que, ao lado do princípio propriamente dito, encontramos a publicidade e a oralidade como traços constitutivos do sistema acusatório.141 Conso,142 autor das obras que mais se aprofundaram no exame da matéria, registra, ao lado do que já foi consignado (necessidade de acusação ofertada por órgão distinto do julgador, publicidade e oralidade do procedimento, paridade de armas entre as partes e exclusão da iniciativa judicial no recolhimento das provas), ser característica a liberdade pessoal do acusado, ao menos até a sentença condenatória definitiva. Cordero acentua a semelhança (―remota ascendência‖) entre o processo acusatório e os duelos. ―As técnicas acusatórias são juízos de Deus intelectualmente elaborados‖.143 Segundo o professor italiano, a ação decisória se converte em um trabalho mental sobre dados positivos, porém cabe aos contendores aduzir e discutir os dados em uma típica ―batalha intelectual‖. O valor do processo acusatório está na observação das regras, insensível à sobrecarga ideológica derivada da observação inquisitorial144. Finaliza advertindo que a ação penal obrigatória e irretratável, os poderes instrutórios de ofício e pedidos que nunca são vinculantes distinguem o modelo italiano do anglosaxão. 140 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana: Su Comentario y Comparación com los Sistemas de Enjuiciamiento Argentinos, p. 43. 141 López Ortega, Juan J. ―La Dimensión Constitucional del Principio de la Publicidad de la Justicia‖, in Revista Del Poder Judicial, Madrid: Consejo General del Poder Judicial, nov/1999, p. 52. 142 Conso, Giovanni. Istituzioni di Diritto Processuale Penale, p. 8. 143 Cordero, Franco. Op. cit., p. 87 (tradução livre). 144 Idem, p. 86. É certo, conforme ao nosso juízo, que, se pretendemos a definição de um sistema acusatório como categoria jurídica composta por normas e princípios, não há como, pura e simplesmente, justapô-lo com exclusivadade a um preciso princípio acusatório, pois a identidade entre um e outro resultaria, por exigência lógica, na exclusão de uma das duas categorias, pela impossibilidade de um princípio ser, ao mesmo tempo, um conjunto de princípios e normas do qual ele faça parte, numa relação de continente a conteúdo. Fica mais clara a incompatibilidade da justaposição, quando, pela simples resenha classificatória, notamos a significativa disparidade de elementos invocados como da própria essência de uma das categorias, no caso, do sistema. Assim, sustenta-se neste trabalho a premissa de que, por sistema acusatório compreendem-se normas e princípios fundamentais, ordenadamente dispostos e orientados a partir do principal princípio, tal seja, aquele do qual herda o nome: acusatório. Em que consiste então, nesta perspectiva, o princípio acusatório? 3.2.2. CARACTERÍSTICAS DO PRINCÍPIO ACUSATÓRIO I - A resposta deve ser construída por exclusão, afastando o que não integra o princípio. Assim, a compreensão daqueles elementos que vão aos poucos, historicamente, integrar o sistema acusatório é o resultado da eliminação de outros elementos que não afetam o núcleo básico de um tipo característico do processo, isto é, aquele alicerçado na idéia da divisão, entre três diferentes sujeitos, das tarefas de acusar, defender e julgar. Com efeito, como assinala Cordero – e também James Goldschmidt – ―as regras do jogo‖ distinguem o processo acusatório do inquisitório.145 Este último se satisfaz com o resultado obtido de qualquer modo, pois nele prevalece o 145 Cordero, Franco. Op. cit., p. 88. objetivo de realizar o direito penal material, enquanto no processo acusatório é a defesa dos direitos fundamentais do acusado contra a possibilidade de arbítrio do poder de punir que define o horizonte do mencionado processo. Assim, como as ―regras do jogo‖ não se concretizam sem a interferência dos sujeitos que participam do processo, não há dúvida de que são os atos que estes sujeitos praticam que hão de diferenciar os vários modelos processuais. É preciso ter em mente que a análise puramente objetiva, que visualiza os atos sem entender quem são os sujeitos que os praticam, descarna o processo. Gestão da prova e acusação são atividades que não dizem nada se não olharmos quem – que sujeitos (históricos) – realiza estes atos. Até porque com a identificação dos sujeitos será possível compreender os porquês das coisas. Quando focalizamos estes atos – que expressam a obediência dos sujeitos às regras do jogo -, temos de classificá-los, identificando o que há de comum, por exemplo, entre os diversos atos que o juiz pratica ao longo do processo. O ponto de convergência destes atos é aqui denominado ―tarefa‖, porque defendemos que os atos processuais atendem a funções, não são desinteressados, ainda que muitas vezes estas funções não sejam percebidas com clareza ou imediatamente. Como nas linhas antecedentes ficou registrado, a função predominante do processo inquisitório consiste na realização do direito penal material. O poder de punir do Estado (ou de quem exerça o poder concretamente) é o dado central, o objetivo primordial. No sistema inquisitório, portanto, os atos atribuídos ao juiz devem ser compatíveis com o citado objetivo. Em linguagem contemporânea equivale a dizer que o juiz cumpre função de segurança pública no exercício do magistério penal. Essa linha de raciocínio permite abarcar todos os atos judiciais inquisitórios em um só plano. Exercer a ação penal no lugar de terceiro, quer originalmente como previa o artigo 531 do Código de Processo Penal brasileiro, quer de modo superveniente, interferindo na delimitação do objeto do processo (como ocorre com a mutatio libelli), significa prestigiar a idéia de que a punição não pode depender de um autor de ação penal independente e livre para apreciar se deve ou não acusar e o que deve (ou não) incluir na acusação. Da mesma maneira, atribuir ao juiz o poder de produzir provas de ofício deforma o ―duelo intelectual‖ a que se refere Cordero. Supor que a atividade probatória está desvinculada do exercício dos ―direitos processuais― (James Goldschmidt) e imaginar, por outro lado, que juiz exerce ―direitos‖ no processo importa controlar o material da decisão para reduzir as brechas da impunidade. É também o que acontece com o denominado recurso de ofício. O juiz que ―recorre‖ da própria sentença para submetê-la obrigatoriamente a exame por tribunal de segundo grau, em hipóteses em que a decisão originária é favorável ao réu, suspeito ou investigado, concorre para a política de segurança pública de que se torna protagonista. O elemento comum entre o exercício da ação penal pelo juiz, a produção de provas de ofício e o recurso igualmente de ofício está na consecução de tarefas que a moderna doutrina do processo assevera que compõem o chamado direito de ação (e o co-respectivo direito de defesa).146 Como todas estas tarefas apontam para a prevalência do interesse em punir sobre o de tutelar os direitos fundamentais do réu, elas podem ser reunidas sob a rubrica de tarefas de acusação. A acusação consiste na imputação a alguém da prática de um crime com ―pedido‖ de condenação. A construção teórica do princípio acusatório há de consumar-se mediante oposição ao princípio inquisitivo. São antagônicas as funções que os sujeitos exercem nos dois modelos de processo. É desse antagonismo, portanto, que as 146 Historicamente, o discurso inquisitório atribui o acúmulo de funções em mãos do juiz ao generoso propósito de evitar a punição de inocentes. Não é preciso recorrer às inquisições eclesiásticas para compreender a falsidade do argumento. Basta ver que é este modelo, fundado na busca da verdade real, que mesmo nos subterrâneos da persecução penal contemporânea facilita a aceitação da tortura. diferenças devem ser extraídas. Assim, se na estrutura inquisitória o juiz ―acusa‖, na acusatória a existência de parte autônoma, encarregada da tarefa de acusar, funciona para deslocar o juiz para o centro do processo, cuidando de preservar a nota de imparcialidade que deve marcar a sua atuação. Nisso consiste a base teórica em cima da qual procederemos à análise do princípio acusatório. Ao aludirmos ao princípio acusatório falamos, pois, de um processo de partes, visto, quer do ponto de vista estático, por intermédio da análise das funções significativamente designadas aos três principais sujeitos, quer do ponto de vista dinâmico, ou seja, pela observação do modo como se relacionam juridicamente autor, réu, e seu defensor, e juiz, no exercício das mencionadas funções. II - Nem sempre foi, ou ainda é, predominantemente oral e público o processo acusatório, nem, necessariamente, só será acusatório pelo fato do próprio povo, ou segmentos numericamente significativos dele, julgar.147 Até mesmo o dever de fundamentar a decisão não reduz ou amplia a acusatoriedade da base processual, como provam o júri e o juiz ou colegiado profissional. Por sua vez, 147 Na medida em que o princípio acusatório decorre do princípio democrático, o valor de legitimidade do exercício do poder há de ser objeto de alguma consideração. Atualmente, é possível afirmar, com Frederico Marques, que, vindo os juízes togados do seio do próprio povo de que emana conceitualmente a sua autoridade, somente em nome do povo, ao menos nos governos democráticos, podem distribuir justiça (A Instituição do Júri, p. 22). A tal consideração convém aditarmos que o exercício da função jurisdicional corresponde à atividade de um ramo de governo — do Poder Judiciário — de sorte que não se pode falar ou mesmo mentalizar um ramo de governo que não seja político (significando, aí, o exercício de um poder público, estatal, em nome e para a polis) em relação ao qual não caiba as responsabilidades, deveres e poderes inerentes à soberania derivada do povo (Zaffaroni, Eugenio Raúl. Estructuras Judiciales, p. 112). Estas são, possivelmente, as motivações do reconhecimento, na Lei Fundamental de Bonn (artigo 20, nº 2) e na Constituição Espanhola (artigo 117, nº 1), de que a Justiça emana do povo, não subsistindo, modernamente, a objeção oposta por Mittermaier. não acontece tal redução ou dilatação (de acusatoriedade) à vista da possibilidade de o acusado responder preso ao processo. Desta forma, pode-se começar assinalando, com Conso,148 que a idéia de acusação só tem sentido, como elemento essencial de um princípio dentro do processo, contraposta à idéia de defesa, ainda que, sobre esta última possa haver alguma imprecisão quanto aos seus contornos. Jorge de Figueiredo Dias, com sua incontestável autoridade, ressalta que, por direito de defesa, compreendese uma categoria aberta, à qual devem ser imputados todos os concretos direitos, de que o arguido dispõe, de codeterminar ou conformar a decisão final do processo,149 o que coloca o acusado, e, dadas as especificidades técnicas relativas ao mecanismo de co-determinação e conformação da decisão judicial, também seu defensor,150 na condição de sujeitos de direitos, deveres, ônus e faculdades. Ora, um princípio fundado na oposição entre acusação e defesa, ambas com direitos, deveres, ônus e faculdades, só se desenvolve regularmente em um processo de partes, centrado nas relações recíprocas que se estabelecem. Como se fosse uma fotografia, veremos inicialmente como estão consolidados os estatutos jurídicos dos sujeitos do processo, de acordo com o princípio acusatório. Depois, passaremos ao exame da dinâmica processual, isto é, como reagem os diversos sujeitos à ação dos demais. Equivale à tentativa de captar a atuação dos sujeitos como em um filme. A opção por este modo de análise tem vantagens e desvantagens de que se deve advertir o leitor. 148 Conso, Giovanni. Accusa e Sistema Accusatorio: Atti Processualli Penali, Capacità Processualle Penale, Milano: Giuffrè, 1961. 149 Dias, Jorge de Figueiredo. ―Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código de Processo Penal‖, in Jornadas de Direito Processual Penal, Coimbra: Almedina, 1992, p. 28. 150 Figueiredo Dias assinala para o defensor o estatuto jurídico próprio de um órgão de administração da justiça, atuando exclusivamente em favor do acusado (idem, p. 11). A principal vantagem – razão da eleição do método – está em permitir comparar aquilo que a ordem constitucional e as leis atribuem aos principais sujeitos do processo penal (visão ―estática‖ do que fazem o juiz, o Ministério Público, o querelante, o acusado e seu Defensor) e o que de fato estes sujeitos praticam a partir da cultura consolidada e com amparo na jurisprudência (perspectiva dinâmica). A desvantagem repousa na aparente ―repetição‖ de temas. Assim, por exemplo, o leitor observará que sobre a mutatio libelli (alteração da acusação) há uma apreciação de acordo com os poderes do juiz, do ponto de vista estático, e outra, complementar, quando se visualiza ―o processo em movimento‖. Atento a isso o leitor deverá cuidar de ―enquadrar‖ o exame das categorias do processo levando em conta a dupla perspectiva. 3.2.2.1. Da Perspectiva Estática do Processo: Poderes, Deveres, Direitos, Ônus e Faculdades dos Sujeitos Processuais I. DO JUIZ Carnelutti151 sublinha exatamente, na perspectiva estática do processo, que este pode ser visto como uma categoria que simultaneamente envolve, enlaça, uma série de relações jurídicas, ou seja, de poderes e deveres do juiz, das partes e de terceiros, visualizando-se sua dinâmica a partir do procedimento adotado, ou, dito de outra forma, da maneira como os atos processuais, em realidade, ordenadamente se sucedem. Sendo assim, a natureza verdadeiramente acusatória de um princípio processual constitucional demanda, para verificar-se, não só a existência de uma acusação (mesmo os 151 Carnelutti, Francesco. Derecho Procesal Civil y Penal, México: Editorial Pedagógica Iberoamericana, 1994. procedimentos inquisitoriais podem conviver com uma acusação), mas tanto, e, principalmente, que esta acusação revele uma alternativa de solução do conflito de interesses ou caso penal oposta à alternativa deduzida no exercício do direito de defesa, ambas, entretanto, dispostas a conformar o juízo ou solução da causa penal. Em outras palavras, ambas, acusação e defesa, surgem como propostas excludentes de sentença. Tal conformação só admitirá a influência das atividades realizadas pela defesa, se o juiz, qualquer que seja ele, não estiver desde logo psicologicamente envolvido com uma das versões em jogo. Por isso, a acusatoriedade real depende da imparcialidade do julgador, que não se apresenta meramente por se lhe negar, sem qualquer razão, a possibilidade de também acusar, mas, principalmente, por admitir que a sua tarefa mais importante, decidir a causa, é fruto de uma consciente e meditada opção entre duas alternativas, em relação às quais se manteve, durante todo o tempo, eqüidistante. Carnelutti assevera, pois, que justamente da contraposição entre acusação e defesa, perante um juiz imparcial, surgem as condições indispensáveis à eleição da melhor solução. Convém, nestes termos, reproduzir a preciosa lição do mestre italiano:152 La verdad es que si el desdoblamiento, del cual se há hablado, entre el juez y el ministerio público, o sea entre jurisdicción y acción, es necesario para la garantía de la imparcialidad y, com ésta, para la justicia del castigo, no es, sin embargo, suficiente. Al final, el juez debe tomar una decisión; y decidir quiere decir elegir... Es claro que tanto mejor está el juez en situación de elegir más claramente se le presentan delante las dos soluciones posibles. El peligro es que la duda 152 Carnelutti, Francesco. Derecho Procesal Civil y Penal, p. 302. no se le presente, no que él sea atormentado por ella. Ahora, bien, el medio para proponerle la duda es el contradictorio; ayuda aquí la raíz común (duo) de dubium y duellum. Per eso, la separación del ministerio público respecto del juez, es decir, de la acusación respecto del juicio, no basta para garantizar la justicia de este último. El ministerio público, si está solo junto al juez, es insuficiente. La acusación debe ser contrapesada y por eso integrada por la defensa. A posição equilibrada que o juiz deve ocupar, durante o processo, sustenta-se na idéia reitora do princípio do juiz natural — garantia das partes e condição de eficácia plena da jurisdição — que consiste na combinação de exigência da prévia determinação das regras do jogo (reserva legal peculiar ao devido processo legal) e da imparcialidade do juiz, tomada a expressão no sentido estrito de estarem seguras as partes quanto ao fato de o juiz não ter aderido a priori a uma das alternativas de explicação que autor e réu reciprocamente contrapõe durante o processo. Com efeito, o juiz que antecipadamente está em condições de ajuizar a solução para o caso penal (que em algumas hipóteses sequer foi objeto de pretensão do interessado), na prática torna dispensável o processo, pois tem definida a questão independentemente das atividades probatórias das partes, comportamentos processuais que devem ser realizados publicamente e em contraditório. Ocorre que o devido processo legal só constitui, de fato, mecanismo civilizado de resolução de causas se o resultado não puder ser determinado antecipadamente, isto é, só há processo penal real se no início do procedimento ambas as teses — de acusação e de resistência — puderem ser apresentadas em condições de convencer o juiz (Otto Kirchheimer153). 153 Kirchheimer, Otto. Justicia Política, México: Unión Tipográfica Editorial Hispano Americana, 1968. É claro que, nestes termos, o juiz não estará em condições de julgar e, portanto, deverá ser excluído e substituído, se não oferecer às partes suficiente credibilidade quanto à sua imparcialidade. A rigor, a imparcialidade do juiz é vista a partir de dois parâmetros: há os casos de impedimento, pelos quais se objetiva excluir o juiz que possa ter interesse no resultado da causa; e existem as hipóteses de suspeição, normalmente voltadas a permitir a substituição do juiz interessado nas partes. De modo geral, as questões que envolvem o primeiro conjunto — causas de impedimento — são impessoais, mas guardam certo vínculo direto com a pessoa do magistrado, enquanto as causas de suspeição são dotadas de caráter predominantemente pessoal (ex. da primeira: ter o juiz funcionado anteriormente, no mesmo processo, como perito; da segunda: ser o juiz amigo pessoal da vítima). No processo penal brasileiro a existência do inquérito judicial para apurar crimes falimentares – artigos 103 e seguintes do Decreto-lei n. 7.661/45 – instituía investigação criminal preliminar, preparatória para o exercício da ação penal condenatória, em tese dirigida pelo juiz154. Embora na prática o juiz pouco participasse do inquérito judicial, parece evidente que não ostentaria a qualidade exigida para exercer jurisdição, tal seja, a imparcialidade mencionada linhas Na tentativa de salvar a ―constitucionalidade‖ do inquérito judicial da falência autores chegaram a defender a existência de contraditório neste inquérito. Sustentou-se que o artigo 106 da antiga Lei de Falências previa a resposta do falido, em cinco dias, e que isso equivalia ao contraditório. Parece evidente que a noção de contraditório aí é bastante lmitada, comparável à idéia de contraditório no inquérito policial, no artigo 14 do Código de Processo Penal, que estabelece a possibilidade de o Delegado de Polícia realizar diligências requeridas pelo investigado. Em verdade, o procedimento do inquérito judicial era inquisitorial, conduzido pelo síndico da falência e pelo perito, com apoio do Ministério Público e na prática sob as ordens dos funcionários do cartório onde era processada a falência. Tudo, praticamente, sem intervenção do falido. Recomenda-se a leitura de Lei de Falências Comentada, 2ª ed., de Manoel Justino Bezerra Filho, São Paulo, RT, 2003, p. 346-7. 154 atrás.155 A Lei n. 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, que passou a regular a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária estabelece o inquérito policial como método de investigação, a ser instaurado por ordem do Ministério Público, nos termos do artigo 187, e fixa a competência do juiz criminal da jurisdição onde tenha sido decretada a falência, concedida a recuperação judicial ou homologado o plano de recuperação extrajudicial para processar e julgar o caso. Com isso, a Nova Lei de Falências aproxima-se do modelo constitucional, pois que de forma intencional cria as condições necessárias ao julgamento do caso com imparcialidade.156 Voltando à regra fundamental é preciso destacar, no entanto, que nas hipóteses de impedimento e suspeição a filosofia que orienta a preservação da imparcialidade deve cuidar de restringir os casos de recusa do juiz, desde que não prevaleça o pensamento autoritário que dedica ao magistrado função punitiva, em substituição àquela que as constituições lhe impõem juridicamente, tal seja, a de apreciar e resolver de forma isenta a questão levada a juízo. A questão da imparcialidade do juiz, conforme o princípio acusatório, contudo, não fica limitada aos termos postos anteriormente. O exercício da jurisdição, em um Estado Constitucional Democrático, está, tanto quanto o exercício de qualquer outro poder no âmbito deste Estado, condicionado a regras de impessoalidade. Não basta somente assegurar a aparência de isenção dos juízes que julgam as causas penais. Mais do que isso, é 155 Pelo artigo 109 do citado decreto, o juiz da falência era competente para receber ou rejeitar a denúncia. Somente depois de proferir essa decisão é que deveria transferir o processo para o juiz criminal (§2º). 156 Objeções acerca do conhecimento técnico de que deve estar dotado o juiz criminal, nestes casos, devem ser superadas pela idéia de que nos dias atuais os magistrados deverão estar continuamente se aprimorando e se preparando para as sofisticadas causas criminais com que se deparam. Isso, é evidente, sem prejuízo da prova técnica que caracteriza a maioria destes processos. necessário garantir que, independentemente da integridade pessoal e intelectual do magistrado, sua apreciação não esteja em concreto comprometida em virtude de algum juízo apriorístico. Trata-se aqui, talvez, de uma compreensão invertida da máxima pela qual não basta à mulher de César ser honesta. No caso, ao juiz não é suficiente parecer honesto; terá de sêlo verdadeiramente, inclusive do ponto de vista intelectual. Exemplo claro de causa de impedimento, derivada desta ordem de coisas, reside na impossibilidade de o juiz que tenha requisitado a instauração de inquérito policial vir a processar e julgar acusado em processo penal iniciado em razão desta investigação. Observe-se que nesta hipótese o juiz poderá se sentir habilitado a apreciar com isenção as teses que a Defesa venha a apresentar. Todavia, o réu não poderá confiar em um juiz que, independentemente de qualquer causa penal, já se manifestou a princípio pela existência de uma infração penal, ainda que ao nível de um juízo sumário, provisório e superficial. De fato, nestas circunstâncias, poderá haver inversão do ônus da prova, com o réu se sentindo impelido a demonstrar que o juiz inicialmente não tinha razão. A confiabilidade das partes na isenção do juiz emerge como condição de validade jurídica dos atos jurisdicionais. Ausente tal requisito estaremos diante de atos absolutamente nulos.157 Também por esse motivo o antigo inquérito judicial da falência, citado neste tópico, violava o princípio acusatório e era inconstitucional. II. DA ACUSAÇÃO Por igual, não se deve controverter a respeito do 157 Esta foi a conclusão do e. Superior Tribunal de Justiça no julgamento do RHC nº 4.769-PR, 6ª Turma (j. 7/11/1995 – RT 733/530), rel. Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, malgrado o e. Supremo Tribunal Federal não tenha se sensibilizado totalmente com a tese (Habeas Corpus nº 68.784, 1ª Turma, rel. Min. Celso de Mello, DJU 26/3/1993, p. 5.003). significado e alcance daquilo que se entende por acusação. Não se trata, a nosso juízo, somente de oferecer uma petição inicial, em processo penal pelo qual se pretenda a condenação de alguém. Não se resume a isso, a só um ato, de acordo com Conso,158 mas, sem dúvida, acusar implica em referir-se a uma função e ainda a um órgão, a um conjunto de atos e a um determinado sujeito. Conso, todavia, assevera que acusação e ação penal condenatória não se confundem, uma vez que haveria, em algumas situações excepcionais, acusação sem exercício da ação penal.159. É necessário ter em mente que a acusação cuida da atribuição de uma infração penal, em vista da possibilidade de condenação de uma pessoa tida provavelmente como culpável, enquanto a ação penal consiste em ato da parte autora, concretado por sua dedução formal em juízo. Conso refere-se, indiscutivelmente, ao processo penal de ofício, muito semelhante ao procedimento penal brasileiro previsto para as contravenções e crimes de homicídio e lesões corporais culposos, a partir do artigo 531 do Código de Processo Penal, e da Lei no 4.611/65, não recepcionados pela Constituição da República em vigor.160 Cremos, no entanto, que, se acusação e ação penal 158 Conso, Giovanni. Accusa e Sistema Accusatorio: Atti Processualli Penali, Capacità Processualle Penale, p. 7. 159 Idem, pp. 13-14. 160 O desaparecimento dos processos condenatórios instaurados de ofício, pelo juiz, por auto de prisão em flagrante ou portaria, e ainda iniciados da mesma forma pela autoridade policial (artigo 531 do Código de Processo Penal), não fez desaparecer o procedimento sumário. No caso, caberá ao titular da ação penal iniciar o processo mediante oferecimento de denúncia (artigo 129, I, da Constituição da República) ou queixa (ação penal privada) e depois disso o procedimento seguirá com o recebimento da inicial, citação e interrogatório do acusado, audiência das testemunhas arroladas pela acusação e audiência de instrução e julgamento, com a inquirição das testemunhas arroladas pela Defesa e a apresentação de alegações finais orais. Este procedimento está expressamente indicado na Nova Lei de Falências (artigo 185 da Lei n. 11.101/05) e será aplicado exceto no caso de infração penal de menor potencial ofensivo contemplado na citada lei. podem não se confundir, haja vista o fenômeno da jurisdição sem ação, acima mencionado, o certo é que o princípio acusatório funde acusação e ação penal, justamente por não admitir a existência de processo condenatório sem iniciativa da parte autora (nemo iudex sine actore), e, em vista dele, somente se a ação penal for proposta e desenvolvida ao longo do processo haverá, após a contraposição da atividade de defesa, autorização jurídica para a prolação de decreto condenatório. Aqui não é lugar (ou hora) para a crítica sobre o conceito de ação transplantado do processo civil para o penal. Ainda assim, é conveniente que sejam feitos alguns esclarecimentos. O leitor perceberá que as ações condenatórias que se entrega ao Ministério Público, no Brasil, são obrigatórias (desde que haja indícios de autoria e da existência da infração penal). Como o conceito de ação elaborado pelo processo civil, em fins do século XIX, estava historicamente vinculado ao de direito subjetivo, para atender a exigências políticas concretas fundadas na ideologia liberal da época, as marcas dessa categoria (ação civil) foram igualmente transmitidas à ação penal. O simples fato de colocar o Ministério Público no lugar da vítima simboliza a impropriedade de pensar a ação penal nos moldes liberais de defesa de direitos disponíveis (origem da noção do direito de ação civil). Até mesmo nos sistemas jurídicos que adotam o princípio da oportunidade da ação penal pública (o Ministério Público tem margem de decisão sobre acusar ou não), a ―liberdade‖ do Ministério Público é inconfundível com a ―faculdade‖ do autor civil. A liberdade do Ministério Público estará sempre dirigida pelo princípio da legalidade, protegendo a comunidade das decisões pessoais de cada integrante da referida instituição, enquanto as motivações estritamente pessoais podem estar na base da decisão de não se promover a ação civil clássica. No entanto, a decisão de instaurar um processo penal condenatório será de um sujeito distinto do juiz. A nosso juízo, o princípio acusatório, avaliado estaticamente, consiste na distribuição do direito de ação, do direito de defesa e do poder jurisdicional, entre autor, réu (e seu defensor) e juiz. Tal consideração conduz ao esclarecimento, pelo menos sucinto, do que se considera direito de ação penal condenatória. Vale a pena tornar a sublinhar que para a maioria dos doutrinadores o direito de ação é concebido como direito público subjetivo, instrumentalmente conexo à pretensão de exigir do Estado a prestação jurisdicional, em determinado caso concreto, isso ao menos desde a evolução iniciada em meados do século XIX, com o desdobramento das posições ardorosamente defendidas por Windscheid (La acción del derecho civil romano desde el punto de vista del derecho actual) e Muther (Zur Lehre von der Römischen Actio),161 passando por Adolf Wach, até chegar aos dias de hoje. Não se esgota, porém, na simples provocação do Estado, primeiro ato do exercício do citado direito.162 Assim compreendido o direito de ação - e naturalmente o direito de defesa – aquele foi percebido por Ada Grinover como não limitado ao poder de impulso, e, no caso da defesa, ao recurso às exceções, englobando o conjunto de garantias que, no arco de todo o procedimento, asseguram às partes a possibilidade bilateral, efetiva e concreta, de produzirem suas provas, de aduzirem suas razões, de recorrerem das decisões, de agirem, enfim, em juízo para a tutela de seus direitos e interesses.163 Visto dessa forma, pode-se acrescentar, relativamente à ação penal condenatória, que, ao atribui-la a sujeitos distintos daquele que julgará o pedido formulado — seu principal elemento e junto com a ―causa de pedir‖ 161 Chiovenda, Giuseppe. La Acción en el Sistema de los Derechos, Bogotá: Temis, 1986. Muther, Theodor e Windscheid, Bernhard. Polemica Sobre La ―Actio‖, Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1974. 162 Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. I, pp. 282-291; Afrânio Silva Jardim, Ação Penal Pública: Princípio da Obrigatoriedade, p. 33; e Grinover, As Garantias Constitucionais, ob. cit. 163 Grinover, O Processo Constitucional em Marcha, p. 11. corporificação da acusação —, obedece-se também a uma lógica de distribuição de funções que respeita a divisão entre os poderes do Estado, bem ao estilo proclamado por Montesquieu, como observa, percucientemente, Karl-Heinz Gössel.164 Assim compreendida a ação penal, o princípio acusatório postulado demandará, para sua real fixação, na via do autor, a determinação de algumas premissas: • o direito de ação, tanto como o de defesa, está voltado à conformação da decisão jurisdicional, em um caso penal concreto; • é exercitado por pessoa ou órgão distinto daquele constitucionalmente incumbido de julgar; • não se limita a iniciar o processo, pois o autor pretende ver a pretensão que deduz reconhecida, embora o não-reconhecimento não implique em afirmar-se a inexistência do direito de ação; • inclui, por certo, o direito de provar os fatos que consubstanciam a acusação deduzida e de debater as questões de direito que surgirem; • a acusação integra o direito de ação e, na medida em que dela se defenderá o acusado, delimita o objeto da contenda, tal seja o objeto pretensamente litigioso do processo; • e, por fim, legitima o autor a preparar-se adequadamente para propô-la, na medida em que, afetando gravemente o status dignitatis do acusado, não deve decorrer de um ânimo beligerante temerário ou leviano, mas fundar-se em uma justa causa (indícios de autoria e da existência da infração penal). Com efeito, visto pela perspectiva do direito de ação o princípio acusatório inclui entre seus elementos o princípio 164 Gössel, Karl-Heinz. ―Ministerio Fiscal y Policia Criminal en el Procedimiento Penal del Estado de Derecho‖, in Cuadernos de Política Criminal, nº 60, Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, 1996, pp. 614616. da demanda, que não se confunde com o princípio dispositivo, corrente no processo civil, bem como não lhe é contraposto, em que pese a opinião de alguns autorizados doutrinadores165. Da mesma maneira, enquanto princípio de iniciativa do processo, não está prejudicado pela obrigatoriedade da ação penal, no caso brasileiro, da pública. Para efeito de distinguir o princípio acusatório do dispositivo é precioso assinalar quais são os elementos habitualmente invocados como componentes do segundo, como o faz Barbosa Moreira,166 sublinhando os pontos sensíveis da problemática, que envolvem, quase sempre, os seguintes aspectos: iniciativa da instauração do processo; delimitação do objeto do litígio e do julgamento; impulso processual; aquisição do material de fato e de direito a ser utilizado na motivação da sentença; extinção do processo por ato dispositivo. Conforme aduz o ilustre processualista, a doutrina alemã caminhou em direção à tendência de distinguir duas classes de situações, uma relacionada com a liberdade do titular do direito de utilizar ou não o instrumento do processo para a respectiva vindicação, outra com o modo de funcionar do mecanismo processual no tocante aos fatos e à prova destes,167 prevalecendo, atualmente, a concepção em relação à qual por princípio dispositivo compreende-se o poder de decidir sobre a instauração do processo, respectiva subsistência, e delimitação do litígio, enquanto um princípio de debate se caracterizaria pelos poderes de aquisição e introdução das provas no processo. Badaró irar usar as expressões princípio dispositivo material e princípio dispositivo processual para distinguir as mesmas 165 Chiavario, Mario. Processo e Garanzie Della Persona, p. 5. É valioso investigar a conceituação aceita por Gustavo Badaró acerca do princípio dispositivo. Ônus da Prova no Processo Penal, São Paulo, RT, 2003, p. 96 100. 166 Moreira, José Carlos Barbosa. O Problema da Divisão do Trabalho entre Juiz e Partes, p. 35. 167 Moreira, José Carlos Barbosa. Ob. cit., pp. 39-40. situações.168 Finalmente, há, na referida resenha de Barbosa Moreira, menção ao princípio da demanda, sob a designação de parteibetrieb, integrado pelo poder de instauração do processo, diferente do princípio dispositivo stricto sensu, visto como poder de dispor sobre o objeto do processo já pendente. Pensamos que, por princípio dispositivo, há de se entender aquele que permita dispor sobre o objeto do processo em tramitação, não sendo caracteristicamente acusatório ou inquisitório. Em processo por crime de ação penal privada, conforme o Direito brasileiro, ocorrerá a perempção, por exemplo, sempre que o autor abandonar o processo (artigo 60 do Código de Processo Penal), implicando em verdadeira disposição sobre o conteúdo deste. De outra maneira, não é impensável um procedimento inquisitorial, iniciado para apurar o cometimento, por alguém, de uma infração penal, que não se conclua por deliberação exclusiva do juiz-inquisidor, motivado por questões de política criminal. É bem verdade que principalmente no direito estrangeiro há quem vincule o princípio dispositivo ao princípio acusatório, em virtude da possibilidade de retirada da acusação ou pedido de absolvição influindo na determinação da concreta providência a que o tribunal estaria conectado.169 A nosso juízo, porém, a questão corretamente enfocada envolve a natureza do direito material em disputa e a consideração que se faça, em um determinado contexto histórico e político, a respeito do titular deste direito. Como atualmente predomina a concepção da natureza 168 Badaró, ob. cit., p. 97-98. 169 Asencio Mellado, José Maria. Principio Acusatorio y derecho de defensa en el proceso penal, Madrid: Trivium, 1991, p. 22. É a posição de Paulo Rangel, em Direito Processual Penal, 8ª edição, Rio de Janeiro, Lumen Juris, p. 63-65. pública do conflito de interesses penal, que se transforma em caso penal, sendo a sanção penal170 pública e portanto resultante de uma atribuição estatal, a vedação cada vez menos rigorosa à disponibilidade do conteúdo do processo penal está guiada pela assunção do interesse público subjacente. Diferente seria se inseríssemos a ação penal condenatória em um contexto meramente formal, em virtude do qual pudéssemos confundi-la exclusivamente com o poder de iniciativa, quando então todos os demais atos, dos quais os de instrução são talvez o principal exemplo, ficassem à mercê dos poderes de investigação do juiz. Não haveria aí disponibilidade do conteúdo do processo não porque a natureza jurídica do direito material levado à pugna a interditasse, mas por força de ser o juiz e não o dominus litis, isto é, o Ministério Público, a personificação do Estado como titular do direito material em questão. E a rigor quem não é o titular do direito dele não pode abdicar. Também seria diferente se admitíssemos a retirada da própria acusação e, apesar disso, a emissão de sentença de mérito pelo juiz. Neste outro caso, teríamos de concordar com Mellado e assinalar que a decisão judicial importaria em verdadeiro exercício de acusação de ofício, pelo tribunal.171 Mas como o critério de disponibilidade deve ser ditado pelo direito positivo, levando em conta a natureza do direito de punir (aspecto material e não processual), vinculando obrigatoriamente o Ministério Público naqueles casos reputados de prevalecente interesse público pelo legislador, o princípio dispositivo em si, relacionado com a disposição sobre o objeto do processo, não integra ou se opõe ao princípio acusatório, sendo importante, porém acidental. A prevalência do interesse público tem a ver com a inibição da iniciativa particular a remarcar o caráter não vingativo mas de composição do processo penal. 170 A sanção penal é tomada como conseqüência jurídica da infração penal perseguida pela atividade processual do autor da ação penal. 171 Asencio Mellado, José Maria. Ob. cit., p. 23. Isso não significa dizer que o juiz está autorizado a condenar naqueles processos em que o Ministério Público haja requerido a absolvição do réu, como pretende o artigo 385 do Código de Processo Penal brasileiro172. Pelo contrário. Como o contraditório é imperativo para a validade da sentença que o juiz venha a proferir, ou, dito de outra maneira, como o juiz não pode fundamentar sua decisão condenatória em provas ou argumentos que não tenham sido objeto de contraditório, é nula a sentença condenatória proferida quando a acusação opina pela absolvição.173 O fundamento da nulidade é a violação do contraditório (artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República). Como destaca Badaró, ―a regra da correlação entre acusação e sentença é uma decorrência do princípio do contraditório‖.174 Avançando sobre o tema, o culto professor paulista sublinha que, na atualidade, não é correto limitar a idéia – e o alcance – do contraditório apenas ao debate sobre questões de fato.175 Também as questões de direito estão afetas ao contraditório, pois que podem estar marcadas pela controvérsia a ser esclarecida mediante escolha entre duas ou mais teses pertinentes ao mesmo tema.176 172 O texto no corpo do livro, seguinte à nota, foi incluído na terceira edição para sanar qualquer dúvida acerca da posição do autor sobre o tema. 173 Não é este o entendimento do Supremo Tribunal Federal. No acórdão proferido em HC 82.844/RJ, 2ª Turma, Relator Min. Nelson Jobim, publicado em 28/05/04, fixou-se que é significativo o fato de o Ministério Público ter sugerido a absolvição do réu, sugestão acatada pelo juiz de primeiro grau, para determinar a absolvção. No caso o Assistente do Ministério Público recorreu da sentença absolutória e obteve a condenação em segundo grau. Esta condenação foi atacada por Habeas Corpus. 174 BADARÓ, Gustavo Henrique R. Ivahy. Correlação entre acusação e sentença, São Paulo, RT, 2000, p. 27. 175 Idem, p. 32. 176 Exemplo disso é a questão sobre a insignificância de determinada ação não negada pelo réu. O único debate no processo pode ser acerca da qualificação de comportanto insignificante – e atípico – ou não. Negar o contraditório sobre este ponto é esvaziar o princípio constitucional e retornar ao tempo do Assim, quando em alegações finais o Ministério Público opina pela absolvição do acusado o que ocorre em concreto, no processo, é que o acusador subtrai do debate contraditório a matéria referente à análise das provas que foram produzidas na etapa anterior e que possam ser consideradas desfavoráveis ao réu. Como a defesa poderá reagir a argumentos que não lhe foram apresentados? Esta é, em resumo, a posição de Santiago Martínez, ao avaliar a posição dos tribunais argentinos sobre o assunto.177 É interessante notar certa peculiariade do processo penal brasileiro: a figura do Assistente de Acusação. Com previsão no artigo 268 do Código de Processo Penal, o Assistente poderá habilitar-se ao processo e participar dos atos processuais. Em alegações finais o Assistente se pronunciará antes da Defesa. Nestes termos, se o Assistente do Ministério Público, devidamente habilitado, se pronunciar em alegações finais pela condenação, opondo argumentos que poderão ser respondidos pela Defesa, a exigência do contraditório terá sido atendida. No caso do direito brasileiro o ofendido fiscaliza a obrigatoriedade do exercício da ação penal pública (artigo 5º, inciso LIX, da Constituição da República). Essa fiscalização é realizada, via de regra, por meio da ação penal privada subsidiária da pública (artigo 29 do Código de Processo Penal). Todavia, se a ação pública foi oportunamente proposta, fica para o ofendido apenas a possibilidade de acompanhar o processo, habilitando-se como assistente178. Caso não o faça, creio que estará paleopositivismo, abandonado pela ideologia de princípios da Constituição da República de 1988, no Brasil. 177 MARTÍNEZ, Santiago. La acusacion como presupuesto procesal y alegato absolutorio del Ministerio Publico Fiscal,: observaciones sobre una cuestión recurrente, Buenos Aires, Fabian J. Di Placido, 2003. 178 Por coerência sistêmica não se pode esquecer que o direito de ação é exercido pelo Ministério Público ao longo do processo, não se esgota com a apresentação da denúncia. Assim, além da inércia inicial, superável pelo oferecimento de queixa substitutiva da denúncia (artigo 29 do Código de impedido de recorrer da sentença absolutória, apesar dos termos do artigo 598 do Código de Processo Penal, pois a condenação em segundo grau violará, ela própria, o contraditório e a correta função do segundo grau, definida no Pacto de São José da Costa Rica, que prevê recurso exclusivo da Defesa. Voltando ao ponto inicial: nos processos inquisitórios nada obsta a que o juiz/acusador desista do processo e o encerre mediante arquivamento. Isso não transformará o processo inquisitório em acusatório. No processo acusatório, porém, o juiz não poderá condenar o réu diante de um requerimento/alegação final do acusador (Ministério Público ou querelante) pela absolvição, sob pena de ofender o contraditório. Ultrapassada esta fase, as demais questões são, a nosso juízo, próprias do princípio acusatório, uma vez que se referem ao poder de iniciativa (demanda, com exclusão, portanto, da atuação inquisitorial do juiz), delimitação do objeto (por meio da acusação, elemento da própria ação penal) e demonstração da verdade dos fatos e argumentos (direito à prova).179 Por sua vez, a oficialidade do processo penal condenatório e a obrigatoriedade da ação penal pública, Processo Penal), há também a possibilidade de inércia superveniente, a ser combatida pela atuação do Assistente. 179 Em excelente trabalho, intitulado Direito à Prova no Processo Penal, Antonio Magalhães Gomes Filho traça o perfil do que conceitua como direito à prova, lembrando que a inserção da figura do juiz, como protagonista da tarefa de aquisição das provas, representou uma postura metodológica fundada no escopo específico do processo, subordinado ao ideal de defesa social contra a delinqüência, e inspirado num conceito de Estado que pretendia organizar a vida dos indivíduos e conduzir a sociedade. Por sua vez, a aceitação da prova como direito das partes, conseqüente aos direitos de ação e de defesa, pressupunha uma organização estatal preocupada apenas em manter o equilíbrio social, preservando a autodeterminação dos indivíduos. Acatando-se uma visão não interventiva do Estado, no campo processual, chega-se, conforme Gomes Filho, a uma concepção de prova como argumentum, que não pode prescindir do momento de persuasão, sendo a verdade por ela perseguida própria das coisas humanas, que sem a pretensão de ser absoluta, não exclui uma probabilidade contrária, mas é escolhida por razões de caráter ético (O Direito à Prova no Processo Penal, São Paulo: RT, 1997, p. 39). malgrado reflitam uma postura de preocupação com o valor segurança e, por igual, intransigência referente à apuração e repressão das infrações penais, não desnaturam a acusatoriedade do processo, na medida em que a ação penal não é deduzida por quem haverá de julgá-la, não implicando sempre, ou necessariamente, em que o réu se veja diminuído em suas condições de resistência. Neste sentido, Navarrete tem completa razão ao frisar que, frente a tendências doutrinárias amparadas principalmente no modelo alemão, alguns doutrinadores opõem-se, sem razão, ao reconhecimento de um processo de partes, salientando unicamente a existência de partes formais.180 Tal concepção, sob a ótica de Navarrete, não reproduz a verdade dos fatos, porquanto o órgão acusador funciona substancialmente como parte, interessado no proveito de direito material perseguido, em virtude do qual atuará durante o processo.181 Esta é, também, a razão por que há de ser prestigiada a autonomia do acusador (Ministério Público ou ofendido), até mesmo no que respeita à convicção da ausência do suporte mínimo probatório ou da presença de algum fator 180 Lorca Navarrete, Antonio María. El Proceso Penal de La Ley de Enjuiciamiento Criminal, p. 52. 181 Em realidade, se Carnelutti está certo, quando assevera que a atitude de advocatus diaboli, adotada pelo Ministério Público, ao início e durante o processo penal, é imprescindível à conformação dialética do processo de partes (e à operação do princípio acusatório, acrescentamos), motivo por que deve resultar de uma autêntica convicção do órgão de acusação sobre a procedência do seu pedido. É inegável, também, a correção da tese contida na observação de Jorge de Figueiredo Dias, no sentido de que, ao Ministério Público interessa incondicionalmente o descobrimento da verdade e aplicação da justiça, atendendo a critérios de estrita legalidade e objetividade. Em vista disso, compreende-se possa o Promotor de Justiça pedir a absolvição do acusado se, ao final do processo, estiver convencido da inocência dele, ou recorrer a favor do condenado. Nestas duas hipóteses, não há prejuízo à máxima acusatoriedade possível, isto porque, ao longo do processo de conhecimento, funcionou plenamente a estrutura dialética, ensejando a produção, em síntese, de um convencimento oposto ao da pretensão deduzida mas conforme os princípios de justiça, a que o Ministério Público rende vassalagem (Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código de Processo Penal, p. 25). juridicamente inibidor da propositura da ação penal. Assim, o juiz fica excluído, por imperativo lógico, da tarefa de controlar o princípio processual da obrigatoriedade, quando exigível, nos casos de não-exercício da ação penal182. Acrescente-se, por oportuno, ao ensejo de se conceber um princípio de obrigatoriedade, que não exclui a acusatoriedade nem com ela se confunde, mas se contrapõe tão-somente aos princípios de conveniência e 183 oportunidade , que tal obrigatoriedade impelirá o órgão de acusação a se interessar pelo desenvolvimento das investigações criminais necessárias à colheita de material que sirva ao propósito de demonstrar a viabilidade da pretensão que se deseja deduzir. Sendo assim, ainda na fase pré-processual é possível vislumbrar o princípio da acusatoriedade, o qual aparecerá sempre que, de algum modo, o titular da ação penal atuar com vista à aquisição de elementos de formação da convicção judicial, mesmo que superficial, voltada ao recebimento da denúncia ou queixa. É imperioso ressaltar, sobre este tópico, que também o princípio acusatório, refletindo o duelo entre acusação e defesa, obstará o reconhecimento da validade dos meios de prova adquiridos e conservados nesta fase pré-processual, salvo no tocante ao objetivo de conferir suporte mínimo probatório à pretensão ou se a defesa intervier, plenamente, corroborando para a sua aquisição, em atividade antecipatória da aquisição e preservação de provas para o futuro, sob o signo do contraditório, conforme o modelo das providências cautelares. III. DA DEFESA É a posição de Marcellus Polastri Lima, avançada em Curso de Processo Penal, vol. 1, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002, p. 147-150, neste passo simétrica a de Paulo Rangel (Direito Processual Penal, op. cit., p. 182). 183 Princípios que, de acordo com determinados modelos, conformam o chamado espaço de consenso. 182 Por sua vez, sobre a Defesa é válido relembrar a lição de Jorge de Figueiredo Dias, referida anteriormente: compreende-se como categoria aberta, à qual devem ser imputados todos os concretos direitos, de que o arguido dispõe, de co-determinar ou conformar a decisão final do processo.184 Isso coloca o acusado, e, dadas as especificidades técnicas relativas ao mecanismo de codeterminação e conformação da decisão judicial, também seu defensor, na condição de sujeitos de direitos, deveres, ônus e faculdades. É preciso pontuar a tendência acentuada, revelada nos últimos anos, de comprimir o espaço do direito de defesa no processo penal. Ora o direito de defesa é substituído por comportamentos processuais do acusado, aos quais se atribui eficácia jurídica no plano da resolução da questão principal — assim são as chamadas soluções de consenso —, ora pura e simplesmente este espaço é reduzido, a pretexto de controlar as formas graves de criminalidade que estão se manifestando nos dias atuais. Como ao nosso juízo o princípio acusatório se distinguirá do inquisitivo não somente em virtude da diferenciação forçada entre acusação e julgamento, portanto, entre acusador e juiz, tarefas a cargo de sujeitos que não se confundem, entrará em cena aí a problemática derivada das novas maneiras de o imputado participar do processo. Com efeito, desde o início salientamos que a legitimidade democrática do processo penal - e da solução que ele adjudica - depende do valor de verdade consubstanciado na sentença. A verdade é aí concebida como relação possível ou adequada entre a imagem que o juiz constrói acerca do fato e a forma real como este fato supostamente ocorreu. É claro, tivemos a oportunidade de ressaltar, que a verdade que se pode alcançar no processo e que oporá esta forma de solução, baseada no saber, a outras, fundamentadas em convicções de variada natureza, é contingente e histórica e 184 Ver nota nº 122. dependerá de o Estado atuar ele próprio conforme o Direito. Daí, no entanto, é impossível conceber soluções de natureza penal que não levem em conta tal verdade, contentando-se com comportamentos processuais do imputado, pois quando isso ocorre termina anulada a atuação da Defesa em busca da efetivação da contraposição dialética no processo. A marca característica da Defesa no processo penal está exatamente em participar do procedimento, perseguindo a tutela de um interesse que necessita ser o oposto daquele a princípio consignado à acusação, sob pena de o processo converter-se em instrumento de manipulação política de pessoas e situações. O espaço de consenso deve ser medido cuidadosamente, para evitar prejuízo ao princípio acusatório, observando ao menos: a) que a publicidade interna do procedimento no interior do qual se pretende desenvolver a solução consensual não seja restringida. Restrição dessa ordem equivale a recusar ao imputado acesso a informações vitais para balisar sua conduta processual e isso independe da formalização da condição de acusado; b) que o imputado tenha à sua disposição todas as informações necessárias a respeito do significado da adoção dos comportamentos processuais possíveis, com esclarecimentos acerca das conseqüências de adotar tal ou qual caminho; c) que o imputado possa até mesmo agregar informações relevantes para que se decida sobre a conveniência da aplicação das medidas consensuais, exercitando contraditório compatível com a espécie de procedimento simplificado, que de um modo geral identifica as espécies de solução de consenso; d) finalmente, que não haja redução ou eliminação da presunção de inocência, com inaceitável inversão do ônus da prova mediante pressão sobre o imputado para que aceite soluções consensuais, muitas vezes orientadas pragmaticamente ao fim de desafogar os serviços judiciários, com independência da justiça das composições185. O princípio acusatório pode igualmente aparecer prejudicado de forma séria, no plano da Defesa, quando estivermos diante das modalidades de procedimento cujo objeto se caracteriza por ser infrações penais consideradas graves. Com efeito, a limitação da publicidade interna do procedimento afeta primordialmente o contraditório e deste modo atinge as posições defensivas, impedindo o imputadoacusado e seu Defensor de terem acesso a informações importantes, de poderem contrariá-las e, destarte, de contribuírem para a formação da convicção do juiz. As estratégias de combate à criminalidade organizada, por meio da infiltração de agentes policiais, do estímulo à cooperação de arrependidos e, principalmente, por conta das restrições que impõem à publicidade interna do processo, negando ao imputado participação nos procedimentos preliminares, mesmo quando se trata de medidas de natureza cautelar, correspondem a métodos pré-modernos de atuação da justiça penal cujo propósito é tornar efetivo o direito penal a qualquer preço.186 Note-se que há significativa diferença entre a necessária 185 A violação da presunção neste caso ocorre quando o juiz ou o Ministério Público advertem o autor do fato (artigo 76 da Lei n. 9.099/95) para os riscos de recusar a proposta de aplicação direta de pena e partir para o processo tradicional. Essa ―advertência‖ embute consideração prévia da ―culpa‖ do investigado, pessoa que segundo a Constituição da República deve ser tratada como inocente (artigo 5º, inciso LVII). 186 De algum modo, todas estas formas eram conhecidas ao tempo em que predominava, na Europa Ocidental, o processo inquisitorial de influência eclesiástica. O e. Supremo Tribunal Federal tem enfrentado com freqüência a questão e decidido pela inoponibilidade do sigilo do inquérito policial ao advogado do indiciado. HC 82354 / PR – PARANÁ HC - Relator: Ministro Sepúlveda Pertence. 1ª Turma. Julgamento em 10 de agosto de 2004. Publicação: DJ DATA-24-09-2004 PP-00042 EMENT VOL-02165-01 PP00029. busca de suporte probatório, pelo acusador, para posteriormente deduzir sua acusação, e as atuações durante a fase preliminar, voltadas à limitação ao exercício de direitos fundamentais do imputado. Há atos de investigação que precisam permanecer sob sigilo, durante algum tempo, sob pena de fracassarem os fins da própria investigação. Entre eles não se inclui, certamente, a produção antecipada de provas, que somente estará justificada diante do risco de perda da prova em virtude da natural demora do processo, e as ações que visam restringir o exercício de direitos fundamentais do imputado — tais como a prisão processual e a interceptação das comunicações telefônicas —, que só poderão ter validade jurídica se submetidas ao contraditório pelos menos diferido, isto é, realizado em um momento posterior ao da adoção da providência187. Com isso, a compatibilidade com o princípio acusatório dependerá de a Defesa concretamente estar em condições de participar em contraditório do processo com as características acima mencionadas. Os atos de natureza cautelar que são levados a cabo sem audiência prévia da parte contrária - inaudita altera pars -, dependerão do contraditório a posteriori para estarem revestidos de validade jurídica. De todo modo, quando as condições de participação da Defesa são canceladas, os atos eventualmente realizados podem estar entre dois extremos: são simplesmente informativos, e o juiz não poderá considerá-los no processo. Quando muito os levará em conta para ajuizar a presença de justa causa para a ação penal; ou não valerão de modo algum. Nesta categoria será possível inscrevermos a 187 O procedimento das interceptações é autuado em apartado, nos termos da Lei n. 9.296/96. Permanece em sigilo durante o período de captação das conversas telefônicas (prazo de quinze dias, prorrogável por mais quinze) e depois deve ser objeto de controle dos interessados. Ver do autor o livro Limites às Interceptações Telefônicas e a Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005. denominada delação premiada188, isoladamente insuscetível de ser alcançada pelo contraditório, pois contrapõe com exclusividade versões apresentadas por interessados, sendo meramente uma questão de fé o convencimento dela derivado. Também neste âmbito se enquadra a infiltração, medida que consiste, do ponto de vista filosófico, no fato de o Estado permitir aos seus agentes que participem pelo menos do crime de formação de quadrilha a pretexto de controlar e combater a criminalidade. A par da grave concessão de ordem ética, haverá sempre a possibilidade de se atribuir a priori valor superior às informações adquiridas desta maneira em oposição aos demais elementos de convicção introduzidos no processo pelas partes, reconduzindo o sistema das provas tarifadas ao ambiente processual, dissimuladamente189 Por fim, ressalte-se que a atuação do imputado e de seu Defensor deverá se projetar no processo de execução penal, porque nele o comando contido na sentença poderá tornarse realidade. Da participação efetiva da Defesa na execução penal dependerá a natureza processual, ou apenas administrativa, desta modalidade de procedimento. 188 Há vários dispositivos legais que cuidam da delação premiada. O mais abrangente está definido no artigo 14 da Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999, pelo qual é possível reduzir a pena em até dois terços, desde que o acusado haja colaborado voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal, visando a identificação de co-autores e partícipes, a localização da vítima com vida e a recuperação total ou parcial do produto do crime. O artigo 13 da citada Lei chega a prever o perdão judicial para o agente colaborador, desde que a personalidade do beneficiado, a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso indiquem a conveniência da medida. 189 O texto Da Lei de Controle do Crime Organizado: Crítica às Técnicas de Infiltração e Escuta Ambiental, publicado originalmente no Livro Escritos de Direito e Processo Penal em Homenagem ao prof. Paulo Cláudio Tovo (Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002), sob coordenação de Alexandre Wunderlich, está ao fim, como Anexo I. Trata da matéria e o autor acredita que será útil complemento ao que está sendo examinado neste trabalo. 3.2.2.2. Da Perspectiva Dinâmica do Processo: Da Atuação dos Sujeitos Processuais Na linha do que se refere ao autor, ao acusado e ao juiz, considerados estaticamente, são essas a nosso juízo as principais observações. Como foi sublinhado antes, é hora de passarmos ao exame da dinâmica processual e ver como reagem os diversos sujeitos à ação dos demais. Equivale à tentativa de captar a atuação dos sujeitos como em um filme. É válido, no entanto, acrescentar, pelo que há de comum a acusado e acusador, que a modalidade de configuração dos respectivos estatutos jurídicos, erguida em bases de liberdade com responsabilidade, caracteriza a moderna concepção das partes como sujeitos do processo penal. Começaremos pelo estatuto da Defesa em movimento, porque este é, em nossa opinião, o que mais diretamente sofre com as ―novas‖ interpretações que de um lado resgatam a inquisitorialidade e do outro vestem com figurino acusatório o que necessariamente não é. Como parece que o fenômeno decorre da prevalência da ideologia de lei e ordem, para restringir os direitos da Defesa no processo, como afirmamos na última parte do item 3.2.2 III, é oportuno examiná-lo em primeiro lugar. I. -O Estatuto da Defesa em Movimento: O Conflito entre os Interesses do Defensor e do Acusado e o Limite às Soluções de Consenso Com efeito, sobre o acusado deve-se sublinhar, com reservas, que não corresponde ao anseio de justiça qualquer proposta fundada na idéia de que não possa dispor da capacidade de autodeterminação, que não é um direito, mas uma característica inerente à sua condição de ser humano. Pode, pois, em uma lógica não-paternalista, mas responsável desde que consciente da situação gerada pelo processo e dos cenários hipotéticos que a eleição de algumas alternativas de comportamentos poderá implicar, escolher mesmo soluções que resultem na disposição sobre o conteúdo do processo acusatório. É claro que em um Estado Democrático, que aspira a consecução da máxima justiça social, tais eleições inspiramse no propósito de resolução justa dos conflitos de interesses penais, razão pela qual a lógica da produtividade, verificada em ordenamentos jurídicos coincidentemente acusatórios, não é válida. Não se trata de viabilizar acordos penais para aumentar o número de pessoas condenadas. Ponderando-se, porém, os bens e interesses em jogo com a disciplina da autodeterminação de um ser, que compreende em seu particular estatuto essa característica como essencial, é válido considerar a importância e o relevo que tem a vontade do acusado para o desfecho de um processo penal de natureza acusatória. O limite das possibilidades da autodeterminação no campo jurídico-penal se põe principalmente quando outra característica inerente à condição de ser humano puder ser suprimida, tal como, por exemplo, a liberdade pessoal. Entre as edições anteriores do Sistema Acusatório e a atual (3ª) há o hiato no qual foi pesquisado e produzido o livro Elementos para uma Análise Crítica da Transação Penal, fruto de tese de doutorado. As conclusões da pesquisa, para a qual remeto o leitor, recomendam cuidado na interpretação e reconhecimento do espaço de decisão de que o acusado pode dispor acerca de uma série de direitos e garantias processuais que lhe são assegurados pela Constituição da República e pelos tratados internacionais de direitos humanos. Assim, o afastamento do paternalismo no tratamento dispensado ao acusado não pode levar a supor que as condições concretas de funcionamento do Sistema Penal proporcionem igualdades de toda natureza, a ponto de ser sempre considerada válida a decisão pessoal de não se defender! As desigualdades materiais não desaparecem por decreto, como a história não chega ao fim simplesmente porque um cientista social decreta o ―fim da história‖! E a criminologia crítica irá demonstrar que as desigualdades sociais no mínimo são responsáveis pela definição da criminalidade de determinados setores da sociedade. O emprego do poder de selecionar condutas delituosas está na base do princípio da reserva legal, mas na realidade os Parlamentos contemporâneos ainda o põem a funcionar para conter grandes massas sociais190. Desse modo, não é razoável admitir igualdades materiais onde elas não existem e hipoteticamente transferilas para o processo penal, que muito pouca contribuição pode oferecer para superar essas desigualdades. O chamado processo penal consensual se esforça para realizar essa tarefa inatingível. Baseado no princípio da autodeterminação do acusado, que não se coloca em cheque, sustenta a possibilidade de o réu decidir não se defender e aceitar, diretamente, uma pena ou medida criminal (é o que ocorre com a transação penal e a suspensão condicional do processo, ambas previstas nos artigos 76 e 89 da Lei dos Juizados Especiais Criminais). O problema está em que o réu tem chances reduzidas de não ser punido, desde o processo de criminalização primária, que seleciona condutas em que na maioria das vezes ele está previamente enquadrado por pertencer a certo grupo social, até a hora em que a pressão do tempo191 e o ambiente, ambos desfavoráveis, termina pesando para que aceite as soluções penais aparentemente mais generosas, sob pena de ter que encarar o rigoroso processo tradicional! Em suma, o acusado é ameaçado com a presunção de culpa! As chamadas soluções consensuais não estão no círculo temático do Sistema Acusatório (como foi sublinhado antes), pois visam resolver conflitos extra-processuais e, portanto, 190 WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos, Rio de Janeiro, Ed. Freitas Bastos, 2001. 191 A abordagem de Aury Lopes Jr. sobre o papel do tempo no processo, levada a termo no livro Introdução Crítica ao Processo Penal: Fundamentos da Instrumentalidade Garantista), (Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004), é sugestiva. não objtivam apurar fatos para com base nisso arbitrar responsabilidades. Há de se pensar uma dogmática apropriada para elas, tarefa-desafio segundo Alberto Binder192. As decisões pessoais do acusado são relevantes no processo penal acusatório (confessar ou não, recorrer ou não, falar por si mesmo em audiência, não apenas no ato formal de interrogatório, indicar provas), mas não devem ser confundidas com aquelas outras, do processo consensual, que podem ser oportunas e talvez funcionem como estratégia de abrandamento do rigor punitivo, todavia sistematizadas e difundidas levam paulatinamente ao retorno do modelo inquisitorial que mira a pessoa, o corpo do acusado, como alvo da ação estatal. Em que pesem as oposições existentes,193 o estatuto do defensor no processo penal, por sua vez, coaduna-se com propósitos de resolução justa do caso penal, observada a adequada tutela jurídica dos direitos e interesses do acusado. Assim, é lícito acentuar que o advogado ou defensor exerce um munus público (contribuindo em grande parte para a resolução da causa conforme o direito) equilibrado por tudo quanto, no exercício da sua atividade, imponha a atuação ou omissão, ambas necessárias à preservação ou conquista de posições jurídicas de vantagem para o acusado, conforme o direito. Essa é a razão pela qual se concebe, em um processo acusatório, a positivação de poderes do advogado do acusado para se opor à vontade deste último, sempre que divise, nas conseqüências da manifestação dela, a operação de grave prejuízo jurídico. Daí porque se constata uma dualidade de estatutos — defensor/acusado —, apta a ensejar a juridicidade do recurso da defesa contra a vontade do réu. 192 BINDER, Alberto. O descumprimento das formas processuais: elementos para uma crítica da teoria unitária das nulidades no Processo Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 44, citado anteriormente. 193 Referidas e analisadas por José Narciso da Cunha Rodrigues (―Sobre o Princípio da Igualdade de Armas‖, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 1, nº 1, Lisboa: Aequitas, jan-mar/1991, pp. 77-103). II. -O ESTATUTO DA ACUSAÇÃO EM MOVIMENTO: A OPORTUNIDADE REGULADA NA AÇÃO PÚBLICA E A VEDAÇÃO ORDINÁRIA À INVESTIGAÇÃO DIRETA Sobre o estatuto do acusador, em decorrência do princípio de liberdade responsável, também são devidas algumas considerações. A. A Oportunidade Regulada na Ação Pública A primeira delas reside na seguinte premissa, segundo nosso pensamento, fundamental: a oficialidade do exercício da ação penal e, conseqüentemente, da tarefa de dedução da acusação, não modifica substancialmente o estatuto do acusador, a ponto de criar uma absoluta incompatibilidade entre decisões de conveniência ou oportunidade e de estrita obrigatoriedade. Com efeito, não há exercício de função pública salvo por seres humanos e a liberdade de autodeterminação é, como assinalamos em lance anterior, da natureza humana. É evidente que, no exercício da função pública, submete-se o agente ao império da legalidade, que, no campo penal, em consideração à máxima da isonomia, obedece a princípios de moralidade e impessoalidade. Apesar disso, sempre há um espaço no qual é possível eleger alternativas e se os critérios de escolha variam conforme seja o acusador particular ou oficial, para o último hão de levar em conta a moralidade, impessoalidade e, via de conseqüência, a objetiva isonomia, que não o impedirão de contribuir decisivamente para a implementação da política criminal mais justa. Neste caso, a perspectiva histórica há de por acento no fato de o Ministério Público ter nascido, com a sua conformação próxima à atual, como fruto do processo de revisão crítica do exercício do poder, provocada pela Revolução Francesa,194 objetivando desempenhar decisivo papel na persecução penal, mas inserido em um projeto orgânico de vigência real do conjunto de garantias indispensáveis à dignidade da pessoa humana. Em um modelo acusatório, que historicamente se funda no protagonismo das partes, há de se conceder espaço para uma atuação mais flexível do Ministério Público, porquanto a noção da persecução penal em todas as circunstâncias, referida a todas as infrações penais (ainda que consideremos somente as noticiadas), rende louvor ao fim de defesa social, perseguido no processo inquisitório, acima e além dos limites de humanidade necessários à harmônica convivência social. Um estatuto jurídico do acusador que reprima completamente as suas potencialidades de conformação da política criminal, a pretexto de vincular a ação do Ministério Público à legalidade, esconde deliberadamente a possibilidade da legalidade surgir em ambientes de flexibilidade, de acordo com critérios de impessoalidade e moralidade e também de acordo com propostas de redução do caráter flagrantemente elitista da justiça penal, redistribuindo as forças de persecução conforme uma mais coerente e justa avaliação do que deve merecer o dispêndio de energia do Estado. Na perfeita compreensão de Maximiliano Rusconi, sobre o estatuto jurídico do acusador público no âmbito do sistema acusatório e de acordo com o princípio acusatório, centrado na idéia do justo processo, alerta-se:195 El principio de oportunidad como elemento para racionalizar el uso de poder de persecución criminal, evitar una selección ‗irregular y 194 Rusconi, Maximiliano A. ―Luces y Sombras en la Relación Política Criminal — Ministerio Público‖, in Ministério Público, Revista Latinoamericana de Política Criminal, ano 2, nº 2, Buenos Aires: Editores del Puerto, 1997, p. 156. 195 Rusconi, Maximiliano A. ―Luces y Sombras en la Relación Política Criminal — Ministerio Público‖, ob. cit., pp. 158-159. deformante‘ y dirigir los recursos del Estado al control sobre el tipo de criminalidad que mayor costo social genera y más dificultades manifiesta en la investigación, representa sin duda una opción de limitación del poder penal del Estado... Además de las razones expuestas, es preciso insistir en una de máxima importancia: que el Ministerio Público sea el operador de los criterios de desjudicialización a través de la aplicación concreta del principio de oportunidad, asegura que dicha aplicación no viole la garantía constitucional de ‗igualdad ante la ley‘ debido a que por su especial función de formulación de la política criminal del Estado y gracias a que ciertos principios aseguran que esa formulación sea coherente... E, conclui, objetivamente, com a observação de que princípios de unidade, hierarquização e verticalidade, configurando o Ministério Público, asseguram às pessoas que estarão sempre submetidas às mesmas regras e não a uma arbitrária disposição de vontade do acusador. Nestes termos a realidade coloca o Ministério Público diante da possibilidade/necessidade de se organizar de modo eficiente e orientar a aplicação de seus recursos na direção de políticas criminais democráticas, definidas com transparência e em documentos discutidos internamente e com representantes da comunidade. Cumprida esta etapa, em homenagem aos princípios constitucionais mencionados linhas atrás, cada Promotor de Justiça ou Procurador da República terá conhecimento dos parâmetros que nortearão escolhas entre acusar ou requerer o arquivamento das investigações criminais e até sobre recorrer ou não de sentenças. A interpretação constitucionalmente adequada do artigo 129, inciso I, da Constituição da República, é esta. Não se trata, apenas, de assegurar ao Ministério Público o monopólio do exercício da ação penal pública, na forma da lei. Nos dias de hoje é concebível extrair da norma constitucional a autorização para definir critérios e casos de atuação, sempre tendo em mente os princípios da moralidade e impessoalidade. Por último, não custa lembrar que a dogmática penal avançou o suficiente para engendrar critérios de definição de crimes, de tipicidade penal, bem mais exigentes que a mera subsunção da tipicidade objetiva tradicional. A potencialidade de dano da conduta, a ofensividade a bens jurídicos, a própria dimensão do dano provocado e o desvalor da ação são elementos que o Direito Penal oferece ao Ministério Público para determinar as hipóteses de atuação ou não. B. A Vedação Ordinária à Investigação Direta196 Em contrapartida à maior liberdade de ação, que deve inspirar a atuação do Ministério Público, em um processo penal democrático, temos que, além dos mencionados controles, funcionam outros, direcionados a impedir ou a coibir os excessos e a tentar garantir que o valor de verdade da sentença penal não venha a naufragar por conta de uma acentuada e irracional atividade probatória. Por conta disso, convém dedicarmos alguma atenção à matéria prova penal e às atividades de investigação diretamente a cargo do Ministério Público. Com efeito, o estudo sistemático da teoria jurídica relativamente à questão da prova está a demonstrar que não se trata simplesmente de problemas de método de aquisição, introdução e avaliação das provas no processo. No campo da prova há também aspectos subjetivos, isto é, referidos à perspectiva de quem pode provar, além de outros objetivos, ambos importantes, que estão a merecer 196 Sobre o assunto, recomendo a leitura do livro Investigação Criminal Direta pelo Ministério Público: Visão Crítica, 2ª ed. de Paulo Rangel, tema de sua dissertação de mestrado (Lumen Juris, 2005) e o Crime e Constituição: a legitimidade da função investigatória do Ministério Público, 2ª ed., de Lenio Luiz Streck e Luciano Feldens, Rio de Janeiro, Forense, 2005. tutela jurídica por intermédio de procedimentos de garantia previstos nas Constituições. No plano específico do princípio acusatório exige extraordinário cuidado o saber como articular estes procedimentos e a teoria jurídica. Assim é que, ao se falar em proibição de prova no processo penal, está se afirmando que o juiz não poderá levar em consideração determinado elemento de convicção, no momento de proferir a decisão, se este elemento de convicção foi obtido indevidamente.197 Mas a proibição da prova vai muito além do mero dado procedimental. Para entendermos o fenômeno que orienta a atividade probatória, é preciso compreender como a teoria do conhecimento cuida do assunto e perceber que provar é convencer, que a atividade probatória consiste em introduzir no processo elementos que servirão para formar a convicção do juiz. Portanto, a atividade probatória é atividade de ministrar elementos de conhecimento. O juiz deverá conhecer determinado fato e este conhecimento se dará indiretamente,198 porque o juiz não presenciou o fato. Ao final, o convencimento do juiz representará a formulação de uma idéia acerca do fato. Da comparação desta idéia com a pretensão deduzida pela acusação e com a pretensão de resistência deduzida pela Defesa nascerá a decisão. Diante das conseqüências advindas da consideração de que um fato está ou não provado no processo é necessário levar em conta que, em primeiro lugar, a atividade probatória é uma atividade de pesquisa. É assim em qualquer ramo do conhecimento e não pode ser diferente quando o objeto do conhecimento é um fato ideal — a suposição a respeito da existência de uma infração penal. 197 A Constituição da República estabelece, em seu artigo 5º, inciso LVI, que são inadimissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. 198 Evidentemente, se o juiz for testemunha da infração penal, não poderá julgar. Artigo 252, inciso II, do Código de Processo Penal. Neste sentido convém recordar que os pesquisadores a princípio definem o que se pretende pesquisar. Em termos de Processo Penal, o objeto da pesquisa é um fato com coloração diferenciada, dada pelo Direito Penal. A pesquisa só será possível se o pesquisador tiver em mente um fato da realidade, hipoteticamente ocorrido, a que terá de somar os elementos peculiares à adequação típica, pois apenas a infração penal lhe interessará. Duas notas distintas passam a ser objeto da atividade mencionada: a existência de um fato, propriamente dito; e a presença das características que poderão atribuir a este fato relevância jurídico-penal. Em outras palavras e a título de exemplo, no processo penal interessa saber se houve morte de alguém e se esta morte pode ser derivada de conduta dolosa ou culposa prevista como crime. O processo penal não deve perseguir a prova de fatos atípicos! Verifica-se, agora sim, que a atividade probatória não se limita a um debate no processo, com introdução de provas, a não ser que entendamos que a produção de provas é sempre produção de provas direcionada a determinação da existência e da vinculação subjetiva de um fato típico, ilícito e culpável, ou seja, de uma infração penal. Mesmo quando, aparentemente, a lei é clara na definição da infração penal, sempre se exigirá um mínimo processo de interpretação que passa tanto pela reconstituição do fato no plano das idéias, o que dependerá, é certo, da qualidade dos elementos que serão oferecidos ao juiz, como pela compreensão do significado das palavras empregadas na Lei para indicar o crime ou contravenção. Saber se a interrupção voluntária da gravidez de feto anencéfalo configura aborto ou fato atípico é algo que impõe antes estabelecer consenso sobre o que significa a expressão ―provocar aborto‖, prevista no artigo 124 do Código Penal brasileiro. Como não há verdade absoluta, verdade real, a maneira mais segura de se alcançar o melhor resultado certamente não justificará o desrespeito aos valores fundamentais da pessoa humana. Por essa razão, até mesmo de acordo com a lógica imperante em determinado modelo de funcionalismo, se a verdade é sempre contingente e histórica, o uso da tortura e o emprego de recursos que historicamente foram criados e ditados para produzir uma verdade real não têm peso algum. Neste caso, o resultado da atividade probatória objetivamente estará sujeito ao mesmo tipo de crítica cabível em todas as pesquisas e eticamente representará a opção por mecanismos tão censuráveis quanto a infração penal que se pretende apurar. A restrição relativa aos meios de prova, no processo penal, tem a ver com o conjunto de valores sociais considerados conforme o estatuto ético da sociedade. Do ponto de vista objetivo, a proibição de provas exprime as hipóteses de violação a este estatuto ético, previsto principalmente na Constituição. Desse modo, são inadmissíveis no processo as provas obtidas por meios ilícitos conforme a idéia de que o meio utilizado para obtenção da prova viola valores éticos mínimos considerados essenciais para a existência de uma sociedade civilizada, ou, usando a expressão de Schmidt-Leichner,199 o Estado não pode se tornar receptador de material probatório. Do ponto de vista objetivo há um limite, tradicionalmente investigado: a prova ilícita não pode ser introduzida no processo. Caso seja introduzida, não poderá ser avaliada pelo juiz porque o Estado não pode atuar criminosamente para investigar o crime. Do ponto de vista subjetivo, ninguém, nem mesmo o juiz, pode ter a pretensão de dominar toda a realidade, de enunciar a verdade real. A atividade de busca da verdade processual deve se desenvolver de acordo com princípios republicanos e democráticos. O processo penal não pode fugir, na essência, à estrutura do Estado e da sociedade onde está fadado a atuar. É necessário que seja assim, porque a consolidação da forma 199 Apud Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra, 1992, p. 44. jurídica do Estado, na Constituição, estabelece que os poderes emanam do povo e que no seu exercício concreto devem ser distribuídos entre diversos órgãos, e executados por diferentes agentes de modo a que possa haver controles recíprocos e eficazes. A estrutura democrática se contrapõe à forma autoritária de Estado, de sorte que em um processo penal democrático as funções acabam distribuídas entre órgãos distintos obedecendo a esta mesma lógica. Há uma conexão que vincula os três principais sujeitos do processo, de modo que a um deles se entregue a atividade de exercer a ação penal, a outro a atividade de defesa e a um terceiro, eqüidistante e imparcial, a atividade de julgar. O sistema de controle das atividades processuais, que se desdobra em função dos meios e recursos colocados à disposição das partes, termina por alcançar também a atividade de polícia judiciária, na medida em que tal atividade representa, por si só, uma espécie de poder capaz de afetar gravemente o patrimônio de direitos da pessoa investigada. A atividade de polícia judiciária, que consiste na apuração das infrações penais e sua autoria, amiúde invade a esfera de privacidade alheia e atenta, legalmente, contra a reputação pessoal da pessoa sob suspeita. É muitas vezes imprescindível que seja dessa maneira, pois a aquisição de informações demandará pesquisa a respeito da vida privada do investigado. As fronteiras entre o permitido e o proibido durante uma investigação criminal aparecem pois marcadas por balisas tênues e não raro, em busca de maior eficiência, o investigador cede à tentação de violar determinadas normas jurídicas de proteção da intimidade e da vida privada do investigado. Quanto mais grave a infração penal e mais convencido o investigador a respeito da procedência da sua suspeita, maiores são as chances de não ser rigoroso quanto à obediência aos direitos fundamentais do indiciado. Por conta disso, os parâmetros de legalidade na investigação criminal são sempre bem definidos e em praticamente todos os ordenamentos jurídicos que seguem a linha do brasileiro há uma instituição, a rigor o Ministério Público, que fica encarregada de fiscalizar os atos de investigação.200 Em vista dessa opção legislativa, o Ministério Público não pode investigar diretamente, prescindindo da polícia, sem atentar contra o princípio republicano de controle. Nicolas Becerra, Chefe do Ministério Público Federal da Argentina, salienta o seguinte:201 Como ponto de partida o Ministério Público deve garantir que no exercício do Poder de Estado se respeitem OS PARADIGMAS DO MODELO REPUBLICANO. Como um dos operadores centrais do sistema penal, o Ministério Público deve ser consciente de quem tem em suas mãos uma ferramenta que lhe permite executar uma das formas mais violentas de exercício do poder do Estado. Este exercício por fim deve demarcar-se no programa constitucional, que não só institui o modo de relação institucional entre órgãos, senão que, ao estabelecer o sistema de divisão no exercício do poder por intermédio de freios e contra-pesos, exige também o controle externo. E conclui com aquilo que é o ponto mais importante:202 Neste controle externo o Ministério Público deve colaborar com a consolidação de um sistema no qual, ninguém, ninguém deve ser NEM BOM, NEM MAU GUARDIÃO DE SEUS PRÓPRIOS ATOS, o que significa entre muitas outras coisas, que quem investiga não pode ao mesmo tempo controlar. 200 No Brasil, a Constituição da República prescreve, em seu artigo 129, inciso VII, que é atribuição institucional do Ministério Público exercer o controle externo da atividade policial. 201 Becerra, Nicolas. El Ministerio Público y los Nuevos Desafíos de la Justicia Democrática, Buenos Aires: AD-HOC, 1998, p. 12 – tradução livre. 202 Idem. Por que a polícia pode investigar, por exemplo, e o Ministério Público não pode investigar? Que tipo de conseqüência jurídica, poderia advir de uma investigação realizada por quem não está incumbido de fazê-lo constitucionalmente? À vista do exposto, as possibilidades de o Ministério Público investigar diretamente dependem da previsão legal de disposições regulando a investigação, de tal sorte que as lesões decorrentes do abuso na investigação possam ser objeto de reclamação perante o Judiciário — princípio da inafastabilidade da jurisdição — e que o sistema de freios e contra-pesos possa funcionar. Além disso, é imprescindível assinalar a excepcionalidade desta atuação, que tão-só estará justificada naqueles casos em que o sucesso da pesquisa impõe extraordinária reserva em relação a quem está sendo investigado. É o caso das investigações criminais acerca do envolvimento sistemático de policiais com ações de corrupção ou criminalidade acentuada no âmbito da própria polícia. Caberia à lei fixar estes contornos de forma clara, pois também para a investigação criminal do Ministério Público prevalece a garantia constitucional do devido processo legal. A excepcionalidade dos casos de investigação criminal do Ministério Público, de lege ferenda, há de ser compreendida, do ponto de vista do direito, como emanação do critério da proporcionalidade. Nos limites do devido processo legal, sacrifica-se o ideal de afastamento do Ministério Público da investigação criminal, pelo qual é viabilizado o controle constitucional da atividade de polícia judiciária, para permitir a investigação de crimes que de outra maneira não seriam investigados. Ora, isso impõe limites à própria lei que porventura vier a ser editada. Esta não poderá atribuir ampla liberdade ao Ministério Público para escolher o que investigar. Não cabe, por exemplo, deixar em mãos do Ministério Público a pesquisa da ocorrência de crime de furto de que foi vítima um Governador de Estado, por mais chocante que o fato possa parecer à opinião pública. Por outro lado, o reconhecimento de que a polícia está limitada em certas circunstâncias, por ausência de autonomia, além de ser uma constatação servirá para permitir que polícia e Ministério Público atuem em conjunto, visando o melhor proveito da investigação, que de outro modo estaria condenada a chegar a lugar algum. E isso nada tem a ver com uma função pós-moderna do Ministério Público ou com a natureza diferenciada dos chamados bens jurídicos penais transindividuais ou coletivos. Agora, a investigação criminal na grande maioria dos casos não se enquadra no modelo excepcional citado acima e o aspecto subjetivo termina ganhando importância neste contexto, pois não se trata apenas de demonstrar alguma coisa, mas de saber quem deve demonstrar e a quem deve ser demonstrado. Quando o padrão de legalidade na apuração dos fatos não é respeitado também em sua perspectiva subjetiva, a prova dele decorrente é igualmente ilícita. Provar é atividade de sujeito. Prova-se um fato que tem determinada qualidade, mas se prova por intermédio da atividade de sujeitos e as Constituições hoje não podem ficar limitadas em sua interpretação, quando se cuida da proibição de provas no processo penal, aos casos de obtenção de provas por meios ilícitos. Também deverão dirigir a atenção à questão a respeito de quem foi o sujeito produtor daquela prova, quais são os limites subjetivos da produção da prova e o que ocorre quando um sujeito que não poderia realizar atividade probatória a realiza, fazendo valer o sistema de ineficácia dos atos jurídicos. Por último, não custa destacar que os Sistemas Processuais são configurados historicamente. O que é atribuído a cada Ministério Público depende muito do papel que a instituição exerceu ao longo do tempo. O mesmo ocorre com a tarefa incumbida à autoridade policial. No Brasil, durante muito tempo a autoridade policial esteve encarregada de investigar e processar. Essa realidade do Império, retratada no Código de Processo Criminal de 1832 fica como ―permanência‖ até a promulgação da Constituição da República de 1988, que afastou de juízes e delegados de polícia o poder de iniciar processos por crimes de homicídio e lesão corporal culposa e por contravenções penais (Lei n. 4.611/65 e artigo 531 do Código de Processo Penal). Desde então, somente o Ministério Público está autorizado a promover a ação penal pública. Acontece que a história da investigação criminal brasileira é também história de repressão e autoritarismo, com abusos em investigação e recurso freqüente à tortura. O distanciamento que a Constituição da República de 1988 impôs ao Ministério Público é coerente com a sua função de fiscal das atividades de polícia judiciária, criando estrutura confiável de controle dirigida à redução dos abusos. Quando o Ministério Público abdica disso retorna ao passado, fundindo funções, pois a questão não está no nome da instituição que investiga, mas na função que as instituições exercem. Quem investiga exerce função de polícia judiciária. Pode ser o juiz, como no passado brasileiro; poderá vir a ser o Ministério Público, como alguns doutrinadores pretendem. Não importa, porque se houver investigação será necessário criar estruturas de controle dessa investigação e não fará sentido pensar em um outro Ministério Público do Ministério Público. Porque as linhas deste estudo são traçadas pelo princípio acusatório não convém avançar mais, valendo notar, porém, que as fronteiras probatórias instituídas pelas leis e pela Constituição devem valer não somente em relação ao Ministério Público mas até mesmo quando se tratar de Comissão Parlamentar de Inquérito. III. -O ESTATUTO DO JUIZ EM MOVIMENTO: LIVRE CONVENCIMENTO E OS PODERES DE INVESTIGAÇÃO DO JUIZ — A MUTATIO LIBELLI Agora cumpre dedicar ao órgão de resolução do caso penal algumas considerações, pertinentes ao seu enquadramento conforme o princípio acusatório e a relação que se estabelece entre ele, juiz (lato sensu considerado), acusador e acusado. Com efeito, excluídas desde logo a iniciativa para o processo e a tarefa de aquisição das provas na fase precedente203, resulta que o princípio acusatório repercute no estatuto judicial, conferindo ao magistrado reserva da função jurisdicional. Destaque-se que o juiz não produz provas na investigação criminal não só porque a preparação da ação penal, respeitada a máxima acusatoriedade, implica em afastamento do juiz da fase preparatória,204 mas também pelo fato de a presunção da inocência comportar, até o trânsito em julgado da condenação, uma postura de preservação pelo juiz de um papel de verdadeira imparcialidade, A implicância prática da reserva em questão consiste, segundo pensamento dominante, na garantia da liberdade de avaliação das provas, convicção fundada sobre a qualificação jurídica da infração penal e arbitramento motivado da correspondente sanção. A. Livre Convencimento e os Poderes de Investigação do Juiz 203 As objeções opostas ao extinto inquérito judicial, na falência (ver item I, em 3.2.2.1) são igualmente válidas quando se trata da investigação de magistrados. Com efeito, a Lei Complementar 35, de 14 de março de 1979, ainda em vigor até a edição do Estatuto da Magistratura, em seu artigo 33, parágrafo único, prevê que a investigação da prática de crime atribuído a magistrado deverá ser realizada pelo Tribunal ou Órgão Especial competente. Além do óbvio desrespeito ao princípio da igualdade de tratamento, que exigiria outro livro para ser explicado e contestado à luz da Constituição da República de 1988, há a questão prévia de se atribuir à autoridade encarregada do julgamento a atribuição para apurar o fato. 204 A intervenção do juiz, nesta fase, só se explica, conforme o princípio acusatório, quando necessária para, conforme a Constituição, preservar ou comprimir, legitimamente, o exercício de direitos fundamentais, porquanto o julgador não tem interesse jurídico na propositura da mencionada ação. Comecemos, portanto, pela análise da tarefa de avaliação das provas. A primeira e mais importante observação deriva da necessária distinção entre as ações de introduzir e avaliar as provas no processo penal condenatório. A propósito, salienta Gomes Filho que, em um modelo processual duelístico, como o adversary, existente na Inglaterra, por exemplo, a iniciativa da atividade probatória incumbe preponderantemente aos próprios litigantes, daí decorrendo o papel de mero moderador e mediador, desempenhado pelo juiz que preside o julgamento, o qual raramente intervém, como os jurados.205 Nessa direção, fundamenta-se uma estrutura processual preocupada em evitar injustificadas e errôneas privações de direitos e em garantir a participação e o diálogo dos interessados no processo de decisão.206 Por outro lado, convém assinalar que, no modelo inquisitório, o princípio é justamente o oposto, refletindo a proeminência da figura do juiz e a subalternidade das partes na tarefa de obtenção do material probatório, o dogma da verdade real, a preocupação com a economia processual e, sobretudo, uma concepção peculiar de livre convencimento, visto, consoante precisamente remarca Gomes Filho, como liberdade absoluta na própria condução do procedimento probatório, e não na sua real e histórica dimensão de valoração desvinculada de regras legais, mas incidente sobre um material constituído por provas admissíveis e regularmente incorporadas ao processo.207 Ora, se estamos convencidos, o que é certo, da vinculação entre direito de ação (e, naturalmente, também de defesa) e direito à prova, é razoável supor que haja mais do que uma simples relação jurídica, pela qual o segundo 205 Gomes Filho, Antonio Magalhães. O Direito à Prova no Processo Penal, pp. 59-60. 206 Idem, p. 60. 207 Idem, p. 63. seja considerado conseqüência do primeiro. A ordem das coisas colocadas no processo permite, pragmaticamente, constatarmos que a ação voltada à introdução do material probatório é precedida da consideração psicológica pertinente aos rumos que o citado material possa determinar, se efetivamente incorporado ao processo.208 Ao tipo de prova que se pesquisa corresponde um prognóstico, mais ou menos seguro, da real existência do thema probandum, e, sem dúvida, também das conseqüências jurídicas que podem advir da positivação da questão fática. Quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar e isso, em termos de processo penal condenatório, representa uma inclinação ou tendência perigosamente comprometedora da imparcialidade do julgador. Desconfiado da culpa do acusado, investe o juiz na direção da introdução de meios de prova que sequer foram considerados pelo órgão de acusação, ao qual, nestas circunstâncias, acaba por substituir. Mais do que isso, aqui igualmente se verificará o mesmo tipo de comprometimento psicológico objeto das reservas quanto ao poder do próprio juiz iniciar o processo, na medida em que o juiz se fundamentará, normalmente, nos elementos de prova que ele mesmo incorporou ao processo, por considerar importantes para o deslinde da questão. Isso acabará afastando o juiz da desejável posição de seguro distanciamento das partes e de seus interesses contrapostos, posição essa apta a permitir a melhor ponderação e conclusão. Entre os poderes do juiz, por isso, segundo o princípio acusatório, não se deve encontrar aquele pertinente à investigação judicial, permitindo-se, quando muito, pela coordenação dos princípios constitucionais da justiça 208 Ver críticas à investigação direta pelo Ministério Público, texto acrescentado a esta edição. material209 e presunção da inocência, que moderadamente intervenha, durante a instrução, para, na implementação de poderes de assistência ao acusado, pesquisar de maneira supletiva provas da inocência, conforme a(s) tese(s) esposada(s) pela defesa. Neste caso, assimila-se a real natureza do princípio acusatório como garantia que comporta para a defesa do imputado conforme assinala Grau.210 O destinatário da posição jurídica favorável não pode ser prejudicado pela aplicação, contra si mesmo, daquele benefício instituído pela Constituição. Ao mesmo tempo, incrementa-se, por meio desta excepcional e restrita iniciativa judicial, o princípio da paridade de armas de modo efetivo, tal seja, garantindo, pela intervenção mediadora do juiz, tratamento desigual aos desiguais, sobretudo em face da ausência de identidade entre as partes, agindo assim em busca do equilíbrio no processo, razoavelmente justificado à luz de critérios de reciprocidade e evitação de um dano irreparável. Teresa Armenta Deu pensa, todavia, diferentemente, defendendo a tese da possibilidade da introdução de elementos de prova, pelo juiz, de forma limitada, mesmo na fase de debates, visando completar o panorama sobre o qual recairá o juízo211. Giza a referida autora que, nas circunstâncias, a importação de elementos de prova pelas mãos do juiz será controlada pelo sucessivo contraditório e 209 O princípio de justiça material, conforme o magistério de Canotilho, remete à Constituição um fundamento de ―reserva‖ e ―garantia‖ da justiça, pelo que se assinala a intencionalidade do Direito Constitucional não esgotar a positividade das normas da Constituição na mera edição formal, mas sim na correspondente justiça deste direito. Portanto, a função de ―reserva de justiça‖, mencionada pelo mestre português, sugere a fundamentação dos princípios que se constituem em favor rei, desde o da presunção da inocência, justificando a compressão de outros princípios, como, por exemplo, o acusatório, em vista da referida reserva de justiça (Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional, p. 3). 210 Grau, Joan Verger. La Defensa del Imputado y el Principio Acusatorio, p. 13. 211 Teresa Armenta Deu defende ponto de vista diverso em Principio Acusatorio y Derecho Penal, pp. 27-28. pela impossibilidade de interdição da defesa. Em que pesem o respeito e admiração que merece a doutrinadora, que profundamente estudou o princípio acusatório, não é possível concordar com ela porque o contraditório é medida de duelo, como categoria processual que reúne a ciência do ato praticado pela parte contrária à possibilidade de uma atitude em sentido contrário ou objetivando contrariar o prefalado ato. Difícil será, a nosso juízo, estabelecer-se um duelo entre o acusado e o juiz, pois este último detém o poder de decidir a causa, elegendo, como assinalou Carnelutti, a alternativa de solução que lhe pareça mais viável. Há de se acrescentar, por oportuno, que, se o princípio da paridade de armas não integra o princípio acusatório, reduzido este à divisão tricotômica de funções, é, todavia, importante para a implementação da justa solução do caso penal, a ponto de ser considerado integrante de um sistema cuja base é a acusatoriedade (novamente aí a distinção entre sistema e princípio, entre continente e conteúdo). Por isso, cabe destacar, com Chiavario212, que a parità fra le armi fornece um critério resoluto fundado não no sentido de simetria das situações das partes, porém justamente na dissimetria de posições, observável na prática, de tal sorte que não é razoável admitir um Ministério Público despreparado para o exercício dos direitos de ação e prova, enquanto, lamentavelmente, acontece de se encontrar defensores inaptos para a melhor forma de representação dos interesses do imputado. Para ser assimilada pelo princípio acusatório, a estrutura de cooperação do processo jurisdicional penal moderno, de que nos fala Ada Grinover,213 há de ser filtrada pelo contraditório, que opõe de forma dialética as teses da acusação e da defesa, levando em consideração a desigualdade real entre as partes e a necessidade imperativa de equilíbrio técnico e de posições jurídicas visualizadas 212 Processo e Garanzie Della Persona, pp. 27-28. 213 Grinover, O Processo Constitucional em Marcha, pp. 8-9, 14-15 e 19-21. reciprocamente. A estrutura de cooperação busca o resultado prático da conversão das garantias das partes em garantias da própria jurisdição. Daí porque a doutrinadora, consolidando seu pensamento, assevera que existe um perfil objetivo de defesa a condicionar a validade do processo penal e legitimar a própria jurisdição, cumprindo ao juiz zelar para que a desigualdade real não desemboque em desigualdade processual comprometedora da verdade que deve alicerçar a sentença penal. No fundamento desta desigualdade, cuja constatação nos dias de hoje dispensa comentários, é possível identificar na estrutura de cooperação citada certa semelhança com o processo trabalhista, no qual a inferioridade econômica do trabalhador, numa estrutura capitalista, cria novos hábitos assistenciais ao juiz.214 De toda sorte, a intervenção judicial na atividade probatória a favor do acusado há de ser moderada, como antes frisamos, enquanto estará interditada em relação à acusação, que nos dias de hoje dispõe de aparato suficientemente bem constituído para pelejar em juízo. A supressão ou redução dos poderes de investigação judicial esbarra, contudo, na cultura desenvolvida secularmente com base nos ordenamentos jurídicos de inspiração européia continental, acostumados, pela experiência haurida na ordem jurídica romano-canônica, à busca da verdade real, de sorte que a máxima acusatoriedade postulada pelo princípio em questão, na equação juiz penal versus prova, quase sempre é bastante limitada. E é com inspiração nestes modelos que configuram um processo acusatório mitigado ou temperado pelo princípio da investigação judicial, segundo Manuel da Costa Andrade, que vem tomando corpo no Direito Brasileiro a tese da distinção entre o sistema acusatório de estrutura adversarial e outro, 214 Idem, p. 19. acusatório contemporâneo, que atribui poderes probatórios ao juiz. Gustavo Badaró, por exemplo, assinala que: ―...embora seja característica histórica do processo acusatório a inércia probatória do juiz, que tinha apenas uma função passiva em relação à atividade instrutória, tal aspecto não lhe é fundamental. A evolução de tal modelo, principalmente em decorrência da publicização do processso, fez surgir um processo em que há clara separação de funções entre acusação, defesa e julgador, a despeito de o juiz poder ser dotado de poderes instrutórios‖.215 Badaró remete para posição secundária a inércia do juiz, salientando que há características secundárias que possibilitam a existência de um processo acusatório à semelhança do júri inglês, em que o juiz não tem poderes instrutórios, e um pretenso processo acusatório do tipo brasileiro ou português no qual o juiz pode determinar a produção de provas de ofício. Marcos Alexandre Coelho Zilli é partidário da posição assumida por Badaró, em sua análise sobre o sistema adversarial216. Não é necessário lembrar que o artigo 156 do Código de Processo Penal brasileiro, em sua parte final, que contempla o juiz com poderes probatórios, na linha do artigo 209 do mesmo código, é fruto do processo penal do Estado Novo, período autoritário em que a supressão das liberdades contava com apoio do Sistema de Justiça Penal, para fazer valer os interesses da ditadura Vargas.217 215 BADARÓ, Gustavo. Ônus da prova, op. cit., p. 137. ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal, São Paulo, RT, 2003, p. 44-45. 217 Artigo 156 do Código de Processo Penal: ―A prova da alegação incumbirá a quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante‖ e artigo 209: ―O juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas partes‖. 216 Supor generosidade, espírito científico ou público em regimes ditatoriais significa desconhecer a lógica que domina o manejo, a manipulação do Sistema de Justiça Penal em tais circunstâncias. No caso brasileiro, a regra de produção de provas pelo juiz, de ofício, tão-só consolida aquilo que desde as Ordenações, passando pelo Código de Processo Criminal do Império, de 29 de novembro de 1832 e pelas Reformas Prcessuais de 3 de dezembro de 1841 e 20 de setembro de 1871, tornara-se regra em um ambiente em que a Intendência, espécie de Secretaria de Segurança Pública, fora desde o início entregue a um Desembargadior, juiz de corte superior. Hoje, a volta a esse estado de coisas não pode ser compreendida como evolução. A artificial designação de sistema adversarial, para definir o acusatório em que a inércia probatória do juiz é regra, para distingui-lo de outro sistema acusatório em que o juiz tem poderes instrutórios, só atende ao propósito de tentar prolongar a vida do Código de Processo Penal de 1941, da era autoritária, naquilo que nele é central, tal seja, a filosofia de que se trata de instrumento da política de segurança pública do Estado e não de previsão das regras do devido processo legal, conforme a Constituição da República de 1988. O alegado caráter público do caso penal, para justificar a ação probatória do juiz, conforme Badaró, merece reflexão histórica e técnica. Em termos de Justiça Penal a palavra ―público‖ será tomada no sentido de algo derivado do exercício do poder político. Não havia nada mais ―público‖, no sentido de expressão de poder político, que o processo penal da Inquisição.218 Tampouco havia algo mais sigiloso que este mesmo processo. O público na citada acepção deve ser compreendido como em oposição ao privado. Para o processo da Inquisição os interesses privados eram secundários. Importava a 218 MAIER, Julio. Derecho Procesal Penal. I. Fundamentos., Buenos Aires, Editores del Puerto, 2002, p.151. repressão aos hereges e a manutenção da ordem. E essa repressão era feita em sigilo. Talvez seja possível encontrar neste sigilo a simetria com as motivações do juiz na determinação da prova de ofício, uma vez que a declaração dos reais motivos da produção da prova pode implicar préjulgamento. A simetria entre processo inquisitório e regimes autoritários não é gratuita e não se fixa exclusivamente nos regimes políticos, inscrevendo-se na cultura dos povos. Não por acaso o Brasil resiste como um dos poucos Estados da América do Sul a ter ultrapassado a fase de transição democrática sem ter editado um novo Código de Processo Penal em seguida à sua Constituição. Por essa razão é importante insistir no ponto delicado da dogmática do processo. O estudo das formas de conhecimento dos fatos não é próprio à disciplina do Direito. O Direito se apropria ―politicamente‖ do discurso sobre a ―verdade real‖, mas o próprio Direito não está dotado de instrumentos científicos para investigar a possibilidade de ser estabelecida uma verdade real. Johannes Hessen recordará que é a epistemologia que se dedica a investigar as possibilidades de conhecimento219 e Juan Antonio Nicolás e Maria José Frápolli resenharão as sete principais correntes de pensamento sobre a Verdade no Século XX, com seus desdobramentos, a enterrar definitivamente o conceito de verdade real e a retirar o sujeito do conhecimento da posição de aparente neutralidade que a filosofia positivista do século XIX entronizara.220 O juiz é o destinário da prova e, sem dúvida alguma, sujeito do conhecimento. Quando, porém, se dedica a produzir provas de ofício se coloca como ativo sujeito do conhecimento a empreender tarefa que não é neutra, pois sempre deduzirá a hipótese que pela prova pretenderá ver 219 HESSEN, Johannes. Teoria do Conhecimento, São Paulo, Martins Fontes, 2000. 220 NICOLÁS, Juan Antonio e FRÁPOLLI, María José. Teorías de la verdad en el siglo XX, Madrid, Tecnos, 1997. confirmada. Como as hipóteses do processo penal são duas: há crime e o réu é responsável ou isso não é verdade, a prova produzida de ofício visará confirmar uma das duas hipóteses e colocará o juiz, antecipadamente, ligado à hipótese que pretende comprovar. Assim, por exemplo, se uma testemunha X afirma sem muita convicção que viu o réu subtrair o carro da vítima e que estava ao lado de outra testemunha Z, não arrolada, a decisão do juiz, de ofício, de ouvir a mencionada testemunha Z só pode ser determinada pela convicção honesta de que a testemunha Z confirmará o fato. É evidente que se a testemunha Z negar o fato, o juiz tenderá a levar isso em consideração. Caso, porém, a testemunha confirme as declarações da outra, dificilmente o réu poderá acreditar que o juiz dará crédito a testemunhas que vier a arrolar para desmentirem as duas primeiras. Com isso estará quebrado o frágil equilíbrio em que se sustenta a imparcialidade do juiz no processo penal. No exemplo anterior o juiz não pesquisou fontes de prova, ressalva feita por Badaró para tentar fixar algum limite à atividade probatório de ofício do juiz.221 De todo modo, aceita a tese da inércia judicial, prosseguimos no plano específico da avaliação do material probatório recolhido pelas partes, para averbarmos que a plena liberdade de avaliação cede hoje, fora do Sistema Acusatório, perante duas distintas situações: o valor de compromisso da confissão do acusado, como assunção de um princípio de autonomia da vontade, nos casos de justiça penal consensual para os quais a resposta penal implique em uma solução mais favorável ao réu; e a admissão de um conjunto mínimo de provas legais negativas. 221 De acordo com Gustavo Badaró (Ônus da prova..., p. 119) a busca da prova pelo juiz não fere a imparcialidade desde que tais poderes de instrução sejam exercitados dentro de determinados limites. Para Badaró o juiz não está autorizado a buscar ―fontes de prova‖, atividade propriamente investigativa, mas poderá agir diante da notícia de uma prova, ―como a informação de que certa pessoa presenciou os fatos‖. A.1. -Do Livre Convencimento e a Confissão do Acusado — Soluções Consensuais Com efeito, uma nova concepção de retribuição, arrimada no propósito de provocar recíprocas influências entre acusado, vítima e sociedade, aproximando-os, resgata o valor da confissão para o processo penal, dessa vez, diferentemente do passado inquisitório, voltada a uma solução de compromisso que restaure a paz social. A idéia é evitar o processo de marginalização induzido pela pena de prisão, sacrificando, em uma mínima porção e nos limites que o próprio acusado e seu defensor entenderem razoáveis, o patrimônio jurídico do primeiro. Para tanto, renove-se a advertência, há de se conceber o acusado como ser dotado de autodeterminação e responsabilidade, que não podem ser legítima e paternalmente tuteladas, reivindicando-se, nessa postura, uma reação do juiz limitada pelo definido espaço de consenso e não subordinada à busca da descoberta da verdade real a qualquer preço.222 Neste ponto, modificamos parcialmente o entendimento esposado até esta edição (3ª). Sustentamos no passado que não havia dúvida de que a implementação do princípio acusatório, na hipótese, consideraria não somente o conjunto de poderes, direitos e deveres dos sujeitos processuais, perspectivados estaticamente, mas ainda nas suas relações sucessivamente desenvolvidas. Com base nisso, ao se analisar a posição do acusado e seu defensor em um regime inspirado no princípio acusatório, novamente em que pese à força dos argumentos de Teresa Armenta Deu,223 teríamos de reconhecer que o exercício concreto do direito de defesa pode ser renunciado, sublinhe-se, excepcionalmente, desde que admissível à luz da Constituição e conforme os interesses peculiares do 222 Dias, Jorge de Figueiredo. Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código de Processo Penal, p. 29. 223 Deu, Teresa Armenta. Principio Acusatorio y Derecho Penal, pp. 26-28. acusado, interditada a resposta penal tradicional, tal seja, a prisão ou outra qualquer, de significativa gravidade.224 Na realidade, o princípio acusatório oferece pouca contribuição na análise das soluções consensuais, especialmente fundadas na renúncia ao direito de defesa. Com efeito, toda construção acusatória foi concebida para edificar o direito de defesa. A partir da experiência das práticas judiciais não-penais, que há séculos reconheciam a importância do direito de defesa, os autores iluministas e os primeiros penalistas do século XIX, Carrara à frente, sustentaram a importância de levar a Defesa ao processo penal. A principal diferença prática entre os processos acusatório e inquisitório, além da distinção entre juiz e acusador, consiste na previsão de defesa. Portanto, quando o processo abre mão das atividades defensivas clássicas – de resistência à pretensão de condenação -, caminha-se para trás, ressuscitando o modelo inquisitório. É certo que os modelos de solução consensual da atualidade – como a transação penal e a suspensão condicional do processo – não podem ser comparados às práticas brutais da inquisição. A configuração constitucional de várias garantias, como as que proíbem o juiz de considerar as provas obtidas por meios ilícitos, vedam a tortura e estabelecem a 224 Sobre a renúncia ao exercício de direitos fundamentais em consideração à relação jurídica estabelecida entre o sujeito titular do direito e o Estado, devedor, convém examinar Novais, Jorge Reis, in Renúncia a Direitos Fundamentais: Perspectivas Constitucionais, vol. I, org. Jorge Miranda, Coimbra, 1996. Salienta textualmente o autor, forte nas lições de Dworkin, que, se a titularidade de um direito fundamental é uma posição jurídica de vantagem do indivíduo face ao Estado, é um ―trunfo‖ nas mãos do indivíduo... então da própria dignidade da pessoa humana e do princípio da autonomia e de autodeterminação individual... decorre o poder de o titular dispor dessa posição de vantagem, inclusivamente no sentido de a enfraquecer, quando desse enfraquecimento, e no quadro da livre conformação da sua vida, espera retirar benefícios que de outra forma não obteria (p. 287). inviolabilidade do domicílio, das comunicações telefônicas e de dados tutelam a dignidade da pessoa humana e acabam funcionando como barreira ao retorno automático e irreversível ao princípio inquisitório. Os modelos consensuais da atualidade, portanto, estão em um meio caminho. Inspirados, por um lado, na ideologia da inquisitorialidade, organizam o procedimento de sorte a torná-lo mais célere, para tanto requisitando o consentimento do próprio suspeito ou acusado. Limitados, por outro lado, pelas garantias constitucionais acima referidas, só servem ao direito processual penal do Brasil para evitar a aplicação de pena de prisão e, assim, reduzem o nível de violência que normalmente marca o funcionamento dos Sistemas Penais da periferia. Embora fora da matriz acusatória o consentimento do acusado em sofrer pena sem se defender pode, porém, beneficiar-se do Sistema Acusatório. Com efeito, como a defesa é da essência do citado sistema, as possibilidades de se abrir mão dela devem proporcionar a preservação da liberdade do imputado, no grau máximo de desvantagem a que estará sujeito o réu. Caso o acusado esteja sujeito a sofrer pena privativa de liberdade, risco que corre no processo tradicional, o procedimento automaticamente se transforma, convertendo-se naquele que garante ao réu o direito ao devido processo legal. A condição de validade indispensável à produção de efeitos da dispensa de defesa está vinculada ao direito de o acusado ser cabalmente informado da acusação e das alternativas que lhe são postas, conhecimento inerente ao princípio do contraditório que, por sua vez, integrando aquele conjunto de direitos invocado por Figueiredo Dias, serve à conformação da convicção judicial e, portanto, também é condição de eficácia do princípio acusatório.225 Vale frisar que o comportamento processual do 225 No sentido do direito à informação integrar o princípio contraditório e este, por seu turno, o princípio acusatório, ver, por todos, Joan Vergé Grau, La Defensa del Imputado, pp. 119-120, ao contrário de Teresa Armenta Deu. acusado, caracterizado por aceitar passivamente a inflição de pena sem defesa, é equiparado à confissão porque na perspectiva psicológica é assim que as pessoas sentem e reagem ao fenômeno. O fato de as leis, como a brasileira, proibirem a consideração da transação penal como causa de reincidência e não extraírem conseqüências civis, vedando a produção de efeitos civis em favor do lesado, não muda a realidade. O réu é tratado como culpado, não incidindo aqui a presunção de inocência. Outros efeitos, civis e penais, que não se produzem são opções de política criminal para estimular a aceitação da proposta de pena sem defesa. Ao juiz nestas hipóteses fica muito pouco a fazer. A sua atuação é residual. Deve comprovar a existência das condições para a formulação e aceitação das propostas de consenso e diante destas condições deverá homologar as soluções. Neste aspecto o convencimento do juiz fica restrito aos limites construídos consensualmente pelas partes. A.2. Das Provas Legais Negativas O segundo limite a considerar, relativamente ao estatuto jurídico do juiz, no processo penal condenatório, tem a ver com o reconhecimento de que as decisões judiciais não são emanações de um poder divino e que a divindade que podem em si mesmas carregar é aquela própria ao que de sublimemente divino é inerente a todo ser humano. Assim, temos de aceitar o erro como algo típico da natureza humana e admitir que o juiz, por mais ponderado, sensível e preparado que seja, não está imune a errar. Ocorre, todavia, que o erro em desfavor do acusado, no processo penal, quando é descoberto converte-se em um drama público que afeta a quase todas as pessoas e, quando permanece encoberto, corresponde à mais terrível das injustiças, porquanto o acusado não tem sequer meios de compartilhá-la. Deste modo, a instituição de provas legais negativas tem inequívoco valor garantístico, assim compreendidas estas provas como postulações da limitação ao livre convencimento do juiz, para condenar.226 Isso acontece sempre que as provas legais negativas resultarem de uma medida de cautela do legislador, adotada ponderada e restritamente, em observância às regras retiradas da experiência ordinária. A exigência do exame de corpo de delito, estatuída no artigo 158 do Código de Processo Penal, para reconhecimento do fato típico que deixa vestígios, serve de exemplo de prova legal negativa. Sem o exame de corpo de delito, em regra, o juiz não poderá reconhecer o fato típico e sequer poderá afirmar o vínculo de causalidade.227 O princípio acusatório é um princípio de garantia e, pois, não pode ser incompatível com uma regra também de garantia, extraída da incontestável comprovação da falibilidade humana. Na projeção da divisão de poderes do Estado, no processo penal, típica do princípio democrático, conformador do acusatório, enquanto ao juiz cabe julgar, isto é, apresentar imperativamente a solução do caso penal, e ao executivo deduzir a pretensão condenatória ou encarregar-se da investigação criminal, ao legislador incumbe prover as regras de garantia que viabilizem o justo processo. Neste equilíbrio que tantos vezes é precário, a previsão legal de determinado tipo de prova para a proclamação do veredicto condenatório é perfeitamente assimilável, assim como é aceitável a proibição, em tese, da aquisição e ingresso, no processo, de determinados meios de prova, em alusão a princípios éticos. B. Da Alteração dos Fatos 226 Gomes Filho, Antonio Magalhães. O Direito à Prova no Processo Penal, pp. 32-33. 227 O artigo 167 do Código de Processo Penal prevê, excepcionalmente, a possibilidade de suprir a ausência do exame por prova testemunhal, em virtude de haver desaparecido os vestígios. De toda maneira, em nenhuma hipótese será aceita a confissão do acusado para suprir a ausência do citado exame. Para finalizarmos a abordagem relativa ao estatuto do juiz, de conformidade com o princípio acusatório, é necessário ainda enfrentarmos dois pontos nevrálgicos: a convicção fundada sobre a qualificação jurídica da infração penal; e, conseqüentemente, o arbitramento motivado da correspondente sanção. Trata-se, dito de outra maneira, do princípio da congruência ou da correlação entre acusação e sentença.228Pode o juiz, validamente, condenar o réu por fato distinto daquele que é imputado na denúncia ou queixa? É básico o princípio jura novit curia, em vista do qual o juiz certamente pode resolver a questão de mérito de acordo com a qualificação jurídica que estime mais ajustada aos fatos provados. Porém, em se tratando de processo penal condenatório, cabem alguns cuidados, em vista do fim de evitação de prejuízo ao exercício da defesa e, principalmente, com o objetivo de preservar a dinâmica dialética, pela qual às partes incumbe a apresentação de tese e antítese e ao juiz, como coroamento do processo, a produção da síntese ou a escolha da tese que reputa mais acertada. Enrique Ruiz Vadillo assinala o seguinte:229 Es imprescindible que entre el objeto de la acusación y el qui sirve de soporte a la condena haya homogeneidad. La razón de la exigencia es la misma: la proscripción de toda indefensión. Son todas ellas manifestaciones del mismo principio. Si 228 Sobre o tema, além dos textos adiante referidos, cumpre examinar duas obras de inequívoco valor: Contributo alla Teoria della Sentenza Istrutoria Penale, de Pietro Nuvolone, Padova: Cedam, 1969; e ―La Correlazione fra Accusa e Sentenza nel Processo Penale‖, de Giuseppe Bettiol, in Scritti Giuridici, tomo I, Padova: Cedam, 1966. No direito brasileiro há também os extraordinários trabalhos: A Sentença incongruente no processo penal, de Diogo Malan (Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2003) e Correlação entre acusação e sentença, de Gustavo Badaró (São Paulo, RT, 2000). 229 Vadillo, Enrique Ruiz. El Principio Acusatorio y su Proyeccion en la Doctrina Jurisprudencial del Tribunal Constitucional y Tribunal Supremo, p. 27. alguien es acusado de hurto y de este delito se defiende, si se encuentra, después, com una condena por coacciones, aunque la pena sea inferior y hasta le pueda producir satisfacción espiritual el cambio del título de imputación, por tener este último una menor carga de reproche social, no cabe duda de que há quedado indefenso porque frente a esse delito de coacciones no se há podido defender de una manera eficaz. Como mencionamos, ao aludirmos ao estatuto jurídico do autor, uma das suas facetas mais importantes está em determinar o objeto do processo, em relação ao qual serão deduzidas as provas e haverá de se circunscrever a sentença. Trata-se de exercício da função de acusar, pois fundada em um juízo provisório da existência de determinada infração penal (a existência de justa causa), coloca-se ao réu a infração que se lhe imputa, no plano duelístico peculiar à relação processual. É exatamente isso, ou, com outras palavras, cuida-se aqui do fenômeno da imputação, ao qual em um processo penal democrático há de corresponder a atividade de defesa, por força das garantias das convenções internacionais. Assim, quando por exemplo o Ministério Público atribui ao réu a prática de determinado furto, imputando-lhe esse furto, permite que o réu se defenda dessa imputação. O acusado pode confiar na eficiência da defesa, pois sabe que é o acusador que lhe imputa o delito e não o juiz. Também Grau, na linha de pensamento aduzida por Vadillo, concorda que, com independência de suas mais ou menos amplas faculdades de modificar a qualificação jurídica do fato, não pode o Tribunal alterar o objeto do processo, nem, e isto é sumamente importante, condenar por fatos de que o acusado não tenha podido defender-se.230 Caso seja admitida a alteração substancial dos fatos, por iniciativa do tribunal, ainda quando seja dada oportunidade 230 Grau, Joan Vergé. La Defensa del Imputado, p. 43. ao contraditório, do ponto de vista psicológico sem dúvida estará sensivelmente diminuída a possibilidade de o acusado se defender de verdade. A partir do exemplo anterior, podemos imaginar como deve se sentir o acusado ao saber que é o juiz que lhe imputa o crime de furto. A alteração da acusação equivale à alteração do pedido e da causa de pedir da ação penal, caso se queira trabalhar com categorias herdadas do processo civil, e a implementação da alteração da acusação representa modificação de elementos capitais da ação, direito do autor. Ao fazê-lo, isto é, ao se permitir que o juiz altere o teor da acusação, na verdade o que ocorre é que se admite que o juiz revolva a substância do direito da parte, que não lhe pertence. Voltando ao exemplo anterior, podemos imaginar a posição do acusado diante do quadro criado por uma acusação do Ministério Público por receptação, transformada em acusação de furto pelo juiz. Um contraditório porventura instaurado nestes termos é irreal, pois não há reação possível se o ato de conformação da acusação não parte do adversário mas do julgador, ou, de outra maneira, se o julgador se transforma em adversário. De que adiantará ao réu receber os autos do processo por oito dias para falar e, se quiser, poduzir provas (artigo 384, caput, do Código de Processo Penal brasileiro) se está evidente que será condenado por furto? Assinale-se com isso que não se trata de retornar ao tempo da teoria da individualização da causa de pedir, superada nesta quadra do desenvolvimento do processo penal pela teoria da substanciação.231 Em termos gerais, contudo, podemos aduzir que se a identificação da causa de pedir, base da pretensão, está determinada pelo suposto de fato, tal seja, pelo elemento fático invocado, a realidade é que tal elemento só tem relevância no processo penal na medida em que está abrigado em uma moldura normativa definida (tipo penal de crime) e vem descrito, com seus elementos e circunstâncias, no ato formal de acusação, como exige o 231 Mellado, ob. cit., p. 39. artigo 41 do Código de Processo Penal brasileiro. Conforme o caso, matar alguém é crime ou não e poderá caracterizar ação dolosa ou culposa. Não são irrelevantes as distinções (homicídio doloso, culposo, latrocínio, indiferente penal por culpa exclusiva da vítima etc.). Ao juiz caberá, de acordo com o princípio tantas vezes aludido — jura novit curia —, a dicção do direito aplicável à espécie. Assim, ao reconhecer que o fato provado é diverso daquele imputado ao réu pelo acusador, o juiz não poderá proferir decisão condenatória. Não é possível tomar o lugar do juiz nesta tarefa de reconhecer o direito que regula a situação concreta. O juiz não poderá, entretanto, levar em consideração suposto de fato, ainda que verdadeiro, diferente daquele posto em causa pela acusação, nem tampouco deverá propor qualificação jurídica distinta daquela apresentada pelo autor da ação penal se isso significar surpresa para a defesa em razão das peculiaridades do processo penal, como é o caso do concurso aparente de normas (de tipos penais coexistentes), para cuja solução nem sempre doutrina e jurisprudência estão pacificadas.232 Podemos acentuar que o princípio da substanciação no processo penal é mitigado, em face do princípio da ampla defesa. Apenas critérios de obrigatoriedade da ação penal, de economia processual e da necessidade de reafirmação do poder do Estado frente à criminalidade, os dois últimos tipicamente decorrentes do princípio inquisitório, que 232 Pela atual redação o artigo 383 do Código de Processo Penal brasileiro permite que o juiz atribua nova qualificação jurídica ao fato imputado ao réu, para corrigir erro de qualificação, ainda que em razão disso venha a aplicar pena mais grave. É a denominada emendatio libelli, descrita nestes termos: Art. 383. O juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da que constar da queixa ou da denúncia, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave. Com essa redação e a pretexto de corrigir erro de qualificação da denúncia, o juiz poderá, por exemplo, reconhecer o concurso material entre o crime de falso e o de estelionato, quando o Ministério Público imputou somente o de estelionato em virtude de entender que este crime absorveu o falso (crime fim absorvendo o crime meio). E tudo isso sem a audiência prévia do réu. repudiamos, conferirão suporte a atitudes do tipo que autoriza o juiz, de ofício, a proceder à modificação da causa de pedir. Em percuciente análise acerca da correlação entre acusação e sentença, no direito brasileiro, Diogo Malan talvez seja hoje o único autor a chamar atenção para a permanência inquisitorial embutida no Código de Processo Penal de 1941, nesta área específica e para a política de segurança pública que ela expressa. Assinala Malan: ―O golpe de Estado de 1937 foi justificado pela necessidade de se reforçar a autoridade governamental, garantindo-se a ordem pública, a legalidade e as instituições sociais – em meio a uma conjuntura de crise de autoridade, causada pelas tensões sociais: a autoridade nacional pressupõe uma ordem una e orgânica, e o princípio da autoridade é reforçado como um pilar em torno do qual se constrói a nacionalidade‖.233 Acrescenta Malan: ―As ferramentas que serviram a essa restauração da autoridade estatal foram o estado de guerra, o Tribunal de Segurança Nacional, a reforma da Lei de Segurança Nacional e o próprio Digesto Processual Penal: o terreno da lei surge, assim, como um espaço privilegiado para a racionalização da autoridade e para a ocultação do discurso da violência, uma vez que este utiliza a linguagem da ordem e da lei‖.234 Ora, quando ocorre de o processo penal assumir as prerrogativas de Estatuto de Segurança Pública, no lugar de Código de implementação de garantias constitucionais, o processo se afasta, naturalmente, do leito seguro e democrático de um processo de partes, conforme o princípio 233 234 MALAN, Diogo Rudge. A Sentença..., op. cit., p. 4. Idem. acusatório, pelo qual responsavelmente o autor avalia e ajuíza a sua pretensão, consoante a compreensão que detém da qualificação jurídica dos fatos provados. Supor que o Ministério Público não saiba qualificar juridicamente os fatos apurados no inquérito policial é estar em rota de colisão com a realidade. Eventuais erros materiais podem ser corrigidos pelo juiz, ouvido o acusador e o réu. Pontos de vista diferentes sobre a qualificação jurídica, porém, não podem ser impostos ao acusador, sob pena de o juiz tomar o lugar dele. É razoável que se possibilite ao acusador modificar, em face das provas surgidas durante a audiência, a qualificação jurídica do fato, quer reconhecendo outro mais grave, quer reconhecendo outro de igual ou menor gravidade que o original. Porém, admitir que o juiz o faça afronta o princípio acusatório, o que não é aceitável, mas se admite, quando muito, em uma medida de preservação das garantias do acusado, modificando-se a qualificação jurídica do fato para outra, que corresponda à infração de igual ou menor gravidade. São, contudo, condições sine qua non de validade da alteração que o fato novo esteja descrito na acusação inicial (ou no chamado aditamento), portanto deve estar contido nela com todas as suas circunstâncias, e à defesa deve ser oferecida oportunidade de debater e, eventualmente, se entender o defensor necessário, produzir provas, para que somente então seja proferido decreto condenatório. A desclassificação de roubo para furto, por exemplo, será possível porque o fato furto está contido no roubo. Não será possível, porém, reconhecer uma qualificadora do furto não descrita de forma expressa na denúncia por roubo. O ideal, conforme o princípio acusatório, é que apenas ao autor seja permitido alterar a qualificação jurídica do fato, em qualquer hipótese. Se o acusador persistir na posição original, com a qual o juiz não concorda, cabe a este absolver o acusado, o que não impediria o processo pelo fato realmente verificado, já que este não foi objeto de deliberação, com força de coisa julgada. Aqui, entretanto, mudamos nossa opinião em relação às duas edições antecedentes do Sistema Acusatório. No início defendíamos que não afetava a hipótese o princípio da proibição de bis in idem235 porque o fato julgado, independentemente da qualificação jurídica que as partes lhe atribuam, é diferente do fato real, revelado ao longo do processo. Não é bem assim, A regra é que ninguém será processado duas vezes pelo mesmo fato. A exceção em termos de garantia em prol do acusado só pode favorecer o acusado. Assim, independentemente de o fato real ser reconduzido de alguma forma ao tipo de crime expressado na causa de pedir da ação penal deduzida no processo concluído, numa relação qualquer de continente a conteúdo (como no exemplo de furto e roubo, em que o furto está contido no roubo), o segundo processo está proibido. A oportunidade de a acusação demonstrar o fato sobre o qual funda a sua pretensão é única. De acordo com a Convenção Americana de Direitos Humanos (Decreto n. 678/92) ou o acusador demostra a correção da sua pretensão ou não poderá mais processar o réu. Assim ocorre, segundo defendemos, como conseqüência das implicações políticas e jurídicas do princípio do favor rei, atuando como obstáculo aos abusos que inevitavelmente poderiam advir da divergência de juízos entre o acusador e o julgador. Em conclusão, diga-se também que mesmo o simples ajustamento da qualificação jurídica da infração penal, em obediência ao princípio jura novit curia, ainda quando a petição inicial acusatória descreva minuciosamente o fato, haverá de ser promovido antes da emissão da sentença, assim como as partes têm de ser provocadas para se manifestarem sobre circunstâncias que agravam ou diminuem a pena, tornando a matéria alvo do debate contraditório, que é o núcleo fundamental da máxima 235 Ver artigo 8º, nº 4, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos Decreto nº 678/92. acusatoriedade.236 Na Espanha, decidiu o Tribunal Constitucional, sobre o assunto, da seguinte forma: Correspondiendo, ante todo, al Tribunal la calificación jurídica de tales hechos en virtud del principio iura novit curia, sin que pese a ello esa calificación sea aleja al debate contradictorio, el cual recae no sólo sobre los hechos, sino también sobre su calificación jurídica. (STC. 105/1993, de 23 de novembro de 1993)237 Em Portugal, onde há constitucional previsão da adoção do sistema acusatório, a disciplina da alteração substancial dos fatos está condicionada à seguinte máxima: Para além da introdução do facto em juízo, à acusação tem por função a delimitação do âmbito e conteúdo do próprio objecto do processo, é ela que delimita o conjunto dos factos que se entenderem consubstanciarem um crime.238 Assim, há para 236 O artigo 385 do Código de Processo Penal brasileiro dispensa a audiência prévia da defesa e da acusação nos casos em que o juiz reconhece agravantes não alegadas pelo autor da ação penal. Isso também viola o princípio acusatório. 237 Grau, Joan Vergé. La Defensa del Imputado, p. 121. Enrique Ruiz Vadillo também, por sua vez, traz à luz decisão do Tribunal Superior Espanhol, proferida em 28 de setembro de 1989, cujos termos são, literalmente, os seguintes: No se puede penar un delito más grave que el que haya sido objeto de acusación; No se puedem castigar infracciones que no hayan sido objeto de acusación; No se puede considerar un delito distinto del que fue objeto de acusación, aunque las penas sean iguales o incluso cuando la correspondiente al delito innovado sea inferior a la del delito objeto de acusación a menos que reine entre ellos una patente y acusada homogeneidad; No puedem apreciarse circunstancias agravantes o subtipos penales que no hayam sido invocados por la acusación... (El Principio Acusatorio y su Proyeccion en la Doctrina Jurisprudencial del Tribunal Constitucional y Tribunal Supremo, pp. 33-34). Acrescenta este último que o processo penal é um tríptico, sendo imprescindível que exista um acusador, um acusado e um juiz, o qual não pode ocupar outra posição que não seja a de julgar, porque, de outro modo, estará sendo, ao mesmo tempo, acusador e juiz. 238 Isasca, Frederico. Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, Coimbra: Almedina, 1992, p. 54. o juiz limitação temática, traçando-se as fronteiras da pesquisa das provas. A ampliação da acusação, como registramos, demanda a iniciativa do acusador e, a partir de determinada etapa do processo, consentimento do próprio réu em se ver processado conforme a alteração, dando origem ao chamado caso julgado de consenso.239 O foco no poder de definição do crime imputado ao réu e o tratamento dispensado à matéria pelo Código de Processo Penal brasileiro de 1941, inspirado no Código Rocco, demonstram que a manipulação das funções processuais para atribuir ao juiz atividade de parte autora, com independência da gestão da prova, encarna a política criminal da inquisitorialidade. A gestão das provas nas mãos do juiz também caracteriza a inquisitorialidade. E é assim porque deduzir provas e deduzir a acusação são comportamentos processuais das partes que se movem no processo motivadas por interesses distintos do interesse do juiz. Este é ditado pela imparcialidade e a presunção de inocência atua como princípio constitucional de controle dessa imparcialidade. Modificar o teor da acusação e produzir provas de ofício são atividades que, em suma, atentam contra a presunção de inocência.240 239 Isasca, Frederico. Ob. cit., p. 59. 240 Comissão instituída no âmbito do Miistério da Justiça, mediante Aviso n. 1.151, de 29 de outubro de 1999, presidida por Ada Pellegrini Grinover, apresentou diversos anteprojetos de reforma do Código de Processo Penal brasileiro. Entre eles está o que se transformou no Projeto de Lei n. 4.207/01, que cuida da emendatio libelli e da mutatio libelli, respectivamente previstas nos artigos 383 e 384 do Código de Processo Penal. Para adequar os citados dispositivos legais ao princípio acusatório estes passaram a ter a seguinte redação: Art. 383. O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave. § 1º. As partes, todavia, deverão ser intimadas da nova definição jurídica do fato antes de prolatada a sentença. §2º. A providência prevista no caput deste artigo poderá ser adotada pelo juiz no recebimento da denúncia ou queixa. §3º. Se, em conseqüência de definição jurídica diversa, houver possibilidade de proposta de suspensão condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o disposto na lei. §4º. Tratando-se de infração da competência do Juizado Especial Criminal, a este De tudo quanto foi exposto, acredita-se tenhamos abordado os elementos que emolduram o princípio acusatório, quer avaliado na estática observação das funções primordiais no processo, quer em vista da dinâmica determinada pelas relações sucessivas e ordenadas entre os principais sujeitos: autor, réu e juiz. Cabe, do que foi referido, mencionar que a presença, no ordenamento jurídico, do princípio acusatório, é fundamental para a constituição do sistema acusatório, mas não suficiente. Os clássicos autores, citados na introdução deste item, tiveram, a nosso juízo, a lucidez de perceber que o princípio democrático projetado no processo penal não se esgota, tãosomente, no modo como os sujeitos processuais se portam, em relação à lide ou ao caso penal. É indispensável, também, estabelecer um estatuto do próprio processo, concernente à forma como aparece perante a sociedade, na qualidade de instrumento legítimo de solução deste caso. Nesta hipótese, as normas e princípios sobre a forma processual estão reciprocamente vinculados ao modelo de processo penal democrático, apenas uma das variáveis possíveis, mas aquela escolhida politicamente para ser implementada. Aí entram em jogo a oralidade e a publicidade. 3.2.3. CARACTERÍSTICAS DO SISTEMA ACUSATÓRIO serão encaminhados os autos. Art. 384. Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público poderá aditar a denúncia ou queixa, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento quando feito oralmente. §1º. Ouvido o defensor do acusado e admitido o aditamento, o juiz, a requerimento de qualquer das partes, designará dia e hora para a continuação da audiência, com inquirição de testemunhas, novo interrogatório do acusado, realização de debates e julgamento. §2º. Aplicam-se ao previsto no caput deste artigo as disposições dos §§ 3º e 4º do art. 383. §3º. Havendo aditamento, cada parte poderá arrolar até três testemunhas, no prazo de três dias. §4º. Não recebido o aditamento, a audiência prosseguirá. Com efeito, Ferrajoli destaca que a oposição dicotômica entre acusatório e inquisitório implica em designar uma dupla alternativa: de um lado, modelos opostos de organização judicial; de outro, métodos diferentes de averiguação judicial. Do primeiro ponto defluem distintas concepções de juiz penal, enquanto do segundo dimanam dois tipos diversos de juízos.241 Na seqüência, adverte o doutrinador que se pode chamar acusatório a todo sistema processual que concebe o juiz como um sujeito passivo rigidamente separado das partes e o juízo como uma contenda entre iguais iniciada pela acusação, a quem compete o ônus da prova, enfrentada a defesa em um juízo contraditório, oral e público e resolvida pelo juiz segundo sua livre convicção. A organização da Justiça Criminal, portanto, configura o ambiente em que o processo será instaurado e se desenvolverá. E as estruturas processuais terminam contaminadas pelas modernas burocracias em que se constituem os Poderes Judiciários atuais, de tal modo que a Justiça Criminal será mais ou menos acusatória, com independência da previsão legal do princípio da tripartição de funções, conforme forem mais ou menos favoráveis a isso as próprias burocracias estatais. O princípio acusatório não sobrevive em modelos de Justiça Criminal dominados pela escrituração. Tampouco tem espaço em processos sigilosos. É isso que será examinado nos itens subseqüentes. 3.2.3.1. Da Oralidade Na lição clássica de Francisco Morato,242 compreendese por oralidade a forma procedimental em virtude da qual estão reunidos os seguintes caracteres: 241 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 564. 242 Morato, Francisco. ―A Oralidade‖, in Processo Oral, Rio de Janeiro: Forense, 1940, pp. 1-24. • a predominância da palavra falada; • a imediatidade da relação do juiz com as partes e com os meios de prova; • a identidade física do órgão judicante em todo decorrer do processo; • a concentração da causa no tempo. Não se concebe procedimento penal no curso do qual atos de instrução criminal, tal seja, de aquisição e conservação das provas e de debates sobre o material incorporado, para o fim de conformação da convicção judicial, desdobrem-se no tempo, distantes uns dos outros e praticados perante diferentes juízes. Desde o interrogatório do acusado, nas hipóteses legais em que esteja previsto, até a audiência das razões finais das partes, a concentração dos atos processuais é imperativo de bom senso e de respeito ao direito ao julgamento justo, o que demanda, dadas as peculiaridades da expressão oral, fundamente o juiz sua decisão sobre aquilo com o que diretamente teve contato. Deve ser salientado que não é necessário que a sentença seja proferida oralmente, desde que seus fundamentos tenham decorrido da força do contato imediato com as provas, que vão impregnar o raciocínio judicial. Nem tampouco se dispensa a documentação dos atos praticados. Porém, o que é virtualmente da natureza do sistema acusatório, como proposição de uma estrutura voltada à efetivação do justo processo, é que, consoante há mais de cinqüenta anos afirmava Chiovenda, a audiência seja utilizada para o trato da causa.243 Lúcio Bittencourt advertia com precisão que livre convencimento sem processo oral é pura ficção.244 243 Chiovenda, Giuseppe. ―A Oralidade e a Prova‖, in Processo Oral, Rio de Janeiro: Forense, 1940, pp. 1-24 e 129-149. 244 Lúcio Bittencourt apud José Frederico Marques, in Elementos de Direito Processual Penal, vol. I, p. 73. Há que se considerar também, como faz Hassemer,245 que o caráter do processo penal reflete com grande clareza a racionalidade de uma cultura jurídica e a discussão política acerca das posições jurídicas na produção do caso e na preparação da sentença,246 postulado fundamental em nosso pensamento a respeito do sistema acusatório. O processo penal tem caráter histórico e político. Este tipo de processo se orienta em direção a uma espécie de procedimento que assegure a máxima contraposição dialética, sem perder de vista a noção básica de que não há dialética sem possibilidade de diálogo (dia: reciprocidade; logos: razão). E o diálogo pressupõe a compreensão do caso e das posições que os sujeitos processuais legitimamente devem ocupar, assim como a existência de um espaço onde possa ser travado. Explicando: a ênfase na oralidade como componente democrática do processo penal e elemento constitutivo do sistema acusatório tem a ver com o reconhecimento de que os métodos de aplicação do direito, ou melhor, de interpretação das regras jurídicas e de sua efetiva aplicação aos casos concretos, não abrangem toda a atividade intelectual do juiz quando sentencia. Os que conhecem a atividade de decidir têm clara a idéia de que a valoração dos fatos pelo juiz não se expressa de forma completa na sentença. Novamente recorrendo a Hassemer, vale dizer que haverá sempre uma parte de dita valoração que permanece oculta, que fica no âmbito da CONVICÇÃO ÍNTIMA.247 Nem mesmo o dever de motivação das decisões tem o poder de fazer revelar todas as forças que combinaram para levar o julgador a adotar determinada tese. Mais do que isso, na constituição da conclusão a propósito da existência da infração penal e da responsabilidade do imputado há a tendência de o juiz levar 245 Hassemer, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal, Barcelona: Bosch, 1984. 246 Ob. cit., p. 172, tradução livre. 247 Hassemer, Winfried. Ob. cit., p. 145. em conta as impressões registradas por ele durante o processo, formando sua convicção com base nelas, mas explicitando-a por meio de referência a métodos de interpretação — gramatical, histórica, teleológica ou sistemática — que em verdade servem apenas para expor racionalmente a própria conclusão, definida com anterioridade. Os que têm experiência forense sabem que não raramente as partes acreditam, em virtude do modo como o juiz dirige a audiência, que determinado tipo de prova está exercendo significativa influência na formação da convicção do julgador e acabam se surpreendendo quando leêm a sentença e descobrem que para o juiz a prova decisiva era outra, sobre a qual as partes não perceberam qualquer espécie de atenção diferenciada. Isso ocorre quando o mesmo juiz preside o processo do início ao fim e é ainda mais grave e perigoso quando são diferentes juízes, cada qual participando de uma etapa processual, os responsáveis pela aquisição e ingresso da prova no processo e por sua avaliação definitiva. Daí Hassemer distinguir, a nosso juízo com razão, entre os métodos de produção e de apresentação do resultado do processo, relacionando as chamadas técnicas de interpretação ao último caso.248 Para que a análise dos casos penais não se perca em um círculo de interpretação de textos — dos textos que registram, nem sempre fielmente, os depoimentos das testemunhas, aos das razões das partes e da sentença — é indispensável que o diálogo processual tenha lugar em um ambiente apropriado, no qual as provas sejam produzidas, as partes possam debater livremente e o juiz decida compreendendo na maior e melhor dimensão possível o que provavelmente aconteceu. A interpretação de textos será sempre atribuição de significados pelo intérprete; no entanto, como sublinha Lage, 248 Hassemer, Winfried. Ob cit., p. 148. todo texto implica versões ou teorias sobre os fatos,249 razão por que não existe texto descomprometido, o que em processo penal pode constituir veículo de injustiças e de perseguição política, social ou econômica. A oralidade deixa de ser, exclusivamente, uma questão de predominância da palavra falada para se constituir em exigência de que uma causa não seja decidida por juiz que não haja tido contato direto com as provas e com os argumentos das partes, em um ambiente capaz de proporcionar condições ideais de diálogo. Conseqüência do que está assinalado é que, além da natural identidade física do juiz, o julgamento dos recursos deve ficar restrito ao conhecimento de matéria exclusivamente jurídica, a não ser que seja permitido às partes desenvolver atividade probatória em segundo grau de jurisdição; ademais, o emprego das modernas tecnologias de comunicação terá de considerar a possibilidade de o juiz, destinatário das provas, ouvir, pessoalmente, as testemunhas mas não se deve aceitar que a inquirição delas, do réu ou mesmo que toda audiência tenha lugar em um ambiente hostil à liberdade de todos os envolvidos. O Tribunal Constitucional Espanhol, na sentença 96/1987, decidiu que o vínculo entre o Estado de Direito e a exigência de imparcialidade do julgador impunha a declaração de nulidade de julgamento levado a cabo em prisão de segurança máxima, onde supostamente foram cometidas pelos funcionários as agressões contra os detidos.250 Não custa lembrar, com María Josefina Martinez, que a tensão entre forma escrita e oral do processo penal foi resolvida no século passado (Séc. XX), em favor da forma escrita, porque os autos do processo (registro escrito dos atos processuais) tornaram-se espécie de ―produto direto‖ da 249 Lage, Nilson. Controle da Opinião Pública, Petrópolis: Vozes, 1998, p. 103. 250 López Ortega, ob. cit., p. 87. tradição burocrática do Estado moderno.251 A admissão de que a forma oral faz diferença – e não é mero capricho da moderna doutrina do processo penal -, está ditada pela compreensão da ideologia que orientou a escrituração no início do Séc. XX. Com efeito, como bem ressaltou Josefina Martinez, a forma escrita foi implementada como resultado do reconhecimento da superioridade da razão. A suprema capacidade humana de compreender a sua existência e perceber as leis da natureza que a regem refletia a postura científica positivista dominante no início do século passado. Quebrar as amarras com o divino (com suposta ordem natural emanada de Deus) e descobrir fórmulas racionais de regulação de todos os fenômenos passou a ser a obsessão daqueles tempos. O governo dos homens também haveria de ser orientado pela racionalidade e as burocracias deveriam exprimir esse domínio da razão em todas as etapas da gestão pública dos conflitos. Paradoxalmente, a realidade é que em termos de processo penal a burocracia da Inquisição fora a primeira a se instalar na Europa, muito antes do sucesso do positivismo e do direito natural fundado na razão. E a funcionalidade da burocracia do Sistema de Justiça Criminal da inquisição, com a previsão de seus recursos de ofício e a forma escrita dos atos processuais, revelara-se eficiente mecanismo de controle social.252 Assim, apesar de um primeiro momento de Reformas Processuais ter-se voltado à oralidade,253 o século XIX e o XX 251 JOSEFINA MARTÍNEZ, María. Expedientes, in: Sistemas Judiciales, Ano 4, n. 7, Buenos Aires, Centro de Estudios de Justicia de las Americas – CEJA, 2004, p. 4. 252 MAIER, Julio. Derecho Procesal Penal. I. Fundamentos., Buenos Aires, Editores del Puerto, 2002, p.261. 253 Vale a pena acompanhar a resenha de Franco Cordero acerca do desaparecimento e da reencarnação da Ordenação Criminal francesa de 26 de agosto de 1670, eliminada entre 1790 e 1800 e ressurgida dos debates viram florescer os processos penais da matriz européia continental (de que o nosso Código de Processo Penal de 1941 é herdeiro direto) construídos em cima de estruturas burocráticas da inquisição. Como foi dito, a forma escrita subtrai o contato do juiz com acusado e testemunhas. Incensada pelo culto à razão, faz supor que este contato é desnecessário: afinal, o que a visão direta da audiência pode ministrar que já não esteja nos autos?! O que não está nos autos não está no mundo! O mesmo poder de dominação que a Justiça Eclesiástica exercia por meio da Inquisição, em um mundo de poucos letrados e multidões de analfabetos, passou a ser exercido pelos órgãos do Estado, que manejavam (manejam) a linguagem técnica do Direito (e ainda mais técnica dos autos) para impor o Poder do Estado ao ditar decisões penais. Novo paradoxo: ninguém poderá escusar-se de cumprir a lei por alegar ignorância, desconhecimento da lei! Ainda que seja analfabeto. Todavia, as fórmulas escritas dos procedimentos penais estão acessíveis a poucos! Como controlar o conteúdo de justiça da sentença penal se não se compreende os termos da sentença fora do linguajar técnicojurídico? E, também e mais importante, como participar do ―diálogo‖ processual se a maioria das intervenções no processo é escrita e, por isso, essas intervenções exigem habilidade especial de que só advogados, Ministério Público e juízes são dotados? A oralidade converte-se em condição de participação efetiva no processo. Sem a mediação da forma escrita o acusado poderá se fazer ouvir, a vítima e as testemunhas também, e as decisões não terão como se ocultar em linguagens estranhas à vida cotidiana. Neste ponto percebe-se que oralidade não é mera questão de forma. A matriz acusatória depende dela para definir os papéis concretos exercitados pelos sujeitos legislativos, na forma do Código de Instrução Criminal de 1808. CORDERO, Franco. Procedimiento..., op. cit., p. 26-59. processuais. A defesa oral, na frente do réu, exige que o defensor demonstre conhecimento da causa e se empenhe em busca do resultado mais favorável ao acusado. Não bastam reiterações de manifestações escritas anteriores. Da mesma maneira a acusação deverá se posicionar sobre a prova. E o juiz exporá as razões de sua decisão. A troca de papéis (mutatio libelli) entre acusação e juiz é bastante dificultada. É bem verdade que a cultura autoritária, legado da Inquisição, produz suas permanências. Assim, é válida a advertência de Josefina Martinez quanto à tendência de transformar os processos orais criados com as Reformas na América Latina em processos escritos, na prática, com a recolocação da escrituração no centro mediante recurso a apresentação de memoriais após as audiências.254 O cuidado está em não permitir que isso signifique a renovação da centralidade da escrituração, com todos os defeitos acima enunciados, preservando-se a identidade física do juiz e o pronunciamento fundamentado das partes. Meios mecânicos ou eletrônicos de registro fiel das intervenções de partes e testemunhas contribuirão, por certo, para a adoção da filosofia da oralidade. 3.2.3.2. Da Publicidade A publicidade também se insinua como característica do sistema acusatório, na medida em que o segredo, como ficou assentado em outra passagem, é compatível, como regra geral, exclusivamente com regimes autoritários e processos penais inquisitórios. I. DA PUBLICIDADE TRADICIONAL Cumpre dizer, em abono ao acima mencionado, que a publicidade tanto pode ser analisada como decorrência da 254 JOSEFINA MARTÍNEZ, María. Expedientes, op. cit., p. 6. necessidade de participação do público na gestão da coisa pública, inclusive, evidentemente, na gestão das decisões judiciais sobre os casos penais, como pode ser vista na condição de dar ao público, na qualidade de espectador, satisfação a respeito da maneira como os agentes do Estado exercem as suas funções. Neste último caso, frisa com seguro fundamento Vicente Greco Filho, atende a publicidade à função de garantia das outras garantias, inclusive da reta aplicação da lei,255 por cujo meio podem os cidadãos controlar, de forma adequada, o cumprimento da exigência de respeito aos direitos básicos, além da moralidade e impessoalidade da ação estatal. Sem perigo inaceitável para o sistema, a publicidade fica limitada somente nas situações pertinentes à preservação de outros direitos fundamentais, por meio da coordenação do exercício de tais direitos, de acordo com o princípio da proporcionalidade. Justamente em virtude das restrições designadas expressamente na Constituição da República de 1988, classifica-se em publicidade para as partes e em geral e, sob outro aspecto, em imediata e mediata, definindo-se a publicidade interna como orientada com exclusividade às partes.256 A eleição da publicidade como elemento comum e permanente do processo permite-nos chegar à conclusão de que, contemporaneamente, o próprio processo pode ser definido como procedimento público em contraditório. Reduzida a publicidade, fora dos casos expressamente previstos nas Constituições e nas leis (no Brasil, na Constituição da República), os atos processuais não estarão aptos a produzir efeitos jurídicos, sendo, por isso, inválidos. De acordo com o magistério de López Ortega, a publicidade para as partes, ou interna, significa que todos os 255 Greco Filho, Vicente. Tutela Constitucional das Liberdades, São Paulo: Saraiva, 1989, p. 113. 256 Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. 1, p. 75. atos processuais das partes, do juiz e dos demais sujeitos deverão ser conhecidos na totalidade e tempestivamente pela parte adversa,257 razão por que defende que este modelo de publicidade está ligado ao princípio do contraditório. É evidente que os atos de investigação criminal (inquérito policial e outros) dependerão, na maioria das vezes, da preservação do sigilo para que conduzam a resultados positivos. Pode-se dizer, então, que estes atos, embora procedimentais e sujeitos ao princípio da legalidade, não têm valor processual, não são atos processuais, e, independentemente de passarem pelo filtro do contraditório, nunca estarão dotados da aptidão para produzir efeitos jurídicos. Todavia, no curso da investigação preliminar, atos processuais de natureza cautelar poderão ser necessários e deverão ser praticados. Neste caso, a publicidade interna funciona como referimos anteriormente, ao tratarmos da Defesa, de forma diferida, muito embora não se possa recusar à Defesa acesso às informações porventura obtidas e aos procedimentos adotados por ordem judicial. Em perspectiva parecida colocam-se as questões dos procedimentos híbridos, que não são exclusivamente investigação criminal (etapa de preparação para o exercício da ação penal) e também não são processos penais em sua inteireza, pois nem sempre estão munidos de eficácia jurídica para dar ensejo a soluções de mérito definitivas, capazes de submeter decisões à qualidade de coisa julgada material. No Brasil, temos o termo circunstanciado, previsto no artigo 69 da Lei no 9.099/95, que substitui o inquérito policial em relação às chamadas infrações penais de menor potencial ofensivo. Trata-se, sem dúvida, de modalidade de investigação criminal cuja instauração define a priori quem é o investigado e quem é o suposto ofendido, de sorte a estabelecer posições processuais que serão importantes conforme o desenrolar do procedimento. A rigor, como procedimento de investigação, o termo 257 López Ortega, ob. cit., p. 41. circunstanciado deveria estar protegido pelo sigilo peculiar a toda investigação criminal. No entanto, as regras dos artigos 74, 75 e 76 da Lei, prescrevendo a possibilidade de o investigado, do ofendido e do Ministério Público chegarem a acordo sobre a composição do conflito em torno de infração penal de menor potencial ofensivo, transação a ser homologada por sentença, gera a necessidade de dotar estes procedimentos do mesmo tipo de publicidade que acompanha os processos penais tradicionais. De outra maneira, estaríamos subtraindo do público os mecanismos de solução destes conflitos de interesses, cuja solução, em que pese não importar em aplicação de pena privativa de liberdade, poderá representar frustração aos princípios de moralidade, legalidade e impessoalidade. Convém ressaltar que no caso brasileiro a Emenda Constitucional n. 45, de 08 de dezembro de 2004, modificou a redação do artigo 93, inciso IX, da Constituição da República, no trecho em que trata do sigilo. A redação original era a seguinte: Art. 93. [...] IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes. Este dispositivo está em harmonia com o artigo 5º, inciso LX, da Constituição da República brasileira, que não foi alterado pela referida Emenda: Art. 5º. [...] LX – a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem. Pela nova redação, trazida pela Emenda 45, o artigo 93, inciso IX, da Constituição da República brasileira passa a ter a seguinte redação: IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação. Em nossa opinião, a mudança do dispositivo constitucional há de ser interpretada com todo cuidado. A regra permanece sendo a publicidade dos atos processuais. A exceção não pode prejudicar o direito de defesa a ponto de inviabilizá-lo. Portanto, a cláusula ―em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação‖ há de ser interpretada como exigência de ponderação dos interesses em jogo, com prevalência do interesse público à informação. Somente quando o predomínio deste interesse público transformar-se em causa de dano à honra, imagem ou qualquer outro direito protegido por estar inserido na esfera de intimidade da pessoa afetada (que, por exemplo, pode ser a vítima do processo), caberá ao juiz, fundamentadamente, restringir o sigilo. Não será possível inverter a regra de tutela prevista na Constituição para restringir sempre a publicidade e limitar os casos de presença do acusado em sala de audiências, e somente em casos excepcionais autorizar a presença dele. A publicidade externa será tratada no item subseqüente, tendo em vista as características dos atuais meios de comunicação. II. DOS JUÍZOS PARALELOS DA IMPRENSA É preciso salientar que nos dias atuais a nota de democracia referida ao moderno processo penal há de propor nova reflexão no tocante à publicidade, por conta da modificação tanto da esfera pública, que não mais se restringe ao Estatal ou não se confunde com ele, como em virtude da verdadeira revolução proporcionada pelo desenvolvimento das tecnologias de comunicação e sua forma de penetração e influência na complexa sociedade de massas. Habermas recorda a trajetória liberal do princípio da publicidade, focalizando o fato de, nos tempos das revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX, na Europa Ocidental, a publicidade procurar submeter a pessoa ou a questão ao julgamento público, tornando as decisões políticas sujeitas à revisão perante a opinião pública.258 Nos dias de hoje, porém, o controle empresarial dos meios de comunicação de massas, a lógica da competitividade e do mercado que orienta a atuação deles e a distorção da própria noção de publicidade, que, antes de incentivar a participação democrática da maioria das pessoas relativamente aos negócios da sua cidade e de seu país, anula essa participação, constroem uma nova realidade, paradoxalmente virtual ou espetacular. No mesmo texto, Habermas provoca nossa observação, acentuando que:259 Na mudança de função do Parlamento, tornase evidente a natureza problemática da ‗PUBLICIDADE‘ enquanto princípio de organização da ordem estatal: de um princípio de crítica (exercida pelo público), a ‗PUBLICIDADE‘ teve redefinida a sua função, tornando-se princípio de uma integração forçada (por parte das instâncias demonstrativas — da administração e das associações, sobretudo dos partidos). Ao deslocamento plebiscitário da esfera pública parlamentar corresponde uma deformação no consumismo cultural da esfera pública jurídica. Com efeito, os processos penais que são suficientemente interessantes para serem documentados e badalados pelos meios de comunicação de massa, invertem, de modo análogo, o princípio crítico da ‗PUBLICIDADE‘, do 258 Habermas. Mudança Estrutural da Esfera Pública, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 235. 259 Habermas. Mudança Estrutural da Esfera Pública, ob. cit., pp. 241-242. tornar público; ao invés de controlar o exercício da justiça por meio dos cidadãos reunidos, serve cada vez mais para preparar processos trabalhados judicialmente para a cultura de massas dos consumidores arrebanhados. Garapon igualmente adverte para o poder (contrapoder) da mídia e a maneira como é empregado especialmente nos casos penais,260 ao tempo em que Pierre Bourdieu analisa com competência a influência da sociedade espetacular, da ansiedade midiática e da informação como mercadoria de consumo sobre os juízes, destacando que há aqueles que nem sempre são os mais respeitáveis do ponto de vista das normas internas do campo jurídico mas que podem servirse da televisão para mudar as relações de força no interior de seu campo e provocar um curto-circuito nas hierarquias internas.261 Nos mesmos moldes, em 1995, chamávamos atenção para isso no artigo ―Opinião Pública e Processo Penal‖,262 preconizando nova postura diante do fenômeno da mídia e das suas relações com o processo penal. A exploração das causas penais como casos jornalísticos, com intensa cobertura por todos os meios, leva à constatação de que, ao contrário do processo penal tradicional, no qual o réu e a Defesa poderão dispor de recursos para tentar resistir à pretensão de acusação em igualdade de posições e paridade de armas com o acusador formal, o processo paralelo difundido na mídia é superficial, emocional e muito raramente oferece a todos os envolvidos igualdade de oportunidade para expor seus pontos de vista. A disparidade de tratamento que, em muitas ocasiões, é 260 Garapon, Antoine. Juez y Democracia, Espanha: Flor del Viento, 1997, pp. 90-110. 261 Bourdieu, Pierre. Sobre a Televisão, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 81. 262 Prado, Geraldo. ―Opinião Pública e Processo Penal‖, in Ensaios Críticos sobre Direito Penal e Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1995. tratada como cobertura isenta e lisa do meio de comunicação, que procura acentuar sua liberdade em face dos investigados quando porventura estes integram ou são vistos como parte das elites políticas, econômicas ou intelectuais, na verdade está a descobrir um fato e produzir algumas danosas conseqüências: a presunção de inocência sofre drástica violação, pois a imagem do investigado é difundida como da pessoa responsável pela infração penal; e em vista disso, o desequilíbrio de posições que os sujeitos têm de suportar durante o período de exposição do caso pela mídia transfigura os procedimentos seculares de apuração e punição, passando subliminarmente a idéia do caráter obsoleto e ineficiente das garantias processuais, a que se soma a percepção do processo penal como meio demorado de se fazer justiça em comparação com a ―célere‖ e ―perfeita‖ investigação da mídia. É indiscutível que em semelhante situação o devido processo legal e a liberdade de imprensa sofrem e assim esta última, que se apresenta como direito civil elementar em uma sociedade democrática, pode terminar produzindo em seu extremo aquilo que deveria evitar: um modelo autoritário de exercício de poder, em virtude de que os procedimentos acabam tendo valor exclusivamente formal. Convém aprofundar um pouco mais a análise para trazer à tona a questão dos procedimentos ilegais de apuração dos fatos, de que os meios de comunicação se socorrem em muitas oportunidades, e que transmitem a imagem do crime flagrado enquanto ocorre (a antiga verdade real, agora com nova roupagem), amplamente documentado e provado, supostamente cabendo à Justiça tão-só sacramentar o veredicto de condenação e punir o culpado.263 Como consignado na primeira parte deste trabalho, a 263 Renovo aqui a sugestão da leitura do texto de Aury Lopes Jr. sobre evidência, prova, tempo e processo penal. Introdução Crítica ao Processo Penal: Fundamentos da Instrumentalidade Garantista, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004. organização do sistema de direitos fundamentais em sua etapa inicial considerou a necessidade histórica de conter o poder do Estado, opondo-lhe barreiras consistentes nas liberdades públicas. Era e de alguma maneira ainda é assim porque ao Estado são conferidos poderes cujo exercício implica em virtual interferência na esfera privada das pessoas, ameaçando o status de dignidade de que devem ser portadores todos os seres humanos, independentemente de quaisquer outras considerações. No plano do processo penal, a proibição do emprego da tortura, a garantia da inviolabilidade física, do domicílio, das comunicações e do patrimônio, conjugam-se como regras destinadas a proteger a honra, a liberdade e a vida dos indivíduos, sendo que a crônica do exercício arbitrário do poder registra o emprego do processo penal como forma de exclusão e controle dos grupos sociais indesejáveis, naturalmente ao mesmo tempo em que se procurava controlar as ações que realmente atentavam contra interesses expressivos das comunidades. Ter tudo em um mesmo conjunto sempre facilitou o poder no instante de encontrar um pretexto para excepcionar o emprego de meios processuais racionais e éticos de apuração das infrações penais, de sorte que a defesa social fundamentou discurso de compressão de exercício de direitos fundamentais em condições de justificar o processo penal dos regimes autoritários de meados do século XX, na Europa Ocidental. Apesar disso, o movimento de internacionalização dos direitos fundamentais, iniciado após o fim da Segunda Guerra Mundial, ocupou espaços e detonou irreversível conscientização do caráter inalienável e irrenunciável destes direitos, obrigando o Estado a perseguir o delito e punir o delinqüente com as armas dispostas em um regime de estrita legalidade e eticidade. Ocorre que o desenvolvimento da comunicação de massas, em um contexto de sociedade capitalista e tomando a forma cada vez mais acentuada de empresas transnacionais de comunicação (as grandes corporações, que monopolizam estes meios), edificou novo tipo de poder, neste caso fora do Estado. A lógica de freios e contra-pesos não funciona em relação a eles, que preconizam auferir legitimidade em virtude do consumo massivo das informações que veiculam. O emprego da censura não é aceitável, pois no lugar de eliminar a doença mata o paciente, abrindo caminho para o extermínio da liberdade de informação e expressão.264 Embora se saiba que, no tocante ao funcionamento geral das corporações do ramo, a liberdade de imprensa é ditada por interesses mercadológicos, sobrevive em importante medida a liberdade de informação de que fazem uso os operadores da imprensa e que tem sido fundamental para esclarecer as pessoas (detentoras do direito a serem informadas) a respeitos de fatos relevantes da vida pública e social. Com base nisto, parece que o controle das situações de conflito entre liberdade de imprensa e devido processo legal está em se proibir à imprensa aquilo que é igualmente proibido ao Estado, isto é, fazer uso de informações obtidas criminosamente. Como a censura prévia é impossível,265 duas alternativas podem ser consideradas: o recurso aos mecanismos de responsabilidade tradicional, de natureza reparatória; e a intransigente proibição de que as partes do processo lancem mão das provas obtidas dessa maneira, a qualquer título. Ademais, a fidelidade ao sistema acusatório implica em estipular que a sede para a solução dos conflitos de 264 Sobre censura é indicada a leitura de Liberdade de Informação e o Direito Difuso à Informação Verdadeira, de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 129-135, que no mesmo trabalho pesquisa o projeto da chamada ―Lei da Mordaça‖. 265 López Ortega refere a experiência do direito inglês, com as limitações prévias à liberdade de informar asseguradas pelo emprego da medida denominada contempt of court, prevista no Contempt of Court Act, de 1981. Assinala que na Grã-Bretanha o interesse do público na liberdade de expressão deve ceder ante o interesse do público de não impedir ou ameaçar gravemente o curso da justiça. Ob. cit., p. 70. interesses de natureza penal é — e sempre deverá ser — o processo judicial. Portanto, o ponto de vista defendido em ―Opinião Pública e Processo Penal‖, em 1995, continua válido. Nos casos de intensa exploração pela mídia, é conveniente que se proceda ao desaforamento temporal, suspendendo o curso do procedimento enquanto durar o estado de excitação social. Finalmente, visando resguardar a coerência interna entre os diversos elementos constitutivos do sistema acusatório, quando confrontados com a publicidade pósmoderna, convém seguir e ampliar o exemplo espanhol, pelo qual, em virtude da ordem ministerial de 27 de novembro de 1959, completada pelo ofício circular de 22 de abril de 1985, o Ministério Público está autorizado a emitir comunicados escritos, destinados à imprensa, a fim de evitar informações errôneas.266 A propósito destes comunicados, deve a lei garantir à parte que se sentir prejudicada o direito de fazer uso de igual expediente, assegurando-se, assim, não só a liberdade de informação como também o exercício desta liberdade verdadeiramente como função social. É sempre bom lembrar que as portas fechadas aos esclarecimentos públicos — que devem ocorrer excepcionalmente, em casos de repercussão, quando flagrantemente uma informação tida como errônea ganha curso livre e é capaz de conformar a opinião pública — são ultrapassadas por conta de práticas clandestinas, insuscetíveis de serem controladas. O processo penal democrático necessita da publicidade dos seus procedimentos e assegurá-la pode impedir que se coloque no seu lugar a publicidade espetacular dos atores que deles tomam parte, além de facilitar o controle e coibir os excessos. 3.2.4. A TÍTULO DE CONCLUSÃO São estas, em síntese, as características de sistema e 266 López Ortega, ob. cit., p. 74. princípio acusatórios, pesadas e sopesadas as correntes doutrinárias envolvidas em seu estudo. Várias também são, como vimos, as opiniões, algumas das quais são até mesmo opostas ou conflitantes entre si, motivo por que é conveniente encerrar este tópico com a advertência de José António Barreiros:267 Não há, assim, um conceito aprioristicamente fundado de estrutura acusatória — a que os concretos ordenamentos processuais penais se tenham que sujeitar — mas uma filosofia da máxima acusatoriedade possível, que só após a análise especificada de cada ordenamento processual penal se poderá delinear concretamente no que à sua caracterização fundamental respeita. A aferição da constitucionalidade de um sistema processual penal passa, deste modo, não pela subsunção estática dos institutos jurídicos concretos que ela admita aos comandos abstractos da Constituição mas pela análise ponderada da respectiva estrutura constitutiva, tendo em vista recortar-lhe os grandes princípios estruturadores, reconstituir-lhe o jogo de inter-relações dos vários agentes nele participantes, extractar-lhes os módulos, fases e graus de procedimento. Trata-se, ao invés de muitos outros casos em que a constitucionalidade esteja em causa, de aferir um sistema, com toda a globalidade de inter-relações, uma estrutura, com toda a complexidade do seu modo particular de configuração. 267 Barreiros, José António. ―A Nova Constituição Processual Penal‖, in Portugal — O Sistema Político Constitucional. Mario Batista Coelho (coord.), Lisboa: Instituto de Ciências Jurídicas, 1989, p. 769.