IDENTIDADE MESTIÇA - Antropologia da Cultura Brasileira
Resumo: O presente texto é uma sistematização didática das principais referências teóricas da
antropologia da cultura brasileira, com links para os trabalhos originais. Além dos clássicos, o
texto introduz ainda o leitor às discussões contemporâneas. Objetivo é revisar os autores já
consagrados em uma perspectiva atual e o resultado é a elaboração de várias perguntas e questões
pertinentes à questão da identidade mestiça brasileira.
Palavras-chave: Identidade cultural1; Brasil2; Antropofagia3;
MESTIÇA IDENTITY - Anthropology of Brazilian Culture
Abstract: This text is a didactic systematization of the main theoretical references of the
anthropology of Brazilian culture, with links to the original works. In addition to the classics, the
text further introduces the reader to contemporary discussions. The objective is to review the
authors already consecrated in a current perspective and the result is the elaboration of several
questions and questions pertinent to the question of the Brazilian mestizo identity.
Keywords: Cultural identity1; Brazil2; Anthropophagia;
MESTIZA IDENTIDAD - Antropología de la cultura brasileña
Resumen: Este artículo es una sistematización didáctica de los principales referentes teóricos de
la antropología de la cultura brasileña, con enlaces a los trabajos originales. Además de los
clásicos, el texto también introduce al lector en las discusiones contemporáneas. Objetivo es
revisar los autores ya establecidos en una perspectiva actual y el resultado es el desarrollo de
varias preguntas y cuestiones relacionadas con la cuestión de la identidad mestiza brasileña.
Palabras clave: Identidad cultural1; Brasil2; Antropofagia3;
1. Introdução
Enquanto a maioria dos países tenha sua identidade cultural diretamente
relacionada às características étnicas dentro de um território, o Brasil tem uma identidade
cultural mestiça multifacetada em uma área geográfica bastante extensa.
Dentro dos estudos dedicados a essa singularidade histórica da identidade mestiça,
três trabalhos teóricos são fundamentais para sociologia da cultura brasileira: CasaGrande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre; Raízes do Brasil (1987), originalmente
publicado em 1936, de Sérgio Buarque de Holanda; e, finalmente, O povo brasileiro: a
formação e o sentido do Brasil (1996), de Darcy Ribeiro. Ressalte-se também o
documentário O povo brasileiro (1976), de Isa Grinspum Ferraz, que apresenta uma
síntese superficial desses três livros.
Destaca-se ainda aqui três diferentes interpretações contemporâneas do Brasil:
Roberto Damatta (a desigualdade estrutural), Idilva Maria Pires (as três antropofagias: a
literal, a sexual e a poética) e Vilem Flusser (a devoração simbólica).
2. A democracia racial
Casa-Grande & Senzala aborda as estruturas sociais da Brasil colônia e é o
primeiro de uma trilogia de livros de Gilberto Freyre sobre a formação histórica da cultura
brasileira, que inclui ainda Sobrados e Mocambos (sobre o Império), publicado pela
primeira vez em 1936; e Ordem e Progresso (sobre o período republicano), em 1957.
Dissemos ‘estruturas sociais’, mas Freyre se considerava um escritor influenciado
pelo funcionalismo de Franz Boas, que conheceu pessoalmente quando estudou nos EUA.
Em Casa-Grande & Senzala, Freyre detalha as características culturais e étnicas dos
portugueses, dos diferentes nativos das américas e dos negros das várias nações africanas.
A miscigenação étnica, como estratégia de colonização, é colocada no centro do processo
de desenvolvimento da sociedade brasileira, híbrida e mestiça de outras culturas. Refuta
assim a ideia de que a miscigenação étnica tenha tornado o povo brasileiro ‘uma raça
inferior’, apontando os fatores positivos (a clemência, a tolerância, a flexibilidade) de
nossa formação cultural híbrida.
Para Freyre, a arquitetura colonial expressa o modo de organização social e
política do Brasil, o patriarcalismo, em que os coronéis das capitanias hereditárias são
proprietários da terra ‘e de tudo que nela se encontrasse’: escravos, parentes, filhos,
esposa, amantes, padres, políticos. Este domínio se estabelece a partir da assimilação das
culturas subjugadas e não de sua exclusão. Além ressaltar a presença viva de elementos
indígenas e negros na cultura brasileira, Freyre tem um estilo único, literário e cínico no
trato dos costumes sexuais. Porém, o que realmente faz de Freyre um escritor polêmico e
que ele defende que a ideia de que a cultura brasileira é uma “democracia racial”, em que
a miscigenação étnica não é apenas uma estratégia de colonização dos dominadores
portugueses, mas também uma estratégia de sobrevivência cultural dos povos dominados,
uma contra estratégia não apenas de resistência de identidade cultural mas também de
reinterpretação da cultura dominante pelas culturas dominadas.
E essa inversão de perspectiva da desigualdade social sempre foi pontuada por
provocações políticas, como as afirmações de que não houve estupros étnicos na
colonização, os portugueses eram mais gentis com as índias do que seus conterrâneos
nativos; ou ainda de que não havia fome na pobreza do Brasil colônia: os escravos eram
bem alimentados com feijão e leite; e que as elites eram, na verdade, subnutridas, pois
praticamente só comiam frituras e açúcar.
Por isso, Gilberto Freyre é considerado um pensador ‘de direita’, que ignora e
oculta a violência das relações sexuais de miscigenação étnica; um escritor elitista que vê
a escravidão brasileira como um pacto social entre ‘bons senhores e escravos submissos’.
É claro que Freyre não foi um marxista nem um defensor dos trabalhadores, mas é preciso
também dar um desconto para seus exageros pitorescos e provocações políticas; se
quisermos compreender a importância de seu trabalho teórico para construção da
categoria de ‘Identidade Mestiça’.
3. O homem cordial
Outra referência obrigatória em relação à Identidade Mestiça brasileira é o livro
Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda e a caracterização cultural do brasileiro
como um ‘homem cordial’ - “um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao
menos, em que permanece viva e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio
humano” (HOLANDA, 1995, p. 147).
A cordialidade de Buarque de Holanda, não seria apenas em virtude de
hospitalidade e da camaradagem do brasileiro, mas, sobretudo, da procedência afetiva de
suas ações (cordial = do coração), sempre concebidas e realizadas na esfera do íntimo, do
familiar, do privado. Para o autor, a cordialidade impede que o povo brasileiro entenda
corretamente o significado da esfera pública, há uma fusão simbólica entre o Estado e a
família patriarcal. A cordialidade é uma valorização exacerbada da personalidade, dos
favores pessoais e políticos, do nepotismo e do clientelismo.
Enquanto Freyre estuda detalhadamente as etnias matrizes – a portuguesa, a
ameríndia e a afrodescendente – e sua convivência cultural; Holanda investiga o resultado
da miscigenação – os mulatos (branco + negro), os caboclos (branco + índio) e os cafuzos
(negro + índio), observando principalmente suas características subjetivas. Buarque de
Holanda suspeita, por exemplo, que os negros eram mais dóceis que os índios para
escravização. Ou ainda que as características psicossociais herdadas dos portugueses
também contribuíram para o fracasso do capitalismo industrial brasileiro.
Buarque de Holanda dá grande ênfase à crise social e institucional provocada pela
queda da monarquia constitucional brasileira. Dentre os efeitos desta ruptura, os negros
não foram integrados à vida econômica nacional após à escravidão; e o povo brasileiro
passou a se sentir órfão do poder moderador do imperador, nutrindo um desejo
inconsciente de autoridade, de um ‘grande pai’ da nação.
Pode-se dizer que enquanto a noção de ‘democracia racial’ de Freyre procura
mostrar o lado positivo da Identidade Mestiça, sua capacidade de adaptação criativa em
convivência pacífica entre as etnias; a noção de ‘homem cordial’ de Buarque de Holanda
enfatiza o aspecto negativo da Identidade Mestiça, sua incompetência pública corrupta e
nepotista, o estado privatizado por dentro por famílias, grupos regionais e corporativos1.
4. A ninguéndade brasileira
Darcy Ribeiro dá um terceiro passo na definição da Identidade Mestiça brasileira,
reconhecendo tanto a capacidade de adaptação criativa das etnias (festejada acriticamente
por Giberto Freyre na noção de ‘democracia racial’) como a deficiência (das elites e da
população em geral) de compreensão da esfera pública e da igualdade jurídica entre
indivíduos (considerada insolúvel por Sérgio Buarque de Holanda em virtude da
cordialidade do caráter brasileiro).
Em O povo brasileiro (1996), Ribeiro identidade cultural brasileira é singular em
relação a de outros povos colonizados; tanto em relação aos povos testemunhais (andinos
e mexicanos), que guardam os traços distintivos de antigas civilizações Inca e Asteca;
como também em relação aos povos em que as características culturais dos colonizadores
passaram a ser dominantes, como os argentinos e canadenses.
Nos povos em que a identidade étnica nativa é forte (como na Bolívia, por
exemplo), há uma rejeição popular da cultura colonizadora. Já nas culturas em que a
identidade nativa é insignificante, como na Colômbia, todos se consideram descendentes
dos colonizadores. No primeiro caso, há uma rejeição da cultura colonizadora; no
segundo, há, não apenas uma aceitação, mas, sobretudo, uma identificação completa entre
a população e a cultura colonizadora. Para Ribeiro, a Identidade Mestiça brasileira nem
rejeita (fechando-se em uma cultura de resistência popular) nem se identifica
(reproduzindo os valores externos) com o colonizador. A cultura brasileira devora
antropofagicamente o colonizador. Assim, a Identidade Mestiça brasileira assimila a
cultura colonizadora e a reinterpreta.
1
Pode-se dizer que o argumento central de Buarque de Holanda (a nossa incapacidade para vida pública e
para igualdade jurídica entre indivíduos) é aprofundado e desenvolvido por Roberto Damatta, em outro
clássico das ciências sociais brasileiras Carnavais, Malandros e Heróis – por uma sociologia do dilema
brasileiro (1997), principalmente no ensaio Sabe com quem está falando? Um ensaio sobre a distinção
entre indivíduo e pessoa no Brasil (1997, 187-259).
A essa qualidade de assimilação e reinvenção cultural, Darcy Ribeiro dá o nome
de ‘ningüéndade’ – a identidade da não-identidade, a cultura do zé ninguém, aquele que
não se reconhece na imagem do outro, mas também ousa elaborar uma imagem própria.
A Identidade Mestiça brasileira é um projeto aberto ao que está por vir e não uma
referência simbólica do passado sobre à atualidade. ‘Um povo sem memória, mas com
grande esperança’. Assim, miscigenação não nos torna iguais nem nos faz um mix de
qualidade e defeitos étnicos. Ela é uma apenas identidade vazia. Por isso que somos "o
país do futuro" e um eterno "gigante adormecido em berço esplêndido".
Ribeiro ainda apresenta a presença de cinco grandes subculturas regionais que,
embora distintas, seriam complementares: o Brasil crioulo (do litoral de São Luís ao Rio
de Janeiro, a região da mata atlântica e dos engenhos de cana de açúcar, influenciada pelas
etnias africanas2), o Brasil caboclo (a Amazônia, influenciada pelos os índios tupis), o
Brasil sertanejo (as criações de gado, o sertão nordestino, caatinga), o Brasil caipira
(centro-oeste e sudeste, São Paulo e a influência dos índios Guaranis) e o Brasil sulino
(mamelucos vivendo em uma área muito rica e fértil, os pampas gaúchos e imigração
europeia recente).
O documentário audiovisual em dez episódios O povo brasileiro (1976), de Isa
Grinspum Ferraz, apresenta uma síntese superficial desses três livros (de Freire, Holanda
e Ribeiro) e pode ser considerado uma introdução geral proveitosa para uma leitura de
aprofundamento. A série conta com as participações especiais de Chico Buarque, Tom
Zé, Antônio Cândido, Aziz Ab’Saber, Paulo Vanzolini, Gilberto Gil, Hermano Vianna,
Luiz Melodia, entre outras personalidades e intelectuais de renome.
Há, no entanto, uma grande diferença ideológica entre Darcy Ribeiro e seus
antecessores. Ribeiro é o único que destaca a violência do processo de aculturação na
assimilação involuntária de elementos culturais dos dominados pelos colonizadores em
detrimento da cultura própria.
2
Diferentes etnias negras foram trazidas ao Brasil, em períodos distintos de tempo. Inicialmente vieram os
Bantos (de Angola e do Congo, cultuando Zambi e os Inquices) que influenciaram bastante as culturas
negras do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Os negros bantos são miúdos, redondos, de uma negritude azulada.
Em seguida vieram os Nagôs (da Nigéria, cultuando os Orixás e falando Yorubá) que guardam uma
proximidade cultural muito grande com a Bahia. Os nagôs e seus descendentes brasileiros são ‘marrons’.
E, por último, chegaram os Jêjes (do Daomé no norte da África, falando Ewe e cultuando os Voduns) se
assemelham à cultura negra do Maranhão. Essa etnia, formada por indivíduos de estatura elevada, também
povoou o Caribe e os EUA, dando origem à Santeria. A cultura negra de Recife, em Pernambuco, mistura
influências Jêje e Nagô no Maracatu.
5. Tupi or not Tupi
João Ubaldo Ribeiro transforma o objeto conceitual de Darcy Ribeiro em um
sujeito histórico, ou melhor, no protagonista principal de seu livro Viva o Povo Brasileiro
(2001). O livro narra a saga da almazinha brasileira em suas reencarnações em diferentes
momentos históricos do país. A narrativa é formada por diferentes estórias, em que
surgem os tipos ideais de gente brasileira, em uma parodia irônica da construção da
identidade nacional. O estilo, cômico e trágico ao mesmo tempo, mais que uma sátira
carnavalesca da vida nacional, deseja esboçar os símbolos indicativos de ser brasileiro. A
ideia de miscigenação é tratada de diferentes ângulos (segundo os personagens) e a noção
de antropofagia cultural é criticada como elitista e limitada.
No sentido literal, antropofagia é canibalismo; no sentido simbólico, é adquirir as
qualidades do inimigo. Oswald de Andrade com o Manifesto Antropofágico vai dar uma
interpretação cultural ao termo, como uma forma de resistência criativa à aculturação
colonizadora. João Ubaldo Ribeiro, por sua vez, fará uma releitura irônica da metáfora
antropofágica oswaldiana: a antropofagia é representada pelo caboclo Capiroba, um
mestiço que enlouqueceu diante da catequização jesuíta e encontrou no canibalismo uma
forma de vingança e de resistência à dominação ideológica. Há assim uma sátira da tese
oswaldiana, uma hipérbole que leva a ideia de antropofagia às suas últimas consequências
e ao canibalismo cômico e grotesco3.
Buscando escapar dessa desqualificação sarcástica que João Ubaldo faz do olhar
subversivo de Oswald de Andrade, Germano define dois tipos de antropofagia:
{...} modo de ser da sociedade brasileira, um ethos cultural antropófago,
dividido entre a assimilação da matriz judaico-cristã e racionalizando oriunda
do colonizador e o impulso matriz religiosa primitiva, carnavalizante,
contestadora e marginal. (GERMANO, 2000, 72-73)
Dentro desta primeira definição, há também a distinção entre alta e baixa
antropofagia. A primeira é a ingestão ritual do inimigo e a última, a incorporação sexual
violenta dos dominadores. Tanto antropofagia dos dominados é uma simbolização da
antropofagia sexual dos colonizadores como, ao contrário, ela também é resultado da
adaptação sincrética com a qual o povo brasileiro engendra sua Identidade Mestiça.
3
O caboclo Capiroba tinha uma predileção especial por holandeses, em uma alusão direta à historiografia
que acredita que a coloniza flamenga teria sido melhor que a lusitana: Terá sido a digestão dos holandeses
mais desimpedida? Nunca se saberá. (GERMANO, 2000, p.78)
A ideia de antropofagia cultural corresponde ao resultado desta ‘dupla devoração’
e ao olhar subversivo do povo brasileiro4.
6. O Homo Ludens
No livro Fenomenologia do brasileiro: em busca de um novo homem (1998),
Vilem Flusser caracteriza o 'modo de ser brasileiro' como um protótipo do homo ludens,
um novo homem consciente de que joga com (e contra outros) e de que outros jogam com
(e contra) ele. A miscigenação nos fez ‘lúdicos’, um exemplo para outros povos.
Flusser5 vê o brasileiro de modo semelhante a Ribeiro, descrevendo três
estratégias de jogo colonial. A estratégia um é a dos que jogam para vencer, mesmo
arriscando a derrota – como os norte-americanos. A estratégia dois é o jogo dos excluídos
que jogam para não perder, buscando reduzir os riscos tanto do fracasso como do sucesso
– como a maioria dos povos latinos americanos. Já a estratégia três é o jogo dos que jogam
para mudar o jogo, que caracteriza o 'modo brasileiro'. A estratégia três corresponde a
uma ampliação da noção do Movimento Antropofágico, uma forma de resistência criativa
à aculturação colonizadora, uma identidade híbrida, que não se identifica nem rejeita a
cultura do colonizador, ao contrário, a absorve e a recria com a própria linguagem.
Não se trata mais de identidade de um povo ou estratégia de sobrevivência dos
dominados, mas sim de um modelo de comportamento cultural resiliente a ser adotado
por todos as povos em um futuro global. As alteridades, aproximações, estranhamentos e
a maneira como os grupos interagem ao longo da história acabam criando relações de
poder de acordo com o desconhecimento e reconhecimento do outro.
4
Aliás, pode-se ampliar essa vertente da vanguarda estética brasileira de produzir uma culturade exportação
a várias outras manifestações culturais (Helio Oiticica, a Bossa Nova, a poesia concreta, o cinema novo)
mais preocupadas em se sincronizar ao cenário cultural internacional do que produzir uma identidade
nacional-popular. Em oposição a esta vertente oswaldiana da modernidade brasileira, coloca-se o projeto
iniciado por Mario de Andrade e pelos artistas inspirados pelas temáticas regionais e sociais. Entretanto,
tanto os dois projetos (o antropofágico e o nacional-popular) acabaram absorvidos pela industrialização
cultural das massas através da contracultura. O tropicalismo é parte desta síntese contracultural brasileira
entre os "biscoitos finos" e o nacional-popular.
5
Vilém Flusser (1920-1991) é um pensador tcheco naturalizado brasileiro que teve seus pais mortos em
campos de concentração nazistas e conseguiu fugir, vivendo no Brasil de 1940 a 1972. País em que tornouse um filósofo singular, 'excêntrico', sendo marginalizado no mundo acadêmico. Seus textos não tinham
notas de rodapé, citações ou referências bibliográficas; seu estilo era simples e poético; seus temas
incomuns: o diabo em sua luta contra a eternidade, o significado da natureza para ciência, a fotografia como
novo paradigma cultural, a dúvida como uma singularidade humana. Flusser, então, voltou à Europa, onde
conquistou a consagração internacional como um “filósofo da nova mídia” a partir da ótica do “canibalismo
brasileiro”. Morreu em Praga, dia 21 de dezembro de 1991, em decorrência de um acidente automobilístico.
Flusser reconhece que, para os povos colonizados, afirmar sua identidade cultural
é um ato de resistência muito doloroso porque implica em superar o não reconhecimento
do outro (e de si mesmo projetado no colonizador). Ele compreende a antropofagia como
um método psicológico de diálogo dentro de um contexto de pluriversalidade e da
interculturalidade, reconhecendo que cada um tem sua história e uma identidade própria
a ser respeitada, cultivada e celebrada.
E assim um europeu devorou nossa antropofagia cultural transformando-a em
canibalismo simbólico interpessoal.
7. Conclusão
Mais do que conclusões, a discussão aqui levantada sobre Identidade Mestiça, nos
leva a novas perguntas e mais dúvidas. Gilberto Freire (1933) compara a colonização
brasileira à norte-americana, afirmando que a primeira é mais democrática e pluralista em
virtude da mestiçagem dos povos nativos e africanos ter sido com colonos portugueses,
já mestiços e enviados para cá contra vontade para serem castigados. Será? Para outros
pensadores, a miscigenação parece atrapalhar mais a democracia do que propiciá-la.
Sérgio Buarque de Holanda (1987), por exemplo, com as noções de ‘homem
cordial’ e de nostalgia do poder moderador, defende a tese de que necessitamos de líderes
populistas (como Getúlio ou Lula) para nos defender da elite atrasada que nos governa.
A pergunta aqui é expressa por Caetano Veloso, na música Podres Poderes:
“Será que nunca faremos senão confirmar, a incompetência da América
católica, que sempre precisará de ridículos tiranos”.
E mais: será que nossa afetividade (com os amigos e com a família) realmente nos
impede de ser democráticos e justos, de - como acredita Roberto Damatta (1997) entender que as regras são para todos? Como tirar vantagem da diversidade cultural da
miscigenação e minimizar suas paixões?
Darcy Ribeiro (1995, 352) pergunta “porque o Brasil não deu certo?”. Pergunta
que se desdobra em outras: Porque não nos orgulhamos de ser brasileiros? A identidade
não definida permite que o país se reinvente permanentemente? 6 Ou que permaneçamos
sempre em uma apatia indiferenciada?
O décimo e último episódio do documentário O Povo Brasileiro, de Isa Grispum Ferraz, chama-se ‘A
invenção do Brasil’ e trata do desafio de uma identidade aberta, voltada para o futuro.
6
Com João Ubaldo Ribeiro (2001) e Idilva Maria Pires Germano (2000)
distinguem-se duas antropofagias (além do canibalismo literal propriamente dito): uma
sexual (estratégia de sobrevivência dos dominados através da procriação de mestiços) e
outra cultural (representando o olhar subversivo das vanguardas artísticas), uma
‘bricolagem’ das elites culturais progressistas.
E a questão que se coloca aqui é: será que a antropofagia cultural não é apenas
uma metáfora elitista da antropofagia sexual e literal, usada pela inteligência crítica
brasileira para explicar e nortear a produção artística alternativa?
E, finalmente, com Vilem Flusser (1989) e com seu homo ludens, o canibalismo
simbólico do Brasil é universalizado e se torna obrigatoriamente recíproco. Para ele, a
identidade é a ‘embalagem da consciência’, uma mediação entre a percepção de si mesmo
e da relação de si com os outros – do ponto de vista psicológico e não apenas cultural.
Será que a universalização da antropofagia brasileira não é uma ‘apropriação
cultural’ etnocêntrica? Então, não basta ‘saber como devorar’ a cultura colonizadora, é
preciso também ‘saber ser devorar’ pelos invasores?
Essas são as perguntas que essas leituras me suscitaram.
Referências bibliográficas
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Sardinha. Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, 1928.
BAITELLO JR, Norval. A serpente, a maça e o holograma. Esboços para uma Teoria da Mídia. SP:
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FLUSSER, Vilem. Fenomenologia do brasileiro: em busca de um novo homem. Rio de Janeiro: Eduerj,
1989.
______ O universo das imagens técnicas. Elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Coleção Documentos Brasileiros. 19ª edição. Prefácio
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GERMANO, Idilva Maria Pires. Alegorias do Brasil. São Paulo: Annablume: 2000.
RIBEIRO, Darcy - O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o Povo Brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001
Referências audiovisuais
O Povo Brasileiro. Direção: Isa Grinspum Ferraz. Gênero: Documentário. Coproduzida pela TV Cultura,
pela GNT e pela FUNDAR. Ano de Lançamento: 1976. Duração: 280 min. País: Brasil