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A FAMÍLIA CAZUMBÁ EM SÃO GONÇALO DOS

CENTRO DE CIÊNCIAS ARTES, HUMANIDADES E LETRAS – CAHAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS: CULTURA, DESIGUALDADE E DESENVOLVIMENTO MARIA CRISTINA MACHADO DE CARVALHO A FAMÍLIA CAZUMBÁ EM SÃO GONÇALO DOS CAMPOS/1870-1910 CACHOEIRA 2013 MARIA CRISTINA MACHADO DE CARVALHO A FAMÍLIA CAZUMBÁ EM SÃO GONÇALO DOS CAMPOS/1870-1910 Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciências Sociais: Cultura, Desigualdades e Desenvolvimento da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, para obtenção do Título de Mestre em Ciências Sociais. Orientador: Prof. Dr. Walter Fraga. CACHOEIRA 2013 2 C043 CARVALHO, Maria Cristina Machado de A Família Cazumbá em São Gonçalo dos Campos / 1870 - 1910 / Maria Cristina Machado de Carvalho - 2013. 153f.:il Dissertação (Mestrado)- Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais: Cultura, Desigualdade e Desenvolvimento, Cachoeira / Ba /2015. Orientador: Prof.Dr. Walter da Silva Fraga Filho 3 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA – UFRB CENTRO DE CIÊNCIAS ARTES, HUMANIDADES E LETRAS – CAHAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS: CULTURA, DESIGUALDADE E DESENVOLVIMENTO Dissertação intitulada “A Família Cazumbá Em São Gonçalo Dos Campos/1870 1910” de autoria da Mestranda Maria Cristina Machado de Carvalho, apreciada pela banca examinadora em 14 de novembro de 2013, constituída pelos professores: ______________________________________________________ Prof. Dr. Walter Fraga (UFRB - Orientador) _______________________________________________________ Profª. Dra. Ione Celeste Jesus de Sousa (UEFS - Examinadora) _______________________________________________________ Prof. Dr. Antônio Liberac Cardoso Simões Pires (UFRB - Examinador) CACHOEIRA, NOVEMBRO DE 2013 4 A Deus, o maior dos mestres e fonte de inspiração de toda criação humana. À Cleusa Machado de Carvalho e Expedito Pinheiro de Carvalho, minha mãe e meu pai, primeiros mestres de minha vida, que ao longo dos anos têm me legado o gosto pelo saber e o exemplo de como viver e, que por amor dedicaram seu tempo no trabalho na roça para que eu conseguisse construir a minha identidade social, inclusive a de mestre. À minha avó, Djanira que aos longos anos vividos, escreveu a sua caminhada rompendo com as estruturas sociais que lhes foram impostas como uma mulher negra. 5 Agradecimentos Quando pensei em agradecer lembrei daqueles que de alguma maneira esteve presente em minha história e contribuiu para a construção final deste trabalho. Inicialmente, agradeço a Deus pela força, o entusiasmo que dia após dia dediquei a este projeto. Não foram poucos os momentos de desanimo por ver meus esforços sem nenhum alcance significativo. Contudo, a confiança em Deus não deixou que eu desistisse desse propósito, até mesmo colocando pessoas em minha caminhada que com um abraço amigo, um ombro solidário me animou, lembrando que os erros e desencontros fazem parte da história de todos os indivíduos. Assim sigo meus agradecimentos a minha família: Cleusa (minha mãe), Expedito (meu pai), por estarem comigo sempre, e dedicarem a vida em prol da educação e formação de seus filhos, especificamente a minha formação. Aos meus irmãos: Expedito que ao falar sobre meus estudos tem demonstrado interesse e admiração. Edson, lembro-me que quando passei no vestibular para História você estava me esperando em Feira de Santana com os braços abertos, dando-me um teto e apoio! Recordo as vezes que você me levou ou foi me buscar na UEFS, as ligações que demonstrava preocupação e cuidado. Meu irmão quero repartir este título com você! Elisvaldo, em você encontrei um ombro para pôr minha cabeça. Nos momentos de pesquisa, de tensão, de investigação recebi sua incondicional contribuição. Edmilson quero agradecer pelas vezes em que você saiu do trabalho para mim pegar no Arquivo! Sua ação foi uma total demonstração de zelo e cuidado. Cleides, não esqueço o quanto você foi importante nesta jornada. Sempre solícita aos meus pedidos, cuidadosa, companheira. Lembro-me os momentos em que esteve me acompanhado. Claudicélia, recordo-me das noites em que estávamos lado a lado estudando, das ligações feitas para que pegasse livros. Deus continue te abençoando! Minha irmã e companheira de todas as horas: Cleuseni, você é nota 10, sua contribuição excede os limites da naturalidade: saiu comigo aos arquivos, pesquisou, fez digitação de dados, levou-me para fazer entrevistas, enfim foram muitos feitos! Sou muito grata a você! 6 Ao meu cunhado Guto por algumas vezes ter ouvido minhas solicitações de ajuda e minhas cunhadas: Fabiana que desde do tempo da graduação foi uma grande amiga; Débora que sempre me incentivou e Valmira muito generosa, preocupada, companheira. Estiveram comigo nos momentos de mais alta tensão. Amo vocês! Meu primo Milton obrigada por me acompanhar naquela tarde ensolarada ao cemitério para fazer a pesquisa comigo. Lembro como aquele dia foi exaustivo - você, minha irmã Cleuseni e eu - saímos em cada túmulo averiguando os nomes, fotos e nascimentos dos falecidos que fazem parte desta pesquisa. Acho que estou fazendo um bom trabalho com minha família e amigos, iniciando-os ao mundo da pesquisa (riso). Ao mesmo tempo em que quero agradecer a meus amigos. Vocês são maravilhosos!! Quantas vezes recebi ligações dessas pessoas admiráveis para acompanhar meus passos e me impulsionar. Jucélia, como conceituar este nome? Bem, até mesmo para uma socióloga é difícil, mas lembrando das experiências históricas, pelo apoio, incentivo, enfim, você é irmã! Sou muito grata a você! Flaviane amiga de longas datas, agradeço o incentivo, os momentos que passamos conversando por telefone, de cada palavra de instigação. Você é maravilhosa! Regiane minha colega da UNEB, que se tornou uma amiga! Obrigada pela ajuda. Gorete amiga que sempre torceu por mim. Você é sem igual! Fernanda foi muito bom encontrar você durante esta trajetória de minha vida. Andréia minha amiga, colega de trabalho, que ouvia minhas preocupações e orava por mim. Obrigada por sempre me escutar. Oh Bethânia, lembro-me das conversas, dos conselhos, das horas ao telefone, e você dizer: “não desiste, Cris, vai em frente, você escreve bem mulher”. Obrigada amiga! Charlene foi sensacional poder compartilhar com você esses momentos. Igualmente as outras amigas, compartilhei minhas preocupações. Sempre inteligente e muito paciente refletia as melhores opções para continuar seguindo esse labirinto. Rute, Rita, Sara, Rosane, Cíntia, Tatiane Penteado e Tatiane vocês são lembradas a cada momento que eu pego neste texto. Cada uma de vocês conheci em momentos diferentes em situações singulares, fato que tornou nossa história sem igual. Raquel obrigada pela amizade, companheirismo, confiança e, também, nossas boas conversas horas do intervalo na escola. A equipe do Colégio Adventista de Feira de Santana, especialmente ao diretor Luiz Penteado, a coordenadora Vânia e a orientadora educacional Rilda Alves. Você, Rilda, 7 antes de tudo é minha amiga e companheira, ficou em minhas aulas, orou por mim e me ouviu quando necessitei de alguém para escutar-me. Não posso esquecer de Marcos, pessoa surpreendente, um grande companheiro. Marcos Maxsuel esteve comigo nos momentos que precisei faltar às aulas. Quando estava muito tensa e preocupada foi capaz de me escutar e ter muita paciência. Sem sua ajuda e companheirismo tudo seria mais difícil, seu nome deveria ser escrito com tinta de ouro! Maria e Vado, vocês serão sempre lembrados! Também foram amigos e companheiros, oraram por mim e se preocuparam com as minhas inquietações. Minha amiga, Iris, também esteve comigo nos momentos mais difíceis da jornada. Ouvia-me e sempre dizia pacientemente: Vamos orar Cris! Você nem imagina o quanto esta expressão foi como música suave aos meus ouvidos. Eliana, foi bom ter conhecido você neste fluxo. Obrigada por ter me acompanhado ao arquivo e pelas madrugadas de oração. Tatiane, desde da graduação pude contar com você nos meus primeiros momentos de pesquisa, mais uma vez quero agradecer a você pelo apoio! Você é ótima! Gaby, Ledy, Crislane, Adriano, Antônio, vocês foram amigos, companheiros, torcedores, admiradores, irmãos! Agradeço-lhes demais! Ainda, a Cris Furtado, conheci durante o mestrado e nos tornamos amigas. Nunca vou esquecer da força recebida de minhas amigas Enoise e Núbia. Amo vocês! Minhas colegas e amigas do mestrado Ciran e Rejanne, que compartilharam comigo momentos tensos de investigação e discussão teórica! Nossa experiência foi complexa, dinâmica, tensa, contudo, com um canto!! O canto da Vitória! Ciran, além da experiência da pesquisa e escrita você se tornou minha amiga e irmã. Sempre contei com seu apoio incondicional além do de seu pai Nanã, sua mãe Elizete, e seu irmão Keu! Hoje somos apenas uma família! Você é uma pérola para mim, minha irmã! Neste parágrafo estendo meus agradecimentos aos colegas: Naty, Débora, Joelma e Murilo, lembro-me das conversas e discussões acerca do mestrado! Com vocês vivi momentos muitos preciosos. Como gostaria de agradecer a todos e todas que encontrei no caminho da minha história. Aos professores (abrindo um parêntese para agradecer a professora Ângela pela confiança, por aceitar que eu fizesse o tirocínio e por sempre acreditar em meu potencial e ao professor Fernando Pedrão por acreditar em mim desde o primeiro momento do mestrado), professor Herbert, Osmundo aos demais professores meus sinceros 8 agradecimentos aos servidores do Programa de pós-graduação de Ciências Sociais da UFRB, Virgílio por sempre atender minhas solicitações; Valéria pelo trabalho realizado, cuidando para que a parte burocrática necessária para defesa fosse executada. Ainda, lembro-me de Emanuel e Fabrício, pessoas excelentes, que sempre me dava informações. Obrigada! Danilo, conheci você quando, ainda era graduanda e bolsista de iniciação científica, não imaginaria que iria chegar até aqui, especialmente que iria te reencontrar neste momento. Obrigada ter contribuído as inúmeras vezes nesta trajetória. Quão fenomenal foi nesta caminhada! Também estendo meus agradecimentos a Flávia Sales, bibliotecária e amiga maravilhosa, obrigada por fazer a ficha catalográfica. Você é muito generosa! Marcus Rios, muito obrigada por fazer o mapa que demarca a geografia do meu objeto de estudo. Nesta experiência agradeço de maneira especial ao meu orientador Professor Dr. Walter Fraga Filho, por ter acompanhando a construção da dissertação, por sua disponibilidade em ler, comentar e fazer sugestões e pelas oportunidades de diálogo, as quais foram fundamentais para o meu amadurecimento enquanto pesquisadora. Aos professores Rita Reis e Antônio Liberac por aceitarem compor a banca examinadora de qualificação. Suas questões, sugestões e observações foram fundamentais para a continuidade da escrita da dissertação. A professora Ione Celeste, que desde do meu tempo de graduação tem sido uma grande incentivadora e agora aceitar o convite e fazer parte da banca de defesa. À Professora Dra. Lucilene Reginaldo, que, desde a graduação, disponibilizou-se a me orientar e, ao reencontro que conseguimos concretizar no segundo semestre do Mestrado. Ao professor José Bento pelas leituras, sugestões e o diálogo feito por email e ter cedido importantes informações sobre a família Cazumbá, as quais foram importantes para a construção deste trabalho. Aos funcionários dos arquivos que visitei a fim de encontrar fontes para escritas da pesquisa. Agradeço por terem sidos atenciosos e dispostos a atender minhas solicitações. Aos funcionários do Arquivo Municipal de Feira de Santana, do Arquivo da Câmara Municipal de São Gonçalo dos Campos, especialmente Gorete, do Arquivo Municipal de Cachoeira, Arquivo Público do Estado da Bahia, Arquivo do Fórum João Mendes (tabelionato, civil, cível) em São Gonçalo dos Campos, Maria das Dores (Dora), Celeste 9 Mascarenhas, Kátia e Maria Angélica. Aos funcionários do Arquivo do Arcebispado de Feira de Santana, Arquivo Monsenhor Renato Galvão da UEFS e CEDOC na Universidade Estadual de Feira de Santana. A família Cazumbá, e os meus prestigiosos informantes que cederam entrevistas valiosas para a construção deste trabalho. Ainda agradeço aqueles que foram meus alunos do curso de Administração no IAENE. As turmas alegres que estudam no Colégio Adventista de Feira de Santana. Vocês além de serem meus alunos são meus cúmplices, sempre vibraram comigo e torcem por minha vitória. Amo vocês demais! Aos alunos do curso de História –PARFOR - UNEB. Como também aos diretores e coordenadores das graduações: professora Lígia Santana amiga, compreensiva e torcedora. Professor Ibraim, obrigada pela confiança. E ao pastor Edson e pastor Gilberto pela a oportunidade. A todos vocês meus sinceros e calorosos agradecimentos! 10 Resumo Este trabalho parte da seguinte pergunta: como os indivíduos e os grupos familiares submetidos ou não ao trabalho escravo se esforçaram para inserirem-se nas redes sociais livres em São Gonçalo dos Campos, entre 1870 a 1910? Assim, investiguei as experiências sociais da família Cazumbá, descendentes de escrava, que se tornara proprietários de terras, na conjuntura histórica marcada pelas relações escravas e livres, dos proprietários e despossuídos de terras de São Gonçalo dos Campos da Cachoeira. Portanto, três objetivos compõem a investigação: analisar as relações sociais entre os diversos grupos (senhores, pequenos proprietários, trabalhadores, livres e trabalhadores escravos e outros); identificar e questionar sobre as estratégias manipuladas pelos indivíduos para inserirem-se nas redes sociais livres, especialmente a compra de terras por descendentes de escravos e, ainda, as mudanças nas relações de trabalho no século XIX; por fim, compreender as características do trabalho rendeiro e os laços familiares e sociais formados naquele contexto. Destarte, a procura de indícios que possibilitasse reconstituir a experiência da família Cazumbá e de outros indivíduos de cor permitiu compreender as trajetórias de vida, o trabalho escravo e livre, o acesso à terra, a tradição e o significado da liberdade atribuído por aqueles viveram a escravidão, ou então, descenderam deles. Desses movimentos notar-se que a terra foi importante componente de sobrevivência ligada aos diferentes significados de liberdade. Palavras Chave São Gonçalo dos Campos. trabalho escravo e livre. pós abolição. Terra. família Cazumbá. 11 Abstract This work assumes the following question: how individuals and family groups submitted or not to slave labor strove to be inserted on the free social networks in São Gonçalo dos Campos, between 1870-1910? So, I investigated the social experiences of Cazumbá family, slave descendants, who had become landowners in historical context marked by slave relations and free, the owners and dispossessed of land of Saint Mary of the waterfall fields. So three objectives make up the research: to analyze social relations between different groups (masters, small owners, workers, free and slaves and other workers); identify and question on strategies manipulated by individuals to be inserted on the free social networks, especially the purchase of land by descendents of slaves and also the changes in labor relations in the nineteenth century; finally understand the tenant job characteristics and family and social relationships formed in that context. Thus, the search for evidence that would allow to reconstruct the experience of Cazumbá family and other colored individuals allowed to understand the life trajectories, slave and free labor, access to land, tradition and the meaning of freedom assigned by those lived slavery, or, descended from them. These movements be noted that the land is important survival component connected to the different meanings of freedom. Keywords São Gonçalo dos Campos. slave and free labor. post abolition. Earth. Cazumbá family. 12 Pesos, Medidas e Moeda Pesos e medidas 1 braça = 2,2 metros 1 légua = 6.000 metros 1 tarefa = 4.356 metros quadrados 1 vara = 1,1 metro (ou ½ braça) Moeda A unidade básica da moeda no Brasil, durante a Colônia e o Império, era o real (réis no plural). Escrevia-se $100 para a soma de 100 réis, 1$000 para um mil-réis e 1:000$000 para um conto de réis. Portanto, o valor de 20:430$200, deve ser lido como vinte contos, quatrocentos e trinta mil e duzentos réis. 13 LISTA DE FIGURAS Figura 1: O processo de secagem do fumo por famílias de lavradores ......................49 Figura 2: Escravos fazendo farinha .............................................................................51 Figura 3: Parede construção de taipa ..........................................................................59 Figura 4: Djanira Pinheiro de Queiroz ......................................................................105 Figura 5: Elixir de Nogueira .......................................................................................106 Figura 6: Tibúrcio Alves Barreiros............................................................................107 Imagem 7: Parentes de Tibúrcio Alves Barreiros ....................................................109 Figura 8: Livro de Relação de Número de Fogos e Moradores do Distrito da Freguesia de São Gonçalo dos Campos de Nossa Senhora da Cachoeira ...............112 Figura 9. Planta feita pelo Engenheiro Manoel Accioli Ferreira da Silva ...............134 Figura 10. Maria de Lourdes Cazumbá ...................................................................138 Figura 11. Josenilda Cazumbá e Jucileide Cazumbá .............................................139 14 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Cor, condição e sexo, no censo de 1872 da vila de São Gonçalo dos Campos .........................................................................................................................................72 Tabela 2: Taxa de natalidade dos escravos da Fazenda de João Coelho de Almeida em 28 de abril de 1882 .................................................................................................116 15 LISTAS DE MAPAS Mapa 1: Fronteiras de engenhos ao longo do Rio Jacuípe .........................................35 Mapa 2: São Gonçalo dos Campos ...............................................................................42 Mapa 3: Áreas de plantio de fumo do Recôncavo da Bahia .....................................47 Mapa 4: Demarcações das fazendas Cruzes, Terra Dura e Cazumbá ....................135 16 Sumário 1 INTRODUÇÃO...........................................................................................................18 2 CAPÍTULO I Cazumbá: nomes e rastros ................................................................28 2.1 Rastreando o nome: microanálise etimológica de Cazumbá ...............................29 2.2 Seguindo as pistas: investigando os documentos oficiais .....................................31 3 CAPÍTULO II São Gonçalo dos Campos: propriedade, economia fumageira e produção de subsistência 1870 – 1890 ..........................................................................44 3.1 Atividades econômicas: agricultura fumageira e de subsistência, e criação de gado ................................................................................................................................45 3.2 Vida material: a freguesia fumageira de São Gonçalo dos Campos.....................54 3.3 Estrutura Agrária: a Posse de Terra em São Gonçalo na Segunda Metade do Século XIX .....................................................................................................................60 3.4 Sociedade: relações de trabalho na fumicultura da freguesia de São Gonçalo dos Campos ..........................................................................................................................69 3.5 Trabalho Livre: arrendamento de terras na década de 1880 ...............................79 4 CAPÍTULO III Trajetórias entrecruzadas: diferentes histórias e famílias de cor .........................................................................................................................................89 4.1 A vida cotidiana .......................................................................................................89 4. 2 Alguns conflitos na região.....................................................................................100 4.3 Família: ex-escravos e descendentes ....................................................................104 5 CAPÍTULO IV Cazumbá: família de cor e proprietária de terras no pósabolição.........................................................................................................................121 5.1 Rastreando os movimentos sociais da segunda e terceira geração dos Cazumbá .......................................................................................................................................127 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................139 7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................142 17 INTRODUÇÃO A minha indagação sobre a família Cazumbá surgiu na tentativa de conhecer a origem do Bairro denominado São João do Cazumbá, localizado na região do Centro Industrial do Subaé (CIS), entre Feira de Santana e São Gonçalo dos Campos 1. Comecei a investigar este bairro em 2007, quando iniciei a pesquisa como bolsista de iniciação científica no projeto “Itinerários da Memória: comunidades negras rurais e memória de quilombo no Vale do Paraguaçu” dirigido pela professora doutora Lucilene Reginaldo, na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Cataloguei diversas comunidades que possuíam a maioria da população negra. Dessa diversidade selecionei apenas duas para ser parte fundamental de investigação científica. São João do Cazumbá, uma comunidade urbana, localizada próxima ao Bairro Tomba e ao CIS. E a outra Corredor dos Ferreiras, comunidade rural, que se formou na segunda metade do século XX a partir do deslocamento da família Ferreira, antigos rendeiros da fazenda Magalhães, para um outro território 2. Esta experiência se torna singular por ser a trajetória de uma família de rendeiros de cor, formando, assim, a história do Recôncavo mais complexa e dinâmica pelas suas experiências e redes de formações sociais, econômicas e culturais nos períodos anteriores e posteriores a abolição da escravidão. Tratando da família Cazumbá os primeiros contatos, nada que me inquietasse para pesquisa científica, foi na escola quando estava na alfabetização. Em minha classe havia cinco colegas com o sobrenome Cazumbá. Eu e os demais alunos achávamos o nome diferente, intrigante, o que tornava aqueles diferenciados. Com essa concepção relacionávamos as pessoas com esse sobrenome a uma só família (Cazumbá), sendo comum a pergunta se eram primos ou irmãos. Todos eles eram negros e os pais eram trabalhadores rurais que cuidavam da terra, plantavam, cruzavam os espaços das relações e as experiências dos rendeiros. 1 CARVALHO, Maria Cristina Machado de. Comunidades Negras Rurais e Memórias de Quilombos. UEFS/Feira de Santana. 2008. (Monografia de Conclusão do Curso de Licenciatura em História). 2 CARVALHO, Op. Cit. 18 Quando comecei a pesquisa e identifiquei o Bairro São João do Cazumbá a minha orientadora Lucilene Reginaldo sugeriu que eu investigasse a origem e trajetória dos Cazumbá. Entretanto, na minha inexperiência recusei seguir este caminho, pois meu interesse estava definido em esquadrinhar a formação daquela comunidade, investigar a relação com a identidade remanescente de quilombo. Entretanto, experiências do cotidiano, das relações sociais de indivíduos e famílias de cor no tempo da escravidão e no pós abolição, na Bahia, estão claramente interligados no cotidiano coletivo de escravos, livres e libertos, no século XIX. Assim, destaca-se, entre o fim do século de XIX e início do século XX, um contexto socioeconômico marcado pelas relações estabelecidas desde o período colonial3. Nota-se fazendas com diversas extensões de terras com uma multiplicidade de atividades agrícolas alicerçada no trabalho escravo/rendeiro de pessoas de cor4. As construções dessas fazendas variavam de acordo com os níveis de riqueza. A fazenda Dendê, por exemplo, pertencente a João Pinheiro de Queiroz, branco, com 300 tarefas de terras, tinha paredes largas, construídas de adobe, telhado de tábua. Possuía 4 portas largas e grandes e 10 janelas, o chão de barro, com duas salas5. Essa descrição nos oferece uma visão aproximada das diversas construções que formavam as fazendas fumageiras, no início do século XX, na região de São Gonçalo dos Campos, onde percebese os diversos espaços de convivência entre proprietários e despossuídos de terras. No quintal havia árvores frutíferas de diversas espécies: 6 mangueiras, 1 jaqueira, 1 pé de fruta-pão, 1 pé de tangerina, um bananal, 5 cajueiros. Normalmente próximo à casa de morada existia outras construções em ruínas como a casa de farinha, o armazém velho e, até mesmo, senzala com o tronco. Ainda naquele espaço territorial encontramse as plantações de fumo e de mandioca, bem como um cercado onde criava gado e cavalos6. Naquelas terras avistam-se casas simples de taipas de “roceiros pobres”, geralmente, em suas extremidades, mas próximas às estradas. Junto às casas podem ser 3 Segundo SCHWARTZ a economia em São Gonçalo dos Campos, desde o século XIX, associava-se ao trabalho familiar livre. Ver: SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.NARDI, Jean Baptiste. O fumo brasileiro no período colonial. São Paulo: Brasiliense, 1996. BARICKMAN, B.J. Um Contraponto Baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780 – 1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 4 SILVA, Narciso Amâncio. Decadência Fumageira; São Gonçalo dos Campos. 1951- 1976. Feira de Santana: UEFS, 2001. (Monografia de Especialização). 5 Entrevista com Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011. 6 Entrevista com Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011. 19 vista, aproximadamente, 2 tarefas de terras, onde aqueles moradores produziam suas roças7. As descrições acima foram possíveis mediante as memórias dos descendestes de escravos e de fazendeiros. Djanira8, lembrou que no seu tempo de menina, na década de 1920, entre os rendeiros das fazendas fumageiras em São Gonçalo dos Campos encontrava-se: Antônio Farias, Felix Ferreira, Antonieta, João Machado, Antônio Gomes, Maria e Teodório, Lesbão e Amélia, Luiz Carneiro, Maria, Tibúrcio, Marcelino, Zé Baguim, Manoel Pedro, Chico Cajé, Augusto Cajé, pessoas de cor que receberam de seus pais a herança de continuarem na fazenda como rendeiros. Entretanto, essas experiências não eram inusitadas, existiam outros sujeitos que construíam as redes sociais do Recôncavo fumageiro. A história de Teodora Francisca, desde a fuga de Bonfim de Feira, o arrendamento de terras na Fazenda Dendê, o trabalho doméstico e o ganho nas roças e o concubinato com o dono da fazenda em São Gonçalo, no início do século XX, torna mais impressionante as histórias contadas sobre as famílias nessa região. Dentre estas inúmeras histórias localizei a família Cazumbá. Aqueles que fizeram parte de minha trajetória e construção de identidade, agora aparecem no palco de meus questionamentos. O sobrenome de origem africana trazia a marca da presença de sujeitos de cor na região. Também se tornaram proprietários de terras, senhores rurais de destaque econômico ainda no final do século XIX. A família Cazumbá torna-se protagonista das experiências dos indivíduos de cor em São Gonçalo dos Campos. Todavia, verifica-se uma diversidade de histórias vivenciadas por homens e mulheres na região onde se concentravam o setor agroexportador de tabaco e agricultura de subsistência e criação de gado. Neste sentido, o presente trabalho objetivou compreender como os indivíduos e os grupos familiares descendentes de escravos se esforçaram para inserirem-se nas redes sociais livres em São Gonçalo dos Campos, entre 1870 a 1910. Assim, problematizei como as conjunturas históricas, sociais, econômicas, demográficas, culturais e políticas estiveram entrelaçados com as experiências, decisões, construções de redes sociais e relações familiares de ex-escravos, livres, libertos e dos seus descendentes, especialmente dos Cazumbá. 7 Entrevistas com: Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011. Expedito Pinheiro de Carvalho, concedida em 25 de março de 2011. Cleusa Machado de Carvalho, concedida em 25 de março de 2011. 8 Entrevista com Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011. 20 A partir dessa inquietação lancei mão de três objetivos: analisar as relações sociais entre os diversos grupos (senhores, pequenos proprietários, trabalhadores, livres e trabalhadores escravos e outros); identificar e questionar sobre as estratégias manipuladas pelos indivíduos para inserirem-se nas redes sociais livres, especialmente a compra de terras por descendentes de escravos e, ainda, as mudanças nas relações de trabalho no século XIX. Por fim, compreender as características e os laços familiares e sociais formados e mantidos pela população de São Gonçalo dos Campos. Tal espaço geográfico é conhecido historicamente como zona de passagem do Recôncavo aos sertões, além de uma vasta região interiorana. Povoada de pequenos proprietários, constitui um cenário rico de um passado, contidos nos livros de nota, inventários, processos cíveis e uma série de documentos ainda não explorados pelos pesquisadores que se dedica ao estudo. Uma parte destes documentos está armazenada em péssimas condições, empoeirados, impossibilitado o acesso ao pesquisador. Entretanto, algumas pesquisas foram feitas e pode contribuir para conhecer melhor os espaços de convívio, as formas de trabalho, os modos de sobrevivências e os valores que partilhavam os indivíduos deste local. No ano de 1984 foi publicado edição comemorativa do primeiro centenário do município, o livro Memória Histórica de São Gonçalo dos Campos, de Marli Geralda Teixeira e Maria José de Sousa Andrade9, o qual muitos pesquisadores passaram a consultar como instrumento de pesquisa sobre os mais diversos assuntos. Sendo fruto de estudos financiado pelo governo municipal possui conteúdo genérico, isto é, uma compilação com dados geográficos, históricos, políticos e sociocultural do local. Nele encontrei informações gerais sobre os proprietários de terras e a economia fumageira, não indo muito além desses aspectos. Além disso, é um trabalho que pretende abordar mais de três séculos de história, prendendo-se mais a evidências sobre a política da região. Localizei ainda textos como A Decadência Fumageira: São Gonçalo dos Campos, 1951 – 197610, em que o autor, Narciso Silva, faz um exame dos fatores que levaram à crise da cultura fumageira em São Gonçalo dos Campos, entre 1951 a 1976. O autor apresenta alguns aspectos históricos desta produção, contudo, quando refere à mão de obra, adverte que esta lavoura estava centrada nas mãos dos pequenos proprietários e, por conseguinte, um elevado número de indivíduos arrendatários de terras que utilizava a 9 TEIXEIRA, Marli Geralda, ANDRADA, Maria José (org.). Memória Histórica de São Gonçalo dos Campos. Ed. Comemorativa do 1° centenário do município, 1984. 10 SILVA, Op. Cit. 21 força de trabalho de lavradores sem posse de territoriais. Talvez esse seja o primeiro trabalho a fazer uma interpretação específica da cidade a respeito da economia fumageira na segunda metade do século XX. O trabalho de Luciana Lessa11, faz uma interpretação sobre o cotidiano e as visões de mundo das integrantes da irmandade de Boa Morte em São Gonçalo dos Campos na primeira metade do século XX. Esta produção mais aproxima das experiências de liberdade efetuadas pelos agentes não brancos desta região. Contudo, é notória a carência de trabalhos dedicados a compreender as expectativas e experiências de liberdade em São Gonçalo dos Campos. Outras obras12, também, vão apresentar os contornos da economia fumageira, todavia, aborda toda região do Recôncavo. A exemplo do estudo realizado por Nardi Bastide acerca do fumo no período colonial. Neste a região dos Campos da Cachoeira aparece contígua às outras zonas fumageira do Recôncavo. Nesta narrativa sobressai a população envolvida no cultivo do gênero agrícola e a grande importância adquirida pelo produto no século XVIII. O autor apresenta em sua órbita um grupo de pequenos agricultores, homens e mulheres, rendeiros, agregados e, até mesmo, escravos13. Outro trabalho sobre o tema foi realizado por Barickman em “Um Contraponto Baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780 – 1860”14. A partir da análise de inventários, censos, registros de notas entre outras fontes, o autor centrou seus esforços no estudo comparativo das economias realizadas no Recôncavo baiano. Embora não esteja centrada na freguesia fumageira de São Gonçalo dos Campos o autor vai fazendo comparações que permitem visualizar a dinâmica socioeconômica no final do século XVIII e primeira metade do século XIX. Neste sentido, para alcançar os objetivos acima citados coletei depoimentos de lavradores na perspectiva da História Oral15. Com essas dezenas de entrevistas, depareime com uma multiplicidade de histórias do vivido, do cotidiano. A ideia era buscar evidências das experiências dos sujeitos de cor na vida cotidiana, nos antagonismos e 11 LESSA, Luciana Falcão. Senhoras Do Cajado: Um Estudo Sobre A Irmandade Da Boa Morte De São Gonçalo Dos Campos. Salvador: UFBA, 2005 (Dissertação de Mestrado em História) 12 NARDI, Op. Cit. BARICKMAN, Op. Cit.; SILVA, Op. Cit. 13 NARDI, Op. Cit. 14 BARICKMAN, Op. Cit. 15 THOMPSON, Paul. A voz do passado. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1992. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Campinas/SP: Martins Fontes, 2010. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro: CPDOC/ Fundação Getúlio Vargas, v. 2 n 3, 1989. POLLAK, Michael. Memória e identidade Social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n.10, 1992, p. 200-212. 22 acomodações, nas casas, no armazém, na roça, na rua, na igreja, no diálogo com o outro, em suas múltiplas relações. Em seguida esquadrinhei fontes que identificassem nomes, sobrenomes, laços familiares, contatos e contratos sociais dos sujeitos. A partir desse volume de informações surgiram questionamentos sobre: quem eram esses sujeitos? Como, em quais lugares, em quais momentos, em que circunstâncias teceram os fios, os caminhos e as histórias de vida? O que estes indivíduos nos dão a ver, escutar e refletir sobre a trajetória de suas vidas? Como fazem? Quais imagens, linguagens, silêncios, indícios, esquecimentos e interjeições empregam? Como trabalhar essas histórias? Como organizá-las, como trançar os seus fios, como datar vários tempos, as várias imagens, as memórias? Como compreender os significados dados por eles às suas experiências? Estas questões são difíceis de responder, todavia, investigar a trajetória de indivíduos e de famílias é seguir os rastros deixados pelos sujeitos ao longo da história 16. As experiências constroem a identidade do grupo ao mesmo tempo em que retrata a vida de luta, de migração, deslocamento e permanência. Ao deparar com esse contexto bem diversificado busquei fazer uma análise em que as Ciências Sociais e a História vão estar se comunicando em uma afinidade transdisciplinar, adotando o modelo metodológico sugerido por Ginzburg no âmbito da história social e que se fundamenta na relação entre os indivíduos e a sociedade 17. Neste sentido, comecei com investigação sobre a condição socioeconômica que permita compreender a posição do sujeito e os esforços para se inserirem socialmente. De tal modo percebi que o indivíduo enquanto sujeito histórico atravessa por diferentes fluxos sociais. Ele é um entroncamento em que diferentes estradas, diferentes séries históricas vêm encontrar-se e, ao mesmo tempo, vêm separar-se18. Toda essa encruzilhada torna as individualidades plurais, referenciais, locais, marcados por tensões 16 LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfo1ogia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. LIMA, Henrique Espada. A Micro História Italiana: escalas, indícios e singularidades. São Paulo: Record, 2006. 17 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). Usos Sobre o poder simbólico e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1996, p.183-191. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 5ª Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. Cap. 1, p. 7-16. DEL PRIORE, Mary. Biografia: quando o indivíduo encontra a História. Topói, v.10, n.19, p. 7-16, jun/dez 2009. 18 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A singularidade: uma construção nos andaimes pingentes da teoria histórica. In:____. História: a arte de inventar o passado: ensaios de teoria da história. Bauru: Edusc, 2007, p. 248. 23 ou, como sugere Bourdieu o enredo de uma vida “é o atestado visível da identidade do seu portador através dos tempos e dos espaços sociais, o fundamento da unidade das suas sucessivas manifestações e da possibilidade socialmente reconhecida de totalizar essas manifestações em registros oficiais 19”. Assim, a identidade de um indivíduo ancora-se no pressuposto “de que a vida constitui um todo, um conjunto coerente e orientado, que pode e deve ser apreendido como expressão unitária de uma ‘intenção’ subjetiva e objetiva, de um projeto20”, portanto, ela passa por uma trajetória sinuosa. O indivíduo é o fio 21 condutor de uma nova abordagem social e de uma nova modalidade de reconstrução do vivido. As trajetórias individuais possibilitam “percorrer em múltiplos espaços e tempos as relações nas quais elas se inscreviam”. O individual é apreendido como a decorrência da ação de indivíduos em suas relações com outros indivíduos. Assim, a perspectiva micro analítica de seguir as trajetórias individuais, como o conceito de experiência de Thompson22, é adotado em nesta análise. Este conceito exibe a multiplicidade de conjunturas em que os sujeitos estão inseridos, possibilitando a reflexão sobre as ações de homens e mulheres a partir das condições históricas dadas. Ainda, adotei a ideia de categoria social enquanto um elemento histórico, processual e relacional. Igualmente tomei o conceito de cultura como uma relação contínua dos sujeitos sociais, refletindo interesses por vezes antagônicos. Outro aporte teórico que me deu embasamento para consideração do conceito de identidade enquanto configurações relacionais e dinâmicas foi Frederick Barth 23. O indivíduo, nesta visão, estabelece espaços de autonomia, delineando estratégias de acordo com seu ponto de vista individual ou coletivo. Deste modo, os estudos de Thompson e Barth ajudaram a pensar a concepção de identidade social como flexível e dinâmica, na qual as distintas categorias identitárias estabelecem-se e reproduzem-se continuamente em contextos particulares, marcados pelo cruzamento de múltiplas variáveis 24. Além 19 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). Usos Sobre o poder simbólico e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1996, p. 187. 20 BOURDIEU, op. cit. p. 184 21 GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 22 THOMPSON, E. P. Costumes em comum – Estudos sobre cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das letras, 1998. 23 BARTH, F. Grupos Étnicos e suas fronteiras. In: POUTGNAT & STREIFFENART. Teorias da etnicidade. Seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: UNESP, 1998. 24 HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, editora da UFMG, 2003. LE GOFF, Jacques. A história nova. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995. THOMPSON, E. P. Costumes em comum – Estudos sobre cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das letras, 24 disso, a vida dos sujeitos sociais é marcada por rupturas, limitações e continuidades, que remodelam sem parar as representações de si. Com isso, notei que a escrita da história do indivíduo é múltipla e repleta de possibilidades inscritas nas relações do presente com passado, não obstante, para decifrála, é necessária a leitura indiciária dos sinais, dos signos, das marcas, dos gestos, dos silêncios deixados pela ação dos homens e relatados pelos seus testemunhos. A diminuição da escala de análise e a busca pelo nome de um mesmo indivíduo em diferentes fontes, além de revelar estruturas sociais diferentes também disponibilizam sugestões teóricas que contribuem para o entendimento do processo social como um todo. Neste sentido, adotei uma diversidade de versões e análise seguidas por diferentes pesquisadores, para que até mesmo os fatos “imponderáveis da vida real” sejam analisados com profundidade25. Para tanto, reuni diversas fontes: inventários, certidão de batismo, de óbitos, escritura de compras e vendas, escritura de arrendamento, carta de alforria, registro de terras, jornais, além do depoimento oral, o que me deu supor para tentar reconstruir as trajetórias desses indivíduos no tempo de escravidão e liberdade. Os livros de Registro Eclesiástico (século XIX) existentes na secretaria Arquidiocese de Feira de Santana, (consultei 10 deles entre os anos de 1862 a 1915), sendo consultado 3 livros de certidão de óbitos, 1880/1910, 5 livros de certidão de nascimento, 1860/1915 e apenas 2 de casamento de 1870/1905, permitiram relacionar os dados e compreender como os indivíduos construíram as redes de parentescos. Também utilizei registros de nascimentos referente a Feira de Santana, mas, especificamente, São José das Itapororocas na primeira metade do século XIX, sendo dos anos de 1808 a 1848. Nestes investigava sobre a existência de José Ferreira Cazumbá. Com os dados do censo de 1872, fiz análise sobre a dimensão geral da população do período. Embora apresente falhas, uma vez que as autoridades locais eram indiferentes ao recenseamento, pois acreditavam que o censo servia para estabelecer novos impostos 1998. BARTH, F. Grupos Étnicos e suas fronteiras, CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma História das Últimas Décadas da Escravidão na Corte. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. CHALHOUB, Sidney. Trabalho Bar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. Brasiliense: São Paulo, 1986. FRAGA, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910) Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006. 25 MALINOWSKI, Bronislaw. Introdução. In: Os argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Ed. Abril, 1979.p. 17- 34. 25 e para o recrutamento militar26, os dados censitários fornecem informações utilizáveis a respeito da população dessa freguesia. A consulta de 35 inventários post mortem de moradores da Freguesia de São Gonçalo dos Campos, no período de 1850-1898, esclareceram não só sobre o modo de vida da população da Freguesia, como o tamanho das fazendas, de terras e escravos, tipos de cultivo e condições de sobrevivência. A importância fundamental desta investigação foi à avaliação dos bens dos descendentes das famílias no final do século XIX, permitindo traçar o perfil das propriedades e de seus proprietários. Em 100 escrituras de compra e venda de fazendas e terras permitiram compreender o tamanho das fazendas, o valor das terras, o perfil do comprador e vendedor. As 60 escrituras de venda e compra de escravos apresentam informações acerca da origem, à raça, a idade e o sexo dos escravos dando-nos a noção geral da escravaria da Freguesia. As escrituras de arrendamentos comprovaram as negociações feitas pelos proprietários de terras e os lavradores, em 1881, e a presença de rendeiros nos anos finais do século XIX. Encontrei 70 escrituras que datam do ano de 1881. Ainda, utilizei 10 registros de procurações que constam informações que permitiram obter mais dados a respeito do perfil dos proprietários e identidades dos escravos como a identificação pela cor, idade, origem e filiação. Igualmente importante para “cruzamentos” de dados foram os jornais, os quais apresentam dados sobre a economia, política e sociedade. Assim, utilizei 10 exemplares que circulavam em Feira de Santana e em São Gonçalo dos Campos no final do século XIX e início do século XX. Do mesmo modo coletei 10 entrevistas com descendentes de escravos e fazendeiros, moradores das antigas fazendas fumageiras com idade entre 40 e 100 anos. Nestas indaguei sobre as histórias contadas por seus pais e avós a respeito das experiências de seus antepassados no sentido de reconstituir e analisar as relações matrimoniais, o trabalho na roça, o dia a dia na fazenda, os contatos com os diversos sujeitos sociais, a religião e cultura. Por fim, de posse das fontes e bibliografia que oferece um leque de discussões sobre identidade, o Recôncavo, economia, trabalho, escravidão, família, passei a escrever a dissertação. Para melhor entendimento organizei em quatro capítulos. O primeiro 26 BARICKMAN, Op. Cit. 26 passeia pelos mistérios envolto no sobrenome Cazumbá. Conta a história de José Ferreira Cazumbá e encerra fazendo analogia a família em São Gonçalo. O segundo discute sobre o contexto social, demográfico, econômico e cultural, na segunda metade do século XIX. No terceiro tratei sobre famílias, comunidades, relações entre indivíduos no contexto do arrendamento de terra, especial na primeira década do século XX. No capítulo quatro enfoquei a experiência histórica da família Cazumbá como indivíduos egressos da escravidão, mas que conseguiram ascender socialmente como proprietários de terra. A grosso, a dissertação não é um estudo apenas de indivíduos ou grupos familiares de ex-escravos, antes exibe os indivíduos nas relações sociais em que eles estavam imersos e que ajudaram a definir o contexto do pós-abolição. Assim, analisei as relações que envolvem todas as experiências ligadas a senhores, escravos, ex-senhores, exescravos, negros, pardos, crioulos, livres, migrantes, mestiços, homens, mulheres e quaisquer outros que aparecerem nessas interações. A abordagem sobre os personagens Cazumbá e os grupos familiares possibilitam a reconstrução e análise sobre a complexidade das relações sociais marcadas pelo trabalho escravo e livre. Neste sentido, este estudo justifica-se na medida em que permite compreender a importância socioeconômica das relações sociais ligada ao trabalho escravo e ao trabalho livre no Recôncavo na segunda metade do século XIX e na primeira década do século XX. 27 CAPÍTULO I Cazumbá: nomes e rastros “Escritura de venda, compra, paga e quitação que faz o Major Francisco Antônio de Carvalho, da fazenda antigamente denominada Várzea e hoje sobrado, pela, digo[ilegível]das terras, casas e benfeitorias da fazenda antigamente denominada Várzea, hoje sobrado, pela quantia de um conto oitocentos mil réis, a Manoel Ferreira de Cerqueira e João Cardozo Cazumbá, como abaixo declara. Saibam quantos este instrumento e escritura de venda, compra, paga e quitação, virem, que sendo o ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e setenta e nove, aos trinta dias do mês de junho do dito ano, neste arraial da freguesia de São Gonçalo dos Campos, termo da cidade da Cachoeira, em meu cartório compareceram presentes partes justas e contratadas, de uma como vendedor, o Major Francisco Antônio de Carvalho, morador da cidade de Santo Amaro, e de outra, como compradores Manoel Ferreira de Cerqueira e João Cardozo Cazumbá, moradores desta freguesia, e bem conhecidos de mim escrivão de paz interinamente juramentado, no impedimento do atual, do que dou fé. E logo pelo referido vendedor me foi dito em presença das testemunhas no fim declaradas e designadas, que era senhor e legítimo possuidor das terras, casa e benfeitorias da fazenda antigamente denominada Várzea e hoje Sobrado, cuja fazenda lhe foi adjudicada pelo juiz de órfãos da cidade de Santo Amaro , Joaquim, digo, Amaro, Joaquim [ilegível] de Almeida Freitas , por parte dos menores do finado comendador Antônio Lopes Ferreira e Souza, que era seu devedor, e a quem pertencia a referida fazenda acima declarada, cujas terras se divide da maneira seguinte; pelo lado sul com terras que ficaram de João da Maya Machado, pelo este com terras que ficaram do padre Gonçalo de Souza, e pelo leste e norte, com terras de Estevão Machado, tudo por baixas e estradas, cujas terras assim demarcadas, e divididas, casa, e benfeitorias, vende e vendido tinha de hoje em diante aos senhores Manoel Ferreira de Cerqueira e João Cardozo Cazumbá, pela quantia de um conto e oitocentos mil réis, cuja quantia recebia ao fazer desta de que lhes dei pura e geral quitação, sem que jamais em tempo algum, ele vendedor nem seus herdeiros possa reclamar esta venda, ante se obrigara a fazê-la boa. E pelas referidos (Folhas 11) compradores que pagaram a devida impostos, foi dito que aceitavam a presente[...] E digo assim outorgaram, abaixo assinaram com as testemunhas presentes José de Medeiros Borges e Álvaro Pereira de Cerqueira, assinando a rogo do comprador João Cardozo Cazumbá, por não saber escrever, Francisco da Silva Menezes que todos assinaram depois de lida por mim[ilegível] Pedreira de Cerqueira, escrivão de paz interinamente juramentado, no impedimento do atual, que a escrevi27” Se não fosse o sobrenome, a citação acima, seria apenas mais uma das muitas ocorrências de compras de terras na Freguesia de São Gonçalo dos Campos, nas décadas finais do século XIX. Mas o sobrenome, Cazumbá, carregava um enigma a ser decifrado. Quem era mesmo este João Cardozo Cazumbá? Não tinha, apenas, muitas interrogações, mas várias respostas a cada pergunta. Pois bem, semelhante a águia que defere voo, sem interdição das ruínas e dos tempos, porque o investigador se apropria destes sinais — voei 27 Escritura de Compra e Venda de Terras. 1879. BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro do Tabelionato n. 2. 28 por sobre os destroços dos indícios dos documentos até à África, no incansável questionar sobre mistérios que escondiam os Cazumbá. Deste modo, recorrendo aos linguistas busquei a primeira constatação que importa saber sobre a etimologia da palavra. Rastreando o nome: microanálise etimológica de Cazumbá Diretamente Lopes28 ofereceu as primeiras asseverações, afirmando que a palavra é de origem banto. Sua presença e significado no Brasil têm a ver com os ramos desses povos cujos membros foram trazidos da África, ou vieram como comerciantes, uma vez que o termo tem origem em África. Embora seja do grupo etimolinguístico Cazumbi, Zimbi, Nzumbi, originário do Kibundo Nzumbi, macro grupo etnolinguístico Bantu29 o seu conteúdo enquanto instituição sociopolítica é resultado de uma longa história de migração que se processou no centro africano a partir de 868 30. Sendo assim a compreensão da adoção do nome pela população não branca no Brasil está em estreita relação com a trajetória e a formação dos falares africano de origem Bantu na África e a diáspora que sofreu estes povos ao longo dos três séculos de escravidão na América 31. Contudo, as línguas africanas no Brasil encontram-se marcadas pela ruptura de sua continuidade no espaço original, no convívio de uma heterogeneidade linguística pela presença da língua portuguesa, das línguas indígenas e de outras línguas africanas nas diferentes épocas e nos diferentes espaços geográficos. Assim, a análise dos léxicos africanos deve ser contextualizado a partir da chegada de diversos grupos negros para o trabalho escravo na lavoura de fumo e açúcar. Exemplo do Cafundó 32, em que o léxico 28 LOPES, Nei. Novo Dicionário Banto Do Brasil. RJ: Pallas, 2003, p.76; LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira Da Diáspora Africana. SP: Selo Negro, 2004, p180. 29 LODY, R. Cazumbá. Máscara e drama no boi do Maranhão. Museu do Folclore Edison Carneiro, Rio de Janeiro: Ministério da Cultura, 1999, p.6. 30 VANSINA, J. A África Equatorial e Angola: migrações e o surgimento dos primeiros estados. In: História Geral da África IV. África do século XII ao século XVI. SP: Ática\ UNESCO, 1988. 31 HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, editora da UFMG, 2003. 32 Cafundó é um bairro rural situado no município de Salto de Pirapora com aproximadamente 150 km de São Paulo. Sua população, predominantemente negra, divide-se em duas parentelas: a dos Almeida Caetano e a dos Pires Pedroso. Com a população de 80 habitantes nem todos detêm o título legal das terras. Constam que estas foram doadas a dois ancestrais escravos pelos antigos senhores e fazendeiros, pouco antes da Abolição, em 1888. Nela plantam milho, feijão e mandioca e, ainda, criam galinhas e porcos, apenas para atender parte de suas necessidades de subsistência. Também trabalham como diaristas, boias-frias e como empregadas domésticas. A fala do Cafundó é uma variedade do português regional, um dialeto rural, caracterizada por um léxico de origem banto, quimbundo principalmente, que os representa como africanos no Brasil. O léxico contém cerca de 160 itens, com 15 verbos e 2 advérbios. Em relação aos usos que ainda SLENES, Robert W. “Histórias do cafundó”, In. VOGT, Carlos e FRY, Peter, Cafundó – A África no Brasil. São Paulo: Cia das Letras; UNICAMP, 1996. 29 de origem banto provocou o questionamento sobre a presença e a permanência de línguas africanas no Brasil e a possibilidade dessa fala ser procedência crioula. Ainda, de acordo com Queiroz o dialeto de Tabatinga 33 possui um pequeno vocabulário de origem africana, banto (quimbundo, principalmente), possuindo muitos termos semelhantes aos do Cafundó, com morfemas derivacionais e flexionais do português arrolados aos prefixos de origem africana. Ca-, por exemplo, de camona “criança”, nas línguas bantos marca o grau diminutivo 34. De acordo com Silva35atualmente existe famílias com sobrenome Cazumbá em África _ Angola e Moçambique que possuem palavras que levam o mesmo prefixo: “Kazumbá, Kazumba ou ainda Zumba; existem nomes em Angola, no sul temos muitas pessoas com esse nome[...] a sua pergunta seria se é nome próprio ou sobrenome[...]? Em primeiro lugar os nomes e sobrenomes se confundem muito em Angola, eu tenho certeza que Zumba pode ser nome próprio ou sobrenome de alguém, o que difere em Angola por vezes [é o] grau, por exemplos: em todas línguas bantas, a palavra que leva o prefixo [ka] Ka-zumba igual o grau diminutivo. O pai no caso têm o nome de Zumba grau superlativo, e essa é primeira confusão, e a segunda é de não termos regra de nomes e sobrenomes em Angola. E agora o a letra [k] foi substituída por portugueses [c] e naturalmente foi evoluída para acento. Normalmente esse nome é comum na etnia Chokwe, Ganguela e Nhemba, e os chokwes são famosos nos rituais e máscaras, Zumba também está relacionado à divindade[...]36. Numa análise diacrônica do léxico Cazumbá é possível identificar o prefixo Ca de origem africana, o morfema identificador de classe nominal diminutiva, contudo, a apreciação não deve excluir os lugares sociais, econômicos e culturais, onde as “heranças” transitam, uma vez que transplantadas para o Brasil às experiências dos sujeitos podem revelar traços de seu longo e intenso contato com o português, elaborações elucidativas para compreensão do significado. A palavra Cazumbá também se veste de mito em diversos personagens no território brasileiro. O bumba-meu-boi no estado do Maranhão faz referência à cultura a 33 Tabatinga é um grupo de negros localizados na cidade de Bom Despacho (MG), a 140 km de Belo Horizonte. Possuem morfemas derivacionais e flexionais do português, embora seja possível identificar em diversos termos prefixos de origem africana. QUEIROZ, S. Pé preto no barro branco: a língua dos negros da Tabatinga. Belo Horizonte: Editora da UFMG. 1998. 34 QUEIROZ, S. Pé preto no barro branco: a língua dos negros da Tabatinga. Belo Horizonte: Editora da UFMG. 1998, p. 79. 35 SILVA, José Bento da. “Cazumbá: História e memória no Recôncavo Baiano(1888-1950)”. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011, p. 3. 36 Fernando Wilson Sabonete, natural de Angola, da etnia Nhaneka-humbi. In.: SILVA, José Bento da. “Cazumbá: História e memória no Recôncavo Baiano(1888-1950)”. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011. 30 africana na tradição popular brasileira37. O folclore maranhense apresenta bois com um ritmo compassado, com badalo, pandeirões, chapéus bordados com penas de ema e a presença do cazumbá. O cazumbá nesta situação se relaciona em meio aos espíritos e aos humanos. Para além da tradição popular no Maranhão o mito perpassa o imaginário popular do Recôncavo e do Sertão no emblemático personagem José Ferreira Cazumbá. A tradição oral mistura ficção e realidade, alguns autores apresentam-no como ex-escravo, ex-oficial de justiça, delator do consorte Lucas da Feira38. Seguindo as pistas: investigando os documentos oficiais A tradição oral de moradores do Bairro São João do Cazumbá, remetia o nome de José Ferreira Cazumbá a experiência de Lucas da Feira, isso porque ambos teriam escondido, sobre uma árvore, no local39. Entretanto, afirmam que José, antes amigo, entregou-lhe as autoridades por conhecer aquele esconderijo. Enveredando em torno das pegadas deixadas nas fontes oficiais, foi possível, desvendar os mistérios que envolvia a tradição oral. Encontrei jornais publicados no século XX com notícias do século XIX40. Esses jornais feirenses faziam alusão a Lucas e Cazumbá em diversas situações: Uma multidão de crianças desleixadas pelos pais, pela escola, vagabundando pelas ruas e pelas roças, frequentando pelas mansões terríveis dos vícios. [...] Uns trilhando no latrocínio, outros na bebedice, outros na prostituição, mais outros na valentia e consequentemente nas rixas entre os companheiros, modos todos estes como se iniciou Lucas pelas ruas desta cidade. [...] Vi, então por uma imagem do pensamento, todos estes Lucas e Cazumbás incipientes 37 MATOS, Elisene Castro. CAZUMBAS: Etnografia de um personagem do bumba-meu-boi. Dissertação: São Luís, 2010. 38 ROMERO, Sílvio. Folclore Brasileiro 1 – Contos Populares do Brasil. RJ: Livraria José Olympio, 1954; MORAIS FILHO, Melo. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: Senado Federal (Coleção Biblioteca Básica Brasileira) 2002; MOURA, Clóvis. Dicionário da escravidão Negra no Brasil. SP: Edusp, 2004. CAMPOS, Sabino. Lucas o demônio negro. Romance folclórico baiano, Rio de Janeiro, 1957, p. 136. Jornal Folha do Norte- 28/01/1939. Ano de referência 1848. p. 101. nº 1542. AMSMG. LIMA, Zélia de. Lucas Evangelista: o Lucas da Feira; estudos sobre a rebeldia escrava em Feira de Santana. 1807 – 1849. Salvador: UFBA, 1990. (Dissertação de Mestrado) 39 CARVALHO, M. C. M. de. Comunidades Negras Rurais e Memórias de Quilombos. Feira de Santana: UEFS, 2008. (Monografia conclusão do curso de graduação em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana.) 40 Supostamente esses noticiários, publicados em 1938 a 1948, período do governo Vargas, momento de golpe de Estado, traziam mensagens subliminar expondo histórias de sujeitos viveram no século XIX. Além disso, os jornais eram um poderoso instrumento de comunicação no qual segmentos da sociedade exprimem publicamente as suas opiniões, uma vez que, entre os anos 20 e 40 os jornais era expressão da elite pensante do país. Assim, para não provocar reações das forças opressivas do governo recontava, muitas vezes lembrado, o mito do “herói” da resistência à escravidão. Supostamente os auditores de jornais para que a população feirense se mobilizasse contra a ditadura varguista. CAPELATO, Maria Helena. “O Controle e os Limites da Liberdade: Imprensa Paulista (1920-1945)” In: Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 12, nº 23 – 24, pp. 55 -75, set. 1991/ ago. 1992. 31 fermentando em seus espíritos os produtos de todas essas perversões, uns porque não têm pai, nem mãe, nem avós, nem tutores, são sós na sociedade, outros porque os têm e são tanto os outros pervertidos morais. [...]41 A memória social no início do século XX discorria que “os salteadores”, Lucas e Cazumbá, por vezes bandidos, tornaram-se espelhos às crianças em Feira de Santana, pois os pais e a escola, deixavam “vagabundando” pelas ruas e pelas roças, convivendo com vícios, latrocínio, bebidas, prostituição e brigas. Este episódio retrata os bastidores da memória feirense a respeito do século XIX. Em linhas gerais existia um forte imaginário social projetando perfis e enredos no tocante a curta trajetória do personagem Cazumbá. A luz projetada sobre o protagonista levoume a questionar sua real aparição naquela conjuntura social. Entretanto, continuei seguindo rastro, indícios, pistas na tentativa de esclarecer as minhas indagações concernentes as relações construídas no seio de Feira de Santana. Deparei-me com uma diversidade de jornais que circularam, em Feira de Santana, no final do século XIX e início do século XX, bem como, Manuscritos do Monsenhor Galvão, no Arquivo Monsenhor Renato Galvão/Casa do Sertão/UEFS. Inspirei-me no método de Zadig, deveria seguir a experiência de Sherlok Holmes42, para perseguir e reconstituir cada informação sobre aquele indivíduo para, posteriormente, centrar no esforço detetivesco tentando adivinhar coisas secretas e ocultas nas fontes oficiais. A primeira pista encontrei nos manuscritos do Monsenhor Galvão. O documento transportava o rastro de seu óbito, em 1857, Morte de Cazumbá (1857). José Ferreira Cazumbá, casado em (sem identificação) nupciais com Dona Rosa de Jesus, seus filhos natural de São José das Itapororocas. Preso por ter morto a cacete Marcelino Lopes da Silva, em oficial de Justiça evadiu-se em comprade de Lucas no batismo de Calatino, filho do salteador. Para obter o perdão e a prometida recompensa e outros auxílios43. Tais pistas foram estímulos necessários para continuar a investigação. Observei alusão ao Jornal Vida Feirense, a data de sua morte e o nome da mulher. Isto significava, que este personagem, não se tratava apenas de um mito presente no imaginário feirense. Entretanto, nos jornais, bem como em quase todos indícios, o personagem Cazumbá aparece como coadjuvante a Lucas da Feira. 41 O Município. n. 48, 22 de maio de 1909, p. 1-3 CHALHOUB, Visões da Liberdade; GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 43 Vide Vida Feirense 4/04/1942 -Livro I, Miscelânea| Monsenhor Renato Galvão, p. 382, Arquivo Monsenhor Renato Galvão (Casa do Sertão/UEFS) 42 32 O jornal Folha do Norte, 20 de maio de 1939, sinalizava que José Ferreira Cazumbá, oficial de Justiça, nos tempos remotos tornou-se companheiro de Lucas da Feira, por isso, conhecia os locais de esconderijo do, então, cúmplice. Continua narrando, que em diligência de justiça, Cazumbá, feriu violentamente um sujeito. Vindo este a óbito, o oficial, foi “Submetido a processo, foi pronunciado, e então ocultou-se44”. O juiz cons. Góes, incumbiu a José Ferreira Cazumbá “a missão de capturar Lucas, em troca de livrá-lo do crime”45. Assim, Cazumbá organizou uma expedição, na qual Lucas foi capturado. Um ano depois da notícia acima, o mesmo jornal 46, divulga um noticiário, de 1865, sobre a prisão de Lucas. Neste Cazumbá aparece como compadre e denunciante do esconderijo do salteador. De acordo ao noticiário, José Ferreira Cazumbá andava guiando a polícia pelas serras e matos, até que aprisionou o bandoleiro, na Pedra do Descanso, dando-lhe um tiro. Recebendo em troca 4.000,00 contos e absolvição dos crimes, que “não eram poucos”47. O Jornal48, publicado em 1848, detalha os episódios precedentes a prisão de Lucas, entretanto, não reconhece a participação de José Cazumbá. Pontua que o bandido se ocultava, em companhia de Benedito (cúmplice) e uma moça, que raptará, num rancho de palhas, com ferimentos no braço, ocasionado pelos tiros deflagrados pelo policial Serafim. Em cortejo à delegacia, escoltado pela polícia de “baioneras”, que mantinha o povo à distância e abria espaço para os que carregavam Lucas na rede, por que do machucado, “indefeso, implorou a Cazumbá”, que acompanhava ao lado dos condutores, para “protege-lhe a vida”. Nestas investigações notei que os jornais, tentavam criar a imagem para Cazumbá como um bandoleiro arrependido dos seus crimes, ao mesmo tempo, um ex-observador da lei. Quando encontrei a Certidão de Óbito, no arquivo do Arcebispado, em Feira de Santana, parte do enigma foi revelado. Tal que, se existia uma certidão atestando a morte nos registos eclesiásticos é porque esta pessoa vivia. Neste observa-se, ainda, informações a respeito de sua situação civil, raça e idade e morte. 44 Jornal Folha do Norte, 20 de maio de 1939. Arquivo Monsenhor Renato Galvão (Casa do Sertão/UEFS) Jornal Folha do Norte, 20 de maio de 1939. Arquivo Monsenhor Renato Galvão (Casa do Sertão/UEFS) 46 Jornal Folha do Norte, 1940. Arquivo Monsenhor Renato Galvão (Casa do Sertão/UEFS) 47 Jornal Folha do Norte, 1940. Arquivo Monsenhor Renato Galvão (Casa do Sertão/UEFS) 48 Jornal Folha do Norte, 1948. Arquivo Monsenhor Renato Galvão (Casa do Sertão/UEFS) 45 33 Consta no registro que faleceu em 6 de abril de 1856, casado, pardo, com 40 anos de idade, sendo sepultado no cemitério de São José das Itapororocas49. Não é conhecido a causa da morte, para tal, carece maiores investigações. Persiste a pergunta: quem foi José Ferreira Cazumbá? Por que o nome tem tanta representação no cenário do Sertão e Recôncavo baiano? Todo desenho acerca desta figura misteriosa pode ter relação com outras situações, ou apenas com o sobrenome, Cazumbá, por força de sua origem etimológica. Algumas pistas sinalizam para a presença da denominação Cazumbá desde o período colonial no século XVIII. No livro de Luiz Alberto Moniz Bandeira 50 nos capítulos IX e X aparece José Pires de Carvalho e Albuquerque, secretário de estado e proprietário de muitos engenhos, dentre eles o Engenho Cazumbá. Esse mesmo engenho é citado por Schwartz51 no livro Segredos Internos na página 321. De acordo com Schwartz os escravos deste engenho “procuravam companheiras entre as ex-escravas e suas descendentes que viviam nas imediações do engenho”52. Valim, em Corporação dos enteados, página 105, destaca que o Engenho Cazumbá, em 1859, foi arrematado pelas religiosas do Convento da Santa Clara do Desterro da Bahia, ao devedor Baltazar de Vasconcelos Calvacanti, pai da abadessa Catarina dos Anjos e vendido a José Pires e a sua esposa, pela quantia de 7.400,00 reis 53. 49 Certidão de Óbito, 1856. Arquivo do Arcebispado de Feira de Santana. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Feudo: A Casa da Torre de Garcia D' Ávila RJ: Civil. Brasileira, 2000. 51 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial 1550- 1835. SP: Cia. das Letras, 1988. p. 321 52 SCHWARTZ, op. cit. 53 VALIM, Patrícia. Corporação dos enteados: tensão, contestação e negociação política na Conjuração Baiana de 1798. São Paulo:USP, 2012. (Tese de Doutorado) 50 34 Mapa 1: Fronteiras de engenhos ao longo do Rio Jacuípe Mapa: Fronteiras de engenhos ao longo do Rio Jacuípe. Baseado em um mapa de 1864 no Mosteiro de São Bento em Salvador, no qual aparece o engenho denominado Cazumbá. In. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial 1550- 1835. SP: Cia. das Letras, 1988. p. 344. Fraga54 também menciona o engenho Cazumbá, no final do século XIX, localizado na freguesia de Rio Fundo. Este autor não cita o proprietário, ele exibe apenas o trabalhador rural envolvido em um conflito. Possivelmente este engenho seja o mesmo citado pelos autores anteriores. Embora faltando informações acerca da origem da denominação do engenho, tais autores referem-se à localização deste no Recôncavo. Já Luiz Freire exibe o engenho Cazumbá em sua dissertação 55 localizado em Feira de Santana. Esse engenho foi catalogado nos inventários do Coronel Joaquim Pedreira de Cerqueira. Nele havia 101 escravos, os quais trabalhavam em diversas ocupações. O proprietário possuía também fazendas de gado: Bonita, Mocambo e Ponta do Poço, em Camisão. No Arquivo Cível do Fórum Felinto Bastos, em Feira de Santana, encontrei duas escrituras de compra e venda de escravos, 1865. Sendo a primeira, feita pelo Reverendo Vigário José da Purificação Meneses, da Freguesia de Santa Bárbara, através do procurador Reverendíssimo José Cupertino de Araújo, ao Coronel Joaquim Pedreira de Cerqueira, Freguesia da Purificação dos Campos, do escravo Eugenio, crioulo, 20 anos, 54 FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910) Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006, p. 299. 55 FREIRE, Luiz Cleber Morais. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: agropecuária, escravidão e riqueza em Feira de Santana, 1850- 1888. p. 73. 35 natural das “Uriçangas”, do termo da Purificação, pela quantia de 1.200.00 reis56. Na segunda, com o mesmo objetivo da anterior, o Coronel Joaquim Pedreira da Cerqueira compra o escravo Antônio, jejê, 40 anos mais ou menos, solteiro, serviço da lavoura, pela quantia de 900.00 reis, ao proprietário Salustiano Aurelyo da Silva. Ambos escravos para trabalhar no Engenho Cazumbá/Purificação dos Campos57. Observa-se que ambas escrituras destacam o engenho denominado Cazumbá, pertencente ao Coronel Joaquim Pedreira de Cerqueira, o mesmo citado por Freire. Nas escrituras o engenho localiza-se em Purificação dos Campos/Santo Amaro e, não em Feira de Santana como sugeriu o autor. Neste contexto, faço fé que a denominação, provavelmente, tenciona a relação com a África, mesmo que a relação fosse senhorescravo, lance que carece mais buscas, talvez um retorno início do século XVIII, especialmente a população escrava do engenho. Voltando ao personagem Cazumbá, no final da década de 1950, Sabino de Campos escreveu um romance intitulado “Lucas o demônio negro” que narra a história de Lucas da Feira apresentando episódios que marcam a construção da identidade coletiva sobre José Ferreira Cazumbá. Tais narrativas trazem à guisa de questionamento reflexões a respeito do sobrenome Cazumbá que representa a força africana no cotidiano da região. Sabino de Campos, fez uma descrição fisionômica de José Cazumbá. Nesta expõe o indivíduo alto, forte, pardo, de cabelos crespos, testa ampla e limpa, olhos penetrantes, boca, nariz e orelhas regulares, mãos e pés grandes, barba raspada 58, casado pela terceira vez, mas que não tinha filhos. Sendo um sujeito, forte e superior a Lucas, é admirado por este que em reconhecimento, respeito e amizade pede-lhe para batizar seu filho Colatino, em uma missa em São José das Itapororocas. Nesta versão Cazumbá era irmão de Gregório, antigo proprietário de Lucas. A descrição feita por Campos avulta os traços raciais de Cazumbá, logo, sua força física e respeito social59, até mesmo por Lucas da Feira, que o admira e era-lhe subserviente. 56 Arquivo Cartorial, Fórum Felinto Bastos, Feira de Santana, Escritura pública de compra e venda, Vila de Feira, 23/set./1865 – fls. 183v-184v. 57 Arquivo Cartorial, Fórum Felinto Bastos, Feira de Santana, Escritura pública de compra e venda, Vila de Feira, 25/set/1865- fls.186v-187v. 58 CAMPOS, Sabino. Lucas o demônio negro. Romance folclórico baiano, Rio de Janeiro, 1957, p. 120. 59 BARTH, F. Grupos Étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, P. Teorias da etnicidade. Seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth, Philippe Poutignat, Jocelyne Streiff-Fenard. Tradução de Elcio Fernandes. São Paulo: UNESP, 1998. 36 Assim, José Ferreira Cazumbá, morador da Freguesia de São José das Itapororocas60, 40 anos de idade61, casado por três vezes, tendo como terceira esposa Ana Rosa de Jesus62, em diligência ao povoado de Nagé, Feira de Santana, em companhia de Marcelino Lopes da Silva, assassinou um velho sertanejo a pauladas63. Por isso foi preso e processado, conseguindo, depois de algum tempo, fugir da cadeia, escondeu-se na casa do pai de sua segunda mulher, Luiz da Cunha Vieira. Segundo Lima, Cazumbá, enquanto oficial de justiça, havia participado da prisão de Januário, escravo, membro do bando de Lucas. Ele foi responsável, 07/01/1843, em levar a intimação a Antônio Amorim Bezerra, proprietário de Januário, para que fosse reconhecer o cativo 64. Quando o governo afixou edital, em 13 de maio de 1846, convocando a população para capturar o salteador, em troca de 4 contos de réis, Cazumbá, sendo considerado um criminoso, por que do homicídio ao sertanejo, prevendo a absolvição, tornou-se o principal responsável pelas buscas e aprisionamento de Lucas. Lima destaca que antes da publicação deste edital outro já havia sido lançado oferecendo o prêmio de 2 contos de réis, entretanto, quase ninguém se interessou pela quantia65. Possivelmente o aparente desinteresse, fosse pertinente a dificuldade e o perigo atido a figura do bandoleiro. Além disso, nesta época José Cazumbá ainda não necessitava de anistia, fato que provocou grande inquietação social e, provavelmente, a associação de Cazumbá como um dos componentes do bando. Assim, quando o edital foi divulgado o ex-sogro Luiz da Cunha alertou a Cazumbá sobre as vantagens que ele teria se conseguisse aprisionar Lucas. Além dos 4 contos, granjearia absolvição do delito. Cazumbá, por sua vez, incube-o a procura do juiz e 60 Correspondência – Juízes Feira de Santana – Of. 29.01.1848 – Maço 2373. APEB, Livro de Óbito – Itapororocas - AAB. 61 De acordo com LIMA, Zélia de. Lucas Evangelista: o Lucas da Feira; estudos sobre a rebeldia escrava em Feira de Santana. 1807 – 1849. Salvador: UFBA, 1990. (Dissertação de Mestrado), porém a certidão de óbito apresenta a mesma idade quando morreu em 1856 dez anos depois. Ver Livro de Óbito – Itapororocas. 1859 – Arquivo Arquidiocese de Feira de Santana. 62 LIMA, Zélia de. Lucas Evangelista: o Lucas da Feira; estudos sobre a rebeldia escrava em Feira de Santana. 1807 – 1849. Salvador: UFBA, 1990. (Dissertação de Mestrado). Vide Vida Feirense 4/04/1942 - Livro I, Miscelânea| Monsenhor Renato Galvão, p. 382. Arquivo Monsenhor Renato Galvão (Casa do Sertão/UEFS) 63 LIMA, 1990, CAMPOS, Sabino. Lucas o demônio negro. Romance folclórico baiano, Rio de Janeiro, 1957, Livro I, Miscelânea| Monsenhor Renato Galvão, p. 382. Arquivo Monsenhor Renato Galvão (Casa do Sertão/UEFS) 64 Correspondência – Juízes – Feira de Santana – 1843 – 1847. Of. 02.03.1843 – Maço, 2373 – Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB). 65 LIMA, 1990, 37 delegado do município de Feira, Dr. Leovegildo de Amorim Figueiras, para apresentalhe as propostas para capturar o tão procurado salteador66. Tudo certo, Cazumbá dispõe de plano de captura e auxiliares: Manoel Gomes, sertanejo, odiava Lucas por este ter violentado a sua filha Ana Gomes, virgem, parda; Bendito da Tapera, crioulo; Aprígio, pardo; José Luiz Gonzaga; Bernardino; Serafim; Cipriano de Freitas, escravo; Porfirio, escravo do coronel Pedreira; Luciano Plácido e Marcelino 67. Assim, observa-se que o grupo estava formado por indivíduos racialmente miscigenados, além dos escravos, sendo que, os traços de raça os distinguem etnicamente68. Portanto, os fluxos e contatos, estabelecidos por José Cazumbá, posicionao entre os sujeitos de cor e escravos de Feira de Santana, na primeira metade do século XIX e as autoridades sociais. Cazumbá, - 23 de janeiro de 1848, segunda feira - manhã posterior a festa da Capela e arraial de Nossa Senhora de Humildes, filial da Paróquia de São Gonçalo dos Campos, três léguas de Feira de Santana, pela estrada de Santo Amaro, ficou sabendo pelo escravo, Cipriano de Freitas, que Lucas descansava sob a sobra de uma árvore – quixabeira – no local que ficava próximo a estrada que ligava o Mochila ao Buris, nas imediações da Pedra do Descanso, após comparecer à festa69. Bem informado, dirigiu-se ao local, acompanhado por Manoel Gomes, onde avistou o salteador, deferindo-lhe um tiro que acertou o braço esquerdo. Aquele, porém, baleado fugiu para seu rancho, na fazenda Tapera, próximo ao poço do Gurunga 70, imediações do Rio Jacuípe, sendo capturado na companhia de Maria Romana. Cazumbá, ainda, investigou minuciosamente o local, apreendendo armas, munições, bálsamo, capanga, algumas moedas, uma faca de ponta, outros pertences e remédios destinados ao tratamento do ferimento no braço 71. Neste conjunto observa-se a identificação de árvore, estrada, poço, pedra, bálsamo que pleiteiam os espaços de crenças e saberes de origem africanas72. 66 CAMPOS, Sabino. Lucas o demônio negro. Romance folclórico baiano, Rio de Janeiro, 1957, p. 136. Jornal Folha do Norte- 28/01/1939. Ano de referência 1848. p. 101. nº 1542. Arquivo Monsenhor Renato Galvão (Casa do Sertão/UEFS). 67 LIMA, 1990, CAMPOS, 1957, Correspondência – Polícia – 1828-1849, maço 3113 - APEB. Id., Polícia – of. 09.04.1848 – maço 6383 – APEB. Id., Ibid., of. 17.04.1848 – maço 6383 – APEB. 68 BARTH, Op. Cit. 69 CAMPOS, 1957. 70 LIMA, 1990, p. 199. 71 CAMPOS,1957, p. 146. 72 LESSA, Luciana Falcão. Senhoras Do Cajado: Um Estudo Sobre A Irmandade Da Boa Morte De São Gonçalo Dos Campos. Salvador: UFBA, 2005 (Dissertação de Mestrado em História); BARTH, F. Grupos Étnicos e suas fronteiras. In: POUTGNAT & STREIFFENART. Teorias da etnicidade. Seguido 38 Com o aprisionamento de Lucas, Cazumbá, recebeu o prêmio de 4 contos de reis, o qual foi repartido com os auxiliares, ficando com o quinhão de 2 contos de réis 73, além da absolvição do homicídio. Voltou a ocupar cargo de oficial de justiça, posição importante para desaparição do processo que era considerado um criminoso 74. Além de tudo que almejava, recebeu da população feirense o prestígio que antes não tinha: “e fruindo de novo, a consideração dos feirenses, enfiava os grossos polegares nas cavas do colete de fusta e inchava o peito dizendo com imponência: - Nada como a posição social do indivíduo! ”75 Campos dá uma entonação diferenciada ao responsável pelas buscas e pela prisão, pontuando a repercussão social do fato, tornando Cazumbá o mais admirado dos homens, recebendo, sobretudo, uma grande quantidade de donativos de comerciantes de Feira de Santana, São Gonçalo, Cachoeira, São Felix, Muritiba, Santo Amaro, Salvador e de inúmeros particulares 76. Neste relato José Ferreira Cazumbá recebeu maiores honras do que os jornais e a memória coletiva costumavam ostentar. Portanto, levanto o questionamento, quem foi José Ferreira Cazumbá? Recebeu as honras que Sabino relata no romance? Por que este fato foi esquecido da memória coletiva feirense? Porque este homem aparece, apenas, como um bandido, ligado ao bando de Lucas? Teria sido uma tentativa de apagar a imagem de um homem pardo como um protagonista de tão esperado feito? O jornal Folha do Norte, 1940, havia uma reclamação relacionada aos oficiais de justiça. Assim, o jornalista advertiu que os oficiais ocupantes do cargo em Feira de Santana, chegavam de Santo Amaro, pessoas de cor, que de costume, transgrediam as leis77. Embora não citasse literalmente José Cazumbá, fazia analogia aos tempos passados e a presença de oficiais de cor parda, que cometeu crime. A partir desse dado é possível indicar que Cazumbá fosse de Santo Amaro. É provável, ainda, que seu sobrenome tivesse relação com o Engenho Cazumbá, na presença de escravos de origem banto e através do processo de negociação e especialização da mão de obra78 conquistasse representação, destaque e, consequentemente, a liberdade. Daí deslocamento para Feira onde se tornou de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: UNESP, 1998. PARÉS, Luís Nicolau. A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006. PARÉS, Luís Nicolau. O Processo de Crioulização no Recôncavo (1750- 1880). Revista Afro- Ásia, v. 33, p. 87- 132. 2005. REIS, João José. Identidade e Diversidade Étnica nas Irmandades Negras no Tempo da Escravidão. Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 2, n. 3, 1997. 73 LIMA, 1990, p. 200 74 CAMPOS,1957. 75 CAMPOS,1957, p. 153. 76 CAMPOS, 1957. 77 Jornal Folha do Norte, 1940. Arquivo Monsenhor Renato Galvão (Casa do Sertão/UEFS). 78 SCHWARTZ, S. Escravos, roceiros e rebeldes. São Paulo: Edusc, 2001. 39 oficial de justiça. Bem como discute Poppino79 sobre o processo migratório e a chegada de indivíduos de outros locais em Feira de Santana. Também Fraga 80 destaca a migração, embora seu trabalho dê conta do final do século XIX, é possível sugerir que estes deslocamentos eram comuns bem antes, desde final do século XVIII. Também o contexto das revoltas no Recôncavo, entre 1822 a 1835, favoreceu o deslocamento de indivíduos81, bem como, a participação de escravos nestas lutas que, mediante a isso, muitos conquistaram a liberdade. Entretanto, outros dados negam a chegada de Cazumbá no período denominado Recôncavo rebelde. Em 1822, foi exposto, no Registro de Povoação do Distrito da Vila de Santa Anna, e da mesma Freguesia, como oficial de justiça, pardo, possuído de fogo, com 3 pessoas sob seu julgo 82. O documento não informa sobre sua situação civil, todavia, sabe-se que foi casado por três vezes e que não possuía filhos. Nem tão pouco constam indícios que identificassem seus ascendentes ou parentes. Notadamente na região do Recôncavo e do Sertão histórias e personagens aparecem ligados as identidades africanas ou miscigenadas. Contudo, os indícios não foram totalmente capturados para estabelecer relações e semelhanças com o sujeito que desponta no início do capítulo, comprando terras em São Gonçalo dos Campos. Sem a genealogia, José Ferreira Cazumbá, desaparece aqui. Todavia ao entrevistar os descendentes de João Cardozo Cazumbá as narrativas acionam ao parentesco entre ambos, reaparecendo como a fênix, nas reminiscências dos Cazumbá pós abolição. Ao ser questionado sobre sua família, José Cazumbá, comissário de menores de São Gonçalo dos Campos, afirmou que não conhecia todos de sua família, pois em “São Gonçalo tinha muita gente, outros foram para a Capital”. Advertiu, também, que o exoficial de justiça, em Feira de Santana, José Ferreira Cazumbá83, responsável pela prisão de Lucas da Feira, era seu tio. Igualmente Maria de Lourdes Cazumbá 84, escrivã do cartorial civil, expôs a sua ancestralidade ao oficial de justiça. 79 POPPINO, Op. Cit. FRAGA, Op. Cit. 81 REIS, João José. A tradição rebelde II: revoltas escravas na Bahia independente. In.: Rebeliões Escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. Edição revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. SILVA, Eduardo, REIS João José (orgs.). Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras. 1996. 82 Registro de Povoação do Distrito da Vila de Santa Anna, e da mesma Freguesia, 1822. Arquivo Monsenhor Renato Galvão (Casa do Sertão/UEFS) 83 Entrevista com José Cazumbá, Comissário de Menores, concedida em 12 de abril de 2008. 84 Entrevista com Maria de Lourdes Cazumbá, concedida em 16 de maio de 2012. 80 40 Para o momento, as investigações esbarram na falta de pistas que indique tal consanguinidade. Todavia, é importante compreender que tanto a personalidade, José Ferreira Cazumbá, em Feira de Santana, como a família, em São Gonçalo dos Campos, têm uma forte representação social. Silva, no artigo intitulado “Cazumbá: História e memória no Recôncavo Baiano (1888-1950) ” adverte que: Por exemplo, uma funcionária do Fórum, quando soube do nosso interesse, disse-nos: “O sobrenome Cazumbá em São Gonçalo é pomposo, vale mais do que dinheiro”. Aliás, as informações apontavam para uma distinção da família Cazumbá em relação aos demais descendentes de africanos residentes na cidade85. Neste sentido, surgem novos questionamentos sobre o mistério por traz dos indivíduos e do nome Cazumbá? Quais as experiências estavam inseridas? Como se formou a família em São Gonçalo dos Campos? A investigação segue no sentido de desvendar estes mistérios. Por que os indivíduos vão aparecer no século XX, com ampla representação, bem como surgem Avenidas e Bairro em São Gonçalo e Feira de Santana denominadas Cazumbá. Assim, o personagem do início deste capítulo, João Cardozo Cazumbá, compareceu no cartório, em 30 de junho de 1879, consorciado a Manoel de Ferreira de Cerqueira, moradores desta freguesia, como compradores e o Major Francisco Antônio de Carvalho, morador da cidade de Santo Amaro, como vendedor. Presentes partes, o escrivão de paz interinamente juramentado, [ilegível] Pedreira de Cerqueira, declara ser os compradores conhecidos e sem impedimento para comprar as terras, casa e benfeitorias da fazenda antigamente denominada Várzea, Sobrado, na localidade Cruz, pela quantia de 1: 800$000 reis86 (um conto e oitocentos mil reis) 87. Sendo quitado o valor, o vendedor e seus herdeiros em tempo algum poderiam reclamar a venda. Assim, assinam com as testemunhas presentes José de Medeiros Borges e Álvaro Pereira de Cerqueira, assinando a rogo do comprador João Cardozo Cazumbá, por não saber escrever, Francisco da Silva Menezes. A fazenda foi adjudicada pelo Juiz de órfãos da Cidade de Santo Amaro, Doutor Joaquim Alves de Almeida Freitas, do finado Comendador Antônio Lopes Ferreira e SILVA, José Bento da. “Cazumbá: História e memória no Recôncavo Baiano (1888-1950)”. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011. p. 4. 86 Conto de réis – Moeda portuguesa que corresponde a um milhão de reais ou um milhar de mil-réis. Mil réis – Milhar do real. Ver NEVES, Erivaldo Fagundes. Posseiros, rendeiros e proprietários: estrutura fundiária e dinâmica agromercantil no Alto Sertão da Bahia (1750-1850). Recife: [s.n.], 2003. 87 Escritura de Compra e Venda de Terras. 1879. BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro do Tabelionato n. 2 85 41 Souza, que era seu devedor. Sendo as demarcações são: ao sul com terras de João do Mayo Machado; oeste do Padre Gonçalo de Souza e leste e norte com terras de Estevão Machado88. O mapa abaixo sugere a possível localização da fazenda. Mapa 2: São Gonçalo dos Campos Fonte: USGS. Serviço Geológico do Governo dos Estados Unidos. Acessado no dia 3 de junho de 2014 em: http://earthexplorer.usgs.gov/ Embora este seja o primeiro documento que saltou aos olhos da investigadora, esta não foi a primeira aquisição de terras realizada por Cazumbá. Anexo ao Pedido de Embargo, 1895, estava um translado de venda e compra de terras, de 30 de maio de 1874. No documento Maria Joaquina da Silva, viúva de José da Silva, vendeu ao senhor João Cardozo Cazumbá, 33 braças e meia de terras da Fazenda Terra Dura, pelo valor de 300 mil reis. Recebendo do comprador 250 mil reis em moeda e o restante, 50 mil reis, receberia a partir de 2 meses da data compra, ficando a terra penhorada 89. Mediante essa compra João Cazumbá tornou-se um proprietário de terra no local denominado Cruz e 88 Escritura de Compra e Venda de Terras. 1879. BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro do Tabelionato n. 2 89 Pedido de Embargo, 1895. Arquivo Cartorial/ Fórum João Mendes. São Gonçalo dos Campos. 42 quatro anos mais tarde irá comprar com Manoel de Ferreira de Cerqueira a fazenda Sobrado. Pois bem, em inventários, registros de compra e venda de imóveis e na tradição oral, encontrei os vestígios de João Cazumbá, bem como de outros sujeitos que tiveram suas vidas influenciadas por diversas transformações que sucederam as últimas décadas do século XIX. Em 1884, a Freguesia foi elevada à condição de Município. Em 1888, com o fim da escravidão, o direito de cidadania dos ex-escravos foi estabelecido legalmente e um ano depois foi implementada a ordem republicana. Todavia, as estruturas fundiárias permaneciam na mesma situação. Havia concentração de terras nas mãos de alguns proprietários e a maioria da população sem posse de terras trabalhando como lavradores de fumo. Bem, talvez João Cardozo Cazumbá, fosse mais um dos proprietários de fazenda fumageira, mas fui cair na tentação de fazer uma análise de perto, do tipo microscópica, saber sua genealogia e experiência com a escravidão, daí, apareceu “sinais”. Assim, como Holmes90, seguirei recuperando os variados fatores sociais, econômicos, materiais, afetivos, demográficos e culturais que tiveram direta e indiretamente conexos àquela trajetória. É partindo desse contexto que se forma o segundo capítulo. 90 CHALHOUB, Visões da Liberdade, GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 43 CAPÍTULO II São Gonçalo dos Campos: propriedade, economia fumageira e produção de subsistência 1870 – 1890. O espaço geográfico deste estudo a cidade de São Gonçalo dos Campos, encravada no Recôncavo baiano, numa região que desde o século XVII foi denominada de “Campos da Cachoeira”, por se localizar em terras planas e arenosas favoráveis ao cultivo do fumo, gênero de grande importância para o comércio agroexportador 91. Além do fumo, cultivavam-se os mais diversos gêneros de subsistência, tal como, a farinha de mandioca, feijão, o milho, produtos destinados ao mercado, como, destaca-se a criação de gado92. A região era passagem regular de viajantes que partiam do porto de Cachoeira, seguindo o caminho da “Estrada Real”,93 em direção à Feira de Santana e ao sertão. Tais deslocamentos contribuíam para abertura de novos caminhos e exploração da Província94. Pesquisas apontam que a penetração inicial se deu no século XVII por bandeirantes 95 que demandavam metais preciosos e trabalho escravo indígena. Segundo a historiadora Marli Geralda Teixeira foi a partir da construção da capela ao santo São Gonçalo do Amarante96 pelos jesuítas do seminário de Belém entre os anos de 1687 a 169097, que se originou o núcleo populacional, bem como pela produção de fumo que se tornou a principal atividade econômica. Na década de 1690, o arraial de São Gonçalo foi elevado à categoria de freguesia, pertencente à Vila de Cachoeira, portanto, a capela de São Gonçalo do Amarante estava submetida à autoridade político-administrativa da comarca de Cachoeira, como uma de suas freguesias98. Mas, antes mesmo de se originar a paroquia ao São Gonçalo do Amarante, existia, de acordo com Caldas, um pequeno arraial que se erigia ao redor do engenho das irmãs Izabel e Maria Pereira Lobato, no local que situava a capela de Nossa 91 NARDI, Op. Cit.; BARICKMAN, Op. Cit.; SILVA, Op. Cit. TEIXEIRA & ANDRADA, Op. Cit., p. 43 93 FREIRE, 2011, p.45. 94 TEIXEIRA & ANDRADA op. cit., p.26. 95 Enciclopédias dos municípios p. 333. 96 TEIXEIRA & ANDRADA, op. cit., p.26. 97 CALDAS, José Antônio. Notícia geral de toda Capitania da Bahia desde o seu descobrimento até o presente ano de 1759. Ed. Fac-similar, s. c. p., 1925 p. 13. 98 TEIXEIRA & ANDRADA, op. Cit., p.27. 92 44 Senhora das Mercês, sendo mais tarde incorporada a freguesia99. Em termo definição histórica e geográfica: Os campos da Cachoeira finalmente definem-se como uma região de 5 mil quilômetros quadrados que se dividia em dois setores. O primeiro, situado a oeste e a sul dos rios Paraguaçu e Jacuípe, reuniu em quarto das fazendas e as freguesias de Outeiro Redondo, São Pedro da Muritiba, Santo Estêvão do Jacuípe e parte de São José das Itapororocas. O segundo setor, situado a leste e nordeste dos mesmos rios, representava 75% das fazendas e incluía a totalidade das freguesias da Cachoeira, São Gonçalo dos Campos e a maior parte da de São José das Itapororocas100. A região dos Campos da Cachoeira consiste em um fragmento da zona fumageira, localizado ao longo dos rios Paraguaçu e Jacuípe, sentido ao Sertão. Dentro deste espaço, foram identificados às freguesias de São Gonçalo e São José das Itapororocas, quais destacavam como importantes campos econômicos para produção de fumo e criação de gado101. É difícil determinar o período em que se iniciou a produção de fumo em São Gonçalo dos Campos. Ao que parece, o fumo, a mandioca e a criação de gado, como em boa parte do Brasil, foi recurso largamente utilizado entre os colonizadores europeus durante o período colonial sob o objetivo de exploração das novas terras. Portanto, o cultivo do fumo se estendia pelas laterais do Paraguaçu e Jacuípe fazendo a ligação entre a zona de entreposto que liga o Recôncavo ao Sertão. Atividades econômicas: agricultura fumageira e de subsistência, e criação de gado Tratando-se da principal atividade econômica, as informações a respeito da produção de fumo servem para entender as relações sociais que se estabeleceram no local nos anos posteriores à abolição. Contudo, as fontes consultadas não apresentavam de maneira específica à quantidade do cultivo do fumo nem a safra que as fazendas produziam no final do século XIX, como as categorias de cor dos proprietários de terras e dos trabalhadores livres. Antes, as descrições estavam relacionadas aos acessórios e bens utilizados no processo produtivo. Alguns autores destacam a fumicultura como economia de pobres, que utilizava majoritariamente a mão de obra familiar para a produção. Apesar disso os inventários 99 CALDAS, op. cit., p. 13. NARDI, 1996, p. 40-41. 101 POPPINO, Op. Cit.; NARDI, Op. Cit. BARICKMAN, Op. Cit.; TEIXEIRA & ANDRADA, Op. Cit. 100 45 sinalizam que tal produção era realizada entre os grandes proprietários 102. Como pude perceber através da presença de armazéns de fumo entre os bens dos proprietários de terras: Maria Jerônima de Trindade, em 1829-1862, de Maria Lucia de Souza, em 18681871, de Maria Joaquina da Trindade, em 1846-1866, Francisca Alves de Almeida, em 1882, de Egídio Lopes de Almeida, em 1868-1871, Maria Carolina do Amor Divino, em 1869-1876103, utilizando mão de obra escrava para produção. As fontes sinalizam que a produção fumageira favorecia os proprietários que utilizavam a mão de obra escrava, entretanto, não pode descartar os pequenos lavradores sem posse de terras entre os produtores. Provavelmente, isso se deva porque diferente da produção de açúcar, a fumicultura não requeria grandes preparos técnicos, nem tão pouco grandes extensões territoriais104. O fabrico era realizado pela utilização da mão de obra escrava consorciada a mão de obra livre que no presente estudo vai sendo caracterizada por diferentes categorias. Ainda, nota-se que esta economia era de grande importância por seu caráter exportador. A presença de armazéns nos inventários estudados retrata que como em outras regiões do Brasil a produção de fumo, neste local, destinado aos armazéns do Recôncavo, vinculou-se ao tráfico de escravos no comércio triangular 105, sendo, que propiciava uma relação com o mercado internacional, no caso: europeus, asiáticos, africano, norte da América e ao mercado interno, especialmente nas zonas de mineração 106. Embora tenha sofrido considerável queda na comercialização, na segunda metade do século XIX, supostamente as causas tivessem ligada a independência, em 1822, e ao fim do tráfico, em 1850107, não provocou consequências drásticas, haja vista o fumo já havia encontrado outros mercados108. Como assinalou Andrade109 a decadência que se passa, em 1850, foi apenas do refugo, pois o melhor fumo continuava a encontrar amplo 102 De acordo com BARICKMAN, op. cit. O cultivo do fumo em São Gonçalo em 1835 podia ser realizado pela família de camponeses lado a lado com um ou dois escravos que eles possuíssem. 103 Inventários de Maria Jerônima de Trindade, 1829-1862, de Maria Lucia de Souza, 1868-1871, de Maria Joaquina da Trindade,1846-1866, Maria Carolina do Amor Divino, 1869-1876, Francisca Alves de Almeida, 1882, de Egídio Lopes de Almeida, 1868-1871, BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixas 198 e 218. 104 BARICKMAN, op. cit., p, 293 105 VERGER, Pierre. Fluxo e Refluxo: o tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos dos séculos XVII a XIX. 3. Ed. São Paulo: Corrupio, 1987. 106 SILVA, op. cit. 107 MATTOSO, Kátia M. de Queiroz. Bahia: Século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, VERGER, op. cit., NARDI, op. cit. 108 SILVA, op. cit. 109 ANDRADE, Manuel Correia. Apud. BORBA, Silva Fraga. Industrialização e exportação de fumo na Bahia. Salvador. Mestrado da UFBA, 1975, pp. 4 e 5. 46 mercado nos diversos comércios mundiais e, mesmo, no comércio interno. Contudo, a fumicultura, no final século XIX, já era tradicional, lavrado em todo território da Província, especificamente nas regiões exportadoras situadas próximas ao litoral110. O mapa abaixo representa os locais que a produção de fumo se concentrava: Mapa 3. Áreas de plantio de fumo do Recôncavo da Bahia Fonte: Reproduzido por AZEVEDO, Aroldo de. Regiões e paisagens da Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1952, Série Brasiliana. In: BRANDÃO, M. A. (org.) Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador, Fundação Jorge Amado, Academia de Letras da Bahia; Universidade Federal da Bahia, 1998, p. 33. Essa região se apresentava como uma importante produtora de fumo 111. De acordo com Sonneville, dos anos 1872 até 1880, o fumo ocupava o primeiro lugar na pauta dos exportadores baianos, especialmente para Alemanha. Assim, Em 1859/60 o fumo ocupava pela primeira vez o primeiro lugar na pauta de exportação da Província, perfazendo 30,9% do total de exportado, na frente do açúcar com apenas 26,6%. No ano agrícola de 1862/63, em decorrência da guerra de Secessão, a exportação de fumo se expandiu enormemente, ultrapassando pela primeira vez o milhão de arrobas exportadas pelo Brasil. O fumo tornou a ocupar o primeiro lugar na pauta das exportações baianas nos anos agrícolas de 1872/73, 1875/76, 1877/78, 1878/79, 1879/80112. 110 As zonas foram Cachoeira, São Miguel das Matas, Nazaré, Maragogipe, São Felix, Cruz das Almas, São Felipe, Santo Antônio de Jesus e todo Recôncavo sul. MATTOSO, op. cit., p. 462. 111 Dados da Junta Comercial da Bahia para o século XIX. Ver: Invenção da Bahia na Evolução Nacional. 1ª etapa: 1850-1889. Comércio V3T2 SEPLANTEC. CPE. Salvador, 1980, p. 121 a 134. 112 SONNEVILLE, Jacques. Os lavradores de fumo: Sapeaçu-Ba. 1850-1940. Salvador, Mestrado em Ciências Sociais da UFBA, 1982. p. 53. 47 Só em 1877 a Bahia exportou 500.000 fardos de fumo 113. Neste período estabeleceram as firmas Costa Ferreira & Penna, Stender & Cia., Dannemann, Suerdieck, Vieira de Mello, no Recôncavo, o que tornou a produção fumageira a atividade econômica mais significativa da Província 114. Assim como “abriu espaço para produtores ainda mais modestos, uma vez que não necessitavam das instalações de beneficiamento do tabaco em rolo, levando a maior participação de produtores domésticos nesta lavoura ”115. Nos últimos anos do século XIX, a lavoura do fumo constituía o principal artigo de exportação e, ao raiar do século XX, já contando com a instalação das fábricas de charutos, continuou contribuindo com as rendas auferidas pela exportação na economia da Bahia, sendo o Recôncavo o maior fornecedor de fumo e derivados de todo o Estado116. A partir de Vilhena é possível compreender que antes deste período, no século XVIII, havia "nesta Capitania diferentes paragens, onde se lavra tabaco; os sítios, porém onde há mais fazendas dele são com preferência a todos do Brasil, os campos da Cachoeira"117. Ainda, de acordo com Mattoso118, no final do mesmo século, só no distrito de Cachoeira havia oito mil plantadores de fumo, sendo a maioria rendeiros. Essa singularidade dos plantadores de fumo, a partir de então, criou uma espécie de tradição em torno dessa atividade e um tecido social territorialmente diferenciado. Neste sentido, vamos encontrar no final do século XIX e início do século XX uma conjuntura de produtores em que vai comportar além dos médios, os pequenos como, especialmente os rendeiros. Portanto, o fumo não era uma economia de pobre, antes o investimento do governo, no século XVIII, já sinaliza a ampla importância desse gênero para economia agroexportadora da Província. Não era cultivo de pobre, mas abria possibilidades para que pequenos lavradores dela participassem. A economia fumageira movimentava a vida social da freguesia e, especialmente, com a aquisição de terras e nas relações de trabalho escravo e livre, promovendo novas 113 TEIXEIRA, op. cit., p. 52. LEIPNITZ, Guinter Tlaija. “Contratos, preços e possibilidades: arrendamentos e mercantilização da terra na fronteira sul do Brasil, segunda metade do século XIX”. Topoi, Revista de História, Rio de Janeiro.v. 13, n. 24, jan.-jun. 2012, p. 43-59. Disponível em: <www.revistatopoi.org/numeros_ anteriores/topoi17/topoi_17_-_artigo3_-_sistemas_agr%C3%A1rios_na.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2013. 115 LOPES, Gustavo Acioli. “Caminhos e descaminhos do tabaco na economia colonial”, Dossiê Cultura e Sociedade na América Portuguesa Colonial, Revista MNEME v.5, n. 12, out./nov.2004 Disponível em http://www.seol.com.br/mneme. p. 6. Ver, ainda, SANTOS, op. cit. 116 BORBA, op. cit. p. 10; ALMEIDA, Rômulo. Traços da História Econômica da Bahia no último Século e Meio. (1.° Conferência de um Curso de Economia promovido pelo Instituto de Economia e Finanças da Bahia, em 7/11/1949). Salvador (Ba.): junho de 1951, n.2. PP. 8-9. 117 VILHENA, op. cit. p. 199. 118 MATTOSO, op. cit. P. 463. 114 48 oportunidades de trabalho, de acúmulo de riquezas e de mobilidade119. A aquisição de terras representava a conquista da posse de uma propriedade para o cultivo do gênero, ao mesmo tempo, a possibilidade de ter uma teia de trabalhadores rendeiros produzido sem receber o necessário pelo trabalho efetivado. Esse quadro vai até 1888 com a abolição da escravatura e a principalmente produção de fumo em corda, depois deste ano passou a ser fabricado em folha 120. Porém, antes da abolição já havia uma intensificada produção em folha. Essa tendência demonstra que, em contradição com a crise da escravidão que anunciava o trabalho livre, a produção fumageira permanecia em contínuo crescimento. Alicerçada, portanto, nos regimes de trabalho escravo e livre, contexto que pode ser apresentado como um palco de uma diversificada rede social no Recôncavo 121. Figura 1: O processo de secagem do fumo por famílias de lavradores Fonte: NUDOC. Secagem de fumo em um sítio na área rural de São Félix, provavelmente Outeiro Redondo. Provavelmente esta imagem represente o início do século XX. A imagem acima apresenta a secagem do fumo realizada por uma família de plantadores, o que demonstra que nem todas as famílias possuíam armazéns. Nota-se a presença de indivíduos de cor, homens e mulheres participando do mesmo processo 119 MATTOSO, op. cit., BARICKMAN, op. cit.. POPPINO, Rollie. Feira de Santana. Salvador, Itapuã, 1998. 120 SANTOS, Milton. In: BRANDÃO, M. A. (org.) Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador, Fundação Jorge Amado, Academia de Letras da Bahia; Universidade Federal da Bahia, 1998, p. 33. 121 BARICKMAN, op. cit., SILVA, op. cit., MATTOSO, op. cit. Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 218. 49 produtivo. A imagem demonstra que a secagem acontecia na parede da frente da casa que morava a família produtora. A parede de taipa, como descritas nos inventários da segunda metade do século XIX. Portanto, é possível sugerir que na imagem a família produtora refere-se a indivíduos de cor, e pelas condições da construção se trata de pessoas sem posse de terras, provavelmente rendeiros, que através da produção fumageira conseguiam o recurso necessário à sua subsistência. Observa-se que o espaço – no qual os indivíduos mantem suas atividades relacionadas à terra (a roça, a produção de farinha e de fumo, a criação de gado) – vai gradualmente apresentando configuração das experiências de indivíduos que foram escravos, livres e libertos, na relação do trabalho agrícola nas fazendas fumageiras no final do século XIX e início do século XX. Assim o cultivo da mandioca, revela o horizonte de sobrevivência comum às gerações das famílias da região até da década 1910. As realidades apontadas por Barickman para o Recôncavo apresentam interessantes aspectos da dinâmica vivenciada por aqueles que se mantinham através da produção de fumo e farinha de mandioca. Este exemplo demonstra consorciadas à agricultura voltada para a exportação, como no Recôncavo e no litoral baiano 122, a cultura de subsistência e à pecuária, a exemplo de Feira de Santana123. Os armazéns e as casas de farinha atravessaram a segunda metade do século XIX como objetos presentes entre os bens dos inventariados. Podemos citar a família de Maria Carolina do Amor Divino, que declarou entre os bens um armazém de fumo, casa de farinha, os acessórios para fazer a farinha, além de uma quantidade de pés de café. Esta fazenda comportava os diversos bens de produção, eram responsáveis pela produção de fumo, farinha e café124. Outro caso é o de Domingos Rodrigues Vieira, no qual exibe entre os seus bens um armazém e uma gangorra de torcer fumo 125. Maria Joaquina de Jesus, 1879, também, inventariou entre os espólios de Francisco Rodrigues Vilarinho uma casa de farinha, armazém de fumo e acessórios126. Com base nas informações relatadas, observa-se que BARICKMAN, Um contraponto baiano, p. 248 – 252. POPPINO, Feira de Santana. Freire, Op. Cit. 124 Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 218. 125 Inventário de Domingos Rodrigues Vieira, 1846- 1863 BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 218. 126 Inventário de Francisco Rodrigues Vilarinho, 1879, BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 218. 122 123 50 os sítios cultivavam gêneros variados, prevalecendo o cultivo de fumo associado ao cultivo de mandioca. Por sua vez, a farinha de mandioca era um gênero importante por ser um alimento básico na dieta dos moradores da freguesia 127, especialmente, dos escravos e população pobre. O cultivo de roças de fumo e de mandioca oferecerá aos escravos e ex-escravos a possibilidade lançarem mão de pequenas quantidades de terras e produzirem suas pequenas roças para sua subsistência de suas famílias128e para comercializar nas feiras locais. Tal produção, ao longo do tempo de 1850 a 1870, no ponto de vista de Ribeiro e de Barickman subsidiava os cultivos de cana-de-açúcar brasileiros, bem como os plantios de fumo e de café129, também, fornecia ao mercado interno. Junto com a carne-seca, “a mandioca, para o cultivo da farinha, era de longe a lavoura de subsistência mais amplamente cultivada no Recôncavo e a farinha era um componente indispensável do regime alimentar baiano 130” Figura 2: Escravos fazendo farinha 127 BARICKMAN, op. cit. BARICKMAN op. cit. retrata esse fato na primeira metade do século XIX. De acordo com o autor vai haver um considerável número de escravos que possuíam suas próprias roças nas fazendas de fumo e de mandioca. 129 RIBEIRO, Abastecimento de farinha, p. 20-21, 36-94; SONNEVILLE, Jacques Jules. Os lavradores de fumo: Sapeaçu, 1850 -1940. Salvador, 1982, p. 17; SILVA, Graziano da. Estrutura agrária e produção de subsistência. São Paulo: HUCITEC, 1978, p. 11-12; BARICKMAN, Um contraponto baiano. 128 “A farinha de mandioca – ‘o pão da terra’ – e seu mercado”. In: BARICKMAN, Bert Jude. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780 – 1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 89. 130 51 Fontes: Litografia de Victor Frond. In. FREIRE, Luiz Cleber Morais. Nem Tanto ao Mar, Nem Tanto a Terra: Pecuária, Escravidão e Riqueza em Feira de Santana, 1850-1888. Dissertação de Mestrado| UFBA, 2007, p. 83. A litografia de Victor Frond exibe o processo de produção da farinha de mandioca feita por escravos. Parece que o homem de chapéu é o proprietário; a mulher escrava rala a mandioca; o homem atrás da mulher deposita a mandioca para ser ralada. Outra mulher pega a massa da mandioca, pondo em um outro vaso. Os quatros escravos dos sexos masculinos são responsáveis por mover a roda. Ainda se observa no chão cestos e paios espalhados. O ambiente em que o trabalho está sendo realizado parece ser em frente de um armazém, provavelmente de fumo. Semelhante a representação feita por Victor Frond para Feira de Santana, é possível sugerir ao contexto social e trabalho escravo em São Gonçalo dos Campos, haja vista se pintasse uma imagem da conjuntura social do final do século XIX naquela freguesia tendo por base as informações dos inventários, o desenho seria bem parecido a este. Sob esta ótica, a imagem muito se aproxima do aspecto produtivo da mandioca consociada ao cultivo do fumo, narrado por Barickman e observado nos inventários estudados131. Além da mandioca e do fumo, a produção de café aparece nos inventários dos moradores de São Gonçalo dos Campos em pequena quantidade, contudo merece atenção. Vale lembrar que não identifiquei fazendas que dedicassem exclusivamente à produção de café ou de outro gênero agrícola. O espaço era compartilhado em entre muitos deles. Na fazenda de Maria Jerônima de Trindade, por exemplo, a produção agrícola estava relacionada ao cultivo do fumo, farinha, café 132. Essa produção equivalia de 7 a 100 pés de café. Na Fazenda Limoeiro, de Ana Francisca da Trindade, inventariou 40 pés de café133. Esse cafezal de Ana Francisca da Trindade entre outros, manifesta que os produtores rurais, em São Gonçalo dos Campos, acompanhavam a demanda para a produção cafeeira no sudeste do País134. Sobre a comercialização deste gênero não obtive informações, todavia, desde a primeira do século XIX, “o açúcar, fumo e café podiam render excelentes lucros para os 131 BARICKMAN op. cit.; Inventários de Maria Jerônima de Trindade, 1829-1862, de Maria Lucia de Souza, 1868-1871, de Maria Joaquina da Trindade,1846-1866, Maria Carolina do Amor Divino, 18691876, Francisca Alves de Almeida, 1882, de Egídio Lopes de Almeida, 1868-1871, BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixas 198 e 218. 132 Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 218. 133 Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixas 198 e 218. 134 VIOTTI, Emília. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6. Ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. 52 comerciantes de Salvador e para os senhores de engenho e lavradores do Recôncavo”135. Desse modo, o cultivo desses gêneros relacionados ao cotidiano rural, nas fazendas inventariados estabeleceram um ambiente de tradição, no qual os espaços, costumes, expectativas e estratégias de sobrevivência, vão sendo definidos e partilhados ao longo das gerações existentes nas fazendas locais através do trabalho escravo, familiar e rendeiro. A criação de pequenas quantidades de gado vacum constituiu outra fonte de renda básica dos moradores contidas nos inventários. A criação de gado bovino se fez presente em pelo menos 76,5% dos inventários levantados nesta pesquisa, classificados com gado vacum, bois de carro, usados como tração. Tal rebanho correspondia entre 4 a 120 cabeças de gado, que representavam proprietários de rebanhos muito pequenos. Os proprietários que apresentavam de 100 a 200 cabeças de gado possuíam maiores extensões de terras, maior quantidade de escravos e mais de uma propriedade fundiária. Neste sentido, Maria Jerônima de Trindade, possuíam 12 cabeças de gado na Fazenda Moreira, 7 na Fazenda Arengas, 100 na Fazenda Limoeiro, 140 na Fazenda Retiro, 152 na Fazenda Serra e 200 na Fazenda Prazeres. Nas Fazendas Paixão ou Tabuleiro e na Fazenda Lapa não foi declarado gados entre os seus bens136. Outros proprietários, como Maria Carolina do Amor Divino, possuíam bens ligados a atividade agrícola e criação de animais, como foram declarados, nos 4 cavalos, 3 burros, 92 cabeças de gado vacum, 4 bois de carro, 25 bezerros, 20 cabeças de ovelhas, 20 cabras137. É importante ressaltar a ligação entre a criação de gado e a cultura fumageira, uma vez que o estrume do gado servia para adubar o solo onde seria plantado o fumo melhorando, assim, a sua produção138. O gado - cavalar e muar - também, estava presente na maioria das propriedades. Os fazendeiros possuíam 1 a 10 cavalos e muares em suas fazendas, porém estes não representavam os bens mais valiosos. A criação de gado, também, permitiu perceber os níveis de propriedades e de patrimônios na freguesia. De acordo com Freire, para a freguesia de Feira de Santana, estes animais eram indispensáveis ao funcionamento da 135 BARICKMAN, op. cit. p. 89; TEIXEIRA & ANDRADA, op. Cit., p. 43. Inventário de Maria Jerônima de Trindade, 1829/ 1862. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 218. 137 Inventário de Maria Carolina do Amor Divino, 1869-1874. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198. 138 SILVA, Francisco Carlos T. da. Pecuária, agricultura de alimentos e recursos naturais no BrasilColônia. In. SZMRECSÁNYI, Tamás (org.). História Econômica do Período Colonial. 2. ed. São Paulo: Hucitec, Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica, Edusp, 2002. POPPINO, op.cit., SILVA, op. cit., TEIXEIRA & ANDRADA, op. Cit. 136 53 fazenda, servindo como meio de transporte de pessoas e de cargas139. Assim também, o gado cavalar e muar pertencentes às famílias proprietárias estavam conexos a essa finalidade. Evidenciei, ainda, nos inventários a agiotagem. Assim, Francisco Pereira Adorno, com a fortuna avaliada em 26.485.160 réis, havia emprestado 22.560.160 (vinte dois contos, quinhentos e sessenta mil e cento e sessenta) reis a Juventino, Manoel Marques de Almeida, Mateus Alves de Jesus e Manoel Alves dos Santos140. Também, Luís Alves Adorno, com uma fortuna avaliada em 12.721.530 (doze contos, setecentos e vinte e um mil e quinhentos e trinta réis), declarou que havia emprestado 4.139.260 (quatro contos, cento e trinta e nove mil e duzentos e sessenta réis) 141. A agiotagem consistia em emprestar uma parcela de dinheiro a alguém mediante ao estabelecimento de juro previamente estabelecido entre as partes, com o pagamento em tempo determinado pelo agiota. Aliada a economia de subsistência e ao cultivo de fumo nota se as complexas relações, nem sempre amistosos, do dia-a-dia da freguesia. Assim, em vistas das informações contidas nos inventários foi possível perceber a variedade socioeconômica entre os fazendeiros, bem como através da leitura de bibliografia já mencionada neste estudo e escrituras, censo, entre outras fontes, a presença de indivíduos sem propriedades. Não obstante, para melhor compreensão da sociedade na freguesia fumageira do Recôncavo, na segunda metade do século XIX, fiz descrições pormenorizadas dos inventários, buscando perceber a distribuição dos bens e, bem como, diferenças e valores das propriedades. Vida material: a freguesia fumageira de São Gonçalo dos Campos. Uma característica do grupo inventariado é o número de filhos por casal. Embora diga respeito apenas ao segmento dos proprietários, dos 35 espólios da segunda metade do século XIX, constatei que as famílias eram compostas de 1 a 10 filhos. Alguns proprietários deixaram seus bens para marido, esposa e irmão, constituindo a maioria dos herdeiros o viúvo (a) com seus filhos. Esse contexto trata-se, pois de um grupo social 139 FREIRE, op. Cit., p. 53. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 218. 141 O inventário de Francisco Pereira Adorno, de 1862, BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 218. 140 54 com tradição de famílias numerosa, bem próximo do modelo dos engenhos142. Ainda nos documentos notei a presença de mulheres como chefes de fogos e proprietárias de terras e escravos, ao mesmo tempo, que os maiores índices de mortalidade são entre elas. Embora os dados disponíveis nos inventários não serem ricos em detalhes a respeito do cotidiano nas fazendas fumageiras do Recôncavo, por meio deles pude esquadrilhar informações a respeito de escravos, famílias, propriedades, atividades produtivas, elementos que tornou possível revelar o contexto da época estudada. Não obstante, os proprietários de terras não tinham o mesmo nível de riquezas. Os documentos, tantos cartoriais, eclesiásticos e censos atestam uma diversidade de fortuna e de trabalhadores não-proprietários no local. Os indivíduos que detinham um cabedal inferior a 400.000 mil reis eram titulares de pouquíssimas posses, no geral, possuíam escravos ou terra. A exemplo de Bernardino Moreira de Almeida, morador da Fazenda Tapera, homem pobre, tinha o monte-mor no valor de 400.000 (quatrocentos mil) reis, valor equivalente à sua escrava, Bárbara, crioula, 60 anos, serviço da lavoura143. Nos 35 inventários, observa-se que os espólios das famílias expunham rendas dentro da faixa que variavam entre 400.000 (quatrocentos mil) reis a 26.485.160 (vinte seis contos, quatrocentos e oitenta e cinco mil e cento e sessenta) reis. Apesar das variações, indicando a desigualdade socioeconômica, os indivíduos adquiriam meios e possibilidades de sobreviver nesta sociedade desigual, sendo eles livres, escravos ou libertos, despossuídos de propriedades fundiárias. Assim, no caso de Bernardino Moreira de Almeida, os dados indicam que ele não possuía terra, ou mesmo moradia própria, uma vez que, no inventário não incluía casa, terras, bens de raiz, gado e móveis, apenas a escrava, empregada nos serviços da lavoura. Sem propriedade fundiária, Bernardino, além de utilizar a mão de obra de sua escrava, contava com a ajuda de sua mulher Maria Epifânia de Jesus e dos filhos José Moreira de Freitas e Ana Maria Sacramento144. A análise detalhada dos arranjos do trabalho no mesmo período, em outros documentos e pesquisas, insinua uma clara analogia desta família com a experiência de rendeiros na freguesia145. 142 BARICKMAN, B.J. Um Contraponto Baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780 – 1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 143 Inventário de Bernardino Moreira de Almeida, 1856 -1869. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198, p. 24. 144 Inventário de Bernardino Moreira de Almeida, 1856 -1869. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198, p. 24. 145 Vários documentos da Freguesia de São Gonçalo na segunda metade do século XIX apresentam entre os moradores da sociedade sangonçalense rendeiros, agregados, posseiros e também domésticos. Sobre tais categorias trataremos neste trabalho. 55 Igualmente a Bernardino Moreira de Almeida, diferentes indivíduos possuíam pequenas fortunas, arrolando entre seus bens pequenas propriedades rurais, sendo “casa de morar146” ou, então, pequenas faixas de terras na sede da freguesia. Este foi o caso de João Pinto do Nascimento, que em 1857, registra no Livro de Recenseamento Eclesiástico de Terras, uma casa, na Rua São Benedito, em frente à Igreja Matriz, sede do arraial da freguesia de São Gonçalo dos Campos. A forma de aquisição foi a compra do imóvel ao proprietário José Ricardo Gomes de Carvalho. Junto a casa, João Pinto, declarou que possuía um terreno com a extensão de 4 braças e 2 palmos de largura e 16 braças e 2 palmos de comprimento. Registrou, também, uma casa com meia braça de largura e com os fundos até a rua oposta, localizada na mesma rua. Esta comprada a Rodrigo Antônio Barcelos147. Essas pequenas faixas de terras eram insuficientes para garantir a subsistência da família de lavradores que arrendavam terras nas fazendas vizinhas, utilizando a força de trabalho familiar e a mão de obra cativa, quando possuía. O inventário de Manoel Pereira de Almeida, 1862/1875, e partes, Maria Angélica do Coração de Jesus e Maria Angélica do Livramento, da Fazenda Salvador, ostenta como os bens de maiores valores são 5 escravos, do serviço da lavoura, no valor total de 2 contos de reis e as terras, de 600 mil reis. Os outros bens que aparecem no inventário são: uma moenda de capim com a casa de farinha, 200 mil reis e os acessórios de fazer farinha, avaliadas por 10 mil reis148. Com uma fortuna mais sólida, o espólio de Maria Carolina do Amor Divino, casada com José Domingos Gonçalves, inventariante, com quem teve 5 filhos, todos moradores na Fazenda Canabrava, Freguesia São Gonçalo dos Campos, equivalia 18.923,000 (dezoito contos e novecentos e vinte três mil) reis 149. Entre os bens estão arroladas 3 fazendas: Canabrava, Luca, Brejos e 2 sítios: Jambeiro e Jenipapeiro, além de escravos, casas, casa de farinha, armazéns, animais, arvoredos, benfeitorias. Outra grande proprietária rural, Maria Jerônima de Trindade, possuía o montemor de 23.482.844(vinte três contos, quatrocentos e oitenta e dois e oitocentos e quarenta 146 Inventário de Maria do Carmo das Virgens, 1869. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 218. 147 BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863). 148 Inventário de Manoel Pereira de Almeida, 1862/1875, BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198, fl. 39. 149 Inventário de Maria Carolina do Amor Divino, 1869-1974. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198. 56 e quatro mil) reis, em 25 de outubro de 1839 a 1862. Neste inventário, o juiz Manoel Messias de Souza, registrou 8 propriedades fundiárias sendo elas: a Fazenda Moreira, Fazenda Lapa, Fazenda Serra, Fazenda Prazeres, Fazenda Paixão e o sítio Arengas, na freguesia de São Gonçalo dos Campos, e a Fazenda Limoeiro e a Fazenda Retiro, localizadas no termo de Camisão (atual município de Ipirá). Tais foram repartidas entre seus herdeiros João Ferreira da Cruz e Maria Alexandrina de Gusmão 150. Neste inventário aparece três casas próximas a estrada no valor de 30 mil réis cada, em que moram os agregados (rendeiros) da fazenda Moreira. Ainda que, ressalve as grandes fazendas, o viver da maioria dos moradores era simples. Os móveis, utensílios domésticos que pudessem oferecer maior conforto, ou bem-estar pessoal, ou mesmo que significassem uma forma de diferenciação social, foram acessíveis a poucos. Assim os objetos exibidos nos inventários limitam-se aos móveis, a catre, mesa, arca de vinhático, marquesa de jacarandá, cadeiras, os utensílios, balança, espada de ferro, cajado, espora, sela, acessório para a produção de farinha e o cultivo de fumo, a tacho de cobre, espingarda, enxada, machado, foice, banca com gaveta, camas de jacarandá, bancos de encosto, cadeiras de encosto, catres, cofres, caixas de madeira, marquesas de jacarandá, além de pratos, colheres, garfos de prata151. Certamente, o visitante não encontraria esta variedade de móveis na maioria das casas dos moradores desta freguesia. Conforme relato do viajante Henry Koster, quando de sua passagem pelo Nordeste, durante o século XIX, faz um relato sobre o uso de móveis nas fazendas pecuaristas que pode ser comparado pelas fumageiras, diz que: Algumas residências têm mesa, mas o uso comum é a família acocorar-se derredor de uma esteira, com as tigelas, cabaças e travessas no centro, e aí comem sua refeição, sobre o solo. Facas e garfos não são muito conhecidos e nas classes pobres, nenhum uso possuem 152. Neste relato, constata-se a diferença entre as moradias e o uso dos utensílios domésticos entre os diversos moradores no nordeste do século XIX. Nota-se que as diferenças sociais eram percebidas nas mais variadas conjunturas socioculturais. 150 Inventário de Maria Jerônima de Trindade, 1829/ 1862. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 218. 151 Inventário de Manoel Pereira de Almeida, 1862/1875, BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198, fl. 39; Inventário de Maria Carolina do Amor Divino, 18691974. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198; Inventário de Maria Jerônima de Trindade, 1829/ 1862. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 218. 152 KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942, p. 187. In. FREIRE, op. Cit., p. 114. 57 Além dos móveis e utensílios domésticos, os oratórios com imagens de santos, imagens de Deus meninos, imagens do Senhor Crucificado, imagem de São José 153, um artefato pouco recorrente entre as possessões dos pequenos proprietários, indica a hierarquia social daquelas pessoas e sua religiosidade católica. Do mesmo modo as joias e a prata, metais de valor, referenciados nos inventários distinguem as famílias monetariamente. Uma vez que só as pessoas possuidoras de maior patrimônio ostentavam o uso de joias. A partilha amigável de Luís Alves Adorno tornarse visível o emprego de parte do dinheiro deste em joias: rosetas de diamante, alfinete de peito com pedra de diamante, pulseira bordada, ouro em cordão, brinco, pelicário, dente de besouro, anel de ouro, e pedras preciosas como o diamante 154. A presença das joias nos inventários de maiores fortunas dá indícios de distinção social. Como também foi percebido nas vestimentas declaradas pelos proprietários mais abastados, no uso de jaqueta, calça, colete, chapéu, barrete de ferro155. Estilo de vida de vestimenta que evidencia economia agrícola de São Gonçalo dos Campos. Além dos móveis, vestimentas e utensílios, na década de 1870, as construções das fazendas revelam o cotidiano e costumes das famílias na freguesia e diferenciavam os indivíduos de maior poder aquisitivo. Assim, as especificações a respeito das construções na fazenda Domingos Rodrigues Vieira, de “uma casa sobre esteios cobertos com telhas, de taipa, tendo uma parte rebocada, com duas salas e quatro quartos, com sete janelas e oito portas”156, entende-se que é uma construção sofisticada. Indicações de que a casa era coberta de telha e que comportava um quintal, servem para diferenciá-la das demais moradias da Freguesia, bem como a influência sobre a vida cotidiana dos lavradores e outros moradores. Cabe ressaltar, ainda, que os armazéns e as casas de fazer farinha também eram cobertas com telhas confirmavam a riqueza dos lavradores, uma vez que nem todos inventariantes possuíam entre as suas possessões. Contrastando as descrições dos inventários da década de 1870, em São Gonçalo dos Campos, ressalta-se nas habitações dos menos afortunados rusticidade e descrição de 153 Inventário de Francisco Pereira Adorno, 1854; Partilha Amigável de Alvino Isaías da Costa Almeida, 1877; Partilha Amigável de Francisca Alves de Almeida, 1882, BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198. Inventário de Maria Camila de Sousa, 1873-1875; Inventário de Maria Lucia de Souza, 1968-1871; Ana Francisca da Trindade, 1855; Maria Joaquina da Trindade, 18461866; BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 218. 154 Partilha Amigável de Luís Alves Adorno, 1862, BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198. 155 Partilha Amigável de Luís Alves Adorno, 1862, BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198. 156 Domingos Rodrigues Vieira, BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 198. 58 construções bastante arruinadas. Predominavam construções de adobe ou taipa, com paus a pique e varas cruzadas, amarradas com cipós, para conter o barro batido. Eram comuns as edificações mistas, com partes externas de adobes e as divisórias de enchimento ou um núcleo de adobes com anexos de taipa. Nas coberturas, também, usavam-se telhas157. Figura 3: Parede construção de taipa Fonte: Arquivo pessoal. Foto tirada em dezembro de 2012. Técnica de construção utilizada ainda hoje. A imagem acima aparece como exemplo típico das construções das moradias dos pequenos proprietários na freguesia. As casas de taipas eram comuns nas arquiteturas das famílias de rendeiros. O quintal das fazendas possuía plantas de diferentes tipos, tais como laranjeiras, jaqueiras, bananal, coqueiros e cajueiros 158. Parece que os agricultores desta região apreciavam em seus quintais diversas árvores frutíferas, mesmo que em pequena quantidade, supostamente, em alguns casos, renda complementar ao sustento da família. Os proprietários, ainda, deram a conhecer entre as benfeitorias das fazendas as cercas construídas de madeira de “candica” 159. 157 Inventário de Maria Lucia de Souza, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 218. 158 Inventário de Maria Carolina do Amor Divino, 1869-1874. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198. 159 Sobre a palavra “candica” não encontrei nada que se remetesse, assim escrevi como encontrei nos inventários. Imagino que se refere a madeira de árvores próprias dessa região utilizada nas estacas das cercas das fazendas de fumo. In.: Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 198 e 218. 59 Por conseguinte, convém lembrar, que a região de São Gonçalo dos Campos, no período analisado, já estava com suas terras ocupadas, porém, as informações contidas nos inventários, pertinentes à dimensão dessas terras, são de difíceis compreensão, vistos mais de perto, os dados evidenciam o costume da época e implicava continuamente a vivência de situações não experimentadas pelo pesquisador, todavia, analisá-las contribui para o entendimento das antigas conjunturas históricas, sociais, econômicas, demográficas, culturais e políticas que influenciaram as decisões, experiências, construções de redes sociais e relações familiares de ex-escravos, livres, libertos e dos seus descentes e dos instrumentos que lançaram mão para conquistar a sobrevivência no seio da sociedade escravocrata e agroexportadora. Estrutura Agrária: a Posse de Terra em São Gonçalo na Segunda Metade do Século XIX Nesta conjuntura destaca Januária Maria da Conceição, proprietária da Fazenda Amarela, em Jacuípe, com seus filhos: José Candido Martins, Basílio Martins de Oliveira, Manoel Martins de Oliveira, Hipólito Martins de Oliveira, José Felix Damasceno e Margarida Contrim de Jesus160, em 1857, na paroquia de São Gonçalo do Amarante, registrando suas terras com 200 braças de largura e 1000 braças de fundo, herança do seu marido Francisco Pereira de Oliveira. Januária Maria da Conceição, não foi a única proprietária de terras a se deslocar até as sedes eclesiásticas na década de 1850 para registrar sua posse de terras. Em 1857 a 1863, o padre Vicente Ferreira Gomes, registrou 886 registros de terras nos quais, em linhas gerais, contém o nome dos proprietários e o local das propriedades, data, declarantes, o tipo de propriedade, e a freguesia onde estavam situados, a forma de aquisição e os limites, sendo encontrado ainda o valor das áreas e em alguns casos, sugestão do estado civil dos proprietários, uma vez que era registrada a posse com a esposa, fato observado no caso acima. Quanto os limites das propriedades, os registros, não expõem com literalidade à localização. Os marcos ou pontos de referência são transitórios, indicados pelos rios, riachos, ou alguma “pedra de rumo”, não havendo maiores possibilidades para a identificação destes nos dias atuais, mesmo em se tratando de um trabalho de reconstrução 160 Quadro indicado nos registros eclesiásticos e, também, nos assentamentos cartoriais no final do século XIX. 60 das áreas ocupadas. Tais expressões indicam o imaginário de seu tempo, representavam o costume que se difundia entre a população do período 161. Observa-se, desta forma, que, em muitas ocasiões, a lógica vigente entre proprietários, nos diversos registros de terras, como em escrituras de compra e venda, hipotecas e até mesmo em litígios judiciais ocasionados por invasão e destruição das matas da fazenda Cruz de propriedade de Rita Cazumbá, em 1898. (Sobre este litígio abordarei no terceiro capítulo.) Nesta perspectiva, Thompson colabora para analisar as identificações e demarcações utilizadas pelos donos de propriedades. Em comunidades de pequenos agricultores, a exemplo das que existiram na Inglaterra do século XVIII estudada por Thompson, geralmente, os trabalhadores em via de mudanças utilizam determinados costumes - compreendido por ele enquanto motivações racionais, autônomas e coerentes, práticas que embora antigas são constantemente repensadas e reformuladas a partir da experiência162. No contexto deste estudo, a Lei de Terras esbarrava no costume dos proprietários de não demarcar com exatidão e pontos fixos suas terras. A consequência do costume limita o poder do Estado no controle sobre as denominadas terras devolutas, bem como restrição ao acesso à terra apenas aqueles que desfrutavam à condição de proprietário ou teriam recursos financeiros disponíveis para adquiri-las. Deste modo, em contradição ao aprisionamento das terras pela Lei em 1850, muitos libertos e pobres livres em troca do trabalho tornaram-se posseiros, arrendatários e rendeiros povoando os domínios não demarcados das fazendas. Para exemplificar como os limites das propriedades foram identificados, nos registros eclesiásticos e nos inventários, utilizei a descrição das terras pertencente a Antônio Machado da Silva 163, conforme declaração no inventário, em 1857, e a pertencente a D. Maria Joaquina da Pureza, em 1877, a qual foi avaliada em 300$000 (trezentos mil) reis, quando a venda da “parte de terras”, na fazenda Hilário Martins, no lugar denominado Cruzes164. O inventário de Antônio Machado da Silva 165 registra que a fazenda se dividia pelo poente com 100 braças166 de largura, fazendo a frente para a Estrada Real, que vem 161 THOMPSON, 1998. THOMPSON, Op. Cit. 163 Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 198. 164 Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 1, p. 8. 165 Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 198. 166 Braça – Unidade de medida agrária correspondente a 2,20 metros. A braça quadrada confere 4,84 m². NEVES, Erivaldo Fagundes. Posseiros, rendeiros e proprietários: estrutura fundiária e dinâmica agro162 61 da Cachoeira para Villa de Feira de Sant’ Anna dos Olhos D’Água, confrontando com a Fazenda denominada Murici de Fernando Machado da Silva, e com os fundos para o nascente a dividir com as terras da Fazenda denominada Bananeiras, pertencente ao Capitão José Alves de Cerqueira, pelo sul com terras da fazenda de Manoel Cerqueira de Araújo 167. Neste sentido, a análise encontra-se circunscrita às linhas demarcatórias descritas nos documentos sem embrenhar literalmente as áreas contíguas, não doadas ou devolutas. A escritura de compra e venda de D. Maria Joaquina da Pureza, residente em Salvador, feita mediante procuração, por Manoel Cerqueira Daltro, de uma “parte de terras”, vendidas a Manoel Veríssimo de Queiroz, morador na Freguesia de São Gonçalo dos Campos, em 16 de agosto de 1877, demarca da maneira seguinte: pelo lado norte principia n’uma lagoazinha, a quem do centro de Teresa Maria de Jesus, rendeira no mesmo terreno, estrada direita até dividir com João Paulo de Queiroz, seus terrenos pela nascente com o mesmo João Paulo de Queiroz por uma estrada que vai para a casa de Victorino Telles, e d’esta estrada em direção ao sul, divide-se com Jacintho Machado, dividindo do rumo, de uma cerca de pau a pique do rendeiro João Baptista, pelo sul com terras da Fazenda do Magalhães e pelo nascente com Martinho Suzarte, servindo de divisão a mesma lagoazinha donde tem princípio a mesma divisão de norte ao sul168. Observa-se na declaração de Maria Joaquina da Pureza o caráter costumeiro entre os proprietários dos limites apresentados, excetuando-se as terras da fazenda Magalhães, é inviável a identificação da lagoa, dos limites com outros terrenos e da estrada que não foi sequer nomeada. Não houve qualquer referência à forma de aquisição das terras, até mesmo a expressão utilizada para a identificação, "parte de terras", não traduz as dimensões e as características da propriedade. Por sua vez, estas terras localizavam a Estrada Real, aproximadamente, 5 km a cidade de Feira de Santana e 10 km a sede da vila de São Gonçalo dos Campos. Outro exemplo observa-se nos rumos da Fazenda Carlota, de Antônio Alves Rodrigues, de 1857. Foram apresentados da seguinte maneira: pela parte nascente com a estrada que vai da Capela de Santa Anna do Itaquari, pelo Sul parte pelo resto do valado a partir com as terras da fazenda de Felipe Neri de Sousa até o fim do mesmo valado, onde se acha encravado uma pedra e dela seguirá rumo abaixo à procura de outra pedra. mercantil no Alto Sertão da Bahia (1750-1850). Recife: [s.n.], 2003, FREIRE, Luiz Cleber Morais. Nem Tanto ao Mar, Nem Tanto a Terra: Pecuária, Escravidão e Riqueza em Feira de Santana, 1850-1888. Dissertação de Mestrado| UFBA, 2007. 167 BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863). 168 Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 1, p. 8. 62 Segue a lagoa de Paulino Ferreira da Costa, onde faz uma pequena subida na beira da estrada que vem da Cachoeira para a Capela de Santa Anna do Itaquari169. Nesta destacase a localização da estada Capela de Santa Anna do Itaquari à Cachoeira. Com este limite, especialmente a denominação da capela do Itacari é possível sugerir que a fazenda se situa no sentido leste da vila da Freguesia. No Translado de compra de venda da fazenda terra dura, consta, a quantidade de terras, valor e as demarcações. Sendo elas: pela nascente com a estada Real170, pelo Sul com terras de Antônio Gonçalves de Oliveira, pelo poente com o Rio Jacuípe e ao norte com a fazenda de Helena Maria da Cruz. O mesmo ocorre com a descrição da Fazenda Sobrado, comprada por João Cardoso Cazumbá e Manoel Ferreira de Cerqueira 171, descrita no primeiro capítulo. Esta escritura apresenta maiores informações a respeito da localização e o valor das terras no período, sem, contudo, destacar o tamanho da propriedade. Assim, como Antônio Machado da Silva, Maria Joaquina da Pureza, Antônio Alves Rodrigues e João Cardoso Cazumbá, outros proprietários também demarcaram os limites de suas propriedades, utilizando-se dos rios, riachos, terras dos vizinhos, pedras, estradas, paus ou arvoredos que circundavam as terras, referências as cercas, impossibilitando-nos de qualquer localização exata das propriedades. Nesta área as terras eram mais baratas172, sendo a medição da área feita em braças. O valor em braças quadradas variava em torno de 1.000 reis a até 3.000 reis. Encontrei nos registros de terras e assentamentos cartoriais fazendas de extensões diversas: a Fazenda do Saquinho, de D. Maria Rita do Amor Divino, inventariada em 1 de agosto de 1858, por Felipe Machado da Silva, com 90 braças de terras, principiando na Estrada Real, no valor de 5.000 reis cada braça e todos por 450,000 reis 173. Ainda, foram inventariadas, as terras da fazenda Saco, da mesma proprietária, com 154 braças de largura com fundo principiado da Estada Real que vai para Feira de Sant´Anna até o Riacho Caburu, tirando-se 200 braças da estrada para o fundo com a mesma largura174. Tais informações contribuem para perceber a diversidade das 169 BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863). 170 Ato de Embargo, 1895. Arquivo Cartorial. Fórum João Mendes. São Gonçalo dos Campos. 171 Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro do Tabelionato, n. 2. 172 Freire aponta que nas áreas açucareiras as terras eram mais caras do que nas regiões de economia agropecuária. Ver Freire op. Cit.; Barickman, op. Cit. 173 Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 198. 174 Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 198. 63 extensões das propriedades em São Gonçalo dos Campos com aquelas regiões produtoras de cana de açúcar, também pertencente à comarca da Cachoeira 175. Com base nos dados apresentados por Nardi observa-se que até os meados do XIX, os Campos da Cachoeira, as chamadas fazendas ou sítios de tabaco, apresentavam entre proprietários, cerca de 30% de arrendatários, quase 55% de pequenas propriedades, em média com 4,2 tarefas, ou seja, menos de 2 hectares de terra”176. Estes dados também foram encontrados na escritura de venda e compra da Fazenda Mungo, do Coronel Antônio Carlos da Silva, com cento e setenta e cinco braças e meia de extensão de terras, vendida a Firmino da Silva Daltro por 200 mil reis, em 30 de maio de 1888177. Outro ponto, que serve para perceber a diversidade das propriedades fundiárias são as variadas expressões usadas para identificá-las nos documentos. As identificações, em grande parte, são: “um sítio de terras”, “um pedaço de terras”, “parte de terras”, “uma sorte”, “porção”, havendo ainda, termos como “fazenda”, e “lote de terras”. As expressões sugerem distinção quanto o tamanho, o valor, os cultivos, as benfeitorias das propriedades, entretanto, ao analisar os documentos notei que tais expressões seguiam a opções pessoais de cada proprietário, sem, contudo, expressar diferenças entre as propriedades, neste caso, Antônio Machado da Silva vai registrar, em 1857, ao Vigário Vicente Ferreira Gomes, “as terras”, com frente de 100 braças de largura, próxima a Estrada Real178. E o cumprimento segue uma extensão alcançando a Fazenda denominada Murici, de Fernando Machado da Silva. Os fundos localizam sentido leste, limitando com as terras da Fazenda Bananeiras, pertencentes ao Capitão José Alves de Cerqueira. Ao Sul, tais terras, divisam com as terras da fazenda de Manoel Cerqueira de Araújo 179. Apesar dessa descrição não possuo informações pormenorizadas, que permita conjeturar se o termo “terras” foi usado para diferenciar dos sítios e das fazendas. Provavelmente tal termo servia para identificar domínios fundiários com grande extensão de terra, sem benfeitorias e instalações específicas das fazendas e sítios, como, casas de 175 BARICKMAN, Op. Cit. NARDI, Jean-Baptiste. O fumo brasileiro no período colonial: agricultura, comércio e administração. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 37-9, 57, 60-1, 69. O autor apresenta esses dados a partir de uma estimativa indireta baseada na razão entre a produção e produtividade por tarefa e o número de lavradores de fumo. 177 Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 198. 178 Que vem da Cachoeira para Villa de Feira de Sant’ Anna dos Olhos D’Água. 179 BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863). 176 64 farinha, armazém de fumo, senzalas e outros acessórios, comuns às fazendas e a alguns sítios da região que desenvolviam uma agricultura diversificada. Outra identificação encontrada nos inventários são os sítios. Diferente do que imaginei, a respeito de seu tamanho diferenciado das fazendas, encontrei nos registros variados tamanhos. Alguns registros exemplificam tal fato, como, o Sítio Campestre, em 1857, pertencente a Manoel Araújo Dantas, com 102 braças; a Fazenda Borges, de Antônio Joaquim de Cerqueira e José Moreira de Freitas, com 150 braças, registrada em 1857; Fazenda Pedreira, de Manoel José de Oliveira Pinto, registrada em 30 de maio de 1857, com 106 braças180. Pela extensão de cada propriedade nota-se que não existia diferenças acentuadas entre ambas as designações, diferente do que Schwartz observou em relação as propriedades açucareiras do Recôncavo colonial, apresentando, assim, a distinção entre as fazendas e os sítios: As fazendas podiam dedicar-se a várias atividades, da pecuária ao cultivo de gêneros alimentícios e ocasionalmente de cana-de-açúcar. Sítio era uma termo preferido para as plantações de fumo, embora não usado exclusivamente nessa acepção181. Neste sentido, Schwartz apresenta a diferença na designação de acordo as atividades produtivas dedicadas em cada propriedade, porém os registros cartoriais vão apontar que nos domínios fundiários na freguesia de São Gonçalo dos Campos, havia a diversidade de produção, como será tratada adiante. Alves adverte que o termo sítio se refere ao status ou o caráter de propriedade adquirido após a Lei de Terras de 1850182. Contudo, é importante compreender que esse assunto é muito complexo, mediante visões diferenciadas, principalmente quanto à relação de posse no contexto da economia agroexportadora e do sistema escravista. A categoria fazenda ao mesmo tempo em que representava uma propriedade com grande extensão de terra era utilizado para localizar o território registrado ou adquirido em uma compra. Havia fazenda com extensões de terras menores do que a dos sítios. É o caso da fazenda Mato Grosso, em Jacuípe, de José da Costa Queiroz, também de 1857, com a largura de 62 braças de terras. De acordo as divisões têm-se as seguintes extensões: frente para o poente partindo com terras denominadas Broba, como o fundo para a nascente até o rio Jacuípe, para o norte com terras da fazenda do Magalhães; pelo Sul 180 BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863). 181 SCHWARTZ. Stuart. B. Segredos Internos. Engenhos e Escravos. Na Sociedade Colonial. 1530-1835. São Paulo. Cia das Letras. 1988, p.362. 182 ALVES, Isaías de Almeida. Matas do Sertão de Baixo. Bahia: Reper. 1967. 65 com terras de Joaquim da Silva 183. Já a fazenda Murundu, cujo proprietário é Manoel Amaro Lopes, tem a extensão de 60 braças, apresenta menor extensão do que o sítio Campestre. Com maior extensão é a Fazenda Jenipapo, de Leandro Rodrigo de Lima, Antônia Maria de Lima e Maria Inácia de Jesus, com 700 braças de largura e uma légua de comprimento184. Tais fazendas não podiam ser comparadas aos engenhos que exigiam maior quantidade de terras. De acordo com Barickman caracterização uma propriedade como grande ou pequena evidencia ao gênero produzido pelo domínio agrícola e as tecnologias usadas no cultivo e beneficiamento. A maioria dos inventários dá conta do uso de enxada, foices e outras ferramentas, já mencionada anteriormente, sendo, portanto, inadequado qualquer referência para diferenciar, pois todos usam as mesmas ferramentas e apresentam o mesmo gênero produtivo. Entre os inventários e as escrituras de venda e compra de terrenos e escritura de arrendamento observou-se a presença de registros de moradores sem a propriedade fundiária. Também tais dados podem ser verificados nas escrituras de venda e compra a partir de 1877, nas quais foram vendidas casas construídas em terrenos foreiros 185. Os registros, também, indicam uma faixa de moradores que possuíam micro propriedades. Outras identificações de propriedades como “pedaço de terras” e “parte de terras”, existentes nos registros eclesiásticos da região e nas declarações realizadas quando da avaliação dos bens, podem significar um conjunto de terras adquiridas por ocasião das partilhas e dos arrolamentos. Exemplo de “pedaço de terras”, localizados na Fazenda Mato Grosso, em Jacuípe, de Manoel Pedreira Lopes, com 200 braças de terras e meia légua de comprimento186. Ainda, as terras na fazenda denominadas fazenda do Tabuleiro do Gandu, de José Borges Falcão, que adquiriu por causa do dote e parte comprada de José Gonçalves de Oliveira 187. Além disso, na escritura de compra e venda feita por José Assunção Cardoso, e sua mulher D. Maria Frandolina de Jesus, em 1877, das “terras” e casas da Fazenda Bom Jardim, pela quantia de 1.000.000 reis, a José Joaquim de 183 BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863). 184 BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863). 185 Os terrenos foreiros aqueles que o proprietário da casa não possuía a posse do terreno. Muitas escrituras foram lavradas no final do século XIX no tabelionato de São Gonçalo com terrenos foreiros. 186 BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863). 187 BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863). 66 Cerqueira Leal, nota-se pelo valor atribuído que era uma grande extensão territorial, portanto, não posso definir que tais termos indiquem apenas uma quantidade e categoria de terra. Essas expressões também podem indicar a presença de posseiros que declaram o controle da posse de terras encravadas em terras da Fazenda. Como exemplo aparece as terras na Fazenda Coqueiro, pertencentes a Davi Pereira d’Almeida, ou então as 550 braças de terras na Fazenda Mocó, de Manoel Joaquim Rodrigues. Também Francisco Manoel Ribeiro, declara que possuía terras na fazenda Brotas. Consegui catalogar 25 registros de terras em que os proprietários expunham suas propriedades como “terras na fazenda”. O mesmo afirma Teixeira sobre as expressões “terras”. De acordo com a autora, encravadas ou não em propriedades maiores, supostamente foram ocupadas pelo sistema de apossamento e só foram legalizadas, posteriormente, nos cartórios, mediante as compras e vendas188. Voltando a designações para identificar as propriedades fundiárias, aparece o termo "sorte de terras". Contradizendo a interpretação da expressão por alguns historiadores189, a descrição das terras no inventário, indica uma grande extensão de terra. Assim a “sorte190 de terra, da fazenda Moreira, cuja propriedade inicia sua extensão pela Estrada Real, e vai até o Rio Jacuípe” representa uma grande extensão territorial. D acordo com Vilhena a expressão sorte de terras era usada nos engenhos para separar as terras lavradias e dos matos: (...) Dividem-se as terras lavradias em diferentes sortes; a maior sorte, porém reserva o dono para a sua cultura, e arrendam as mais, a que chamam fazendas, a diversos lavradores, com porção de matos competente para as suas abegoarias, e criação de algum gado, se para isso têm capacidade191. Assim, observei nos documentos uma variedade de expressões que não indicam a com rigorosidade o tamanho das propriedades na freguesia, entretanto, entre as expressões constatei a preponderância dos sítios, fazendas e partes de terras. Tais termos com suas devidas descrições indicam a concentração de pequenas e médias propriedades, 188 TEIXEIRA & ANDRADA, Op. Cit., p. 48. SCHWARTZ, Op. Cit.; BARICKMAN, Op. Cit. 190 Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 218. 191 VILHENA. Luís dos Santos. A Bahia no Século XVIII. Vol. 1. Bahia. Itapuã. 1969, p.180. 189 67 medindo aproximadamente de 0 a 100 ha 192. Outra parcela, cerca de aproximadamente 20%193 das propriedades de terras localizadas na sede da Freguesia. Quanto à forma de aquisição e origem das propriedades, constatei o predomínio da sucessão hereditária, seguida as compras e em terceiro sem suas origens identificadas. Sendo que dos 65 registros eclesiásticos analisados 24 foram compradas e 18 haviam sido herdadas, outras foram adquiridas por dotes, ou meação. O Sítio Coqueiro de João Rodrigues Vieira Geraldes, foi comprado a Martinho Domingues Pereira; Terras na Freguesia de São Gonçalo dos Campos, pertencente a Izidoro Correia da Silva, comprada a Ana Joaquina Gomes do Espírito Santo. A casa na Rua da Conceição, de Rosalina de Maria Sacramento, vendida por José Lopes de Oliveira; terras da Fazenda Cruzes, por compra que o proprietário José Félix do Nascimento fez a José Marcelino Ribeiro. Outras, como a Fazenda Pedreira, de Manoel José de Oliveira Pinto, foi herdada de seus pais; a Fazenda Abreu, pertencente a Manoel Campelo d’ Afonseca, herança do sogro Thomas Pereira de Oliveira; as terras da fazenda Teixeira, adquirida por Manoel Pereira da Silva, através do dote e outra parte por compra194. Os inventários analisados oferecem uma ideia geral da economia, cultura e das relações sociais, na segunda metade do século XIX. A maioria dessas famílias era possuidora de pequenas quantidades de terras, porém na freguesia existia a acumulação de propriedades entre os fazendeiros, mesmo que em pequenas extensões. Talvez essa acumulação tenha sido ocasionada por causa da promulgação da Lei de Terras, n.º 601, de 1850, cujo nascimento é conexo ao inevitável esfacelamento do sistema escravista, prenunciando a grande crise na oferta de mão de obra que se imporia aos grandes proprietários, além, é claro, a manutenção do meio de produção (a terra) nas mãos dos mesmos privilegiados. Assim, escravos libertos seriam obrigados a constituir a força de trabalho necessária aos estabelecimentos agrícolas pelo obstáculo da aquisição das terras através da compra195. Não obstante, os diversos elementos analisados neste capítulo, como o estilo de vida dos moradores, a importância da fumicultura para São Gonçalo dos Campos, a 192 BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863), TEIXEIRA, Marli Geralda, p. 46. 193 BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863). 194 BARICKMAN, op. cit., p. 179. 195 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. A Ideologia da Decadência: leitura antropológica a uma história da agricultura do Maranhão, São Luís, IPES, 1983, p. 131. SILVA, Lígia Osório. Terras Devolutas e Latifúndio. Efeitos da Lei de 1850. Campinas. Editora da Unicamp. 1996. p. 124 68 existência de diversas culturas agrícolas, a criação de gado e as diversas extensões de terras geraram a necessidade da presença escrava na região. Sociedade: relações de trabalho na fumicultura da freguesia de São Gonçalo dos Campos Outro dado que ressai nos inventários é a presença de escravos entre os bens das famílias. João Coelho de Almeida, em sua fazenda, em 1882, cultivava tabaco associadas a outras produções, como, mandioca, café e a criação de gado utilizando, para isso, o trabalho de 14 escravos todos do serviço da lavoura196. Pelo montante de 5.330.00 (cinco contos e trezentos e trinta mil) reis, o proprietário não era um dos mais abastados da Freguesia. Os produtores livres que cultivavam pequenas propriedades representavam a maioria dos lavradores, com uma média entre 4 e 6 escravos por fazenda 197. Esse número altera-se nas fazendas de maior extensão de terras e naquelas que concentram em sua produção todas as atividades econômicas citadas anteriormente, equivalendo à média aproximada de 15 a 20 cativos por propriedade 198. Para se ter uma ideia, Maria Francisca do Amor Divino, na oportunidade, possuía 23 escravos dentre seus espólios e Maria Jerônima de Trindade que cultivava o tabaco, a mandioca, o café e criava gado, usando, para isso, 43 escravos. Assim como essas proprietárias, outros possuidores tinham um número expressivo de escravos utilizados nas atividades agrícolas e na criação de gado. O mesmo foi observado por Freire nas fazendas pecuaristas em Feira de Santana199, no período correspondente. O número de escravos diverge em diferentes espólios. Helena Maria da Cruz, então viúva, moradora da fazenda Cruz, inventariou os bens deixados por seu marido, Antônio Lourenço Almeida, declarando 13 escravos do serviço da lavoura, avaliados em 196 Inventário de João Coelho de Almeida, 1882. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 218. 197 Dados obtidos a partir da análise de inventários entre as décadas 1860 a 1880. Também foi a mesma estimativa feita por Nardi. Esse autor se baseou na razão entre a produção e produtividade por tarefa e o número de lavradores de fumo e entre o número de escravos do Recôncavo não ocupados na produção açucareira e o número de sítios: NARDI, op. cit., p. 60-1. 198 BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198 e 218. Ver ainda TEIXEIRA & ANDRADA, op. Cit., p. 48. 199 FREIRE, op. Cit., p. 60. 69 6.040.000 réis200. No inventário de Ana Francisca da Trindade, entre os bens foram mencionados 13 escravos no valor de 7.250.000 reis 201. Outros proprietários, também, executavam todas essas atividades econômicas contando com a mão de obra de até 7 escravos, contudo a extensão de terras e a produção era menor. Como exemplo, Francisco Rodrigues Vilarinho, na ocasião de sua morte possuía, a Fazenda Ilha, com casa de morar e casa do fabrico da farinha, armazém de fumo, os acessórios, arvoredos, cercas, valados, uma casa de morar no terreno foreiro na sede da Vila, e 7 escravos202. No caso desse último exemplo, é possível sugerir que o trabalho nessa unidade produtiva era associado à mão-de-obra de natureza familiar 203. Isto porque a lavoura da fumicultura tinha um caráter 'híbrido 204', com a combinação de mão de obra escrava e familiar 205. Algumas famílias possuíam um menor número de escravos e extensão de terras, como visto acima. Outras, vivendo de maneira modesta, provavelmente da renda das terras, trabalhavam em suas roças de fumo e de mandioca, sendo o preparo e beneficiamento feitos nas propriedades dos fazendeiros mais abastados. Essa malha de trabalhadores nem mesmo visualizaram seus escassos recursos em inventário. Diferentes destes, porém, Maria Camila de Souza, deixou 4 escravos, serviço da lavoura, no valor 2.700.000 reis para seus herdeiros, Estevão Nery de Souza, marido, e seus filhos, Ana Joaquina de São José e Manoel André Rodrigues de Souza, em 1873-1875206. Observado, igualmente, a situação de João Cardoso Cazumbá, “solteiro”, proprietário de terras na fazenda Sobrado, local denominado Cruz, teve 8 filhos com Rita Gonçalves de Oliveira, solteira, escrava de Antônio Gonçalves de Oliveira .207. Comprou para si o escravo João, preto, de idade de 19 anos mais ou menos, solteiro do serviço da lavoura, natural da Freguesia, pelo valor de 300.000 reis, a D. Anna Joaquina Ferreira de 200 Inventário de Ana Teodora das Virgens, 1950-1859. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 198. 201 Inventário de Ana Francisca da Trindade, 1855. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 218. 202 Inventário de Francisco Rodrigues Vilarinho, 1879. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 218. 203 BARICKMAN, op. cit. 204 GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 5ª. ed. São Paulo: Ática, 1988, p. 11, 77-8. 205 NARDI, op. cit., p. 85-6 206 Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 198. 207 Escritura de Compra e venda de João Cardoso Cazumbá, 1879. BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro do Tabelionato n. 8, 1887 a 1891, p. 29. 70 Cerqueira208, nota-se a pequena fortuna que obtinha em 1879. Ocorrência que ausente nas experiências de seus descendentes. Os dados evidenciam, ainda, a distribuição da posse de escravos na região se comparada a outras regiões do Recôncavo, associando o número de cativos por proprietários ao tipo de propriedade agrícola e de atividade econômica, nesse caso, constatei uma maior quantidade de escravos concentrado nas mãos de um pequeno número de lavradores209. Em outros inventários pude perceber a existência de inventariantes que moravam na sede da Vila de São Gonçalo dos Campos, que declaram entre seus bens escravos do serviço da lavoura. No inventário de Maria do Carmo das Virgens, lavradora, em 1869, na Fazenda Tabua Grande, arraial da freguesia, era dona de 2 casas no arraial da freguesia e 4 braças de terras também no arraial, e na localidade denominada Capela do Amparo, uma casa arruinada. Mais 6 escravos, do serviço da lavoura, avaliados em 2.650.000 reis210. Norberto de Assis Freitas, morador no arraial da freguesia, ao inventariar os bens deixados por Maria Úrsula das Virgens, 4 escravos, serviço da lavoura, de 1.000.000 reis211. Tais dados sugerem que havia cativos que trabalhavam nos serviços agrícolas nas fazendas vizinhas como escravos de ganho 212. Com a proximidade das roças e da vila tornaram possível empregar os escravos na lavoura. Os dados encontrados não indicam a realidade escravista que comumente é debatida por pesquisadores da área213, quando afirmam a pouca presença de escravos nas fazendas de fumo. Porém, a localização geográfica que privilegiou a diversidade econômica permitiu que se instalassem unidades policultoras, com o uso da mão de obra 208 Escritura de perfilhação João Cardoso Cazumbá, 1879, BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro do Tabelionato, n. 4, p. 74. 209 Sobre esse assunto consultar: FREIRE, op. Cit., MATTOSO, op. Cit., NARDI, op. Cit., BARICKMAN, op. cit., SCHWARTZ, op. Cit. 210 Inventário de Maria do Carmo das Virgens, 1869. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 198. 211 Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 198. 212 Maria José Andrade apresenta o negro como trabalhador em Salvador, que nas atividades econômicas urbanas desempenhavam variadas funções: alfaiate, carpinteiro, ourives, sapateiro, torneiro, além do chamado escravo de ganho, sendo que estes e os domésticos tinham certos privilégios em relação aos demais escravos. Mattoso, também, apresenta, dentre as categorias sociais da Bahia, o escravo de ganho. Ver mais sobre a escravidão: Mattoso, Ser Escravo no Brasil, 3a edição, São Paulo, Brasiliense, 1990. ANDRADE, José Maria Andrade. A Bahia no século XIX: os escravos na sociedade baiana. Editora Corrupio. São Paulo, 1988. Também SCHWARTZ, S. Escravos, roceiros e rebeldes. São Paulo: Edusc, 2001. COSTA, Emília V. da. Da senzala à Colônia. 2-ª ed. São Paulo: Ciências Humanas, 1982 [1966]; Da Monarquia à República: momentos decisivos. 7-ª ed. São Paulo: Ed. Unesp, 1999; GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978. CARDOSO, Ciro F. Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1979. 213 NARDI, op. Cit., BARICKMAN, op. Cit. MATTOSO, op. Cit., SCHWARTZ, op. Cit., TEIXEIRA & ANDRADA, op. Cit., 71 escrava em pequena e em larga escala. A tabela abaixo apresenta a composição da população, conforme constam no censo de 1872: Tabela 1 – Cor, condição e sexo, no censo de 1872 da vila de São Gonçalo dos Campos: Condição/sexo Branco(a) Pardo(a) Preto(a) Caboclo(a) Total Mulheres livres 465 1.320 782 329 2.896 Homens livres 1.013 2.723 2.667 558 6.961 Homens escravizados - 800 1.062 - 1.862 Mulheres escravizadas - 228 293 - 521 1.478 5.971 4.804 897 12.240 Total Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Recenseamento do Brasil de 1872. Bahia, p. 97. Em 1872, o censo, apresentou 12.240 habitantes, divididos em 8.783 homens e 3.375 mulheres, vivendo em 2007 fogos214. Havia 1.862 escravos e 521 escravas. Não foi registrado o número de liberto, contudo, há uma elevada parcela pessoas de cor sendo 38,81% pretos, 41,78% os pardos, enquanto o contingente de brancos ficou em torno de 12% e os descendentes de índios, os caboclos correspondendo 7,39% da população da freguesia. De acordo com os dados coletados nas certidões de nascimento de 1876 a 1881 a população de São Gonçalo se reconhecia racialmente em: 66% parda, 11% cabra, 10% branca, 0,6% crioula, 0,2% preta, 0,5% não declarou cor215. Estes dados indicam que a sociedade no final do século XIX se auto reconhecia como miscigenada. Aparecia listado no censo dos 2.383 escravos, 9 costureiras, 5 sapateiros, 3 carpinteiros, 8 escravos classificados como do tecido - fazendo trabalhos como a fiação de tecidos em teares216, 3 alfaiates, 5 sapateiros, 1.652 lavradores, sendo 1.348 do sexo masculino e 304 femininos, além de 1 criado, 7 criadas, 452 escravos do serviço doméstico, 160 escravas também domésticas, outros sem profissão; 50 escravos e 33 escravas217. 214 Fogos (unidades domésticas, que podiam ser também unidades econômicas) chefiados por indivíduos. BAHIA, Livros de Batismo de 1876 e 1881. Arquivo da Arquidiocese de Feria de Santana. 216 Tipo de atividades realizadas por moradores e escravos de Feira de Santana na segunda metade do século XIX. Ver Freire, op. Cit., p. 114. 217 BRASIL, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Recenseamento do Brasil de 1872. Bahia, p. 97. 215 72 Nos inventários consultados a maioria dos escravos era do serviço da lavoura, outros domésticos, estes com especialidade de engomar, bordar e de coser. Ainda, para os serviços da lavoura, incluía o cuidado com os animais, o vaqueiro 218 e a fabricação da farinha que, neste último caso, estendia-se desde raspar a mandioca até a torragem da farinha. Assim, a distribuição e a posse de escravos estavam relacionadas ao uso da terra na região, como seria de se esperar na zona de cultivo de fumo e em uma agricultura de subsistência caracterizada por pequenos espólios. Além disso, percebe-se que nas atividades fumageiras o trabalho escravo era empregado, sobretudo em serviços da lavoura desde os trabalhos de cavar, plantar e capinar, o que significa dizer que, os chamados "negros mestres"219 que, de acordo com Antonil, realizavam tarefas de "torcer" ou "enrolar", "juntar" e "passar" as cordas de tabaco e colocá-las em hastes de madeira220, eram os mesmos que faziam o plantio e a colheita do gênero. Sobre a faixa etária da população escrava na década de 1870, de acordo com censo, era de 4 a 90 anos de idade, sendo a faixa etária de 20 a 50 anos como maior número de indivíduos221. Também, não constam escravos com alguma moléstia, o que pode ser contestado através dos registros nos inventários. Nestes alguns escravos eram listados com alguma doença, provavelmente, por causa dos serviços que prestavam. A Fazenda Moreira, por exemplo, 14 escravos traziam determinadas moléstias, como, Antônio, idoso, crioulo, comprado com a moléstia de virilha esquerda, apresentava-se, na ocasião, o braço desmentido; Luís, de boa idade, crioulo, do serviço da enxada tinha uma cicatriz nos lábios222, ocorrência frequente em outros inventários e escrituras de compras e vendas de escravos. Portanto, entre 1870 a 1888, a mão de obra em São Gonçalo dos Campos estava fixada na lavoura destinada à policultura, encabeçada pela produção de fumo, tanto 218 Dos 273 escravos listados nos 35 inventários, apenas um escravo foi declarado vaqueiro na fazenda Limoeiro, de Maria Jerônima da Trindade. Ver Inventário de Maria Jerônima de Trindade, 1829/ 1862. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 218. 219 ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. São Paulo: Nacional, 1948, p. 151-4. 220 LOPES, Gustavo Acioli. “Caminhos e descaminhos do tabaco na economia colonial”, Dossiê Cultura e Sociedade na América Portuguesa Colonial, Revista MNEME v.5, n. 12, out./nov.2004 Disponível em http://www.seol.com.br/mneme..p. 6. MARQUEZE, Rafael de Bivar. Administração e escravidão: ideias sobre a gestão da agricultura escravista brasileira. São Paulo: Hucitec, 1999. 221 BRASIL, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Recenseamento do Brasil de 1872. Bahia, p. 97. 222 Inventário de Maria Jerônima de Trindade, 1829/ 1862. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 218. 73 masculina quanto feminina.223 No censo de 1872, homens e mulheres escravizados correspondiam a aproximadamente 18% da população total da freguesia, já homens e mulheres, pretos (as) e pardos (as) livres totalizavam 67% da população 224. Dados que ratificam que a maior parte dos trabalhadores rurais, do período, era homens e mulheres livres e de cor. Como disse, anteriormente, no século XIX a posse de terras e escravos conferia prestígio a quem as possuíssem e, muitas vezes, esses elementos formavam a base da riqueza de muitos. Entretanto, havia nos documentos ocorrência de proprietários de terras sem posse de escravos. No inventário de Antônio Isaías da Costa, de 1877, as herdeiras D. Maria Alexandrina da Costa e Almeida e D. Francisca Maria da Costa e Almeida, irmãs do inventariante, na propriedade denominada Orobó, declaram três casas de morar, uma malhada225 de feijão, 9 animais - não consta a raça - 3 cavalos, um burro “velho” e uma mula “nova”. Antônio Isaias da Costa possuía a renda de 1: 175 mil réis. Tais proprietários não inventariaram escravos, evidenciando, com isso, que não os possuíam entre seus bens. Esse contexto foi observado, em 1835, por Barickman, o qual salienta que, Em 1835, na freguesia de São Gonçalo dos Campos, no próprio coração dos campos da Cachoeira, famosos pelo cultivo do fumo, quase dois terços (64,5%) de todos os fogos chefiados por lavradores não possuíam nenhum escravo. A difusão do fumo em folha, a partir de meados da década de 1840, tornou a lavoura fumageira ainda mais acessível as camadas mais pobres da população livre. De fato, a partir de 1850, os observadores passaram a associar, cada vez mais, o fumo a produção camponesa. Contribuíram, dessa maneira, para estabelecer a duradoura reputação do tabaco como “lavoura de pobre” ou “lavoura de quintal”226. As considerações feitas por Barickman a cerca da economia fumageira contribuem para perceber a malha de lavradores pobres e sem posse de terras e/ou escravos que desenvolvia esta atividade, como foi observado nos dados. Outros pesquisadores, também, observaram em terras que não configuravam pequenas propriedades laboravam grandes e pequenos, homens e mulheres, feitores, além dos escravos227. Todavia, mais de 223 TEIXEIRA & ANDRADA, op. Cit. BRASIL, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Recenseamento do Brasil de 1872. Bahia, p. 97. 225 Os autores que trabalha com história material não apresentaram a medida para Malhada 226 BARICKMAN, op. cit., p. 245 227 BORBA, Silva Fraga Costa. Industrialização e exportação de fumo na Bahia. 1870 – 1930. Salvador, Mestrado em Ciências Sociais da UFBA, 1975. P. 14. TEIXEIRA, op. cit., p. 48. ANTONIL, op. cit., p. 181. 224 74 50% dos produtores de fumo no Recôncavo eram rendeiros228 (foreiros e arrendatários229). A fazenda Moreira, em 1863, possuía moradores em suas terras indivíduos que foram declarados que como benfeitorias 3 casas pequenas próximas a estrada que moram vários agregados, muito velhas cobertas de telhas, danificadas. Como bem salienta Samara a constituição de agregados como categoria social está vinculada, à concentração fundiária, que possibilitou e condicionou a existência de homens destituídos da propriedade e dos meios de produção230, sendo este o mesmo critério estabelecido pela primeira lei que versa diretamente sobre a “emancipação” do trabalho escravo para o trabalho livre é a lei nº 2040, conhecida “Lei Rio Branco”, ou conhecida como “Lei do Ventre Livre”, de 17 de setembro de 1871231. Dos livros cartoriais considerados, no período de 1877 a 1888, foram registradas uma pequena quantidade de cartas de alforrias, ocorrência oposta aos assentamentos de escrituras de compra e venda de escravos e de terras que aparecem com maior frequência. Por isso achei bem trazer à baila algumas alforrias para entender os contratos, arranjos, indícios e práticas usadas por escravos e senhores que contribuíram para tornálos livres dos vínculos da escravidão. Para Maria, parda, de trinta e tantos anos, o então, senhor, capitão José Lopes de Menezes Filho, lhe confere a manumissão, em outubro de 1879, pela quantia de 500 mil reis. Também, a escrava Faustina, crioula, 25 anos, granjeou sua alforria, pela quantia de 700 mil reis, paga a sua senhora Eustachia de Cerqueira Magalhães, em agosto de 1879. Ressalvando os aspectos nestas alforrias, advirto que as justificativas para o gesto foi o fato de ter recebido em moeda corrente, o valor correspondente ao mesmo. 228 ARCHETTI, Eduardo P. Presentación. In: CHAYANOV, Alexander V. La organización de launidad económica campesina. (Trad.). Buenos Aires: Nueva Visión, 1985, p. 11. In: LOPES, Gustavo Acioli. “Caminhos e descaminhos do tabaco na economia colonial”, Dossiê Cultura e Sociedade na América Portuguesa Colonial, Revista MNEME v.5, n. 12, out./nov.2004 Disponível em http://www.seol.com.br/mneme. 229 De acordo com Samara o que caracteriza esses elementos é o fato de não possuírem nem uma pequena porção de terra ou casa própria, tendo, portanto, que se ajustar aos proprietários das áreas rurais ou urbanos dentro dos mais diversos tipos de relações. No caso de moverem um pedaço de chão cedido pelo dono, constroem então uma casa ou habitam em alguma lá existente, geralmente de taipa e pau-a-pique. Apesar das escassas informações, a situação desses indivíduos parece ter variado de acordo com as mudanças ocorridas em São Gonçalo e contexto econômico de cada região. Consultar SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura Canavieira, trabalho livre e cotidiano. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005, p. 58. 230 Ver FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem Escravocrata. São Paulo, Instituto de Estudo Brasileiros, 1969, p. 95. 231 Lei nº 2.040, de 28/09/1871. Coleção das Leis do Império do Brasil de 1871, Tomo XXXI, Parte I (Rio de Janeiro, 1871), pp. 147.151 (referências tiradas de CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, INL, 1975, apêndice II, pp. 366- 369). 75 É provável que o acúmulo do pecúlio pelo cativo para a comprar suas alforrias, ter ocorrido através dos trabalhos realizados em torno da produção fumageira. Como advertiu Reis muitos escravos notaram que as roças abriam portas para liberdade, uma vez que tornava aceitável o acúmulo de pecúlio 232. O cativo podia contratar seus serviços, como provavelmente aconteceu entre os escravos das ocupações da lavoura e residiam na vila, ou então, faziam suas roças nos feriados e nos domingos para adquirirem seus sustentos, como bem observou Barickman, especialmente nas economias da mandioca e do fumo na primeira metade do século XIX233. Também outros autores sugerem que os escravos produziam seus alimentos e o excedente era comercializado nas feiras locais, ou até mesmo vendendo seus serviços na Vila, episódio que incidiu no termo de Feira de Santana nas décadas de 1860-1880234. Diferente a manumissão de Inácio cabra, com idade 14 anos mais ou menos, em 1 de agosto de 1877, conferida por seus senhores Manoel Alves Ferreira e sua mulher D. Anna Joaquina de Sant’Anna, estava sob a condição de os servir enquanto fossem vivos235. Outras duas, Izidora, cabra, 50 anos de idade, foi adquirida pelos os bons serviços prestados a “benfeitora”, a qual conferia sua alforria na qualidade de inventariante do falecido marido Manoel Carvalho Cunha. A carta alforria da escrava Isabel, preta, 20 anos, foi à única registrada em 1887. Nesta a senhora, Maria Carolina de Jesus, outorga liberdade desta, em gratidão aos bons serviços por ela prestados, “nos tempos de seu marido como em sua viuvez”236. Como em outros locais os perfis senhoriais são semelhantes, igualmente, usam justificativas expressavam uma manifestação de controle dos senhores sobre os seus escravos, tornando manifesto ao escravo e à sociedade, que lhes é facultativo reconhecer ou não as qualidades e os serviços prestados, e em sinal de reconhecimento, gratidão, vontade e poder concederiam, como um prêmio, a liberdade 237. REIS, João José, “Escravos e Coiteiros no Quilombo do Oitizeiro, Bahia, 1806”, In REIS, o José, e GOMES, Flávio dos Santos, (orgs.), Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, pp. 362-365. 233 BARICKMAN, op. Cit. 234 NASCIMENTO, Flaviane Ribeiro. Viver por si: histórias de liberdade no agreste baiano oitocentista (Feira de Santana, 1850-1888). Salvador, BA: UFBA, 2012. (Dissertação de Mestrado);POPPINO, op. Cit., FREIRE, op. Cit., p. 76. Para Salvador Mattoso ponderou a possibilidade dos cativos acumularem pecúlio nos espaços da Cidade, nos diversos trabalhos urbanos. MATTOSO, Kátia M. de Queirós, Revolução dos Alfaiates à Riqueza dos Baianos no Século XIX _ Itinerários de uma Historiadora, Salvador, Corrupio, 2004, p. 303. 235 Arquivo do Fórum Ministro João Mendes. São Gonçalo dos Campos. Tabelionato, Livro 1. p. 10. 236 Arquivo do Fórum Ministro João Mendes. São Gonçalo dos Campos. Tabelionato, Livro 7. 237 NASCIMENTO, Op. Cit. 232 76 Nada obstante, a maioria das cartas de alforrias era paga238, os escravos tinham que ajuntar um pecúlio para compra dos senhores à tão sonhada liberdade. Mais isso não quer dizer que tenham rompido com os laços que prendiam ao ex-senhor. Uma vez que tais escravos, do serviço da lavoura, sem acesso à terra, permaneciam nas imediações das fazendas como trabalhadores livres 239. Esse argumento serve para pensar como a economia fumageira e a produção de gêneros alimentícios, e o cuidado com o gado, presente numa região com cultura fundiária diversificada ofereceu, de tal modo, mecanismos e estratégias240 que lançaram mão os dois grupos sociais para alcançarem seus objetivos, de um lado, a liberdade do cativo, do outro, a manutenção da força de trabalho em suas adjacências, como também a posse de meios de subsistências pelos libertos. De acordo com Nascimento, nos anos de 1860-1870, em Feira de Santana e seus arredores a maioria das alforrias foram pagas e incondicionais, apontando para essas ocorrências a conjuntura de crise pela qual passou a Província da Bahia, com secas e epidemias, o que, provavelmente, tornou difícil aos pequenos proprietários mantêm os cativos241. Na região de economia açucareira os senhores concederam alforrias coletivas aos seus cativos, quando a abolição já era uma certeza, como bem salienta Fraga, Em 1887, as fugas coletivas e a recusa de trabalhar nos canaviais, sob a condição escrava, fizeram os senhores refletirem sobre os perigos da manutenção das relações escravistas. No final daquele ano, começaram a conceder alforrias coletivas sob condição ou gratuitas242. Não foi possível observa os prováveis conflitos entre escravos, libertos e proprietários rurais na freguesia, uma vez que, não encontrei documentos que fizessem referências a essas experiências, entretanto, é aceitável presumir a confusão nesta como sucedeu em outras partes do Recôncavo. Como observou Fraga a respeito da recusa dos escravos de trabalhar nos canaviais como os conflitos entre os senhores de engenhos ou 238 De acordo com Flaviane Ribeiro Nascimento as cartas de alforrias pagas, foram aquelas que os escravos compravam através do um pecúlio. Existiam outros tipos de cartas como a onerosa, essas impunham certas condições aos cativos para alcançarem sua liberdade, mesmo depois de receberem suas manumissões. Ver, NASCIMENTO, Op. Cit. p. 84. 239 TEIXEIRA & ANDRADA, op. Cit. 240 Pensamos estratégias como propostas por THOMPSON, em que cada grupo social procura maximizar suas vantagens sobre o outro. Além disso, pensamos no conceito de habitus, de Bourdieu, que se refere a uma tradição cultural que explica a dinâmica social através das relações, associações através da qual os indivíduos legitimam seus direitos sociais sejam quais foram. No caso, o senhor tentava proteger o seu patrimônio e o escravo sua liberdade. THOMPSON, 1998, p. 90. BOURDIEU, 2004, p. 21. 241 Ribeiro apresenta a análise de Maria de Fátima, para Rio de Contas, a qual afirma que entre os anos de 1870- 1888, as cartas de alforrias estavam distribuídas em 33% pagas o pecúlio, 28% receberam cartas incondicionais, e 39 % condicionais à prestação de serviços. Consultar, NASCIMENTO, p. 84 e 85. 242 FRAGA, op. Cit., p 104. 77 entre estes e pessoas livres acerca dos danos provocados pelos gados às lavouras, 243 fato que poderiam maximizar a outorga da liberdade. Deste modo, a respeito das alforrias, para São Gonçalo, no mesmo período, foram proporcionalmente menores, com vista os números das negociações de compras e vendas de escravos, feitas pelos mesmos proprietários. Ainda, associa-se que parte da escravaria trabalhava nas suas pequenas roças para a sua subsistência, sem com isso, gerar muitas despesas para seus senhores244. Neste sentido, o reduzido número de alforria, em São Gonçalo, deve-se ao fato de que, a condição de cativo, ainda, gerasse ao escravo alguma vantagem, tal que aqueles libertos continuavam com vínculos com seus antigos senhores, cenário em que a posse de terras para o liberto era um sonho pouco imaginável depois da lei de Terras. Acrescenta-se a esse fato o contexto de transferência de tráfico atlântico para o interprovincial, situação que induziu a mão de obra escrava da Bahia ser destinadas às fazendas de café no Rio de Janeiro, São Paulo e Maranhão245, em que, de 1850 até 1870, provavelmente 24 mil escravos foram exportados. Uma parcela de escritura de venda de escravos e procuração menciona que os escravos poderiam ser vendidos no Rio de Janeiro. Como foi o caso da procuração feita por Bernardino Alves Barreiros, morador da Freguesia de Nossa Senhora dos Remédios, em Feira de Santana que, em 7 de julho de 1877, compareceu ao cartório da Freguesia de São Gonçalo dos Campos, comarca de Cachoeira, para instituir como seu bastante procurador na cidade de Salvador, Rio de Janeiro em geral, Silva Moreira de Senna, João Maria Miranda, Leone Antônio Gomes de Mendonça, e José Moreira Villúdo. Dando-lhes poderes, especialmente, para vender a sua escrava Geralda, preta, de 16 anos de idade de mais ou menos, solteira, da lavoura, natural da Freguesia dos Remédios, filha natural da escrava Maria, a quem sua mulher Carlota Joaquina Ribeiro, herdou de sua mãe 246. Outro exemplo de procuração feita por João Alves da Silva, morador nesta freguesia, 7 de setembro de 1877, ao seu procurador Capitão Antônio Cerqueira de Araújo, e Manoel Pedreira de Coutinho na Cidade Cachoeira, para vender sua escrava Luiza, cabrinha de idade de sete anos mais ou menos, da lavoura, natural desta freguesia, 243 Idem, p. 171. Ver BARICKMAN, op. Cit. 245 Idem, p. 230. Ver também: PARÉS, Luís Nicolau. O Processo de Crioulização no Recôncavo (17501880). Revista Afro- Ásia, v. 33, p. 87- 132. 2005. 246 Arquivo do Fórum Ministro João Mendes. São Gonçalo dos Campos. Tabelionato, Livro de 1.p 1. 244 78 filha natural da escrava Florzinha, liberta por Manoel Alves e sua mulher247. Como advertiu Barickman “O tráfico interprovincial acelerou o declínio da escravidão na Bahia e deu início a uma longa e penosa transição para o trabalho livre” 248, através das procurações, compreende-se que os senhores e senhoras instituíam procuradores para vende seus escravos e escravas, “podendo embarcar o escravo para qualquer ponto do Império”249. A despeito disso, a província da Bahia, em 1872-1873, tinha a terceira maior população escrava do Brasil250. Mais um ponto que merece destaque foi à elevação do preço dos escravos, como em outras partes da Província, por causa do tráfico interno, como advertiu Nascimento que neste período o preço de mulheres e homens, em Feira de Santana 251. Barickman ressalva que o preço do escravo do serviço da enxada que no início de 1850, era de 400.00 reis252, pode ser encontrado em 1870, na quantia de 1.000.00 conto reis. Valor dado ao escravo Januário, preto, 22 anos, solteiro, em 17 de junho de 1879, pelo vendedor Tenente Coronel Antônio Carlos da Silva ao comprador Capitão José Lopes Menezes Filho 253. Observa-se ainda nestes registros que os sujeitos envolvidos nas transações comerciais possuíam alta patente, o que indica a presença de proprietários abastados contraditório às indicações de crise que afetava especialmente aos pequenos lavradores que tinha posse de escravos254. Os altos preços constam, igualmente, na escritura de compra e venda da escrava crioula, Maria, crioula, 16 anos, vendida por Antônia da Conceição ao comprador José da Silva Maxado, em 24 de fevereiro de 1866, na quantia de 900,00 reis. Outro exemplo foi o da escrava Marcelina, crioulinha, 28 anos, vendida por Antônio Germano Dias, morador da Freguesia de Humildes a Januário Alves de Souza, morador na freguesia de São Gonçalo dos Campos, em 15 de março de 1866, na quantia de 800,00 reis 255. Segundo Slenes a queda do mercado interno de cativos ocorreu entre os anos 1881-1883256, contudo as escrituras sinalizam que no período de 1870-1888, às vésperas da abolição, ocorreu um elevado número de compra e venda de escravos em São Gonçalo dos Campos. 247 Arquivo do Fórum Ministro João Mendes. São Gonçalo dos Campos. Tabelionato, Livro de 1. p. 14. BARICKMAN, op. cit., p. 230 249 Arquivo do Fórum Ministro João Mendes. São Gonçalo dos Campos. Tabelionato, Livro de . p 11. 250 BARICKMAN, op. Cit., p. 231 251 Arquivo do Fórum Ministro João Mendes. São Gonçalo dos Campos. Tabelionato, Livro de 1 a 7. Ver Ribeiro, op. Cit., p. 68. 252 BARICKMAN, p. 231. 253 Arquivo do Fórum Ministro João Mendes. São Gonçalo dos Campos. Tabelionato, Livro 6. 254 Sobre o assunto ver NASCIMENTO, op. Cit., POPPINO, op. cit., FREIRE, op. Cit. 255 Arquivo Municipal de Cachoeira, São Gonçalo dos Campos, Livro de Notas de 1866-1867. 256 SLENES, 2005, p. 357. 248 79 Tais ocorrências sugerem que a conjuntura do período — leis abolicionistas, aumento do tráfico interno, elevação dos preços dos cativos, ascensão da economia fumageira na Província — não estava diferenciando São Gonçalo dos Campos ao padrão das regiões açucareiras. Trabalho Livre: arrendamento de terras na década de 1880 Os dados do censo de 1872 sugerem que apenas 32,4%257 dos moradores da eram proprietários de imóveis, excetuando a população escrava de 29%258, exista outra parcela de 39%259 que não possuíam propriedade de terras. Esses dados comprovam a presença de trabalhadores rendeiros260na freguesia, os quais apareceram registrados nas escrituras de venda e compra de terras, nos registros de arrendamento, em 1881 e, ainda, nos inventários post mortem. Uma clara evidência de que o trabalho rendeiro na região de São Gonçalo dos Campos se mantinha em plena vigência na segunda metade do século XIX, verificável igualmente na primeira década no século XX261. Um sítio de terras na Fazenda Coqueiro foi arredando por Dona Maria Carolina de Cerqueira Pedreira, em 30 de agosto de 1881, para José Ciríaco de Oliveira, por 200 mil réis anuais. Não é do nosso conhecimento o tamanho e localização da propriedade, porém o documento destaca que o rendeiro já havia se estabelecido no sítio antes de lavrar a escritura no cartório. Não é possível mensurar a importância dessas transações sobre os substabelecimentos de escrituras de arrendamentos, antes importa dizer que, através delas os arrendatários e rendeiros, em troca de uma compensação, assumiram contratos que, ao mesmo tempo, dava direito ao rendeiro, morador do sítio, fazer as benfeitorias que desejasse como limitava que os benefícios não deveriam exceder o valor da renda. 257 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Recenseamento do Brasil de 1872. Bahia, p. 9799. 258 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Recenseamento do Brasil de 1872. Bahia, p. 9799. 259 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Recenseamento do Brasil de 1872. Bahia, p. 9799. 260 Os rendeiros eram plantadores de fumo no distrito de Cachoeira, porém não eram proprietários de terras. Sobre o assunto ver ANDRADE, Manuel Correia. Apud. BORBA, Silva Fraga. Industrialização e exportação de fumo na Bahia. Salvador. Mestrado da UFBA, 1975, pp. 4 e 5. Mattoso, op. cit. SCHWART, Stuart. Segredos Internos: Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1.' edição, 1988. SANTANA, Charles D'Almeida. Fartura e Ventura Camponesas: trabalho, cotidiano em Migrações: Bahia: 1950-1980. São Paulo: Annablume, 1998. 261 Dados verificáveis nos assentamentos cartoriais de terras e nas narrativas orais dos moradores do município. 80 Do mesmo modo, foram arrendadas as terras da fazenda Chapada, do Capitão Firmino da Silva Daltro. O rendeiro, João Severino dos Santos, morador no fundo da fazenda, cujas terras já “possuíam” por nelas já ter se instalado. Neste documento deixa explícito que o rendeiro deveria plantar suas lavouras de consumo, criar, cercar e fazer as benfeitorias que fosse necessária, porém, tais benfeitorias não podiam exceder o valor do arrendamento, 200 mil réis anuais 262. Como já foi mencionado, no geral, os registros não trazer à baila o tamanho da propriedade, nem o tempo que o rendeiro precisaria permaneça nas terras. Alguns documentos trazer à baila que quando os rendeiros deixassem os domínios fundiários seriam feitas avaliações das benfeitorias. Como exemplos têm-se as terras, casa e benfeitorias da Fazenda Jacaré, em que o proprietário Antônio Carlos da Silva arrendou a Manoel Casimiro de Cerqueira263. Esse fato confirma que a posse de terra não assegurava o controle sobre a mão de obra, uma vez que, a terra representava parte significativa dos bens. Em certas ocasiões, as terras eram arrendadas, cuja única finalidade, do rendeiro era assegurar a própria subsistência e da família. Em qualquer lote podia plantar roça de mandioca, feijão e milho. Os proprietários que pretendiam arrendar suas terras, objetiva com isso adquirir melhores rendimentos. Teixeira aponta que, Não tendo condições de tornar produtiva toda a área, o proprietário mantinha ao seu redor certo número de arrendatários e meeiros, que residiam em áreas periféricas da propriedade, dedicando-se à produção de gêneros de subsistência ou às denominadas culturas menores. A do fumo é um dos exemplos mais evidentes. Daí concluir-se que algumas das denominadas “pequenas propriedades” onde o fumo era produzido, eram na verdade pedaços de terra arrendadas dentro de propriedades maiores no regime de meia. Arrendamento esse feito por homens livres, pobres ou ex-escravos. A presença dessa clientela em torno do grande proprietário conferia-lhe poder e prestígio social264. Terra e escravos eram os bens mais valiosos durante o período estudado. Para uma sociedade marcadamente rural, a posse significava além de riqueza material, reconhecimento social, capaz de diferenciá-lo de outros265, controlando, assim, os meios 262 Arquivo do Fórum Ministro João Mendes. Livro de Notas de Escrituras 1881-1883/ São Gonçalo dos Campos. 263 Arquivo do Fórum Ministro João Mendes. Livro de Notas de Escrituras 1881-1883/ São Gonçalo dos Campos. 264 TEIXEIRA & ANDRADA, op. Cit., p. 44. 265 RAPASSI estudando a riqueza em Salvador na segunda metade do século XVIII afirmou que ter escravo qualificava a individuo como proprietário e lhe dava status social. Nem precisava ser proprietário de terra ou de outros bens, para o indivíduo ter a condição de ser servido. Assim, possuir escravos era um elemento de homogeneização de um grupo e de diferenciação dentro dele, já que a quantidade de cativos e a 81 de produção representavam a camada dominante da freguesia. Neste sentido, a aquisição de terra é um componente necessário para se compreender o sistema econômico na freguesia, uma vez que, após a abolição as estratégias de sobrevivência dos ex-escravos vão ser realizadas em torno da posse e do trabalho rural. Como, também, as heranças e casamentos vão sendo firmadas através das posses de terras. Ainda pode ser citada as terras, casa e benfeitorias da Fazenda Recreio, de Felipe Pedreira Daltro e sua mulher D. Ana Carolina Pedreira. O rendeiro foi Manoel Romualdo Pedreira que foi autorizado pelos proprietários a aumentar as benfeitorias apenas no quintal da fazenda, cuidando das cercas e das árvores frutíferas. Neste caso, nota-se que os proprietários ofereceram maiores restrições ao rendeiro. Os arrendamentos das terras eram feitos por marido e mulher, como também ou pelo homem ou pela mulher. Já na categoria de rendeiros apenas os homens faziam o acordo com os proprietários. Os registros não informam se estes possuíam ou não famílias. Outro ponto importante para compreender o processo de arrendamento é a finalidade descrita nos registros. A maioria deles informava que os rendeiros podiam usar as terras para o plantio de sua subsistência. Alguns sinalizavam a criação de gado, como foi o caso da Fazenda Boqueirão, na Freguesia de Serra Preta. O proprietário, Coronel Antônio Carlos da Silva, morador na Freguesia de São Gonçalo dos Campos, com rendeiro José Leonardo Gomes, também morador nesta freguesia, arrendou um sítio de terras denominado Lachedo, na Fazenda Boqueirão para criar gado266. Parece comum que os proprietários fundiários da freguesia de São Gonçalo dos Campos possuírem terras e fazendas em outras freguesias, igualmente, alguns lavradores rendeiros migravam para arrendar terras. Os arrendamentos foram meios comuns de acesso à terra na segunda metade do século XIX. De acordo com Hebe de Castro destaca a Lei de Terras ressaltando que: (...) a lei de terras votada no ano da extinção do tráfico proibia a ocupação das terras devolutas por outros títulos que não os de compra, a legislação buscava criar as condições para o surgimento do mercado livre para a grande lavoura e aumentar os índices de mercantilização das terras com vistas a que viessem substituir a renda capitalizada no escravo267. capacidade de manutenção e reposição dos mesmos indicavam níveis diversos de riqueza. MASCARENHAS, RAPASSI, Maria José. Fortunas coloniais_ elite e riqueza em Salvador, 1760-1808. USP, tese de doutoramento, 1998. 266 Livro de Notas de Escrituras 1881-1883/ São Gonçalo dos Campos. Arquivo do Fórum Ministro João Mendes. 267 CASTRO. Hebe Maria Mattos de. Ao Sul da História: Lavradores Pobres na Crise do Trabalho Escravo. São Paulo. Brasiliense. 1987. p. 123. 82 Embora a Lei de Terras, o revés a promulgação da Lei Eusébio de Queiroz, em 1850, que extinguia o Tráfico Negreiro, representou um marco legal que objetivava impedir a apropriação de terras pelos libertos e livres pobres, obrigando-os a permanecer trabalhando nas fazendas em que eram escravos 268. No próximo capítulo, as narrativas de descendentes de escravos testificam essas experiências de indivíduos e famílias que, depois de 1888, continuaram nas fazendas fumageiras de seus antigos senhores, na relação, agora, de coronelismo, obrigados a oferecer a mão-de-obra em troca de moradia e terras para aquisição de recurso suficiente a subsistência da família. No ponto de vista, Costa Porto a Lei protegia os posseiros e sesmeiros irregulares, pois quando seguiam a paróquia para legitimar a posse das terras adquiriam pelo domínio delas 269. Entretanto, os registros eclesiásticos sinalizam que às demarcações determinadas no artigo 14 da Lei 601, permaneceu a mesma balbúrdia de outrora no tocante à não delimitação literal dos limites, fronteiras e marcos das fazendas ocupadas por particulares. Nessa perspectiva José Murilo de Carvalho destaca que a Lei de Terras não se consolidou e, em 1870, o ministro não se via em condições de fornecer dados gerais sobre a execução da lei, afirmando que posseiros ainda julgavam que os agentes do governo os queriam espoliar de suas propriedades270. Tal determinação foi estendida dos governos estaduais para atender aos anseios das oligarquias regionais271. Neste sentido, na Bahia, a Lei n°198, permitiu que os posseiros legitimassem suas terras até 2 de julho de 1891 272. Vale lembrar que a categoria de posseiro, pode ser igualmente relacionado ao rendeiro, uma vez que pagantes da renda pela moradia e o uso da terra nas fazendas, diz respeito, a uma conjuntura econômico-social em que ambos estão inseridos e, portanto, a definição comparecer articulada à estrutura geral desta formação. Seu cerne consiste no acesso estável a terra, na produção familiar (com recurso eventual à mão-de-obra externa à família) e de subsistência (ainda que com alguma ligação com o mercado) e, por fim, certo grau de autonomia na gestão de sua parcela de terra. 268 MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Hucitec, 1996. PORTO, Costa. Estudo Sobre o Sistema Sesmarial. Recife. UFPE. 1965, p. 83 270 CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: A Elite Política Imperial Teatro de Sombras: A Política Imperial. Rio de Janeiro. UFRJ. Relume-Dumará. 1996, p.314 271 SILVA. Ligia, Op. Cit. p. 249. 272 BAHIA. Leis de Terra do Estado da Bahia. SEPLANTEC./CAR-INTERBA. Mestrado em Direito Econômico da UFBA Salvador. 1985. pp. 30-37 e 60-62. Ver também: CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: A Elite Política Imperial Teatro de Sombras: A Política Imperial. Rio de Janeiro. UFRJ. Relume-Dumará. 1996, p.313. 269 83 Diante disto, é importante observar, através das fontes cartoriais, que o processo de arrendamento expressava, de fato, um flagrante da realidade vivenciada na região. Em Feira de Santana encontra-se no Livro de Notas de 1881 foram registradas 50 escrituras de arrendamentos terras. Geralmente os proprietários (arrendatários) residentes na Freguesia de Sant’Anna pertencente a mesma Comarca e os rendeiros eram moradores na freguesia de Umburanas273 da Comarca de Cachoeira. Salvo o caso do capitão Affonso Pedreira de Cerqueira e sua Mulher dona Maria Pedreira de Cerqueira, residentes na Freguesia das Umburanas, conduziram-se ao termo de Feira de Sant’Anna, em 27 de julho de 1881, onde legalmente escrituraram o arrendamento da fazenda Mucambo, no termo de Camisão, ao rendeiro Viriato Magalhães de Figueiredo, morador na cidade da Feira de Sant’Anna274. Este teria que pagar aos proprietários pelo uso da terra 200 mil reis ao mês, no período de 3 anos, sendo permitido plantar e criar, exceto fazer benfeitoria na propriedade. Os mesmos proprietários, em 27 de julho de 1881, fazem arrendamento para Luiz da França e Sr. Tiago, nascidos na cidade de Feira de Sant’Anna, das “terras na fazenda denominada Todos os Santos, sita Freguesia do Rosário do Orobó, termo do Camisão para lavoura e criação pelo tempo de três anos, duzentos mil reis anuais”275, sendo negada a autorização para fazer melhoramento na propriedade. Do mesmo modo, o capitão Affonso e sua mulher fizeram o arrendamento de suas posses, na fazenda denominada Todos os Santos, a José Vaz de Ataíde ao tempo de três anos por duzentos mil réis anuais. Muitas escrituras aparecem em nome do casal, por conseguinte, eram titulares de grandes extensões de terras em Feira de Sant’Anna e Umburanas. Ao que parece, estes possuidores tentavam garantir o domínio e uso das terras improdutivas e evitar a ocupação por escravos fugidos que chegavam na região 276. Portanto, das 50 escrituras localizadas no Livro de Notas, 31 delas foram registradas pelo Capitão Affonso e sua mulher a diferentes rendeiros. Na ocasião das notas não foram mencionadas idade, situação civil ou cor dos indivíduos, consta apenas a moradia de ambos, sendo, neste caso, a maioria deles residentes na Freguesia de Umburanas. 273 Umburanas podia ser Santo Estevão ou Antônio Cardoso que teve o nome de Tiguatiba no Início do século XX passando a ser chamada posteriormente por Antônio Cardoso, local pertencente a São Gonçalo dos Campos. Camisão era uma freguesia de Feira de Sant’ Anna. Os proprietários eram moradores da Freguesia de Nossa Senhora dos Remédios, em Feira de Sant’Anna. 274 Livro de Notas de Escrituras 1881-1888/ Nº Senhora dos Remédios. Arquivo Público de Feira de Santana, p. 1. 275 Livro de Notas de Escrituras 1881-1888/ Nº Senhora dos Remédios. Arquivo Público de Feira de Santana, p. 38 276 FRAGA, Op. Cit. 84 Diogo Augusto Vieira Falcão, morador da Freguesia dos Remédios, arrendou a Manoel Estevão Gonçalves, morador da Freguesia de Umburanas, em 13 de agosto de 1881, uma posse de terra em sua Fazenda Crumathai, situada na Freguesia das Umburanas no período 3 anos, pelo valor de duzentos mil reis anuais 277. No dia 16 do mesmo mês e ano, retorna ao cartório para escriturar a locação de outra porção de terra na mesma fazenda, a Antônio Rodrigues do Bonfim, também residente na Freguesia das Umburanas. As escrituras trazem uma importante questão vivenciada na zona rural de São Gonçalo e Feira de Sant’Anna: o acesso à terra. As combinações realizadas, entre aqueles que possuíam a terra e aqueles que objetivavam o acesso, estabeleciam uma relação de mão dupla, em que ambos seriam favorecidos. Em outro registro, João Ribeiro de Oliveira, habitante na Freguesia de São Gonçalo dos Campos, arrendou a João Alves de Oliveira, morador na Freguesia das Umburanas, uma posse de terra na Fazenda Lagoa, situada na Freguesia das Umburanas, no período de 3 anos, pela quantia de 200 mil reis anuais. Ainda, João Ribeiro de Oliveira locou a João Baptista de Magalhães, residente na Freguesia das Umburanas, a propriedade na Fazenda Lagoa, ambos contratos em 17 de agosto de 1881. Sabino José de Carvalho e sua mulher Cecília de Carvalho, 13 de agosto de 1881, dão em arrendamento uma parte das terras de sua fazenda Cajazeira a Manoel Pinheiro do Nascimento, ambos moradores de Umburanas, por igual tempo e valor dos demais contratos. Ainda, em 18 de agosto de 1881, o mesmo casal arreda a possessão na Fazenda Cajazeira a Adolpho Porfírio de Cerqueira, residente em Umburanas. Outras duas escrituras foram efetivadas pelo casal a Thomé Alves Barreto e a outra a Joaquim Cardoso de Sant’Anna, ambas na propriedade de Cajazeira, em Umburanas. É provável que houvesse por parte dos proprietários uma inquietação referente ao privilégio exclusivo da posse da terra, bem como acomodar em seus cuidados trabalhadores livres, entretanto, sem prejuízos financeiros. Neste sentido, os rendeiros que recebiam uma parte da terra do fazendeiro para trabalhar, deviam pagar anualmente pelo arrendamento uma quantia estipulada entre 200$000 a 250$000 reis e também cuidar das terras, animais e plantações dos fazendeiros, quando possuíssem. Deviam zelar e fazer benfeitorias sem com isso deixar de pagar aquilo que competia pelo arrendamento das terras. A exemplo do rendeiro Manoel Casimiro de Cerqueira, que estava condicionado 277 Livro de Notas de Escrituras 1881-1888/ Nº Senhora dos Remédios. Arquivo Público de Feira de Santana, p. 39 85 a fazer as benfeitorias nas possessões de Antônio Carlos da Silva, contudo, tais benefícios não seriam incluídos na ocasião da avaliação, após a saída do rendeiro da propriedade278. De igual modo José Porceiro da Silva, concordou com Sérgio Pedreira Daltro, que faria os melhoramentos necessários na Fazenda Pau Seco, como consertar as secas externas das matas, entretanto, estes não seriam introduzidos na avaliação279. No contrato de Capitão Firmino da Silva Daltro seu rendeiro João Severino dos Santos responsabilizava-se pela roça, cuidava frequentemente de pequenos animais como aves e porcos, os quais supriam as necessidades familiares e poderiam ser vendidos na vizinhança e na feira livre, garantindo uma pequena renda sobre o conjunto familiar, além de fazer as benfeitorias indispensáveis, no sítio de terras no fundo da fazenda Chapada, entretanto, o valor delas não devia exceder o seu arrendamento, 200 mil reis. Os indícios na escritura sinalizam que o registro de 1881 veio legalizar a relação consuetudinária entre João Severino e o Capitão Firmino Daltro já que existia uma combinação anterior, afiançada na palavra. Tal relação constitui parte do universo de mil práticas pelas quais os sujeitos reapropriam contextos nos quais inscrevem os jogos sociais, sendo experiências encarnadas nas tradições280. Confirmando essa análise, Mattoso281, para a Bahia do final do século XVIII, sugere que a maioria dos plantadores de fumo no distrito de Cachoeira eram rendeiros, criando uma espécie de tradição e um tecido social diferenciado nesta região. Isso significa dizer que o arrendamento era uma experiência compartilhada pelos fazendeiros do Recôncavo que se dedicavam na atividade fumageira. Também Teixeira282 na compilação comemorativa, Memória Histórica de São Gonçalo dos Campos, indicou que a produção agrícola naquela Freguesia se concentrava nas mãos de pequenos produtores, rendeiros ou proprietários de terras, estabelecendo uma cadeia de dependência em torno do trabalho livre. Também não podem ser negligenciados os costumes dos lavradores, 278 Livro de Notas de Escrituras 1881-1888/ Nº Senhora dos Remédios. Arquivo Público de Feira de Santana. 279 Livro de Notas de Escrituras 1881-1888/ Nº Senhora dos Remédios. Arquivo Público de Feira de Santana. 280 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994: 41. LEPETIT, Bernad. Sobre a escala na História. In: Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia das Letras, 1987. PESAVENTO, Sandra Jathay. O corpo e a alma do mundo. 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O processo de arrendamento em São Gonçalo abre um leque de questionamentos. Primeiro, referente ao fato de apenas no ano de 1881 haver uma preocupação dos proprietários em fazer contratos legais. Outro ponto curioso é seguir a trajetória dos rendeiros, identificando suas origens e seus anseios. Questionar, ainda, sobre a aspiração dos proprietários com o arrendamento suas terras? Também, interrogar para quem o arrendamento serviu? Possivelmente o arrendamento objetivava a sustentação da mão-de-obra barata e estimulava a transição para o trabalho livre na freguesia. É imaginável que ao perceberem o inevitável colapso do sistema escravista os fazendeiros recorreram à mão-de-obra do livre. Do mesmo modo é aceitável que essa fosse uma prática tradicional naquela conjuntura social, e que os registros legais apenas vieram legitimar costume. Também pode ser admissível a possibilidade de ter aumentado a demanda de rendeiros na Freguesia depois de 1850 por causa do tráfico intraprovincial de escravos para região sul do País, embora nenhum assentamento testemunha essa ocorrência. Por sua vez, os novos contratos, igualmente, beneficiaram os rendeiros, por conseguinte, poderiam ajuntar recursos para comprar suas terras e tornarem lavradores independentes. O cultivo do fumo efetivamente abria possibilidades de participar da economia de exportação a lavadores pobres e também a agregados e outros homens e mulheres que viviam de favor em terras alheias 284. Aliado a isso, os indivíduos egressos da escravidão apoderaram-se sobre uma parte dos meios de produção como a terra e os instrumentos de trabalho, utilizando da policultura e diversidade agrária, levando em consideração critérios como ser possuidor ou não de propriedades. Por fim, deve ser mencionada a sujeição direta ou indireta aos 283 Sobre estes assentamentos trataremos no próximo capítulo. Entre os 551 lavradores da freguesia, em 1835, que empregavam a mão de obra cativa, a posse média era de 6,8 escravos. Mais da metade desses lavradores, (55,9%) tinha menos de cinco cativos; um terço possuía apenas um ou dois escravos. Ver NARDI, op. Cit., BARICKMAN, op. Cit., TEIXEIRA & ANDRADA, op. Cit. 284 87 donos das propriedades fundiárias, as demandas do capitalismo, como nas ocasiões das formações dos contratos, nos pagamentos em espécie pela locação, ou mesmo, vendas de parte da produção. Não é sabido se os indivíduos protagonistas deste estudo teriam sido libertos, livres, escravos, com ou sem pequenas posses de terras. Uma vez que os documentos não deixam pistas para desvendar as categorias de cor e condições sociais dos sujeitos. É possível deduzir algumas informações, especialmente, pelos dados encontrados nos registros eclesiásticos e de batismo, no censo de 1872, os quais destacam uma população composta, especialmente, por pardos, dando, assim, os contornos mais acentuados da sociedade. Já os registros civis de óbitos, de 1889, oferecem elementos a respeito da profissão dos indivíduos, sendo, a maioria dos casos, lavradores. Significado que, como advertiu Schwartz, os proprietários que arrendavam fazendas ou partes delas eram mais pobres que os proprietários de fazenda e os lavradores de cana com posse de um terço da metade do número de escravos285. Esse contexto pode ser relacionado aos estudos de Poppino, nos quais afirmam que o município de Feira de Santana possuía um considerável número “roceiros” que se encarregavam de realizar a tarefa em suas propriedades ou em parcelas das fazendas locais no sistema de meação, no qual concluem que parte deles se constituíam de exescravos286. Em São Gonçalo, outras pesquisas287 revelam que o cultivo do fumo estava associado a atuação dos escravos como mão-de-obra e produtores efetivos, além da participação de libertos e não-possuidores de possessões que aparecem como rendeiros. 285 Schwartz, op. Cit., p. 362. POPPINO, Feira de Santana, p. 61. 287 TEIXEIRA & ANDRADA, op. cit. 286 88 CAPÍTULO III Trajetórias entrecruzadas: diferentes histórias e famílias de cor. Na tentativa de contextualizar a primeira década do século XX lanço mão da História Oral, indagando os informantes sobre o que ouviram de seus pais e avós a respeito das reminiscências da escravidão, suas experiências e trabalho na roça. Nos depoimentos aventurei-me captar as práticas que lembravam os antepassados, os significados de liberdade, as concepções de cidadania, às aspirações, a reelaboração do vivido e os seus projetos de vida. Assim, para captar alguns aspectos dos itinerários dos ex-escravos e de seus descendentes recebo valiosas contribuições de antigos moradores das fazendas fumageiras de São Gonçalo dos Campos. Os informantes como Djanira Pinheiro de Queiroz nascida em 1912, na fazenda Dendê, filha de Teodora Francisca Gomes e João Pinheiro de Queiroz. Dona Diva Ramos da Silva, nascida em 1923, neta de Tibúrcio Barreiros, uns dos importantes fazendeiros de São Gonçalo dos Campos, e bisneta da escrava Maximiliana. Esses depoimentos são fundamentais para o presente estudo não só porque os informantes ouviram os pais contarem suas experiências, mas por suas memórias estarem vinculadas às “vivências nas Fazendas”, ao “tempo dos avós ou pais” e ao “tempo dos escravos”. Outros depoimentos serão apresentados ao longo deste trabalho, os quais vão dando evidências as experiências de descendentes de escravos na primeira década do século XX. A partir dos fragmentos das memórias familiares e as pistas e indícios dispersos em registros oficiais, escritos de memorialistas pude montar um quebra-cabeça referente a construção, preservação e ampliação dos laços de solidariedade e redes familiares na pós-abolição, percebendo que, como peças indissociáveis, o cotidiano da fazenda escravocrata, em parte, conservar-se após o fim do cativeiro. As trajetórias percorridas por ex-escravos e o diálogo com as memórias elaboradas por seus descendentes coloca em evidências diversas questões prementes na vida dos libertos em 13 de maio de 1888. A vida cotidiana A partir do conjunto das rememorações e fragmentos, é possível perceber, grosso modo, alguns aspectos materiais que caracterizam as fazendas fumageiras no início do 89 século XX. Por exemplo, as instalações, dependências que faziam delas um conjunto complexo e autossuficiente, não distante do contexto relatado no primeiro capítulo a respeito dos anos de 1850 a 1890. As construções imponentes, em referência a esse tempo, as propriedades exibem a “casa grande”, residência da família possuidora, como bem lembrou Djanira, um conjunto com a construção de adobe dobrado288, paredes largas, telhado forrado com madeira de amargoso e cedro, portas e janelas grandes e largas e o chão de tijolo, com enormes salas e muitos quartos. Os informantes recordam que a construção da casa grande diferenciava das moradias dos rendeiros que era de pau-apique, pequenas, cobertas de telhas de chão sem tijolo, em geral, próximas as estradas e cercadas por roçados e algumas árvores frutíferas289. No interior da casa de morada, fazenda Dendê, possuía uma capela familiar, com o oratório repleto de imagens de santos: Santo Antônio, Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora do Amparo, Senhor do Bonfim, Nossa Senhora das Candeias 290. Afirma Boaventura que “mais rigor teria de haver para a Capela particular, para o oratório apto para a missa, para os ofícios religiosos presididos pelo Padre. Para os casamentos da família, para os batizados da casa 291”. Dona Diva residente na fazenda Paixão revelou que os casamentos e batizados se realizavam na propriedade fundiária. O padre era convidado para celebrar as cerimônias naquele local292. Pela documentação eclesiástica, no período houve muitos casamentos e batismos, contudo, os registros não fazem menção a cerimônias nas fazendas. Como exemplo, o registro de batismo de Geraldo, branco, 2 meses, filho legítimo de Felipe Machado e Cecília Marques Machado, padrinhos Antônio Borges Falcão e Maria Amélia Magalhães Falcão, batizado pelo padre coadjunto Anacleto da Rosa Valle, na Matriz da freguesia de São Gonçalo dos Campos, em 24 de janeiro de 1904293. Em outro registro, de 15 de março de 1903, também, o padre coadjunto Anacleto da Rosa Valle, batiza na capela de Mercês, Ricardo, pardo, com 1 mês de nascimento, filho legítimo de Antônio Borges Falcão e Antônia Maria de Jesus, sendo padrinhos Horácio Marques de Cerqueira 288 A parede de adobe dobrado era construção com dois adobes na parede. De acordo aos informantes eram duas paredes em uma. 289 Entrevistas com: Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011. Expedito Pinheiro de Carvalho, concedida em 25 de março de 2011. Teófilo Cazumbá, concedida em 23 de março de 2011. 290 Entrevista com Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011. 291 BOAVENTURA, Eurico Alves. Fidalgos e vaqueiros. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1989. p. 270. 292 Entrevista com Diva Ramos da Silva, concedida em 7 de outubro de 2012. 293 Arquivo da Arquidiocese de Feira de Santana, BAHIA. Livro de Batismo n. 21 – 1903/1904. 90 e Nossa Senhora das Mercês294. Embora não localizasse informações nos registros eclesiásticos que revelem a realização dessas cerimônias nas fazendas, as memórias acerca da capela e das consagrações religiosas feitas naqueles locais elucidam a vasta organização da vida social, abrangendo trabalho, residência, trocas materiais, práticas religiosas, festas, que se desenvolve dentro de seus limites. Vistas em conjunto, na propriedade encontrava-se, junto a casa grande, as instalações do fabrico de farinha e um galpão onde se armazenava o fumo, bem como, nas imediações os campos cultivados de fumo, mandioca, além dos pastos para a criação de gado vacum295. Por sua vez, a posição central e o aspecto da casa da família do proprietário, em contraste com as casas dos rendeiros, e a extensão das plantações agrícolas confrontada aos roçados diminutos estabeleciam como estava distribuído o poder social no início do século XX. Contou Djanira que nas fazendas da região: Paixão, Pedrinhas, Moreira, Dendê, existiam muitas famílias de cor que residiam naquelas terras vivendo da renda e do trabalho de aluguel. Como já foi abordado anteriormente, era costume em São Gonçalo encontrar nas fazendas fumageiras rendeiros dedicados ao trabalho na roça. Os documentos cartoriais, lavrados em 1881 não destaca o tempo de permanência dos rendeiros na propriedade. De acordo com a tradição oral, os ascendentes de muitos rendeiros foram escravos do serviço da lavoura, e depois da abolição continuaram desempenhando o trabalho da roça. Sobre este aspecto, as memórias de Djanira, pertencente à segunda geração dos proprietários de fazendas, e ao mesmo tempo dos rendeiros cuja infância se passou na fazenda Dendê, testemunhando as experiências de sua mãe como rendeira e escutando atentamente as narrativas sobre o tempo da escravidão e sua história como filha de exescrava contou que, mamãe morava em Bonfim de Feira, era filha de escrava, ela contava que fugiu de Bonfim de Feira, ainda novinha, chegou aqui novinha, sozinha, não tinha parente nenhum aqui na fazenda de meu pai, ela veio sozinha, novinha tinha os 12 a 15 anos nessa faixa ai. (...) ai essa foi Teodora era preta, pretona, (...) ela falava ai que a mãe dela foi pega de dente de cachorro296. A história lembrada por D. Djanira é elucidativa do cotidiano de trabalho vivenciado por sua mãe Teodora. Teria, esta, nascido em Senhor do Bonfim, comarca de Arquivo da Arquidiocese de Feira de Santana, BAHIA. Livro de Batismo n. 21 – 1903/1904. Entrevistas com: Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011. Expedito Pinheiro de Carvalho, concedida em 25 de março de 2011. Teófilo Cazumbá, concedida em 23 de março de 2011. 296 Entrevista com Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011. 294 295 91 Feira de Sant’ Anna, lá teria vivenciado a experiência na lavoura como filha de escrava, de onde teria fugido, várias vezes, sendo pega a “dente de cachorro”, mas que conseguiu fugir depois de muitas tentativas. Chegando, já no início do século XX, na fazenda fumageira pertencente a João Pinheiro, de quem se tornaria rendeira e, depois, no período de sua viuvez, amásia. No tocante a Teodora, pode ser que tenha nascido no período da Lei Ventre Livre e que depois do 13 de maio continuou sendo tratada como escrava. Neste sentido sua fuga depois da abolição, como bem advertiu Fraga referente as migrações dos ex-escravos no Recôncavo açucareiro 297, vislumbrava a liberdade. Expedito terceira geração, também guarda a memória de genealogia escrava. Lembrou das histórias contadas por sua mãe que dizia ser neta de escrava298. As memórias que se reportam ao “tempo dos avós ou pais” se prendem aos questionamentos de interesse desse capítulo. Todavia, entendo que a memória é fluída, sendo as temporalidades das lembranças dos assuntos que lhes contaram os pais e avós ligadas aos tempos vividos pelos informantes299. Assim, para além de compreender a incidência de arrendamentos de terra em São Gonçalo dos Campos, é preciso pensar como se desenvolveu este processo e a relação cotidiana desses sujeitos. Até 1888, as fazendas possuíam escravos, entretanto, como já foi dito no primeiro capítulo, aproximadamente 50% da força de trabalho constituída trabalhadores livres 300, no caso rendeiros. Os estudos sobre a economia fumageira para a primeira metade século XX, bem como aconteceu no século XIX, demonstram a predominância de rendeiros nas fazendas da cidade301. Também os dados lançados pelo Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, na década de 1920, divulgaram que a maior parte dos plantadores 297 FRAGA, Op. Cit. Entrevistas com Expedito Pinheiro de Carvalho, concedida em 25 de março de 2011. Cleusa Machado de Carvalho, concedida 25 de março de 2011. 299 THOMPSON, Paul. A voz do passado. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1992. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Campinas/SP: Martins Fontes, 2010. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro: CPDOC/ Fundação Getúlio Vargas, v. 2 n 3, 1989. POLLAK, Michael. Memória e identidade Social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n.10, 1992, p. 200-212. BOBBIO, Norberto. O tempo da memória: De senectute e outros escritos autobiográficos. Rio de Janeiro: Campus, 1997. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade, lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1987. 300 ARCHETTI, Eduardo P. Presentación. In: CHAYANOV, Alexander V. 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(...).303 A advertência do Instituto Baiano do Fumo exprime traços relevantes. Primeiro destaca a presença de meeiros e rendeiros como produtores, ao mesmo tempo que eles tinham autonomia no cultivo do fumo, não dependendo dos proprietários das terras para a aquisição dos produtos serviços e produtos, empréstimos, comercialização seus produtos. Os rendeiros habitavam em casas simples, plantando nos fundos das casas e trabalhando nas lavouras dos proprietários das terras em que habitavam e tinham suas roças. Na fazenda Magalhães, igualmente, os indivíduos egressos da escravidão amalgamaram-se ao sistema, transformando em trabalhadores rendeiros depois da abolição. Dona Lina, 90 anos, lavradora, lembrou que trabalhando como rendeiros produziam 50 a 100 arrobas de fumo, além de plantar mandioca, feijão, fumo, batata, milho que servia para a subsistência da família. Ressalta que o trabalho era árduo comparado aos escravos304. Dona Lina anuncia várias gerações de sua família trabalhando naquele domínio. Assim, homens e mulheres, rememoram a partir de vestígios 305 da memória sobre os fatos que os mais velhos contavam, sobre o “tempo dos avós e dos pais”. Por conseguinte, as lembranças desses descendentes sinalizam a existência de laços criados ou estabelecidos pelas gerações anteriores que viveram na fazenda. 302 Ver Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, Aspectos da economia rural Brasileira. Rio de Janeiro, 1922, p. 430-31. 303 Jornal A VERDADE, ano 11, nº 53 – cidade de São Gonçalo dos Campos, (Bahia) 15 de novembro de 1937. p. 3. 304 Depoimento de LINA, concedida em 2008. 305 LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfo1ogia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. LIMA, Henrique Espada. A Micro História Italiana: escalas, indícios e singularidades. São Paulo: Record, 2006. 93 Para manter a exploração dos libertos e rendeiros os fazendeiros fizeram acordos, tornando aqueles trabalhadores mão-de-obra disponível ao cultivo de fumo e mandioca. Assim, os ex-escravos prestavam serviços nas terras de seus antigos senhores, em troca receberiam concessões e favores, como por exemplo, utilizar pequenos lotes de terras para fazerem seus roçados. Teófilo Cazumbá ressalta que seu sogro Felix Ferreira era rendeiro da fazenda Moreira, tendo em troca, seis tarefas de terras para produzir suas roças de fumo, mandioca, batata, amendoim, feijão e milho 306. Diva lembrou que nas fazendas de seu avô Tibúrcio Alves Barreiros, os rendeiros podiam cultivar suas roças e criarem seus animais em 8 tarefas de terras307. Em outras regiões do Recôncavo, conforme as circunstâncias nas quais os exsenhores depararam-se, a solução encontrada para suprir a falta de mão-de-obra depois da abolição foi negociar condições para que os antigos escravos permanecessem nos engenhos. Afirmou Fraga que na ocasião “a mobilização dos trabalhadores para o trabalho no eito exigia negociação permanente para conciliar as necessidades dos engenhos com as atividades alternativas dos ex-escravos e seus descendentes”308. Outros informantes afirmaram que mesmo dispondo de grandes quantidades de terras desprovidas de produção agrícola, os proprietários só disponibilizavam pequenas extensões de terras para que os rendeiros produzissem suas roças de fumo, mandioca, feijão e milho, informou seu Justiniano. Djanira corroborou, contando que sua mãe Teodora, possuía uma pequena roça de mandioca e fumo na Fazenda Dendê. Maria José Ferreira Cazumbá recordou as histórias de sua mãe sobre as experiências de seus avôs, rendeiros da fazenda Moreira, tinham diminutas rocinhas de mandioca, fumo, entre outros gêneros agrícolas. Também limpavam os campos, cuidavam dos animais, acrescentando ainda, o trabalho nas roças do proprietário309. Destaca Silva Lara que para muitos exescravos, a liberdade significou manter condições de acesso à terra conquistada durante o cativeiro310. Carolyn Fick, a respeito ao sul da província de Saint Domingue, sugere que possuir terras era o mesmo que efetivar a liberdade, isto porque, sem terra era impraticável 306 Entrevista com Teófilo Cazumbá, concedida em 23 de março de 2011. Entrevista com Diva Ramos da Silva, concedida em 7 de outubro de 2012. 308 FRAGA, p. 236. 309 Entrevista com Maria José Ferreira Cazumbá, concedida em 27 de março de 2011. Pertence a 4 geração da família Cazumbá. 310 LARA, Silva H., Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil. Projeto História, 16, São Paulo, s. Ed., 1998, p. 28. 307 94 sustentar à família311. Nota-se, portanto, que na sociedade sangonçalense como em todos locais que incidiu o sistema escravista, os ex-escravos usavam a terra vislumbrando a nova condição de livre. Os afazeres da roça exigiam longas horas de serviço e uma boa quantidade de pessoas. Tarefa, geralmente, assumida pelo lavrador, sua esposa e seus filhos. De maneira geral, o trabalho começava com a organização da terra para o cultivo, o que correspondia à capina, ao preparo das covas, à adubação, o cuidado e a colheita. Parte do que era produzindo podia ser vendida, outra parte colocava para secar para dá aos porcos e as galinhas. “Feijão aquela saca de feijão que botava para comer em casa, feijão aquela saca grande de esteira, larga, que fazia pra caber o feijão tudo era saco pequeno” 312. Ressalte-se, a partir dos informantes, que não havia divisão de tarefas entre homens e mulheres na roça. No caso de Teodora, amásia de João Pinheiro, ela e os e os filhos “bastados” que laboravam para pai, amante e possuidor os instrumentos de trabalho. Nas experiências de Dona Antonieta as mulheres produziam suas pequenas roças de fumo, vendiam ao marido, ao pai, ou outro parente, com um valor abaixo do mercado313. A partir do conjunto de entrevistados, foi possível perceber, grosso modo, alguns rendeiros viviam em meio às ameaças de expulsão caso não cumprissem os acordos feitos ao proprietário. Djanira advertiu que sua mãe contava que houve situações em que os fazendeiros colocavam os rendeiros no tronco como se fossem escravos314. Teófilo disse que não ouvia seus sogros relatarem que existiam conflitos entre os rendeiros e o proprietário da fazenda Moreira, todavia, eram comuns aqueles rendeiros serem ameaçados de expulsão caso não cumprissem o dia estipulado para a renda, ainda deviam trabalhar na fazenda nas diversas atividades agrícolas e no cuidado com os animais, ganhando o dia315. Outro ponto que merece destaque é o chamado “dia de renda”. Expedito lembrou que em seu tempo de criança ouvia velhos rendeiros dizer que eram forçados a cumprir o 311 FICK, Carolyn. Camponeses e soldados negros na revolução de Saint Domingue: reações iniciais à liberdade na Província do Sul (1793-1794), In KRANTZ, A outra História: ideologia e protesto popular nos séculos XVII à XIX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 225. 312 Entrevista com Hortência, concedida em 2008. 313 Entrevista com Antonieta, concedida em 2008. 314 Entrevista com Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011. 315 A expressão ganhar o dia foi lembrado pelos entrevistados. Ela significa que os trabalhadores rendeiros trabalhavam durante alguns dias na semana para receber uma quantia em dinheiro e assim conseguir o sustento da família. Entrevista de Teófilo Cazumbá. 95 dia de renda que, geralmente, ocorria na terça feira, e os outros dias eles trabalhavam remunerado na própria fazenda 316. Segundo dona Diva, o dia de renda variava de acordo com os proprietários. Existiam aqueles que apenas requeriam um dia semanal, outros requeriam dois ou três. Lembrou que, Naquele tempo, minha filha, era dividido, tinha uns que cuidava dos animais. Os rendeiros já trabalhavam pra si. Porque eu nasci em 23. Quando eu nasci eu encontrei os rendeiros pagando o dia de renda e trabalhando pra si. Os rendeiros pagavam o dia de renda na fazenda e o resto da semana ia trabalhar pra si. Os rendeiros tinham direito a 8 tarefas. Eles dominavam dentro daquela fazenda 8 tarefas. Ali era para eles criarem os filhos, e viver daquilo. O dia de renda dependia do proprietário. Era um acerto, dependia. Um dia, dois, três. (...) um acordo que fazia com o proprietário, cumprindo com seu dever e trabalhando pra si. Eu alcancei assim, eu nasci, ainda alcancei a escravidão. Eles dizem que ainda hoje tem escravo. Eu alcancei a escravidão. (...) Porque era muito paupérrimo. O povo não vestia, não calçava. O que fazia era a conta de comer 317. Estes relatos, sobrevive à memória pessoal, expressam suas narrativas sobre “os acontecimentos vividos pessoalmente”, somados àqueles “vividos por tabela”, como refere Pollak318, que envolveram antepassados no cativeiro e a permanência das famílias naquelas terras. É esta “memória subterrânea” 319 que mantém, silenciosa, porém, continuamente, os laços de identidade do grupo frente às profundas transformações advindas com o desenvolvimento sociodemográfico da região. Explicou, Diva, que na fazenda do avô dela, Tibúrcio Alves Barreiros, os rendeiros davam mais de um dia de renda. Compreende-se, então, que as práticas do arrendamento variavam, contudo, o rendeiro sempre se relacionava com o proprietário das terras em uma atitude de dependência, devendo trabalhar em seus campos sob as suas ordens diretas. Eul-Soo Pang, discorrendo sobre as relações de trabalho do liberto, no período entre 1875 a 1891, adverte que a maioria dos libertos trabalhava quarto dias para os antigos donos e três dias para eles próprios 320. Ainda, em sua narrativa, Diva, rememorou as difíceis condições de sobrevivências em que os rendeiros permaneciam submetidos e o uso da terra para o plantio de gêneros agrícola designados ao mantimento da família. Expedito lembrou também que, 316 Entrevista Expedito Pinheiro de Carvalho, concedida em 25 de março de 2011. Entrevista com Diva Ramos da Silva, concedida em 7 de outubro de 2012. 318 POLLAK, 1992, p. 201. 319 POLLACK, 1989, p.3 320 PANG, Eul-soo, O Engenho Central do Bom Jardim na economia baiana: alguns aspectos de sua história, 1875-1891. Rio de Janeiro; NA, IHGB, 1979, p. 55-56. 317 96 Papai também contava que quando ele era criança seus pais diziam que os rendeiros moravam em casas de taipas. Eu também alcancei as casas de taipas dos rendeiros. Eles plantavam feijão amendoim, mandioca, e o fumo. O feijão amendoim, mandioca, servia para alimentar a família, quando a safra era grande eles vendiam na feira. O fumo era vendido nos armazéns em São Gonçalo, ao Suerdick. Também vendia nas vendas, os pacotes de 1, 2, 3, 4 ou 5 kilos, porque não tinha dinheiro para beber cachaça ou comprar um kilo de carne ou peixe vendia os pacotes de fumo nas vendas.321 Constata, então, que não somente a "terra" era concedida aos rendeiros, mas a autorização para a moradia e a produção de gêneros agrícolas. Não difere do que consta nas escrituras de arrendamento feitas no século XIX, logo após a Lei do Ventre Livre, em 1881. Os proprietários utilizavam seus bens fundiários para estabelecerem sob seus domínios uma clientela de indivíduos submetidos a laços de dependência. Em outros termos, procuravam reunir, graças ao patrimônio fundiário, uma força social pelo número de "braços" à disposição. Ser rendeiro pressupunha está ligado ao proprietário fundiário numa relação sinônimo de residência e trabalho simultaneamente. Muitas vezes esta ligação alcançava laços familiares. Expedito ao relatar sobre o que seus pais lhe diziam a respeito da relação entre os rendeiros que residiam nas propriedades de João Pinheiro, lembra: Tinha muitos rendeiros e a fazenda era grande tinha 300 tarefas de terra. Tinha filhos e empregados, ele ficou viúvo e teve 3 rendeiras que morava, assim mamãe contava que dizia minha avó, que morava na fazenda e trabalhava na casa, prá ele, aí era a mãe de mamãe, mesmo veio de Bonfim de Feira, ai foi morar com ele sendo rendeira dele322. Neste depoimento nota-se que a proximidade com a fazenda fez com que as três rendeiras de João Pinheiro se tornassem amásias do proprietário depois que este ficou viúvo. Distinta da descrição que fez o memorialista Gastão Sampaio a respeito do grupo de rendeiros que habitavam na comunidade Negros de São Joaquim, na Fazenda Paus Altos, distrito de Umburanas, em 1920. Descreve como um grupo de parentes negros, calados, de estruturas baixas e fortes, morava em casebres distantes das fazendas e só apareciam na fazenda nos dias determinados de renda, e mais um ou dois em cumprimento as diárias que lhes eram exigidos323. 321 Entrevista de Expedito Pinheiro de Carvalho, concedida em 25 de março de 2011. Entrevista com Expedito Pinheiro de Carvalho, concedida em 25 de março de 2011. 323 SAMPAIO, Gastão. Feira de Santana e o Vale do Jacuípe. Salvador: Bureau Gráfica e Editora, 1982. p. 225. 322 97 Teófilo recordou sobre as histórias contadas por seu sogro que além da produção para o sustento da família, o acréscimo no cultivo era destino aos mercados locais. Notase que era comum entre os trabalhadores o cultivo de suas roças que garantisse a subsistência da família e o excedente da produção era vendido nas feiras. Como bem sugeriu Fraga os libertos cultivavam suas roças, sendo que tal experiência viabilizava a construção de ambiente de autonomia, como as comercializações dos gêneros nas feiras livres legitimavam o arranjo conquistado com a abolição 324. Assim, resultantes de heranças, os sujeitos estabeleceram um ambiente de tradição. As referências às vendas aparecem nas falas de informantes como momento básico na trajetória de seus ascendentes. Ir à venda era vislumbrar um novo espaço de relações sociais a partir da experiência da liberdade. Revelava, ainda, condições de sobrevivência que não precisavam de novas sujeições. Djanira explicou que na região existiam muitas vendas, sendo parte delas de pequenos proprietários rurais e outras eram dos fazendeiros que utilizava para vender mantimentos aos empregados e rendeiros 325, manter uma clientela de dependentes. Isto permite dizer que os encontros dos homens para beber cachaça no findar da jornada de trabalho aludem à posição de cidadão livres. Chalhoub, no seu estudo sobre o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro, no início do século XX, salientou que era comum, naquele contexto, depois do dia da jornada de trabalho ir ao botequim para tomar café e conversar 326. Essa também era a experiência de lavradores pobres em São Gonçalo dos Campos no mesmo período. Para os ex-cativos a liberdade esteve dotada de muitos significados, diversas formas e sentidos socioculturais. Como se movimentar sem autorização dos ex-senhores; o fim dos castigos corporais, a escolha como e o tempo que deveria trabalhar 327. Ser livre, para alguns libertos, como afirma Silvia Lara, parecia estar longe de significar o ideal de “vender a força de trabalho em troca de um salário"328. Em relação à criação de animais podem-se observar práticas análogas ao cultivo de gêneros agrícolas. Como também, a possibilidade de se abastecer com água e lenha, 324 FRAGA, Encruzilhadas da liberdade, p. 173. Entrevista com Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011. 326 CHALHOUB, p. 24. 327 FRAGA, Encruzilhadas da liberdade, 328 LARA, Silvia Hunold. Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil, Projeto História, nº16 (1998), pp. 25-38. São estudos sobre os significados da liberdade após a abolição: CASTRO, Das cores do silêncio; GRADEN, From Slavery to Freedom; FONER, O significado da liberdade; SCOTT, Emancipação escrava em Cuba; FRAGA, Encruzilhadas da liberdade. 325 98 necessárias ao cozimento dos alimentos, e de utilizar a casa de farinha da propriedade, contra o pagamento de 20% do produto, completava o conjunto de meios de que cada grupo dispunha para assegurar sua subsistência. Ao ser lançado na relação de trabalho livre as opções de um ex-escravo, homem ou mulher, eram restritos a economia agrícola. Portanto, o que as memórias revelam sobre a população de ex-escravos e seus descendentes – parece ser um indicativo importante para compreensão das relações naquela cidade de economia fumageira. Transformar a abolição em uma relação de trabalho rendeiro também significava a tentativa que garantisse a subsistência e uma menor incerteza frente ao futuro. Além dos trabalhos de renda e ganho, era costume329 os rendeiros servirem em adjutórios em períodos das plantações, fazendo as covas onde seriam plantados o fumo e as mandiocas. Teófilo lembrou que o trabalho no eito era efetuado pelos rendeiros da fazenda que organizava, por pequenos proprietários vizinhos e, ainda, rendeiros das fazendas da circunvizinhança. Entretanto essas ofertas de mão-de-obra de homens e mulheres eram incertas e inconstantes, pois, a maior quantidade de trabalhadores no adjutório só era obtida quando os fazendeiros ofertavam além da aguardente, a alimentação após o dia de trabalho. Em suas memórias surgem às lembranças de homens e mulheres que se dedicavam a cavar e semear. Em dias de adjutórios formava um grande grupo de pretos que faziam as covas onde seriam plantadas as sementes. Os trabalhadores cantavam a chamada “cantiga de boiada” denominada Boi Roubado ou Corte: Acorda meu vaqueiro acorda Quando o galo canta A galinha rompendo a aurora Quando os pássaro se alevanta Meu vaqueiro é quatro hora Oiê é quatro hora... Direrê ...rerê ...diô Fala moleque baiano Quando eu falo assim Quitorno fala As muié quase me mata Direrê ...rerê ...diô330 329 Sobre o Costume ver E. P. THOMPSON, Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 16-17. 330 Adjutório, denominado: Boi Roubado ou Corte. In. SAMPAIO, Gastão. Feira de Santana e o Vale do Jacuípe. Salvador: Bureau Gráfica e Editora, 1982. p. 225. 99 Vistas em conjunto, as práticas de adjutório ou de ajuda mútua na região possibilitavam aos rendeiros o cumprimento das atividades na roça, além de constituíremse em um motivo a mais para a interação entre eles, reforçando os laços de compadrio, de parentesco e de amizade. Dessa forma, é possível afirmar que o espaço do trabalho na roça, bem como, na venda frequentemente propiciava o estabelecimento de relações sociais diversas entre o grupo analisado. Novamente, é necessário atentar para a função do costume dentro das relações sociais estabelecidas entre os rendeiros331. As práticas de adjutório e os encontros nas vendas não eram apenas o espaço onde se praticava o trabalho na roça, nem onde os homens iam para beber cachaça, comprar ou vender era um espaço de lazer de confraternização, símbolo de liberdade mesmo que em meio às dificuldades enfrentadas no trabalho duro da roça. O clima de descontração, na associação entre trabalho e nas formas de ajuda mútua vigentes na região, realizava-se em combinação com a bebida, a música, e a comida332. Assim, “ao afirmarem sua nova condição, os libertos defrontavam-se com os limites materiais e simbólicos oriundos da velha ordem escravista 333”. Mesmo sem transformar a ordem estabelecida à abolição abalou as bases das relações cotidianas até mesmos nas relações familiares e em alguns conflitos em que tais indivíduos estavam envolvidos. Alguns conflitos na região É necessário, ainda, dizer que as experiências de luta dos ex-escravos e dos descendentes que permaneceram nas atividades agrícolas apresentam momentos de tensões. Infelizmente não encontrei processo crime no início do século XX em São Gonçalo dos Campos com pistas analisar os conflitos do cotidiano naquele município. No entanto, através de processo encontrado no CEDOC em Feira de Santana de capelas e distritos que, por vezes, pertenciam a São Gonçalo dos Campos e Feira de Santana, entremostra-se para tal cotidiano. Assim, a experiência de Maria Bernardina Francisca, de mais ou menos 48 anos, de cor preta, solteira, lavradora, analfabeta, natural e residente em Terra Dura334, em 12 331 THOMPSON, Costumes em comum, p. 14 e 15 THOMPSON, Op. Cit., p. 271. 333 FRAGA, p. 128. 334 Esta região também pode estar relacionada a São Gonçalo dos Campos. 332 100 de março de 1909, prestou uma queixa contra Cirilo Teixeira de Carvalho, de 60 anos, solteiro, lavrador, natural e residente no Distrito de Humildes335, ao Subdelegado de Polícia em exercício, em Feira de Santana, Virgílio Ferreira de Caldas elucida a história de distintos sujeitos nesta conjuntura social. Em sua queixa observa-se aspectos da vida de mulheres pobres, especialmente entre pequenos proprietários e trabalhadores rurais. No depoimento diz: “[...] segunda-feira ao oito do corrente mês indo pisar umas manivas [mandiocas] e não podendo continuar por acha-se doente deixou de pisar, chegando nesta ocasião o dono de casa Cirillo Teixeira de Carvalho, mandando ela respondente continuar pisar as manivas, dizendo ela respondente que não podia continuar a pisar por achar-se doente, este dizendo que ela tinha manhas apoderou-se de uma vara indo contra ela respondente lhe fazendo os ferimentos constantes do corpo de delito, (...)”336. De acordo com o depoimento é possível sugerir que um casal de amásios e tinha uma filha, não se sabe a idade, mas foi que acudiu a Maria Bernardina Francisca. É provável que fosse um casal de rendeiro, pois o documento não faz menção de que eles possuíssem terras, mas que a renda e sustento da família eram obtidos através do trabalho na roça, especificamente o cultivo de mandioca. Portanto, mulher e marido faziam atividade na roça, sendo o pisar manivas umas das tarefas realizadas por Maria Bernardina. Outros aspectos da vida em família podem ser vistos no processo de Maria do Espírito Santo, de aproximadamente 30 anos, casada e moradora em Terra Dura. Neste documento o escrivão situa a localidade como pertencente ao; Distrito de São José, de 12 de janeiro de 1904. Neste Maria do Espírito Santo prestou queixa contra seu vizinho, Mauricio Martins da Silva, por este ter partido o braço direito da mesma quando esta saiu em socorro de seu filho de seis anos de idade, por ter este ido tanger os porcos do dito, os quais haviam entrado na roça de Maria do Espírito Santo 337. De acordo com a testemunha Antônio Florêncio Morais, Maria “deu-se esse facto, achando-se ausente seu marido pelo que andava em procura de meios para a subsistência e 335 Região pertencente a São Gonçalo dos Campos até 1858 quando a capela de Humildes foi desmembrada, passando para Feira de Santana, contudo até os dias atuais, existe conflitos a respeito da localização do distrito e existe permanente contrato entre as localidades. 336 Sumário Crime. A Justiça Pública por seu Promotor (Autor), Cyrillo Teixeira Carvalho (Réu). Feira de Santana – CEDOC/UEFS. Sessão Judiciária, Processos-crimes, 1909. E. 02, Cx. 51, Doc. 854. fls. 7-8. 337 Denúncia. A Justiça pública por seu Promotor (Autor), Mauricio Martins da Silva (Réu). Feira de Santana – CEDOC/UEFS. Sessão Judiciária, Processos-crimes, 1904. E. 01, Cx. 26, Doc. 478. fls. 21-v.22. 101 de sua família”338. Neste depoimento nota-se que o cotidiano de Maria, do marido, como de outros sujeitos na primeira década do século XX era preenchido pelo trabalho roça da família, bem como, havia a tentava de complementar a sobrevivência familiar realizando trabalhos em outras condições. As duas situações, acesso à roça de subsistência, a posição de pequenos lavradores certamente marcava as diferenciações entre os indivíduos na primeira metade do século XX. Em São Gonçalo dos Campos, uma ação foi perpetrada por Rita Gonçalves Cazumbá, Joana Cardoso Cazumbá e Gonçalo Cardoso Cazumbá contra vendo Francisco Lourenço de Almeida e sua mulher D. Angélica de Almeida, em 2 de fevereiro de 1895. Na ocasião alegraram que os enunciados invadiram suas terras e derrubaram suas matas. Solicitavam o embargo das obras e indenização pelos danos provocados339. O documento possui 62 páginas e será analisado no próximo capitulo, contudo, observa-se que os conflitos na região se fez presente entre os diversos sujeitos, no caso, entre uma exescrava e seus filhos e um proprietário de fazenda. Outras situações em diversas regiões do Recôncavo demonstram que os exescravos e seus descendentes lutaram contras às tentativas dos ex-senhores em forçá-los a reviver condições de vida e trabalho do cativeiro; eles solicitaram, em seu favor, à justiça, contaram com aliados, fizeram as notícias de violências ecoassem nos jornais; o auxílio da força policial; recusaram-se terminantemente a trabalhar sem remuneração 340. Vários comportamentos e ações de libertos eram marcados pelo desafio à autoridade ex-senhorial; suas atitudes muitas vezes caminharam no sentido de destruir qualquer autoridade real ou simbólica de que o ex-senhor tentasse ainda dispor341. Em São Gonçalo dos Campos o significado da liberdade referia-se necessariamente adquirir posses de terras. Os ex-cativos lutaram para adquirir suas terras, até mesmo, submetendose ao trabalho rendeiro. 338 Denúncia. A Justiça pública por seu Promotor (Autor), Mauricio Martins da Silva (Réu). Feira de Santana – CEDOC/UEFS. Sessão Judiciária, Processos-crimes, 1904. E. 01, Cx. 26, Doc. 478. fls. 22.v 24. 339 Pedido de Embargo, 2 de fevereiro de 1895, Arquivo Cível e Crime do Fórum João Mendes, São Gonçalo dos Campos. 340 BACELAR, Jeferson. “O negro em Salvador: os atalhos raciais", Revista de História, nº 129,1993. p. 53-65; MACHADO, Maria Helena. “Vivendo na mais perfeita desordem: os libertos e o modo de vida camponês na província de São Paulo do século XIX", Estudos Afro-Asiáticos, nº 25, 1993. p. 43-72. FRAGA, Encruzilhadas da Liberdade, 341 FONER, “O significado da liberdade", p. 19. 102 De acordo com Reis342 alguns libertos de 13 de maio optaram por abandonar as fazendas do interior e seguir para a cidade de Salvador. Muitos decidiram desfrutar a liberdade longe do ambiente em que viveram sob o domínio do senhor. Fraga, também aponta para o intenso movimento de libertos em busca de novas possibilidades de subsistência. Como ocorreu em diversas regiões das Américas, no pós-abolição, com as disputas em torno do acesso à terra. Para alguns libertos o trabalho gratuito durante o período da escravidão lhes dava direito, ao menos, a uma parte das propriedades dos exsenhores343. Fraga postula que logo após a abolição da escravidão ex-escravos que habitavam nas fazendas do Recôncavo baiano seguiram para outros locais em busca de espaços que apartassem laços de categoria escrava e permitissem evidenciar a condição de livre. ... emergiram da escravidão de variadas e criativas maneiras buscaram modificar o rumo de suas vidas em meio à imprevisibilidade e aos limites impostos por uma sociedade que continuou assentada sobre profundas desigualdades sócio-raciais344. Enquanto para os ex-senhores a extinção do cativeiro não deveria implicar em mudança nas antigas hierarquias sociais, para os ex-escravos as escolhas e opções adotadas eram exercidas buscando distanciar as experiências do cativeiro. Assumindo comportamentos vistos como de desafio, “desobediência", alguns ex-escravos demonstraram que a liberdade deveria vir acompanhada do fim das hierarquias vivenciadas na escravidão 345. Para outros as experiências envolvendo trabalho, festa, terra, gênero e animais, no período imediatamente posterior à abolição, são apenas pequenos indícios da busca dos libertos pela liberdade que o 13 de maio engendrou. É compreensivo, nestas situações, que se desenvolveram formas próprias de organização social, produtiva, religiosa e outras formas de manifestações culturais que passaram a funcionar como símbolos característicos da etnicidade que comportam. O trabalho e as diversas relações que mantinham com a sociedade envolvente são próprios da situação enfrentada por estes indivíduos ao longo de sua história. Até mesmo nas afinidades construídas pelos sujeitos entre a sociedade e seus parentes. REIS, João José, “De olho no canto: trabalho de rua na Bahia na véspera da abolição", Afro-Ásia, nº 24, 2000, p. 199-242. 343 FONER, O significado da liberdade, p. 25. 344 FRAGA, Encruzilhadas da Liberdade, p. 26. 345 FRAGA, Encruzilhadas da Liberdade, p. 200. 342 103 Família: ex-escravos e descendentes As narrativas dos descendentes de rendeiros e fazendeiros de São Gonçalo dos Campos, computam as experiências pessoais de rendeiras, em laços afetivos com os coronéis, então proprietários das terras em que habitavam. Por sua vez, “essas histórias pessoais, além de relevantes em sua singularidade, servem para melhor perceber experiências coletivas e iluminar contextos e processos históricos mais amplos e complexos”346. Por outro lado, essas trajetórias de vida devem ser articuladas as relações travadas no seio da sociedade pós abolição para que esta seja compreendida. Assim a situação de amasiamento foi narrada pelos descendentes de rendeiros/as ou escravos/as, como relatou Djanira a respeito da experiência de Teodora, solteira, com vínculos que lembram o cativeiro, comprometeu-se ao proprietário da fazenda como concubina depois que este ficou viúvo, transferida a experiências de outras rendeiras. O próprio, João Pinheiro, teve outras amásias de cor, além de Teodora, Teve filho com as três mulheres. Com Teodora teve, eu, Astera, Manoel, Dionisia e Arnaldo (...) Com a outra que chamava Joana teve Nozinho, Teca, Neca, não tô lembrado que foi o outro, acho que foram esses. E com a outra chamada Candinha foi mãe de Vitalino, Pedro Gomes, Altino e Julinda. Vovó teve 12 filhos bastardos e 1 do casal, Hermílio, foi o mais velho de todos e o legítimo347. As análises sobre essas trajetórias não devem ser simplistas. Supostamente as relações afetivas entre os proprietários de fazenda e suas rendeiras asseguravam para elas condições que permitiam a realização de redes de solidariedades através do parentesco para orientar suas vidas, como ocorria com os escravos no século XIX348. Essas trajetórias indicam a acumulação de uma série de práticas mantidas e partilhadas no período da escravização e, que durante as décadas iniciais da construção das novas relações sociais de liberdade ajudaram a criar um chão de experiências econômicas, sociais, políticas e culturais de famílias descendentes de escravos. 346 REIS, João José. Domingos Sodré, p. 316. Entrevista com Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011. 348 MATTOSO, Kátia Q. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988. 347 104 Figura 4: Djanira Pinheiro de Queiroz Fonte: Arquivo pessoal. Fotografia de Djanira Pinheiro de Queiroz, nascida em 1912. Segunda geração de descendente de escrava, e filha do fazendeiro João Pinheiro de Queiroz. Moradora da fazenda Dendê. Foto tirada em 12 de maio de 2012, no aniversário do seu centenário. A imagem de Djanira Pinheiro de Queiroz demonstra claramente seus traços raciais. Nascida em 1912, a apenas 24 anos após a abolição, vivenciou nas relações de seus ascendentes as reminiscências do período da escravidão, nas relações dos rendeiros, no amasiamento de seus pais, nas experiências contadas pela mãe, nas lembranças do pai, um coronel que carregava a tradição do século XIX e, por fim, no trato desigual entre os filhos das amasias rendeiras e o filho da esposa. As narrativas de Diva, igualmente, podem iluminar alguns aspectos importantes sobre as experiências do trabalho e os laços sociais construídos no tempo posterior à liberdade do cativeiro. Mulheres pobres, trabalhadoras e negras de São Gonçalo dos Campos no final do século XIX e início do século XX, compartilhavam a experiência comum de ocupar um lugar social subalterno. Estavam empenhadas nos trabalhos agrícolas tais como os homens, entretanto, elas vivenciavam situações cotidianas determinada pela relação de gênero e paternalista. A visão de Dona Diva é bastante crítica sobre sua experiência das mulheres rendeiras na a produção de fumo e nas outras atividades desenvolvidas na roça, além do trabalho desempenhado como de costume, muitas tornavam-se amasias dos proprietários das fazendas em que eram rendeiras. Expôs que Tibúrcio foi acometido por uma doença sexual o médico orientou que este estivesse relação sexual como meninas negras virgens para curar da enfermidade. Sendo assim, Tibúrcio passou a ter relações sexuais com as filhas de ex-escravas de sua fazenda e das fazendas de seus parentes, circunstâncias 105 vivenciadas por sua avó, na idade muito jovem. Freyre, em Casa Grande & Senzala, relata as negras virgens, com 12 a 13 anos de idade, eram contaminadas de sífilis pelos senhores. A causa disso era a ideia de que o melhor depurativo para o sifilítico era meninas negras virgens. Porque por muito tempo dominou no Brasil a crença de que para o sifilítico não há melhor depurativo que uma negrinha virgem. O Dr. João Álvares de Azevedo Macedo Junior registrou, 1869, o estranho costume, vindo, ao que parece, áreas pernambucana e fluminense dos velhos engenhos de açúcar. Segundo o Dr. Macedo seriam os blenorrágicos que o “bárbaro prejuízo” considerava curados se conseguissem intercurso com mulher púbere: “a inoculação deste vírus em uma mulher púbere é o meio seguro de o extinguir em si.”349 As terríveis influências dos costumes vindo, especialmente do século XIX continuavam se manifestando no cotidiano de mulheres jovens naquela cidade. Observei ainda nos jornais que circulavam em São Gonçalo nos anos de 1920 anunciavam entre os remédios para cura de moléstias que tinha origem a impureza do sangue o Elixir, entre outros. Nota-se nessas ações uma contradição social, ao mesmo tempo, uma relação de negociação entre proprietário e despossuídas, o que vai possibilitar vantagens para as duas partes. Neste caso, para ele relações mais próximas é um fator basilar para a continuidade e garantia de um contingente de pessoas sobre sua disposição e para elas acesso as terras por tempo indeterminado. Figura 5: Elixir de Nogueira Fonte: Jornal O Campesino, ano 2, nº 66 – cidade de São Gonçalo dos Campos, (Bahia) 25 de março de 1921. 349 Freyre, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarca. 22 ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olypio editora, 1983, p. 317. 106 É no ambiente da fazenda que se encontra os homens brancos amasiando-se ou apenas mantendo relações sexuais com muitas mulheres negras, com filhos considerados ilegítimos. Assim, a informante traz lembranças a respeito das relações instituídas por seu avô Tibúrcio Alves Barreiro 350, nascido em 14 de abril de 1855 351, negociante, proprietário de grandes extensões latifundiárias em São Gonçalo dos Campos, no final do século XIX e da primeira metade do século XX e conselheiro da Câmara na primeira República, entre 1897 a 1930352. Tibúrcio aparece em diferentes períodos da história. Nasceu em 1855, anos posteriores ao tráfico transatlântico de escravo e a promulgação da Lei de Terras. Vê sendo estabelecida a Lei do Ventre Livre, a Lei do Sexagenário e, por fim a abolição da escravatura. Nos anos posteriores a Proclamação da República, Tibúrcio aparece como conselheiro da Câmara e um grande proprietário de terras na cidade, com uns consideráveis números de rendeiros em suas propriedades353. Figura 6: Tibúrcio Alves Barreiros Fonte: Arquivo pessoal da família. Fotografia de Tibúrcio Alves Barreiros. Negociante e proprietário de grandes extensões latifundiárias em São Gonçalo dos Campos no final do século XIX e da primeira metade do século XX. Foi conselheiro da Câmara na primeira República entre 1897 a 1930. 350 Entrevista com Diva Ramos da Silva, concedida em 7 de outubro de 2012. Data encontrada na lápide no cemitério de São Gonçalo dos Campos. 352 TEIXEIRA & ANDRADA, op. Cit., p. 81. 353 Entrevista com Diva Ramos da Silva, concedida em 7 de outubro de 2012. TEIXEIRA & ANDRADA, op. Cit., p. 81; Certidão de Terras de 1903, Arquivo do Fórum João Mendes; Lápide no cemitério de São Gonçalo dos Campos. 351 107 Embora não conste nos documentos consultados a cor do fazendeiro Tibúrcio Alves Barreiro, a partir da imagem acima nota-se que é um homem mestiço. Provavelmente ascendeu socialmente, tornando-se um grande proprietário rural e um representante político local. Importante lembrar que possuía grandes extensões de terras, sendo que uma das suas fazendas, a Cruz, limitava-se com terras da família Cazumbá. Diva relatou que Tibúrcio teve muitas amásias negras e sua avó Maria foi uma delas, Ai tinha minha avó que era sobrinha de Bibina. Filha da escrava deles. E ele passou a criar casado com minha avó dentro de casa. Bem novinha, de tão novinha que ela não gostava que eu chamasse de vó, me botou para chamar madrinha, tinha desprezo que eu chamasse vovó. E era moderna, era jovem. Ai quando a esposa dele viu minha avó tava de barriga. Era tão moderna, ela gostava tanto da minha avó que ela não quis dar castigo chamou a empregada. Bota essa negra no carro ai pra puxar. A mãe da minha avó foi quem recebeu o castigo. É deu castigo a mãe, não deu castigo a minha avó. Ai ele arranjou outro e casou a minha avó.354 A história que Diva descreveu sobre a trajetória de sua avó, Maria, ingênua, filha da escrava do irmão de Tibúrcio, Maximiliana, ao mesmo tempo, revela que as mulheres egressas da escravidão eram mais submissas do que os homens aos proprietários dos domínios fundiários em que residiam e trabalhavam. Das experiências afetivas que mantinham com os homens brancos geravam frutos que deixavam ainda mais presas aqueles limites territoriais. Ou pode observar que tais mulheres poderiam se beneficiar, usando esses amasiamentos para obter a posse de terras pelo quinhão que recebiam por causa dos filhos ilegítimos que tinham com os proprietários. Em se tratando de um contexto no qual o homem assumia o papel de provedor, e que as mulheres saíam da casa paterna “para se casar” e para “seguir seus esposos”, o coronel Tibúrcio Barreiros formava os casamentos entre as mulheres que tiveram relação sexual com ele, com homem que, também, habitavam em suas terras como rendeiros 355. A informante não disse se todas as mulheres tiveram filhos com Tibúrcio, porém lembrou que seu avô teve muitos filhos naturais com mulheres negras. Importante lembrar, que mesmo estando subordinadas aos proprietários de terras, pais, maridos e irmãos mais velhos, essas mulheres exerciam papéis que, muitas vezes, 354 355 Entrevista com Diva Ramos da Silva, concedida em 7 de outubro de 2012. Entrevista com Diva Ramos da Silva, concedida em 7 de outubro de 2012. 108 estavam longe do confinamento ao ambiente doméstico, caso relatados nas experiências acima. Entretanto, suas vidas eram povoadas de incerteza e receio de que passo dar e em que direção, assim, o fato de terem tecido relações próximas aos proprietários pode simbolizar estratégicas que deixaram marcas sociais, suficientes para enfraquecer ou modificar as relações de dominação que sua família estava submetida. Como lembra Giovanni Levi, [...] a participação de cada um na história social não pode ser avaliada somente com base em resultados perceptíveis: durante a vida de cada um aparecem, ciclicamente, problemas, incertezas, escolhas, enfim, uma política da vida cotidiana cujo centro é a utilização estratégica das normas sociais [...] grupos e pessoas atuam com uma própria estratégia significativa capaz de deixar marcas duradouras na realidade política que, embora não sejam suficientes para impedir as formas de dominação, consegue condicioná-las e modificálas356. Finalmente, esse contexto expressava como os jogos simbólicos e materiais eram manipulados pelos indivíduos numa sociedade que os distribuía de modo desigual. Imagem 7: Parentes de Tibúrcio Alves Barreiros Fonte: Arquivo pessoal da família. Fotografia de D. Diva Ramos da Silva, nascida em 1923, neta de Tibúrcio Alves Barreiros. Do lado esquerdo Chiquinha e do lado direito Augusta. Fotografia tirada aproximadamente entre os anos de 1940 a 1960. 356 LEVI, Giovanni. A Herança Imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 45. 109 Augusta é a mestiça a direita filha ilegítima de Tibúrcio com rendeira Bibina, ao centro encontra-se outra filha ilegítima, Augustinha, com a rendeira e filha de escrava Maria e a esquerda Chiquinha Barreiros, esposa de Marcelino, filho da Teodora, também rendeira e ilegítimo de Tibúrcio. Respondendo alguns questionamentos acima, na ocasião da partilha da herança cada filho/a das rendeiras receberam 75 tarefas de terras, exceto Marcelino por não ter sido reconhecido nada herdou357. Já os filhos das rendeiras de João Pinheiro, Djanira, Astera, Manoel, Dionisia e Arnaldo (Filhos de Teodora); Nozinho, Teca, Nena (filhos de Joana); Vitalino, Pedro Gomes, Altino e Julinda (filhos de Candinha), receberam cada 8 tarefas de terras, e o filho legítimo do proprietário, Hermínio Pinheiro de Queiroz, uma fazenda com aproximadamente 300 tarefas de terra. O filho de Joana, Diomedes, com Manoelzinho Martins, mestiço, não recebeu herança de João Pinheiro 358 . Portanto, a partir dos jogos “limitados” essas rendeiras construíram seu lugar na trama social. Outra história contada por Diva foi de uma família de rendeiros que habitam em uma das fazendas de Tibúrcio. Aqueles moradores fugiram das terras daquele proprietário, depois que este percebeu a presença das jovens filhas do rendeiro 359. A título de ilustração aprofundei a pesquisa para saber a respeito dos casamentos registrados nos documentos eclesiásticos. A saber, as certidões entre o período de 1891 a 1910 não constam a cor dos indivíduos nubentes. Por esse motivo, busquei nas certidões de óbitos e de batismos os registros que constavam uniões estáveis e reconhecimento de paternidade nas diversas camadas sociais. No exame dos dados do ano de 1903 observei que entre os batismos efetuados 20% dos registros eram de mães solteiras 360. Os pais são nomeados em 80% dos registros, nota-se nestes crianças pretas e pardas legítimas. Com isso suponho que os ex-escravos formaram famílias e comunidades com parentes e/ou amigos próximos em torno da propriedade em que eram rendeiros. Os relatos orais vão evidenciam, ainda, que os rendeiros da fazenda Dendê possuíam famílias e algumas redes sociais 361. De acordo com a pesquisa do registro civil feita por Ana Lugão Rios, Paraíba do Sul, parte dos libertos conseguiu se estabilizar em pequenas propriedades, através 357 Entrevista com Diva Ramos da Silva, concedida em 7 de outubro de 2012. Entrevista com Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011. 359 Entrevista com Diva Ramos da Silva, concedida em 7 de outubro de 2012. 360 Livro de Batismo de 1903 a 1904. Arquivo da Arquidiocese de Feria de Santana. 361 Entrevista com Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011. 358 110 compra, de arrendamentos ou de trabalhos de meação 362. Não disponho de dados a respeito da instabilidade das famílias de libertos em São Gonçalo dos Campos, contudo posso conjeturar que no período do pós-abolição o arrendamento tornou-se uma das alternativas de sobrevivência da população de libertos e de seus descendentes. Como observou Rios para Paraíba do Sul, em São Gonçalo dos Campos a família nuclear completa e extensa existiu entre pretos e pardos desde os meados do século XIX. Também, é lícito supor que nos últimos anos da escravidão, em São Gonçalo, existia um considerável número de cativos e pretos livres, homens e mulheres que, provavelmente colaborou para a afirmação familiar no pós-abolição. Entre os anos de 1900 e 1915, os registros eclesiásticos de batismos revelam que número de crianças registradas como legítimas foi maior do que de crianças registradas como naturais. Como foi encontrado por Rios, entre 1889 e 1920, na Paraíba do Sul, os registros de batismos de crianças pardas e pretas em São Gonçalo dos Campos insinuam a presença de famílias nucleares e ampliadas no período anterior a 1920. O acesso à terra contribuiu para a formação das famílias ao longo das primeiras décadas do século XX, contudo não descarto outros elementos, como a tradição de libertos e escravos casar no período do cativeiro. Neste sentido retornarei a análise para o período de 1835 e 1882 para compreender como se constituíam as famílias de libertos e escravos. Usei para analisar a sociedade a Relação de Número de Fogos e Moradores do Distrito da Freguesia de São Gonçalo dos Campos de Nossa Senhora da Cachoeira 363. Esse registro é rico em informações acerca das famílias, idade, estado civil, cor naturalidade e condição social daqueles moradores, porém ele não foi datado, ou se foi os danos ao documento destruíram partes importantes dos dados. De acordo com Barickman esse foi o recenseamento feito, em 1835, pelas paróquias, pelo padre Vicente Ferreira Gomes. O livro possui um mapa com os dados gerais da população dividindo tais em 5 povoações que são elas: povoação da Matriz apresentava uma população de 2.721 livres, 1.932 escravos e 144 libertos distribuídos em 662 fogos, essa povoação de número maior de habitantes. A povoação de Santa Luzia com uma população de 2.476 livres, 438 escravos e 191 libertos distribuídos em 584 fogos. Já a povoação de Afligidos possuía 362 RIOS, A. L. Família e Transição... Op. cit. Principalmente o capítulo 3. BAHIA. APEB, Relação de Número de Fogos e Moradores do Distrito da Freguesia de São Gonçalo dos Campos de Nossa Senhora da Cachoeira. Maço 5683, S/D. 363 111 uma população de 1.041 livres, 1.296 escravos e 13 libertos distribuídos em 400 fogos. Na povoação de Mercês foram encontrados 1.040 habitantes livres, 598 escravos e 48 libertos distribuídos em 239 fogos. Por fim a povoação de Humildes com os moradores distribuídos em 988 livres, 177 escravos e 139 libertos, em 246 fogos364. Figura 8: Livro de Relação de Número de Fogos e Moradores do Distrito da Freguesia de São Gonçalo dos Campos de Nossa Senhora da Cachoeira Fonte: Arquivo pessoal. Foto tirada em junho de 2013. Capa do BAHIA. APEB, Relação de Número de Fogos e Moradores do Distrito da Freguesia de São Gonçalo dos Campos de Nossa Senhora da Cachoeira. Maço 5683, S/D. Este documento apresenta dados que demonstram que a freguesia de São Gonçalo dos Campos possuía uma diversidade social. No caso os recenseadores registraram a presença de lavradores como chefes dos fogos, escravos, domésticos e agregados que poderiam ser uma mesma categoria. Indicaram também o estado civil dos moradores, como a cor, idade, e condição social. Para se ter uma ideia o período de 1835 a 1870 já existia essa diversidade social na freguesia. O registro de fogos e moradores da freguesia de São Gonçalo dos Campos atesta isso, como, Maria do Espírito Santo, 60 anos de idade, parda, viúva, lavradora, liberta, com seus dois filhos: Plácito, 20 anos de idade, pardo, solteiro, e Maria, 28 anos de idade, parda, solteira, embora o registro não mencione a profissão, supostamente fossem também lavradores, possuíam 3 escravos: Ilias, 60 anos de idade, preto, solteiro; João, 50 anos, preto, africano; Maria, 16 anos, preta, solteira; preta, e como agregada, 364 BAHIA. APEB, Relação de Número de Fogos e Moradores do Distrito da Freguesia de São Gonçalo dos Campos de Nossa Senhora da Cachoeira. Maço 5683, S/D. 112 Maria Andrade, 90 anos, preta, solteira e liberta365. Além de ser liberta, possuíam em suas dependências uma liberta que era sua agregada. Entre os domésticos encontrei brancos, português, e sujeitos de variadas faixas etárias. É o caso de Antônio Joaquim do nascimento, de 70 anos de idade, casado, português, naturalizado, lavrador, doméstico. Ainda deparei com Antônio, branco, solteiro de 3 anos de idade. Os proprietários que declaram possuir escravos variavam de 1 até 66 escravos. Como foi o caso de José Ribeiro de Oliveira, branco, 73 anos, lavrador, casado com Ana Joaquina de São José, branca, 39 anos e seus 8 filhos eram proprietários de 66 escravos. Consta entre a população deste fogo um agregado: Fabio, preto, solteiro, 80 anos, não sabemos se liberto ou não. Provavelmente José Ribeiro de Oliveira era o detentor de uma das maiores riquezas da freguesia. Proprietário de uma grande quantidade de escravos possibilitava uma diversidade de famílias de cativos. Outros casos podem ser ainda citados como: Manoel Borges Falcão, branco, 70 anos, lavrador, casado com Maria Josefa, branca, 60 anos de idade, possuía 29 escravos. Antônio José de Oliveira, branco, 43 anos, lavrador, casado com Maria Josefa, branca, 38 anos, com seus filhos José, branco, 15 anos, Maria, branca, 14 anos, Joana, branca, 13 anos, Manoel, branco, 10 anos, Emília, branca, 5 anos e Joaquim, branco, 6 anos, possuíam 15 escravos. José Borges Falcão, branco, 40 anos, lavrador, casado com Ana Maria, branca, 40 anos com seus 6 filhos eram proprietários de 9 escravos366. Havia caso de famílias sem escravos como Joana Machado, preta, solteira, 25 anos, costureira e seu filho Manoel, preto, solteiro, 9 anos367. A partir desses dados nota-se a diversificada formação social nesta região, uma vez que os registros no livro analisado apresentam uma diversidade de formação familiar. Sendo, que no caso dos escravos, a maioria dos enlaces acontecia entre escravos do mesmo proprietário, entretanto, não descarto a suposição que havia caso de casamentos entre cativos de senhores diferentes. As evidências demonstram que os libertos alcançaram autonomia econômica como foi o caso de Luís Alves Souto, pardo, 45 anos, lavrador, liberto, casado com Angélica Maria, parda, com 33 anos. O casal de libertos tinha 4 filhos e ainda 43 escravos, aparecem registrados como habitantes do fogo Luís, pardo, solteiro, 12 anos, liberto e 365 BAHIA. APEB, Relação de Número de Fogos e Moradores do Distrito da Freguesia de São Gonçalo dos Campos de Nossa Senhora da Cachoeira. Maço 5683, S/D. p. 16. 366 BAHIA. APEB, Relação de Número de Fogos e Moradores do Distrito da Freguesia de São Gonçalo dos Campos de Nossa Senhora da Cachoeira. Maço 5683, S/D. 367 BAHIA. APEB, Relação de Número de Fogos e Moradores do Distrito da Freguesia de São Gonçalo dos Campos de Nossa Senhora da Cachoeira. Maço 5683, S/D. 113 Profílio, pardo, solteiro, 10 anos, liberto368. Como esse, inúmeras experiências de libertos como proprietários rurais foram exibidas no censo. Outro exemplo é o de Basílio Alves, cabra, 60 anos, lavrador, liberto casado com Ana Francisca, preta, 50 anos, liberta, eram proprietários de 10 escravos tendo ainda entre a população do fogo um liberto chamado Simplício, pardo, solteiro de 25 anos e Inácio Alves, cabra, solteiro, 70 anos de idade e agregado. Estevão J. Cerqueira, pardo, 50 anos, lavrador, liberto, casado com Francisca Xavier de Oliveira, parda, 45 anos, liberta. Eles, contudo, se tornaram proprietários 14 cativos e sendo Luísa, parda, 50 anos, solteira, liberta, designada como doméstica, ou mesmo agregada com seus 6 filhos 369. Essas experiências indicam que escravos e libertos no século XIX puderam, em alguma medida, cultivar laços familiares e manter redes sociais formuladas no tempo de cativeiro, como também indica que os libertos depois que adquiriam a liberdade se tornavam agregados nos fogos de seus antigos proprietários ou de outros indivíduos. Nos inventários entre 1862 e 1882, deparei-me com vários casos de mulheres descritas como mães solteiras. Todavia é possível que essas mães solteiras vivessem em uniões consensuais estáveis e que as informações registradas apenas abrangessem a finalidade de cientificar a genealogia dos filhos das escravas. Como consta no inventário de Maria Carolina do Amor Divino, 1869-1974, os escravos Vitória, cabrinha de 4 anos pouco mais ou menos e Juveniano, cabrinha de mais de um ano de idade filhos da escrava Joana, crioula, de boa idade, do serviço da lavoura370, seguiriam a linha materna sendo também escravos. Segundo Iraci del Nero da Costa e Francisco Vidal Luna: Ao longo da história brasileira houve predomínio maciço, entre os cativos, do intercurso sexual não legitimado, vale dizer: parcela ínfima das uniões a envolver pelo menos um parceiro escravo via-se sacramentada pela Igreja (...)371. Outro exemplo é o de Teodora, mulatinha, filha da escrava Maria, crioula, velha, que sofria de moléstia de hemorroidas, escravas de Maria Jerônima, 1829-1862372. Ainda 368 BAHIA. APEB, Relação de Número de Fogos e Moradores do Distrito da Freguesia de São Gonçalo dos Campos de Nossa Senhora da Cachoeira. Maço 5683, S/D. 369 BAHIA. APEB, Relação de Número de Fogos e Moradores do Distrito da Freguesia de São Gonçalo dos Campos de Nossa Senhora da Cachoeira. Maço 5683, S/D. 370 Inventário de Maria Carolina do Amor Divino, 1869-1974. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198. 371 COSTA, Iraci del Nero da, LUNA, Francisco Vidal. “Vila Rica”: nota sobre o casamento de escravos (1727-1826), Revista África, São Paulo, Centro de Estudos Africanos (USP, (4): 105-109, 1981. 372 Inventário de Maria Jerônima de Trindade, 1829/ 1862. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 218. 114 temos Geralda, preta, de 17 anos e Manoel, preto, de 13 anos, solteiros, filhos da escrava Luisa, 36 anos, solteira, todos do serviço da lavoura, no valor de dois contos de reis 373, também, Geralda, idade de 16 anos, mais ou menos, solteira, da lavoura, natural da Freguesia dos Remédios, filha natural da escrava Maria 374, como raramente acontecia, verifiquei um caso em que foi dada a filiação pelo pai e não pela mãe _ o mulatinho sem nome filho do escravo Manoel375. Provavelmente a explicação para este fato seja que a mãe estivesse falecida e a criação ficou sob o encargo do pai. No censo de 1872, entre os escravos 551 do sexo masculino casado e 137 do sexo feminino 376. Pelo sexo observa-se que a maioria dos escravos se casava com libertas, talvez o casamento se efetivasse como forma de proteger os futuros filhos, uma vez que ser escravo ou era determinado pelo ventre materno: filho de pai escravo com mãe liberta já nascia sob o signo da liberdade. Porém, mãe escrava e pai livre determinavam nascimento sob o jugo do cativeiro. Os documentos não sinalizam casamento entre forros, provavelmente porque a situação financeira não permitia a realização, apesar disso, não significa dizer que elas não constituíssem laços familiares, relações afetivas estáveis e duradouras. Ainda os escravos e forros poderiam constituir solidariedades para além do parentesco para orientar suas vidas377. Como bem adverte Cacilda Machado 378, o casamento e o compadrio foram “atos sociais estratégicos” para arregimentar mão-de-obra, o que parece suceder nas relações sociais estabelecidas nas últimas décadas da escravidão e no pós-abolição na sociedade de São Gonçalo dos Campos. Tais relações demonstram que mesmo depois de conquistar a liberdade, libertos mantinham laços familiares com sujeitos presos à estrutura escravista. De acordo a Slenes o casamento, para os escravos, significava um ganho maior no controle sobre o espaço da moradia, determinando, dessa forma, uma melhora na sua qualidade de vida 379, o que 373 Escritura de doação em causa dote de Joaquim Pedreira Daltro e sua mulher Anna Joaquina da Trindade, 1877. BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro do Tabelionato n. 1, p. 2. 374 Procuração de Bernardino Alves Barreiros, 1877 BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro do Tabelionato n. 1. 375 Inventário de Maria Jerônima de Trindade, 1829/ 1862. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 218. 376 Censo de 1872. 377 MATTOSO, Kátia Q. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988. 378 MACHADO, Cacilda. “Casamento & compadrio”. Estudo sobre relações sociais entre livres, libertos e escravos na passagem do século XVIII para o XIX (São José dos Pinhais – PR). XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, Caxambu - MG, 2004. 379 SLENES, Robert. Na senzala, uma flor. Esperanças e recordações na formação da família escrava. Brasil sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 150. 115 pode ser sugerido para os libertos nesta região. Estudos recentes irão propor uma análise da família cativa e liberta levando-se em consideração que: Pelo casamento e, antes ou depois, por meio do nascimento de uma criança escrava, vários indivíduos criavam ou estreitavam laços que, nas difíceis circunstâncias da vida em escravidão, eram laços de aliança. A mãe e o pai da “cria” (como aparecem nas fontes) viam reafirmando o propósito comum de juntarem suas forças de modo a melhor viver a vida possível. Ambos arrumavam um compadre e, muitas vezes, uma comadre. E, talvez, cunhados, cunhadas, sogros e sogras. E se a criança, o que não era fácil, sobrevivesse até a idade de procriar, muito mais alargada ainda seria essa rede de laços de solidariedade e aliança. Parece óbvio que a criação de laços parentais fosse desejo de todos os escravos. (...)380 Os dados referentes a São Gonçalo dos Campos não permitem uma elaborada análise desta questão, uma vez que as fontes são dispersas. Mas, a partir do que foi encontrado pode-se perceber que a presença da família escrava e, consequentemente, a de libertos. O que poderia facilitar a permanência e o convívio de gerações na mesma fazenda na segunda metade do século XIX e na primeira década do século XX. Todavia a presença de informações sobre casamento escravo nos inventários não é comum, com frequência encontrei escravas avaliadas com seus filhos e sem a denominação de seus respectivos maridos. Como notei ainda no inventário de João Coelho de Almeida, 1882, do escravo Alexandre, preto, 70 anos, casado com Joaquina, preta, 60 anos, a qual teve 8 filhos, sem, contudo, mencionar a paternidade de Alexandre. Os filhos são: Feliciano, crioulo, 13 anos; Ovídio, crioulo, 5 anos; Trajano, crioulo, 1 ano; Sabina, crioula, 25 anos; Joana, crioula, 21 anos; Brígida, crioula, 22 anos; Tomazia, crioula, 20 anos; Saturnina, crioula, 7 anos todos do serviço da lavoura381. Observei que o inventariante não menciona os ingênuos, nascidos depois da Lei do ventre livre. Tabela 2: Taxa de natalidade dos escravos da Fazenda de João Coelho de Almeida em 28 de abril de 1882 Matricula Nome Cor Idade Filiação 149 Alexandre Crioulo 60 Desconhecida Pet. Trabalho Qualquer um 750 Joaquina Crioula 50 Desconhecida Qualquer um 751 José Crioulo 23 Desconhecida Qualquer um 380 FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, 1790-1850. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1997. p. 173-174. 381 Inventário de João Coelho de Almeida, 1882. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 218. 116 752 Jorge Crioulo 24 Desconhecida Qualquer um 753 Feliciano Vend. Crioulo 13 Leg.Joaquina Qualquer um 754 Ovídio Crioulo 5 Leg. Sabina Qualquer um 755 Trajano Mov. crioulo 1 Leg. Joaquina Qualquer um 756 Sabina 25 Brígida 758 Thomazia Crioula 20 759 Joanna 21 760 Saturnina 761 Eduarda Vendeu crioula Deixou crioula Crioula Filha legitima de Joaquina Filha legitima de Joaquina Filha legitima de Joaquina Filha legitima de Joaquina Filha legitima de Joaquina Filha legitima de Joaquina Qualquer um 757 Deixou crioulo Crioula 22 7 6 Qualquer um Qualquer um Qualquer um Qualquer um Qualquer um Fonte: Inventário de João Coelho de Almeida, 1882. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 218. Pela análise da matrícula dos cativos é provável que as relações entre eles e a “permanência” da escravaria resultou em diversas gerações dessas famílias que fizeram aumentar o número de escravos do proprietário. Como Timóteo, cabra, 7 anos, ingênuo; Faustino, cabra, 6 anos, ingênuo; e Isidoro, cabra, 3 anos, ingênuo, todos filhos de Brígida, esta filha da escrava Joaquina. Também, Clementina, preta, 7 anos, ingênua; Inês, preta, 4 anos, ingênua; e Fortunata, 3 anos, ambas filhas da escrava Tomazia, esta filha de Joaquina382. Nesta propriedade notei três gerações de escravos, porém apenas um registro de casamento. A formação de famílias negras e as relações sociais estabelecidas pelos escravos e libertos deve ser considerada mediante as experiências compartilhadas em relação ao trabalho, laços afetivos, casamento, moradia, dentre outros aspectos que marcaram intensamente suas vivências no contexto escravista. Bem como argumenta Almeida que “os cativos circulavam entre as roças, sítios, fazendas, povoados, arraiais e a vila, onde 382 Inventário de João Coelho de Almeida, 1882. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 218. 117 compravam e vendiam produtos para seus senhores, lavavam roupas no rio e participavam de batuques, sorrateiramente, durante a calada da noite, em outras roças” 383 Os indivíduos Alexandre e Joaquina se casaram tiveram netos e assim houve uma elevação no número de braços para trabalhar no momento posterior ao Tráfico Atlântico ou mesmo posterior a Lei do Ventre Livre. Talvez o fator econômico favorecesse a existência dessas famílias, possibilitando ao proprietário gozar de “estabilidade econômica” suficiente para não se desfazer dos cativos, principalmente das suas famílias e com isso manter uma reprodução natural384. No caso encontrado na Fazenda Sobrado, de Epídio Lopes de Almeida, 18691871, o escravo Pedro, crioulinha, de 1 ano mais ou menos e Joana, cabrinha, 5 anos um pouco mais ou menos, ambos filhos de Juliana, crioula, do serviço da lavoura, 35 anos mais ou menos merece atenção pela declaração do escrivão: Joana, cabrinha filha da mesma Juliana com idade de 5 anos mais ou menos que avaliamos em 330,00 reis a qual foi dada em quinhão ao pai comum Egídio, na partilha pelo juízo de órfãos de Cachoeira de conformidade da dita escritura, fazendo esta Joana, parte da produção dos filhos da mesma Juliana pertencendo este valor ao casal 350,000 reis385. A citação acima apresenta um fato importante na sociedade escravista no final do século XIX: a natalidade das escravas. Fato curioso haja vista a sociedade estava atravessando momentos finais da escravatura. Assim, as informações acima expressam a preocupação dos senhores em manter sua escravatura através do índice de natalidade de suas escravas. A busca pela estabilidade, pela autonomia, e pela possibilidade de ampliação familiar estava ligada às condições de trabalho empregada na terra. No que se refere aos anos posteriores a abolição, de 1888 a 1910, de forma, um tanto quanto interessante, a presença de padrinhos nos registros batismais permite afirmar que o ato de batizar representava uma prática que formava laços de compadrio. Como exemplo a família Borges Falcão batizou muitas crianças de cor no período de 1903 e 1915386. Em 25 de julho de 1903, Salustiano Borges Falcão e Tomazia Moreira, batizaram Odília, parda, de 383 ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. Alforrias em Rio de Contas, século XIX. Salvador: UFBA, 2006. p. 32. (Dissertação de mestrado) 384 BARICKMAN, op.cit. 385 Inventário de Epídio Lopes de Almeida, 1869-1871. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 218. 386 Livro de Batismo de 1903 e 1904; 1913 e 1915. Arquivo da Arquidiocese de Feria de Santana 118 4 meses, filha natural de Maria Helena. Em outro de 26 de setembro de 1903, Alcino Borges Falcão e Maria Borges Falcão batizaram Maria, pardo, de 6 meses, filha legitima de Eduardo Manoel Reys e Maria Ozina do Espírito Santo 387. Nestes batismos há uma lógica nas escolhas dos padrinhos, supostamente as iniciativas foram decisivas para construir arranjos sociais, uma vez que nas questões testamentárias os afilhados, geralmente recebiam seu quinhão, como ocorreu com João José Pedreira de Cerqueira, filho natural de Manoel Pedreira de Cerqueira e Maria Angélica de Jesus. Em seu testamento deixou para seu afilhado Manoel Inácio Pedreira um quinhão de terras na fazenda Sobrado. A afilhada Sergia, filha de Manoelina Pedreira, 300 mil reis. As sobrinhas Sabrina Pedreira e Joana Pedreira, filhas de seu finado irmão Felipe Pedreira Cerqueira, 300 mil reis. Para as filhas de seu compadre Manoel Mariano de Freitas, Virgínia, Ascelina, Maria Clementina e Severiano a quantia de 200 mil reis. A afilhada Maria, filha de Alberto Alves Ferreira, o valor de 100 mil reis. A afilhada Maria Gerturdes, escrava de sua mãe deixou a quantia de 200 mil reis 388. Tudo leva a crer que João José Pedreira de Cerqueira não era um grande proprietário fundiário, uma vez que, no testamento não incluía grandes propriedades, casa, bens de raiz, gado e móveis, apenas um quinhão de terra e uma quantia em dinheiro. Levando em conta o testamento de João é possível sugerir que outros proprietários fundiários também distribuíram quantia dos seus bens aos seus afilhados. Também a família Cazumbá batizou muitas crianças no período correspondente. Aos 7 dias de junho de 1903 Marcolino Cazumbá e Benvinuta Machado da Silva batizaram a Gregório, 7 meses, filho natural de Lourença Maria da Silva 389. Ainda encontrei a certidão de Guimar, nascido em 2 de setembro de 1914, filho legítimo de Clarinho José dos Santos e de Teófila Madalena dos Santos, batizado por Luiz Cardoso Cazumbá e Clementina Pereira 390. Tratando-se de batismos de crianças da família Cazumbá não foi encontrado entre os registros. Esse fato denota que nem todas as crianças eram batizadas no período. A constituição desses laços afetivos e apadrinhamento, no início do século XX é fruto da tradição social construída na sociedade escravocrata. Importante notar que tal tradição teve sua parcela de contribuição para que muitos indivíduos egressos da escravidão permanecem em contextos muito parecidos aos 387 Livro de Batismo de 1903 a 1904. Arquivo da Arquidiocese de Feria de Santana Testamento de João José Pedreira de Cerqueira, 1887. BAHIA, Arquivo Público do Estado da Bahia, Provincial. 389 Livro de Batismo de 1903 a 1904. Arquivo da Arquidiocese de Feria de Santana 390 Livro de Batismo de 1913 a 1915. Arquivo da Arquidiocese de Feria de Santana 388 119 que viviam. Nesta conjuntura, ampliou-se a interação entre os indivíduos, ligando-os por laços de família, parentesco, relacionamentos afetivos e comunitários, o que acabou por legar situações complexas e extraordinárias. Também, as diversas formas de ligações sócio afetivas em que os sujeitos de cor estavam inseridos, principalmente o compadrio, através dos laços espirituais instituídos no ato do batismo, uniam definitivamente o batizando e seus padrinhos, e esses aos pais da criança, sendo tais laços levados para fora do âmbito da Igreja, na vida social dos envolvidos 391. Portanto, a conjuntura acima exibe alguns pontos que ligavam as experiências dos sujeitos anteriores e posteriores a abolição. Tais indivíduos aparecem envolto em uma complexidade de relações: escravo, ex-escravos, rendeiros, livre, liberto, pequenos produtores, compradores, vendedores, proprietários, realizando hipoteca, comprando alforria, bem como, pai, mãe, filho, sobrinho, tio, avó, padrinho, afilhado, compadre, ainda, como réu, testemunha, vítima, encontrando-o em contextos sociais diversos. Assim, com as transformações ocorridas nos últimos anos do século XIX, especialmente a abolição da escravatura, fazem esses os indivíduos deslocarem-se em diversas direções: alguns residindo e cultivando em terras de seus antigos senhores, como trabalhadores rendeiros/amásias/filhos; nessas novas experiências formam ou mantêm suas famílias; diversos abandonam as fazendas que eram cativos, outros constroem laços afetivos com escravas, reconhecem filhos, compram terras, tornam-se pequenos proprietários, produtores de fumo e de gêneros de subsistência. Por fim, viúvas e filhos lutam judicialmente para manter a posse de suas terras. É sob essa perspectiva que analisarei, no próximo capítulo, a compra de terras na última década da escravidão e posterior a abolição pela família Cazumbá. Tal compra não é um fato isolado na Freguesia de São Gonçalo dos Campos, no final do século XIX, contudo, o caso de João Cardozo Cazumbá encerra em si as grandes linhas deste trabalho que tem por objetivo analisar e discutir sobre bens, terras, produção agrícola, demografia, mão-de-obra escrava e livre. 391 GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII". In: REIS, João José. Escravidão e Invenção da Liberdade. Estudos Sobre o Negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988. 50 SCHWARTZ, Stuart. B. “Abrindo a roda da família: Compadrio e escravidão em Curitiba e na Bahia”. In: Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, SP: EDUSC, 2001 120 CAPÍTULO IV Cazumbá: família de cor e proprietária de terras no pós-abolição. Bem, a partir de 1874 aparece no contexto das relações de liberdade, incorporando à história dos indivíduos de cor, João Cardozo Cazumbá. O ancestral da família que levaria sucessivas gerações aquele sobrenome. Não encontrei dados a respeito do seu nascimento ou da chegada na Freguesia; no entanto, conforme o óbito, 1891, com 64 anos392, é possível julgar que tenha vindo ao mundo em 1827, na primeira metade do século XIX, período recheado de mudanças e conflitos no Recôncavo393 e preocupações a respeito de ameaça de quilombo entre os senhores escravagistas da Freguesia394. Proprietário de terras plantou, colheu, comercializou seu produto, fumo, farinha, deixando para seus herdeiros as terras que havia adquirido mediante compras. Aí começa a série de fatos que sucede sua aparência nos registros oficiais. Confessou no registro de perfilhação, 9 de abril de 1888, que com Rita Gonçalvez de Oliveira, escrava de Antônio Gonçalvez de Oliveira, manteve laços afetivos e por esse tiveram oito filhos, reconhecendo-os legítimos herdeiros: Marcolino, Gonçalo, Vicente, Francisco, Manuel, Joanna, Joaquina e Claudina 395. Neste documento foi declarado ao escrivão do tabelionato, Hermógenes Pedreira Daltro, seu estado civil solteiro, diferente do revela a certidão de óbito396 e a procuração feita pela viúva Rita Gonçalves de Oliveira, em 1891397, constituindo Honório Alves Pereira como seu procurador para assistir as avaliações, aceitá-las e impugná-las no inventário amigável em judicial dos bens deixados pelo falecimento de seu marido João Cardozo Cazumbá. Os laços afetivos de João Cazumbá com Rita Gonçalvez entroncam-se na condição social daqueles indivíduos no regime escravocrata, haja vista, o que determinava o nascimento era o ventre materno: filho de pai escravo com mãe liberta já 392 Certidão de óbito, SILVA, E & REIS, J. J. (Org.) Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravagista. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 394 CARVALHO, M. C. M. de. Os discursos das autoridades escravistas nos documentos do século XIX. In.: QUEIROZ, Rita de Cássia Ribeiro de. Anais II Seminário de Estudos Filológicos – SEF: Feira de Santana. Salvador: Quarteto, 2007. p. 343-350. 395 Perfilhação de João Cardoso Cazumbá, 1888. BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro do Tabelionato n. 8 (1887 a 1891), p. 29. 396 BAHIA, Livros de Óbito/1891. Arquivo da Arquidiocese de Feria de Santana. 397 BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro de n. 9, p. 43. 393 121 nascia sob o signo da liberdade. Porém, mãe escrava e pai livre definia nascimento sob o jugo do cativeiro398. Essas relações demonstram que os laços familiares “prendiam” os libertos à estrutura escravista. Se um homem livre nutria laços afetivos com mulher escrava é porque o ele se mantinha por perto daquela relação, possivelmente residindo fora da senzala, talvez até continuando a servir ao senhor, em troca de abrigo e proteção, ou mesmo trabalhando próximo. Observando de maneira detalhada aquele espaço é possível perceber como as relações foram construídas. Antônio Gonçalvez de Oliveira (proprietário de Rita), em 1857, declarou, no primeiro registro, possuir terras na Fazenda Terra Dura, que adquiriu por trocas com José d’Oliveira Borges e sua esposa Maria Bernardina. E a fazenda denominada Candeal que comprou do Tenente Antônio José de Oliveira e sua esposa Luiza. Sem distinção das propriedades aponta os limites: sul com terras de outra fazenda do mesmo possuidor; norte com terras da fazenda Cruz, pertencente a Elena Maria da Cruz, viúva de Antônio Lourenço; leste a estrada real que vem da cidade de Cachoeira para Feira de Santana dos Olhos d’Água; pelo poente com as fazendas até o Rio Jacuípe399. Em outro registro informou que também possuía terras na fazenda Tabuleiro do Gandú, as quais herdou do finado José Ferreira de Coutto e sua mulher, cujas demarcações são: pelo Nascente pela estrada Real que liga Cachoeira a Vila de Feira de Santa Anna dos Olhos d’Água; pelo sul com terras da fazenda Paixão de João Ferreira da Cruz; pelo norte com terras da fazenda Terra Dura, do mesmo possuidor Antônio 398 MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1990. SLENES, Robert. Na senzala uma flor: Esperanças e Recordações Na Formação da Família Escrava (Brasil Sudeste, Século XIX). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 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Em outro registro, Antônio Gonçalvez diz possuir terras no lugar denomindo entrada para o Beco do Carangueijo, que vem do largo da Quitanda, no Arraial de São Gonçalo, que tem por herança de seus pais Manoel Gonçalves de Coutto e sua mulher, sendo doadas a eles pelo finado Manoel Borges Falcão e sua mulher Maria Anunciação Borges, sendo demarcadas: pelo norte com as casas do Tenente Antônio José de Oliveira; pelo nascente com terras de Antônio Joaquim Correia da Silveira e Souza, pelo poente com terras que foram do finado Capitão Luís Martins Soutto, e pelo sul com os fundos terras foreiras401. No quarto registro encontrado Antônio Gonçalvez de Oliveira declarou possuir 4 braças de terras no arraial da Freguesia na Avenida São Benedito, onde tem edificadas suas casas. A aquisição das terras foi através de compras feitas a Manoel Gabriel Cerqueira e sua mulher, duas braças e as outras duas braças a Anna, viúva de Pedro Pereira da Silva Daltro. As demarcações são: pelo Norte confrontando com as casas do finado José Alves d’Oliveira, pertencente a seus herdeiros; pela nascente com o sobrado de João Cerqueira d’Oliveira; pelo poente com terras da Irmandade de São Benedito, pelo Sul com valado da fazenda dos herdeiros do finado Alferes João de Macedo Peixoto402. Geograficamente descrita, nota-se que as terra compradas por João Cardozo Cazumbá situam-se no mesmo local que estão as terras de Antônio de Gonçalvez Oliveira, o que subentende a proximidade e a construção dos laços afetivos com a escrava do mesmo. Constata-se, por conseguinte, que a escravidão não impedira aqueles sujeitos de estabelecerem famílias, laços de amizades, de “fios da vida” 403, inserindo-se nas redes sociais e de solidariedades. Outro ponto de investigação é sobre a origem de João Cazumbá. Se esta palavra é de origem banto, como foi visto no primeiro capítulo, é importante compreender que as práticas desenvolvidas por esses sujeitos remontam a tradição constituída na África. Como foi percebido por Slenes, entre os escravos de origem banto, nos finais do século XVIII 400 BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863). 401 BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863). 402 BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863). 403 PIRES, Maria de Fátima Novaes. Fios da vida: Trajetórias de escravos libertos no Alto Sertão da Bahia Rio de Contas e Caetité (1860-1920). São Paulo: Annablume, 2009. 123 até 1850, no sudeste do Brasil, conservando as heranças culturais oriundas da África Central, especialmente Angola, Congo e Carolina do Sul, entre os ovimbundu, bakongo e os mbundu404. Slenes adverte que os escravos de origem banto construíam laços matrimoniais que viabilizavam recriar rituais tradicionais de matriz africana – como a família/linhagem – que garantia um presente vivido à luz do passado, proporcionando tecer projetos de vida, aperfeiçoar a visão de economia moral, aglutinar sua comunidade, abrir esperanças para um digno futuro. Bem como, gerava questões materiais pertinentes a produção de manufatura doméstica, do trabalho nos dias de folga, conquista de direitos e de produzir uma pequena poupança, enfim, solidificava a determinação coletiva de colocar limites à exploração senhorial. Portanto, assevera Slenes que as experiências em torno do lar e da roça revelam o cotidiano à luz de sua herança cultural e, mais importante ainda, adquirir condições para (re)criar uma cultura e uma identidade própria a família e a roça, simbolizando a continuidade da linhagem do grupo e suas origens num ancestral fundador405. Por conseguinte, questões significativas para intepretação dos laços mantidos pelos indivíduos de cor no Recôncavo à luz da economia fumageira. A partir desses elementos duas interpretações podem ser traçadas. A primeira, refere-se à possibilidade de João Cardozo ter sido escravos (de origem banto – assunto que carece de maiores investigações) em algumas das fazendas ao entorno, ambiente onde conheceu Rita, no seu tempo de cativeiro e com ela manteve laços afetivos, significativo de experiências matricial africana para a constituição familiar. Opôs-se, a segunda opção, que sugere o caminho traçado por um homem livre, rendeiro, residindo em uma das Fazenda de Antônio Gonçalvez Oliveira, ou em outras ao entorno, na lida na roça de fumo conheceu Rita com que estabeleceu laços afetivos, gerando oitos filhos. Os debates sobre essa relação estimulam muitas reflexões, oferecendo uma série de questões, pois ao mesmo tempo que seus fios da vida estão entrelaçados com o cativeiro, ele compra o escravo “João, preto, de idade de 19 anos mais ou menos, solteiro, 404 Slenes, com base nos estudos demográficos, relê os relatos dos viajantes do século XIX sobre o Sudeste e mostra através do olhar branco a vida sexual e familiar patológica dos escravos, mas também de um lar negro. A compreensão do lar negro passa por uma visão mais aprofundada do encontro entre a herança cultural africana e a experiência do cativeiro. Ver SLENES, Robert. O lar e a roça na vida escrava. In.: Na senzala uma flor: esperanças e recordações da família escrava (Brasil Sudeste, século XIX), Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999. 405 SLENES, Robert. O lar e a roça na vida escrava. In.: Na senzala uma flor: esperanças e recordações da família escrava (Brasil Sudeste, século XIX), Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999. 124 serviços da lavoura”, a Dona Anna Joaquina Ferreira de Cerqueira, em 1885, pelo preço de 350 mil reis 406. Esse quadro, em que a identidade de João Cazumbá encontra-se entroncada em laços afetivos com uma escrava, bem como ser dono de escravo, exibe uma dinâmica costumeira entre os libertos. É possível encontrar na primeira no século XIX, naquela freguesia, famílias de libertos proprietárias de terras e escravos. Esse exemplo foi mostrado no capítulo anterior, na diversidade de relações mantidas pelos indivíduos e grupos sociais que transitavam o espaço da fazenda fumageira da região. Também, a aquisição de escravos destaca a mobilidade e a inserção social de um liberto ou, mesmo uma pessoa de cor, que viveu em São Gonçalo dos Campos, durante o século XIX, tendo sido alforriado, ou livre sob o julgo da escravidão, transformando-se em senhor de escravos. É possível ainda que as aquisições feitas por João Cardozo Cazumbá, tivesse sido facilitada pelo cultivo de gêneros de subsistência e pequenos animais domésticos voltados para o complemento alimentar, tarefas costumeiras entre os escravos e libertos, sendo o excedente vendido aos senhores ou nas feiras semanais 407, contexto exibido nos capítulos anteriores. Por conseguinte, a produção fumageira e dos gêneros de subsistência ajudam a compreender a inserção de indivíduos de cor no palco marcado pela experiência da escravidão e a sobrevivência nas relações de liberdade durante e após a abolição. Estes construíram e reelaboraram, ao longo do tempo, todo um modo de vida e conhecimento coletivo em torno da produção agrícola, a qual se compôs como elemento aglutinador de suas experiências cotidianas, de sua cultura e de suas histórias de vida, como é possível observar no depoimento de Seu Teófilo Cazumbá, terceira geração, ao relatar o trabalho de ascendentes na roça: A vida na roça, o que meu pai dizia? Ah, eles capinavam, plantavam fumo, plantavam mandioca, feijão, milho, batata, faziam farinha, mexiam, vendiam, faziam beiju. Eles iam para roça bem cedo, acordava de madrugada. Cava a cova, depois que o fumo tava saindo o olho, capava. Quando tava no tempo certo de cortar, ia para a cortar. Todo os filhos ajudavam, ele dizia pra gente, que ele e os irmãos trabalhavam assim com pai deles. Todos iam para a roça trabalhar. É trabalho! Na casa de farinha com o rodo: vai pra lá vai pra lá, vem pra cá vem pra cá, até farinha torrar(...). 406 BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro do Tabelionato, n. 4, p 74. FRAGA, 2006, p. 43. CHALHOUB, 1990. SCHWARTZ, 2001, p. 99. BARICKMAN, op. cit. POPPINO, Op. Cit. 407 125 Este trecho do depoimento de Teófilo Cazumbá se refere a um cotidiano intenso de trabalho na roça, especialmente nos momentos em que lidavam com o cultivo do fumo e a produção de farinha. Sua memória aponta para um passado de lembranças das histórias ora contadas por seu pai, ora de suas experiências de infância. Estas práticas costumeiras subentendidas em seu depoimento dirigindo a produção fumageira, insinua tradicionalmente a relação da família com a roça. Observa-se em sua fala que o cotidiano do trabalho entre a linhagem era uma experiência transmitida de geração a geração. Silva, também, expõe que os informantes em sua pesquisa rememoram a família Cazumbá entre as diversas relações de seu cotidiano as atividades na roça 408, destarte, experiências adquiridas pelo costume, passadas entre as gerações. Independente de qual teria sido a condição social de João Cardozo Cazumbá as pistas, referente a seus descendentes, filhos de uma escrava, exibem identidade marcada pela experiência do cativeiro, igualmente os traços raciais bem lembrados pelos contemporâneos da segunda e terceira geração, distingue-os naquele contexto social: (...) Os negros Cazumbá eram todos arrumados... eu casei com Mathias Cazumbá, o pai dele era Manoel Cazumbá. Meu sogro mesmo tinha fazenda, gado, porco, galinhas, terras[...] Naquele tempo Cazumbá andava de linho branco, sapato branco no pé, como doutores... Acabou-se os Cazumbá mais velhos, jogaram tudo fora, acabou-se tudo...409 Eu era garoto, tinha mais ou menos quinze anos de idade, lembro de quando Dona Lélia passava na rua, era uma atração, todo mundo admirava. Era muito bonita, tinha uma altivez... Era muito respeitada, era uma negra, mas muito respeitada. Tinha um chácara nas proximidades de onde hoje é o estádio de futebol [...]. Os Cazumbá sempre foram pessoas muito consideradas em São Gonçalo: bancários, advogados, professores. Tinha uma escola de alfabetização na rua São Benedito que era dos Cazumbá. Quando eu fui secretário de Educação, tinha muitos professores Cazumbá.410 Nas narrativas os informantes destacam racialmente os Cazumbá, sobressaindo a sua negritude e a posição social de proeminência material e simbólico na cidade. Deste modo, escapam das memórias e dos documentos cartoriais os movimentos sociais da SILVA, José Bento da. “Cazumbá: História e memória no Recôncavo Baiano(1888-1950)”. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011. 409 Entrevista com Maria da Invenção Cazumbá, 78 anos, 27/02/2011. Realizada por: José bento Rosa da Silva e Jacimara Souza Santana. In.: SILVA, José Bento da. “Cazumbá: História e memória no Recôncavo Baiano(1888-1950)”. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011. 410 Edivaldo da Silva Daltro, 69 anos, professor aposentado, hoje é proprietário de uma papelaria. Foi Secretário de Educação de São Gonçalo dos Campos. É um pesquisador sobre a História de São Gonçalo, sobretudo com relação ao padroeiro, São Gonçalo do Amarante. In.: SILVA, José Bento da. “Cazumbá: História e memória no Recôncavo Baiano(1888-1950)”. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011. 408 126 segunda e terceira geração desta família, possibilitando o vislumbramento do espaço em que viviam. Rastreando os movimentos sociais da segunda e terceira geração dos Cazumbá Em 5 de fevereiro de 1891, morreu João Cardozo Cazumbá, com 64 anos de idade, de moléstia interna411. Na ocasião, a esposa Rita Gonçalves Oliveira, como cabeça, constituiu Honório Alves Pereira seu procurador para representá-la na repartição dos bens. O ato de partilha, de 18 de março de 1891, anexa a um pedido de embargo contra a invasão de suas terras pelos vizinhos (será discutido adiante), informa o nome dos herdeiros, o valor total dos bens e a quantia destinada a Rita Gonçalvez Cazumbá, Gonçalo Cardozo Cazumbá e Joana Cardozo Cazumbá, partes interessadas no processo de embargo. O valor dos bens deixados por João Cazumbá foi de 5.800,00 (cinco contos e oitocentos mil reis). A viúva recebeu a quantia de 2.760.634 (dois contos e setecentos e sessenta mil e seiscentos e trinta e quatro mil reis), a outra parte foi dividida igualmente entre os 8 filhos. Ficando a meação distribuída da seguinte maneira: recebeu a viúva, 300,00 reis pela casa de morada da fazenda Cruz, avaliada por 400,00 reis; 375.938 reis nas terras da fazenda, avaliada por 700,00 reis. Também recebeu os acessórios da fazenda, uma pressa de enfardar fumo e um carro, por 50 mil reis cada; recebeu as cercas do valado da fazenda, por 60 mil reis; oito bois de carro, avaliados por 300 mil; um sobradinho, situado na Vila de São Gonçalo, por 250 mil reis; recebeu 894.694 reis nas terras da fazenda Vargem, avaliados por 1.794.00 reis; cercas e valados desta fazenda, por 200 mil reis; recebeu 178.124 reis por direito titular 412. Gonçalo Cardozo Cazumbá recebeu 234.602 reis nas terras da fazenda Cruz, avaliadas por 300 mil reis; três bois, no valor de 90 mil reis. Já Joana Cardozo Cazumbá ficou com 100 mil reis na casa de morar da fazenda Cruz, avaliada por 400 mil reis; 100 mil nas terras da mesma fazenda, avaliadas por 700 mil reis; três bois, por 90 mil reis; 34.602 reis da cabeça do casal413. Os demais filhos não estão abrangidos neste documento. 411 BAHIA, Livros de Óbito/1891. Arquivo da Arquidiocese de Feria de Santana. Ato de Partilha de João Cardoso Cazumbá, 1891, Arquivo do Fórum João Mendes, São Gonçalo dos Campos. 413 Ato de Partilha de João Cardoso Cazumbá, 1891, Arquivo do Fórum João Mendes, São Gonçalo dos Campos. 412 127 Infelizmente esta exclusão deixa uma lacuna para ser preenchida por meio das comparações e suposições, sendo assim, pode ser sugerido que os demais filhos receberam partes iguais entre si, das terras da fazenda Cruz e Vargem, bem como, acessórios, gados e benfeitorias. Portanto, através dos dados descritos acima nota-se que a família fazia parte dos pequenos proprietários terras de São Gonçalo dos Campos. Observa-se, como já foi mencionado acima, a relação com a terra, a produção de fumo, mandioca e a criação de bois comum entre os possuidores desta região – ver o segundo capítulo – entretanto a singularidade e complexidade desta experiência reside nos caminhos sinuosos que trilharam e o alcance da liberdade através da compra de terras, diferente daqueles que continuaram submetidos as relações de rendeiros nas fazendas que eram escravos, como foi relatado no terceiro capítulo. A peculiaridade deles, talvez, esteja não na condição que traziam por causa da escravidão, que lhes é comum, mas sim por continuarem nas proximidades da fazenda em que a mãe era escrava, se relacionando com antigo senhor e, tendo ligação com parcela dos anteriores donos terras e escravos, agora, na conjuntura da liberdade, outrora alcançada. Exemplo disso, observa-se na assinatura de Antônio Gonçalves de Oliveira (nome do senhor de Rita Gonçalves de Oliveira), representando Claudiana Cardozo Cazumbá, na partilha, por ela não saber escrever. Outros proprietários de terras, provavelmente brancos, assinaram a rogo para viúva e filhos de João Cardozo Cazumbá. A rogo de Rita assinou Onorório Alves Pereira; de Joaquina Cazumbá, José Joaquim de Oliveira; de Francisco Cazumbá, assina Manoel Ferreira de Oliveira; de Gonçalo Cazumbá, Galdino Gonçalves de Oliveira; de Vicente Cazumbá, Cândido Gonçalves de Oliveira; de Joana Cazumbá, José Ferreira de Oliveira e de Manoel Cazumbá, Joaquina Ferreira de Oliveira. Marcolino Cazumbá assina por si mesmo414. Pelos sobrenomes é possível identificar esses sujeitos em outros momentos cruzando experiências com essa família. Como Manoel Ferreira de Cerqueira que comprou a fazenda conjuntamente com João e, Ana Joaquina Ferreira de Cerqueira que lhe vendeu o escravo. É possível que os demais tenham algum parentesco com Antônio Gonçalvez, uma vez que trazem o mesmo sobrenome. Em outros termos, tais arranjos simboliza o prestígio social conquistado pelo tronco da família e que continua sendo acionado por seus descendentes ao estabelecer contatos com a sociedade. 414 Ato de Partilha de João Cardoso Cazumbá, 1891, Arquivo do Fórum João Mendes, São Gonçalo dos Campos. 128 Assim, no dia 2 de fevereiro de 1895, Rita Gonçalvez Cazumbá, Gonçalo Cardozo Cazumbá e Joana Cardozo Cazumbá solicitaram ao Juiz Preparador Doutor Manoel bernardos Calmon, através do advogado Cristóvão Teles Barreto, que embargasse a invasão das terras, derrubando as matas da Fazenda Terra Dura, pelo vizinho Francisco Lourenço de Almeida e sua mulher D. Angélica de Almeida. Também solicitaram que indenizassem com dois contos e quinhentos mil reis os estragos feitos415. Alegaram que seus terrenos eram melhores, por isso o casal estava invadido. Declararam que as terras foram herdadas do marido e pai, por ocasião da morte, todavia possuíam mediante a compra de 33 braças e meia de terras, em 30 de maio de 1874, a dona Maria Joaquina Silva, viúva de Antônio José da Silva, pela quantia de 300 mil reis. Destacaram que os limites estavam bem demarcados. Neste sentido a nascente delimitava com a estrada real, sul pelas terras de Antônio Gonçalves de Oliveira, poente pelo Rio Jacuípe, ao norte com terras de Helena Maria da Cruz416, não havendo dúvida em relação a suas possessões. O juiz solicitou ao oficial de justiça, Saturnino de Couto Ferraz, que entregasse a intimação ao casal afim de embargar, e ao mesmo tempo comparecerem à audiência, dia 15 de fevereiro de 1895, para um acordo entre as partes. Na entrega da oficio o oficial pode observar a obra e declarou que “encontrou na fazenda Cruz uma porção das terras roçadas na extensão de cinco tarefas mais ou menos frente com medidas com mesmo comprimento”. Embora recebesse o oficio, Francisco não compareceu na audiência. Rita, Gonçalo e Joana, comprovaram que eram possuidores das terras incluindo ao processo o ato de partilha, bem como, utilizaram testemunhas: Estevão Alves Brandão, 40 anos de idade, morador da freguesia; José Menezes Borges, 41 anos de idade, solteiro, natural e morador do termo. Manoel Clementino Bispo, 30 anos, solteiro, lavrador, natural e morador do termo; Anselmo Bispo, 65 anos, viúvo, lavrador, natural de Conceição da Feira, morador de São Gonçalo dos Campos; Francisco Machado Cerqueira, 55 anos, solteiro, lavrador, natural e morador na freguesia; Policarpo Ferreira de Sant’ Anna, 33 anos, casado, lavrador, natural e morador desta vila. 415 Termo de Embargo, Rita Gonçalves Cazumbá, Joana Cardoso Cazumbá e Gonçalo Cardoso Cazumbá, 1895, Arquivo do Fórum João Mendes, São Gonçalo dos Campos. 416 Termo de Embargo, Rita Gonçalves Cazumbá, Joana Cardoso Cazumbá e Gonçalo Cardoso Cazumbá, 1895, Arquivo do Fórum João Mendes, São Gonçalo dos Campos. 129 As testemunhas declararam que a família Cazumbá era possuidora das terras, e que a aquisição foi através das compras realizada por João Cazumbá. Que Francisco Ferreira de Almeida (conhecido Francisco Lourenço) não só invadiu as terras pertencentes aos Cazumbá, bem como desobedeceu às ordens judiciais de embargo as obras feitas pelos operários do casal. Ainda, Policarpo afirmou que ele morava no sítio denominado Rancho do Salgado, que faz parte da fazenda Cruz e, portanto, é testemunha de que Francisco Lourenço continuou com as obras no roçado mesmo depois dos três embargos. No dia 19 de fevereiro foi certificado pelo oficial de Justiça Gil Raimundo de Menezes que Francisco Lourenço, sua mulher e seu rendeiro Raimundo de Tal estavam cientes de tudo. Bem, depois de todas comprovações, certo seria que a família ganhasse a causa judicial, restando a Francisco pagar a quantia pertinente aos danos causados como as despesas com os autos, engano. Francisco Lourenço respondeu o inquérito, declarando que estava enfermo, alegando por que motivo não teve conhecimento a respeito das intimações judiciais. Bem como afirmou que se chama Francisco Ferreira de Almeida e não Francisco Lourenço de Almeida, sendo este o segundo motivo pelo qual não compareceu as audiências. Argumenta, ainda, que na cidade não possuía advogado, e por isso desejava fazer sua própria defesa. Na defesa, Francisco, contesta a posse das terras pela família. Afirma que João Cardozo Cazumbá comprou uma pequena parte das terras, portanto as terras declaradas pela viúva e filhos não é real. Afirma que na folha três vê-se uma escritura constando a compra de trinta e três braças e meia das terras por João Cazumbá, restando 17 braças pertencentes aos herdeiros da vendedora D. Maria Joaquina. Assevera que este restante não pertence aos Cazumbá, e que não houve demarcações dos limites nas ditas terras e matas pertencentes a fazenda Terra Dura e fazenda Cruz. Francisco constitui sua defesa sem para isso expor qualquer prova que evidenciasse a veracidade de sua argumentação. Neste contexto de acusação e defesa aparece anexo ao ato de embargo um documento a rogo de Rita e seus filhos desistindo do processo. Não é sabido se este documento é verdadeiro, tudo indica que tal documento foi manipulado por Francisco Lourenço. Rita Cazumbá, Joana Cazumbá e Gonçalo Cazumbá reabre o processo alegando que o termo de desistência não foi assinado por pessoas a pedido deles, ainda mais que não constava entre os assinantes seu filho Marcolino Cardoso Cazumbá, quem confiava 130 e sempre assinava seus documentos. Constam no termo de desistência a assinatura a rogo de Rita Cazumbá, Firmino Borges Falcão, a rogo de Gonçalo Cazumbá, Felipe Borges Falcão e a rogo de Joana Cazumbá José Pedreira de Cerqueira. Depois desta alegação retornei aos demais documentos para ver se era costume daqueles sujeitos assinar a rogo para a família, no próprio auto notei que não constavam assinaturas dos Falcão nos documentos anteriores. Sem provas suficientes o processo foi reaberto e conduzido a comarca de Cachoeira. Contudo, a família Cazumbá perdeu a causa, restando pagar todas despesas do processo. Um aspecto curioso relacionado a família escolhida é o fato de que, nas trajetórias de seus membros ao longo de gerações constata-se diversos movimentos ligados a terras naquela comunidade. Após a geração de João Cardozo Cazumbá, seus descendentes que permaneceram na fazenda Cruz, passou por diversos conflitos para assegurar a posse delas. Houve até que fazer acordo para que as disputas e invasão de territórios cessassem. Nesse sentido, a família que constitui, aqui, protagonista deste estudo, parece abarcar, assim entendo, em suas experiências cotidianas diversos fluxos sociais em torno da propriedade de terras, dando um outro sentido a ideia de liberdade. Infelizmente a falta de documentos não permite rastrear as múltiplas relações dos sujeitos, apesar disso, de maneira tapuia seguirei reconstruindo a atuação dos filhos de Cazumbá na obtenção de terras nos anos finais do século XIX até 1920. Conforme registros os cartoriais, a segunda geração continuou comprando terras próximas ou limitando com as terras compradas por João Cardozo Cazumbá. Como exemplo disso, tem-se a compra feita por Marcolino Cardozo Cazumbá, 27 de abril de 1892, de Francisco Pedro da Silva, casado com Joanna Maria de Jesus, uma casa localizada na rua Conde d´Eu, número 12, com uma porta e duas janelas na frente, coberta de telhas, com duas braças e meia de frente e dez de fundos, em terreno parceiro417, pertencendo a Antônio de Figueiredo Mascarenhas, pela quantia de 300$000 reis418. Apesar da construção ser sofisticada, diferenciando de moradias mais simples, a casa não fora estabelecida em terreno próprio, mas de um terceiro possuidor. Três anos depois, 12 de julho de 1895, Vicente Cardozo Cazumbá, comprou uma posse de terras de lavoura com casa de morar na fazenda “Cruz, ” pela quantia de 300 mil 417 418 Terreno parceiro significava que ele não era vendido, apenas a casa. BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro n. 11, p. 53 e 54. 131 reis, de Apolinário Julião Ferreira e sua mulher Elisbana Mendes Ferreira 419. De acordo a descrição no registro as terras possuíam, setenta e cinco braças de largura, e o comprimento principiando do vallado da fazenda Cruz até o riacho do “Acu” onde se acha o rumo e por outro lado, dividindo-se com as terras da fazenda “Cruz”, vendem a dita posse de terras com a casa de morar420. Por certo, os filhos queriam aumentar suas posses com novas aquisições de terras. Pois para além da vida nas lavouras de fumo, de gêneros de subsistência e da criação de gado, havia uma heterogeneidade de ações que dava significado as relações sociais para o desencadeamento da liberdade. Mesmo na sociedade clássica, onde floresceu uma diversidade de propriedades rurais, com a presença de pequenos lavradores, rendeiros, meeiros, agentes egressos da escravidão, impunha aos libertos em 1888 e seus descendentes laços de dependência aos antigos possuidores locais. Consequentemente, a compra de propriedades fundiárias representava liberdade, autonomia no estabelecer novos modos de vida e ritmos de trabalho, descanso, cultura e ética familiar e soberania da unidade doméstica421. O próprio fato de João Cardozo Cazumbá ter acumulado um cabedal suficiente para aquisição de terras, ter reconhecido os filhos que tivera com uma escrava, ter, Rita, adotado o sobrenome Cazumbá, feito procuração e inventariado os bens deixados pelo marido já constituem elementos de excepcionalidade em relação aos demais que ali viviam. Se não se trata de uma situação incomum, tampouco era generalizada entre os exescravos e descendentes da região. Assim, continuou os descendentes adquirindo terras. No ano 1896, Manoel Cardozo Cazumbá, lavrador, também filho de João Cardozo Cazumbá com Rita Alves Gonçalves, comprou de Venceslai Pereira de Sena um sítio denominado “Cruz”, com terras próprias para lavoura, casa e benfeitorias, pela quantia de 530$000 reis. O terreno se divide pela frente com a Estrada Real da Feira de Sant´Anna pelo fundo com a Estrada de Ferro da Cachoeira à Feira. Por um lado, com o corredor divisório das terras de Chico Lourenço e com os herdeiros de Cazumbá, e pelo outro lado com as terras de Vicente Cazumbá422. Neste registro de maneira literal observa-se a proximidade entre os terrenos 419 BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 9, p. 74 e 75. BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 9, p. 74 e 75. 421 FRAGA, Op. Cit. RIOS e MATTOS, 2005, MATTOS, 2005, RIOS E MATTOS, 2007. 422 BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 13, p. 18. 420 132 da família. Nesta descrição as terras do sítio Cruz fazem divisão com as terras do irmão Vicente Cazumbá. Continuando a análise é possível ter uma melhor compreensão do valor da terra para os membros da família. Era importante a obtenção de posses fundiárias, mesmo que não possuíssem recursos materiais para isso. Como foi o caso de Manuel Cazumbá, caso descrito no parágrafo acima. Este indivíduo aparece comprando o Sítio Cruz, entretanto, o detalhe que ele possuía não dinheiro para pagar a quantia, sendo assim hipotecou o referido sítio, pelo valor de 448$000 reis, a Francisco José Pedreira, negociante e proprietário fundiário. O empréstimo foi pelo prazo de um ano, vencendo o prazo entraria juro de 1% ao mês até total reembolso423. As compras das terras constituíam uma ocorrência entre os descendentes de João Cazumbá, bem como, faziam os fazendeiros, lavradores e negociantes abastados da cidade. Ao mesmo tempo, incorporavam ao patrimônio os utensílios que faziam parte das fazendas fumageiras, tais como armazéns, casas de farinhas, acessórios, benfeitorias, entre outros. Ainda mantinham em suas propriedades rendeiros, consistindo no eixo básico da organização entre os proprietários da região. Igualmente, realizavam o trabalho familiar, cultura que perpassava em meio a multiplicidade das camadas sociais ligadas à terra, exceto os possuidores de grandes propriedades. Assim, em 20 de março de 1898, Manoel Cardozo Cazumbá comprou uma casa no lugar chamado de “Cruz”, de 600$000, de Francisco Ferreira de Almeida e sua mulher Angélica Gomes Almeida. Esta casa estava situada nos terrenos dos herdeiros do finado João Cardozo Cazumbá, a qual casa tinha cinco portas e duas janelas424. Impressionante é o valor da casa no terreno foreiro, não obstante a quantidade de portas revela que se tratava um imóvel grande. Outro ponto que merece questionamento a presença do casal como moradores em uma casa situada no terreno pertencente a João Cazumbá. Será que eram rendeiros, ou pequenos proprietários? Bem, recorrendo os registros anteriores, observa-se a presença de proprietários de casas em terrenos foreiros. A escritura contém dados que informam que o terreno onde a casa fora edificada era de lavoura. Ainda que estava empreendida em uma hipoteca que fizeram ao cidadão Joaquim de Oliveira Torres, em 4 de março de 1895, entretanto já havia pago parte da dívida, equivalente ao valor da casa, ao hipotecário425. 423 BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 13, p. 19. BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 15, p. 28 e 29. 425 BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 15, p. 28 e 29. 424 133 Pois bem, se a representação dos Cazumbá como família de proprietários não aniquilou os conflitos como os demais possuidores, a exemplo do Ato de Embargo contra Francisco Lourenço aqui analisado. Soma-se a esse o acordo a respeito das demarcações e limites das terras das fazendas Cruz e Terra Dura, em 05 de setembro de 1903. Odilon Borges Falcão proprietário da Fazenda Cruz juntamente com Manoel Ferreira de Cerqueira e sua mulher Maria Joaquina; Rita Cazumbá, Gonçalo Cazumbá e Joana Cazumbá proprietários da fazenda Terra Dura; Tibúrcio Alves Barreiros e sua mulher Dona Maria Guilhermina Barreiros, proprietários da fazenda Cruz lavraram escritura delimitando as divisas de suas terras. Do documento depreende que os Cazumbá fizeram acordo perdendo parte da lagoa Tanquinho e do acesso ao Rio Jacuípe426. Observa-se os traçados da planta original das fazendas e das demarcações em litígio, abaixo. Figura 9. Planta feita pelo Engenheiro Manoel Accioli Ferreira da Silva Fonte: Planta feita pelo Engenheiro Manoel Accioli Ferreira da Silva, 1903. In.: Termo de demarcações e limites das terras das fazendas Cruz e Terra Dura. No termo consta que a partir daquela escritura os limites das fazendas Cruzes, Terra Dura e Cazumbá seriam os seguintes: “partindo do corredor entre os dois valados pertencente a Odilon e os herdeiros de Cazumbá e segue rumo 70º NO até outro marco de pedra e mede 187 m. Dali seguindo com os mesmos 77º NO e pelo corredor outro marco de pedra, ficando a direção do rumo que mede mais 180.00 m. Continuando o referido rumo 74º NO e acompanhando e respeitando os valados chega a uma cerca de 426 Termo de demarcações e limites das terras das fazendas Cruz e Terra Dura, 1903. Arquivo Cartorial do Fórum Ministro João Mendes. 134 arame pertencente a Odilon, medindo 229.00m. Processeguindo na mesma direção marginais a dita cerca até o marco de uma pedra medindo 864.00m. Neste ponto existe uma lagoa denominada Tanquinho, cujas margens Este está colocado o último marco. Ai pertencentes aos herdeiros confinantes, acordaram fazendo o desvio Este 7º. Em obediência a este acordo segue até as margens do Rio Jacuípe, medindo mais 4.540m”. A partir dos dados contidos nos documentos e a representação cartográfica de São Gonçalo criei um mapa na tentativa de melhor destacar as demarcações e limites das fazendas antes e depois do acordo. Mapa 4. Demarcações das fazendas Cruzes, Terra Dura e Cazumbá Fonte: USGS. Serviço Geológico do Governo dos Estados Unidos. Acessado no dia 3 de junho de 2014 em: http://earthexplorer.usgs.gov/ Aqui entra alguns questionamentos: quais motivos levaram esses proprietários produzir uma escritura demarcando os limites das propriedades? Por que as terras dos descendentes dos Cazumbá eram disputadas pelos vizinhos? Por que aceitaram outras demarcações e não as antigas? Retomo, a partir da reconstrução e análise dos indícios até aqui encontrados, que estes personagens estavam inseridos em complexas relações, especialmente com a terra. Sua genealogia - escrava, proprietário de terra e de escravo e demais sujeitos históricos egressos da escravidão - distinguia a identidade social da família, fazendo-os participantes, ora das experiências dos donos de terras, ora das relações dos demais descendentes de escravos residentes em São Gonçalo. 135 Participando das experiências dos donos de terras, Vicente Cardozo Cazumbá, casado com Teodora Lima Cazumbá, em 16 de julho de 1904, assinaram a escritura de hipoteca da quantia de 1:700$000 reis ao “cidadão” Francisco José Pedreira. Como garantia foi dada as terras, casas e benfeitorias dos sítios de lavoura denominadas “Canto Escuro” e “Alambique” situados na Freguesia de São Gonçalo dos Campos. Sendo a divisa das terras: pela nascente com terrenos de João Ferreira do Nascimento; poente com terrenos da Fazenda Alambique, de Gregório de “Val”427; sul com terras dos Sítios denominados Gravatá e nascente com terrenos da Fazenda denominada “Piayi”428. Como destaca Ginzburg429, a microanálise é um poderoso método para revelar coisas que o pesquisar como outro olhar não teria percebido. Deste modo, os sinais na escritura de hipoteca possibilitam sugerir que os descendentes de João Cazumbá, nos primeiros anos do século XX, teriam acrescido significativamente suas possessões, a exemplo: os sítios Canto Escuro e Alambique. Igualmente a Fazenda Terra Dura430, localizada na Cruz, foi comprada, em 17 de junho de 1905, por Gonçalo Cardozo Cazumbá, de Carolino Magalhães. Os registros indicam que Gonçalo esta propriedade territorial estava situada próximas as terras que havia feito acordo a respeito das demarcações e limites dois anos anteriores, observe que os limites dessas são os mesmos descritos no Termo de demarcações e limites das terras das fazendas Cruz e Terra Dura, 1903. Sendo demarcado os seguintes: pelo poente com terras do Coronel Tibúrcio Alves Barros, pelo Sul pelos terrenos da Fazenda Terra Dura de Manoel Ferreira de Oliveira, e ao norte divide-se com terrenos de Odilon Borges Falcão431. O registro consta, ainda, que no terreno continha uma casa pertencente a José Alves Barreiros. Os indícios conduziram a outro nome pertencente à família Cazumbá. Luiz Cardozo Cazumbá, negociante e residente em São Gonçalo dos Campos, em 17 de maio de 1910, comprou uma casa na Rua Vigário Galdino Borges, de dona Inez Amerina de Mattos, lavradora e residente em Santo Amaro 432. A casa, número 28, estava arruinada, com uma porta e duas janelas de frente em terreno foreiro 433, que havia sido comprada de Pedro Domingos de Castro. 427 Não tenho certeza se era esse o sobrenome, o documento não trazia uma grafia clara e legível. BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 20, p. 57 429 GINZBURG. Emblemas e Sinais, 430 BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 21, p. 98 e 99. 431 BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 21, p. 98 e 99. 432 BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 24, p. 83 433 O terreno não pertence ao dono da casa. 428 136 A respeito de ascendência de Luiz Cardoso Cazumbá, não sei se segunda ou terceira geração, aparece nas primeiras décadas do século XX como um dos abastados negociante de fumo de São Gonçalo dos Campos. Em 28 de abril de 1914 434 compra outra casa de número 4, com uma porta e três janelas de frente, dessa vez na rua da Alegria, que estava em estado de ruína, da proprietária D. Maria Joaquina Ferreira de Cerqueira, no valor de 500$000 reis. Neste documento Luiz Cardoso Cazumbá declara está morando na capital do Estado, sendo a compra foi feita pelo representante e procurador Coronel Juventino Peixoto Lacerda, negociante, representante político e residente em São Gonçalo dos Campos435. Em outro livro de 1916 comprou uma casa na Rua Capitão Antônio Carlos, nº 9, edificada em terreno próprio sobre esteios e coberta de telhas, com três portas de frente e armação para negócio pela quantia de 1:600$000 reis. Os vendedores eram o Cirurgião dentista Luiz Pessoa da Silva e sua mulher Dona Benildes Pedreira Pessoa da Silva, representados pelo procurador Coronel Juventino Peixoto Lacerda436. Apesar de ser um bom acumulador de bens e estar entre os proprietários do município não esperava encontrar, Luiz Cardozo Cazumbá, no jornal “O Campesinato”, que circulava em São Gonçalo na década de 1920, entre as indústrias fumageiras, especificamente a firma Pedreira da Silva & Compª. para exposição mundial de fumo, em Londres. O colunista, em 1 de abril de 1921, expunha que “Tambem vae concorrer com diversos produtos para a mesma exposição o nosso amigo capitão Luiz Cardozo Cazumbá” 437. Participou da diretoria do clube de futebol “Sport Club Nacional”, como tesoureiro 438. Além disso, foi parabenizado por criar uma Escola Noturna Gratuita para alfabetização de adultos, sendo às aulas das 19 às 21 horas, em sua residência 439. Ainda neste jornal aparece como proprietário de uma casa na rua 13 de maio, possuidor no mercado municipal de algum ramo de indústria e profissões, sendo cobrado deles os impostos municipal e estadual, respectivamente440. Portanto, Luiz Cazumbá, não 434 BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 27, p. 53 BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 27, p. 53 Ver também: TEIXEIRA & ANDRADA, op. Cit., p. 81. 436 BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 28, p. 38 437 O Campesinato, Folha semanal e Independente. Ano 2, nº 67. p. 4. 01/04/1921. Diretor e proprietário Alberto Gonçalves. Redação e oficinas Rua 13 de maio, nº 5. 438 O Campesinato, Folha semanal e Independente. Ano 2, nº 69. p. 3 e 5. 15/04/1921. Diretor e proprietário Alberto Gonçalves. Redação e oficinas Rua 13 de maio, nº 5. 439 O Campesinato, Folha semanal e Independente. Ano 2, nº 69. p. 6. 15/04/1921. Diretor e proprietário Alberto Gonçalves. Redação e oficinas Rua 13 de maio, nº 5 440 O Campesinato, Folha semanal e Independente. Ano 2, nº 72. p. 4. 06/05/1921. Diretor e proprietário Alberto Gonçalves. Redação e oficinas Rua 13 de maio, nº 5. 435 137 foi apenas um proprietário de terras, mas o “ilustre conterrâneo”, responsáveis ações socioculturais e políticas em São Gonçalo dos Campos. Infelizmente os indícios cessaram e, por isso, não foi possível seguir os laços afetivos e matrimoniais construídos pela família Cazumbá. A partir do depoimento de Teófilo Cazumbá, notei que eles preferiram estabeleceram laços entre pessoas próximas ou parentes. Como foi o caso de Nel (Manoel) Cazumbá, casado com “Maria Cerqueira Cazumbá, filha de Gonçalo Cazumbá e de sua mulher Maroca”. O casal tivera outros filhos: João Cazumbá, Celino Cazumbá, Manoel Cazumbá. Já o seu pai Nel era filho de Silvano Cazumbá e Justina Cazumbá441, e irmão de Nelson Cazumbá, Antônio Cazumbá, Geraldo Cazumbá. Assim nas reminiscências da memória Maria Cazumbá aparece como filha de Gonçalo, terceira geração. Já Silvano Cazumbá não foi rememorado os seus ancestrais, contudo, o informante declarou que ambos eram primos. Figura 10 Maria de Lordes Cazumbá, 3ª geração, Escrivã do Cartório do Fórum Ministro João Mendes, São Gonçalo dos Campos-BA, foto tirada em 2011. Fonte: Arquivo Pessoal Na imagem de Maria de Lordes Cazumbá, observa-se seus traços raciais nitidamente africanos. Faz parte da 4ª geração, sendo neta de Gonçalo Cardozo Cazumbá. Morava na Rua São Benedito, localização de uma das propriedades adquirida pelos seus 441 Entrevista com Teófilo Cazumbá, concedida em 23 de março de 2011. 138 ancestrais. Observa-se o destaque social da família, uma vez que parte desta geração ocupa cargos importantes em São Gonçalo dos Campos, como em outras cidades da Bahia, bem como lembrou José Cazumbá, irmão de Lourdes Cazumbá e comissário de menor da cidade442. Cruzando a memória com os dados contidos no inventário 1946, inventariante Manoel Sobrinho Cazumbá e demais filhos, foi possível seguir as relações afetivas de Gonçalo Cardozo Cazumbá. Pois bem, ele tivera 10 filhos naturais, reconhecidos entre 1915 e 1917: Manoel, Silvino, João, Carolina, Demétrio, Cecília, Plácida, Joanna, Maria e Lucinda. Declararam que Gonçalo morreu em 09 de agosto de 1945, com 91 anos de idade443. Figura 11 Josenilda Cazumbá e Jucileide Cazumbá. 6ª geração, moradoras da Fazenda Pedrinhas. Fonte Arquivo Pessoal, tirada em 2011. 442 José Cazumbá, Comissário de Menores, Entrevista concedida em 12 de abril de 2008 Inventário de Gonçalo Cardozo Cazumbá. 1946. Arquivos Cartoriais. Fórum Ministro João Mendes. São Gonçalo Dos Campos. 443 139 Na imagem acima observa-se a 6ª geração da família Cazumbá. Elas são descendentes de Gonçalo Cardozo Cazumbá, sendo netas de Teófilo Cazumbá, um dos informantes desta pesquisa. Nota-se, a identidade negra das meninas, bem como seu destaque social, conquistado pela luta da família nas compras de terras e, através do trabalho na roça. As fontes escritas e as narrativas da família e da população da cidade destacam essas experiências em torno da produção fumageira. Merece menção os elementos não lembrados pela memória 444, contudo o cruzamento outras pistas destacam aspectos dos laços afetivos da segunda geração da família. Observa-se que Gonçalo teve dez filhos que só foram reconhecidos anos depois ao nascimento, também que não constituiu laço matrimonial. Outro importante indício é a despeito da idade em que faleceu, sendo com 91 anos, teria nascido em 1855, em plena sociedade escravocrata. Entretanto, como falta informações contenho-me, pois são necessárias maiores investigações. 444 POLLAK. Memória e esquecimento, 140 CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do estudo dos objetos materiais descritos em inventários, na segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX, foi possível perceber relações sociais, as escolhas, os costumes, os bens materiais, a população, a economia, a vida cotidiana dos moradores da freguesia e as modificações das relações de trabalho escravo/livre e discutir sobre as experiências da família Cazumbá. Os Campos da Cachoeira, palco de produção fumageira, de gênero de subsistência e criação de gado, desde do século XVII, estava formada por uma diversidade de propriedade fundiária, e uma população composta de livres, senhores, escravos, lavradores de fumo, pequenos, médios e grandes proprietários e rendeiros. A diversidade social e produção de fumo, ao mesmo tempo que favoreceu a manutenção dos proprietários fundiários, abriu portas para que despossuídos acumulassem recursos financeiros suficientes para a aquisição de bens, no caso a terra. Assim, as dessemelhantes riquezas, imprimiu um estilo de vida, entre os que detinham maiores extensões territoriais, mais sofisticado, contendo entres os bens comuns as diferentes categorias sociais, objetos como vestuário, móveis, santos e utensílios domésticos, joias. Portanto, a análise da família Cazumbá e de outros indivíduos de cor possibilita uma melhor compreensão da experiência de vida, de trabalho, do acesso à terra e o significado da liberdade conferido por eles. Dessas trajetórias observa-se que a terra foi um “elemento essencial” à sobrevivência, sendo que, a tradição e o costume, especialmente, a Lei de 1850, foram empecilhos enfrentados por muitos, para o acesso ao bem. Assim, na segunda metade do XIX, com o sistema escravista em franco declínio, pequenos proprietários “adaptavam o uso da terra e as práticas agrícolas não só às exigências de lavouras específicas (...), mas também às condições locais e à expansão do mercado interno”445. A exemplo disso, às dificuldades em gerar o sustento a família, fizeram os indivíduos cultivarem com seus antigos senhores relações de sujeição, continuando nas fazendas que antes eram escravos como lavradores livres. 445 BARICKMAN, op. cit. p. 31 141 Os indivíduos de cor estabeleceram as relações em torno das atividades fumageiras de beneficiamento, preparação do fumo e nas diversas experiências entre os sujeitos sem posse de terras e proprietários no Recôncavo. Também os estudos revelaram a continuidade a respeito da organização social nas fazendas, na primeira década do século XX, que, de um modo geral, envolvia a relação entre proprietário e rendeiro, continuando, a terra, como um principal bem patrimonial e um importante meio de produção. Nas fazendas faziam todas atividades ligadas a roça fumageira e de subsistência. Eram rendeiros, mas faziam trabalhos de ganho, e meação, ou ainda, vendiam a safra da produção na vila da Freguesia. Portanto, observa-se que a sobrevivência dos descendentes de escravos nas propriedades fumageiras de São Gonçalo dos Campos não foi fácil, bem como para os de outras regiões do Brasil. Além dos desmandos dos donos de fazendas e da lida diária, precisavam driblar outros problemas, não menos importantes em seu cotidiano, como a alimentação e a moradia – neste caso a submissão ao trabalho rendeiro em propriedades fumageiras, onde garantiam a autossubsistência. Contudo, é interessante advertir que esse contexto representa a continuidade da história colonial e imperial baiana. As alterações, do mesmo modo, foram ocorrendo ao longo do tempo através das estratégias utilizadas por homens e mulheres da região, como foi visto nos jogos das mulheres rendeiras para continuarem a adquirirem posses de terras, nas compras de terras e na grande representatividade social da família Cazumbá nos anos finais do século XIX e iniciais do século XX. Para a família Cazumbá apenas ter acesso a terras, fazendo roças nas fazendas vizinhas, por mais que garantisse a liberdade, não configurava literalmente. Para esses a experiência de liberdade denotava a compra terras e o trabalho nelas. Sendo assim, João Cardozo Cazumbá e seus descendentes, a partir de 1874 a 1920, adquiram parte significativa das fazendas Cruz e Terra Dura. Por fim, deve ser levado em consideração que “essas vidas minúsculas também participam, à sua maneira, da grande história da qual elas dão uma versão diferente, distinta, complexa”446, sendo assim, essas trajetórias devem ser articuladas com o todo da sociedade para que as relações sociais e os significados da liberdade sejam compreendidos de forma mais refinada. 446 REVEL, Op. Cit. p. 47. 142 Diante dessa situação, os indivíduos de cor podiam optar por poucas possibilidades de subsistência. Nos casos aqui estudados podia se tornar rendeiro das fazendas fumageiras, e, com excepcionalidade acumular dinheiro para comprar terras. Entretanto, as histórias e rememorações destes indivíduos de cor precisam ser mais bem exploradas do ponto de vista histórico, permitindo esclarece alguns aspectos relacionados às lutas enfrentadas e as suas múltiplas relações estabelecidas para conseguir a acessão social. Este trabalho apresenta-se como contribuição para a ampliação do conhecimento histórico, igualmente possibilitar o início de uma investigação sobre as experiências destes indivíduos neste espaço. 143 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Fontes Orais Djanira Pinheiro de Queiroz, nascida em 1912. Entrevista concedida em concedida em 21 de março de 2011. Expedito Pinheiro de Carvalho, nascido em 1940. Entrevista concedida em 25 de março de 2011. Cleusa Machado de Carvalho, nascida em 1947. Entrevista concedida 25 de março de 2011. 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