CENTRO DE CIÊNCIAS ARTES, HUMANIDADES E LETRAS – CAHAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS: CULTURA,
DESIGUALDADE E DESENVOLVIMENTO
MARIA CRISTINA MACHADO DE CARVALHO
A FAMÍLIA CAZUMBÁ EM SÃO GONÇALO DOS
CAMPOS/1870-1910
CACHOEIRA
2013
MARIA CRISTINA MACHADO DE CARVALHO
A FAMÍLIA CAZUMBÁ EM SÃO GONÇALO DOS
CAMPOS/1870-1910
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação
em Ciências
Sociais:
Cultura,
Desigualdades e Desenvolvimento da Universidade
Federal do Recôncavo da Bahia, para obtenção do
Título de Mestre em Ciências Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Walter Fraga.
CACHOEIRA
2013
2
C043 CARVALHO, Maria Cristina Machado de
A Família Cazumbá em São Gonçalo dos Campos /
1870 - 1910 / Maria Cristina Machado de Carvalho - 2013.
153f.:il
Dissertação (Mestrado)- Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia, Programa de Pós Graduação em
Ciências Sociais: Cultura, Desigualdade e Desenvolvimento,
Cachoeira / Ba /2015.
Orientador: Prof.Dr. Walter da Silva Fraga Filho
3
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA – UFRB
CENTRO DE CIÊNCIAS ARTES, HUMANIDADES E LETRAS – CAHAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS: CULTURA,
DESIGUALDADE E DESENVOLVIMENTO
Dissertação intitulada “A Família Cazumbá Em São Gonçalo Dos Campos/1870 1910” de autoria da Mestranda Maria Cristina Machado de Carvalho, apreciada pela
banca examinadora em 14 de novembro de 2013, constituída pelos professores:
______________________________________________________
Prof. Dr. Walter Fraga (UFRB - Orientador)
_______________________________________________________
Profª. Dra. Ione Celeste Jesus de Sousa (UEFS - Examinadora)
_______________________________________________________
Prof. Dr. Antônio Liberac Cardoso Simões Pires (UFRB - Examinador)
CACHOEIRA, NOVEMBRO DE 2013
4
A Deus, o maior dos mestres e fonte de inspiração de toda criação
humana.
À Cleusa Machado de Carvalho e Expedito Pinheiro de Carvalho,
minha mãe e meu pai, primeiros mestres de minha vida, que ao
longo dos anos têm me legado o gosto pelo saber e o exemplo de
como viver e, que por amor dedicaram seu tempo no trabalho na
roça para que eu conseguisse construir a minha identidade social,
inclusive a de mestre.
À minha avó, Djanira que aos longos anos vividos, escreveu a sua
caminhada rompendo com as estruturas sociais que lhes foram
impostas como uma mulher negra.
5
Agradecimentos
Quando pensei em agradecer lembrei daqueles que de alguma maneira esteve presente
em minha história e contribuiu para a construção final deste trabalho. Inicialmente,
agradeço a Deus pela força, o entusiasmo que dia após dia dediquei a este projeto. Não
foram poucos os momentos de desanimo por ver meus esforços sem nenhum alcance
significativo. Contudo, a confiança em Deus não deixou que eu desistisse desse propósito,
até mesmo colocando pessoas em minha caminhada que com um abraço amigo, um
ombro solidário me animou, lembrando que os erros e desencontros fazem parte da
história de todos os indivíduos.
Assim sigo meus agradecimentos a minha família: Cleusa (minha mãe), Expedito (meu
pai), por estarem comigo sempre, e dedicarem a vida em prol da educação e formação de
seus filhos, especificamente a minha formação. Aos meus irmãos: Expedito que ao falar
sobre meus estudos tem demonstrado interesse e admiração. Edson, lembro-me que
quando passei no vestibular para História você estava me esperando em Feira de Santana
com os braços abertos, dando-me um teto e apoio! Recordo as vezes que você me levou
ou foi me buscar na UEFS, as ligações que demonstrava preocupação e cuidado. Meu
irmão quero repartir este título com você!
Elisvaldo, em você encontrei um ombro para pôr minha cabeça. Nos momentos de
pesquisa, de tensão, de investigação recebi sua incondicional contribuição. Edmilson
quero agradecer pelas vezes em que você saiu do trabalho para mim pegar no Arquivo!
Sua ação foi uma total demonstração de zelo e cuidado. Cleides, não esqueço o quanto
você foi importante nesta jornada. Sempre solícita aos meus pedidos, cuidadosa,
companheira. Lembro-me os momentos em que esteve me acompanhado.
Claudicélia, recordo-me das noites em que estávamos lado a lado estudando, das ligações
feitas para que pegasse livros. Deus continue te abençoando! Minha irmã e companheira
de todas as horas: Cleuseni, você é nota 10, sua contribuição excede os limites da
naturalidade: saiu comigo aos arquivos, pesquisou, fez digitação de dados, levou-me para
fazer entrevistas, enfim foram muitos feitos! Sou muito grata a você!
6
Ao meu cunhado Guto por algumas vezes ter ouvido minhas solicitações de ajuda e
minhas cunhadas: Fabiana que desde do tempo da graduação foi uma grande amiga;
Débora que sempre me incentivou e Valmira muito generosa, preocupada, companheira.
Estiveram comigo nos momentos de mais alta tensão. Amo vocês! Meu primo Milton
obrigada por me acompanhar naquela tarde ensolarada ao cemitério para fazer a pesquisa
comigo. Lembro como aquele dia foi exaustivo - você, minha irmã Cleuseni e eu - saímos
em cada túmulo averiguando os nomes, fotos e nascimentos dos falecidos que fazem parte
desta pesquisa. Acho que estou fazendo um bom trabalho com minha família e amigos,
iniciando-os ao mundo da pesquisa (riso).
Ao mesmo tempo em que quero agradecer a meus amigos. Vocês são maravilhosos!!
Quantas vezes recebi ligações dessas pessoas admiráveis para acompanhar meus passos
e me impulsionar. Jucélia, como conceituar este nome? Bem, até mesmo para uma
socióloga é difícil, mas lembrando das experiências históricas, pelo apoio, incentivo,
enfim, você é irmã! Sou muito grata a você! Flaviane amiga de longas datas, agradeço o
incentivo, os momentos que passamos conversando por telefone, de cada palavra de
instigação. Você é maravilhosa! Regiane minha colega da UNEB, que se tornou uma
amiga! Obrigada pela ajuda. Gorete amiga que sempre torceu por mim. Você é sem igual!
Fernanda foi muito bom encontrar você durante esta trajetória de minha vida. Andréia
minha amiga, colega de trabalho, que ouvia minhas preocupações e orava por mim.
Obrigada por sempre me escutar.
Oh Bethânia, lembro-me das conversas, dos conselhos, das horas ao telefone, e você
dizer: “não desiste, Cris, vai em frente, você escreve bem mulher”. Obrigada amiga!
Charlene foi sensacional poder compartilhar com você esses momentos. Igualmente as
outras amigas, compartilhei minhas preocupações. Sempre inteligente e muito paciente
refletia as melhores opções para continuar seguindo esse labirinto. Rute, Rita, Sara,
Rosane, Cíntia, Tatiane Penteado e Tatiane vocês são lembradas a cada momento que eu
pego neste texto. Cada uma de vocês conheci em momentos diferentes em situações
singulares, fato que tornou nossa história sem igual. Raquel obrigada pela amizade,
companheirismo, confiança e, também, nossas boas conversas horas do intervalo na
escola.
A equipe do Colégio Adventista de Feira de Santana, especialmente ao diretor Luiz
Penteado, a coordenadora Vânia e a orientadora educacional Rilda Alves. Você, Rilda,
7
antes de tudo é minha amiga e companheira, ficou em minhas aulas, orou por mim e me
ouviu quando necessitei de alguém para escutar-me.
Não posso esquecer de Marcos, pessoa surpreendente, um grande companheiro. Marcos
Maxsuel esteve comigo nos momentos que precisei faltar às aulas. Quando estava muito
tensa e preocupada foi capaz de me escutar e ter muita paciência. Sem sua ajuda e
companheirismo tudo seria mais difícil, seu nome deveria ser escrito com tinta de ouro!
Maria e Vado, vocês serão sempre lembrados! Também foram amigos e companheiros,
oraram por mim e se preocuparam com as minhas inquietações. Minha amiga, Iris,
também esteve comigo nos momentos mais difíceis da jornada. Ouvia-me e sempre dizia
pacientemente: Vamos orar Cris! Você nem imagina o quanto esta expressão foi como
música suave aos meus ouvidos. Eliana, foi bom ter conhecido você neste fluxo. Obrigada
por ter me acompanhado ao arquivo e pelas madrugadas de oração.
Tatiane, desde da graduação pude contar com você nos meus primeiros momentos de
pesquisa, mais uma vez quero agradecer a você pelo apoio! Você é ótima! Gaby, Ledy,
Crislane, Adriano, Antônio, vocês foram amigos, companheiros, torcedores, admiradores,
irmãos! Agradeço-lhes demais! Ainda, a Cris Furtado, conheci durante o mestrado e nos
tornamos amigas. Nunca vou esquecer da força recebida de minhas amigas Enoise e
Núbia. Amo vocês!
Minhas colegas e amigas do mestrado Ciran e Rejanne, que compartilharam comigo
momentos tensos de investigação e discussão teórica! Nossa experiência foi complexa,
dinâmica, tensa, contudo, com um canto!! O canto da Vitória! Ciran, além da experiência
da pesquisa e escrita você se tornou minha amiga e irmã. Sempre contei com seu apoio
incondicional além do de seu pai Nanã, sua mãe Elizete, e seu irmão Keu! Hoje somos
apenas uma família! Você é uma pérola para mim, minha irmã! Neste parágrafo estendo
meus agradecimentos aos colegas: Naty, Débora, Joelma e Murilo, lembro-me das
conversas e discussões acerca do mestrado! Com vocês vivi momentos muitos preciosos.
Como gostaria de agradecer a todos e todas que encontrei no caminho da minha história.
Aos professores (abrindo um parêntese para agradecer a professora Ângela pela
confiança, por aceitar que eu fizesse o tirocínio e por sempre acreditar em meu potencial
e ao professor Fernando Pedrão por acreditar em mim desde o primeiro momento do
mestrado), professor Herbert, Osmundo aos demais professores meus sinceros
8
agradecimentos aos servidores do Programa de pós-graduação de Ciências Sociais da
UFRB, Virgílio por sempre atender minhas solicitações; Valéria pelo trabalho realizado,
cuidando para que a parte burocrática necessária para defesa fosse executada. Ainda,
lembro-me de Emanuel e Fabrício, pessoas excelentes, que sempre me dava informações.
Obrigada!
Danilo, conheci você quando, ainda era graduanda e bolsista de iniciação científica, não
imaginaria que iria chegar até aqui, especialmente que iria te reencontrar neste momento.
Obrigada ter contribuído as inúmeras vezes nesta trajetória. Quão fenomenal foi nesta
caminhada! Também estendo meus agradecimentos a Flávia Sales, bibliotecária e amiga
maravilhosa, obrigada por fazer a ficha catalográfica. Você é muito generosa! Marcus
Rios, muito obrigada por fazer o mapa que demarca a geografia do meu objeto de estudo.
Nesta experiência agradeço de maneira especial ao meu orientador Professor Dr. Walter
Fraga Filho, por ter acompanhando a construção da dissertação, por sua disponibilidade
em ler, comentar e fazer sugestões e pelas oportunidades de diálogo, as quais foram
fundamentais para o meu amadurecimento enquanto pesquisadora.
Aos professores Rita Reis e Antônio Liberac por aceitarem compor a banca examinadora
de qualificação. Suas questões, sugestões e observações foram fundamentais para a
continuidade da escrita da dissertação. A professora Ione Celeste, que desde do meu
tempo de graduação tem sido uma grande incentivadora e agora aceitar o convite e fazer
parte da banca de defesa.
À Professora Dra. Lucilene Reginaldo, que, desde a graduação, disponibilizou-se a me
orientar e, ao reencontro que conseguimos concretizar no segundo semestre do Mestrado.
Ao professor José Bento pelas leituras, sugestões e o diálogo feito por email e ter cedido
importantes informações sobre a família Cazumbá, as quais foram importantes para a
construção deste trabalho.
Aos funcionários dos arquivos que visitei a fim de encontrar fontes para escritas da
pesquisa. Agradeço por terem sidos atenciosos e dispostos a atender minhas solicitações.
Aos funcionários do Arquivo Municipal de Feira de Santana, do Arquivo da Câmara
Municipal de São Gonçalo dos Campos, especialmente Gorete, do Arquivo Municipal de
Cachoeira, Arquivo Público do Estado da Bahia, Arquivo do Fórum João Mendes
(tabelionato, civil, cível) em São Gonçalo dos Campos, Maria das Dores (Dora), Celeste
9
Mascarenhas, Kátia e Maria Angélica. Aos funcionários do Arquivo do Arcebispado de
Feira de Santana, Arquivo Monsenhor Renato Galvão da UEFS e CEDOC na
Universidade Estadual de Feira de Santana. A família Cazumbá, e os meus prestigiosos
informantes que cederam entrevistas valiosas para a construção deste trabalho.
Ainda agradeço aqueles que foram meus alunos do curso de Administração no IAENE.
As turmas alegres que estudam no Colégio Adventista de Feira de Santana. Vocês além
de serem meus alunos são meus cúmplices, sempre vibraram comigo e torcem por minha
vitória. Amo vocês demais! Aos alunos do curso de História –PARFOR - UNEB. Como
também aos diretores e coordenadores das graduações: professora Lígia Santana amiga,
compreensiva e torcedora. Professor Ibraim, obrigada pela confiança. E ao pastor Edson
e pastor Gilberto pela a oportunidade.
A todos vocês meus sinceros e calorosos agradecimentos!
10
Resumo
Este trabalho parte da seguinte pergunta: como os indivíduos e os grupos familiares submetidos
ou não ao trabalho escravo se esforçaram para inserirem-se nas redes sociais livres em São
Gonçalo dos Campos, entre 1870 a 1910? Assim, investiguei as experiências sociais da família
Cazumbá, descendentes de escrava, que se tornara proprietários de terras, na conjuntura histórica
marcada pelas relações escravas e livres, dos proprietários e despossuídos de terras de São
Gonçalo dos Campos da Cachoeira. Portanto, três objetivos compõem a investigação: analisar as
relações sociais entre os diversos grupos (senhores, pequenos proprietários, trabalhadores, livres
e trabalhadores escravos e outros); identificar e questionar sobre as estratégias manipuladas pelos
indivíduos para inserirem-se nas redes sociais livres, especialmente a compra de terras por
descendentes de escravos e, ainda, as mudanças nas relações de trabalho no século XIX; por fim,
compreender as características do trabalho rendeiro e os laços familiares e sociais formados
naquele contexto. Destarte, a procura de indícios que possibilitasse reconstituir a experiência da
família Cazumbá e de outros indivíduos de cor permitiu compreender as trajetórias de vida, o
trabalho escravo e livre, o acesso à terra, a tradição e o significado da liberdade atribuído por
aqueles viveram a escravidão, ou então, descenderam deles. Desses movimentos notar-se que a
terra foi importante componente de sobrevivência ligada aos diferentes significados de liberdade.
Palavras Chave
São Gonçalo dos Campos. trabalho escravo e livre. pós abolição. Terra. família Cazumbá.
11
Abstract
This work assumes the following question: how individuals and family groups submitted or not
to slave labor strove to be inserted on the free social networks in São Gonçalo dos Campos,
between 1870-1910? So, I investigated the social experiences of Cazumbá family, slave
descendants, who had become landowners in historical context marked by slave relations and
free, the owners and dispossessed of land of Saint Mary of the waterfall fields. So three objectives
make up the research: to analyze social relations between different groups (masters, small owners,
workers, free and slaves and other workers); identify and question on strategies manipulated by
individuals to be inserted on the free social networks, especially the purchase of land by
descendents of slaves and also the changes in labor relations in the nineteenth century; finally
understand the tenant job characteristics and family and social relationships formed in that
context. Thus, the search for evidence that would allow to reconstruct the experience of Cazumbá
family and other colored individuals allowed to understand the life trajectories, slave and free
labor, access to land, tradition and the meaning of freedom assigned by those lived slavery, or,
descended from them. These movements be noted that the land is important survival component
connected to the different meanings of freedom.
Keywords
São Gonçalo dos Campos. slave and free labor. post abolition. Earth. Cazumbá family.
12
Pesos, Medidas e Moeda
Pesos e medidas
1 braça = 2,2 metros
1 légua = 6.000 metros
1 tarefa = 4.356 metros quadrados
1 vara = 1,1 metro (ou ½ braça)
Moeda
A unidade básica da moeda no Brasil, durante a Colônia e o Império, era o real (réis no
plural). Escrevia-se $100 para a soma de 100 réis, 1$000 para um mil-réis e 1:000$000
para um conto de réis. Portanto, o valor de 20:430$200, deve ser lido como vinte contos,
quatrocentos e trinta mil e duzentos réis.
13
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: O processo de secagem do fumo por famílias de lavradores ......................49
Figura 2: Escravos fazendo farinha .............................................................................51
Figura 3: Parede construção de taipa ..........................................................................59
Figura 4: Djanira Pinheiro de Queiroz ......................................................................105
Figura 5: Elixir de Nogueira .......................................................................................106
Figura 6: Tibúrcio Alves Barreiros............................................................................107
Imagem 7: Parentes de Tibúrcio Alves Barreiros ....................................................109
Figura 8: Livro de Relação de Número de Fogos e Moradores do Distrito da
Freguesia de São Gonçalo dos Campos de Nossa Senhora da Cachoeira ...............112
Figura 9. Planta feita pelo Engenheiro Manoel Accioli Ferreira da Silva ...............134
Figura 10. Maria de Lourdes Cazumbá ...................................................................138
Figura 11. Josenilda Cazumbá e Jucileide Cazumbá .............................................139
14
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Cor, condição e sexo, no censo de 1872 da vila de São Gonçalo dos Campos
.........................................................................................................................................72
Tabela 2: Taxa de natalidade dos escravos da Fazenda de João Coelho de Almeida
em 28 de abril de 1882 .................................................................................................116
15
LISTAS DE MAPAS
Mapa 1: Fronteiras de engenhos ao longo do Rio Jacuípe .........................................35
Mapa 2: São Gonçalo dos Campos ...............................................................................42
Mapa 3: Áreas de plantio de fumo do Recôncavo da Bahia .....................................47
Mapa 4: Demarcações das fazendas Cruzes, Terra Dura e Cazumbá ....................135
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Sumário
1 INTRODUÇÃO...........................................................................................................18
2 CAPÍTULO I Cazumbá: nomes e rastros ................................................................28
2.1 Rastreando o nome: microanálise etimológica de Cazumbá ...............................29
2.2 Seguindo as pistas: investigando os documentos oficiais .....................................31
3 CAPÍTULO II São Gonçalo dos Campos: propriedade, economia fumageira e
produção de subsistência 1870 – 1890 ..........................................................................44
3.1 Atividades econômicas: agricultura fumageira e de subsistência, e criação de
gado ................................................................................................................................45
3.2 Vida material: a freguesia fumageira de São Gonçalo dos Campos.....................54
3.3 Estrutura Agrária: a Posse de Terra em São Gonçalo na Segunda Metade do
Século XIX .....................................................................................................................60
3.4 Sociedade: relações de trabalho na fumicultura da freguesia de São Gonçalo dos
Campos ..........................................................................................................................69
3.5 Trabalho Livre: arrendamento de terras na década de 1880 ...............................79
4 CAPÍTULO III Trajetórias entrecruzadas: diferentes histórias e famílias de cor
.........................................................................................................................................89
4.1 A vida cotidiana .......................................................................................................89
4. 2 Alguns conflitos na região.....................................................................................100
4.3 Família: ex-escravos e descendentes ....................................................................104
5 CAPÍTULO IV Cazumbá: família de cor e proprietária de terras no pósabolição.........................................................................................................................121
5.1 Rastreando os movimentos sociais da segunda e terceira geração dos Cazumbá
.......................................................................................................................................127
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................139
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................142
17
INTRODUÇÃO
A minha indagação sobre a família Cazumbá surgiu na tentativa de conhecer a
origem do Bairro denominado São João do Cazumbá, localizado na região do Centro
Industrial do Subaé (CIS), entre Feira de Santana e São Gonçalo dos Campos 1. Comecei
a investigar este bairro em 2007, quando iniciei a pesquisa como bolsista de iniciação
científica no projeto “Itinerários da Memória: comunidades negras rurais e memória de
quilombo no Vale do Paraguaçu” dirigido pela professora doutora Lucilene Reginaldo,
na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).
Cataloguei diversas comunidades que possuíam a maioria da população negra.
Dessa diversidade selecionei apenas duas para ser parte fundamental de investigação
científica. São João do Cazumbá, uma comunidade urbana, localizada próxima ao Bairro
Tomba e ao CIS. E a outra Corredor dos Ferreiras, comunidade rural, que se formou na
segunda metade do século XX a partir do deslocamento da família Ferreira, antigos
rendeiros da fazenda Magalhães, para um outro território 2. Esta experiência se torna
singular por ser a trajetória de uma família de rendeiros de cor, formando, assim, a história
do Recôncavo mais complexa e dinâmica pelas suas experiências e redes de formações
sociais, econômicas e culturais nos períodos anteriores e posteriores a abolição da
escravidão.
Tratando da família Cazumbá os primeiros contatos, nada que me inquietasse para
pesquisa científica, foi na escola quando estava na alfabetização. Em minha classe havia
cinco colegas com o sobrenome Cazumbá. Eu e os demais alunos achávamos o nome
diferente, intrigante, o que tornava aqueles diferenciados. Com essa concepção
relacionávamos as pessoas com esse sobrenome a uma só família (Cazumbá), sendo
comum a pergunta se eram primos ou irmãos. Todos eles eram negros e os pais eram
trabalhadores rurais que cuidavam da terra, plantavam, cruzavam os espaços das relações
e as experiências dos rendeiros.
1
CARVALHO, Maria Cristina Machado de. Comunidades Negras Rurais e Memórias de Quilombos.
UEFS/Feira de Santana. 2008. (Monografia de Conclusão do Curso de Licenciatura em História).
2
CARVALHO, Op. Cit.
18
Quando comecei a pesquisa e identifiquei o Bairro São João do Cazumbá a minha
orientadora Lucilene Reginaldo sugeriu que eu investigasse a origem e trajetória dos
Cazumbá. Entretanto, na minha inexperiência recusei seguir este caminho, pois meu
interesse estava definido em esquadrinhar a formação daquela comunidade, investigar a
relação com a identidade remanescente de quilombo. Entretanto, experiências do
cotidiano, das relações sociais de indivíduos e famílias de cor no tempo da escravidão e
no pós abolição, na Bahia, estão claramente interligados no cotidiano coletivo de
escravos, livres e libertos, no século XIX.
Assim, destaca-se, entre o fim do século de XIX e início do século XX, um
contexto socioeconômico marcado pelas relações estabelecidas desde o período colonial3.
Nota-se fazendas com diversas extensões de terras com uma multiplicidade de atividades
agrícolas alicerçada no trabalho escravo/rendeiro de pessoas de cor4.
As construções dessas fazendas variavam de acordo com os níveis de riqueza. A
fazenda Dendê, por exemplo, pertencente a João Pinheiro de Queiroz, branco, com 300
tarefas de terras, tinha paredes largas, construídas de adobe, telhado de tábua. Possuía 4
portas largas e grandes e 10 janelas, o chão de barro, com duas salas5. Essa descrição nos
oferece uma visão aproximada das diversas construções que formavam as fazendas
fumageiras, no início do século XX, na região de São Gonçalo dos Campos, onde percebese os diversos espaços de convivência entre proprietários e despossuídos de terras.
No quintal havia árvores frutíferas de diversas espécies: 6 mangueiras, 1 jaqueira,
1 pé de fruta-pão, 1 pé de tangerina, um bananal, 5 cajueiros. Normalmente próximo à
casa de morada existia outras construções em ruínas como a casa de farinha, o armazém
velho e, até mesmo, senzala com o tronco. Ainda naquele espaço territorial encontramse as plantações de fumo e de mandioca, bem como um cercado onde criava gado e
cavalos6.
Naquelas terras avistam-se casas simples de taipas de “roceiros pobres”,
geralmente, em suas extremidades, mas próximas às estradas. Junto às casas podem ser
3
Segundo SCHWARTZ a economia em São Gonçalo dos Campos, desde o século XIX, associava-se ao
trabalho familiar livre. Ver: SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade
colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.NARDI, Jean Baptiste. O fumo brasileiro
no período colonial. São Paulo: Brasiliense, 1996. BARICKMAN, B.J. Um Contraponto Baiano:
açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780 – 1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003.
4
SILVA, Narciso Amâncio. Decadência Fumageira; São Gonçalo dos Campos. 1951- 1976. Feira de
Santana: UEFS, 2001. (Monografia de Especialização).
5
Entrevista com Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011.
6
Entrevista com Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011.
19
vista, aproximadamente, 2 tarefas de terras, onde aqueles moradores produziam suas
roças7.
As descrições acima foram possíveis mediante as memórias dos descendestes de
escravos e de fazendeiros. Djanira8, lembrou que no seu tempo de menina, na década de
1920, entre os rendeiros das fazendas fumageiras em São Gonçalo dos Campos
encontrava-se: Antônio Farias, Felix Ferreira, Antonieta, João Machado, Antônio Gomes,
Maria e Teodório, Lesbão e Amélia, Luiz Carneiro, Maria, Tibúrcio, Marcelino, Zé
Baguim, Manoel Pedro, Chico Cajé, Augusto Cajé, pessoas de cor que receberam de seus
pais a herança de continuarem na fazenda como rendeiros. Entretanto, essas experiências
não eram inusitadas, existiam outros sujeitos que construíam as redes sociais do
Recôncavo fumageiro. A história de Teodora Francisca, desde a fuga de Bonfim de Feira,
o arrendamento de terras na Fazenda Dendê, o trabalho doméstico e o ganho nas roças e
o concubinato com o dono da fazenda em São Gonçalo, no início do século XX, torna
mais impressionante as histórias contadas sobre as famílias nessa região.
Dentre estas inúmeras histórias localizei a família Cazumbá. Aqueles que fizeram
parte de minha trajetória e construção de identidade, agora aparecem no palco de meus
questionamentos. O sobrenome de origem africana trazia a marca da presença de sujeitos
de cor na região. Também se tornaram proprietários de terras, senhores rurais de destaque
econômico ainda no final do século XIX. A família Cazumbá torna-se protagonista das
experiências dos indivíduos de cor em São Gonçalo dos Campos.
Todavia, verifica-se uma diversidade de histórias vivenciadas por homens e
mulheres na região onde se concentravam o setor agroexportador de tabaco e agricultura
de subsistência e criação de gado. Neste sentido, o presente trabalho objetivou
compreender como os indivíduos e os grupos familiares descendentes de escravos se
esforçaram para inserirem-se nas redes sociais livres em São Gonçalo dos Campos, entre
1870 a 1910. Assim, problematizei como as conjunturas históricas, sociais, econômicas,
demográficas, culturais e políticas estiveram entrelaçados com as experiências, decisões,
construções de redes sociais e relações familiares de ex-escravos, livres, libertos e dos
seus descendentes, especialmente dos Cazumbá.
7
Entrevistas com: Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011. Expedito Pinheiro de
Carvalho, concedida em 25 de março de 2011. Cleusa Machado de Carvalho, concedida em 25 de março
de 2011.
8
Entrevista com Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011.
20
A partir dessa inquietação lancei mão de três objetivos: analisar as relações sociais
entre os diversos grupos (senhores, pequenos proprietários, trabalhadores, livres e
trabalhadores escravos e outros); identificar e questionar sobre as estratégias manipuladas
pelos indivíduos para inserirem-se nas redes sociais livres, especialmente a compra de
terras por descendentes de escravos e, ainda, as mudanças nas relações de trabalho no
século XIX. Por fim, compreender as características e os laços familiares e sociais
formados e mantidos pela população de São Gonçalo dos Campos.
Tal espaço geográfico é conhecido historicamente como zona de passagem do
Recôncavo aos sertões, além de uma vasta região interiorana. Povoada de pequenos
proprietários, constitui um cenário rico de um passado, contidos nos livros de nota,
inventários, processos cíveis e uma série de documentos ainda não explorados pelos
pesquisadores que se dedica ao estudo. Uma parte destes documentos está armazenada
em péssimas condições, empoeirados, impossibilitado o acesso ao pesquisador.
Entretanto, algumas pesquisas foram feitas e pode contribuir para conhecer melhor os
espaços de convívio, as formas de trabalho, os modos de sobrevivências e os valores que
partilhavam os indivíduos deste local.
No ano de 1984 foi publicado edição comemorativa do primeiro centenário do
município, o livro Memória Histórica de São Gonçalo dos Campos, de Marli Geralda
Teixeira e Maria José de Sousa Andrade9, o qual muitos pesquisadores passaram a
consultar como instrumento de pesquisa sobre os mais diversos assuntos. Sendo fruto de
estudos financiado pelo governo municipal possui conteúdo genérico, isto é, uma
compilação com dados geográficos, históricos, políticos e sociocultural do local. Nele
encontrei informações gerais sobre os proprietários de terras e a economia fumageira, não
indo muito além desses aspectos. Além disso, é um trabalho que pretende abordar mais
de três séculos de história, prendendo-se mais a evidências sobre a política da região.
Localizei ainda textos como A Decadência Fumageira: São Gonçalo dos Campos,
1951 – 197610, em que o autor, Narciso Silva, faz um exame dos fatores que levaram à
crise da cultura fumageira em São Gonçalo dos Campos, entre 1951 a 1976. O autor
apresenta alguns aspectos históricos desta produção, contudo, quando refere à mão de
obra, adverte que esta lavoura estava centrada nas mãos dos pequenos proprietários e, por
conseguinte, um elevado número de indivíduos arrendatários de terras que utilizava a
9
TEIXEIRA, Marli Geralda, ANDRADA, Maria José (org.). Memória Histórica de São Gonçalo dos
Campos. Ed. Comemorativa do 1° centenário do município, 1984.
10
SILVA, Op. Cit.
21
força de trabalho de lavradores sem posse de territoriais. Talvez esse seja o primeiro
trabalho a fazer uma interpretação específica da cidade a respeito da economia fumageira
na segunda metade do século XX.
O trabalho de Luciana Lessa11, faz uma interpretação sobre o cotidiano e as visões
de mundo das integrantes da irmandade de Boa Morte em São Gonçalo dos Campos na
primeira metade do século XX. Esta produção mais aproxima das experiências de
liberdade efetuadas pelos agentes não brancos desta região. Contudo, é notória a carência
de trabalhos dedicados a compreender as expectativas e experiências de liberdade em São
Gonçalo dos Campos.
Outras obras12, também, vão apresentar os contornos da economia fumageira,
todavia, aborda toda região do Recôncavo. A exemplo do estudo realizado por Nardi
Bastide acerca do fumo no período colonial. Neste a região dos Campos da Cachoeira
aparece contígua às outras zonas fumageira do Recôncavo. Nesta narrativa sobressai a
população envolvida no cultivo do gênero agrícola e a grande importância adquirida pelo
produto no século XVIII. O autor apresenta em sua órbita um grupo de pequenos
agricultores, homens e mulheres, rendeiros, agregados e, até mesmo, escravos13.
Outro trabalho sobre o tema foi realizado por Barickman em “Um Contraponto
Baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780 – 1860”14. A partir
da análise de inventários, censos, registros de notas entre outras fontes, o autor centrou
seus esforços no estudo comparativo das economias realizadas no Recôncavo baiano.
Embora não esteja centrada na freguesia fumageira de São Gonçalo dos Campos o autor
vai fazendo comparações que permitem visualizar a dinâmica socioeconômica no final
do século XVIII e primeira metade do século XIX.
Neste sentido, para alcançar os objetivos acima citados coletei depoimentos de
lavradores na perspectiva da História Oral15. Com essas dezenas de entrevistas, depareime com uma multiplicidade de histórias do vivido, do cotidiano. A ideia era buscar
evidências das experiências dos sujeitos de cor na vida cotidiana, nos antagonismos e
11
LESSA, Luciana Falcão. Senhoras Do Cajado: Um Estudo Sobre A Irmandade Da Boa Morte De
São Gonçalo Dos Campos. Salvador: UFBA, 2005 (Dissertação de Mestrado em História)
12
NARDI, Op. Cit. BARICKMAN, Op. Cit.; SILVA, Op. Cit.
13
NARDI, Op. Cit.
14
BARICKMAN, Op. Cit.
15
THOMPSON, Paul. A voz do passado. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1992. RICOEUR, Paul. Tempo e
Narrativa. Campinas/SP: Martins Fontes, 2010. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In:
Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro: CPDOC/ Fundação Getúlio Vargas, v. 2 n 3, 1989. POLLAK,
Michael. Memória e identidade Social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n.10, 1992, p.
200-212.
22
acomodações, nas casas, no armazém, na roça, na rua, na igreja, no diálogo com o outro,
em suas múltiplas relações. Em seguida esquadrinhei fontes que identificassem nomes,
sobrenomes, laços familiares, contatos e contratos sociais dos sujeitos.
A partir desse volume de informações surgiram questionamentos sobre: quem
eram esses sujeitos? Como, em quais lugares, em quais momentos, em que circunstâncias
teceram os fios, os caminhos e as histórias de vida? O que estes indivíduos nos dão a ver,
escutar e refletir sobre a trajetória de suas vidas? Como fazem? Quais imagens,
linguagens, silêncios, indícios, esquecimentos e interjeições empregam? Como trabalhar
essas histórias? Como organizá-las, como trançar os seus fios, como datar vários tempos,
as várias imagens, as memórias? Como compreender os significados dados por eles às
suas experiências?
Estas questões são difíceis de responder, todavia, investigar a trajetória de
indivíduos e de famílias é seguir os rastros deixados pelos sujeitos ao longo da história 16.
As experiências constroem a identidade do grupo ao mesmo tempo em que retrata a vida
de luta, de migração, deslocamento e permanência.
Ao deparar com esse contexto bem diversificado busquei fazer uma análise em
que as Ciências Sociais e a História vão estar se comunicando em uma afinidade
transdisciplinar, adotando o modelo metodológico sugerido por Ginzburg no âmbito da
história social e que se fundamenta na relação entre os indivíduos e a sociedade 17. Neste
sentido, comecei com investigação sobre a condição socioeconômica que permita
compreender a posição do sujeito e os esforços para se inserirem socialmente.
De tal modo percebi que o indivíduo enquanto sujeito histórico atravessa por
diferentes fluxos sociais. Ele é um entroncamento em que diferentes estradas, diferentes
séries históricas vêm encontrar-se e, ao mesmo tempo, vêm separar-se18. Toda essa
encruzilhada torna as individualidades plurais, referenciais, locais, marcados por tensões
16
LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as
ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. GINZBURG,
Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfo1ogia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. LIMA,
Henrique Espada. A Micro História Italiana: escalas, indícios e singularidades. São Paulo: Record,
2006.
17
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.).
Usos Sobre o poder simbólico e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1996, p.183-191.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 5ª Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. Cap. 1, p. 7-16. DEL
PRIORE, Mary. Biografia: quando o indivíduo encontra a História. Topói, v.10, n.19, p. 7-16, jun/dez
2009.
18
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A singularidade: uma construção nos andaimes pingentes da
teoria histórica. In:____. História: a arte de inventar o passado: ensaios de teoria da história. Bauru: Edusc,
2007, p. 248.
23
ou, como sugere Bourdieu o enredo de uma vida “é o atestado visível da identidade do
seu portador através dos tempos e dos espaços sociais, o fundamento da unidade das suas
sucessivas manifestações e da possibilidade socialmente reconhecida de totalizar essas
manifestações em registros oficiais 19”. Assim, a identidade de um indivíduo ancora-se no
pressuposto “de que a vida constitui um todo, um conjunto coerente e orientado, que pode
e deve ser apreendido como expressão unitária de uma ‘intenção’ subjetiva e objetiva, de
um projeto20”, portanto, ela passa por uma trajetória sinuosa. O indivíduo é o fio 21
condutor de uma nova abordagem social e de uma nova modalidade de reconstrução do
vivido.
As trajetórias individuais possibilitam “percorrer em múltiplos espaços e tempos
as relações nas quais elas se inscreviam”. O individual é apreendido como a decorrência
da ação de indivíduos em suas relações com outros indivíduos. Assim, a perspectiva micro
analítica de seguir as trajetórias individuais, como o conceito de experiência de
Thompson22, é adotado em nesta análise. Este conceito exibe a multiplicidade de
conjunturas em que os sujeitos estão inseridos, possibilitando a reflexão sobre as ações
de homens e mulheres a partir das condições históricas dadas. Ainda, adotei a ideia de
categoria social enquanto um elemento histórico, processual e relacional. Igualmente
tomei o conceito de cultura como uma relação contínua dos sujeitos sociais, refletindo
interesses por vezes antagônicos.
Outro aporte teórico que me deu embasamento para consideração do conceito de
identidade enquanto configurações relacionais e dinâmicas foi Frederick Barth 23. O
indivíduo, nesta visão, estabelece espaços de autonomia, delineando estratégias de acordo
com seu ponto de vista individual ou coletivo. Deste modo, os estudos de Thompson e
Barth ajudaram a pensar a concepção de identidade social como flexível e dinâmica, na
qual as distintas categorias identitárias estabelecem-se e reproduzem-se continuamente
em contextos particulares, marcados pelo cruzamento de múltiplas variáveis 24. Além
19
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.).
Usos Sobre o poder simbólico e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1996, p. 187.
20
BOURDIEU, op. cit. p. 184
21
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela
Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
22
THOMPSON, E. P. Costumes em comum – Estudos sobre cultura popular tradicional. São Paulo:
Companhia das letras, 1998.
23
BARTH, F. Grupos Étnicos e suas fronteiras. In: POUTGNAT & STREIFFENART. Teorias da
etnicidade. Seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: UNESP, 1998.
24
HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, editora da UFMG,
2003. LE GOFF, Jacques. A história nova. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995. THOMPSON, E. P.
Costumes em comum – Estudos sobre cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das letras,
24
disso, a vida dos sujeitos sociais é marcada por rupturas, limitações e continuidades, que
remodelam sem parar as representações de si.
Com isso, notei que a escrita da história do indivíduo é múltipla e repleta de
possibilidades inscritas nas relações do presente com passado, não obstante, para decifrála, é necessária a leitura indiciária dos sinais, dos signos, das marcas, dos gestos, dos
silêncios deixados pela ação dos homens e relatados pelos seus testemunhos. A
diminuição da escala de análise e a busca pelo nome de um mesmo indivíduo em
diferentes fontes, além de revelar estruturas sociais diferentes também disponibilizam
sugestões teóricas que contribuem para o entendimento do processo social como um todo.
Neste sentido, adotei uma diversidade de versões e análise seguidas por diferentes
pesquisadores, para que até mesmo os fatos “imponderáveis da vida real” sejam
analisados com profundidade25.
Para tanto, reuni diversas fontes: inventários, certidão de batismo, de óbitos,
escritura de compras e vendas, escritura de arrendamento, carta de alforria, registro de
terras, jornais, além do depoimento oral, o que me deu supor para tentar reconstruir as
trajetórias desses indivíduos no tempo de escravidão e liberdade.
Os livros de Registro Eclesiástico (século XIX) existentes na secretaria
Arquidiocese de Feira de Santana, (consultei 10 deles entre os anos de 1862 a 1915),
sendo consultado 3 livros de certidão de óbitos, 1880/1910, 5 livros de certidão de
nascimento, 1860/1915 e apenas 2 de casamento de 1870/1905, permitiram relacionar os
dados e compreender como os indivíduos construíram as redes de parentescos. Também
utilizei registros de nascimentos referente a Feira de Santana, mas, especificamente, São
José das Itapororocas na primeira metade do século XIX, sendo dos anos de 1808 a 1848.
Nestes investigava sobre a existência de José Ferreira Cazumbá.
Com os dados do censo de 1872, fiz análise sobre a dimensão geral da população
do período. Embora apresente falhas, uma vez que as autoridades locais eram indiferentes
ao recenseamento, pois acreditavam que o censo servia para estabelecer novos impostos
1998. BARTH, F. Grupos Étnicos e suas fronteiras, CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma
História das Últimas Décadas da Escravidão na Corte. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. CHALHOUB,
Sidney. Trabalho Bar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque.
Brasiliense: São Paulo, 1986. FRAGA, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: histórias de escravos e
libertos na Bahia (1870-1910) Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006.
25
MALINOWSKI, Bronislaw. Introdução. In: Os argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Ed. Abril,
1979.p. 17- 34.
25
e para o recrutamento militar26, os dados censitários fornecem informações utilizáveis a
respeito da população dessa freguesia.
A consulta de 35 inventários post mortem de moradores da Freguesia de São
Gonçalo dos Campos, no período de 1850-1898, esclareceram não só sobre o modo de
vida da população da Freguesia, como o tamanho das fazendas, de terras e escravos, tipos
de cultivo e condições de sobrevivência. A importância fundamental desta investigação
foi à avaliação dos bens dos descendentes das famílias no final do século XIX, permitindo
traçar o perfil das propriedades e de seus proprietários.
Em 100 escrituras de compra e venda de fazendas e terras permitiram
compreender o tamanho das fazendas, o valor das terras, o perfil do comprador e
vendedor. As 60 escrituras de venda e compra de escravos apresentam informações acerca
da origem, à raça, a idade e o sexo dos escravos dando-nos a noção geral da escravaria da
Freguesia.
As escrituras de arrendamentos comprovaram as negociações feitas pelos
proprietários de terras e os lavradores, em 1881, e a presença de rendeiros nos anos finais
do século XIX. Encontrei 70 escrituras que datam do ano de 1881. Ainda, utilizei 10
registros de procurações que constam informações que permitiram obter mais dados a
respeito do perfil dos proprietários e identidades dos escravos como a identificação pela
cor, idade, origem e filiação.
Igualmente importante para “cruzamentos” de dados foram os jornais, os quais
apresentam dados sobre a economia, política e sociedade. Assim, utilizei 10 exemplares
que circulavam em Feira de Santana e em São Gonçalo dos Campos no final do século
XIX e início do século XX.
Do mesmo modo coletei 10 entrevistas com descendentes de escravos e
fazendeiros, moradores das antigas fazendas fumageiras com idade entre 40 e 100 anos.
Nestas indaguei sobre as histórias contadas por seus pais e avós a respeito das
experiências de seus antepassados no sentido de reconstituir e analisar as relações
matrimoniais, o trabalho na roça, o dia a dia na fazenda, os contatos com os diversos
sujeitos sociais, a religião e cultura.
Por fim, de posse das fontes e bibliografia que oferece um leque de discussões
sobre identidade, o Recôncavo, economia, trabalho, escravidão, família, passei a escrever
a dissertação. Para melhor entendimento organizei em quatro capítulos. O primeiro
26
BARICKMAN, Op. Cit.
26
passeia pelos mistérios envolto no sobrenome Cazumbá. Conta a história de José Ferreira
Cazumbá e encerra fazendo analogia a família em São Gonçalo. O segundo discute sobre
o contexto social, demográfico, econômico e cultural, na segunda metade do século XIX.
No terceiro tratei sobre famílias, comunidades, relações entre indivíduos no contexto do
arrendamento de terra, especial na primeira década do século XX. No capítulo quatro
enfoquei a experiência histórica da família Cazumbá como indivíduos egressos da
escravidão, mas que conseguiram ascender socialmente como proprietários de terra.
A grosso, a dissertação não é um estudo apenas de indivíduos ou grupos familiares
de ex-escravos, antes exibe os indivíduos nas relações sociais em que eles estavam
imersos e que ajudaram a definir o contexto do pós-abolição. Assim, analisei as relações
que envolvem todas as experiências ligadas a senhores, escravos, ex-senhores, exescravos, negros, pardos, crioulos, livres, migrantes, mestiços, homens, mulheres e
quaisquer outros que aparecerem nessas interações.
A abordagem sobre os personagens Cazumbá e os grupos familiares possibilitam
a reconstrução e análise sobre a complexidade das relações sociais marcadas pelo trabalho
escravo e livre. Neste sentido, este estudo justifica-se na medida em que permite
compreender a importância socioeconômica das relações sociais ligada ao trabalho
escravo e ao trabalho livre no Recôncavo na segunda metade do século XIX e na primeira
década do século XX.
27
CAPÍTULO I Cazumbá: nomes e rastros
“Escritura de venda, compra, paga e quitação que faz o Major Francisco
Antônio de Carvalho, da fazenda antigamente denominada Várzea e hoje
sobrado, pela, digo[ilegível]das terras, casas e benfeitorias da fazenda
antigamente denominada Várzea, hoje sobrado, pela quantia de um conto
oitocentos mil réis, a Manoel Ferreira de Cerqueira e João Cardozo Cazumbá,
como abaixo declara.
Saibam quantos este instrumento e escritura de venda, compra, paga e
quitação, virem, que sendo o ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo
de mil oitocentos e setenta e nove, aos trinta dias do mês de junho do dito ano,
neste arraial da freguesia de São Gonçalo dos Campos, termo da cidade da
Cachoeira, em meu cartório compareceram presentes partes justas e
contratadas, de uma como vendedor, o Major Francisco Antônio de Carvalho,
morador da cidade de Santo Amaro, e de outra, como compradores Manoel
Ferreira de Cerqueira e João Cardozo Cazumbá, moradores desta freguesia, e
bem conhecidos de mim escrivão de paz interinamente juramentado, no
impedimento do atual, do que dou fé. E logo pelo referido vendedor me foi
dito em presença das testemunhas no fim declaradas e designadas, que era
senhor e legítimo possuidor das terras, casa e benfeitorias da fazenda
antigamente denominada Várzea e hoje Sobrado, cuja fazenda lhe foi
adjudicada pelo juiz de órfãos da cidade de Santo Amaro , Joaquim, digo,
Amaro, Joaquim [ilegível] de Almeida Freitas , por parte dos menores do
finado comendador Antônio Lopes Ferreira e Souza, que era seu devedor, e a
quem pertencia a referida fazenda acima declarada, cujas terras se divide da
maneira seguinte; pelo lado sul com terras que ficaram de João da Maya
Machado, pelo este com terras que ficaram do padre Gonçalo de Souza, e pelo
leste e norte, com terras de Estevão Machado, tudo por baixas e estradas, cujas
terras assim demarcadas, e divididas, casa, e benfeitorias, vende e vendido
tinha de hoje em diante aos senhores Manoel Ferreira de Cerqueira e João
Cardozo Cazumbá, pela quantia de um conto e oitocentos mil réis, cuja quantia
recebia ao fazer desta de que lhes dei pura e geral quitação, sem que jamais em
tempo algum, ele vendedor nem seus herdeiros possa reclamar esta venda, ante
se obrigara a fazê-la boa. E pelas referidos (Folhas 11) compradores que
pagaram a devida impostos, foi dito que aceitavam a presente[...]
E digo assim outorgaram, abaixo assinaram com as testemunhas presentes José
de Medeiros Borges e Álvaro Pereira de Cerqueira, assinando a rogo do
comprador João Cardozo Cazumbá, por não saber escrever, Francisco da Silva
Menezes que todos assinaram depois de lida por mim[ilegível] Pedreira de
Cerqueira, escrivão de paz interinamente juramentado, no impedimento do
atual, que a escrevi27”
Se não fosse o sobrenome, a citação acima, seria apenas mais uma das muitas
ocorrências de compras de terras na Freguesia de São Gonçalo dos Campos, nas décadas
finais do século XIX. Mas o sobrenome, Cazumbá, carregava um enigma a ser decifrado.
Quem era mesmo este João Cardozo Cazumbá? Não tinha, apenas, muitas interrogações,
mas várias respostas a cada pergunta. Pois bem, semelhante a águia que defere voo, sem
interdição das ruínas e dos tempos, porque o investigador se apropria destes sinais — voei
27
Escritura de Compra e Venda de Terras. 1879. BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro
do Tabelionato n. 2.
28
por sobre os destroços dos indícios dos documentos até à África, no incansável questionar
sobre mistérios que escondiam os Cazumbá. Deste modo, recorrendo aos linguistas
busquei a primeira constatação que importa saber sobre a etimologia da palavra.
Rastreando o nome: microanálise etimológica de Cazumbá
Diretamente Lopes28 ofereceu as primeiras asseverações, afirmando que a palavra
é de origem banto. Sua presença e significado no Brasil têm a ver com os ramos desses
povos cujos membros foram trazidos da África, ou vieram como comerciantes, uma vez
que o termo tem origem em África. Embora seja do grupo etimolinguístico Cazumbi,
Zimbi, Nzumbi, originário do Kibundo Nzumbi, macro grupo etnolinguístico Bantu29 o
seu conteúdo enquanto instituição sociopolítica é resultado de uma longa história de
migração que se processou no centro africano a partir de 868 30.
Sendo assim a
compreensão da adoção do nome pela população não branca no Brasil está em estreita
relação com a trajetória e a formação dos falares africano de origem Bantu na África e a
diáspora que sofreu estes povos ao longo dos três séculos de escravidão na América 31.
Contudo, as línguas africanas no Brasil encontram-se marcadas pela ruptura de
sua continuidade no espaço original, no convívio de uma heterogeneidade linguística pela
presença da língua portuguesa, das línguas indígenas e de outras línguas africanas nas
diferentes épocas e nos diferentes espaços geográficos. Assim, a análise dos léxicos
africanos deve ser contextualizado a partir da chegada de diversos grupos negros para o
trabalho escravo na lavoura de fumo e açúcar. Exemplo do Cafundó 32, em que o léxico
28
LOPES, Nei. Novo Dicionário Banto Do Brasil. RJ: Pallas, 2003, p.76; LOPES, Nei. Enciclopédia
Brasileira Da Diáspora Africana. SP: Selo Negro, 2004, p180.
29
LODY, R. Cazumbá. Máscara e drama no boi do Maranhão. Museu do Folclore Edison Carneiro,
Rio de Janeiro: Ministério da Cultura, 1999, p.6.
30
VANSINA, J. A África Equatorial e Angola: migrações e o surgimento dos primeiros estados. In:
História Geral da África IV. África do século XII ao século XVI. SP: Ática\ UNESCO, 1988.
31
HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, editora da UFMG,
2003.
32
Cafundó é um bairro rural situado no município de Salto de Pirapora com aproximadamente 150 km de
São Paulo. Sua população, predominantemente negra, divide-se em duas parentelas: a dos Almeida Caetano
e a dos Pires Pedroso. Com a população de 80 habitantes nem todos detêm o título legal das terras. Constam
que estas foram doadas a dois ancestrais escravos pelos antigos senhores e fazendeiros, pouco antes da
Abolição, em 1888. Nela plantam milho, feijão e mandioca e, ainda, criam galinhas e porcos, apenas para
atender parte de suas necessidades de subsistência. Também trabalham como diaristas, boias-frias e como
empregadas domésticas. A fala do Cafundó é uma variedade do português regional, um dialeto rural,
caracterizada por um léxico de origem banto, quimbundo principalmente, que os representa como africanos
no Brasil. O léxico contém cerca de 160 itens, com 15 verbos e 2 advérbios. Em relação aos usos que ainda
SLENES, Robert W. “Histórias do cafundó”, In. VOGT, Carlos e FRY, Peter, Cafundó – A África no
Brasil. São Paulo: Cia das Letras; UNICAMP, 1996.
29
de origem banto provocou o questionamento sobre a presença e a permanência de línguas
africanas no Brasil e a possibilidade dessa fala ser procedência crioula.
Ainda, de acordo com Queiroz o dialeto de Tabatinga 33 possui um pequeno
vocabulário de origem africana, banto (quimbundo, principalmente), possuindo muitos
termos semelhantes aos do Cafundó, com morfemas derivacionais e flexionais do
português arrolados aos prefixos de origem africana. Ca-, por exemplo, de camona
“criança”, nas línguas bantos marca o grau diminutivo 34. De acordo com
Silva35atualmente existe famílias com sobrenome Cazumbá em África _ Angola e
Moçambique que possuem palavras que levam o mesmo prefixo:
“Kazumbá, Kazumba ou ainda Zumba; existem nomes em Angola, no sul temos
muitas pessoas com esse nome[...] a sua pergunta seria se é nome próprio ou
sobrenome[...]? Em primeiro lugar os nomes e sobrenomes se confundem muito
em Angola, eu tenho certeza que Zumba pode ser nome próprio ou sobrenome
de alguém, o que difere em Angola por vezes [é o] grau, por exemplos: em todas
línguas bantas, a palavra que leva o prefixo [ka] Ka-zumba igual o grau
diminutivo. O pai no caso têm o nome de Zumba grau superlativo, e essa é
primeira confusão, e a segunda é de não termos regra de nomes e sobrenomes
em Angola. E agora o a letra [k] foi substituída por portugueses [c] e
naturalmente foi evoluída para acento. Normalmente esse nome é comum na
etnia Chokwe, Ganguela e Nhemba, e os chokwes são famosos nos rituais e
máscaras, Zumba também está relacionado à divindade[...]36.
Numa análise diacrônica do léxico Cazumbá é possível identificar o prefixo Ca
de origem africana, o morfema identificador de classe nominal diminutiva, contudo, a
apreciação não deve excluir os lugares sociais, econômicos e culturais, onde as
“heranças” transitam, uma vez que transplantadas para o Brasil às experiências dos
sujeitos podem revelar traços de seu longo e intenso contato com o português, elaborações
elucidativas para compreensão do significado.
A palavra Cazumbá também se veste de mito em diversos personagens no
território brasileiro. O bumba-meu-boi no estado do Maranhão faz referência à cultura a
33
Tabatinga é um grupo de negros localizados na cidade de Bom Despacho (MG), a 140 km de Belo
Horizonte. Possuem morfemas derivacionais e flexionais do português, embora seja possível identificar em
diversos termos prefixos de origem africana. QUEIROZ, S. Pé preto no barro branco: a língua dos
negros da Tabatinga. Belo Horizonte: Editora da UFMG. 1998.
34
QUEIROZ, S. Pé preto no barro branco: a língua dos negros da Tabatinga. Belo Horizonte: Editora
da UFMG. 1998, p. 79.
35
SILVA, José Bento da. “Cazumbá: História e memória no Recôncavo Baiano(1888-1950)”. Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011, p. 3.
36
Fernando Wilson Sabonete, natural de Angola, da etnia Nhaneka-humbi. In.: SILVA, José Bento da.
“Cazumbá: História e memória no Recôncavo Baiano(1888-1950)”. Anais do XXVI Simpósio Nacional
de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011.
30
africana na tradição popular brasileira37. O folclore maranhense apresenta bois com um
ritmo compassado, com badalo, pandeirões, chapéus bordados com penas de ema e a
presença do cazumbá. O cazumbá nesta situação se relaciona em meio aos espíritos e aos
humanos.
Para além da tradição popular no Maranhão o mito perpassa o imaginário popular
do Recôncavo e do Sertão no emblemático personagem José Ferreira Cazumbá. A
tradição oral mistura ficção e realidade, alguns autores apresentam-no como ex-escravo,
ex-oficial de justiça, delator do consorte Lucas da Feira38.
Seguindo as pistas: investigando os documentos oficiais
A tradição oral de moradores do Bairro São João do Cazumbá, remetia o nome de
José Ferreira Cazumbá a experiência de Lucas da Feira, isso porque ambos teriam
escondido, sobre uma árvore, no local39. Entretanto, afirmam que José, antes amigo,
entregou-lhe as autoridades por conhecer aquele esconderijo.
Enveredando em torno das pegadas deixadas nas fontes oficiais, foi possível,
desvendar os mistérios que envolvia a tradição oral. Encontrei jornais publicados no
século XX com notícias do século XIX40. Esses jornais feirenses faziam alusão a Lucas e
Cazumbá em diversas situações:
Uma multidão de crianças desleixadas pelos pais, pela escola, vagabundando
pelas ruas e pelas roças, frequentando pelas mansões terríveis dos vícios. [...]
Uns trilhando no latrocínio, outros na bebedice, outros na prostituição, mais
outros na valentia e consequentemente nas rixas entre os companheiros, modos
todos estes como se iniciou Lucas pelas ruas desta cidade. [...] Vi, então por
uma imagem do pensamento, todos estes Lucas e Cazumbás incipientes
37
MATOS, Elisene Castro. CAZUMBAS: Etnografia de um personagem do bumba-meu-boi. Dissertação:
São Luís, 2010.
38
ROMERO, Sílvio. Folclore Brasileiro 1 – Contos Populares do Brasil. RJ: Livraria José Olympio,
1954; MORAIS FILHO, Melo. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: Senado Federal
(Coleção Biblioteca Básica Brasileira) 2002; MOURA, Clóvis. Dicionário da escravidão Negra no
Brasil. SP: Edusp, 2004. CAMPOS, Sabino. Lucas o demônio negro. Romance folclórico baiano, Rio de
Janeiro, 1957, p. 136. Jornal Folha do Norte- 28/01/1939. Ano de referência 1848. p. 101. nº 1542.
AMSMG. LIMA, Zélia de. Lucas Evangelista: o Lucas da Feira; estudos sobre a rebeldia escrava em
Feira de Santana. 1807 – 1849. Salvador: UFBA, 1990. (Dissertação de Mestrado)
39
CARVALHO, M. C. M. de. Comunidades Negras Rurais e Memórias de Quilombos. Feira de Santana:
UEFS, 2008. (Monografia conclusão do curso de graduação em História pela Universidade Estadual de
Feira de Santana.)
40
Supostamente esses noticiários, publicados em 1938 a 1948, período do governo Vargas, momento de
golpe de Estado, traziam mensagens subliminar expondo histórias de sujeitos viveram no século XIX. Além
disso, os jornais eram um poderoso instrumento de comunicação no qual segmentos da sociedade exprimem
publicamente as suas opiniões, uma vez que, entre os anos 20 e 40 os jornais era expressão da elite pensante
do país. Assim, para não provocar reações das forças opressivas do governo recontava, muitas vezes
lembrado, o mito do “herói” da resistência à escravidão. Supostamente os auditores de jornais para que a
população feirense se mobilizasse contra a ditadura varguista. CAPELATO, Maria Helena. “O Controle e
os Limites da Liberdade: Imprensa Paulista (1920-1945)” In: Revista Brasileira de História, São Paulo, v.
12, nº 23 – 24, pp. 55 -75, set. 1991/ ago. 1992.
31
fermentando em seus espíritos os produtos de todas essas perversões, uns
porque não têm pai, nem mãe, nem avós, nem tutores, são sós na sociedade,
outros porque os têm e são tanto os outros pervertidos morais. [...]41
A memória social no início do século XX discorria que “os salteadores”, Lucas e
Cazumbá, por vezes bandidos, tornaram-se espelhos às crianças em Feira de Santana, pois
os pais e a escola, deixavam “vagabundando” pelas ruas e pelas roças, convivendo com
vícios, latrocínio, bebidas, prostituição e brigas.
Este episódio retrata os bastidores da memória feirense a respeito do século XIX.
Em linhas gerais existia um forte imaginário social projetando perfis e enredos no tocante
a curta trajetória do personagem Cazumbá. A luz projetada sobre o protagonista levoume a questionar sua real aparição naquela conjuntura social. Entretanto, continuei
seguindo rastro, indícios, pistas na tentativa de esclarecer as minhas indagações
concernentes as relações construídas no seio de Feira de Santana.
Deparei-me com uma diversidade de jornais que circularam, em Feira de Santana,
no final do século XIX e início do século XX, bem como, Manuscritos do Monsenhor
Galvão, no Arquivo Monsenhor Renato Galvão/Casa do Sertão/UEFS. Inspirei-me no
método de Zadig, deveria seguir a experiência de Sherlok Holmes42, para perseguir e
reconstituir cada informação sobre aquele indivíduo para, posteriormente, centrar no
esforço detetivesco tentando adivinhar coisas secretas e ocultas nas fontes oficiais.
A primeira pista encontrei nos manuscritos do Monsenhor Galvão. O documento
transportava o rastro de seu óbito, em 1857,
Morte de Cazumbá (1857). José Ferreira Cazumbá, casado em (sem
identificação) nupciais com Dona Rosa de Jesus, seus filhos natural de São
José das Itapororocas. Preso por ter morto a cacete Marcelino Lopes da Silva,
em oficial de Justiça evadiu-se em comprade de Lucas no batismo de Calatino,
filho do salteador. Para obter o perdão e a prometida recompensa e outros
auxílios43.
Tais pistas foram estímulos necessários para continuar a investigação. Observei
alusão ao Jornal Vida Feirense, a data de sua morte e o nome da mulher. Isto significava,
que este personagem, não se tratava apenas de um mito presente no imaginário feirense.
Entretanto, nos jornais, bem como em quase todos indícios, o personagem Cazumbá
aparece como coadjuvante a Lucas da Feira.
41
O Município. n. 48, 22 de maio de 1909, p. 1-3
CHALHOUB, Visões da Liberdade; GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e
história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
43
Vide Vida Feirense 4/04/1942 -Livro I, Miscelânea| Monsenhor Renato Galvão, p. 382, Arquivo
Monsenhor Renato Galvão (Casa do Sertão/UEFS)
42
32
O jornal Folha do Norte, 20 de maio de 1939, sinalizava que José Ferreira
Cazumbá, oficial de Justiça, nos tempos remotos tornou-se companheiro de Lucas da
Feira, por isso, conhecia os locais de esconderijo do, então, cúmplice. Continua narrando,
que em diligência de justiça, Cazumbá, feriu violentamente um sujeito. Vindo este a óbito,
o oficial, foi “Submetido a processo, foi pronunciado, e então ocultou-se44”. O juiz cons. Góes,
incumbiu a José Ferreira Cazumbá “a missão de capturar Lucas, em troca de livrá-lo do
crime”45. Assim, Cazumbá organizou uma expedição, na qual Lucas foi capturado.
Um ano depois da notícia acima, o mesmo jornal 46, divulga um noticiário, de
1865, sobre a prisão de Lucas. Neste Cazumbá aparece como compadre e denunciante do
esconderijo do salteador. De acordo ao noticiário, José Ferreira Cazumbá andava guiando
a polícia pelas serras e matos, até que aprisionou o bandoleiro, na Pedra do Descanso,
dando-lhe um tiro. Recebendo em troca 4.000,00 contos e absolvição dos crimes, que
“não eram poucos”47.
O Jornal48, publicado em 1848, detalha os episódios precedentes a prisão de
Lucas, entretanto, não reconhece a participação de José Cazumbá. Pontua que o bandido
se ocultava, em companhia de Benedito (cúmplice) e uma moça, que raptará, num rancho
de palhas, com ferimentos no braço, ocasionado pelos tiros deflagrados pelo policial
Serafim.
Em cortejo à delegacia, escoltado pela polícia de “baioneras”, que mantinha o
povo à distância e abria espaço para os que carregavam Lucas na rede, por que do
machucado, “indefeso, implorou a Cazumbá”, que acompanhava ao lado dos condutores,
para “protege-lhe a vida”. Nestas investigações notei que os jornais, tentavam criar a
imagem para Cazumbá como um bandoleiro arrependido dos seus crimes, ao mesmo
tempo, um ex-observador da lei.
Quando encontrei a Certidão de Óbito, no arquivo do Arcebispado, em Feira de
Santana, parte do enigma foi revelado. Tal que, se existia uma certidão atestando a morte
nos registos eclesiásticos é porque esta pessoa vivia. Neste observa-se, ainda, informações
a respeito de sua situação civil, raça e idade e morte.
44
Jornal Folha do Norte, 20 de maio de 1939. Arquivo Monsenhor Renato Galvão (Casa do Sertão/UEFS)
Jornal Folha do Norte, 20 de maio de 1939. Arquivo Monsenhor Renato Galvão (Casa do Sertão/UEFS)
46
Jornal Folha do Norte, 1940. Arquivo Monsenhor Renato Galvão (Casa do Sertão/UEFS)
47
Jornal Folha do Norte, 1940. Arquivo Monsenhor Renato Galvão (Casa do Sertão/UEFS)
48
Jornal Folha do Norte, 1948. Arquivo Monsenhor Renato Galvão (Casa do Sertão/UEFS)
45
33
Consta no registro que faleceu em 6 de abril de 1856, casado, pardo, com 40 anos
de idade, sendo sepultado no cemitério de São José das Itapororocas49. Não é conhecido
a causa da morte, para tal, carece maiores investigações. Persiste a pergunta: quem foi
José Ferreira Cazumbá? Por que o nome tem tanta representação no cenário do Sertão e
Recôncavo baiano?
Todo desenho acerca desta figura misteriosa pode ter relação com outras
situações, ou apenas com o sobrenome, Cazumbá, por força de sua origem etimológica.
Algumas pistas sinalizam para a presença da denominação Cazumbá desde o período
colonial no século XVIII. No livro de Luiz Alberto Moniz Bandeira 50 nos capítulos IX e
X aparece José Pires de Carvalho e Albuquerque, secretário de estado e proprietário de
muitos engenhos, dentre eles o Engenho Cazumbá. Esse mesmo engenho é citado por
Schwartz51 no livro Segredos Internos na página 321. De acordo com Schwartz os
escravos deste engenho “procuravam companheiras entre as ex-escravas e suas
descendentes que viviam nas imediações do engenho”52. Valim, em Corporação dos
enteados, página 105, destaca que o Engenho Cazumbá, em 1859, foi arrematado pelas
religiosas do Convento da Santa Clara do Desterro da Bahia, ao devedor Baltazar de
Vasconcelos Calvacanti, pai da abadessa Catarina dos Anjos e vendido a José Pires e a
sua esposa, pela quantia de 7.400,00 reis 53.
49
Certidão de Óbito, 1856. Arquivo do Arcebispado de Feira de Santana.
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Feudo: A Casa da Torre de Garcia D' Ávila RJ: Civil. Brasileira,
2000.
51
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial 1550- 1835.
SP: Cia. das Letras, 1988. p. 321
52
SCHWARTZ, op. cit.
53
VALIM, Patrícia. Corporação dos enteados: tensão, contestação e negociação política na
Conjuração Baiana de 1798. São Paulo:USP, 2012. (Tese de Doutorado)
50
34
Mapa 1: Fronteiras de engenhos ao longo do Rio Jacuípe
Mapa: Fronteiras de engenhos ao longo do Rio Jacuípe. Baseado em um mapa de 1864 no Mosteiro de São
Bento em Salvador, no qual aparece o engenho denominado Cazumbá. In. SCHWARTZ, Stuart B.
Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial 1550- 1835. SP: Cia. das Letras, 1988.
p. 344.
Fraga54 também menciona o engenho Cazumbá, no final do século XIX,
localizado na freguesia de Rio Fundo. Este autor não cita o proprietário, ele exibe apenas
o trabalhador rural envolvido em um conflito. Possivelmente este engenho seja o mesmo
citado pelos autores anteriores. Embora faltando informações acerca da origem da
denominação do engenho, tais autores referem-se à localização deste no Recôncavo. Já
Luiz Freire exibe o engenho Cazumbá em sua dissertação 55 localizado em Feira de
Santana. Esse engenho foi catalogado nos inventários do Coronel Joaquim Pedreira de
Cerqueira. Nele havia 101 escravos, os quais trabalhavam em diversas ocupações. O
proprietário possuía também fazendas de gado: Bonita, Mocambo e Ponta do Poço, em
Camisão.
No Arquivo Cível do Fórum Felinto Bastos, em Feira de Santana, encontrei duas
escrituras de compra e venda de escravos, 1865. Sendo a primeira, feita pelo Reverendo
Vigário José da Purificação Meneses, da Freguesia de Santa Bárbara, através do
procurador Reverendíssimo José Cupertino de Araújo, ao Coronel Joaquim Pedreira de
Cerqueira, Freguesia da Purificação dos Campos, do escravo Eugenio, crioulo, 20 anos,
54
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia
(1870-1910) Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006, p. 299.
55
FREIRE, Luiz Cleber Morais. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: agropecuária, escravidão e
riqueza em Feira de Santana, 1850- 1888. p. 73.
35
natural das “Uriçangas”, do termo da Purificação, pela quantia de 1.200.00 reis56. Na
segunda, com o mesmo objetivo da anterior, o Coronel Joaquim Pedreira da Cerqueira
compra o escravo Antônio, jejê, 40 anos mais ou menos, solteiro, serviço da lavoura, pela
quantia de 900.00 reis, ao proprietário Salustiano Aurelyo da Silva. Ambos escravos para
trabalhar no Engenho Cazumbá/Purificação dos Campos57.
Observa-se que ambas escrituras destacam o engenho denominado Cazumbá,
pertencente ao Coronel Joaquim Pedreira de Cerqueira, o mesmo citado por Freire. Nas
escrituras o engenho localiza-se em Purificação dos Campos/Santo Amaro e, não em Feira
de Santana como sugeriu o autor. Neste contexto, faço fé que a denominação,
provavelmente, tenciona a relação com a África, mesmo que a relação fosse senhorescravo, lance que carece mais buscas, talvez um retorno início do século XVIII,
especialmente a população escrava do engenho.
Voltando ao personagem Cazumbá, no final da década de 1950, Sabino de
Campos escreveu um romance intitulado “Lucas o demônio negro” que narra a história
de Lucas da Feira apresentando episódios que marcam a construção da identidade coletiva
sobre José Ferreira Cazumbá. Tais narrativas trazem à guisa de questionamento reflexões
a respeito do sobrenome Cazumbá que representa a força africana no cotidiano da região.
Sabino de Campos, fez uma descrição fisionômica de José Cazumbá. Nesta expõe
o indivíduo alto, forte, pardo, de cabelos crespos, testa ampla e limpa, olhos penetrantes,
boca, nariz e orelhas regulares, mãos e pés grandes, barba raspada 58, casado pela terceira
vez, mas que não tinha filhos. Sendo um sujeito, forte e superior a Lucas, é admirado por
este que em reconhecimento, respeito e amizade pede-lhe para batizar seu filho Colatino,
em uma missa em São José das Itapororocas. Nesta versão Cazumbá era irmão de
Gregório, antigo proprietário de Lucas. A descrição feita por Campos avulta os traços
raciais de Cazumbá, logo, sua força física e respeito social59, até mesmo por Lucas da
Feira, que o admira e era-lhe subserviente.
56
Arquivo Cartorial, Fórum Felinto Bastos, Feira de Santana, Escritura pública de compra e venda, Vila de
Feira, 23/set./1865 – fls. 183v-184v.
57
Arquivo Cartorial, Fórum Felinto Bastos, Feira de Santana, Escritura pública de compra e venda, Vila de
Feira, 25/set/1865- fls.186v-187v.
58
CAMPOS, Sabino. Lucas o demônio negro. Romance folclórico baiano, Rio de Janeiro, 1957, p. 120.
59
BARTH, F. Grupos Étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, P. Teorias da etnicidade. Seguido de
grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth, Philippe Poutignat, Jocelyne Streiff-Fenard. Tradução
de Elcio Fernandes. São Paulo: UNESP, 1998.
36
Assim, José Ferreira Cazumbá, morador da Freguesia de São José das
Itapororocas60, 40 anos de idade61, casado por três vezes, tendo como terceira esposa Ana
Rosa de Jesus62, em diligência ao povoado de Nagé, Feira de Santana, em companhia de
Marcelino Lopes da Silva, assassinou um velho sertanejo a pauladas63. Por isso foi preso
e processado, conseguindo, depois de algum tempo, fugir da cadeia, escondeu-se na casa
do pai de sua segunda mulher, Luiz da Cunha Vieira.
Segundo Lima, Cazumbá, enquanto oficial de justiça, havia participado da prisão
de Januário, escravo, membro do bando de Lucas. Ele foi responsável, 07/01/1843, em
levar a intimação a Antônio Amorim Bezerra, proprietário de Januário, para que fosse
reconhecer o cativo 64.
Quando o governo afixou edital, em 13 de maio de 1846, convocando a população
para capturar o salteador, em troca de 4 contos de réis, Cazumbá, sendo considerado um
criminoso, por que do homicídio ao sertanejo, prevendo a absolvição, tornou-se o
principal responsável pelas buscas e aprisionamento de Lucas.
Lima destaca que antes da publicação deste edital outro já havia sido lançado
oferecendo o prêmio de 2 contos de réis, entretanto, quase ninguém se interessou pela
quantia65. Possivelmente o aparente desinteresse, fosse pertinente a dificuldade e o perigo
atido a figura do bandoleiro. Além disso, nesta época José Cazumbá ainda não necessitava
de anistia, fato que provocou grande inquietação social e, provavelmente, a associação de
Cazumbá como um dos componentes do bando.
Assim, quando o edital foi divulgado o ex-sogro Luiz da Cunha alertou a Cazumbá
sobre as vantagens que ele teria se conseguisse aprisionar Lucas. Além dos 4 contos,
granjearia absolvição do delito. Cazumbá, por sua vez, incube-o a procura do juiz e
60
Correspondência – Juízes Feira de Santana – Of. 29.01.1848 – Maço 2373. APEB, Livro de Óbito –
Itapororocas - AAB.
61
De acordo com LIMA, Zélia de. Lucas Evangelista: o Lucas da Feira; estudos sobre a rebeldia
escrava em Feira de Santana. 1807 – 1849. Salvador: UFBA, 1990. (Dissertação de Mestrado), porém a
certidão de óbito apresenta a mesma idade quando morreu em 1856 dez anos depois. Ver Livro de Óbito –
Itapororocas. 1859 – Arquivo Arquidiocese de Feira de Santana.
62
LIMA, Zélia de. Lucas Evangelista: o Lucas da Feira; estudos sobre a rebeldia escrava em Feira de
Santana. 1807 – 1849. Salvador: UFBA, 1990. (Dissertação de Mestrado). Vide Vida Feirense 4/04/1942
- Livro I, Miscelânea| Monsenhor Renato Galvão, p. 382. Arquivo Monsenhor Renato Galvão (Casa do
Sertão/UEFS)
63
LIMA, 1990, CAMPOS, Sabino. Lucas o demônio negro. Romance folclórico baiano, Rio de Janeiro,
1957, Livro I, Miscelânea| Monsenhor Renato Galvão, p. 382. Arquivo Monsenhor Renato Galvão (Casa
do Sertão/UEFS)
64
Correspondência – Juízes – Feira de Santana – 1843 – 1847. Of. 02.03.1843 – Maço, 2373 – Arquivo
Público do Estado da Bahia (APEB).
65
LIMA, 1990,
37
delegado do município de Feira, Dr. Leovegildo de Amorim Figueiras, para apresentalhe as propostas para capturar o tão procurado salteador66.
Tudo certo, Cazumbá dispõe de plano de captura e auxiliares: Manoel Gomes,
sertanejo, odiava Lucas por este ter violentado a sua filha Ana Gomes, virgem, parda;
Bendito da Tapera, crioulo; Aprígio, pardo; José Luiz Gonzaga; Bernardino; Serafim;
Cipriano de Freitas, escravo; Porfirio, escravo do coronel Pedreira; Luciano Plácido e
Marcelino 67. Assim, observa-se que o grupo estava formado por indivíduos racialmente
miscigenados, além dos escravos, sendo que, os traços de raça os distinguem
etnicamente68. Portanto, os fluxos e contatos, estabelecidos por José Cazumbá, posicionao entre os sujeitos de cor e escravos de Feira de Santana, na primeira metade do século
XIX e as autoridades sociais.
Cazumbá, - 23 de janeiro de 1848, segunda feira - manhã posterior a festa da
Capela e arraial de Nossa Senhora de Humildes, filial da Paróquia de São Gonçalo dos
Campos, três léguas de Feira de Santana, pela estrada de Santo Amaro, ficou sabendo
pelo escravo, Cipriano de Freitas, que Lucas descansava sob a sobra de uma árvore –
quixabeira – no local que ficava próximo a estrada que ligava o Mochila ao Buris, nas
imediações da Pedra do Descanso, após comparecer à festa69.
Bem informado, dirigiu-se ao local, acompanhado por Manoel Gomes, onde
avistou o salteador, deferindo-lhe um tiro que acertou o braço esquerdo. Aquele, porém,
baleado fugiu para seu rancho, na fazenda Tapera, próximo ao poço do Gurunga 70,
imediações do Rio Jacuípe, sendo capturado na companhia de Maria Romana.
Cazumbá, ainda, investigou minuciosamente o local, apreendendo armas,
munições, bálsamo, capanga, algumas moedas, uma faca de ponta, outros pertences e
remédios destinados ao tratamento do ferimento no braço 71. Neste conjunto observa-se a
identificação de árvore, estrada, poço, pedra, bálsamo que pleiteiam os espaços de crenças
e saberes de origem africanas72.
66
CAMPOS, Sabino. Lucas o demônio negro. Romance folclórico baiano, Rio de Janeiro, 1957, p. 136.
Jornal Folha do Norte- 28/01/1939. Ano de referência 1848. p. 101. nº 1542. Arquivo Monsenhor Renato
Galvão (Casa do Sertão/UEFS).
67
LIMA, 1990, CAMPOS, 1957, Correspondência – Polícia – 1828-1849, maço 3113 - APEB. Id., Polícia
– of. 09.04.1848 – maço 6383 – APEB. Id., Ibid., of. 17.04.1848 – maço 6383 – APEB.
68
BARTH, Op. Cit.
69
CAMPOS, 1957.
70
LIMA, 1990, p. 199.
71
CAMPOS,1957, p. 146.
72
LESSA, Luciana Falcão. Senhoras Do Cajado: Um Estudo Sobre A Irmandade Da Boa Morte De
São Gonçalo Dos Campos. Salvador: UFBA, 2005 (Dissertação de Mestrado em História); BARTH, F.
Grupos Étnicos e suas fronteiras. In: POUTGNAT & STREIFFENART. Teorias da etnicidade. Seguido
38
Com o aprisionamento de Lucas, Cazumbá, recebeu o prêmio de 4 contos de reis,
o qual foi repartido com os auxiliares, ficando com o quinhão de 2 contos de réis 73, além
da absolvição do homicídio. Voltou a ocupar cargo de oficial de justiça, posição
importante para desaparição do processo que era considerado um criminoso 74.
Além de tudo que almejava, recebeu da população feirense o prestígio que antes
não tinha: “e fruindo de novo, a consideração dos feirenses, enfiava os grossos polegares nas
cavas do colete de fusta e inchava o peito dizendo com imponência: - Nada como a posição social
do indivíduo! ”75 Campos dá uma entonação diferenciada ao responsável pelas buscas e
pela prisão, pontuando a repercussão social do fato, tornando Cazumbá o mais admirado
dos homens, recebendo, sobretudo, uma grande quantidade de donativos de comerciantes
de Feira de Santana, São Gonçalo, Cachoeira, São Felix, Muritiba, Santo Amaro,
Salvador e de inúmeros particulares 76.
Neste relato José Ferreira Cazumbá recebeu maiores honras do que os jornais e a
memória coletiva costumavam ostentar. Portanto, levanto o questionamento, quem foi
José Ferreira Cazumbá? Recebeu as honras que Sabino relata no romance? Por que este
fato foi esquecido da memória coletiva feirense? Porque este homem aparece, apenas,
como um bandido, ligado ao bando de Lucas? Teria sido uma tentativa de apagar a
imagem de um homem pardo como um protagonista de tão esperado feito?
O jornal Folha do Norte, 1940, havia uma reclamação relacionada aos oficiais de
justiça. Assim, o jornalista advertiu que os oficiais ocupantes do cargo em Feira de
Santana, chegavam de Santo Amaro, pessoas de cor, que de costume, transgrediam as
leis77. Embora não citasse literalmente José Cazumbá, fazia analogia aos tempos passados
e a presença de oficiais de cor parda, que cometeu crime. A partir desse dado é possível
indicar que Cazumbá fosse de Santo Amaro. É provável, ainda, que seu sobrenome tivesse
relação com o Engenho Cazumbá, na presença de escravos de origem banto e através do
processo de negociação e especialização da mão de obra78 conquistasse representação,
destaque e, consequentemente, a liberdade. Daí deslocamento para Feira onde se tornou
de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: UNESP, 1998. PARÉS, Luís Nicolau. A
formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 2006. PARÉS, Luís Nicolau. O Processo de Crioulização no Recôncavo (1750- 1880).
Revista Afro- Ásia, v. 33, p. 87- 132. 2005. REIS, João José. Identidade e Diversidade Étnica nas
Irmandades Negras no Tempo da Escravidão. Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 2, n. 3, 1997.
73
LIMA, 1990, p. 200
74
CAMPOS,1957.
75
CAMPOS,1957, p. 153.
76
CAMPOS, 1957.
77
Jornal Folha do Norte, 1940. Arquivo Monsenhor Renato Galvão (Casa do Sertão/UEFS).
78
SCHWARTZ, S. Escravos, roceiros e rebeldes. São Paulo: Edusc, 2001.
39
oficial de justiça. Bem como discute Poppino79 sobre o processo migratório e a chegada
de indivíduos de outros locais em Feira de Santana. Também Fraga 80 destaca a migração,
embora seu trabalho dê conta do final do século XIX, é possível sugerir que estes
deslocamentos eram comuns bem antes, desde final do século XVIII. Também o contexto
das revoltas no Recôncavo, entre 1822 a 1835, favoreceu o deslocamento de indivíduos81,
bem como, a participação de escravos nestas lutas que, mediante a isso, muitos
conquistaram a liberdade.
Entretanto, outros dados negam a chegada de Cazumbá no período denominado
Recôncavo rebelde. Em 1822, foi exposto, no Registro de Povoação do Distrito da Vila
de Santa Anna, e da mesma Freguesia, como oficial de justiça, pardo, possuído de fogo,
com 3 pessoas sob seu julgo 82. O documento não informa sobre sua situação civil,
todavia, sabe-se que foi casado por três vezes e que não possuía filhos. Nem tão pouco
constam indícios que identificassem seus ascendentes ou parentes.
Notadamente na região do Recôncavo e do Sertão histórias e personagens
aparecem ligados as identidades africanas ou miscigenadas. Contudo, os indícios não
foram totalmente capturados para estabelecer relações e semelhanças com o sujeito que
desponta no início do capítulo, comprando terras em São Gonçalo dos Campos.
Sem a genealogia, José Ferreira Cazumbá, desaparece aqui. Todavia ao entrevistar
os descendentes de João Cardozo Cazumbá as narrativas acionam ao parentesco entre
ambos, reaparecendo como a fênix, nas reminiscências dos Cazumbá pós abolição.
Ao ser questionado sobre sua família, José Cazumbá, comissário de menores de
São Gonçalo dos Campos, afirmou que não conhecia todos de sua família, pois em “São
Gonçalo tinha muita gente, outros foram para a Capital”. Advertiu, também, que o exoficial de justiça, em Feira de Santana, José Ferreira Cazumbá83, responsável pela prisão
de Lucas da Feira, era seu tio. Igualmente Maria de Lourdes Cazumbá 84, escrivã do
cartorial civil, expôs a sua ancestralidade ao oficial de justiça.
79
POPPINO, Op. Cit.
FRAGA, Op. Cit.
81
REIS, João José. A tradição rebelde II: revoltas escravas na Bahia independente. In.: Rebeliões Escrava
no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. Edição revista e ampliada. São Paulo: Companhia
das Letras, 2003. SILVA, Eduardo, REIS João José (orgs.). Negociação e Conflito: a resistência negra
no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras. 1996.
82
Registro de Povoação do Distrito da Vila de Santa Anna, e da mesma Freguesia, 1822. Arquivo
Monsenhor Renato Galvão (Casa do Sertão/UEFS)
83
Entrevista com José Cazumbá, Comissário de Menores, concedida em 12 de abril de 2008.
84
Entrevista com Maria de Lourdes Cazumbá, concedida em 16 de maio de 2012.
80
40
Para o momento, as investigações esbarram na falta de pistas que indique tal
consanguinidade. Todavia, é importante compreender que tanto a personalidade, José
Ferreira Cazumbá, em Feira de Santana, como a família, em São Gonçalo dos Campos,
têm uma forte representação social. Silva, no artigo intitulado “Cazumbá: História e
memória no Recôncavo Baiano (1888-1950) ” adverte que:
Por exemplo, uma funcionária do Fórum, quando soube do nosso interesse,
disse-nos: “O sobrenome Cazumbá em São Gonçalo é pomposo, vale mais do
que dinheiro”. Aliás, as informações apontavam para uma distinção da família
Cazumbá em relação aos demais descendentes de africanos residentes na
cidade85.
Neste sentido, surgem novos questionamentos sobre o mistério por traz dos
indivíduos e do nome Cazumbá? Quais as experiências estavam inseridas? Como se
formou a família em São Gonçalo dos Campos? A investigação segue no sentido de
desvendar estes mistérios. Por que os indivíduos vão aparecer no século XX, com ampla
representação, bem como surgem Avenidas e Bairro em São Gonçalo e Feira de Santana
denominadas Cazumbá.
Assim, o personagem do início deste capítulo, João Cardozo Cazumbá,
compareceu no cartório, em 30 de junho de 1879, consorciado a Manoel de Ferreira de
Cerqueira, moradores desta freguesia, como compradores e o Major Francisco Antônio
de Carvalho, morador da cidade de Santo Amaro, como vendedor. Presentes partes, o
escrivão de paz interinamente juramentado, [ilegível] Pedreira de Cerqueira, declara ser
os compradores conhecidos e sem impedimento para comprar as terras, casa e benfeitorias
da fazenda antigamente denominada Várzea, Sobrado, na localidade Cruz, pela quantia
de 1: 800$000 reis86 (um conto e oitocentos mil reis) 87. Sendo quitado o valor, o vendedor
e seus herdeiros em tempo algum poderiam reclamar a venda. Assim, assinam com as
testemunhas presentes José de Medeiros Borges e Álvaro Pereira de Cerqueira, assinando
a rogo do comprador João Cardozo Cazumbá, por não saber escrever, Francisco da Silva
Menezes.
A fazenda foi adjudicada pelo Juiz de órfãos da Cidade de Santo Amaro, Doutor
Joaquim Alves de Almeida Freitas, do finado Comendador Antônio Lopes Ferreira e
SILVA, José Bento da. “Cazumbá: História e memória no Recôncavo Baiano (1888-1950)”. Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011. p. 4.
86
Conto de réis – Moeda portuguesa que corresponde a um milhão de reais ou um milhar de mil-réis. Mil
réis – Milhar do real. Ver NEVES, Erivaldo Fagundes. Posseiros, rendeiros e proprietários: estrutura
fundiária e dinâmica agromercantil no Alto Sertão da Bahia (1750-1850). Recife: [s.n.], 2003.
87
Escritura de Compra e Venda de Terras. 1879. BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro
do Tabelionato n. 2
85
41
Souza, que era seu devedor. Sendo as demarcações são: ao sul com terras de João do
Mayo Machado; oeste do Padre Gonçalo de Souza e leste e norte com terras de Estevão
Machado88. O mapa abaixo sugere a possível localização da fazenda.
Mapa 2: São Gonçalo dos Campos
Fonte: USGS. Serviço Geológico do Governo dos Estados Unidos. Acessado no dia 3 de junho de 2014
em: http://earthexplorer.usgs.gov/
Embora este seja o primeiro documento que saltou aos olhos da investigadora,
esta não foi a primeira aquisição de terras realizada por Cazumbá. Anexo ao Pedido de
Embargo, 1895, estava um translado de venda e compra de terras, de 30 de maio de 1874.
No documento Maria Joaquina da Silva, viúva de José da Silva, vendeu ao senhor João
Cardozo Cazumbá, 33 braças e meia de terras da Fazenda Terra Dura, pelo valor de 300
mil reis. Recebendo do comprador 250 mil reis em moeda e o restante, 50 mil reis,
receberia a partir de 2 meses da data compra, ficando a terra penhorada 89. Mediante essa
compra João Cazumbá tornou-se um proprietário de terra no local denominado Cruz e
88
Escritura de Compra e Venda de Terras. 1879. BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro
do Tabelionato n. 2
89
Pedido de Embargo, 1895. Arquivo Cartorial/ Fórum João Mendes. São Gonçalo dos Campos.
42
quatro anos mais tarde irá comprar com Manoel de Ferreira de Cerqueira a fazenda
Sobrado.
Pois bem, em inventários, registros de compra e venda de imóveis e na tradição
oral, encontrei os vestígios de João Cazumbá, bem como de outros sujeitos que tiveram
suas vidas influenciadas por diversas transformações que sucederam as últimas décadas
do século XIX. Em 1884, a Freguesia foi elevada à condição de Município. Em 1888,
com o fim da escravidão, o direito de cidadania dos ex-escravos foi estabelecido
legalmente e um ano depois foi implementada a ordem republicana. Todavia, as estruturas
fundiárias permaneciam na mesma situação. Havia concentração de terras nas mãos de
alguns proprietários e a maioria da população sem posse de terras trabalhando como
lavradores de fumo.
Bem, talvez João Cardozo Cazumbá, fosse mais um dos proprietários de fazenda
fumageira, mas fui cair na tentação de fazer uma análise de perto, do tipo microscópica,
saber sua genealogia e experiência com a escravidão, daí, apareceu “sinais”. Assim, como
Holmes90, seguirei recuperando os variados fatores sociais, econômicos, materiais,
afetivos, demográficos e culturais que tiveram direta e indiretamente conexos àquela
trajetória. É partindo desse contexto que se forma o segundo capítulo.
90
CHALHOUB, Visões da Liberdade, GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e
história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
43
CAPÍTULO II São Gonçalo dos Campos: propriedade,
economia fumageira e produção de subsistência 1870 – 1890.
O espaço geográfico deste estudo a cidade de São Gonçalo dos Campos,
encravada no Recôncavo baiano, numa região que desde o século XVII foi denominada
de “Campos da Cachoeira”, por se localizar em terras planas e arenosas favoráveis ao
cultivo do fumo, gênero de grande importância para o comércio agroexportador 91. Além
do fumo, cultivavam-se os mais diversos gêneros de subsistência, tal como, a farinha de
mandioca, feijão, o milho, produtos destinados ao mercado, como, destaca-se a criação
de gado92.
A região era passagem regular de viajantes que partiam do porto de Cachoeira,
seguindo o caminho da “Estrada Real”,93 em direção à Feira de Santana e ao sertão. Tais
deslocamentos contribuíam para abertura de novos caminhos e exploração da Província94.
Pesquisas apontam que a penetração inicial se deu no século XVII por bandeirantes 95 que
demandavam metais preciosos e trabalho escravo indígena.
Segundo a historiadora Marli Geralda Teixeira foi a partir da construção da capela
ao santo São Gonçalo do Amarante96 pelos jesuítas do seminário de Belém entre os anos
de 1687 a 169097, que se originou o núcleo populacional, bem como pela produção de
fumo que se tornou a principal atividade econômica.
Na década de 1690, o arraial de São Gonçalo foi elevado à categoria de freguesia,
pertencente à Vila de Cachoeira, portanto, a capela de São Gonçalo do Amarante estava
submetida à autoridade político-administrativa da comarca de Cachoeira, como uma de
suas freguesias98. Mas, antes mesmo de se originar a paroquia ao São Gonçalo do
Amarante, existia, de acordo com Caldas, um pequeno arraial que se erigia ao redor do
engenho das irmãs Izabel e Maria Pereira Lobato, no local que situava a capela de Nossa
91
NARDI, Op. Cit.; BARICKMAN, Op. Cit.; SILVA, Op. Cit.
TEIXEIRA & ANDRADA, Op. Cit., p. 43
93
FREIRE, 2011, p.45.
94
TEIXEIRA & ANDRADA op. cit., p.26.
95
Enciclopédias dos municípios p. 333.
96
TEIXEIRA & ANDRADA, op. cit., p.26.
97
CALDAS, José Antônio. Notícia geral de toda Capitania da Bahia desde o seu descobrimento até o
presente ano de 1759. Ed. Fac-similar, s. c. p., 1925 p. 13.
98
TEIXEIRA & ANDRADA, op. Cit., p.27.
92
44
Senhora das Mercês, sendo mais tarde incorporada a freguesia99. Em termo definição
histórica e geográfica:
Os campos da Cachoeira finalmente definem-se como uma região de 5 mil
quilômetros quadrados que se dividia em dois setores. O primeiro, situado
a oeste e a sul dos rios Paraguaçu e Jacuípe, reuniu em quarto das fazendas
e as freguesias de Outeiro Redondo, São Pedro da Muritiba, Santo Estêvão
do Jacuípe e parte de São José das Itapororocas. O segundo setor, situado
a leste e nordeste dos mesmos rios, representava 75% das fazendas e incluía
a totalidade das freguesias da Cachoeira, São Gonçalo dos Campos e a
maior parte da de São José das Itapororocas100.
A região dos Campos da Cachoeira consiste em um fragmento da zona fumageira,
localizado ao longo dos rios Paraguaçu e Jacuípe, sentido ao Sertão. Dentro deste espaço,
foram identificados às freguesias de São Gonçalo e São José das Itapororocas, quais
destacavam como importantes campos econômicos para produção de fumo e criação de
gado101.
É difícil determinar o período em que se iniciou a produção de fumo em São
Gonçalo dos Campos. Ao que parece, o fumo, a mandioca e a criação de gado, como em
boa parte do Brasil, foi recurso largamente utilizado entre os colonizadores europeus
durante o período colonial sob o objetivo de exploração das novas terras. Portanto, o
cultivo do fumo se estendia pelas laterais do Paraguaçu e Jacuípe fazendo a ligação entre
a zona de entreposto que liga o Recôncavo ao Sertão.
Atividades econômicas: agricultura fumageira e de subsistência, e criação de gado
Tratando-se da principal atividade econômica, as informações a respeito da
produção de fumo servem para entender as relações sociais que se estabeleceram no local
nos anos posteriores à abolição. Contudo, as fontes consultadas não apresentavam de
maneira específica à quantidade do cultivo do fumo nem a safra que as fazendas
produziam no final do século XIX, como as categorias de cor dos proprietários de terras
e dos trabalhadores livres. Antes, as descrições estavam relacionadas aos acessórios e
bens utilizados no processo produtivo.
Alguns autores destacam a fumicultura como economia de pobres, que utilizava
majoritariamente a mão de obra familiar para a produção. Apesar disso os inventários
99
CALDAS, op. cit., p. 13.
NARDI, 1996, p. 40-41.
101
POPPINO, Op. Cit.; NARDI, Op. Cit. BARICKMAN, Op. Cit.; TEIXEIRA & ANDRADA, Op. Cit.
100
45
sinalizam que tal produção era realizada entre os grandes proprietários 102. Como pude
perceber através da presença de armazéns de fumo entre os bens dos proprietários de
terras: Maria Jerônima de Trindade, em 1829-1862, de Maria Lucia de Souza, em 18681871, de Maria Joaquina da Trindade, em 1846-1866, Francisca Alves de Almeida, em
1882, de Egídio Lopes de Almeida, em 1868-1871, Maria Carolina do Amor Divino, em
1869-1876103, utilizando mão de obra escrava para produção.
As fontes sinalizam que a produção fumageira favorecia os proprietários que
utilizavam a mão de obra escrava, entretanto, não pode descartar os pequenos lavradores
sem posse de terras entre os produtores. Provavelmente, isso se deva porque diferente da
produção de açúcar, a fumicultura não requeria grandes preparos técnicos, nem tão pouco
grandes extensões territoriais104. O fabrico era realizado pela utilização da mão de obra
escrava consorciada a mão de obra livre que no presente estudo vai sendo caracterizada
por diferentes categorias.
Ainda, nota-se que esta economia era de grande importância por seu caráter
exportador. A presença de armazéns nos inventários estudados retrata que como em outras
regiões do Brasil a produção de fumo, neste local, destinado aos armazéns do Recôncavo,
vinculou-se ao tráfico de escravos no comércio triangular 105, sendo, que propiciava uma
relação com o mercado internacional, no caso: europeus, asiáticos, africano, norte da
América e ao mercado interno, especialmente nas zonas de mineração 106.
Embora tenha sofrido considerável queda na comercialização, na segunda metade
do século XIX, supostamente as causas tivessem ligada a independência, em 1822, e ao
fim do tráfico, em 1850107, não provocou consequências drásticas, haja vista o fumo já
havia encontrado outros mercados108. Como assinalou Andrade109 a decadência que se
passa, em 1850, foi apenas do refugo, pois o melhor fumo continuava a encontrar amplo
102
De acordo com BARICKMAN, op. cit. O cultivo do fumo em São Gonçalo em 1835 podia ser realizado
pela família de camponeses lado a lado com um ou dois escravos que eles possuíssem.
103
Inventários de Maria Jerônima de Trindade, 1829-1862, de Maria Lucia de Souza, 1868-1871, de Maria
Joaquina da Trindade,1846-1866, Maria Carolina do Amor Divino, 1869-1876, Francisca Alves de
Almeida, 1882, de Egídio Lopes de Almeida, 1868-1871, BAHIA, Arquivo Público Municipal de
Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixas 198 e 218.
104
BARICKMAN, op. cit., p, 293
105
VERGER, Pierre. Fluxo e Refluxo: o tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos
os Santos dos séculos XVII a XIX. 3. Ed. São Paulo: Corrupio, 1987.
106
SILVA, op. cit.
107
MATTOSO, Kátia M. de Queiroz. Bahia: Século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, VERGER,
op. cit., NARDI, op. cit.
108
SILVA, op. cit.
109
ANDRADE, Manuel Correia. Apud. BORBA, Silva Fraga. Industrialização e exportação de fumo na
Bahia. Salvador. Mestrado da UFBA, 1975, pp. 4 e 5.
46
mercado nos diversos comércios mundiais e, mesmo, no comércio interno. Contudo, a
fumicultura, no final século XIX, já era tradicional, lavrado em todo território da
Província, especificamente nas regiões exportadoras situadas próximas ao litoral110. O
mapa abaixo representa os locais que a produção de fumo se concentrava:
Mapa 3. Áreas de plantio de fumo do Recôncavo da Bahia
Fonte: Reproduzido por AZEVEDO, Aroldo de. Regiões e paisagens da Brasil. São Paulo, Companhia
Editora Nacional, 1952, Série Brasiliana. In: BRANDÃO, M. A. (org.) Recôncavo da Bahia: sociedade e
economia em transição. Salvador, Fundação Jorge Amado, Academia de Letras da Bahia; Universidade
Federal da Bahia, 1998, p. 33.
Essa região se apresentava como uma importante produtora de fumo 111. De acordo
com Sonneville, dos anos 1872 até 1880, o fumo ocupava o primeiro lugar na pauta dos
exportadores baianos, especialmente para Alemanha. Assim,
Em 1859/60 o fumo ocupava pela primeira vez o primeiro lugar na pauta de
exportação da Província, perfazendo 30,9% do total de exportado, na frente do
açúcar com apenas 26,6%. No ano agrícola de 1862/63, em decorrência da guerra
de Secessão, a exportação de fumo se expandiu enormemente, ultrapassando
pela primeira vez o milhão de arrobas exportadas pelo Brasil. O fumo tornou a
ocupar o primeiro lugar na pauta das exportações baianas nos anos agrícolas de
1872/73, 1875/76, 1877/78, 1878/79, 1879/80112.
110
As zonas foram Cachoeira, São Miguel das Matas, Nazaré, Maragogipe, São Felix, Cruz das Almas, São
Felipe, Santo Antônio de Jesus e todo Recôncavo sul. MATTOSO, op. cit., p. 462.
111
Dados da Junta Comercial da Bahia para o século XIX. Ver: Invenção da Bahia na Evolução Nacional.
1ª etapa: 1850-1889. Comércio V3T2 SEPLANTEC. CPE. Salvador, 1980, p. 121 a 134.
112
SONNEVILLE, Jacques. Os lavradores de fumo: Sapeaçu-Ba. 1850-1940. Salvador, Mestrado em
Ciências Sociais da UFBA, 1982. p. 53.
47
Só em 1877 a Bahia exportou 500.000 fardos de fumo 113. Neste período
estabeleceram as firmas Costa Ferreira & Penna, Stender & Cia., Dannemann, Suerdieck,
Vieira de Mello, no Recôncavo, o que tornou a produção fumageira a atividade econômica
mais significativa da Província 114. Assim como “abriu espaço para produtores ainda mais
modestos, uma vez que não necessitavam das instalações de beneficiamento do tabaco em rolo,
levando a maior participação de produtores domésticos nesta lavoura ”115.
Nos últimos anos do século XIX, a lavoura do fumo constituía o principal artigo
de exportação e, ao raiar do século XX, já contando com a instalação das fábricas de
charutos, continuou contribuindo com as rendas auferidas pela exportação na economia
da Bahia, sendo o Recôncavo o maior fornecedor de fumo e derivados de todo o Estado116.
A partir de Vilhena é possível compreender que antes deste período, no século XVIII,
havia "nesta Capitania diferentes paragens, onde se lavra tabaco; os sítios, porém onde há
mais fazendas dele são com preferência a todos do Brasil, os campos da Cachoeira"117.
Ainda, de acordo com Mattoso118, no final do mesmo século, só no distrito de Cachoeira
havia oito mil plantadores de fumo, sendo a maioria rendeiros. Essa singularidade dos
plantadores de fumo, a partir de então, criou uma espécie de tradição em torno dessa
atividade e um tecido social territorialmente diferenciado. Neste sentido, vamos encontrar
no final do século XIX e início do século XX uma conjuntura de produtores em que vai
comportar além dos médios, os pequenos como, especialmente os rendeiros. Portanto, o
fumo não era uma economia de pobre, antes o investimento do governo, no século XVIII,
já sinaliza a ampla importância desse gênero para economia agroexportadora da
Província. Não era cultivo de pobre, mas abria possibilidades para que pequenos
lavradores dela participassem.
A economia fumageira movimentava a vida social da freguesia e, especialmente,
com a aquisição de terras e nas relações de trabalho escravo e livre, promovendo novas
113
TEIXEIRA, op. cit., p. 52.
LEIPNITZ, Guinter Tlaija. “Contratos, preços e possibilidades: arrendamentos e mercantilização da
terra na fronteira sul do Brasil, segunda metade do século XIX”. Topoi, Revista de História, Rio de
Janeiro.v. 13, n. 24, jan.-jun. 2012, p. 43-59. Disponível em: <www.revistatopoi.org/numeros_
anteriores/topoi17/topoi_17_-_artigo3_-_sistemas_agr%C3%A1rios_na.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2013.
115
LOPES, Gustavo Acioli. “Caminhos e descaminhos do tabaco na economia colonial”, Dossiê Cultura
e Sociedade na América Portuguesa Colonial, Revista MNEME v.5, n. 12, out./nov.2004 Disponível em
http://www.seol.com.br/mneme. p. 6. Ver, ainda, SANTOS, op. cit.
116
BORBA, op. cit. p. 10; ALMEIDA, Rômulo. Traços da História Econômica da Bahia no último
Século e Meio. (1.° Conferência de um Curso de Economia promovido pelo Instituto de Economia e
Finanças da Bahia, em 7/11/1949). Salvador (Ba.): junho de 1951, n.2. PP. 8-9.
117
VILHENA, op. cit. p. 199.
118
MATTOSO, op. cit. P. 463.
114
48
oportunidades de trabalho, de acúmulo de riquezas e de mobilidade119. A aquisição de
terras representava a conquista da posse de uma propriedade para o cultivo do gênero, ao
mesmo tempo, a possibilidade de ter uma teia de trabalhadores rendeiros produzido sem
receber o necessário pelo trabalho efetivado.
Esse quadro vai até 1888 com a abolição da escravatura e a principalmente
produção de fumo em corda, depois deste ano passou a ser fabricado em folha 120. Porém,
antes da abolição já havia uma intensificada produção em folha. Essa tendência demonstra
que, em contradição com a crise da escravidão que anunciava o trabalho livre, a produção
fumageira permanecia em contínuo crescimento. Alicerçada, portanto, nos regimes de
trabalho escravo e livre, contexto que pode ser apresentado como um palco de uma
diversificada rede social no Recôncavo 121.
Figura 1: O processo de secagem do fumo por famílias de lavradores
Fonte: NUDOC. Secagem de fumo em um sítio na área rural de São Félix, provavelmente Outeiro Redondo.
Provavelmente esta imagem represente o início do século XX.
A imagem acima apresenta a secagem do fumo realizada por uma família de
plantadores, o que demonstra que nem todas as famílias possuíam armazéns. Nota-se a
presença de indivíduos de cor, homens e mulheres participando do mesmo processo
119
MATTOSO, op. cit., BARICKMAN, op. cit.. POPPINO, Rollie. Feira de Santana. Salvador, Itapuã,
1998.
120
SANTOS, Milton. In: BRANDÃO, M. A. (org.) Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em
transição. Salvador, Fundação Jorge Amado, Academia de Letras da Bahia; Universidade Federal da
Bahia, 1998, p. 33.
121
BARICKMAN, op. cit., SILVA, op. cit., MATTOSO, op. cit. Arquivo Público Municipal de Cachoeira,
Provincial, Inventários, Caixa 218.
49
produtivo. A imagem demonstra que a secagem acontecia na parede da frente da casa que
morava a família produtora. A parede de taipa, como descritas nos inventários da segunda
metade do século XIX. Portanto, é possível sugerir que na imagem a família produtora
refere-se a indivíduos de cor, e pelas condições da construção se trata de pessoas sem
posse de terras, provavelmente rendeiros, que através da produção fumageira conseguiam
o recurso necessário à sua subsistência.
Observa-se que o espaço – no qual os indivíduos mantem suas atividades
relacionadas à terra (a roça, a produção de farinha e de fumo, a criação de gado) – vai
gradualmente apresentando configuração das experiências de indivíduos que foram
escravos, livres e libertos, na relação do trabalho agrícola nas fazendas fumageiras no
final do século XIX e início do século XX.
Assim o cultivo da mandioca, revela o horizonte de sobrevivência comum às
gerações das famílias da região até da década 1910. As realidades apontadas por
Barickman para o Recôncavo apresentam interessantes aspectos da dinâmica vivenciada
por aqueles que se mantinham através da produção de fumo e farinha de mandioca. Este
exemplo demonstra consorciadas à agricultura voltada para a exportação, como no
Recôncavo e no litoral baiano 122, a cultura de subsistência e à pecuária, a exemplo de
Feira de Santana123.
Os armazéns e as casas de farinha atravessaram a segunda metade do século XIX
como objetos presentes entre os bens dos inventariados. Podemos citar a família de Maria
Carolina do Amor Divino, que declarou entre os bens um armazém de fumo, casa de
farinha, os acessórios para fazer a farinha, além de uma quantidade de pés de café. Esta
fazenda comportava os diversos bens de produção, eram responsáveis pela produção de
fumo, farinha e café124.
Outro caso é o de Domingos Rodrigues Vieira, no qual exibe entre os seus bens
um armazém e uma gangorra de torcer fumo 125. Maria Joaquina de Jesus, 1879, também,
inventariou entre os espólios de Francisco Rodrigues Vilarinho uma casa de farinha,
armazém de fumo e acessórios126. Com base nas informações relatadas, observa-se que
BARICKMAN, Um contraponto baiano, p. 248 – 252.
POPPINO, Feira de Santana. Freire, Op. Cit.
124
Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 218.
125
Inventário de Domingos Rodrigues Vieira, 1846- 1863 BAHIA, Arquivo Público Municipal de
Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 218.
126
Inventário de Francisco Rodrigues Vilarinho, 1879, BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira,
Provincial, Inventários, Caixa 218.
122
123
50
os sítios cultivavam gêneros variados, prevalecendo o cultivo de fumo associado ao
cultivo de mandioca.
Por sua vez, a farinha de mandioca era um gênero importante por ser um alimento
básico na dieta dos moradores da freguesia 127, especialmente, dos escravos e população
pobre. O cultivo de roças de fumo e de mandioca oferecerá aos escravos e ex-escravos a
possibilidade lançarem mão de pequenas quantidades de terras e produzirem suas
pequenas roças para sua subsistência de suas famílias128e para comercializar nas feiras
locais. Tal produção, ao longo do tempo de 1850 a 1870, no ponto de vista de Ribeiro e
de Barickman subsidiava os cultivos de cana-de-açúcar brasileiros, bem como os plantios
de fumo e de café129, também, fornecia ao mercado interno. Junto com a carne-seca, “a
mandioca, para o cultivo da farinha, era de longe a lavoura de subsistência mais
amplamente cultivada no Recôncavo e a farinha era um componente indispensável do
regime alimentar baiano 130”
Figura 2: Escravos fazendo farinha
127
BARICKMAN, op. cit.
BARICKMAN op. cit. retrata esse fato na primeira metade do século XIX. De acordo com o autor vai
haver um considerável número de escravos que possuíam suas próprias roças nas fazendas de fumo e de
mandioca.
129
RIBEIRO, Abastecimento de farinha, p. 20-21, 36-94; SONNEVILLE, Jacques Jules. Os lavradores de
fumo: Sapeaçu, 1850 -1940. Salvador, 1982, p. 17; SILVA, Graziano da. Estrutura agrária e produção de
subsistência. São Paulo: HUCITEC, 1978, p. 11-12; BARICKMAN, Um contraponto baiano.
128
“A farinha de mandioca – ‘o pão da terra’ – e seu mercado”. In: BARICKMAN, Bert Jude. Um
contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780 – 1860. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, p. 89.
130
51
Fontes: Litografia de Victor Frond. In. FREIRE, Luiz Cleber Morais. Nem Tanto ao Mar, Nem Tanto a
Terra: Pecuária, Escravidão e Riqueza em Feira de Santana, 1850-1888. Dissertação de Mestrado|
UFBA, 2007, p. 83.
A litografia de Victor Frond exibe o processo de produção da farinha de mandioca
feita por escravos. Parece que o homem de chapéu é o proprietário; a mulher escrava rala
a mandioca; o homem atrás da mulher deposita a mandioca para ser ralada. Outra mulher
pega a massa da mandioca, pondo em um outro vaso. Os quatros escravos dos sexos
masculinos são responsáveis por mover a roda. Ainda se observa no chão cestos e paios
espalhados. O ambiente em que o trabalho está sendo realizado parece ser em frente de
um armazém, provavelmente de fumo.
Semelhante a representação feita por Victor Frond para Feira de Santana, é
possível sugerir ao contexto social e trabalho escravo em São Gonçalo dos Campos, haja
vista se pintasse uma imagem da conjuntura social do final do século XIX naquela
freguesia tendo por base as informações dos inventários, o desenho seria bem parecido a
este. Sob esta ótica, a imagem muito se aproxima do aspecto produtivo da mandioca
consociada ao cultivo do fumo, narrado por Barickman e observado nos inventários
estudados131.
Além da mandioca e do fumo, a produção de café aparece nos inventários dos
moradores de São Gonçalo dos Campos em pequena quantidade, contudo merece atenção.
Vale lembrar que não identifiquei fazendas que dedicassem exclusivamente à produção
de café ou de outro gênero agrícola. O espaço era compartilhado em entre muitos deles.
Na fazenda de Maria Jerônima de Trindade, por exemplo, a produção agrícola estava
relacionada ao cultivo do fumo, farinha, café 132. Essa produção equivalia de 7 a 100 pés
de café. Na Fazenda Limoeiro, de Ana Francisca da Trindade, inventariou 40 pés de
café133. Esse cafezal de Ana Francisca da Trindade entre outros, manifesta que os
produtores rurais, em São Gonçalo dos Campos, acompanhavam a demanda para a
produção cafeeira no sudeste do País134.
Sobre a comercialização deste gênero não obtive informações, todavia, desde a
primeira do século XIX, “o açúcar, fumo e café podiam render excelentes lucros para os
131
BARICKMAN op. cit.; Inventários de Maria Jerônima de Trindade, 1829-1862, de Maria Lucia de
Souza, 1868-1871, de Maria Joaquina da Trindade,1846-1866, Maria Carolina do Amor Divino, 18691876, Francisca Alves de Almeida, 1882, de Egídio Lopes de Almeida, 1868-1871, BAHIA, Arquivo
Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixas 198 e 218.
132
Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 218.
133
Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixas 198 e 218.
134
VIOTTI, Emília. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6. Ed. São Paulo: Fundação
Editora da UNESP, 1999.
52
comerciantes de Salvador e para os senhores de engenho e lavradores do Recôncavo”135.
Desse modo, o cultivo desses gêneros relacionados ao cotidiano rural, nas fazendas
inventariados estabeleceram um ambiente de tradição, no qual os espaços, costumes,
expectativas e estratégias de sobrevivência, vão sendo definidos e partilhados ao longo
das gerações existentes nas fazendas locais através do trabalho escravo, familiar e
rendeiro.
A criação de pequenas quantidades de gado vacum constituiu outra fonte de renda
básica dos moradores contidas nos inventários. A criação de gado bovino se fez presente
em pelo menos 76,5% dos inventários levantados nesta pesquisa, classificados com gado
vacum, bois de carro, usados como tração. Tal rebanho correspondia entre 4 a 120 cabeças
de gado, que representavam proprietários de rebanhos muito pequenos. Os proprietários
que apresentavam de 100 a 200 cabeças de gado possuíam maiores extensões de terras,
maior quantidade de escravos e mais de uma propriedade fundiária. Neste sentido, Maria
Jerônima de Trindade, possuíam 12 cabeças de gado na Fazenda Moreira, 7 na Fazenda
Arengas, 100 na Fazenda Limoeiro, 140 na Fazenda Retiro, 152 na Fazenda Serra e 200
na Fazenda Prazeres. Nas Fazendas Paixão ou Tabuleiro e na Fazenda Lapa não foi
declarado gados entre os seus bens136.
Outros proprietários, como Maria Carolina do Amor Divino, possuíam bens
ligados a atividade agrícola e criação de animais, como foram declarados, nos 4 cavalos,
3 burros, 92 cabeças de gado vacum, 4 bois de carro, 25 bezerros, 20 cabeças de ovelhas,
20 cabras137. É importante ressaltar a ligação entre a criação de gado e a cultura fumageira,
uma vez que o estrume do gado servia para adubar o solo onde seria plantado o fumo
melhorando, assim, a sua produção138.
O gado - cavalar e muar - também, estava presente na maioria das propriedades.
Os fazendeiros possuíam 1 a 10 cavalos e muares em suas fazendas, porém estes não
representavam os bens mais valiosos. A criação de gado, também, permitiu perceber os
níveis de propriedades e de patrimônios na freguesia. De acordo com Freire, para a
freguesia de Feira de Santana, estes animais eram indispensáveis ao funcionamento da
135
BARICKMAN, op. cit. p. 89; TEIXEIRA & ANDRADA, op. Cit., p. 43.
Inventário de Maria Jerônima de Trindade, 1829/ 1862. BAHIA, Arquivo Público Municipal de
Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 218.
137
Inventário de Maria Carolina do Amor Divino, 1869-1874. BAHIA, Arquivo Público Municipal de
Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198.
138
SILVA, Francisco Carlos T. da. Pecuária, agricultura de alimentos e recursos naturais no BrasilColônia. In. SZMRECSÁNYI, Tamás (org.). História Econômica do Período Colonial. 2. ed. São Paulo:
Hucitec, Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica, Edusp, 2002. POPPINO, op.cit.,
SILVA, op. cit., TEIXEIRA & ANDRADA, op. Cit.
136
53
fazenda, servindo como meio de transporte de pessoas e de cargas139. Assim também, o
gado cavalar e muar pertencentes às famílias proprietárias estavam conexos a essa
finalidade.
Evidenciei, ainda, nos inventários a agiotagem. Assim, Francisco Pereira Adorno,
com a fortuna avaliada em 26.485.160 réis, havia emprestado 22.560.160 (vinte dois
contos, quinhentos e sessenta mil e cento e sessenta) reis a Juventino, Manoel Marques
de Almeida, Mateus Alves de Jesus e Manoel Alves dos Santos140. Também, Luís Alves
Adorno, com uma fortuna avaliada em 12.721.530 (doze contos, setecentos e vinte e um
mil e quinhentos e trinta réis), declarou que havia emprestado 4.139.260 (quatro contos,
cento e trinta e nove mil e duzentos e sessenta réis) 141.
A agiotagem consistia em emprestar uma parcela de dinheiro a alguém mediante
ao estabelecimento de juro previamente estabelecido entre as partes, com o pagamento
em tempo determinado pelo agiota. Aliada a economia de subsistência e ao cultivo de
fumo nota se as complexas relações, nem sempre amistosos, do dia-a-dia da freguesia.
Assim, em vistas das informações contidas nos inventários foi possível perceber a
variedade socioeconômica entre os fazendeiros, bem como através da leitura de
bibliografia já mencionada neste estudo e escrituras, censo, entre outras fontes, a presença
de indivíduos sem propriedades. Não obstante, para melhor compreensão da sociedade
na freguesia fumageira do Recôncavo, na segunda metade do século XIX, fiz descrições
pormenorizadas dos inventários, buscando perceber a distribuição dos bens e, bem como,
diferenças e valores das propriedades.
Vida material: a freguesia fumageira de São Gonçalo dos Campos.
Uma característica do grupo inventariado é o número de filhos por casal. Embora
diga respeito apenas ao segmento dos proprietários, dos 35 espólios da segunda metade
do século XIX, constatei que as famílias eram compostas de 1 a 10 filhos. Alguns
proprietários deixaram seus bens para marido, esposa e irmão, constituindo a maioria dos
herdeiros o viúvo (a) com seus filhos. Esse contexto trata-se, pois de um grupo social
139
FREIRE, op. Cit., p. 53.
BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 218.
141
O inventário de Francisco Pereira Adorno, de 1862, BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira,
Provincial, Inventários, Cx. 218.
140
54
com tradição de famílias numerosa, bem próximo do modelo dos engenhos142. Ainda nos
documentos notei a presença de mulheres como chefes de fogos e proprietárias de terras
e escravos, ao mesmo tempo, que os maiores índices de mortalidade são entre elas.
Embora os dados disponíveis nos inventários não serem ricos em detalhes a
respeito do cotidiano nas fazendas fumageiras do Recôncavo, por meio deles pude
esquadrilhar informações a respeito de escravos, famílias, propriedades, atividades
produtivas, elementos que tornou possível revelar o contexto da época estudada.
Não obstante, os proprietários de terras não tinham o mesmo nível de riquezas. Os
documentos, tantos cartoriais, eclesiásticos e censos atestam uma diversidade de fortuna
e de trabalhadores não-proprietários no local. Os indivíduos que detinham um cabedal
inferior a 400.000 mil reis eram titulares de pouquíssimas posses, no geral, possuíam
escravos ou terra. A exemplo de Bernardino Moreira de Almeida, morador da Fazenda
Tapera, homem pobre, tinha o monte-mor no valor de 400.000 (quatrocentos mil) reis,
valor equivalente à sua escrava, Bárbara, crioula, 60 anos, serviço da lavoura143.
Nos 35 inventários, observa-se que os espólios das famílias expunham rendas
dentro da faixa que variavam entre 400.000 (quatrocentos mil) reis a 26.485.160 (vinte
seis contos, quatrocentos e oitenta e cinco mil e cento e sessenta) reis. Apesar das
variações, indicando a desigualdade socioeconômica, os indivíduos adquiriam meios e
possibilidades de sobreviver nesta sociedade desigual, sendo eles livres, escravos ou
libertos, despossuídos de propriedades fundiárias.
Assim, no caso de Bernardino Moreira de Almeida, os dados indicam que ele não
possuía terra, ou mesmo moradia própria, uma vez que, no inventário não incluía casa,
terras, bens de raiz, gado e móveis, apenas a escrava, empregada nos serviços da lavoura.
Sem propriedade fundiária, Bernardino, além de utilizar a mão de obra de sua escrava,
contava com a ajuda de sua mulher Maria Epifânia de Jesus e dos filhos José Moreira de
Freitas e Ana Maria Sacramento144. A análise detalhada dos arranjos do trabalho no
mesmo período, em outros documentos e pesquisas, insinua uma clara analogia desta
família com a experiência de rendeiros na freguesia145.
142
BARICKMAN, B.J. Um Contraponto Baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo,
1780 – 1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
143
Inventário de Bernardino Moreira de Almeida, 1856 -1869. BAHIA, Arquivo Público Municipal de
Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198, p. 24.
144
Inventário de Bernardino Moreira de Almeida, 1856 -1869. BAHIA, Arquivo Público Municipal de
Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198, p. 24.
145
Vários documentos da Freguesia de São Gonçalo na segunda metade do século XIX apresentam entre
os moradores da sociedade sangonçalense rendeiros, agregados, posseiros e também domésticos. Sobre tais
categorias trataremos neste trabalho.
55
Igualmente a Bernardino Moreira de Almeida, diferentes indivíduos possuíam
pequenas fortunas, arrolando entre seus bens pequenas propriedades rurais, sendo “casa
de morar146” ou, então, pequenas faixas de terras na sede da freguesia. Este foi o caso de
João Pinto do Nascimento, que em 1857, registra no Livro de Recenseamento Eclesiástico
de Terras, uma casa, na Rua São Benedito, em frente à Igreja Matriz, sede do arraial da
freguesia de São Gonçalo dos Campos. A forma de aquisição foi a compra do imóvel ao
proprietário José Ricardo Gomes de Carvalho. Junto a casa, João Pinto, declarou que
possuía um terreno com a extensão de 4 braças e 2 palmos de largura e 16 braças e 2
palmos de comprimento. Registrou, também, uma casa com meia braça de largura e com
os fundos até a rua oposta, localizada na mesma rua. Esta comprada a Rodrigo Antônio
Barcelos147.
Essas pequenas faixas de terras eram insuficientes para garantir a subsistência da
família de lavradores que arrendavam terras nas fazendas vizinhas, utilizando a força de
trabalho familiar e a mão de obra cativa, quando possuía.
O inventário de Manoel Pereira de Almeida, 1862/1875, e partes, Maria Angélica
do Coração de Jesus e Maria Angélica do Livramento, da Fazenda Salvador, ostenta como
os bens de maiores valores são 5 escravos, do serviço da lavoura, no valor total de 2
contos de reis e as terras, de 600 mil reis. Os outros bens que aparecem no inventário são:
uma moenda de capim com a casa de farinha, 200 mil reis e os acessórios de fazer farinha,
avaliadas por 10 mil reis148.
Com uma fortuna mais sólida, o espólio de Maria Carolina do Amor Divino,
casada com José Domingos Gonçalves, inventariante, com quem teve 5 filhos, todos
moradores na Fazenda Canabrava, Freguesia São Gonçalo dos Campos, equivalia
18.923,000 (dezoito contos e novecentos e vinte três mil) reis 149. Entre os bens estão
arroladas 3 fazendas: Canabrava, Luca, Brejos e 2 sítios: Jambeiro e Jenipapeiro, além de
escravos, casas, casa de farinha, armazéns, animais, arvoredos, benfeitorias.
Outra grande proprietária rural, Maria Jerônima de Trindade, possuía o montemor de 23.482.844(vinte três contos, quatrocentos e oitenta e dois e oitocentos e quarenta
146
Inventário de Maria do Carmo das Virgens, 1869. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira,
Provincial, Inventários, Cx. 218.
147
BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863).
148
Inventário de Manoel Pereira de Almeida, 1862/1875, BAHIA, Arquivo Público Municipal de
Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198, fl. 39.
149
Inventário de Maria Carolina do Amor Divino, 1869-1974. BAHIA, Arquivo Público Municipal de
Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198.
56
e quatro mil) reis, em 25 de outubro de 1839 a 1862. Neste inventário, o juiz Manoel
Messias de Souza, registrou 8 propriedades fundiárias sendo elas: a Fazenda Moreira,
Fazenda Lapa, Fazenda Serra, Fazenda Prazeres, Fazenda Paixão e o sítio Arengas, na
freguesia de São Gonçalo dos Campos, e a Fazenda Limoeiro e a Fazenda Retiro,
localizadas no termo de Camisão (atual município de Ipirá). Tais foram repartidas entre
seus herdeiros João Ferreira da Cruz e Maria Alexandrina de Gusmão 150. Neste inventário
aparece três casas próximas a estrada no valor de 30 mil réis cada, em que moram os
agregados (rendeiros) da fazenda Moreira.
Ainda que, ressalve as grandes fazendas, o viver da maioria dos moradores era
simples. Os móveis, utensílios domésticos que pudessem oferecer maior conforto, ou
bem-estar pessoal, ou mesmo que significassem uma forma de diferenciação social, foram
acessíveis a poucos. Assim os objetos exibidos nos inventários limitam-se aos móveis, a
catre, mesa, arca de vinhático, marquesa de jacarandá, cadeiras, os utensílios, balança,
espada de ferro, cajado, espora, sela, acessório para a produção de farinha e o cultivo de
fumo, a tacho de cobre, espingarda, enxada, machado, foice, banca com gaveta, camas de
jacarandá, bancos de encosto, cadeiras de encosto, catres, cofres, caixas de madeira,
marquesas de jacarandá, além de pratos, colheres, garfos de prata151. Certamente, o
visitante não encontraria esta variedade de móveis na maioria das casas dos moradores
desta freguesia. Conforme relato do viajante Henry Koster, quando de sua passagem pelo
Nordeste, durante o século XIX, faz um relato sobre o uso de móveis nas fazendas
pecuaristas que pode ser comparado pelas fumageiras, diz que:
Algumas residências têm mesa, mas o uso comum é a família acocorar-se
derredor de uma esteira, com as tigelas, cabaças e travessas no centro, e aí
comem sua refeição, sobre o solo. Facas e garfos não são muito conhecidos e nas
classes pobres, nenhum uso possuem 152.
Neste relato, constata-se a diferença entre as moradias e o uso dos utensílios
domésticos entre os diversos moradores no nordeste do século XIX. Nota-se que as
diferenças sociais eram percebidas nas mais variadas conjunturas socioculturais.
150
Inventário de Maria Jerônima de Trindade, 1829/ 1862. BAHIA, Arquivo Público Municipal de
Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 218.
151
Inventário de Manoel Pereira de Almeida, 1862/1875, BAHIA, Arquivo Público Municipal de
Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198, fl. 39; Inventário de Maria Carolina do Amor Divino, 18691974. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198; Inventário de
Maria Jerônima de Trindade, 1829/ 1862. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial,
Inventários, Cx. 218.
152
KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942, p.
187. In. FREIRE, op. Cit., p. 114.
57
Além dos móveis e utensílios domésticos, os oratórios com imagens de santos,
imagens de Deus meninos, imagens do Senhor Crucificado, imagem de São José 153, um
artefato pouco recorrente entre as possessões dos pequenos proprietários, indica a
hierarquia social daquelas pessoas e sua religiosidade católica.
Do mesmo modo as joias e a prata, metais de valor, referenciados nos inventários
distinguem as famílias monetariamente. Uma vez que só as pessoas possuidoras de maior
patrimônio ostentavam o uso de joias. A partilha amigável de Luís Alves Adorno tornarse visível o emprego de parte do dinheiro deste em joias: rosetas de diamante, alfinete de
peito com pedra de diamante, pulseira bordada, ouro em cordão, brinco, pelicário, dente
de besouro, anel de ouro, e pedras preciosas como o diamante 154. A presença das joias
nos inventários de maiores fortunas dá indícios de distinção social. Como também foi
percebido nas vestimentas declaradas pelos proprietários mais abastados, no uso de
jaqueta, calça, colete, chapéu, barrete de ferro155. Estilo de vida de vestimenta que
evidencia economia agrícola de São Gonçalo dos Campos.
Além dos móveis, vestimentas e utensílios, na década de 1870, as construções das
fazendas revelam o cotidiano e costumes das famílias na freguesia e diferenciavam os
indivíduos de maior poder aquisitivo. Assim, as especificações a respeito das construções
na fazenda Domingos Rodrigues Vieira, de “uma casa sobre esteios cobertos com telhas,
de taipa, tendo uma parte rebocada, com duas salas e quatro quartos, com sete janelas e
oito portas”156, entende-se que é uma construção sofisticada. Indicações de que a casa era
coberta de telha e que comportava um quintal, servem para diferenciá-la das demais
moradias da Freguesia, bem como a influência sobre a vida cotidiana dos lavradores e
outros moradores. Cabe ressaltar, ainda, que os armazéns e as casas de fazer farinha
também eram cobertas com telhas confirmavam a riqueza dos lavradores, uma vez que
nem todos inventariantes possuíam entre as suas possessões.
Contrastando as descrições dos inventários da década de 1870, em São Gonçalo
dos Campos, ressalta-se nas habitações dos menos afortunados rusticidade e descrição de
153
Inventário de Francisco Pereira Adorno, 1854; Partilha Amigável de Alvino Isaías da Costa Almeida,
1877; Partilha Amigável de Francisca Alves de Almeida, 1882, BAHIA, Arquivo Público Municipal de
Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198. Inventário de Maria Camila de Sousa, 1873-1875; Inventário
de Maria Lucia de Souza, 1968-1871; Ana Francisca da Trindade, 1855; Maria Joaquina da Trindade, 18461866; BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 218.
154
Partilha Amigável de Luís Alves Adorno, 1862, BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira,
Provincial, Inventários, Cx. 198.
155
Partilha Amigável de Luís Alves Adorno, 1862, BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira,
Provincial, Inventários, Cx. 198.
156
Domingos Rodrigues Vieira, BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários,
Caixa 198.
58
construções bastante arruinadas. Predominavam construções de adobe ou taipa, com paus
a pique e varas cruzadas, amarradas com cipós, para conter o barro batido. Eram comuns
as edificações mistas, com partes externas de adobes e as divisórias de enchimento ou um
núcleo de adobes com anexos de taipa. Nas coberturas, também, usavam-se telhas157.
Figura 3: Parede construção de taipa
Fonte: Arquivo pessoal. Foto tirada em dezembro de 2012. Técnica de construção utilizada ainda hoje.
A imagem acima aparece como exemplo típico das construções das moradias dos
pequenos proprietários na freguesia. As casas de taipas eram comuns nas arquiteturas das
famílias de rendeiros.
O quintal das fazendas possuía plantas de diferentes tipos, tais como laranjeiras,
jaqueiras, bananal, coqueiros e cajueiros 158. Parece que os agricultores desta região
apreciavam em seus quintais diversas árvores frutíferas, mesmo que em pequena
quantidade, supostamente, em alguns casos, renda complementar ao sustento da família.
Os proprietários, ainda, deram a conhecer entre as benfeitorias das fazendas as cercas
construídas de madeira de “candica” 159.
157
Inventário de Maria Lucia de Souza, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários,
Caixa 218.
158
Inventário de Maria Carolina do Amor Divino, 1869-1874. BAHIA, Arquivo Público Municipal de
Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198.
159
Sobre a palavra “candica” não encontrei nada que se remetesse, assim escrevi como encontrei nos
inventários. Imagino que se refere a madeira de árvores próprias dessa região utilizada nas estacas das
cercas das fazendas de fumo. In.: Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa
198 e 218.
59
Por conseguinte, convém lembrar, que a região de São Gonçalo dos Campos, no
período analisado, já estava com suas terras ocupadas, porém, as informações contidas
nos inventários, pertinentes à dimensão dessas terras, são de difíceis compreensão, vistos
mais de perto, os dados evidenciam o costume da época e implicava continuamente a
vivência de situações não experimentadas pelo pesquisador, todavia, analisá-las contribui
para o entendimento das antigas conjunturas históricas, sociais, econômicas,
demográficas, culturais e políticas que influenciaram as decisões, experiências,
construções de redes sociais e relações familiares de ex-escravos, livres, libertos e dos
seus descentes e dos instrumentos que lançaram mão para conquistar a sobrevivência no
seio da sociedade escravocrata e agroexportadora.
Estrutura Agrária: a Posse de Terra em São Gonçalo na Segunda Metade do Século
XIX
Nesta conjuntura destaca Januária Maria da Conceição, proprietária da Fazenda
Amarela, em Jacuípe, com seus filhos: José Candido Martins, Basílio Martins de Oliveira,
Manoel Martins de Oliveira, Hipólito Martins de Oliveira, José Felix Damasceno e
Margarida Contrim de Jesus160, em 1857, na paroquia de São Gonçalo do Amarante,
registrando suas terras com 200 braças de largura e 1000 braças de fundo, herança do seu
marido Francisco Pereira de Oliveira.
Januária Maria da Conceição, não foi a única proprietária de terras a se deslocar
até as sedes eclesiásticas na década de 1850 para registrar sua posse de terras. Em 1857 a
1863, o padre Vicente Ferreira Gomes, registrou 886 registros de terras nos quais, em
linhas gerais, contém o nome dos proprietários e o local das propriedades, data,
declarantes, o tipo de propriedade, e a freguesia onde estavam situados, a forma de
aquisição e os limites, sendo encontrado ainda o valor das áreas e em alguns casos,
sugestão do estado civil dos proprietários, uma vez que era registrada a posse com a
esposa, fato observado no caso acima.
Quanto os limites das propriedades, os registros, não expõem com literalidade à
localização. Os marcos ou pontos de referência são transitórios, indicados pelos rios,
riachos, ou alguma “pedra de rumo”, não havendo maiores possibilidades para a
identificação destes nos dias atuais, mesmo em se tratando de um trabalho de reconstrução
160
Quadro indicado nos registros eclesiásticos e, também, nos assentamentos cartoriais no final do século
XIX.
60
das áreas ocupadas. Tais expressões indicam o imaginário de seu tempo, representavam
o costume que se difundia entre a população do período 161. Observa-se, desta forma, que,
em muitas ocasiões, a lógica vigente entre proprietários, nos diversos registros de terras,
como em escrituras de compra e venda, hipotecas e até mesmo em litígios judiciais
ocasionados por invasão e destruição das matas da fazenda Cruz de propriedade de Rita
Cazumbá, em 1898. (Sobre este litígio abordarei no terceiro capítulo.)
Nesta perspectiva, Thompson colabora para analisar as identificações e
demarcações utilizadas pelos donos de propriedades. Em comunidades de pequenos
agricultores, a exemplo das que existiram na Inglaterra do século XVIII estudada por
Thompson, geralmente, os trabalhadores em via de mudanças utilizam determinados
costumes - compreendido por ele enquanto motivações racionais, autônomas e coerentes,
práticas que embora antigas são constantemente repensadas e reformuladas a partir da
experiência162.
No contexto deste estudo, a Lei de Terras esbarrava no costume dos proprietários
de não demarcar com exatidão e pontos fixos suas terras. A consequência do costume
limita o poder do Estado no controle sobre as denominadas terras devolutas, bem como
restrição ao acesso à terra apenas aqueles que desfrutavam à condição de proprietário ou
teriam recursos financeiros disponíveis para adquiri-las. Deste modo, em contradição ao
aprisionamento das terras pela Lei em 1850, muitos libertos e pobres livres em troca do
trabalho tornaram-se posseiros, arrendatários e rendeiros povoando os domínios não
demarcados das fazendas.
Para exemplificar como os limites das propriedades foram identificados, nos
registros eclesiásticos e nos inventários, utilizei a descrição das terras pertencente a
Antônio Machado da Silva 163, conforme declaração no inventário, em 1857, e a
pertencente a D. Maria Joaquina da Pureza, em 1877, a qual foi avaliada em 300$000
(trezentos mil) reis, quando a venda da “parte de terras”, na fazenda Hilário Martins, no
lugar denominado Cruzes164.
O inventário de Antônio Machado da Silva 165 registra que a fazenda se dividia
pelo poente com 100 braças166 de largura, fazendo a frente para a Estrada Real, que vem
161
THOMPSON, 1998.
THOMPSON, Op. Cit.
163
Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 198.
164
Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 1, p. 8.
165
Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 198.
166
Braça – Unidade de medida agrária correspondente a 2,20 metros. A braça quadrada confere 4,84 m².
NEVES, Erivaldo Fagundes. Posseiros, rendeiros e proprietários: estrutura fundiária e dinâmica agro162
61
da Cachoeira para Villa de Feira de Sant’ Anna dos Olhos D’Água, confrontando com a
Fazenda denominada Murici de Fernando Machado da Silva, e com os fundos para o
nascente a dividir com as terras da Fazenda denominada Bananeiras, pertencente ao
Capitão José Alves de Cerqueira, pelo sul com terras da fazenda de Manoel Cerqueira de
Araújo 167. Neste sentido, a análise encontra-se circunscrita às linhas demarcatórias
descritas nos documentos sem embrenhar literalmente as áreas contíguas, não doadas ou
devolutas.
A escritura de compra e venda de D. Maria Joaquina da Pureza, residente em
Salvador, feita mediante procuração, por Manoel Cerqueira Daltro, de uma “parte de
terras”, vendidas a Manoel Veríssimo de Queiroz, morador na Freguesia de São Gonçalo
dos Campos, em 16 de agosto de 1877, demarca da maneira seguinte:
pelo lado norte principia n’uma lagoazinha, a quem do centro de Teresa Maria
de Jesus, rendeira no mesmo terreno, estrada direita até dividir com João Paulo
de Queiroz, seus terrenos pela nascente com o mesmo João Paulo de Queiroz por
uma estrada que vai para a casa de Victorino Telles, e d’esta estrada em direção
ao sul, divide-se com Jacintho Machado, dividindo do rumo, de uma cerca de
pau a pique do rendeiro João Baptista, pelo sul com terras da Fazenda do
Magalhães e pelo nascente com Martinho Suzarte, servindo de divisão a mesma
lagoazinha donde tem princípio a mesma divisão de norte ao sul168.
Observa-se na declaração de Maria Joaquina da Pureza o caráter costumeiro entre
os proprietários dos limites apresentados, excetuando-se as terras da fazenda Magalhães,
é inviável a identificação da lagoa, dos limites com outros terrenos e da estrada que não
foi sequer nomeada. Não houve qualquer referência à forma de aquisição das terras, até
mesmo a expressão utilizada para a identificação, "parte de terras", não traduz as
dimensões e as características da propriedade. Por sua vez, estas terras localizavam a
Estrada Real, aproximadamente, 5 km a cidade de Feira de Santana e 10 km a sede da
vila de São Gonçalo dos Campos.
Outro exemplo observa-se nos rumos da Fazenda Carlota, de Antônio Alves
Rodrigues, de 1857. Foram apresentados da seguinte maneira: pela parte nascente com a
estrada que vai da Capela de Santa Anna do Itaquari, pelo Sul parte pelo resto do valado
a partir com as terras da fazenda de Felipe Neri de Sousa até o fim do mesmo valado,
onde se acha encravado uma pedra e dela seguirá rumo abaixo à procura de outra pedra.
mercantil no Alto Sertão da Bahia (1750-1850). Recife: [s.n.], 2003, FREIRE, Luiz Cleber Morais. Nem
Tanto ao Mar, Nem Tanto a Terra: Pecuária, Escravidão e Riqueza em Feira de Santana, 1850-1888.
Dissertação de Mestrado| UFBA, 2007.
167
BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863).
168
Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 1, p. 8.
62
Segue a lagoa de Paulino Ferreira da Costa, onde faz uma pequena subida na beira da
estrada que vem da Cachoeira para a Capela de Santa Anna do Itaquari169. Nesta destacase a localização da estada Capela de Santa Anna do Itaquari à Cachoeira. Com este limite,
especialmente a denominação da capela do Itacari é possível sugerir que a fazenda se
situa no sentido leste da vila da Freguesia.
No Translado de compra de venda da fazenda terra dura, consta, a quantidade de
terras, valor e as demarcações. Sendo elas: pela nascente com a estada Real170, pelo Sul
com terras de Antônio Gonçalves de Oliveira, pelo poente com o Rio Jacuípe e ao norte
com a fazenda de Helena Maria da Cruz. O mesmo ocorre com a descrição da Fazenda
Sobrado, comprada por João Cardoso Cazumbá e Manoel Ferreira de Cerqueira 171,
descrita no primeiro capítulo. Esta escritura apresenta maiores informações a respeito da
localização e o valor das terras no período, sem, contudo, destacar o tamanho da
propriedade.
Assim, como Antônio Machado da Silva, Maria Joaquina da Pureza, Antônio
Alves Rodrigues e João Cardoso Cazumbá, outros proprietários também demarcaram os
limites de suas propriedades, utilizando-se dos rios, riachos, terras dos vizinhos, pedras,
estradas, paus ou arvoredos que circundavam as terras, referências as cercas,
impossibilitando-nos de qualquer localização exata das propriedades.
Nesta área as terras eram mais baratas172, sendo a medição da área feita em braças.
O valor em braças quadradas variava em torno de 1.000 reis a até 3.000 reis. Encontrei
nos registros de terras e assentamentos cartoriais fazendas de extensões diversas: a
Fazenda do Saquinho, de D. Maria Rita do Amor Divino, inventariada em 1 de agosto de
1858, por Felipe Machado da Silva, com 90 braças de terras, principiando na Estrada
Real, no valor de 5.000 reis cada braça e todos por 450,000 reis 173.
Ainda, foram inventariadas, as terras da fazenda Saco, da mesma proprietária, com
154 braças de largura com fundo principiado da Estada Real que vai para Feira de
Sant´Anna até o Riacho Caburu, tirando-se 200 braças da estrada para o fundo com a
mesma largura174. Tais informações contribuem para perceber a diversidade das
169
BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863).
170
Ato de Embargo, 1895. Arquivo Cartorial. Fórum João Mendes. São Gonçalo dos Campos.
171
Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro do Tabelionato, n. 2.
172
Freire aponta que nas áreas açucareiras as terras eram mais caras do que nas regiões de economia
agropecuária. Ver Freire op. Cit.; Barickman, op. Cit.
173
Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 198.
174
Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 198.
63
extensões das propriedades em São Gonçalo dos Campos com aquelas regiões produtoras
de cana de açúcar, também pertencente à comarca da Cachoeira 175. Com base nos dados
apresentados por Nardi observa-se que até os meados do XIX, os Campos da Cachoeira,
as chamadas fazendas ou sítios de tabaco, apresentavam entre proprietários, cerca de 30%
de arrendatários, quase 55% de pequenas propriedades, em média com 4,2 tarefas, ou
seja, menos de 2 hectares de terra”176.
Estes dados também foram encontrados na escritura de venda e compra da
Fazenda Mungo, do Coronel Antônio Carlos da Silva, com cento e setenta e cinco braças
e meia de extensão de terras, vendida a Firmino da Silva Daltro por 200 mil reis, em 30
de maio de 1888177.
Outro ponto, que serve para perceber a diversidade das propriedades fundiárias
são as variadas expressões usadas para identificá-las nos documentos. As identificações,
em grande parte, são: “um sítio de terras”, “um pedaço de terras”, “parte de terras”, “uma
sorte”, “porção”, havendo ainda, termos como “fazenda”, e “lote de terras”.
As expressões sugerem distinção quanto o tamanho, o valor, os cultivos, as
benfeitorias das propriedades, entretanto, ao analisar os documentos notei que tais
expressões seguiam a opções pessoais de cada proprietário, sem, contudo, expressar
diferenças entre as propriedades, neste caso, Antônio Machado da Silva vai registrar, em
1857, ao Vigário Vicente Ferreira Gomes, “as terras”, com frente de 100 braças de
largura, próxima a Estrada Real178. E o cumprimento segue uma extensão alcançando a
Fazenda denominada Murici, de Fernando Machado da Silva. Os fundos localizam
sentido leste, limitando com as terras da Fazenda Bananeiras, pertencentes ao Capitão
José Alves de Cerqueira. Ao Sul, tais terras, divisam com as terras da fazenda de Manoel
Cerqueira de Araújo 179.
Apesar dessa descrição não possuo informações pormenorizadas, que permita
conjeturar se o termo “terras” foi usado para diferenciar dos sítios e das fazendas.
Provavelmente tal termo servia para identificar domínios fundiários com grande extensão
de terra, sem benfeitorias e instalações específicas das fazendas e sítios, como, casas de
175
BARICKMAN, Op. Cit.
NARDI, Jean-Baptiste. O fumo brasileiro no período colonial: agricultura, comércio e administração.
São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 37-9, 57, 60-1, 69. O autor apresenta esses dados a partir de uma estimativa
indireta baseada na razão entre a produção e produtividade por tarefa e o número de lavradores de fumo.
177
Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 198.
178
Que vem da Cachoeira para Villa de Feira de Sant’ Anna dos Olhos D’Água.
179
BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863).
176
64
farinha, armazém de fumo, senzalas e outros acessórios, comuns às fazendas e a alguns
sítios da região que desenvolviam uma agricultura diversificada.
Outra identificação encontrada nos inventários são os sítios. Diferente do que
imaginei, a respeito de seu tamanho diferenciado das fazendas, encontrei nos registros
variados tamanhos. Alguns registros exemplificam tal fato, como, o Sítio Campestre, em
1857, pertencente a Manoel Araújo Dantas, com 102 braças; a Fazenda Borges, de
Antônio Joaquim de Cerqueira e José Moreira de Freitas, com 150 braças, registrada em
1857; Fazenda Pedreira, de Manoel José de Oliveira Pinto, registrada em 30 de maio de
1857, com 106 braças180. Pela extensão de cada propriedade nota-se que não existia
diferenças acentuadas entre ambas as designações, diferente do que Schwartz observou
em relação as propriedades açucareiras do Recôncavo colonial, apresentando, assim, a
distinção entre as fazendas e os sítios:
As fazendas podiam dedicar-se a várias atividades, da pecuária ao cultivo de
gêneros alimentícios e ocasionalmente de cana-de-açúcar. Sítio era uma termo
preferido para as plantações de fumo, embora não usado exclusivamente nessa
acepção181.
Neste sentido, Schwartz apresenta a diferença na designação de acordo as
atividades produtivas dedicadas em cada propriedade, porém os registros cartoriais vão
apontar que nos domínios fundiários na freguesia de São Gonçalo dos Campos, havia a
diversidade de produção, como será tratada adiante. Alves adverte que o termo sítio se
refere ao status ou o caráter de propriedade adquirido após a Lei de Terras de 1850182.
Contudo, é importante compreender que esse assunto é muito complexo, mediante visões
diferenciadas, principalmente quanto à relação de posse no contexto da economia
agroexportadora e do sistema escravista.
A categoria fazenda ao mesmo tempo em que representava uma propriedade com
grande extensão de terra era utilizado para localizar o território registrado ou adquirido
em uma compra. Havia fazenda com extensões de terras menores do que a dos sítios. É
o caso da fazenda Mato Grosso, em Jacuípe, de José da Costa Queiroz, também de 1857,
com a largura de 62 braças de terras. De acordo as divisões têm-se as seguintes extensões:
frente para o poente partindo com terras denominadas Broba, como o fundo para a
nascente até o rio Jacuípe, para o norte com terras da fazenda do Magalhães; pelo Sul
180
BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863).
181
SCHWARTZ. Stuart. B. Segredos Internos. Engenhos e Escravos. Na Sociedade Colonial. 1530-1835.
São Paulo. Cia das Letras. 1988, p.362.
182
ALVES, Isaías de Almeida. Matas do Sertão de Baixo. Bahia: Reper. 1967.
65
com terras de Joaquim da Silva 183. Já a fazenda Murundu, cujo proprietário é Manoel
Amaro Lopes, tem a extensão de 60 braças, apresenta menor extensão do que o sítio
Campestre. Com maior extensão é a Fazenda Jenipapo, de Leandro Rodrigo de Lima,
Antônia Maria de Lima e Maria Inácia de Jesus, com 700 braças de largura e uma légua
de comprimento184.
Tais fazendas não podiam ser comparadas aos engenhos que exigiam maior
quantidade de terras. De acordo com Barickman caracterização uma propriedade como
grande ou pequena evidencia ao gênero produzido pelo domínio agrícola e as tecnologias
usadas no cultivo e beneficiamento. A maioria dos inventários dá conta do uso de enxada,
foices e outras ferramentas, já mencionada anteriormente, sendo, portanto, inadequado
qualquer referência para diferenciar, pois todos usam as mesmas ferramentas e
apresentam o mesmo gênero produtivo.
Entre os inventários e as escrituras de venda e compra de terrenos e escritura de
arrendamento observou-se a presença de registros de moradores sem a propriedade
fundiária. Também tais dados podem ser verificados nas escrituras de venda e compra a
partir de 1877, nas quais foram vendidas casas construídas em terrenos foreiros 185. Os
registros, também, indicam uma faixa de moradores que possuíam micro propriedades.
Outras identificações de propriedades como “pedaço de terras” e “parte de terras”,
existentes nos registros eclesiásticos da região e nas declarações realizadas quando da
avaliação dos bens, podem significar um conjunto de terras adquiridas por ocasião das
partilhas e dos arrolamentos. Exemplo de “pedaço de terras”, localizados na Fazenda
Mato Grosso, em Jacuípe, de Manoel Pedreira Lopes, com 200 braças de terras e meia
légua de comprimento186. Ainda, as terras na fazenda denominadas fazenda do Tabuleiro
do Gandu, de José Borges Falcão, que adquiriu por causa do dote e parte comprada de
José Gonçalves de Oliveira 187. Além disso, na escritura de compra e venda feita por José
Assunção Cardoso, e sua mulher D. Maria Frandolina de Jesus, em 1877, das “terras” e
casas da Fazenda Bom Jardim, pela quantia de 1.000.000 reis, a José Joaquim de
183
BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863).
184
BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863).
185
Os terrenos foreiros aqueles que o proprietário da casa não possuía a posse do terreno. Muitas escrituras
foram lavradas no final do século XIX no tabelionato de São Gonçalo com terrenos foreiros.
186
BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863).
187
BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863).
66
Cerqueira Leal, nota-se pelo valor atribuído que era uma grande extensão territorial,
portanto, não posso definir que tais termos indiquem apenas uma quantidade e categoria
de terra.
Essas expressões também podem indicar a presença de posseiros que declaram o
controle da posse de terras encravadas em terras da Fazenda. Como exemplo aparece as
terras na Fazenda Coqueiro, pertencentes a Davi Pereira d’Almeida, ou então as 550
braças de terras na Fazenda Mocó, de Manoel Joaquim Rodrigues. Também Francisco
Manoel Ribeiro, declara que possuía terras na fazenda Brotas. Consegui catalogar 25
registros de terras em que os proprietários expunham suas propriedades como “terras na
fazenda”. O mesmo afirma Teixeira sobre as expressões “terras”. De acordo com a
autora, encravadas ou não em propriedades maiores, supostamente foram ocupadas pelo
sistema de apossamento e só foram legalizadas, posteriormente, nos cartórios, mediante
as compras e vendas188.
Voltando a designações para identificar as propriedades fundiárias, aparece o
termo "sorte de terras". Contradizendo a interpretação da expressão por alguns
historiadores189, a descrição das terras no inventário, indica uma grande extensão de terra.
Assim a “sorte190 de terra, da fazenda Moreira, cuja propriedade inicia sua extensão pela
Estrada Real, e vai até o Rio Jacuípe” representa uma grande extensão territorial. D
acordo com Vilhena a expressão sorte de terras era usada nos engenhos para separar as
terras lavradias e dos matos:
(...) Dividem-se as terras lavradias em diferentes sortes; a maior sorte, porém
reserva o dono para a sua cultura, e arrendam as mais, a que chamam fazendas,
a diversos lavradores, com porção de matos competente para as suas abegoarias,
e criação de algum gado, se para isso têm capacidade191.
Assim, observei nos documentos uma variedade de expressões que não indicam a
com rigorosidade o tamanho das propriedades na freguesia, entretanto, entre as
expressões constatei a preponderância dos sítios, fazendas e partes de terras. Tais termos
com suas devidas descrições indicam a concentração de pequenas e médias propriedades,
188
TEIXEIRA & ANDRADA, Op. Cit., p. 48.
SCHWARTZ, Op. Cit.; BARICKMAN, Op. Cit.
190
Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 218.
191
VILHENA. Luís dos Santos. A Bahia no Século XVIII. Vol. 1. Bahia. Itapuã. 1969, p.180.
189
67
medindo aproximadamente de 0 a 100 ha 192. Outra parcela, cerca de aproximadamente
20%193 das propriedades de terras localizadas na sede da Freguesia.
Quanto à forma de aquisição e origem das propriedades, constatei o predomínio
da sucessão hereditária, seguida as compras e em terceiro sem suas origens identificadas.
Sendo que dos 65 registros eclesiásticos analisados 24 foram compradas e 18 haviam sido
herdadas, outras foram adquiridas por dotes, ou meação. O Sítio Coqueiro de João
Rodrigues Vieira Geraldes, foi comprado a Martinho Domingues Pereira; Terras na
Freguesia de São Gonçalo dos Campos, pertencente a Izidoro Correia da Silva, comprada
a Ana Joaquina Gomes do Espírito Santo. A casa na Rua da Conceição, de Rosalina de
Maria Sacramento, vendida por José Lopes de Oliveira; terras da Fazenda Cruzes, por
compra que o proprietário José Félix do Nascimento fez a José Marcelino Ribeiro. Outras,
como a Fazenda Pedreira, de Manoel José de Oliveira Pinto, foi herdada de seus pais; a
Fazenda Abreu, pertencente a Manoel Campelo d’ Afonseca, herança do sogro Thomas
Pereira de Oliveira; as terras da fazenda Teixeira, adquirida por Manoel Pereira da Silva,
através do dote e outra parte por compra194.
Os inventários analisados oferecem uma ideia geral da economia, cultura e das
relações sociais, na segunda metade do século XIX. A maioria dessas famílias era
possuidora de pequenas quantidades de terras, porém na freguesia existia a acumulação
de propriedades entre os fazendeiros, mesmo que em pequenas extensões. Talvez essa
acumulação tenha sido ocasionada por causa da promulgação da Lei de Terras, n.º 601,
de 1850, cujo nascimento é conexo ao inevitável esfacelamento do sistema escravista,
prenunciando a grande crise na oferta de mão de obra que se imporia aos grandes
proprietários, além, é claro, a manutenção do meio de produção (a terra) nas mãos dos
mesmos privilegiados. Assim, escravos libertos seriam obrigados a constituir a força de
trabalho necessária aos estabelecimentos agrícolas pelo obstáculo da aquisição das terras
através da compra195.
Não obstante, os diversos elementos analisados neste capítulo, como o estilo de
vida dos moradores, a importância da fumicultura para São Gonçalo dos Campos, a
192
BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863), TEIXEIRA, Marli Geralda, p. 46.
193
BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863).
194
BARICKMAN, op. cit., p. 179.
195
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. A Ideologia da Decadência: leitura antropológica a uma
história da agricultura do Maranhão, São Luís, IPES, 1983, p. 131. SILVA, Lígia Osório. Terras
Devolutas e Latifúndio. Efeitos da Lei de 1850. Campinas. Editora da Unicamp. 1996. p. 124
68
existência de diversas culturas agrícolas, a criação de gado e as diversas extensões de
terras geraram a necessidade da presença escrava na região.
Sociedade: relações de trabalho na fumicultura da freguesia de São Gonçalo dos
Campos
Outro dado que ressai nos inventários é a presença de escravos entre os bens das
famílias. João Coelho de Almeida, em sua fazenda, em 1882, cultivava tabaco associadas
a outras produções, como, mandioca, café e a criação de gado utilizando, para isso, o
trabalho de 14 escravos todos do serviço da lavoura196. Pelo montante de 5.330.00 (cinco
contos e trezentos e trinta mil) reis, o proprietário não era um dos mais abastados da
Freguesia. Os produtores livres que cultivavam pequenas propriedades representavam a
maioria dos lavradores, com uma média entre 4 e 6 escravos por fazenda 197.
Esse número altera-se nas fazendas de maior extensão de terras e naquelas que
concentram em sua produção todas as atividades econômicas citadas anteriormente,
equivalendo à média aproximada de 15 a 20 cativos por propriedade 198. Para se ter uma
ideia, Maria Francisca do Amor Divino, na oportunidade, possuía 23 escravos dentre seus
espólios e Maria Jerônima de Trindade que cultivava o tabaco, a mandioca, o café e criava
gado, usando, para isso, 43 escravos. Assim como essas proprietárias, outros possuidores
tinham um número expressivo de escravos utilizados nas atividades agrícolas e na criação
de gado. O mesmo foi observado por Freire nas fazendas pecuaristas em Feira de
Santana199, no período correspondente.
O número de escravos diverge em diferentes espólios. Helena Maria da Cruz,
então viúva, moradora da fazenda Cruz, inventariou os bens deixados por seu marido,
Antônio Lourenço Almeida, declarando 13 escravos do serviço da lavoura, avaliados em
196
Inventário de João Coelho de Almeida, 1882. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira,
Provincial, Inventários, Caixa 218.
197
Dados obtidos a partir da análise de inventários entre as décadas 1860 a 1880. Também foi a mesma
estimativa feita por Nardi. Esse autor se baseou na razão entre a produção e produtividade por tarefa e o
número de lavradores de fumo e entre o número de escravos do Recôncavo não ocupados na produção
açucareira e o número de sítios: NARDI, op. cit., p. 60-1.
198
BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198 e 218. Ver ainda
TEIXEIRA & ANDRADA, op. Cit., p. 48.
199
FREIRE, op. Cit., p. 60.
69
6.040.000 réis200. No inventário de Ana Francisca da Trindade, entre os bens foram
mencionados 13 escravos no valor de 7.250.000 reis 201.
Outros proprietários, também, executavam todas essas atividades econômicas
contando com a mão de obra de até 7 escravos, contudo a extensão de terras e a produção
era menor. Como exemplo, Francisco Rodrigues Vilarinho, na ocasião de sua morte
possuía, a Fazenda Ilha, com casa de morar e casa do fabrico da farinha, armazém de
fumo, os acessórios, arvoredos, cercas, valados, uma casa de morar no terreno foreiro na
sede da Vila, e 7 escravos202.
No caso desse último exemplo, é possível sugerir que o
trabalho nessa unidade produtiva era associado à mão-de-obra de natureza familiar 203.
Isto porque a lavoura da fumicultura tinha um caráter 'híbrido 204', com a combinação de
mão de obra escrava e familiar 205.
Algumas famílias possuíam um menor número de escravos e extensão de terras,
como visto acima. Outras, vivendo de maneira modesta, provavelmente da renda das
terras, trabalhavam em suas roças de fumo e de mandioca, sendo o preparo e
beneficiamento feitos nas propriedades dos fazendeiros mais abastados. Essa malha de
trabalhadores nem mesmo visualizaram seus escassos recursos em inventário. Diferentes
destes, porém, Maria Camila de Souza, deixou 4 escravos, serviço da lavoura, no valor
2.700.000 reis para seus herdeiros, Estevão Nery de Souza, marido, e seus filhos, Ana
Joaquina de São José e Manoel André Rodrigues de Souza, em 1873-1875206.
Observado, igualmente, a situação de João Cardoso Cazumbá, “solteiro”,
proprietário de terras na fazenda Sobrado, local denominado Cruz, teve 8 filhos com Rita
Gonçalves de Oliveira, solteira, escrava de Antônio Gonçalves de Oliveira .207. Comprou
para si o escravo João, preto, de idade de 19 anos mais ou menos, solteiro do serviço da
lavoura, natural da Freguesia, pelo valor de 300.000 reis, a D. Anna Joaquina Ferreira de
200
Inventário de Ana Teodora das Virgens, 1950-1859. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira,
Provincial, Inventários, Caixa 198.
201
Inventário de Ana Francisca da Trindade, 1855. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira,
Provincial, Inventários, Cx. 218.
202
Inventário de Francisco Rodrigues Vilarinho, 1879. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira,
Provincial, Inventários, Caixa 218.
203
BARICKMAN, op. cit.
204
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 5ª. ed. São Paulo: Ática, 1988, p. 11, 77-8.
205
NARDI, op. cit., p. 85-6
206
Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 198.
207
Escritura de Compra e venda de João Cardoso Cazumbá, 1879. BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro
João Mendes, Livro do Tabelionato n. 8, 1887 a 1891, p. 29.
70
Cerqueira208, nota-se a pequena fortuna que obtinha em 1879. Ocorrência que ausente
nas experiências de seus descendentes.
Os dados evidenciam, ainda, a distribuição da posse de escravos na região se
comparada a outras regiões do Recôncavo, associando o número de cativos por
proprietários ao tipo de propriedade agrícola e de atividade econômica, nesse caso,
constatei uma maior quantidade de escravos concentrado nas mãos de um pequeno
número de lavradores209.
Em outros inventários pude perceber a existência de inventariantes que moravam
na sede da Vila de São Gonçalo dos Campos, que declaram entre seus bens escravos do
serviço da lavoura. No inventário de Maria do Carmo das Virgens, lavradora, em 1869,
na Fazenda Tabua Grande, arraial da freguesia, era dona de 2 casas no arraial da freguesia
e 4 braças de terras também no arraial, e na localidade denominada Capela do Amparo,
uma casa arruinada. Mais 6 escravos, do serviço da lavoura, avaliados em 2.650.000
reis210. Norberto de Assis Freitas, morador no arraial da freguesia, ao inventariar os bens
deixados por Maria Úrsula das Virgens, 4 escravos, serviço da lavoura, de 1.000.000
reis211. Tais dados sugerem que havia cativos que trabalhavam nos serviços agrícolas nas
fazendas vizinhas como escravos de ganho 212. Com a proximidade das roças e da vila
tornaram possível empregar os escravos na lavoura.
Os dados encontrados não indicam a realidade escravista que comumente é
debatida por pesquisadores da área213, quando afirmam a pouca presença de escravos nas
fazendas de fumo.
Porém, a localização geográfica que privilegiou a diversidade
econômica permitiu que se instalassem unidades policultoras, com o uso da mão de obra
208
Escritura de perfilhação João Cardoso Cazumbá, 1879, BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João
Mendes, Livro do Tabelionato, n. 4, p. 74.
209
Sobre esse assunto consultar: FREIRE, op. Cit., MATTOSO, op. Cit., NARDI, op. Cit., BARICKMAN,
op. cit., SCHWARTZ, op. Cit.
210
Inventário de Maria do Carmo das Virgens, 1869. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira,
Provincial, Inventários, Caixa 198.
211
Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Caixa 198.
212
Maria José Andrade apresenta o negro como trabalhador em Salvador, que nas atividades econômicas
urbanas desempenhavam variadas funções: alfaiate, carpinteiro, ourives, sapateiro, torneiro, além do
chamado escravo de ganho, sendo que estes e os domésticos tinham certos privilégios em relação aos
demais escravos. Mattoso, também, apresenta, dentre as categorias sociais da Bahia, o escravo de ganho.
Ver mais sobre a escravidão: Mattoso, Ser Escravo no Brasil, 3a edição, São Paulo, Brasiliense, 1990.
ANDRADE, José Maria Andrade. A Bahia no século XIX: os escravos na sociedade baiana. Editora
Corrupio. São Paulo, 1988. Também SCHWARTZ, S. Escravos, roceiros e rebeldes. São Paulo: Edusc,
2001. COSTA, Emília V. da. Da senzala à Colônia. 2-ª ed. São Paulo: Ciências Humanas, 1982 [1966];
Da Monarquia à República: momentos decisivos. 7-ª ed. São Paulo: Ed. Unesp, 1999; GORENDER, Jacob.
O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978. CARDOSO, Ciro F. Agricultura, escravidão e capitalismo.
Petrópolis: Vozes, 1979.
213
NARDI, op. Cit., BARICKMAN, op. Cit. MATTOSO, op. Cit., SCHWARTZ, op. Cit., TEIXEIRA &
ANDRADA, op. Cit.,
71
escrava em pequena e em larga escala. A tabela abaixo apresenta a composição da
população, conforme constam no censo de 1872:
Tabela 1 – Cor, condição e sexo, no censo de 1872 da vila de São Gonçalo dos
Campos:
Condição/sexo
Branco(a)
Pardo(a)
Preto(a)
Caboclo(a)
Total
Mulheres livres
465
1.320
782
329
2.896
Homens livres
1.013
2.723
2.667
558
6.961
Homens escravizados
-
800
1.062
-
1.862
Mulheres escravizadas
-
228
293
-
521
1.478
5.971
4.804
897
12.240
Total
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Recenseamento do Brasil de 1872. Bahia,
p. 97.
Em 1872, o censo, apresentou 12.240 habitantes, divididos em 8.783 homens e
3.375 mulheres, vivendo em 2007 fogos214. Havia 1.862 escravos e 521 escravas. Não
foi registrado o número de liberto, contudo, há uma elevada parcela pessoas de cor sendo
38,81% pretos, 41,78% os pardos, enquanto o contingente de brancos ficou em torno de
12% e os descendentes de índios, os caboclos correspondendo 7,39% da população da
freguesia. De acordo com os dados coletados nas certidões de nascimento de 1876 a 1881
a população de São Gonçalo se reconhecia racialmente em: 66% parda, 11% cabra, 10%
branca, 0,6% crioula, 0,2% preta, 0,5% não declarou cor215. Estes dados indicam que a
sociedade no final do século XIX se auto reconhecia como miscigenada.
Aparecia listado no censo dos 2.383 escravos, 9 costureiras, 5 sapateiros, 3
carpinteiros, 8 escravos classificados como do tecido - fazendo trabalhos como a fiação
de tecidos em teares216, 3 alfaiates, 5 sapateiros, 1.652 lavradores, sendo 1.348 do sexo
masculino e 304 femininos, além de 1 criado, 7 criadas, 452 escravos do serviço
doméstico, 160 escravas também domésticas, outros sem profissão; 50 escravos e 33
escravas217.
214
Fogos (unidades domésticas, que podiam ser também unidades econômicas) chefiados por indivíduos.
BAHIA, Livros de Batismo de 1876 e 1881. Arquivo da Arquidiocese de Feria de Santana.
216
Tipo de atividades realizadas por moradores e escravos de Feira de Santana na segunda metade do século
XIX. Ver Freire, op. Cit., p. 114.
217
BRASIL, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Recenseamento do Brasil de 1872.
Bahia, p. 97.
215
72
Nos inventários consultados a maioria dos escravos era do serviço da lavoura,
outros domésticos, estes com especialidade de engomar, bordar e de coser. Ainda, para
os serviços da lavoura, incluía o cuidado com os animais, o vaqueiro 218 e a fabricação da
farinha que, neste último caso, estendia-se desde raspar a mandioca até a torragem da
farinha. Assim, a distribuição e a posse de escravos estavam relacionadas ao uso da terra
na região, como seria de se esperar na zona de cultivo de fumo e em uma agricultura de
subsistência caracterizada por pequenos espólios.
Além disso, percebe-se que nas atividades fumageiras o trabalho escravo era
empregado, sobretudo em serviços da lavoura desde os trabalhos de cavar, plantar e
capinar, o que significa dizer que, os chamados "negros mestres"219 que, de acordo com
Antonil, realizavam tarefas de "torcer" ou "enrolar", "juntar" e "passar" as cordas de
tabaco e colocá-las em hastes de madeira220, eram os mesmos que faziam o plantio e a
colheita do gênero.
Sobre a faixa etária da população escrava na década de 1870, de acordo com
censo, era de 4 a 90 anos de idade, sendo a faixa etária de 20 a 50 anos como maior
número de indivíduos221. Também, não constam escravos com alguma moléstia, o que
pode ser contestado através dos registros nos inventários. Nestes alguns escravos eram
listados com alguma doença, provavelmente, por causa dos serviços que prestavam. A
Fazenda Moreira, por exemplo, 14 escravos traziam determinadas moléstias, como,
Antônio, idoso, crioulo, comprado com a moléstia de virilha esquerda, apresentava-se, na
ocasião, o braço desmentido; Luís, de boa idade, crioulo, do serviço da enxada tinha uma
cicatriz nos lábios222, ocorrência frequente em outros inventários e escrituras de compras
e vendas de escravos.
Portanto, entre 1870 a 1888, a mão de obra em São Gonçalo dos Campos estava
fixada na lavoura destinada à policultura, encabeçada pela produção de fumo, tanto
218
Dos 273 escravos listados nos 35 inventários, apenas um escravo foi declarado vaqueiro na fazenda
Limoeiro, de Maria Jerônima da Trindade. Ver Inventário de Maria Jerônima de Trindade, 1829/ 1862.
BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 218.
219
ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. São Paulo: Nacional, 1948, p. 151-4.
220
LOPES, Gustavo Acioli. “Caminhos e descaminhos do tabaco na economia colonial”, Dossiê Cultura
e Sociedade na América Portuguesa Colonial, Revista MNEME v.5, n. 12, out./nov.2004 Disponível em
http://www.seol.com.br/mneme..p. 6. MARQUEZE, Rafael de Bivar. Administração e escravidão: ideias
sobre a gestão da agricultura escravista brasileira. São Paulo: Hucitec, 1999.
221
BRASIL, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Recenseamento do Brasil de 1872.
Bahia, p. 97.
222
Inventário de Maria Jerônima de Trindade, 1829/ 1862. BAHIA, Arquivo Público Municipal de
Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 218.
73
masculina quanto feminina.223 No censo de 1872, homens e mulheres escravizados
correspondiam a aproximadamente 18% da população total da freguesia, já homens e
mulheres, pretos (as) e pardos (as) livres totalizavam 67% da população 224. Dados que
ratificam que a maior parte dos trabalhadores rurais, do período, era homens e mulheres
livres e de cor.
Como disse, anteriormente, no século XIX a posse de terras e escravos conferia
prestígio a quem as possuíssem e, muitas vezes, esses elementos formavam a base da
riqueza de muitos. Entretanto, havia nos documentos ocorrência de proprietários de terras
sem posse de escravos. No inventário de Antônio Isaías da Costa, de 1877, as herdeiras
D. Maria Alexandrina da Costa e Almeida e D. Francisca Maria da Costa e Almeida,
irmãs do inventariante, na propriedade denominada Orobó, declaram três casas de morar,
uma malhada225 de feijão, 9 animais - não consta a raça - 3 cavalos, um burro “velho” e
uma mula “nova”. Antônio Isaias da Costa possuía a renda de 1: 175 mil réis. Tais
proprietários não inventariaram escravos, evidenciando, com isso, que não os possuíam
entre seus bens. Esse contexto foi observado, em 1835, por Barickman, o qual salienta
que,
Em 1835, na freguesia de São Gonçalo dos Campos, no próprio coração dos
campos da Cachoeira, famosos pelo cultivo do fumo, quase dois terços (64,5%)
de todos os fogos chefiados por lavradores não possuíam nenhum escravo. A
difusão do fumo em folha, a partir de meados da década de 1840, tornou a
lavoura fumageira ainda mais acessível as camadas mais pobres da população
livre. De fato, a partir de 1850, os observadores passaram a associar, cada vez
mais, o fumo a produção camponesa. Contribuíram, dessa maneira, para
estabelecer a duradoura reputação do tabaco como “lavoura de pobre” ou
“lavoura de quintal”226.
As considerações feitas por Barickman a cerca da economia fumageira contribuem
para perceber a malha de lavradores pobres e sem posse de terras e/ou escravos que
desenvolvia esta atividade, como foi observado nos dados.
Outros pesquisadores,
também, observaram em terras que não configuravam pequenas propriedades laboravam
grandes e pequenos, homens e mulheres, feitores, além dos escravos227. Todavia, mais de
223
TEIXEIRA & ANDRADA, op. Cit.
BRASIL, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Recenseamento do Brasil de 1872.
Bahia, p. 97.
225
Os autores que trabalha com história material não apresentaram a medida para Malhada
226
BARICKMAN, op. cit., p. 245
227
BORBA, Silva Fraga Costa. Industrialização e exportação de fumo na Bahia. 1870 – 1930. Salvador,
Mestrado em Ciências Sociais da UFBA, 1975. P. 14. TEIXEIRA, op. cit., p. 48. ANTONIL, op. cit., p.
181.
224
74
50% dos produtores de fumo no Recôncavo eram rendeiros228 (foreiros e
arrendatários229).
A fazenda Moreira, em 1863, possuía moradores em suas terras indivíduos que
foram declarados que como benfeitorias 3 casas pequenas próximas a estrada que moram
vários agregados, muito velhas cobertas de telhas, danificadas. Como bem salienta
Samara a constituição de agregados como categoria social está vinculada, à concentração
fundiária, que possibilitou e condicionou a existência de homens destituídos da
propriedade e dos meios de produção230, sendo este o mesmo critério estabelecido pela
primeira lei que versa diretamente sobre a “emancipação” do trabalho escravo para o
trabalho livre é a lei nº 2040, conhecida “Lei Rio Branco”, ou conhecida como “Lei do
Ventre Livre”, de 17 de setembro de 1871231.
Dos livros cartoriais considerados, no período de 1877 a 1888, foram registradas
uma pequena quantidade de cartas de alforrias, ocorrência oposta aos assentamentos de
escrituras de compra e venda de escravos e de terras que aparecem com maior frequência.
Por isso achei bem trazer à baila algumas alforrias para entender os contratos,
arranjos, indícios e práticas usadas por escravos e senhores que contribuíram para tornálos livres dos vínculos da escravidão. Para Maria, parda, de trinta e tantos anos, o então,
senhor, capitão José Lopes de Menezes Filho, lhe confere a manumissão, em outubro de
1879, pela quantia de 500 mil reis. Também, a escrava Faustina, crioula, 25 anos,
granjeou sua alforria, pela quantia de 700 mil reis, paga a sua senhora Eustachia de
Cerqueira Magalhães, em agosto de 1879. Ressalvando os aspectos nestas alforrias,
advirto que as justificativas para o gesto foi o fato de ter recebido em moeda corrente, o
valor correspondente ao mesmo.
228
ARCHETTI, Eduardo P. Presentación. In: CHAYANOV, Alexander V. La organización de launidad
económica campesina. (Trad.). Buenos Aires: Nueva Visión, 1985, p. 11. In: LOPES, Gustavo Acioli.
“Caminhos e descaminhos do tabaco na economia colonial”, Dossiê Cultura e Sociedade na América
Portuguesa Colonial, Revista MNEME v.5, n. 12, out./nov.2004 Disponível em
http://www.seol.com.br/mneme.
229
De acordo com Samara o que caracteriza esses elementos é o fato de não possuírem nem uma pequena
porção de terra ou casa própria, tendo, portanto, que se ajustar aos proprietários das áreas rurais ou urbanos
dentro dos mais diversos tipos de relações. No caso de moverem um pedaço de chão cedido pelo dono,
constroem então uma casa ou habitam em alguma lá existente, geralmente de taipa e pau-a-pique. Apesar
das escassas informações, a situação desses indivíduos parece ter variado de acordo com as mudanças
ocorridas em São Gonçalo e contexto econômico de cada região. Consultar SAMARA, Eni de Mesquita.
Lavoura Canavieira, trabalho livre e cotidiano. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005,
p. 58.
230
Ver FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem Escravocrata. São Paulo, Instituto
de Estudo Brasileiros, 1969, p. 95.
231
Lei nº 2.040, de 28/09/1871. Coleção das Leis do Império do Brasil de 1871, Tomo XXXI, Parte I (Rio
de Janeiro, 1871), pp. 147.151 (referências tiradas de CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura
no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, INL, 1975, apêndice II, pp. 366- 369).
75
É provável que o acúmulo do pecúlio pelo cativo para a comprar suas alforrias,
ter ocorrido através dos trabalhos realizados em torno da produção fumageira. Como
advertiu Reis muitos escravos notaram que as roças abriam portas para liberdade, uma
vez que tornava aceitável o acúmulo de pecúlio 232. O cativo podia contratar seus serviços,
como provavelmente aconteceu entre os escravos das ocupações da lavoura e residiam na
vila, ou então, faziam suas roças nos feriados e nos domingos para adquirirem seus
sustentos, como bem observou Barickman, especialmente nas economias da mandioca e
do fumo na primeira metade do século XIX233. Também outros autores sugerem que os
escravos produziam seus alimentos e o excedente era comercializado nas feiras locais, ou
até mesmo vendendo seus serviços na Vila, episódio que incidiu no termo de Feira de
Santana nas décadas de 1860-1880234.
Diferente a manumissão de Inácio cabra, com idade 14 anos mais ou menos, em
1 de agosto de 1877, conferida por seus senhores Manoel Alves Ferreira e sua mulher D.
Anna Joaquina de Sant’Anna, estava sob a condição de os servir enquanto fossem
vivos235.
Outras duas, Izidora, cabra, 50 anos de idade, foi adquirida pelos os bons
serviços prestados a “benfeitora”, a qual conferia sua alforria na qualidade de
inventariante do falecido marido Manoel Carvalho Cunha.
A carta alforria da escrava Isabel, preta, 20 anos, foi à única registrada em 1887.
Nesta a senhora, Maria Carolina de Jesus, outorga liberdade desta, em gratidão aos bons
serviços por ela prestados, “nos tempos de seu marido como em sua viuvez”236. Como em
outros locais os perfis senhoriais são semelhantes, igualmente, usam justificativas
expressavam uma manifestação de controle dos senhores sobre os seus escravos, tornando
manifesto ao escravo e à sociedade, que lhes é facultativo reconhecer ou não as qualidades
e os serviços prestados, e em sinal de reconhecimento, gratidão, vontade e poder
concederiam, como um prêmio, a liberdade 237.
REIS, João José, “Escravos e Coiteiros no Quilombo do Oitizeiro, Bahia, 1806”, In REIS, o José, e
GOMES, Flávio dos Santos, (orgs.), Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil, São Paulo,
Companhia das Letras, 1996, pp. 362-365.
233
BARICKMAN, op. Cit.
234
NASCIMENTO, Flaviane Ribeiro. Viver por si: histórias de liberdade no agreste baiano oitocentista
(Feira de Santana, 1850-1888). Salvador, BA: UFBA, 2012. (Dissertação de Mestrado);POPPINO, op.
Cit., FREIRE, op. Cit., p. 76. Para Salvador Mattoso ponderou a possibilidade dos cativos acumularem
pecúlio nos espaços da Cidade, nos diversos trabalhos urbanos. MATTOSO, Kátia M. de Queirós,
Revolução dos Alfaiates à Riqueza dos Baianos no Século XIX _ Itinerários de uma Historiadora, Salvador,
Corrupio, 2004, p. 303.
235
Arquivo do Fórum Ministro João Mendes. São Gonçalo dos Campos. Tabelionato, Livro 1. p. 10.
236
Arquivo do Fórum Ministro João Mendes. São Gonçalo dos Campos. Tabelionato, Livro 7.
237
NASCIMENTO, Op. Cit.
232
76
Nada obstante, a maioria das cartas de alforrias era paga238, os escravos tinham
que ajuntar um pecúlio para compra dos senhores à tão sonhada liberdade. Mais isso não
quer dizer que tenham rompido com os laços que prendiam ao ex-senhor. Uma vez que
tais escravos, do serviço da lavoura, sem acesso à terra, permaneciam nas imediações das
fazendas como trabalhadores livres 239. Esse argumento serve para pensar como a
economia fumageira e a produção de gêneros alimentícios, e o cuidado com o gado,
presente numa região com cultura fundiária diversificada ofereceu, de tal modo,
mecanismos e estratégias240 que lançaram mão os dois grupos sociais para alcançarem
seus objetivos, de um lado, a liberdade do cativo, do outro, a manutenção da força de
trabalho em suas adjacências, como também a posse de meios de subsistências pelos
libertos.
De acordo com Nascimento, nos anos de 1860-1870, em Feira de Santana e seus
arredores a maioria das alforrias foram pagas e incondicionais, apontando para essas
ocorrências a conjuntura de crise pela qual passou a Província da Bahia, com secas e
epidemias, o que, provavelmente, tornou difícil aos pequenos proprietários mantêm os
cativos241. Na região de economia açucareira os senhores concederam alforrias coletivas
aos seus cativos, quando a abolição já era uma certeza, como bem salienta Fraga,
Em 1887, as fugas coletivas e a recusa de trabalhar nos canaviais, sob a
condição escrava, fizeram os senhores refletirem sobre os perigos da
manutenção das relações escravistas. No final daquele ano, começaram
a conceder alforrias coletivas sob condição ou gratuitas242.
Não foi possível observa os prováveis conflitos entre escravos, libertos e
proprietários rurais na freguesia, uma vez que, não encontrei documentos que fizessem
referências a essas experiências, entretanto, é aceitável presumir a confusão nesta como
sucedeu em outras partes do Recôncavo. Como observou Fraga a respeito da recusa dos
escravos de trabalhar nos canaviais como os conflitos entre os senhores de engenhos ou
238
De acordo com Flaviane Ribeiro Nascimento as cartas de alforrias pagas, foram aquelas que os escravos
compravam através do um pecúlio. Existiam outros tipos de cartas como a onerosa, essas impunham certas
condições aos cativos para alcançarem sua liberdade, mesmo depois de receberem suas manumissões. Ver,
NASCIMENTO, Op. Cit. p. 84.
239
TEIXEIRA & ANDRADA, op. Cit.
240
Pensamos estratégias como propostas por THOMPSON, em que cada grupo social procura maximizar
suas vantagens sobre o outro. Além disso, pensamos no conceito de habitus, de Bourdieu, que se refere a
uma tradição cultural que explica a dinâmica social através das relações, associações através da qual os
indivíduos legitimam seus direitos sociais sejam quais foram. No caso, o senhor tentava proteger o seu
patrimônio e o escravo sua liberdade. THOMPSON, 1998, p. 90. BOURDIEU, 2004, p. 21.
241
Ribeiro apresenta a análise de Maria de Fátima, para Rio de Contas, a qual afirma que entre os anos de
1870- 1888, as cartas de alforrias estavam distribuídas em 33% pagas o pecúlio, 28% receberam cartas
incondicionais, e 39 % condicionais à prestação de serviços. Consultar, NASCIMENTO, p. 84 e 85.
242
FRAGA, op. Cit., p 104.
77
entre estes e pessoas livres acerca dos danos provocados pelos gados às lavouras, 243 fato
que poderiam maximizar a outorga da liberdade.
Deste modo, a respeito das alforrias, para São Gonçalo, no mesmo período, foram
proporcionalmente menores, com vista os números das negociações de compras e vendas
de escravos, feitas pelos mesmos proprietários. Ainda, associa-se que parte da escravaria
trabalhava nas suas pequenas roças para a sua subsistência, sem com isso, gerar muitas
despesas para seus senhores244. Neste sentido, o reduzido número de alforria, em São
Gonçalo, deve-se ao fato de que, a condição de cativo, ainda, gerasse ao escravo alguma
vantagem, tal que aqueles libertos continuavam com vínculos com seus antigos senhores,
cenário em que a posse de terras para o liberto era um sonho pouco imaginável depois da
lei de Terras.
Acrescenta-se a esse fato o contexto de transferência de tráfico atlântico para o
interprovincial, situação que induziu a mão de obra escrava da Bahia ser destinadas às
fazendas de café no Rio de Janeiro, São Paulo e Maranhão245, em que, de 1850 até 1870,
provavelmente 24 mil escravos foram exportados. Uma parcela de escritura de venda de
escravos e procuração menciona que os escravos poderiam ser vendidos no Rio de
Janeiro. Como foi o caso da procuração feita por Bernardino Alves Barreiros, morador da
Freguesia de Nossa Senhora dos Remédios, em Feira de Santana que, em 7 de julho de
1877, compareceu ao cartório da Freguesia de São Gonçalo dos Campos, comarca de
Cachoeira, para instituir como seu bastante procurador na cidade de Salvador, Rio de
Janeiro em geral, Silva Moreira de Senna, João Maria Miranda, Leone Antônio Gomes
de Mendonça, e José Moreira Villúdo. Dando-lhes poderes, especialmente, para vender a
sua escrava Geralda, preta, de 16 anos de idade de mais ou menos, solteira, da lavoura,
natural da Freguesia dos Remédios, filha natural da escrava Maria, a quem sua mulher
Carlota Joaquina Ribeiro, herdou de sua mãe 246.
Outro exemplo de procuração feita por João Alves da Silva, morador nesta
freguesia, 7 de setembro de 1877, ao seu procurador Capitão Antônio Cerqueira de
Araújo, e Manoel Pedreira de Coutinho na Cidade Cachoeira, para vender sua escrava
Luiza, cabrinha de idade de sete anos mais ou menos, da lavoura, natural desta freguesia,
243
Idem, p. 171.
Ver BARICKMAN, op. Cit.
245
Idem, p. 230. Ver também: PARÉS, Luís Nicolau. O Processo de Crioulização no Recôncavo (17501880). Revista Afro- Ásia, v. 33, p. 87- 132. 2005.
246
Arquivo do Fórum Ministro João Mendes. São Gonçalo dos Campos. Tabelionato, Livro de 1.p 1.
244
78
filha natural da escrava Florzinha, liberta por Manoel Alves e sua mulher247. Como
advertiu Barickman “O tráfico interprovincial acelerou o declínio da escravidão na Bahia
e deu início a uma longa e penosa transição para o trabalho livre” 248, através das
procurações, compreende-se que os senhores e senhoras instituíam procuradores para
vende seus escravos e escravas, “podendo embarcar o escravo para qualquer ponto do
Império”249. A despeito disso, a província da Bahia, em 1872-1873, tinha a terceira maior
população escrava do Brasil250.
Mais um ponto que merece destaque foi à elevação do preço dos escravos, como
em outras partes da Província, por causa do tráfico interno, como advertiu Nascimento
que neste período o preço de mulheres e homens, em Feira de Santana 251. Barickman
ressalva que o preço do escravo do serviço da enxada que no início de 1850, era de 400.00
reis252, pode ser encontrado em 1870, na quantia de 1.000.00 conto reis. Valor dado ao
escravo Januário, preto, 22 anos, solteiro, em 17 de junho de 1879, pelo vendedor Tenente
Coronel Antônio Carlos da Silva ao comprador Capitão José Lopes Menezes Filho 253.
Observa-se ainda nestes registros que os sujeitos envolvidos nas transações comerciais
possuíam alta patente, o que indica a presença de proprietários abastados contraditório às
indicações de crise que afetava especialmente aos pequenos lavradores que tinha posse
de escravos254.
Os altos preços constam, igualmente, na escritura de compra e venda da escrava
crioula, Maria, crioula, 16 anos, vendida por Antônia da Conceição ao comprador José da
Silva Maxado, em 24 de fevereiro de 1866, na quantia de 900,00 reis. Outro exemplo foi
o da escrava Marcelina, crioulinha, 28 anos, vendida por Antônio Germano Dias, morador
da Freguesia de Humildes a Januário Alves de Souza, morador na freguesia de São
Gonçalo dos Campos, em 15 de março de 1866, na quantia de 800,00 reis 255. Segundo
Slenes a queda do mercado interno de cativos ocorreu entre os anos 1881-1883256,
contudo as escrituras sinalizam que no período de 1870-1888, às vésperas da abolição,
ocorreu um elevado número de compra e venda de escravos em São Gonçalo dos Campos.
247
Arquivo do Fórum Ministro João Mendes. São Gonçalo dos Campos. Tabelionato, Livro de 1. p. 14.
BARICKMAN, op. cit., p. 230
249
Arquivo do Fórum Ministro João Mendes. São Gonçalo dos Campos. Tabelionato, Livro de . p 11.
250
BARICKMAN, op. Cit., p. 231
251
Arquivo do Fórum Ministro João Mendes. São Gonçalo dos Campos. Tabelionato, Livro de 1 a 7. Ver
Ribeiro, op. Cit., p. 68.
252
BARICKMAN, p. 231.
253
Arquivo do Fórum Ministro João Mendes. São Gonçalo dos Campos. Tabelionato, Livro 6.
254
Sobre o assunto ver NASCIMENTO, op. Cit., POPPINO, op. cit., FREIRE, op. Cit.
255
Arquivo Municipal de Cachoeira, São Gonçalo dos Campos, Livro de Notas de 1866-1867.
256
SLENES, 2005, p. 357.
248
79
Tais ocorrências sugerem que a conjuntura do período — leis abolicionistas, aumento do
tráfico interno, elevação dos preços dos cativos, ascensão da economia fumageira na
Província — não estava diferenciando São Gonçalo dos Campos ao padrão das regiões
açucareiras.
Trabalho Livre: arrendamento de terras na década de 1880
Os dados do censo de 1872 sugerem que apenas 32,4%257 dos moradores da eram
proprietários de imóveis, excetuando a população escrava de 29%258, exista outra parcela
de 39%259 que não possuíam propriedade de terras. Esses dados comprovam a presença
de trabalhadores rendeiros260na freguesia, os quais apareceram registrados nas escrituras
de venda e compra de terras, nos registros de arrendamento, em 1881 e, ainda, nos
inventários post mortem. Uma clara evidência de que o trabalho rendeiro na região de São
Gonçalo dos Campos se mantinha em plena vigência na segunda metade do século XIX,
verificável igualmente na primeira década no século XX261.
Um sítio de terras na Fazenda Coqueiro foi arredando por Dona Maria Carolina
de Cerqueira Pedreira, em 30 de agosto de 1881, para José Ciríaco de Oliveira, por 200
mil réis anuais. Não é do nosso conhecimento o tamanho e localização da propriedade,
porém o documento destaca que o rendeiro já havia se estabelecido no sítio antes de lavrar
a escritura no cartório.
Não é possível mensurar a importância dessas transações sobre os
substabelecimentos de escrituras de arrendamentos, antes importa dizer que, através delas
os arrendatários e rendeiros, em troca de uma compensação, assumiram contratos que, ao
mesmo tempo, dava direito ao rendeiro, morador do sítio, fazer as benfeitorias que
desejasse como limitava que os benefícios não deveriam exceder o valor da renda.
257
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Recenseamento do Brasil de 1872. Bahia, p. 9799.
258
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Recenseamento do Brasil de 1872. Bahia, p. 9799.
259
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Recenseamento do Brasil de 1872. Bahia, p. 9799.
260
Os rendeiros eram plantadores de fumo no distrito de Cachoeira, porém não eram proprietários de terras.
Sobre o assunto ver ANDRADE, Manuel Correia. Apud. BORBA, Silva Fraga. Industrialização e
exportação de fumo na Bahia. Salvador. Mestrado da UFBA, 1975, pp. 4 e 5. Mattoso, op. cit.
SCHWART, Stuart. Segredos Internos: Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1.' edição, 1988. SANTANA, Charles D'Almeida. Fartura e Ventura
Camponesas: trabalho, cotidiano em Migrações: Bahia: 1950-1980. São Paulo: Annablume, 1998.
261
Dados verificáveis nos assentamentos cartoriais de terras e nas narrativas orais dos moradores do
município.
80
Do mesmo modo, foram arrendadas as terras da fazenda Chapada, do Capitão
Firmino da Silva Daltro. O rendeiro, João Severino dos Santos, morador no fundo da
fazenda, cujas terras já “possuíam” por nelas já ter se instalado. Neste documento deixa
explícito que o rendeiro deveria plantar suas lavouras de consumo, criar, cercar e fazer as
benfeitorias que fosse necessária, porém, tais benfeitorias não podiam exceder o valor do
arrendamento, 200 mil réis anuais 262.
Como já foi mencionado, no geral, os registros não trazer à baila o tamanho da
propriedade, nem o tempo que o rendeiro precisaria permaneça nas terras. Alguns
documentos trazer à baila que quando os rendeiros deixassem os domínios fundiários
seriam feitas avaliações das benfeitorias. Como exemplos têm-se as terras, casa e
benfeitorias da Fazenda Jacaré, em que o proprietário Antônio Carlos da Silva arrendou
a Manoel Casimiro de Cerqueira263.
Esse fato confirma que a posse de terra não assegurava o controle sobre a mão de
obra, uma vez que, a terra representava parte significativa dos bens. Em certas ocasiões,
as terras eram arrendadas, cuja única finalidade, do rendeiro era assegurar a própria
subsistência e da família. Em qualquer lote podia plantar roça de mandioca, feijão e milho.
Os proprietários que pretendiam arrendar suas terras, objetiva com isso adquirir melhores
rendimentos. Teixeira aponta que,
Não tendo condições de tornar produtiva toda a área, o proprietário mantinha ao
seu redor certo número de arrendatários e meeiros, que residiam em áreas
periféricas da propriedade, dedicando-se à produção de gêneros de subsistência
ou às denominadas culturas menores. A do fumo é um dos exemplos mais
evidentes. Daí concluir-se que algumas das denominadas “pequenas
propriedades” onde o fumo era produzido, eram na verdade pedaços de terra
arrendadas dentro de propriedades maiores no regime de meia. Arrendamento
esse feito por homens livres, pobres ou ex-escravos. A presença dessa clientela
em torno do grande proprietário conferia-lhe poder e prestígio social264.
Terra e escravos eram os bens mais valiosos durante o período estudado. Para uma
sociedade marcadamente rural, a posse significava além de riqueza material,
reconhecimento social, capaz de diferenciá-lo de outros265, controlando, assim, os meios
262
Arquivo do Fórum Ministro João Mendes. Livro de Notas de Escrituras 1881-1883/ São Gonçalo dos
Campos.
263
Arquivo do Fórum Ministro João Mendes. Livro de Notas de Escrituras 1881-1883/ São Gonçalo dos
Campos.
264
TEIXEIRA & ANDRADA, op. Cit., p. 44.
265
RAPASSI estudando a riqueza em Salvador na segunda metade do século XVIII afirmou que ter escravo
qualificava a individuo como proprietário e lhe dava status social. Nem precisava ser proprietário de terra
ou de outros bens, para o indivíduo ter a condição de ser servido. Assim, possuir escravos era um elemento
de homogeneização de um grupo e de diferenciação dentro dele, já que a quantidade de cativos e a
81
de produção representavam a camada dominante da freguesia. Neste sentido, a aquisição
de terra é um componente necessário para se compreender o sistema econômico na
freguesia, uma vez que, após a abolição as estratégias de sobrevivência dos ex-escravos
vão ser realizadas em torno da posse e do trabalho rural. Como, também, as heranças e
casamentos vão sendo firmadas através das posses de terras.
Ainda pode ser citada as terras, casa e benfeitorias da Fazenda Recreio, de Felipe
Pedreira Daltro e sua mulher D. Ana Carolina Pedreira. O rendeiro foi Manoel Romualdo
Pedreira que foi autorizado pelos proprietários a aumentar as benfeitorias apenas no
quintal da fazenda, cuidando das cercas e das árvores frutíferas. Neste caso, nota-se que
os proprietários ofereceram maiores restrições ao rendeiro.
Os arrendamentos das terras eram feitos por marido e mulher, como também ou
pelo homem ou pela mulher. Já na categoria de rendeiros apenas os homens faziam o
acordo com os proprietários. Os registros não informam se estes possuíam ou não
famílias.
Outro ponto importante para compreender o processo de arrendamento é a
finalidade descrita nos registros. A maioria deles informava que os rendeiros podiam usar
as terras para o plantio de sua subsistência. Alguns sinalizavam a criação de gado, como
foi o caso da Fazenda Boqueirão, na Freguesia de Serra Preta. O proprietário, Coronel
Antônio Carlos da Silva, morador na Freguesia de São Gonçalo dos Campos, com
rendeiro José Leonardo Gomes, também morador nesta freguesia, arrendou um sítio de
terras denominado Lachedo, na Fazenda Boqueirão para criar gado266. Parece comum que
os proprietários fundiários da freguesia de São Gonçalo dos Campos possuírem terras e
fazendas em outras freguesias, igualmente, alguns lavradores rendeiros migravam para
arrendar terras.
Os arrendamentos foram meios comuns de acesso à terra na segunda metade do
século XIX. De acordo com Hebe de Castro destaca a Lei de Terras ressaltando que:
(...) a lei de terras votada no ano da extinção do tráfico proibia a ocupação das
terras devolutas por outros títulos que não os de compra, a legislação buscava
criar as condições para o surgimento do mercado livre para a grande lavoura e
aumentar os índices de mercantilização das terras com vistas a que viessem
substituir a renda capitalizada no escravo267.
capacidade de manutenção e reposição dos mesmos indicavam níveis diversos de riqueza.
MASCARENHAS, RAPASSI, Maria José. Fortunas coloniais_ elite e riqueza em Salvador, 1760-1808.
USP, tese de doutoramento, 1998.
266
Livro de Notas de Escrituras 1881-1883/ São Gonçalo dos Campos. Arquivo do Fórum Ministro João
Mendes.
267
CASTRO. Hebe Maria Mattos de. Ao Sul da História: Lavradores Pobres na Crise do Trabalho
Escravo. São Paulo. Brasiliense. 1987. p. 123.
82
Embora a Lei de Terras, o revés a promulgação da Lei Eusébio de Queiroz, em
1850, que extinguia o Tráfico Negreiro, representou um marco legal que objetivava
impedir a apropriação de terras pelos libertos e livres pobres, obrigando-os a permanecer
trabalhando nas fazendas em que eram escravos 268. No próximo capítulo, as narrativas de
descendentes de escravos testificam essas experiências de indivíduos e famílias que,
depois de 1888, continuaram nas fazendas fumageiras de seus antigos senhores, na
relação, agora, de coronelismo, obrigados a oferecer a mão-de-obra em troca de moradia
e terras para aquisição de recurso suficiente a subsistência da família. No ponto de vista,
Costa Porto a Lei protegia os posseiros e sesmeiros irregulares, pois quando seguiam a
paróquia para legitimar a posse das terras adquiriam pelo domínio delas 269.
Entretanto, os registros eclesiásticos sinalizam que às demarcações determinadas
no artigo 14 da Lei 601, permaneceu a mesma balbúrdia de outrora no tocante à não
delimitação literal dos limites, fronteiras e marcos das fazendas ocupadas por particulares.
Nessa perspectiva José Murilo de Carvalho destaca que a Lei de Terras não se consolidou
e, em 1870, o ministro não se via em condições de fornecer dados gerais sobre a execução
da lei, afirmando que posseiros ainda julgavam que os agentes do governo os queriam
espoliar de suas propriedades270. Tal determinação foi estendida dos governos estaduais
para atender aos anseios das oligarquias regionais271. Neste sentido, na Bahia, a Lei
n°198, permitiu que os posseiros legitimassem suas terras até 2 de julho de 1891 272.
Vale lembrar que a categoria de posseiro, pode ser igualmente relacionado ao
rendeiro, uma vez que pagantes da renda pela moradia e o uso da terra nas fazendas, diz
respeito, a uma conjuntura econômico-social em que ambos estão inseridos e, portanto, a
definição comparecer articulada à estrutura geral desta formação. Seu cerne consiste no
acesso estável a terra, na produção familiar (com recurso eventual à mão-de-obra externa
à família) e de subsistência (ainda que com alguma ligação com o mercado) e, por fim,
certo grau de autonomia na gestão de sua parcela de terra.
268
MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Hucitec, 1996.
PORTO, Costa. Estudo Sobre o Sistema Sesmarial. Recife. UFPE. 1965, p. 83
270
CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: A Elite Política Imperial Teatro de Sombras:
A Política Imperial. Rio de Janeiro. UFRJ. Relume-Dumará. 1996, p.314
271
SILVA. Ligia, Op. Cit. p. 249.
272
BAHIA. Leis de Terra do Estado da Bahia. SEPLANTEC./CAR-INTERBA. Mestrado em Direito
Econômico da UFBA Salvador. 1985. pp. 30-37 e 60-62. Ver também: CARVALHO, José Murilo de. A
Construção da Ordem: A Elite Política Imperial Teatro de Sombras: A Política Imperial. Rio de Janeiro.
UFRJ. Relume-Dumará. 1996, p.313.
269
83
Diante disto, é importante observar, através das fontes cartoriais, que o processo
de arrendamento expressava, de fato, um flagrante da realidade vivenciada na região. Em
Feira de Santana encontra-se no Livro de Notas de 1881 foram registradas 50 escrituras
de arrendamentos terras. Geralmente os proprietários (arrendatários) residentes na
Freguesia de Sant’Anna pertencente a mesma Comarca e os rendeiros eram moradores na
freguesia de Umburanas273 da Comarca de Cachoeira. Salvo o caso do capitão Affonso
Pedreira de Cerqueira e sua Mulher dona Maria Pedreira de Cerqueira, residentes na
Freguesia das Umburanas, conduziram-se ao termo de Feira de Sant’Anna, em 27 de julho
de 1881, onde legalmente escrituraram o arrendamento da fazenda Mucambo, no termo
de Camisão, ao rendeiro Viriato Magalhães de Figueiredo, morador na cidade da Feira de
Sant’Anna274. Este teria que pagar aos proprietários pelo uso da terra 200 mil reis ao mês,
no período de 3 anos, sendo permitido plantar e criar, exceto fazer benfeitoria na
propriedade.
Os mesmos proprietários, em 27 de julho de 1881, fazem arrendamento para Luiz
da França e Sr. Tiago, nascidos na cidade de Feira de Sant’Anna, das “terras na fazenda
denominada Todos os Santos, sita Freguesia do Rosário do Orobó, termo do Camisão
para lavoura e criação pelo tempo de três anos, duzentos mil reis anuais”275, sendo negada
a autorização para fazer melhoramento na propriedade. Do mesmo modo, o capitão
Affonso e sua mulher fizeram o arrendamento de suas posses, na fazenda denominada
Todos os Santos, a José Vaz de Ataíde ao tempo de três anos por duzentos mil réis anuais.
Muitas escrituras aparecem em nome do casal, por conseguinte, eram titulares de
grandes extensões de terras em Feira de Sant’Anna e Umburanas. Ao que parece, estes
possuidores tentavam garantir o domínio e uso das terras improdutivas e evitar a ocupação
por escravos fugidos que chegavam na região 276. Portanto, das 50 escrituras localizadas
no Livro de Notas, 31 delas foram registradas pelo Capitão Affonso e sua mulher a
diferentes rendeiros. Na ocasião das notas não foram mencionadas idade, situação civil
ou cor dos indivíduos, consta apenas a moradia de ambos, sendo, neste caso, a maioria
deles residentes na Freguesia de Umburanas.
273
Umburanas podia ser Santo Estevão ou Antônio Cardoso que teve o nome de Tiguatiba no Início do
século XX passando a ser chamada posteriormente por Antônio Cardoso, local pertencente a São Gonçalo
dos Campos. Camisão era uma freguesia de Feira de Sant’ Anna. Os proprietários eram moradores da
Freguesia de Nossa Senhora dos Remédios, em Feira de Sant’Anna.
274
Livro de Notas de Escrituras 1881-1888/ Nº Senhora dos Remédios. Arquivo Público de Feira de
Santana, p. 1.
275
Livro de Notas de Escrituras 1881-1888/ Nº Senhora dos Remédios. Arquivo Público de Feira de
Santana, p. 38
276
FRAGA, Op. Cit.
84
Diogo Augusto Vieira Falcão, morador da Freguesia dos Remédios, arrendou a
Manoel Estevão Gonçalves, morador da Freguesia de Umburanas, em 13 de agosto de
1881, uma posse de terra em sua Fazenda Crumathai, situada na Freguesia das Umburanas
no período 3 anos, pelo valor de duzentos mil reis anuais 277. No dia 16 do mesmo mês e
ano, retorna ao cartório para escriturar a locação de outra porção de terra na mesma
fazenda, a Antônio Rodrigues do Bonfim, também residente na Freguesia das Umburanas.
As escrituras trazem uma importante questão vivenciada na zona rural de São Gonçalo e
Feira de Sant’Anna: o acesso à terra. As combinações realizadas, entre aqueles que
possuíam a terra e aqueles que objetivavam o acesso, estabeleciam uma relação de mão
dupla, em que ambos seriam favorecidos.
Em outro registro, João Ribeiro de Oliveira, habitante na Freguesia de São
Gonçalo dos Campos, arrendou a João Alves de Oliveira, morador na Freguesia das
Umburanas, uma posse de terra na Fazenda Lagoa, situada na Freguesia das Umburanas,
no período de 3 anos, pela quantia de 200 mil reis anuais. Ainda, João Ribeiro de Oliveira
locou a João Baptista de Magalhães, residente na Freguesia das Umburanas, a propriedade
na Fazenda Lagoa, ambos contratos em 17 de agosto de 1881.
Sabino José de Carvalho e sua mulher Cecília de Carvalho, 13 de agosto de 1881,
dão em arrendamento uma parte das terras de sua fazenda Cajazeira a Manoel Pinheiro
do Nascimento, ambos moradores de Umburanas, por igual tempo e valor dos demais
contratos. Ainda, em 18 de agosto de 1881, o mesmo casal arreda a possessão na Fazenda
Cajazeira a Adolpho Porfírio de Cerqueira, residente em Umburanas. Outras duas
escrituras foram efetivadas pelo casal a Thomé Alves Barreto e a outra a Joaquim Cardoso
de Sant’Anna, ambas na propriedade de Cajazeira, em Umburanas.
É provável que houvesse por parte dos proprietários uma inquietação referente ao
privilégio exclusivo da posse da terra, bem como acomodar em seus cuidados
trabalhadores livres, entretanto, sem prejuízos financeiros. Neste sentido, os rendeiros
que recebiam uma parte da terra do fazendeiro para trabalhar, deviam pagar anualmente
pelo arrendamento uma quantia estipulada entre 200$000 a 250$000 reis e também cuidar
das terras, animais e plantações dos fazendeiros, quando possuíssem. Deviam zelar e fazer
benfeitorias sem com isso deixar de pagar aquilo que competia pelo arrendamento das
terras. A exemplo do rendeiro Manoel Casimiro de Cerqueira, que estava condicionado
277
Livro de Notas de Escrituras 1881-1888/ Nº Senhora dos Remédios. Arquivo Público de Feira de
Santana, p. 39
85
a fazer as benfeitorias nas possessões de Antônio Carlos da Silva, contudo, tais benefícios
não seriam incluídos na ocasião da avaliação, após a saída do rendeiro da propriedade278.
De igual modo José Porceiro da Silva, concordou com Sérgio Pedreira Daltro, que faria
os melhoramentos necessários na Fazenda Pau Seco, como consertar as secas externas
das matas, entretanto, estes não seriam introduzidos na avaliação279.
No contrato de Capitão Firmino da Silva Daltro seu rendeiro João Severino dos
Santos responsabilizava-se pela roça, cuidava frequentemente de pequenos animais como
aves e porcos, os quais supriam as necessidades familiares e poderiam ser vendidos na
vizinhança e na feira livre, garantindo uma pequena renda sobre o conjunto familiar, além
de fazer as benfeitorias indispensáveis, no sítio de terras no fundo da fazenda Chapada,
entretanto, o valor delas não devia exceder o seu arrendamento, 200 mil reis. Os indícios
na escritura sinalizam que o registro de 1881 veio legalizar a relação consuetudinária
entre João Severino e o Capitão Firmino Daltro já que existia uma combinação anterior,
afiançada na palavra. Tal relação constitui parte do universo de mil práticas pelas quais
os sujeitos reapropriam contextos nos quais inscrevem os jogos sociais, sendo
experiências encarnadas nas tradições280.
Confirmando essa análise, Mattoso281, para a Bahia do final do século XVIII,
sugere que a maioria dos plantadores de fumo no distrito de Cachoeira eram rendeiros,
criando uma espécie de tradição e um tecido social diferenciado nesta região. Isso
significa dizer que o arrendamento era uma experiência compartilhada pelos fazendeiros
do Recôncavo que se dedicavam na atividade fumageira.
Também Teixeira282 na
compilação comemorativa, Memória Histórica de São Gonçalo dos Campos, indicou que
a produção agrícola naquela Freguesia se concentrava nas mãos de pequenos produtores,
rendeiros ou proprietários de terras, estabelecendo uma cadeia de dependência em torno
do trabalho livre. Também não podem ser negligenciados os costumes dos lavradores,
278
Livro de Notas de Escrituras 1881-1888/ Nº Senhora dos Remédios. Arquivo Público de Feira de
Santana.
279
Livro de Notas de Escrituras 1881-1888/ Nº Senhora dos Remédios. Arquivo Público de Feira de
Santana.
280
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994: 41. LEPETIT,
Bernad. Sobre a escala na História. In: Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1998. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano de um moleiro
perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia das Letras, 1987. PESAVENTO, Sandra Jathay. O corpo e a
alma do mundo. A micro-história e a construção do passado. São Leopoldo, História Unisinos, v. 8, n° 10,
p. 179-189, jul. dez. 2004. REVEL, Jacques (Org.) Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. THOMPSON, E. P. Costumes em comum: Estudos sobre a
cultura popular tradicional. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
281
MATTOSO, op. cit. p. 463.
282
TEIXEIRA & ANDRADA, op. cit.
86
proprietários de terras e produtores de fumo, café e de criatórios de bovinos e equinos,
que possuíam um pequeno número de escravos associarem a estes rendeiros, meeiros e
diaristas, nos serviços da lavoura tendo em vista o aumento da produção familiar.
Conforme registros, parcela da população da freguesia estava empregada na
lavoura de fumo e subsistência através do trabalho livre, sendo presumível a participação
de ex-escravos, pardos, pretos que se tornaram rendeiros, fato que pode ser observado nos
assentamentos do Livro de Fogos da Freguesia283 no século XIX.
O processo de arrendamento em São Gonçalo abre um leque de questionamentos.
Primeiro, referente ao fato de apenas no ano de 1881 haver uma preocupação dos
proprietários em fazer contratos legais. Outro ponto curioso é seguir a trajetória dos
rendeiros, identificando suas origens e seus anseios. Questionar, ainda, sobre a aspiração
dos proprietários com o arrendamento suas terras? Também, interrogar para quem o
arrendamento serviu?
Possivelmente o arrendamento objetivava a sustentação da mão-de-obra barata e
estimulava a transição para o trabalho livre na freguesia. É imaginável que ao perceberem
o inevitável colapso do sistema escravista os fazendeiros recorreram à mão-de-obra do
livre. Do mesmo modo é aceitável que essa fosse uma prática tradicional naquela
conjuntura social, e que os registros legais apenas vieram legitimar costume.
Também pode ser admissível a possibilidade de ter aumentado a demanda de
rendeiros na Freguesia depois de 1850 por causa do tráfico intraprovincial de escravos
para região sul do País, embora nenhum assentamento testemunha essa ocorrência. Por
sua vez, os novos contratos, igualmente, beneficiaram os rendeiros, por conseguinte,
poderiam ajuntar recursos para comprar suas terras e tornarem lavradores independentes.
O cultivo do fumo efetivamente abria possibilidades de participar da economia de
exportação a lavadores pobres e também a agregados e outros homens e mulheres que
viviam de favor em terras alheias 284.
Aliado a isso, os indivíduos egressos da escravidão apoderaram-se sobre uma
parte dos meios de produção como a terra e os instrumentos de trabalho, utilizando da
policultura e diversidade agrária, levando em consideração critérios como ser possuidor
ou não de propriedades. Por fim, deve ser mencionada a sujeição direta ou indireta aos
283
Sobre estes assentamentos trataremos no próximo capítulo.
Entre os 551 lavradores da freguesia, em 1835, que empregavam a mão de obra cativa, a posse média
era de 6,8 escravos. Mais da metade desses lavradores, (55,9%) tinha menos de cinco cativos; um terço
possuía apenas um ou dois escravos. Ver NARDI, op. Cit., BARICKMAN, op. Cit., TEIXEIRA &
ANDRADA, op. Cit.
284
87
donos das propriedades fundiárias, as demandas do capitalismo, como nas ocasiões das
formações dos contratos, nos pagamentos em espécie pela locação, ou mesmo, vendas de
parte da produção.
Não é sabido se os indivíduos protagonistas deste estudo teriam sido libertos,
livres, escravos, com ou sem pequenas posses de terras. Uma vez que os documentos não
deixam pistas para desvendar as categorias de cor e condições sociais dos sujeitos. É
possível deduzir algumas informações, especialmente, pelos dados encontrados nos
registros eclesiásticos e de batismo, no censo de 1872, os quais destacam uma população
composta, especialmente, por pardos, dando, assim, os contornos mais acentuados da
sociedade. Já os registros civis de óbitos, de 1889, oferecem elementos a respeito da
profissão dos indivíduos, sendo, a maioria dos casos, lavradores. Significado que, como
advertiu Schwartz, os proprietários que arrendavam fazendas ou partes delas eram mais
pobres que os proprietários de fazenda e os lavradores de cana com posse de um terço da
metade do número de escravos285.
Esse contexto pode ser relacionado aos estudos de Poppino, nos quais afirmam
que o município de Feira de Santana possuía um considerável número “roceiros” que se
encarregavam de realizar a tarefa em suas propriedades ou em parcelas das fazendas
locais no sistema de meação, no qual concluem que parte deles se constituíam de exescravos286. Em São Gonçalo, outras pesquisas287 revelam que o cultivo do fumo estava
associado a atuação dos escravos como mão-de-obra e produtores efetivos, além da
participação de libertos e não-possuidores de possessões que aparecem como rendeiros.
285
Schwartz, op. Cit., p. 362.
POPPINO, Feira de Santana, p. 61.
287
TEIXEIRA & ANDRADA, op. cit.
286
88
CAPÍTULO III Trajetórias entrecruzadas: diferentes histórias
e famílias de cor.
Na tentativa de contextualizar a primeira década do século XX lanço mão da
História Oral, indagando os informantes sobre o que ouviram de seus pais e avós a
respeito das reminiscências da escravidão, suas experiências e trabalho na roça. Nos
depoimentos aventurei-me captar as práticas que lembravam os antepassados, os
significados de liberdade, as concepções de cidadania, às aspirações, a reelaboração do
vivido e os seus projetos de vida.
Assim, para captar alguns aspectos dos itinerários dos ex-escravos e de seus
descendentes recebo valiosas contribuições de antigos moradores das fazendas
fumageiras de São Gonçalo dos Campos. Os informantes como Djanira Pinheiro de
Queiroz nascida em 1912, na fazenda Dendê, filha de Teodora Francisca Gomes e João
Pinheiro de Queiroz. Dona Diva Ramos da Silva, nascida em 1923, neta de Tibúrcio
Barreiros, uns dos importantes fazendeiros de São Gonçalo dos Campos, e bisneta da
escrava Maximiliana. Esses depoimentos são fundamentais para o presente estudo não
só porque os informantes ouviram os pais contarem suas experiências, mas por suas
memórias estarem vinculadas às “vivências nas Fazendas”, ao “tempo dos avós ou pais”
e ao “tempo dos escravos”. Outros depoimentos serão apresentados ao longo deste
trabalho, os quais vão dando evidências as experiências de descendentes de escravos na
primeira década do século XX.
A partir dos fragmentos das memórias familiares e as pistas e indícios dispersos
em registros oficiais, escritos de memorialistas pude montar um quebra-cabeça referente
a construção, preservação e ampliação dos laços de solidariedade e redes familiares na
pós-abolição, percebendo que, como peças indissociáveis, o cotidiano da fazenda
escravocrata, em parte, conservar-se após o fim do cativeiro. As trajetórias percorridas
por ex-escravos e o diálogo com as memórias elaboradas por seus descendentes coloca
em evidências diversas questões prementes na vida dos libertos em 13 de maio de 1888.
A vida cotidiana
A partir do conjunto das rememorações e fragmentos, é possível perceber, grosso
modo, alguns aspectos materiais que caracterizam as fazendas fumageiras no início do
89
século XX. Por exemplo, as instalações, dependências que faziam delas um conjunto
complexo e autossuficiente, não distante do contexto relatado no primeiro capítulo a
respeito dos anos de 1850 a 1890. As construções imponentes, em referência a esse tempo,
as propriedades exibem a “casa grande”, residência da família possuidora, como bem
lembrou Djanira, um conjunto com a construção de adobe dobrado288, paredes largas,
telhado forrado com madeira de amargoso e cedro, portas e janelas grandes e largas e o
chão de tijolo, com enormes salas e muitos quartos. Os informantes recordam que a
construção da casa grande diferenciava das moradias dos rendeiros que era de pau-apique, pequenas, cobertas de telhas de chão sem tijolo, em geral, próximas as estradas e
cercadas por roçados e algumas árvores frutíferas289.
No interior da casa de morada, fazenda Dendê, possuía uma capela familiar, com
o oratório repleto de imagens de santos: Santo Antônio, Nossa Senhora da Conceição,
Nossa Senhora do Amparo, Senhor do Bonfim, Nossa Senhora das Candeias 290. Afirma
Boaventura que “mais rigor teria de haver para a Capela particular, para o oratório apto
para a missa, para os ofícios religiosos presididos pelo Padre. Para os casamentos da
família, para os batizados da casa 291”.
Dona Diva residente na fazenda Paixão revelou que os casamentos e batizados se
realizavam na propriedade fundiária. O padre era convidado para celebrar as cerimônias
naquele local292. Pela documentação eclesiástica, no período houve muitos casamentos e
batismos, contudo, os registros não fazem menção a cerimônias nas fazendas. Como
exemplo, o registro de batismo de Geraldo, branco, 2 meses, filho legítimo de Felipe
Machado e Cecília Marques Machado, padrinhos Antônio Borges Falcão e Maria Amélia
Magalhães Falcão, batizado pelo padre coadjunto Anacleto da Rosa Valle, na Matriz da
freguesia de São Gonçalo dos Campos, em 24 de janeiro de 1904293. Em outro registro,
de 15 de março de 1903, também, o padre coadjunto Anacleto da Rosa Valle, batiza na
capela de Mercês, Ricardo, pardo, com 1 mês de nascimento, filho legítimo de Antônio
Borges Falcão e Antônia Maria de Jesus, sendo padrinhos Horácio Marques de Cerqueira
288
A parede de adobe dobrado era construção com dois adobes na parede. De acordo aos informantes eram
duas paredes em uma.
289
Entrevistas com: Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011. Expedito Pinheiro de
Carvalho, concedida em 25 de março de 2011. Teófilo Cazumbá, concedida em 23 de março de 2011.
290
Entrevista com Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011.
291
BOAVENTURA, Eurico Alves. Fidalgos e vaqueiros. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA,
1989. p. 270.
292
Entrevista com Diva Ramos da Silva, concedida em 7 de outubro de 2012.
293
Arquivo da Arquidiocese de Feira de Santana, BAHIA. Livro de Batismo n. 21 – 1903/1904.
90
e Nossa Senhora das Mercês294. Embora não localizasse informações nos registros
eclesiásticos que revelem a realização dessas cerimônias nas fazendas, as memórias
acerca da capela e das consagrações religiosas feitas naqueles locais elucidam a vasta
organização da vida social, abrangendo trabalho, residência, trocas materiais, práticas
religiosas, festas, que se desenvolve dentro de seus limites.
Vistas em conjunto, na propriedade encontrava-se, junto a casa grande, as
instalações do fabrico de farinha e um galpão onde se armazenava o fumo, bem como,
nas imediações os campos cultivados de fumo, mandioca, além dos pastos para a criação
de gado vacum295. Por sua vez, a posição central e o aspecto da casa da família do
proprietário, em contraste com as casas dos rendeiros, e a extensão das plantações
agrícolas confrontada aos roçados diminutos estabeleciam como estava distribuído o
poder social no início do século XX.
Contou Djanira que nas fazendas da região: Paixão, Pedrinhas, Moreira, Dendê,
existiam muitas famílias de cor que residiam naquelas terras vivendo da renda e do
trabalho de aluguel. Como já foi abordado anteriormente, era costume em São Gonçalo
encontrar nas fazendas fumageiras rendeiros dedicados ao trabalho na roça. Os
documentos cartoriais, lavrados em 1881 não destaca o tempo de permanência dos
rendeiros na propriedade. De acordo com a tradição oral, os ascendentes de muitos
rendeiros foram escravos do serviço da lavoura, e depois da abolição continuaram
desempenhando o trabalho da roça.
Sobre este aspecto, as memórias de Djanira, pertencente à segunda geração dos
proprietários de fazendas, e ao mesmo tempo dos rendeiros cuja infância se passou na
fazenda Dendê, testemunhando as experiências de sua mãe como rendeira e escutando
atentamente as narrativas sobre o tempo da escravidão e sua história como filha de exescrava contou que,
mamãe morava em Bonfim de Feira, era filha de escrava, ela contava que fugiu
de Bonfim de Feira, ainda novinha, chegou aqui novinha, sozinha, não tinha
parente nenhum aqui na fazenda de meu pai, ela veio sozinha, novinha tinha os
12 a 15 anos nessa faixa ai. (...) ai essa foi Teodora era preta, pretona, (...) ela
falava ai que a mãe dela foi pega de dente de cachorro296.
A história lembrada por D. Djanira é elucidativa do cotidiano de trabalho
vivenciado por sua mãe Teodora. Teria, esta, nascido em Senhor do Bonfim, comarca de
Arquivo da Arquidiocese de Feira de Santana, BAHIA. Livro de Batismo n. 21 – 1903/1904.
Entrevistas com: Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011. Expedito Pinheiro
de Carvalho, concedida em 25 de março de 2011. Teófilo Cazumbá, concedida em 23 de março de 2011.
296
Entrevista com Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011.
294
295
91
Feira de Sant’ Anna, lá teria vivenciado a experiência na lavoura como filha de escrava,
de onde teria fugido, várias vezes, sendo pega a “dente de cachorro”, mas que conseguiu
fugir depois de muitas tentativas. Chegando, já no início do século XX, na fazenda
fumageira pertencente a João Pinheiro, de quem se tornaria rendeira e, depois, no período
de sua viuvez, amásia.
No tocante a Teodora, pode ser que tenha nascido no período da Lei Ventre Livre
e que depois do 13 de maio continuou sendo tratada como escrava. Neste sentido sua fuga
depois da abolição, como bem advertiu Fraga referente as migrações dos ex-escravos no
Recôncavo açucareiro 297, vislumbrava a liberdade. Expedito terceira geração, também
guarda a memória de genealogia escrava. Lembrou das histórias contadas por sua mãe
que dizia ser neta de escrava298.
As memórias que se reportam ao “tempo dos avós ou pais” se prendem aos
questionamentos de interesse desse capítulo. Todavia, entendo que a memória é fluída,
sendo as temporalidades das lembranças dos assuntos que lhes contaram os pais e avós
ligadas aos tempos vividos pelos informantes299. Assim, para além de compreender a
incidência de arrendamentos de terra em São Gonçalo dos Campos, é preciso pensar como
se desenvolveu este processo e a relação cotidiana desses sujeitos.
Até 1888, as fazendas possuíam escravos, entretanto, como já foi dito no primeiro
capítulo, aproximadamente 50% da força de trabalho constituída trabalhadores livres 300,
no caso rendeiros. Os estudos sobre a economia fumageira para a primeira metade século
XX, bem como aconteceu no século XIX, demonstram a predominância de rendeiros nas
fazendas da cidade301. Também os dados lançados pelo Ministério da Agricultura,
Indústria e Comércio, na década de 1920, divulgaram que a maior parte dos plantadores
297
FRAGA, Op. Cit.
Entrevistas com Expedito Pinheiro de Carvalho, concedida em 25 de março de 2011. Cleusa Machado
de Carvalho, concedida 25 de março de 2011.
299
THOMPSON, Paul. A voz do passado. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1992. RICOEUR, Paul. Tempo e
Narrativa. Campinas/SP: Martins Fontes, 2010. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In:
Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro: CPDOC/ Fundação Getúlio Vargas, v. 2 n 3, 1989. POLLAK,
Michael. Memória e identidade Social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n.10, 1992, p.
200-212. BOBBIO, Norberto. O tempo da memória: De senectute e outros escritos autobiográficos. Rio
de Janeiro: Campus, 1997. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade, lembranças de velhos. São Paulo: T. A.
Queiroz, 1987.
300
ARCHETTI, Eduardo P. Presentación. In: CHAYANOV, Alexander V. La organización de launidad
económica campesina. (Trad.). Buenos Aires: Nueva Visión, 1985, p. 11. In: LOPES, Gustavo Acioli.
“Caminhos e descaminhos do tabaco na economia colonial”, Dossiê Cultura e Sociedade na América
Portuguesa Colonial, Revista MNEME v.5, n. 12, out./nov.2004. Disponível em http://www.seol.com.
br/mneme.
301
SILVA, op. Cit.
298
92
de fumo era composta de lavradores sem recursos302. Até mesmo, os jornais que
circularam em São Gonçalo dos Campos, 1930, atentam para esse dado. No jornal A
Verdade, publicou uma advertência direcionadas aos produtores pelo Instituto Baiano do
Fumo,
...lavradores de fumo, em geral e em particular, aos pequenos proprietários,
meeiros e rendeiro, que, a partir de Outubro corrente serão atendidos todos que
inscreverem até essa data no registro do Instituto, e que desejarem serviços de
análises de suas terras, aração mecânica, fornecimento de adubos e preços
módicos e pequenos empréstimos, para aplicação direta na lavoura fumageira.
(...).303
A advertência do Instituto Baiano do Fumo exprime traços relevantes. Primeiro
destaca a presença de meeiros e rendeiros como produtores, ao mesmo tempo que eles
tinham autonomia no cultivo do fumo, não dependendo dos proprietários das terras para
a aquisição dos produtos serviços e produtos, empréstimos, comercialização seus
produtos.
Os rendeiros habitavam em casas simples, plantando nos fundos das casas e
trabalhando nas lavouras dos proprietários das terras em que habitavam e tinham suas
roças. Na fazenda Magalhães, igualmente, os indivíduos egressos da escravidão
amalgamaram-se ao sistema, transformando em trabalhadores rendeiros depois da
abolição. Dona Lina, 90 anos, lavradora, lembrou que trabalhando como rendeiros
produziam 50 a 100 arrobas de fumo, além de plantar mandioca, feijão, fumo, batata,
milho que servia para a subsistência da família. Ressalta que o trabalho era árduo
comparado aos escravos304.
Dona Lina anuncia várias gerações de sua família trabalhando naquele domínio.
Assim, homens e mulheres, rememoram a partir de vestígios 305 da memória sobre os fatos
que os mais velhos contavam, sobre o “tempo dos avós e dos pais”. Por conseguinte, as
lembranças desses descendentes sinalizam a existência de laços criados ou estabelecidos
pelas gerações anteriores que viveram na fazenda.
302
Ver Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, Aspectos da economia rural Brasileira. Rio de
Janeiro, 1922, p. 430-31.
303
Jornal A VERDADE, ano 11, nº 53 – cidade de São Gonçalo dos Campos, (Bahia) 15 de novembro de
1937. p. 3.
304
Depoimento de LINA, concedida em 2008.
305
LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as
ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. GINZBURG,
Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfo1ogia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. LIMA,
Henrique Espada. A Micro História Italiana: escalas, indícios e singularidades. São Paulo: Record,
2006.
93
Para manter a exploração dos libertos e rendeiros os fazendeiros fizeram acordos,
tornando aqueles trabalhadores mão-de-obra disponível ao cultivo de fumo e mandioca.
Assim, os ex-escravos prestavam serviços nas terras de seus antigos senhores, em troca
receberiam concessões e favores, como por exemplo, utilizar pequenos lotes de terras
para fazerem seus roçados. Teófilo Cazumbá ressalta que seu sogro Felix Ferreira era
rendeiro da fazenda Moreira, tendo em troca, seis tarefas de terras para produzir suas
roças de fumo, mandioca, batata, amendoim, feijão e milho 306. Diva lembrou que nas
fazendas de seu avô Tibúrcio Alves Barreiros, os rendeiros podiam cultivar suas roças e
criarem seus animais em 8 tarefas de terras307.
Em outras regiões do Recôncavo, conforme as circunstâncias nas quais os exsenhores depararam-se, a solução encontrada para suprir a falta de mão-de-obra depois
da abolição foi negociar condições para que os antigos escravos permanecessem nos
engenhos. Afirmou Fraga que na ocasião “a mobilização dos trabalhadores para o trabalho no
eito exigia negociação permanente para conciliar as necessidades dos engenhos com as atividades
alternativas dos ex-escravos e seus descendentes”308.
Outros informantes afirmaram que mesmo dispondo de grandes quantidades de
terras desprovidas de produção agrícola, os proprietários só disponibilizavam pequenas
extensões de terras para que os rendeiros produzissem suas roças de fumo, mandioca,
feijão e milho, informou seu Justiniano. Djanira corroborou, contando que sua mãe
Teodora, possuía uma pequena roça de mandioca e fumo na Fazenda Dendê. Maria José
Ferreira Cazumbá recordou as histórias de sua mãe sobre as experiências de seus avôs,
rendeiros da fazenda Moreira, tinham diminutas rocinhas de mandioca, fumo, entre outros
gêneros agrícolas. Também limpavam os campos, cuidavam dos animais, acrescentando
ainda, o trabalho nas roças do proprietário309. Destaca Silva Lara que para muitos exescravos, a liberdade significou manter condições de acesso à terra conquistada durante
o cativeiro310. Carolyn Fick, a respeito ao sul da província de Saint Domingue, sugere que
possuir terras era o mesmo que efetivar a liberdade, isto porque, sem terra era impraticável
306
Entrevista com Teófilo Cazumbá, concedida em 23 de março de 2011.
Entrevista com Diva Ramos da Silva, concedida em 7 de outubro de 2012.
308
FRAGA, p. 236.
309
Entrevista com Maria José Ferreira Cazumbá, concedida em 27 de março de 2011. Pertence a 4 geração
da família Cazumbá.
310
LARA, Silva H., Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil. Projeto História, 16, São Paulo,
s. Ed., 1998, p. 28.
307
94
sustentar à família311. Nota-se, portanto, que na sociedade sangonçalense como em todos
locais que incidiu o sistema escravista, os ex-escravos usavam a terra vislumbrando a
nova condição de livre.
Os afazeres da roça exigiam longas horas de serviço e uma boa quantidade de
pessoas. Tarefa, geralmente, assumida pelo lavrador, sua esposa e seus filhos. De maneira
geral, o trabalho começava com a organização da terra para o cultivo, o que correspondia
à capina, ao preparo das covas, à adubação, o cuidado e a colheita. Parte do que era
produzindo podia ser vendida, outra parte colocava para secar para dá aos porcos e as
galinhas. “Feijão aquela saca de feijão que botava para comer em casa, feijão aquela saca grande
de esteira, larga, que fazia pra caber o feijão tudo era saco pequeno” 312.
Ressalte-se, a partir dos informantes, que não havia divisão de tarefas entre
homens e mulheres na roça. No caso de Teodora, amásia de João Pinheiro, ela e os e os
filhos “bastados” que laboravam para pai, amante e possuidor os instrumentos de
trabalho. Nas experiências de Dona Antonieta as mulheres produziam suas pequenas
roças de fumo, vendiam ao marido, ao pai, ou outro parente, com um valor abaixo do
mercado313.
A partir do conjunto de entrevistados, foi possível perceber, grosso modo, alguns
rendeiros viviam em meio às ameaças de expulsão caso não cumprissem os acordos feitos
ao proprietário. Djanira advertiu que sua mãe contava que houve situações em que os
fazendeiros colocavam os rendeiros no tronco como se fossem escravos314. Teófilo disse
que não ouvia seus sogros relatarem que existiam conflitos entre os rendeiros e o
proprietário da fazenda Moreira, todavia, eram comuns aqueles rendeiros serem
ameaçados de expulsão caso não cumprissem o dia estipulado para a renda, ainda deviam
trabalhar na fazenda nas diversas atividades agrícolas e no cuidado com os animais,
ganhando o dia315.
Outro ponto que merece destaque é o chamado “dia de renda”. Expedito lembrou
que em seu tempo de criança ouvia velhos rendeiros dizer que eram forçados a cumprir o
311
FICK, Carolyn. Camponeses e soldados negros na revolução de Saint Domingue: reações iniciais à
liberdade na Província do Sul (1793-1794), In KRANTZ, A outra História: ideologia e protesto popular
nos séculos XVII à XIX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 225.
312
Entrevista com Hortência, concedida em 2008.
313
Entrevista com Antonieta, concedida em 2008.
314
Entrevista com Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011.
315
A expressão ganhar o dia foi lembrado pelos entrevistados. Ela significa que os trabalhadores rendeiros
trabalhavam durante alguns dias na semana para receber uma quantia em dinheiro e assim conseguir o
sustento da família. Entrevista de Teófilo Cazumbá.
95
dia de renda que, geralmente, ocorria na terça feira, e os outros dias eles trabalhavam
remunerado na própria fazenda 316.
Segundo dona Diva, o dia de renda variava de acordo com os proprietários.
Existiam aqueles que apenas requeriam um dia semanal, outros requeriam dois ou três.
Lembrou que,
Naquele tempo, minha filha, era dividido, tinha uns que cuidava dos animais. Os
rendeiros já trabalhavam pra si. Porque eu nasci em 23. Quando eu nasci eu
encontrei os rendeiros pagando o dia de renda e trabalhando pra si. Os rendeiros
pagavam o dia de renda na fazenda e o resto da semana ia trabalhar pra si. Os
rendeiros tinham direito a 8 tarefas. Eles dominavam dentro daquela fazenda 8
tarefas. Ali era para eles criarem os filhos, e viver daquilo. O dia de renda
dependia do proprietário. Era um acerto, dependia. Um dia, dois, três. (...) um
acordo que fazia com o proprietário, cumprindo com seu dever e trabalhando pra
si. Eu alcancei assim, eu nasci, ainda alcancei a escravidão. Eles dizem que ainda
hoje tem escravo. Eu alcancei a escravidão. (...) Porque era muito paupérrimo.
O povo não vestia, não calçava. O que fazia era a conta de comer 317.
Estes relatos, sobrevive à memória pessoal, expressam suas narrativas sobre “os
acontecimentos vividos pessoalmente”, somados àqueles “vividos por tabela”, como
refere Pollak318, que envolveram antepassados no cativeiro e a permanência das famílias
naquelas terras. É esta “memória subterrânea” 319 que mantém, silenciosa, porém,
continuamente, os laços de identidade do grupo frente às profundas transformações
advindas com o desenvolvimento sociodemográfico da região.
Explicou, Diva, que na fazenda do avô dela, Tibúrcio Alves Barreiros, os
rendeiros davam mais de um dia de renda. Compreende-se, então, que as práticas do
arrendamento variavam, contudo, o rendeiro sempre se relacionava com o proprietário
das terras em uma atitude de dependência, devendo trabalhar em seus campos sob as suas
ordens diretas. Eul-Soo Pang, discorrendo sobre as relações de trabalho do liberto, no
período entre 1875 a 1891, adverte que a maioria dos libertos trabalhava quarto dias para
os antigos donos e três dias para eles próprios 320.
Ainda, em sua narrativa, Diva, rememorou as difíceis condições de sobrevivências
em que os rendeiros permaneciam submetidos e o uso da terra para o plantio de gêneros
agrícola designados ao mantimento da família. Expedito lembrou também que,
316
Entrevista Expedito Pinheiro de Carvalho, concedida em 25 de março de 2011.
Entrevista com Diva Ramos da Silva, concedida em 7 de outubro de 2012.
318
POLLAK, 1992, p. 201.
319
POLLACK, 1989, p.3
320
PANG, Eul-soo, O Engenho Central do Bom Jardim na economia baiana: alguns aspectos de sua
história, 1875-1891. Rio de Janeiro; NA, IHGB, 1979, p. 55-56.
317
96
Papai também contava que quando ele era criança seus pais diziam que os
rendeiros moravam em casas de taipas. Eu também alcancei as casas de taipas
dos rendeiros. Eles plantavam feijão amendoim, mandioca, e o fumo. O feijão
amendoim, mandioca, servia para alimentar a família, quando a safra era grande
eles vendiam na feira. O fumo era vendido nos armazéns em São Gonçalo, ao
Suerdick. Também vendia nas vendas, os pacotes de 1, 2, 3, 4 ou 5 kilos, porque
não tinha dinheiro para beber cachaça ou comprar um kilo de carne ou peixe
vendia os pacotes de fumo nas vendas.321
Constata, então, que não somente a "terra" era concedida aos rendeiros, mas a
autorização para a moradia e a produção de gêneros agrícolas. Não difere do que consta
nas escrituras de arrendamento feitas no século XIX, logo após a Lei do Ventre Livre, em
1881.
Os proprietários utilizavam seus bens fundiários para estabelecerem sob seus
domínios uma clientela de indivíduos submetidos a laços de dependência. Em outros
termos, procuravam reunir, graças ao patrimônio fundiário, uma força social pelo número
de "braços" à disposição. Ser rendeiro pressupunha está ligado ao proprietário fundiário
numa relação sinônimo de residência e trabalho simultaneamente. Muitas vezes esta
ligação alcançava laços familiares. Expedito ao relatar sobre o que seus pais lhe diziam
a respeito da relação entre os rendeiros que residiam nas propriedades de João Pinheiro,
lembra:
Tinha muitos rendeiros e a fazenda era grande tinha 300 tarefas de terra. Tinha
filhos e empregados, ele ficou viúvo e teve 3 rendeiras que morava, assim mamãe
contava que dizia minha avó, que morava na fazenda e trabalhava na casa, prá
ele, aí era a mãe de mamãe, mesmo veio de Bonfim de Feira, ai foi morar com
ele sendo rendeira dele322.
Neste depoimento nota-se que a proximidade com a fazenda fez com que as três
rendeiras de João Pinheiro se tornassem amásias do proprietário depois que este ficou
viúvo. Distinta da descrição que fez o memorialista Gastão Sampaio a respeito do grupo
de rendeiros que habitavam na comunidade Negros de São Joaquim, na Fazenda Paus
Altos, distrito de Umburanas, em 1920. Descreve como um grupo de parentes negros,
calados, de estruturas baixas e fortes, morava em casebres distantes das fazendas e só
apareciam na fazenda nos dias determinados de renda, e mais um ou dois em cumprimento
as diárias que lhes eram exigidos323.
321
Entrevista de Expedito Pinheiro de Carvalho, concedida em 25 de março de 2011.
Entrevista com Expedito Pinheiro de Carvalho, concedida em 25 de março de 2011.
323
SAMPAIO, Gastão. Feira de Santana e o Vale do Jacuípe. Salvador: Bureau Gráfica e Editora, 1982.
p. 225.
322
97
Teófilo recordou sobre as histórias contadas por seu sogro que além da produção
para o sustento da família, o acréscimo no cultivo era destino aos mercados locais. Notase que era comum entre os trabalhadores o cultivo de suas roças que garantisse a
subsistência da família e o excedente da produção era vendido nas feiras. Como bem
sugeriu Fraga os libertos cultivavam suas roças, sendo que tal experiência viabilizava a
construção de ambiente de autonomia, como as comercializações dos gêneros nas feiras
livres legitimavam o arranjo conquistado com a abolição 324. Assim, resultantes de
heranças, os sujeitos estabeleceram um ambiente de tradição.
As referências às vendas aparecem nas falas de informantes como momento
básico na trajetória de seus ascendentes. Ir à venda era vislumbrar um novo espaço de
relações sociais a partir da experiência da liberdade. Revelava, ainda, condições de
sobrevivência que não precisavam de novas sujeições. Djanira explicou que na região
existiam muitas vendas, sendo parte delas de pequenos proprietários rurais e outras eram
dos fazendeiros que utilizava para vender mantimentos aos empregados e rendeiros 325,
manter uma clientela de dependentes.
Isto permite dizer que os encontros dos homens para beber cachaça no findar da
jornada de trabalho aludem à posição de cidadão livres. Chalhoub, no seu estudo sobre o
cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro, no início do século XX, salientou que era
comum, naquele contexto, depois do dia da jornada de trabalho ir ao botequim para tomar
café e conversar 326. Essa também era a experiência de lavradores pobres em São Gonçalo
dos Campos no mesmo período.
Para os ex-cativos a liberdade esteve dotada de muitos significados, diversas
formas e sentidos socioculturais. Como se movimentar sem autorização dos ex-senhores;
o fim dos castigos corporais, a escolha como e o tempo que deveria trabalhar 327. Ser livre,
para alguns libertos, como afirma Silvia Lara, parecia estar longe de significar o ideal de
“vender a força de trabalho em troca de um salário"328.
Em relação à criação de animais podem-se observar práticas análogas ao cultivo
de gêneros agrícolas. Como também, a possibilidade de se abastecer com água e lenha,
324
FRAGA, Encruzilhadas da liberdade, p. 173.
Entrevista com Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011.
326
CHALHOUB, p. 24.
327
FRAGA, Encruzilhadas da liberdade,
328
LARA, Silvia Hunold. Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil, Projeto História, nº16
(1998), pp. 25-38. São estudos sobre os significados da liberdade após a abolição: CASTRO, Das cores do
silêncio; GRADEN, From Slavery to Freedom; FONER, O significado da liberdade; SCOTT,
Emancipação escrava em Cuba; FRAGA, Encruzilhadas da liberdade.
325
98
necessárias ao cozimento dos alimentos, e de utilizar a casa de farinha da propriedade,
contra o pagamento de 20% do produto, completava o conjunto de meios de que cada
grupo dispunha para assegurar sua subsistência.
Ao ser lançado na relação de trabalho livre as opções de um ex-escravo, homem
ou mulher, eram restritos a economia agrícola. Portanto, o que as memórias revelam sobre
a população de ex-escravos e seus descendentes – parece ser um indicativo importante
para compreensão das relações naquela cidade de economia fumageira. Transformar a
abolição em uma relação de trabalho rendeiro também significava a tentativa que
garantisse a subsistência e uma menor incerteza frente ao futuro.
Além dos trabalhos de renda e ganho, era costume329 os rendeiros servirem em
adjutórios em períodos das plantações, fazendo as covas onde seriam plantados o fumo e
as mandiocas. Teófilo lembrou que o trabalho no eito era efetuado pelos rendeiros da
fazenda que organizava, por pequenos proprietários vizinhos e, ainda, rendeiros das
fazendas da circunvizinhança. Entretanto essas ofertas de mão-de-obra de homens e
mulheres eram incertas e inconstantes, pois, a maior quantidade de trabalhadores no
adjutório só era obtida quando os fazendeiros ofertavam além da aguardente, a
alimentação após o dia de trabalho.
Em suas memórias surgem às lembranças de homens e mulheres que se dedicavam
a cavar e semear. Em dias de adjutórios formava um grande grupo de pretos que faziam
as covas onde seriam plantadas as sementes. Os trabalhadores cantavam a chamada
“cantiga de boiada” denominada Boi Roubado ou Corte:
Acorda meu vaqueiro acorda
Quando o galo canta
A galinha rompendo a aurora
Quando os pássaro se alevanta
Meu vaqueiro é quatro hora
Oiê é quatro hora...
Direrê ...rerê ...diô
Fala moleque baiano
Quando eu falo assim
Quitorno fala
As muié quase me mata
Direrê ...rerê ...diô330
329
Sobre o Costume ver E. P. THOMPSON, Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular
tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 16-17.
330
Adjutório, denominado: Boi Roubado ou Corte. In. SAMPAIO, Gastão. Feira de Santana e o Vale do
Jacuípe. Salvador: Bureau Gráfica e Editora, 1982. p. 225.
99
Vistas em conjunto, as práticas de adjutório ou de ajuda mútua na região
possibilitavam aos rendeiros o cumprimento das atividades na roça, além de constituíremse em um motivo a mais para a interação entre eles, reforçando os laços de compadrio, de
parentesco e de amizade.
Dessa forma, é possível afirmar que o espaço do trabalho na roça, bem como, na
venda frequentemente propiciava o estabelecimento de relações sociais diversas entre o
grupo analisado. Novamente, é necessário atentar para a função do costume dentro das
relações sociais estabelecidas entre os rendeiros331. As práticas de adjutório e os encontros
nas vendas não eram apenas o espaço onde se praticava o trabalho na roça, nem onde os
homens iam para beber cachaça, comprar ou vender era um espaço de lazer de
confraternização, símbolo de liberdade mesmo que em meio às dificuldades enfrentadas
no trabalho duro da roça. O clima de descontração, na associação entre trabalho e nas
formas de ajuda mútua vigentes na região, realizava-se em combinação com a bebida, a
música, e a comida332.
Assim, “ao afirmarem sua nova condição, os libertos defrontavam-se com os limites
materiais e simbólicos oriundos da velha ordem escravista 333”. Mesmo sem transformar a
ordem estabelecida à abolição abalou as bases das relações cotidianas até mesmos nas
relações familiares e em alguns conflitos em que tais indivíduos estavam envolvidos.
Alguns conflitos na região
É necessário, ainda, dizer que as experiências de luta dos ex-escravos e dos
descendentes que permaneceram nas atividades agrícolas apresentam momentos de
tensões. Infelizmente não encontrei processo crime no início do século XX em São
Gonçalo dos Campos com pistas analisar os conflitos do cotidiano naquele município. No
entanto, através de processo encontrado no CEDOC em Feira de Santana de capelas e
distritos que, por vezes, pertenciam a São Gonçalo dos Campos e Feira de Santana,
entremostra-se para tal cotidiano.
Assim, a experiência de Maria Bernardina Francisca, de mais ou menos 48 anos,
de cor preta, solteira, lavradora, analfabeta, natural e residente em Terra Dura334, em 12
331
THOMPSON, Costumes em comum, p. 14 e 15
THOMPSON, Op. Cit., p. 271.
333
FRAGA, p. 128.
334
Esta região também pode estar relacionada a São Gonçalo dos Campos.
332
100
de março de 1909, prestou uma queixa contra Cirilo Teixeira de Carvalho, de 60 anos,
solteiro, lavrador, natural e residente no Distrito de Humildes335, ao Subdelegado de
Polícia em exercício, em Feira de Santana, Virgílio Ferreira de Caldas elucida a história
de distintos sujeitos nesta conjuntura social. Em sua queixa observa-se aspectos da vida
de mulheres pobres, especialmente entre pequenos proprietários e trabalhadores rurais.
No depoimento diz:
“[...] segunda-feira ao oito do corrente mês indo pisar umas manivas [mandiocas]
e não podendo continuar por acha-se doente deixou de pisar, chegando nesta
ocasião o dono de casa Cirillo Teixeira de Carvalho, mandando ela respondente
continuar pisar as manivas, dizendo ela respondente que não podia continuar a
pisar por achar-se doente, este dizendo que ela tinha manhas apoderou-se de uma
vara indo contra ela respondente lhe fazendo os ferimentos constantes do corpo
de delito, (...)”336.
De acordo com o depoimento é possível sugerir que um casal de amásios e tinha
uma filha, não se sabe a idade, mas foi que acudiu a Maria Bernardina Francisca. É
provável que fosse um casal de rendeiro, pois o documento não faz menção de que eles
possuíssem terras, mas que a renda e sustento da família eram obtidos através do trabalho
na roça, especificamente o cultivo de mandioca. Portanto, mulher e marido faziam
atividade na roça, sendo o pisar manivas umas das tarefas realizadas por Maria
Bernardina.
Outros aspectos da vida em família podem ser vistos no processo de Maria do
Espírito Santo, de aproximadamente 30 anos, casada e moradora em Terra Dura. Neste
documento o escrivão situa a localidade como pertencente ao; Distrito de São José, de 12
de janeiro de 1904. Neste Maria do Espírito Santo prestou queixa contra seu vizinho,
Mauricio Martins da Silva, por este ter partido o braço direito da mesma quando esta saiu
em socorro de seu filho de seis anos de idade, por ter este ido tanger os porcos do dito, os
quais haviam entrado na roça de Maria do Espírito Santo 337.
De acordo com a testemunha Antônio Florêncio Morais, Maria “deu-se esse facto,
achando-se ausente seu marido pelo que andava em procura de meios para a subsistência e
335
Região pertencente a São Gonçalo dos Campos até 1858 quando a capela de Humildes foi desmembrada,
passando para Feira de Santana, contudo até os dias atuais, existe conflitos a respeito da localização do
distrito e existe permanente contrato entre as localidades.
336
Sumário Crime. A Justiça Pública por seu Promotor (Autor), Cyrillo Teixeira Carvalho (Réu). Feira de
Santana – CEDOC/UEFS. Sessão Judiciária, Processos-crimes, 1909. E. 02, Cx. 51, Doc. 854. fls. 7-8.
337
Denúncia. A Justiça pública por seu Promotor (Autor), Mauricio Martins da Silva (Réu). Feira de
Santana – CEDOC/UEFS. Sessão Judiciária, Processos-crimes, 1904. E. 01, Cx. 26, Doc. 478. fls. 21-v.22.
101
de sua família”338. Neste depoimento nota-se que o cotidiano de Maria, do marido, como
de outros sujeitos na primeira década do século XX era preenchido pelo trabalho roça da
família, bem como, havia a tentava de complementar a sobrevivência familiar realizando
trabalhos em outras condições.
As duas situações, acesso à roça de subsistência, a posição de pequenos lavradores
certamente marcava as diferenciações entre os indivíduos na primeira metade do século
XX. Em São Gonçalo dos Campos, uma ação foi perpetrada por Rita Gonçalves
Cazumbá, Joana Cardoso Cazumbá e Gonçalo Cardoso Cazumbá contra vendo Francisco
Lourenço de Almeida e sua mulher D. Angélica de Almeida, em 2 de fevereiro de 1895.
Na ocasião alegraram que os enunciados invadiram suas terras e derrubaram suas matas.
Solicitavam o embargo das obras e indenização pelos danos provocados339. O documento
possui 62 páginas e será analisado no próximo capitulo, contudo, observa-se que os
conflitos na região se fez presente entre os diversos sujeitos, no caso, entre uma exescrava e seus filhos e um proprietário de fazenda.
Outras situações em diversas regiões do Recôncavo demonstram que os exescravos e seus descendentes lutaram contras às tentativas dos ex-senhores em forçá-los
a reviver condições de vida e trabalho do cativeiro; eles solicitaram, em seu favor, à
justiça, contaram com aliados, fizeram as notícias de violências ecoassem nos jornais; o
auxílio da força policial; recusaram-se terminantemente a trabalhar sem remuneração 340.
Vários comportamentos e ações de libertos eram marcados pelo desafio à
autoridade ex-senhorial; suas atitudes muitas vezes caminharam no sentido de destruir
qualquer autoridade real ou simbólica de que o ex-senhor tentasse ainda dispor341. Em
São Gonçalo dos Campos o significado da liberdade referia-se necessariamente adquirir
posses de terras. Os ex-cativos lutaram para adquirir suas terras, até mesmo, submetendose ao trabalho rendeiro.
338
Denúncia. A Justiça pública por seu Promotor (Autor), Mauricio Martins da Silva (Réu). Feira de
Santana – CEDOC/UEFS. Sessão Judiciária, Processos-crimes, 1904. E. 01, Cx. 26, Doc. 478. fls. 22.v 24.
339
Pedido de Embargo, 2 de fevereiro de 1895, Arquivo Cível e Crime do Fórum João Mendes, São Gonçalo
dos Campos.
340
BACELAR, Jeferson. “O negro em Salvador: os atalhos raciais", Revista de História, nº 129,1993. p.
53-65; MACHADO, Maria Helena. “Vivendo na mais perfeita desordem: os libertos e o modo de vida
camponês na província de São Paulo do século XIX", Estudos Afro-Asiáticos, nº 25, 1993. p. 43-72.
FRAGA, Encruzilhadas da Liberdade,
341
FONER, “O significado da liberdade", p. 19.
102
De acordo com Reis342 alguns libertos de 13 de maio optaram por abandonar as
fazendas do interior e seguir para a cidade de Salvador. Muitos decidiram desfrutar a
liberdade longe do ambiente em que viveram sob o domínio do senhor. Fraga, também
aponta para o intenso movimento de libertos em busca de novas possibilidades de
subsistência. Como ocorreu em diversas regiões das Américas, no pós-abolição, com as
disputas em torno do acesso à terra. Para alguns libertos o trabalho gratuito durante o
período da escravidão lhes dava direito, ao menos, a uma parte das propriedades dos exsenhores343.
Fraga postula que logo após a abolição da escravidão ex-escravos que habitavam
nas fazendas do Recôncavo baiano seguiram para outros locais em busca de espaços que
apartassem laços de categoria escrava e permitissem evidenciar a condição de livre.
... emergiram da escravidão de variadas e criativas maneiras buscaram
modificar o rumo de suas vidas em meio à imprevisibilidade e aos limites
impostos por uma sociedade que continuou assentada sobre profundas
desigualdades sócio-raciais344.
Enquanto para os ex-senhores a extinção do cativeiro não deveria implicar em
mudança nas antigas hierarquias sociais, para os ex-escravos as escolhas e opções
adotadas eram exercidas buscando distanciar as experiências do cativeiro. Assumindo
comportamentos vistos como de desafio, “desobediência", alguns ex-escravos
demonstraram que a liberdade deveria vir acompanhada do fim das hierarquias
vivenciadas na escravidão 345. Para outros as experiências envolvendo trabalho, festa,
terra, gênero e animais, no período imediatamente posterior à abolição, são apenas
pequenos indícios da busca dos libertos pela liberdade que o 13 de maio engendrou.
É compreensivo, nestas situações, que se desenvolveram formas próprias de
organização social, produtiva, religiosa e outras formas de manifestações culturais que
passaram a funcionar como símbolos característicos da etnicidade que comportam. O
trabalho e as diversas relações que mantinham com a sociedade envolvente são próprios
da situação enfrentada por estes indivíduos ao longo de sua história. Até mesmo nas
afinidades construídas pelos sujeitos entre a sociedade e seus parentes.
REIS, João José, “De olho no canto: trabalho de rua na Bahia na véspera da abolição", Afro-Ásia, nº
24, 2000, p. 199-242.
343
FONER, O significado da liberdade, p. 25.
344
FRAGA, Encruzilhadas da Liberdade, p. 26.
345
FRAGA, Encruzilhadas da Liberdade, p. 200.
342
103
Família: ex-escravos e descendentes
As narrativas dos descendentes de rendeiros e fazendeiros de São Gonçalo dos
Campos, computam as experiências pessoais de rendeiras, em laços afetivos com os
coronéis, então proprietários das terras em que habitavam. Por sua vez, “essas histórias
pessoais, além de relevantes em sua singularidade, servem para melhor perceber
experiências coletivas e iluminar contextos e processos históricos mais amplos e
complexos”346. Por outro lado, essas trajetórias de vida devem ser articuladas as relações
travadas no seio da sociedade pós abolição para que esta seja compreendida.
Assim a situação de amasiamento foi narrada pelos descendentes de rendeiros/as
ou escravos/as, como relatou Djanira a respeito da experiência de Teodora, solteira, com
vínculos que lembram o cativeiro, comprometeu-se ao proprietário da fazenda como
concubina depois que este ficou viúvo, transferida a experiências de outras rendeiras.
O próprio, João Pinheiro, teve outras amásias de cor, além de Teodora,
Teve filho com as três mulheres. Com Teodora teve, eu, Astera, Manoel,
Dionisia e Arnaldo (...) Com a outra que chamava Joana teve Nozinho, Teca,
Neca, não tô lembrado que foi o outro, acho que foram esses. E com a outra
chamada Candinha foi mãe de Vitalino, Pedro Gomes, Altino e Julinda. Vovó
teve 12 filhos bastardos e 1 do casal, Hermílio, foi o mais velho de todos e o
legítimo347.
As análises sobre essas trajetórias não devem ser simplistas. Supostamente as
relações afetivas entre os proprietários de fazenda e suas rendeiras asseguravam para elas
condições que permitiam a realização de redes de solidariedades através do parentesco
para orientar suas vidas, como ocorria com os escravos no século XIX348.
Essas trajetórias indicam a acumulação de uma série de práticas mantidas e
partilhadas no período da escravização e, que durante as décadas iniciais da construção
das novas relações sociais de liberdade ajudaram a criar um chão de experiências
econômicas, sociais, políticas e culturais de famílias descendentes de escravos.
346
REIS, João José. Domingos Sodré, p. 316.
Entrevista com Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011.
348
MATTOSO, Kátia Q. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988.
347
104
Figura 4: Djanira Pinheiro de Queiroz
Fonte: Arquivo pessoal. Fotografia de Djanira Pinheiro de Queiroz, nascida em 1912. Segunda geração de
descendente de escrava, e filha do fazendeiro João Pinheiro de Queiroz. Moradora da fazenda Dendê. Foto
tirada em 12 de maio de 2012, no aniversário do seu centenário.
A imagem de Djanira Pinheiro de Queiroz demonstra claramente seus traços
raciais. Nascida em 1912, a apenas 24 anos após a abolição, vivenciou nas relações de
seus ascendentes as reminiscências do período da escravidão, nas relações dos rendeiros,
no amasiamento de seus pais, nas experiências contadas pela mãe, nas lembranças do pai,
um coronel que carregava a tradição do século XIX e, por fim, no trato desigual entre os
filhos das amasias rendeiras e o filho da esposa.
As narrativas de Diva, igualmente, podem iluminar alguns aspectos importantes
sobre as experiências do trabalho e os laços sociais construídos no tempo posterior à
liberdade do cativeiro. Mulheres pobres, trabalhadoras e negras de São Gonçalo dos
Campos no final do século XIX e início do século XX, compartilhavam a experiência
comum de ocupar um lugar social subalterno. Estavam empenhadas nos trabalhos
agrícolas tais como os homens, entretanto, elas vivenciavam situações cotidianas
determinada pela relação de gênero e paternalista.
A visão de Dona Diva é bastante crítica sobre sua experiência das mulheres
rendeiras na a produção de fumo e nas outras atividades desenvolvidas na roça, além do
trabalho desempenhado como de costume, muitas tornavam-se amasias dos proprietários
das fazendas em que eram rendeiras. Expôs que Tibúrcio foi acometido por uma doença
sexual o médico orientou que este estivesse relação sexual como meninas negras virgens
para curar da enfermidade. Sendo assim, Tibúrcio passou a ter relações sexuais com as
filhas de ex-escravas de sua fazenda e das fazendas de seus parentes, circunstâncias
105
vivenciadas por sua avó, na idade muito jovem. Freyre, em Casa Grande & Senzala,
relata as negras virgens, com 12 a 13 anos de idade, eram contaminadas de sífilis pelos
senhores. A causa disso era a ideia de que o melhor depurativo para o sifilítico era
meninas negras virgens.
Porque por muito tempo dominou no Brasil a crença de que para o sifilítico não
há melhor depurativo que uma negrinha virgem. O Dr. João Álvares de Azevedo
Macedo Junior registrou, 1869, o estranho costume, vindo, ao que parece, áreas
pernambucana e fluminense dos velhos engenhos de açúcar. Segundo o Dr.
Macedo seriam os blenorrágicos que o “bárbaro prejuízo” considerava curados
se conseguissem intercurso com mulher púbere: “a inoculação deste vírus em
uma mulher púbere é o meio seguro de o extinguir em si.”349
As terríveis influências dos costumes vindo, especialmente do século XIX
continuavam se manifestando no cotidiano de mulheres jovens naquela cidade. Observei
ainda nos jornais que circulavam em São Gonçalo nos anos de 1920 anunciavam entre os
remédios para cura de moléstias que tinha origem a impureza do sangue o Elixir, entre
outros. Nota-se nessas ações uma contradição social, ao mesmo tempo, uma relação de
negociação entre proprietário e despossuídas, o que vai possibilitar vantagens para as duas
partes. Neste caso, para ele relações mais próximas é um fator basilar para a continuidade
e garantia de um contingente de pessoas sobre sua disposição e para elas acesso as terras
por tempo indeterminado.
Figura 5: Elixir de Nogueira
Fonte: Jornal O Campesino, ano 2, nº 66 – cidade de São Gonçalo dos Campos, (Bahia) 25 de março de
1921.
349
Freyre, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarca. 22 ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olypio editora, 1983, p. 317.
106
É no ambiente da fazenda que se encontra os homens brancos amasiando-se ou
apenas mantendo relações sexuais com muitas mulheres negras, com filhos considerados
ilegítimos. Assim, a informante traz lembranças a respeito das relações instituídas por seu
avô Tibúrcio Alves Barreiro 350, nascido em 14 de abril de 1855 351, negociante,
proprietário de grandes extensões latifundiárias em São Gonçalo dos Campos, no final do
século XIX e da primeira metade do século XX e conselheiro da Câmara na primeira
República, entre 1897 a 1930352.
Tibúrcio aparece em diferentes períodos da história. Nasceu em 1855, anos
posteriores ao tráfico transatlântico de escravo e a promulgação da Lei de Terras. Vê
sendo estabelecida a Lei do Ventre Livre, a Lei do Sexagenário e, por fim a abolição da
escravatura. Nos anos posteriores a Proclamação da República, Tibúrcio aparece como
conselheiro da Câmara e um grande proprietário de terras na cidade, com uns
consideráveis números de rendeiros em suas propriedades353.
Figura 6: Tibúrcio Alves Barreiros
Fonte: Arquivo pessoal da família. Fotografia de Tibúrcio Alves Barreiros. Negociante e proprietário de
grandes extensões latifundiárias em São Gonçalo dos Campos no final do século XIX e da primeira metade
do século XX. Foi conselheiro da Câmara na primeira República entre 1897 a 1930.
350
Entrevista com Diva Ramos da Silva, concedida em 7 de outubro de 2012.
Data encontrada na lápide no cemitério de São Gonçalo dos Campos.
352
TEIXEIRA & ANDRADA, op. Cit., p. 81.
353
Entrevista com Diva Ramos da Silva, concedida em 7 de outubro de 2012. TEIXEIRA & ANDRADA,
op. Cit., p. 81; Certidão de Terras de 1903, Arquivo do Fórum João Mendes; Lápide no cemitério de São
Gonçalo dos Campos.
351
107
Embora não conste nos documentos consultados a cor do fazendeiro Tibúrcio
Alves Barreiro, a partir da imagem acima nota-se que é um homem mestiço.
Provavelmente ascendeu socialmente, tornando-se um grande proprietário rural e um
representante político local. Importante lembrar que possuía grandes extensões de terras,
sendo que uma das suas fazendas, a Cruz, limitava-se com terras da família Cazumbá.
Diva relatou que Tibúrcio teve muitas amásias negras e sua avó Maria foi uma
delas,
Ai tinha minha avó que era sobrinha de Bibina. Filha da escrava deles. E ele
passou a criar casado com minha avó dentro de casa. Bem novinha, de tão
novinha que ela não gostava que eu chamasse de vó, me botou para chamar
madrinha, tinha desprezo que eu chamasse vovó. E era moderna, era jovem. Ai
quando a esposa dele viu minha avó tava de barriga. Era tão moderna, ela gostava
tanto da minha avó que ela não quis dar castigo chamou a empregada. Bota essa
negra no carro ai pra puxar. A mãe da minha avó foi quem recebeu o castigo. É
deu castigo a mãe, não deu castigo a minha avó. Ai ele arranjou outro e casou a
minha avó.354
A história que Diva descreveu sobre a trajetória de sua avó, Maria, ingênua, filha
da escrava do irmão de Tibúrcio, Maximiliana, ao mesmo tempo, revela que as mulheres
egressas da escravidão eram mais submissas do que os homens aos proprietários dos
domínios fundiários em que residiam e trabalhavam. Das experiências afetivas que
mantinham com os homens brancos geravam frutos que deixavam ainda mais presas
aqueles limites territoriais. Ou pode observar que tais mulheres poderiam se beneficiar,
usando esses amasiamentos para obter a posse de terras pelo quinhão que recebiam por
causa dos filhos ilegítimos que tinham com os proprietários.
Em se tratando de um contexto no qual o homem assumia o papel de provedor, e
que as mulheres saíam da casa paterna “para se casar” e para “seguir seus esposos”, o
coronel Tibúrcio Barreiros formava os casamentos entre as mulheres que tiveram relação
sexual com ele, com homem que, também, habitavam em suas terras como rendeiros 355.
A informante não disse se todas as mulheres tiveram filhos com Tibúrcio, porém lembrou
que seu avô teve muitos filhos naturais com mulheres negras.
Importante lembrar, que mesmo estando subordinadas aos proprietários de terras,
pais, maridos e irmãos mais velhos, essas mulheres exerciam papéis que, muitas vezes,
354
355
Entrevista com Diva Ramos da Silva, concedida em 7 de outubro de 2012.
Entrevista com Diva Ramos da Silva, concedida em 7 de outubro de 2012.
108
estavam longe do confinamento ao ambiente doméstico, caso relatados nas experiências
acima. Entretanto, suas vidas eram povoadas de incerteza e receio de que passo dar e em
que direção, assim, o fato de terem tecido relações próximas aos proprietários pode
simbolizar estratégicas que deixaram marcas sociais, suficientes para enfraquecer ou
modificar as relações de dominação que sua família estava submetida. Como lembra
Giovanni Levi,
[...] a participação de cada um na história social não pode ser avaliada somente
com base em resultados perceptíveis: durante a vida de cada um aparecem,
ciclicamente, problemas, incertezas, escolhas, enfim, uma política da vida
cotidiana cujo centro é a utilização estratégica das normas sociais [...] grupos
e pessoas atuam com uma própria estratégia significativa capaz de deixar
marcas duradouras na realidade política que, embora não sejam suficientes
para impedir as formas de dominação, consegue condicioná-las e modificálas356.
Finalmente, esse contexto expressava como os jogos simbólicos e materiais eram
manipulados pelos indivíduos numa sociedade que os distribuía de modo desigual.
Imagem 7: Parentes de Tibúrcio Alves Barreiros
Fonte: Arquivo pessoal da família. Fotografia de D. Diva Ramos da Silva, nascida em 1923, neta de
Tibúrcio Alves Barreiros. Do lado esquerdo Chiquinha e do lado direito Augusta. Fotografia tirada
aproximadamente entre os anos de 1940 a 1960.
356
LEVI, Giovanni. A Herança Imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 45.
109
Augusta é a mestiça a direita filha ilegítima de Tibúrcio com rendeira Bibina, ao
centro encontra-se outra filha ilegítima, Augustinha, com a rendeira e filha de escrava
Maria e a esquerda Chiquinha Barreiros, esposa de Marcelino, filho da Teodora, também
rendeira e ilegítimo de Tibúrcio.
Respondendo alguns questionamentos acima, na ocasião da partilha da herança
cada filho/a das rendeiras receberam 75 tarefas de terras, exceto Marcelino por não ter
sido reconhecido nada herdou357. Já os filhos das rendeiras de João Pinheiro, Djanira,
Astera, Manoel, Dionisia e Arnaldo (Filhos de Teodora); Nozinho, Teca, Nena (filhos de
Joana); Vitalino, Pedro Gomes, Altino e Julinda (filhos de Candinha), receberam cada 8
tarefas de terras, e o filho legítimo do proprietário, Hermínio Pinheiro de Queiroz, uma
fazenda com aproximadamente 300 tarefas de terra. O filho de Joana, Diomedes, com
Manoelzinho Martins, mestiço, não recebeu herança de João Pinheiro
358
. Portanto, a
partir dos jogos “limitados” essas rendeiras construíram seu lugar na trama social.
Outra história contada por Diva foi de uma família de rendeiros que habitam em
uma das fazendas de Tibúrcio. Aqueles moradores fugiram das terras daquele
proprietário, depois que este percebeu a presença das jovens filhas do rendeiro 359.
A título de ilustração aprofundei a pesquisa para saber a respeito dos casamentos
registrados nos documentos eclesiásticos. A saber, as certidões entre o período de 1891
a 1910 não constam a cor dos indivíduos nubentes. Por esse motivo, busquei nas certidões
de óbitos e de batismos os registros que constavam uniões estáveis e reconhecimento de
paternidade nas diversas camadas sociais.
No exame dos dados do ano de 1903 observei que entre os batismos efetuados
20% dos registros eram de mães solteiras 360. Os pais são nomeados em 80% dos registros,
nota-se nestes crianças pretas e pardas legítimas. Com isso suponho que os ex-escravos
formaram famílias e comunidades com parentes e/ou amigos próximos em torno da
propriedade em que eram rendeiros. Os relatos orais vão evidenciam, ainda, que os
rendeiros da fazenda Dendê possuíam famílias e algumas redes sociais 361.
De acordo com a pesquisa do registro civil feita por Ana Lugão Rios, Paraíba do
Sul, parte dos libertos conseguiu se estabilizar em pequenas propriedades, através
357
Entrevista com Diva Ramos da Silva, concedida em 7 de outubro de 2012.
Entrevista com Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011.
359
Entrevista com Diva Ramos da Silva, concedida em 7 de outubro de 2012.
360
Livro de Batismo de 1903 a 1904. Arquivo da Arquidiocese de Feria de Santana.
361
Entrevista com Djanira Pinheiro de Queiroz, concedida em 21 de março de 2011.
358
110
compra, de arrendamentos ou de trabalhos de meação 362. Não disponho de dados a
respeito da instabilidade das famílias de libertos em São Gonçalo dos Campos, contudo
posso conjeturar que no período do pós-abolição o arrendamento tornou-se uma das
alternativas de sobrevivência da população de libertos e de seus descendentes.
Como observou Rios para Paraíba do Sul, em São Gonçalo dos Campos a família
nuclear completa e extensa existiu entre pretos e pardos desde os meados do século XIX.
Também, é lícito supor que nos últimos anos da escravidão, em São Gonçalo, existia um
considerável número de cativos e pretos livres, homens e mulheres que, provavelmente
colaborou para a afirmação familiar no pós-abolição.
Entre os anos de 1900 e 1915, os registros eclesiásticos de batismos revelam que
número de crianças registradas como legítimas foi maior do que de crianças registradas
como naturais. Como foi encontrado por Rios, entre 1889 e 1920, na Paraíba do Sul, os
registros de batismos de crianças pardas e pretas em São Gonçalo dos Campos insinuam
a presença de famílias nucleares e ampliadas no período anterior a 1920.
O acesso à terra contribuiu para a formação das famílias ao longo das primeiras
décadas do século XX, contudo não descarto outros elementos, como a tradição de
libertos e escravos casar no período do cativeiro. Neste sentido retornarei a análise para
o período de 1835 e 1882 para compreender como se constituíam as famílias de libertos
e escravos.
Usei para analisar a sociedade a Relação de Número de Fogos e Moradores do
Distrito da Freguesia de São Gonçalo dos Campos de Nossa Senhora da Cachoeira 363.
Esse registro é rico em informações acerca das famílias, idade, estado civil, cor
naturalidade e condição social daqueles moradores, porém ele não foi datado, ou se foi os
danos ao documento destruíram partes importantes dos dados. De acordo com Barickman
esse foi o recenseamento feito, em 1835, pelas paróquias, pelo padre Vicente Ferreira
Gomes.
O livro possui um mapa com os dados gerais da população dividindo tais em 5
povoações que são elas: povoação da Matriz apresentava uma população de 2.721 livres,
1.932 escravos e 144 libertos distribuídos em 662 fogos, essa povoação de número maior
de habitantes. A povoação de Santa Luzia com uma população de 2.476 livres, 438
escravos e 191 libertos distribuídos em 584 fogos. Já a povoação de Afligidos possuía
362
RIOS, A. L. Família e Transição... Op. cit. Principalmente o capítulo 3.
BAHIA. APEB, Relação de Número de Fogos e Moradores do Distrito da Freguesia de São Gonçalo
dos Campos de Nossa Senhora da Cachoeira. Maço 5683, S/D.
363
111
uma população de 1.041 livres, 1.296 escravos e 13 libertos distribuídos em 400 fogos.
Na povoação de Mercês foram encontrados 1.040 habitantes livres, 598 escravos e 48
libertos distribuídos em 239 fogos. Por fim a povoação de Humildes com os moradores
distribuídos em 988 livres, 177 escravos e 139 libertos, em 246 fogos364.
Figura 8: Livro de Relação de Número de Fogos e Moradores do Distrito da
Freguesia de São Gonçalo dos Campos de Nossa Senhora da Cachoeira
Fonte: Arquivo pessoal. Foto tirada em junho de 2013. Capa do BAHIA. APEB, Relação de Número de
Fogos e Moradores do Distrito da Freguesia de São Gonçalo dos Campos de Nossa Senhora da Cachoeira.
Maço 5683, S/D.
Este documento apresenta dados que demonstram que a freguesia de São Gonçalo
dos Campos possuía uma diversidade social. No caso os recenseadores registraram a
presença de lavradores como chefes dos fogos, escravos, domésticos e agregados que
poderiam ser uma mesma categoria. Indicaram também o estado civil dos moradores,
como a cor, idade, e condição social.
Para se ter uma ideia o período de 1835 a 1870 já existia essa diversidade social
na freguesia. O registro de fogos e moradores da freguesia de São Gonçalo dos Campos
atesta isso, como, Maria do Espírito Santo, 60 anos de idade, parda, viúva, lavradora,
liberta, com seus dois filhos: Plácito, 20 anos de idade, pardo, solteiro, e Maria, 28 anos
de idade, parda, solteira, embora o registro não mencione a profissão, supostamente
fossem também lavradores, possuíam 3 escravos: Ilias, 60 anos de idade, preto, solteiro;
João, 50 anos, preto, africano; Maria, 16 anos, preta, solteira; preta, e como agregada,
364
BAHIA. APEB, Relação de Número de Fogos e Moradores do Distrito da Freguesia de São Gonçalo
dos Campos de Nossa Senhora da Cachoeira. Maço 5683, S/D.
112
Maria Andrade, 90 anos, preta, solteira e liberta365. Além de ser liberta, possuíam em suas
dependências uma liberta que era sua agregada. Entre os domésticos encontrei brancos,
português, e sujeitos de variadas faixas etárias. É o caso de Antônio Joaquim do
nascimento, de 70 anos de idade, casado, português, naturalizado, lavrador, doméstico.
Ainda deparei com Antônio, branco, solteiro de 3 anos de idade.
Os proprietários que declaram possuir escravos variavam de 1 até 66 escravos.
Como foi o caso de José Ribeiro de Oliveira, branco, 73 anos, lavrador, casado com Ana
Joaquina de São José, branca, 39 anos e seus 8 filhos eram proprietários de 66 escravos.
Consta entre a população deste fogo um agregado: Fabio, preto, solteiro, 80 anos, não
sabemos se liberto ou não. Provavelmente José Ribeiro de Oliveira era o detentor de uma
das maiores riquezas da freguesia. Proprietário de uma grande quantidade de escravos
possibilitava uma diversidade de famílias de cativos.
Outros casos podem ser ainda citados como: Manoel Borges Falcão, branco, 70
anos, lavrador, casado com Maria Josefa, branca, 60 anos de idade, possuía 29 escravos.
Antônio José de Oliveira, branco, 43 anos, lavrador, casado com Maria Josefa, branca, 38
anos, com seus filhos José, branco, 15 anos, Maria, branca, 14 anos, Joana, branca, 13
anos, Manoel, branco, 10 anos, Emília, branca, 5 anos e Joaquim, branco, 6 anos,
possuíam 15 escravos. José Borges Falcão, branco, 40 anos, lavrador, casado com Ana
Maria, branca, 40 anos com seus 6 filhos eram proprietários de 9 escravos366. Havia caso
de famílias sem escravos como Joana Machado, preta, solteira, 25 anos, costureira e seu
filho Manoel, preto, solteiro, 9 anos367. A partir desses dados nota-se a diversificada
formação social nesta região, uma vez que os registros no livro analisado apresentam uma
diversidade de formação familiar. Sendo, que no caso dos escravos, a maioria dos enlaces
acontecia entre escravos do mesmo proprietário, entretanto, não descarto a suposição que
havia caso de casamentos entre cativos de senhores diferentes.
As evidências demonstram que os libertos alcançaram autonomia econômica como
foi o caso de Luís Alves Souto, pardo, 45 anos, lavrador, liberto, casado com Angélica
Maria, parda, com 33 anos. O casal de libertos tinha 4 filhos e ainda 43 escravos,
aparecem registrados como habitantes do fogo Luís, pardo, solteiro, 12 anos, liberto e
365
BAHIA. APEB, Relação de Número de Fogos e Moradores do Distrito da Freguesia de São Gonçalo
dos Campos de Nossa Senhora da Cachoeira. Maço 5683, S/D. p. 16.
366
BAHIA. APEB, Relação de Número de Fogos e Moradores do Distrito da Freguesia de São Gonçalo
dos Campos de Nossa Senhora da Cachoeira. Maço 5683, S/D.
367
BAHIA. APEB, Relação de Número de Fogos e Moradores do Distrito da Freguesia de São Gonçalo
dos Campos de Nossa Senhora da Cachoeira. Maço 5683, S/D.
113
Profílio, pardo, solteiro, 10 anos, liberto368. Como esse, inúmeras experiências de libertos
como proprietários rurais foram exibidas no censo.
Outro exemplo é o de Basílio Alves, cabra, 60 anos, lavrador, liberto casado com
Ana Francisca, preta, 50 anos, liberta, eram proprietários de 10 escravos tendo ainda entre
a população do fogo um liberto chamado Simplício, pardo, solteiro de 25 anos e Inácio
Alves, cabra, solteiro, 70 anos de idade e agregado. Estevão J. Cerqueira, pardo, 50 anos,
lavrador, liberto, casado com Francisca Xavier de Oliveira, parda, 45 anos, liberta. Eles,
contudo, se tornaram proprietários 14 cativos e sendo Luísa, parda, 50 anos, solteira,
liberta, designada como doméstica, ou mesmo agregada com seus 6 filhos 369. Essas
experiências indicam que escravos e libertos no século XIX puderam, em alguma medida,
cultivar laços familiares e manter redes sociais formuladas no tempo de cativeiro, como
também indica que os libertos depois que adquiriam a liberdade se tornavam agregados
nos fogos de seus antigos proprietários ou de outros indivíduos.
Nos inventários entre 1862 e 1882, deparei-me com vários casos de mulheres
descritas como mães solteiras. Todavia é possível que essas mães solteiras vivessem em
uniões consensuais estáveis e que as informações registradas apenas abrangessem a
finalidade de cientificar a genealogia dos filhos das escravas. Como consta no inventário
de Maria Carolina do Amor Divino, 1869-1974, os escravos Vitória, cabrinha de 4 anos
pouco mais ou menos e Juveniano, cabrinha de mais de um ano de idade filhos da escrava
Joana, crioula, de boa idade, do serviço da lavoura370, seguiriam a linha materna sendo
também escravos. Segundo Iraci del Nero da Costa e Francisco Vidal Luna:
Ao longo da história brasileira houve predomínio maciço, entre os
cativos, do intercurso sexual não legitimado, vale dizer: parcela ínfima
das uniões a envolver pelo menos um parceiro escravo via-se
sacramentada pela Igreja (...)371.
Outro exemplo é o de Teodora, mulatinha, filha da escrava Maria, crioula, velha,
que sofria de moléstia de hemorroidas, escravas de Maria Jerônima, 1829-1862372. Ainda
368
BAHIA. APEB, Relação de Número de Fogos e Moradores do Distrito da Freguesia de São Gonçalo
dos Campos de Nossa Senhora da Cachoeira. Maço 5683, S/D.
369
BAHIA. APEB, Relação de Número de Fogos e Moradores do Distrito da Freguesia de São Gonçalo
dos Campos de Nossa Senhora da Cachoeira. Maço 5683, S/D.
370
Inventário de Maria Carolina do Amor Divino, 1869-1974. BAHIA, Arquivo Público Municipal de
Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 198.
371
COSTA, Iraci del Nero da, LUNA, Francisco Vidal. “Vila Rica”: nota sobre o casamento de escravos
(1727-1826), Revista África, São Paulo, Centro de Estudos Africanos (USP, (4): 105-109, 1981.
372
Inventário de Maria Jerônima de Trindade, 1829/ 1862. BAHIA, Arquivo Público Municipal de
Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 218.
114
temos Geralda, preta, de 17 anos e Manoel, preto, de 13 anos, solteiros, filhos da escrava
Luisa, 36 anos, solteira, todos do serviço da lavoura, no valor de dois contos de reis 373,
também, Geralda, idade de 16 anos, mais ou menos, solteira, da lavoura, natural da
Freguesia dos Remédios, filha natural da escrava Maria 374, como raramente acontecia,
verifiquei um caso em que foi dada a filiação pelo pai e não pela mãe _ o mulatinho sem
nome filho do escravo Manoel375. Provavelmente a explicação para este fato seja que a
mãe estivesse falecida e a criação ficou sob o encargo do pai.
No censo de 1872, entre os escravos 551 do sexo masculino casado e 137 do sexo
feminino 376. Pelo sexo observa-se que a maioria dos escravos se casava com libertas,
talvez o casamento se efetivasse como forma de proteger os futuros filhos, uma vez que
ser escravo ou era determinado pelo ventre materno: filho de pai escravo com mãe liberta
já nascia sob o signo da liberdade. Porém, mãe escrava e pai livre determinavam
nascimento sob o jugo do cativeiro.
Os documentos não sinalizam casamento entre forros, provavelmente porque a
situação financeira não permitia a realização, apesar disso, não significa dizer que elas
não constituíssem laços familiares, relações afetivas estáveis e duradouras. Ainda os
escravos e forros poderiam constituir solidariedades para além do parentesco para orientar
suas vidas377. Como bem adverte Cacilda Machado 378, o casamento e o compadrio foram
“atos sociais estratégicos” para arregimentar mão-de-obra, o que parece suceder nas
relações sociais estabelecidas nas últimas décadas da escravidão e no pós-abolição na
sociedade de São Gonçalo dos Campos.
Tais relações demonstram que mesmo depois de conquistar a liberdade, libertos
mantinham laços familiares com sujeitos presos à estrutura escravista. De acordo a Slenes
o casamento, para os escravos, significava um ganho maior no controle sobre o espaço da
moradia, determinando, dessa forma, uma melhora na sua qualidade de vida 379, o que
373
Escritura de doação em causa dote de Joaquim Pedreira Daltro e sua mulher Anna Joaquina da Trindade,
1877. BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro do Tabelionato n. 1, p. 2.
374
Procuração de Bernardino Alves Barreiros, 1877 BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes,
Livro do Tabelionato n. 1.
375
Inventário de Maria Jerônima de Trindade, 1829/ 1862. BAHIA, Arquivo Público Municipal de
Cachoeira, Provincial, Inventários, Cx. 218.
376
Censo de 1872.
377
MATTOSO, Kátia Q. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988.
378
MACHADO, Cacilda. “Casamento & compadrio”. Estudo sobre relações sociais entre livres,
libertos e escravos na passagem do século XVIII para o XIX (São José dos Pinhais – PR). XIV
Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, Caxambu - MG, 2004.
379
SLENES, Robert. Na senzala, uma flor. Esperanças e recordações na formação da família escrava.
Brasil sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 150.
115
pode ser sugerido para os libertos nesta região. Estudos recentes irão propor uma análise
da família cativa e liberta levando-se em consideração que:
Pelo casamento e, antes ou depois, por meio do nascimento de uma
criança escrava, vários indivíduos criavam ou estreitavam laços que, nas
difíceis circunstâncias da vida em escravidão, eram laços de aliança. A
mãe e o pai da “cria” (como aparecem nas fontes) viam reafirmando o
propósito comum de juntarem suas forças de modo a melhor viver a vida
possível. Ambos arrumavam um compadre e, muitas vezes, uma
comadre. E, talvez, cunhados, cunhadas, sogros e sogras. E se a criança,
o que não era fácil, sobrevivesse até a idade de procriar, muito mais
alargada ainda seria essa rede de laços de solidariedade e aliança. Parece
óbvio que a criação de laços parentais fosse desejo de todos os escravos.
(...)380
Os dados referentes a São Gonçalo dos Campos não permitem uma elaborada
análise desta questão, uma vez que as fontes são dispersas. Mas, a partir do que foi
encontrado pode-se perceber que a presença da família escrava e, consequentemente, a
de libertos. O que poderia facilitar a permanência e o convívio de gerações na mesma
fazenda na segunda metade do século XIX e na primeira década do século XX.
Todavia a presença de informações sobre casamento escravo nos inventários não
é comum, com frequência encontrei escravas avaliadas com seus filhos e sem a
denominação de seus respectivos maridos. Como notei ainda no inventário de João
Coelho de Almeida, 1882, do escravo Alexandre, preto, 70 anos, casado com Joaquina,
preta, 60 anos, a qual teve 8 filhos, sem, contudo, mencionar a paternidade de Alexandre.
Os filhos são: Feliciano, crioulo, 13 anos; Ovídio, crioulo, 5 anos; Trajano, crioulo, 1 ano;
Sabina, crioula, 25 anos; Joana, crioula, 21 anos; Brígida, crioula, 22 anos; Tomazia,
crioula, 20 anos; Saturnina, crioula, 7 anos todos do serviço da lavoura381. Observei que
o inventariante não menciona os ingênuos, nascidos depois da Lei do ventre livre.
Tabela 2: Taxa de natalidade dos escravos da Fazenda de João Coelho de Almeida
em 28 de abril de 1882
Matricula
Nome
Cor
Idade
Filiação
149
Alexandre
Crioulo
60
Desconhecida
Pet.
Trabalho
Qualquer um
750
Joaquina
Crioula
50
Desconhecida
Qualquer um
751
José
Crioulo
23
Desconhecida
Qualquer um
380
FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico
atlântico, Rio de Janeiro, 1790-1850. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1997. p. 173-174.
381
Inventário de João Coelho de Almeida, 1882. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira,
Provincial, Inventários, Caixa 218.
116
752
Jorge
Crioulo
24
Desconhecida
Qualquer um
753
Feliciano
Vend. Crioulo
13
Leg.Joaquina
Qualquer um
754
Ovídio
Crioulo
5
Leg. Sabina
Qualquer um
755
Trajano
Mov. crioulo
1
Leg. Joaquina
Qualquer um
756
Sabina
25
Brígida
758
Thomazia
Crioula
20
759
Joanna
21
760
Saturnina
761
Eduarda
Vendeu
crioula
Deixou
crioula
Crioula
Filha legitima
de Joaquina
Filha legitima
de Joaquina
Filha legitima
de Joaquina
Filha legitima
de Joaquina
Filha legitima
de Joaquina
Filha legitima
de Joaquina
Qualquer um
757
Deixou
crioulo
Crioula
22
7
6
Qualquer um
Qualquer um
Qualquer um
Qualquer um
Qualquer um
Fonte: Inventário de João Coelho de Almeida, 1882. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira,
Provincial, Inventários, Caixa 218.
Pela análise da matrícula dos cativos é provável que as relações entre eles e a
“permanência” da escravaria resultou em diversas gerações dessas famílias que fizeram
aumentar o número de escravos do proprietário. Como Timóteo, cabra, 7 anos, ingênuo;
Faustino, cabra, 6 anos, ingênuo; e Isidoro, cabra, 3 anos, ingênuo, todos filhos de
Brígida, esta filha da escrava Joaquina. Também, Clementina, preta, 7 anos, ingênua;
Inês, preta, 4 anos, ingênua; e Fortunata, 3 anos, ambas filhas da escrava Tomazia, esta
filha de Joaquina382. Nesta propriedade notei três gerações de escravos, porém apenas um
registro de casamento.
A formação de famílias negras e as relações sociais estabelecidas pelos escravos
e libertos deve ser considerada mediante as experiências compartilhadas em relação ao
trabalho, laços afetivos, casamento, moradia, dentre outros aspectos que marcaram
intensamente suas vivências no contexto escravista. Bem como argumenta Almeida que
“os cativos circulavam entre as roças, sítios, fazendas, povoados, arraiais e a vila, onde
382
Inventário de João Coelho de Almeida, 1882. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira,
Provincial, Inventários, Caixa 218.
117
compravam e vendiam produtos para seus senhores, lavavam roupas no rio e participavam
de batuques, sorrateiramente, durante a calada da noite, em outras roças” 383
Os indivíduos Alexandre e Joaquina se casaram tiveram netos e assim houve uma
elevação no número de braços para trabalhar no momento posterior ao Tráfico Atlântico
ou mesmo posterior a Lei do Ventre Livre. Talvez o fator econômico favorecesse a
existência dessas famílias, possibilitando ao proprietário gozar de “estabilidade
econômica” suficiente para não se desfazer dos cativos, principalmente das suas famílias
e com isso manter uma reprodução natural384.
No caso encontrado na Fazenda Sobrado, de Epídio Lopes de Almeida, 18691871, o escravo Pedro, crioulinha, de 1 ano mais ou menos e Joana, cabrinha, 5 anos um
pouco mais ou menos, ambos filhos de Juliana, crioula, do serviço da lavoura, 35 anos
mais ou menos merece atenção pela declaração do escrivão:
Joana, cabrinha filha da mesma Juliana com idade de 5 anos mais ou menos que
avaliamos em 330,00 reis a qual foi dada em quinhão ao pai comum Egídio, na
partilha pelo juízo de órfãos de Cachoeira de conformidade da dita escritura,
fazendo esta Joana, parte da produção dos filhos da mesma Juliana pertencendo
este valor ao casal 350,000 reis385.
A citação acima apresenta um fato importante na sociedade escravista no final do
século XIX: a natalidade das escravas. Fato curioso haja vista a sociedade estava
atravessando momentos finais da escravatura. Assim, as informações acima expressam a
preocupação dos senhores em manter sua escravatura através do índice de natalidade de
suas escravas.
A busca pela estabilidade, pela autonomia, e pela possibilidade de ampliação
familiar estava ligada às condições de trabalho empregada na terra. No que se refere aos
anos posteriores a abolição, de 1888 a 1910, de forma, um tanto quanto interessante, a
presença de padrinhos nos registros batismais permite afirmar que o ato de batizar
representava uma prática que formava laços de compadrio. Como exemplo a família
Borges Falcão batizou muitas crianças de cor no período de 1903 e 1915386. Em 25 de
julho de 1903, Salustiano Borges Falcão e Tomazia Moreira, batizaram Odília, parda, de
383
ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. Alforrias em Rio de Contas, século XIX. Salvador: UFBA, 2006.
p. 32. (Dissertação de mestrado)
384
BARICKMAN, op.cit.
385
Inventário de Epídio Lopes de Almeida, 1869-1871. BAHIA, Arquivo Público Municipal de Cachoeira,
Provincial, Inventários, Caixa 218.
386
Livro de Batismo de 1903 e 1904; 1913 e 1915. Arquivo da Arquidiocese de Feria de Santana
118
4 meses, filha natural de Maria Helena. Em outro de 26 de setembro de 1903, Alcino
Borges Falcão e Maria Borges Falcão batizaram Maria, pardo, de 6 meses, filha legitima
de Eduardo Manoel Reys e Maria Ozina do Espírito Santo 387.
Nestes batismos há uma lógica nas escolhas dos padrinhos, supostamente as
iniciativas foram decisivas para construir arranjos sociais, uma vez que nas questões
testamentárias os afilhados, geralmente recebiam seu quinhão, como ocorreu com João
José Pedreira de Cerqueira, filho natural de Manoel Pedreira de Cerqueira e Maria
Angélica de Jesus. Em seu testamento deixou para seu afilhado Manoel Inácio Pedreira
um quinhão de terras na fazenda Sobrado. A afilhada Sergia, filha de Manoelina Pedreira,
300 mil reis. As sobrinhas Sabrina Pedreira e Joana Pedreira, filhas de seu finado irmão
Felipe Pedreira Cerqueira, 300 mil reis. Para as filhas de seu compadre Manoel Mariano
de Freitas, Virgínia, Ascelina, Maria Clementina e Severiano a quantia de 200 mil reis. A
afilhada Maria, filha de Alberto Alves Ferreira, o valor de 100 mil reis. A afilhada Maria
Gerturdes, escrava de sua mãe deixou a quantia de 200 mil reis 388.
Tudo leva a crer que João José Pedreira de Cerqueira não era um grande
proprietário fundiário, uma vez que, no testamento não incluía grandes propriedades,
casa, bens de raiz, gado e móveis, apenas um quinhão de terra e uma quantia em dinheiro.
Levando em conta o testamento de João é possível sugerir que outros proprietários
fundiários também distribuíram quantia dos seus bens aos seus afilhados.
Também a família Cazumbá batizou muitas crianças no período
correspondente. Aos 7 dias de junho de 1903 Marcolino Cazumbá e Benvinuta Machado
da Silva batizaram a Gregório, 7 meses, filho natural de Lourença Maria da Silva 389.
Ainda encontrei a certidão de Guimar, nascido em 2 de setembro de 1914, filho legítimo
de Clarinho José dos Santos e de Teófila Madalena dos Santos, batizado por Luiz Cardoso
Cazumbá e Clementina Pereira 390. Tratando-se de batismos de crianças da família
Cazumbá não foi encontrado entre os registros. Esse fato denota que nem todas as
crianças eram batizadas no período. A constituição desses laços afetivos e
apadrinhamento, no início do século XX é fruto da tradição social construída na sociedade
escravocrata. Importante notar que tal tradição teve sua parcela de contribuição para que
muitos indivíduos egressos da escravidão permanecem em contextos muito parecidos aos
387
Livro de Batismo de 1903 a 1904. Arquivo da Arquidiocese de Feria de Santana
Testamento de João José Pedreira de Cerqueira, 1887. BAHIA, Arquivo Público do Estado da Bahia,
Provincial.
389
Livro de Batismo de 1903 a 1904. Arquivo da Arquidiocese de Feria de Santana
390
Livro de Batismo de 1913 a 1915. Arquivo da Arquidiocese de Feria de Santana
388
119
que viviam. Nesta conjuntura, ampliou-se a interação entre os indivíduos, ligando-os por
laços de família, parentesco, relacionamentos afetivos e comunitários, o que acabou por
legar situações complexas e extraordinárias. Também, as diversas formas de ligações
sócio afetivas em que os sujeitos de cor estavam inseridos, principalmente o compadrio,
através dos laços espirituais instituídos no ato do batismo, uniam definitivamente o
batizando e seus padrinhos, e esses aos pais da criança, sendo tais laços levados para fora
do âmbito da Igreja, na vida social dos envolvidos 391.
Portanto, a conjuntura acima exibe alguns pontos que ligavam as experiências dos
sujeitos anteriores e posteriores a abolição. Tais indivíduos aparecem envolto em uma
complexidade de relações: escravo, ex-escravos, rendeiros, livre, liberto, pequenos
produtores, compradores, vendedores, proprietários, realizando hipoteca, comprando
alforria, bem como, pai, mãe, filho, sobrinho, tio, avó, padrinho, afilhado, compadre,
ainda, como réu, testemunha, vítima, encontrando-o em contextos sociais diversos.
Assim, com as transformações ocorridas nos últimos anos do século XIX,
especialmente a abolição da escravatura, fazem esses os indivíduos deslocarem-se em
diversas direções: alguns residindo e cultivando em terras de seus antigos senhores, como
trabalhadores rendeiros/amásias/filhos; nessas novas experiências formam ou mantêm
suas famílias; diversos abandonam as fazendas que eram cativos, outros constroem laços
afetivos com escravas, reconhecem filhos, compram terras, tornam-se pequenos
proprietários, produtores de fumo e de gêneros de subsistência. Por fim, viúvas e filhos
lutam judicialmente para manter a posse de suas terras.
É sob essa perspectiva que analisarei, no próximo capítulo, a compra de terras na
última década da escravidão e posterior a abolição pela família Cazumbá. Tal compra
não é um fato isolado na Freguesia de São Gonçalo dos Campos, no final do século XIX,
contudo, o caso de João Cardozo Cazumbá encerra em si as grandes linhas deste trabalho
que tem por objetivo analisar e discutir sobre bens, terras, produção agrícola, demografia,
mão-de-obra escrava e livre.
391
GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de
escravos na Bahia no século XVIII". In: REIS, João José. Escravidão e Invenção da Liberdade. Estudos
Sobre o Negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988.
50 SCHWARTZ, Stuart. B. “Abrindo a roda da família: Compadrio e escravidão em Curitiba e na Bahia”.
In: Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, SP: EDUSC, 2001
120
CAPÍTULO IV Cazumbá: família de cor e proprietária de
terras no pós-abolição.
Bem, a partir de 1874 aparece no contexto das relações de liberdade, incorporando
à história dos indivíduos de cor, João Cardozo Cazumbá. O ancestral da família que
levaria sucessivas gerações aquele sobrenome. Não encontrei dados a respeito do seu
nascimento ou da chegada na Freguesia; no entanto, conforme o óbito, 1891, com 64
anos392, é possível julgar que tenha vindo ao mundo em 1827, na primeira metade do
século XIX, período recheado de mudanças e conflitos no Recôncavo393 e preocupações
a respeito de ameaça de quilombo entre os senhores escravagistas da Freguesia394.
Proprietário de terras plantou, colheu, comercializou seu produto, fumo, farinha,
deixando para seus herdeiros as terras que havia adquirido mediante compras.
Aí começa a série de fatos que sucede sua aparência nos registros oficiais.
Confessou no registro de perfilhação, 9 de abril de 1888, que com Rita Gonçalvez de
Oliveira, escrava de Antônio Gonçalvez de Oliveira, manteve laços afetivos e por esse
tiveram oito filhos, reconhecendo-os legítimos herdeiros: Marcolino, Gonçalo, Vicente,
Francisco, Manuel, Joanna, Joaquina e Claudina 395. Neste documento foi declarado ao
escrivão do tabelionato, Hermógenes Pedreira Daltro, seu estado civil solteiro, diferente
do revela a certidão de óbito396 e a procuração feita pela viúva Rita Gonçalves de Oliveira,
em 1891397, constituindo Honório Alves Pereira como seu procurador para assistir as
avaliações, aceitá-las e impugná-las no inventário amigável em judicial dos bens deixados
pelo falecimento de seu marido João Cardozo Cazumbá.
Os laços afetivos de João Cazumbá com Rita Gonçalvez entroncam-se na
condição social daqueles indivíduos no regime escravocrata, haja vista, o que
determinava o nascimento era o ventre materno: filho de pai escravo com mãe liberta já
392
Certidão de óbito,
SILVA, E & REIS, J. J. (Org.) Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravagista. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996.
394
CARVALHO, M. C. M. de. Os discursos das autoridades escravistas nos documentos do século XIX.
In.: QUEIROZ, Rita de Cássia Ribeiro de. Anais II Seminário de Estudos Filológicos – SEF: Feira de
Santana. Salvador: Quarteto, 2007. p. 343-350.
395
Perfilhação de João Cardoso Cazumbá, 1888. BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro
do Tabelionato n. 8 (1887 a 1891), p. 29.
396
BAHIA, Livros de Óbito/1891. Arquivo da Arquidiocese de Feria de Santana.
397
BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro de n. 9, p. 43.
393
121
nascia sob o signo da liberdade. Porém, mãe escrava e pai livre definia nascimento sob o
jugo do cativeiro398. Essas relações demonstram que os laços familiares “prendiam” os
libertos à estrutura escravista. Se um homem livre nutria laços afetivos com mulher
escrava é porque o ele se mantinha por perto daquela relação, possivelmente residindo
fora da senzala, talvez até continuando a servir ao senhor, em troca de abrigo e proteção,
ou mesmo trabalhando próximo.
Observando de maneira detalhada aquele espaço é possível perceber como as
relações foram construídas. Antônio Gonçalvez de Oliveira (proprietário de Rita), em
1857, declarou, no primeiro registro, possuir terras na Fazenda Terra Dura, que adquiriu
por trocas com José d’Oliveira Borges e sua esposa Maria Bernardina. E a fazenda
denominada Candeal que comprou do Tenente Antônio José de Oliveira e sua esposa
Luiza. Sem distinção das propriedades aponta os limites: sul com terras de outra fazenda
do mesmo possuidor; norte com terras da fazenda Cruz, pertencente a Elena Maria da
Cruz, viúva de Antônio Lourenço; leste a estrada real que vem da cidade de Cachoeira
para Feira de Santana dos Olhos d’Água; pelo poente com as fazendas até o Rio
Jacuípe399.
Em outro registro informou que também possuía terras na fazenda Tabuleiro do
Gandú, as quais herdou do finado José Ferreira de Coutto e sua mulher, cujas
demarcações são: pelo Nascente pela estrada Real que liga Cachoeira a Vila de Feira de
Santa Anna dos Olhos d’Água; pelo sul com terras da fazenda Paixão de João Ferreira da
Cruz; pelo norte com terras da fazenda Terra Dura, do mesmo possuidor Antônio
398
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1990. SLENES,
Robert. Na senzala uma flor: Esperanças e Recordações Na Formação da Família Escrava (Brasil Sudeste,
Século XIX). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. SLENES, Robert. Lares negros, olhares brancos.
Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 8, n. 16 março-agosto de 1988, p. 189-203. SLENES, Robert.
Escravidão e família: padrões de casamento e estabilidade familiar numa comunidade escrava (Campinas,
século XIX). Estudos Econômicos, v. 17, n. 2, maio-agosto de 1987, p. 217-227. SCHWARTZ, Stuart.
Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
MOTTA, José Flávio. Família Escrava: uma incursão pela historiografia. História: Questões e Debates,
Curitiba, v. 9, n.16, junho de 1988, p. 104-159. OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes. Viver e morrer no meio
dos seus: nações e comunidades africanas no século XIX. Revista da USP, n. 28, dezembro de 1995fevereiro de 1996, Dossiê Povo Negro - 300 Anos, p. 175-193. OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes. O liberto:
o seu mundo e os outros. São Paulo: Corrupio, 1988 (Baianada, 7). REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. A
família negra no tempo da escravidão: Bahia, 1850-1888. Tese (Doutorado em História) − Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, 2007. REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. Histórias de vida
familiar e afetiva de escravos na Bahia do século XIX. Salvador: Centro de Estudos Baianos, 2001.
399
BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863).
122
Gonçalves; pelo poente com terras da fazenda Tabuleiro, que foi de João Borges Falcão
e, pertencente ao genro Manoel Joaquim de Oliveira; com os fundos até o Rio Jacuípe 400.
Em outro registro, Antônio Gonçalvez diz possuir terras no lugar denomindo
entrada para o Beco do Carangueijo, que vem do largo da Quitanda, no Arraial de São
Gonçalo, que tem por herança de seus pais Manoel Gonçalves de Coutto e sua mulher,
sendo doadas a eles pelo finado Manoel Borges Falcão e sua mulher Maria Anunciação
Borges, sendo demarcadas: pelo norte com as casas do Tenente Antônio José de Oliveira;
pelo nascente com terras de Antônio Joaquim Correia da Silveira e Souza, pelo poente
com terras que foram do finado Capitão Luís Martins Soutto, e pelo sul com os fundos
terras foreiras401.
No quarto registro encontrado Antônio Gonçalvez de Oliveira declarou possuir 4
braças de terras no arraial da Freguesia na Avenida São Benedito, onde tem edificadas
suas casas. A aquisição das terras foi através de compras feitas a Manoel Gabriel
Cerqueira e sua mulher, duas braças e as outras duas braças a Anna, viúva de Pedro
Pereira da Silva Daltro. As demarcações são: pelo Norte confrontando com as casas do
finado José Alves d’Oliveira, pertencente a seus herdeiros; pela nascente com o sobrado
de João Cerqueira d’Oliveira; pelo poente com terras da Irmandade de São Benedito, pelo
Sul com valado da fazenda dos herdeiros do finado Alferes João de Macedo Peixoto402.
Geograficamente descrita, nota-se que as terra compradas por João Cardozo
Cazumbá situam-se no mesmo local que estão as terras de Antônio de Gonçalvez Oliveira,
o que subentende a proximidade e a construção dos laços afetivos com a escrava do
mesmo. Constata-se, por conseguinte, que a escravidão não impedira aqueles sujeitos de
estabelecerem famílias, laços de amizades, de “fios da vida” 403, inserindo-se nas redes
sociais e de solidariedades.
Outro ponto de investigação é sobre a origem de João Cazumbá. Se esta palavra é
de origem banto, como foi visto no primeiro capítulo, é importante compreender que as
práticas desenvolvidas por esses sujeitos remontam a tradição constituída na África.
Como foi percebido por Slenes, entre os escravos de origem banto, nos finais do século XVIII
400
BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863).
401
BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863).
402
BAHIA, APEB. Registros Eclesiásticos de Terras de São Gonçalo dos Campos. Livro nº4807 (18571863).
403
PIRES, Maria de Fátima Novaes. Fios da vida: Trajetórias de escravos libertos no Alto Sertão da
Bahia Rio de Contas e Caetité (1860-1920). São Paulo: Annablume, 2009.
123
até 1850, no sudeste do Brasil, conservando as heranças culturais oriundas da África Central,
especialmente Angola, Congo e Carolina do Sul, entre os ovimbundu, bakongo e os
mbundu404.
Slenes adverte que os escravos de origem banto construíam laços matrimoniais
que viabilizavam recriar rituais tradicionais de matriz africana – como a família/linhagem
– que garantia um presente vivido à luz do passado, proporcionando tecer projetos de
vida, aperfeiçoar a visão de economia moral, aglutinar sua comunidade, abrir esperanças
para um digno futuro. Bem como, gerava questões materiais pertinentes a produção de
manufatura doméstica, do trabalho nos dias de folga, conquista de direitos e de produzir
uma pequena poupança, enfim, solidificava a determinação coletiva de colocar limites à
exploração senhorial. Portanto, assevera Slenes que as experiências em torno do lar e da
roça revelam o cotidiano à luz de sua herança cultural e, mais importante ainda, adquirir
condições para (re)criar uma cultura e uma identidade própria a família e a roça,
simbolizando a continuidade da linhagem do grupo e suas origens num ancestral
fundador405. Por conseguinte, questões significativas para intepretação dos laços
mantidos pelos indivíduos de cor no Recôncavo à luz da economia fumageira.
A partir desses elementos duas interpretações podem ser traçadas. A primeira,
refere-se à possibilidade de João Cardozo ter sido escravos (de origem banto – assunto
que carece de maiores investigações) em algumas das fazendas ao entorno, ambiente onde
conheceu Rita, no seu tempo de cativeiro e com ela manteve laços afetivos, significativo
de experiências matricial africana para a constituição familiar. Opôs-se, a segunda opção,
que sugere o caminho traçado por um homem livre, rendeiro, residindo em uma das
Fazenda de Antônio Gonçalvez Oliveira, ou em outras ao entorno, na lida na roça de fumo
conheceu Rita com que estabeleceu laços afetivos, gerando oitos filhos.
Os debates sobre essa relação estimulam muitas reflexões, oferecendo uma série
de questões, pois ao mesmo tempo que seus fios da vida estão entrelaçados com o
cativeiro, ele compra o escravo “João, preto, de idade de 19 anos mais ou menos, solteiro,
404
Slenes, com base nos estudos demográficos, relê os relatos dos viajantes do século XIX sobre o Sudeste
e mostra através do olhar branco a vida sexual e familiar patológica dos escravos, mas também de um lar
negro. A compreensão do lar negro passa por uma visão mais aprofundada do encontro entre a herança
cultural africana e a experiência do cativeiro. Ver SLENES, Robert. O lar e a roça na vida escrava. In.:
Na senzala uma flor: esperanças e recordações da família escrava (Brasil Sudeste, século XIX), Rio
de Janeiro, Nova Fronteira, 1999.
405
SLENES, Robert. O lar e a roça na vida escrava. In.: Na senzala uma flor: esperanças e recordações
da família escrava (Brasil Sudeste, século XIX), Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999.
124
serviços da lavoura”, a Dona Anna Joaquina Ferreira de Cerqueira, em 1885, pelo preço
de 350 mil reis 406.
Esse quadro, em que a identidade de João Cazumbá encontra-se entroncada em
laços afetivos com uma escrava, bem como ser dono de escravo, exibe uma dinâmica
costumeira entre os libertos. É possível encontrar na primeira no século XIX, naquela
freguesia, famílias de libertos proprietárias de terras e escravos. Esse exemplo foi
mostrado no capítulo anterior, na diversidade de relações mantidas pelos indivíduos e
grupos sociais que transitavam o espaço da fazenda fumageira da região. Também, a
aquisição de escravos destaca a mobilidade e a inserção social de um liberto ou, mesmo
uma pessoa de cor, que viveu em São Gonçalo dos Campos, durante o século XIX, tendo
sido alforriado, ou livre sob o julgo da escravidão, transformando-se em senhor de
escravos.
É possível ainda que as aquisições feitas por João Cardozo Cazumbá, tivesse sido
facilitada pelo cultivo de gêneros de subsistência e pequenos animais domésticos voltados
para o complemento alimentar, tarefas costumeiras entre os escravos e libertos, sendo o
excedente vendido aos senhores ou nas feiras semanais 407, contexto exibido nos capítulos
anteriores.
Por conseguinte, a produção fumageira e dos gêneros de subsistência ajudam a
compreender a inserção de indivíduos de cor no palco marcado pela experiência da
escravidão e a sobrevivência nas relações de liberdade durante e após a abolição. Estes
construíram e reelaboraram, ao longo do tempo, todo um modo de vida e conhecimento
coletivo em torno da produção agrícola, a qual se compôs como elemento aglutinador de
suas experiências cotidianas, de sua cultura e de suas histórias de vida, como é possível
observar no depoimento de Seu Teófilo Cazumbá, terceira geração, ao relatar o trabalho
de ascendentes na roça:
A vida na roça, o que meu pai dizia? Ah, eles capinavam, plantavam fumo,
plantavam mandioca, feijão, milho, batata, faziam farinha, mexiam, vendiam,
faziam beiju. Eles iam para roça bem cedo, acordava de madrugada. Cava a
cova, depois que o fumo tava saindo o olho, capava. Quando tava no tempo
certo de cortar, ia para a cortar. Todo os filhos ajudavam, ele dizia pra gente,
que ele e os irmãos trabalhavam assim com pai deles. Todos iam para a roça
trabalhar. É trabalho! Na casa de farinha com o rodo: vai pra lá vai pra lá, vem
pra cá vem pra cá, até farinha torrar(...).
406
BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro do Tabelionato, n. 4, p 74.
FRAGA, 2006, p. 43. CHALHOUB, 1990. SCHWARTZ, 2001, p. 99. BARICKMAN, op. cit.
POPPINO, Op. Cit.
407
125
Este trecho do depoimento de Teófilo Cazumbá se refere a um cotidiano intenso
de trabalho na roça, especialmente nos momentos em que lidavam com o cultivo do fumo
e a produção de farinha. Sua memória aponta para um passado de lembranças das histórias
ora contadas por seu pai, ora de suas experiências de infância. Estas práticas costumeiras
subentendidas em seu depoimento dirigindo a produção fumageira, insinua
tradicionalmente a relação da família com a roça. Observa-se em sua fala que o cotidiano
do trabalho entre a linhagem era uma experiência transmitida de geração a geração. Silva,
também, expõe que os informantes em sua pesquisa rememoram a família Cazumbá entre
as diversas relações de seu cotidiano as atividades na roça 408, destarte, experiências
adquiridas pelo costume, passadas entre as gerações.
Independente de qual teria sido a condição social de João Cardozo Cazumbá as pistas,
referente a seus descendentes, filhos de uma escrava, exibem identidade marcada pela
experiência do cativeiro, igualmente os traços raciais bem lembrados pelos contemporâneos
da segunda e terceira geração, distingue-os naquele contexto social:
(...) Os negros Cazumbá eram todos arrumados... eu casei com Mathias
Cazumbá, o pai dele era Manoel Cazumbá. Meu sogro mesmo tinha fazenda,
gado, porco, galinhas, terras[...] Naquele tempo Cazumbá andava de linho
branco, sapato branco no pé, como doutores... Acabou-se os Cazumbá mais
velhos, jogaram tudo fora, acabou-se tudo...409
Eu era garoto, tinha mais ou menos quinze anos de idade, lembro de quando
Dona Lélia passava na rua, era uma atração, todo mundo admirava. Era muito
bonita, tinha uma altivez... Era muito respeitada, era uma negra, mas muito
respeitada. Tinha um chácara nas proximidades de onde hoje é o estádio de
futebol [...]. Os Cazumbá sempre foram pessoas muito consideradas em São
Gonçalo: bancários, advogados, professores. Tinha uma escola de
alfabetização na rua São Benedito que era dos Cazumbá. Quando eu fui
secretário de Educação, tinha muitos professores Cazumbá.410
Nas narrativas os informantes destacam racialmente os Cazumbá, sobressaindo a
sua negritude e a posição social de proeminência material e simbólico na cidade. Deste
modo, escapam das memórias e dos documentos cartoriais os movimentos sociais da
SILVA, José Bento da. “Cazumbá: História e memória no Recôncavo Baiano(1888-1950)”. Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011.
409
Entrevista com Maria da Invenção Cazumbá, 78 anos, 27/02/2011. Realizada por: José bento Rosa da
Silva e Jacimara Souza Santana. In.: SILVA, José Bento da. “Cazumbá: História e memória no Recôncavo
Baiano(1888-1950)”. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011.
410
Edivaldo da Silva Daltro, 69 anos, professor aposentado, hoje é proprietário de uma papelaria. Foi
Secretário de Educação de São Gonçalo dos Campos. É um pesquisador sobre a História de São Gonçalo,
sobretudo com relação ao padroeiro, São Gonçalo do Amarante. In.: SILVA, José Bento da. “Cazumbá:
História e memória no Recôncavo Baiano(1888-1950)”. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História
– ANPUH • São Paulo, julho 2011.
408
126
segunda e terceira geração desta família, possibilitando o vislumbramento do espaço em
que viviam.
Rastreando os movimentos sociais da segunda e terceira geração dos Cazumbá
Em 5 de fevereiro de 1891, morreu João Cardozo Cazumbá, com 64 anos de idade,
de moléstia interna411. Na ocasião, a esposa Rita Gonçalves Oliveira, como cabeça,
constituiu Honório Alves Pereira seu procurador para representá-la na repartição dos
bens.
O ato de partilha, de 18 de março de 1891, anexa a um pedido de embargo contra
a invasão de suas terras pelos vizinhos (será discutido adiante), informa o nome dos
herdeiros, o valor total dos bens e a quantia destinada a Rita Gonçalvez Cazumbá,
Gonçalo Cardozo Cazumbá e Joana Cardozo Cazumbá, partes interessadas no processo
de embargo.
O valor dos bens deixados por João Cazumbá foi de 5.800,00 (cinco contos e
oitocentos mil reis). A viúva recebeu a quantia de 2.760.634 (dois contos e setecentos e
sessenta mil e seiscentos e trinta e quatro mil reis), a outra parte foi dividida igualmente
entre os 8 filhos. Ficando a meação distribuída da seguinte maneira: recebeu a viúva,
300,00 reis pela casa de morada da fazenda Cruz, avaliada por 400,00 reis; 375.938 reis
nas terras da fazenda, avaliada por 700,00 reis. Também recebeu os acessórios da fazenda,
uma pressa de enfardar fumo e um carro, por 50 mil reis cada; recebeu as cercas do valado
da fazenda, por 60 mil reis; oito bois de carro, avaliados por 300 mil; um sobradinho,
situado na Vila de São Gonçalo, por 250 mil reis; recebeu 894.694 reis nas terras da
fazenda Vargem, avaliados por 1.794.00 reis; cercas e valados desta fazenda, por 200 mil
reis; recebeu 178.124 reis por direito titular 412.
Gonçalo Cardozo Cazumbá recebeu 234.602 reis nas terras da fazenda Cruz,
avaliadas por 300 mil reis; três bois, no valor de 90 mil reis. Já Joana Cardozo Cazumbá
ficou com 100 mil reis na casa de morar da fazenda Cruz, avaliada por 400 mil reis; 100
mil nas terras da mesma fazenda, avaliadas por 700 mil reis; três bois, por 90 mil reis;
34.602 reis da cabeça do casal413. Os demais filhos não estão abrangidos neste documento.
411
BAHIA, Livros de Óbito/1891. Arquivo da Arquidiocese de Feria de Santana.
Ato de Partilha de João Cardoso Cazumbá, 1891, Arquivo do Fórum João Mendes, São Gonçalo dos
Campos.
413
Ato de Partilha de João Cardoso Cazumbá, 1891, Arquivo do Fórum João Mendes, São Gonçalo dos
Campos.
412
127
Infelizmente esta exclusão deixa uma lacuna para ser preenchida por meio das
comparações e suposições, sendo assim, pode ser sugerido que os demais filhos
receberam partes iguais entre si, das terras da fazenda Cruz e Vargem, bem como,
acessórios, gados e benfeitorias.
Portanto, através dos dados descritos acima nota-se que a família fazia parte dos
pequenos proprietários terras de São Gonçalo dos Campos. Observa-se, como já foi
mencionado acima, a relação com a terra, a produção de fumo, mandioca e a criação de
bois comum entre os possuidores desta região – ver o segundo capítulo – entretanto a
singularidade e complexidade desta experiência reside nos caminhos sinuosos que
trilharam e o alcance da liberdade através da compra de terras, diferente daqueles que
continuaram submetidos as relações de rendeiros nas fazendas que eram escravos, como
foi relatado no terceiro capítulo.
A peculiaridade deles, talvez, esteja não na condição que traziam por causa da
escravidão, que lhes é comum, mas sim por continuarem nas proximidades da fazenda
em que a mãe era escrava, se relacionando com antigo senhor e, tendo ligação com parcela
dos anteriores donos terras e escravos, agora, na conjuntura da liberdade, outrora
alcançada. Exemplo disso, observa-se na assinatura de Antônio Gonçalves de Oliveira
(nome do senhor de Rita Gonçalves de Oliveira), representando Claudiana Cardozo
Cazumbá, na partilha, por ela não saber escrever.
Outros proprietários de terras, provavelmente brancos, assinaram a rogo para
viúva e filhos de João Cardozo Cazumbá. A rogo de Rita assinou Onorório Alves Pereira;
de Joaquina Cazumbá, José Joaquim de Oliveira; de Francisco Cazumbá, assina Manoel
Ferreira de Oliveira; de Gonçalo Cazumbá, Galdino Gonçalves de Oliveira; de Vicente
Cazumbá, Cândido Gonçalves de Oliveira; de Joana Cazumbá, José Ferreira de Oliveira
e de Manoel Cazumbá, Joaquina Ferreira de Oliveira. Marcolino Cazumbá assina por si
mesmo414. Pelos sobrenomes é possível identificar esses sujeitos em outros momentos
cruzando experiências com essa família. Como Manoel Ferreira de Cerqueira que
comprou a fazenda conjuntamente com João e, Ana Joaquina Ferreira de Cerqueira que
lhe vendeu o escravo. É possível que os demais tenham algum parentesco com Antônio
Gonçalvez, uma vez que trazem o mesmo sobrenome. Em outros termos, tais arranjos
simboliza o prestígio social conquistado pelo tronco da família e que continua sendo
acionado por seus descendentes ao estabelecer contatos com a sociedade.
414
Ato de Partilha de João Cardoso Cazumbá, 1891, Arquivo do Fórum João Mendes, São Gonçalo dos
Campos.
128
Assim, no dia 2 de fevereiro de 1895, Rita Gonçalvez Cazumbá, Gonçalo Cardozo
Cazumbá e Joana Cardozo Cazumbá solicitaram ao Juiz Preparador Doutor Manoel
bernardos Calmon, através do advogado Cristóvão Teles Barreto, que embargasse a
invasão das terras, derrubando as matas da Fazenda Terra Dura, pelo vizinho Francisco
Lourenço de Almeida e sua mulher D. Angélica de Almeida. Também solicitaram que
indenizassem com dois contos e quinhentos mil reis os estragos feitos415.
Alegaram que seus terrenos eram melhores, por isso o casal estava invadido.
Declararam que as terras foram herdadas do marido e pai, por ocasião da morte, todavia
possuíam mediante a compra de 33 braças e meia de terras, em 30 de maio de 1874, a
dona Maria Joaquina Silva, viúva de Antônio José da Silva, pela quantia de 300 mil reis.
Destacaram que os limites estavam bem demarcados. Neste sentido a nascente delimitava
com a estrada real, sul pelas terras de Antônio Gonçalves de Oliveira, poente pelo Rio
Jacuípe, ao norte com terras de Helena Maria da Cruz416, não havendo dúvida em relação
a suas possessões.
O juiz solicitou ao oficial de justiça, Saturnino de Couto Ferraz, que entregasse a
intimação ao casal afim de embargar, e ao mesmo tempo comparecerem à audiência, dia
15 de fevereiro de 1895, para um acordo entre as partes. Na entrega da oficio o oficial
pode observar a obra e declarou que “encontrou na fazenda Cruz uma porção das terras
roçadas na extensão de cinco tarefas mais ou menos frente com medidas com mesmo
comprimento”.
Embora recebesse o oficio, Francisco não compareceu na audiência. Rita, Gonçalo
e Joana, comprovaram que eram possuidores das terras incluindo ao processo o ato de
partilha, bem como, utilizaram testemunhas: Estevão Alves Brandão, 40 anos de idade,
morador da freguesia; José Menezes Borges, 41 anos de idade, solteiro, natural e morador
do termo. Manoel Clementino Bispo, 30 anos, solteiro, lavrador, natural e morador do
termo; Anselmo Bispo, 65 anos, viúvo, lavrador, natural de Conceição da Feira, morador
de São Gonçalo dos Campos; Francisco Machado Cerqueira, 55 anos, solteiro, lavrador,
natural e morador na freguesia; Policarpo Ferreira de Sant’ Anna, 33 anos, casado,
lavrador, natural e morador desta vila.
415
Termo de Embargo, Rita Gonçalves Cazumbá, Joana Cardoso Cazumbá e Gonçalo Cardoso Cazumbá,
1895, Arquivo do Fórum João Mendes, São Gonçalo dos Campos.
416
Termo de Embargo, Rita Gonçalves Cazumbá, Joana Cardoso Cazumbá e Gonçalo Cardoso Cazumbá,
1895, Arquivo do Fórum João Mendes, São Gonçalo dos Campos.
129
As testemunhas declararam que a família Cazumbá era possuidora das terras, e
que a aquisição foi através das compras realizada por João Cazumbá. Que Francisco
Ferreira de Almeida (conhecido Francisco Lourenço) não só invadiu as terras
pertencentes aos Cazumbá, bem como desobedeceu às ordens judiciais de embargo as
obras feitas pelos operários do casal. Ainda, Policarpo afirmou que ele morava no sítio
denominado Rancho do Salgado, que faz parte da fazenda Cruz e, portanto, é testemunha
de que Francisco Lourenço continuou com as obras no roçado mesmo depois dos três
embargos.
No dia 19 de fevereiro foi certificado pelo oficial de Justiça Gil Raimundo de
Menezes que Francisco Lourenço, sua mulher e seu rendeiro Raimundo de Tal estavam
cientes de tudo.
Bem, depois de todas comprovações, certo seria que a família ganhasse a causa
judicial, restando a Francisco pagar a quantia pertinente aos danos causados como as
despesas com os autos, engano. Francisco Lourenço respondeu o inquérito, declarando
que estava enfermo, alegando por que motivo não teve conhecimento a respeito das
intimações judiciais. Bem como afirmou que se chama Francisco Ferreira de Almeida e
não Francisco Lourenço de Almeida, sendo este o segundo motivo pelo qual não
compareceu as audiências. Argumenta, ainda, que na cidade não possuía advogado, e por
isso desejava fazer sua própria defesa.
Na defesa, Francisco, contesta a posse das terras pela família. Afirma que João
Cardozo Cazumbá comprou uma pequena parte das terras, portanto as terras declaradas
pela viúva e filhos não é real. Afirma que na folha três vê-se uma escritura constando a
compra de trinta e três braças e meia das terras por João Cazumbá, restando 17 braças
pertencentes aos herdeiros da vendedora D. Maria Joaquina. Assevera que este restante
não pertence aos Cazumbá, e que não houve demarcações dos limites nas ditas terras e
matas pertencentes a fazenda Terra Dura e fazenda Cruz. Francisco constitui sua defesa
sem para isso expor qualquer prova que evidenciasse a veracidade de sua argumentação.
Neste contexto de acusação e defesa aparece anexo ao ato de embargo um
documento a rogo de Rita e seus filhos desistindo do processo. Não é sabido se este
documento é verdadeiro, tudo indica que tal documento foi manipulado por Francisco
Lourenço.
Rita Cazumbá, Joana Cazumbá e Gonçalo Cazumbá reabre o processo alegando
que o termo de desistência não foi assinado por pessoas a pedido deles, ainda mais que
não constava entre os assinantes seu filho Marcolino Cardoso Cazumbá, quem confiava
130
e sempre assinava seus documentos. Constam no termo de desistência a assinatura a rogo
de Rita Cazumbá, Firmino Borges Falcão, a rogo de Gonçalo Cazumbá, Felipe Borges
Falcão e a rogo de Joana Cazumbá José Pedreira de Cerqueira.
Depois desta alegação retornei aos demais documentos para ver se era costume
daqueles sujeitos assinar a rogo para a família, no próprio auto notei que não constavam
assinaturas dos Falcão nos documentos anteriores. Sem provas suficientes o processo foi
reaberto e conduzido a comarca de Cachoeira. Contudo, a família Cazumbá perdeu a
causa, restando pagar todas despesas do processo.
Um aspecto curioso relacionado a família escolhida é o fato de que, nas trajetórias
de seus membros ao longo de gerações constata-se diversos movimentos ligados a terras
naquela comunidade. Após a geração de João Cardozo Cazumbá, seus descendentes que
permaneceram na fazenda Cruz, passou por diversos conflitos para assegurar a posse
delas. Houve até que fazer acordo para que as disputas e invasão de territórios cessassem.
Nesse sentido, a família que constitui, aqui, protagonista deste estudo, parece abarcar,
assim entendo, em suas experiências cotidianas diversos fluxos sociais em torno da
propriedade de terras, dando um outro sentido a ideia de liberdade.
Infelizmente a falta de documentos não permite rastrear as múltiplas relações dos
sujeitos, apesar disso, de maneira tapuia seguirei reconstruindo a atuação dos filhos de
Cazumbá na obtenção de terras nos anos finais do século XIX até 1920.
Conforme registros os cartoriais, a segunda geração continuou comprando terras
próximas ou limitando com as terras compradas por João Cardozo Cazumbá. Como
exemplo disso, tem-se a compra feita por Marcolino Cardozo Cazumbá, 27 de abril de
1892, de Francisco Pedro da Silva, casado com Joanna Maria de Jesus, uma casa
localizada na rua Conde d´Eu, número 12, com uma porta e duas janelas na frente, coberta
de telhas, com duas braças e meia de frente e dez de fundos, em terreno parceiro417,
pertencendo a Antônio de Figueiredo Mascarenhas, pela quantia de 300$000 reis418.
Apesar da construção ser sofisticada, diferenciando de moradias mais simples, a casa não
fora estabelecida em terreno próprio, mas de um terceiro possuidor.
Três anos depois, 12 de julho de 1895, Vicente Cardozo Cazumbá, comprou uma
posse de terras de lavoura com casa de morar na fazenda “Cruz, ” pela quantia de 300 mil
417
418
Terreno parceiro significava que ele não era vendido, apenas a casa.
BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro n. 11, p. 53 e 54.
131
reis, de Apolinário Julião Ferreira e sua mulher Elisbana Mendes Ferreira 419. De acordo
a descrição no registro as terras possuíam,
setenta e cinco braças de largura, e o comprimento principiando do vallado da
fazenda Cruz até o riacho do “Acu” onde se acha o rumo e por outro lado,
dividindo-se com as terras da fazenda “Cruz”, vendem a dita posse de terras
com a casa de morar420.
Por certo, os filhos queriam aumentar suas posses com novas aquisições de terras.
Pois para além da vida nas lavouras de fumo, de gêneros de subsistência e da criação de
gado, havia uma heterogeneidade de ações que dava significado as relações sociais para
o desencadeamento da liberdade. Mesmo na sociedade clássica, onde floresceu uma
diversidade de propriedades rurais, com a presença de pequenos lavradores, rendeiros,
meeiros, agentes egressos da escravidão, impunha aos libertos em 1888 e seus
descendentes laços de dependência aos antigos possuidores locais. Consequentemente, a
compra de propriedades fundiárias representava liberdade, autonomia no estabelecer
novos modos de vida e ritmos de trabalho, descanso, cultura e ética familiar e soberania
da unidade doméstica421.
O próprio fato de João Cardozo Cazumbá ter acumulado um cabedal suficiente
para aquisição de terras, ter reconhecido os filhos que tivera com uma escrava, ter, Rita,
adotado o sobrenome Cazumbá, feito procuração e inventariado os bens deixados pelo
marido já constituem elementos de excepcionalidade em relação aos demais que ali
viviam. Se não se trata de uma situação incomum, tampouco era generalizada entre os exescravos e descendentes da região.
Assim, continuou os descendentes adquirindo terras. No ano 1896, Manoel
Cardozo Cazumbá, lavrador, também filho de João Cardozo Cazumbá com Rita Alves
Gonçalves, comprou de Venceslai Pereira de Sena um sítio denominado “Cruz”, com
terras próprias para lavoura, casa e benfeitorias, pela quantia de 530$000 reis. O terreno
se divide pela frente com a Estrada Real da Feira de Sant´Anna pelo fundo com a Estrada
de Ferro da Cachoeira à Feira. Por um lado, com o corredor divisório das terras de Chico
Lourenço e com os herdeiros de Cazumbá, e pelo outro lado com as terras de Vicente
Cazumbá422. Neste registro de maneira literal observa-se a proximidade entre os terrenos
419
BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 9, p. 74 e 75.
BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 9, p. 74 e 75.
421
FRAGA, Op. Cit. RIOS e MATTOS, 2005, MATTOS, 2005, RIOS E MATTOS, 2007.
422
BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 13, p. 18.
420
132
da família. Nesta descrição as terras do sítio Cruz fazem divisão com as terras do irmão
Vicente Cazumbá.
Continuando a análise é possível ter uma melhor compreensão do valor da terra
para os membros da família. Era importante a obtenção de posses fundiárias, mesmo que
não possuíssem recursos materiais para isso. Como foi o caso de Manuel Cazumbá, caso
descrito no parágrafo acima. Este indivíduo aparece comprando o Sítio Cruz, entretanto,
o detalhe que ele possuía não dinheiro para pagar a quantia, sendo assim hipotecou o
referido sítio, pelo valor de 448$000 reis, a Francisco José Pedreira, negociante e
proprietário fundiário. O empréstimo foi pelo prazo de um ano, vencendo o prazo entraria
juro de 1% ao mês até total reembolso423.
As compras das terras constituíam uma ocorrência entre os descendentes de João
Cazumbá, bem como, faziam os fazendeiros, lavradores e negociantes abastados da
cidade. Ao mesmo tempo, incorporavam ao patrimônio os utensílios que faziam parte das
fazendas fumageiras, tais como armazéns, casas de farinhas, acessórios, benfeitorias,
entre outros. Ainda mantinham em suas propriedades rendeiros, consistindo no eixo
básico da organização entre os proprietários da região. Igualmente, realizavam o trabalho
familiar, cultura que perpassava em meio a multiplicidade das camadas sociais ligadas à
terra, exceto os possuidores de grandes propriedades.
Assim, em 20 de março de 1898, Manoel Cardozo Cazumbá comprou uma casa
no lugar chamado de “Cruz”, de 600$000, de Francisco Ferreira de Almeida e sua mulher
Angélica Gomes Almeida. Esta casa estava situada nos terrenos dos herdeiros do finado
João Cardozo Cazumbá, a qual casa tinha cinco portas e duas janelas424. Impressionante
é o valor da casa no terreno foreiro, não obstante a quantidade de portas revela que se
tratava um imóvel grande. Outro ponto que merece questionamento a presença do casal
como moradores em uma casa situada no terreno pertencente a João Cazumbá. Será que
eram rendeiros, ou pequenos proprietários? Bem, recorrendo os registros anteriores,
observa-se a presença de proprietários de casas em terrenos foreiros.
A escritura contém dados que informam que o terreno onde a casa fora edificada
era de lavoura. Ainda que estava empreendida em uma hipoteca que fizeram ao cidadão
Joaquim de Oliveira Torres, em 4 de março de 1895, entretanto já havia pago parte da
dívida, equivalente ao valor da casa, ao hipotecário425.
423
BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 13, p. 19.
BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 15, p. 28 e 29.
425
BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 15, p. 28 e 29.
424
133
Pois bem, se a representação dos Cazumbá como família de proprietários não
aniquilou os conflitos como os demais possuidores, a exemplo do Ato de Embargo contra
Francisco Lourenço aqui analisado. Soma-se a esse o acordo a respeito das demarcações
e limites das terras das fazendas Cruz e Terra Dura, em 05 de setembro de 1903.
Odilon Borges Falcão proprietário da Fazenda Cruz juntamente com Manoel
Ferreira de Cerqueira e sua mulher Maria Joaquina; Rita Cazumbá, Gonçalo Cazumbá e
Joana Cazumbá proprietários da fazenda Terra Dura; Tibúrcio Alves Barreiros e sua
mulher Dona Maria Guilhermina Barreiros, proprietários da fazenda Cruz lavraram
escritura delimitando as divisas de suas terras. Do documento depreende que os Cazumbá
fizeram acordo perdendo parte da lagoa Tanquinho e do acesso ao Rio Jacuípe426.
Observa-se os traçados da planta original das fazendas e das demarcações em litígio,
abaixo.
Figura 9. Planta feita pelo Engenheiro Manoel Accioli Ferreira da Silva
Fonte: Planta feita pelo Engenheiro Manoel Accioli Ferreira da Silva, 1903. In.: Termo de demarcações
e limites das terras das fazendas Cruz e Terra Dura.
No termo consta que a partir daquela escritura os limites das fazendas Cruzes,
Terra Dura e Cazumbá seriam os seguintes:
“partindo do corredor entre os dois valados pertencente a Odilon e os herdeiros
de Cazumbá e segue rumo 70º NO até outro marco de pedra e mede 187 m.
Dali seguindo com os mesmos 77º NO e pelo corredor outro marco de pedra,
ficando a direção do rumo que mede mais 180.00 m. Continuando o referido
rumo 74º NO e acompanhando e respeitando os valados chega a uma cerca de
426
Termo de demarcações e limites das terras das fazendas Cruz e Terra Dura, 1903.
Arquivo Cartorial do Fórum Ministro João Mendes.
134
arame pertencente a Odilon, medindo 229.00m. Processeguindo na mesma
direção marginais a dita cerca até o marco de uma pedra medindo 864.00m.
Neste ponto existe uma lagoa denominada Tanquinho, cujas margens Este está
colocado o último marco. Ai pertencentes aos herdeiros confinantes,
acordaram fazendo o desvio Este 7º. Em obediência a este acordo segue até as
margens do Rio Jacuípe, medindo mais 4.540m”.
A partir dos dados contidos nos documentos e a representação cartográfica de São
Gonçalo criei um mapa na tentativa de melhor destacar as demarcações e limites das
fazendas antes e depois do acordo.
Mapa 4. Demarcações das fazendas Cruzes, Terra Dura e Cazumbá
Fonte: USGS. Serviço Geológico do Governo dos Estados Unidos. Acessado no dia 3 de junho de 2014
em: http://earthexplorer.usgs.gov/
Aqui entra alguns questionamentos: quais motivos levaram esses proprietários
produzir uma escritura demarcando os limites das propriedades? Por que as terras dos
descendentes dos Cazumbá eram disputadas pelos vizinhos? Por que aceitaram outras
demarcações e não as antigas? Retomo, a partir da reconstrução e análise dos indícios
até aqui encontrados, que estes personagens estavam inseridos em complexas relações,
especialmente com a terra. Sua genealogia - escrava, proprietário de terra e de escravo e
demais sujeitos históricos egressos da escravidão - distinguia a identidade social da
família, fazendo-os participantes, ora das experiências dos donos de terras, ora das
relações dos demais descendentes de escravos residentes em São Gonçalo.
135
Participando das experiências dos donos de terras, Vicente Cardozo Cazumbá,
casado com Teodora Lima Cazumbá, em 16 de julho de 1904, assinaram a escritura de
hipoteca da quantia de 1:700$000 reis ao “cidadão” Francisco José Pedreira. Como
garantia foi dada as terras, casas e benfeitorias dos sítios de lavoura denominadas “Canto
Escuro” e “Alambique” situados na Freguesia de São Gonçalo dos Campos. Sendo a
divisa das terras: pela nascente com terrenos de João Ferreira do Nascimento; poente com
terrenos da Fazenda Alambique, de Gregório de “Val”427; sul com terras dos Sítios
denominados Gravatá e nascente com terrenos da Fazenda denominada “Piayi”428. Como
destaca Ginzburg429, a microanálise é um poderoso método para revelar coisas que o
pesquisar como outro olhar não teria percebido. Deste modo, os sinais na escritura de
hipoteca possibilitam sugerir que os descendentes de João Cazumbá, nos primeiros anos
do século XX, teriam acrescido significativamente suas possessões, a exemplo: os sítios
Canto Escuro e Alambique.
Igualmente a Fazenda Terra Dura430, localizada na Cruz, foi comprada, em 17 de
junho de 1905, por Gonçalo Cardozo Cazumbá, de Carolino Magalhães. Os registros
indicam que Gonçalo esta propriedade territorial estava situada próximas as terras que
havia feito acordo a respeito das demarcações e limites dois anos anteriores, observe que
os limites dessas são os mesmos descritos no Termo de demarcações e limites das terras
das fazendas Cruz e Terra Dura, 1903. Sendo demarcado os seguintes: pelo poente com
terras do Coronel Tibúrcio Alves Barros, pelo Sul pelos terrenos da Fazenda Terra Dura
de Manoel Ferreira de Oliveira, e ao norte divide-se com terrenos de Odilon Borges
Falcão431. O registro consta, ainda, que no terreno continha uma casa pertencente a José
Alves Barreiros.
Os indícios conduziram a outro nome pertencente à família Cazumbá. Luiz
Cardozo Cazumbá, negociante e residente em São Gonçalo dos Campos, em 17 de maio
de 1910, comprou uma casa na Rua Vigário Galdino Borges, de dona Inez Amerina de
Mattos, lavradora e residente em Santo Amaro 432. A casa, número 28, estava arruinada,
com uma porta e duas janelas de frente em terreno foreiro 433, que havia sido comprada de
Pedro Domingos de Castro.
427
Não tenho certeza se era esse o sobrenome, o documento não trazia uma grafia clara e legível.
BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 20, p. 57
429
GINZBURG. Emblemas e Sinais,
430
BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 21, p. 98 e 99.
431
BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 21, p. 98 e 99.
432
BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 24, p. 83
433
O terreno não pertence ao dono da casa.
428
136
A respeito de ascendência de Luiz Cardoso Cazumbá, não sei se segunda ou
terceira geração, aparece nas primeiras décadas do século XX como um dos abastados
negociante de fumo de São Gonçalo dos Campos. Em 28 de abril de 1914 434 compra outra
casa de número 4, com uma porta e três janelas de frente, dessa vez na rua da Alegria,
que estava em estado de ruína, da proprietária D. Maria Joaquina Ferreira de Cerqueira,
no valor de 500$000 reis. Neste documento Luiz Cardoso Cazumbá declara está morando
na capital do Estado, sendo a compra foi feita pelo representante e procurador Coronel
Juventino Peixoto Lacerda, negociante, representante político e residente em São Gonçalo
dos Campos435.
Em outro livro de 1916 comprou uma casa na Rua Capitão Antônio Carlos, nº 9,
edificada em terreno próprio sobre esteios e coberta de telhas, com três portas de frente e
armação para negócio pela quantia de 1:600$000 reis. Os vendedores eram o Cirurgião
dentista Luiz Pessoa da Silva e sua mulher Dona Benildes Pedreira Pessoa da Silva,
representados pelo procurador Coronel Juventino Peixoto Lacerda436.
Apesar de ser um bom acumulador de bens e estar entre os proprietários do
município não esperava encontrar, Luiz Cardozo Cazumbá, no jornal “O Campesinato”,
que circulava em São Gonçalo na década de 1920, entre as indústrias fumageiras,
especificamente a firma Pedreira da Silva & Compª. para exposição mundial de fumo, em
Londres. O colunista, em 1 de abril de 1921, expunha que “Tambem vae concorrer com
diversos produtos para a mesma exposição o nosso amigo capitão Luiz Cardozo Cazumbá” 437.
Participou da diretoria do clube de futebol “Sport Club Nacional”, como tesoureiro 438.
Além disso, foi parabenizado por criar uma Escola Noturna Gratuita para alfabetização
de adultos, sendo às aulas das 19 às 21 horas, em sua residência 439.
Ainda neste jornal aparece como proprietário de uma casa na rua 13 de maio,
possuidor no mercado municipal de algum ramo de indústria e profissões, sendo cobrado
deles os impostos municipal e estadual, respectivamente440. Portanto, Luiz Cazumbá, não
434
BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 27, p. 53
BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 27, p. 53 Ver também: TEIXEIRA &
ANDRADA, op. Cit., p. 81.
436
BAHIA, Arquivo do Fórum Ministro João Mendes, Livro 28, p. 38
437
O Campesinato, Folha semanal e Independente. Ano 2, nº 67. p. 4. 01/04/1921. Diretor e proprietário
Alberto Gonçalves. Redação e oficinas Rua 13 de maio, nº 5.
438
O Campesinato, Folha semanal e Independente. Ano 2, nº 69. p. 3 e 5. 15/04/1921. Diretor e proprietário
Alberto Gonçalves. Redação e oficinas Rua 13 de maio, nº 5.
439
O Campesinato, Folha semanal e Independente. Ano 2, nº 69. p. 6. 15/04/1921. Diretor e proprietário
Alberto Gonçalves. Redação e oficinas Rua 13 de maio, nº 5
440
O Campesinato, Folha semanal e Independente. Ano 2, nº 72. p. 4. 06/05/1921. Diretor e proprietário
Alberto Gonçalves. Redação e oficinas Rua 13 de maio, nº 5.
435
137
foi apenas um proprietário de terras, mas o “ilustre conterrâneo”, responsáveis ações
socioculturais e políticas em São Gonçalo dos Campos.
Infelizmente os indícios cessaram e, por isso, não foi possível seguir os laços
afetivos e matrimoniais construídos pela família Cazumbá. A partir do depoimento de
Teófilo Cazumbá, notei que eles preferiram estabeleceram laços entre pessoas próximas
ou parentes. Como foi o caso de Nel (Manoel) Cazumbá, casado com “Maria Cerqueira
Cazumbá, filha de Gonçalo Cazumbá e de sua mulher Maroca”. O casal tivera outros
filhos: João Cazumbá, Celino Cazumbá, Manoel Cazumbá. Já o seu pai Nel era filho de
Silvano Cazumbá e Justina Cazumbá441, e irmão de Nelson Cazumbá, Antônio Cazumbá,
Geraldo Cazumbá. Assim nas reminiscências da memória Maria Cazumbá aparece como
filha de Gonçalo, terceira geração. Já Silvano Cazumbá não foi rememorado os seus
ancestrais, contudo, o informante declarou que ambos eram primos.
Figura 10
Maria de Lordes Cazumbá, 3ª geração, Escrivã do Cartório do Fórum Ministro João Mendes, São Gonçalo
dos Campos-BA, foto tirada em 2011. Fonte: Arquivo Pessoal
Na imagem de Maria de Lordes Cazumbá, observa-se seus traços raciais
nitidamente africanos. Faz parte da 4ª geração, sendo neta de Gonçalo Cardozo Cazumbá.
Morava na Rua São Benedito, localização de uma das propriedades adquirida pelos seus
441
Entrevista com Teófilo Cazumbá, concedida em 23 de março de 2011.
138
ancestrais. Observa-se o destaque social da família, uma vez que parte desta geração
ocupa cargos importantes em São Gonçalo dos Campos, como em outras cidades da
Bahia, bem como lembrou José Cazumbá, irmão de Lourdes Cazumbá e comissário de
menor da cidade442.
Cruzando a memória com os dados contidos no inventário 1946, inventariante
Manoel Sobrinho Cazumbá e demais filhos, foi possível seguir as relações afetivas de
Gonçalo Cardozo Cazumbá. Pois bem, ele tivera 10 filhos naturais, reconhecidos entre
1915 e 1917: Manoel, Silvino, João, Carolina, Demétrio, Cecília, Plácida, Joanna, Maria
e Lucinda. Declararam que Gonçalo morreu em 09 de agosto de 1945, com 91 anos de
idade443.
Figura 11
Josenilda Cazumbá e Jucileide Cazumbá. 6ª geração, moradoras da Fazenda Pedrinhas. Fonte Arquivo
Pessoal, tirada em 2011.
442
José Cazumbá, Comissário de Menores, Entrevista concedida em 12 de abril de 2008
Inventário de Gonçalo Cardozo Cazumbá. 1946. Arquivos Cartoriais. Fórum Ministro João Mendes. São
Gonçalo Dos Campos.
443
139
Na imagem acima observa-se a 6ª geração da família Cazumbá. Elas são
descendentes de Gonçalo Cardozo Cazumbá, sendo netas de Teófilo Cazumbá, um dos
informantes desta pesquisa. Nota-se, a identidade negra das meninas, bem como seu
destaque social, conquistado pela luta da família nas compras de terras e, através do
trabalho na roça. As fontes escritas e as narrativas da família e da população da cidade
destacam essas experiências em torno da produção fumageira.
Merece menção os elementos não lembrados pela memória 444, contudo o
cruzamento outras pistas destacam aspectos dos laços afetivos da segunda geração da
família. Observa-se que Gonçalo teve dez filhos que só foram reconhecidos anos depois
ao nascimento, também que não constituiu laço matrimonial. Outro importante indício é
a despeito da idade em que faleceu, sendo com 91 anos, teria nascido em 1855, em plena
sociedade escravocrata. Entretanto, como falta informações contenho-me, pois são
necessárias maiores investigações.
444
POLLAK. Memória e esquecimento,
140
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do estudo dos objetos materiais descritos em inventários, na segunda
metade do século XIX e primeiras décadas do século XX, foi possível perceber relações
sociais, as escolhas, os costumes, os bens materiais, a população, a economia, a vida
cotidiana dos moradores da freguesia e as modificações das relações de trabalho
escravo/livre e discutir sobre as experiências da família Cazumbá.
Os Campos da Cachoeira, palco de produção fumageira, de gênero de subsistência
e criação de gado, desde do século XVII, estava formada por uma diversidade de
propriedade fundiária, e uma população composta de livres, senhores, escravos,
lavradores de fumo, pequenos, médios e grandes proprietários e rendeiros.
A diversidade social e produção de fumo, ao mesmo tempo que favoreceu a
manutenção dos proprietários fundiários, abriu portas para que despossuídos
acumulassem recursos financeiros suficientes para a aquisição de bens, no caso a terra.
Assim, as dessemelhantes riquezas, imprimiu um estilo de vida, entre os que detinham
maiores extensões territoriais, mais sofisticado, contendo entres os bens comuns as
diferentes categorias sociais, objetos como vestuário, móveis, santos e utensílios
domésticos, joias.
Portanto, a análise da família Cazumbá e de outros indivíduos de cor possibilita
uma melhor compreensão da experiência de vida, de trabalho, do acesso à terra e o
significado da liberdade conferido por eles. Dessas trajetórias observa-se que a terra foi
um “elemento essencial” à sobrevivência, sendo que, a tradição e o costume,
especialmente, a Lei de 1850, foram empecilhos enfrentados por muitos, para o acesso ao
bem.
Assim, na segunda metade do XIX, com o sistema escravista em franco declínio,
pequenos proprietários “adaptavam o uso da terra e as práticas agrícolas não só às
exigências de lavouras específicas (...), mas também às condições locais e à expansão do
mercado interno”445. A exemplo disso, às dificuldades em gerar o sustento a família,
fizeram os indivíduos cultivarem com seus antigos senhores relações de sujeição,
continuando nas fazendas que antes eram escravos como lavradores livres.
445
BARICKMAN, op. cit. p. 31
141
Os indivíduos de cor estabeleceram as relações em torno das atividades
fumageiras de beneficiamento, preparação do fumo e nas diversas experiências entre os
sujeitos sem posse de terras e proprietários no Recôncavo. Também os estudos revelaram
a continuidade a respeito da organização social nas fazendas, na primeira década do
século XX, que, de um modo geral, envolvia a relação entre proprietário e rendeiro,
continuando, a terra, como um principal bem patrimonial e um importante meio de
produção. Nas fazendas faziam todas atividades ligadas a roça fumageira e de
subsistência. Eram rendeiros, mas faziam trabalhos de ganho, e meação, ou ainda,
vendiam a safra da produção na vila da Freguesia.
Portanto, observa-se que a sobrevivência dos descendentes de escravos nas
propriedades fumageiras de São Gonçalo dos Campos não foi fácil, bem como para os de
outras regiões do Brasil. Além dos desmandos dos donos de fazendas e da lida diária,
precisavam driblar outros problemas, não menos importantes em seu cotidiano, como a
alimentação e a moradia – neste caso a submissão ao trabalho rendeiro em propriedades
fumageiras, onde garantiam a autossubsistência. Contudo, é interessante advertir que esse
contexto representa a continuidade da história colonial e imperial baiana.
As alterações, do mesmo modo, foram ocorrendo ao longo do tempo através das
estratégias utilizadas por homens e mulheres da região, como foi visto nos jogos das
mulheres rendeiras para continuarem a adquirirem posses de terras, nas compras de terras
e na grande representatividade social da família Cazumbá nos anos finais do século XIX
e iniciais do século XX.
Para a família Cazumbá apenas ter acesso a terras, fazendo roças nas fazendas
vizinhas, por mais que garantisse a liberdade, não configurava literalmente. Para esses a
experiência de liberdade denotava a compra terras e o trabalho nelas. Sendo assim, João
Cardozo Cazumbá e seus descendentes, a partir de 1874 a 1920, adquiram parte
significativa das fazendas Cruz e Terra Dura.
Por fim, deve ser levado em consideração que “essas vidas minúsculas também
participam, à sua maneira, da grande história da qual elas dão uma versão diferente,
distinta, complexa”446, sendo assim, essas trajetórias devem ser articuladas com o todo da
sociedade para que as relações sociais e os significados da liberdade sejam
compreendidos de forma mais refinada.
446
REVEL, Op. Cit. p. 47.
142
Diante dessa situação, os indivíduos de cor podiam optar por poucas
possibilidades de subsistência. Nos casos aqui estudados podia se tornar rendeiro das
fazendas fumageiras, e, com excepcionalidade acumular dinheiro para comprar terras.
Entretanto, as histórias e rememorações destes indivíduos de cor precisam ser mais bem
exploradas do ponto de vista histórico, permitindo esclarece alguns aspectos relacionados
às lutas enfrentadas e as suas múltiplas relações estabelecidas para conseguir a acessão
social. Este trabalho apresenta-se como contribuição para a ampliação do conhecimento
histórico, igualmente possibilitar o início de uma investigação sobre as experiências
destes indivíduos neste espaço.
143
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