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POLÍTICA CULTURAL NO BRASIL:
DO ESTADO AO MERCADO
Alberto Freire Nascimento*
RESUMO
A existência de uma política cultural administrada pelo Estado como uma forma de ampliar
o acesso, a produção e fruição da cultura, tem cerca de 70 anos. Foi nos anos 30, com a
chegada de Getúlio Vargas ao poder que os temas culturais passaram a ter importância. A
gestão do ministro Gustavo Capanema à frente dos temas culturais no Ministério da
Educação e Saúde foi fundamental para que a cultura deixasse de ser considerada um
ornamento. Os governos seguintes tiveram atuações de avanço e recuo na maneira de
encarar e gerir os temas culturais. O contraponto com a presença estatal no campo cultural
deu-se a partir da década de 1990, quando a perspectiva de um “Estado mínimo” delegou
ao mercado o gerenciamento da cultura brasileira.
Palavras-Chave: Política cultural, cultura, mecenato.
1. ESTADO E CULTURA
Parece haver consenso que a delimitação conceitual sobre a definição do que seja
política cultural, ainda está em construção. Mas esse processo de busca do conceito não
impede a perspectiva de se pensar e refletir sobre essa importante atividade de
gerenciamento do patrimônio simbólico de uma sociedade como é a cultura. Neste trabalho
iremos admitir a política cultural como “programa de intervenções realizadas pelo Estado,
instituições civis, entidades privadas ou grupos comunitários com o objetivo de satisfazer
as necessidades culturais da população e promover o desenvolvimento de suas
representações simbólicas”. (Coelho, 2004)
Os estudos de cultura em sua relação com o Estado brasileiro apontam com certa
unanimidade os anos 30, no governo de Getúlio Vargas (1930-1945), como a primeira
*
Alberto Freire Nascimento é mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Ufba); doutorando do
Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade (Facom/Ufba); professor de jornalismo
da Faculdade da Cidade do Salvador. E-Mail: albfreire@yahoo.com.br
intervenção estatal neste campo. Foi a partir deste período que as atividades voltadas para a
cultura passaram a ter uma presença estatal com ações em vários sentidos.
Ao contrário do período imperial e da primeira República, quando a cultura era
tratada como acessória, a era Vargas foi marcada pela atenção do Estado à atividade
cultural no Brasil, em especial na gestão do ministro Gustavo Capanema à frente do
Ministério da Educação e Saúde (1934 a 1945). Exemplo disso foi a criação de órgãos
culturais importantes como o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(SPHAN), o Instituto Nacional do Livro (INL), o Serviço Nacional do Teatro (SNT), o
Instituto Nacional da Música (INM) e o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE).
Em artigo intitulado “A educação e a cultura nas constituições brasileiras”, Alfredo
Bosi (2004) aponta o tratamento genérico dispensado ao patrimônio simbólico tanto no
Império, na constituição de 1824, como na República, em 1891. A presença do Estado na
cultura incluída na Constituição Federal de 1934 reforça a importância que esta passa a ter
como um tema de interesse do Estado para a nova ordem, representada por Vargas. A partir
de então, a União, os estados e municípios ficaram constitucionalmente autorizados a
“favorecer e animar” o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em
geral.
Em sua gestão, o ministro Capanema cerca-se de expressivos intelectuais e ativistas
da vida cultural brasileira como Carlos Drummond de Andrade, Heitor Villa-Lobos,
Rodrigo de Mello Franco, Cândido Portinari, Lúcio Costa e outros. Esse staff de notáveis e
mais a influência do pensamento modernista de Mário de Andrade conferem à
administração do Ministério da Educação e Saúde (MES) uma atuação inovadora no campo
da cultura, com um viés nacional e nacionalista imprimindo características patriótica, sadia,
otimista e moderna, à cultura brasileira, conforme Williams (2000).
Com essa participação do Estado no gerenciamento da cultura, a era Vargas,
representada pela forte presença de Capanema, executa ações que se inserem na
delimitação de política pública cultural, concebida como “conjunto ordenado e coerente de
preceitos e objetivos que orientam linhas de ações públicas mais imediatas no campo da
cultura”, conforme Calabre (2005).
Entre 1945 e 1964 não há registro da mesma dinâmica Estatal para políticas
culturais como no período anterior. Fato marcante deste tempo é a criação do Ministério da
Saúde e como conseqüência a nova denominação para o MES que passa a chamar-se
Ministério da Educação e Cultura - MEC, de acordo com a Lei 1.920 sancionada por
Getúlio Vargas, em seu segundo governo, em julho de 1953.
A falta de políticas culturais neste período, no entanto, não significa um marasmo
cultural da sociedade. As ações culturais de então, em certa medida, refletem a polarização
do mundo dividido pela guerra fria. Enquanto há uma mobilização para realçar as
diferenças entre o novo e o tradicional na cultura brasileira por segmentos progressistas
como UNE e CPC, a indústria cultural, por outro lado, se fortalece através do rádio, cinema
e televisão.
O período pós 1964 remete para o autoritarismo militar e ditatorial, a falta de
liberdade de expressão e os excessos da censura. Ao mesmo tempo teve significativas
contribuições do Estado para o campo da cultura. Em 1966 foi criado o Conselho Nacional
de Cultura composto por membros indicados pelo presidente da República. A atenção aos
assuntos culturais pelos militares baseava-se na idéia “de que a cultura era uma esfera de
legitimação do regime político”, conforme Moisés (2001).
Alguns órgãos culturais importantes foram criados durante o regime militar,
abrigados pela estrutura burocrática e administrativa do Ministério da Educação e Cultura.
Dentre eles tem-se a Empresa Brasileira de Filmes – EMBRAFILME, em 1969, a
redefinição do papel do SPHAN, passando a chamar-se IPHAN, em 1970, o Departamento
de Assuntos Culturais, do MEC, o Conselho Nacional de Direito Autoral e o Centro
Nacional de Referência Cultural, em 1973, a Fundação Nacional das Artes – FUNARTE,
em 1976, o Conselho Nacional de Cinema – CONCINE, em 1976, e a Secretaria de
Assuntos Culturais dentro do próprio MEC.
As experiências de políticas culturais estatais no Brasil registram a paradoxal
situação do país ter experimentado uma forte presença do Estado no gerenciamento da
cultura, exatamente em regimes políticos de restrições à liberdade como entre os anos
1930-1945 e 1964-1985. No período Vargas a estratégia era a tentativa de modernização do
Brasil e superação do atraso que representava a República Velha, baseada no país rural. A
cultura e a atenção ao gerenciamento do patrimônio simbólico nacional eram partes da
estratégia de inserir o Brasil no mundo ocidental civilizado. A modernização através da
industrialização e criação de uma indústria de base estatal são exemplos dessa investida
rumo ao novo que a gestão de Getúlio Vargas representou. A cultura não mais como
ornamento e sim como representação simbólica da nacionalidade mereceu atenção especial
nesse contexto.
O segundo período entre 1964 e 1985 seguiu em direção semelhante, com a forte
presença estatal na cultura. A análise de Sérgio Miceli fornece um panorama sobre as metas
do governo militar para a cultura nos anos 70, em pleno domínio militar .
A importância político-institucional desse ideário de uma conduta consistiu sobretudo no
fato de haver logrado inserir o domínio da cultura entre as metas da política de
desenvolvimento social do governo Geisel. Foi a única vez na história republicana que o
governo formalizou um conjunto de diretrizes para orientar suas atividades na área cultural,
prevendo ainda modalidades de colaboração entre os órgãos federais e de outros
ministérios. (Miceli, 1984, p.57).
Estes dois fatos históricos de atuação do Estado com definições objetivas de política
cultural em regimes antidemocráticos, são questões significativas para o estudo de cultura
no Brasil. Num outro plano, com se verá a seguir, em períodos de liberdades democráticas
o Estado abriu mão das suas funções, delegando à indústria cultural e ao mercado a
organização da cultura. Esse contraste entre os dois papéis do Estado no gerenciamento da
cultura, sintetizam o tratamento ambíguo das políticas culturais brasileiras no período
enfocado.
2. MERCADO E CULTURA
A partir de 1985, com a redemocratização, dois fatos marcam a gestão de cinco anos
do presidente José Sarney. O primeiro foi a criação do Ministério da Cultura – Minc, em
1986, cujo primeiro titular da pasta foi José Aparecido de Oliveira.
O segundo marco foi a criação da lei de incentivo à cultura, Lei 7505, denominada
Lei Sarney, que concedia benefícios fiscais federais para as empresas que investissem em
cultura. Esse aparato legal que inseriu a iniciativa privada no financiamento das atividades
culturais, constitui-se num importante elemento de reconfiguração das políticas culturais no
Brasil e teve reflexo significativo como política de governo para a cultura na década
seguinte e na contemporaneidade.
Em seu estudo das leis de incentivo como política pública de cultura, Cristiane
Olivieri apresenta as vantagens e desvantagens que a Lei Sarney trouxe para a atividade
cultural no período que esteve em vigor. Para a autora,
a primeira lei de incentivos fiscais à cultura pecou pelo descontrole da aplicação efetiva das
verbas. Todavia, parece razoável dizer que teve o mérito de semear entre os empresários a
idéia de vinculação de sua marca a um bem cultural como forma de comunicação da
empresa, bem como de apresentar aos governantes a possibilidade de viabilizar as
produções culturais através das leis de incentivo. (Olivieri, 2004, p.73)
Os erros e equívocos cometidos com a aplicação da lei de incentivo não puderam
ser corrigidos e aperfeiçoados no governo seguinte, do presidente Collor de Melo. A Lei
Sarney foi extinta em 1990, como parte de uma ação considerada como desmanche da
estrutura voltada para a cultura, que ficou como uma marca do governo Collor (19901992).
De acordo com a estratégia de redução da presença do Estado na economia, o
Ministério da Cultura foi extinto juntamente com vários órgãos federais ligados ao campo
cultural. O esvaziamento do setor passou assim por processo de interrupção brusca e
descontinuidade da estrutura e da atuação estatal na cultura. Esta decisão, fundamentada na
redução de gastos do executivo, abriu o caminho para atuação do setor privado na cultura.
Como conseqüência da ausência do Estado nas políticas públicas voltadas para a
cultura, vários funcionários foram de órgãos públicos demitidos. Essas ações de grande
repercussão na sociedade foram tomadas nos primeiros momentos do governo, revelando
desde já qual a importância da cultura como estratégia de Estado para aquela gestão. A
Funarte foi um dos órgãos culturais da União extintos neste período e mereceu da
pesquisadora Isaura Botelho um minucioso estudo da trajetória histórica e organizacional
da Fundação Nacional das Artes, desde a criação nos anos 70, até o desmonte total da
estrutura em 1990, no livro “Romance de Formação: Funarte e política cultural 19761990”.
No ano seguinte à sua posse, em 1991, tendo como titular da então Secretaria da
Cultura o diplomata Sérgio Paulo Rouanet, o presidente Collor promulgou a Lei 8313 que
regulamentava o incentivo à cultura através da renúncia fiscal. A lei configurou-se com um
aperfeiçoamento da extinta Lei Sarney, da década anterior. A segunda lei federal que
colocava o setor empresarial na linha de frente das ações culturais no Brasil, mais uma vez
se personificava com o rótulo nominal do seu idealizador ou incentivador e passou a
chamar-se Lei Rouanet.
O presidente Collor durou pouco no governo devido ao “impeachment” que o
colocou para fora do cargo. Os dois anos de ausência quase total do poder público na
cultura, no entanto, foram sentidos pela sociedade e seus reflexos perduraram por um longo
período no país.
O governo seguinte, assumido por Itamar Franco em 1992, tem a marca da tentativa
de reorganização do setor cultural no Brasil. A recriação do Ministério da Cultura pode ser
considerada um sinal da mudança de procedimentos. A recriação dos órgãos como a
Funarte, Iphan e a Biblioteca Nacional sinaliza uma nova orientação para o setor cultural
com o novo governo. Ao mesmo tempo demonstra a trajetória sinuosa das políticas para a
cultura no Estado brasileiro. Acolhimento e abandono, tensão e distensão, incentivo e
negligência. Esta talvez seja uma síntese possível para a cíclica atuação do Estado e suas
políticas para a cultura no Brasil.
A criação da Lei do Audiovisual, em 1993 ainda no Governo Itamar Franco, foi
comemorada pelo setor como uma perspectiva de retomada da atividade, especialmente do
cinema. Mais uma vez, uma Lei federal traria para a produção cultural a presença do
empresariado com investimentos para o campo da cultura brasileira.
No final do governo de Itamar Franco, tendo como titular do Ministério da Cultura
Luiz Roberto do Nascimento e Silva, o Minc, que completara dez anos de criado excluindose a interrupção no período Collor, registrava a marca de nove ministros à frente da pasta.
Esse dado por si só demonstra a descontinuidade na gestão do órgão e seus reflexos nas
políticas públicas para a cultura.
No ano de 1995 o presidente Fernando Henrique Cardoso assumiu o governo e o
acadêmico e intelectual Francisco Weffort foi nomeado ministro da Cultura. A trajetória
acadêmica do ministro ligada a correntes progressistas no passado, parecia indicar um novo
caminho para os destinos da cultura. Mas no seu discurso de posse, Weffort deixou claro o
modelo que escolhera para a cultura ao anunciar que “a parceria com o mercado é o
caminho” (Castello, 2002, p. 638). Ao longo dos oito anos que durou o mandato do
presidente Fernando Henrique Cardoso a referida “parceria” foi o único caminho.
A entrada em cena de empresas como patrocinadoras do sistema cultural, aproxima atores
anteriormente tidos como antagônicos, pertencentes aos distintos campos da economia e da
cultura, conforme preconiza Bourdieu. Ao delimitar o campo cultural, o autor aponta que:
De fato à medida que se constitui um campo intelectual e artístico (...) definindo-se em
oposição ao campo econômico, ao campo político e ao campo religioso, vale dizer, em
relação a todas as instâncias com pretensões a legislar na esfera cultural em nome de um
poder ou de uma autoridade que não seja propriamente cultural, as funções que cabem aos
diferentes grupos de intelectuais ou de artistas, em função da posição que ocupam no
sistema relativamente autônomo das relações de produção intelectual ou artística, tendem
cada vez mais a se tornar o princípio unificador e gerador (...) dos diferentes sistemas de
tomadas de posição culturais e, também, o princípio de sua transformação no curso do
tempo. (Bourdieu, 2004, p. 99)
A entrada em cena dos agentes econômicos, não diretamente ligados à indústria
cultural, que antes se mantinham distantes da cultura, provoca transformações no sistema
de bens simbólicos que podem refletir desde a produção até a circulação da cultura no que
Bourdieu denomina de “mercado de bens simbólicos”.
As opiniões sobre a participação do setor empresarial como parte de uma política
cultural estruturada, não são unânimes, mas encontra respaldo naqueles que pensam uma
política para a cultura com participação de toda sociedade. A pesquisadora Isaura Botelho
ao analisar essa associação sustenta que
Mesmo sabendo que os interesses das empresas não são nada inocentes, é fato positivo
verificar que elas começam a considerar o patrocínio cultural com maior naturalidade,
graças às campanhas governamentais, ao esforço dos produtores, e à presença na mídia. No
entanto ainda há muito o que se fazer no sentido de quebrar as resistências de um
empresariado refratário a esse universo, num país que não tem a tradição histórica de
participação ativa da sociedade no investimento social e cultural. (Botelho, 2001, p. 9)
As relações com o empresariado se acentuaram via leis de incentivo. A presença da
iniciativa privada no financiamento de atividades culturais, sobretudo de espetáculos com
grande visibilidade para as marcas patrocinadoras, ficou sendo a tônica da gestão pública da
cultura no período do ministro Weffort. Ainda de acordo com Castello,
As empresas, fosse como fosse, pareciam cada vez mais interessadas na cultura: em 1995,
eram 234 investindo no setor; em 1998, 1034. Números que pareciam justificar o
alheamento doutrinário do governo, fato que se confirma, por exemplo, quando o ministro
Weffort admite que o Minc só tinha projetos próprios na área do patrimônio e da difusão
cultural. (Castello, p.641)
O que o autor caracteriza de interesse na cultura por parte das empresas, no entanto,
não se enquadra na dimensão social de política cultural. Há no centro desse interesse uma
estratégia econômica através de dois caminhos: a troca de valores investidos por redução de
impostos e a perspectiva de melhoria da imagem das empresas através dos preceitos do
Marketing Institucional e a sua vertente cultural. Num livro que ensina como gerenciar
imagem, questões públicas, comunicação simbólica e crises empresariais, Castro Neves dá
a receita para o marketing cultural:
Muitas empresas que tinham uma imagem horrível no meio de formadores de opinião, tão
logo passaram a investir nesse tipo de marketing [cultural], viram perdoados seus “crimes”
cometidos no passado. Perdoados e esquecidos. E com crédito para o futuro. Marketing
cultural funciona como sedativo e como vacina. (Castro Neve, 2000, p.134, grifo do
autor)
Na gestão de Fernando Henrique Cardoso, portanto, pode-se dizer que a utilização
de “vacina e sedativo” para a imagem institucional das organizações foi um grande negócio
que teve na política do “Estado mínimo”, ditado pela globalização e o neo-liberalismo dos
anos 90, reflexos significativos para a política pública de cultura ou dito de forma mais
drástica, da ausência de uma política pública.
Um exemplo pode ser conferido na localização regional dos projetos. A legislação
do incentivo tem entre os objetivos o estímulo à distribuição eqüitativa dos recursos a
serem aplicados na execução de projetos culturais e artísticos, como também favorecer a
visão interestadual com estímulo a projetos culturais que explorem propostas culturais de
enfoque regional. Seria o estímulo à democratização de aplicação dos recursos e o
favorecimento à diversidade regional brasileira. Mas este preceito legal não se mostra
eficaz, como demonstram os dados abaixo do período do presidente Fernando Henrique
Cardoso.
Fonte: Boucinhas e Campos Consultores (2002)
Pelo gráfico, nota-se a tendência de crescimento da concentração em valores
absolutos no Sudeste, um relativo crescimento da região Sul, uma estabilidade do Nordeste
e Norte, e o decréscimo do Centro Oeste. De fato, enquanto no período o valor total dos
incentivos cresceu 18%, no Sudeste ele cresceu 20%, no Sul cresceu 75%, ao passo que
diminuiu 2% no Nordeste, 15% no Norte e 23% no Centro Oeste, conforme relatório de
Boucinhas e Campos Consultores (2002).
Na realidade, o investimento em cultura pelas empresas, via renúncia fiscal, dava e
dá aos empresários a liberdade de escolha de qual projeto cultural patrocinar, o valor a ser
empregado e mais importante, onde investir. Esse fator “onde” é responsável pela distorção
dos recursos aplicados majoritariamente na regiões Sul e Sudeste. Para Brant, uma reflexão
crítica possível sobre o modelo de financiamento privado da cultura pode ser expresso da
seguinte perspectiva:
Parecia razoável a existência de um dispositivo que pudesse encontrar uma interseção de
interesse entre a política pública e o capital em benefícios da sociedade. Perfeito, mas o
governo teria de exercer sua função constitucional de planejador, regulador e fiscalizador da
sociedade, implementando uma política capaz de separar o joio do trigo, listando ações e
projetos de interesse público. No entanto, a recente história das leis mostra um quadro
completamente diferente disso, restringindo os benefícios do sistema aos produtos e eventos
artísticos, limitando o entendimento da cultura à sua parte efêmera e menos importante no
cumprimento do processo de desenvolvimento cultural da nação. (Brant, 2003, p.10)
As indefinições das atribuições constitucionais do Estado e as tênues fronteiras
entre público e privado fizeram das leis de incentivo o espaço de expansão de políticas
privadas para a cultura com a anuência do Estado. As áreas de comunicação empresarial,
que buscavam alternativas para a manutenção da marca das organizações no mercado,
encontraram no chamado marketing cultural a possibilidade de melhoria da imagem perante
seus públicos através da aura da cultura, com o financiamento do Estado, via renúncia
fiscal.
Para demonstrar essa corrida da empresas pela visibilidade através da cultura, no
levantamento efetuado pela consultoria Boucinhas & Campos (2002), o período entre 1995
e 2000 registra que o volume de recursos da renúncia fiscal saltou da ordem de R$ 4,09
milhões para R$ 174,73 milhões. No mesmo período, citando apenas a área da música, o
número de projetos apoiados foi de 120 para 854, ou seja um crescimento superior a 600%.
Por sua vez, o segmento classificado como Patrimônio Cultural, por ser considerado
de menor poder de associação midiática para a imagem das empresas, saltou de 104 para
261 projetos apoiados por empresas no mesmo período.
Essa pequena mostra dos números indica que em busca do mercado, a atuação do
Estado para a cultura ficou na dependência do marketing e do departamento financeiro das
empresas que trocaram a posição de pagadores de impostos pela de mecenas
contemporâneo num modelo tipicamente brasileiro, realizando funções de governo e
levando vantagens econômicas de um mercado recém criado pós-redemocratização, ou o
mercado cultural com viés empresarial.
Conforme o pesquisador na área de cultura Yacoff Sarcovas, o governo no Brasil é
quem paga para empresas privadas decidirem onde aplicar o dinheiro público em forma de
incentivo cultural. Conforme sua análise, esta é a forma como dever ser vista a Lei do
Audiovisual, e complementamos aqui, a Lei Rounaet também.
Atualmente, 19% dos orçamentos de comunicação das grandes empresas brasileiras são
investidos nessa estratégia, e isso vai continuar crescendo nos próximos anos. Mas, com a
criação das leis de incentivo, surgiu um dinheiro que não é deste orçamento, então as
empresas usam dessas benesses, claro, pois está previsto em lei. Chegamos, com isso, a
uma outra perversão da lei de incentivo cultural via dedução fiscal, que é a de deseducar o
empresariado. É como se você dissesse para ele que não precisa usar o dinheiro dele para
vender a sua imagem. E isso, infelizmente, criou uma dependência crescente desse
processo. Hoje, do total de investimentos das empresas na cultura, 67% vem do uso das leis
de incentivo fiscal. Ou seja, são 67% de recursos que usam leis de incentivo contra 33%
que não usam. Outro dado: 80% das empresas brasileiras que fazem patrocínios culturais
usam os benefícios da lei. (Sarcovas, 2005)
No ano de 1997 a Fundação João Pinheiro realizou uma pesquisa sobre a relação
entre empresas públicas e privadas no patrocínio cultural. Os gráficos a seguir, com
resultados desta pesquisa, mostram como as empresas estatais preferiam mais o
investimento em cultura que as empresas privadas. Esses dados referem-se a um momento
específico, quando o Presidente Fernando Henrique Cardoso e o Minc decidiram que as
empresas estatais deveriam participar mais ativamente do modelo de financiamento da
cultura. Assim, essas empresas passaram a cumprir diretrizes governamentais de
financiamento cultural, como uma forma de executar uma função constitucional do Estado
para a cultura. As áreas claras do gráfico representam as “demais áreas” onde estão
incluídas educação, esporte, meio ambiente, saúde, assistência e área científica..
Preferência pela área cultural em relação às
demais áreas, em ações de comunicação entre
empresas públicas - 1997
Demais áreas
32% das
Empresas
Área Cultural
68% das
Empresas
Fonte: Fundação João Pinheiro-Centro de Estudos
Históricos e Culturais
Demais áreas
53% das
Empresas
Área cultural
47% das
Empresas
Fonte: Fundação João Pinheiro – Centro de Estudos
Históricos e Culturais
A presença de empresas como patrocinadora ou financiadora do setor cultural
consiste num fenômeno mundial, resultado do modelo rotulado de neoliberal pelo qual os
Estados reduziram seus investimentos nas áreas sociais e a cultura foi significativamente
atingida. Alguns poucos países não aderiram a esse modelo de gerenciamento da cultura,
sendo a França o mais citado por buscar alternativas para o financiamento estatal da
cultura. O Estado francês é o principal agente de financiamento com uma política cultural
que subsidia e administra 80% da cultura. Com isso, a participação do empresariado é
reduzida.
A tradição oposta está representada pelos Estados Unidos. Neste caso o papel do
Estado limita-se a situar as políticas de estímulo à cultura na escala local, enquanto a ação
do empresariado e mais a participação individual do cidadão se encarregam do
financiamento à cultura de uma forma mais efetiva. “O modelo em vigor nos Estados
Unidos hoje, é composto pelos incentivos fiscais para apoio privado, pela força do sistema
do próprio mercado de circulação de bens culturais e pelos fundos federais, estaduais e
municipais”. (Olivieri, 2004, p. 62)
Na América Latina a experiência da presença do empresariado no campo cultural
ainda é um fenômeno recente. Somente nas últimas décadas, países como o Brasil,
Argentina, Chile, Colômbia e Venezuela têm incentivado a participação do setor privado no
financiamento da cultura. Nos países latino-americanos ainda se discute qual a melhor ou
as melhores estratégias para uma política cultural que dê conta dos desafios na
contemporaneidade. A pesquisadora argentina Eliana Moreira aponta o descompasso entre
a expansão do Estado e a falta de reflexo deste crescimento nas políticas culturais ocorrida
na América Latina:
O Estado – protagonista fundamental no financiamento e na atividade cultural nos países
com influência européia – paradoxalmente, não tem ampliado sua participação na cultura
em relação ao seu crescimento. Este decréscimo relativo do Estado como financiador de
uma parte relevante da atividade cultural, impõe a busca de fontes alternativas. Porém, um
ator não substitui automaticamente o outro, na medida que suas características, missões,
interesses e políticas são diferentes. Por isso, o debate sobre o que o Estado deve financiar
está aberto e poderá variar segundo as características, tradições e capacidade de atrair
fundos alternativos em cada sociedade. (Moreira, 2003, p.84)
Num país com a dimensão geográfica como o Brasil, e mais a pluralidade de
manifestações culturais, a perspectiva de descentralização dos investimentos culturais
deveria ser um requisito fundamental. Para Martin Feijó em artigo intitulado “As políticas
culturais da globalização”, no qual questiona o modelo de política pública cultural vigente
no Brasil,
se a política cultural predominante na globalização tem apostado no fortalecimento das
marcas em detrimento da criação e da verdadeira pluralidade de opções, isso não significa
que o quadro seja irreversível, muito menos que as soluções antigas sejam pertinentes. Isso
significa que outros caminhos vêm se abrindo e se abrirão, muitos deles profícuos (...) para
articular políticas culturais que levem em conta o que é realmente novo e necessário em
uma globalização que supere os mitos e as perversidades decorrentes em prol de uma
cultura universal, na qual o pensamento crítico, a ética e o gosto dos outros sejam
respeitados em sua rica multiplicidade. (Feijó, 2003, p. 22)
A presença do mecenato no campo cultural parece ter tomado uma dimensão sem
retorno a uma política cultural que não contemple tal dimensão. No entanto, a experiência
do modelo neo-liberal de inversão da lógica, dando ao mercado posição determinante na
condução da cultura, colocou o Brasil na contramão do conceito de democracia cultural.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O gerenciamento da cultura como uma função organizacional do Estado tem pouco
mais de setenta anos no Brasil. Neste período a descontinuidade de uma política pública
para a área cultural foi a tônica dos governos que se sucederam. Somente a partir dos anos
30, no longo primeiro governo de Getúlio Vargas, as ações governamentais neste campo
tiveram uma definição, aproximando-se do conceito de políticas públicas para a cultura.
Durante o período que vai dos anos 30 até 1985, o agendamento das questões
culturais como uma diretriz do Estado foi marcado por avanços e recuos, ao que Moisés
(2001) chama de “processo peculiar de sístoles e diástoles”. Uma característica, no entanto,
marca as políticas culturais do período. Elas são essencialmente públicas tanto na estrutura
burocrática e administrativa criada, como pelas verbas destinadas ao setor cultural. Não há
nenhum sinal da participação do segundo setor, o das empresas privadas, nas ações voltadas
para a cultura.
A partir de 1985 o panorama das ações do Estado muda com a entrada de novos
atores. São as empresas e empresários que chegam com um aparato legal e iniciam de
forma crescente sua participação no financiamento e gestão dos bens simbólicos. Nas
últimas duas décadas, portanto, essa característica da participação indireta do Estado
através das leis de incentivo, é a parte mais visível da política cultural brasileira.
Nas relações entre Estado e empresas privadas, o que poderia ser uma alternativa
para uma política pública de cultura, configurada em outras bases, com o empresariado
investindo seus próprios recursos, tornou-se na realidade a única alternativa no Brasil. O
país que havia entrado nas primeiras décadas do século 20 com um modelo estatal de
fomento à cultura, especialmente do patrimônio edificado, encerrou o século com um viés
mercadológico com o apoio e aval do Estado.
Dentre as empresas brasileiras que atuam na área da cultura como estratégia
institucional, a Petrobrás por ser a maior patrocinadora cultural do país, apoiando vários
segmentos das artes, do espetáculo e do patrimônio material e imaterial, requer uma análise
mais detalhada das suas ações devido à dupla relação e vinculação com o Estado e com o
mercado industrial competitivo, que exige resultados e acima de tudo, lucros.
O pesquisador e consultor na área de projetos culturais Yacoff Sarkovas manifestase com uma postura bastante crítica à política de incentivos como é executada no país. Mas
em artigo intitulado “O incentivo fiscal à cultura no Brasil”, ele reconhece que, semelhante
a outras sociedades, pode haver legitimidade na participação do empresariado no campo
cultural, desde que invista seus próprios recursos. Conforme o autor, o investimento social
e cultural privado, uma evolução histórica do mecenato, é um meio [legítimo] pelo qual
cidadãos e instituições privadas tornam-se agentes do desenvolvimento da sociedade.
(Sarkovas, 2006)
o invés de ignorar esse modelo do neomecenato contemporâneo, deve-se trazê-lo
para a discussão com um olhar crítico para sua trajetória, ganhos e perdas para a cultura no
Brasil e estabelecer perspectivas de correção de rumos. Afinal, “a relação entre cultura e
empresa não deve ser satanizada, ao contrário, estimulada, o que exige uma formulação
equilibrada com limites e, sobretudo, contrapartidas”. (Castello, 2002, p. 665).
No modelo de política cultural sob o domínio do mercado, as contrapartidas para as
empresas são as mais visíveis. Para o Estado, representante da sociedade, elas são mais
difusas. Democratização de acesso à cultura passa, portanto, por um processo de resgate do
papel do Estado na sua missão de propiciar o desenvolvimento da cultura em todos as suas
fases, desde a criação, fruição e consumo.
4. BIBLIOGRAFIA
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