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! " #$ % "& ' ( )& )& * POLÍTICA CULTURAL NO BRASIL: DO ESTADO AO MERCADO Alberto Freire Nascimento* RESUMO A existência de uma política cultural administrada pelo Estado como uma forma de ampliar o acesso, a produção e fruição da cultura, tem cerca de 70 anos. Foi nos anos 30, com a chegada de Getúlio Vargas ao poder que os temas culturais passaram a ter importância. A gestão do ministro Gustavo Capanema à frente dos temas culturais no Ministério da Educação e Saúde foi fundamental para que a cultura deixasse de ser considerada um ornamento. Os governos seguintes tiveram atuações de avanço e recuo na maneira de encarar e gerir os temas culturais. O contraponto com a presença estatal no campo cultural deu-se a partir da década de 1990, quando a perspectiva de um “Estado mínimo” delegou ao mercado o gerenciamento da cultura brasileira. Palavras-Chave: Política cultural, cultura, mecenato. 1. ESTADO E CULTURA Parece haver consenso que a delimitação conceitual sobre a definição do que seja política cultural, ainda está em construção. Mas esse processo de busca do conceito não impede a perspectiva de se pensar e refletir sobre essa importante atividade de gerenciamento do patrimônio simbólico de uma sociedade como é a cultura. Neste trabalho iremos admitir a política cultural como “programa de intervenções realizadas pelo Estado, instituições civis, entidades privadas ou grupos comunitários com o objetivo de satisfazer as necessidades culturais da população e promover o desenvolvimento de suas representações simbólicas”. (Coelho, 2004) Os estudos de cultura em sua relação com o Estado brasileiro apontam com certa unanimidade os anos 30, no governo de Getúlio Vargas (1930-1945), como a primeira * Alberto Freire Nascimento é mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Ufba); doutorando do Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade (Facom/Ufba); professor de jornalismo da Faculdade da Cidade do Salvador. E-Mail: albfreire@yahoo.com.br intervenção estatal neste campo. Foi a partir deste período que as atividades voltadas para a cultura passaram a ter uma presença estatal com ações em vários sentidos. Ao contrário do período imperial e da primeira República, quando a cultura era tratada como acessória, a era Vargas foi marcada pela atenção do Estado à atividade cultural no Brasil, em especial na gestão do ministro Gustavo Capanema à frente do Ministério da Educação e Saúde (1934 a 1945). Exemplo disso foi a criação de órgãos culturais importantes como o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), o Instituto Nacional do Livro (INL), o Serviço Nacional do Teatro (SNT), o Instituto Nacional da Música (INM) e o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE). Em artigo intitulado “A educação e a cultura nas constituições brasileiras”, Alfredo Bosi (2004) aponta o tratamento genérico dispensado ao patrimônio simbólico tanto no Império, na constituição de 1824, como na República, em 1891. A presença do Estado na cultura incluída na Constituição Federal de 1934 reforça a importância que esta passa a ter como um tema de interesse do Estado para a nova ordem, representada por Vargas. A partir de então, a União, os estados e municípios ficaram constitucionalmente autorizados a “favorecer e animar” o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral. Em sua gestão, o ministro Capanema cerca-se de expressivos intelectuais e ativistas da vida cultural brasileira como Carlos Drummond de Andrade, Heitor Villa-Lobos, Rodrigo de Mello Franco, Cândido Portinari, Lúcio Costa e outros. Esse staff de notáveis e mais a influência do pensamento modernista de Mário de Andrade conferem à administração do Ministério da Educação e Saúde (MES) uma atuação inovadora no campo da cultura, com um viés nacional e nacionalista imprimindo características patriótica, sadia, otimista e moderna, à cultura brasileira, conforme Williams (2000). Com essa participação do Estado no gerenciamento da cultura, a era Vargas, representada pela forte presença de Capanema, executa ações que se inserem na delimitação de política pública cultural, concebida como “conjunto ordenado e coerente de preceitos e objetivos que orientam linhas de ações públicas mais imediatas no campo da cultura”, conforme Calabre (2005). Entre 1945 e 1964 não há registro da mesma dinâmica Estatal para políticas culturais como no período anterior. Fato marcante deste tempo é a criação do Ministério da Saúde e como conseqüência a nova denominação para o MES que passa a chamar-se Ministério da Educação e Cultura - MEC, de acordo com a Lei 1.920 sancionada por Getúlio Vargas, em seu segundo governo, em julho de 1953. A falta de políticas culturais neste período, no entanto, não significa um marasmo cultural da sociedade. As ações culturais de então, em certa medida, refletem a polarização do mundo dividido pela guerra fria. Enquanto há uma mobilização para realçar as diferenças entre o novo e o tradicional na cultura brasileira por segmentos progressistas como UNE e CPC, a indústria cultural, por outro lado, se fortalece através do rádio, cinema e televisão. O período pós 1964 remete para o autoritarismo militar e ditatorial, a falta de liberdade de expressão e os excessos da censura. Ao mesmo tempo teve significativas contribuições do Estado para o campo da cultura. Em 1966 foi criado o Conselho Nacional de Cultura composto por membros indicados pelo presidente da República. A atenção aos assuntos culturais pelos militares baseava-se na idéia “de que a cultura era uma esfera de legitimação do regime político”, conforme Moisés (2001). Alguns órgãos culturais importantes foram criados durante o regime militar, abrigados pela estrutura burocrática e administrativa do Ministério da Educação e Cultura. Dentre eles tem-se a Empresa Brasileira de Filmes – EMBRAFILME, em 1969, a redefinição do papel do SPHAN, passando a chamar-se IPHAN, em 1970, o Departamento de Assuntos Culturais, do MEC, o Conselho Nacional de Direito Autoral e o Centro Nacional de Referência Cultural, em 1973, a Fundação Nacional das Artes – FUNARTE, em 1976, o Conselho Nacional de Cinema – CONCINE, em 1976, e a Secretaria de Assuntos Culturais dentro do próprio MEC. As experiências de políticas culturais estatais no Brasil registram a paradoxal situação do país ter experimentado uma forte presença do Estado no gerenciamento da cultura, exatamente em regimes políticos de restrições à liberdade como entre os anos 1930-1945 e 1964-1985. No período Vargas a estratégia era a tentativa de modernização do Brasil e superação do atraso que representava a República Velha, baseada no país rural. A cultura e a atenção ao gerenciamento do patrimônio simbólico nacional eram partes da estratégia de inserir o Brasil no mundo ocidental civilizado. A modernização através da industrialização e criação de uma indústria de base estatal são exemplos dessa investida rumo ao novo que a gestão de Getúlio Vargas representou. A cultura não mais como ornamento e sim como representação simbólica da nacionalidade mereceu atenção especial nesse contexto. O segundo período entre 1964 e 1985 seguiu em direção semelhante, com a forte presença estatal na cultura. A análise de Sérgio Miceli fornece um panorama sobre as metas do governo militar para a cultura nos anos 70, em pleno domínio militar . A importância político-institucional desse ideário de uma conduta consistiu sobretudo no fato de haver logrado inserir o domínio da cultura entre as metas da política de desenvolvimento social do governo Geisel. Foi a única vez na história republicana que o governo formalizou um conjunto de diretrizes para orientar suas atividades na área cultural, prevendo ainda modalidades de colaboração entre os órgãos federais e de outros ministérios. (Miceli, 1984, p.57). Estes dois fatos históricos de atuação do Estado com definições objetivas de política cultural em regimes antidemocráticos, são questões significativas para o estudo de cultura no Brasil. Num outro plano, com se verá a seguir, em períodos de liberdades democráticas o Estado abriu mão das suas funções, delegando à indústria cultural e ao mercado a organização da cultura. Esse contraste entre os dois papéis do Estado no gerenciamento da cultura, sintetizam o tratamento ambíguo das políticas culturais brasileiras no período enfocado. 2. MERCADO E CULTURA A partir de 1985, com a redemocratização, dois fatos marcam a gestão de cinco anos do presidente José Sarney. O primeiro foi a criação do Ministério da Cultura – Minc, em 1986, cujo primeiro titular da pasta foi José Aparecido de Oliveira. O segundo marco foi a criação da lei de incentivo à cultura, Lei 7505, denominada Lei Sarney, que concedia benefícios fiscais federais para as empresas que investissem em cultura. Esse aparato legal que inseriu a iniciativa privada no financiamento das atividades culturais, constitui-se num importante elemento de reconfiguração das políticas culturais no Brasil e teve reflexo significativo como política de governo para a cultura na década seguinte e na contemporaneidade. Em seu estudo das leis de incentivo como política pública de cultura, Cristiane Olivieri apresenta as vantagens e desvantagens que a Lei Sarney trouxe para a atividade cultural no período que esteve em vigor. Para a autora, a primeira lei de incentivos fiscais à cultura pecou pelo descontrole da aplicação efetiva das verbas. Todavia, parece razoável dizer que teve o mérito de semear entre os empresários a idéia de vinculação de sua marca a um bem cultural como forma de comunicação da empresa, bem como de apresentar aos governantes a possibilidade de viabilizar as produções culturais através das leis de incentivo. (Olivieri, 2004, p.73) Os erros e equívocos cometidos com a aplicação da lei de incentivo não puderam ser corrigidos e aperfeiçoados no governo seguinte, do presidente Collor de Melo. A Lei Sarney foi extinta em 1990, como parte de uma ação considerada como desmanche da estrutura voltada para a cultura, que ficou como uma marca do governo Collor (19901992). De acordo com a estratégia de redução da presença do Estado na economia, o Ministério da Cultura foi extinto juntamente com vários órgãos federais ligados ao campo cultural. O esvaziamento do setor passou assim por processo de interrupção brusca e descontinuidade da estrutura e da atuação estatal na cultura. Esta decisão, fundamentada na redução de gastos do executivo, abriu o caminho para atuação do setor privado na cultura. Como conseqüência da ausência do Estado nas políticas públicas voltadas para a cultura, vários funcionários foram de órgãos públicos demitidos. Essas ações de grande repercussão na sociedade foram tomadas nos primeiros momentos do governo, revelando desde já qual a importância da cultura como estratégia de Estado para aquela gestão. A Funarte foi um dos órgãos culturais da União extintos neste período e mereceu da pesquisadora Isaura Botelho um minucioso estudo da trajetória histórica e organizacional da Fundação Nacional das Artes, desde a criação nos anos 70, até o desmonte total da estrutura em 1990, no livro “Romance de Formação: Funarte e política cultural 19761990”. No ano seguinte à sua posse, em 1991, tendo como titular da então Secretaria da Cultura o diplomata Sérgio Paulo Rouanet, o presidente Collor promulgou a Lei 8313 que regulamentava o incentivo à cultura através da renúncia fiscal. A lei configurou-se com um aperfeiçoamento da extinta Lei Sarney, da década anterior. A segunda lei federal que colocava o setor empresarial na linha de frente das ações culturais no Brasil, mais uma vez se personificava com o rótulo nominal do seu idealizador ou incentivador e passou a chamar-se Lei Rouanet. O presidente Collor durou pouco no governo devido ao “impeachment” que o colocou para fora do cargo. Os dois anos de ausência quase total do poder público na cultura, no entanto, foram sentidos pela sociedade e seus reflexos perduraram por um longo período no país. O governo seguinte, assumido por Itamar Franco em 1992, tem a marca da tentativa de reorganização do setor cultural no Brasil. A recriação do Ministério da Cultura pode ser considerada um sinal da mudança de procedimentos. A recriação dos órgãos como a Funarte, Iphan e a Biblioteca Nacional sinaliza uma nova orientação para o setor cultural com o novo governo. Ao mesmo tempo demonstra a trajetória sinuosa das políticas para a cultura no Estado brasileiro. Acolhimento e abandono, tensão e distensão, incentivo e negligência. Esta talvez seja uma síntese possível para a cíclica atuação do Estado e suas políticas para a cultura no Brasil. A criação da Lei do Audiovisual, em 1993 ainda no Governo Itamar Franco, foi comemorada pelo setor como uma perspectiva de retomada da atividade, especialmente do cinema. Mais uma vez, uma Lei federal traria para a produção cultural a presença do empresariado com investimentos para o campo da cultura brasileira. No final do governo de Itamar Franco, tendo como titular do Ministério da Cultura Luiz Roberto do Nascimento e Silva, o Minc, que completara dez anos de criado excluindose a interrupção no período Collor, registrava a marca de nove ministros à frente da pasta. Esse dado por si só demonstra a descontinuidade na gestão do órgão e seus reflexos nas políticas públicas para a cultura. No ano de 1995 o presidente Fernando Henrique Cardoso assumiu o governo e o acadêmico e intelectual Francisco Weffort foi nomeado ministro da Cultura. A trajetória acadêmica do ministro ligada a correntes progressistas no passado, parecia indicar um novo caminho para os destinos da cultura. Mas no seu discurso de posse, Weffort deixou claro o modelo que escolhera para a cultura ao anunciar que “a parceria com o mercado é o caminho” (Castello, 2002, p. 638). Ao longo dos oito anos que durou o mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso a referida “parceria” foi o único caminho. A entrada em cena de empresas como patrocinadoras do sistema cultural, aproxima atores anteriormente tidos como antagônicos, pertencentes aos distintos campos da economia e da cultura, conforme preconiza Bourdieu. Ao delimitar o campo cultural, o autor aponta que: De fato à medida que se constitui um campo intelectual e artístico (...) definindo-se em oposição ao campo econômico, ao campo político e ao campo religioso, vale dizer, em relação a todas as instâncias com pretensões a legislar na esfera cultural em nome de um poder ou de uma autoridade que não seja propriamente cultural, as funções que cabem aos diferentes grupos de intelectuais ou de artistas, em função da posição que ocupam no sistema relativamente autônomo das relações de produção intelectual ou artística, tendem cada vez mais a se tornar o princípio unificador e gerador (...) dos diferentes sistemas de tomadas de posição culturais e, também, o princípio de sua transformação no curso do tempo. (Bourdieu, 2004, p. 99) A entrada em cena dos agentes econômicos, não diretamente ligados à indústria cultural, que antes se mantinham distantes da cultura, provoca transformações no sistema de bens simbólicos que podem refletir desde a produção até a circulação da cultura no que Bourdieu denomina de “mercado de bens simbólicos”. As opiniões sobre a participação do setor empresarial como parte de uma política cultural estruturada, não são unânimes, mas encontra respaldo naqueles que pensam uma política para a cultura com participação de toda sociedade. A pesquisadora Isaura Botelho ao analisar essa associação sustenta que Mesmo sabendo que os interesses das empresas não são nada inocentes, é fato positivo verificar que elas começam a considerar o patrocínio cultural com maior naturalidade, graças às campanhas governamentais, ao esforço dos produtores, e à presença na mídia. No entanto ainda há muito o que se fazer no sentido de quebrar as resistências de um empresariado refratário a esse universo, num país que não tem a tradição histórica de participação ativa da sociedade no investimento social e cultural. (Botelho, 2001, p. 9) As relações com o empresariado se acentuaram via leis de incentivo. A presença da iniciativa privada no financiamento de atividades culturais, sobretudo de espetáculos com grande visibilidade para as marcas patrocinadoras, ficou sendo a tônica da gestão pública da cultura no período do ministro Weffort. Ainda de acordo com Castello, As empresas, fosse como fosse, pareciam cada vez mais interessadas na cultura: em 1995, eram 234 investindo no setor; em 1998, 1034. Números que pareciam justificar o alheamento doutrinário do governo, fato que se confirma, por exemplo, quando o ministro Weffort admite que o Minc só tinha projetos próprios na área do patrimônio e da difusão cultural. (Castello, p.641) O que o autor caracteriza de interesse na cultura por parte das empresas, no entanto, não se enquadra na dimensão social de política cultural. Há no centro desse interesse uma estratégia econômica através de dois caminhos: a troca de valores investidos por redução de impostos e a perspectiva de melhoria da imagem das empresas através dos preceitos do Marketing Institucional e a sua vertente cultural. Num livro que ensina como gerenciar imagem, questões públicas, comunicação simbólica e crises empresariais, Castro Neves dá a receita para o marketing cultural: Muitas empresas que tinham uma imagem horrível no meio de formadores de opinião, tão logo passaram a investir nesse tipo de marketing [cultural], viram perdoados seus “crimes” cometidos no passado. Perdoados e esquecidos. E com crédito para o futuro. Marketing cultural funciona como sedativo e como vacina. (Castro Neve, 2000, p.134, grifo do autor) Na gestão de Fernando Henrique Cardoso, portanto, pode-se dizer que a utilização de “vacina e sedativo” para a imagem institucional das organizações foi um grande negócio que teve na política do “Estado mínimo”, ditado pela globalização e o neo-liberalismo dos anos 90, reflexos significativos para a política pública de cultura ou dito de forma mais drástica, da ausência de uma política pública. Um exemplo pode ser conferido na localização regional dos projetos. A legislação do incentivo tem entre os objetivos o estímulo à distribuição eqüitativa dos recursos a serem aplicados na execução de projetos culturais e artísticos, como também favorecer a visão interestadual com estímulo a projetos culturais que explorem propostas culturais de enfoque regional. Seria o estímulo à democratização de aplicação dos recursos e o favorecimento à diversidade regional brasileira. Mas este preceito legal não se mostra eficaz, como demonstram os dados abaixo do período do presidente Fernando Henrique Cardoso. Fonte: Boucinhas e Campos Consultores (2002) Pelo gráfico, nota-se a tendência de crescimento da concentração em valores absolutos no Sudeste, um relativo crescimento da região Sul, uma estabilidade do Nordeste e Norte, e o decréscimo do Centro Oeste. De fato, enquanto no período o valor total dos incentivos cresceu 18%, no Sudeste ele cresceu 20%, no Sul cresceu 75%, ao passo que diminuiu 2% no Nordeste, 15% no Norte e 23% no Centro Oeste, conforme relatório de Boucinhas e Campos Consultores (2002). Na realidade, o investimento em cultura pelas empresas, via renúncia fiscal, dava e dá aos empresários a liberdade de escolha de qual projeto cultural patrocinar, o valor a ser empregado e mais importante, onde investir. Esse fator “onde” é responsável pela distorção dos recursos aplicados majoritariamente na regiões Sul e Sudeste. Para Brant, uma reflexão crítica possível sobre o modelo de financiamento privado da cultura pode ser expresso da seguinte perspectiva: Parecia razoável a existência de um dispositivo que pudesse encontrar uma interseção de interesse entre a política pública e o capital em benefícios da sociedade. Perfeito, mas o governo teria de exercer sua função constitucional de planejador, regulador e fiscalizador da sociedade, implementando uma política capaz de separar o joio do trigo, listando ações e projetos de interesse público. No entanto, a recente história das leis mostra um quadro completamente diferente disso, restringindo os benefícios do sistema aos produtos e eventos artísticos, limitando o entendimento da cultura à sua parte efêmera e menos importante no cumprimento do processo de desenvolvimento cultural da nação. (Brant, 2003, p.10) As indefinições das atribuições constitucionais do Estado e as tênues fronteiras entre público e privado fizeram das leis de incentivo o espaço de expansão de políticas privadas para a cultura com a anuência do Estado. As áreas de comunicação empresarial, que buscavam alternativas para a manutenção da marca das organizações no mercado, encontraram no chamado marketing cultural a possibilidade de melhoria da imagem perante seus públicos através da aura da cultura, com o financiamento do Estado, via renúncia fiscal. Para demonstrar essa corrida da empresas pela visibilidade através da cultura, no levantamento efetuado pela consultoria Boucinhas & Campos (2002), o período entre 1995 e 2000 registra que o volume de recursos da renúncia fiscal saltou da ordem de R$ 4,09 milhões para R$ 174,73 milhões. No mesmo período, citando apenas a área da música, o número de projetos apoiados foi de 120 para 854, ou seja um crescimento superior a 600%. Por sua vez, o segmento classificado como Patrimônio Cultural, por ser considerado de menor poder de associação midiática para a imagem das empresas, saltou de 104 para 261 projetos apoiados por empresas no mesmo período. Essa pequena mostra dos números indica que em busca do mercado, a atuação do Estado para a cultura ficou na dependência do marketing e do departamento financeiro das empresas que trocaram a posição de pagadores de impostos pela de mecenas contemporâneo num modelo tipicamente brasileiro, realizando funções de governo e levando vantagens econômicas de um mercado recém criado pós-redemocratização, ou o mercado cultural com viés empresarial. Conforme o pesquisador na área de cultura Yacoff Sarcovas, o governo no Brasil é quem paga para empresas privadas decidirem onde aplicar o dinheiro público em forma de incentivo cultural. Conforme sua análise, esta é a forma como dever ser vista a Lei do Audiovisual, e complementamos aqui, a Lei Rounaet também. Atualmente, 19% dos orçamentos de comunicação das grandes empresas brasileiras são investidos nessa estratégia, e isso vai continuar crescendo nos próximos anos. Mas, com a criação das leis de incentivo, surgiu um dinheiro que não é deste orçamento, então as empresas usam dessas benesses, claro, pois está previsto em lei. Chegamos, com isso, a uma outra perversão da lei de incentivo cultural via dedução fiscal, que é a de deseducar o empresariado. É como se você dissesse para ele que não precisa usar o dinheiro dele para vender a sua imagem. E isso, infelizmente, criou uma dependência crescente desse processo. Hoje, do total de investimentos das empresas na cultura, 67% vem do uso das leis de incentivo fiscal. Ou seja, são 67% de recursos que usam leis de incentivo contra 33% que não usam. Outro dado: 80% das empresas brasileiras que fazem patrocínios culturais usam os benefícios da lei. (Sarcovas, 2005) No ano de 1997 a Fundação João Pinheiro realizou uma pesquisa sobre a relação entre empresas públicas e privadas no patrocínio cultural. Os gráficos a seguir, com resultados desta pesquisa, mostram como as empresas estatais preferiam mais o investimento em cultura que as empresas privadas. Esses dados referem-se a um momento específico, quando o Presidente Fernando Henrique Cardoso e o Minc decidiram que as empresas estatais deveriam participar mais ativamente do modelo de financiamento da cultura. Assim, essas empresas passaram a cumprir diretrizes governamentais de financiamento cultural, como uma forma de executar uma função constitucional do Estado para a cultura. As áreas claras do gráfico representam as “demais áreas” onde estão incluídas educação, esporte, meio ambiente, saúde, assistência e área científica.. Preferência pela área cultural em relação às demais áreas, em ações de comunicação entre empresas públicas - 1997 Demais áreas 32% das Empresas Área Cultural 68% das Empresas Fonte: Fundação João Pinheiro-Centro de Estudos Históricos e Culturais Demais áreas 53% das Empresas Área cultural 47% das Empresas Fonte: Fundação João Pinheiro – Centro de Estudos Históricos e Culturais A presença de empresas como patrocinadora ou financiadora do setor cultural consiste num fenômeno mundial, resultado do modelo rotulado de neoliberal pelo qual os Estados reduziram seus investimentos nas áreas sociais e a cultura foi significativamente atingida. Alguns poucos países não aderiram a esse modelo de gerenciamento da cultura, sendo a França o mais citado por buscar alternativas para o financiamento estatal da cultura. O Estado francês é o principal agente de financiamento com uma política cultural que subsidia e administra 80% da cultura. Com isso, a participação do empresariado é reduzida. A tradição oposta está representada pelos Estados Unidos. Neste caso o papel do Estado limita-se a situar as políticas de estímulo à cultura na escala local, enquanto a ação do empresariado e mais a participação individual do cidadão se encarregam do financiamento à cultura de uma forma mais efetiva. “O modelo em vigor nos Estados Unidos hoje, é composto pelos incentivos fiscais para apoio privado, pela força do sistema do próprio mercado de circulação de bens culturais e pelos fundos federais, estaduais e municipais”. (Olivieri, 2004, p. 62) Na América Latina a experiência da presença do empresariado no campo cultural ainda é um fenômeno recente. Somente nas últimas décadas, países como o Brasil, Argentina, Chile, Colômbia e Venezuela têm incentivado a participação do setor privado no financiamento da cultura. Nos países latino-americanos ainda se discute qual a melhor ou as melhores estratégias para uma política cultural que dê conta dos desafios na contemporaneidade. A pesquisadora argentina Eliana Moreira aponta o descompasso entre a expansão do Estado e a falta de reflexo deste crescimento nas políticas culturais ocorrida na América Latina: O Estado – protagonista fundamental no financiamento e na atividade cultural nos países com influência européia – paradoxalmente, não tem ampliado sua participação na cultura em relação ao seu crescimento. Este decréscimo relativo do Estado como financiador de uma parte relevante da atividade cultural, impõe a busca de fontes alternativas. Porém, um ator não substitui automaticamente o outro, na medida que suas características, missões, interesses e políticas são diferentes. Por isso, o debate sobre o que o Estado deve financiar está aberto e poderá variar segundo as características, tradições e capacidade de atrair fundos alternativos em cada sociedade. (Moreira, 2003, p.84) Num país com a dimensão geográfica como o Brasil, e mais a pluralidade de manifestações culturais, a perspectiva de descentralização dos investimentos culturais deveria ser um requisito fundamental. Para Martin Feijó em artigo intitulado “As políticas culturais da globalização”, no qual questiona o modelo de política pública cultural vigente no Brasil, se a política cultural predominante na globalização tem apostado no fortalecimento das marcas em detrimento da criação e da verdadeira pluralidade de opções, isso não significa que o quadro seja irreversível, muito menos que as soluções antigas sejam pertinentes. Isso significa que outros caminhos vêm se abrindo e se abrirão, muitos deles profícuos (...) para articular políticas culturais que levem em conta o que é realmente novo e necessário em uma globalização que supere os mitos e as perversidades decorrentes em prol de uma cultura universal, na qual o pensamento crítico, a ética e o gosto dos outros sejam respeitados em sua rica multiplicidade. (Feijó, 2003, p. 22) A presença do mecenato no campo cultural parece ter tomado uma dimensão sem retorno a uma política cultural que não contemple tal dimensão. No entanto, a experiência do modelo neo-liberal de inversão da lógica, dando ao mercado posição determinante na condução da cultura, colocou o Brasil na contramão do conceito de democracia cultural. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS O gerenciamento da cultura como uma função organizacional do Estado tem pouco mais de setenta anos no Brasil. Neste período a descontinuidade de uma política pública para a área cultural foi a tônica dos governos que se sucederam. Somente a partir dos anos 30, no longo primeiro governo de Getúlio Vargas, as ações governamentais neste campo tiveram uma definição, aproximando-se do conceito de políticas públicas para a cultura. Durante o período que vai dos anos 30 até 1985, o agendamento das questões culturais como uma diretriz do Estado foi marcado por avanços e recuos, ao que Moisés (2001) chama de “processo peculiar de sístoles e diástoles”. Uma característica, no entanto, marca as políticas culturais do período. Elas são essencialmente públicas tanto na estrutura burocrática e administrativa criada, como pelas verbas destinadas ao setor cultural. Não há nenhum sinal da participação do segundo setor, o das empresas privadas, nas ações voltadas para a cultura. A partir de 1985 o panorama das ações do Estado muda com a entrada de novos atores. São as empresas e empresários que chegam com um aparato legal e iniciam de forma crescente sua participação no financiamento e gestão dos bens simbólicos. Nas últimas duas décadas, portanto, essa característica da participação indireta do Estado através das leis de incentivo, é a parte mais visível da política cultural brasileira. Nas relações entre Estado e empresas privadas, o que poderia ser uma alternativa para uma política pública de cultura, configurada em outras bases, com o empresariado investindo seus próprios recursos, tornou-se na realidade a única alternativa no Brasil. O país que havia entrado nas primeiras décadas do século 20 com um modelo estatal de fomento à cultura, especialmente do patrimônio edificado, encerrou o século com um viés mercadológico com o apoio e aval do Estado. Dentre as empresas brasileiras que atuam na área da cultura como estratégia institucional, a Petrobrás por ser a maior patrocinadora cultural do país, apoiando vários segmentos das artes, do espetáculo e do patrimônio material e imaterial, requer uma análise mais detalhada das suas ações devido à dupla relação e vinculação com o Estado e com o mercado industrial competitivo, que exige resultados e acima de tudo, lucros. O pesquisador e consultor na área de projetos culturais Yacoff Sarkovas manifestase com uma postura bastante crítica à política de incentivos como é executada no país. Mas em artigo intitulado “O incentivo fiscal à cultura no Brasil”, ele reconhece que, semelhante a outras sociedades, pode haver legitimidade na participação do empresariado no campo cultural, desde que invista seus próprios recursos. Conforme o autor, o investimento social e cultural privado, uma evolução histórica do mecenato, é um meio [legítimo] pelo qual cidadãos e instituições privadas tornam-se agentes do desenvolvimento da sociedade. (Sarkovas, 2006) o invés de ignorar esse modelo do neomecenato contemporâneo, deve-se trazê-lo para a discussão com um olhar crítico para sua trajetória, ganhos e perdas para a cultura no Brasil e estabelecer perspectivas de correção de rumos. Afinal, “a relação entre cultura e empresa não deve ser satanizada, ao contrário, estimulada, o que exige uma formulação equilibrada com limites e, sobretudo, contrapartidas”. (Castello, 2002, p. 665). No modelo de política cultural sob o domínio do mercado, as contrapartidas para as empresas são as mais visíveis. Para o Estado, representante da sociedade, elas são mais difusas. Democratização de acesso à cultura passa, portanto, por um processo de resgate do papel do Estado na sua missão de propiciar o desenvolvimento da cultura em todos as suas fases, desde a criação, fruição e consumo. 4. BIBLIOGRAFIA BOSI, Alfredo. A educação e a cultura nas constituições brasileiras. In: BOSI, Alfredo (org) Cultura brasileira: temas e situações. 4. ed. São Paulo: Ática, 2003. BOTELHO, Isaura. Romance de formação: Funarte e política cultural 1976-1990. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2002. Boucinhas e Campos Consultores S/C Ltda. Estudo do modelo de financiamento da cultura: o caso Brasil. São Paulo, 2002. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 4. ed. Tradução Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. BRANT, Leonardo. Diversidade Cultural e desenvolvimento social. In. BRANT, Leonardo. (org) Políticas culturais. Barueri, SP: Manole, 2003. p. 3-14 _________. Mercado Cultural. 4. ed. São Paulo: Escrituras, 2004. CALABRE, Lia. 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