04/02/2016
Em solo baiano Revista de História
Em solo baiano
Em Salvador, a família real fez sua primeira parada. A recepção foi calorosa e a
despedida, lamentada.
Eduardo Borges
7/1/2008
“O rei da Espanha mendigando em solo francês
a proteção de Napoleão; o rei da Prússia
foragido da sua capital ocupada pelos soldados
franceses; o Stathouder, quase rei da Holanda,
refugiado em Londres; o rei das Duas Sicílias
exilado em sua linda Nápoles; as dinastias da
Toscana e Parma, errantes; o rei do Piemonte
reduzido à mesquinha corte de Cagliare; (...) a
Escandinávia prestes a implorar um herdeiro
dentre os marechais de Bonaparte; o
imperador do Sacro Império e o próprio
Pontífice Romano obrigados de quando em vez
a desamparar seus tronos que se diziam
eternos e intangíveis”. As palavras do
historiador Oliveira Lima sintetizam bem a
conjuntura política européia em 1807.
O reino governado pela família Bragança não
estava imune àquele conturbado cenário.
Portugal vivia o dilema de se colocar entre os
interesses britânicos e o projeto imperialista
de Napoleão. Em 27 de outubro de 1807, a
França assinou com a Espanha o Tratado de
Fontainebleau, que deixou expostas as
fronteiras portuguesas a uma invasão iminente.
Um mês depois, a Corte lusitana estava pronta
para abandonar o país e transferir‐se para sua
maior colônia.
D. João e sua comitiva partiram da foz do Tejo
em 29 de novembro. O destino: Rio de Janeiro. Mas os deuses meteorológicos providenciaram um desvio no
percurso da história. Em 9 de janeiro, uma forte tempestade fez a armada se dispersar, e embora algumas
naus lograssem chegar à costa fluminense, a que levava o príncipe aportou na mesma região brasileira onde
Pedro Álvares Cabral dera início à colonização, 308 anos antes: a Bahia. Mais precisamente sua capital, São
Salvador da Bahia de Todos os Santos.
Embora sedutora, esta versão não é a única. A parada em Salvador também pode ter sido estratégia
intencional do príncipe. Baseado nos livros das embarcações inglesas que acompanharam D. João, o
historiador Kenneth Light levanta a hipótese de que a decisão de desviar o percurso foi tomada durante a
viagem, devido talvez à força simbólica que representava a Bahia no mundo português.
Coube ao governador, João de Saldanha da Gama Mello e Torres, o sexto conde da Ponte, a honra de ser o
primeiro anfitrião oficial a receber no Brasil o príncipe regente vindo de Portugal. A nau Príncipe Real, sob o
comando do capitão‐de‐mar‐e‐guerra Francisco José de Castro e Mascarenhas, acompanhada de outras de
bandeira inglesa e portuguesa, baixou suas âncoras no porto de Salvador no dia 22 de janeiro. Segundo
registro de Melo Morais, foi este o primeiro diálogo entre o príncipe e o governador:
D. João: — Não vem ninguém de terra?
Conde da Ponte: — Senhor, não veio imediatamente toda a cidade, mesmo ainda estando a nau de V. Alteza
sobre os ferros, cumprimentar e felicitar a V. Alteza, porque eu determinei que pessoa alguma aqui se
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aproximasse, sem que eu primeiro viesse receber as ordens verbais de Sua Alteza Real.
D. João: — Deixe o povo vir como quiser, porque deseja ver‐me.
No mesmo dia, o conde da Ponte expediu dois ofícios ao Senado da Câmara. Em um deles, determinou que
os habitantes “deitem luminárias três noites sucessivas” em homenagem aos visitantes. No outro, instruiu o
presidente da Câmara a respeito de um encontro dos parlamentares com o príncipe regente, a se realizar no
dia seguinte, atendendo ao “ardente desejo, que tem a corporação desse Senado, de merecer a graça de
beijar a mão do mesmo augusto senhor”. Neste encontro o governador não pôde estar presente, pois as
tarefas de anfitrião lhe exigiam outras providências.
Além do evento político pela manhã, naquele dia 23 o príncipe ainda retornaria à cidade à tarde. Passava
das quatro horas quando desembarcou, acompanhado de sua comitiva e cercado por efusiva e curiosa
multidão. Em carruagens, foram pela Rua da Preguiça até a ladeira da Gameleira, chegando ao largo do
Theatro. Seguiram até a Igreja da Sé entre alas de soldados, que lhes faziam continências. Embalava sua
presença o canto de um Te‐Deum Laudemos entoado por músicos da cidade. Depois de toda esta cerimônia,
o príncipe voltou a bordo, onde ficara sua mãe, a rainha.
No domingo, 24 de janeiro, todos desembarcaram de forma definitiva, com exceção apenas de D. Carlota
Joaquina, que continuou voltando toda noite para dormir a bordo, mantendo‐se assim até o dia 28. A
acomodação dos visitantes mudou de imediato a rotina da cidade. D. João e família hospedaram‐se no
palácio do governador. Os outros membros da comitiva real foram para a Casa de Relação (sede da Justiça),
cujo corpo passou a fazer suas sessões nos Paços da Câmara. Os arquivos oficiais também tiveram que ser
deslocados — seu abrigo passou a ser a secretaria da Ordem Terceira de São Domingos.
Buscando agradar ao regente de todas as formas, o conde da Ponte ordenou que no dia 28 o primeiro
regimento de linha fizesse exercícios no campo do Forte de São Pedro. E lá foi o príncipe, com toda a
família, assistir à apresentação.
D. João apreciava a calorosa recepção dos súditos. Grande novidade entre os moradores, seus passos eram
acompanhados com festiva curiosidade. Certo dia, em uma caminhada pela Rua da Vitória, o monarca
decidiu distribuir dinheiro para recompensar o carinho popular: ordenou a doação de uma pataca de prata
(320 réis) a cada pessoa que se aproximasse. Também concedeu a redução de penas a presos e o perdão a
alguns criminosos.
Mas nem só de amenidades foi a rotina do príncipe regente em terras baianas. As providências oficiais
tomadas por D. João estão entre as primeiras iniciativas para reestruturar a administração do território
brasileiro. No dia 5 de fevereiro, promoveu a oficialidade local, aumentando os postos militares de todas as
armas. Expediu as primeiras ordens para a construção de 25 barcas canhoneiras, para a refundição de
canhões inúteis e para obras necessárias à defesa do porto. Tomou medidas para aumentar o efetivo do
regimento de infantaria e criou dois esquadrões de cavalaria.
Por solicitação do médico José Correia Picanço (1745‐1924), mandou criar em Salvador uma Escola de
Cirurgia, com as classes de anatomia e obstetrícia, sediada no Hospital Militar. Mais tarde, por meio de
Carta Régia, a escola foi transformada em Curso Completo de Cirurgia, originando o núcleo da futura
Faculdade de Medicina da Bahia (que seria criada em 1832).
A proibição de indústrias no Brasil — determinada pela rainha D. Maria no alvará de 1785, reafirmando a
submissão da economia colonial — começou a cair em Salvador, quando o príncipe concedeu a Francisco
Inácio de Siqueira permissão para instalar, isenta de impostos, uma fábrica de vidros. Por influência dos
comerciantes locais, que reivindicavam uma seguradora para diminuir os riscos de seus negócios, D. João
autorizou o estabelecimento da Companhia de Seguros Boa Fé.
A infra‐estrutura da futura capital do reino também começou a ser providenciada na Bahia: foi aprovado
orçamento para a abertura de uma estrada para o Rio de Janeiro e ordenado que naquela cidade se
inaugurasse uma cadeira de Ciência Econômica. A preocupação do regente é sintomática: um novo corpo
dirigente precisava ser formado para pensar um programa específico para o Estado a ser estabelecido na
Colônia. Nas palavras do próprio D. João, é “absolutamente necessário o estudo da Ciência Econômica na
presente conjuntura em que o Brasil oferece a melhor ocasião de se pôr em prática muitos dos seus
princípios, para que os meus vassalos, sendo melhor instruídos nele, me possam servir com mais vantagens”.
No mesmo decreto, a escolha do titular da nova cadeira antecipa a importância de um personagem central
na concepção de um Estado imperial brasileiro: recebeu a incumbência o economista baiano José da Silva
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Lisboa, futuro visconde de Cairu (1756‐1835).
De todas as medidas tomadas por D. João na Bahia, a de maior visibilidade e de maiores conseqüências foi a
Carta Régia de 28 de janeiro de 1808, que ficou conhecida como Decreto de Abertura dos Portos do Brasil.
O conde da Ponte deixara o príncipe a par da situação de penúria em que se encontrava a economia baiana.
A principal causa era o fechamento dos portos à saída de qualquer navio, medida tomada em outubro de
1807 pelo próprio D. João, em cumprimento ao Bloqueio Continental imposto por Napoleão. Portugal vivia
então o dilema de se defender das ameaças francesas e não perder as boas relações com os ingleses. A
vinda da família real para o Brasil demonstrou a escolha de D. João pela segunda opção, mas a prolongada
suspensão do comércio da Capitania deixou os armazéns abarrotados de açúcar e tabaco.
Não se pode atribuir apenas à inquietação dos baianos, nem só aos conselhos liberais dados ao príncipe por
Silva Lisboa, a decisão de abrir os portos ao comércio estrangeiro. Desde a Convenção Secreta de Londres,
assinada também em outubro de 1807 entre Portugal e Inglaterra, preparando o apoio inglês à
transmigração da Corte, os britânicos pleiteavam a franquia de um porto no Brasil. Pouco antes da partida
da Corte, Strangford, representante inglês em Portugal, insistiu duramente com o ministro Antônio Araújo
para que a cláusula fosse cumprida. Chegou mesmo a fazer ameaças, sendo a princípio repelido por Araújo.
Ao chegar ao Brasil, D. João cumpriu o acordo com a Inglaterra. Ao abrir os portos brasileiros ao “comércio
universal”, na prática ele beneficiava apenas os ingleses, única nação com condições de manter uma frota
mercante e explorar o Atlântico.
A estada do príncipe em terras baianas começou a se encerrar em 24 de fevereiro de 1808. Subiram a bordo
nesse dia, mas os ventos pouco favoráveis não deixaram a comitiva partir. Chegaram a voltar para terra no
dia 25, zarpando definitivamente no dia 26 de fevereiro.
A partida não foi do agrado dos baianos. Desde o primeiro momento em que o monarca pisou seu solo, já se
articulava a permanência definitiva da Corte e a troca do Rio de Janeiro por Salvador como capital do reino.
Para os vereadores, a localidade era merecedora “de ser elevada a Dignidade de Capital”, por isso
solicitavam ao príncipe que “estabeleça a sua residência nesta cidade, como aquela construída para cabeça
de um império”. Para tanto, os comerciantes se ofereceram para construir um majestoso palácio.
Já no fim da estada, uma última tentativa de reter o príncipe foi registrada em uma memória de louvores a
Salvador, de autoria do advogado Balthazar da Silva Lisboa, irmão do futuro visconde de Cairu. A
representação aconselhava a escolha da Bahia como capital do Brasil. Alguns trechos mostram o teor
suplicante dos baianos. Sobre a importância de Salvador: “Ela foi a primeira terra do Brasil povoada, e a sua
capital, e foi também a primeira que saiu a receber seu Soberano, o senhor pai da pátria para beijar a
Régia e Augusta mão. A sua elevada posição parece ter sido desenhada pela natureza, com o destino de aí
erigir o trono do maior dos Soberanos”. Sobre o porto e a geografia: “A abertura do porto por seu vistoso
arquipélago onde podem ancorar todas as armadas do mundo, vários e navegáveis rios que nele entram por
muitas foz. (...) O seu incomparável porto, o mais belo do mundo, está como no centro das colônias de V.
A., que dominando a África lhe abre uma comunicação tanto mais fácil com a Ásia”. A tentativa de
convencimento pela perspectiva de consolidação de poder: “Vastas matarias ao sul estão convidando aos
povos a admirar a variedade das suas grossas madeiras, atraindo‐os ao trabalho de fabricar tão respeitável
marinha que segure não só a estabilidade do trono Lusitano, mas uma superioridade que ganhe respeito e
admiração das nações que habitam na Europa”.
Um canto entoado na época ilustra o sentimento geral dos baianos sobre o que estavam prestes a perder:
Meu príncipe regente
Não saias daqui
Cá ficamos chorando
Por Deus e por ti...
Mas nada poderia demovê‐lo. O próprio conde da Ponte deu parecer encampando a decisão de sediar a Corte
no Rio de Janeiro, convencido principalmente pelas vantagens militares envolvidas.
Assim, apesar de todas as tentativas dos baianos de mudar os rumos da História, ela já estava minimamente
estabelecida. De qualquer forma, em pouco mais de 30 dias, as ações de D. João na Bahia foram um
pequeno ensaio do que seria o período joanino no Brasil.
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Eduardo Borges é mestre em História Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professor na
Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e nas Faculdades Jorge Amado.
Saiba Mais:
SOUSA, Afonso Rui de. História Política e Administrativa da Cidade do Salvador. Salvador: Prefeitura
Municipal, 1949.
MORAIS, Melo. História da Transladação da Corte de Portugal para o Brasil em 1807‐1808. Rio de Janeiro:
Ed. Dupont, 1872.
PINHO, José Wanderley de Araújo. A Abertura dos Portos. Salvador: Publicações da Universidade Federal da
Bahia, 1961.
NORTON, Luís. A Corte de Portugal no Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1979.
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