MARCELO MOURA MELLO
CAMINHOS CRIATIVOS DA HISTÓRIA:
TERRITÓRIOS DA MEMÓRIA EM UMA COMUNIDADE
NEGRA RURAL
Dissertação de Mestrado em Antropologia Social,
apresentada ao Departamento de Antropologia do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do
Título de Mestre em Antropologia Social.
Orientadora: Profª Dra. Emília Pietrafesa de Godoi
CAMPINAS
2008
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP
M489c
Mello, Marcelo Moura
Caminhos criativos da história: territórios da memória em uma
comunidade negra rural / Marcelo Moura Mello. - - Campinas,
SP : [s. n.], 2008.
Orientador: Emília Pietrafesa de Godoi.
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
1. Quilombos – Rio Grande do Sul . 2. Quilombos - Cambará
(RS). 3. Relações étnicas. 4. Negros – História. I. Godoi, Emília
Pietrafesa de. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas. III.Título.
(cn/ifch)
Título em inglês: Creative paths of history: territories of memory in a
black rural community
Palavras chaves em inglês (keywords):
Marrons – Rio Grande do Sul
Marrons – Cambará (RS)
Ethnic relations
Blacks - History
Área de Concentração: Antropologia Social
Titulação: Mestre em Antropologia Social
Banca examinadora:
Emília Pietrafesa de Godoi, João Pacheco de Oliveira,
John Manuel Monteiro
Data da defesa: 01-07-2008
Programa de Pós-Graduação: Antropologia Social
ii
MARCELO MOURA MELLO
CAMINHOS CRIA TIVOS DA HISTÓRIA:
TERRITÓRIOS DA MEMÓRIA EM UMA COMUNIDADE NEGRA RURAL.
Dissertação apresentada ao Departamento de
Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas
da Universidade
Estadual
de
Campinas para obtenção do grau de Mestre
em Antropologia Social sob a orientação da
Profa. Dra. Emília Pietrafesa de Godói.
Este exemplar
corresponde
à
redação
final
da
Dissertação
defendida
e
aprovada
pela
Comissão Julgadora em 01/07/2008
Comissão Julgadora:
de Godói (Presidente)
Prot. Dr.
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Campinas
julho 2008
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MARCELO MOURA MELLO
CAMINHOS CRIATIVOS DA HISTÓRIA:
TERRITÓRIOS DA MEMÓRIA EM UMA COMUNIDADE NEGRA
RURAL
Dissertação apresentada ao Departamento de
Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Estadual de
Campinas para obtenção do grau de Mestre em
Antropologia Social sob orientação da Profa.
Dra. Emília Pietrafesa de Godoi.
Este exemplar corresponde à redação
final da dissertação defendida e
aprovada pela Comissão Julgadora
em 01 de julho de 2008.
Banca Examinadora:
Profª Dra. Emília Pietrafesa de Godoi
Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira
Prof. Dr. John Manuel Monteiro
Campinas
Julho 2008
iii
Ao Pancho
v
AGRADECIMENTOS
No momento em que escrevo estas páginas, diversos sentimentos me atravessam.
Distintas pessoas assomam minha mente. Variadas maneiras de registrar os agradecimentos
me afiguram possíveis. Mas a principal questão é como colocar algo vivido e
compartilhado em palavras; como não transformar um reconhecimento em uma
formalidade. Talvez uma forma de superar essas inquietações consista em enxergar esse
momento como um motor de um circuito de trocas. Trocas com uma data de surgimento
que necessitam ser continuamente alimentadas para perdurarem. Esses agradecimentos são
mais do que reconhecimento; são alimentos.
Agradeço, primeiramente, à CAPES e à FAPESP por fornecerem-me às condições
de possibilidade de realização desta pesquisa. Ao (a) parecerista anônimo (a) da FAPESP
sou grato pelas sugestões.
A todos os funcionários e funcionárias dos arquivos históricos de Porto Alegre e
Cachoeira do Sul.
Às minhas famílias, especialmente minhas mães, por darem o apoio necessário e
não sucumbirem às minhas obsessões.
Pelo intercâmbio de idéias e risadas (às vezes para não chorar) agradeço a todos
aqueles que trabalharam comigo em Cambará, em especial a Adriana Fonseca, Alejandro
Gimeno, Ieda Ramos, Lucio Centeno, Luisa Sousa, Leonardo Santos, Nola Gamalho e
Rosane Rubert. Várias das idéias presentes neste trabalho provêm de vocês.
Aos amigos do Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes de
Quilombo, especialmente a José Carlos Rodrigues, Paulo Sérgio da Silva, Rita de Cássia
Camisolão e Ubirajara Toledo.
José Otávio Catafesto de Souza e Sérgio Baptista, por sorte, persistem sendo
interlocutores. A eles manifesto minha gratidão.
Lygia Sigaud e Dominique Gallois, em momentos pontuais, mas decisivos, deram
aulas sobre como conciliar sensibilidade e olhar crítico.
A Mauro Almeida pela sua postura pessoal e profissional.
vii
A Robert Slenes pelas valiosas sugestões no exame de qualificação.
Agradeço aos amigos e colegas Graziele Ramos, Iracema Dulley, Luiz Fernando
Fagundes e Raúl Ortiz pelo intercâmbio de idéias e pelas rigorosas leituras. Nossos
diálogos deram forma a conteúdos de outro modo vazios.
A João Pacheco de Oliveira pela estimulante e rigorosa argüição na defesa desta
dissertação.
A John Monteiro por ter acompanhado com interesse e atenção minha pesquisa e ter
participado de todas as etapas da minha pesquisa de mestrado
A José Carlos dos Anjos. Esta dissertação deve muito a ele e suas idéias. Manifesto
aqui minha gratidão, estima e profundo reconhecimento.
A Emília Pietrafesa de Godoi pela orientação precisa, segura e rigorosa.
A Marcela Franzen Rodrigues, companheira em todos os lugares, espaços,
distâncias e contextos.
Por fim, meu maior débito é com os amigos e amigas de Cambará. A acolhida e os
ensinamentos foram inestimáveis para minha vida. Acreditem, nossos contatos pessoais,
por mais que sejam intermitentes, me acompanham sempre.
viii
O tempo é um rato roedor das coisas, que as diminui ou
altera no sentido de lhes dar outro aspecto. [...] Há, nos
mais graves acontecimentos, muitos pormenores que se
perdem, outros que a imaginação inventa para suprimir
os perdidos, e nem por isso a história morre.
Machado de Assis, Esaú e Jacó.
ix
RESUMO
O presente trabalho investiga o papel desempenhado pela memória em uma dinâmica
identitária em curso na comunidade negra rural de Cambará, localizada na região central do
estado do Rio Grande do Sul. Desde o início desta década, a referida comunidade vem
reivindicando a identidade de remanescente de quilombo e o cumprimento das garantias
constitucionais previstas, em legislação, a tais grupos, especialmente a titulação de suas
terras. Para além da questão da mobilização da memória em contextos de reivindicações
identitárias, busca-se perceber as dimensões de justiça presentes nas narrativas sobre o
passado. Situam-se essas narrativas por meio da descrição dos diferentes contextos onde se
deu a expressão de experiências, sem, contudo, reduzi-las a meras adequações ao contexto
político contemporâneo.
Palavras-chave: Remanescentes
Comunidades Negras Rurais.
de
Quilombo,
xi
Etnicidade,
Memória,
História,
ABSTRACT
The present work investigates the role played by memory in a dynamics of identity
formation taking place in the rural black community of Cambará, located in the central
region of the Brazilian state of Rio Grande do Sul. The community has been claiming a
maroon-descendant identity and compliance with the constitutional guarantees such groups
are entitled to, especially land titling. Besides aiming at understanding how memory is
activated in contexts of identity claim, this study focuses on the dimensions of justice found
in narratives about the past. These narratives are situated by means of the description of the
different contexts in which the expression of experiences occurred; an attempt is made not
reduce these experiences to mere adaptations to the contemporary Brazilian political
context.
Key-words: maroon-descendant communities
communities
xiii
ethnicity, memory, history, black rural
LISTA DE FIGURAS
Figura 1
Mapa de localização de Cambará ............................................................
11
Figura 2
Croqui de Cambará ..................................................................................
13
Figura 3
Mapa das trilhas de caça e pesca .............................................................
15
Figura 4
Jorge Pereira Lopes .................................................................................
22
Figura 5
Orcindo Machado ....................................................................................
64
Figura 6
Reunião no coleginho ..............................................................................
91
Figura 7
Cerimônia de entrega do laudo ................................................................
92
Figura 8
Mapa da Província de São Pedro (1809) .................................................
107
Figura 9
Genealogia de Orcindo Xavier Machado ................................................
116
Figura 10
Genealogia de Geraldo Trindade da Silva ...............................................
117
Figura 11
Genealogia senhorio Gonçalves da Trindade ..........................................
118
Figura 12
Aliança entre João Antonio/Joaquim Antonio .........................................
119
Figura 13
Genealogia senhorio ................................................................................
121
Figura 14
Medição da sesmaria da Palma ...............................................................
140
Figura 15
Alianças Cambará ....................................................................................
147
Figura 16
Genealogia Cavalheiro/Ferreira ...............................................................
169
Figura 17
Genealogia Xavier/Machado ...................................................................
170
Figura 18
Genealogia Ramos ...................................................................................
189
Figura 19
Evonir e Odir Ramos ...............................................................................
191
Figura 20
Medição Gaspar de Souza Trindade ........................................................
193
Figura 21
Medição Fazenda de Santa Bárbara .........................................................
194
Figura 22
Croqui Márcio .........................................................................................
199
Figura 23
Sobreposições no mapa ...........................................................................
201
Figura 24
Márcio, coordenador do laudo e técnicos do INCRA .............................
203
Figura 25
Isaura e o laudo ........................................................................................
204
Figura 26
Arquivos de Márcio .................................................................................
206
xv
Figura 27
Maria Ferreira ..........................................................................................
215
Figura 28
Geraldo da Silva ......................................................................................
226
Figura 29
Emiliano Ferreira .....................................................................................
235
Figura 30
Genealogia Lopes ....................................................................................
239
Figura 31
Muro da fazenda ......................................................................................
260
xvi
LISTA DE QUADROS
Quadro 1
Filhos João Inácio Machado e Camila Maria Martins ............................. 114
Quadro 2
Escravos de Manoel Gonçalves da Trindade ........................................... 122
Quadro 3
Escravos de Vicência Rosa dos Anjos ..................................................... 123
Quadro 4
Escravos de Gaspar de Souza Trindade ................................................... 124
Quadro 5
Escravos de Manoel Gonçalves da Trindade (filho) ............................... 124
Quadro 6
Escravos de Alípio Corrêa da Silva ......................................................... 125
Quadro 7
Escravos legados por Alípio Corrêa da Silva .......................................... 126
Quadro 8
Matrícula dos escravos de Alípio Corrêa da Silva .................................. 127
Quadro 9
Apadrinhamento Corrêa da Silva ............................................................ 128
Quadro 10 Escravos da família Walmarath ............................................................... 129
Quadro 11 Escravos da família Costa ........................................................................ 129
xvii
LISTA DE SIGLAS
ACQUICAMBARÁ – Associação Comunitária Remanescentes de Quilombo de Cambará
AHMCS – Arquivo Histórico do Município de Cachoeira do Sul
AHRS – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
APERS – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul
CONAQ – Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais
DEDS – Departamento de Educação e Desenvolvimento Social (PROREXT/UFRGS)
EMATER/RS – Escritório regional de empreendimentos de assistência técnica e extensão
rural
FCP – Fundação Cultural Palmares
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
FUNASA – Fundação Nacional de Saúde
IACOREQ – Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes de Quilombo
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário
MDCS – Mitra Diocesana de Cachoeira do Sul
MHCS – Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
MNU – Movimento Negro Unificado
NUER – Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Interétnicas
PROREXT – Pró-Reitoria de Extensão (UFRGS)
SEPPIR – Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
STCAS – Secretaria Estadual do Trabalho, Cidadania e Assistência Social (RS)
UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina
UNISOL – Programa Universidade Solidária
xviii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................
1
i.1 As móveis fronteiras ...............................................................................................
3
i.2 Interface indígena ...................................................................................................
5
i.3 Cambará ..................................................................................................................
9
i.4 Inserções em campo ................................................................................................
16
i.5 Entrevistando a vida dos outros ............................................................................
18
CAPÍTULO 1 – PROBLEMAS E PROBLEMATIZAÇÕES TEÓRICAS ............
23
1.1 Conversões teóricas ..............................................................................................
23
1.2 Reminiscências .......................................................................................................
30
1.3 Identidades históricas ............................................................................................
33
1.4 Práticas históricas ..................................................................................................
40
1.5 Aproximações da história ......................................................................................
42
1.6 Uso das fontes e narrativas ...................................................................................
47
1.7 O estatuto dos documentos ...................................................................................
50
CAPÍTULO 2 – CAMBARÁ E SUAS SITUAÇÕES ...............................................
55
2.1 Categorias de identificação ...................................................................................
56
2.2 Campo interétnico .................................................................................................
60
2.3 Divisões ...................................................................................................................
64
2.4 Associação quilombola ..........................................................................................
68
2.5 As coisas dadas .......................................................................................................
70
2.6 Fraturas identitárias ..............................................................................................
73
2.7 Políticas de inclusão e exclusão .............................................................................
82
2.8 Ocupando espaços ..................................................................................................
86
2.9 A expressão da identidade .....................................................................................
95
CAPÍTULO 3 – A FORMAÇÃO DE UM TERRITÓRIO NEGRO ......................
102
3.1 Chegando aos mortos através dos vivos ..............................................................
102
3.2 Ocupação da sesmaria da Palma ..........................................................................
104
xix
3.3 Brechas na Palma ..................................................................................................
110
3.4 Teias de parentesco ................................................................................................
120
3.5 A ponta do nariz .....................................................................................................
131
CAPÍTULO 4 – O TERRITÓRIO INSCRITO ........................................................
150
4.1 Projetos de liberdade .............................................................................................
151
4.2 Justaposição de vozes ............................................................................................
154
4.3 O pano do pé cortado ............................................................................................
161
4.4 Os furtos de gados ..................................................................................................
167
4.5 A autoridade do feitor ...........................................................................................
180
4.6 Espaços de liberdade .............................................................................................
188
4.7 Paisagens da memória ...........................................................................................
195
4.8 O passado no presente ...........................................................................................
209
4.9 Maria e as imagens ................................................................................................
214
CAPÍTULO 5 – O REGIME DA CRIAÇÃO ............................................................
216
5.1 Reduplicações do tempo ........................................................................................
218
5.2 Crias da casa ..........................................................................................................
226
5.3 Tempo difuso ..........................................................................................................
236
5.4 A sonoridade da história .......................................................................................
244
CONSIDERAÇÕES FINAIS – INVENÇÃO, INVENTIVO E CRIATIVO ...........
251
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................
261
xx
INTRODUÇÃO1
Isso foi uma coisa que eu não alcancei. Esta resposta foi recorrente em diversas
entrevistas e conversas com os moradores da comunidade negra rural de Cambará. Instados
a falar sobre a história do lugar, os sabedores (pessoas com conhecimento do tempo dos
antigos) comumente apontavam os limites de suas lembranças, bem como delimitavam o
que viram ou ouviram os antigos dizer – pois há uma sensível diferença entre presenciar
e/ou protagonizar um evento e ouvir falar dele. O alcance da memória dos integrantes de
Cambará sobre fatos, pessoas e lugares parece-me uma via interessante para discutir
algumas das questões norteadoras desta dissertação.
Desde o final da década de 90, essa comunidade (definição êmica) foi alçada a uma
nova condição. A auto-identificação de remanescente de quilombo e a reivindicação dos
direitos garantidos constitucionalmente a essas coletividades – especialmente a titulação de
suas terras com base no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da
Constituição Federal de 19882 – conferiu-lhe uma nova visibilidade. O círculo de interação
aumentou significativamente, influindo decisivamente na auto-imagem grupal. A memória
expandiu-se, atravessando os limites locais de circulação e transmissão das lembranças e
alcançado outros espaços e situações. Em conseqüência, a história do lugar assumiu um
novo papel, sendo evocada como princípio de justificação das demandas do presente e
recebendo um renovado interesse por parte de seus integrantes.
Diante deste cenário, elaborei um projeto de pesquisa que objetivava pensar a
correlação entre identidade étnica e memória. Perguntava pelas reelaborações da memória
em função do contexto presente baseado no pressuposto (do qual ainda sou adepto) de que
essa correlação não é pré-estabelecida, tampouco o passado determina de forma unívoca a
1
Nesta dissertação, falas locais são grafadas em itálico. Grifo em itálico apenas quando da primeira
ocorrência de expressões ou palavras. Reticências referem uma pausa ou descontinuidade nas falas. Citações
de livros e trechos de documentos aparecem entre aspas. Reticências entre parênteses referem à exclusão de
um trecho de falas, documentos ou citações. Ênfases minhas são feitas em negrito e com aspas simples. Em
ocasiões que exigem mais discrição, alguns nomes foram modificados ou suprimidos.
2
“Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
1
manifestação da diferença. Se um dos diferenciais da identidade étnica em face de outras
identidades sociais é o fato dela estar voltada para o passado (Streiff-Fenart; Poutignat
1997; Vermeulen; Covers, 1997), restava saber como o passado é reelaborado em função
das novas situações com as quais o grupo se defronta no presente, e não como aquele
determina este.
Esta perspectiva está fortemente ancorada nas formulações da teoria da etnicidade,
em especial em seu principal representante, Fredrik Barth. Formulada enquanto conceito,
essa teoria afastou-se das concepções que enfatizavam os traços objetivos capazes de
definir a pertença. A trajetória histórica dos grupos étnicos não refere a uma estabilidade
imutável, mas sim à constante formulação de diacríticos situacionais. Na constituição da
etnicidade há uma descontinuidade real e uma ênfase na imutabilidade aparente do produto.
Ou seja, o que se apresenta como imutável, original, intocado, é, de saída, um projeto,
denotando aquilo que Carneiro da Cunha (1985) chamou de “fidelidade espectral”. O
caráter histórico das filiações com o passado ia de encontro, igualmente, às formulações de
Hobsbawm e Ranger (1997 [1983]) sobre a “invenção das tradições”: as memórias e os
traços distintivos, por mais que se apresentem de forma coesa e homogênea, são datadas e
não remetem ao acabado.
Porém, o modelo da invenção das tradições “sugere um artifício, dando a impressão
de um passado falsificado improvisado para fins políticos” (Sahlins, 2004:5). O ponto a
salientar não é a presença inelutável da autenticidade cultural e sim qual o instrumental
analítico mobilizado na historicização dos sujeitos da pesquisa. A invenção está aberta a
diversas leituras, pois pode ser tomada tanto em sua acepção de fantasia como na acepção
de criatividade. Nesse tocante, talvez seja mais interessante pensar a invenção no sentido
proposto por Roy Wagner. Wagner (1981) atenta não apenas para a extensão inovativa dos
significados culturais em função de contextos específicos – enfocando não o que é dado,
mas sim produzido –, como propõe uma reversibilidade: em geral, as ‘concepções nativas’
apontam a insuficiência conceitual da antropologia na apreensão da realidade dessas
coletividades, exigindo uma renovação dos significados dos nossos conceitos (processo
denominado por Wagner de a “invenção da antropologia”).
2
E aqui a questão do alcance surge novamente. Qual o alcance do olhar
antropológico na apreensão da realidade vivenciada pelos sujeitos da pesquisa? Em
diversos momentos compartilhados com homens e mulheres de Cambará, o que meu olhar
via – ou procurava – não era o mesmo visualizado por essas pessoas. É como se postos lado
a lado para olhar a mesma paisagem, cada observador apreendesse certos detalhes. Um
observador podia olhar uma árvore, outro, um galpão. A paisagem podia reportar um
cenário de vivências passado, ou expectativas quanto ao futuro. Zonas de sombra e silêncio
podiam florescer, tornando visível o recalcado e dando um novo formato à paisagem. A
questão não é tanto o campo visual de cada um, e sim o alcance de cada olhar. Alcance
remete também às distâncias que se podem atingir. Não falo das limitações mnemônicas,
mas dos limites mesmos da plasticidade da memória. A invenção não é mera manifestação
do largo alcance dos fluxos mais amplos desencadeados pelo Estado, mas também, e
principalmente, atividade criativa.
i.1 As móveis fronteiras
Na tentativa de compreender os meandros da assunção quilombola em Cambará, foi
necessário situar as filiações com o passado – e os fatores diacríticos da identidade grupal –
em contextos intersocietários bem definidos. A relação com o exterior, potencializada nos
últimos anos, é constitutiva dessa comunidade e a ‘memória coletiva’ do lugar não se limita
a quadros sociais locais, embora seja formulada em quadros bem específicos, como não
podia deixar de ser. Essa assunção faz com que os limites definidores do grupo estejam
situados em fronteiras bem móveis.
A própria definição da comunidade revela isso. Embora as famílias indiquem sua
residência conforme o núcleo no qual vivem, todos são definidos e se definem como
membros da comunidade de Cambará3. Ocorre que algumas políticas públicas destinadas a
Cambará têm abarcado famílias de mais duas comunidades negras adjacentes, as
comunidades de Palmas e Roseira, localizadas entre 8 e 15 km dali, respectivamente. Há
3
É bem provável que esta categoria tenha sido incorporada pelo grupo em virtude do contato com agentes
externos. Já em 2003, ano de minha primeira estada no local, comunidade era um termo empregado por
muitos moradores.
3
relações de parentesco entre essas três localidades, mas senão recentemente, e em razão dos
benefícios para os quilombos, que esses laços foram acionados para conferir coerência à
inclusão de Palmas e Roseira como público-alvo de políticas públicas para remanescentes
de quilombo. Acresce também que essa foi uma iniciativa da liderança do local, e não de
todos os moradores.
Duas abordagens afiguraram-se possíveis para se pensar essa questão. Ou o escopo
de minha pesquisa seria ampliado e incluiria essas famílias como sujeitos da pesquisa, ou
então mantinha a pesquisa circunscrita aos quatros núcleos constituintes de Cambará. Duas
razões levaram-me a optar pela segunda alternativa. Em primeiro lugar, o fato de ainda
haver um nítido recorte entre Cambará e essas duas outras comunidades. Em segundo lugar,
ter como preceito a idéia de que ‘comunidade’ não refere a uma coletividade autosuficiente e restrita a si mesma. As relações com o exterior fazem parte mesmo de sua
definição, como já notaram vários autores, dentre eles Wolf ([1955] 2003). Sendo assim, eu
perguntaria pelas configurações assumidas pelo grupo em razão das relações entretidas com
o exterior. Essa questão é concomitante a outro aspecto colocado por essa assunção, que é
da própria dinâmica identitária em jogo. De um lado, o círculo de interação ampliou-se,
incluindo hoje em dia estudantes universitários, antropólogos, militantes do movimento
negro, técnicos governamentais, gestores de políticas públicas, etc. De outro, as interações
com os agentes ‘locais’ e vizinhos tomam novas feições. Assim, é necessário indagar a
influência dessas interações na configuração atual da comunidade.
Neste tocante, a interface com a história surge de imediato: trata-se de investigar
como a unidade é construída em um contexto relacional, não supô-la como dado de
antemão. As relações locais se assentam em novos parâmetros em função da relação com o
‘exterior’. A assunção quilombola não pode ser entendida referindo-se apenas ao local, mas
também, e sobretudo, aos contextos mais amplos nos quais a comunidade está imersa. Mas
se tudo isso é verdade, será que não incorremos no risco de tratar a história e a constituição
dos grupos étnicos como manifestações de lógicas que os superam? Não haveria uma
contradição ao situar os ‘nativos’ na história às custas de tratá-los como coadjuvantes
tragados por algo que os supera? Para ser mais preciso, com qual história estamos lidando?
Com aquela que modela e supera os grupos étnicos? Ou com aquela elaborada por eles
4
mesmos, em contextos bem determinados é verdade, mas que não deixa de ser feita à sua
maneira? Se a semelhança com o passado remete mais a um projeto e menos a um fato, em
quais bases se assenta esse retorno ao passado? A uma trajetória histórica, respondo; a
juízos práticos, esquemas de avaliação e percepção incrustados por experiências históricas.
Para além da questão da mobilização da memória em função dos ‘novos direitos’
advindos da identificação de remanescente de quilombo, busco perceber as dimensões de
justiça incrustadas nas narrativas de homens e mulheres de Cambará. Atualmente, a história
do lugar tem sido evocada, especialmente pelas lideranças, como justificação das demandas
da comunidade, especialmente territoriais. Nesse caso, cabe acompanhar o plano de
pesquisa traçado por Boltanski e Thévenot (1991) e centrar a análise naquilo que é
mobilizado pelos sujeitos nas disputas ordinárias e na justificação das mesmas. Os fatos,
afetos, objetos, pessoas e seres mobilizados pelas narrativas são considerados legitimadores
das pretensões de justiça do grupo justamente por expressarem dimensões de justiça. Ou
seja, os ‘novos direitos’ são interpretados a partir das experiências desses sujeitos. Assim, a
história e a memória não expressam apenas a persecução consciente de interesses coletivos,
mas também as dimensões morais da luta por reconhecimento (Honneth, 2003).
Após expor as situações nas quais Cambará se vê imersa e os efeitos da assunção
quilombola na sua configuração atual, acompanharei os eventos históricos tidos por
marcantes para os homens e mulheres dessa comunidade. Farei isso por meio de relatos e
fontes documentais. Centrar-me-ei nos padrões de relevância do passado fixados pelos
sujeitos da pesquisa. Fixação esta que não está em definitivo fixada: as novas situações com
as quais se deparam incitam novos olhares e retornos ao passado. Essa fixação é informada
pelas experiências incrustadas por uma trajetória histórica, tratando-se do trabalho da
memória, não da plasticidade irrestrita dela. Antes de expor o campo etnográfico, devo
fazer menção a outra interface proposta nesta dissertação.
i.2 Interface indígena
No Brasil, embora a ‘fábula das três raças’ pressuponha relações profundas e
persistentes entre populações indígenas e africanas, houve uma divisão do trabalho
5
acadêmico na qual se passou a dimensionar estas categorias separadamente, com
implicações conceituais e teóricas que dificultam o intercâmbio de idéias entre situações
etnográficas com indagações e dilemas similares4. Recentes pesquisas – tanto etnográficas
quanto historiográficas – vêm transitando nessas áreas de conhecimento em pelo menos
dois níveis: do convívio histórico dessas populações e do contato intenso de membros
desses grupos nas suas lutas por reconhecimento. O diálogo com a produção bibliográfica
sobre populações indígenas é proveitoso ao se pensar o passado e o presente do grupo com
o qual me ocupo nesta dissertação.
A documentação do século XIX sobre a região onde hoje Cambará fica localizada,
revela a existência de relações cotidianas entre indígenas, africanos e afro-descendentes.
Casamentos e apadrinhamentos parecem ter sido uma constante durante o século XIX, em
especial na primeira metade, época na qual há uma massiva presença de índios classificados
como “missioneiros” na região5. Este quadro demonstra não só um contato duradouro entre
esses povos, mas também a necessidade de relativizar a fixidez do significado de categorias
étnico-raciais ao longo da história. Pelo pouco que pôde ser apurado, não raro descendentes
de indígenas foram classificados como “pardos” nos assentos de batismo eclesiásticos.
Infelizmente os limites desta dissertação impedem a exploração em nuanças dessas
interações. No capítulo sobre a formação territorial de Cambará, os dados compulsados
permitem inferir a existência dessas relações – certamente passíveis de incremento6 –,
demonstrando que os territórios negros isolados e homogêneos foram antes exceções do
que regra.
A visibilização das comunidades remanescentes de quilombo tem gerado a
apropriação de referenciais teóricos inicialmente empregados no estudo sobre populações
indígenas em outro nível. A luta por direitos e pelo reconhecimento põe em cena problemas
4
Ver Arruti (1997).
Retenha-se que o contato ‘afro-ameríndio’ não remete necessariamente a amistosidade ou a união de ‘povos
oprimidos’. A bibliografia sobre o tema no Brasil indica diversos níveis de relações que podem variar
conforme a conjuntura (Bastide, 1996; Gomes, 1999; 2005a; Schwartz, 2003), como parece ter sido o caso
para o restante das Américas (Hill, 1996; Brooks, 2002)
6
Nos últimos anos, investigações sobre a escravidão no Rio Grande do Sul vêm ganhando vulto. Quanto à
história indígena, também há um incremento, mas muito escasso ainda. A maioria dos trabalhos versa sobre as
Missões Jesuíticas, concentrando-se principalmente no programa de pós-graduação em história da PUCRS
(Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul). Já o tema das ‘relações afro-ameríndias’ permanece
inexplorado. Para um guia bibliográfico sobre a escravidão no Brasil Meridional, ver Xavier (2007).
5
6
similares aos enfrentados pelo campo de ação indigenista. Empregada por Roberto Cardoso
de Oliveira nos estudos das áreas de fricção interétnica desde a década de 60, a teoria da
etnicidade tem sido um dos referenciais fundantes da ainda incipiente bibliografia sobre as
comunidades quilombolas. De certo modo, o ‘reconhecimento quilombola’ alterou a
associação (espontânea) entre etnia/indígenas, raça/negros7.
Presencia-se, na atualidade, situações de estreito contato entre indígenas e
quilombolas em reivindicações identitárias8. Mesmo quando não se observa um contato
direto entre tais populações, é comum que se estabeleça alguma comunicação entre suas
experiências e trajetórias, como é o caso de Cambará. Índios mybá-guarani vivem nas
proximidades, num acampamento à beira da BR-290, e também estão com a terra em
questão. Como justificarei nas próximas páginas, não me deterei extensamente na relação
entre os moradores de Cambará e os indígenas, pois, até o momento, não há uma influência
marcante da ‘luta indígena’ na ‘luta quilombola’. Entretanto, percebe-se, desde o início
desta década, a aproximação das lideranças no intuito de trocar impressões e aprendizados
advindos do trato com mediadores do movimento social e dos órgãos políticoadministrativos.
Desde que a FUNASA (Fundação Nacional de Saúde) passou a desenvolver ações
em Cambará, é comum os moradores citarem a FUNAI (Fundação Nacional do Índio)
como responsável pela chegada da água e das instalações sanitárias no local. Mais do que
uma mera confusão, tal associação parece derivar da percepção de serem ‘protegidos’ pelo
governo, tal como ocorre com os indígenas. O governo Lula é visto como o que mais fez
pelos pobres por diversas pessoas. A novidade, em comparação com Getúlio Vargas, de
acordo com alguns membros do grupo, por exemplo, é que os negros vêm sendo
contemplados por políticas governamentais específicas, algo inédito até então.
Como se vê, não faltam elementos para atravessar fronteiras e delimitações
acadêmicas. Ao longo da exposição, me apropriarei de parte da fortuna crítica sobre
7
Está para ser feito um balanço das filiações institucionais entre pesquisadores das populações indígenas e
autores que têm trabalhado com remanescentes de quilombo, bem como a influência da formação nos quadros
de certo viés indigenista na conformação do ‘campo quilombola’. Há ainda a ‘migração’ de especialistas entre
um campo e outro.
8
Ver Arruti (2002; 2006).
7
populações indígenas para tentar jogar luz sobre certas situações etnográficas presenciadas
em Cambará em pelo menos dois níveis: a já aludida problematização da associação
espontânea entre etnia/índios, raça/negros e ao nível da discussão sobre história e
antropologia.
O quadro teórico fornecido pela teoria da etnicidade é indispensável para pensar as
configurações identitárias das comunidades (hoje) classificadas e auto-reconhecidas como
quilombolas. Ao pôr em relevo o caráter situacional e contrastivo da identidade étnica, boa
parte da bibliografia dessubstancializa a noção de ‘negritude’. Mas há que se pensar se a
dimensão racial dos conflitos e fronteiras entre populações quilombolas e não-quilombolas
acaba por ser negligenciada ao se apostar exclusivamente no vocabulário da etnia. Não se
trata de uma associação (essencialista) entre raça e cultura. Trata-se da existência de um
cotidiano racializado qualificado pelos agentes enquanto tal. Assim, não há como pensar
Cambará sem pensar o racialismo que atravessa a percepção cotidiana dos agentes. A
discussão sobre ‘raça’ perpassa o texto por ser essa uma realidade bem presente na vida
dessas pessoas, no presente e no passado.
Da teoria da etnicidade desprende-se outra questão teórica fundamental. Na
perspectiva analítica de Barth se inverte a postura tradicional de que primeiro as unidades
culturais são definidas e organizadas, depois mantêm relações externas umas com as outras
(Oliveira, 1989:58-9). É na apreensão de contextos e situações históricas bem determinadas
que as identidades sociais são constituídas. Aqui se descortina uma possível via de diálogo
com a história, pois se trata de perguntar não pela alteridade como dado, mas como ela se
torna um dado. Foi justamente no campo de estudos das populações indígenas que tal plano
de pesquisa surgiu com maior vigor, especialmente com João Pacheco de Oliveira. Em suas
obras percebe-se um amplo e fecundo debate com teóricos que vêm tecendo críticas a
alguns cânones da antropologia.
Há outra linha de investigação nessa área de saber que problematiza a relação entre
antropologia e história sob outro viés. Baseados em grande medida numa crítica aos
teóricos do sistema-mundial, diversos pesquisadores centram suas pesquisas na
incorporação dos processos macrosociais no quadro das tradições indígenas. Tal plano de
8
pesquisa caracteriza-se por tentar colocar os índios como sujeitos ativos de sua história, e
não meras vítimas passivas de uma história que os sobrepuja.
Tais são as razões que justificam um franco debate entre essas tradições acadêmicas.
Estando cônscio do longo caminho a ser percorrido, acredito que há muito a aprender com
os estudos sobre populações indígenas. O desenvolvimento de hipóteses e teorias
estimulantes por diversos pesquisadores dessa área de conhecimento é um incentivo para
aproveitá-las ao máximo, sem a necessidade de erigir uma divisão ‘ou tudo ou nada’ entre
planos de pesquisa.
Antes de apresentar a estrutura da dissertação, algumas palavras sobre o campo
etnográfico.
i.3 Cambará9
Localizada na zona limítrofe dos municípios de Cachoeira do Sul e Caçapava do Sul
(região central do estado do Rio Grande do Sul), Cambará é constituída por quarenta
famílias distribuídas em quatro núcleos territoriais com estreitas relações de parentesco
entre si: Rincão das Vassouras Brancas, Pinheiros, Cambará e Irapuá. Cada família possui
uma história própria e se estabeleceu na região em períodos distintos. A composição atual
da comunidade é sustentada pelas alianças, forjadas em contextos bem específicos, mas
remetidas a um passado distante. A origem das terras remonta a primeira metade do século
XIX, quando ex-escravos adquirem quinhões no mesmo local onde hoje vivem alguns de
seus descendentes. Com o fim do regime escravista, diversos indivíduos passaram a residir
ali, seja pelo apossamento ou pela compra. Essas pessoas casaram com os residentes mais
antigos do local, forjando laços solidificados através de sucessivas gerações (para mais
detalhes, ver capítulos três e quatro)
9
Alguns dos dados utilizados nesta seção advêm do levantamento sócio-econômico realizado durante a
pesquisa que resultou no laudo antropológico. Questionários foram aplicados conforme a indicação da
associação de moradores, em janeiro de 2006, totalizando 105 pessoas. Entre janeiro de 2006 e o presente,
algumas crianças nasceram e três idosos faleceram, mas não houve uma alteração numérica substantiva na
composição do grupo e os dados estão sujeitos a variação mínima. O questionário foi aplicado por Marcelo
Moura Mello, Luísa Andrade de Sousa, Adriana de Souza Fonseca, Nola Patrícia Gamalho e Lúcio Centeno.
Os dados foram agrupados no software SPSS (Statistics Package Social Science) por Iara Kunde Dickel.
9
Sucessivas espoliações fragmentaram e diminuíram consideravelmente a extensão
das terras de Cambará ao longo de sua história. Algumas áreas do grupo, no passado, foram
apropriadas ilicitamente. Ameaças – e
a consecução dessas ameaças – foram uma
constante na vida dessas famílias. A grilagem e o traçado sinuoso de algumas cercas são
marcas de origem de algumas propriedades. O esbulho foi patrocinado inclusive pelo
Estado. Além da controversa atuação de um delegado no local nas três primeiras décadas
do século XX, a construção da BR-290, na década de 60, repartiu o território ao meio, sem
que nenhuma das famílias negras fosse indenizada (muitos, inclusive, participaram de sua
construção). Há um fluxo intenso de automóveis praticamente vinte quatro horas por dia e
algumas casas distam menos de 10 metros do acostamento. Hoje em dia, a maior parte das
terras outrora pertencentes aos negros é de propriedade de descendentes de imigrantes
italianos e alemães, estancieiros e plantadores de médio e grande porte. Algumas casas são
cercadas por todos os lados por plantações de soja e trigo (conforme a época do ano) e,
recentemente, eucaliptos. Um posto de gasolina de grandes proporções está encravado no
seio da área (que era) da comunidade10. No passado, atestam os mais velhos, a área era um
mato só. Hoje em dia, a soja e outras culturas devastaram grandes extensões territoriais. As
terras eram de uso comum, mas as cercas se tornaram uma necessidade com o passar dos
anos, complementam11.
A diminuta área impossibilita o desenvolvimento de uma agricultura em larga
12
escala . Exatamente 60% dos lotes possuem menos de 3 hectares e apenas um lote possui
mais de 10 hectares. A maioria dos lotes é ocupado por uma família, salvo um deles, de 8
hectares, onde residem 12 famílias (núcleo Cambará, habitado predominantemente pela
família Ramos). Em geral, cada unidade familiar possui horta e alguns pomares. O efetivo
pecuário e de pequenos animais é baixo. A grande maioria das casas possui galinhas.
10
A água utilizada para lavagem de veículos automotores no referido posto deságua nos córregos da região,
provocando contaminações.
11
O croqui de Cambará foi elaborado pelo arquiteto José Carlos Rodrigues, integrante do IACOREQ. As
casas rasuradas são aquelas pertencentes às famílias negras. As não-preenchidas são de propriedade dos
brancos.
12
A inexistência de uma agricultura de larga escala entre as famílias negras não pode ser explicada
exclusivamente pela ausência de capital fundiário e econômico. Se essa variante é fundamental (e brutal, dada
a limitação das possibilidades de existência dessas famílias), as lógicas que presidem a organização e o
usufruto do território também o são.
10
Porcos são comuns, animais vacuns nem tanto. Assim, os recursos provenientes da
exploração da terra, por si, não garantem a reprodução do grupo. Diante desta situação,
foram forjadas algumas alternativas. O circuito interno de troca de alimentos e víveres é
fundamental, pois provê parte dos bens necessários para sobrevivência. A rede de trocas
inclui, igualmente, as pessoas nascidas dali que residem em centros urbanos. Em geral, elas
levam produtos das hortas, ervas medicinais e frutas quando estão de passagem pelo local
e, em troca, trazem manufaturados e produtos alimentícios da cidade.
Figura 1 – Mapa de localização de Cambará
O ponto vermelho indica a localização de Cambará no estado do Rio Grande do Sul
11
O território, de certa maneira, supera os limites geográficos ocupados pelo grupo,
expandindo-se a lugares onde as práticas necessárias para sua reprodução material possam
se dar. É comum, por exemplo, que os moradores negros coloquem seus animais (vacas,
galinhas e porcos) para pastar nos restos de sorgo deixados pelas colheitas mecânicas. A
lenha também é retirada dos restos das derrubadas de árvores promovidas pelos brancos. A
caça e a pesca, em propriedades alheias, é outra alternativa, embora dependa do aval dos
proprietários. A permissão para pescar e caçar geralmente é compensada pela cessão de
parte da carne e dos peixes. Mais de sete quilômetros são percorridos até o açude e o
terreno propícios a essa prática. Essa utilização da terra, por meio do aproveitamento de
‘restos’ e ‘sobras’ das plantações vizinhas é importante estratégia de reprodução do grupo.
Parte da renda provém do trabalho de diarista nas propriedades de médio e grande
porte da região (entre 10-15 reais por dia), para os homens, e da realização de serviços
domésticos pelas mulheres. Algumas pessoas trabalham como frentistas ou cozinheiras no
posto de gasolina existente no local. O “Programa Bolsa-Família” também constitui uma
importante complementação de renda para as famílias que possuem filhos (as) em idade
escolar13. A aposentadoria dos idosos é a principal fonte de renda da maior parte das
famílias (em quase 50% das casas). Os idosos desempenham papel fundamental na
reprodução do grupo não só pela aposentadoria, mas também porque alguns deles seguram
a terra. É o caso de Orcindo Machado, por exemplo. Sua esposa vive na área urbana de
Cachoeira do Sul. Seus oito filhos moram em outros centros urbanos. Como não cogita
mudar-se para a cidade – local muito agitado – Orcindo cumpre um papel fundamental
para a manutenção da terra.
13
Programa de transferência de renda do governo federal que paga um valor entre R$ 18,00 e R$ 172,00 para
famílias consideradas pobres e extremamente pobres. Estas devem comprometer-se a manter as crianças e
adolescentes da família na escola e cumprir os cuidados de saúde.
12
FIGURA 2
CROQUI CAMBARÁ (MAPA 1)
13
Figura 3 – Mapa das trilhas de caça e pesca14
As mulheres, especialmente as mais velhas, possuem um papel de destaque porque
em muitas casas elas são as responsáveis por sua manutenção e provêm o sustento da
família. Em muitas habitações, apenas mulheres residem e as idosas costumam cuidar dos
netos enquanto os filhos ou filhas trabalham15. É o caso, por exemplo, da família de Ivone
14
15
O mapa sobre as trilhas de pesca e caça foi elaborado por Leonardo Leitão e Arlete Pasqualetto.
Sobre o assunto, ver Woortmann;Woortmann (2004).
15
Ferreira. Seu marido trabalha num posto de gasolina a aproximadamente 20 km do local,
cumprindo uma jornada diária de doze horas de serviço. Sua mãe, Maria Ferreira, de 90
anos, recebe aposentadoria e realiza boa parte dos afazeres da casa. Freqüentemente Maria
não está em casa, pois costuma visitar as filhas que residem na cidade. Nesse caso, sua neta,
Mariana, ajuda nos afazeres. Outra fonte complementar de renda são as faxinas feitas por
Ivone. Em Cambará, as mulheres não só ficam em casa, como contribuem financeiramente
para a manutenção do lar.
Quando fui pela primeira vez a Cambará, a maior parte das casas não possuía
energia elétrica, água encanada e instalações sanitárias. As residências, em geral, eram
construções de madeira e chão batido. Essa situação modificou-se, em alguma medida, nos
últimos anos pelo fato do grupo ser alvo de uma série de políticas públicas destinadas às
chamadas ‘comunidades remanescentes de quilombos’.
i.4 Inserções em campo
A participação em um projeto de extensão da Pró-Reitoria de Extensão (PROREXT)
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no ano de 2003, permitiu-me
estabelecer um contato regular com os moradores de Cambará. O projeto foi executado
entre setembro/dezembro de 2003, durante dez finais de semana, e foi coordenado pelo
Prof. Dr. José Carlos Gomes dos Anjos, do departamento de sociologia da UFRGS16. O
Programa Universidade Solidária (Unisol) contou com a participação de estudantes de
diversas áreas de conhecimento da universidade, técnicos administrativos da PROREXT e
membros do Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes de Quilombo
(IACOREQ). A principal meta do Unisol era promover a parceria entre Universidade,
IACOREQ e órgãos governamentais responsáveis por gerir políticas públicas com o:
objetivo de colaborar para a melhoria da qualidade de vida das pessoas de
Cambará, e realizar perícia técnica que possibilite elaborar laudo-antropológico
[sic] que caracterize a comunidade como remanescente de quilombo, facultando-a
de instrumentos educativos, jurídicos e científicos para a preservação de seu
16
Dois projetos de extensão da PROREXT, com duração de cinco dias cada um, foram realizados em
Cambará no ano de 2002.
16
território, identidade cultural e promoção do desenvolvimento sustentável
(Unisol, 2003:2).
Previa-se o levantamento histórico-documental que possibilitasse elaborar a cadeia
dominial da área, um eixo etnográfico, levantamento sócio-econômico e assessoria visando
o “desenvolvimento sustentável da comunidade” (2003:2). Tal assessoria cobria discussões
e ações relacionadas à “saúde, geração de renda, educação, ecologia, agricultura, habitação
e atividades de reforço da identidade étnica remanescente” (2003:3). O “reforço identitário”
envolveu reuniões com os moradores sobre a legislação referente às comunidades
quilombolas, assessoria na constituição de uma associação de moradores e discussões sobre
a importância da mobilização política da comunidade pelos seus direitos. Tais tarefas
ficaram ao encargo principalmente dos estudantes de ciências sociais como eu e aos
membros do IACOREQ. A maior parte das atividades visando o “desenvolvimento
sustentável” coube ao IACOREQ e aos estudantes da área de saúde e educação.
Outro convênio, desta vez entre o Instituto de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA-RS) e a UFRGS, novamente coordenado por José Carlos Gomes dos Anjos,
possibilitou a elaboração de um laudo antropológico sobre Cambará. A equipe, além da
coordenação, que também contou com um professor do departamento de geografia, foi
constituída por quatro estudantes de graduação de ciências sociais, um mestrando do
programa de pós-graduação de sociologia, uma estudante de geografia e um mestrando em
história. Entre 2005 e o primeiro semestre de 2006, elaboramos o laudo. No que me diz
respeito, fiz pesquisas de campo (em geral estadas de dois a três dias por aproximadamente
quinze finais de semana) e em arquivos históricos e cartoriais. Este projeto também contou
com a participação do IACOREQ, especialmente na assessoria política.
Em 2006, fiz rápidas incursões ao local. Entre 2007-2008, permaneci por maior
tempo em Cambará. Fiz quatro saídas de aproximadamente uma semana cada. Trouxe as
minhas diferentes inserções em campo porque como argumentarei a seguir não há como
pensar Cambará sem pensar a interação de seus integrantes com agentes externos que
contribuíram, de uma forma ou outra, para a instituição da identidade de remanescente de
quilombos.
17
i.5 Entrevistando a vida dos outros
A seção anterior é estéril em termos antropológicos se não for acompanhada de
maiores informações e elementos que permitam refletir sobre os parâmetros nos quais se
assentaram minhas relações com os moradores de Cambará ao longo desses últimos anos.
Isso é particularmente importante nos contornos dados à análise do material empírico. As
narrativas constituintes da maior parte do escopo analítico desta pesquisa necessitam ser
relacionadas aos contextos e momentos nos quais surgiram, do contrário serão situadas em
espaços atemporais.
Como mencionei brevemente acima, a assunção identitária e os pleitos do grupo são
determinantes para pensar Cambará. O papel do pesquisador – e o papel que os sujeitos da
pesquisa eram chamados a cumprir pela presença e influência do antropólogo – não pode
figurar somente em uma seção introdutória porque seus dados são obtidos em contextos
determinados. Talvez seja interessante pensar o trabalho de campo como uma atividade
mediada pelas expectativas do autor e pelas relações intersubjetivas entre pesquisado e
pesquisador (Rabinow, 1977). Vejamos um caso interessante.
Dono de uma singular capacidade de encantar cada forasteiro(a) que aporta em
Cambará, Jorge Pereira Lopes é filho de Estevão Pereira Lopes, lendário antigo do lugar.
Nascido em 1919, Jorge detém um enorme conhecimento sobre os antigos. Sempre
procurado pelos pesquisadores em virtude de seu conhecimento e personalidade, nunca é
fácil entrevistá-lo. Certa vez, ao ser indagado sobre o nome de algumas pessoas, disse saber
do nome delas todas, mas não os enumeraria, pois era muita coisa para uma só entrevista.
Na mesma ocasião, enquanto fazíamos uma bateria de perguntas sobre a transmissão de
terras na região, Jorge exclamou:
Jorge: Escuta. Eu tenho dado muitas entrevistas pra senhora, pro Seu Leonardo
[pesquisador] também e gostaria de receber algumas entrevistas. Como é lá,
vocês se divertem entreverado lá com os morenos? Ou não? [Risos].
E: Olha, Seu Jorge. Nós viemos pra cá com a Kombi [veículo que transportava os
pesquisadores]. Vem branco e moreno junto.
Jorge: Sim, sim. Mas eu lhe pergunto se se divertem junto, entreverado. A
senhora dança com os morenos?
18
E: Se der de dançar eu danço.
Isaura [esposa de Jorge]: Mas não se entreverar...
E: Eu não tô entendendo muito bem o que é entreverar. [Risos].
Jorge: Agora a senhora não entende. [Risos].
Isaura: Se entreverar é assim. Estar aqui junto com nós.
E: Ah, sim. Claro que sim.
Jorge: Pois é. Mas sempre tem a distinção racial, não é? Os educados, as
pessoas mais educadas, quer dizer, não vai fazer pouco, mas ele não vai se
entreverar. Assim como dizia o outro: ‘eu não vou entreverar um moreno com
minha família, né’.
E: Mas eu tenho um casal de amigos. Eu estava falando isso pro senhor ontem.
Eu tenho um casal de amigos, muito chegado, que ele é bem moreno e ela é
alemoa.
Jorge: Ele é moreno e ela é alemoa. Tá. Mas eu pergunto a sua atitude.
E: A minha atitude sempre foi de visitar eles. Eles sempre me visitam, sempre me
receberam bem. Quando eles vão na minha casa eu também recebo bem. Assim
como vocês me receberam hoje. Eu tenho uma cunhada que é morena.
Jorge: Sim. Mas eu lhe pergunto se a senhora gostaria de casar com um
moreno.
E: Olha, se viesse um moreno que me agradasse, eu casaria. Por que não, hein?
Jorge: Mas que lhe agradasse...
E: Claro. Assim como branco também tem que me agradar. Não é qualquer
branco que vou me casar.
Jorge: Mas que lhe agradasse... E pra todos os efeitos nenhum está lhe
agradando, não é?
E: É que muitas vezes a gente se agrada e a outra pessoa não se agrada pela gente
também.
Isaura: É. É.
E: E daí?
Jorge: E daí papai não quer.
E: Não, não é pelo papai. Se o outro também não se agrada....ele também tem o
direito de se agradar, ou não?
19
Jorge: Mas se ele se agrada não vai dar certo também. Quer dizer que nessa
parte da convivência, do estudo, aí não tem separação. Estão todos de mãos
dadas. Mas pelo matrimônio sempre tem uma qualquer diferença.
[Jorge Pereira Lopes, 89 anos, e Isaura Pereira Lopes, 87 anos. Outubro de
2003].
À parte os embaraços constantes em campo, a entrevista feita por e com Jorge, põe
questões de ordem teórica e metodológica. Cada sujeito reage à sua maneira à presença de
pesquisadores. Não existe um padrão exclusivo de interação entre pesquisador e sujeitos da
pesquisa. Casos como esses oferecem a possibilidade de pensar as vias que estão por trás
daquilo que se apresenta como acabado. Isso envolve trazer o papel e a influência do
sujeito pesquisador. Mas não só. Envolve, sobretudo, reconstituir as vias metodológicas,
práticas e afetivas nas quais as interações com os sujeitos da pesquisa se estabeleceram e os
rastros deixados na análise do material.
Quatro anos depois (agosto/2007), eu me encontrava novamente em companhia de
Jorge e Isaura, mas dessa vez ia só. Isaura logo que me avistou abraçou-me. Perguntou-me
se viera para ficar com ela e dormir em sua casa. Jorge, por sua vez, já simpatizava comigo
e aparentemente aprazia-se em me ver. Em 2005, passou a chamar-me propositadamente de
Márcio, como que me incitando a contrariá-lo. Nunca o fiz. Já estava acostumado com ele
chamando-me de Seu Márcio. Tomado por uma insatisfação que beirava a tristeza pelo
pouco apreço de Jorge por mim, resolvi presenteá-lo com uma faca, em idos de 2005. Dei-a
e disse que todos nós havíamos comprado aquele regalo. Jorge tomou-a, deteve o olhar por
alguns instantes na faca e, com olhos lacrimosos, disse que ficava muito contente com
minha atitude. Desde então continua a me chamar de Seu Márcio, mas sem (a mesma)
chacota ou afronta.
Mas voltemos para agosto de 2007. A noite já caíra. Jantávamos na pequena casa
sem eletricidade onde o casal dorme e come17. Muito próximos sem, contudo, conseguir
distinguir perfeitamente as expressões faciais um do outro. A luminosidade do lampião de
querosene e do fogão era fraca. Isaura pergunta o que mesmo eu estudava. “Antropologia”,
17
Jorge e Isaura possuem duas casas. O casal dorme numa casa de 9m² sem repartições entre o cômodo que
dormem e o outro no qual possuem um fogão de barro no chão, a não ser por uma cortina. Ao lado, a casa de
aproximadamente 42m², com quatro cômodos e energia elétrica, serve de depósito para os bens do casal e de
pouso para as visitas.
20
respondi. Seguido ao ar de incompreensão que a palavra ‘antropologia’ desperta em quase
todas as pessoas interessadas em saber o que estudo (com Isaura não foi diferente), Jorge
atalhou: decerto a psicologia [antropologia] é essa coisa que entrevista a vida dos outros.
A conversa versou, a partir de então, sobre entrevistas. Em dado momento, Jorge
afirmou serem todas relações possuídas de interesses. Aquilo pareceu um recado. Embora
eu não tenha feito nenhuma entrevista naquela semana em Cambará e tenha ido com o
espírito de visitante, a postura assumida desde 2003 fazia parte de mim, estava vinculada à
minha presença, e, portanto, às percepções das pessoas sobre mim. Foi o que depreendi
daquela fala. No mesmo instante, percebi que o lampião de querosene que ficava acima da
cabeça de Jorge não iluminava suficientemente seu rosto, mas iluminava perfeitamente a
face de quem estava de frente para ele, como era meu caso. Tantas vezes havia estado ali e
só naquele momento percebia que a luz produzida pelo lampião permitia a Jorge olhar de
uma posição privilegiada a quem lhe visitava.
Naquela escuridão, tentei fixar meu olhar para onde imaginava estarem os olhos de
Jorge. Respondi que concordava com ele: toda relação era mediada por interesses pessoais.
Mas, e aí vem o porém, chega um momento no qual o interesse estava lado a lado com o
prazer em compartilhar experiências e momentos com pessoas que aos poucos vão se
tornando nossas amigas, seres que fazem parte da nossa vida, e que nos ensinam coisas
ausentes nos livros. A situação era incontornável, como pontuava Jorge. As motivações e as
atrações eram circundas por interesses. A questão era saber qual o caráter desses interesses
e sua influência na pesquisa.
Quando julgar relevante trarei situações como esta ao longo do texto. Isso se explica
por duas razões: as interações com os moradores de Cambará sempre se deram em
situações e expectativas determinadas. Interessa, portanto, dissolver essa questão ao longo
do texto ao invés apenas de citá-la na introdução e esquecê-la definitivamente. Em segundo
lugar, este trabalho não gira sobre a órbita do pesquisador. Os dados certamente são uma
ficção, no sentido original de fictio, uma produção, como lembrado por Geertz (1973), pois
só respondem às perguntas elaboradas pelo autor. Dizer que eles dependem apenas das préconcepções e do papel do autor é algo bem diferente.
21
Figura 4 – Jorge Pereira Lopes.
Foto: Leonardo Leitão.
Apresento agora a estrutura desta dissertação. Após delimitar enfoques teóricos e
metodológicos da pesquisa, no primeiro capítulo, discuto as dinâmicas desencadeadas pela
assunção quilombola em Cambará no capítulo dois. Os três capítulos subseqüentes têm por
pano de fundo um amplo debate com a história. O capítulo três apresenta dados sobre a
formação histórica de Cambará, valendo-se principalmente de fontes documentais. Os
capítulos quatro e cinco levam a cabo a proposta de reconstruir a história do lugar por meio
da interface entre oralidade e escrita. Os eventos históricos são acompanhados obedecendo
aos parâmetros de relevância fixados pelos próprios sujeitos da pesquisa. Assim, o território
e as histórias do trabalho são o principal assunto em pauta. Na última parte do texto, retomo
algumas questões e tento extrair algumas considerações finais.
22
CAPÍTULO 1
PROBLEMAS E PROBLEMATIZAÇÕES TEÓRICAS
Meu relato será fiel à realidade ou, em todo caso, a
minha lembrança pessoal da realidade, o que é a
mesma coisa.
Jorge Luis Borges, O Livro de Areia.
Tenho a impressão de que estou tentando contar um
sonho – uma tentativa vã, porque nenhum relato é
capaz de transmitir a sensação onírica, onde aflora
essa mistura de absurdo, surpresa e encantamento,
num frêmito de emoção e revolta, essa impressão de
ser capturado pelo inacreditável em que consiste a
própria existência dos sonhos.
Joseph Conrad, O Coração das Trevas.
Este capítulo delimita enfoques teóricos e metodológicos. A revisão bibliográfica
limita-se a questões correlatas ao tema de minha pesquisa e a algumas interfaces com a
história. Num primeiro momento, trago os principais debates em torno das chamadas
comunidades remanescentes de quilombo.
1.1 Conversões teóricas
Poucos pesquisadores dedicaram-se ao estudo das populações negras em meio rural.
Salvo engano, excetuando a coletânea de estudos editada por Wagley (1952) e a
monografia de Nogueira (1955), somente a partir da década de 70 é que essa questão vem à
baila. Os livros de Brandão (1977) e Soares (1981), os artigos de Carlos Vogt e Peter Fry –
escritos no final da década de 70 e início da 80, compilados em Fry; Vogt (1996) – e os
estudos sobre o negro em condição de vida rural na USP (Borges Pereira, 1981; Queiroz,
23
1983; Baiocchi, 1983; Monteiro, 1985; Bandeira, 1988; Gusmão, 1990) foram promissores
nesse sentido.
Não é minha intenção oferecer um inventário detalhado de todos esses estudos.
Após comentá-los brevemente, pretendo dissertar sobre a seguinte questão: quais
deslocamentos – teóricos, metodológicos, historiográficos – foram operados pela
antropologia, em especial, em relação àqueles estudos, em função da visibilização das
chamadas comunidades remanescentes de quilombo? Para tratar desta problemática, não
vou expor as conversões simbólicas e conceituais da noção de quilombo ao longo dos
anos18. Penso-a sob o viés de algumas críticas ao próprio uso da categoria remanescente de
quilombo. Debrucemo-nos sobre os estudos citados acima antes de desenvolver este último
ponto.
Um primeiro ponto a ser ressaltado é a diferença qualitativa entre eles, apesar das
inúmeras confluências teóricas e metodológicas. A pesquisa de Fry e Vogt (1996) foi
motivada pela ‘descoberta’ do Cafundó, bairro rural negro falante de um dialeto ‘africano’.
A “cosmologia” (:149) e os “africanismos lingüísticos” (:188) do Cafundó são ligados às
relações sociais concretas nas quais esses traços culturais se articulam, e não a uma
procedência africana exclusivista. Por meio de uma detalhada etnografia, Vogt e Fry
supõem ser a identidade social do Cafundó fruto do encontro entre sua “africanidade” e
“caipiridade” (:149).
Brandão (1977) procede a um estudo sobre uma comunidade de “camponeses
negros”. Orientado por Roberto Cardoso de Oliveira, preocupa-se com a organização social
do grupo, seus rituais e com as relações interétnicas entre pretos e brancos. Neste tocante,
baseia-se nas formulações de Barth e Cardoso de Oliveira sobre a etnicidade. O interesse
primário de Soares (1981) também é com o campesinato. Mesmo que o cativeiro seja um
importante modelo designativo de relações sociais no grupo por ele estudado, o autor
preocupa-se prioritariamente com o ponto de vista dos camponeses. Soares interpreta a
identidade do grupo como uma fusão entre o estatuto econômico e sua natureza étnica
(:44). As pesquisas de Soares e Brandão têm por pano de fundo os estudos sobre o
18
Para uma análise detalhada dessas conversões, consultar Arruti (2006: 55-97).
24
campesinato, diferindo sutilmente das teses produzidas na Usp, que tinham por quadro de
referência o estudo do negro em condições de vida rural (Borges Pereira, 1981:66).
Amparados no conceito de “bairro rural”, tal como definido por Queiroz (1973a;
1973b) e Candido (2003 [1964]), tais estudos visavam preencher um vazio bibliográfico
sobre o tema, analisando a configuração dos grupos enquanto expressão comunitária e seus
eventuais níveis de especificidade enquanto grupo negro (Borges Pereira, 1981). Ainda
segundo Borges Pereira, ao nível da organização social e da história, não se poderia lançar
mão da categoria quilombo para definir tais comunidades, a não ser que se dessem novas
dimensões a tal conceito (:68). Ao escrever tais linhas, é muito provável que o autor se
referisse ao “quilombismo”, movimento político-intelectual que alargou a definição
tradicional de quilombo (Nascimento, 1980). O programa de pesquisa da Usp consistiu no
estudo das “comunidades negras rurais incrustadas”. A expressão incrustada, segundo
Borges Pereira (1981), teve o intuito de evitar expressões como “isolados” ou “quilombos”.
Frutos de uma mesma linha de pesquisa, as teses da Usp possuem algumas
dessemelhanças. Baiocchi (1983) e Monteiro (1985) aplicam, um tanto mecanicamente, o
modelo dos bairros rurais para enquadrar as comunidades estudadas. R. Queiróz (1983)
interessa-se por uma antropologia econômica, perguntando pela estrutura social e os
processos produtivos e de trabalho. Os níveis de sociabilidade também estão presentes no
horizonte de preocupações do autor. Os trabalhos mais ricos são, a meu ver, os de Bandeira
(1988) e Gusmão (1990). O primeiro privilegia questões atinentes ao campesinato e
capitalismo, inserindo aí a dimensão da identidade étnica. Pergunta também como se dá a
constituição e manutenção da comunidade por ela estudada em termos de opções de
processos organizativos e culturais, além de perguntar pela reelaboração da identidade
étnica sob o impacto da expansão capitalista (Bandeira, 1988:32). A tese de Gusmão tem
um viés semelhante, perguntando pela existência de movimentos sociais no campo e sua
relação com o campesinato brasileiro a partir da condição diferenciada de grupo étnico.
Todas as obras citadas acima não perguntam por traços definidores, e típicos, de tais
segmentos rurais. Mesmo Baiocchi e Monteiro, que não enxergam, além da cor, qualquer
aspecto cultural (termo das autoras) específico a esses grupos, chamam a atenção para um
dado fundamental: o contraste identitário. Ou seja, é em função de, e por meio das relações
25
interétnicas, que a ‘identidade negra’ desses grupos camponeses se atualiza e persiste.
Note-se que as comunidades remanescentes de quilombo têm sido pensadas, em grande
medida, numa perspectiva relacional.
Há outro interesse em retornar a essas obras. Diz respeito às dessemelhanças entre
elas e a produção bibliográfica sobre os ‘quilombos contemporâneos’. A tendência desta é
enfatizar antes a identidade negra do que a camponesa. Além do mais, grupos muito
diferenciados entre si têm sido classificados – freqüentemente com o desconhecimento do
significado e alcance da categoria pelos sujeitos assim imputados – como quilombolas. Daí
decorre a seguinte questão: o alargamento conceitual para abranger diversas situações
sociais na categoria remanescentes de quilombo não manifestaria uma falta de rigor
metodológico e conceitual e uma confusão entre vontade política e formulações teóricoconceituais?
Dois estudos, particularmente, formulam a crítica exposta acima de maneira mais
detalhada. O posfácio de “Cafundó”, escrito por Fry e Vogt (1996)19, e o recente livro de
Fiabani (2005). O grande mérito desses autores é demonstrar, para parafrasear os dois
primeiros, que o tema é complexo, os atalhos é que podem ser fáceis e perigosos. Esse tipo
de crítica é muito pertinente, desde que realizada com embasamento e conhecimento de
causa, pois também está sujeita a confusões.
Existem dois paralelos básicos entre “Cafundó” e “Mata, Palhoça e Pilão”20. Em
primeiro lugar, as críticas aos deslocamentos teóricos de antropólogos (as) para pensar as
comunidades remanescentes de quilombo. Os epítetos de “essencialismo”, “palavra de
ordem política”, “expressão de uma vontade ideológica”, “voluntarismo” e “malabarismos”
que constituem “piruetas conceituais”, segundo Fry e Vogt (1996:266-70), guardam
semelhanças com as objeções de Fiabani (2005:28) à “extensão de critérios de
reconhecimento” das comunidades remanescentes de quilombo. Segundo este autor, o
“processo de ressemantização consciente” (:380) da categoria “manipula acontecimentos
19
“Cafundó” consiste na compilação dos artigos escritos pelos autores entre a década de 70 e 80, acrescidos
de um posfácio, escrito no ano de edição do livro (1996).
20
Ressalto que os dois estudos são extremamente diferentes não só pelo lapso temporal, mas sobretudo pelas
perspectivas teóricas animadoras de cada um deles. O paralelo é entre uma crítica comum às obras, não à sua
totalidade.
26
históricos objetivos” (:384) configurando “propostas irracionalistas de desconhecimento do
passado objetivo em prol de uma invenção da tradição acomodada a pretensas necessidades
contemporâneas” (:386-7). As objeções de Fiabani guardam grande semelhança com a
seguinte constatação:
A busca de provas materiais da identidade e, na falta destas, de provas
circunstanciais, ainda que extremamente exteriores, tem caracterizado um
movimento político-intelectual que, mesmo nos comportamentos mais sérios, tem
levado a uma tentativa de reescrever a história, criar-se um passado e inventar-se
uma tradição (Fry; Vogt, 1996:268-9).
Aqui reside o segundo ponto de confluência entre os autores: atribuem os deslocamentos
operados por pesquisadores (as) que têm pensado as comunidades quilombolas a vontades e
preceitos políticos. As perspectivas teóricas abertas para pensar essas coletividades são
desmerecidas pelo uso literal, portanto simplista, do conceito de “invenção das tradições”.
Deixam de mencionar, entretanto, seus próprios preceitos e preferências políticas.
Em Fiabani há um misto de desmerecimento e lamento ao se constatar os miúdos efeitos
práticos das reivindicações territoriais de quilombolas país à fora. Percebe-se uma
subsunção da ‘luta’ quilombola na luta de classes pelas freqüentes referências às conquistas
do movimento dos trabalhadores rurais sem-terra. Já em Vogt e Fry, privilegia-se a
“brasilidade” ou “caipiridade” do Cafundó, o que revela à adesão ao imaginário da nação.
Tanto Vogt e Fry quanto Fiabani enxergam o ‘campesinato brasileiro’ de forma um
tanto estanque, embora por razões diferentes21. Antes mesmo dos debates sobre
comunidades quilombolas gozarem de destaque, alguns estudos já chamavam atenção para
a complexidade da estrutura agrária brasileira. Almeida (1989) contemplou diversas formas
de gestão territorial não contempladas pelas classificações oficiais, como as terras de
índios, de santo e de preto, agrupadas, na época, no rótulo de “ocupações especiais”. As
teses da Usp, especialmente Bandeira (1988) e Gusmão (1990), apontaram na mesma
direção. As ressalvas a um alargamento irrestrito do conceito de quilombo já estão
21
Aqui jaz uma das diferenças entre as obras: Cafundó postula o ideal da fusão das três raças para o campo;
Fiabani apóia-se num referencial marxista. Em verdade, Cafundó é muito mais rigoroso, pois liga os costumes
‘africanos’ do Cafundó a situações práticas e contextos específicos. Porém, filia-se ao modelo da nação,
formulado em um contexto histórico datado, para formular suas críticas.
27
presentes em Borges Pereira (1981). Gusmão (1990), menos de dois anos após a
promulgação da Constituição de 1988, sustentou que:
Antes de mais nada [...] cabe ressaltar a insuficiência conceitual, prática, histórica
e política do termo ‘quilombo’ para dar conta da diversidade das formas de
acesso à terra e das formas de existir das comunidades negras no campo. Tal
insuficiência constitui um dos limites na possibilidade de superar a invisibilidade
das terras comunais ocupadas por negros. O conceito ainda que viável no
discurso político da resistência negra, apresenta-se como unificador e
generalizante daquilo que é historicamente diverso e particular. Mais que isso,
juridicamente apresenta grandes dificuldades a serem resolvidas (Gusmão,
1990:261).
De forma clarividente, Gusmão alertava, muito antes das comunidades quilombolas
ganharem visibilidade e suscitarem polêmicas, para a pluralidade dos ‘territórios negros’.
Gusmão, assim como documento da ABA de 199522, não propõe um retorno a uma versão
monolítica do ‘campesinato brasileiro’ para compensar os dilemas conceituais, teóricos,
éticos, jurídicos e históricos que a categoria remanescente das comunidades de quilombo
coloca: ela refere a uma heterogeneidade que o conceito de classe e o modelo da
mestiçagem não são capazes de cobrir.
Há que se considerar que a produção bibliográfica sobre o tema era muito mais
minguada em 1996 do que em 2005, ano de publicação de “Mata, palhoça e pilão”. Quando
Fiabani compara os antropólogos a capitães-do-mato, pois eles, ao “ressemantizarem
conscientemente a memória histórica do fenômeno dos quilombos”, destroem-no “tal como
o escravista e o capitão-do-mato propunham sua destruição física quando da escravidão”
(Fiabani, 2005:395), estamos diante não só de uma analogia pitoresca, mas sobretudo de
uma avaliação limitada de uma extensa bibliografia que vem insistindo na heterogeneidade
das situações sociais hoje designadas como remanescentes de quilombo (Almeida, 1996;
1998; 2002; Anjos; Silva, 2004; Barcellos, et.alli., 2004; Carvalho, 1996; Chagas, 1999;
Leite, 1999; 2004; O'Dwyer, 1995; 2002). Ao enfatizarem a pluralidade e heterogeneidade
dos ‘quilombos contemporâneos’, tais estudiosos não só se afastam da busca por uma
cultura negra originária, como problematizam a capacidade de certas categorias darem
22
Ver O’Dwyer (1995:1).
28
conta da diversidade social e cultural existente no Brasil, como as categorias de nação e
campesinato, por exemplo23.
Já as ponderações de Price (2000) devem ser lidas com maior reserva. Além da
consulta bibliográfica que serviu de base para seus comentários estar longe de ser ampla,
como ele mesmo o admite (Price, 2000:250), a reflexão sobre as situações de perícia está
ausente do horizonte investigativo do antropólogo estadunidense. O curto período de
pesquisa de campo é apontando como séria limitação dos estudos por ele compulsados.
Ora, a situação de perícia impõe limitações temporais a esses estudos – que constituem um
gênero específico de saber (o laudo). Outro ponto problemático é a associação feita entre
neo-quilombismos e as supostas ausências de “tradições orais profundas” entre os
‘quilombos brasileiros’ (Price, 2000:256). Price parece tomar o caso dos Saramaka como
parâmetro avaliativo para as Américas, tanto em termos de evidências etnográficas quanto
das condições de possibilidade das pesquisas, dando margem para uma generalização
problemática. Isso não anula totalmente o argumento do autor, que aponta o pouco cuidado
de algumas pesquisas, sobretudo no âmbito histórico, freqüentemente legitimadas em nome
da militância política (Price, 2000:265).
A adesão imediata à categoria remanescentes de quilombos pode resultar numa
visão auto-evidente de algo situado em um terreno pantanoso. Nem mesmo a “definição
operacional” parece dar conta da complexidade da questão, pois não se trata apenas de
desconstituir um modelo interpretativo, mas propor outro, como bem demonstrou Arruti
(2006:95). Deslocar o foco não implica necessariamente em simplismos ou se deixar
contaminar pelos ‘efeitos poluidores’ do movimento social negro. Trata-se, ao contrário, de
colocar em questão o englobamento de configurações sociais heterogêneas em categorias
genéricas. E aqui há que se ressaltar o grande mérito da produção bibliográfica sobre essas
coletividades: falar em comunidades remanescentes de quilombo é sempre referir a uma
heterogeneidade, não a uma essência ou a algo exclusivamente característico a elas24. Há
uma série de questões a ser levadas em conta no tocante à identidade e categoria
remanescentes de quilombo. Analisemos algumas delas e tratemos a produção bibliográfica
23
Que se forem tomadas espontaneamente podem resultar em essencialismos, diga-se de passagem.
Embora certamente haja exceções e os órgãos de reconhecimento insistam, freqüentemente, na tentativa – e
exigência – de estabelecer critérios ‘objetivos’ que definiriam um grupo, ou não, como quilombola.
24
29
sobre o tema com justeza, pois elas põem na ordem do dia indagações e questionamentos
com grande rigor teórico e analítico.
1.2 Reminiscências
Na época de formulação do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias da Constituição Federal de 1988, estimava-se serem raros os agrupamentos que
se adequariam à legislação e pudessem pleitear direitos sobre suas terras (Arruti, 2006;
Silva, 1995). Isso se devia, em grande medida, a uma concepção cristalizada da cultura –
expressa pelo termo qualificativo remanescente. De fato, aos olhos leigos, os ‘quilombos
contemporâneos’ afiguram-se como ‘sobra’ dos quilombos passados. De certo modo, o uso
desse termo qualificativo revela a expectativa de encontrar, nas comunidades atuais, formas
atualizadas dos antigos quilombos (Almeida, 2002). Indispensável notar que essa visão –
ainda em voga – frigorífica, para utilizar a expressão de Almeida (2002), essas
comunidades, tratando-as como estáticas no tempo.
Os efeitos do artigo 68 no mundo social foram em direção oposta. Atualmente,
estimativas extra-oficiais dão conta da existência de mais de quatro mil (4.000)
comunidades quilombolas em todo o país25. No caso do Rio Grande do Sul, estima-se a
existência de aproximadamente 130 comunidades26, e diversas dissertações e teses vêm
sendo produzidas nos últimos anos27. Diversos fatores concorrerem para esse quadro. Não é
minha intenção adentrar em pormenor nesse debate – algo por si só demandante de uma
monografia. Por ora, chamo a atenção para o recurso a outros dispositivos constitucionais
(vide artigos 215 e 216 da Constituição de 1988, por exemplo28), a ação de mediadores e
25
Essas estimativas não referem a um dado objetivo passível de identificação. A classificação e a autoidentificação desses grupos está diretamente relacionada à atuação de mediadores sociais. Sobre o papel de
mediadores na agricultura, consultar Neves (1999).
26
Levantamento provisório da Secretaria Estadual de Agricultura e Abastecimento indica 42 comunidades
com “potencialidade para se auto-reconhecerem como quilombolas” (Rubert, 2005:19).
27
Ver, dentre outros: Bitencourt Jr., 2006; Carvalho, 2004; Chagas, 2005; Fernandes, 2004; Grisa, 2006;
Leitão, 2006; Marques, 2006; Muller, 2006; Rubert, 2007; Santos, 2001; Silva, 2006; Silva, 2007.
28
Artigo 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura
nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
δ1° O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros
grupos participantes do processo civilizatório nacional.
30
militantes do movimento social, à adesão a essa identificação por diversos grupos, e novas
proposições a respeito do conceito de quilombo, como fatores determinantes para o
abarcamento de uma série de situações sociais por essa categoria.
O afastamento do conceito cristalizado de quilombo ganha solidez pelos avanços da
historiografia na compreensão dessa realidade histórica. Em âmbito nacional, Flávio Gomes
vem demonstrando, em seus últimos estudos, que os quilombos ‘isolados’ foram antes
exceções do que regra. Por meio do conceito de “campo negro”, Gomes (2005a; 2005b)
tem chamado atenção para as diversas relações e interações entretidas pelos escravos
aquilombados com a sociedade envolvente. Assim, o autor põe em xeque a oposição entre
escravos aquilombados e assenzalados, bem como a associação espontânea entre rebeldia e
passividade.
A ênfase no poder criativo da população escrava e na dinamicidade da ‘cultura afroamericana’ questiona, igualmente, um modelo essencializado. Desde o pioneiro trabalho de
Mintz e Price (1976)29, a busca por “imperativos genealógicos em busca de raízes
africanas” (Price; Price, 2003:98) tem sido altamente problematizada. Não se trata de negar
a influência e importância dos costumes e crenças africanos, mas de afastar uma visão
estática das populações negras. Alguns estudos antropológicos seguem a mesma linha
interpretativa. A “ressemantização” do conceito de quilombo, para usar uma terminologia
cara a Almeida (1996; 2002), visa superar um modelo único de territorialização e
resistência. Isso fica expresso pela definição das chamadas comunidades remanescentes de
quilombo proposta pelo GT de Comunidades Negras Rurais da ABA:
Contemporaneamente, portanto, o termo quilombo não se refere a resíduos
arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não
se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da
mesma forma, nem sempre foram constituídos a partir de movimentos
insurrecionais ou rebelados, mas sobretudo, consistem em grupos que
desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de
Artigo 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira [...]
δ1° O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural
brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação.
29
Este livro foi reeditado, com um novo prefácio, em 1992. Edição brasileira: Mintz; Price (2003). Para um
balanço retrospectivo, ver Price (2003).
31
seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio. A
identidade desses grupos também não se define pelo tamanho e número de seus
membros, mas pela experiência vivida e as versões compartilhadas de sua
trajetória e continuidade enquanto grupo. Neste sentido, constituem grupos
étnicos conceitualmente definidos pela antropologia como um tipo organizacional
que confere pertencimento através de normas e meios empregados para indicar
afiliação ou exclusão (ABA, 1995:1).
A influência teórica de Fredrik Barth é evidente. Barth (2000a) formulou uma teoria
capaz de estabelecer o elo que liga os grupos étnicos ao passado negando as visões
primordializadas da cultura. Antes de passar a uma discussão mais pormenorizada do
mestre norueguês, pontue-se que a recorrência à obra de Barth (em verdade quase não se
recorre à obra de Barth, e sim à introdução de Barth...) é feita não só por ele romper com os
modelos primordialistas, mas por fazê-lo tomando a adscrição étnica como fator central de
sua análise.
Almeida (2002) salienta que por se tratar de uma questão muito recente, o estado de
conhecimento sobre as situações sociais designadas hoje como remanescentes de quilombo
pode ser caracterizado por uma multiplicidade de agentes sociais investindo seus interesses
e pressupostos na definição da categoria, sem haver um consenso absoluto sobre o que são
esses ditos segmentos sociais. Assim, a adscrição étnica não pode ser pensada sem estar
referida à situação e ao contexto político no qual se dá.
Ora, os quilombos sempre povoaram o imaginário da nação; não é diferente agora.
As pré-concepções de mediadores, militantes e acadêmicos, as visões folclorizadas e
exóticas difundidas em toda a sociedade, e as políticas de governo ancoradas em uma
categoria genérica e englobante colocam uma questão fundamental: a categoria
remanescentes das comunidades de quilombo é capaz de comportar a experiência histórica
de segmentos negros no Brasil ou ela é um conceito genérico, no qual essas coletividades
teriam que se adequar (Leite, 1999)? Uma solução para essa questão é apresentada por
Almeida (2002:67-8):
O recurso de método mais essencial, que suponho deve ser o fundamento da
ruptura com o a antiga definição de quilombo, refere-se às representações e
práticas dos próprios agentes sociais que viveram e construíram tais situações em
meio a antagonismos e violências extremas. A meu ver, o ponto de partida da
análise crítica é a indagação de como os próprios agentes sociais definem e
representam suas relações e práticas em face dos grupos sociais e agências com
32
que interagem. Esse dado de como os grupos sociais chamados ‘remanescentes’
se autodefinem é elementar, porquanto foi por essa via que se construiu e definiu
a identidade coletiva. O importante aqui não é tanto como as agências definem,
ou como uma ONG define,ou como um partido político define, e sim como os
próprios sujeitos se auto-representam e quais os critérios político-organizativos
que norteiam suas mobilizações e forjam a coesão em torno de uma certa
identidade. Os procedimentos de classificação que interessam são aqueles
construídos pelos próprios sujeitos a partir dos próprios conflitos, e não
necessariamente aqueles que são produto de classificações externas, muitas vezes
estigmatizantes.
O texto de Almeida, evidentemente, é muito mais rico. Ao romper com a “definição
arqueológica”, demonstra como o próprio artigo 68, tomado ao pé da letra, pode ser, ele
mesmo, discriminatório. Faz notar que reconstruir a categoria remanescente de quilombo
acionando critérios tidos por objetivos faz esquecer a participação ativa dos sujeitos
assim designados na construção e incorporação de significados à categoria. Assim
sendo, é fundamental atentar para o contexto de articulação, surgimento e consolidação
dessas identidades. No refletir sobre os ‘remanescentes’, a auto-identificação dos
próprios sujeitos tem sido um imperativo metodológico e conceitual.
1.3 Identidades históricas
A ênfase na auto-atribuição é um enorme passo teórico em direção ao rompimento
com tentações essencialistas na definição da identidade étnica. Grupos étnicos não
carregam essências culturais nem biológicas que os diferencie entre si. Assim, o contraste
cultural não pode ser analisado dissociado dos processos de manifestação de identidades,
pois sua existência depende do trabalho de atribuição categorial e das interações
interculturais. Outro ganho é o afastamento da figura do pesquisador-censor, que se arroga
o papel de definir quem é ou quem não é até mesmo à revelia das auto-identificações.
Contudo, a aposta exclusiva na dimensão da autodefinição e na concepção barthiana
de identidade étnica negligencia outras dimensões presentes nas reivindicações pleiteadas.
Como já demonstrou Villar (2004:182), embora um tanto excessivamente, Barth dá ênfase
aos aspectos subjetivos ou voluntaristas da ação: trata-se de uma questão de autodefinição
(fator subjetivo) ou uma definição por parte dos outros (um fator, no máximo,
33
intersubjetivo). Afora o fator ecológico, pouco espaço é dado às restrições, condicionantes
e coerções na definição das identidades.
Barth aponta para os processos de mudança no tempo dos grupos étnicos e para o
fato de os elementos diacríticos não estarem estabelecidos de antemão, variando conforme
o contexto. Libertando-se da idéia da história como uma fonte objetiva e causa da
etnicidade, o norueguês ampara-se, em grande medida, em Weber (1964 [1914]). De forma
pioneira, o sociólogo alemão definiu os grupos étnicos não como comunidades efetivas,
mas como comunidades que compartilham a crença de origem e destino comum, podendo,
em função disto, se constituírem enquanto grupos políticos. Barth desloca-se da ênfase do
conteúdo cultural para os processos de articulação identitária nas fronteiras. A variação do
diacrítico manifesta a dinâmica dos critérios de exclusão e inclusão definidores da pertença
e, por conseguinte, dos indivíduos que compõem o grupo étnico. Essa refinada constatação
não anula, entretanto, a marcante presença do modelo do ator racional na teoria barthiana
(Villar, 2004). No seu trabalho sobre os pathans, Barth (1959) conclui que os indivíduos
acham seu lugar na ordem política por meio de uma série de escolhas [free choices]
fundadas, na maior parte das vezes, nas vantagens auferidas pela vinculação a certo grupo
político.
O modelo do ator racional se faz presente também na análise da etnicidade. A
diferenciação dos pathans em relação a seus vizinhos depende “das circunstâncias externas
necessárias” (Barth, 2000b [1969]: 77), da “escolha da identidade pelo próprio ator”
(2000b: 80), da “escolha da identidade que torna mais tolerável a sua situação” (no caso de
alguém assimilado) (2000b:81), das “condições de sucesso da identidade” (2000b:90), e da
existência de outras identidades e alternativas ao alcance do ator (2000b:91). Em resumo:
uma compreensão dos mecanismos de fronteira da unidade étnica pathan
depende, portanto, da compreensão de fatores específicos, que podem tornar
impossível ou pouco interessante a manutenção dessa identidade (Barth, 2000b
[1969]:83).
As decisões concernentes à etnicidade certamente podem obedecer ao cálculo
racional, mas é necessário relativizar o pressuposto de que os atores agem
predominantemente com respeito a fins. Barth não nega condicionantes na definição e na
34
dinâmica da identidade étnica30, mas acaba por dar sobrepeso às escolhas individuais [free
choices]. Poderíamos invocar diversos casos nos quais indivíduos aferram-se a suas
identidades, mesmo que isso seja, à primeira vista, desvantajoso. Ademais, as motivações
da ação podem ser tradicionais, afetivas e valorativas, para seguir uma terminologia
weberiana.
Essas considerações de forma alguma minimizam o impacto e a importância de
Barth. Sua inovadora abordagem da etnicidade foi marcante na história da disciplina,
mesmo que tenha dito o que estava no ar31 (Carneiro da Cunha, 1986; Streiff-Fenart,
Poutignat, 1997; Jenkins, 1997) e a perspectiva relacional da identidade remonte, pelo
menos, a Leach (1995 [1954]). Jocosamente chamado por Leach (1982:271) de “um
clássico menor”, Barth ainda oferece contribuições estimulantes. Mas é fato que sua famosa
introdução é evocada (Barth, 2000a [1969]), na maior parte dos casos, sem referência
alguma ao restante da sua obra. Dificilmente um rótulo pode ser atribuído a Barth.
Certamente é um simplismo reduzi-lo a um representante do culturalismo, de teórico da
escolha racional e até mesmo de primordialista32 – como o faz Cohen (1974:xii) – mas é
inegável que privilegie as aspirações e objetivos pessoais dos atores33. Se a superação dos
modelos essencialistas da identidade se faz necessária, isso não significa que para cumprir
esse desígnio sejamos obrigados a redundar em exageros como o de Cohen (1969:190), por
exemplo, que acentua somente o aspecto político da identidade étnica, ou evocar a teoria
barthiana como antídoto aos ismos: essencialismo, culturalismo, arcaísmo. Creio ser hora
de reafirmar alguns pontos de vista e formular outros.
O investimento na dimensão da autodefinição possui dois grandes ganhos
epistemológicos: 1) supera as abordagens essencialistas da identidade étnica; 2) rompe com
30
Isso fica expresso num texto escrito 25 anos após a publicação de sua famosa introdução: “a pertença a
grupos étnicos deve depender da ascrição e auto-ascrição [sic]; no entanto, a etnicidade só será motor da
diferença organizacional se os indivíduos a aceitarem, forem constrangidas por ela, agirem em relação à
mesma e a experienciarem” (Barth, 2003 [1994]:20].
31
Roberto Cardoso de Oliveira (1962; 1964) certamente foi um precursor. A teoria de Barth, incorporada por
Cardoso de Oliveira posteriormente (1976), ia de encontro ao que o antropólogo brasileiro vinha
desenvolvendo.
32
Vale lembrar que tanto na sua famosa introdução como em textos mais recentes, Barth (2000c; 2003) critica
o primordialismo e o culturalismo.
33
Barth parece estar cônscio dessa limitação ao afirmar que: “Embora altamente contextualizada e
contingente, a seleção destes mesmos diacríticos processa-se bem menos ao acaso do que possa ter indicado
em 1969” (Barth, 2003 [1994]: 25).
35
a figura do pesquisador-censor. Considerando que a existência de grupos étnicos depende
do trabalho de atribuição categorial e das interações interculturais, é necessário pensar as
comunidades remanescentes de quilombo em suas relações com o Estado, tendo em vista
que se trata de uma categoria surgida no âmbito jurídico-administrativo, e é ao Estado que
os ‘remanescentes’ se dirigem para reivindicar o reconhecimento étnico e a titulação das
terras por eles ocupadas.
Nesse sentido, no momento em que identidades étnicas ‘emergem’, é necessário
pensar menos numa cultura primordial e originária que surge dos porões a que foi relegada,
e mais a articulação da diferença em contextos intersocietários bem definidos. É dentro
desse quadro onde Oliveira (1998a; 1998b; 1999a; 1999b; 2003) trabalha com a noção de
“processo de territorialização”. Essa formulação, com nítida inspiração em Barth, deslocase do foco de atenção das culturas (enquanto isoladas) para os processos identitários que
têm lugar em contextos sociais bem específicos. Oliveira visa acrescentar um elemento
novo às contribuições do mestre norueguês: a individualização e a distinção como vetores
de organização social.
Ao pensar o território, a antropologia abordou-o, em geral, por meio da noção de
territorialidade34. Se o estudo da diversidade foi – e ainda é, pelo menos para alguns – o
motor da antropologia, as formas de viver e representar o espaço vivido variam de
sociedade para sociedade, de cultura para cultura. O conceito de territorialidade daria conta
da dimensão simbólica do território, das representações sobre ele, a forma de vivê-lo,
apreendê-lo, organizá-lo. Em uma palavra: territorialidade permite estabelecer um elo entre
território e cultura.
A análise das representações pode fazer esquecer que as relações de uma
coletividade com o território e os discursos sobre ele são históricos. É um fato histórico,
como a presença colonial, por exemplo, que instaura uma nova relação da sociedade com o
território, deflagrando transformações em múltiplos níveis de sua existência sociocultural
(Oliveira, 1998a). Destarte, antes de postular princípios governantes da relação com o
34
A definição de território não se esgota à sua dimensão simbólica, como faz notar Haesbaert (2004). Para
esse geógrafo, é mais proveitoso definir o território como um “híbrido”: híbrido entra natureza e sociedade,
entre política, economia e cultura, uma dimensão simbólica, ou cultural, e uma dimensão material.
36
território, é necessário ter em conta a situação histórica na qual estão imersas essas
populações, bem como o caráter datado da identificação territorial (Lima, 1998).
É justamente o movimento pelo qual um “objeto político-administrativo” (pensemos
nos remanescentes das comunidades de quilombo, a título de exemplo) “vem a se
transformar em uma coletividade organizada, formulando uma identidade própria,
instituindo mecanismos de decisão e representação e reestruturando suas formas culturais”
(Oliveira, 1998a: 56) que permite perceber a individualização e a distinção como vetores de
organização social. Já que a identidade étnica não é fruto do isolamento e sim do contato, a
assunção identitária, por se dar em contextos intersocietários bem definidos, não faz
emergir dados primordiais; ela deflagra um processo de reorganização social. Para Oliveira,
o processo de territorialização não é uma via de mão única, dirigida externamente e
homogeneizante, pois os grupos étnicos são capazes de uma auto-objetivação. Se o que
caracteriza a identidade étnica face outras identidades sociais é o fato dela estar voltada
para o passado (Streiff-Fenart; Poutignat, 1997; Vermeulen; Govers, 1997), a “viagem da
volta” (Oliveira, 1998a; 1999a) não é um exercício nostálgico de retorno ao passado e
desconectado do presente (por esse motivo não é uma viagem de volta).
As formulações teóricas de Oliveira constituem passo decisivo em direção a uma
interface entre antropologia e história. O autor toma o tempo não apenas enquanto sua
diferente manifestação nas culturas (temporalidade), mas também como categoria
fundamental na definição do fazer antropológico, seguindo de perto os preceitos de Fabian
(1983). Por estarem situadas, as identidades étnicas não se dão em contextos atemporais e
abstratos. Porém, o risco a espreitar essa análise é tomar essas identidades como definidas
exclusivamente pelo Estado35. Se este assume papel incontornável nas dinâmicas
identitárias, há que se ter cuidado para não cair numa armadilha: ao tratar o Estado como o
fator constitutivo dos grupos étnicos, as ações e configurações deles ficam subsumidas e
resumidas aos padrões ditados por esse ente maior. A antropologia pode acabar se
35
Novamente as formulações de Barth são de grande valia aqui. Como notou o autor: “Os estudos mais
recentes têm […] assumido que todos os processos étnicos devem ser entendidos em ligação às estruturas do
Estado, da variante específica representada pela recente sociedade civil, industrial e democrática” (Barth,
2003 [1994]:29). Barth propõe que o Estado seja tomado enquanto uma das dimensões definidoras da
identidade étnica.
37
configurando como mecanismo homogeneizador, na medida em que os ‘discursos nativos’
nada mais são do que epifenômenos de uma ordem maior que os supera e sobrepuja.
É justamente com o objetivo de contornar essa tendência que o recente livro de
Arruti (2006) é arquitetado. As quatro partes do livro têm por título inicial a palavraconceito
“processo”:
processo
de
nominação,
identificação,
reconhecimento
e
territorialização. “Processo” figura no subtítulo do livro também: “Antropologia e História
no Processo de Formação Quilombola”. Esse uso abundante é balizado por uma postura
teórica atenta à história ou, para utilizar os termos do autor, como os fatos sociais e a
alteridade se tornam coisas. Barth figura no marco teórico para desessencializar a
identidade étnica; Oliveira, e o conceito de processo de territorialização, para cobrir o
fenômeno de passagem da adscrição étnica (necessariamente local) para a adesão a uma
categoria genérica e englobante, formulada pelo Estado-Nação. Para o autor, o grande
desafio parece ser o seguinte:
Assim, a necessária correção de Oliveira [João Pacheco de], feita à teoria da
etnicidade vigente, corre o risco de retornar a uma postura analítica que Barth
havia criticado (com alguma razão) para propor seus próprios avanços analíticos,
dos quais partimos hoje: aquela que trata a constituição dos grupos étnicos
apenas da perspectiva da ‘paz colonial’ e da administração externa. O desafio
parece ser, portanto, reintegrar à análise dos grupos étnicos e à teoria da
etnicidade as considerações acerca dos processos macro-contextuais (nos quais o
Estado ocupa um papel incontornável) que escapam ao contexto de definição
local e contrastivo das ‘fronteiras’, mas sem fazer com que toda análise
antropológica retorne a uma perspectiva na qual o Estado é o centro (Arruti,
2006: 42). [grifos no original].
Durante todo o livro acompanhamos as dinâmicas e fluxos dos processos culturais,
as reconfigurações do passado – já que não se trata de saber como este determina aquele, e
sim como ambos se relacionam –, o papel assumido pelo pesquisador nessa dinâmica,
agentes sociais (muito mais do que informantes), a constituição da diferença. O livro de
Arruti avança significativamente no estado de conhecimento sobre os remanescentes de
quilombos e constitui ponto de inflexão na sua própria produção sobre o tema. Contudo,
freqüentemente Arruti pende para uma análise antropológica centrada no Estado, como
quando concebe a associação surgida no Mocambo como “uma minúscula variante do
Estado nacional no Mocambo” (:322) ou designa os remanescentes como “etnias
38
federais”36. Inegavelmente, o Estado possui um papel incontornável nas dinâmicas
culturais. É fundamental saber em que medida as populações às quais se refere a legislação
dos remanescentes de quilombos (e também dos povos indígenas) não estão sujeitas a
responder ao enquadramento burocrático do aparelho jurídico-administrativo. Porém,
“Mocambo” por vezes pende para posturas defendidas pelo autor há mais de dez anos,
quando sugeria:
As unidades de descrição das populações submetidas respondem, ao custo de uma
brutal redução de sua alteridade, às necessidades de produção de unidades
genéricas de intervenção e controle social, sendo que tais unidades variam
segundo aquelas necessidades de controle e domínio (Arruti, 1997:14).
Considero tarefa fundamental da antropologia estar atenta aos jogos de poder que
emanam dos discursos. Todavia, também é fundamental perguntar até que ponto as
“populações submetidas” são tão submetidas assim. A indispensável tarefa de estar atento
ao poder acaba por maximizar essa dimensão. Dizer que “tais unidades variam segundo
aquelas necessidades de controle e domínio” pode redundar numa confusão entre a
dinâmica dos grupos étnicos na história, e a ação histórica tratada como mera reação – e
adequação – à lógicas mais amplas. Assim, os ‘nativos’ são situados na história às expensas
de serem tragados pelas tremulantes marés dos fluxos históricos.
No livro de Arruti, o nível privilegiado acaba por ser os efeitos desencadeados por
uma ordem política mais ampla, e não uma antropologia da política37. Ou seja, uma
36
A citação completa é a seguinte: “Nos processos de reconhecimento e identificação que implicam a
pretensão de um território regulado, os fenômenos de supressão e assunção de identidades também podem ser
lidos como movimentos de desterritorialização e territorialização. No caso do Mocambo, isso se traduziu no
surgimento de uma instituição (a Associação) que, sendo exigida pelo Estado para a interlocução com o grupo
e para a transmissão dos direitos de propriedade, necessariamente reproduziu seus caracteres básicos. Não
seria exagero ver aí o nascimento de uma minúscula variante do Estado Nacional no Mocambo, dada as
suas pretensões de instituir um ordenamento de caráter jurídico e uma soberania territorial. Nas lutas
que marcam seu nascimento, estão tanto os separatismos quanto as disputas por emancipação política com
relação a outros poderes territoriais. Tais lutas recorrentemente apontam a presença da Associação como uma
limitadora das liberdades individuais relativas ao mercado, inicialmente de terras, mas progressivamente
sobre outras formas de mercadoria, como se estivéssemos novamente frente à oposição entre Estado e
mercado. Por isso, não é apenas anedótica a descrição do seu território como uma ‘área federal’. A expressão
aponta, justamente, para essa singularização étnica, emancipação política, excepcionalidade jurídica e
soberania territorial (Arruti, 2006: 322) [grifos meus].
37
Não é à toa que o título original da tese de Arruti seja “‘Etnias Federais’. O processo de identificação de
‘remanescentes’ indígenas e quilombolas no Baixo São Francisco”. O livro “Mocambo” é a extensão de sua
tese de doutoramento.
39
antropologia que se pergunta pelo o que pode ser uma dimensão do político para diferentes
sociedades (Goldman, 2006)38. Neste tocante, autores que trabalharam em contextos
totalmente diferentes, como Turner (1993) e Commerford (2003), oferecem valiosas
contribuições. Ambos demonstram como ‘instituições políticas’ são apropriadas de forma
específica. O primeiro aborda a incorporação de um modelo burocrático pelos Kayapó39
conforme seu esquema cultural. Já Commerford (2003), em instigante análise de sindicatos
rurais, analisa-os a partir do modo como as pessoas experenciam o sindicato e sua
participação nele (o sindicato é “como uma família”, era a frase mais comum).
Commerford guiou sua análise pela tentativa de definir a razão pela qual os camponeses
estabeleciam analogias entre o sindicato e a família.
Se os informantes, por não serem tratados como sujeitos, viviam em um contexto
atemporal, o afã em demonstrar o contrário – os ‘nativos’ também estão na história – corre
o risco de redundar em uma visão de uma história englobante, como se o fato dos sujeitos
estarem na história significasse que respondam a ela da mesma forma, ou como se fossem
vítimas impotentes do todo poderoso Estado. Se os homens fazem a história em condições
que não foram feitas por eles [people make history but not in conditions of their own
making], para lembrar a velha e conhecida frase de Marx, não significa que deixem de fazer
a seu modo, pois ninguém a faz como lhe aprouve.
1.4 Práticas históricas
A teoria da etnicidade foca os processos interativos de articulação da identidade e
seu caráter situacional, deslocando o foco da preocupação com conteúdos culturais
estabelecidos de antemão. Ao encarar a dinâmica social enquanto mecanismo de supressão
de conflitos, os aportes funcionalistas tenderam a salientar a coesão social, dando pouca
margem para se pensar os processos de mudança ao longo do tempo. A novidade da teoria
da etnicidade, e, antes disto, das obras de Leach (1996 [1954]) e Gluckman (1987),
consistiu, sobretudo, no questionamento da coesão como dado. A dinâmica dos sistemas
38
Essa abordagem tende a se tornar “maximalista”, segundo a conceituação de Balandier (1969). Ou seja, ao
invés de relacionar esse domínio com outras dimensões, tende a reduzir todas essas dimensões ao “político”,
como aponta Goldman (2006).
39
Ver também Turner (1986; 1991).
40
políticos e dos grupos tribais deixou de se limitar apenas ao âmbito local e passou a ser
relacionada a âmbitos mais amplos.
As contundentes críticas epistemológicas feitas à disciplina, especialmente aquelas
formuladas a partir das décadas de 70 e 80, chamaram a atenção para uma tônica comum a
diversos antropólogos, especialmente a diminuta atenção dada aos processos de mudança
no tempo, a supressão das descrições a respeito das condições de produção do saber
etnográfico e a abstração dos contextos e situações históricas nos quais os povos estudados
achavam-se inseridos. A crescente atenção devotada aos contextos sociais mais amplos e
aos processos macrosociais nos quais as ‘populações nativas’ se acham inseridas pôs em
xeque as análises que concebiam essas populações como auto-suficientes e centradas em si
mesmas. Porém, como bem coloca Ortner (1984), os modelos centrados nos processos
deflagrados pelo capitalismo, imperialismo, colonialismo e congêneres podem redundar em
extremos:
At the core of the model is the assumption that virtually everything we study has
already been touched (‘penetrated’) by the capitalist world system, and that
therefore much of what we see in our fieldwork and describe in our monographs
must be understood as having been shaping in response to that system. [...] A
society, even a village, has its own structure and history, and this must be as
much part of the analysis as its relations with the larger context within which its
operates (Ortner, 1984: 142-3).
Se, por um lado, a descrição do contexto histórico no qual os povos estudados pela
antropologia se acham imersos não deve ser negligenciado (Stocking, 1986; Clifford,
1986), por outro lado, não deixa de ser verdade que os processos desencadeados na história
não se dão no vazio, pois as ‘lógicas internas’ dessas populações são dados fundamentais a
serem levados em conta (Sahlins, 1997a; 1997b, 2005; Gallois, 1992; Albert; Ramos, 2003;
Franchetto; Heckenberger, 2001).
O diagnóstico de Ortner sobre uma tendência da teoria antropológica tentar
conciliar estrutura e prática é, nesse sentido, de rara acuidade. A história não acontece
simplesmente às pessoas; ela também é algo feito por elas (Ortner, 1984:159). Só assim
podemos compreender a confluência de obras tão distintas, e animadas por perspectivas
teóricas tão diversificadas como Rosaldo (1980), Bourdieu (1972) e Sahlins (1981; 2003
41
[1987]), por exemplo. Guardadas suas diferenças, esses autores assemelham-se pela
tentativa de superar a oposição entre estrutura e prática. Para os fins desta pesquisa,
interessa relacionar a dinâmica identitária em curso em Cambará a processos mais amplos,
sobretudo a interação com o Estado. Entretanto, o cenário atual não é um ato inaugural da
história no local, tampouco a identidade e a memória devem seu formato apenas ao
contexto mais amplo. É a própria trajetória histórica dessa comunidade que torna a reação
face aos processos desencadeados no tempo, e aos novos contextos com os quais ela se
depara, específica.
1.5 Aproximações da história
As interfaces com a história analisadas nos parágrafos anteriores apresentam
dilemas similares aos enfrentados no estudo do que convencionalmente se chama de
‘memória coletiva’. A correlação entre estrutura e prática pode ser pensada mediante o
estudo histórico do processo de formação de memórias40. Em dois artigos seminais, Pollak
(1989; 1992) já estabelecera um novo plano de pesquisa e preocupações. Em direção a uma
perspectiva construtivista, Pollak afasta-se da ênfase de Halbwachs (1989) à força coletiva,
de continuidade e estabilidade da memória. As ênfases de Halbwachs concernem às
“funções positivas” da memória, a saber, de reforço da coesão social – não à coerção e
violência simbólica, dirá Pollak (1989:3). Para o construtivista, prossegue Pollak (que foi
orientado por Pierre Bourdieu), não se trata mais de lidar com os fatos sociais como coisas,
mas de analisar como os fatos sociais se tornam coisas.
Aplicada à memória coletiva, essa abordagem irá se interessar pelos processos e
atores que intervêm no trabalho de constituição, formalização e enquadramento das
memórias. O conceito de “memórias subterrâneas”, utilizado por Pollak (1989; 1992), só
faz sentido se tivermos em mente essa visão construtivista e o postulado de que, ao
contrário de Halbwachs, o estudo da memória acentua o caráter destruidor, uniformizador e
40
O estudo de Mattos e Rios (2005) sobre as narrativas dos descendentes de escravos das áreas rurais do
Sudeste é valioso nesse aspecto. Historiadoras de formação, as autoras aproximaram-se da antropologia na
tentativa de superar a antiga (e persistente) dicotomia entre memória e história.
42
opressor das memórias dominantes, como a memória nacional, por exemplo. Se uma das
funções essenciais da memória é manter a coesão interna, fornecendo pontos e quadros de
referências, esse “trabalho de enquadramento” não deixa de ser arbitrário. Por trás das
memórias oficiais e estabelecidas, existem “estruturas de comunicação informais”,
“memórias subterrâneas” que expressam vivências diferenciadas da realidade, modos de
construção e enquadramento diferenciados do passado. Fenômeno construído, as memórias
variam historicamente. Podem aflorar em momentos de crise e não são essências de um
grupo ou pessoa, sendo sujeitas à negociação e disputas.
Se o estudo das memórias lançou-as no terreno da subjetividade – em contraposição
ao suposto domínio objetivo da história que lida com documentos – é hora de romper com
esse “positivismo ingênuo”. “Se a memória é socialmente escrita, é óbvio que toda a
documentação também o é”, diz-nos Pollak (1992: 209). O que está em jogo, portanto, não
é o subjetivo, e sim o plural. Temos a possibilidade não de uma objetividade, mas de uma
objetivação, que leva em conta a pluralidade das realidades e dos atos.
Essa pluralidade, como vimos, pode resultar em disputas. A inserção de minorias
étnicas em esferas públicas e o investimento em reivindicações e assunções manifestam o
dinâmico processo de constituição e enquadramento das memórias. De um lado, é verdade
que a emergência de “memórias subterrâneas” expressa menos uma essência e uma tradição
cristalizada e mais uma tentativa de reinscrição de memórias e tradições nas condições
atuais do presente41. Por outro lado, creio ser possível levar a sério o conteúdo
programático de Pollak sem redundar em um construtivismo exacerbado.
Para os propósitos desta pesquisa, a memória e as filiações com o passado não
devem ser tomadas enquanto dados pré-constituídos. A assunção quilombola imprime
mudanças na forma de se relacionar com os eventos pretéritos. Ao mesmo tempo, não
devemos supor que as narrativas sobre o passado devam seu formato e conteúdo apenas ao
contexto presente e às buscas de legitimação de direitos. O próprio conteúdo transmitido
pelas narrativas manifesta um trabalho inicial de seleção: aquele no qual o passado geral
(tudo o que aconteceu) transforma-se em um passado significativo (Price, 1983). Em
41
“O ‘direito’ de se expressar a partir da periferia do poder e do privilégio autorizados não depende da
persistência da tradição; ele é alimentado pelo poder da tradição de ser reinscrever através das condições de
contingência e contrariedade que presidem sobre as vidas dos que estão ‘na minoria’” (Bhabha, 1998:21).
43
Cambará, pode-se dizer que a escravidão e as conformações do território ao longo do tempo
constituem as experiências incrustadas do grupo.
“Experiência” é um conceito diretamente relacionado à “expressão”, para utilizar os
aportes de Bruner (1986). Ao articular essas duas noções, é possível tomar por campo de
investigação como as experiências individuais articulam-se ao coletivo por meio de sua
expressão. Isso dá margem para pensar os processos comunicativos nos quais surgem as
experiências e sua expressão – o contado. Nesses processos comunicativos, o público é
outro elemento-chave, pois influi decisivamente no conteúdo expressado. Utilizo a noção
de “experiência incrustada” porque determinadas experiências são preponderantes na forma
como os grupos refletem sobre si e sobre sua história (experiências significativas do
passado). Incrustado não equivale a estabelecido para sempre. Significa o que é tido por
marcante para os sujeitos. Por sua vez, essas experiências são expressas por meio de
narrativas. Entendo narrativa no sentido definido por Finnegan, ou seja, como ato de contar
(Finnegan, 1992). A análise das narrativas permite vislumbrar formas específicas de trazer
o passado para o presente, definir e categorizar a passagem do tempo.
Embora o contato com os moradores de Cambará sempre tenha tido por pano de
fundo os pleitos identitários e territoriais da comunidade, não basta abordar as narrativas
apenas enquanto resposta às necessidades políticas do presente. O passado certamente não é
algo que fica pairando à espera de sua evocação. A relevância do evento pretérito depende
do seu sentido no presente, de sua capacidade de se presentificar. As condições e
necessidades contemporâneas certamente estão embutidas nos relatos. Da mesma forma, os
eventos marcantes oferecem lições, noções de justo e injusto, e reações em face da
passagem do tempo que conformam a percepção e os significados atribuídos ao presente.
Se a conformação e configuração dos grupos étnicos são produtos de uma história
particular, não é menos verdade que a história desses grupos é mediada por formas
socioculturais. O estudo da constituição das experiências e memórias permite vislumbrar os
efeitos desencadeados pela adscrição étnica e as interações com o Estado-Nação. Mas como
se trata não apenas de uma abordagem gerativa, a construção de um discurso atento ao
plural permite perceber tratar-se de um quadro extremamente complexo no qual memórias
subterrâneas são alçadas à condição de visibilidade menos como resposta, efeito ou reação
44
a uma entidade maior, e mais pela incorporação, ressemantização e (re) adaptação das
transformações do contexto englobante, estando assentadas nas bases fundamentais
definidoras do grupo.
A identidade étnica possui, inegavelmente, um componente político, mas é
necessário abrir um campo complementar de investigações. Acompanhando Boltanski e
Thévenot (1991), interessa investigar aquilo que é mobilizado pelos atores sociais nas suas
ações práticas e nas justificações das mesmas. Atualmente, os membros de Cambará vêm
mobilizando a memória e sua trajetória histórica para embasar e justificar pleitos e
demandas. Mas esse resgate do passado não é mera adequação. Ou seja, as pessoas, seres,
objetos e fatos não são mobilizados apenas pela busca de consecução dos novos direitos,
mas também por conterem noções de justo e injusto. Os ‘novos direitos’ advindos da
identificação de remanescente de quilombo são interpretados no interior mesmo da ordem
de justiça local. As narrativas acentuam diversas situações de desrespeito e são essas
“experiências morais”, para utilizar a terminologia de Honneth (2003), que estão na base
dos pleitos atuais. Em Cambará, as histórias sobre os antigos, contadas pelos narradores,
estão sendo recriadas no esforço de reivindicar a condição de remanescente de quilombo,
porém os episódios que envolvem os antigos já trazem em seu bojo referenciais que
fornecem sustentação às noções de justo e injusto. Assim, a memória se apropria de
elementos conforme um critério de ajuste ao conjunto de fatos já articulados no processo de
construção da identidade42.
Em Cambará, os eventos marcantes dizem respeito às formas como os antigos
chegaram ao local – como, quando, com que meios, em que condições, onde viveram, etc. –
e ao repertório de vivências do território. Esse repertório é qualificado em sua relação com
a escravidão. A territorialização dos antigos é vista como afastamento do mundo da
escravidão. Ao mesmo tempo, os fatos relacionados à manutenção e perda das terras
colocaram os antigos e os atuais moradores às voltas com esse mundo (da escravidão). O
42
É bem verdade que a ‘memória coletiva’ possa ser elaborada em função da situação de perícia e/ou pela
situação de adscrição étnica, mas talvez seja muita pretensão achar que a influência dos pesquisadores na
formação e constituição de memórias seja o fator explicativo delas. A necessária tarefa de contextualizar o
papel desempenhado em campo e situar-se como coevo ao ‘nativo’ corre o risco de redundar em uma
‘antropologia do umbigo’.
45
trabalho que passaram para conquistar, manter e garantir a terra traz à tona as condições de
trabalho da escravatura. Os esbulhos e as disputas por terras com os brancos também
portam o peso da escravidão, sendo inserida aí as noções de justo e injusto.
A hipótese a ser desenvolvida nesta dissertação é de que o território em Cambará é
concebido como espaço diretamente envolto com o passado e a experiência da escravidão.
A dinâmica que caracteriza a memória e o pertencimento identitário está, em grande
medida, assentada sobre essa base. E aqui me encontro com Gilroy (2001). Sua obra é
valiosa porque permite pensar as rotas homônimas43. As histórias sobre a escravidão, sua
dramaturgia da recordação e expressão conformam um vernáculo que certamente está à
mercê dos fluxos erráticos da história, mas que não deixa de possuir suas especificidades.
A leitura de Gilroy é uma tentativa de superar a oposição entre visões essencialistas
e anti-essencialistas da identidade étnica. Mas o que realmente embasa essa tentativa é a
observância a um princípio básico da antropologia: ouvir. O conteúdo narrado depende
diretamente da platéia e do público do narrador; depende do contexto e da situação histórica
na qual surge, mas diz algo a mais do que esse contexto. Os discursos sobre o território não
podem ser tomados exclusivamente como respostas às exigências políticas do presente. É
necessário perscrutar as narrativas, enxergar algo situado além do narrador e do ouvinte.
Destarte, a exposição do material etnográfico pautou-se por acompanhar os fatos
tidos por marcantes pelos sujeitos da pesquisa. Em que pese as inevitáveis diferenças de um
narrador para outro, é possível notar a existência de um núcleo comum de histórias que
conformam as lembranças sobre o passado da comunidade. A formação e a configuração
das terras durante os anos e as lembranças sobre o passado escravista são recorrentes nas
falas. Nesta dissertação, darei um passo atrás para me aproximar da história. Além de
pontuar a dinâmica da memória e da identidade no contexto presente, trarei os eventos tidos
por marcantes para essas pessoas. Valendo-me de relatos orais e fontes documentais, será
possível reconstituir um passado certamente inacabado, mas que faz sentido para a situação
histórica do presente.
A opção de manejar fontes documentais se deu em virtude de algumas
especificidades da pesquisa. Na ocasião de elaboração do laudo antropológico, foi possível
43
Na língua materna do autor, roots – raízes, e routes – rotas.
46
localizar a maior parte dos eventos marcantes da história de Cambará – para os narradores e
narradoras, evidentemente – nos arquivos. Localizei outros documentos durante o
mestrado, complementando algumas informações. Antes de passar à análise propriamente
dita desse material, são necessárias algumas considerações sobre o manejo de fontes
escritas e das fontes orais.
1.6 Uso das fontes e narrativas
Como nota Finnegan (1992), “narrativa” é uma noção utilizada em um sentido
amplo, abarcando todas as formas verbais. O alcance dessa e outras noções (narração, oral,
oralidade, tradição oral, arte verbal, etc.), é freqüentemente tomado como auto-evidente,
abrangendo uma enorme variedade de formas expressivas. É importante reter isso, na
medida em que as formas verbais e não-verbais dos povos por nós estudados tendem a se
quedar subsumidas (e resumidas) a categorizações amplas e genéricas. A solução para essa
questão não é fácil. O primeiro passo é reconhecer a dificuldade do discurso antropológico
em traduzir os saberes e práticas ‘nativas’.
Acredito que essa é uma dificuldade sempre presente. Por meio de nossas escolhas
teóricas podemos lidar com ela, nunca superá-la. Seguindo novamente Finnegan (1992: 23),
o potencial analítico dessas noções não reside em uma terminologia comum e bem
delimitada; antes, no conjunto de questões e temas propostos. Embora narrativa tenha um
sentido muito amplo, é possível tomar essa noção enquanto “ato de contar”, focando
processos e produtos (Finnegan, 1992). No âmbito desta dissertação, uma das principais
questões a ser pensada diz respeito à interface entre fontes orais e escritas.
O primeiro cuidado na confrontação entre dito e escrito consiste em rechaçar a
falácia que consiste em atribuir às fontes escritas ‘veracidade histórica’ em detrimento da
oralidade, marcada pela imprecisão e vacuidade. Mesmo autores que tomaram esse cuidado
incorreram em atitudes dúbias na avaliação das fontes, como no caso de Vansina (1985),
47
por exemplo. Em que pese sua inegável contribuição para o estudo das tradições orais44,
Vansina pende para uma avaliação delas ora segundo suas “limitações”, ora para seu
possível uso como fonte histórica (Oral Tradition as History...):
Chronology and lack of independence are real problems for oral traditions. They
can be overcome or alleviated in some cases by outside evidence, but because the
contents of outside evidence tend no to be congruent with the contents of oral
tradition such cases will remain the exception rather than the rule. One should
still not give up hoping that outside sources will eventually be of
assistance(Vansina, 1985: 190).
Evidentemente, tradições orais podem cumprir importante papel na reconstituição
do passado, refinando e ampliando as possibilidades de reconstituição da história
(Thompson, 1992). Comparando o caso de Palmares com os estudos realizados entre os
Saramaka (Suriname), Price (1996) aponta que ficar restrito às documentações escritas
sobre povos historicamente vistos como ameaças restringe por demais a análise e corre o
risco de incorrer em postulados parciais que limitam por demais a experiência históricosocial desses povos.
Parto de duas idéias basilares para pensar a oralidade. Em primeiro lugar: ela não
deve ser avaliada em face ou em função do escrito, tampouco em razão de suas carências
face ao escrito. A projeção é um dos mecanismos que causa a confusão entre juízo de
relação e atributo do objeto (Goldman; Lima, 1999). A transposição para outro domínio de
discriminações operadas no ‘nosso’ dia a dia que têm suas raízes em sistemas de valores
particulares, alimenta a partilha entre oral e escrito, implicando assimetrias expressas em
termos como ausência e presença (ausência e presença de cronologia, profundidade
histórica, criatividade etc.). Este é o caso dos empreendimentos de Vansina (1985), Ong
(1998) e Goody (1985; 1987). Sem negar a contribuição desses autores, não creio que
preocupações em torno da diferença entre ‘nós’ e ‘eles’ sejam o melhor caminho a ser
44
As tradições orais estão referidas a um duplo aspecto, segundo Vansina: produtos, que são mensagens orais
baseadas em mensagens orais prévias e a um processo, a transmissão de mensagens, boca a boca, por mais de
uma geração (Vansina, 1985).
48
seguido, especialmente quando avaliamos outros domínios a partir de suas supostas
‘carências’45.
Em segundo lugar, a distinção de ordens narrativas permite antever especificidades
próprias da construção e interpretação do passado e da passagem do tempo. A introdução
de documentos no escopo da pesquisa não visa reconstituir ‘aquilo que realmente
aconteceu’. A inclusão de fontes documentais – cronologia, geografia e outras fontes –
ajuda a acurar nossa compreensão acerca do complexo processo de seleção do passado. No
instigante “First-Time”, Price (1983) sugere interessantes caminhos no manejo de fontes
orais e escritas. É necessário levar a sério o que os ‘nativos’ têm a dizer sobre o passado, e
atentar para os caminhos trilhados pelos informantes que transformam o passado geral
(tudo que aconteceu) em um passado significativo46.
Em resumo, trabalhar com esses dois tipos de fontes exigiu cuidado com as
especificidades subjacentes a cada forma de registro do passado. Não significa que a
oralidade seja imprecisa, se comparada com as fontes documentais. Ambas merecem uma
reflexão detida, pois como apregoa Abercrombie (1998), deve-se avaliar criticamente as
fontes (documentais, orais, visuais) e explorar as maneiras pelas quais as populações que
estudamos percebem e captam seu passado. Os eventos que constituem a história dos
‘povos nativos’ são mediados através de processos sociais e formas culturais por meio das
ferramentas locais de atribuição de sentido (Rosaldo, 1980). Recorrer a fontes escritas não
tem por fim ‘comprovar’ os relatos orais, e sim enxergar suas interpenetrações47. O uso de
fontes documentais ajuda a compreender os relatos por situá-los em contextos históricos
precisos. De agora em diante, é necessário dar um passo adiante e guiar a análise pela
tentativa de compreender como operam essas mediações. Portanto, na conexão entre
memória e história, não devemos invocar uma versão historicista da seqüência de fatos, e
45
A oralidade é específica não pelo fato de não ser escrita, e sim por possuir formas de registro e transmissão
do passado próprias. A ausência de escrita não pode justificar o estabelecimento de um “grande divisor”
(Goldman; Lima, 1999).
46
Estou cônscio da possibilidade de ler os documentos como expressões de negociações de significado e
campos compartilhados de símbolos, imagens e significações entre diferentes populações (digamos nativas e
colonizadoras, para simplificar), como o faz Price (1990) em um trabalho posterior – revendo alguns recortes
de First-Time –, Taussig (1993) e Pompa (2003). Não descarto esse plano de pesquisa no futuro.
47
Slenes (1996) oferece interessantes questões metodológicas no manejo de fontes escritas e orais. Para uma
análise do oral como metodologia, consultar também Ferreira e Amado (1996).
49
sim o que permeia as evocações de imagens do passado (Taussig, 1993). Antes de trazer
Cambará e suas situações, uma palavra sobre o contexto no qual se deu a pesquisa em
arquivos.
1.7 O estatuto dos documentos
As pesquisas em arquivo tiveram início no contexto de produção de um laudo. O
fato de eu possuir um contato prévio com boa parte da comunidade – detendo um
conhecimento razoável dos eventos históricos tidos por marcantes pelos moradores do local
– acarretou no meu envolvimento direto com essas pesquisas desde o princípio. Previa-se a
localização de documentos que reportassem a esses eventos, algo ulteriormente confirmado.
Mesmo não sendo este o objetivo da minha análise, a documentação compulsada revelou a
confirmação entre o dito e o escrito, até mesmo em pormenores.
Ao longo do laudo, insistimos na tese da confirmação recíproca48 por três razões: a
já aludida localização de diversos documentos que reportavam aos eventos tidos por
marcantes e fundantes da história do grupo; a valorização da oralidade enquanto fonte; o
gênero específico de saber que estávamos produzindo. Detendo-me nos dois últimos
aspectos, voltarei o olhar para o primeiro.
Como nota Pollak (1992), o estudo das memórias em geral lançou-as no terreno do
subjetivo, em contraposição ao domínio (supostamente) objetivo da história. Em que pese a
crescente valorização da oralidade enquanto fonte histórica, a idéia de que o oral é marcado
pelo impreciso, difuso e valorativo ainda está fortemente enraizada. Os relatos dos
moradores de Cambará foram tomados enquanto fontes que remetem a uma trajetória
histórica específica. Essa valorização da oralidade foi o primeiro motivo para o uso da
noção de “confirmação recíproca”: o oral podia iluminar diversos aspectos do escrito, e
vice-versa.
O segundo motivo foi o gênero de saber que estávamos produzindo. Seria um
equívoco atribuir homogeneidade ao sistema judiciário brasileiro, contudo, há uma forte
tendência (um tanto positivista) em fundar as decisões judiciais com base nas evidências e
48
Noção utilizada e problematizada em Anjos; Silva (2004).
50
provas. No caso de um grupo que reivindica o título de suas terras, por exemplo, os relatos
e testemunhos dos moradores por si só não são garantias da validade do pleito. Assim
sendo, a localização de fontes escritas sobre Cambará era uma questão não só de estilo ou
de pesquisa, mas também uma questão política, pois o estatuto das provas mortas incide
poderosamente sobre os vivos49.
Nesse tocante, torna-se necessário, portanto, abordar a relação entre ciência e
política. O foco na atividade do indivíduo enquanto pesquisador e seu engajamento político
– e as questões morais e éticas envolvidas aí – desvia a atenção da questão central, que diz
respeito às condições de possibilidade da própria prática científica (L’Estoile, Neiburg,
Sigaud, 2003). Como notou Oliveira (2003:258), a intervenção de antropólogos em
processos judiciais e administrativos deve ser tomada enquanto exercício de uma
competência técnico-científica em meio a um complexo jogo de pressões e negociações que
envolvem diferentes agentes. A antropologia, na situação de perícia, se vê diante de um
dilema face às mediações que estabelece com o aparelho jurídico demandante de critérios
“objetivos” para operar (Arruti, 2005).
Destarte, a busca e a localização de documentos esteve diretamente condicionada
por essa situação prática. A confirmação recíproca necessitou ser construída e legitimada
analiticamente. Estamos diante da constituição de um campo eminentemente político onde
representações autorizadas sobre o presente e seus significados para diferentes atores estão
particularmente sinalizadas e visíveis nos arquivos (Cunha, 2005). Se o passado é um
campo de disputas, as mediações com os arquivos podem oferecer ferramentas para
autorizar os discursos e versões do passado.
Senão tardiamente comecei a perceber que as incursões aos arquivos eram
extremamente específicas. Não só pelo meu total desconhecimento de técnicas básicas de
localização e análise de documentos, mas também pela forma pela qual eu confrontava o
passado e a forma pela qual o passado me confrontava. O documento remetia-me a um
passado. A diferença é que o mosaico que compunha este passado estava povoado por
vozes. No caso em questão, as vozes dos narradores e narradoras de Cambará.
49
Esta idéia foi tomada de empréstimo de uma fala de Denise Fagundes Jardim na argüição da defesa de Ieda
Cristina Alves Ramos, no ano de 2007.
51
Como faz notar Cunha (2005), o arquivo é um campo igualmente marcado pelos
encontros e relações diversas de conhecimento. Se há uma historicidade própria aos
artefatos (como o documento, por exemplo) capturados por etnógrafos e historiadores –
eles também possuem a sua história – é necessário mover a atenção para o estatuto desses
artefatos e sua (suposta) capacidade de remeter-nos a um passado:
O valor do documento reside em que se mantenha intacto na sua suposta
capacidade de nos deslocar para o passado. Para tanto, quase sempre, serve de
atestado, prova material de que o tempo, pelo menos naquele objeto, foi
preservado. Em diversos encontros aprendi ser possível 'ver' outras coisas: o
tempo que permanece transformado (Cunha, 2005:26 [grifos no original]).
O registro de transmissão de terras revelava padrões de acesso a terra, estatísticas
fundiárias, a correlação entre capital fundiário e ocupação territorial, mas também uma
dramaticidade da existência. Os locais apontados em mapas, medições e registros
fundiários eram menos uma localização geográfica, e mais um palco onde pessoas
construíram suas casas, freqüentaram festas, trabalharam sua lavoura, criaram seus filhos,
plantaram árvores. A escritura de compra e venda estava circundada por outras versões,
outras visões do fato. Por trás de termos regimentais, afiguravam-se meandros ausentes na
memória oficial, mas que estavam presentes hoje, no cotidiano da comunidade. Uma
alforria remetia para as políticas de liberdade de certo período. Mas remetia também a um
causo protagonizado pelo beneficiário dela. Muitos documentos tratavam de eventos
protagonizados por pessoas que eu conhecia por meio de relatos. Nesses encontros com o
arquivo, visualizava os gestos, as expressões, as reações e falas dessas pessoas filtradas
pelos narradores do presente.
Os relatos, obviamente, não remetem à ‘aquilo que de fato aconteceu’. Tampouco
são versões estáticas e intactas. O que está em jogo não é um essencialismo, mas um
pluralismo, como venho insistindo. As mediações com os arquivos, permeadas pelas
narrativas de Cambará, podem descentrar o estatuto do documento (artefato) e localizá-lo
não como um simples retorno ao passado. Antes, um retorno também mediado, que segue
padrões de relevância de fixação e não-fixação dos eventos. Ao eleger o documento como
52
locus privilegiado de reconstituição do pretérito, outras histórias e memórias restam
obliteradas; diferentes tempos ficam subsumidos num tempo cronológico.
A crescente valorização do oral como fonte (Thompson, 1992) é salutar na medida
em que abre novas perspectivas e objetos para a historiografia. Mas não estou interessado,
tão somente, na história oral como metodologia. Estou interessado nos efeitos de
conhecimento exercidos pela oralidade sobre as narrativas históricas. Acompanhando
Latour (1994:91), deve-se ser capaz de “enfrentar não as crenças que não nos tocam
diretamente – somos sempre bastante críticos em relação a elas – mas sim os
conhecimentos aos quais aderimos totalmente”
Talvez seja o caso de pensar como a conjugação arquivo-campo traz efeitos
reflexivos sobre as avaliações e concepções que fazemos dos nossos dados e das
concepções que balizam nossas reconstruções do passado. Se o acervo documental nos
auxilia na compreensão de determinados aspectos de Cambará, por outro lado as
concepções dos membros de Cambará sobre a história permitem pensar em outro patamar
os documentos, exercendo efeitos de conhecimento na leitura e reconstrução do passado.
Como nota Trouillot (1995), o silenciamento do passado inerente à produção histórica não é
anulado pelo aumento do escopo de fontes, simplesmente.
Assim, seria possível ver o não-dito do dito. Pensar os diferentes tempos
subsumidos num tempo cronológico. Atentar para as políticas do tempo (Fabian, 1983) e
sua conjugação com as instituições e espaços tidos por repositórios do tempo. Pensar,
sobretudo, naquilo que fica nas bordas das grandes narrativas pelo discurso oficial e pelas
próprias práticas do fazer científico.
***
Na gélida e deserta sala de pesquisa, perscrutava maços e maços de processoscrimes. Naquela tarde de sábado, a angústia e o tédio consumiam-me. Na procura por
apenas um nome, defrontei-me com diversos casos, vivências e registros. Não sabia ao
certo a data do documento, pois a cronologia que guiava minha busca não se baseava
apenas em referenciais datais. Próximo ao fim do expediente daquela instituição repositória
do tempo, li na capa de um processo: “José Martimiano Machado – Réu”. Finalmente,
53
pensei. Passei a ler com ímpeto o documento, desta vez angustiado pelo pouco tempo que
restava. Do pouco que pude ler naquela mesma tarde, percebi que não estava sozinho.
Vozes emergiam do registro escrito. Aquele fato não estava registrado apenas nas páginas
do documento, mas também naquilo contado. As vozes compartilhadas em campo definiam
o encontro com o documento.
54
CAPÍTULO 2
CAMBARÁ E SUAS SITUAÇÕES50
Como um traço do verão é o calor. Uma característica é
um traço. Uma coisa que é natural para a coisa.
Toni Morrison, Amada.
Não são os grandes traumas que fabricam as grandes
maldades. São, sim, as miúdas arrelias do cotidiano,
esse silencioso pilão que vai esmoendo a esperança,
grão a grão.
Mia Couto, O Outro Pé da Sereia.
Este capítulo expõe o campo interétnico existente em Cambará e os meandros da
assunção quilombola em vigor na comunidade. O capítulo não segue uma ordem
cronológica rígida na exposição dos fatos, embora a cronologia seja de fundamental
importância. Com o decorrer dos anos, a assunção quilombola ganha cada vez mais vigor
no local, desencadeando diversos efeitos. Como demonstro a seguir, o fato do grupo
identificar-se cada vez mais como quilombola não pode ser interpretado exclusivamente de
forma cumulativa. Nos processos de identificação, há muito mais coisas em jogo do que
conscientização – seja política ou da ‘negritude’ – ou um incremento da organização
política. Assim, a exposição é descontínua porque as identidades sedimentam-se
irregularmente. Cada seção do capítulo transita entre os diferentes períodos de estada em
campo. Uma preocupação central do capítulo consiste nas políticas de inclusão e exclusão
vigentes na atualidade. Ou, dito de outra forma, os parâmetros definidores da comunidade e
os níveis de diferenciação engendrados no presente. Esta problemática não refere apenas ao
50
Neste capítulo, a grafia das palavras permanece a mesma exposta na apresentação (ênfases minhas: negrito
e aspas simples; falas locais em itálico), com uma diferença: as falas dos brancos e dos interlocutores do
grupo (inclusive eu mesmo) também aparecem entre aspas.
55
âmbito local, embora o eixo central de preocupação incida sobre ele. Tomando por
postulado a idéia de que a relação com o ‘exterior’ é constitutiva de uma comunidade, trago
a atuação de mediadores no local e a influência deles na dinâmica identitária em curso.
Obviamente, a identificação mesma de Cambará como remanescente de quilombo só foi
possível pela atuação de mediadores.
O capítulo foi estruturado da seguinte maneira: inicialmente, trago as categorias de
identificação existentes no local e o porquê de eu tratar das relações da comunidade com os
brancos e não com os índios Guarani residentes na região. As seções subseqüentes analisam
os meandros da assunção quilombola em Cambará em conformidade com as delimitações
expostas acima.
2.1 Categorias de identificação
Quando fui pela primeira vez a Cambará no ano de 2003, a grande maioria dos
moradores designava-se como morenos. A principal razão para o uso dessa identificação
parece ser um afastamento da categoria negro, carregada de significações negativas e
associada à escravidão. Quando alguém refere um antecessor como negro, muito
provavelmente essa pessoa era escrava. Os estigmas agregados a esta última categoria não
manifestam apenas a ‘desvalorização’ da identidade grupal ou sua pouca ‘consciência’ de
‘negritude’, embora a violência racial aí presente seja evidente; manifestam antes uma
apresentação de si influenciada pelo afastamento de estigmas (Goffman, 1988) do que uma
ausência ou carência. Há uma nítida separação em relação aos brancos (categoria que
abarca os alemães, os italianos e os brasileiros). Os alemães e italianos são os
descendentes de imigrantes estabelecidos na região. Ao longo dos anos, principalmente a
partir da segunda década do século XX, diversos descendentes de imigrantes foram se
estabelecendo nos arredores – e no interior – de Cambará, adquirindo quinhões antes
pertencentes às famílias negras. Os brasileiros incluem brancos não-imigrantes e nãobrancos com a cor da pele não tão escura, como no meu caso, por exemplo.
Na ocasião da aplicação de um questionário, durante o Unisol (novembro de 2003),
foi perguntado a cada pessoa sua cor e sua raça. Invariavelmente, as pessoas responderam
56
como cor morena ou preta, e a raça negra. Existem variações, evidentemente. Há quem
fale, por exemplo, da classe dos morenos. Seja se definindo como morenos ou, na
atualidade, como quilombolas ou negros, todos se concebem pertencentes a um grupo
específico, distinto dos brancos que, por sua vez, geralmente designam os moradores de
Cambará como morenos. Há um cuidado no uso da palavra negro, pois ela manifesta
afronta ou desmerecimento.
De acordo com os membros da comunidade com idade superior a quarenta anos, há
não mais do que trinta anos os bailes e festas eram ou divididos por cordas, ou cada salão
permitia a entrada de apenas um grupo racial (branco ou negro). No caso das festividades
separadas por cordas, era vedado cruzar a fronteira, sob o risco de ocasionar sérios
conflitos. Essa divisão ganhava maior visibilidade nas ocasiões públicas: aos homens
brancos nenhuma reprimenda era feita caso engravidassem uma negra (na maioria absoluta
dos casos a gravidez não era acompanhada de matrimônio), já que a união interacial era
considerada um escândalo.
Essas mesmas pessoas apontam uma melhora nas relações branco-negro nos últimos
anos, tendo em vista que até o casamento já é permitido. Todavia, não são raras as ocasiões
nas quais o preconceito se manifesta, inclusive entre vizinhos. Embora os grupos interajam
cotidianamente e existam relações mais sólidas como as de apadrinhamento, por exemplo, a
diferenciação manifesta-se a todo o momento. O caso de uma das benzedeiras de Cambará
– também praticante de umbanda – pode servir de exemplo. Duas de suas netas são
afilhadas de uma italiana que é católica fervorosa. Essa italiana constantemente
ridicularizaria o saravá, mas procurou sua comadre por motivo de saúde. Muito agradecida
com a comadre, a italiana retribuiu os préstimos com um rádio. Semanas depois, recebeu a
comadre na cozinha de sua casa, pois havia visitas na sala. Essa ocorrência bem
exemplifica a conduta dos brancos, explicou-me a benzedeira: ridicularizam o moreno,
procuram-no quando precisam, mas têm vergonha de recebê-lo em casa.
Essa diferenciação fica evidente, igualmente, no âmbito do trabalho. Os brancos
gostam de ter o negro por baixo para poderem explorá-lo à vontade, explicou-me um
senhor. Freqüentemente acusam os negros de terem pouco apreço pelo labor, mas além de
lhes exigirem pesados serviços, pagam-lhes um preço ínfimo pelos mesmos. Nos poucos
57
casos de parceria na plantação, a vantagem é do branco, pois é ele quem possui melhor
condição econômica e maquinário agrícola. Deve-se estar alerta, principalmente com os
italianos, que tem o olho gordo e podem dar facadas a qualquer momento.
Portanto, o racismo foi e é fator fundamental nas interações cotidianas do grupo.
‘Raça’, aqui, figura, antes de tudo, como conceito êmico. Os próprios moradores de
Cambará valem-se das categorias raça e racismo para referirem-se a uma série de situações
vividas, no presente e no passado. As interações cotidianas são igualmente racializadas, e
isso não foi diferente na interação com os pesquisadores. Não se pode silenciar o assunto
devido ao receio de se nomear uma noção geradora de atrocidades inomináveis, pois o
silenciamento não basta para dissipar fantasmas. Não se trata, para repetir o já dito à
exaustação por diversos pesquisadores, de referir algo existente na natureza, mas sim aos
efeitos no mundo social da crença da existência de ‘raça’ na natureza. Há mais de sessenta
anos geneticistas, antropólogos, historiadores e demais cientistas demonstraram não ter
fundamento a existência, no ‘mundo natural’, de raças. Assim, não há nada de novo em
decretar sua inexistência. Do mesmo modo, é pouco comum (para sermos indulgentes) que
alguém se certifique da carga genética de outrem para aí sim discriminá-lo. O diagnóstico
de Hall (2003:69-70) parece-me preciso ao constatar que:
‘Raça’ é uma construção política e social. É a categoria discursiva em torno da
qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão
– ou seja, o racismo. Contudo, como prática discursiva, o racismo possui uma
lógica própria. Tenta justificar as diferenças sociais e culturais que legitimam a
exclusão racial em termos de distinções genéticas e biológicas, isto é, na natureza.
Esse ‘efeito de naturalização’ parece transformar a diferença racial em um ‘fato’
físico e científico, que não responde à mudança ou à engenharia social reformista.
Essa referência discursiva à natureza é algo que o racismo contra o negro
compartilha com o anti-semitismo e com o sexismo, porém, menos com a questão
de classe. O problema é que o nível genético não é imediatamente visível. Daí
que, nesse tipo de discurso, as diferenças genéticas (supostamente escondidas na
estrutura dos genes) são ‘materializadas’ e podem ser ‘lidas’ nos significantes
corporais visíveis e facilmente reconhecíveis, tais como a cor da pele, as
características físicas do cabelo, as feições do rosto, o tipo físico e etc., o que
permite seu funcionamento enquanto mecanismo de fechamento discursivo em
situações cotidianas.
A genética pode, de fato, ser um importante instrumento político anti-racialista.
Porém, endossar o imaginário social da nação (datado historicamente) com base na ciência
58
genética (Santos; Maio, 2004:87) parece-me problemático justamente por buscar legitimar
um imaginário – infundado, como salientam os autores – na natureza, invertendo os termos
da questão. Considero mais apropriado investigar as formas específicas de incidência do
racismo no Brasil. Neste tocante, a obra de Telles (2003) é fundamental justamente por
conta disto. Além de chamar a atenção para o peso das diferenças regionais, Telles supõe a
convivência da exclusão e da inclusão, ainda que de forma limitada, do racismo no Brasil51.
A maior incidência, em comparação com outros países, da miscigenação e sociabilidade
(relações horizontais) está lado a lado com uma grande desigualdade econômico-social
entre brancos e negros (relações verticais). Independentemente do conceito de cor ou raça,
as pessoas são tipicamente racializadas e seu status depende de sua categorização racial ou
de cor (Telles, 2003:304).
Em Cambará, as categorias moreno e negro são racializadas, no sentido definido por
Guimarães (1999; 2002; 2004) e Appiah (1997). Ou seja, acredita-se que a essência racial,
manifesta pela cor da pele, implica em qualidades moralmente relevantes. Ao longo da
dissertação, veremos a insistência da raça em diversas situações da história de Cambará,
tanto no presente quando no passado (as narrativas aqui trazidas são ilustrativas a este
respeito). Ver-se-á que ‘raça’ e racismo são recorrentes na vida dessas pessoas. Por essa
razão, essa questão é explicitada em diversas partes ao longo do texto.
A discussão sobre raça vem à tona novamente em função da assunção do grupo
enquanto remanescente de quilombo. A interação com militantes do movimento social
negro tornou-se freqüente nos últimos anos – inclusive nos projetos de pesquisa realizados
no local. Ademais, diversos moradores, em especial os mais jovens, vêm incorporando
significações positivas a uma identidade anteriormente estigmatizada. Veremos que a
identificação do grupo é repleta de fraturas, não podendo ser reduzida a um processo linear
de ‘positivação’ da raça ou resumida a uma linha ascendente do tipo ‘de moreno a negro’.
Agregue-se a isso outro importante fator na relação com os brancos: as relações de
reciprocidade.
De fato, com a história dos quilombos, muitos brancos ficaram descontentes por
recearem não ter mais o moreno disponível para exploração, segredou-me um senhor que
51
Para Telles (2003:19) esse é o “enigma do racismo no Brasil”.
59
sobrevive das diárias e reside num terreno onde não há espaço para plantar nem uma horta
sequer. À medida que as famílias negras foram sendo contempladas por políticas públicas,
houve uma elevação da tensão entre os grupos, tendo eu mesmo presenciado o desacordo
dos brancos com essas políticas, como é visto a seguir. De acordo com algumas pessoas, os
brancos estariam dizendo que essa negrada quer tirar aquilo que construímos com nosso
suor52. Nenhum conflito acirrado teve lugar em Cambará, mas os ânimos ficam
sobressaltados em algumas ocasiões, principalmente com a possível titulação das terras.
Uma última ressalva: quando falo em ‘famílias negras’, por exemplo, estou falando
em sentido muito lato, para denotar um conjunto de pessoas autoconcebidas como distintas
em relação a seus vizinhos. É possível objetar que eu estaria desconsiderando as categorias
locais de identificação. O fato é que se eu utilizasse a identificação de moreno, por
exemplo, eu também não estaria sendo fiel a todas as pessoas, pois algumas se identificam
como negras. Utilizarei noções mais vagas para referir a todos os membros de Cambará, ao
passo que me valerei de categorias definidas (como italiano, moreno, preto, alemão,
brasileiro) quando forem relevantes em certos contextos. Afinal de contas, as categorias
identitárias não têm sentido unívoco, embora certamente possuam uma coerência.
2.2 Campo interétnico
Cambará nunca foi um território negro isolado. Os quinhões adquiridos por dois exescravos – antecessores de algumas famílias – nos anos de 1835, 1845 e 1855 eram
encravados no interior de uma sesmaria. Suas terras confrontavam com grandes estancieiros
e pequenos plantadores. Escravos de diferentes plantéis, libertos e livres mantinham
estreitas relações de parentesco e compadrio entre si. Na mesma época, há um número
considerável de indígenas na região. É possível visualizar intensas relações, inclusive de
parentesco, entre indígenas e negros nesse período, mesmo que eu não tenha conseguido
avançar consideravelmente neste ponto (vide o próximo capítulo para mais detalhes).
52
Falas como essas, ao contrário do que podem pensar alarmistas, não irrompem do nada, como se o racismo
surgisse num toque de mágica. Em situações de “equilíbrio desigual de poder” (Elias; Scotson, 2000), é
natural o acirramento de conflitos, bem como o recrudescimento da diferenciação baseada em estigmas. Em
Cambará, raça e racismo estiveram presentes ao longo de toda a sua história, como será demonstrado nas
próximas páginas.
60
Há um acampamento de índios Guarani próximo a Cambará. A terra dos bugres
também está em questão, mas, até onde foi possível apurar, não há uma influência direta da
‘luta indígena’ na ‘luta quilombola’53. As relações com os indígenas são intermitentes
porque, justificam os moradores de Cambará, eles [indígenas] ficam mais entre eles.
Eventualmente estes últimos participam de festividades promovidas no local. É uma
iniciativa, na maioria das vezes, da liderança comunitária, Márcio Roberto Lopes da Silva,
com o intuito de ajudá-los.
De igual modo, os moradores de Cambará interagem com outras comunidades
negras dos arredores. Quarenta famílias, distribuídas entre quatro núcleos familiares
(Irapuá, Cambará, Rincão e Pinheiros), definem-se como pertencentes à comunidade de
Cambará. Como demonstro no próximo capítulo, sua composição atual foi forjada ao longo
dos anos. Cada família se estabeleceu na região em determinado período histórico.
Algumas delas são tidas como as mais antigas, ou descendentes dos troncos velhos, ou
ainda as primeiras do local (a documentação compulsada está em conformidade com os
relatos). O parentesco, especialmente mediante as uniões matrimoniais, forjou a coesão
grupal, embasando a autodefinição de serem tudo a mesma gente. Durante o Unisol, assim
como nos projetos de extensão anteriores (realizados em 2002), a comunidade se
circunscrevia a essas famílias.
Em 2004, Cambará foi incluída como público-alvo de uma política pública estadual,
o RS Rural/Quilombola. As informações provenientes dos técnicos governamentais
responsáveis por gerir tal programa davam conta de um ‘alargamento’ da comunidade, pois
a liderança, Márcio Roberto Lopes da Silva, havia solicitado a inclusão de algumas famílias
de duas comunidades negras vizinhas na qualidade de beneficiárias do RS Rural. O número
de beneficiários a ser abrangido pelo programa gerou algumas disputas entre Márcio e uma
das responsáveis por tal política. Em termos orçamentários e operacionais, o RS Rural
circunscrevia Cambará a quarenta famílias, em consonância à autodefinição grupal. Márcio
ofereceu uma lista com noventa e cinco famílias, sendo esta aceita após alguns meses de
negociação.
53
Na introdução comentei a influência da ‘luta indígena’ na ‘luta quilombola’ em termos mais amplos.
61
Nessa época (2004) – bem como em 2005 –, não havia consenso entre os membros
de Cambará sobre esse assunto. O fato de a iniciativa ter partido de Márcio estabelecia, de
antemão, uma inflexão. Algumas pessoas eram indiferentes à listagem proposta; outras,
contrárias. Estas últimas em geral diziam que aqueles lá [membros da Palma e da Roseira]
nem eram dali, muito embora fossem aparentados. Os laços de parentesco, por sua vez,
sustentavam os argumentos daqueles que eram favoráveis à inclusão da Palma. O fato dos
moradores desta localidade serem pobres como a gente era igualmente evocado como
justificação.
Hoje em dia, Palmas e Roseira fazem parte da comunidade de Cambará, mas apenas
em determinados níveis. A inclusão de seus integrantes como beneficiários de políticas
públicas gerou, em troca, uma adesão à luta de Cambará. Os integrantes dessas três
comunidades são aparentados – muitos deles casando entre si – e são comuns os casos de
indivíduos que nasceram em uma dessas comunidades e foram residir em outra. Ainda
assim, os vínculos entre elas não são considerados tão sólidos quanto aqueles existentes
entre os quatro núcleos familiares de Cambará. Cambará, Palmas e Roseira congregam-se e
representam-se como uma só comunidade sobretudo nas ocasiões de reivindicação por
direitos54.
As relações com os brancos também são intensas. Desde 1850, uma família de
origem austríaca reside no local, detendo extensas posses na região, mas é apenas nas
décadas iniciais do século XX que há uma presença massiva de imigrantes e seus
descendentes. Hoje em dia, a maior parte das terras outrora pertencentes às famílias negras
é propriedade dos brancos. As relações mais estreitas dos moradores de Cambará são,
portanto, com os brancos. A diferença de costumes, de ações e o acanhamento dos
indígenas fazem com que haja uma distância sem conflitos ou animosidades, embora haja
diferenciação entre ambas as partes. Já com os brancos, passa-se o contrário, sendo que
muitas crianças negras são suas afilhadas. Há uma rede de trocas mais intensa com eles,
embora isso não anule um estado latente de conflitos.
54
A demanda territorial atual abarca apenas os núcleos familiares de Cambará (únicos a serem objeto de
perícia).
62
Além disso, as terras de várias famílias são arrendadas por brancos. Outros firmam
acordos com estes, de forma a dividir as tarefas da produção e repartir a colheita. Em geral,
os brancos, detentores do maquinário agrícola, entregam a terra pronta para os negros
trabalharem-na (plantar e colher). Não raro, pequenas porções de terra são cercadas por
grandes plantações (geralmente de trigo, soja ou sorgo). Nos últimos cinco anos, o plantio
de mudas de eucalipto tornou-se freqüente. O uso de agrotóxicos, herbicidas e defensivos
agrícolas afeta até mesmo as terras não arrendadas, já que alguns plantadores utilizam
aviões para despejar veneno nas plantações. É facilmente perceptível distinguir a quem
pertence cada quinhão na região55. As posses das famílias negras possuem vegetação mais
densa, como pode se observar na foto a seguir. O que hoje é devastado era um mato só,
dizem os mais velhos. Eu mesmo presenciei a freqüente devastação das terras da região e as
constantes alterações da paisagem.
Os fatores aludidos acima me impelem a me concentrar mais nas relações dos
moradores de Cambará com os brancos. Não ignoro a presença indígena e os contatos
entretidos com as famílias negras, bem como a confluência de trajetórias e a troca de
experiências em espaços de mobilização por direitos; entretanto, no momento não há uma
relação intensa entre ambos os grupos. Já com os brancos, há uma diferença fundamental:
são eles os empregadores dos negros; são eles que manifestam preocupação quanto às
divisões que podem surgir nessa história de quilombo. No primeiro dia de pernoite em
Cambará isso foi particularmente visível.
55
A maior conservação ambiental nas terras das famílias negras deve-se a uma territorialidade específica, e
não a uma carência de capital tecnológico e fundiário. Trata-se de uma gestão específica do território, não de
uma natureza intocada (Diegues, 1994). Para maiores detalhes, consultar Anjos; et.alli (2006).
63
Figura 5 – Orcindo Machado na divisa com um italiano
Foto: Ricardo Charão.
2.3 Divisões
Quando o programa de extensão Unisol teve início, quatorze pessoas entre técnicos
da universidade, estudantes e membros do IACOREQ estiveram presentes em Cambará.
Era o primeiro final de semana do programa (20/21 de setembro de 2003) e a primeira ida
ao local de algumas pessoas, como eu, por exemplo. Alguns colegas de equipe já possuíam
um contato prévio com o grupo em virtude da participação em projetos de extensão
anteriores, realizados entre 2002-2003. Chegamos ao final da manhã de um sábado. Uma
reunião havia sido convocada para o início da tarde para informar a todos sobre a presença
da universidade ali, bem como os objetivos do Unisol (nem todas as pessoas compareceram
64
à reunião). Além de explicitar as atividades a serem desenvolvidas nos dez finais de semana
seguintes, o tema da reunião foi “comunidades remanescentes de quilombo”: quem eram,
quais seus direitos, qual a importância da “mobilização”, a relação de Cambará com isso,
etc. Falamos também sobre a necessidade da constituição de uma associação de moradores
e nos colocamos (membros do IACOREQ e alguns estudantes) à disposição para prestar
auxílio nesse tocante.
Após ser exibido um documentário da Fundação Cultural Palmares (FCP) sobre
outras comunidades quilombolas brasileiras e um filme sobre os costumes africanos e sua
influência no Brasil, a reunião foi encerrada. Teve início, então, outra reunião (desta vez de
trabalho). Passaríamos em revista os eventos do dia e as percepções pessoais de cada
integrante da equipe e decidiríamos em qual casa cada um de nós dormiria. Surge, então, o
primeiro problema prático. Além de muitas pessoas não terem comparecido à atividade,
outras tantas não estavam dispostas a receber ninguém. Alguns de nós deveriam dormir nas
casas de duas brancas que haviam se oferecido para nos acolher. Eu fui um dos
afortunados. Dormiria na casa de Júlia, responsável pelas missas do local e madrinha de
várias crianças negras. Quando isso ficou acordado, uma das moradoras de Cambará, ao
saber da ‘distribuição’, juntamente com uma colega de equipe militante do IACOREQ,
despejou-me um olhar extremamente irônico. Era a primeira vez que ia ao local e
pernoitaria justamente na casa dos brancos...
Cheguei à casa de Júlia e de seu marido, Vitório, no início da noite. De pronto foi
possível notar a situação econômica relativamente favorável do casal. Antes do início do
Unisol, fomos insistentemente avisados pela equipe coordenadora de que a participação no
programa estava condicionada à disposição de conviver com ‘desconfortos’ (desconfortável
segundo os padrões de citadinos como nós, pontue-se). A maior parte das casas não possuía
água encanada, luz, instalações sanitárias nem piso. As construções eram, em geral,
precárias. Quando chego à casa de Júlia, passa-se o contrário. Sua residência, além de
espaçosa (quatro quartos), possuía todas as comodidades inexistentes nas casas das famílias
negras. O casal plantava os 25 hectares de sua propriedade e arrendava mais 60. Plantavam
para consumo próprio e comercializavam soja e trigo.
65
Durante o jantar, Júlia e Vitório contaram-me um pouco de sua trajetória. Chegaram
ao local em 1979. De origem “humilde”, viviam miseravelmente na casa dos pais. Quando
chegaram ali não existia luz elétrica e o trabalho era intenso e desgastante. Dez dias após
dar à luz, Júlia voltou a trabalhar na lavoura (fazia pausas para amamentar o bebê enquanto
labutava). Graças a muito “esforço” e “trabalho”, conseguiram melhorar suas condições e
“proporcionar algo” para filhos e netos. A imagem do trabalho constitui motivo de orgulho
para o casal, servindo, ao mesmo tempo, como fator de diferenciação.
Enquanto conversávamos sobre a vida no campo e eu manifestava opiniões
descabidas sobre isso – visões típicas de um ‘guri de apartamento’ – Júlia, dando outro tom
à conversa, perguntou-me o que eu achava “dessa gente” [os negros] ganhar cestas básicas
do Fome Zero56. Frente a esta indagação, assumi a postura de ‘marinheiro de primeira
viagem’: além de ser um neófito no que toca ao meio rural, não estava apto a tirar
conclusão nenhuma; era a minha primeira vez ali, por isso preferia ouvir a opinião de quem
morava na região. Ao invés de tirar conclusões sem conhecer aquela realidade, seria muito
mais útil ouvi-los. Foi essa minha (balbuciada e desajeitada) resposta.
Júlia achava que “eles” não mereciam. Isso porque todos ali possuíam um
“pedacinho de chão” suficiente para retirar seu provimento. A farta comida do jantar
oferecido pelo casal a mim era a prova mais cabal disto: as geléias eram feitas das frutas
dos pomares; o torresmo e a lingüiça eram os restos mortais de um (apetitoso) porco
abatido dias antes; o pão, caseiro; a alface, a mandioca e o tomate eram da horta. O que via
naquela casa eu não veria na casa dos “morenos”, atestaram. “Na casa deles só tem
capoeira”, disse Vitório, citando o caso de duas “morenas” donas de oito (não aproveitados)
hectares. Aos poucos, o casal passou a fazer comentários mais indiretos, talvez porque
soubessem que eu dormiria na casa dos “morenos” no futuro. Vitório reprovou “muita
gente por aí que reclama quando é necessário trabalhar um pouco mais”. É possível tirar o
sustento com cinco metros quadrados, mas “quem tem a faca e o queijo na mão e não sabe
usar a faca só pode se dar mal”, atalhou Júlia. Seus comentários manifestavam não só
56
Programa do governo federal que na época distribuía cestas básicas para famílias consideradas pobres e
miseráveis.
66
reprovação às políticas como o Fome Zero, mas também, e principalmente, uma forma de
diferenciação, pois no seu caso “era de sol a sol, todo o dia”, como me disseram.
Ambos consideravam a cessão gratuita de cestas básicas para “algumas famílias”
injusta, considerando seu labor intenso, o “esquecimento do governo”, e a profusão de
latifúndios arrebatadores de todas as terras produtivas da região (pertencentes, sobretudo,
aos “doutores da cidade”). Por meio de uma linguagem ora direta, ora indireta, o casal
estava nos dando um recado, de certa maneira. A postura corporal de ambos incentivava a
expressão de minha opinião, mas, ao mesmo tempo, manifestava uma autoridade no
assunto. Vitório quedava-se com os braços cruzados, pernas estendidas, tom de voz sereno
e peremptório, entrecortando diálogos com frases como “é, não é fácil”. Júlia, ao seu lado,
esfregava as mãos nas pernas, olhava-me, perscrutava minhas feições, recolhia o olhar e
voltava a falar. Fiquei silencioso, tangenciava o assunto; a situação era extremamente
desconfortável. Quando Vitório opina sobre os sem-terra, há muito mais em jogo do que o
MST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra). Isso porque sua discordância não é tanto
com as pessoas integrantes do movimento, mas sim com o governo, que deveria dar a terra
para quem a aproveita, a trabalha. Quem não aproveita o que tem – ou o que pode vir a ter –
não merece a terra. Uns são “beneficiados”; outros, injustiçados. O casal sabia da
possibilidade da terra entrar em questão (embora na época isso fosse muito latente ainda).
O recado pareceu evidente para mim.
Essa impressão sedimentou-se mais ainda quando Júlia, que esteve presente em
alguns encontros da tarde, manifestou com bons olhos a formação de uma associação de
moradores: era um meio eficaz de ajudar “esses pobres coitados”. Porém, e aí vem o grande
porém, isso não poderia de forma alguma “dividir a comunidade”. Os brancos não podiam
ser “excluídos” da associação, pois isso só traria malefícios para todos, pois fragmentaria a
“comunidade”. O casal relatou sua ativa participação na reivindicação de luz e água para os
morenos (na época, como em 2003, os postes de luz iam até a casa dos brancos, ‘pulavam’
os negros, e continuavam a seguir), mostrando-me um recorte de jornal que noticiava isso.
Júlia aparecia no recorte.
No dia seguinte, visitei várias famílias. Em muitas casas, a maioria das pessoas
teceu comentários reprovadores a respeito do tratamento dispensado pelos brancos a eles.
67
Naquele final de semana, como em outras várias ocasiões, algo que soava ambíguo para
mim era evidente: havia uma nítida diferenciação entre brancos e negros e as animosidades
eram muito latentes; porém, todos os morenos, em maior ou menor grau, manifestavam
receio em deixar os brancos de fora da associação.
2.4 Associação quilombola
A associação de moradores em Cambará foi se formando e consolidando durante o
processo de adscrição quilombola. A associação, enquanto entidade jurídica e
representativa, é uma exigência legal do Decreto Federal 4.88757 e passa a cumprir um
papel fundamental na dinâmica identitária da comunidade, tornando-se um espaço de
decisão e mediação da ‘questão quilombola’. A organização de uma associação
quilombola figurou na pauta de atuação dos projetos de extensão e pesquisa realizados pela
UFRGS. Esse assunto foi discutido já no primeiro final de semana do Unisol. Na visão dos
participantes do projeto, essa era uma etapa fundamental no “fortalecimento” da
“mobilização política” da comunidade. No dia seguinte à minha primeira estada em
Cambará – na casa dos italianos –, outra reunião foi realizada com o grupo. Novamente, o
mote foi comunidades remanescentes de quilombos. Desta vez, porém, o assunto era mais
dirigido para os negros. Propúnhamos um calendário de reuniões sobre a questão e nos
dispúnhamos a ajudar o máximo possível. O encontro foi conduzido principalmente pelo
coordenador do laudo, que enumerou algumas razões para a formação da associação
quilombola. Em dado momento, a liderança grupal, Márcio Roberto Lopes da Silva, tomou
a palavra e perguntou se não era uma forma de racismo excluir os brancos da associação.
O coordenador respondeu negativamente, salientando a legitimidade dessa organização.
Todavia, a decisão da composição da associação cabia ao grupo; ninguém iria dizer quem
podia ou não fazer parte dela, complementou.
57
Decreto Federal que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos.
68
Num primeiro momento, tenho que confessar, senti-me confuso. Era minha primeira
vez no local, mas foi muito fácil perceber um estado latente de conflitos entre negros e
brancos. Minha estada, na noite anterior, na casa de Júlia e Vitório, solidificou essa
percepção. A categoria moreno, utilizada por eles, assim como pelos outros brancos, para
designar as famílias negras, era carregada de conotações racializadas. Os colegas com
contato prévio com o grupo reforçavam isso e eu sabia, por meio deles, que a maior parte
das terras anteriormente pertencentes às famílias negras havia sido surrupiada por alguns
brancos, muitas vezes pelo emprego de violência física. Em diversas ocasiões a equipe
debateu esse assunto. Os termos dos debates do Unisol eram informados, em grande
medida, pelas visões que muitos de nós (inclusive eu) possuíamos em virtude da vinculação
ao movimento social negro. Todos participantes do projeto (IACOREQ, funcionários e
alunos da universidade) concordavam num ponto: nossas lógicas não podiam se sobrepor às
lógicas de ninguém. Porém, esse preceito não foi conciliado facilmente, pois o Unisol
possuía um caráter eminentemente intervencionista.
Nos finais de semana subseqüentes, dividimos tarefas. Fui um dos responsáveis pela
discussão da associação, juntamente com alguns membros do IACOREQ e alunos da
UFRGS (especialmente estudantes de ciências sociais). Debatemos essa questão em
praticamente todas as saídas de campo. Os primeiros encontros centraram-se em torno da
estrutura, organização, distribuição de cargos e funções de uma associação. A toda hora
conversávamos sobre a importância da “mobilização coletiva” (o velho princípio: o que um
não pode, vários podem) e da constituição de um órgão representativo quilombola.
Expressávamos a idéia de que a “organização” facilitaria a conquista de “direitos”. Na
mesma direção, nós impelíamos uma “atitude crítica” para com as políticas públicas,
geralmente pensadas e executadas de forma homogênea, sem dar conta das
“especificidades” de cada comunidade.
Os brancos invariavelmente participavam das reuniões, e isso fez com que
salientássemos a toda hora que não estávamos ali para criar divisões. O grau de saliência
dependia do contexto. Quanto mais brancos, mais cautela. Os membros do Unisol
figuraram não apenas como mediadores, mas também assumiram papel ativo nas tramas
locais. Nas últimas semanas do programa, foi discutido, ponto por ponto, o estatuto da
69
associação. O artigo mais controverso disse respeito a quem poderia, ou não, compô-la. Era
uma polêmica silenciosa; subentendidos afloravam a cada momento. A grande questão era
definir se os brancos poderiam, ou não, ser membros da associação. O Unisol terminou sem
a formação da associação. Os critérios para participação nela ficaram em aberto, a serem
decididos no futuro, por eles.
Esse quadro revelava a complexidade do processo de formação de uma entidade
associativa, contrariando algumas pressuposições caras a mim. Paulatinamente, porém,
comecei a perceber que as ‘ambigüidades’ dos moradores de Cambará diziam respeito mais
às minhas pré-concepções do que a uma ‘desvalorização’ da negritude ou ‘ausência’ de
organização política. A inclusão dos brancos em algumas esferas não se explicava apenas
pela assimetria de poder e, nesse sentido, outras dimensões do político se afiguravam
presentes. Analisemos outro caso antes de voltar à relação com os brancos.
2.5 As coisas dadas
No início do ano de 2006, Cambará foi dotada com recursos da Fundação Nacional
de Saúde (FUNASA) para instalação sanitária, rede de água e esgoto. A grande maioria das
casas não possuía banheiros, e aquelas que possuíam não tinham os dejetos tratados. A
água, em geral, provinha dos poços artesianos e da chuva. Na maioria das casas, uma calha,
localizada ao lado dos telhados, escorria a água da chuva até um recipiente (às vezes um
tonel de agrotóxicos).
Em abril de 2006, fomos a campo para repassar informações sobre o laudo, em fase
de conclusão naquele período. Marcamos uma reunião à tarde para tratar do assunto. Seu
início foi protelado por alguns minutos em função da comunidade estar reunida com
técnicos da FUNASA. Quando chegamos ao local, o encontro com a FUNASA, que fora
bem concorrido, recém havia terminado. Eram tantas pessoas que algumas ficaram do lado
de fora da antiga escola, hoje igreja, que abriga alguns eventos da região. Todos os
participantes assinavam a ata. Percebi a presença expressiva de brancos na reunião e fui ter
com Márcio (liderança da comunidade), que me explicou que os recursos destinados pela
FUNASA para Cambará superavam o montante previsto. Coube decidir qual destino seria
70
dado a essa verba adicional. Márcio sugeriu ao grupo o emprego desse recurso na
construção de banheiros para os brancos. Ao que sei, a idéia foi aceita sem muitos
questionamentos (com algumas exceções referidas a seguir). Presenciava-se, portanto, a
inclusão de brancos na qualidade de beneficiários de uma política pública voltada (como
anuncia a placa do governo federal fixada na região) para a “comunidade quilombola de
Cambará”. Enquanto isso, percebi a evasão dos brancos do local após assinarem a ata. Uma
alemoa passou por mim e disse que era hora da reunião dos quilombos. A conversa ia ser
sobre a questão quilombola, complementou Márcio. Os únicos brancos presentes nesta
ocasião eram os universitários.
Enquanto a reunião não iniciava, troquei algumas palavras com ele. Márcio expôs
como vinha se dando a articulação da política da FUNASA e o porquê da inclusão dos
brancos. Segundo ele, uma coisa é uma política social que não faz distinção de cor, outra é
a questão quilombola. Eles [brancos] têm que saber que o banheiro só tá vindo por causa
dos quilombos. Por essa mesma razão, os brancos não participariam da discussão sobre o
laudo. Finda a reunião, fiquei proseando com uma senhora sobre o projeto da FUNASA.
Ela manifestou sua discordância quanto à inclusão dos brancos. Não era cabível dar
banheiros para quem havia roubado e maltratado tanto. Citou o caso do vizinho,
contemplado pela política da FUNASA, que avançou suas cercas sobre seu terreno.
Recordou os dizeres dos brancos até não muito tempo atrás de que os morenos não podiam
ficar perto da estrada: deviam ir para longe de tudo. Isso não estava certo, obstou58.
No final da tarde, fui ao posto de gasolina para encontrar Márcio, que havia me
convidado para beber alguma coisa. Lá chegando, ele estava sentando em uma mesa com
mais duas pessoas. Uma colega de equipe e eu nos sentamos ao lado, mas escutamos
praticamente toda a conversa dos três. Um dos interlocutores de Márcio estava um tanto
ébrio, e elevava cada vez mais o seu tom de voz. Vim a descobrir que esse senhor era o
mestre-de-obras da FUNASA no local. Parecia irritado devido às constantes reclamações a
“seus” peões, dados à bebedeira e desleixados, segundo voz geral. Márcio conversava com
ele sobre isso. O mestre-de-obras manifestava preocupação quanto a uma possível demissão
58
A iniciativa de Márcio se deve também ao fato dele assumir um papel de destaque regionalmente em função
de sua liderança. A aliança com diversos setores é frequentemente buscada por ele.
71
de “sua gente” – e dele próprio, comentaram-me ulteriormente. Repetidas vezes ouvi
Márcio dizer: Sendo bem sincero, ou para ser franco. Ele ouvia pacientemente as angústias
do cada vez mais ébrio e atordoado mestre-de-obras, mas repetia que isso não estava certo;
problemas podiam acontecer. O mestre-de-obras abruptamente levantou-se, pagou a conta e
foi embora, tomando o rumo da estrada. Sentamos com Márcio. O outro interlocutor só
abanava a cabeça, concordando ou discordando (era um peão). Saiu logo em seguida
também.
A conduta de alguns peões da FUNASA não era correta, comentou-nos. Portavamse mal, prejudicando o ritmo e a qualidade das obras. A remuneração era vantajosa e
deveriam aproveitar melhor a oportunidade oferecida, completou. Eu só não entendia por
qual motivo Márcio estava lidando com a ‘indisciplina’ dos funcionários. Com o correr da
conversa vim a descobrir o motivo disto: a pessoa responsável pelo setor de recursos
humanos da FUNASA solicitou-lhe que acompanhasse todo o andamento das obras,
fiscalizando seu cumprimento e informando-lhe de imprevistos. Márcio aceitou o encargo e
comentou que atualmente vinha mediando diversas coisas. Estava conversando com os
brancos sobre a questão das terras. Com alguns era possível conversar, porque sabiam da
verdade, que era só uma. Este era o caso, por exemplo, do filho de Romildo, cônscio dos
erros do pai. Romildo havia, num passado recente, tomado terras dos negros empregando
meios ilícitos, na maior parte das vezes. Baleou um negro, intimidou outros, avançou
descaradamente suas cercas, mas seu filho sabia disso tudo. Márcio pontuava que os
direitos para a comunidade eram legítimos, mas ninguém queria fazer injustiça para os
outros. Algumas pessoas não tinham culpa dos erros do passado. Outra pessoa com quem
dava para conversar era o dono do posto de gasolina existente no local. Mas isso não era
padrão absoluto. Afirmou conhecer bem a comunidade, sabendo com quem podia
conversar. No caso de Grazini (grande proprietário da região) isso era algo não muito fácil,
tampouco recomendável. A gente sabe com quem pode conversar, porque a verdade é só
uma.
Se Márcio evitava conversar com Grazini sobre as terras, o mesmo não se passava
com Seu Antônio. Fui entrevistá-lo na manhã seguinte. Durante o repasse de informações
sobre o laudo, Roberto, geralmente mais recatado, levantou sua voz para relatar as práticas
72
de um delegado que viveu na região há muitos anos e teria roubado as terras dos negros
(vide capítulo quatro). Periodicamente, o referido delegado, Otacílio Castilhos, amarrava os
nego pelo pescoço e os levava para um costado, onde distribuía sopapos e golpes. Esse
costado está, atualmente, nos domínios de Grazini. Fui entrevistá-lo, pois ninguém o havia
feito ainda. Chegando à sua casa, Roberto perguntou o que ia ser feito das terras. Seu
patrão, Grazini, seguidamente lhe perguntava isso. Justificando não saber muito bem das
coisas, Roberto nada respondeu a Grazini. Perguntou para mim. Dificilmente Seu Roberto
freqüentava as reuniões e as elas talvez mais complicassem do que ajudassem. Expliqueilhe, em linhas gerais, o conteúdo e os procedimentos previstos na “lei” e por que ela se
aplicava para “lugares como Cambará”. Nossa presença se dava em virtude disso e por esse
motivo nós entrevistávamos todos ali.
Em seguida, pedi-lhe que recontasse a história do delegado espancador (para ter o
registro gravado). Seu Roberto hesitou. Incentivei-lhe a falar (talvez o termo seja um
eufemismo...). Repetiu novamente. Palavra por palavra. Sua mãe havia lhe contado isso
fazia anos. Silêncio. Rompeu-o dizendo que algumas pessoas lhe repreenderam por ter
relatado essa história no dia anterior. ‘O Antonio não devia ter dito isso pra eles’ (nós,
pesquisadores, no caso). Antonio justificou sua conduta enquanto repetia a história: que eu
posso fazer, é a verdade, não é?
2.6 Fraturas identitárias
Por meio da análise de algumas situações, tentei perceber a correlação existente
entre a assunção quilombola, envolta com as interações e mediações com agentes externos,
e os efeitos desencadeados nas relações locais, especialmente com os vizinhos brancos.
Estou tentando mover a atenção para os parâmetros que balizam os juízos práticos de
inclusão e exclusão do grupo. Quero trabalhar com a hipótese de que a diferenciação entre
negros e brancos em Cambará vai ganhando novos contornos em função da assunção
quilombola, sem implicar, contudo, num rompimento com as relações de reciprocidade
existentes entre as partes. Antes de analisar em maior pormenor essa questão, trarei um
caso, ocorrido em dezembro de 2005.
73
Encontros com os moradores de Cambará para o repasse de informação a respeito
dos trâmites do laudo foram realizados em praticamente todas as saídas de campo.
Tentávamos agregar o maior número possível de pessoas, com o intuito de facilitar o
envolvimento da comunidade com a pesquisa. Quem não comparecia geralmente estava
impossibilitado: viajando, trabalhando, dificuldade de locomoção etc. Algumas pessoas, ao
contrário, não iam porque não queriam. Era o caso do octogenário Jorge Pereira Lopes, por
exemplo. A importância da “presença” e “participação” dos mais velhos nas reuniões foi
reiteradamente salientada por nós. A presença deles facilitava o trabalho, pois detinham a
memória do grupo.
Pelo fato de deter diversas lembranças sobre o tempo dos antigos, considerávamos
fundamental o comparecimento de Jorge. Todavia, ele negava. As reuniões eram marcadas
quase sempre aos domingos à tarde. Sua residência é distante do local onde os encontros
eram realizados, e em função disto sempre nos dispúnhamos a levá-lo e trazê-lo de volta de
carro. Insistíamos que fosse, mas ele negava. Pelo menos quatro vezes, ele assegurou, no
sábado, que iria. Quando lá chegávamos, no domingo, ele argumentava algo para não ir.
Certa vez disse que iria chover (o céu estava claro); noutro dia, tinha muito a fazer. Noutra
feita, não queria mais.
Numa tarde de sábado (dezembro de 2005), fizemos uma visita a Jorge e sua esposa,
Isaura. Éramos quatro: três pesquisadores e um advogado integrante do IACOREQ (fora a
Cambará para dirimir dúvidas quanto à legislação sobre comunidades remanescentes de
quilombo e o que era necessário, juridicamente, para registrar uma associação). Era um dia
escaldante. Jorge nos recebeu no seu pátio. Sentou em sua cadeira e dispôs todos à sua
volta. Sua posição centralizada facilitava a roda do chimarrão e fazia com que todos
estivessem ao alcance de sua voz e olhar.
A conversa transcorria tranqüilamente – era hora de falar das novidades de Porto
Alegre – quando nosso anfitrião e o advogado, Clairton, passaram a conversar mais
diretamente. Clairton, que estava indo pela primeira vez ao local, queria entender por qual
motivo Jorge designava a si e aos seus de moreno, e não negro. Perguntou a Jorge se ele
não se considerava negro, e se não achava que os “atributos negativos” atrelados à “raça
negra” não eram “imposições dos brancos” com o fim de dividir e desagregar a “resistência
74
negra”. Jorge identificava-se como moreno, e por essa razão não lhe agravada ser chamado
de negro, pois esta palavra é agressiva. Clairton perguntou se não achava o mesmo de
“moreno”. Não, disse Jorge, acrescendo que ficava brabo caso alguém lhe designasse como
negro. Uma das pesquisadoras, tida no local por brasileira (não-branca não tão escura)
tomou a palavra. Vejamos o diálogo:
E: E se o senhor me chamar de morena aí eu que fico brava com o senhor.
Jorge: Mas não é, né. [risos coletivos].
E: O que eu sou? O que o senhor acha que eu sou? O senhor olha pra mim e acha
o quê?
Jorge: Ora, eu olho pra ti e te acho bonita. [risos coletivos].
Clairton tomou a palavra novamente e citou o caso de outra comunidade onde o
Iacoreq atuou. Com o trabalho do Iacoreq e a realização de um laudo a respeito das
comunidades de São Miguel e Martimianos59, localizadas no município de Restinga Seca,
boa parte do grupo, auto-identificado como moreno até então, passou a se designar como
negro. Clairton salientou a atual identificação, instando Jorge a pensar sobre o assunto.
Logo em seguida, a pesquisadora atalhou: “Agora se o senhor chamar eles lá de morenos
eles vão ficar brabos com o senhor”. Jorge ficou quieto por alguns instantes e disse: negro é
uma palavra muito aguda. Contou então um caso vivenciado recentemente. Em viagem à
cidade de Caçapava do Sul, cedeu seu assento a um cego, primo de seu pai, pois o ônibus
estava abarrotado. O desenrolar da história é interessante:
Aí ele sentou e perguntou: ‘quem é que me deu o lugar?’ ‘Foi Jorge’. ‘O Jorge
filho do tio Estevão?’. Eu digo ‘é’. ‘Pois é, mas esse nego é meu parente’, diz ele.
Aí eu fui e disse pra ele ‘nego é uma palavra aguda. Eu sou cidadão de carne e
osso como qualquer um outro. Em dicionário nenhum tá escrito a palavra
negro’. [...] Negro é uma palavra aguda, né. Mas eu nunca tolerei. [...] Quer ver
uma coisa? A primeira coisa que diziam quando um branco fazia um papel malfeito, diziam ‘ah, fez papel de nego’. A primeira coisa que diziam. [...] A maioria
dos que diziam isso eram de colarinho branco.
59
Ver Anjos; Silva (2004).
75
O pai de Jorge, Estevão Pereira Lopes, era filho de uma escrava com um fazendeiro.
Nascido ventre-livre – em 1873, de acordo com Jorge – Estevão casou três vezes, tendo
diversos filhos. Jorge é fruto do segundo matrimônio e foi criado com sua avó, mãe de
Estevão, até a morte dela, por volta de 1930. A proximidade com a escravidão, temporal e
experiencialmente, imprimiu muitas lembranças sobre esse período, como fica evidente no
penúltimo capítulo. A ‘raça’ foi uma constante na vida desse senhor pelo convívio com
parentes egressos do cativeiro (herança racializada da escravidão) e pelas diversas situações
enfrentadas por ele ao longo dos anos. Suas ações frente a situações desmerecedoras são
contadas reiteradamente. Movamos à atenção para elas por um instante, pois assim é
possível retornar a conversa de dezembro de 2005 com maior propriedade.
Três fatos protagonizados por Jorge são recorrentemente contados por ele (já escutei
pelo menos cinco vezes cada um deles e a variação entre as versões é mínima). As histórias
são repetidas sempre que alguma pessoa o vai conhecer). Vamos a elas. Durante a Segunda
Guerra Mundial, o delegado de Cachoeira do Sul decretou. toque de recolher na cidade.
Jorge andava pelas ruas após o horário permitido. Ao passar em frente à delegacia, ouviu
um assobio. O assobio repetiu-se várias vezes, até que escutou: ‘Ei, moço’. Jorge se deteve
no local onde estava e foi instado a responder por seu interlocutor (o delegado) se não tinha
ouvido chamar-lhe. Respondeu negativamente. O delegado perguntou se não ouvira um
assobio. Jorge disse que sim. ‘Pois então, não viu que estava lhe chamando?’. ‘Não’,
respondeu. Em seguida, argumentou que lá onde vivia as pessoas costumavam chamar
umas às outras pelo nome.
Já detido na delegacia, o delegado indagou a Jorge se era casado. Jorge respondeu
afirmativamente. Ao que parece, o delegado provocava-lhe constantemente. Não foi
diferente em relação ao casamento. O delegado quis saber se o matrimônio era
sacramentado. Jorge respondeu que sim, pois o branco sem o preto em cima não tem valor
nenhum. Ou seja, o documento (branco) não tem valor nenhum sem a marca da tinta
(preto). O policial teria calado mediante a resposta.
Na outra história, o interlocutor é um padre: após rezar a missa, o padre deu a
liberdade para o povo apresentar alguma sugestão. O vigário ouviu algumas sugestões e
desaprovou todas. Deixemos o relato com Jorge:
76
Eu também apresentei uma sugestão. ‘O que eu vejo é que os homens não se
entendem mais, vigário’. ‘Alguns desses aqui não se dão com os outros?’. Digo:
‘Não. Esses aqui não, estão de mão dada, mas não, é o povo de fora. Digo que é
os grandes homens que estão administrando o nosso país que não se entendem,
que eu acho que estão levando nosso país à falência.’ Ele pensou de me apertar.
Lá sabia eu se tinha alguém que não se dava. [...] E depois me perguntou até que
ano eu tinha estudado. Eu digo, ‘estudei na escola de meu cavalo’ (Jorge Pereira
Lopes, 89 anos, dezembro de 2003).
Situações de desrespeito como essas são contornadas pela afirmação de interesses e
desejos próprios, fundamentados no conhecimento adquirido e na valorização de si.
Jorge não atende aos assobios porque assobios são dirigidos a animais. A figura do
moreno inteligente que não se deixa passar para trás é uma tônica comum nesses
relatos. Há uma inversão nessa narrativa, pois a escola do cavalo é tão valorosa quanto
os meios formais de aprendizado. O saber acumulado permite a Jorge designar-se como
cientista, bacharel. Ao mesmo tempo, o formal, para ser formal, tem de ter o preto em
cima do branco. A figura do moreno passivo, que se deixa facilmente enganar, é
contrariada em outra história:
Jorge: Eu fiz uma cosa que muitas pessoas de estudo não fizeram: reprovei um
homem adiantadíssimo [...]
E: Que história é essa, Seu Jorge?
Jorge: Uma conta. Ele adiantadíssimo e eu com pouco. E reprovava. Ele fazia a
conta e errava. E eu reprovava. Ele fazia de novo, e tornava a errar, tornava a
reprovar. Ele fez três vezes. E eu tinha conveniência, ele tinha que me pagar
negócio de dinheiro...negócio de terra. Então ele fez a primeira e a segunda, aí
me perguntou quem é que fez a conta. E aí me perguntou: ‘O senhor tem o
mapa?’. E eu tinha o mapa da terra. Me perguntou e disse: ‘Tenho’. E aí
conferiu os mapas. Era o mesmo mapa o que tinha no meu caderno, tinha no
dele. Aí teve que fazer novamente. Aí eu disse pra ele: ‘Eu quero que o senhor
acerte pela minha’. Aí ele fez, fez... até que deu certo (Jorge outubro de 2003).
A adesão à identificação de moreno não resulta, necessariamente, numa ‘aceitação’
das imposições dominantes. Algo pouco evidente e confuso para mim até então eram as
variadas possibilidades de reação ao racismo. Nas interações racializadas, Jorge não foi
passado para trás; ao contrário, pôs seus interlocutores em situações embaraçosas. O
tratamento dispensado pelos brancos é retribuído da mesma forma. No casamento de uma
77
de suas filhas, por exemplo, ofereceu do bom e do melhor aos convidados, menos a dança
para os brancos. Nas festas de branco, os morenos não podiam dançar. Na dele, era o
inverso. Como coloca Honneth (2003), o desenvolvimento da identidade pessoal de um
sujeito está ligado fundamentalmente à pressuposição de determinadas formas de
reconhecimento por outros sujeitos. Os casos narrados acima articulam diversas
modalidades de desrespeito – motivadas tanto pelo racismo como pela diferença de capital
escolar – aos parâmetros nos quais se assentam as relações intersubjetivas. A ação de Jorge
nessas situações é uma afirmação de dignidade e fonte de respeitabilidade.
Suspeito também ser nossa presença fundamental para o recontar dessas histórias.
Nosso interesse pela história da região e a atuação na consolidação da identidade
quilombola adentrou em assuntos delicados, como a terra, por exemplo. A conduta corporal
e lingüística dos pesquisadores expressava uma habitus de classe e nossas falas se
balizavam pela gramática, ou seja, freqüentemente acionavam um vocabulário e
conhecimento especializado muitas vezes empregado por educados para ludibriar as
famílias do local. Ora, nas situações protagonizadas por Jorge, ele não permitiu ‘ser
passado para trás’, tendo inclusive reprovado homens de certa posição: um indivíduo
adiantadíssimo, um padre e um delegado de polícia. Ao contar esses fatos, é como se Jorge
dissesse que ninguém o passaria para trás, nem mesmo se se valessem da gramática60. Certa
feita, antes de prestar seu depoimento num julgamento, Jorge virou-se para o juiz e disse:
escuta, o senhor faça as perguntas conforme eu entenda, pois eu sou índio grosso que nem
mangueira traqueada [torcida]. O juiz riu e fez as perguntas na gramática de Jorge
[setembro de 2007].
A referência à ‘gramática’ parece-me uma metáfora interessante, pois denota a
apropriação diferencial do capital lingüístico e dos esquemas de ação e percepção próprios
ao campo jurídico, burocrático e escolar. As disposições que conformam os princípios de
visão e di-visão do mundo social de cada interlocutor são fundamentais para entender os
60
De fato, Jorge embargou um integrante da equipe do laudo: certa ocasião, este último disse que iria usar um
aparelho (GPS) para medir o terreno sem fornecer muitas explicações sobre o que isso significava. Jorge
embargou e até hoje cobra do coordenador do laudo explicações, pois ele havia mandado seu empregado sem
conversar com ele antes.
78
acordos ou desacordos que emergem nas interações. Retornemos a dezembro de 2005 para
trabalhar melhor esse ponto. Após Jorge ter contado o fato sucedido com seu primo no
ônibus
(ver
acima),
a
conversa
direcionou-se para os
estigmas
atrelados
à
palavra/identificação negro. O diálogo entre Clairton, a pesquisadora e Jorge tomou o
seguinte rumo:
Clairton: O senhor concordava com isso que o negro fazia as coisas mal-feitas?
Jorge: Não.
Clairton: O senhor achava que os negros faziam as coisas bem-feitas?
Jorge: Sim. Mas era acusado por ser um negro.
Clairton: Mas se o senhor entende que os negros podem fazer bem as coisas por
que o senhor, não que o senhor tenha, mas por que o senhor não pode ser
identificado como negro?
Jorge: Não, mas não negro. Pra mim é uma palavra aguda.
E: Quantas raças o senhor acha que existem?
Jorge: Nem dá pra dizer quantas raças existem. Cada país é uma raça, né. Mas
nós aqui no Rio Grande do Sul é um dos países que têm mais raça que outros
países. [...] O Rio Grande do Sul é o país que mais raça tem que outras nações.
[...] Tem cidade só de alemão, né; outras só de italiano. [...]
E: Mas quem falava mal dos negros eram os brancos.
Jorge: Sim, sim. Mas se o negro fazia era mal-feito, né.
Clairton: Mas quem dizia isso eram os brancos.
Jorge: Mas quando negro fazia era mal-feito.
Clairton: Mas eram os brancos que diziam isso.
Jorge: Quer dizer que tinham uma má-fé.
Clairton: De repente o senhor pode ter assimilado isso, não acha?
Jorge: Como é?
Clairton: Não querer ser conhecido como negro...
Jorge: Não.
79
Quando Clairton indagou Jorge se assumir-se como negro, ao invés de mulato, pardo ou
moreno, por exemplo, não era uma forma de negar essas imposições e estigmas, Jorge o
interrompeu e disse, em tom seco e peremptório: negro é uma palavra muito aguda. Em
seguida, pôs termo à conversa e pouco falou com Clairton a partir de então.
Trago esse diálogo para exemplificar a dificuldade de desprendimento na análise de
situações bem concretas como essa. Não se trata de um olhar retrospectivo que manifestaria
a proeminência do analista na definição das razões últimas da razão dos sujeitos, ou de
apontar os ‘vícios’ dos ‘pressupostos militantes’ na apreensão do ‘ponto de vista nativo’
(afinal de contas, o antropólogo, como acadêmico e sujeito, não é destituído de
pressupostos). A contextualização do conhecimento antropológico passa não apenas pela
descrição das situações coevas com os sujeitos da pesquisa, mas pelo desvelamento das
filiações mobilizadas por nosso pensamento. Como nos lembra Bourdieu:
É pelo fato de estarmos enredados no mundo que parece haver algo de implícito
no que pensamos e dizemos a seu respeito. No intuito de liberar o pensamento,
não é possível contentar-se com esse retorno sobre si do pensamento pensante
que em geral se associa à idéia de reflexividade; e apenas a ilusão da onipotência
do pensamento pode fazer crer que a dúvida mais radical seja capaz de colocar
em suspenso os pressupostos, ligados às nossas diferentes filiações, dependência
e implicações, que mobilizamos em nossos pensamentos (Bourdieu, 2001:19).
A conversa com Jorge, reconstituída nesta seção, revelou profundas diferenças na
percepção da ‘questão racial’. A adesão, em maior ou menor medida, a alguns pressupostos
do movimento social negro e às lições escolásticas sobre a ‘identidade negra’ revelaram-se
pouco eficazes para compreender aquele diálogo. Nesse sentido, a objetivação do sujeito
objetivante (Bourdieu, 2001), magistralmente operacionalizada pelo sociólogo francês
(Bourdieu, 2005), é um passo fundamental para entender a dinâmica identitária em
Cambará61. As filiações dos diversos agentes com os quais o grupo passou a interagir,
inclusive eu mesmo, estavam implícitas não apenas nas interações – o que as ‘direcionava’
61
Na sociologia de Bourdieu, a objetivação e o desvelamento dos arbitrários instituídos tornam o sociólogo o
detentor da razão última das razões que os sujeitos desconhecem. Esse pressuposto é problemático, já que
confere um papel secundário às justificações dos próprios agentes. A objetivação do sujeito objetivante,
todavia, pode ser instrumentalizada no sentido de desvelar e trazer à tona as filiações do analista, tornando o
olhar mais apurado para compreender as situações presenciadas em campo.
80
de maneira específica – mas também faziam parte dos próprios esquemas de entendimento
operacionalizados para compreender essas interações.
Após o debate sobre a ‘identidade negra’, voltamos a enumerar atrativos da reunião
a ser realizada no dia seguinte. Não faltavam motivos para a presença de Jorge.
Tergiversou. Aos poucos, passou a fazer perguntas sobre essa história de quilombo. Quem
eram, quais os responsáveis, o que faziam, como, qual o envolvimento do presidente Lula
com isso. Respondemos várias de suas perguntas até dizermos que ele deveria ir às reuniões
para saber mais. Jorge fez algumas outras indagações. Estava em dúvida quanto à história
dos quilombos. Lembro que antes de irmos embora, tomei o partido do artigo 68. Essa “lei”
foi feita pelo governo para “reparar” as “injustiças” cometidas contra os “morenos” na
história, disse. Citei os casos ouvidos deles mesmos: os roubos de terra; as intimidações; os
castigos; as agressões; os assassinatos. Dei ênfase especial nos roubos de um delegado e
nas diversas agressões cometidas por um branco, de nome Romildo, contra o grupo. A
história de “vocês” torna “justa” a aplicação da lei em Cambará, foi uma das últimas coisas
que eu comentei. Jorge ficou introspectivo por alguns instantes e disse que iria à reunião.
Despedimos-nos e seguimos o rumo da estrada. Eram dez horas da noite.
No dia seguinte, fui à casa de Jorge. Fiquei responsável por buscá-lo para a reunião.
Em verdade, tínhamos quase certeza de que ele não iria novamente. Estacionei o carro na
porteira. Para chegar à sua casa é necessário atravessar duas cercas: a primeira delimita o
terreno; a segunda, separa a casa do terreno. Atravessei a primeira cerca e o avistei de
longe. Esperou-me ali, à beira do cercado que dava acesso à sua morada. De imediato
perguntei se iria. Tangenciou o assunto. Não insisti. Já havíamos feito propaganda
suficiente. Ficou quieto por alguns segundos, atravessou a cerca, e do outro lado disse: O
senhor sabe que o Romildo e aquela gente toda que o senhor falou ontem são meus primos.
E completou, olhando no fundo dos meus olhos, como sempre fazia: O senhor mora em
Porto Alegre, eu aqui. Entende? Acenei com a cabeça, como que entendendo que apesar de
nossa proximidade física, o fato de ele estar do outro lado da cerca não era à toa. Nossa
distância não era espacial, mas se dava nos esquemas de entendimento mobilizados para
perceber e agir sobre o mundo social. Eu vou, mas só vou ouvir.
81
2.7 Políticas de inclusão e exclusão
Os casos trazidos acima apontam a dificuldade de adequação de meus esquemas de
ação e percepção a uma realidade que pode contrariar minhas pré-concepções. O receio em
excluir os brancos da associação, as ressalvas quanto à história dos quilombos, a
preocupação sobre o destino das terras e a inclusão dos brancos numa política para
quilombolas, manifestam menos carências (consciência, organização, informação,
mobilização, etc.) e mais forma diferenciadas de conceber o ‘político’.
Em
Cambará,
brancos
e
negros
entretêm
diversas
relações.
Interagem
cotidianamente em diversas ocasiões, freqüentam os mesmos espaços, são vizinhos,
apadrinhados (em alguns casos), recorrem um ao outro quando necessitam de auxílio, etc.
Esses vínculos criaram obrigações morais entre os grupos, uma vez que estão fundados
numa ordem de reciprocidade. Por essa razão, evita-se ‘romper’ com os brancos e/ou, como
dizem alguns, excluí-los. A manutenção das relações de reciprocidade não necessita da
troca de objetos; ela pode se manifestar por gestos, como o convite para reuniões, encontros
e festividades. A assunção quilombola evidentemente altera o estado das coisas e fomenta
novos padrões de interação. Ocorre que as mudanças decorridas da identificação atual do
grupo e as eventuais alterações nas correlações de força se dão no interior mesmo dos
esquemas de ação pré-existentes.
Tomando o modelo das “economias da grandeza” (Boltanski; Thévenot, 1991),
podemos conceber Cambará como uma “cidade doméstica”. A cidade doméstica é aquela
na qual a procura do que é justo se assenta sobre relações pessoais. Não se trata de supor a
existência de uma noção abstrata de justiça, mas de revelar o ‘senso de justiça’ que emana
da coordenação dos regimes de ação em situações bem concretas62. É nesse âmbito onde a
diferenciação com os brancos ganha mais vigor e a assunção quilombola ganha lugar, pois
o regime de coordenação de ação entre os de dentro e os de fora, e as obrigações morais
entre as partes, são substancialmente diferentes.
62
Esse argumento foi desenvolvido, no laudo, por José Carlos dos Anjos, Lúcio Centeno e Luisa Sousa (ver:
Anjos; et.alli, 2006). Aproveitei-me de suas formulações, seja as escritas, seja as de debates e conversas que
freqüentemente realizávamos.
82
Os laços sustentadores das relações com os brancos são constantemente
realimentados, mas erigem-se em uma base muito frágil. A sutil presença do racismo (algo
percebido e salientado pelos próprios sujeitos da pesquisa, ressalte-se mais uma vez), o
interesse (olho gordo e as facadas, por exemplo), a necessidade sentida pelos brancos de
sempre estar por cima, e outros elementos, revelam o caráter restrito das relações de
reciprocidade entre negros e brancos: dão a mão, mas querem todo o braço em retorno;
pedem um favor, mas não o recebem em sua casa; fazem uma cortesia, e cobram muito
mais depois (ou dão uma facada); ajudam, mas crescem o olho nos momentos de
dificuldade. Atrelado a tudo isso, a condição econômica favorável dos brancos em relação
às famílias negras dá vazão para a reciprocidade assimétrica.
Voltemos ao caso da benzedeira e da italiana, mencionado no início deste capítulo.
Relembrando, em linhas gerais: a italiana, que por hábito menosprezava o saravá, procurou
sua comadre, praticante de umbanda e benzedeira, por motivo de doença. A italiana
retribuiu a comadre com um rádio, mas a ignorou quando recebia visitas em casa. A forma
de retribuição da italiana é sintomática, pois foi imediata. A benzedura é um dom e por essa
razão está imersa no circuito da dádiva. Em Cambará, as benzedeiras não cobram, e se o
fazem é para com os aquinhoados. Embora não seja verbalizada, tacitamente espera-se uma
retribuição. A contra-dádiva imediata de certa maneira rompe com o circuito da dádiva,
pois interrompe um fluxo que deve ser contínuo e necessita do fator tempo. Assim, o
proceder da italiana foi pontual, não manifestando interesse em alimentar as prestações e
contra-prestações. O retorno imediato interrompe um circuito no qual trocas acumuladas
ganham caráter de incomensurabilidade. Em geral, os brancos só procuram os negros
quando precisam e exigem a quitação imediata dos favores por eles prestados. Entre os de
dentro, passa-se o oposto. Nas contraprestações, atos de generosidade são engendrados no
sentido de gerar equivalências que garantam a manutenção e reforço de vínculos.
A descrição de uma carneação de um porco, por mim presenciada em junho de
2005, vai no mesmo sentido. Havia tempos que Inácio Xavier (in memorian), dono do
suíno, queria abatê-lo. Com quase noventa anos, chamou seu vizinho e primo, Orcindo
Machado, na época com 76 anos, para ajudá-lo, assim como seu afilhado Eraldo da Silva,
23 anos. Ao ajustar com Orcindo a função do porco, foi sugerido por este último que
83
esperassem alguns dias, pois dois filhos de Orcindo iam vir da cidade para visitá-lo. No dia
combinado, cheguei no meio da função. Tratava-se de um trabalho muito custoso e, de fato,
a lida começou às seis da manhã e prolongou-se até às quatro horas da tarde. Finda a
função, os pedaços foram repartidos. Perguntei a Inácio se venderia alguma coisa e ele
disse que não tinha como fazer isso, pois a carne era pouca (o animal pesava mais de trinta
quilos). Os pedaços para consumo próprio e aqueles distribuídos entre os parentes e
vizinhos impediam a comercialização, a não ser para um italiano, que lhe ajudou
recentemente. A venda não se reduz às possibilidades financeiras do comprador. Inácio
poderia vender para qualquer um, mas preferiu uma transação comercial com aquele que o
havia ajudado, quitando em curto período de tempo a obrigação. Com os vizinhos e
parentes passava-se o oposto. Note-se ainda que a visita dos filhos de Orcindo não consistiu
na manutenção de vínculos apenas com o pai, mas também com os vizinhos. Orcindo
dispôs-se a ajudar na mesma data da visita de seus filhos.
Assim, o regime coordenador da ação para com os de dentro supõe condutas tidas
por gratuitas – essa economia não-econômica, como quer Bourdieu (1996:151).
Evidentemente, Cambará não é um ‘reino de solidariedade’, e discordâncias eventualmente
surgem entre as famílias. O ponto a salientar é que é no nível da reciprocidade no qual a
diferenciação e distinção em relação aos brancos ganha maior proeminência. O rompimento
das relações com eles pode ruir uma rede de reciprocidades, e nesse caso interromper trocas
(freqüentemente tênues e favoráveis aos brancos) mantenedoras de vínculos. A troca com o
branco provavelmente não terá retorno nem será favorável a ele, ao passo que a troca com o
vizinho e parente deve ser sempre alimentada e equilibrada.
As condutas violentas, especialmente no passado, restringem ainda mais a
confiabilidade nos brancos. No caso de Arnoldo dos Santos, a lembrança do esbulho
evidencia bem essa questão. Segundo ele, seu irmão, dependente de álcool, foi enganado
por um alemão e vendeu as terras a preço de nada. Arnoldo não se encontrava no local
nessa ocasião, pois estava trabalhando para fora. Quando retornou, sua casa já havia sido
derrubada:
Arnoldo: Derrubaram a casa. Não sei. Só sei que desmancharam a casa. Quando
viu, não tinha nada.
84
E: O Romildo desmanchou sua casa?
Arnoldo: É. Eu não tava aí. [frase inaudível] Ele desmanchou.
E: Ninguém falou nada?
Arnoldo: Mas foi ele e meu irmão! Foi tramóia deles. Me deixaram na rua.
Quando eu cheguei, tava na rua.
E: E o senhor não falou nada com o Romildo?
Arnoldo: Eu falei. Era uma arma 28. Não ouviu.
E: Ele veio com uma 28?
Arnoldo: Fui falar com ele, e ele com uma 28, me meteu um tiro. Era uma arma
28. Deu um tiro.
E: Ele ameaçou o senhor?
Arnoldo: Não ameaçou, mas deu um tiro. (Arnoldo Santos, 64 anos, outubro de
2005)
Arnoldo argumenta que não pôde fazer nada porque naquela época não conhecida
nada, direito nenhum. Assim sendo, a conduta do seu vizinho é ainda mais grave, pois além
de se aproveitar do vício de seu irmão e de sua ausência no local, deu-lhe um tiro.
Situações como essa podem motivar a ação política do grupo ao se constituírem enquanto
fonte de desrespeito. Como coloca Honneth (2003:261):
sentimentos de desrespeito formam o cerne de experiências morais, inseridas na
estrutura das interações sociais porque os sujeitos humanos se deparam com
expectativas de reconhecimento às quais se ligam as condições de sua integridade
psíquica; esses sentimentos de injustiça podem levar a ações coletivas, na medida
em que são experienciadas por um círculo inteiro de sujeitos como típicos da
própria situação social.
Na medida em que a identificação quilombola passa a fazer parte do horizonte dos
possíveis do grupo, novas clivagens vão se estabelecendo, enfraquecendo ou acirrando as
clivagens já existentes. Hoje em dia, há momentos e momentos. A associação, formalizada
em 2006, permite, em seu estatuto, a participação de qualquer pessoa, mas os membros são
apenas as “famílias quilombolas63”. Há um limite de inclusão, assim como de exclusão, dos
63
Artigo quinto do estatuto da associação. Constituem “sócio-fundadores” os “moradores afro-descendentes
que tiverem propriedade fundiária na comunidade denominada Quilombo de Cambará” e também aqueles
85
brancos. Por mais ‘contraditório’ que possa parecer, ambas as dimensões articulam-se no
âmbito das relações de reciprocidade. Existem obrigações morais entre as partes, mas as
trocas no presente são restritas e as situações de desrespeito foram uma constante no
passado. São essas políticas de inclusão e exclusão que devem ser levadas em conta, e não
somente as ‘carências’ políticas dessas famílias. Da mesma forma, as disputas
desencadeadas pela assunção quilombola e as sutis mudanças na correlação de forças do
local só são perceptíveis se analisarmos detalhes do cotidiano.
2.8 Ocupando espaços
O local onde se dão os encontros, reuniões, missas e festas da localidade é uma
edificação que outrora abrigou uma escola (atualmente desativada). Situada à beira da BR290 no núcleo Cambará, o coleginho, como é conhecido pela maioria das pessoas, fica num
terreno que pertenceu à família Ramos no passado (ver croqui). Até 2005, aquele prédio
não era abastecido por luz elétrica. Em ocasiões extraordinárias, a energia elétrica era
‘puxada’ de uma casa vizinha (que também abrigava uma oficina mecânica) onde residia
um alemão. O fornecimento de luz, entretanto, dependia de sua anuência. Por sua vez, a
chave do coleginho, ficava na posse de Dona Júlia. Teoricamente, qualquer um poderia
dispor daquele espaço a qualquer momento; na prática, isso não sucedia sempre. Assim,
qualquer evento que tivesse lugar no coleginho dependia da anuência dos brancos. Embora
não existisse nenhuma proibição explícita e dificilmente alguma objeção fosse levantada
por eles, o controle simbólico do lugar ficava manifesto pela posse da chave e da energia
elétrica. O coleginho era um dos espaços, por excelência, de sociabilidade da região. O
acesso privilegiado a ele era fundamental na correlação de forças existente no local.
Algumas famílias negras manifestavam desconforto com a situação. Citavam casos
nos quais foi negado o acesso ao local e/ou recusado a solicitação de luz elétrica, mesmo
em troca de uma razoável quantia financeira. No final de semana inicial do Programa
“afro-descendentes que participarem da vida coletiva da comunidade e que de fato sejam interligados por
vínculos de vizinhança e laços de parentesco com as famílias que constituem o quilombo, e dotados de
relação territorial específica e com presunção de ancestralidade negra à opressão histórica sofrida” (Cambará,
2007:4).
86
Unisol-Quilombos (setembro de 2003), essa questão foi evidenciada. Três encontros foram
realizados entre a equipe e o grupo, sendo que um dos assuntos em pauta foi o coleginho.
De acordo com uma senhora, os brancos se apropriavam de espaços comunitários, já que
exerciam o controle sobre o local e realizavam suas atividades sempre que desejassem. Ao
contrário, a comunidade dependia dos brancos para qualquer coisa que fosse fazer. Outras
pessoas amenizavam isso, dizendo que os brancos também tinham direito. Poucas pessoas
tomaram a iniciativa de falar sobre os brancos naquelas duas ocasiões, mas não foi dado um
ponto final ao assunto com o término das reuniões. No caminho para casa e/ou em círculos
menores, as pessoas falavam com mais desenvoltura.
Esse quadro fazia com que o Programa Unisol-Quilombos abarcasse um público
maior: os brancos. O plano de trabalho, pensado e planejado para ser aplicado para os
“quilombolas”, sofreu adaptações, tendo em vista a participação dos brancos em quase
todas as atividades realizadas. O Unisol desenvolveu uma série de oficinas: geração de
renda, cursos de artesanato, estética étnica negra, atividades pedagógicas recreativas, etc.
Cada uma dessas oficinas possuía objetivos próprios, bem como distribuía tarefas e
responsabilidades a cada um dos participantes do projeto, o que não impedia a confluência
de metas. Assim, o aprendizado de como fazer tranças no cabelo (estética étnica negra), por
exemplo, trabalhava a auto-estima e poderia servir como fonte de renda no futuro. Um dos
objetivos comuns às oficinas foi justamente trabalhar a auto-estima, sendo isso visto como
elemento fundamental na mobilização política do grupo. Momentos de “valorização da
negritude” como esses não eram plenamente operacionalizados em razão da presença dos
brancos (até mesmo na oficina de estética negra).
Sucedia também que as reuniões sobre a formação da associação e os direitos
quilombolas geralmente eram precedidas de outras atividades. Um curso, promovido pela
Emater/RS64 à época, tinha por público as “mulheres trabalhadoras rurais”, congregando
diversas mulheres da região, tanto negras quanto brancas. Nosso envolvimento nas tramas
locais variava conforme o contexto e o momento. Certos assuntos eram tratados nas salas e
cozinhas de nossos anfitriões. Era como se o cenário de algumas conversas revelasse a
dinâmica do lugar: poucas coisas podiam ser vistas sob a luz do lampião, mas muitas coisas
64
Associação riograndense de empreendimentos de assistência técnica e extensão rural.
87
podiam ser ditas e sussurradas naquela escuridão. Nas reuniões no coleginho, palavras e
frases eram cercadas de cuidado. Quando assuntos correlatos aos quilombolas estavam em
pauta, transmitia-se a idéia de que a ‘luta’ e os direitos garantidos aos quilombolas não
resultavam em divisões. A presença dos brancos em todos os eventos realizados no
coleginho garantia certo controle da situação, colocando-os a par das mudanças concretas
operadas pela dinâmica identitária dos morenos. Daí se explica a variação nas falas,
condutas e discursos dos negros. Nos círculos mais amplos, alguns assuntos tendiam a ser
silenciados, ao passo que as questões que inspiravam mais cuidado eram silenciadas – mas
não emudecidas –, constituindo verdadeiros “roteiros ocultos” [hidden transcripts], para
utilizar a terminologia de J. Scott65 (1990).
Em dezembro de 2004 (um ano após o término do Unisol, portanto), o IACOREQ
foi convidado para participar da celebração do natal e das conquistas da comunidade
advindas de sua participação no Programa RS Rural. Estive presente nesta ocasião, e apesar
de termos ficado menos de dez horas no local, muitas coisas puderam ser visualizadas. Um
boi foi abatido especialmente para a ocasião, já que a celebração previa a presença de um
grande número de pessoas: membros do movimento social negro, sindicalistas rurais,
estudantes universitários, técnicos governamentais e moradores da região haviam sido
convidados. Porém, uma chuva torrencial naquele dia impediu a locomoção de diversos
convidados. De qualquer modo, era evidente o caráter particular daquela ocasião:
diferentemente dos encontros comumente realizados, a festa foi pensada e planejada em
vista dos ‘agentes externos’ convidados.
O que chamou de imediato minha intenção foi ver quatro ou cinco mulheres negras
trajadas com ‘roupas afro’, inclusive uma senhora que seguidamente manifestava seu pouco
apreço ao saravá. Alguns brancos também estavam presentes, pois haviam sido convidados
e uma missa seria realizada. Mas aquele cenário era um tanto atípico. Uma pequena mesa
servia de ‘altar’, onde uma imagem de Santo Antônio e uma vela de sete dias pousavam.
65
James Scott, freqüentemente, é acusado de definir ampla e frouxamente a ‘resistência’. Se esse é, de fato,
um risco à espreita em sua obra, não se pode perder de vista sua agudeza analítica. Ao enfocar ações
cotidianas e pequenos gestos, o autor cobriu limitações comuns às teorias que concebem e ação política – e a
‘resistência – em termos formalistas. No caso em pauta aqui, estou falando de uma ação em um contexto bem
concreto.
88
Duas toalhas estavam sobre o ‘altar’: uma estampa afro de coloração laranja e marrom e um
bordado alvo feito à mão, sob a estampa. A bíblia repousava sobre um cesto de palha
igualmente coberto por um ‘tecido afro’. Músicas católicas eram entoadas em ritmo de
samba; ao som do violão, o toque do pandeiro dava outra sonoridade às músicas. Mulheres
andavam em círculos, girando com cestos de milho, bolo de fubá e amendoim, como se
estivessem fazendo oferendas a um orixá. O sermão sobre a libertação dos filhos de Israel
do cativeiro no Egito foi seguido da louvação ao papel heróico de Zumbi na luta pela
liberdade do povo negro. Dona Júlia conduzia a maior parte da missa; um integrante do
movimento negro urbano de Cachoeira do Sul, vestido ‘à la afro’, e com diversas guias em
volta do pescoço, conduzia boa parte dos cânticos; uma das mulheres negras ficava
responsável pela leitura de alguns trechos da Bíblia e da vida de Zumbi. Próximo ao fim da
missa, o “salmo do povo” foi entoado:
Toda a negritude, louvai o Senhor,
Todo o povo de Deus, louvai, louvai,
Todas as culturas, louvai o Senhor,
Negros e índios, louvai o Senhor,
Mulher e criança, louvai o Senhor.
O que talvez era pouco evidente para mim na época era que sem ‘romper’ com os
brancos, as famílias negras iam paulatinamente ocupando e demarcando territórios. O
estatuto que a comunidade vinha assumindo frente à órgãos estatais e à sociedade mais
ampla como um todo se refletia no caráter mesmo daquela situação: a estampa afro estava
sobre a alva tolha bordada, e não o contrário. Do mesmo modo, a religiosidade afrobrasileira emergia em um rito católico. Essa imagem reflete menos uma tolerância e mais
uma sutil mudança na correlação de forças. A visibilidade de Cambará crescia e a autorepresentação assumia novos contornos. As próprias paredes do coleginho davam uma
mostra disso: ao lado de imagens religiosas, cartazes sobre remanescentes de quilombo
estavam fixados. Quando o laudo começou a ser elaborado, em maio de 2005,
aparentemente não haviam ocorrido muitas mudanças, mas talvez esses pequenos detalhes
digam mais dos que nossas lógicas sobre ‘o político’ eram capazes de apreender.
89
Numa das primeiras reuniões após o início da pesquisa do laudo, um contratempo
surgiu. O encontro entre pesquisadores, membros do IACOREQ e as famílias negras fora
marcada no mesmo horário de uma missa. Frente àquela situação, o adiamento da reunião
afigurava-se como solução mais provável, já que a aula de catecismo estava programada
para suceder o rito. Após a missa, entretanto, o catecismo passou a ser ministrado em um
pequeno aposento do coleginho. Edificação de aproximadamente 40m², o coleginho possui
três aposentos: duas pequenas peças de 4m² cada uma e uma espécie de ‘sala’, medindo por
volta de 24m². Alguns (poucos) brancos acompanharam a reunião, e novamente o tom da
conversa foi ameno, sendo salientado que a “questão quilombola” não criava divisões,
apenas visava “corrigir desigualdades históricas”. Durante o encontro, um filme foi
projetado. Tratando de diversos elementos da ‘cultura negra’, certos trechos tratavam da
religiosidade afro-brasileira. Foi sintomático que no principal aposento do coleginho tratouse da ‘cultura negra’, enquanto o catecismo foi realizado numa minúscula sala.
Em 2007, acompanhei uma missa no coleginho. Postei-me ao lado de Dona Júlia.
Durante seu sermão, as orações e louvações a Deus foram cedendo lugar a uma reflexão
sobre os ensinamentos divinos e a importância deles para o cotidiano. Deus fez todas as
pessoas iguais e aos seus olhos não havia diferença entre elas. Sendo a solidariedade um
preceito cristão básico, deveríamos nos preocupar em ajudar os outros – como ela mesmo
sempre o fez para com todos ali –, não criar divisões. No mesmo instante em que ela
proferiu essas últimas palavras, meu olhar encontrou-se com dois olhares que mais
pareciam sorrisos de canto de boca. O semblante de uma mulher e de um homem, ambos
negros, permanecia imóvel; o olhar, porém, dizia muito. Outro senhor comentou comigo
que os brancos estavam com medo, por isso insistiam na amizade.
A partir de 2006, encontros de maior vulto foram transferidos para um salão de
maiores proporções localizado na comunidade de Palmas. Os eventos realizados no local
facilitavam a presença dos moradores da Palma e da Roseira, dando mostra da congregação
de forças e da adesão à luta por diversas famílias. Ao mesmo tempo, a estrutura física do
coleginho não era mais capaz de abrigar os eventos da comunidade, pois cada vez mais
pessoas, provenientes de vários lugares, interessam-se em ir ao local. Em outubro de 2006,
a cerimônia de entrega do laudo contou com a presença de dois ministros de Estado
90
(ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, SEPPPIR, e
ministro do Ministério de Desenvolvimento Agrário, MDA), além do superintendente
regional do INCRA e de um representante da Coordenação Nacional das Comunidades
Remanescentes de Quilombo (CONAQ)66. Em outubro de 2007, foi a vez do prefeito
municipal ir ao local. A visibilização crescente do grupo resulta na incorporação de novas
disposições por seus integrantes e dá ensejo a diferentes expressões da identidade.
Figuras 6 e 7 – Diferentes contextos. Reunião no coleginho e entrega do laudo
66
Acompanhei essa cerimônia na qual nenhum representante de Cambará tomou a palavra (apenas os
ministros, o superintendente do INCRA e uma representação da CONAQ falaram). Foram entregues na
mesma ocasião os relatórios técnicos de identificação das comunidades quilombolas de Casca (município de
Mostardas/RS) e São Miguel e Rincão dos Martimianos (Restinga Seca/RS). Simbolicamente, Orcindo
Machado, um dos representantes mais idosos do grupo, foi quem recebeu o laudo das mãos do ministro.
91
Fotos: Autoria desconhecida.
As disjunções entre brancos e negros, advindas da assunção quilombola, não
seguiram um curso ascendente no qual o grupo ‘tomou consciência’ ou passou a ‘valorizar
sua negritude’. De fato, a violência racial atrelou uma série de estigmas à identidade da
comunidade, tornando certas identificações recalcadas e até mesmo evitadas. Atualmente, a
‘identidade negra’ está sendo valorizada, mas o quadro não se resume a uma ‘valorização
da negritude’. Por trás disso, pesam obrigações morais e a ameaça representada pelo
rompimento das relações de reciprocidade. Por mais que as famílias negras invariavelmente
qualificam as interações com os brancos como injustas e favoráveis aos últimos, existem
vínculos entre as partes, e é isso que confere aos brancos alguns direitos. Trata-se, portanto,
não tanto de saber qual o grau de ‘envolvimento’ das pessoas com a luta e/ou o nível de
informação, organização e consciência. Embora essas questões sejam certamente
importantes, elas subscrevem o conhecimento aos limites de uma avaliação (Commerford,
2003): grau de ‘consciência’, reconhecimento da ‘negritude’, eficiência e eficácia da ‘luta’,
‘capacidade’ de mobilização, etc. A suspensão dos juízos de valor é ainda mais premente
quando dimensões ‘centrais’ das ‘nossas’ vidas (evidentemente o grau de centralidade não é
unívoco) são submetidas à análise. A “perspectiva negativa” da política (Goldman, 2006)
92
revela-se insuficiente justamente por avaliar uma realidade multifacetada sob o prisma
exclusivo da ausência. Entretanto, a antropologia da política tende a deixar de perguntar
pelos mecanismos estruturados e estruturantes da exclusão de determinados grupos das
instâncias de tomada de decisão.
Em uma sociedade repleta de desigualdades, o acesso privilegiado ao mercado de
bens simbólicos por certos grupos em detrimento de outros é importante variável a ser
considerada. Como nota Hall (2003), as sociedades multiculturais ensejam diferentes
políticas multiculturalistas, sendo que o reconhecimento de diferenças culturais depende da
orientação ideológica dos governantes e das disputas e correlações de forças nas esferas de
elaboração, discussão, planejamento e execução de políticas. A salvaguarda e conquista de
direitos tramitam em instâncias jurídico-burocráticas repletas de sutilezas, agudezas e
linguagens especializadas. Se, seguindo Bourdieu (1989), assumíssemos que o campo
político é o lugar de uma espécie de cultura esotérica, feita de problemas e discursos
estranhos ao cidadão comum, a decodificação desses discursos depende da aquisição de
disposições e expertises. A atuação, o surgimento e auto-representatividade de lideranças
quilombolas estão sujeitas, portanto, às condições de possibilidade de familiarização dos
códigos estabelecidos no campo político.
Assim, os mecanismos que sustentam e autorizam as reivindicações por direito
devem sua eficácia à aquisição de capital e representatividade. Por outro lado, a
relativização do caráter único ditado pelo Estado nos processos de reconhecimento
(Chagas, 1999; 2005) problematiza a ênfase na homogeneização das “populações
submetidas” (Arruti, 1997) por parte do Estado. Se encarado de forma unidirecional, as
políticas de reconhecimento limitar-se-iam à subsunção de diversas situações sociais em
categorias jurídico-administrativas definidoras de direitos e, portanto, das supostas
necessidades dos grupos alçados a sujeitos de direitos. Visto de outro viés, o
reconhecimento pode implicar também no conhecimento, pois os problemas e anseios
vividos das coletividades alçadas a tal condição passam a figurar em espaços
institucionalizados de tomadas de decisão.
A análise da atuação política de grupos étnicos passa, de certa maneira, pela
avaliação das condições de possibilidade de emergência de vozes fragilizadas nos espaços
93
de tomada de decisão, bem como da posição estrutural ocupada por esses agentes no campo
e os recursos disponíveis na decodificação de uma linguagem especializada. Como foi
notado acima, a circunscrição do conhecimento às dimensões avaliativas da política fecha
os olhos para outras dimensões da realidade. Nesse sentido, a antropologia da política, ao
evitar as abordagens em termos negativos (Goldman, 2006), pergunta pelas maneiras de
articulação do político levando em conta as definições nativas sobre o que constitui o
político. Abre-se a possibilidade, então, de um campo complementar de investigações não
redutor de todos os aspectos presenciados em campo ao ‘político’. A ação e a vivência dos
sujeitos em organizações eminentemente políticas, como nas associações de moradores e
sindicatos, por exemplo, não pode ser tomada em sua dimensão politicista ou reativa.
A formação da associação em Cambará é um bom exemplo para tratar das questões
esboçadas acima. A interação com agentes externos facilitou a instrumentação do grupo
para lidar com linguagens pouco acessíveis até então e mover-se com mais desenvoltura em
fóruns especializados de tomada de decisão. Ao mesmo tempo, novas disposições e
percepções no contexto mesmo dessas interações surgiram, novas diferenciações
começaram a assentar raízes e a história local ganhou um novo contorno e passou a cumprir
outro papel na auto-imagem grupal. Da mesma maneira, os critérios para inclusão e
exclusão sofreram variações. De um lado, as famílias das comunidades negras adjacentes
da Palma e da Roseira foram incluídas em políticas públicas. Recorrendo a uma mesma
história e ao parentesco entre as três comunidades, as lideranças de Cambará remetiam ao
passado uma inclusão operada no presente.
Já a presença dos brancos, até mesmo como beneficiários de políticas inicialmente
previstas para atender apenas famílias quilombolas, manifesta pelo menos três dimensões
do político. Em primeiro lugar, a proeminência econômica, a posição de empregadores e o
acesso facilitado a meios jurídico-burocráticos pelos brancos certamente são fatores a
serem levados em conta, pois são decisivos no caráter da discussão e das interações
assentadas sobre a ‘questão quilombola’. Nesse nível, é indispensável ter em mente os
distintos capitais em jogo, bem como a capacidade de mobilização de cada uma das partes.
Certas demandas e reivindicações podiam ser evitadas pelo receio de gerar inconformidade
entre os brancos que empregam negros. Esse estado da correlação de forças certamente não
94
é imutável, e aqui mais duas dimensões do ‘político’ se apresentam. De um lado (e em
segundo lugar), estratégias mais sutis de afirmação e consolidação da assunção quilombola
são acionadas (principalmente pelas lideranças), de modo a evitar conflitos e o acirramento
de ânimos. De outro, a manutenção das relações de reciprocidade é fundamental para a
aquisição de confiança e respeitabilidade. A observância aos padrões de interação préexistentes transmite aos vizinhos a sensação de que nenhuma injustiça resultará da história
dos quilombos. Por fim e em terceiro lugar, contrariando visões correntes sobre os
parâmetros definidores da mobilização e da organização política, a resolução de questões
práticas se dá de forma pessoalizada. A relativamente inexpressiva presença dos moradores
nas reuniões convocadas pelas pessoas que participaram dos projetos de extensão e
pesquisa por si só não diz nada. Num local onde todos se conhecem e são parentes, as
relações face a face constituem a forma mais apropriada de resolução dos problemas
cotidianos e das ‘políticas do lugar’.
A inclusão e a exclusão e os limites da comunidade ganharam novos contornos com
a visibilidade atual do grupo e a assunção quilombola. Essas mudanças, entretanto, foram
gestionadas em conformidade com os regimes de ação pré-existentes do local. Por sua vez,
esses regimes de ação também sofreram alterações e estão sujeitos a reavaliações conforme
o contexto. É justamente essa dinâmica entre os efeitos desencadeados pelos órgãos de
reconhecimento e os códigos locais de justiça que devem ser investigados. A ação das
famílias de Cambará não é uma mera reação aos fluxos desencadeados pelo Estado,
tampouco sua organização política é uma reprodução em microescala dos padrões
característicos a esta entidade.
2.9 A expressão da identidade
O emprego de determinadas categorias étnicas traz para o debate não tanto a quem
essas categorias referem, mas como, quando e por quais razões essas identificações são
acionadas. O estatuto da “Associação Comunitária Remanescentes de Quilombo de
Cambará” (ACQUICAMBARÁ), de certo modo sintetiza algumas das questões trazidas ao
95
longo deste capítulo67. No primeiro parágrafo nota-se a apropriação dos procedimentos
legais na caracterização mesma da comunidade.
Para efeito deste artigo são considerados remanescentes de quilombos os grupos
étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica
própria, dotados de relações territoriais específicas, com ancestralidade negra
relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. (Cambará, 2007:1).
Fica evidente a semelhança deste parágrafo em relação ao disposto no artigo
segundo do Decreto Federal 4.88768. Os objetivos da associação vão na mesma linha, bem
como acentuam o “patrimônio” afro-brasileiro da comunidade e a necessidade de “lutar”
pelo cumprimento dos direitos garantidos constitucionalmente:
Artigo 3º: São objetivos da ACQUICAMBARÁ:
I. Lutar conjuntamente com as comunidades quilombolas pela titulação das terras
em cumprimento ao Artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais
Transitórias da Constituição Federal de 1988;
II. Trabalhar pelo desenvolvimento da comunidade quilombola, levando em
consideração a preservação ambiental e a especificidade.
III. Atuar em cooperação com outros grupos, quilombolas ou não, visando à
integração social. [...]
IX. Proteção ao patrimônio histórico, paisagístico, cultural e artístico de todos os
bens da natureza material ou imaterial, individual ou coletivamente considerados
portadores de referência à identidade de ação, memória a população afrodescendentes como formador da sociedade brasileira” (Cambará, 2007:3). [grifos
no original].
Este artigo do estatuto é seguido de outro a respeito das “prerrogativas e deveres
para a condição da existência da associação” (artigo quarto). Nele, ficam evidenciados
não apenas objetivos comuns, mas também a tentativa de coordenar a ação de seus
componentes no intuito de garantir ditos objetivos. Lê-se no referido artigo:
I [...] manter vivo permanentemente os objetivos afro-descendentes.
[...]
67
Fundada em 17 de setembro de 2006, a ACQUICAMBARÁ foi registrada em cartório no dia 23/04/2007,
contando com a assessoria legal de um advogado do IACOREQ.
68
O decreto 4.887 regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação
e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.
96
IV. Promover os vínculos de solidariedade e cooperação entre os membros da
associação e comunidade.
V. Reivindicar junto aos poderes públicos, ou perante qualquer entidade privada,
toda e qualquer medida que visem [sic] proporcionar a comunidade melhores
condições de vida, moradia, alimentação, educação, saúde, segurança, lazer,
transporte e outras iniciativas de interesse coletivo.
VI. Proteção ao patrimônio histórico, paisagístico, cultural e artístico de todos os
bens de natureza material e imaterial, individual ou coletivamente considerados
portadores de referência à identidade, a ação, à memória do povo negro como
formador da sociedade brasileira. [...]
XI. Promover a criação de um centro de referência afro-brasileiro, biblioteca para
pesquisa, história da comunidade, e de outras comunidades quilombolas. [...]
XIII. Organizar, incentivar e apoiar a promoção de eventos e atividades que
visem a valorização da cultura, das tradições e hábitos sociais da comunidade
(Cambará, 2007:3-4).
A formação de uma entidade jurídica de representatividade é uma exigência legal às
comunidades remanescentes de quilombo. O estatuto imprime um caráter formal-legal à
associação e tende a atribuir uma coesão grupal que tem por trás de si uma série de
negociações, sutilezas, impasses e discordâncias. A diretoria da associação, composta por
vinte e dois membros, tem uma formação heterogênea, incluindo moradores das
comunidades da Palma e da Roseira. Alguns idosos também fazem parte dela, mais em
função da respeitabilidade por eles encarnada, e menos por cumprirem o papel de mediador
em relação aos ‘agentes externos’ (algo a cargo dos mais jovens). Em certo sentido, a
associação é voltada ‘para fora’, pois constitui uma arena privilegiada onde se dão os
embates, as disputas e as reivindicações quilombolas, constituindo um dos espaços, por
excelência, de transcendência do nível local. Mas o contrário não deixa de ser verdade: o
estatuto não é apenas pensado ‘para fora’, mas também ‘para dentro’. Exigi-se de seus
membros a congregação tanto em torno da reivindicação por “melhores condições de vida”,
quanto na organização e incentivo à valorização da “cultura”, “tradições” e “hábitos” da
comunidade. Não se congregam apenas objetivos comuns, mas sim “objetivos afrodescendentes”.
Essas prerrogativas e deveres têm sido levados a cabo, especialmente pelas
lideranças e pelos jovens. A “história da comunidade” recebe um novo ímpeto e sua
recuperação tem sido uma preocupação constante (mais detalhes ver capítulo 4), em
especial nas instâncias de interação com agentes governamentais responsáveis por gerir
políticas públicas às comunidades quilombolas. De fato, essas ocasiões dão ensejo à
97
valorização da cultura e tradições da comunidade. O convite para a “Festa de
Comemoração da Semana da Consciência Negra” em Cambará, na semana de 20 de
novembro de 200669, é extremamente interessante neste tocante. Infelizmente não pude
acompanhar a celebração por estar em período letivo, mas a leitura do convite, por si só,
oferece elementos de grande valia. A comemoração integrou Cambará, Palmas e Roseira. O
convite foi redigido por Márcio. Logo na página inicial consta o caráter de tal festa:
A comemoração e Reflexão da Consciência Negra, formação da Associação
Quilombola Local e os diversos projetos que a comunidade vêm conquistando
através da sua mobilização, organização e especificidades, o que salutarmente
vem mudando constantemente a qualidade de vida da população local, a qual
vivia secularmente excluída de qualquer política pública séria e eficaz (Cambará,
2006:1).
As conquistas do grupo são validadas não só pela mobilização da comunidade, mas
também pelas especificidades e a exclusão histórica. O que era motivo de exclusão – a
pertença racial e étnica – é mobilizado para legitimar a consecução dessas políticas. Isso
também fica expresso na utilização de termos como famílias afro-descendentes, cultura
negra e comunidade quilombola, constantes no convite, que contém cinco páginas. O
objetivo da comemoração consistiu em:
integrar grupos e entidades da cidade de Cachoeira e do interior de Caçapava do
Sul que preservam, valorizam, expressam e apóiam a cultura Afro-descendentes
[sic], e a luta histórica e contemporânea dos Quilombos, ou chamados
Remanescentes de Quilombo (2006:2).
As atividades previstas eram “palestras, atividades artísticas, como dança afro e
capoeira, além da história e realidade da comunidade, que será contada e apresentada de
diferentes formas” (2006:3). As palestras abarcariam três temas: a atuação de diferentes
órgãos e instituições na comunidade, como o IACOREQ, o INCRA, órgãos de governo e
associações de trabalhadores rurais; os “antigos e contemporâneos quilombos”; a
“importância do resgate dos valores e da cultura negra para a promoção e inclusão da
igualdade social” (2006:3).
69
A ACQUICAMBARÁ já havia sido fundada quando essa festa foi realizada, mas não havia sido registrada
em cartório até então.
98
O restante do convite versa sobre itinerários e horários das atividades. Trata-se de
um documento riquíssimo pelos vários aspectos que levanta. De certa forma resume aquilo
que foi analisado neste capítulo. Resumidamente, realçaria os seguintes pontos:
•
A incorporação de princípios de visão e di-visão do mundo social nas disposições
do grupo como um todo e de Márcio, em especial. A linguagem e as categorias
étnicas utilizadas orientam-se para a obtenção de aceitação e reconhecimento de
outros agrupamentos sociais acerca da legitimidade da existência do grupo enquanto
tal (Bourdieu, 1989).
•
As crescentes interações com órgãos e agentes ‘externos’, desde organizações do
terceiro setor passando por associações trabalhistas e órgãos governamentais, bem
como a influência dos mediadores na auto-representação da comunidade.
•
O ato de instituição do grupo enquanto tal sem representar uma ruptura definitiva e
absoluta com os regionais. O convite é dirigido a todos os grupos e entidades que
apóiam a comunidade. “A associação dos trabalhadores da agricultura familiar de
Cachoeira do Sul”, composta majoritariamente por brancos, foi convidada a
participar do evento, assim como os vizinhos descendentes de imigrantes.
•
Um alargamento de inclusão da comunidade. Quem faz o convite são “os moradores
da Comunidade de Palmas e Cambará” (2006:1).
•
Um novo olhar sobre a trajetória histórica do grupo. Os “valores da cultura negra”
devem ser “resgatados”. Os quilombos antigos e contemporâneos foram objeto de
palestra. A história e realidade da comunidade foram contadas e apresentadas.
Na Semana da Consciência Negra do ano seguinte (2007) estive no local. Um baile
estava previsto para comemorar a data. Imaginava a realização de um evento similar ao
ocorrido em 2006. Desta vez, porém, a celebração não congregava tantas pessoas; apenas a
comunidade participaria, contaram-me. A organização da festa ficou a cargo do grupo de
jovens negros. O baile foi igual aos que já havia participado antes: era um momento de
sociabilidade. A expressão da identidade ganha contornos específicos conforme o público
com o qual o grupo interage. Nos locais e ocasiões de afirmação de suas demandas
99
identitárias, a comunidade incorpora à sua auto-imagem as imagens dos outros, nesse
verdadeiro “jogo de espelhos” (Novaes, 1993). Nessa dinâmica atual, é tão importante dar
conta das novas disposições adquiridas e mobilizadas pelo grupo, quanto os meandros da
assunção quilombola.
Ao longo deste capítulo procurei trazer elementos sobre o contexto no qual os
membros de Cambará se acham situados atualmente. Só assim é possível avaliar o
tratamento analítico dispensado aos dados. Tomando por princípio o postulado de que o que
caracteriza a memória e a identidade étnica é a dinamicidade, a variação e a (re) elaboração
em contextos bem determinados, é indispensável trazer esses elementos para compreender
onde surgem as narrativas a serem trabalhadas com maior detalhe nos capítulos quatro e
cinco.
A teoria da etnicidade, e os diferentes autores vinculados a essa vertente de saber e
fazer antropológico, oferece imensas contribuições para compreender situações como essa.
O detalhamento do campo interétnico em Cambará, a assunção quilombola, e as ações e
percepções do grupo frente a essa nova situação são parte constituinte dos fatos narrados. O
deslocamento a ser operado nos próximos capítulos – demarcado no capítulo anterior – não
consiste num refutar total e absoluto das abordagens que salientam o caráter político da
identidade étnica e as reelaborações do passado provenientes daí. Quero chamar atenção – e
espero que os próximos capítulos solidifiquem minhas posições – para a existência de
outros fatores freqüentemente negligenciados pelas abordagens que dão sobrepeso ao
Estado, aos interesses políticos e a plasticidade da memória. Ao narrar e expor uma
trajetória histórica há muito mais em jogo do que o situacionalismo e o presentismo.
***
Em dias agradáveis, Orcindo Machado costuma recepcionar as visitas em seu pátio,
onde dispõe os convidados a seu redor. Senta-se, com sua cadeira de praia, encostado à
parede de sua casa. Dali, Orcindo pode olhar para todas as direções. Do lado direito, sua
parenta. À esquerda, a devastada terra dos italianos e a BR-290, com seu constante tráfego
de carros e caminhões. Em frente, um enorme descampado. Até então eu imaginava que a
100
escassa vegetação situada ao lado esquerdo de seu terreno lhe pertencia. Existe um poço
artesiano muito antigo ali, hoje em dia desativado, mas utilizado por seus parentes no
passado. Certo dia (agosto de 2007), estava sentado no pátio com Orcindo. Tomávamos
chimarrão e trocávamos palavras esparsas. O cantar dos pássaros e o assobio do vento
davam uma mostra da quietude daquele dia. Ao fundo, o som dos automóveis surgia e
lentamente ia diminuindo. Percebi, em dado momento, o número reduzido de árvores à sua
esquerda. Estranhei e perguntei se ele havia derrubado. Respondeu, com certo desdém, que
aquilo nem era dele. Os italianos estavam acabando com o arvoredo. Fiquei abalado ao
presenciar aquilo. Orcindo já vira muito mais.
101
CAPÍTULO 3
A FORMAÇÃO DE UM TERRITÓRIO NEGRO
Além da cerca, a floresta erguia-se como um espectro
no luar, e, em meio ao surdo alvoroço e aos débeis
ruídos daquele deplorável pátio, o silêncio da terra
chegava ao cerne de nosso próprio coração – com seu
mistério, sua grandeza e espantosa realidade da sua
vida oculta.
Joseph Conrad, O Coração das Trevas
Assim exato é que foi, juro ao senhor. Outros é que
contam de outra maneira.
Guimarães Rosa, Grande Sertão: veredas
Neste capítulo, acompanho a formação territorial de Cambará. O período abarcado é
o segundo quartel do século XIX até o final deste. A pertinência deste capítulo resume-se a
dois fatores: em primeiro lugar, traz o contexto imediatamente anterior aos eventos
marcantes na história de Cambará (objeto dos dois próximos capítulos); em segundo lugar,
chama atenção para um aspecto em geral negligenciado pela historiografia que se ocupou
da estrutura fundiária sulina: a existência de territórios negros durante o período escravista.
A reconstituição histórica desse território se faz acompanhar de uma discussão sobre as
relações familiares entre escravos.
3.1 Chegando aos mortos através dos vivos
Uma palavra sobre os meandros deste capítulo. Os moradores de Cambará
dificilmente traçam uma linha genealógica superior a duas gerações ascendentes. Na
ocasião na qual a busca por documentos em arquivos teve início, dispúnhamos de um rol de
102
nomes apontados como os primeiros parentes a se estabelecerem no local. A versão comum
ao grupo é que os antigos haviam fixado residência ali em virtude de uma sobra de campo
de uma medição judicial. Munidos desta informação, fizemos uma consulta em que foi
possível localizar a medição de uma sesmaria, da Palma, transcorrida entre 1886-1888, na
mesma região onde hoje habita a comunidade70.
A leitura deste documento revelou a existência de uma faixa de terras no interior da
sesmaria da Palma ocupada por indivíduos com o mesmo nome de alguns dos antecessores
de Cambará. Para dirimir dúvidas, procuramos informações adicionais, como local de
residência, cor e vínculos familiares. Cruzando dados tivemos certeza da ocupação daquela
área pelo grupo já naquela época (1886-1888). Ocorre que ao contrário da versão corrente
no local, aquelas terras não foram doadas a negros, e sim compradas por pretos-forros em
1835, 1845 e 1855. Por meio dos vínculos familiares expressos nesta fonte, foi possível ter
certeza da ascendência de duas famílias de Cambará – justamente as apontadas pelos atuais
moradores como as mais antigas – em relação a dois ex-escravos que compraram quinhões
nas datas acima referidas. Outros pretos-forros também possuíam seus quinhões na região,
mas foi impossível, até o momento, traçar uma vinculação dos atuais moradores com eles.
Busquei mais informações, ainda limitadas durante o laudo, sobre Cambará no
século XIX. A quantidade de fontes e fundos de pesquisa em arquivos extrapolou os limites
temporais e materiais de uma dissertação de mestrado. A consulta de documentos ficou
restrita à inventários, cartas de liberdade, registros paroquiais de terras, autos de
legitimação de posse e principalmente assentos de batismo e registros de casamento. Os
maiores frutos advieram dessas duas últimas fontes. Por meio delas, foi permitido não só
reconstituir genealogias, mas também perceber a existência de relações de parentesco e
apadrinhamento entre escravos de diversos plantéis, ex-escravos e livres. Os vínculos entre
as famílias hoje residentes em Cambará remontam a àquela época.
Os casamentos, óbitos e batismos da região foram localizados na Mitra Diocesana
de Cachoeira do Sul (MDCS), nos fundos da paróquia de Caçapava. Tal paróquia possuía
livros distintos para o registro de nascimento de escravos e livres. Consultei três livros de
70
APERS. Medições. Cachoeira do Sul. Cartório Cível e Crime, n°699, M 18, E 54. 1886
103
batismo de escravos, que cobrem o período de 1800-1888. Consultei também os assentos
dos livres, abarcando os anos de 1825-1900. A razão do recorte temporal é simples:
somente em 1827 um dos casais de ex-escravos que deu origem a Cambará é liberto. Caso
tivessem um filho libertado na pia, o registro encontrar-se-ia no livro de escravos.
Ressalte-se as lacunas existentes neste tipo de fonte. Não necessariamente todos os
nascimentos eram registrados. Além do mais, é muito comum a mesma pessoa ter o nome
grafado de distintas maneiras e/ou com supressões de sobrenomes. No caso de escravos e
seus descendentes, outras dificuldades se agregam a estas últimas. Existia pouca
preocupação em apresentar informações mais detalhadas sobre eles, diversos homônimos e,
no caso de libertos, distintos sobrenomes eram-lhes atribuídos. Essas lacunas podem ser em
parte mitigadas pelo cruzamento de fontes. Ainda assim, não podemos ter certeza absoluta
dos vínculos em muitos casos.
Feitas essas ressalvas, apresento a estrutura do capítulo. Após retraçar em linhas
gerais a história fundiária da região, argumentarei que a origem de Cambará remonta a
formação e constituição de um território específico que não se enquadra nos modelos
tradicionais da historiografia sul-rio-grandense. Em seguida, chamo a atenção para a
correlação entre os vínculos parentais estabelecidos durante o período escravista e a feição
assumida pela comunidade nos anos imediatos à abolição. As informações históricas
trazidas aqui não são exaustivas, pois meu interesse primário é com uma história local e
minhas pesquisas em arquivos sempre tiveram esse recorte. Evidentemente, informações
mais gerais tornam-se necessárias, mas a reconstituição de um quadro geral da escravidão,
ou da história fundiária sulina, não são os objetivos perseguidos por este texto. Esta
dissertação dialoga com a história a partir da antropologia.
3.2 Ocupação da sesmaria da Palma71
A origem da sesmaria da Palma remonta às disputas dos invasores europeus pelo
domínio das terras na América meridional. Os territórios ao sul da América portuguesa
71
Socorri-me de partes do texto produzido no laudo por Aldomar Ruckert, Alejandro Gimeno e Nola
Gamalho para elaborar alguns trechos desta seção (Anjos; et.alli, 2006).
104
foram ocupados principalmente por objetivos militares. A indefinição fronteiriça entre
Portugal e Espanha acarretou intensos conflitos e a tardia ocupação da região. Os
espanhóis, desde 1630, incentivavam a catequese de indígenas e a formação de reduções.
Na mesma época, os portugueses estimulavam expedições e incursões de bandeirantes
pelos sertões do Brasil. Em 1680, fundaram a Colônia do Santíssimo Sacramento,
entreposto luso no seio dos domínios espanhóis. Em 1737, fundaram o Presídio Jesus,
Maria e José em Rio Grande.
Segundo Aurélio Porto (1926), em 1733, portanto antes mesmo da fundação do
Presídio em Rio Grande, já percorriam a região diversos paulistas que ocuparam as terras
ao norte do Rio Jacuí72, por ser ponto reconhecidamente estratégico para a segurança do
território a ser conquistado e defendido de possíveis ataques castelhanos. A ocupação dos
campos nesta região remonta à primeira metade do século XVIII, e nem sempre se deu por
concessão de sesmarias. O apossamento de campos realengos pelas populações fronteiriças
foi comum.
A Colônia do Sacramento, fonte de inúmeras discórdias entre as Coroas Ibéricas,
estimulou a assinatura de diversos tratados de limites. Em 1750, é assinado o tratado de
Madri, ficando os espanhóis com a posse da Colônia do Sacramento e os portugueses com
os sete povos missioneiros. Já neste momento são concedidas sesmarias para a povoação
das terras ao norte do Rio Jacuí, quando se dá a fundação de Rio Pardo. De fato, a história
de Rio Pardo confunde-se com a história do que veio a ser o Rio Grande do Sul (Laytano,
1983). Com o Tratado de Madrid, a fronteira de Rio Pardo esteve fadada a desempenhar “a
função sociológica de consolidadora das conquistas e domínios português no sul do
Brasil”(Laytano, 1979 [1947]:71). A construção do Forte Jesus, Maria, José, em 1752, e o
povoamento por açorianos, em 1753, foram fundamentais na consolidação, manutenção e
expansão dos domínios portugueses. Todavia, ao contrário da visão mais corriqueira, os
embates territoriais não se limitaram aos invasores ibéricos73.
72
Em seu curso, o Rio Jacuí é navegável entre os municípios de Rio Pardo e Cachoeira do Sul, tendo
desempenhado uma importante função econômica na região.
73
Ver a apologia de Gilberto Freyre, no prefácio escrito ao livro de Laytano (1979 [1947]), à origem lusitana
e à função de lusitanidade de Rio Pardo na formação brasileira. Gilberto Freyre, juntamente com José Lins do
Rego e Dante de Laytano, viajou pelo Rio Grande do Sul em 1939. Freyre cita a contribuição dos alemães,
105
A demarcação dos limites estabelecidos no Tratado de Madri encontrou resistência
entre os indígenas, que se negavam a abandonar as Missões. Investiram contra Rio Pardo e
atacaram sucessivas vezes o Forte Jesus, Maria, José. Os sangrentos combates da Guerra
Guaranítica (1754-1756) resultaram no massacre dos indígenas e na morte de seu principal
líder, Sepé Tiaraju. Negros escravizados foram empregados pelas tropas ibéricas no
combate contra os indígenas. De volta da guerra, traz Gomes Freire de Andrade, general
líder das campanhas militares contra os missioneiros, diversos índios que são arranchados
nas proximidades do Rio Botucaraí74. A documentação indica terem sido aldeados três mil
índios missioneiros no Aldeamento São Nicolau, já em 1757, em Rio Pardo (Langer, 2005).
Em 1769, outro aldeamento surge na capela de São Nicolau, no Passo do Fandango, atual
Cachoeira do Sul. A constituição de aldeamentos se deu em pontos estratégicos da
Província de São Pedro. A ‘assimilação’ de indígenas foi estimulada pelos portugueses no
intuito de agregar contingentes populacionais na salvaguarda e conquista de territórios.
O regime das sesmarias, que promoveu a ocupação oficial do solo no Sul do Brasil,
teve um caráter de concessão a pessoas dotadas dos recursos necessários à povoação e
exploração econômica das terras recém incorporadas ao domínio português, principalmente
militares capazes de assegurar a posse do território. Após o Tratado de Santo Ildefonso, de
1777, foram distribuídas terras ao sul do Rio Jacuí, seguindo o curso dos rios Piquiri,
Irapuá75 e Santa Bárbara. As sesmarias concedidas nesse período alcançaram o rio
Camaquã, tendo este por seu limite ao Sul (Porto, 1929).
italianos, indígenas (circunscrito às Missões) e, como não podia deixar de ser, dos valorosos lusitanos na
ocupação do Estado. Nenhuma menção é feita à presença negra.
74
A historiografia sulina tende a retraçar a formação territorial do estado sob um prisma bipartido, expresso
na polarização de interesses entre Espanha e Portugal, desconsiderando a existência de outra fronteira, no caso
a indígena. Trata-se, portanto, de uma fronteira tripartida na formação do continente do Rio Grande
(Neumann, 2004).
75
“Irapuá. Tem sua principal vertente nas proximidades do Serro do Martins (antiga Sesmaria de Francisco
Martins), município de Caçapava. [...] Pela margem esquerda recebe o Passo Grande; o Irapuazinho que tem
suas nascentes a 375 metros de altitude; o Lageado que é formado em suas nascentes pelos arroios Saldo e
Moinho, que nascem ns proximidades de Caçapava, e se lança no Irapuá junto ao Rincão de Cuba; Pesqueiro
do Machado; Arroio do Pesqueiro que tem sua origem em duas vertentes: Cambará, que nasce no 3º distrito
de Cachoeira correndo de oeste a leste na extensão aproximada de uma e meia légua; Palma, que nasce
também no 3º distrito a que dá nome, percorrendo-o na extensão de duas léguas e, vindo de leste, depois de
fazer uma curva se lança no Irapuá. O Irapuá entra no Município pelo sul e depois de um curso de 15 léguas,
se lança no Jacuí. Limite o 2º e o 3º distritos, percorrendo deste ultimo oito léguas aproximadamente”. (Porto,
1929: 115-116) [grifos meus].
106
Figura 8 – Mapa da Província de São Pedro (1809)
Segundo Aurélio Porto (1926), contam-se dezessete oficiais e soldados que vindos
da campanha contra os índios missioneiros, se estabeleceram no território que dará origem
a Cachoeira, entre eles Manoel Gomes Porto, agraciado pela Coroa Portuguesa com a
Sesmaria da Boa Vista, em 1780 (posteriormente vendida) e a sesmaria denominada
Palmas, em 1784, onde se estabelece com família, gados e escravos. Recebera a terra por
mercê por:
Haver servido a sua Majestade vinte e nove anos pela campanha de Missões e
Colônia, e que depois de se lhe dar baixa por quebrar uma perna na tomada dos
107
fortes do Continente do Rio Grande de São Pedro, sendo Alferes de uma
companhia de cavalaria paga; povoador há 12 anos com pouca diferença76.
Após sua morte, suas terras são fragmentadas entre seus onze herdeiros (fl.241-3).
As sucessivas vendas de seus sucessores deram margem à instalação de outras famílias no
local. Manoel Gonçalves da Trindade77, por exemplo, permuta três pedaços de campo de
sua propriedade no Rincão de Santa Bárbara por outros três campos na sesmaria da Palma,
em 1805. Manoel Gonçalves da Trindade prossegue adquirindo áreas de outros
proprietários nos anos seguintes (fl.255, 262, 266, 268, 270). A reconstrução da cadeia
sucessória da Sesmaria da Palma, promovida pelos próprios interessados, nos dá indicações
de como a sesmaria foi sendo dividida e fragmentada pelos herdeiros.
É neste processo de compra e venda de terras, que caracterizou a fragmentação da
antiga sesmaria, onde as aquisições de negros forros, antecessores dos moradores de
Cambará, estão inseridas, bem como a compra de terras por famílias proprietárias de
escravos. Os dados provenientes tanto de inventários quanto da medição da sesmaria da
Palma, indicam a presença de escravos desde o tempo dos primeiros sesmeiros até o final
do regime escravista. A própria viúva de Manoel Gomes Porto, Teresa Antunes Maciel,
lega 10 escravos quando falece, sendo um deles liberto por bons serviços78.
Há uma imagem cristalizada da presença insignificante de escravos negros no Rio
Grande do Sul. Sua importância relativamente pequena na organização do trabalho no
Brasil Meridional, foi enfática e pioneiramente refutada pelo clássico trabalho de Cardoso
(2003 [1962]). Segundo Cardoso, o escravo negro supriu o mercado de trabalho nas zonas
de povoamento antigo tanto nas lides urbanas e domésticas, quanto na agricultura e na
atividade pastoril. Entretanto, Cardoso enfatizou a importância do braço escravizado nas
charqueadas, minorando sua presença nas áreas da campanha sul-rio-grandense (região de
pecuária extensiva)79. Tal imagem não é exclusiva a este autor; trata-se de uma visão
76
Trecho da carta da sesmaria concedida a Manoel Gomes Porto apensa a medição da sesmaria da Palma
APERS. Medições. Cachoeira do Sul. Cartório Cível e Crime, n°699, M 18, E 54. 1886, fl.125.
77
A referência a Manoel Gonçalves da Trindade não é fortuita, como se verá a seguir.
78
APERS. Inventários. Teresa Antunes Maciel. Cartório Órfãos e Ausentes. Maço 1, Estante 52, nº16. Ano
1823.
79
O termo ‘campanha’, como designação de uma área geográfica específica do estado do Rio Grande do Sul,
é empregado de forma variada. O mais comum é chamar assim a região sudoeste do estado que é constituída,
basicamente, por campos propícios à criação de rebanhos em larga escala.
108
corrente. A dificuldade de manutenção da mão-de-obra escrava por seu preço elevado, a
possibilidade de fuga rumo à fronteira80 e o caráter eminentemente livre do peão nas
estâncias sulinas são as principais razões apontadas pela historiografia para justificar a
pouca compatibilidade entre trabalho escravo e pecuária.
Estudos recentes, baseados em ampla pesquisa documental, vêm revisando essas
teses81. Osório (1999) pesquisou 541 inventários de estancieiros de toda a província de São
Pedro, no período entre 1765-1825, e encontrou a posse de escravos em noventa e sete por
cento dos inventariados. Empregados em diferentes funções nas estâncias de criação,
dividiam suas tarefas entre agricultura e pecuária. É certo também que eram acompanhados
por peões livres nos momentos de pico sazonal (Osório, 1999:139). Em Alegrete82, cidade
estudada por Farinatti (2007) e Garcia (2005), nos períodos de 1825-1865 e 1830 e 1870,
respectivamente, os criadores de gado combinavam trabalho escravo, livre e familiar
conforme seu cabedal. Também Zarth (2002), em pesquisa sobre a região do planalto
sulino, encontrou diversos proprietários escravistas.
Essa bibliografia aponta para a presença significativa da mão-de-obra escrava em
estâncias, contrariando visões arraigadas sobre os processos produtivos e de trabalho nas
zonas de pecuária. Embora os plantéis em geral não ultrapassem vinte almas, grandes
fazendeiros e pecuaristas possuíram cativos que são antecessores diretos dos atuais
moradores de Cambará. Dentre as principais famílias proprietárias – localizadas em
documentos e indicadas pelos relatos – constam os Machado, Trindade, Costa, Lopes,
Corrêa, Magalhães e Fortes83. Muitos dos integrantes dessas famílias casaram entre si, o
que revela a existência de uma estratégia familiar de manutenção de bens e prestígio. No
caso de Alegrete, Farinatti (2007) demonstrou minuciosamente como as teias de casamento
e as práticas sucessórias das elites agrárias gerenciaram as escolhas e as alianças
matrimonias. O mesmo pode ser dito para o caso em pauta aqui.
80
Sobre a fuga de escravos além-fronteira, ver: Petiz (2006).
Ver, por exemplo, as revisões de Maestri, na terceira edição de seu livro (2006), em comparação com as
teses esposadas na primeira edição, datada de 1993.
82
Alegrete desmembrou-se de Cachoeira em 1831. Na época, a vila de São João da Cachoeira abarcava um
imenso território.
83
As propriedades dos Magalhães e dos Fortes eram confrontantes da sesmaria da Palma.
81
109
Os dados trazidos nas próximas seções demonstram a existência de uma ampla rede
de relações entre os escravos dessas famílias. O parentesco entre cativos, libertos e livres
conforma um espaço inscrito no seio de grandes fazendas. Se num caso predomina a lógica
mercantil, noutro as alianças genealógicas são baseadas num regime de ação diferenciado
que configura um território étnico específico. Os laços familiares alimentados durante o
período escravista serão imperativos na decisão de permanência de ex-escravos na região e
da acolhida de outras famílias negras no local. Antes disso, me ocuparei da estrutura
fundiária da região e da formação territorial de Cambará por meio da reconstituição do
parentesco entre os pretos-forros que adquiriram seus quinhões.
3.3 Brechas na Palma
A produção historiográfica sobre a estrutura fundiária do Rio Grande do Sul em
geral trata-a como um espaço dividido entre os grandes fazendeiros de gado, charqueadas e
agricultura colonial, dando pouca atenção ao que Farinatti (1999) e Zarth (2002)
denominaram de “lavradores nacionais”: um expressivo contingente de homens livres que
sobreviviam através da lavoura de alimentos e não haviam se tornado grandes estancieiros
nem eram colonos migrantes84. Categoria situada entre os grandes senhores e os escravos,
os lavradores nacionais constituíram um segmento relativamente tolerado em suas
estratégias de apropriação de terras por abastecerem o mercado interno e ocuparem regiões
pouco valorizadas pelas camadas proprietárias. Em um contexto onde as áreas de “campo”,
propícias à pecuária extensiva, eram muito valorizadas, a ocupação das “florestas virgens
da fronteira agrícola” (Zarth, 2002:174), foi relativamente tolerada.
Na mesma linha de investigação, duas pesquisas sobre Alegrete (Farinatti, 2007;
Garcia, 2005) demonstraram a improcedência da dicotomização entre estancieiros e
peões/escravos na composição da região da Campanha. Apesar da inegável concentração
fundiária dos estancieiros, em sua maioria militares agraciados com sesmarias, uma larga
base de pequenos e médios produtores, com ou sem a posse jurídica da terra, encontraram
84
O estudo de Castro (1987) sobre “lavradores pobres” em Capivary (RJ) é inovador em termos da
historiografia brasileira.
110
seu espaço (Farinatti, 2007:21)85. O apossamento de terras em regra era precário, pois podia
ser um arranchamento, com a permissão do proprietário, em terras alheias (Farinatti,
1999:31), a ocupação de pontos estratégicos da estância por “posteiros” (Zarth, 2002:180) e
sujeito à expropriação, especialmente após a Lei de Terras (Garcia, 2005:167).
A própria localização dessas camadas populacionais é tortuosa nas fontes
disponíveis. Os inventários sub-representam as famílias e indivíduos com poucos recursos
pecuniários. De igual maneira, os registros paroquiais de terra carecem de
representatividade, além de discriminarem muito imprecisamente os limites territoriais. No
caso em pauta, nenhum dos ex-escravos residentes no interior da sesmaria da Palma registra
suas posses86. Apesar dessas dificuldades, há um imenso campo aberto à investigação. Para
os fins desta dissertação, interessa analisar as condições pelas quais ex-escravos adquiriam
e consolidaram espaços próprios.
Por meio da leitura da medição da Palma foi possível localizar, direta ou
indiretamente, as aquisições de terras por ex-escravos, no interior desta sesmaria. O pretoforro Domingos de Mello comprou, em 1831, “um pedaço de campo” por “quarenta rezes
de criar”87. Sabemos da existência de outro ex-escravo proprietário de terras consultando as
confrontações dos terrenos negociados. Em uma transação, uma das noras de Manoel
Gomes Porto (sesmeiro), mencionou:
Digo eu abaixo assinado que entre os meus bens que possuo livres e
desembaraçados de hipoteca, e bem assim um rincão de campo, e matos que
divide pelo Norte no fundo do meu cercado começando do lugar do marco junto
ao valo do preto-forro Caetano (fl.699 [grifos meus]).
Confirmou-se a presença de negros libertos nesta área por outras fontes. Em um ato
possessório movido por Alípio Corrêa da Silva88, em 1874, libertos figuram como
85
Ambos autores utilizaram uma importante fonte na qual não constam dados atinentes a Caçapava do Sul e
Cachoeira do Sul. AHRS. “Mapa numérico das estâncias nos diferentes municípios da Província, de que até
agora se tem conhecimento oficial, com declaração de animais que possuem e criam por ano, e do número de
pessoas empregadas no seu custeio”. Estatísticas. Maço 2.
86
APERS. Registro Paroquial de Terras Cachoeira, n°10 (1854-1860).
87
APERS. Medições. Cachoeira do Sul. Cartório Cível e Crime, n°699, M 18, E 54. 1886, fls.368-9.
88
O nome de Alípio Corrêa da Silva aparece grafado em diversas fontes como Elípio Corrêa da Silva. Grande
proprietário de escravos, Alípio lega 20 escravos quando falece, inclusive alguns antecessores das famílias de
Cambará, como se verá adiante
111
depoentes e testemunhas. São eles: Elias Gonçalves da Trindade, pardo, casado, 29 anos,
lavrador, natural da Província, residente no 2o distrito do município; Flaubiano João da
Rosa e Silva, preto, 60 anos, casado, lavrador, natural desta Província, residente no 2o
distrito; Nicolau Gonçalves da Trindade, preto, 42 anos, solteiro, lavrador, natural da
Província, residente no 2o distrito; Matheos de Mattos Machado, preto, solteiro, 55 anos,
lavrador, africano, residente no 2o distrito89.
Não sabemos se os libertos arrolados como testemunhas nesse ato possessório eram
proprietários de terras ou se viviam arranchados em propriedades alheias. O certo é a
presença de ex-escravos no interior da sesmaria da Palma, indicando a heterogeneidade da
composição social nas áreas de pecuária extensiva. Restam dúvidas, igualmente, sobre o
destino desses sujeitos. Provavelmente permanecerá irresolvida a questão sobre quem era o
preto-forro Caetano, confrontante das posses de uma proprietária residente nas terras
outrora concedidas a um sesmeiro, assim como outros indivíduos. Os dados à disposição
até o momento indicam a descendência genealógica dos atuais moradores de Cambará de
pelo menos dois dos pretos-forros. São eles: João Antonio e Joaquim Antonio. Ambos
adquiriram quinhões no local, nos anos de 1835 e 1845-1855, respectivamente.
Acompanhemos brevemente a trajetória de cada um deles, começando com João Antonio.
O senhor de João Antônio era Manoel Antonio Ruivo. Natural de Rio Grande,
Manoel Ruivo se estabeleceu na região no final do século XVIII, ao comprar campos de
Alexandre Luiz de Queiroz90 (confrontante da sesmaria da Palma). Faleceu em 1827,
deixando nove filhos do matrimônio com Maria do Nascimento. O inventariante de Manoel
Ruivo foi o genro deste, Inácio Machado da Silva. Este dado é importante, pois os
sucessores de Ruivo, assim como os do escravo João Antonio, adotarão o sobrenome
Machado91. Sobrenomes parecem ser bastante plásticos na trajetória de Manoel Ruivo.
Filho de Antonio Pereira Albernaz e Catarina da Conceição, chamava-se Ruivo. Já seu
primogênito não adotou o sobrenome nem dos avós paternos, nem da mãe ou do pai. Nem
Pereira, nem Albernaz, nem Nascimento, nem Ruivo; chamava-se Manoel Machado o filho
89
APERS. Cachoeira do Sul. Cartório Cível e Crime. Possessórias. Maço 26, Estante 54, n°765. 1874.
AHRS. Medições Judiciais. Medição Judicial da Fazenda de Santa Bárbara. Cachoeira. N°482
91
APERS. Inventários (Manoel Antonio Ruivo). Cartório de Órfãos e Ausentes. Cachoeira. 1827. Maço 2,
Estante 52, n°34
90
112
de Manoel Antonio Ruivo. “Viva pois a história, a volúvel história que dá para tudo”, disse
Brás Cubas em um de seus devaneios do além-mundo (Assis, 2004 [1880]:532)92.
Deixando de lado as inventividades e pacholices familiares brilhantemente
desnudadas por Machado de Assis, nota-se que o capital semovente de Ruivo sustentava-se,
basicamente, nos braços escravizados. Seus bovinos, eqüinos e ovinos somavam um
patrimônio de 773.000 réis. Já seus doze escravos (seis homens e seis mulheres, quatro
delas menores de dez anos) valiam quase dois contos de réis. Dono de uma légua de campo
e uma “casa nova de pedra” (fl.9), possuía três contos e quinhentos mil réis de patrimônio
fundiário.
No testamento de Ruivo, anexado ao inventário (fl.14), dispõe-se que a escrava
Rita, 35 anos, casada com o “escravo idoso de nome João”, fique liberta após a morte do
testamentário. “Pelo amor a Deus” e “pelos bons serviços prestados”, metade do valor de
João Antonio fica abatido pela mesma disposição. Talvez aproveitando a divida de 550.000
réis legada por Ruivo – ou talvez por algum acordo ‘de boca’ – o escravo João, 50 anos,
avaliado em 100.00 réis, requere sua liberdade após pagar metade de seu valor (fl.37).
Obteve sucesso no seu intento e na libertação de sua filha, Libânia, com dois anos de idade,
após pagar 60.000 réis ao inventariante, que anui com tudo (fl.26). De alguma maneira,
João Antonio e sua família conseguiram acumular uma considerável quantia de dinheiro.
Sete anos após pagar 110.000 réis pela sua liberdade e de sua filha, adquiriu seu pedaço de
campo93.
Antes de esmiuçar esta aquisição, dirijamos um pouco à atenção para a sucessão
familiar do casal João Antonio e Rita Maria. Em 1848, a filha do casal, Libânia, casou com
Francisco Fernandes de Magalhães, natural da Bahia94. Ao menos um filho o casal teve:
Manoel, nascido em 1860, teve por padrinhos um escravo e uma escrava95. Não localizei o
registro de nenhum outro filho de João Antonio e Rita Maria nos assentos de batismo
existentes em Cachoeira do Sul. Novamente a medição da sesmaria da Palma fornece
92
Outra filha de Ruivo chama-se Ana Maria do Espírito Santo
APERS. Medições. Cachoeira do Sul. Cartório Cível e Crime, n°699, M 18, E 54. 1886, fl.745.
94
MDCS. Casamentos. Paróquia Caçapava. Livro 2 (1838-1863), fl.71v.
95
MDCS. Batismos. Paróquia Caçapava (Livres). Livro 4 (1861-1863), fl.37v. Os padrinhos são Manoel
Francisco e Juliana, escravos de Joaquim Leandro Ferreira.
93
113
indícios sobre seus herdeiros. Inácio João Machado e Manoel Thomé da Silva aparecem
como herdeiros do casal (ao que tudo indica eram filhos)96. Os relatos indicam serem Inácio
João e Manoel Thomé antecessores de dois atuais moradores de Cambará: Orcindo
Machado e Geraldo Trindade da Silva. A documentação compulsada está em conformidade
com a ascendência genealógica apontada por esses dois senhores (Orcindo e Geraldo).
Antes de esquematizar a sucessão familiar no local, apresentarei alguns dados provenientes
dos arquivos, a começar com Inácio João, indivíduo do qual possuo informações mais
detalhadas.
Em 1851, João Inácio Machado, preto liberto, contraiu matrimônio com Camila
Maria Martins, parda liberta97. Foi possível localizar o nascimento de cinco filhos do casal:
Quadro 1
Filhos João Inácio Machado e Camila Maria Martins98
Nome
Tertulina
Benta
José
Damascena
Ramão
Padrinhos
Ano
(nascimento)
Manoel Xavier e Maria Martinha
1853
Pedro Antonio Gonçalves e Joaquina Florência.
1858
Francisco de Magalhães, crioulo e Anacleta, crioula escrava
1860
de Jesuíno Pereira da Trindade
Januário Antônio das Mercês e Inocência Maria da Silva
1879
Apolinário Trindade e Benta Maria Inácia
1881
Um primeiro aspecto a chamar atenção é o lapso temporal entre a concepção de
Tertulina e Ramão. É bem provável que Camila Maria tenha contraído matrimônio antes
dos dezesseis anos, algo, aliás, comum à época. No caso de Tertulina, Benta e José, há
96
APERS. Medições. Cachoeira do Sul. Cartório Cível e Crime, n°699, M 18, E 54. 1886, fl.745. Em função
da medição da sesmaria da Palma, os herdeiros de João Antonio e Rita Maria fazem-se representar nos autos
no intuito de garantir seus domínios (mais detalhes ver próximas páginas). Não fica expressa a vinculação de
nenhum dos herdeiros arrolados, mas os primeiros a serem mencionados são João Inácio Machado e Manoel
Thomé da Silva. Via de regra, são os filhos a serem primeiramente listados. Todavia, se resta a dúvida quanto
à filiação, não resta dúvida quanto à sucessão.
97
MDCS. Casamentos. Paróquia Caçapava. Livro 2 (1838-1863), fl.101.
98
Os assentos estão localizados, respectivamente, em: MDCS. Batismos. Paróquia de Caçapava (Livres).
Livro 4, 1849-1861, fls. 55v, 145v. Livro 5 (1861-1863), fl.39v. Livro 8, (1882-1887). fls.104, 128v.
114
elementos que atestam a escolha de escravos e ex-escravos na formação de alianças99. Há
uma boa possibilidade de Pedro Antonio Gonçalves, padrinho de Benta, ser filho de
Joaquim Antonio (o outro preto-forro dono de terras na sesmaria da Palma), indicando uma
aliança, talvez a primeira, entre as famílias dos pretos-forros.
Tertulina foi mãe antes mesmo do nascimento de Damascena e Ramão. Crioulaforra, Tertulina Inácia concebeu Benvinda e Jerônimo, nascidos, respectivamente, em 1872
e 1874100. Dado importante é a escolha de Manoel Thomé da Silva como padrinho de
Jerônimo. Herdeiro de João Antonio, Manoel Thomé será assassinado, em 1905, pelo irmão
de Tertulina, José Martimiano Machado, como se verá no próximo capítulo. Não localizei
nenhum outro registro de nascimento desta família, mas informações complementares estão
presentes em outra fonte. Em 1923, os filhos de João Inácio e Camila Maria vendem alguns
pedaços de campo (mais detalhes ver próximo capítulo)101. No registro desta transmissão,
estão listados seis herdeiros do casal, dentre eles João Elias Machado e Ana Machado (não
localizados nos assentos de batismo). A documentação compulsada vai de acordo com a
memória genealógica da comunidade. Amparados nessas duas fontes, é possível estabelecer
uma vinculação entre o preto-forro João Antonio e Orcindo Xavier Machado, atual morador
do local:
99
O cruzamento de informações permite supor que Manoel Xavier, padrinho de Tertulina, era escravo de
Vicência Rosa dos Anjos, proprietária de escravos moradora da região. Em 1857, nasce Sebastião, filho de
Manoel Xavier, escravo de Vicência Rosa dos Anjos, e Maria Martinha, forra. O casamento entre ambos se dá
em 1840, quando Manoel da Costa, escravo de Vicência Rosa dos Anjos, casa-se com Maria Martinha, parda
filha de Ana Martinha. Como se vê, é provável que Manoel fosse africano. MDCS. Batismos (livres).
Paróquia de Caçapava. Livro 4, 1849-1861, fl.118v. MDCS. Casamentos. Paróquia de Caçapava. Livro 2,
1838-1863, fl.15.
100
MDCS. Batismos (livres). Paróquia de Caçapava. Livro 7, fl.87v.
101
APERS. Livro de Registro de Transmissão e Notas 3°Distrito. Cachoeira. Livro 8, Fundo 11, Estante 26,
fls.62v-63; 57-58.
115
Figura 9 – Genealogia Orcindo Xavier Machado102
João
A ntonio
Rita
Maria
João
Inác io
Camila
Maria
1853
1858
1860
1879
1881
Tertulina
Benta
Jos é
Damas c ena
Ramão
João
Elias
A na
Maria
Lúc ia
Xav ier
1929
79
Orc indo
Xav ier
Mac hado
É possível estabelecer também uma vinculação entre João Antonio e Rita Maria à
família de Geraldo Trindade da Silva (morador contemporâneo) via Manoel Thomé da
Silva, doravante Thomé. Thomé casou-se com Beatriz Maria Martins em 1883103. Localizei
o batismo de apenas uma filha do casal: Emília, nascida em 1885104. Neste caso, as
informações mais detalhadas provêm dos relatos. A genealogia abaixo é feita,
predominantemente, com base na memória genealógica da comunidade:
102
A vinculação entre João Antonio e Rita Maria com João Inácio é expressa por uma linha pontilhada por
não possuir certeza sobre qual a relação exata entre eles, apesar de tudo indicar ser João Inácio filho daqueles.
103
MDCS. Casamentos. Paróquia de Caçapava. Livro 4 (1873-1890), fl.46v.
104
MDCS. Batismos (Livres). Paróquia de Caçapava. Livro 9 (1882-1887), fl.81.
116
Figura 10 – Genealogia Geraldo Trindade da Silva
João
A ntonio
Rita
Maria
D. 1905
Manoel
Thomé
da Silv a
Maria
Beatriz
Martins
1885
Emília
A maro
da
Silv a
A mbrosina
V irginia
da
Silva
Ces arino
Trindade
1931
77
Geraldo
da
Silv a
Até agora tracei a descendência genealógica do preto-forro João Antonio. A partir
deste momento, tratarei do preto-forro Joaquim Antonio. Joaquim pertencia a Antonio
Gonçalves da Trindade, tendo a liberdade concedida pelo senhor em 1835, com a condição
de acompanhá-lo até a morte. Antonio Gonçalves da Trindade era irmão de Manoel
Gonçalves da Trindade. Este último, por sua vez, era casado com a filha do sesmeiro
Manoel Gomes Porto. Para facilitar e com o intuito de não confundir e enfastiar os leitores
com esse enorme rol de nomes:
117
Figura 11 – Genealogia Senhorio Gonçalves da Trindade105
Manoel
Gomes
Porto
Teresa
A ntunes
Maciel
V ic ência
Ros a dos
A njos
Manoel
Gonç alv es
da Trindade
A ntonio
Gonç alv es
da Trindade
Os Gonçalves da Trindade possuíam um plantel considerável, como veremos logo a
seguir. Joaquim Antonio casou-se com Florência Simões Gonçalves (também grafada como
Florência Joaquina). Não se sabe quando e em quais circunstâncias o casal contraiu
matrimônio. Além da medição da sesmaria da Palma, outras fontes indicam a união de
Joaquim e Florência. Foram localizados quatro assentos de batismos dos filhos do casal.
Nesses assentos, Joaquim aparece ora como originário da Costa da África, ora como de
nação Guiné. Florência era crioula, nascida em Rio Pardo. Os filhos são: Joaquim (1839),
Pedro (1840), Lidoina (1843) e Inocência (1846)106. No caso de Joaquim, seus padrinhos
são escravos. Quanto aos outros, tudo indica serem brancos os padrinhos107.
Em 1886, os filhos de Joaquim e Florência procederam ao inventário dos bens
havidos pelos pais. Joaquim havia falecido doze anos antes, em 1874; Florência, em 1878.
Constam como herdeiros: Bento, João, Inocêncio, Manoel, Lidoina e Antonia Florência das
Mercês, neta108. Não sabemos ao certo de quem Antonia é filha, embora possamos fazer
105
Essas informações foram inferidas a partir da consulta da medição da sesmaria da Palma.
MDSC. Batismos. Paróquia de Caçapava. Livro 3b (Livres), fls.129, 207, 207v e 268.
107
O padrinho de Joaquim é Matias, escravo de Ricardo José de Magalhães (confrontante da sesmaria da
Palma) e Maria, escrava de Thomaz Antonio de Bitencourt.
108
APERS. Inventários (Joaquim Antonio Gonçalves e Florência Joaquina das Mercês). Cartório Cível e
Crime. Cachoeira. Maço 3, Estante 54, n°105. 1886.
106
118
algumas inferências. O importante a reter é que Antonia casou com João Elias Machado.
Ou seja, a neta de Joaquim Antonio casou-se com um descendente de João Antonio109.
Figura 12 – Aliança entre João Antonio/Joaquim Antonio
João
A ntonio
Rita
Maria
Inác io
João
Mac hado
Maria
Lúc ia
Xav ier
Ramão
Mac hado
D. 1874
D. 1884
Joaquim
A ntonio
Florênc ia
Joaquina
Camila
Maria
Martins
João
Elias
Mac hado
A ntonia
Florênc ia
das Merc ês
1929
79
Orc indo
Xav ier
Mac hado
A união de João Elias e Antonia Florência certamente solidificou os laços entre
essas duas famílias. Daí ser possível supor que em algum momento do século XIX os
quinhões adquiridos pelos pretos-forros passaram a ser de uso comum. A reconstrução da
cadeia dominial da região110, a medição da sesmaria da Palma e os relatos orais indicam o
uso comum do território de Cambará até meados do século XX. De fato, só podemos
109
Não se sabe a data exata do casamento de Antonia e João Elias. Sabe-se do casamento pelos dados
constantes na transmissão de terras feita em 1923, já citada acima, onde João Elias Machado e Antonia
Florência das Mercês (também grafada como Antonia Florência das Mercedes) são citados como cônjuges.
APERS. Livro de Registro de Transmissão e Notas 3°Distrito. Cachoeira. Livro 8, Fundo 11, Estante 26,
fls.62v-63; 57-58.
110
Durante o laudo, esta tarefa foi competentemente realizada por Aldomar Ruckert, Nola Gamalho e
Alejandro Gimeno.
119
compreender a história territorial de Cambará, no presente e no passado, se fizermos
referência ao parentesco. Este é o próximo tópico do capítulo.
3.4 Teias de parentesco
Os relatos foram fundamentais na definição da sucessão genealógica entre escravos
e os atuais membros do grupo. Como disse certa vez Jorge Pereira Lopes, onde tinha uma
família de branco sempre tinha uma família de moreno também. Algumas pessoas guardam
reminiscências sobre quem exatamente era o nhanhô dos antigos. Outras, mencionam
apenas a família a quem determinado parente pertenceu. Com o decorrer do tempo, as
pesquisas foram se afunilando cada vez mais em função da localização dos proprietários de
escravos apontados pelos relatos. A medição da sesmaria da Palma foi, igualmente, valiosa
fonte de informações, pois a reconstrução da cadeia sucessória, impetrada pelos próprios
interessados, permitia estabelecer os laços genealógicos entre o senhorio. As famílias mais
aquinhoadas forjaram alianças entre si ao longo do século XIX no intuito de evitar ao
máximo a fragmentação da terra pelos herdeiros. A genealogia abaixo, sem ser exaustiva,
serve de ilustração dessas estratégias matrimoniais das ‘elites’ do local. Como demonstrou
Farinatti (2007) em um recente estudo sobre a “elite agrária” de Alegrete, a concessão de
sesmarias gerou uma imensa concentração de terras entre poucos aquinhoados que
reproduziram suas posições e privilégios ao longo dos anos. Porém, tal elite não é imutável
e estanque. Uma série de estratégias sociais111 foi desenvolvida pelo senhorio na tentativa
de aceder ou garantir as posições mais elevadas e prestigiadas naquele contexto, dentre elas
as alianças matrimoniais.
111
“Quando se fala em estratégias sociais, é preciso ter cuidado para não cair em interpretações demasiado
funcionalistas ou hiper-racionalistas. Ao afirmar que as alianças matrimoniais e as atividades sócioeconômicas faziam parte das estratégias sociais desempenhadas por aquelas famílias, estou falando de
estratégia como a empregou Giovanni Levi, distanciado-se tanto da idéia de um sujeito totalmente livre e
consciente para exercer sua vontade, quanto de uma macro-estrutura dada a priori que determina
mecanicamente a atuação dos mesmos. Ao contrário, Levi propõe a visão da atuação estratégica em sociedade
como uma ativa obra de transformação do mundo natural e social, empregando as margens de liberdade que
lhes permitem os condicionantes estruturais” (Farinatti, 2007:34) [grifos no original].
120
Figura 13 – Genealogia Senhorio
Manoel
Gomes
Porto
José
Corrêa
da Silva
Francisco
Antonio
da Costa
Zeferino
Baptista
Lobato
Maria
Bárbara
Jardim
Maria
Angélica
Lobato
Benta
Jardim
Lobato
Joana
do Prado
Costa
Francisco
Antonio da
Costa Junior
Maria
Joaquina
Lobato
Vitor
Antonio
da Costa
Maria
Joaquina da
Conceição
Alípio
Corrêa
da Silva
Severina
de Souza
Trindade
Lauro
Antonio
da Costa
João
Antonio
da Costa
121
Quitéria
Joaquina
da Silva
Vicência
Corrêa
Walmarath
Teresa
Antunes
Maciel
Vicência
Rosa dos
Anjos
Manoel
Gonçalves
da Trindade
Manoel
Gonçalves
da Trindade
Severina
Corrêa
Trindade
João
Felipe
Walmarath
As informações disponíveis a respeito dos senhores de escravo da região facilitaram
minha busca por dados sobre seus plantéis nos livros de assento de batismos. As pesquisas
tiveram por intuito verificar a existência, ou não, de relações familiares e de
apadrinhamento entre escravos. Nas próximas páginas, apresento as informações
computadas nessas fontes. Comecemos com o plantel da família Gonçalves da Trindade.
Quadro 2 – Parentesco/Apadrinhamento
Escravos Manoel Gonçalves da Trindade (pai)112
Escravo (a)
Inácia
Filiação
Isabel
Maria
Manoel e Vitória
Barbina
Josefa
Faustino
Micaela
Mariana
Manoel e Vitória
Vitória
Manoel e Vitória
Padrinhos
Pascoal Seraju e Maria Angélica, índios das
Missões.
Antonio Gonçalves da Trindade e Brizida
Maria
Rica do Preto [?] e Maria Manuela
José e Joana, escravos de José Corrêa da Silva
João e Josefa, escravos de José Alves Natel
Maria Francisca de Queiroz e Joaquim Soares
da Trindade
Ano
1811
1818
1820
1824
1826
1827
Os padrinhos de Micaela e Maria certamente eram brancos. Quanto a Barbina há
dúvidas, pois a supressão de sobrenomes é mais comum entre libertos. Ainda assim, não
possuo elementos suficientes para chegar a uma conclusão. Chama atenção o caso de
Inácia: foi afilhada de índios missioneiros. Eis aí uma fonte a ser explorada nas
investigações sobre o destino dos índios após a Guerra Guaranítica: os registros
eclesiásticos. Passemos agora ao plantel da viúva de Manoel Gonçalves da Trindade,
Vicência Rosa dos Anjos.
112
MDCS. Batismos (Escravos). Paróquia de Caçapava. Livro n°1 (1800-1845), fls.37v, 60v, 65v, 71v, 77v,
83v .
122
Quadro 3 – Parentesco/Apadrinhamento
Escravos Vicência Rosa dos Anjos113
Escravo (a)
Bento
Filiação
Florência
Nicolau
Luciana
Manoel, pretoforro e Vitória
Zeferina, negra
crioula.
Vicência, parda.
Vitorina
Vicência, parda.
Manoela
José
Felisberto
Vicência
Vitorina
Vitorina
Francisca
Maria
Pedro
Isabel
Maria
Vitorina
Maria
Padrinhos
Venâncio Matias d'Azevedo e Anna Joaquina
da Silva
João Alves de Farias e Ana Maria do Espírito
Santo
Adão e Cecília Silveira
Feliciano Corrêa da Silva e Felicidade
Perpétua
Emilio da Silva Picada e Leduina Joaquina da
Silva
Claro e Maria, libertos
João Antonio das Mercês e Auta, escravos.
Elias Gonçalves da Trindade e Luciana da
Trindade
Francisco Antonio da Costa e Maria Francisca
da Trindade
Laurinda Maria Martins e Manoel Martin
Thomé, escravo de Alípio Correa da Silva e
Maria, escrava da mesma.
Ano
1832
1834
1839
1842
1842
1851
1859
1860
1860
1863
1864
Em três dos onze assentos de batismo compulsados, escravos ou libertos foram
padrinhos. É lícito supor que Vitorina, mãe de José, fosse filha de Vicência, indicando a
permanência de três gerações de uma mesma família sob o jugo do cativeiro. Já o casal
Manoel e Vitória, estave a meio caminho da liberdade. Manoel era livre, mas Vitória não.
Por essa razão, o filho Nicolau nasceu escravo, pois é o ventre que define o estatuto da
pessoa. Foi possível localizar também três cartas de liberdade de escravos do plantel de
Vicência Rosa dos Anjos: Florência e seu filho Bento, em 1828 (bons serviços); Manoel,
preto congo, (por meio do pagamento de 500.000 réis) em 1851; Luciana, em 1855 (com a
condição de acompanhar a senhora até a morte)114.
113
MDCS. Batismos (Escravos). Paróquia de Caçapava. Livro n°1 (1800-1845), fls.108, 116, 147, 186v,
186v; MDCS. Batismos (Escravos). Paróquia de Caçapava. Batismos (Escravos). Livro n°2, fls.58, 96, 112,
112.
114
APERS. Livro Notarial de Transmissão e Notas. Caçapava. Livro 1 (1834-1849), fl.79v. APERS. Livro
Notarial de Transmissão e Notas. Caçapava. Livro 3 (1851-1853), fl.3. APERS. Livro Notarial de
Transmissão e Notas. Caçapava. Livro 4 (1874-1875), fl.75
123
Os herdeiros de Vicência Rosa dos Anjos e Manoel Gonçalves da Trindade
possuiam um número menor de cativos em seus plantéis. Foge às propostas desta
dissertação avaliar os motivos disto, embora alguns fatores sejam evidentes (partilha
familiar, libertação, crise do regime servil). Analisemos o plantel de dois filhos varões do
casal. Comecemos com Gaspar de Souza Trindade:
Quadro 4 – Parentesco/Apadrinhamento
Escravos Gaspar de Souza Trindade115
Escravo (a)
Ciriaco
Damiana
Maria
Filiação
Tomázia
Tomázia
Fausta
Torquato
Teodora
Juvenal
Fausta
Josefa
Apolinária
Padrinhos
Manoel e Joaquina, escravos
Antonio Líbano Maciel e Rita, escrava
Paulo Leodoro de Souza e Catharina, escrava
de Perpetua Jardim de Menezes.
Flaubiano da Rosa e Juliana da Rosa
Tito e Pacífica, escravos
Francisco e Josefa, escravos
Ano
1850
1851
1867
1869
1863
1864
Vê-se a alta incidência de apadrinhamento aqui: cinco dos seis casos obtidos. Já
Manoel Gonçalves da Trindade (filho), possuia um número ainda menor de escravos:
Quadro 5 – Parentesco/Apadrinhamento
Escravos Manoel Gonçalves da Trindade (filho)116
Escravo (a)
Jorge
Maria
Sabina
Filiação
Joana, preta da
Costa
Luisa
Luisa
Padrinhos
Manoel, escravo do mesmo, e Florença, preta
liberta.
Manoel Xavier e Maria Martinha
Antonio Manoel Correa da Silva e Valentina
Correa da silva
Ano
1842
1851
1853
Há elementos de sobra que confirmam serem Manoel Xavier e Maria Martinha
libertos. Em 1840, Manoel, da Costa da África, escravo de Vicência Rosa dos Anjos,
115
MDCS. Batismos (Escravos). Paróquia de Caçapava. Livro 2 (1845-1870), fls.54, 64v, 112 e 150. MDSC.
Batismos (Livres). Livro 6 (1864-1874), fls.33v e 71.
116
MDCS. Batismos (Escravos). Paróquia de Caçapava. Livro 1, fl.186. MDSC. Batismos (Escravos).
Paróquia de Caçapava. Livro 2 (1845-1870), fls.58 e 65.
124
casou-se com Maria Martinha, parda liberta117. Tudo indica tratar-se do mesmo Manoel a
comprar sua liberdade em 1851 (ver acima) por 500.000 réis. O importante a reter é a
permanência e o estabelecimento de laços parentais entre escravos e seus antigos
companheiros de cativeiro.
Em pelo menos 12 casos, dentre os 26 assentos de batismo localizados de cativos
pertencentes à família Gonçalves da Trindade, escravos ou libertos foram padrinhos (em
um dos casos, índios missioneiros levaram uma criança à pia). Havia também um casal no
plantel. Esses dados revelam uma incidência relativamente alta de apadrinhamento entre
escravos, libertos e seus descendentes. Cabe lembrar também que o preto-forro Joaquim
Antonio pertencia a um membro da família Gonçalves da Trindade.
Nos detenhamos agora nos plantéis de outros proprietários residentes na sesmaria da
Palma. A genealogia nos demonstra as alianças forjadas entre os Gonçalves da Trindade e
os Corrêa, Costa e Walmarath. Analisemos caso a caso. Alípio Corrêa da Silva certamente
foi o indivíduo que empregou em mais ampla escala a mão-de-obra servil. Dezessete
batismos foram localizados:
Quadro 6 – Parentesco/Apadrinhamento
Escravos Alípio Corrêa da Silva118
Escravo (a)
Agnelo
Felícia
Rochael
Samuel
Zoraida
Dario
Nodário
Filiação
Teresa
Domingas
Teresa
Domingas
Domingas
Teresa
Domingas
Padrinhos
Ignácio do Rio e Joana Maria
Termino e Constança, escravos
Israel e Floriana, escravos.
Vicente e Maria, escravos.
Jeremias e Maria, escravos.
Manoel e Teodora, escravos.
Estevão José do Nascimento e Pacífica,
117
Ano
1852
1853
1854
1854
1856
1856
1860
MDCS. Casamentos. Paróquia de Caçapava. Livro 2 (1838-1873), fl.15. Manoel Xavier e Maria Martinha
provavelmente são os mesmos que foram padrinhos de Tertulina, filha de João Antonio e Rita Maria (ver
genealogia acima).
118
MDCS. Batismos (Escravos). Paróquia de Caçapava. Livro n°2 (1845-1870), fls.108, 116, 147, 186v,
186v; MDCS. Batismos (Escravos). Paróquia de Caçapava. Livro n°3 (1870-1888), fls.58, 96, 112, 112.
MDSC. Batismos (Livres). Livro 6 (1864-1874), fls. 19, 87 e 87/ fls.80, 80v e 142v. Talvez por lapso do
escrivão, existem dois livros que foram numerados como sendo o sexto livro de batismo, além de o livro
registrar tanto o nascimento de escravos como de livres no mesmo local, contrariando a disposição dos
batismos. A numeração do livro inicia duas vezes. Assim, separo por barras [/] para marcar a numeração.
MDCS. Batismos (Escravos). Paróquia de Caçapava. Livro 3 (1870-1888), fls.53v e 53v.
125
Benvinda
Domingas
Inês
Joana
Odila
Joana
Euletério
Hermes
Isabel
Gil
Domingas
Joana
Domingas
Domingas
Joel 119
Antonia
Plácido
Joana
Celina
escrava.
Leocádio Firmino Joaquim de Santana e Maria
Antonia da Conceição
Leocádio Firmino Joaquim de Santana e Maria
Antonia da Conceição
Manoel Luiz Osório Torres e Aurora Maria da
Silva Souto
Olivério e Francisca, escravos.
Antonio, escravo e Ludovina, forra
Antonio Silvestre Maciel e Matildes Maciel
Antonio Joaquim Lima e Isidora Maria da
Conceição
Manoel Martins e Joana, escrava de Francisco
Antonio da Costa
Alípio e Maria, escravos
Augusto Victor da Costa e Joana Amélia da
Costa
1865
1865
1866
1868
1868
1870
1871
1873
1881
1881
A incidência de apadrinhamento no plantel de Alípio Corrêa da Silva é
extremamente alta. Em mais de sessenta por cento (60%) dos batismos há a presença de
escravos. Vê-se também que três mulheres, Domingas, Joana e Teresa, são fundamentais
para a manutenção e aumento da força de trabalho dos Corrêa da Silva. Alípio possuía um
plantel considerável para a região de Campanha. Morto em 1883, lega dezessete escravos
para seus herdeiros120. Computem-se ainda os libertos em virtude da lei de 1871 – ingênuos
que certamente acompanhavam as mães nas jornadas de trabalho – e temos um número
ainda maior de braços para seus sucessores.
Quadro 7 – Escravos legados por Alípio Corrêa da Silva (1883)121
Escravo (a)
Teresa
Joana
Felícia
Idade
44
38
29
119
Valor
400.000
500.000
600.000
Na filiação de Joel consta apenas “filha da escrava”.
APERS. Inventários (Alípio Corrêa da Silva). Cartório Cível e Crime. Caçapava. N° 126, M.4, E 91. 1883.
121
APERS. Inventários (Alípio Corrêa da Silva). Cartório Cível e Crime. Caçapava. N° 126, M.4, E 91. 1883,
fls.9v-13.
120
126
Celina
Isabel
Inês
Odila
Ermínia
Thomé
Antonio
Rochel
Samuel
José
Nodário
Euletério
Hermes
Gil
24
12
18
16
14
39
37
29
28
23
22
15
14
12
600.000
500.000
600.000
600.000
555.000
650.000
700.000
700.000
750.000
700.000
700.000
600.000
600.000
550.000
Apensa ao inventário de Alípio consta a matrícula de seus escravos, por força da lei
de 1871. Trata-se de um documento importante, pois dá boa medida das atividades
desenvolvidas nas propriedades de Alípio e é um interessante material comparativo em
relação ao inventário de 1883, quando alguns cativos já se encontram mortos, livres ou
libertos em virtude da lei.
Quadro 8 – Matrícula escravos Alípio da Silva
Nome
Cor
Idade
Estado
Naturalidade
Filiação
Aptidão para o
trabalho
Profissão
Domingas
preta
49
Africana
Desconhecida
Boa
Quitandeira
Teresa
Joana
Felícia
Fé
Zoraida
preta
preta
preta
preta
preta
33
28
18
2
15
Africana
Província
Província
Província
Província
Desconhecida
Domingas
Domingas
Felícia.
Domingas
Boa
Boa
P/ todo serviço
P/ todo serviço
-
Cozinheira
Costureira
Costureira
Costureira
_
Celina
Isabel
Ignez
rasgado
rasgado
Thomé
Antonio
rasgado
Samuel
preta
preta
preta
preta
preta
preta
preta
preta
preta
13
1
4
5
3
28
26
18
17
Solteiro
Livre
Solteiro
Solteiro
Solteiro
Solteiro
Solteiro.
Morta.
Solteiro
Solteiro
Solteiro
Solteiro
Solteiro
Solteiro
Solteiro
Solteiro
Solteiro
Província
Província
Província
Província
Província
Província
Província
Província
Província
Domingas
Domingas.
Joana.
Joana
Joana.
Desconhecida
Domingas
Teresa.
Domingas
Boa
Boa
Boa
Boa
Boa
P/ todo serviço
P/ todo serviço
P/ todo serviço
P/ todo serviço
Engomadeira
Engomadeira
127
Campeiro
Campeiro
Campeiro
Campeiro
rasgado.
Nodário
Antério
Hermes
Gil
preta
preta
preta
preta
preta
12
11
4
3
1
Solteiro
Solteiro
Solteiro
Solteiro
Solteiro
Província
Província
Província
Província
Província
Domingas
Domingas
Domingas
Joana.
Joana
P/ todo serviço
P/ todo serviço
P/ todo serviço
P/ todo serviço
P/ todo serviço
Campeiro
Campeiro
Campeiro
Campeiro
-
Os inventários das décadas de 1870-1880 ainda estão para ser explorados enquanto
fonte que Rui Barbosa não queimou (Slenes, 1983). É muito comum encontrar cópias
dessas matrículas, consumidas pelo fogo no alvorecer do período republicano, nesses
inventários. A matrícula acima preenche algumas lacunas sobre os escravos de Alípio
Corrêa. Chama a atenção as funções atribuídas a menores de cinco anos, como no caso de
Hermes, por exemplo, campeiro com três anos de idade.
Cruzando os dados disponíveis do inventário de Alípio e os registros de nascimento,
podemos seguir o rastro dos negros Corrêa da Silva durante a década de 80 e 90 do século
XIX. A cor era elemento presente na descrição dos indivíduos. Assim, embora a condição
servil tivesse sido abolida (formalmente, ao menos), existem elementos comprovantes de se
tratar das mesmas pessoas que serviram a Alípio, como se vê:
Quadro 9 – Apadrinhamento Corrêa da Silva122
Nome
Bárbara,
crioula
Alcides,
parda
Maria Olga,
crioula
Ema, parda
Clotilde,
parda
Filiação
Joana Corrêa; avó:
Domingas
Celina Corrêa; avó:
Domingas
Isabel Corrêa; avó:
Domingas
Isabel Corrêa; avó:
Domingas
Celina Corrêa; avó:
Domingas
Padrinhos
Ano
Aristides Corrêa da Silva; Palmira Oliva 1885
Maria
Nodário Domingos Corrêa e Tibúrcia Lobato 1887
Samuel Corrêa e Joana Corrêa
1888
Hermes Corrêa e Herminia Corrêa
1887
Alfredo [ilegível] e Inês Walmarath
1890
122
MDCS. Batismos (Livres). Paróquia de Caçapava. Livro 9 (1882-1887), fl.100v. MDCS. Batismos
(Livres). Paróquia de Caçapava. Livro 10 (1887-1891), fl.8, 60, 61 e 78.
128
O cruzamento dessas informações com os dados provenientes do inventário de
Alípio Corrêa da Silva fornece elementos sólidos para inferir a manutenção de laços de
parentesco, forjados durante o período escravista, com o advento da liberdade. Nos casos de
Maria Olga e Ema isso é facilmente perceptível. Detenhamo-nos em mais dois casos antes
de extrair algumas conclusões e inferências. Entre os Walmarath e os Costa, os padrinhos
brancos foram em número maior, como se vê:
Quadro 10 – Parentesco/Apadrinhamento
Escravos da Família Walmarath123
Escravo (a)
Manoel
Antão
Esperança
Elvira
Constância
Filiação
Cecília
Maria, crioula
Maria
Maria
Maria
Padrinhos
Torquato e Maria, escravos
Pedro Dorneles e Firmina Cândida Dorneles
João Baptista Carvalho de Miranda e Francisca
Cândida Miranda
Samião e Juliana, escravos de Luiz da Rocha
Marcolino de Souza Vasconcellos e Luisa de
Souza Vasconcellos
Ano
1856
1864
1869
1872
1875
Ainda assim, temos um percentual de quase quarenta por cento. O número mais reduzido é
entre os Costa:
Quadro 11 – Parentesco/Apadrinhamento
Escravos Francisco Antonio da Costa e Joana do Prado Costa (casal)124
Escravo (a)
Adão
Guilherme
Eustáquia
Antéria
Filiação
Cassimira
Cassimira
Cassimira
Angélica
Eulália
Joana
Padrinhos
Manoel da Cruz e Mariana Flores
Felipe e Sebastiana, escravos.
Ismael Antonio da Luz e Ana Fausta da Costa
Maria Antonia da Costa e Francisca Celina da
Costa
Augusto Victor da Costa e Joana Amélia da
Costa
123
Ano
1856
1858
1878
1878
1878
MDCS. Batismos (Escravos). Paróquia de Caçapava Livro 2 (1845-1870), fl.94v. MDSC. Batismos
(Livres). Paróquia de Caçapava. Livro 6 (1864-1874), fl.64v/19v. MDCS. Batismos (Escravos). Paróquia de
Caçapava . Livro 3 (1870-1888), fls.10 e 29.
124
MDCS. Batismos (Escravos). Livro 2 (1845-1870), fls. 81v e 94v. MDSC. Batismos (Livres). MDCS.
Batismos (Escravos). Livro 3 (1870-1888), fls.42v, 42v e 42v.
129
Em quase metade dos mais de cinqüenta batismos de escravos analisados neste
capítulo, pelo menos um dos padrinhos foi escravo ou liberto. Essas informações,
complementadas com a reconstituição da sucessão familiar dos pretos-forros João Antonio
e Joaquim Antonio, oferecem-nos interessantes pistas para refletir sobre a vida comunitária
de escravos e seus descendentes. Contrariando as visões que confundem o estatuto jurídico
de coisa com a coisificação efetiva dos escravos, vemos, durante todo o século XIX, a
constituição de relações de parentesco entre indivíduos egressos do cativeiro.
Já na primeira metade do século XIX, famílias de ex-escravos se constituíram no
interior da sesmaria da Palma. Detive-me com maior pormenor nos descendentes de
Joaquim Antonio e João Antonio e nas alianças forjadas ao longo do tempo. A constituição
de famílias, a formação de pecúlio, a aquisição de terras, o apadrinhamento e outras ações
engendraram projetos de liberdade que motivaram a ação e expectativas desses agentes. A
história de Cambará durante o século XIX certamente não representa uma ‘ruptura radical’
ou ‘negação total’ do cativeiro – até porque nunca existe uma negação total –, mas
certamente os caminhos da história foram trilhados de forma específica125. É importante
reter também que os significados da liberdade foram interpretados no quadro da sociedade
escravista a que estiveram ligados (Mattos, 1998:35). Com o fim do regime servil, aquele
território constitui-se enquanto espaço de acolhimento de ex-escravos. Se entre as famílias
aquinhoadas as alianças matrimoniais encolhiam o número de proprietários, representando
a privatização da terra, no caso das famílias negras, o parentesco e o apadrinhamento
resultaram na acolhida de diversas famílias. Mas ao sustentar essa idéia não estaria
romantizando a vida no cativeiro e idealizando Cambará como mãe acolhedora de todos os
despossuídos? O quadro não é tão simples, respondo. Uma palavra sobre isso antes de dar
um fim derradeiro a este capítulo.
125
Como nota Alencastro (2000), o surgimento de núcleos territoriais negros autônomos passava pela
anuência das camadas proprietárias: “Reputada quilombola, uma família negra isolada, composta do pai, da
mãe e de três filhos corria o perigo de ser capturada, cativada e eventualmente massacrada: a criminalização
da fuga de escravos negros se transforma numa ameaça mortal a todo núcleo autônomo de negros livres no
território brasileiro. Para tais pessoas, tais famílias, a melhor garantia à preservação da liberdade consistia em
aceitá-la como uma liberdade relativa, prestando serviços ao fazendeiro ou senhor de engenho que
reconhecesse e garantisse seu estatuto não escravo” (Alencastro, 2000:345).
130
3.5 A ponta do nariz
Estando a ruminar sobre pontos obscuros da filosofia, o defunto-autor Brás Cubas
medita sobre o destino do nariz. A única, verdadeira e definitiva explicação encontrada por
Brás não é aquela que supõe o nariz como sustentáculo dos óculos; sua razão de ser é a
contemplação de cada homem a seu nariz. Tal como o faquir, quando finca os olhos no
nariz, o homem perde o sentimento das coisas externas, apreende o impalpável, embelezase no insensível, desvincula-se da terra. Se o amor multiplica a espécie, o nariz a subordina
ao indivíduo, conclui Brás.
A referência a Machado de Assis não é fortuita. O bruxo de Cosme Velho é tido
como mestre descritor do paternalismo e dos costumes das camadas senhoriais da Corte. De
fato, Brás Cubas personifica exemplarmente o destino do nariz. Apegado a seus privilégios,
submete todos os fatos ocorridos à sua volta a si mesmo, reduzindo a existência de
agregados, dependentes e escravos às satisfações de suas vontades, necessidades e anseios.
Brejeiro desde tenra idade, do além-mundo Brás não perde a altivez: praticamente supõe a
inclinação natural de seus súditos para atender a seus caprichos. A recompensa recebida por
estes é vista como benevolência de Brás, que de tanto contemplar o nariz perde o
sentimento das coisas externas.
O olhar minucioso de Machado de Assis vem sendo evocado nas descrições sobre as
estratégias de ‘acomodação’ dos ‘dominados’126. Em geral, as personagens machadianas em
nenhum momento questionam as prerrogativas senhoriais. Cabe aos dependentes perseguir
objetivos próprios tentando provocar nos senhores movimentos interessantes a eles
dependentes. Daí alguns personagens tentarem obter seus desígnios fazendo com que seus
senhores imaginem que é vontade deles, senhores, fazer aquilo que eles, dependentes,
querem que seja feito (Chalhoub, 2003).
Independentemente da apropriação, ou não, de Machado de Assis, a historiografia
sobre a escravidão no Brasil avançou significativamente ao questionar um modelo único de
‘resistência’ dos escravos. A crítica à democracia racial – especialmente por Florestan
126
Sidney Chalhoub, fartamente influenciado pela leitura de Machado de Assis de John Gledson e Robert
Schwarcz, é o historiador a melhor explorar essa questão. Ver: Chalhoub (1990) e, em especial, Chalhoub
(2003).
131
Fernandes e seus alunos (Fernando Henrique Cardoso e Otávio Ianni certamente são os
representantes mais eminentes dessa linha de pensamento) – foi importante passo no
sentido de denunciar a idealização dos postulados de, e baseados em, Gilberto Freyre. Por
outro lado, essa crítica teve por correlato a anulação do escravo enquanto agente, já que
somente ações-limite, como fugas, justiçamentos e suicídios, foram consideradas enquanto
dignas de serem classificadas como ‘resistência’. Como bem coloca Gomes (2005:26),
diversos estudos, no intuito de melhor compreender o “protesto negro”, tentam passar pela
superfície do mar das denúncias e mergulhar nas profundezas do cotidiano das experiências
e visões escravas.
Ao invés de supor uma dicotomia incontornável entre passividade e rebeldia,
diversas obras passaram a pensar nas “figuras intermediárias entre o escravo passivo e
heróico” (Reis; Silva, 1989). Por sua vez, essa visão ancora-se numa sólida interpretação
sobre o caráter da dominação senhorial. A violência, inegavelmente, foi prerrogativa
largamente utilizada, e aqui está uma contribuição fundamental a ser retida das obras
produzidas pela chamada Escola Paulista127. Ao mesmo tempo, outras estratégias de
domínio foram empregadas e estimuladas pelo senhorio, dentre elas o paternalismo,
fundamental na manutenção da ‘boa ordem’ entre os escravos128.
O paternalismo caracteriza-se por ser uma política de produção de dependentes. A
concessão de ‘privilégios’ a cativos foi uma forma de evitar conflitos, pois visava incutir no
escravo o sentimento de gratidão. Essa política de estímulos positivos certamente reverteu
127
Concordo que, de certo modo, a violência da escravidão no Brasil está provada e que devemos avançar
teórica e analiticamente em relação a isto. De fato, não há nada de novo em empilhar argumentos contrários à
suposta benevolência dos senhores no Brasil. Porém, não custa lembrar essa violência, especialmente quando
as visões romantizadas sobre a escravidão permanecem arraigadas em boa parte da sociedade – e na
academia. No caso do Rio Grande do Sul, Cardoso (2003 [1962]) lançou por terra a idealização da
“democracia dos pampas”. Mesmo assim, a visão comum, amparada pelo regionalismo largamente existente
no Rio Grande do Sul, sustenta esse tipo de idealização, em especial quando se fala dos ‘heróis’ (quasedeuses) farroupilhas.
128
No segundo volume da sua clássica obra, Perdigão Malheiro chamava atenção para este ponto: “Em geral,
se o senhor é bom, trata os escravos com benevolência, procura levá-los por brio e pela persuasão, por
prêmios, e estímulos morais, antes do que pelos castigos e força bruta, é raro que o escravo se não mostre
grato e reconhecido, não sirva de melhor vontade, não se torne melhor. O senhor faz o escravo, assim como o
escravo faz o senhor” (Malheiro, 1976[1866]:100 [grifos no original]). Ressalte-se que este trecho de
Perdigão Malheiro visa demonstrar a evolução dos costumes brasileiros para com os escravos, a força moral
das idéias da época e da religião (cristã) e a índole bondosa e tolerante de nossa pátria-nação.
132
em benesses para os proprietários de escravos porquanto mantinha a estabilidade entre o
plantel. Como nota Mattos (1998), uma das faces do paternalismo é a manutenção das
prerrogativas senhoriais, pois é um privilégio destes últimos transformar em concessão toda
e qualquer ampliação do espaço de autonomia dentro do cativeiro. Ainda assim, há uma
face, digamos, ‘oculta’ do paternalismo. Os cativos nunca cessaram na sua luta pela
conquista e consolidação de espaços de autonomia. Destarte, a acomodação não resulta
necessariamente numa submissão inconteste, mas também na conquista de espaços no
interior e por meio dos rituais de dominação dos senhores.
Neste sentido, a idéia de ‘resistência’ escrava deve ser discutida em outros termos.
Nas relações engendradas sob o regime escravista, os cativos sempre reelaboraram suas
visões do que consideravam liberdade e escravidão. Os significados da liberdade foram
interpretados no quadro da sociedade escravista a que estiveram ligados. Portanto, as ações
dos cativos devem ser compreendidas em sua forma multifacetada (Chalhoub, 1990; 2003;
Fraga, 2006; Gomes, 2003; 2005a; 2005b; Machado, 1987; Mattos, 1998; Reis; Gomes,
1996; Reis; Silva, 1989; Slenes, 1999). Atos de inconformidade e rebelião não são a única
forma possível de negação da coisificação social (Chalhoub, 1990:42). A conquista de
espaços de autonomia podia se fazer no interior mesmo do escravismo.
No caso trazido aqui, as brechas e fendas existentes no regime possibilitaram às
famílias de João Antonio e Joaquim Antonio galgarem espaços de autonomia. Com a morte
do senhor, Rita Maria foi libertada e João Antonio teve metade de seu valor abatido. Já
Joaquim Antonio, foi alforriado condicionalmente: deveria acompanhar o senhor até morte.
Nesses três casos, seus donos citaram os “bons serviços” como motivo para a ‘graça’
concedida. É impossível saber ao certo se se tratava de um real ‘reconhecimento’ aos bons
(obrigados) serviços prestados, ou de uma forma de aliviar tensões e encorajar o ‘bom
comportamento’ entre o plantel. O fato é que a gratuidade dos atos e as evocações a Deus, a
Igreja e a nobres sentimentos como o amor, em geral encobriam interesses.
Carneiro da Cunha (1985) demonstrou pioneiramente a política de “produção de
dependentes” acoplada às concessões de manumissões. O sentimento de gratidão deveria
ser uma constante na vida dos ex-escravos. Antes de 1871, o poder de alforriar estava
concentrado nas mãos do senhor, devendo saber o escravo que o caminho para a liberdade
133
passava pela obediência (Chalhoub, 1990:135). No caso das alforrias condicionais, como a
de Joaquim Antonio, por exemplo, havia a possibilidade de revogação por ingratidão.
Assim:
A representação senhorial dominante sobre a alforria no século XIX, pelo menos
até seu terceiro quartel, era a de que o escravo, sendo dependente moral e
materialmente do senhor, não podia ver essa relação bruscamente rompida
quando alcançava a liberdade. É nesse contexto que se destaca a importância
simbólica da possibilidade prevista em lei de revogação da alforria por ingratidão.
A possibilidade da revogação seria um forte reforço à ideologia da relação entre
senhores e escravos como caracterizada por paternalismo, dependência e
subordinação, traços que não se esgotariam com a ocorrência da alforria
(Chalhoub, 1990:136).
Acresce a isso os mecanismos de “servidão disfarçada” (Moreira, 1989; 1996; 2003)
dessas manumissões. As cláusulas estabelecidas poderiam tornar a liberdade uma realidade
longe de ser alcançada. Para o azar do escravo, o senhor poderia demorar a morrer. Além
do mais, os herdeiros poderiam levantar entraves à consecução do disposto. Esse tipo de
conflito tendia a surgir no momento de abertura do inventário ou poderia estar claramente
expresso, como no caso da carta de liberdade de Leonarda. Em 02 de maio de 1854, a parda
Leonarda, escrava de Salvador Nunes Jardim, é liberta com a condição de: “persistir em
companhia de meus filhos, netos, e parentes que a queiram em companhia”. Por não saber
ler, Salvador Nunes Jardim solicita a seu neto, Francisco Antonio da Costa, que assine a seu
rogo129. A alforria de Salvador Nunes Jardim dava margem não apenas a seu neto,
Francisco Antonio da Costa, requerer o serviço de Leonarda, mas também aos netos de seu
neto. Não sabemos se algum dia Leonarda alcançou a liberdade. Caso tenha vivido até 1888
isto é possível.
Esse quadro não negava, como venho dizendo, a possibilidade de aceder a espaços
de autonomia. Juridicamente considerado coisa, ao escravo era vedado possuir bens. De
algum maneira, entretanto, as famílias dos dois pretos-forros que deram origem a Cambará
formaram um pecúlio enquanto viviam sob o jugo do cativeiro. João Antonio pagou metade
do seu valor e comprou a liberdade de sua filha. A Joaquim Antonio não foi necessário
129
APERS. Livro de Registro de Transmissões e Notas. 1° Tabelionato de Caçapava do Sul. Livro 4. Fundo
11, Estante 26, fl.106v. Trata-se do mesmo Francisco Antonio da Costa da genealogia esboçada neste
capítulo.
134
despender recursos em sua libertação. Ambos adquiriram terras não muito tempo depois de
serem livres. Como teriam acumulado recursos? Provavelmente possuíam roçados,
vendiam parte da plantação, faziam jornais, alugavam o serviço ou até mesmo furtavam
pequenas quantias. O preto-forro Domingos de Mello, por exemplo, adquiriu um quinhão
com 40 reses de criar (vide acima). O importante a reter é a importância da formação de
pecúlio na constituição de brechas camponesas no interior da sesmaria da Palma130.
O apadrinhamento e a formação de famílias escravas certamente foi fundamental na
formação territorial de Cambará. A diferenciação interna da comunidade escrava era um
fator essencial na sua constituição, como notou Mattos (1998), mas contribuiu para a
formação de uma comunidade unida em torno de expectativas, valores e memórias
compartilhadas (Slenes, 1999). A família cativa certamente teve utilidade para os senhores;
apesar disto, é um erro transformá-la em condição estrutural para a manutenção do domínio
senhorial (Slenes, 1999:114). Os vínculos estabelecidos ao longo dos anos geraram a
confluência de projetos de liberdade na região de Cambará. Os laços familiares não apenas
criavam maiores possibilidades para a poupança, mas potencializavam esse esforço pela
agregação de pessoas.
Mas será que falar em família escrava, brecha camponesa e negação do cativeiro no
interior do próprio cativeiro não resulta numa reabilitação do caráter brando e dócil da
escravidão no Brasil? De fato, concordo que exista certo pendor em algumas análises
históricas para uma versão “contratualista” da escravidão, que supõe uma reciprocidade
entre desiguais (Mattos, 1998), colocando os escravos, muitas vezes, como dirigentes, por
excelência, de suas ações (Faria, 1998). Por outro lado, o mergulho na experiência
cotidiana dos indivíduos escravizados (Gomes, 2005a) recupera a micropolítica da
‘resistência’ cativa, enfocando a ação histórica dos escravos em seu aspecto multifacetado,
ao invés de supor apenas um modelo de ‘resistência’131.
130
Deve-se entender a brecha camponesa como parcelas de terras, marginais às sesmarias, que foram
apropriadas por camponeses livres, caboclos e escravos (Cardoso, 1978; Reis; Silva, 1989; Schwartz, 2001).
131
Veja-se a constatação de R. Scott, pensada em outro contexto, mas nem por isso menos influente: “Os
escravos podiam ser lesados e contudo ter participação na economia monetária. Podiam morar mal e contudo
lutar para preservar suas famílias. Podiam ser tratados pior que animais, e nem por isso se tornavam
semelhantes a animais. Estes argumentos não se destinam a substituir a imagem devastadora de indivíduos
desenraizados em barracões miseráveis pela imagem romântica de famílias bem acomodadas em cabanas com
135
E aqui podemos evocar Machado de Assis novamente, complementando a leitura do
paternalismo com a descrição do fosso social e o desnude da violência e assimetria
inerentes à relação senhor/escravo. Falo do Machado de contos como “Mariana”, “Pai
contra Mãe” e até mesmo alguns trechos de livros como “Memórias Póstumas de Brás
Cubas”, por exemplo. Socorramo-nos do próprio defunto-autor: com cinco anos apenas,
quebrou um pote de doces na cabeça de uma escrava ao lhe ser negado um doce, jogou
cinzas no tacho e acusou-a de ter estragado o doce por pirraça. Também montava no seu
cavalo de montaria, o escravo Vicente, a quem fustigava a qualquer sinal de
descontentamento. Às peraltices de Brás, seu pai reprimia-o aos olhos dos outros, mas
afagava-lhe em segredo. Não esqueçamos, portanto, que o brejeiro Brás Cubas era
acostumado (e socializado) a usar a força quando necessário. Às pessoas que lhe serviam de
montaria cabia, no máximo, expressões como “ai, nhanhô132”.
O mais interessante parece ser dar conta desse caráter multifacetado das ações
históricas forjadas no cativeiro sem negligenciar as posições estruturais ocupadas por cada
um dos agentes em uma sociedade extremamente hierarquizada e desigual. A reconstituição
da história de Cambará deve fazer menção a este quadro interpretativo oferecido pelos
estudos citados acima e aos diversos percalços à consolidação deste espaço. O cerceamento
dos espaços de autonomia foi uma constante na trajetória do grupo. A medição da sesmaria
da Palma é um exemplo evidente disto. O requerente da medição é Francisco Corrêa da
Silva (vide genealogia):
Dizem Francisco Correa da Silva e sua mulher, D. Idalina Roiz da Silva,
moradores do 4º distrito do termo desta vila, representados por seu bastante
procurador infra-assinado constituído na procuração junta, que sendo senhores e
possuidores de partes ou de quinhões, na sesmaria denominada das Palmas, que
se acha situada em sua maior parte no termo desta cidade, tendo apenas uma
pequena parte situada no município de Caçapava, sesmaria que tendo em 1797
sido concedida a Manoel Gomes Porto, como se evidenciará da respectiva Carta,
que oportunamente se juntará, do que constam todos os seus limites, pertence
hoje a outros condôminos além dos supptes. e que pretendendo estes medi-la
demarcá-la e dividi-la para o fim de poderem ser divididos ou extremados os seus
quinhões, por isso vem respeitosamente perante V.S. requerer que se digne
mandar citar os condôminos da referida sesmaria (fl.2)
tetos de folhas de palmeira. Em vez disso, pretendem conduzir à compreensão de uma série de adaptações dos
escravos mesmo nas piores condições” (R. Scott, 1991:35).
132
Ver capítulo 11 de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (Assis, 2004 [1880] :526-528).
136
Diversos condôminos são instados a mostrar dados comprobatórios de suas posses.
As partes interessadas passaram a apresentar documentos, escrituras de compra e venda,
partilhas de inventários, permutas, registros, etc. Às folhas 552v, o Barão de Kalden133,
agrimensor responsável pela medição, conclui:
Depreendendo-se do exame dos documentos apensos aos autos da presente
medição e que aos abaixo firmados foram ministrados para a vista de seu
conteúdo formar o cálculo aritmético da partilha do campo entre seus
proprietários é indispensável fazerem-se com antecedência o dito cálculo algumas
medições em separado, como sejam: primeira a do Rincão denominado ‘da
Lagoinha’ [...]; Segunda: a área do Rincão chamado ‘dos Pinheiros’ que dantes
era pertencente a Francisco Gomes Porto, a fim de conhecer-se se dentro de seus
limites há ou não excedente à vista das áreas de terra nele ocupadas por diversos
aos quais foram vendidas com divisas marcadas [grifos meus].
Todo procedimento legal exigido é seguido. Tornando-se indispensável fazer o
cálculo de algumas medições em separado, procedeu-se a medição aritmética do lugar
denominado “Rincão dos Pinheiros” (fls.572v-587). Em seguida, procedeu-se à “Partilha
Aritmética do campo e matos que constituem a sesmaria denominada da Palma, com área
superficial dentro de seus limites de 135.363.242 metros quadrados” (fl.588). Somos
levados então aos sucessivos inventários e heranças conformadores dos limites da área na
época de medição. Nesses inventários apensos aos autos, fica registrada a área original e o
que coube a cada herdeiro, com seu respectivo valor. (fls.588-595). Depois de lermos um
emaranhado de documentos, medições e partilhas, temos a impressão que todas as áreas
estão demarcadas e o processo terminado. Uma observação final do Barão de Kalden, logo
após arrolar todos os inventários e partilhas, anuncia o contrário:
Descontada a área superficial de cento e dezoito milhões quinhentos e dezessete
mil cento e noventa e um metros quadrados (118:517.191m²), pela forma acima
expendida distribuída entre os herdeiros requerentes da subdivisão de seus
quinhões de Campo, do total da área superficial encontrada dentro dos limites
desta Sesmaria da Palma, que é de cento e trinta e cinco milhões trezentos e
sessenta e três mil duzentos e quarenta e dois metros quadrados (135:363.242 m²)
resulte que ainda restam dezesseis milhões oitocentos e quarenta e seis mil e
cinqüenta e seis metros quadrados (16:846.051 m²), devendo esta área superficial,
133
Alemão de origem, o Barão de Kalden exerceu a função de subdelegado do 4° distrito de Cachoeira do Sul
na década de 1880.
137
a qual desta forma permanece em estado de disponibilidade, pertencer a outros
herdeiros ou proprietários que consta bens mas que não se fizeram
representar nestes Autos nem nada neles requererão (fl.595). [grifos meus].
Coloca-se a questão de saber por qual razão nem todos se fizeram presentes em uma
medição judicial incidente sobre o patrimônio de todos. O acesso aos espaços jurídicos e
burocráticos foi diversificado para cada um dos agentes residentes no interior da antiga
sesmaria. Folhas adiante, deparamo-nos com outros herdeiros ou proprietários que não se
fizeram representar nos autos. Em 20 de fevereiro de 1888, dois meses depois de encerrada
a partilha aritmética, Bento Antonio Gonçalves apresentou o requerimento de seguinte
teor:
Diz Bento Antonio Gonçalves que ele, seus irmãos, sobrinhos, cunhados e mais
D. Esmerilda Maria da Fonseca, todos constantes da certidão junto, (doc.1) são
possuidores de suas pequenas partes de campos e matos sitas no lugar
denominado Pinheiros, na sesmaria das Palmas, por compra feita por seu finado
pai Joaquim Antonio Gonçalves, a primeira parte foi comprada a Domingos de
Mello Rego e a segunda a D. Esmenia Maria Gomes, viúva do finado Francisco
Gomes Porto (docs. n. 2 e 3) entendendo o supplte. que D. Esmenia por
falecimento de seu marido tinha direito a metade das terras existentes, sem dúvida
a venda feita a seu finado pai vem respeitosamente requerer a V.S. para mandar
juntar aos autos de medição da sesmaria, os documentos do supp. para que neles
consta os direitos do suppl. e seus parentes nas referidas terras. Visto que o
suplicante por falta de meios deixa de requerer a medição e demarcação das
mesmas. Nestes termos (fl.693) [grifos meus].
Fica manifesto certo receio de Bento Antonio e seus irmãos quanto à legitimidade
da compra feita pelo seu finado pai. Alegam ter sido legítima a venda feita por Esmenia
Maria Gomes (nora do sesmeiro Manoel Gomes Porto), já que “sem dúvida” tinha a viúva
direito à metade dos bens do marido. A carência de “meios” é igualmente mencionada
como entrave à legalização de suas posses.
Às folhas 694-697, é apensa aos autos a partilha dos bens havidos por herança de
Joaquim Antonio Gonçalves e Florência Simões Gonçalves, esposa do mesmo. Como
mencionei rapidamente em outro momento, o inventário de Joaquim Antonio e Florência
data de 1886, tendo o primeiro falecido em 1874 e a segunda em 1878134. Ou seja, o
procedimento formal de partilha é requerido oito anos após a morte da mãe dos herdeiros.
134
APERS. Inventários (Joaquim Antonio Gonçalves e Florência Simões Gonçalves). Cartório Cível e Crime.
Cachoeira. Maço 3, Estante 54, n°106. 1886.
138
Talvez Bento Antonio e seus irmãos detivessem meios escassos para acessar a esses meios
(eram todos analfabetos), ou talvez o usufruto das terras não exigia partilha, ou, o que
parece mais plausível, ambas as coisas. Os bens legados pelo casal a seus filhos, netos,
genros e noras são os seguintes:
Um pedaço de campo e matos com meia quadra de sesmaria, mais ou menos, cito
no lugar denominado Pinheiros, no Rincão das Palmas, no 4° distrito do termo
de Cachoeira, que acharão os avaliadores valer quatrocentos e cinqüenta mil réis.
Uma chácara com terreno com quarenta braças de frente e quarenta braças de
fundo, mais ou menos, com um rancho velho de capim, e algumas árvores
frutíferas, cito no lugar denominado Pinheiros, no Rincão da Palma, que
acharão os avaliadores valer cinqüenta mil réis135.
Os herdeiros do casal já foram mencionados acima (ver genealogia 4). A aquisição desses
bens é anexada ao requerimento contido na medição da sesmaria:
Digo eu e minha mulher abaixo assinados que entre os mais bens que possuímos
e bem assim uma chácara que compramos do Sr. Francisco Gomes Porto a qual
vendemos por nossa livre vontade a Joaquim Antonio pelo preço de vinte e
cinco mil e seis centos réis, ficando nós obrigados a fazer esta venda firme e
valiosa e para que nem eu nem meus herdeiros possam embargar, mandamos
passar o presente este papel de mão. Palmas, 1 de setembro de 1845136. [grifos
meus].
Dez anos depois, em 1855, Joaquim Antonio comprou um rincão de campo e matos no
Rincão dos Pinheiros:
Digo eu abaixo assinado que entre os meus bens que possuo livres e
desembaraçados de hipoteca [...] De cujo rincão de campos e matos faço venda
como de fato vendido tenho de hoje para todo sempre ao preto-forro Joaquim
Antonio, pelo preço, e quantia entre nós ajustados de duzentos mil réis, o que
recebi, e fica pago, e satisfeita, e fica o comprador obrigado a pagar a competente
vista da Lei, como tenho vendido o dito rincão de minha livre vontade, sem
constrangimento de meus herdeiros, o que se conhece da carta do meu genro o
falecido Pio Antonio de Mello da data de 26 de novembro de 1842 e mesmo
d’outras quaisquer pessoas, e por me achar em estado de não poder alimentarme sem fazer venda do dito rincão. Rogo a Justiça de sua Majestade lhe dêem
todo o direito, e vigor, para que obrigo minha pessoa, e bens havidos e por haver
para assim fazer-lhe boa firme e valiosa esta venda, e tirar a pás e a salvo o
135
Idem. fl.4
APERS. Cartório Cível e Crime. Medição. Cachoeira do Sul. N°699, M 18, E 54. 1888. fl.698. Uma das
testemunhas da compra e venda é Manoel Gonçalves da Trindade.
136
139
comprador de qualquer dúvida que haja ou possa haver. Em firmeza do que e por
verdade delato. Rincão da Palma, 25 de janeiro de 1855 (fl.699) [grifos meus].
A crítica situação financeira da vendedora Esmenia Maria Gomes ofereceu uma
brecha para Joaquim Antonio e sua família adquirirem outra gleba. Vê-se neste registro
de compra e venda a dúvida da própria cessionária quanto à legalidade do procedimento.
Após trinta anos essa dúvida permanecia, a julgar pelo teor do requerimento apresentado
por Bento Antonio e seus parentes.
Dando prosseguimento à medição, outras partes que não se fizeram apresentar
nos autos da medição tornam-se visíveis. Desta vez, os herdeiros de João Antonio
apresentaram os meios comprobatórios de suas posses:
Dizemos nós abaixo assinados que somos senhores e possuidores há mais de
cinqüenta anos de uma parte de campo na sesmaria da Palma, que gozamos
mansa e pacificamente neles até esta data, cujo campo foi comprado de Jose Luis
de Queiroz e Vasconcellos por nosso pai e sogro e avô, João Antonio. Recibo
cuja escritura foi passada com divisas descriminadas, mas nessa escritura, como
que por descuido ou acaso, foi extraviada do poder de João Ignácio à vista do que
queremos como testemunhas que sabem da escritura, divisas e das posses e gozos
pedimos a V.S. mandar citar o Sr. Genuíno Pereira da Trindade, o Sr. Francisco
Corrêa da Silva, o Sr. Feliciano Jose do Nascimento, o Sr. Pedro Pereira Fortes
para o quanto antes marcar o dia da audiência para cujo fim.
A rogos de João Ignácio e Manoel Thomé da Silva, Fausta da Conceição, Maria
Libânia, Flaubiano Machado, Olímpia da Rosa Conceição, Maria Inocência da
Silva, Policarpa da Conceição, Hermenegildo da Silva, Julia da Conceição, Maria
da Silva, Gaudêncio Joaquim da Rosa, Florência da Silva, todos por não saberem
ler nem escrever. Ismael Pereira da Trindade (fl.745)137. [grifos meus].
Tal como o requerimento de Bento Antonio e seus irmãos, essa petição revela a
fragilidade legal das posses dessa família. Tendo sido a escritura com as divisas
discriminadas extraviada do poder de João Ignácio, requerem os subscritos o testemunho
de grandes proprietários da região. Todas as testemunhas mencionadas confirmaram a
posse da área pelos requerentes desde 1835 e que já haviam visto a dita escritura. Também
afirmam saberem do desaparecimento da mesma (fls.746-748). Vejamos a declaração de
137
Não consegui descobrir quem são todas essas pessoas, bem como qual a ascendência genealógica, se é que
existe, entre elas e os atuais moradores de Cambará. O curso das investigações permite inferir com segurança
a ascendência em relação a João Inácio e Manoel Thomé da Silva, algo já exposto nas páginas anteriores.
140
cada uma das testemunhas. Genuíno Pereira da Trindade, com 71 anos de idade, casado,
criador, residente em Caçapava, alegou:
desde o ano de mil oito centos e trinta e cinco mais ou menos se acham os
justificantes de posse mansa e pacifica dos campos e matos cuja propriedade foilhes transferida por venda que aos mesmos fizera Jose Luis da Queiroz e
Vasconcellos, disse mais ser certo haver o primitivo proprietário passado em
mãos a escritura de venda, a qual por vezes ele testemunha teve ocasião de ver,
mas que ultimamente consta-lhe que dita escritura tenha desaparecido.
O requerente da medição da Sesmaria da Palma, Francisco Corrêa da Silva, criador,
41 anos de idade, casado, residente em Cachoeira, disse:
há vinte e sete anos, mais ou menos, reside nesta sesmaria, e sempre conheceu os
justificantes de posse mansa e pacifica da parte de campo a que se referem em sua
petição, aí morando sem oposição alguma, sabendo que houveram essa parte de
campo por compra de José Luiz de Queiroz e Vasconcellos, cuja escritura em
mão lhe conta ter desaparecido.
Já Feliciano José do Nascimento, 61 anos, casado, criador, morador do termo,
apresentou a seguir versão:
é verdade o alegado pelos justificantes, por ter conhecido o pai e avô dos
justificantes, o preto velho João Antonio Ruivo na posse mansa e pacifica há
mais de cinqüenta anos da dita parte de campo, aí morando sem oposição alguma,
como até agora com seus descendentes; sabendo por ouvir que essa parte de
campo foi comprada por João Ruivo por intermédio de seu sogro já falecido José
Luiz Queiroz e Vasconcellos, sabendo também por ouvir dizer que essa escritura
se tinha extraviado [grifos meus].
Por fim, Pedro Pereira Fortes, 52 anos, casado, criador, residente no termo,
sustentou que:
há quarenta anos conhece os justificantes, seus pais e avós se acham na posse
mansa e pacifica até o presente, da parte de campo a que se referem em sua
petição; sabendo que dita parte de campo foi comprada por João Antonio Ruivo,
pai e avô dos justificantes no ano de mil oitocentos e trinta e cinco, a Jose Luiz de
Queiroz e Vasconcellos, tendo ele testemunha visto dita escritura há quatro anos
mais ou menos.
Algumas das testemunhas ressaltaram não terem João Antonio e seus descendentes
sofrido oposição alguma em sua vivência no local. A “posse mansa e pacífica” passava pela
anuência dos proprietários mais abastados da região. A liberdade e o usufruto de espaços
141
autônomos estiveram diretamente condicionados à manutenção de laços com as ‘elites’
locais. O testemunho desses criadores certamente consolidou sentimentos de gratidão e
lealdade das famílias negras, pois suas palavras eram fundamentais na salvaguarda do
território, especialmente pela escritura de mão ter sido extraviada138.
As posses pertencentes aos herdeiros dos pretos-forros necessitaram ser legalizadas
em meio a um procedimento legal no qual seus herdeiros ficaram excluídos na maior parte
do tempo (lembrando que as petições só são apresentadas finda a partilha aritmética dos
terrenos). Mesmo após apresentarem seus requerimentos, o agrimensor responsável afirmou
“desconhecerem-se quem são” (fl.925) os ocupantes do Rincão dos Pinheiros. A
invisibilização da presença negra fica expressa nos espaços em branco da topografia do
lugar.
Figuras 14 e 14a Sesmaria da Palma
138
Em uma entrevista Orcindo Machado atesta que isso aí tudo tinha papel, e aí extraviaram (maio de 2005),
em conformidade com a documentação.
142
As fotos acima (medição da sesmaria da Palma) atestam a
invisibilização do território de Cambará. Cercados por grandes
fazendas e estâncias, as famílias negras sequer são arroladas neste
mapa. A seta indica o local onde moravam essas famílias.
A medição da sesmaria da Palma deve ser vista enquanto extensão dos efeitos
desencadeados pela Lei de Terras, pois a aplicação de dita lei não foi imediata. Ao interpor
entre a terra e os pretendentes à sua apropriação legal toda uma série de codificações e
procedimentos jurídicos, a Lei de Terras tendeu a excluiu as camadas mais pobres da
população. A imposição de uma linguagem burocrática privilegiou um número reduzido de
indivíduos detentores do capital jurídico e econômico necessário para aceder aos centros de
jurisdição. O acesso a códigos burocráticos por indivíduos despossuídos poderia ser
facilitado ao se recorrer aos agentes sociais dotados de melhores recursos, fomentando o
clientelismo como modalidade fundamental de acesso à terra.
O processo de concentração fundiária promovido pela Lei de Terras não se deu de
pronto e esteve carregado de uma série de ambigüidades, refletindo uma arena de lutas
(Farinatti, 1999). Essas ambigüidades são expressas pela transformação do estatuto das
escrituras privadas como provas de domínio em razão do novo aparato jurídico instituído
143
pela lei de 1850 (Garcia, 2005). O papel de mão perdido por João Inácio e o receio de
Bento Antonio quanto à legalidade da compra realizada por seu pai dão mostras evidentes
disto. Os próprios campos pertencentes ao requerente da medição, Francisco Corrêa da
Silva, revelam a diminuta preocupação legal no comércio de terras em períodos anteriores:
Diz Francisco Correa da Silva, que seu finado avô Manoel Gonçalves da
Trindade, sendo possuidor de três partes de campo no Rincão de Santa Bárbara
sito neste distrito, permutara com seu concunhado o finado João Marques da
Silveira, as ditas partes de campo, por igual número de partes que este possuía
nos campos da Sesmaria das Palmas sita neste mesmo Distrito, e pela facilidade
com que se faziam negócios desta ordem (há setenta anos mais ou menos)
trocaram os títulos que possuíam sem mais declarações. E querendo o suppte.
justificar a legitimidade da posse em que estão do mesmo campo, ele e mais
herdeiros, vem respeitosamente requerer a V.Sª. que se digne marcar dia, hora e
lugar, em que deve o suplicante comparecer com as testemunhas para em
audiência desse Juízo fazer a referida audiência. (fl.255)
A grande diferença é o capital jurídico e as redes de relações pessoais ao alcance de
Francisco Corrêa da Silva em comparação com os sucessores dos pretos-forros. Ao cabo da
medição, outro procedimento legal foi exigido:
Diz Francisco Corrêa da Silva que na medição, demarcação e divisão da
sesmaria, denominada das Palmas – sita neste município e no de Caçapava, da
qual é o supplte. um dos condôminos, havendo ele pago, como se vê do seguro do
juízo, que consta dos respectivos autos e de recibos que oportunamente juntaram
se preciso for, todas as custas da mesma medição que como por este Meritíssimo
Juízo, Escrivão Peixoto, substituído em seu impedimento pelo Escrivão Pimentel,
que querendo haver pela sua executiva de alguns condôminos, por quem pagou as
custas relativas a eles, da mesma medição, a importância por eles pagou, por não
haverem eles até o presente querido lhe pagar a referida importância, por isso,
sendo necessário para o fim referido saber a importância das custas que em rateio,
cumpre aos ditos condôminos pagarem na razão de seus quinhões, vem o supplte.
respeitosamente perante V.S. requerer afim de que visto se achar com licença o
contador do Juízo se digne em face dos referidos autos contar em rateio as custas
relativas aos condôminos [...] que se acham em comum com uma posse de campo
que corresponde a 3:723.923 metros quadrados, no lugar denominado Rincão dos
Pinheiros, em dita sesmaria. (fl.899).
Dentre os condôminos do Rincão dos Pinheiros instados a arcar com as custas estão
Inácio João, Manoel Thomé e Antônia Florência das Mercês, descendentes diretos dos
pretos-forros João Antonio e Joaquim Antonio (ver acima). Excluídos e invisibilizados
durante quase a toda medição, as famílias negras são acionadas na justiça para pagar uma
144
medição que não foi por eles solicitada. Sendo assim, pode-se concluir que dita medição
representou um ataque às terras de Cambará.
A fundação de colônias de imigrantes italianos e alemães nos distritos rurais de
Cachoeira do Sul a partir da segunda metade do século XIX igualmente deu uma nova
configuração ao mercado de terras. A região onde ficava localizada a sesmaria da Palma,
bem como o segundo e terceiros distritos de Cachoeira, áreas de zona pastoril, não
receberam imigrantes desde o princípio, mas sim ao longo dos anos, em especial no século
XX. Com o deslocamento de italianos e alemães para a região, os espaços disponíveis
foram se tornando cada vez mais escassos. A aquisição de glebas por João Antonio e
Joaquim Antonio se deu em um contexto mais favorável àquele enfrentado por ex-escravos
a partir de 1850. Procedimento evidentemente não muito comum e sujeito a uma série de
percalços, mas realizado anteriormente à nova configuração fundiária engendrada pela Lei
de Terras e pela imigração.
Para Zarth (2002), no caso do Rio Grande do Sul, a Lei de Terras não foi um
empecilho para o acesso à pequena propriedade, como em outras regiões do país. No caso
regional, a legislação agrária evidenciava o esforço em garantir a organização de uma
classe de pequenos proprietários de terras dedicada à agricultura e ao abastecimento
interno. Sugere o autor:
A ocupação do Sul do Brasil, em seu início, caracterizou-se pelo aspecto militar
e, principalmente, pela fundação de grandes propriedades, seguindo o modelo
generalizado em todo país. Isto causava alguns problemas, do ponto de vista
estratégico, em função da baixa densidade demográfica decorrente deste processo
e, em conseqüência, tornava vulnerável a defesa do território diante das ofensivas
das forças espanholas sediadas em Buenos Aires. Já no século XIX, com a
independência do país, começaram a surgir discursos com novos enfoques em
relação ao latifúndio: falava-se em redistribuir a propriedade como forma de
desenvolver a agricultura em pequenas propriedades de camponeses livres; de
garantir o abastecimento; de extinguir a escravidão, através da introdução de
imigrantes europeus; de aumentar a proporção da população branca em relação
aos negros, esses vistos como potencialmente perigosos em decorrência dos
exemplos do Caribe e das tentativas de insurreição no próprio Brasil. Mas, se a
redistribuição de terras era um problema real, a resistência do latifúndio pastoril
também era real.
A solução encontrada pelas elites regionais foi a colonização das áreas florestais,
sem alterar a estrutura agrária das zonas pastoris, as quais, no caso do Sul,
estavam co-relacionadas às áreas de campo nativo que se espalhavam por todo o
sul da província e parte do norte (Zarth, 2002:99-100).
145
A existência de pequenas glebas ocupadas por ex-escravos pode ter cumprido papel
fundamental no abastecimento interno e ter sido constituída a partir de roçados. A distinção
terminológica de Zarth entre “áreas florestais” e de “campos” é fundamental para
compreender sua tese sobre a compatibilidade entre a existência de pequenas propriedades
e grandes latifúndios. Áreas de pecuária extensiva, como a região da sesmaria da Palma,
tiveram a concentração fundiária potencializada com a Lei de Terras, diferentemente de
outras regiões, organizadas em função das necessidades de abastecimento (as florestas).
Portanto, o contexto enfrentado por ex-escravos após 1850, e sobretudo após 1888,
foi diferente daquele vivenciado na primeira metade do século por João Antonio e Joaquim
Antonio. Os entraves à conquista de espaços próprios eram ainda maiores. A
marginalização social seguida à Lei Áurea pesou na decisão de migração ou permanência
de ex-escravos. Como notaram Rios e Mattos (2005), o acesso à família configurava-se aos
egressos do cativeiro como possibilidade de estabelecer-se fixamente em algum lugar. Em
meio ao cerceamento de espaços disponíveis, diversos ex-escravos passaram a viver em
Cambará após a libertação.
Este foi o caso de Samuel e Afra, por exemplo. Os relatos indicam serem esses dois
últimos escravos que passaram a viver na região findo o regime servil. De acordo com os
atuais membros do grupo, Samuel foi escravo dos Corrêa. A documentação compulsada vai
de encontro às narrativas. Vejamos. No inventário de Alípio Corrêa da Silva, já analisado
acima, está matriculado o escravo Samuel, de 28 anos de idade, filho de Domingas.
Certamente é o mesmo nascido em 1854, tendo por padrinhos dois escravos139. Em 1883,
data de falecimento do senhor, Samuel é vendido a João Felipe Walmarath:
E logo pelo vendedor, Capitão Pedro Pereira Fortes, por seu procurador, me foi
dito que era senhor e possuidor de um escravo de nome Samuel, de vinte oito
anos de idade, solteiro, natural desta Província, filho de Domingas, boa aptidão
para o trabalho, campeiro, matriculado na coletoria desta vila em primeiro de
abril de mil oito centos e setenta e dois, sob número trinta e quatro da matricula
geral, e quinze da relação apresentada pelo seu senhor de então o Capitão Alípio
Correa da Silva, como tudo verifiquei da relação numero seis, que me foi
apresentada; cujo o escravo houve o mencionado senhor Capitão Pedro Pereira
139
APERS. Inventários (Alípio Corrêa da Silva). Cartório Cível e Crime. Caçapava. N° 126, M.4, E 91. 1883.
MDCS. Batismos (Escravos). Paróquia de Caçapava. Livro n°2 (1845-1870), fls. 186v.
146
Fortes, no inventário do supradito Capitão Alípio Correa da Silva, como
comprador da herança do herdeiro Ismael Ramão da Silva Souto, e porque possui
livre e desembaraçado faz ele venda ao outorgado Walmarath, pelo preço e
quantia de setecentos e cinqüenta mil réis, porque ele foi avaliado no inventário
que se procedeu por falecimento do referido Capitão Alípio Correa da Silva140.
Ao que parece, Samuel era um escravo valorizado pelos herdeiros de Alípio Corrêa
da Silva. João Felipe Walmarath compra-o após a cessão da herança a outro indivíduo.
Com o advento da liberdade, Samuel casou com Afra, escrava da família Coelho e
Magalhães. Afra teria sido uma quitandeira de mão cheia, segundo as narrativas. Maiores
informações sobre Afra advêm do inventário de sua mãe. Em 1884, falece Rita, ex-escrava
de Maria Antonia Coelha de Magalhães. A ex-senhora foi a inventariante, como se vê:
diz Maria Antonia Coelho de Magalhães que tendo falecido nesta vila a preta
Rita, sua ex-escrava, existe em seu poder a quantia de 304.000 réis pertencentes à
mesma, e por isso vem a suplicante juntar-se às fls. para que se digne mandar
proceder a competente partilha, por meio do arrolamento entre seus herdeiros141.
Nove herdeiros são arrolados, sendo sete filhos e dois netos, dentre eles Afra, com 21 anos
de idade (nascida em 1863, portanto). Afra teve um filho em 1885: João Baptista,
mulato142. Hoje em dia, a neta de Samuel e Afra, Eva Corrêa, reside na região.
Além de Afra e Samuel, outras famílias negras egressas do cativeiro foram se
estabelecendo na região. Assim foi com os Cavalheiro, Trindade e Ferreira. Esta última
família fixou residência no local após a mãe de Maria Ferreira (atual moradora com 90 anos
de idade) ter ganho do irmão de maminha um pedaço para morar. Os Cavalheiro vieram do
segundo distrito. Já a família Trindade descende de três mulheres: Nicácia, Jovelina e
Chutanga e um homem, João Trindade, que vieram na trança de uma Revolução143. Nas
primeiras décadas do século XX, mais duas famílias chegam ao local: os Lopes e Ramos.
Ambas adquirem terras na região. A genealogia a seguir dá mostras de algumas das
alianças forjadas entre essas famílias.
140
APERS. Livro de Registro de Notas. 1. Tabelionato. Caçapava. Livro 14, Fundo 11, Estante 26. Fl.75-76.
APERS. Inventários (Rita de Tal). Caçapava. Cartório de Órfãos e Ausentes. Maço 18, Estante 90, n°429.
1884, fl.12.
142
MDCS. Batismos (Livres). Paróquia de Caçapava. Livro 9 (1882-1887), fl.75. Não consta no documento a
filiação paterna do menino, nem seus padrinhos.
143
Trata-se da Revolução Federalista (1893-1895). Jorge Pereira Lopes (novembro de 2003) afirma que essas
mulheres eram chinas, ou seja, descendentes de indígenas.
141
147
***
Este capítulo acompanhou a formação do território de Cambará desde a primeira
metade do século XIX. As famílias de dois pretos-forros, ulteriormente unidas pelo
casamento, foram as primeiras a se estabelecerem no local. Posteriormente, outras famílias
foram fixando residência na região. Os dados compulsados revelam a difusão do
apadrinhamento entre escravos durante todo o século. É lícito supor que esses laços,
forjados durante o período escravista, foram elementos fundamentais na organização e
estruturação deste território. Ao que tudo indica, as senzalas foram espaços contíguos aos
quinhões pertencentes a libertos.
Em Cambará, dificilmente remonta-se a mais de duas gerações ascendentes para
retraçar a sucessão genealógica. Não se trata tanto de guardar lembranças sobre quem
foram os mais antigos, mas sim das alianças familiares forjadas ao longo dos anos. O
importante não é saber exatamente quem foi tal ou qual pessoa, mas quais famílias foram
unidas pelo parentesco. A memória é genealógica menos por fornecer uma lista infindável
de antecessores e mais por inscrever as relações familiares na história do grupo,
transmitindo a continuidade temporal do lugar e das pessoas que viveram ali. São as
relações de parentesco que estão na base de sua delimitação enquanto comunidade, ou sua
caracterização como a mesma turma ou tudo as mesmas pessoas.
Hoje em dia, isso é fundamental, na medida em que a coesão do grupo tende a se
reforçar – e ser reforçada – com a disputa pelo título das terras. Nas ocasiões nas quais o
grupo sustenta, debate e exige seus pleitos, as relações familiares figuram como princípios
de justificação que amparam a legitimidade da suas demandas. Os antigos são mobilizados
não apenas para comprovar a antiguidade da ocupação do lugar. O tempo genealógico é
instaurador da duração e dos direitos do grupo.
148
Figura 15 – Alianças entre algumas famílias de Cambará
D. 1884
João
Antonio
Rita
Maria
João
Antonio
Rita
Maria
Domingas
1854
1870
Maria
Beatriz
Martins
Samuel
Corrêa
Afra
Magalhães
D. 1905
João
Inácio
Camila
Maria
1853
1858
1860
1879
1881
Tertulina
Benta
José
Damascena
Ramão
João
Elias
Ana
Manoel
Thomé
da Silva
Amaro
Corrêa
da Silva
Ambrosina
Maria
Lúcia
Xavier
Rita
Luisa
Alves
Corrêa
Modesto
Corrêa
Estevão
Pereira
Lopes
Santa
Lopes
1919
Abrelino
da Silva
(Bejuca)
Eva
Leão
da Silva
1932
1929
1948
79
60
Orcindo
Xavier
Machado
Arani
Lopes
Cesarino
Trindade
Virginia
da
Silva
1931
1950
76
77
58
Gerci
da
Silva
Geraldo
da
Silva
Beloni
Lopes
da Silva
1928 - 2007
1952
56
Jorge
Pereira
Lopes
1932
79
76
Maria
Isabel
da Silva
Dalva
Xavier
da Silva
149
Isaura
Pereira
Lopes
1950
Beloni
Lopes
da Silva
Eva
Corrêa
1985
1920
89
Jovita
da
Silva
1948
60
Arani
Lopes
1978
23
30
Mariele
Lopes
da Silva
Daniel
Corrêa
Trindade
José Angelo
Dutra
(Trindade)
CAPÍTULO 4
O TERRITÓRIO INSCRITO
Estava falando de tempo. É tão difícil para mim
acreditar no tempo. Algumas coisas vão embora.
Passam. Algumas coisas ficam. Eu pensava que era
minha rememória. Sabe. Algumas coisas você
esquece. Outras coisas, não esquece nunca. Mas não é.
Lugares, os lugares ainda estão lá. Se uma casa pega
fogo, desaparece, mas o lugar – a imagem dela – fica,
e não só na minha rememória, mas lá fora, no mundo.
O que eu lembro é um quadro flutuando fora da minha
cabeça. Quer dizer. Mesmo que eu não pense, mesmo
que eu morra, a imagem do que eu fiz, ou do que eu
sabia, ou vi, ainda fica lá. Bem no lugar onde
aconteceu.
Toni Morrison, Amada.
Cessara de ser um espaço em branco ou um delicioso
mistério – um retalho claro sobre o qual um garoto
podia sonhar sonhos de glória. Tornara-se um lugar
tenebroso.
Joseph Conrad, O Coração das Trevas.
O interesse deste capítulo recai sobre as narrativas que envolvem a constituição do
território de Cambará. Tomando o cuidado de não naturalizar os discursos sobre o território
e não tratá-lo tão somente em seu aspecto simbólico, o material empírico dará azo para
enfrentar a questão central desta pesquisa: o papel assumido pela memória na dinâmica
identitária em Cambará. As primeiras seções tratam dos eventos marcantes da
territorialização do grupo. Se no capítulo anterior as reconstituições históricas basearam-se
basicamente em fontes escritas, neste haverá uma interface maior com a oralidade,
privilegiando os eventos – e sua seqüência temporal – estabelecidos pelos sujeitos da
pesquisa. Após essa reconstituição, o interesse volta-se para a mobilização das lembranças
150
no contexto atual de reivindicação de direitos. O capítulo segue a trilha do capítulo anterior,
detendo-se, primeiramente, na descrição do contexto da região ao término do regime
escravista.
4.1 Projetos de liberdade
Na mesma época da medição da sesmaria da Palma, fazendeiros e criadores do
segundo e terceiro distritos de Cachoeira do Sul reúnem-se no local denominado Irapuá
(nas cercanias de Cambará), a 11 de novembro de 1897144. Deliberam em casa do
subdelegado do segundo distrito a respeito da formação de uma polícia particular, seguindo
recomendação do presidente da Província. As queixas ao Poder Legislativo e o anúncio de
suas medidas têm o fim claro de atrair à atenção das autoridades públicas, que não estariam
resguardando os interesses do povo, como se vê:
A quem [povo] o Poder Legislativo tem deixado em abandono, negando (pode se
dizer) proteção, visto que tem sido e continuara a ser logrado no seio da
sociedade uma multidão de indivíduos desventurados, sem a mais leve idéia dos
deveres inerentes ao seu novo estado, por isto também devido a forma porque os
abolicionistas têm dirigido o movimento na imprensa, julgam aqueles indivíduos
que eles fazem exceção na lei, e portanto podem praticar, como estamos vendo
que praticam, aqui e em toda parte, toda sorte de rapinagem, abusos e crimes, sem
que o poder público exerça sua ação repressora por falta de poder policial.
Entretanto, o poder legislativo não deu suas vistas para a atual em que nos
achamos, nem mesmo aumenta a força policial (fl.1).
Como notou Machado (1987:25), os objetos roubados, apropriados e furtados por
escravos e ex-escravos foram preferencialmente aqueles que simbolizavam a “dominação
branca”. As rapinagens, abusos e crimes praticados por libertos não eram movidos apenas
pela satisfação de necessidades fisiológicas; voltavam-se, antes, para um bem de prestígio:
os animais vacuns.
144
Arquivo Histórico Municipal de Cachoeira do Sul (AHMCS). Delegacia de Polícia de Cachoeira. Avulsos,
fl.1.
151
Fica particularmente visível neste documento a suposição da incapacidade dos exescravos, submetidos que estiveram ao regime da servidão, incorporarem os “deveres
inerentes a sua nova condição”. A inconformidade com tal situação fica expressa nas
medidas adotadas pelos fazendeiros. Atribuem a si mesmos um caráter progressista, pois à
vista dessa “ordem de coisas, não podem os cidadãos presentes esquivar-se de concorrerem
para que seja levada a efeito a criação da polícia particular neste distrito (fl.1)”. O encontro
resulta na criação de uma força policial particular sob responsabilidade dos cidadãos ali
presentes, que se comprometem a fornecer cavalos e contribuições financeiras, sob pena de
não usufruírem do serviço e até serem multados.
As queixas ao “desamparo” do poder público dão um bom indicativo das
expectativas da camada senhorial quanto à atuação dos governantes no trato dos indivíduos
egressos do cativeiro. A formação de uma milícia atende tanto a esse ‘abandono’, como às
disposições incorporadas desses agentes, pois a autoridade senhorial sempre se ressentiu da
atuação judiciária e política em sua esfera de dominação particular. O controlo dos
forasteiros e de ex-escravos da localidade era imperioso para mitigar os danos causados por
saques e deter a prerrogativa na seleção de braços para o trabalho. Estudando o contexto
pós-abolição no Recôncavo Baiano, Fraga (2006) notou que ao término do cativeiro havia a
visão generalizada do liberto como um criminoso em potencial. Colocar-se na condição de
“protegido” de ex-senhores poderia constituir uma estratégia para movimentar-se no
“mundo dos brancos” (Fraga, 2006:248-54), o que manifesta, de outro prisma, a
manutenção das prerrogativas de poder dos ex-senhores.
Por outro lado, os parâmetros das relações de trabalho entre libertos e ex-senhores
era elemento fundamental. No ano de 1884, houve uma concessão generalizada de alforrias
condicionais no Rio Grande do Sul. Em geral, essas manumissões estipularam um prazo de
cinco a sete anos de trabalho a serem prestados pelo ex-cativo a contar a data de
concessão145. Evidentemente, o que estava em jogo não eram os proclamados princípios
humanitários e cristãos, mas uma tentativa de exercer uma influência moral nos exescravos. A “servidão disfarçada” encobrida por essas cartas de liberdade (Moreira, 1990),
145
Ver “Catálogo Seletivo de Cartas de Liberdade”, que contém o acervo dos tabelionatos dos municípios do
Rio Grande do Sul. APERS, Porto Alegre, 2006 (2 volumes).
152
gerou uma crescente inconformidade entre ex-cativos. Como argumenta Moreira (1996;
2003), na década de 1880 a criminalidade foi praticada sobretudo pelos contratados.
As pilhagens de libertos pareciam ser uma constante por todo Rio Grande de São
Pedro, a julgar pelo relatório do presidente da Província146, visivelmente alarmado com a
“onde negra” (Azevedo, 1988). Essa conjuntura tem particular importância não só pela
formação de uma milícia para-estatal para conter as rapinas na região onde hoje se localiza
Cambará, mas também porque o roubo de gados foi impetrado por antecessores da
comunidade. Quase vinte anos após o término do regime escravista, o abigeato é a principal
causa do assassinato de Manoel Thomé da Silva por José Martimiano Machado. Thomé e
Martimiano são antecessores diretos de dois troncos-familiares de Cambará. A relação entre
ambos deteriora-se em função do tipo de interação estabelecido com os grandes
proprietários da região.
Enquanto Thomé era capataz dos fazendeiros, Martimiano, juntamente com alguns
de seus irmãos e primos, impetrava saques às fazendas. Os relatos e o processo-crime de
José Martimiano Machado147 atestam que a iminente delação de Thomé sobre o abigeato
motivou o crime. Tal fato, ocorrido em 1905, resultou na condenação de Martimiano por 24
anos. Para compreender as ações de Thomé e Martimiano, proponho tomar de empréstimo
o conceito de “projeto de liberdade”, tal como formulado por Moreira (2003:17):
[...] foram [projetos] elaborados em função das experiências socioculturais em
que estavam imersos, e estavam condicionados a inúmeras variáveis, sendo sua
eficácia dependente de um jogo permanente de mudanças de estratégia, as quais
deveriam levar em conta os outros projetos em curso no mesmo momento em que
podiam atuar como inimigos ou aliados (sociedades, clubes, governo, opinião
pública). São projetos que se cruzam almejando diferentes objetivos, mas que –
pelo menos momentaneamente – unem grupos heterogêneos em termos sociais e
culturais.
Busco, com este conceito, evitar tomar por parâmetro de análise o par de opostos
passividade versus rebeldia, ou, pior ainda, consciência e alienação. Supor isso redunda em
146
Relatório passado pelo. Dr. Rodrigo de Azambuja Vilanova à administração da Província de S. Pedro do
Rio Grande do Sul ao Sr. Barão de Santa Tecla, 1o vice-presidente, no dia 9 de agosto de 1888. Porto Alegre:
Oficinas tipográficas do Conservador, 1889.
147
APERS. Processo-Crime de José Martimiano Machado. Cartório do Júri. 1919-1922. Cachoeira do Sul;
M02 E09, n°31.
153
análises que julgam ser capazes de mensurar a consciência revolucionária ou, ao contrário,
o reflexo dos valores da classe dominante148. Vários rumos foram percorridos no pósabolição. Não se tratava de ter mais ou menos consciência, e sim de uma série de percalços
e dificuldades que estavam em jogo. Ter o amparo de elites locais poderia facilitar o acesso
a procedimentos jurídicos, caso isso se fizesse necessário, como numa medição, por
exemplo. Saquear fazendas era outro possível meio de garantir a permanência na terra.
Todavia, na história de Cambará, os projetos de liberdade chocaram-se. Redundaram na
prisão de um, e na morte de outro.
4.2 Justaposição de vozes
Que finalmente essas declarações são verdadeiras, são ditadas pela sua consciência e sem a menor coação.
José Martimiano Machado, 1905.
José Martimiano com uma bordoada derrubou o infeliz Manoel Thomé do cavalo em que montava, e, como se
oferecesse oportunidade, resolveu num momento irrefletido enforcá-lo, que efetivamente consumou com o
próprio laço da vítima que retirou dos teutos dos cambilhos, enquanto Estevão segurava pelas rédeas do
cavalo da montaria de Jose Martimiano. Isto feito, o assassino esticou o laço, abotoou a presilha na argola da
chincha e em seguida soltou o cavalo que arrastou o corpo de seu desventurado dono a regular distância pelo
campo, até que, afrouxando, a chincha desprendeu-se do animal e arreamento, ficando assim o corpo
insepulto, exposto à ação do tempo e a ferocidade dos carnívoros.
Irineu Ilha, promotor, 1905.
Ali que mataram meu bisavô. E a fazenda velha, a matriz dos Costa, era sempre lá no Augusto, lá embaixo.
Então o nego véio ia pra lá e tinha muita moça. Naquele tempo o nego era meio escravo. Então ele morava
aqui, ia pra lá e não tinha pressa de vir. O dia que iam fazer pão ocupavam ele ali. ‘Olha, tu não vai hoje, tu
vai ficar porque tem pão pra assar’. Então ele ficava até quando tinha a última taxada de pão, e ficava lá. E
sabia dos roubos, os empregado e os graxeiro sabiam que ele ia entregar eles. Aí quando ele veio meia-noite
tá cruzando ali, bem onde mora o compadre Adão [vizinho] ali, era fundo de campo. Então ele vinha por ali.
E laço nos peito, aquela coisa toda. E viu aquele boi berrando na beira da lagoa e foi lá. Chegou lá, eles
tavam sangrando o boi. Já tava com o boi sangrado. E mataram ele, porque sabiam que ele ia entregar [...]
Degolaram, o cavalo dele era muito manso. Nego da fazenda degolaram ele. Já estavam com o boi
carneando. Aí degolaram, o cavalo era muito manso. Aí tiraram a marra do laço, deixaram preso na
chincha. Furaram a língua.
Geraldo da Silva, bisneto de Thomé, 76 anos, 2005.
Mataram o Thomé e encheram a boca dele de miolo de pão.
148
Para uma consistente crítica ao postulado do “escravo-coisa”, consultar Chalhoub (1990).
154
Maria Isabel Correa, bisneta de Thomé, 79 anos, 2006.
Tinha um cara lá na fazenda dos Costa, e aí, muito adulão [adulador], davam umas garras de charque pra
ele. Daí ele ia e vinha todos os dias lá. E aí ele disse que o tal de Rufino [antigo morador da região] matava
alguma rezes, na época das revoltas que andavam por aí. Daí ele, para poder adular e ganhar aquilo, meteu
o Martimiano no meio. Aí o Martimiano avisou ele para parar de mentir, que ele não carneava gado de
ninguém. Aí ele contava lá e traziam quentinho de lá pro Martimiano o que ele tinha dito e não dito. Aí o
Martimiano avisou ele se ele não parasse com aquilo ia ganhar a pior. E aí uma vez saiu um baile numa casa
de uma tia minha lá no Pinheiro [núcleo familiar] perto da casa da velha Maria [vizinha e comadre]. Daí o
Martimiano foi esperar ele lá na porteira da fazenda, bem na beira da faixa. Esperou ele ali, deu uma
paulada na cabeça, derrubou e laçou um laço no pescoço e deixou o cavalo pastando com ele de arrasto
numa lavoura que tinha ali embaixo. [...] Depois não sei que tramóia que foi que botaram ele na cadeia.
Orcindo Machado, sobrinho de Martimiano, 79 anos, 2005.
O Martimiano foi condenado a trinta e um anos e um dia.
Jorge Pereira Lopes, sogro de Orcindo Machado e Geraldo da Silva, 89 anos, 2005.
Enforcaram o Thomé numa árvore perto duma lagoa. Tavam estranhando que ele não chegava. Aí
descobriram porque o cachorro do Thomé ficava uivando da árvore até a matriz da fazenda.
Maria Ferreira, comadre, ‘tia’ e vizinha de Jorge, Orcindo e Geraldo, 90 anos, 2007.
São várias as narrativas a respeito da desavença entre Thomé e Martimiano. O
pesquisador está diante de diversas vozes. Vozes situadas, entrelaçadas com o fato narrado.
Promotores, testemunhas, vizinhos, bisnetos, sobrinhos, irmãs, amásias, os próprios atores.
O passado não está simplesmente lá. Quando irrompe, as imagens tecidas articulam uma
enorme gama de sentidos. A ‘verdade do jeito que ela realmente foi’; separação entre real e
representação do real. O teor das fontes pode guiar o espírito inquieto do pesquisador a
dirimir essas dúvidas. Seria lançado em uma árdua tarefa. Os relatos estão envoltos, muitas
vezes, em histórias mágicas, em aventuras, peripécias. O documento escrito, todavia,
também tem sua dose de magia, de alquimia que trabalha a matéria social até dar-lhe uma
forma inteligível no contexto no qual é produzido. “E aqui começamos a enxergar a
magnitude da tarefa, que não exige desmistificação ou remistificação, mas uma poética
bastante diversa da destruição e da revelação” (Taussig, 1993:31). Michel Taussig, ao
abordar os terríveis relatos do ciclo da borracha na Amazônia colombiana, clama por
155
enxergar o mito no natural e o real no mágico, desmitologizar a história e reencantar sua
representação reificada (Taussig, 1993). E continua:
Talvez sintamos-nos na obrigação de indagar que verdades tais histórias
encerravam e em que ponto, na cadeia da linguagem que liga a experiência à sua
expressão, entra o tom melodramático: ao expressá-los nos acontecimentos
descritos ou em ambos?
Tal cadeia de questionamentos assume um mundo divisível em fatos reais e
representações de fatos reais, como se os meios de representação constituíssem
mero instrumento e não fonte de experiência. ‘Toda uma mitologia está em nossa
linguagem’, notou Wittgentein, incluindo, podemos notar, a mitologia do real e
da linguagem como algo transparente (Taussig, 1993:53).
A tarefa, portanto, consiste em depurar a análise desses registros. Não se trata de filtrar a
informação de forma a separar e opor o ‘real’ de sua representação. A alternativa é ouvir
essas histórias não como uma ficção ou como sinais disfarçados da verdade, mas como algo
real (Taussig, 1993).
O crime parece ter tido certa repercussão na época. O Jornal “Rio Grande”, em
diversas edições acompanha o caso149. Réu confesso, Martimiano, juntamente com seu
“comparsa” Estevão150, admite ter derrubado o preto Thomé da sela de sua montaria com
uma bordoada na cabeça, estrangulando-o com uma corda (fornecida por Estevão). Em
seguida, amarrou a chincha na presilha do cavalo, que arrastou o corpo insepulto de Thomé
até a beira da Lagoa do Meio. Este é o “fato delituoso” exposto pelos próprios réus,
segundo o promotor Irineu Ilha151. Após narrar minuciosamente o crime (vide acima),
Irineu Ilha qualifica o réu Martimiano como:
Um bárbaro e perverso matador, atuando unicamente por uma índole feroz e
sanguinária, que tão tragicamente desperta com conhecimento da autoria dos
149
Museu Histórico de Cachoeira do Sul (MHCS). Jornal “Rio Grande”. 14 de setembro de 1905. Ano 2, n°3,
pág.2. MHCS. Jornal Rio Grande. O noticiário da prisão preventiva de Martimiano encontra-se na edição de
28 de setembro de 1905, ano 2, n°3, pág.2. O julgamento na edição de 22 de julho de 1906, ano 2, n° 83.
150
Não confundir o ‘comparsa’ de Martimiano, Estevão Gomes Machado, com Estevão Pereira Lopes, pai do
octogenário Jorge Pereira Lopes.
151
APERS. Processo-Crime José Martimiano Machado. Cartório do Júri. Cachoeira do Sul. M 02, E 09, N.31.
fl.2. A partir de agora, farei a referência da folha dos trechos selecionados entre parênteses. Outras fontes
serão citadas em notas de rodapé.
156
crimes de outra natureza. Sem sermos partidários da escola antropológica152, aliás
decadente, forçoso é convir que em certos organismos as leis atávicas atuam
poderosamente, determinando num sem número de indivíduos fenômenos físicos
oriundos das modificações do sistema nervoso - Bevilaqua-Criminologia e
Direito, pagina 16; ora, dadas às circunstâncias altamente agravantes com que
José Martimiano praticou o delito, a resolução tomada de momento, a calma e
frieza da execução ante a passividade da vitima, tudo induz a crer que o
denunciado e delinqüente tem uma constituição fisiológica adequada à colisão do
crime, dignando do estudo dos competentes (fl.2v).
Não apenas as palavras do promotor Irineu Ilha discursam sobre a índole de José
Martimiano Machado e Manoel Thomé da Silva. As quatro testemunhas convocadas a
depor são instadas a assim proceder. Clemente Borges declara que Thomé era “honesto e
trabalhador” (fl.5). Albino J. Trindade qualifica Thomé como “honesto e serviçal” (fl.5v).
Outra testemunha, Ana Marcina, nada declara. Já Damascena Machado, diz saber “que
Thomé andava com intrigas com brancos, falando de todos” (fl.6).
Todas as testemunhas são residentes do terceiro distrito. Um detalhe a ser percebido
é que não fica explícita a vinculação de Clemente e Albino com o réu153. Não é possível
saber se eram apenas vizinhos, ou se tinham alguma relação de amizade, inimizade ou
qualquer outro tipo de relação. Do contrário, a vinculação das testemunhas Damascena e
Ana Marcina fica explícita logo de início. Os termos de depoimento das duas começam de
forma similar: “3º Testemunha. Damascena Machado, diz que seu amásio Estevão [...] 4º
Testemunha. Anna Marcina, diz que seu amásio Martimiano”...(fl.6) [grifos meus].
Pode-se sugerir que os vínculos expressos no processo entre testemunhas e réus
soam como artifícios discursivos que atuam como sutis formas de conferir, ou não,
autoridade aos discursos. Deste modo, o peso das palavras de Damascena e Ana certamente
não era o mesmo de Albino e Clemente, quem dirá do promotor. Damascena e Ana,
mulheres que não possuem casamento legítimo, não possuem maridos, e sim amásios.
Estabelece-se uma diferença de início. A pena de quem registra os depoimentos é a pena de
152
Deve-se entender antropologia, nessa época, como disciplina que se detinha na análise biológica do
comportamento humano (Schwartz, 1993:53). Para uma análise mais ampla sobre a influência das doutrinas
raciais nas escolas de direito, consultar o mesmo livro da autora (Schwartz, 1993).
153
Dois anos antes, em 1903, Clementino Borges figura em outro processo, como agredido. Crespim, vulgo
“da Chácara”, e Paulino Rodrigues agridem-no com um cabo de relho e uma espada. Nenhuma das
testemunhas, ou os réus, apontam a causa do delito. Uma das testemunhas é Elias Machado, irmão de
Martimiano. APERS. Processos-Crime e outras. Cachoeira. Cartório Cível e Crime (1900-1903). M 82, caixa
40, n° 2626.
157
diferentes agentes, situados em diferentes posições. Esta pena estava imersa em uma trama
de relações sociais e em um contexto social mais amplo.
Em 25 de outubro do mesmo ano, as testemunhas são novamente instadas a depor.
Clemente Borges reitera o disposto e diz que conhecia a vítima, “que era um bom homem,
trabalhador e inofensivo” (fl.19v). Martimiano não gozava da mesma reputação. Para
Clemente, Martimiano e Estevão “incontestavelmente são muito maus” (fl.19v). Já Albino
declara que ele foi incumbido pela mulher da vítima a avisar às autoridades do fato
ocorrido, além de ter auxiliado a levar o cadáver para a casa da mesma. Para ele, Thomé era
“um homem trabalhador e estimado por todos” (fl.20-20v). Pelo visto os depoimentos e a
denúncia do promotor não ajudam muito Martimiano. Ritual de contaminação, o período
entre a denúncia e a prisão transforma o “pardo” Martimiano (fl.1v) no “preto” Martimiano
(fl.15v). Como foi percebido por Cunha (2002), os registros do arquivo preservam a
memória de uma experiência. São essas permanências que se transformam em estigmas e
marcas do indivíduo:
Palavras e imagens devem fazer parte de registros e documentos de forma
específica. Mais ainda, sua gramática e composição inauguram uma forma de
preservar uma particular memória do evento, colada a certos sujeitos, cuja lógica
de classificação e utilização deve ser continuamente projetada no futuro (Cunha,
2002:25) [grifos no original].
Os motivos aventados como causa do assassinato devem ser situados no seio dessa
articulação entre registro do evento, preservação da memória de um evento e sua projeção
nos indivíduos imputados. No auto de denúncia do promotor, lemos que Martimiano, “sem
que tivesse motivos” (fl.1v) matou Manoel Thomé. Linhas adiante, Irineu Ilha declara:
“forçoso é convir que em certos organismos as leis atávicas atuam poderosamente” (fl.2v).
Em seguida, aventa como possível causa do “bárbaro enforcamento” o fato dos réus
“suporem que Thomé era um dos delatores dos furtos de gado cometidos reincidentemente
pelos denunciados” (fl.3v). O promotor parece contradizer sua afirmação inicial (de que
não houve motivos), ao declarar que “não houve, pois, resolução de momento, mas sim
longa premeditação, cálculo, ajuste para malvadez requintada, no qual predominou instintos
bestiais” (fl.3v). A meu ver, as duas primeiras causas possíveis do assassinato apontadas
pelo promotor estão estritamente ligadas. Dizer que Martimiano atuou sem motivos
158
encontra sua equivalência no suposto poderio das leis atávicas que incidiriam sobre o réu.
O cenário da morte de Thomé traçado pelo promotor Irineu Ilha e as imagens carregadas de
sentidos expressas por suas palavras confluem na descrição da índole de Martimiano. Tudo
isso atua no sentido de produções de verdades.
Analisando as possíveis causas do crime, cabe analisar os furtos de gado. Supor que
o motivo do crime foi este afasta (minimamente, pelo menos) a possibilidade dos réus
terem cometido o crime sem motivos ou por oferecer-se a oportunidade. A questão seria
posta, então, em uma zona de conflitos, em pontos de cisão, ao invés de motivos banais,
resoluções de momento e leis biológicas. Nas palavras das testemunhas, este motivo já fica
explícito (às vezes, implícito). Clemente Borges, testemunha convocada a depor, diz
suspeitar ter sido Estevão o impetrante do crime, por este “ter-lhe dito há poucos dias, que
havia três pessoas que precisava acabar com elas, que eram Amaro e mais dois, por serem
muito faladores” (fl.5). Albino J. Trindade igualmente desconfia de Estevão por este ter-lhe
declarado em conversa que:
Paulo e Jacinto estavam pagos pelo Sr. Augusto Costa para bambearem os
carneadores, mas se ele os encontrasse não bambeariam mais. Disse mais que
Thomé era honesto e serviçal; que ouviu dizer que Estevão com outros
companheiros dava-se ao vício de furto de gado para carnear; que soube que
Estevão não se dava com Thomé, não sabendo o motivo (fl.5v).
Esses trechos contêm diversas lacunas, como o restante do processo. Não sabemos
ao certo quem são Paulo, Jacinto, Amaro e mais dois de que falam Albino e Clemente. Fica
sugerido que tais pessoas teriam denunciado os furtos de gados cometidos pelos réus. Mas
tudo parece muito confuso. Albino declara, no princípio, que indivíduos estavam sendo
pagos por Augusto Costa para bambearem (vistoriarem, procurarem) os carneadores. Em
seguida, relata as desavenças de Estevão com estes. Porém, ignora o motivo dele não se dar
com Thomé. No segundo depoimento, em 25 de outubro, Albino relata uma conversa com
Estevão: “Estevão disse-lhe em palestra que contava que uns indivíduos iam bambear os
campos do senhor Augusto Costa para evitar furtos de gado. Que se isto se realizasse, ele
Estevão havia de tomar uma vingança. Que finalmente desconhecesse os costumes dos
denunciados” (fl.20v). Na mesma frase, Albino parece conhecer a prática de furtos de gado,
159
para, em seguida, negar que os conhecesse. Após o segundo depoimento das testemunhas
(25/10/1905), nenhuma referência é feita ao roubo de gados. É necessário tentar descobrir
as razões para tal silenciamento. Ao final do processo, prevalecerá a tese de que
Martimiano assassinou Thomé por motivo frívolo.
Martimiano nega em todos os depoimentos prestados que tivesse qualquer tipo de
desavença com Thomé. Declara inclusive que devia “relevantes obséquios” (fl.12 v) ao
referido. É provável que assim agisse tentando evitar uma dupla acusação: de assassino e
ladrão. Damascena e Ana Marcina também tangenciam a questão do abacto. Suas versões
variam de um depoimento para outro. No primeiro, ambas declaram que Martimiano e
Estevão estavam doentes, e tomaram “chá de salva com casca de laranja” (fl.6), além de só
saberem do fato no dia posterior. Já no segundo depoimento, Damascena declara saber
da morte do preto Manoel Thomé, ignorando, porém, quanto à autoria do delito.
Que só depois de presos os dois, seu irmão e amásio, e após a confissão dos
mesmos, foi que ela testemunha ficou sabendo quem eram os criminosos. Que
eles jamais transmitiram este segredo, que naturalmente guardaram entre os dois
(fl.21).
Damascena que, em seu primeiro depoimento, acentua as intrigas de Thomé com os
brancos, falando de todos, altera sua versão dos fatos declarando que “o preto Manoel
Thomé não tinha inimizade com Estevão nem com Martimiano” (fl.21). Além do mais,
inverte a ligação de proximidade com os réus, asseverando que Martimiano e Estevão
naturalmente guardaram o segredo entre os dois. Ana Marcina depõe o seguinte:
Disse que nada sabe de ciência própria sobre o constante na denúncia. Que
[trecho ilegível] sendo amásia de um dos denunciados, ele jamais lhe revelou
cousa alguma sobre o delito que cometeu. [...] Que ignora o motivo deste crime
[...] Disse que conhecia o preto Manoel Thomé, que era um preto trabalhador, que
permanecia sempre de ajuste em casa do senhor Augusto Costa. (fls.21 v-22).
Ana Marcina, tal como Damascena, inverte os termos da questão. Sendo Estevão
seu amásio, não lhe contou nada sobre o fato. Ana Marcina sutilmente refere a presença de
outra personagem envolvida nesta trama: Augusto Costa (personagem que aparece e
desaparece definitivamente após este depoimento). Os enredos na compreensão deste
processo-crime aumentam ainda mais.
160
Os principais sujeitos deste documento são, obviamente, José Martimiano, Estevão
e Manoel Thomé. As testemunhas também são citadas reiteradamente. Pessoas como
Augusto Costa, Jacinto, Marcos, Paulo, Amaro são mencionadas, mas não localizamos
muitas informações sobre elas. Quero chamar atenção com esta enumeração de nomes e
pessoas para as lacunas, supressões e silenciamentos do documento. O confronto com a
transmissão oral revela não só uma correspondência entre dito e escrito, quanto outras
lógicas que conformam as narrativas do evento, além de detalhes e fatos ausentes no
documento escrito.
O nome dos envolvidos no assassinato, a presença da família Costa, o modo como
Thomé foi morto, a questão do furto de gados, e outros aspectos constantes nas falas dos
moradores de Cambará aparecem no documento, manifestando a importância desse evento
para a história do grupo. Mas o que mais interessa aqui é notar as especificidades dessas
falas. No início desta seção, diversas versões foram apresentadas. Quero agora voltar a elas,
e me deter nas falas de Geraldo, Orcindo, Maria Isabel, Maria e Jorge, mais de cem anos
depois do fato.
4.3 O pano do pé cortado
É interessante notar que a descrição de Geraldo da Silva sobre a forma como seu
bisavô foi assassinado (vide acima) assevera que Thomé teve sua língua furada. (Aí
degolaram, o cavalo era muito manso. Aí tiraram a marra do laço, deixaram preso na
chincha. Furaram a língua). No auto de corpo de delito constante no processo não consta
que Thomé teve a língua furada. O importante não é saber se ‘de fato’ a língua de Thomé
foi furada, mas tentar dar conta da razão pela qual Geraldo afirma isso.
Já Maria Isabel da Silva garante que Thomé teve a boca cheia de miolo de pão.
Orcindo relata que um cara da fazenda dos Costa andava falando inverdades sobre
Martimiano. Maria Ferreira, por sua vez, sustenta que Thomé foi enforcado. Ou seja, à
parte as variações, os narradores enfatizam um conflito existente entre Thomé e
Martimiano. As descrições acentuam justamente a possível delação de Martimiano por
Thomé, como quando Geraldo diz que mataram ele porque sabiam que iam entregar, ou
161
quando Orcindo afirma que Thomé ia levar a pior se não parasse de dizer mentiras. A
memória, neste sentido, é forjada no âmbito das experiências do grupo que irá sustentar a
lembrança (Anjos e Silva, 2004). A sustentação das lembranças encontra sua coerência
dentro das experiências incrustadas pelos eventos históricos. Se o furto de gados vai
desaparecendo com o correr do processo-crime, não ocorre o mesmo nos relatos.
Como nota Walter Benjamin, a narrativa não está interessada em transmitir o “puro
em si” da coisa narrada (Benjamin, 1996). Ela transmite mais do que informações.
Transmite atribuições de sentido, obedecendo a padrões de relevância fixados pelo grupo.
As imagens dos fatos transmitidos pela memória carregam muito mais do que uma mera
paisagem, e sim um cenário de desenrolar de vidas. É no contexto deste cenário onde cada
vida e cada existência pode ser mais bem contemplada pelo grupo. O que se vê é o
horizonte de ação do grupo, é o palco da existência dele. Quando Geraldo retrata o cenário
onde se deu o assassinato de Thomé, a imagem magistralmente evocada acentua a discórdia
existente em torno da questão do roubo de gados: Thomé surpreende Martimiano sangrando
o boi.
E sabia dos roubos, os empregados e os graxeiro sabiam que ele ia entregar eles.
Aí quando ele veio meia-noite tá cruzando ali, bem onde mora o compadre Adão
ali, era fundo de campo. Então ele vinha por ali. E laço nos peito, aquela coisa
toda. E viu aquele boi berrando na beira da lagoa ele foi lá.
O documento também contempla esses fatos, como quando Damascena afirma que
Thomé andava de intrigas com os brancos. Contudo, como já pontuei, essa questão vai se
esvaindo até desaparecer totalmente. Os relatos de Orcindo e Geraldo, ao contrário,
sugerem uma rede de relações entre os carneadores e peões da fazenda. Os empregados e o
graxeiro sabiam da delação. Teriam eles alertado Martimiano? Ao que indica Orcindo, sim.
(Aí ele [Thomé] contava lá e traziam quentinho de lá pro Martimiano o que ele tinha dito e
não dito). O roubo de gados na região envolve uma série de antecessores de Cambará (ver
próximas seções). Por esta razão, a confrontação entre dito/escrito tira do anonimato uma
série de indivíduos, porquanto eles fazem parte da lembrança vivida. Só podemos jogar
luz sobre alguns detalhes do documento com as pistas da oralidade. Geraldo da Silva
oferece um dado interessante sobre a prisão de Martimiano:
162
Aí foi lá [delegado], viu o crime lá e perguntou quem é um que tinha dessa turma,
qual é que andava com um pano no pé, o pé cortado. Aí as mulheres gritaram:
‘Ah não, é o tal do Estevinho que andava com o pé cortado’. Aí foram na casa e
pegaram, tava escondido. Aí o Estevinho não ia se entregar sozinho e disse que
quem matou foi o Martimiano, era o dono da carne. (Geraldo da Silva, 76 anos,
07 de maio de 2005).
Lê-se no auto de corpo de delito que junto ao cadáver “foi encontrado um pedaço de
pano que demonstrava estar atada em um pé ferido cujo pano não era do cadáver, o que foi
verificado ser dos assassinos” (fl.10). Peça técnica no documento, elemento fundamental no
relato. Esses pequenos rastros que conformam a narrativa são fundamentais na coisa
narrada por conta de seus efeitos. Os rastros deixados por Estevinho (ou Estevão, se
preferirmos o documento) compõem o quadro e o cenário daquilo que foi vivido. As
dessemelhanças entre dito/escrito podem ser perscrutadas não apenas por versões
contrapostas, mas também pelo local assumido por certos elementos na narrativa.
A presença ou ausência, o protagonismo ou anonimato, o papel periférico ou central
de certas pessoas também são sujeitos a variação. No processo, menciona-se poucas vezes
Augusto Costa. Já nas narrativas é fundamental saber quais eram as relações de trabalho
entre Thomé e os Costa. Isso porque essa relação está na base da dimensão temporal do
evento. Geraldo afirma que naquele tempo o nego era meio escravo e que Thomé deveria
ficar na fazenda até quando tinha a última taxada de pão. Já Orcindo atribui a adulação de
Thomé às garras de charque dadas pelos fazendeiros. A altercação entre os vizinhos é
remetida à época dos cativos pelos sabedores.
Por não saber ao certo quando se tinha dado a contenda entre Thomé e Martimiano,
debruçamo-nos sobre vários tipos de documentos. Sabíamos pelos relatos que o fato havia
se passado no tempo do cativeiro. Imaginamos que no final deste. Lá fomos nós pesquisar
listas de condenados, processos-crime, investigações policiais, jornais e correspondências
do júri no período entre 1870-1890. Algum tempo depois localizei o processo-crime de José
Martimiano Machado. Tivera início em 1905. Carência de cronologia? Imprecisão
histórica? Limitação mnemônica? Essas podem ser as primeiras perguntas a vir à mente do
pesquisador. A questão a ser feita foi deslocada. Não se tratava de avaliar o oral a partir do
163
escrito. Talvez estivesse na hora de indagar o que motiva as pessoas a remeterem um fato
ao tempo do cativeiro ou à época dos cativos.
***
Observam-se nítidas diferenças no relato de Geraldo, bisneto de Thomé e Orcindo,
sobrinho de Martimiano. Se bem que sempre presentes, as narrativas sobre roubos de gados
são silenciadas em Cambará por todos. Há um cuidado especial quando se fala nesse
assunto. Geraldo e seu filho, Márcio, não negam o abigeato, embora digam que Martimiano
e seus irmãos (que também praticariam furtos) eram coagidos por um fazendeiro branco do
entorno. Aqui, como em outros casos, esses não-ditos são tão importantes quanto o dito
(Pollak, 1989). Há um permanente cuidado com as palavras que se reflete na sua forma e
capacidade de recuperar, de forma mais extensa e detalhada, histórias e personagens
(Arruti, 2006). De qualquer modo, é Orcindo quem nega mais enfaticamente o furto de
gados. Está presente uma tensão em sua fala. Os burburinhos sobre o roubo de gados que
impeliram o ataque de Martimiano estão presentes, embora tudo seja mentira. Geraldo é
mais explícito quando relata o ‘flagra’, enquanto Orcindo diz que Martimiano esperou o
término de um baile para matá-lo.
Leach (1995 [1954]) já fizera notar que versões do passado variam conforme a
vinculação dos agentes a certo grupo. No caso estudado por este autor, diferentes clãs
oferecem diferentes versões sobre os fatos pretéritos, ajustando as narrativas aos seus
interesses e posições. Contudo, a ‘manipulação’ do passado não é livre de
constrangimentos, como notou Appadurai (1982). Em que pesem as diferenças, há um
núcleo comum de fatos e eventos que são debatíveis [debatability]. Percebe-se o peso das
palavras, a importância de cada frase, cada detalhe constante nas narrativas. Elementos
como a língua furada não são meros acessórios banais, eles têm por fim conservar no
ouvinte a coisa narrada (Benjamin, 1996).
***
Jorge Pereira Lopes era indagado naquela tarde de dezembro sobre a prisão de
Martimiano. Afirmou, pelo menos três vezes, que Martimiano teve a pena estipulada em
164
trinta e um anos e um dia. Com o transcorrer da conversa, completou: mas esse um dia não
chegava nunca154. Com uma frase, Jorge fixa no ouvinte a dramaticidade da experiência
histórica do grupo. Sua frase não põe um ponto final à história. Ela a deixa em aberto.
Voltemos ao processo.
A descrição do julgamento nos autos é totalmente superficial. Limita-se a dizer que
a palavra foi dada ao promotor, “que procurou demonstrar a culpabilidade dos réus” (fl.40).
Anuncia-se que a palavra foi dada ao advogado de defesa “o qual procurou inocentá-los”
(fl.40 v). A réplica e a tréplica são registradas de igual modo. O juiz formula certos quesitos
a serem respondidos pelos jurados. Por unanimidade de votos, José Martimiano Machado é
considerado autor do assassinato de Manoel Thomé da Silva. Também por unanimidade de
votos, os jurados consideram que Martimiano não agiu por premeditação, nem por motivos
frívolos. Todos consideram não existirem atenuantes para o réu.
Estevão Gomes Machado, por unanimidade de votos, é declarado inocente. Os
jurados não o consideram cúmplice no assassinato (fls.40-41v). Como os jurados chegaram
a tal conclusão nunca saberemos. Apesar de Estevão confessar inúmeras vezes sua presença
na cena do crime – fornecendo a Martimiano, inclusive, a corda utilizada no enforcamento
de Thomé –, os jurados inocentam-no (talvez por ter entregado Martimiano, o dono da
carne...). O processo não detalha os argumentos dos advogados. O resumo do julgamento é
do seguinte teor:
De acordo com os votos do júri, quanto ao réu José Martimiano Machado,
julgando-o sucessivo nas penas do artigo 294, parágrafo 1, do Código Penal, o
condeno a vinte e um anos de prisão celular, que cumprirá na Casa de Correção
do Estado, bem como a indenização do dano causado e custas proporcionalmente.
Quanto ao réu Estevão Gomes Machado, absolvendo-o da acusação a que lhe foi
intentada, mando que se lhe de baixa na culpa e que, findo o processo legal, se
por outro motivo não estiver preso (fl.41).
.
Mas a história de Martimiano não termina aqui. Como diz Jorge Pereira Lopes (vide
acima), sua pena era de trinta e um anos e um dia, só que esse um dia nunca chegava...
Martimiano recorre da decisão em 1907. É julgado quinze anos depois, em 03 de agosto de
1922. É condenado a trinta anos de reclusão. A apelação do veredicto aumentou ainda mais
154
Jorge Pereira Lopes, 89 anos, dezembro de 2005.
165
sua estadia no cárcere. Novamente Martimiano recorre. Desta vez seu advogado é Mario
Ilha. O advogado do réu alega que Martimiano já deveria estar solto por uma série de
nulidades em seu primeiro julgamento. Não sabemos ao certo porque o advogado defende
Martimiano. Ele mesmo declara que Martimiano, não obstante seu “desventurado destino,
encontrou a piedade de alguém que lhe interpôs um recurso” (fl.77). O advogado de
Martimiano enumera uma série de razões a favor de sua causa, dirigindo sua peça ao
Supremo Tribunal Estadual. Em seguida, o promotor, Holanda Cavalcante, em 31 de agosto
de 1922, apresenta sua peça:
A condenação imposta ao réu José Martimiano Machado à pena máxima de trinta
anos de prisão celular é um ato de inteira justiça do criterioso júri desta comarca.
Ele agiu com a consciência plena do ato que praticava, e soube compreender as
aspirações da sociedade, em nome de quem julgava. O réu é um bárbaro inútil
para o destacar peças destes autos ou qualquer argumento de ordem moral ou
jurídica para demonstrar de como ressalta inequívoco a perversidade desumana
dos réus deste auto [...] Trata-se de um crime injustificável e truculento que, pelos
seus lances negregandos, revolta até os corações empedernidos (fls.80-81).
Em seguida, declara o seguinte sobre a sociedade (representada pelo júri):
Hoje, condenou-o, em novo júri, a pena máxima, donde se vê que a sociedade
quer ver-se livre de canibais perversos da ordem e do quilate desse Machado, que
cortou o fio da vida de seu amigo. Para que as aspirações da sociedade não
morram na tribuna do júri, essa instituição que tão mal compreendida tem sido, é
de esperar que o Egrégio Tribunal confirme a pena pelo júri imposta ao réu como
fundamento da tranqüilidade pública, para que essa sociedade com a eficácia da
justiça possa viver em paz sem os seus perturbadores que infundem pavor,
matadores e assaltantes que vão transformando a terra num só açougue e num só
manicômio, pelo nível da degenerescência que portadores são estes transviados
da grande família humana (fl.83).
A pena de Martimiano é revista pelo Supremo Tribunal Estadual e passa a ser de 24
anos em regime celular (fls.85-86). Com quarenta e quatro anos, preto, jornaleiro,
compleições robustas, José Martimiano Machado é recolhido à Casa de Correção,
localizada em Porto Alegre, em 19 de dezembro do mesmo ano. Martimiano deveria
cumprir pena até o dia 23 de setembro de 1929.
166
A 23 de setembro de 1929, Martimiano é solto da Casa de Correção por
cumprimento de pena155. Volta a Cambará e passa a trabalhar em um abatedouro. Anos
depois, morre no momento em que crava o facão no coração de um boi. O boi caiu para um
lado e Martimiano para outro. Jorge Pereira Lopes diz que Martimiano morreu feliz.
Preso no início do século, a atuação policial em Cambará não se encerra com José
Martimiano Machado. Após a morte de Thomé, entra em cena Otacílio José de Castilhos.
4.4 Os furtos de gados
Nascido em 1876, natural de Dom Pedrito156 (RS), não se sabe ao certo como e
quando Otacílio José de Castilhos chegou a Cachoeira do Sul, mas sabemos que em 1916
assumira o posto de subdelegado do 3° distrito da mesma cidade157. Segundo os relatos,
Otacílio tinha por incumbência pôr ordem nos roubos, o que fica evidente pela localização
de seu posto policial: no seio do território da comunidade, nas proximidades da residência
da família Machado, responsável pelos furtos. Passados quase quinze anos da prisão de
José Martimiano Machado, o abigeato continuou sendo praticado, como se vê no seguinte
noticiário:
Irá Começar Outra Vez? Parece que está querendo continuar o roubo de gado
aqui no Rincão da Vassoura, a julgar pelo que numa casa comercial situada no
mesmo Rincão, contaram o Ventura e o Cirilo de tal, peões da fazenda do senhor
Augusto Costa. Contaram que uma noite destas avistaram um indivíduo com uma
rês no laço. Que tal indivíduo ao ver se meio descoberto desapresilhou o laço,
soltando a rês. Que não puderam conhecer o gajo (apesar de notarem todo o
movimento do mesmo) por isso não sabem o nome dele e outras coisas assim.
Mas o Ventura não teria conhecido mesmo o parceiro de outros tempos?
Estará mais comportado? Ou então...tudo quanto contaram é mentira. Não se
pode duvidar nada, porquanto que alguns que estiveram no xilindró envolvidos
no caso da vaca baia andam aqui gordos e sãos de lombo, e provavelmente
haverão de estar com muitas ganas dum bom naco de carne fresca158[grifos no
original].
155
APERS. Correspondência Recebida Cartório do Júri. Cachoeira do Sul. M 01, E 09, 1929-1932. Ofício
n°1263.
156
APERS. Registro de Nascimentos e Óbitos. Cachoeira do Sul. Livro 54, pág.93.
157
AHMCS. Relatório da Intendência de Cachoeira do Sul. 1917. Fundo Intendência.
158
AHMCS. Jornal “O Commercio”, 05/10/1919.
167
O noticiário é assinado pelo “informante”. Além de apontar a continuidade dos
roubos de gado, alguns elementos são dignos de nota. Depreende-se que os aludidos peões,
Ventura e Cirilo, não eram dignos de confiança por sua conduta passada, sugerida quando o
“informante” indaga se “Ventura não teria conhecido mesmo o parceiro de outros tempos?”
Teria Ventura sido empregado como peão para redimir-se dos furtos no passado? Parece
que sim. O emprego de Cirilo e Ventura como peões em casa de Augusto Costa (vide
acima) é igualmente significativo. Augusto Costa, esse personagem que aparece e
desaparece num toque de mágica nas fontes, é novamente mencionado, tal como no
processo-crime de Martimiano, pelo seu envolvimento pessoal na repressão ao abigeato.
Por fim, outro ponto a destacar é o caso da “vaca baia” – citado pelo autor da
reportagem. Ao que tudo indica trata-se da acusação de roubo de uma vaca de pêlo baio dos
campos de criação de Martim Leopoldino Fagundes, morador do terceiro distrito do termo
de Cachoeira, no lugar denominado Palma. Onze pessoas são processadas no dia 1° de
janeiro de 1918 por terem supostamente cometido tal furto159. Em ofício encaminhado ao
subdelegado do terceiro distrito, Otacílio José de Castilhos, Martim Fagundes declara:
Tendo desaparecido de suas criações uma vaca de pêlo baio de propriedade de
seu filho João Maurício Fagundes, de menor idade, e constando que foi furtado
por seus vizinhos aonde deve existir em grande complô, porque não só o
justicionário tem sido vítima de furtos anterior [sic] em outros rezes de suas
criações, como bem assim muitos criadores seus vizinhos sofrem há muito tempo
desfalque em suas criações de animais vacuns e por esses gatunos costumazes a
violentar propriedade alheia (fl.8v).
São indiciados João Fonseca Fortes, Esmerilda Pinheiro da Fonseca160, Júlio
Pinheiro e Marcondes Pinheiro; Pedro Xavier, Rufino Manoel Xavier, Amadeu Xavier,
Vicente Cavalheiro, Ramon Machado, Elias Machado e Camilo Pereira Maciel. Sabe-se
pelo depoimento de um dos réus (fl.23v) que João Fonseca Fortes, vulgo Juca Fortes, era
pai de Júlio Pinheiro e Marcondes Pinheiro (todos brancos). Juca Fortes é filho de
159
160
APERS. Processo-Crime e outras. Júri. Cachoeira. M 39, caixa 181. n° 3694.
Por engano na grafia do nome, o processo registra Esmerildo Pinheiro da Fonseca, nada acontece com a
ré.
168
Esmerilda Fonseca, que se estabelece na região, ao que tudo indica, na década de 1880161.
Não foi possível averiguar quem é Camilo Pereira Maciel. Vicente Cavalheiro fez parte da
leva de ex-escravos que se estabeleceu em Cambará nos anos subseqüentes à escravidão.
Casou-se com Júlia Ferreira, tia de Maria Ferreira. Atualmente nenhum dos seus
descendentes vive no local.
Figura 16 – Genealogia Cavalheiro/Ferreira
Antonio
Papel
Quita
Vicente
Cavalheiro
Antério
Cavalheiro
Júlia
Ferreira
Adão
Cavalheiro
Bráulia
Teresa
Ferreira
Severiano
Xavier
Quita
Maria
Ferreira
Os outros denunciados são da parentela dos Machado. Ramão162 e Elias Machado
são tios paternos de Orcindo Machado (ver genealogia capítulo anterior). Rufino Manoel
Xavier, Amadeu Xavier e Pedro Xavier são parentes pelo lado materno de Orcindo.
161
Ver capítulo anterior. Esmerilda Fonseca é cessionária da parte de campo pertencente a uma das netas do
preto-forro Joaquim Antonio.
162
As fontes grafam “Ramon Machado”. Doravante utilizo a grafia conforme a indicação de seus
descendentes (Ramão Machado).
169
Figura 17 – Genealogia Xavier/Machado
R u f in o
M a n o e l
X a v ie r
R a m ã o
M a c h a d o
?
M a r ia
L ú c ia
X a v ie r
A m a d e u
X a v ie r
Pe d ro
X a v ie r
1 9 2 9
79
O r c in d o
X a v ie r
M a c h a d o
O caso de Amadeu Xavier, vulgo Bida, é particularmente interessante. Exatamente
dois anos antes, mais precisamente em 01 de janeiro de 1916, é indiciado por causar “várias
lesões corporais com uma adaga” em Emiliano Ferreira, José de Calazans Corrêa e João
Gonçalves da Trindade163, o primeiro “preto”, os outros dois “mistos”, de acordo com o
relatório do subdelegado (fl.10). Em seu interrogatório, Bida afirma o seguinte:
disse que foi ele que no dia 1° do corrente ano no 3° distrito, entrando num baile
que se realizava na casa de Inácio Lobato, e armado de um facão, feriu Emiliano
Ferreira, José de Calazans Corrêa e João Gonçalves da Trindade. Declarou mais
que isto fez em companhia de um outro pardo de nome Vicente, e que reside
também no 3°distrito. Disse mais o interrogado que seu companheiro Vicente
provocou à vítima Calazans Corrêa, e intervindo o interrogado a fim de apaziguálos, recebeu uma bordoada de Calazans, servindo-se então de seu facão praticou o
crime narrado na denúncia (fl.39).
Pela leitura do processo, não há dúvida que o “companheiro” de Bida é Vicente
Cavalheiro, o mesmo a ser processado em 1918. A casa onde se realizou o baile era do
“pardo” Inácio Lobato, jornaleiro de 64 anos. É provável tratar-se de um baile exclusivo
163
APERS. Cachoeira. Cartório do Júri. Processo-crime e outras. M 37, P 2, E 143G, caixa 178, n° 3666
170
para pretos, pardos e mistos164. A contenda é registrada da seguinte forma pelo subdelegado
do terceiro distrito, Francisco Ponciano Fernandes:
Na noite de ontem, regulando às 21 horas, em casa de residência do pardo Inácio
Lobato, neste distrito, no Rincão da Palma, no lugar denominado Pinheiros, deuse um conflito promovido por Amadeu Xavier, vulgo ‘Bida’, auxiliado por
Vicente Cavalheiro, por cujo conflito resultou gravemente feridos João
Gonçalves da Trindade, de cor preta, José Calazans Ferreira e Emiliano Ferreira,
estes de cor mista […] Na noite de ontem, regulando às 21 horas, foi feito ali
[casa de Inácio] uma diversão por meio de dança, juntando-se ali alguns
desocupados, aonde compareceram mais tarde Amadeu Xavier e Vicente
Cavalheiro, sendo Amadeu reconhecido neste lugar como turbulento; por diversas
vezes tem sido perseguido neste lugar pelas autoridades Policiais
Administrativas; ainda em tenra idade, tinha por costume viver nas estradas
vicinais, atacando e provocando as pessoas inofensivas, como sejam crianças e
velhos, espancado algumas; por tal procedimento e por comunicação de vizinhos
de Amadeu, me esforcei em prendê-lo, e em seguida, ausentado-se deste lugar
para o município de Dom Pedrito, de tudo fui informado que isto se dava por que
ele tinha no referido município pessoas que o acoitavam; portanto, penso que
houve a tentativa de morte contra os ofendidos.
Se Bida realmente era “turbulento” desde tenra idade não há como saber. Vê-se que
ele, assim como os “desocupados” presentes no baile, não gozavam de boa reputação. O
relatório do subdelegado chama atenção para um dado importante: Bida era acoitado em
outros municípios, o que revela a existência de uma rede de relações do réu. Condenado a
nove meses de detenção, é encarcerado na casa de Correção de Porto Alegre, local onde
provavelmente encontrou José Martimiano Machado. A 28 de outubro do mesmo ano é
solto (fl.102).
Seis meses após ser solto, Bida novamente envolve-se numa peleia, desta vez com
Horácio Marianno e Osório Arruda165. As testemunhas são unânimes em afirmar que Bida
foi provocado por Horácio Mariano, que lhe dirigindo a palavra intimou-o a beber, pois era
o “brigadorzinho da Palma”. Bida teria respondido não ser brigador, apenas quando era
provocado. Neste momento, foi alvejado por um tiro e salvo de ser baleado novamente por
indivíduos presentes no local. Mesmo baleado, esfaqueou Marianno. Em seguida, Osório
164
Vide capítulo 2. A divisão dos salões de festas com cordas em plena década de 80 do século XX leva a
supor que o mesmo ocorria no início do século.
165
APERS. Processo-Crime. Caçapava. Cartório 1° Cível e Crime (1916-1917), M 56, E 91, n°1725.
171
Arruda interviu, gritando de seu cavalo “mate-se já esse negrinho”. Osório produziu um
corte na nuca de Bida, que mesmo assim produziu ferimentos em Osório.
Em seu depoimento, Osório Arruda diz ter Bida por amigo, até o momento, “porque
quando o referido Amadeu fazia brigas no 3° distrito vinha esconder-se aqui entre
eles”(fl.33). É provável que “entre eles” refira à família de Osório Arruda. O subdelegado
Francisco Pereira parecia não ter muito em conta Bida, pois
o fato é que o referido Amadeu é bastante bandido. Quando eu fui subdelegado
no 2° distrito já tive muitas queixas contra o tal Amadeu que já tem lastimado
muitas pessoas no 3° distrito, assim como tem feito rolos e outras estripulias
(fl.34).
Alegando legítima defesa, Bida é solto, no dia 1° de junho de 1916, após passar um mês na
prisão (fl.115).
A versão de Jorge Pereira Lopes (outubro de 2007) para o caso é um pouco
diferente. Segundo Jorge, na época era comum os nhanhôs obrigarem seus seguranças (em
geral negros) a desafiarem Bida para certificarem-se de que estavam bem servidos. Um
nego desafiou-o, e num primeiro momento ele recusou a briga. Ao ser atacado
inesperadamente, Bida partiu para cima e mesmo alvejado por um tiro e esfaqueado na
nuca conseguiu acertar com o facão todos os adversários. Ao fugir da polícia, se enterrou
no mato e nenhum dos praças policiais quis adentrar no mato para prender Bida, que ficou
deitado tranqüilamente. O impasse não se resolvia até que Bida mandou avisar ao chefe
policial que só sairia do mato se este viesse falar com ele sozinho.
O delegado (que não era Otacílio) aceitou o alvitre e foi ter com ele. Lá chegando,
Bida aceitou entregar-se, desde que tivesse a segurança garantida. Após alguns instantes de
apreensão, o delegado saiu do mato com Bida algemado, o que causou espanto e admiração
entre os presentes. Enquanto todos comentavam a bravura do delegado, Bida estava
recebendo assistência médica e sendo fartamente alimentado na casa deste, em recompensa
às glórias atribuídas ao chefe policial.
Bida não havia sido mencionado senão em uma entrevista. Foi referido de
passagem, quando Geraldo da Silva e Orcindo Machado falavam sobre Otacílio Castilhos.
Segundo Orcindo, era um que Otacílio não podia (18 de junho de 2005). Afora essa
172
referência, ninguém mais havia falado nele. Quando achei os processos nos quais era réu,
recorri a essa entrevista para me certificar de que era a mesma pessoa. Decidi perguntar aos
sabedores sobre Bida. Todos sabiam algo sobre ele. Os relatos a seguir foram coletados
entre setembro e novembro de 2007.
Os narradores concordam que Bida era um notório brigador, exímio com a faca (o
mestre da arma branca) e extremamente ágil (um gato, segundo alguns). Bida não gostava
de brigar com apenas uma pessoa. Jorge Pereira Lopes conta que certa feita um homem
desafiou Bida, que começou a andar para trás, como se estivesse receoso de enfrentar o
oponente. Quando mais dois indivíduos se juntaram ao oponente, Bida estacou no lugar
onde estava, desembainhou o facão, foi para cima e acertou dois de uma vereda
[rapidamente] só .
Bida não recusava uma peleia. Ao contrário, quase todos temiam-no. Maria Ferreira
menciona que em dada ocasião Bida brigava com alguns oponentes desarmado. A mãe de
Maria, Teresa Ferreira, inconformada com a situação, disse não é justo um homem brigar
desarmado e forneceu-lhe uma pequena adaga que carregava consigo. Ninguém mais se
meteu no assunto. Quando Otacílio perseguia Bida para prendê-lo, este escondia-se no topo
das árvores. Otacílio sempre fingia que não via, segundo Orcindo.
Sobre a índole de Bida há algumas variações. Jorge Lopes diz que Bida não era má
pessoa, pois nunca acertava no vazio, apenas no rosto para deixar a marca. Maria
Ferreira, Geraldo da Silva, Orcindo Machado e Teresa Ramos acentuam que Bida era
medonho, mas relevam suas brigas e embates. Já Emiliano Ferreira diz que Bida fazia
muitas arruaças. Outro ponto de concordância é sobre a morte de Bida. Todos acentuam
que morreu numa emboscada, morto por um capitão comandante de um regimento de
infantaria do qual Bida fazia parte. Foi alvejado por tiros sob a alegação de ter tentado
matar o referido capitão.
Mas voltemos ao processo da vaca baia. Em função do ofício encaminhado pelo
queixoso Martim Fagundes, a quem supostamente pertenceria a vaca baia, o subdelegado
de polícia do 3° distrito, Otacílio José de Castilhos, conduz as diligências “que o caso
requer” (fl.14). Otacílio convida quatros criadores para acompanharem-no no auto de corpo
de delito que procede em campos de Juca Fortes, dois na qualidade de peritos, dois como
173
testemunhas, dentre elas Ranulfo Carneiro (abaixo veremos que Ranulfo será fundamental
no resultado do processo). Encarregando os peritos de proceder ao exame em uma restinga,
nos córregos e mananciais nos fundos da casa de Juca Fortes, encontraram os peritos
“diversos pedaços de carne fresca e vestígios de uma rês carneada, cabeça fresca enterrada
e muito ossamento de animais vacuns, ovelhas [...] tudo em grande quantidade166”.
Em vista de “todos os dados encontrados concernentes ao aludido furto”, Otacílio
passou a inquirir os indivíduos que “suspeitava serem coniventes em dito furto” (fl.14).
Curiosamente, Otacílio inquiriu apenas os negros. Nenhum dos brancos supostamente
envolvidos com o roubo – inclusive Juca Fortes, residente na casa onde Otacílio diz ter
achado grande quantidade de animais – prestou depoimento. Quatro indivíduos –
apresentados como testemunhas – apresentam sua versão dos fatos. Pedro Xavier, maior de
13 anos, afirma ter Juca Fortes convidado a ele e seu irmão Amadeu Xavier (Bida) para
furtarem a dita vaca baia, no cerrar da noite do dia 26/12/1917. Semanas antes, disse ainda
Pedro Xavier, Juca Fortes, ele e seu irmão Bida, haviam roubado um “tourito” pertencente
ao mesmo Martim Fagundes (fl.14v), como se lê no depoimento:
Perguntado mais se tal violência por parte do Alferes Juca Fortes foi somente
aquele furto ou se era acostumado a violentar propriedade alheia, respondeu que
ele era acostumado a furtar gado de toda a espécie de seus vizinhos e também
ovelhas, e dizia ele Alferes Juca Fortes que ele assumia a si qualquer
compromisso (fl.14v-15).
O depoimento de Pedro Xavier é confirmado por seu irmão, Bida, segunda testemunha
(fl.15v). Há um indicativo aqui do papel que Juca Fortes rogava para si, pois prometia
proteção aos seus companheiros se porventura sucedessem problemas.
A terceira testemunha, Severiano Xavier Trindade, pouca coisa diz sobre o fato,
pois sabia de tudo “por ouvir dizer”. Agregado de Juca Fortes, julga o comportamento de
seu patrão “muito péssimo” (fl.16). É o depoimento da quarta testemunha, Boaventura da
Silva, que revela mais detalhes. De acordo com Boaventura, Juca Fortes é “ladrão
costumaz, e muitas vezes o convidou para participar dos furtos”. Mesmo estando na
estância do Sr. Augusto Costa, “no vizinho município de Caçapava, de lá mesmo ouviu
166
APERS. Processo-Crime e outras. Júri. Cachoeira. M 39, caixa 181. n° 3694, fl.113.
174
dizer que se tinha dado o furto” (fl.16). Não tendo participado do furto da vaca baia,
Boaventura acaba confessando sua participação em outro furto, realizado em Caçapava nos
campos de uma certa Silvéria Garcia:
E como os criadores dos gados daquele lugar já pelo desfalque que sofreram em
suas criações, policiavam os seus campos, o que ele depoente ignorava e todos os
seus companheiros que existisse tal prevenção, motivo que deu lugar a ele
depoente e seus companheiros, o referido Juca Fortes, Rufino [Xavier] e Camilo
[Pereira Maciel], em tal excursão de encontrarem-se com a referida polícia
secreta organizada de criadores, seus vizinhos, e, em tal encontro, isto no ato que
o depoente e seus companheiros moveram com uma ponta de gado, e desse
encontro promoveu-se um tiroteio por parte da polícia secreta, e sendo respondida
e sustentada pelo Alferes Juca Fortes, único de tal excursão que suscitou tal
tiroteio do que ficou ferido um cavalo [...] isto quando o depoente e demais
companheiros, em retirada, e em correria vertiginosa, isto pelas cargas feitas pela
polícia secreta (fl.16v-17).
Ao que indica esse depoimento, a polícia particular organizada por fazendeiros em 1887
(vide acima) para conter os saques de libertos teve uma longa duração. Os desfalques nas
criações tiveram uma resposta contundente por parte dos criadores.
A quinta testemunha, Camilo Pereira Maciel, confirma o depoimento prestado por
Boaventura da Silva, salientando não ter participado no roubo da vaca baia (fl.17). Em
vista, pois, de suas diligências, Otacílio conclui seu relatório:
Portanto, considerando os anos que este município, principalmente este distrito, e
o vizinho municipal de Caçapava, sofrem os habitantes e principalmente os
criadores por gatunos costumazes a violar propriedade alheia, que de fato deve
haver um chefe deste complô, e este chefe devia de ter algum fato para servir de
capa quando furtassem [...] considerando que os habitantes aproximados a casa
do Alferes Juca Fortes não se ocupam com o trabalho, e sim na jogatina e furto,
aonde ali existe o célebre Rufino Xavier e um mulato Vicente Cavalheiro, estes
amigos e protegidos pelo Alferes (fl.17v).
O caso de Vicente Cavalheiro dá bem o tom das ações de Otacílio. Em nenhum
momento do processo o nome de Vicente é ligado ao furto de gados. Embora manifeste
visível desacordo contra as atitudes do Alferes Juca Fortes, Otacílio salienta o
comportamento reprovável dos “habitantes aproximados” da casa do Alferes. O
indiciamento dos réus decorre diretamente, portanto, das suspeitas de Otacílio sobre quem
seria conivente com tal furto.
175
Já na fase pública do processo, outros indivíduos prestam depoimento. Rufino
Manoel Xavier, 64 anos, solteiro, jornaleiro, declara serem os “furtos chefiados por Juca
Fortes, tendo por cúmplices do mesmo o depoente, seu filho Bida, Ventura167, Camilo
Maciel, Elias e Ramão Machado, Júlio e Marcondes Pinheiro” (fl.18). A vaca teria sido
roubada por ele, seu filho Amadeu Xavier, vulgo Bida, e Juca Fortes. Rufino reconta outro
furto, de que teria participado:
Que no município de Caçapava foi em companhia de Juca Fortes, Ventura e
Camilo Maciel furtarem uma rês, sendo atropelados pelo Sr. Ulisses Machado e
outros que o perseguiam até regular distância, ficando o cavalo do depoente
ferido, tendo Juca atirado contra seus seguidores. Disse mais que de Augusto
Costa furtaram umas quatro rezes também por ordens de Juca Fortes e em
companhia deste. Do Sr. Juvenal de tal furtaram umas duas rezes. De Pedro
Maria de Souza Bello furtaram gados e ovelhas. Disse mais que os furtos eram
por ordem de Juca Fortes que se responsabilizava pelo que houvesse, sendo que o
depoente teve ordem deste para assassinar Camilo Maciel por querer descobrir os
furtos. Disse mais que também foi chefe dos furtos o Sr. Ramiro Fortes. Declarou
mais que Juca e mais um sobrinho já falecido deram uma sova no Sr. Juvenal por
ter este tentado descobri-los168 (fls.18-9).
Chama atenção no depoimento de Rufino a perseguição que sofreram de Ulisses Machado,
estancieiro da região, indicando novamente a participação pessoal de criadores na repressão
dos roubos.
Em depoimento, Bida apresenta uma versão diferente da de seu pai. Alega ser ele,
Juca Fortes, os filhos deste e seu irmão Pedro Xavier os responsáveis pelo roubo, não
estando presentes Rufino Xavier, Vicente Cavalheiro, Camilo Pereira Maciel, Elias e
Ramão Machado (fl.24). Acostumado a ser protegido, parece que Bida procede da mesma
forma: não nega a culpa, mas priva de qualquer responsabilidade seus vizinhos e parentes,
imputando-a principalmente a Juca Fortes e sua parentela. Camilo Pereira Maciel nega
participação no furto em seus dois depoimentos (fl.25 e 77v), sob pretexto de estar em
outro local no momento do crime. Elias Machado defende-se de forma similar, limitando-se
a dizer que tem ouvido falar (fl.26). Júlio Pinheiro e Ramão Machado não prestam
167
Não se sabe ao certo quem é Ventura.
Orcindo Machado e Geraldo da Silva expõem algo semelhante ao constante no documento: ora Ramiro
Fortes ora Pedro Fortes, ambos brancos, são apontados como chefes dos roubos, que contavam com a
participação dos negros.
168
176
depoimento por não serem localizados169. Pedro Xavier e Vicente Cavalheiro sequer são
intimados a depor. Já Juca Fortes, tido por “chefe do bando”, alega “estar doente” no dia do
roubo (fl.31).
Na fase secreta do processo, quatro testemunhas são chamadas em juízo. A primeira
testemunha é Ulisses Machado, 36 anos, criador. Por algum motivo mudou de idéia e
resolveu apresentar-se em júri, pois havia se negado a depor na primeira intimação (fl.47).
Em nenhum momento menciona ter perseguido os réus (ver depoimento de Rufino Xavier
acima), tampouco é instado a responder sobre a questão, o que é de causar estranheza. O
conhecimento de Ulisses Machado sobre o fato é um tanto gaguejante, pois a fronteira entre
o estar ciente ou não é muito difusa:
Conhece os denunciados ligeiramente, os quais moram pela vizinhança do
depoente; que ouviu dizer há tempos que os denunciados furtaram dos campos de
criação de Martins Leopoldino Fagundes uma vaca de pêlo baio, pertencente ao
filho deste, de nome João Maurício; que ouviu dizer que os denunciados depois
de furtada a vaca carnearam-na; que ouviu esta história de várias pessoas e que é
voz geral no lugar o furto e a carneação da vaca por parte dos denunciados; que o
denunciado não sabe nem ouviu dizer o dia e mês em que se deu o crime, também
como este foi concertado e executado; que, porém, o depoente sabe que os
denunciados [palavra ilegível] são dados a furto de animais, que eles não têm
profissão conhecida; que o próprio pai do depoente foi vítima de furto de animais
por parte desses denunciados, uso há tempos passados; que nada mais sabe.
(fl.62v).
“Ouvir dizer”, conhecer “ligeiramente”, saber a história de “várias pessoas” são
declarações que situam o roubo de gados no âmbito impessoal, remetendo o fato à “voz
geral”. Com essas declarações, Ulisses Machado minimiza a incidência particular dos
furtos e os ecos de suas falas na “voz geral”. Se o depoente sabe que os réus são dados a
furto, tendo, inclusive, subtraído animais do seu pai, que fronteira porosa é essa entre ouvir
dizer e dizer para outros ouvirem dizer? Juvenal Corrêa de Freitas, 46 anos, casado,
agricultor, segunda testemunha, declara que:
Sabe por ouvir dizer [...] que é público e notório no 3° distrito que os denunciados
furtaram dita vaca e carnearam-na. Que o depoente, porém, não conheceu
pormenores do fato criminoso; que a verdade, porém, é a seguinte: o depoente há
169
De acordo com Orcindo Machado, filho de Ramão, seu pai teria evadido-se para o Uruguai após essa
acusação (agosto de 2005).
177
14 anos reside no 3° distrito e é capataz de uma fazenda pertencente a José
Vitório Ayres; que há muito também o depoente vinha sentindo falta de animais
dos campos da fazenda quase diariamente. Nestes últimos tempos o depoente
encontrou vacas berrando pela falta das crias furtadas; que as outras fazendas da
vizinhança sofreram os mesmos furtos; que depois que se iniciou o presente
processo, como que por milagre desapareceram tais furtos, cessando os prejuízos
que todos vinham sofrendo; que os denunciados eram pela vizinhança como
prováveis autores desses furtos; que eles não exerciam profissão conhecida; que
atualmente diversos deles se ausentaram (fl.63v).
Embora diversos indivíduos sejam denunciados, os depoimentos indicam uma
diferenciação no grau de culpabilidade dos réus. Em seu depoimento, Juca Fortes, apontado
como “chefe do bando”, defende-se citando sua profissão: criador (fl.31). Sua ocupação é
prova muito mais substantiva do que sua suposta doença no dia do roubo (fl.31). Já outros
réus, não só exerciam “profissão não-conhecida”, como se ausentaram.
Severiano Xavier da Trindade, parente em segundo grau de Ramão e Elias
Machado, alude algo semelhante: os denunciados “não tem meio de vida conhecido” e
muitos deles se ausentaram (fl.67). A versão de Boaventura da Silva, 32 anos, desta vez
remete a sua participação como testemunha das diligências de Otacílio, silenciando
totalmente sobre o que havia dito anteriormente:
Que no princípio do ano o subdelegado do 3° distrito foi a casa do depoente e
levou-o para servir de testemunha à casa dos denunciado Juca; que aí foram no
fundo do cercado e encontraram enterrada a cabeça da vaca baia; que é público e
notório no 3° distrito que os denunciados há muito vinham furtando diversos
animais; que todos os criadores do local vinham se queixando destes prejuízos
sofridos; que os denunciados há uns seis meses desapareceram; que não tinham
ocupação conhecida (fl.68v).
Como veremos a seguir, o depoimento de Boaventura da Silva é fundamental para o
processo, pois será usado pelo advogado de Juca Fortes em sua defesa.
Em 19 de fevereiro de 1919, o promotor Samuel Figueiredo da Silva, baseado nas
provas testemunhais, apresenta denúncia contra os réus que:
constituíram uma quadrilha de ladrões de gado, sendo numerosas e repetidos os
furtos que praticaram, cujos despejos foram encontrados numa restinga e nus
valos velhos, dentro de buracos, no fundo do quintal da casa de José da Fonseca
Fortes, que era o chefe do bando (fl.86-7).
178
José da Fonseca Fortes, Esmerildo Pinheiro da Fonseca, Júlio Pinheiro, Marcondes
Pinheiro, Pedro Xavier e Amadeu Xavier são denunciados. O promotor julga não haver
provas suficientes contra Rufino Manoel Xavier, Elias Machado, Ramon Machado, Vicente
Cavalheiro e Camilo Pereira Maciel. Ou seja, apenas dois negros são denunciados: Bida e
seu irmão Pedro Xavier.
Pedro Xavier, Esmerildo Fonseca e Júlio Pinheiro são tidos por foragidos (fl.102).
Já Juca Fortes, Marcondes Pinheiro e Bida são presos (fls.89-93) e vão a julgamento,
ocasião na qual nada declaram, deixando a seus advogados, ou curadores, a apresentação de
suas defesas (fls.112-114v). No decorrer do julgamento, a defesa solicita o testemunho de
Ranulfo Carneiro (116v), fundamental para a absolvição dos réus: os jurados justificam seu
voto “em face do depoimento prestado por Ranulfo Carneiro” (fl.119). Só sabemos, afinal
de contas, o que foi declarado por Ranulfo Carneiro na apelação do promotor (fl.129).
Ranulfo declarou ser falsa sua assinatura constante no relatório de Otacílio Castilhos, o que
invalidaria a peça da acusação, pois Ranulfo figurava como testemunha no auto de corpo de
delito que supostamente havia encontrado restos mortais dos animais furtados nos campos
de Juca Fortes.
No recurso impetrado contra a decisão do júri, o advogado de acusação alega ter
sido provado, por meio da confrontação de “diversas assinaturas” com a constante no
relatório, a falsa alegação de Ranulfo Carneiro no julgamento. Lamenta ainda a absolvição
dos “desprezíveis ladrões de gado” dever-se apenas a essa “mentira” (fl.129). Instada a
apresentar a razão dos apelados, a defesa centra sua argumentação em duas frentes: diz não
ter sido provada a existência do filho de Martim Leopoldino Fagundes, suposto dono da
vaca de pêlo baio roubada, (fl.130; ver acima) e desmerece o auto de corpo de delito de
Otacílio Castilhos. Sobre o referido auto de corpo de delito, diz o advogado:
É uma pilhéria colossal, uma extravagância, uma maluquice sem nome. É ridículo
[...] Rogamos, encarecidamente, ao Conselho Superior Tribunal, que demore a
sua atuação sobre esta formidavelmente pitoresca parte do processo. Os quesitos
formulados reclamam uma grande dose de benevolência para que sejam
admitidos como coisa séria. E as respostas dadas pelos peritos? Impagáveis. A
gente lendo o auto fica pondo em dúvida a sanidade da mente daqueles que o
subscreveram (fl.130).
179
O testemunho de Boaventura da Silva (vide depoimento constante no relatório de
Otacílio) é evocado para provar o caráter formidavelmente pitoresco do auto:
Uma dessas testemunhas, ladrão confesso, diz na formação da culpa que teve
ocasião de ver enterrada a cabeça de uma vaca baia. Que isto foi no princípio do
ano! Esta testemunha é o indivíduo Boaventura da Silva, que perante a polícia
confessou ser autor de furto de gado. Depois o grotesco auto de corpo de delito
não dá notícia de cabeça de vaca baia. Isto só da cabeça do gatuno! O auto
referido diz, pitorescamente: uma cabeça fresca de uma rezes, sem as aspas; esta
achava-se enterrada em um buraco feito à pá. Não tratou de cabeça de vaca baia.
O furto deste animal não está provado. Tudo é pilhéria (fl.131).
Por mais impagável que possa parecer, o desmerecimento da peça elaborada por Otacílio
insere-se na estratégia argumentativa da defesa, que ressalta as qualidades de Juca Fortes às
custas da acusação dos outros réus:
Aqui dá-se o seguinte: aqueles que são tidos e havidos como autores de furtos de
gados, confessando o delito perante a polícia, procuram envolver o Alferes Juca
Fortes, homem honestíssimo e trabalhador, possuindo alguns bens de fortuna.
Mas tais depoimentos são destituídos de valor probante (fl.130)
Agarrada exclusivamente às peças do auto, a acusação é “imprestável”, sentencia o
advogado (fl.131). Ao cabo, todos os réus são absolvidos (fl.192) em função de uma série
de nulidades encontradas no julgamento e nas peças da acusação. Porém, o substantivo
“alferes”, o trabalho e os “bens de fortuna”, em comparação com “ocupação não
conhecida”, os “vícios do furto” e da “jogatina” e o substantivo adjetivante “preto”, nos diz
algo. Livres da prisão, os negros não ficam livres da pecha. Otacílio logra outra maneira de
conter os furtos.
4.5 A autoridade do feitor
A perseguição policial se torna mais insidiosa com a criação de outra força policial,
desta vez sustentada pela municipalidade. Com encargo de policiar os distritos pastoris, o
cerco fecha-se não só nas áreas rurais, mas também nos espaços onde “criminosos”
poderiam ocultar-se, como se vê em outro noticiário:
180
Polícia Rural
Desde muito tempo que vem se fazendo sentir a falta de um policiamento regular
nos distritos pastoris deste município, onde os crimes de abigeato se perpetuam
seguidamente, mormente nos 2° e 3° distritos, de vasta extensão territorial.
Atendendo a este fato, é que o nosso operoso intendente, dr. Aníbal Lopes
Loureiro, acaba de criar a policia rural do município, encarregado de dirigi-la o
inspetor Otacílio José de Castilhos.
Acompanhado do número de praças suficiente, este inspetor percorrerá
mensalmente toda a vasta zona pastoril, de fazenda em fazenda, tomando por
termo as queixas dos fazendeiros, a fim de melhor poder agir.
Visitará também, essa autoridade, as empresas arrozeiras pesquisando
detalhadamente a procedência do pessoal empregado, para evitar que sejam
homiziados nestes estabelecimentos agrícolas criminosos pronunciados.
Sabemos que será organizado um regulamento especial para esta milícia, cujo
encarregado, depois de anotadas as queixas em registro próprio, deverá apresentar
mensalmente ao intendente meticuloso relatório, onde serão constatados todos os
fatos e providências tomadas.
Como se vê, é de grande alcance a criação da policia rural, que irá prestar,
estamos certos, reais serviços aos nossos criadores, ultimamente tão prejudicados
com os constantes furtos de gado.
O Commercio, aplaudindo mais essa acertada medida posta em prática pelo digno
e ilustre intendente municipal, congratula-se com a população rural do município,
que d’ora avante, terá seus interesses melhor atendidos170 [grifos no original].
Criada para prestar reais serviços aos criadores, a milícia comandada por Otacílio
certamente teve a região de Cambará como local privilegiado de cumprimento dos seus
desígnios. Neste local, sua atuação parece ter sido uma constante, como se vê pelo relato de
Geraldo da Silva:
Ali onde é o posto Laranjeiras [posto de gasolina hoje encravado no seio do
território da comunidade], tinha uma tapera ali, a federal [rodovia] véia mudou,
era mais embaixo, mudaram para o asfalto, botaram em cima. Ali era o posto
policial dele, do Otacílio. Ele era muito ruim e tinha guarda. Mas ele endireitou
muito, mas roubou muito. [...] O Otacílio entrava ali nos Machado [família] ali,
nos eucalipto ali, ali morava a negrada dos Machados. Esse tio avô do Orcindo,
pai do Orcindo [membro vivo mais velho da família Machado]. Se o Otacílio
entrava e achava nego com uma panela de fervido, ele entrava cozinha adentro e
170
AHMCS. Jornal “O Commercio”, 18/08/1923.
181
queria saber onde é que os negros tinham carneado. ‘Aonde é que vocês
colocaram os ossos?’. Ia lá, achava um enterro de osso, ‘ah não’. Ia lá e trazia
um por um de dentro de casa [...] Mas ele vinha nas casas aí, era casa por casa,
se os negros estavam comendo um fervido ele fazia mostrar onde é que botavam
os ossos. Ele ia lá, se ele achava um buraco cheio de osso, toda família
apanhava. (Geraldo Silva, 76 anos, maio de 2005).
Regulação dos atos de sobrevivência cotidianos, a domesticidade é passível de invasão em
nome da tranqüilidade pública. As narrações desenham um cenário que guarda semelhanças
com à ação de um feitor, que persegue e castiga faltas, como se vê em outra fala de
Geraldo, muito similar a anterior:
Mas o Otacílio ia na casa desses da irmandade e ao meio-dia pegava ‘tão
comendo carne?’ Queria saber de onde compraram aquela carne. E quando via
saía uma mulher correndo com uma panela e ele já saía atrás. Daqui a pouco ele
voltava com aquela pessoa pra dentro de casa e o pau...A minha mãe era
pequena. Parece que tinha cinco anos e viu. [...]. Ele não ia sozinho. Tinha
praças. Isso colocado pelos Costa [família de fazendeiros]. Depois que mataram
o Thomé. (Geraldo da Silva, 76 anos, julho de 2005).
Segundo relatos, os castigos eram um constante lembrete sobre quem detinha
autoridade. Antonio Gonçalves, 60 anos, ouviu de sua mãe que Otacílio amarrava os negros
pelo pescoço e os levava em fila para um local ermo, onde até hoje existe um arvoredo,
para fustigar com golpes os negros (setembro de 2005). A conexão entre vigilância,
desobediência, fuga e castigo parece ser um elemento constante nas falas não só pela
truculenta ação policial de Otacílio, mas sobretudo pelas equivalências com padrões
escravistas.
Invasão de espaços domésticos e castigos se faziam acompanhar também da
repressão às esferas de sociabilidade. Os narradores e narradoras atestam que as festas e
bailes necessitavam de autorização expressa para serem realizadas. Em caso contrário,
estavam sujeitas a intervenção. Ao ser perguntado sobre Otacílio, a resposta oferecida por
Emiliano Ferreira é sintomática:
E: O senhor ouviu falar do Otacílio?
Emiliano: Otacílio Castilhos?! Era no posto [posto de gasolina]. Foi
subdelegado.
182
E: O que ele fazia?
Emiliano: Repreendia as festas.
E: Repreendia?
Emiliano: [risos]. Ah é. (Emiliano Ferreira, 80 anos, setembro de 2005).
Francisco Queiroz, morador da comunidade negra vizinha de Palmas, afirma que
certa vez Otacílio teria corrido os nego a bala do baile (Francisco Queiroz, 88 Anos, maio
de 2005). Segundo Jorge Pereira Lopes (dezembro de 2005), caso os bailes não fossem
autorizados, Otacílio prendia e descia o relho. Outros dois casos foram contados em tom de
anedota em entrevista realizada com Orcindo Machado e Geraldo da Silva. Fiquemos
primeiramente com Orcindo:
Uma vez os cara agarraram a fazer um baile ali num galpão que tinha por ali e
armaram um jogo de osso. Aí ele [Otacílio] não queria que jogasse. Quando foi
um dia, e teimavam, cortavam jogo do osso, e aquela jogareda lá, e um mundo de
cara lá, osso pra cá e osso pra lá. E aí quando viram tinha um branco assim que
tinha uma picada, quando viram disseram ‘Olha o homem aí!’. E o Vicente
Cavalheiro agarra e dispara à direita do homem. Ele tinha um relhador com três
bolas na ponta cruzado de oito, agarrou o cavalo e deu uma puxada e o Vicente
ficou pulando num pé só [risadas]. Não pôde correr enquanto tava doendo
aquilo. Quando meio melhorou, agarrou o rumo à direita da sanga, se atirou
num seral, dava uns cinco, seis metros de altura, e ainda quase que ele dava com
a cabeça no chão. [risadas].(Orcindo Machado, 79 anos, junho de 2005).
Logo em seguida ao relato de Orcindo, Geraldo toma a palavra:
Ali natural de Cambará [núcleo familiar] era a vó do Jorge [sogro], a Raquel
véia, tinha os tios do Jorge, a mãe do Jorge, dançavam muito. Era uma
irmandade que eles tinham e reuniam pra fazer um baile. Então o Otacílio
andava cortando os baile, ele era inspetor, né. Mas ele saia e rodava cedo da
noite. De noite ele não rondava mais, ia embora, e os tios dançavam. [risos] Mas
daí ele descobriu que dançavam da meia-noite pro dia. Veio um gaiato e pegou a
conversar, pegou a rondar. Quando passou da meia-noite a negada pegou a
dançar, aí pela uma hora da madrugada, um gaiato pegou a cantar ‘Oh que o
xote Cambará enquanto o Otacílio não tá’. Botando o baile [risos]. [...] E o
Otacílio aceitou madrugada pra pegar. Madrugada adentro Otacílio no mato
com um praça. E dali um pouco a gaita pegou a conversar. E o Otacílio ‘agora
vou pegar mesmo’. Chegou se escondeu. Negada dançando: ‘Oh que o xote
Cambará que o Otacílio não ta’. Daqui um pouco um gaiato mudou, ‘oh que o
xote Cambai que o Otacílio já ta aí’. [risadas] Aí ele pegou e disse ‘E já tá aí
mesmo’. Baixo brabo na gente, até mulher pegava, não respeitava (Geraldo da
Silva, 76 anos, junho de 2005)171.
171
As versões de Emiliano Ferreira e Teresa Ramos (novembro de 2007) são similares. Para o primeiro, os
morenos cantavam Vamo aproveitar. É o xote Cambará que o Otacílio Castilhos não está. Para a última,
183
.
Ambos os ‘causos’ são contados em tom anedótico e descontraído, incitando
diversas risadas. Os risos suscitados pela lembrança dos castigos não anulam a gravidade
do assunto, mas revelam ser permitido rir de situações como essas. Nesses relatos, é como
se as intensidades do corpo expelissem os castigos localizados em sua geografia. É como se
a recapitulação dos versos cantados e a disparada de Vicente Cavalheiro conservasse
justamente o caráter daquelas situações, que eram de sociabilidade e alegria. Daí as risadas
articularem-se aos diálogos intensos e muitas vezes amargos que acionam essas formas
expressivas, oferecendo um pequeno lembrete da existência de um momento democrático,
sacralizado no uso de antífonas que simboliza e antecipa (mas não garante) relações sociais
novas, de não-dominação (Gilroy, 2001:168):
Em oposição à suposição do Iluminismo de uma separação fundamental entre arte
e vida, essas formas expressivas reiteram a continuidade entre arte e vida. Elas
celebram o enraizamento do estético em outras dimensões da vida social. A
estética particular que a continuidade da cultura expressiva preserva não deriva da
avaliação imparcial e racional do objeto artístico, mas de uma contemplação
inevitavelmente subjetiva das funções miméticas da apresentação artística nos
processos de luta rumo à emancipação, à cidadania e, por fim, à autonomia
(Gilroy, 2001:129).
Considerar as possibilidades de escrever relatos não-centrados na Europa, como
apregoa Gilroy, consiste em atentar para distintas “dramaturgias da recordação” que
caracterizam as relações com o lugar e suas implícitas “ecologias de pertencimento”
(Gilroy, 2001:13). As pulsões corporais não se dão apenas em momentos específicos, mas
sobretudo em lugares de pertencimento. Os locais das danças e bailes dão vazão a uma
história incorporada carregada de relações de dominação e não-dominação. Assim, a
invasão de uma cozinha e de um baile é uma invasão ao território. Segundo os relatos,
Otacílio logra ocupar espaços ao se oferecer para regularizar a situação fundiária das
famílias negras:
‘Olha, eu arrumo esse campo de vocês tudo’. Aí disse pros herdeiros que queria
se colocar assim, era campo de todo mundo, tudo tinha um pedaço. Aí disse
Otacílio repreendia as festas porque os nego davam furo e cantavam com o homem na volta ‘Vamo bota xote
que o Otacílio não tá’ com o homem na volta.
184
assim: ‘Cada um me dá uma bracinha, eu levo lá pra prefeitura e lá arrumo
todos os papéis’. Aí quando ele foi na prefeitura, ele disse, ‘Oh, fulano de tal e
fulano de tal, cada um me deu uma braça’. Aí não fez assim. Quando foi de uns
dias bateu com um agrimensor medindo 10 braças de campo, no mato, lá no
fundo desse capão grande, lá embaixo, onde era a zona do Gerci [vizinho]. [...]
Aí o agrimensor cercou, dez braças de terra. Era uma área de 20 e tantas.. Ah, o
Elias [tio de Orcindo Machado] chorou e fez assim com o braço [balança
freneticamente os braços]: ‘Mas o senhor não vai me pagar? O senhor está me
roubando’. (Geraldo Silva, março de 2005)
Há uma correspondência interessante entre a versão dos moradores de Cambará,
sintetizada por Geraldo, e a documentação escrita compulsada. Foi possível encontrar três
vendas de terra dos membros da família Machado a Otacílio Castilhos. Por meio de uma
procuração, Trajano Luiz de Vasconcellos, proprietário da região, negocia as terras com
Otacílio. Em duas vendas, foram transmitidas dez braças de sesmaria (aproximadamente 14
hectares) em cada uma delas. Em outra, 36 hectares. Ou seja, em conformidade com o
relato acima transcrito: Era uma área de 20 e tantas, e bateu com um agrimensor medindo
dez braças172. Orcindo Machado apresenta a seguinte versão:
Mas isso aí outros já tinham pegado essas terras. Isso aí vem de lá de trás já.
Tinha aí um castelhano que era prefeito, mas era muito ruim, então ele agarrou
aí, o povo muito bobo, isso aí tinha papel, e aí ele agarrou e extraviaram esses
papéis. Aí ele pediu uma braça para arrumar o resto, e agarrou uma noite e
cercou tudo. (Orcindo Machado, junho de 2005, 79 anos)
Quando Orcindo Machado diz que Otacílio agarrou uma noite e cercou tudo, ele
não está a falar literalmente, mas a revelar o caráter de tal transação: os atos secretos
comumente são cometidos à noite, escondidos para não chamar a atenção, sendo realizados
com cautela para que não sejam alardeados. É significativo também a associação entre um
cargo de mando – prefeito – e Otacílio. Orcindo também estabelece elos entre o presente e
os processos de esbulho das terras. Há um marco temporal que alça a chegada de Otacílio
ao plano do espólio constantemente sofrido pelo grupo: Isso vem lá de trás já. Já Maria
Isabel da Silva afirma, em uma das entrevistas, que Otacílio, depois de roubar as terras,
obrigava os negros a dizer: ‘Tô pago e satisfeito’ (Maria Isabel, in memorian, novembro de
172
APERS. Livro de Registro de Notas 3° Distrito Cachoeira do Sul. Livro 8, M12. fls. 62v e 63; 74 e 75v;
82v e 83.
185
2005). Mais do que uma formulação para atender a fins políticos, essas histórias trazem
embutidas noções de justo e injusto, servindo de base para os princípios de justificação
utilizados nas situações práticas com as quais o grupo se defronta. Com a palavra, Geraldo:
Aí quando ele estava bem danado, o pessoal que foram judiado dele aqui, negra
velha aqui, tudo jogavam praga, diziam que ele tinha que morrer na miséria. [...]
Nem a filha quis cuidar dele. Ele era ruim. E daí a maioria dos negros daqui, até
o guri que já era neto daquela gente que foram judiadas, jogavam praga. Tinha o
guri que trabalhava lá também e ele implicou. O guri dizia, ‘Esse cara surrou
muito os meus avôs e ele tem que sofrer’. E uma dia ele [Otacílio] bagunçou com
o guri. ‘Guri, tu é ruim’. ‘Eu sou ruim mesmo, porque tu era ruim’. [...] Mas aí
todo mundo rogou praga que ele ia morrer na miséria e morreu. (Geraldo da
Silva, 76 anos, maio de 2005)
Vários rogaram praga para Otacílio. Todos aqueles que sofreram com sua violência, roubos
e castigos físicos. A história de Cambará é compartilhada mesmo por aqueles que não a
viveram diretamente: tal como o guri que roga praga pelo sofrimento de seus avós.
Sentimento de pertença a um grupo, sentimento de história compartilhada.
As narrativas sobre Otacílio articulam diversas temporalidades segmentadas na
ordenação dos fatos. A tarefa do crítico de certo modo simplifica as narrativas ao
estabelecer uma ordenação dos fatos segundo os cânones a partir dos quais fomos
acostumados a pensar. Toda vivacidade da oralidade, suas interrupções, digressões e
cadências são fundamentais para a compreensão dos eventos narrados. Notem abaixo
quantos elementos são articulados quando Geraldo da Silva fala de seu bisavô Thomé:
Geraldo: Mataram ele [Thomé]. Roubaram muito gado aí dos Costa. E ele era
empregado, trabalhava nos campo. Esse tempo existia um tal de Pedro Fortes
que comandava uma turma aí. Ele ia na frente com os capangas e o secretário
com a carreta. Mas isso aí à noite. E o Tomé trabalhava no campo dos Costa,
era empregado deles lá, ele e o Emiliano [antigo que era escravo dos Costa]. Aí
as véia disseram: ‘Olha, Thomé, hoje nós temos que fazer pão no forno e tu não
vai embora. Pousa aí, ou .até meia-noite tu tem que tá aí’. E aquelas moças
acostumavam a fazer pão, e o Thomé tinha que participar. E ele ficou. E esses
campos dos Costa tinham campo ali na Catuta [Ivone Ferreira, vizinha]. Ali saía
reto naquela casa que tem ali. Ali ia pela estrada. Ali naquele barranco era dos
Costa, até o Corujão [posto de gasolina que fica aproximadamente no km 306 da
BR-290]. E por ali era o lugar que tiravam rês pra carnear, pra roubar. Naquele
costado ali era do Elias [Elias Machado, tio de Orcindo]. E o Tomé tava ali de
noite. Tava o boi berrando no lago. Pegaram ele, os caras já tinham uma
promessa e eu acho que ele não sabia, porque ele andou entregando uns ali. Aí
tinha dois carneando. Meteram e agarraram, degolaram. O cavalo era muito
186
manso, botaram o potreiro pro lado, botaram o laço no pescoço dele, furaram a
língua, botaram a amarra do laço no pescoço, aí conduziram a rês, aí quando
viu começaram a dizer: ‘Mas o Tomé não veio hoje’. ‘O cavalo do Tomé tá na
beira da lagoa’. Aquela lagoa perto do compadre Adão [vizinho]. Aí foram no
campo dos Costa, acharam ele lá e o cavalo já saia dali. E ele morto com o laço
e a língua furada. Aí era um final de semana. Ali morava o tio do Orcindo,
Martimiano. Mas esse Martimiano tinha uma irmandade muito grande; pai do
Orcindo, irmão, era o tal de Elias. Aí fizeram uma seleção com...o capitão
mesmo era branco, o tal de Pedro Fortes. Mas só roubava de noite. Ele ia na
frente e tudo. E essa turma que roubava pra ele acho que ganhavam. Meio que
tapeava eles, mas ninguém descobria. Aí botaram o Otacílio. Os Costa
contrataram esse Otacílio que era um castelhano. Era do Uruguai e era ruim. Aí
não sei se o Pedro Fortes morreu, ou não podia aparecer. E o Otacílio vinha
nessas casas. Quando ele desconfiava de alguma coisa mandava uma revista nas
casas. E o Otacílio vinha nessas casas todas dos Machados. Daí depois desse
negócio que mataram o Thomé os Costa botaram o Otacílio. Eu conheci ele e
conheci o Martimiano. Martimiano era um homem véio, bem moreno. Olhava
assim, os dente bem branquinho e não se notava os cabelos branco, eram bem
preto. Aí o Ramiro Corrêa, era natural dos Corrêa daqui. Naquele tempo ele
levava todo mundo, até os tios da minha mãe. E usava muitos os nego. Aí botou o
Martimiano a carnear. Então o Ramiro Corrêa usou muito o Martimiano. O
Martimiano era sangrador. O Martimiano meteu a faca na rês e morreu. Era
negócio de coração. Mas era forte, mas o coração não agüentou. Sangrou aquela
rês e caiu.
E: Quem prendeu o Martimiano?
Geraldo: Os Costa botaram ele na cadeia. Mas aí tinha outros que roubavam
também [risos]. Mas o Otacílio ia na casa desses da irmandade e ao meio-dia
pegava ‘Tão comendo carne?’ Queria saber de onde compraram aquela carne. E
quando via saía uma mulher correndo com uma panela e ele já saía atrás. Daqui
a pouco ele voltava com aquela pessoa pra dentro de casa e o pau. A minha mãe
era pequena. Parece que tinha cinco anos e viu. Ele não ia sozinho. Tinha
praças. Isso colocado pelos Costa. Depois que mataram o Thomé. [Geraldo da
Silva, 76 anos, dezembro de 2005].
A narrativa começa e termina com Thomé. O que está no entremeio é a questão. A
origem e a história do território articulam uma série de eventos vividos num espaço
circunscrito. Reconstituir a história fundiária em Cambará deve balizar-se pela relevância
fixada pelos sujeitos da pesquisa. Os espólios de Otacílio se deram na área hoje
correspondente aos núcleos Rincão e Pinheiros. Em Cambará e no Irapuá, a história foi
diferente, mas não menos sujeita à espoliação.
187
4.6 Espaços de liberdade
Nesta seção acompanharemos a formação territorial dos núcleos Irapuá e Cambará,
habitados majoritariamente pelas famílias Lopes e Ramos, respectivamente. A razão de
agrupá-los, para fins analíticos, consiste na trajetória histórica semelhante dos antecessores
dessas famílias. Eles adquiriram terras nas primeiras décadas imediatas ao fim da
escravidão. Vejamos.
A origem do núcleo Cambará remonta à aquisição de campos por Gaspar Ramos e
seu filho primogênito, Domingos Ramos, pouco depois da escravatura. É pouco provável
que Gaspar e Domingos vivessem na região na época da medição da Sesmaria da Palma,
pois não há nenhuma referência a eles nas fontes escritas e os narradores atestam que os
Ramos chegaram ao local após a medição. Os Ramos seriam originários da banda dos
Prates (localidade distante algumas dezenas de quilômetros de Cambará). Gaspar Ramos
teria adquirido seu quinhão com uma junta de gado. Tanto pelas referências de seus
antecessores como pela leitura de sua carta testamentária, é possível supor que Gaspar foi
escravo173. Atualmente, as netas de Gaspar vivem no local onde ele adquiriu seu quinhão.
A consulta a uma medição de campo, requisitada por Gaspar Ramos, demonstra que
essa família possuía aproximadamente 150 hectares174 de terras. Só foi possível localizar,
contudo, o registro da compra de 18 braças e oito palmos de sesmaria de campo
(aproximadamente 30 hectares)175 efetuada por Domingos Ramos em agosto de 1913, ao
custo de um conto de réis. Consta na referida medição serem aquelas terras pertencentes à
sucessão de Zeferino Claro Badsch176, morto em 1903. Não foi possível saber como e
quando Zeferino chegou ao local, mas há um indicativo interessante em seu inventário.
Patrimônio constituído basicamente por terras – possuía por volta de 392 ha – lega a sete
herdeiros seis contos e quinhentos mil réis. Para infortúnio dos herdeiros, lega também
quatro contos e quinhentos de dívida. Os dois contos que sobram quedam-se ainda mais
173
APERS. Cachoeira. Testamentos (1912-1930). Cartório Provedoria. Maço 03, Estante 09, fl.124.
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS). Medições Judiciais. Cachoeira do Sul, n°489.
175
APERS. Livro de Registro de Notas. 3° Distrito de Cachoeira. Livro 6, Fundo 12, Estante 26, fl.164.
176
AHRS. Medições Judiciais. Cachoeira do Sul, n°489.
174
188
minguados ao fim do inventário, quando três credores cobram dois contos e duzentos mil
réis de dívida177.
Figura 18 – Família Ramos178
Eva
Fortes
1840 - 1922
1850
82
Gaspar
Ramos
1880
Maria da
Glória
Barreto
Domingos
Ramos
Custódia
Ramos
1882
1882
1894
1896
Apolinário
Ramos
Amorilina
Ramos
Onlina
Ramos
Izália
Ramos
1898 - 1990
Esmeraldina Gerêncio
Ramos
Ramos
92
Germano
Ramos
Clarinda
Ramos
1933
1936
1943
75
72
65
1951
57
Teresa
Ramos
Evonir
Ramos
Ivilaci
Ramos
Odir
Ramos
Esse dado é importante, pois sugere um contexto favorável à aquisição de terras por
Gaspar Ramos. Fica a dúvida se Gaspar efetuou a compra antes ou depois da morte de
Zeferino Badsch. De igual modo, Domingos Ramos comprou seu quinhão de Antonio
Joaquim Lopes, grande estancieiro que à época desfazia-se de grandes extensões de campo
legadas por sua família179. A forma pela qual Domingos obteve recursos é incerta. Talvez o
matrimônio com Glória Barreto (ver genealogia acima) tenha resultado na união de
177
APERS. Cachoeira. Inventários (Zeferino Claro Badsch). Órfãos e Ausentes, Maço 43, Estante 52, n°1011,
1903.
178
As informações sobre os filhos de Gaspar e Custódia Ramos provêm da leitura da carta testamentária
daquele. Para os fins desta seção, interessa salientar a sucessão de Germano Ramos.
179
Em um período de quinze anos (1906-1919) foi possível localizar a transmissão de quase quatrocentos
hectares de terra por Antonio Joaquim Lopes a terceiros. APERS. Cachoeira. Livro de Registro de Notas 3°
Distrito. Livro 5, Estante 12, Fundo 26, fls.2 e 5. APERS. Cachoeira. Livro de Registro de Notas 3°
Distrito.Livro 6, Estante 12, Fundo 26, fls. 75, 160 e 164. APERS. Cachoeira. Livro de Registro de Notas 3°
Distrito. Livro 8, Estante 12, Fundo 26, fl. 88.
189
esforços de duas famílias negras, dotadas de algum recurso financeiro, para obtenção de
espaços próprios180.
Os membros da família Ramos descendem de Germano Ramos, filho mais novo de
Gaspar e irmão de Domingos. Quando relembram sua infância, Odir e Evonir Ramos, filhas
de Germano, notam que:
E: As senhoras sabem de quem o pai de vocês herdou as terras aqui?
Evonir: Nós temos o que era do pai dele. Ele [seu pai] sempre contava essas
histórias, que o pai dele passava fome pra comprar essas terras. (Evonir e Odir
Ramos, 65 e 57 anos, maio de 2005).
A vida sacrificosa de seus pais, avós e delas mesmas ganha contornos dramáticos
em vista das diminutas frações de campo hoje pertencentes à família. A venda a preço de
nada de terras por uma irmã (designada como filha do pai) e o tomar conta de um antigo
vizinho – ato fundado em ameaças e na consecução dessas ameaças – confere a essas
experiências dolorosas um ímpeto e um vigor no presente. Teresa Ramos, irmã de Ivonir e
Odir, diz que:
Teresa: Todo esse campo era uma coisa só, não tinha a estrada [BR-290]. Aí
depois eu vim e fiz a casa lá. Fiz uma casa lá não deu ponto, meu marido quase
morreu. A minha irmã morava ali, então eu troquei para cá. [...] Isso aqui é da
minha irmã. Eu dei lá para ela e fiquei aqui, foi assim. Era até lá, mas isso aí
fecharam, já entrou italiano. Não sei da onde saiu a vendeção, só sei que foram
fechando e ficou assim.
E: Isso aqui tudo era de vocês e foi tudo vendido?
Teresa: Tudo, até lá ainda lá para baixo, era tudo. Era tudo um sofrimento para
pegar uma lenha, nós ficamos sem lenha. Meu pai tinha plantação de arroz, dava
30 sacos de arroz, depois foram fechando, não sei o que fizeram. E agora, depois
que eu fiquei aqui isso aqui era aberto, mas era nosso, era do meu pai, de frente
a fundo, fora o resto que eu não sei. Ia lá em baixo, lá nas lavouras de arroz.
Agora é uma miséria, capaz de morrer um na estrada por que tem que tá
carregando lenha (Teresa Ramos, 75 anos, outubro de 2002).
180
Os relatos indicam que ao ficar viúvo, Domingos herdou terras de Maria da Glória. O fato é que esta
detinha alguns recursos. Em 1902, constitui seu marido como procurador para receber dois contos de réis na
Caixa Econômica Federal em Porto Alegre. APERS. Cachoeira. Livro de Registro de Notas 3° Distrito. Livro
3 (1902-1904), Fundo 12, Estante 26.
190
A estrada oferece o risco de morte não só pelo intenso fluxo de automóveis, mas também, e
principalmente, por limitar o uso dos recursos oferecidos pelo território. É a própria saúde
do grupo que está em jogo aqui. A coleta de lenha exige a travessia de terrenos turbulentos.
A introdução de elementos exógenos a uma paisagem afeta a vida porque a vida está
diretamente ligada à terra.
Figura 19 – Evonir e Odir Ramos
Foto: Adriana Fonseca
Nesta, como em outras entrevistas e conversas com os moradores de Cambará, boa
parte das perguntas formuladas pelos entrevistadores tinha por objetivo coletar elementos
que permitissem reconstituir a sucessão territorial e a história fundiária da região.
Evidentemente que essas informações podiam servir para os interesses políticos do grupo,
mas é demasiado simplista reduzir essas falas a interesses. É inegável que as perspectivas
de mudança futura podem alterar as visões e versões do passado. Contudo, a maximização
191
dessa tese pode nos conduzir a um modelo no qual esses agentes são espécies de
‘empresários da memória’. A plasticidade da memória não resulta em uso irrestrito dela.
***
Já o núcleo Irapuá é a morada dos Lopes. O primeiro a chegar ao local foi Estevão
Pereira Lopes, protagonista de uma série de feitos. Estevão é pai do octogenário Jorge
Pereira Lopes, tido por grande sabedor dos antigos. Tal como Domingos Ramos, Estevão
adquire seu pedaço no ano de 1913: quatro hectares de campos e matos181.
Filho da escrava Luisa com um fazendeiro branco que não se sabe ao certo quem
era, Estevão nasceu ventre-livre. Quando a liberdade foi anunciada, Luisa comprou um
pedaço de campo com os bichos que criava enquanto cativa e por motivos que habitam
zonas cinzentas, teve de abandonar seus campos. Foi daí em diante que passou a viver com
seu filho, Estevão, no local onde hoje vive Jorge.
Jorge afirma que a Luisa só foi possível comprar esse pedaço porque criava ela
bichos, já que nada ganhou depois do cativeiro. De certo ponto de vista, é lícito supor que o
fato de Luisa criar animais enquanto cativa fosse uma concessão senhorial. Para Jorge, ao
contrário, isso de forma alguma se afigura como algo dado. Luisa comprou terras porque
ela criava animais. De acordo com Jorge os morenos eram muito judiados na época. Daí
depois quando veio a liberdade, eles não tinham nada, mordomia nenhuma, então eles não
tinham pra onde ir, vieram pra cá vendido como quem vende uma junta de boi (Jorge
Pereira Lopes, 89 anos, maio de 2005). Se essa fala manifesta um quadro extremamente
dramático – as situações adversas às quais os morenos estavam submetidos após a liberdade
– pode-se notar também as respostas desses sujeitos. A criação de animais por Luisa talvez
tenha sido um primeiro e decisivo passo para afastar-se da condição de animalização. O não
ter para onde ir é contrabalançado pela aquisição de um espaço próprio, espaço de
disjunção e consolidação de projetos de liberdade sempre às voltas com o passado
escravista.
181
APERS. Livro de Registro de Notas. 3° Distrito de Cachoeira. Livro 6, Fundo 12, Estante 26. fl.166.
192
As narrativas que reportam a territorialização devem ser vistas enquanto injunção e
disjunção temporal. Os relatos dos descendentes da família Ramos e Lopes indicam que
parentes egressos do cativeiro se viam às voltas com a escravidão mesmo após o término do
regime e vivendo em um espaço próprio. A documentação das primeiras décadas do século
XX dá bem uma idéia do caráter racializado do território de Cambará. Na medição dos
quinhões do estancieiro Gaspar de Souza Trindade, datada de 1921, aparecem como
confrontantes a negra Antonia e o negro Gaspar (certamente Gaspar Ramos)182. Os lugares
e regiões falam menos de um fato natural (Said, 1990) e mais da produção humana de uma
“geografia imaginativa” diretamente conectada às relações de poder (Said, 2001:62). O
território também é vivido por suas cores.
Figura 20 – Medição Gaspar de Souza Trindade
Como confrontantes de Gaspar de Souza Trindade, o negro Gaspar e a negra Antonia.
182
AHRS. Medições Judiciais. Caçapava, n°562, 1921.
193
Figuras 21 e 21a – Medição Fazenda Santa Bárbara
194
Na medição da fazenda de Santa Bárbara183 (confrontante ao território de Cambará), os territórios
negros novamente são invisibilizados. No registro (número 30), constam como donos “diversos”.
4.7 Paisagens da memória
As seções anteriores trouxeram elementos que permitiram reconstituir a formação e
história territorial de Cambará. Meu principal objetivo é perceber em que medida o retorno
dos relatos aos eventos de fundação do território faz sentido no presente. Assim sendo, é
necessário saber por qual razão esses eventos são importantes na contemporaneidade. A
reivindicação de direitos sobre as terras é fator determinante.
Em certo dia de 2005, fomos à casa de D. Maria Ferreira, na época com 88 anos.
Maria é grande conhecedora das histórias dos antigos. Fomos visitá-la e entrevistá-la, mais
uma vez, com o objetivo de saber como, quando e quais famílias negras moraram no local;
qual a sucessão genealógica entre elas; para onde foram aqueles que viviam ali; onde foram
construídas suas residências. Naquela ocasião, uma das filhas de Maria, Ione Ferreira,
habitante de Porto Alegre há mais de 20 anos, estava de passagem na casa de sua mãe.
Apesar de viver em Porto Alegre, Ione nunca perdeu contato com os parentes residentes em
Cambará. Freqüentemente visita a mãe, a irmã e a sobrinha.
Enquanto uma pesquisadora entrevistava Maria, pedi a Ione para me acompanhar e
percorrer o pátio de sua mãe para me apontar os lugares onde viviam as famílias negras e
os domínios antes pertencentes a elas. Sabedora que alguns estudantes da universidade
estavam fazendo um estudo sobre Cambará, e que tal estudo tinha por objetivo instruir o
órgão responsável pela titulação das terras das comunidades quilombolas, Ione aceitou o
alvitre com toda sua característica solicitude. Embora a entrevista não tenha durado mais de
uma hora, foi cansativa, tendo em vista ser o terreno de Maria acidentado e íngreme.
O fato de Ione viver em Porto Alegre e não possuir uma idade tão avançada assim –
contava com 50 anos – não a impedia de guardar muitas lembranças sobre os antigos.
Provavelmente pelo fato de ser filha e sobrinha de grandes sabedoras do local, reconstituía
com minúcias o que lhe solicitava. Próximo ao fim da entrevista, notei que Ione estava
ofegante. Pedi desculpas por qualquer incômodo, e tudo mais. Ione respondeu que eu não
183
AHRS. Medições Judiciais. Caçapava, n°482, 1918..
195
precisava pedir desculpas. O tempo estava deixando-a entrevada; além do mais, aquilo era
para nosso benefício (do grupo).
O ato de narrar sempre se dá em contextos específicos. Talvez esse seja o principal
motivo concorrente para a dinamicidade e as variações das narrativas. É provável que pelo
fato de viver em uma grande cidade e ser ligada a umbanda e escolas de samba, Ione tenha
percebido desde o início a importância das entrevistas para os pleitos da comunidade. É
evidente que Ione não concedeu essa entrevista apenas por conta de seus interesses ou, pior
ainda, que suas falas fossem somente ‘calculadas’.
Nesse momento é possível deslocar o local onde geralmente se pensa o processo de
interação entre pesquisador e sujeito da pesquisa. A íntima conexão entre expressão e
experiência leva-nos a pensar no público ouvinte e sua participação (e influência) na coisa
narrada. Contextos como o de Cambará – onde disputas políticas e a luta por direitos são a
‘porta de entrada’ do antropólogo em campo – tornam-no peça-chave na narrativa de
maneira peculiar. Freqüentemente, seu interesse na história local é impulsionado não
apenas por ‘curiosidade científica’, mas também pelo retorno ao passado ser imperioso184.
A introdução do etnógrafo como ator na etnografia é importante nesse tocante por inserir a
‘memória coletiva’ no âmbito de relações sociais concretas. Destarte, narrativas não são
dados pré-constituídos à espera do registro do antropólogo, mas ganham formato nos
próprios diálogos com o pesquisador.
Esse é um tema explorado com freqüência na bibliografia sobre quilombolas, e tem
gerado descrições minuciosas não redutoras da realidade presenciada em campo aos
simples efeitos discursivos das etnografias185. Porém, se o diagnóstico dessas situações não
é reducionista (e não desemboca numa ‘antropologia do umbigo’) inclina-se para a busca
dos fluxos por meio dos quais a intersubjetividade sujeito-objeto deve seu formato. Até
aqui nenhum problema. A questão é tratar a dinâmica da memória e a interação dos sujeitos
da pesquisa com o pesquisador como uma manifestação dos tão propalados fluxos
identitários.
184
185
Para uma leitura mais pormenorizada dessas variantes e conceitos remeto os leitores ao capítulo 1.
Um bom exemplo é Arruti (2006:223-233).
196
Uma linha investigativa complementar poderia perguntar pelas relações de
conhecimento estabelecidas nos momentos de expressão das experiências. No percurso
percorrido comigo, Ione não respondia apenas para atender as demandas identitárias do
presente ou com o fim de maximizar os recursos disponíveis pela memória. De certa
maneira, ela estava me ensinando a ler a paisagem. A história do lugar está escrita num
processo de aprendizado por ela vivenciado. Cada ponto que estacava, cada lugar que
olhava, tinha suas linhas. Naquele trajeto, descortinavam-se cursos de vida.
Quando Ione levou-me até a fonte d'água, contou-me que sua tia fora achada morta
ali. Ela era lavadeira, e seu sustento provinha do pesado e mal-remunerado trabalho de
lavação. Apontando-me a morada de uma antiga, dizia ser ainda capaz de ver grandes
varais repletos de roupas branquinhas. Olhando adiante, falou de outra antiga, Maria
Cândida, que foi cativa e já bem velhinha era buscada pelos brancos para fazer todo o
serviço nas casas. Morreu trabalhando. E é aqui que começamos a perceber as estruturas de
sentimento intimamente relacionadas ao território. O ato de rememorar traz em seu bojo
motivações, mas traz, sobretudo, histórias incorporadas estruturantes da forma e do teor
desses relatos:
Ione: Me criei aqui, vi o trabalho que passavam. Às vezes não tinham arado, era
virado de enxada. Plantavam, viravam, não pediam nada pra ninguém. Ninguém
roubava nada de ninguém [...] Então tudo eles perderam. [...] Essa Maria
Cândida mesmo, já não tem os netos aqui. [...] Era tudo aberto. E todo mundo
respeitava. Aqui era do fulano, ninguém colocava aqui porque era do fulano. Só
se tu vinhas e me dava, entendeu? Senão todo mundo respeitava. Agora que não
dá pra ter mais nada aberto senão...
E: – Não é assim mais?
Ione: Não é assim mais. Tem que pegar e cercar e já botar cerca senão os outros
de fora vêm e tomam conta. Conforme aqui que veio e tomou conta. Ele [vizinho
branco] comprou um hectare, uma área. Até se tu for prestar a atenção tu vai ver
que tá errado, né. Como é que tu vai comprar uma área que desce a cerca assim
[faz um gesto em linha reta] e tu vai fazendo a volta!? (Ione Ferreira, 52 anos,
maio de 2005).
A perda das terras e o esvaziamento de famílias negras na região – tendo por
correlato o ‘inchamento’ de estancieiros, alemães e italianos – trazem consigo muito mais
197
do que interesses e respostas a um fluxo ditado por um ente maior. Analisemos outro caso
agora.
***
Quando estudantes e técnicos da UFRGS começaram a desenvolver ações em
Cambará, foi Márcio Roberto Lopes da Silva quem sugeriu quais pessoas eram mais
indicadas a fornecer informações relevantes. No início da pesquisa com vistas à elaboração
do laudo, Márcio já dispunha de páginas e páginas de seus cadernos preenchidos com
genealogias, nomes de antigos moradores, informações históricas e sobre a sucessão
territorial na região. Diversas vezes tomamos de empréstimo seus materiais e levamos para
Porto Alegre para analisá-los em pormenor. Interessantes pistas – especialmente para
pesquisas em arquivos – foram dali retiradas.
Certa feita, Márcio elaborou, em um papel pardo, um croqui de Cambará. O croqui
primava pelo detalhamento. Constava o território ocupado no pretérito pelos bem antigos.
Os lotes e o campo de cada família que ali habitava hoje estavam discriminados. Ao lado
do nome dos atuais ocupantes, Márcio trazia informações sobre a transmissão das terras,
enumerava o nome dos antigos habitantes, estabelecia nexos genealógicos, pontuava a
chegada dos brancos, apontava as taperas. Márcio já dispunha de tamanho volume de
anotações que pensava em fazer uma espécie de arquivo da história da comunidade em sua
casa.
Noutra ocasião, Márcio realizou um trabalho similar com base num mapa feito pelos
geógrafos da equipe do laudo. Dizia haver se acostumado a fazer esse tipo de pesquisa com
os antigos. Disse-me que aprendera a desenvolver uma técnica antropológica para
entrevistar os mais velhos. Era necessário ir com calma, respeitar as características pessoais
de cada um, saber como e quando perguntar. Relatou as admoestações de seu pai, Geraldo,
grande conhecedor dos antigos, pela insistência do filho em saber coisas que já haviam sido
ditas. Foi entrevistando os mais velhos que Márcio coletou o material para suas genealogias
e a elaboração do croqui.
198
FIGURA 22 – CROQUI DE MÁRCIO
(MAPA 2)
199
FIGURA 23 – SOBREPOSIÇÕES NO MAPA (MAPA 3)
201
Mesmo sem ser um antigo, Márcio era autorizado a falar sobre o passado por conta
de seu interesse e pesquisas. É evidente que nem todas as mulheres e homens de Cambará
tiveram o mesmo grau de envolvimento na elaboração do laudo. O exemplo de Márcio joga
por terra a noção policialesca de informante. Ele dialogou efetivamente conosco e
participou ativamente de nosso trabalho, embora isso não anule a distância social e de
capital entre pesquisador e sujeito da pesquisa.
Figura 24 – Márcio, coordenador do laudo e técnicos do INCRA
Foto: Ricardo Charão.
Pode-se argumentar que a mobilização e a dedicação de Márcio atestam a formação
de novas disposições em função da situação de reivindicação étnica do grupo. É pouco
provável que manifestasse esse crescente interesse pela história de Cambará não fosse o
contexto atual. Talvez não empregasse suas forças e despendesse seu tempo em tal
empreitada se a mobilização pela titulação das terras não tivesse lugar. Ademais, Márcio
está acionando novos meios de transmissão do passado. Ou seja, se os mais velhos
transmitem lembranças oralmente e não fixam o território em documentos, Márcio está
203
organizando um arquivo escrito sobre Cambará e fixando e visualizando em um mapa o
território do grupo.
Este quadro, contanto, é demasiado simplista, pois negligencia três aspectos
fundamentais. Em primeiro lugar, não reduzo as narrativas dos membros de Cambará a uma
mera adequação ao presente. Se a situação histórica do grupo certamente influi na dinâmica
e reconfigurações do passado, é necessário tomar o cuidado de não redundar num
circunstancialismo. Cabe pensar se nossa ânsia em decretar a inexistência das coisas (em si)
não acaba por menosprezar as determinações do passado no presente (Santos, 2003).
Afastemos mal-entendidos. Ao falar em determinações do passado não quero remeter ao
acabado. Quero abrir um espaço de interrogação que não subordina o passado vivido
exclusivamente ao reconstruído nas interações no presente.
Figura 25 – Isaura e o laudo
Foto: Marcelo Mello
204
O modelo da “invenção das tradições” (Hobsbawm e Ranger, 1997) parece-me
insuficiente, dentre outras coisas, justamente por conta disto. O passado nunca permanece
idêntico a si mesmo, mas ele é criado com base numa experiência vivida. As pessoas não se
recordam a partir do nada; elas criam a partir de um repertório. Ao enfatizar somente a
dimensão política da etnicidade e as reelaborações da memória com vistas a legitimar a luta
por direitos, corre-se o risco de tomar o tempo como máximo rendimento, ou seja, mero
instrumento de realização de um ulterior distante (Tedesco, 2004:107-8)
Em segundo lugar, a documentação de uma história transmitida oralmente não é um
ato de inauguração da escrita no interior do grupo. Embora praticamente todas as pessoas
da comunidade nascidas entre 1910-1950 sejam analfabetas, elas já possuíam um contato
com a escrita, mesmo que de forma esporádica. A relação entre oralidade e letramento não
consiste na sobreposição de uma forma de registro por outra, mas sim no complexo
entrelaçamento entre ambas (Street, 2003; Rappaport , 1990; 1994).
Em terceiro lugar, croquis e arquivos escritos tornam-se novos suportes da memória
concomitantemente aos suportes territoriais da memória. Recentemente perguntei a
Márcio se havia tido muita dificuldade em fazer seu ‘mapa’. Respondeu que não, que faria
outro naquele mesmo instante, se preciso. O que fez foi estacar em um ponto próximo à sua
casa e esboçar o mapa da comunidade. Disse-me que conhecia bem o lugar, por isso não
tivera dificuldades. Essa história incrustada na paisagem possibilitou-lhe inscrever
lembranças em um croqui.
Se analisarmos de forma detida esses documentos e ‘mapas’, veremos a inscrição
das formas de lembrar transmitidas a Márcio pelos antigos. Se o trabalho da memória é
alargado, cobrindo referenciais e suportes mnemônicos pouco utilizados pelo grupo até
então (como no caso de croquis, da delimitação do território em mapas e da minuciosa
descrição das redes genealógicas), só é possível conceber os registros da história por
Márcio se referirmos a um trabalho da memória e a uma trajetória que está por trás da
elaboração desses documentos.
205
Figuras 26 e 26a – Arquivos de Márcio
206
Um primeiro elemento fundamental é dominar a escrita. As gerações mais novas em
geral freqüentaram a escola devido à universalização do ensino no Brasil. Embora não
tenha tido possibilidade de terminar o ensino fundamental, os anos na escola foram
207
fundamentais para Márcio adquirir certas competências186. O papel de destaque assumido a
nível regional enquanto liderança quilombola tem igual importância. Como mencionei no
início deste estudo, as ações da universidade em Cambará tiveram início em 2002.
Transcorreram-se três anos até Cambará ser objeto de uma perícia antropológica.
Entrementes, Márcio participou de diversos seminários, conselhos gestores, reuniões,
encontros e demais atividades ligadas aos remanescentes de quilombos. A troca de
experiências com antropólogos, gestores de políticas públicas, militantes do movimento
social negro e quilombolas (em especial aqueles provenientes de comunidades que foram
objeto de perícia) dotaram-no do capital necessário para assumir uma posição, tarefas e
papéis.
O aprendizado das formas de ler o território não tem início no momento das
entrevistas, baseadas no emprego de técnicas antropológicas, com os mais velhos. Filho de
Geraldo da Silva e neto de Jorge Pereira Lopes e Isaura Lopes, Márcio descende dos
sabedores. De certo modo, está dando continuidade e tornando-se um guardião da memória
do grupo, tal como seu pai e seus avós. Como demonstrarei nas próximas páginas, as
histórias do lugar não são relatadas por qualquer pessoa. A idade é fator preponderante para
tornar alguém guardião da memória da comunidade. Permite que as histórias sejam
respaldadas pela trajetória e experiência do narrador. Mas tal fator, por si só, não basta. O
narrador não é aquele que sabe tal ou qual causo, mas aquele que, provido de certos
conhecimentos , tem a capacidade de saber contar uma história.
As situações atuais com as quais a comunidade se depara atualmente conferem a
Márcio proeminência no saber contar a história do grupo justamente por ele articular um
conhecimento vivido e aprendido localmente com as competências adquiridas enquanto
liderança quilombola. É comum os mais velhos socorrerem-se dos jovens quando
necessitam lidar com a escrita. Quando um questionário foi aplicado com os moradores do
local, não raro netos ou netas posicionavam-se atrás do pesquisador, de forma a poder ler as
perguntas a serem feitas.
186
As ‘competências’ de que falo aqui não são as capacidades mentais supostamente ausentes nas culturas de
tradição oral. Estou falando principalmente de competência enquanto expertise, ou, para utilizar a
terminologia de Bourdieu, o capital adquirido.
208
Essas considerações não têm por fim sugerir uma divisão ingênua entre as novas
gerações voltadas para o presente e as gerações mais antigas que ainda encarnariam a
‘tradição’. Todos em Cambará, a seu modo é bem verdade, estão engajados e envolvidos
com a questão quilombola. Embora o fator geracional seja um dado importante, quero
chamar atenção para o fato de que mesmo os agentes voltados para a nação, e que possuem
boa parte de suas ações informadas por ‘estratégias’, sempre permanecem vinculados à
comunidade.
***
Agosto de 2007. Márcio e eu íamos para sua casa. Caminhávamos pela BR-290.
Próximo ao posto de gasolina, pergunta-me se já conhecia a estrada antiga (antes da
construção da BR-290 existia uma estrada vicinal que cruzava Cambará). “Só de vista”,
respondo. Tomamos outro rumo, atravessamos uma cerca, e passamos a andar num
descampado. Não existiam senão rastros da estrada antiga. Tomamos um atalho para sua
residência; no caminho, mencionou que há alguns anos muitos indivíduos cavaram terra por
ali, em busca de um tesouro enterrado na época dos escravos. Busca infrutífera. Restou
apenas uma cratera, coberta por terra e pneus de caminhão. Márcio perscrutava o local e
dizia que sabia exatamente onde ficava o buraco. Encontrou-o. Uma densa vegetação já
encobrira aquela cratera. Eu sabia que era aqui. Naquele momento percebi que a paisagem
visualizada por Márcio estava diretamente relacionada às paisagens fixadas pela memória.
As entrevistas, pesquisas e o convívio com os antigos eram as ferramentas de leitura e
perscrutação do território dessa liderança.
4.8 O passado no presente
Quando mencionam a origem das terras por eles habitadas, Orcindo Machado e
Geraldo da Silva referem, como em outras vezes, que as sobras de uma medição foram
tocadas para os negros. Os dois sabem disto por ouvirem os antigos dizer. No momento em
209
que falam desse espaço, Geraldo e Orcindo apontam os limites da área, seus marcos e sua
extensão:
Geraldo: Eu sei que essa área diz que vai ali da sanga [pequeno ribeiro] vai até
ali o Pinheiro [núcleo familiar]. Agora como é que entrou branco no meio eu não
sei. [risos] Começou com o Otacílio. [...] O Otacílio enganou e quando o cara viu
ele entrou medindo. Era dez braças. Uma braça assim [abrindo os braços]. Ele
foi lá e escriturou dez braças de terra. O homem véio se apavorou dizendo que
ele tava roubando e daí ele endureceu dizendo que ia dar no nego véio. E ficava
assim. Ele não prometia nada e tapava. Mas eu não sei como ele avançou. Ele
era ali da beirada. Diz que ele morava ali onde tem aquela bergamoteira, ali no
posto. Ali tinha uma tapera velha que era morada e posto policial dele. Mas não
sei como é que ele conseguiu. Atravessou de lá, lá do arroio, lá por trás. De lá
ele conseguiu vender pros Costa [família branca da região] (Geraldo da Silva 76
anos, junho de 2005).
Geraldo e Orcindo contam e recontam os roubos de Otacílio. Narram em minúcias,
fazendo gestos, reproduzindo falas e comportamentos com as palavras e o corpo. Ao
mesmo tempo, não sabem como os brancos entraram ali e como Otacílio conseguiu fazer o
que fez. Sabem exatamente como tudo aconteceu, mas não como os brancos conseguiram
entrar ali daquela maneira. Como diz Pollak em um de seus artigos: “Um passado que resta
mudo é talvez menos o produto de um esquecimento do que uma gestão da memória
segundo as possibilidades de comunicação a tal ou qual momento da vida” (Pollak, 1986:
55).
Os eventos marcantes na história do grupo são de conhecimento geral, mas apenas
algumas pessoas sabem contar. Ou seja, não basta conhecer ou ser velho, é necessário
dominar técnicas que permitam transmitir o conteúdo narrado. Como nota Gallois (1992), a
transmissão oral não precisa ser completa, nem a descrição exaustiva. Ela depende de uma
forma de “transmissão participante” (:26). O interesse do narrador, na relação com o
ouvinte, é conservar o que foi narrado. Ao retirar da sua experiência o que ele conta, o
narrador incorpora as coisas narradas à experiência de seus ouvintes (Benjamin, 1996).
Essa incorporação da coisa narrada depende, sobremodo, da incorporação da história no
corpo do narrador.
Ao narrar um ‘causo’ que envolve um antigo, reproduzem-se suas falas, seus gestos,
seus atos, suas expressões. Na narração, os hábitos de contar não são somente competências
técnicas, mas atividades adquiridas, como nota Connerton (1993:112). Saber contar exige
210
habilidades na maneira de contar, supõe o domínio de envolver os ouvintes nas coisas
narradas. Os gestos, a entonação, as pausas e digressões dão formato ao conteúdo narrado.
A reencenação dos eventos protagonizados pelos antigos é uma forma de transmitir o
vivido do grupo e de estabelecer padrões de relevância do passado.
Ao mencionar os roubos de Otacílio, Geraldo da Silva e Orcindo Machado têm um
cuidado especial com as palavras. Cadenciam cada frase, alteram o tom de voz, mudam o
ritmo das falas a cada instante, no intuito de transmitir as reações daqueles que viveram os
fatos. Temos um exemplo evidente disto na fala acima transcrita. O engodo de Otacílio é
corporificado pelo narrador. O abrir os braços de Geraldo põe em evidência a expropriação
do grupo, pois as braças eram de sesmaria, e não do corpo. De certo modo, é o próprio
território de Cambará que está encarnado no corpo do narrador.
A evocação do território se faz acompanhar da evocação de marcos, conformando
uma espécie de topografia: a sanga que corre até certo núcleo familiar, a bergamoteira nas
proximidades do posto policial de Otacílio; os locais onde se realizavam os bailes; o
campestre, as matas, as árvores frutíferas. Os olhos que contemplam hoje a paisagem têm
por pano de fundo as imagens associadas àquele espaço, pois, como quer Halbwachs
(1989):
Quando um grupo está inserido numa parte do espaço, ele a transforma a sua
imagem, ao mesmo tempo em que se sujeita e se adapta às coisas materiais e a ele
resistem [...] Não é o indivíduo isolado, é o indivíduo como membro do grupo, é
o próprio grupo que, dessa maneira, permanece submetido à influência da
natureza material e participa de seu equilíbrio [...] O lugar recebeu a marca do
grupo, e vice-versa. Então, todas as ações do grupo podem se traduzir em termos
espaciais, e o lugar ocupado por ele é somente a reunião de todos os termos. Cada
aspecto, cada detalhe desse lugar em si mesmo tem um sentido que é inteligível
apenas para os membros do grupo, porque todas as partes do espaço que ele
ocupou correspondem a outro tanto de aspectos diferentes da estrutura da vida e
da sociedade, ao menos, naquilo que havia nela de mais estável (Halbwachs
1989:107).
As imagens espaciais certamente são um dos principais pontos de apoio da memória
coletiva. Como nota Halbwachs (1989), não há memória que não se desenvolva num
quadro espacial. Ao mesmo tempo, recordar os antepassados traz em seu bojo o desenrolar
de vivências, sentimentos, afetos e intensidades num quadro espacial circunscrito. O
espaço, carregado de marcadores do tempo, funciona como um sistema coerente de
211
imagens coletivas (Godoi, 1999:112). Nele, estão presentes os acontecimentos que
marcaram a vida e história da comunidade. Em Cambará, a recordação dos antepassados
geralmente se faz acompanhar da indicação dos locais onde eles habitaram e viveram.
Evocar um parente antigo significa inserir sua visão no território, apontar precisamente
onde possuía roçados, plantações:
E: Foi sua avó que ganhou esse pedaço de campo?
Maria: Minha avó já morava aqui.
E: Então sua avó já morava aqui?
Maria: Já. Onde mora o Emiliano [irmão]. Aquela era a morada da velha. A
minha mãe morou em dois lugares: morou ali e lá naquele canto, aonde tem
aquele matinho ali. Depois ela se mudou dali e foi morar na casa da mãe dela. A
falecida vovó morreu então ele foi morar ali (Maria Ferreira, 90 anos, agosto de
2003).
A área ganha pela mãe de Maria (Teresa) era, segundo essa senhora, um campestre
cheio de espinhos. Para erguerem uma casa e o roçado foi necessário limpar todo o terreno.
Maria fica incrédula quando um vizinho tenciona derrubar uma árvore frutífera plantada
por sua mãe há muitos anos atrás. Resolutamente impede que isso ocorra. E isso se explica
porque a árvore é uma espécie de marcador do tempo, atestado e símbolo da permanência
do grupo naquele espaço.
Escrevendo em outro contexto, mas que é conveniente de ser trazido aqui, Rosaldo
(1980) chama atenção para diferentes formas de “evidências factuais” intimamente
relacionadas às percepções do espaço e do tempo. No grupo estudado por Rosaldo, os
aspectos da natureza são como que fontes documentais. As árvores, por elas mesmas,
testemunham a verdade das histórias de residência passada. De igual modo, em Cambará,
as regressões ao passado estão meticulosamente mapeadas nas paisagens. As paisagens,
incorporadas nas histórias, conformam o que Rosaldo chama de “espacialização do tempo”.
O tempo é pensado em termos de sua configuração espacial.
Como nota Godoi (1999:116), os lugares da memória não dizem respeito tanto a
uma preocupação histórica, mas a um estabelecimento de ordem no mundo vivido. Em
Cambará, os grandes eventos de fundação do território se estabelecem como
212
acontecimentos singulares de dimensões históricas próximas às das narrativas
historiográficas da academia e dos arquivos oficiais de documentações fundiárias com as
quais podem ser compatibilizadas – assim o caso de Otacílio e a aquisição de terras pelas
famílias Ramos e Lopes. As narrativas seguem, igualmente, outra dimensão temporal, pois
apresentam fragmentos de vivência coordenadoras das avaliações práticas e estruturantes
das concepções de justo e injusto.
No decorrer deste capítulo, busquei explicitar a história fundiária de Cambará
articulando-a ao trabalho da memória. Acompanhando Haesbaert (2004), devemos
conceber o território como um híbrido: híbrido entre natureza e sociedade, entre política,
economia e cultura, uma dimensão simbólica, ou cultural, e uma dimensão material. A
imersão nas narrativas locais demonstra o quão frágeis são as visões dicotomizadoras do
território, ou que buscam captá-lo em apenas uma dimensão.
O território de Cambará é constituído de camadas de histórias e eventos, sendo tanto
espaço quanto tempo. Os discursos sobre o território são históricos, mas a escolha dos
lugares não é fortuita: corresponde aos itinerários do grupo. Os lugares são uma marcação
de um tempo vivido, como nota Godoi (1999). Isso fica particularmente sinalizado nos
passeios realizados com os membros do grupo. A visualização da morada dos antigos, dos
arvoredos e matos, das divisas, das sangas, dos costados, lagos e córregos, do salão de
bailes e outros tantos lugares são os pontos de apoio da memória. Apontar onde um parente
ou antigo viveu, plantou e trabalhou é uma forma de inscrever as relações familiares na
história do grupo. Esse tempo genealógico estruturante da continuidade do grupo (Godoi,
1999) é mapeado meticulosamente na paisagem.
Nesses passeios, é como se a presença forasteira incitasse a uma leitura da paisagem
que ensina os de fora a lê-la conforme o processo de aprendizado vivenciado pelos ‘do
lugar’. As interações entre pesquisador e pesquisado não se limitam às competências
demandadas por situações práticas – como a das perícias, por exemplo – mas inclusive
momentos como esses nos quais a gramática e o idioma de entendimento do local são
transmitidos num cenário onde a paisagem tem suas páginas, onde uma série de tramas,
vivências e temporalidades foram vividas no passado e continuam a sê-lo no presente, pela
associação entre pessoas e lugares.
213
A história de sucessão fundiária e os espólios que dão formato atual ao local
carregam noções de justo e injusto, conformando parâmetros que servem para as avaliações
práticas dos agentes. Antes de perguntar, portanto, quais elementos da memória são
acionados para legitimar as disputas territoriais do grupo, é necessário dar um passo atrás e
perguntar o que informa esses juízos. São essas noções de justiça, fundadas em uma história
incorporada na paisagem, que conformam as bases das avaliações práticas e do diálogo
estabelecido com os direitos constitucionais.
4.9 Maria e as imagens
Sentada ao lado do pesquisador, Maria contemplava uma foto. Tratava-se de uma
antiga casa, fotografada algumas horas antes. Maria avistava-a do seu pátio. Aquele ponto
remoto no horizonte era a mesma casa que havia sido fotografada. Ela trabalhou lá muitos
anos atrás. Por alguns segundos, Maria olhava o horizonte e olhava a foto. Mirava com
atenção ambas imagens. Repetiu esse movimento por alguns instantes. Ficou introspectiva;
como que imergiu naquelas imagens. Perguntou a filha, postada atrás de nós, junto com
outros pesquisadores, se aquela casa era aquela que ela estava pensando. É como se uma
série de intensidades atravessasse aquele rápido momento. Ficou evidente, mais uma vez, a
dificuldade em captar o vivido. O dito, o oral, como que fica captado tão somente em sua
expressão vocal. As expressões corporais, gestuais, visuais, a cena em que desenrola o oral,
fica subsumida no discurso que registra. Restava impossível saber para o que exatamente
Maria olhava e quais lembranças aquela imagem – mostrada pelo pesquisador –
despertavam.
214
Figura 29 – Maria Ferreira
Foto: Adriana Fonseca
As falas e os atos de Maria, Ione, Márcio, Geraldo, Orcindo, Teresa, Odir e Evonir
trazidas nessas últimas seções afastam-me da preocupação centrada exclusivamente na
mobilização da memória para atender fins políticos. Se isso é uma questão evidente, a
leitura que esses sujeitos fazem do território é informada pela história incorporada na
paisagem. História incorporada que faz parte dos juízos práticos em situações específicas.
Se a terra é objeto de demanda no presente, ela não se resume a uma dimensão material ou
utilitária. Ela carrega afetos, personagens, subjetividades e marcos estritamente
relacionados ao que grupo apresenta como o seu território.
215
CAPÍTULO 5
O REGIME DA CRIAÇÃO
Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não
poderemos acabar com os atos particulares, escrituras e
inventários, nem apagar a instituição da história, ou até
da poesia.
Machado de Assis, Memorial de Aires.
Não devia de estar relembrando isto, contando assim o
sombrio das coisas. Lenga-lenga! Não devia de. O
senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho. Mas
talvez por isso mesmo. Falar com o estranho assim, que
bem ouve e logo longe vai embora, é um segundo
proveito: faz do que jeito que eu falasse mais mesmo
comigo. Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a
gente perverte sempre por arredar mais de si.
Guimarães Rosa, Grande Sertão: veredas.
Em algumas partes deste texto já fiz notar que as interações com os moradores de
Cambará estiveram às voltas com as demandas relacionadas à mobilização por direitos
territoriais. Assim, quando participei do Unisol e da confecção do laudo antropológico,
as entrevistas direcionavam-se para questões relativas à história fundiária e à sucessão
genealógica das famílias no local.
Essa ressalva é importante para afastar a tentação de situar essas narrativas em
contextos abstratos e atemporais. Não vejo muito como discordar de Fabian (1983) e sua
constatação de uma recorrente contradição no discurso antropológico: de um lado, os
etnógrafos supõem que os pesquisados são coevos ao pesquisador, mas esses mesmos
etnógrafos, no momento de produção do discurso antropológico em forma de descrições
e análises, suprimem as experiências coetâneas [coevalness] com as pessoas que
estudaram.
216
Daí ser necessário tomar cuidado para não situar os ‘nativos’ e, por decorrência,
as narrativas, em um outro tempo que não é o do antropólogo. Contudo, o fato de
antropólogo e ‘nativo’ compartilharem o mesmo tempo não significa que manifestem as
mesmas reações em face dele. É por isso que não reduzo as falas dos homens e mulheres
de Cambará às contingências históricas do momento187. Não considero essas narrativas
como meras adequações às perguntas do ouvinte (no caso em pauta, o antropólogo). Há
de se ter cuidado para não transformar o ‘informante’ num ‘respondente’, ou, dito de
outra forma, em sujeito passivo da interação, cujas falas manifestariam tão-somente
fluxos que o englobam e uma adequação à curiosidade antropológica.
Por essa razão pleiteio a validade do método seguido até o momento. Se as
pesquisas anteriores, e a minha própria, direcionavam a interação com o sujeito da
pesquisa para diálogos em torno dos processos territoriais e das sucessões genealógicas,
as ‘respostas’ eram situadas. Situadas pelo contexto e pelos padrões de relevância do
passado fixados pelo grupo. Em Cambará, as histórias envolvendo o passado escravista e
o trabalho são extremamente relevantes para o presente desses atores. Em outras
palavras, uma trajetória histórica específica torna a reação face à história específica.
A exposição de uma narrativa envolvendo ‘aparições’ e ‘assombros’ dará ensejo
para reconstituir as trajetórias no trabalho de uma geração de moradores em Cambará188.
Uma história contada em um contexto específico e certamente influenciada pela
presença de pesquisadores (vide abaixo) descortina uma série de questões que
convidam-nos a situar a narrativa em diversos tempos.
187
É por isso também que não sigo o plano de uma “antropologia da fala”. Podemos nos valer aqui da mesma
crítica de Bourdieu (1983) ao interacionismo simbólico e a etnometodologia. Ao eleger o contexto de
interação como locus de análise, excluem a questão das próprias condições de existência e possibilidade do
mundo social onde se dão essas interações. É necessário acompanhar Bourdieu quando este diz que “a
verdade da interação nunca reside inteiramente na interação” (1983:75). Vale lembrar que o ‘mentor’ da
etnografia da fala aponta uma proximidade de métodos e preocupações com a etnometodologia (Bauman ;
Sherzer, 1975: 101).
188
O conceito de geração não remete apenas a sua variante etária/cronológica, mas principalmente a um
conjunto de experiências vividas compartilhadas.
217
5.1 Reduplicações do tempo
Figura muito solícita e alegre, Geraldo da Silva sempre foi muito requisitado pelos
pesquisadores. Dono de uma capacidade incrível de reconstituir e narrar eventos pretéritos,
Geraldo concedia entrevistas sem muitas reservas. Em algumas ocasiões, durante a
elaboração do laudo, Geraldo, logo que nos avistava, começava a falar das histórias dos
antigos. Talvez essa crescente solicitude se devesse as nossas insistências e às de seu filho,
Márcio Roberto Lopes da Silva, liderança da comunidade e autor do croqui mencionado
anteriormente. Acompanhemos agora uma história contada por Geraldo. Ele o fez porque a
julgava importante e havia esquecido de nos contar nas ocasiões anteriores.
A narrativa diz respeito a uma luz avistada por Geraldo algumas vezes quando era
cria da casa da família Costa, ainda criança. Boa parte da fazenda da família Costa foi
comprada dos Lopes. O fato referido por Geraldo é da época em que aquelas terras
pertenciam aos Lopes. A luz por ele avistada era a alma penada de uma empregada da
família Lopes que se teria atirado em um poço. Em 2006, localizei, no Fundo de
Investigações Policiais do Município de Cachoeira do Sul189, um auto de corpo de delito,
datado de 1913. O subdelegado de polícia do 3º Distrito de Cachoeira do Sul conduz as
diligências necessárias para realizar o auto de corpo de delito em Doralice Pedroso, criada
de Antonio Joaquim Lopes, que se suicidou ao se atirar no poço da casa de seu patrão. De
cor parda, Doralice era empregada do mesmo. Pela leitura do documento, não tive dúvida
tratar-se do mesmo fato narrado por Geraldo. Apresento primeiramente seu teor para, em
seguida, analisar o relato de Geraldo.
Três aspectos são recorrentes na investigação policial conduzida pelo subdelegado
de polícia do 3° Distrito de Cachoeira, Randolpho da Silva Carneiro. Em primeiro lugar, o
sentimento de e para com Doralice. Maria da Conceição Jardim Lopes, primeira
testemunha, e sua afilhada, Ana Luiza, segunda testemunha, afirmam ser Doralice “muito
estimada por toda a família, obediente e viver sempre satisfeita” (fl.8). O pai de Doralice,
José Pedroso, também concorda neste tocante, afirmando saber “que sua filha tinha muito
189
APERS. Cartório Civil e Crime. Cachoeira do Sul. 1903-1921. M 01, E 09.
218
bom trato por todas as pessoas da família do Sr. Antonio Joaquim Lopes, vivendo ali muito
satisfeita naquela casa” (fl.11).
Em segundo lugar, a histeria de Doralice. Ana Luiza afirma que “por mais de uma
vez que notava que Doralice tinha acessos nervosos, mesmo sem encontrar motivo algum”
(fl.8v). Já a primeira testemunha, Maria da Conceição, em nenhum momento refere ou
supõe que Doralice sofresse de ataques nervosos. Sendo assim, é notável a conclusão do
relatório do subdelegado Randolpho Carneiro. Baseado na referência de um depoimento,
conclui:
Sendo o cidadão Antonio Joaquim Lopes, e toda sua família, pessoas de muito
critério, vivendo neste lugar gozando de muito boas relações, e considerando que
a suicida foi criada de sua família desde a idade de 11 anos, e sendo ela muito
considerada por todas as pessoas da família do Sr. Antonio Joaquim Lopes, pelo
que julgo que de fato a morte de Doralice terminou por um suicídio, visto ela há
muito já estava atacada de histerismo (fl.9).
É bem verdade que José Pedroso, pai de Doralice, também fale em estado nervoso,
já que “não podendo imaginar o que deu margem para opinar para o suicídio, parece que
fosse por ela achar-se atacada de um estado nervoso” (fl.11). É bem verdade também que a
opinião de José Pedroso sobre o assunto, embora não pudesse imaginar o que deu margem
para o suicídio, é irrelevante, pois o relatório do subdelegado é concluído antes dele prestar
depoimento. O “grande critério” da família de Antonio Joaquim Lopes e a estima nutrida
em relação à empregada eram razões suficientes para Randolpho Carneiro concluir que
Doralice há muito já estava atacada de histerismo190.
A tarefa básica de crítica das fontes já é suficiente para afastar a idéia de que a
simples leitura revelaria uma verdade ali, à espera de ser descoberta. O documento também
é parcial, recorta uma parte da realidade, seleciona outras, salienta outras mais. E se para o
subdelegado foi a histeria o motivo do suicídio, a leitura dessa investigação policial permite
190
A propensão das ‘mulheres de cor’ para a histeria parece ser uma crença difundida nas instituições
científicas da época. Veja-se, por exemplo, a detalhada discussão de Nina Rodrigues sobre o histerismo de
uma “rapariga” praticante de candomblé (Rodrigues, 2006 [1897]). Vale lembrar que Nina Rodrigues
defendeu a adequação do código criminal às raças por ele tidas por inferiores (Rodrigues, 1992 [1935]).
219
descortinar outros aspectos. Este é o terceiro ponto recorrente na investigação: o porquê de
Doralice estar naquela casa.
Fazia cinco anos, aproximadamente, que Doralice foi “entregue” pelo seu pai em
casa de Antonio Joaquim Lopes para receber a “educação doméstica”. Vivendo
“notoriamente pobre”, e “sendo muito considerado” pela família deste, resolveu entregá-la
a Sra. Maria da Conceição Lopes para a criação e “educação doméstica” (fl.11). A idade de
Doralice quando foi entregue varia nos depoimentos: onze anos, segundo Maria da
Conceição, quinze, segundo o pai.
Com poucas exceções, todas as mulheres e homens da faixa etária de Geraldo da
Silva (o narrador deste fato, vide abaixo), de 76 anos, viveram regime semelhante ao de
Doralice. Abaixo exporei as trajetórias de trabalho dos membros de Cambará. Ser uma cria
é bem diferente de ser um filho de criação, note-se bem. O que os narradores referem como
criação, é a vivência nas casas de fazendeiros da região. Visto seus pais serem pobres, eram
entregues nas fazendas, onde recebiam bóia [comida], roupa e pouso [moradia]. A
contrapartida era realizar todas as tarefas da casa. Comumente, as pessoas que foram crias
nas fazendas salientam a dureza do trabalho e comparam tal regime à escravidão. No caso
de Geraldo, quando contava com cinco anos foi entregue a uma fazenda. Com dez foi para
a fazenda da família Costa (outrora pertencente a Antonio Joaquim Lopes). Não tenho
muitas dúvidas que Doralice também foi cria da fazenda dos Lopes. Educação doméstica
parece ser um eufemismo para trabalho compulsório dessas “criadas para servir” (Cunha,
2007).
Embora a conclusão da investigação aponte para a existência de patologias
fisiológicas, o escrutínio do regime da criação permite aprofundar muito mais a leitura do
documento, deslocando a questão das patologias orgânicas para as relações sociais. No
depoimento de Maria da Conceição, um motivo parece ter precipitado o suicídio: a gravidez
de Doralice e o possível retorno para a casa de seu pai, como se vê:
E que regulando há um mês mais ou menos, que a depoente reconheceu que sua
criada achava-se grávida e ela depoente e seu marido Antonio Joaquim Lopes,
achando-se ontem, regulando às 5 horas da tarde, em uma varanda de jantar, ela
depoente disse a seu marido que a nossa criada achava-se grávida e, portanto,
precisava ele levar ao conhecimento do pai dela, e achava bom que a entregasse a
220
ele. E neste momento Doralice achava-se em um outro lance de escada, e ouviu a
conversação dela depoente e de seu marido; e logo em seguida passou para o
pátio onde se achava o poço (fl.8).
Ana Luiza sugere que Doralice se atirou no poço porque não desejava “a passar trabalhos e
não queria morrer a fome”, pois reiteradas vezes ouviu da suicida que “dali não se retirava”
(fl.8v).
Embora bem quista, Doralice estava ameaçada de retornar para a casa do seu pai,
pois grávida estava. Independentemente da verdade dessas histórias, do suposto receio de
Doralice, de sua obediência e satisfação, ou, como quer Geraldo, de uma proibição que
incitou o desaforo (vide abaixo), o suicídio está envolto com as assimetrias de poder entre
negros e brancos, e com as duras condições de vida após o cativeiro.
***
Na ocasião em que localizei a investigação policial sobre o suicídio de Doralice não
tive dúvida tratar-se do mesmo fato reportado por Geraldo. Isso porque, tal como Geraldo
havia dito, uma guria teria se precipitado em um poço em terras à época pertencentes a
Antonio Joaquim Lopes. Porém, alguns elementos fundamentais da narrativa não
encontram eco no documento, como é o caso da ocorrência de outro suicídio. Na
investigação, a histeria, que acaba por ser tomada como causa do suicídio pelo
subdelegado, uma gravidez, o possível retorno para a casa do pai e o receio de passar fome
são apontados como possíveis causas, segundo as testemunhas, para o suicídio. Já Geraldo
da Silva apresenta outras sugestões:
Geraldo: Então ali a minha vó disse ‘olha, lá é assombrado. Aparece umas luzes
assim, assim, umas oreia...,que é das gurias que se mataram’, empregada. Mas
empregado naquele tempo era o mesmo que escravo. Então o Estevão [antigo
morador do local] tinha uma irmã que era empregada, e a véia Luisa, a mãe
[mãe de Estevão e sua irmã], e tinha outra vizinha que também tinha outra; eram
duas moças. Quando era um fim de semana, elas disseram que queriam ir no
baile. Aí, quando foi na véspera, a véia, dona da fazenda, mulher do Antônio
Joaquim, disse ‘olha vocês não vão no baile, vocês vão trabalhar, a mãe de vocês
mandou a ordem que é pra dar serviço pra vocês’. Aí, elas ficaram descontentes,
quando foi segunda ou domingo se combinaram, combinaram pra se matar, pra
fazer desaforo. Aí, essa irmã do finado Estevão foi na frente, foi num
221
galpãozinho, o mais longe galpão daquele mato, tem um açudezinho lá, ali se
matou, naquele galpão. Aí, no outro dia, a outra...
E: Se matou como?
Geraldo: Se enforcou. Aí, quando foi no outro dia, a outra, pra não ficar sem a
companheira, se atirou no poço, no pátio, assim, o poço de tirar água. (Geraldo
da Silva, 76 anos, maio de 2005).
O impedimento de ir a um baile leva as duas gurias a combinarem o suicídio, com
intento de fazer desaforo. Geraldo deixa manifesto serem ambas empregadas na fazenda de
Antonio Joaquim. (Aparece umas luzes assim, assim, umas ‘oreia’..., que é das gurias que
se mataram, empregada. Mas empregado naquele tempo era o mesmo que escravo).
Quando compara o emprego à escravatura, parece que Geraldo está justamente a salientar
que a decisão por fazer desaforo era uma resposta, mesmo que extrema, a uma privação, no
caso a impossibilidade de dispor do próprio corpo. Talvez seja plausível pensar que o
exercício da liberdade, em uma ordem extremamente adversa, passa pela corporalidade, por
freqüentar espaços sociais onde seja possível canalizar desejos em ritmos imunes às
influências dos ritmos e marcas do trabalho.
Embora a investigação policial date de 1913, as datações no relato de Geraldo não
seguem apenas o imperativo cronológico. Ser empregado na época era o mesmo que
escravo. Nesse tipo de narrativa, o estabelecimento, por parte do próprio narrador, de uma
temporalidade que estabelece rupturas e continuidades entre o período escravista e o que
lhe sucedeu no tempo, é significativo. Parece que uma série de artifícios se articula no
intento de esboçar um cenário que permita tal analogia. Apesar de não datar
(cronologicamente) o fato narrado, Geraldo insere-o em uma ordem temporal mediante a
rica reconstrução de diálogos, reações e atitudes. Quando manifestam o desejo de ir a um
baile, as duas suicidas ouvem a negativa da patroa. É interessante que Geraldo narre os
desejos e frustrações de ambas, ao passo que reproduza a fala da esposa de Antonio
Joaquim, como se dissesse que umas têm direito a ter desejos, ao passo que outra possui o
privilégio de dar a palavra final.
A própria sociedade morre um pouco quando morre um indivíduo, argumentou
Robert Hertz em seu ensaio, “A Representação Coletiva da Morte” (Hertz 1960 [1907]).
222
Hertz encarava os ritos fúnebres e o luto como o modo de a sociedade restaurar a vida e a
integridade para o próprio laço social. No entanto, existem certas mortes que a sociedade
não conseguia conter. “Suas almas inquietas e rancorosas vagueiam pela terra para sempre”
(Hertz, 1960:85), escreveu, referindo-se àquelas pessoas que perecem de forma violenta.
Parece que essas mortes, revestidas de tal caráter, não são suprimidas facilmente, de
forma que rito algum seria capaz de apagá-las. Será que na imagem tão firmemente
impressa na memória de um indivíduo atingido pela violência, ou nas reminiscências
daqueles que viram, ouviram e testemunharam tal experiência, as luzes ora ofuscantes, ora
fugazes, um dia deixarão de vaguear incessantemente pela terra? Em que medida a aparição
de um ‘ente de outro mundo’ se vê investida de uma sorte de sentimentos e representações,
de forma que uma matéria incorpórea ganhe materialidade? Tal como uma névoa, que não
tem uma corporalidade palpável, mas, ao mesmo tempo, faz parte das imagens que encobre,
como não pensar a luz avistada por Geraldo sem referir a uma densidade própria a todos os
eventos por ele reportados?
Talvez seja o caso de pensar que mais do que uma forma própria de temporalizar e
retratar o passado, está em jogo uma reflexão que tem por pano de fundo as profundas
experiências da escravidão. O modo como certas populações continuam a fazer uso criativo
e comunicativo da memória da escravidão aponta para o fato de que as diversas provações
frente ao regime escravista são fatores constitutivos fundamentais na conformação dessas
memórias, estendendo-se temporalmente para abarcar toda uma sorte de relações sociais
(Gilroy, 2001).
Como dito, a época na qual os suicídios ocorreram não é datada. Apontei a
periodização feita por Geraldo, de forma que importa menos a cronologia e mais a
persistência de padrões escravistas de interação. Citei também a reconstituição do cenário
no qual tal história se desenrolou. Pontuei tais aspectos com o intuito de argumentar pela
existência de uma temporalização que não se baliza exclusivamente pelos ditames da
datação e da cronologia. Ou seja, a tarefa não consiste em averiguar as ‘carências’ dos
relatos orais, como a ausência de referenciais datais, por exemplo. Consiste em atentar para
formas diferenciadas de temporalização e reconstrução do passado.
223
Enquanto fornece explicações para o aparecimento da luz, Geraldo refere-se às
vendas de terras de Antonio Joaquim para a família Costa, cita a construção de um quarto
de banho em cima do poço no qual uma das meninas se suicida, menciona um galpão onde
a outra teria se enforcado, perto de um açude. Não há memória coletiva que não se
desenvolva num quadro espacial, como se apreende da fala de Geraldo:
E: Se matou como?
Geraldo: Se enforcou. Aí, quando foi no outro dia, a outra, pra não ficar sem a
companheira, se atirou no poço, no pátio, assim, o poço de tirar água. Aí, depois
o Antônio Joaquim viuvou, aí ficou aquilo. Aquele poço os Costa compraram
aquele pedaço, umas 10 quadra de campo do Antônio Joaquim. Um comprou 6 e
meia, 7, o Inácio Costa comprou 2 e meia, pegando a casa essa. Ele ia ter que
fazer casa nova, no campo deles, numa coxilha que enxerga de lá da mata,
aquela coxilha que o pessoal planta. Aí ele comprou 2 quadras e meia, que
costeia o Jorge [vizinho] ali. Aí logo em seguida o véio brigou com o genro,
vendeu mais 4, pra mesma fazenda, aí ia até a ponte, lá em baixo. Aí tá. O pai do
Inácio Costa comprou, aí ficaram de dono daquele campo. Tá. Aí o Inácio Costa
desmanchou a casa velha e fez a dele em cima. E o tal poço, esse, ele fechou e fez
quarto de banho, pra consumo da casa. Então esse galpãozinho que tem lá, subia
uma luz, conforme o dia, assim, de vez em quando em quando, subia uma luz de
lá, vinha o rumo do canto do arvoredo, o arvoredo velho – tinha arvoredo novo –
mas vinha o rumo do arvoredo velho que se cruzava por cima do poço que existe,
que foi feito depois, e cruzava em cima do tal quarto de banho que tinham
fechado. E disseram que aquilo era combinação da..., essa luz que vinha de lá
era que se enforcou, e faziam uma cruzada por cima do poço onde tava ocupado
com o quarto de banho. Muita vez eu vi.
A memória se estende de forma muito concreta sobre o espaço (Anjos; Silva, 2004).
Geraldo mergulha no passado para que toda uma sucessão de eventos em um quadro
espacial delimitado permita-lhe reconstituir o cenário onde avistou a luz. A recordação de
eventos e fatos está intimamente relacionada a um quadro de eventos desdobrados em um
espaço. Atrás de um arvoredo, Geraldo novamente avista a luz. Recorre a seu patrão, que
oscila entre a descrença, o medo, e a indiferença.
Geraldo: Mas aí eu fui pra lá, e um dia eu disse pro patrão, eu disse pro Inácio
Costa: ‘Mas aqui diz que aparecem umas luzes, eu vi umas luzes aí no arvoredo’,
diz ‘óia, tu não inventa galho [confusão], fica escutando conversa de gente sem
vergonha. Isso aí é gente que não quer que tu pare aqui. Não pára ninguém,
sempre tão com essas conversa, tu nem dá bola quando tiver falando’. Tá.
Quando foi num dia, eu já tinha 13 anos – eu já não tinha medo, já andava nos
campo caçando de noite –, mas eu cheguei meia noite, aquela claridade nos
fundos da casa, umas bananeiras, aquilo, um quadro, eu olhei, olhei, olhei, eu
224
digo: ‘vou chamar o homem’, aí bati na janela lá. ‘Vamo lá pro senhor vê a luz
assim, assado’. Aí ele me ralhou: ‘não vou ir atrás de luz nenhuma, rapaz.
Decerto é a lua que tu tá vendo, a lua recém tá entrando, deve tá entrando a lua
cheia’. Tá. Aí quando eu tava fechando o galpão pra me deitar, podre de medo,
quando eu vi, ele me chamou, com o revólver na mão, ‘vamo ali vê o que é, vamo
vê’. Aí eu olhei, o bicho apavorado, armado, olhei tava aquele quadro, aquela
luz clareava tudo, ali, umas bananeiras, pertinho da casa, nos fundos. Aí fomos
lá, desapareceu, não era pra vê [risos]. Quando nós se aproximamos aquilo foi
escurecendo, terminou. Mas ele pensando que eu sou bobo... ‘Como eu ia te
dizendo agora a lua entrou, a lua entrou, isso é o reflexo da lua’. ‘Reflexo da
lua?’, mas digo, ‘mas vamo deixar assim’. Porção de vez eu vi. Às vezes cruzava,
por cima de mim, umas duas vezes cruzou.
E: Ele nunca acreditou?
Geraldo: Não, ele não queria que acreditasse, senão não parava ninguém. Eu
que agüentei. Parei esses anos tudo, 17 anos lá, e não dava mais bola. Mas num
determinado tempo parou de aparecer.
A narrativa de Geraldo é forjada no âmbito de experiências que sustentam à
lembrança. A primeira menção feita a seu patrão, Inácio Costa, é seguida de uma
repreensão: pessoas sem-vergonha queriam afetar a estada de Geraldo ali. Inácio Costa não
desejava a crença em assombros pelo receio de ninguém se estabelecer em sua casa. A
reação dele, segundo Geraldo, chega a ser patética. Mencionando o luar, Inácio Costa
acabou por encobrir o seu interesse real, não que não acreditasse no que tinha visto. Assim
sendo, mesmo que a descrença afetasse alguns, Geraldo desvela a reação do seu patrão –
que após ralhar bate à porta de Geraldo munido de um revólver para descobrir do que se
tratava. A luz desaparece quando ambos se aproximam porque não era para ser vista, não
porque não existisse. A narrativa transmite mais do que informações. Transmite atribuições
de sentido, obedecendo a padrões de relevância fixados pelo narrador e pelo grupo.
225
Figura 28 – Geraldo da Silva
Foto: Leonardo Santos.
5.2 Crias da casa
Interessa agora seguir a trilha da experiência da criação. Como salientei na última
seção, toda uma geração de Cambará foi cria em fazendas. As crias das fazendas, estâncias
e casas de famílias brancas recebiam alimentação, vestimenta e moradia em troca de
serviço. Entre cinco e sete anos eram entregues para essas famílias. Teoricamente, as
crianças eram filhos-de-criação. As narrativas, contudo, salientam uma diferenciação.
Crianças negras, por mais que fossem filhas, não freqüentavam escola, não possuíam
assistência médica e eram tratadas com rigor.
Nesta seção reconstituirei algumas trajetórias no trabalho de uma geração de
Cambará. A intenção não é oferecer um quadro exaustivo, tampouco esmiuçar a trajetória
pessoal de cada um. Guardadas as diferenças, há muitos aspectos em comum entre os
membros da comunidade. Cabe seguir essa trilha porque as histórias de trabalho são
salientadas pelos sujeitos. O regime da criação é presente na memória e vida de muitos
226
indivíduos, e geralmente é comparado à escravidão. As condições precárias de existência
obrigavam muitas famílias a entregarem seus filhos para criação. Essa era uma das
(escassas) alternativas de sobrevivência, pois provia o sustento de ao menos uma criança.
De acordo com Geraldo da Silva, essa era uma prática muito corriqueira, sendo, inclusive,
por ele vivenciada.
Com cinco anos, Geraldo foi dado para seus padrinhos brancos. Foi devolvido
porque era muito pequeno e estragava as cobertas. Um ano depois, voltou à casa dos
padrinhos e começou a trabalhar. Não muito tempo depois, foi obrigado a voltar novamente
para a residência da mãe. As tarefas desempenhadas na fazenda quase mataram-no:
Quando eu tinha dez anos minha mãe se apavorou porque eu ia morrer de bicho
de pé. Na época que começou a Segunda Guerra Mundial, o povo vivia de muito
bicho-de-pé, matava até gente grande. Existia demais, existia muita criação de
porco e botavam os empregados, era tudo meio como escravo, cuidar aqueles
bichos. O pessoal vivia de noite dando bóia pros porcos, fazendo limpeza,
criação de leitão, e inundação de cama pra porco. E criação de galinha, assim.
Davam bastante serviço pros empregados miúdo. Aí tava dando epidemia, tava
morrendo gente. Eu mesmo tinha bicho-de-pé, em roda, acima das pernas. Dos
pés, não, caminhava e não sustentava metade do pé no chão, só o calcanhar. Aí
minha mãe se apavorou. Disseram que eu ia morrer e ela foi lá e passou a perna
na minha madrinha que tava me criando. Aí meu padrinho que era emprestado,
era emprestado, o guri era um pouco mais velho do que eu, ele me apresentou. Aí
ele concordou que devia me entregar, senão ia morrer. Aí, com dez anos me
trouxe de volta (Geraldo da Silva, 76 anos, junho de 2005).
A exposição a epidemias era uma constante para as crias da casa porque elas viviam
e dormiam em um ambiente inóspito. Já adulto, Geraldo ainda permanecia com as marcas
da doença em seu corpo. Embora não diga explicitamente que cuidava de porcos e galinhas,
isso fica evidenciado quando menciona o serviço atribuído aos empregados novos (Davam
bastante serviço pros empregados miúdo). Nesta época, sua mãe vivia com o padrasto, que
tinha que tá dando bóia pra muita gente. Após se curar sozinho do bicho-de-pé e tomar
medicação, Geraldo se criou em outras casas.
Em pouco mais de um ano, Geraldo percorreu três residências. Uma senhora da
localidade o chamou após seu marido ir prestar serviço militar. Sozinha com dois meninos
e uma menina, deu bóia e cinco pila por mês para Geraldo. Suas atribuições eram cuidar
das crianças, carregar água e socar arroz. Ficou ali por seis meses. Logo em seguida, outra
227
mulher, separada do marido por motivo de serviço, chamou Geraldo. Pagou seis pila. Por
três meses desempenhou todas as atividades no local. Pouco depois de retornar para a casa
da mãe, uma viúva ofereceu dez pila pelos serviços de Geraldo. Novamente viveu três
meses em morada alheia. Com onze anos, Geraldo foi chamado para a fazenda da família
Costa.
Nos Costa, realizava todas as lides do campo: dava ração a cavalos, cuidava dos
animais e ajudava aos adultos. Por dois anos ganhou alimentação e um ordenado de dez
pila. Inconformada com o valor da remuneração, sua mãe fez com que fosse liberado da
fazenda. Geraldo foi cortar lenha em outra fazenda, onde recebia vinte pila e ao cabo de um
ano ganhou um aumento: vinte e cinco pila. Logo em seguida, foi chamado novamente para
a fazenda dos Costa, com um ordenado de quarenta pila. Geraldo contava com quatorze
anos. Desde então, Geraldo se negou a trabalhar por mês. Exigiu o pagamento por dia de
trabalho.
Chama atenção nessa narrativa a questão de gênero. Em um curto período de tempo,
quando contava entre dez e onze anos de idade, Geraldo foi chamado em três casas por
duas mulheres temporariamente separadas dos maridos e uma viúva. É como se sua
presença pudesse suprir todas as necessidades da casa. No caso das mulheres, o mais
comum era serem chamadas para desempenharem atividades domésticas. No entanto, a
divisão de gênero no trabalho não é tão demarcada assim em algumas esferas. Meninas
passavam a maior parte do tempo na cozinha, mas também iam para a roça, cortavam lenha
e descascavam arroz. As esferas onde havia maior divisão sexual de tarefas parecem ser a
lavação e o trato com certos animas: homens lidam diretamente com cavalos, porcos e bois;
mulheres, com galinhas e vacas.
O ponto a chamar atenção é o atrelamento entre a condição e a concepção das crias:
ao serem tidas ‘para todo o trabalho’191, o tratamento dispensado a elas é justificado e
razoável. No caso de Orcindo Machado isso fica evidente. Com sete anos de idade, passou
191
Não quero minimizar a diferença de gênero aqui. As crias eram concebidas como pessoas nascidas para
trabalhar, independentemente do sexo. Obviamente, a divisão sexual do trabalho era marcada em importantes
aspectos, como tentarei pontuar. Além do mais, meninas certamente estavam expostas a constrangimentos que
afetavam em menor medida os meninos, como o abuso sexual, por exemplo. Em nenhum momento alguma
mulher de Cambará mencionou essa questão, e isto por dois motivos óbvios: silenciamento e o fato de eu ser
homem.
228
a ser cozinheiro da família Costa. Perguntado se ninguém na casa sabia cozinhar, respondeu
ter umas mulheres lá, mas sabe como é, branco sempre tem uma manha (agosto de 2006).
Além do preparo de alimentos, Orcindo também tinha por incumbência todas as tarefas
comuns a uma estância.
Antes disso, Orcindo acompanhava seu padrinho (branco) em todos os lugares por
ele freqüentados. Após ser abandonado no mato por uma semana, um outro fazendeiro
‘resgatou-o’, pois perdido estava. De lá, foi levado para a fazenda dos Costa, onde foi cria
por um longo período de tempo. Anos depois, cuidou de uma menina na mesma casa onde
sua irmã era criada, o que manifesta o emprego de mão-de-obra familiar pelos brancos.
Antes da maioridade, começou a trabalhar principalmente nas lavouras de arroz: operava
trator, descascava e era aguador. Este último serviço era especialmente ingrato. Exigia o
manejo de maquinário e muitas vezes era feito em meio às lavouras, com a água que
irrigava a plantação na altura da cintura.
Orcindo, como ele mesmo o diz, fazia tudo que era serviço. Em diversos locais este
senhor trabalhou: nas estâncias fronteiriças à comunidade, fazendas da redondeza, empresas
de arroz, casas de família na cidade. Logo que fizessem a criação, as crianças negras saíam
de casa para trabalhar e nunca mais voltavam. Outros, como Orcindo, retornavam, como se
vê:
Mas eu também pouco parava aí quando tava num lugar e outro trabalhando.
Agora pros últimos tempos que eu parei efetivo aí. Quem me criou, eu passei um
ano, dois, lá na fazenda do Costa. Eu me criei lá com eles. Depois eu vim vindo,
vim vindo. Depois vim me embora pra cá. Depois minha mãe ficou doente e eu
tinha que cuidar dela. Aí fiquei aí. Depois arranjei um serviço lá no município de
Palmeira das Missões. Trabalhei uns quatro meses lá. Depois vim me embora.
(Orcindo Machado, 79 anos, outubro de 2005).
A necessidade de sair do lugar em busca de sustento e serviço gerou uma grande e
contínua mobilidade dessas pessoas. Retornar, ou não, ao lugar devia-se, em grande
medida, à manutenção dos vínculos. Orcindo não só retornou no momento em que sua mãe
quedou-se doente, como age de forma similar hoje em dia. Enquanto seus filhos e sua
esposa moram na cidade, ele segura a terra, garantindo a manutenção da exígua faixa de
terras hoje pertencentes à família. Essa dinâmica entre ir e vir é bem expressa pela trajetória
229
de Maria Ferreira, comadre de Orcindo. Ao contemplar suas histórias de trabalho, algumas
diferenças de gênero tornam-se visíveis.
Maria nasceu no distrito da Ferreira, região próxima à cidade de Cachoeira do Sul (a
quase noventa quilômetros de Cambará). Com tenra idade, acompanhou a mãe, Teresa, em
sua ida para Cambará. No caminho, seus pais iam parando nas fazendas. Trabalhavam para
prover o sustento e viviam em habitações precárias, à mercê das intempéries climáticas. As
frágeis habitações de barro e palha dificilmente sobrevinham em caso de tempestades e
enxurradas. Maria guarda remotas lembranças desse trajeto, pois era muito pequena.
Lembra apenas daquilo contado por sua mãe.
O deslocamento para Cambará deu-se por Teresa (mãe de Maria) ter ganho um
pedaço, no núcleo Pinheiros, de seu irmão de maminha, Conceição. Bráulia, mãe de Teresa
e avó de Maria, amamentou Conceição, e foi por isso que ele deu as terras para Teresa e sua
família morarem. Em verdade, Bráulia já vivia em Cambará, juntamente com o marido,
antes mesmo de sua filha Teresa se estabelecer no local. São os laços de parentesco e o
pertencer ao lugar que permitiram o acesso e os direitos a terra. Como salientei no terceiro
capítulo, o parentesco é fundamental para entender a configuração espacial de Cambará.
Em decorrência, as próprias definições de direito, ou ter direito, são fundadas em relações
de ordem doméstica (Boltanski; Thévenot, 1991), ou seja, das relações pessoais, face a
face.
Como notou Mattos (1998:318), os laços familiares herdados do cativeiro influíram
diretamente nas decisões de migração ou permanência dos libertos nos anos imediatos após
a abolição. A trajetória da família de Maria guarda semelhanças com os casos
acompanhados no terceiro capítulo: circularam por várias localidades antes de fixarem
residência em Cambará. Tal como proposto por Rios e Mattos (2005), a “sina itinerante” de
ex-escravos e seus descendentes, podia ser mitigada pelo acesso à família. De outro lado, é
importante salientar a criação de microterritorialidades no e pelo itinerário. Justamente por
ser relacional, o território também é movimento, fluidez, interconexão, como nota
Haesbaert (2004:82). O grande diferencial do acesso à família, de acordo com as narrativas,
é ‘ter para onde voltar’. De certo modo, esses grupos persistiram sendo um “campesinato
itinerante” (Rios; Mattos, 2005), mesmo após terem acesso à família e à terra.
230
A territorialização permite conciliar a mobilidade com um certo nível de
estabilidade. Sair do lugar, ir para outras paragens, buscar emprego ou viver em outra
localidade não se afiguram como problemas em Cambará; são até uma necessidade. Ser do
lugar não é viver sempre e continuamente no mesmo local: é não perder os vínculos, voltar
para os de casa, cuidar e parar na terra quando preciso. As histórias do trabalho
manifestam bastante bem essa dinâmica da territorialização. A trajetória de Maria Ferreira é
um bom indicativo. Voltemos a ela.
Já vivendo em Cambará – no mesmo local onde essa senhora de noventa anos hoje
vive com a filha e a neta –, Maria foi para uma fazenda não muito distante do local. Ainda
guria foi cuidar de outra criança (branca). Reparou um guri por alguns meses, indo embora
da casa depois de este começar a estudar (Maria nunca teve o mesmo privilégio de
aprendizado das letras). Em seguida, foi para outra fazenda reparar criança. Sua narrativa
sobre essa experiência é interessante, pois é um ponto de afirmação no trabalho:
Depois eu não quis mais ficar cuidando, porque já tava ficando moça, sair a pé...
Depois que uma criança se acostuma, acompanha, né? Não deixa a gente pra
sair. Aí eu disse: ‘oh, D. Celeste [patroa], eu não quero mais cuidar criança, eu
quero ir pra cozinha, porque na cozinha eu faço almoço seu, arrumo a cozinha,
me arrumo e saio’. E ela assim: ‘tu que sabe, Maria’. Depois eu casei. (Maria
Ferreira, 90 anos, outubro de 2003).
O primeiro dia na cozinha é contado de forma graciosa. Contava com sete, ou oito
anos, e salgou demais a comida, causando desgosto nos patrões. Ficou apreensiva, mas
ganhou uma nova chance e paulatinamente foi-se tornando uma boa cozinheira. Nessa
fazenda, Maria ajudava uma nega véia em suas lides. Com saúde debilitada, há muito a
negra trabalhava no local, mas não conseguia realizar algumas tarefas em função da
avançada idade. Maria aprendeu muitas coisas na cozinha com a negra velha.
É interessante notar nesse relato a busca por certa autonomia. No interior das
relações de trabalho, intentou garantir margens de manobra. A possibilidade de sair
desacompanhada era fundamental para uma moça, especialmente porque a época de casar
estava chegando. Ao mesmo tempo, a mobilidade facilitava a manutenção das relações com
os parentes. O contato com a família era importante por diversas razões, dentre elas
aprender as especialidades que podiam ser um diferencial no futuro. Com a mãe, Maria
231
aprendeu o ofício de doceira, pois na fazenda limitava-se a trabalhar na cozinha. Nas
ocasiões em que bailes e carreiras [espécie de rodeios] se realizavam, Maria montava sua
quitanda, auferindo recursos com suas especialidades, inclusive de doceira.
Já casada, Maria trabalhou colhendo arroz nas empresas próximas à cidade de
Cachoeira do Sul. Também foi lavadeira em uma fazenda a algumas dezenas de
quilômetros de sua casa, local onde a filha, Ivone, também trabalhou. Foi cozinheira em um
restaurante localizado num posto de gasolina. Ivone, desde os oito anos, também
acompanhou a mãe nesse emprego, realizando as lides da cozinha e da faxina. Após vinte
anos de trabalho, Ivone descobriu que sua patroa não assinava a carteira de trabalho como
havia assegurado.
Criar os filhos sempre foi difícil, pois o marido era campeiro e viajava a maior parte
do tempo. Os primeiros serviços dos filhos e filhas de Maria foram nos mesmos locais onde
a mãe trabalhava, pois eles a acompanhavam. A situação se agravou quando o marido
abandonou a família. Com oito filhos para criar, Maria se orgulha de nunca ter dado
nenhum deles, apesar de sempre ser requisitada para tanto. A ajuda dos parentes,
especialmente da mãe (Teresa) e da irmã, Anália Ferreira (in memorian), amenizaram as
dificuldades.
Em resumo, Maria trabalhou, desde menina, cuidando de crianças, nas lides
domésticas, como cozinheira, quitandeira, colhendo e descascando arroz, lavadeira e na
roça. Mesmo assim, sempre visitava a mãe. Sobre a época em que trabalhava como
lavadeira em uma fazenda, Maria recorda:
Eu saía de lá de tardezinha, chegava de noite aqui. Ela [mãe] dizia: ‘Hoje a
Maria vai vir, ela vai vir aqui’. Aí ela tava sentada, na cama, daí eu batia na
porta. Eu queria que a senhora visse da onde eu vinha a pé! O guri [filho] vinha
a cavalo, eu vinha a pé. Vinha por atalho. Porque a fazenda é lá naquele canto
lá, pra lá, de onde a gente enxerga a estrada que a gente vem de Porto Alegre.
Eu vinha. E um dia que eu trabalhava lá naquela fazenda, eu chegava carregada,
era banha, era carne, eu trazia. Aí ela chegava e me abanava. Chegava e largava
os sacos. ‘E o que que a senhora quer, mãe’? ‘Eu quero que tu me bote lenha e
água, tô sem água e sem lenha’. Eu ia no mato, trazia lenha e água, depois que
eu enchia aquelas vasilhas dela eu ia em casa, abria o saco, enchia numa bacia,
botava carne, botava banha, botava tempero e alcançava pra ela. (Maria
Ferreira, 90 anos, outubro de 2003).
232
Depois de ajudar sua mãe, Maria voltava para a fazenda. Essa senhora salienta o
trabalho que teve na vida, mas não se queixa dos patrões (suas filhas sim, salientam a
exploração sofrida pela mãe). Ao contrário, o trabalho, em suas falas, é motivo de orgulho
e é fundamental na apresentação de si. Suas especialidades afiguram-se como fonte de
estima e prestígio. Constantemente requisitada por brancos para trabalhar em suas casas,
cozinhar, benzer lavouras e gado, ganha diversos presentes em retribuição. Algumas vezes
o volume de presentes é tão avultado que não consegue carregar tudo. O labor deixa
marcas, mas também pode ser forma de distinção.
Por outro lado, a criação e o regime de trabalho degradavam o corpo feminino de
maneira particular. As mulheres da família Ramos apresentam outras facetas do regime da
criação. Quando referem a fome passada pelo avô para comprar as terras onde hoje vivem,
essas senhoras associam a essa experiência o duro regime de trabalho vivenciado pelos seus
avós, pais e elas mesmas. Odir e Evonir Ramos, falando da mãe, dizem:
Odir: Ela [sua mãe] sempre falava mesmo que botaram ela pra trabalhar na casa
de uns brancos e que não davam nada pra ela. Não colocaram ela pra estudar.
Por isso ela era desesperada que nós aprendesse nem que fosse a letra A.(Odir
Ramos, 57 anos, maio de 2005).
A expressão botar para trabalhar tem por correlato a privação (do aprendizado,
neste caso). As percepções articuladas pela memória diferem do modus operandi da
história, que trata o passado como algo morto, estando ali, à espera de intérpretes. O
passado é apropriado experiencialmente, ele é sentido, e conforma a base de emissão de
julgamentos. A imbricação da vida da mãe de Odir e Evonir com o trabalho não apenas
impediu o aprendizado das letras; o trabalho interrompeu sua vida. Teresa Ramos, irmã de
Odir e Evonir, comenta o destino de sua mãe:
Ela cozinhava e lavava a casa, mas foi judiada lavando. Antes de vim pra cá meu
pai trabalhava nas antigas lavouras de arroz, e as mulheres tinham que ajudar
as mulheres do patrão, naquela sanga, naquele banhadal. Sei que minha mãe
morreu com intervenção do reumatismo. E se não trabalhava já soltavam [...] Se
eles dissessem assim: ‘A sua mulher não pode ajudar’? E se o meu pai disse que
‘não, ela não pode’, no outro dia ela já tinha que arrumar as trouxas. Tinha que
tá escrava fazendo as coisas ali, doente ou não doente (Teresa Ramos, 75 anos,
setembro de 2002).
233
O trabalho, de forma pungente, deixa suas marcas, redundando, no extremo, na
morte. O corpo é violentado não apenas no momento imediato do labor. Os efeitos do
trabalho são como uma degradação progressiva que resulta na extenuação total das forças.
As mulheres impelidas a ajudar à esposa do patrão eram com efeito escravas obrigadas a
cumprir tarefas e serviços, doentes ou não. O ajudar encobre formas de trabalho
compulsório, e Teresa qualifica essa situação aproximando-a da escravidão.
Odir, Evonir e Teresa não foram crias, mas desde cedo ajudaram os pais no serviço.
Ora nas hortas da família, ora em lavouras alheias, lidavam com a terra desde crianças. O
mais custoso, todavia, era o trabalho nas empresas de arroz. Serviço à época feito
manualmente, descascá-lo produzia feridas nas mãos. Por ser mais nova, Odir geralmente
ajudava na cozinha enquanto seu pai, irmãos e irmãs colhiam arroz. Hoje em dia é Evonir,
juntamente com uma sobrinha, que é cozinheira. Ambas trabalham no posto de gasolina
existente no local, assim como muitos outros moradores de Cambará.
Todos os homens e mulheres dessa geração concordam que hoje em dia a situação é
melhor. Para alguns, os miúdos (jovens) de hoje nasceram na mordomia. Porém, se
antigamente, como disse Emiliano dos Santos Ramos (62 anos, agosto de 2005), a estrada
ficava tapada de negro descendo para lavoura, a mecanização do campo escasseou com o
serviço. No passado não faltava emprego para quem estivesse disposto a trabalhar.
Contemporaneamente, as diárias (trabalho por dia) não são freqüentes. Como diz Jorge
Pereira Lopes, os homens de ferro substituíram os morenos no trabalho.
Notam-se diversas confluências nessas trajetórias e experiências. A criação, os
serviços domésticos e agropecuários, as lavouras de arroz, as privações, as lavações, etc.
Um dos pontos a chamar atenção é a aproximação com o mundo da escravidão. Em
Cambará, pouco se fala da vida de escravos; fala-se de viver como escravo. A escravidão é
uma experiência incrustada na vida da comunidade, fornecendo repertórios de ação e visão
do mundo social. As comparações com o cativeiro, entendido como modelo designativo de
relações sociais, referem, sobretudo, situações consideradas injustas, envolvendo, em
muitos casos, um estado de degradação, provação e sofrimento. Ser escravo depende menos
do período em que se nasceu e mais do regime com o qual se deparou. No âmbito do
trabalho, essas analogias ganham especial vigor.
234
Em um dado dia, conversava com Emiliano Ferreira, nascido em 1928, sobre sua
mãe. Perguntei se ela havia sido escrava (algo praticamente impossível se considerássemos
o fim da escravidão em 1888). Diante de tal pergunta, recebi uma vívida resposta: Mas é
claro. Se eu, que nasci em 28 [1928], fui escravo (agosto de 2005).
Figura 29 – Emiliano Ferreira
Foto: Rosane Rubert.
Na semana seguinte, conversava com Rita Trindade, nascida em 1960. Perguntava a ela
como eram as coisas antigamente, se sua mãe e seu pai contavam-lhe histórias. Rita dava
especial ênfase às lembranças sobre as dificuldades vivenciadas por seus pais e avós. Em
dado momento, disse que havia se livrado da escravidão por poucos anos. Havia escapado
do tempo que não se tinha direito a nada, apenas a trabalhar (agosto de 2005).
Mais do que um repositório de lembranças de um passado longínquo, as memórias
da escravidão fazem sentido para esses sujeitos na medida em que a experiência da
escravidão foi incrustada nas gerações mais jovens pelas gerações que viveram nesse
período ou logo após ele. A vida dos antigos estende suas raízes hoje, no presente. Aqui é
possível vislumbrar como a história incorporada, esse passado significativo, fornece
235
repertórios de ação e avaliação de situações práticas. Podemos visualizar noções de justo e
injusto que fazem parte da vida diária das pessoas. As fronteiras temporais entre períodos
históricos são muito fluidas e incitam uma reavaliação da temporalidade subjacente às
definições do ‘histórico’.
5.3 Tempo difuso
O regime da criação coloca em xeque temporalizações rígidas ao chamar atenção
para as continuidades e descontinuidades entre servidão e liberdade. Mais do que isso, a
própria estrutura narrativa é projetiva. Trata-se da possibilidade de recuperar o passado sem
necessariamente mergulhar nas experiências traumáticas e degradantes da escravidão. Em
Cambará, sabe-se perfeitamente qual parente foi escravo e a quem pertenceu. Mas os
narradores falam menos de escravos e mais de viver como escravo.
As narrativas que envolvem a escrava Luisa, avó paterna de Jorge Pereira Lopes,
são um exemplo das temporalidades entrecruzadas do processo de recuperação do
passado. Luisa teria sido liberta antes da Rainha anunciar a liberdade, mas a fronteira entre
os dois mundos (escravidão e liberdade) não parece muito nítida, como fica evidente
abaixo:
Eu vou lhe dizer uma coisa. Naquela época os nego não casavam, na época da
escravatura, mas sempre vinha, as nega de vez em quando ganhavam um miúdo.
Na época, as escravas eram tirado cria como quem tira de bicho. Por exemplo,
ele aqui tinha uma escrava, eu tinha um escravo, numa certa época arrumava um
filho, mas se fosse bom, da canela fina, para tirar filho. A Luisa já ganhou de
ventre-livre. Quando foi anunciada a liberdade ela foi liberta, só pra não
abandonar o casal de nhanhô, mas tinha liberdade pra ir onde queria (Jorge
Pereira Lopes, 88 anos, maio de 2005).
Segundo Jorge, seu pai, Estevão Pereira Lopes, nasceu em 1873, e já era ventrelivre. Mas como devemos pensar os tempos vividos pela avó e pelo pai de Jorge? Como
saber ao certo quando Luisa foi liberta? Que fronteira sutil é essa entre ir onde quer, e não
abandonar os nhanhô? Orcindo Machado ouviu do pai de Jorge, Estevão, algo sobre a
libertação de Luisa:
236
Orcindo: Ele [Estevão] contava que quando a Princesa Isabel deu alforria para
eles, que armaram um baile que iam tudo para o baile e a mãe dele [Luisa] ia
com um tonel daqueles de madeira que tinha cheio d’água na cabeça. Daí os que
iam xingaram ela: ‘Sem vergonha, tu invés de ir pro baile tá aí carregando
água’. E ela atirou aquilo por uma ladeira e aquilo ia ‘pum pum pum’ voando
água e se foi para ir para o baile.
E: Ai ela já não tava mais escrava?
Orcindo: Já tava liberta, mas ainda tava trabalhando (Orcindo Machado, 79
anos, maio de 2005).
A narrativa de Orcindo sobre essa situação envolvendo Luisa articula uma
experiência social repleta de privações, mas que não deixa de antever margens de gestão do
próprio corpo e, portanto, da própria vida. O gesto de Luisa em relação ao balde d’água
pode ser visto como um ato simbólico de negação da subserviência, de ruptura com o
regime de trabalho. A última frase do relato aqui transcrito merece atenção especial, pois
indica um modo de existência, qual seja: Luisa não era mais escrava, mas ainda estava
trabalhando.
Novamente nos vemos às voltas com a mesma questão: o que separa a liberdade do
cativeiro? Que cronologia é essa na qual diferentes períodos acham-se difusos,
interpenetrando uns aos outros? Que articulação é essa que une numa cadeia seqüências
temporais com ordens cronológicas (datais) distintas? A proximidade com a escravidão não
se restringe apenas a ex-escravas como Luisa, mas também aqueles que se viram às
margens do cativeiro, como faz notar Jorge:
Jorge: Depois quando acabou a escravidão veio a tituria.
E: A tituria?
Jorge: Eu era filho de pobre, aquela ali também era. Então aquela gente tinha
pouco recurso, ou nada pra manter os filhos. Porque terminou o cativeiro, foram
libertos mas eles não tinham nada. Tinham dificuldades... Bom, mas então, veio a
tituria. Aquela ali era uma fazendeira e agarrava um miúdo e dois pra criar.
Pouco diferenciava da escravidão. Criava, dava bóia e roupa... e assistência
médica, pouco utilizado na época, né? Mas, então só ia se o senhor dizia após os
vinte e um anos. Mas antes o titor, que assinou a tituria era o responsável,
enquanto ele era o menor.
E: Eles botavam o miúdo a trabalhar?
237
Jorge: Mas claro! O senhor pensa que era como o dia de hoje, que nem o
governo quer que os miúdos trabalhem? (Jorge Pereira Lopes, 89 anos,
novembro de 2003).
A consulta ao fundo de “Tutorias” da 1° Vara de Família de Cachoeira do Sul, no
arquivo público do estado, entre os anos de 1888-1910, permite perceber que um grande
número dos 142 pedidos de tutoria dirige-se a crianças filhas de escravas192. É comum os
requerentes citarem a lei de 13 de maio e o “estado de abandono” dessas crianças com a
promulgação da supracitada lei. Talvez desnecessário dizer que os ex-proprietários de
escravos visavam garantir o disposto na lei de 28 de setembro de 1871, mais tarde
conhecida como Lei do Ventre-Livre193.
A meu ver, o emprego da palavra tituria por Jorge não é à toa. A experiência de seu
pai, ventre livre, filho de branco e tutelado, é projetada para cobrir uma sorte de
experiências justamente porque se situa nessas regiões de fronteira entre escravidão e
liberdade. A condição de vida dos filhos das escravas após 1871 era extremamente precária
em função da manutenção de padrões escravistas de dominação. Embora livres, suas mães,
na grande maioria dos casos, persistiam sendo escravas, como parece ter sido o caso de
Luisa, por exemplo. Os territórios da liberdade persistiram cerceados a ex-escravos após o
término do regime escravista. Sua marginalização social garantia a reprodução dos padrões
de dominação escravista.
Tal como Jorge, Laura Lopes, prima e cunhada desse senhor, possui um avô branco.
Seu pai é fruto da relação de um abastado fazendeiro e sua avó, negra mina.
192
APERS. Tutorias. Cachoeira do Sul. 1° Vara de Família (Ex-Órfãos). M 54, E 09, n°1462-1604. 18881910.
193
A “Lei do Ventre-Livre” libertava os filhos e filhas de escravas nascidos (as) a partir da data de sua
promulgação, mas obrigava os senhores a provirem com os recursos necessários as crianças até que estas
completassem oito anos de idade. Quando os “ingênuos” completassem oito anos, o senhor poderia optar por
entregá-lo ao Império ou prover seus recursos e gozar de seus serviços até a idade de 21 anos. Para uma
análise dos impactos desta lei, consultar Chalhoub (1990; 2003). Ver também Mattoso (1988).
238
Figura 30 – Genealogia Família Lopes
Lopes
(branco)
Luisa
(escrava)
Estevão
Pereira
Lopes
Lopes
(branco)
Santa
Lopes
Vergilina
Oliveira
Lopes
Maria
Joana
(escrava)
Avelino
Lopes
1919
1920
1921
89
88
87
1925
83
Jorge
Pereira
Lopes
Isaura
Lopes
Laura
Lopes
Antenor
Rodrigues
Entrevistada por uma mulher, e perguntada sobre a vida das mulheres durante a escravidão,
Laura fala sobre seu pai:
E: Pra mulher era pior, né? Porque além de trabalhar muitas vezes eles abusavam,
né?
Antenor [esposo de Laura] – É. Isso é verdade.
Laura: Assim foi com o meu pai.
E: Como foi?
Laura: Ele trabalhava pra esses Lopes, por ali. Eles buscaram ela [sua avó],
para trabalhar aí. Arrumaram ela, aí ela foi trabalhar na fazenda. Aí ela ficou
grávida e ela ganhou o falecido pai. Aí ficou criando, e ela trabalhando, escrava
sempre. Se criou já no cabo da enxada, do machado, de tudo que era serviço. Já
passou de cinco anos o neguinho já era pro serviço. E cama não; diz que cama
era dormi em roda do fogo.
E: Então seu pai era filho de um dos Lopes, mas não era tratado como filho?
Laura: Não. Não. Era tratado como cativeiro mesmo. Ele era bem claro, com
olhos bem castanhos, cor clara, cabelo castanho, olhos castanhos, pele branca.
Mas ele... Botaram um forno de rosquinhas e deixaram ele cuidando, e tinha uma
moça – e ele namorava a tal moça – e ele esqueceu do tal forno. Bah! Foi olhar
tava preto; não sabia onde é que ia se meter. ‘Meu Deus do céu! Agora ela vem’.
Quando escureceu ele já tava longe. Não ficou, pois ele ia tomar pau atado.
239
E: Isso no tempo de seu pai?
Laura: Atado.
E: Dessa vez ele fugiu, mas ele já tinha apanhado atado?
Laura: Seguido. Aí ele já tava moço, dezoito anos. Davam muito mais do que em
criança, daí ele tratou de encilhar um cavalinho e pegou uns paninhos e ele foi se
meter sabe donde? No Rincão das Cruzes, na terra da minha mãe. Foi lá, foi pra
lá que eles namoraram. (Laura Lopes, 87 anos e Antenor Rodrigues, 85 anos,
outubro de 2003).
A gravidez da avó de Laura, o regime de trabalho e o tratamento dispensado a um
filho que não é bem filho encontram grandes correspondências com a narrativa de Jorge. O
quadro da escravidão é complementado pela ação do pai de Laura ante a possibilidade de
ser amarrado a um tronco, tal como um escravo desatento: ele foge. Laura nasce na zona
urbana de Cachoeira do Sul. Seus pais mudam-se para lá após conhecerem-se no município
de Candelária (onde fica localizado o Rincão das Cruzes). Retorna a Cambará passados
mais de vinte anos. Foi morando na propriedade dos outros que o casal se estabeleceu no
local onde hoje vivem, há muitos anos.
Servir as mesmas famílias é uma constante na história deste casal. O pai de Antenor
viveu e trabalhou na mesma casa onde seu pai (avô de Antenor) foi fustigado pelos patrões,
como se vê:
Antenor: Ele contou pra nós que eles botavam aquelas crianças a aprender a
andar a cavalo nas costas dele e fechavam a porteira da mangueira. Botavam ali
e tinha que dar uma volta. Aí, diz que ele, cansado, com um sol quente, tava
trabalhando. Aí quando ele chegou a hora, antes de fazer a refeição, ao meiodia, ele falou: ‘Vô agarrar e vô dar um tombo, aí ele chora e levam ele lá pra
dentro, aí eu descanso um pouco’. Bah. Mas ele dizia, ele mostrava as costelas
dele, do lado, a marca. Ele capinava no sol, sem camisa, cortava lenha. Aí, ele
deu aquele tombo. Muito bem, buscaram a criança. E aí, pegaram a criança, mas
aí ataram ele num pau e deram nele, um laço brabo. Era a coisa mais horrível do
mundo. Cansou de contar isso. E nós moramos quando nós fomos pra lá. O sinal
não me lembro. Eu tinha dez anos e a mangueira ele mostrava. E não é muito
longe de Cachoeira.
E: E o seu pai foi pra trabalhar com o mesmo?
Antenor: Não. Aí já foi pra trabalhar com outros. Já eram filhos dessa gente aí.
(Antenor Rodrigues, 85 anos, novembro de 2003).
240
Mesmo castigado severamente, o avô de Antenor voltou a trabalhar na mesma casa,
dando mostras da reprodução da mão-de-obra familiar negra nas fazendas. As marcas dos
castigo ficam não apenas no corpo, mas na própria árvore onde ele foi executado (eu tinha
dez anos e a mangueira ele mostrava). Atualmente, o casal vive na casa dos patrões, mas
guardadas as semelhanças com a vida dos familiares, Laura realça uma melhora no padrão
de vida:
Laura: Na vida da gente não se compara com eles; a gente não compara. Mas
quer dizer, que a vida da gente foi muito melhor que a vida deles. A gente se
criou, logo a gente casa, já uma vida diferente, sempre mais normal de que a
vida dos cativeiro. Porque eles trabalharam como cativeiro e nós não. A gente já
tinha mais liberdade. [...] Graças a Deus a vida da gente não se compara nunca
com a vida deles. A gente via jornal, revista. Os brancos botavam em cria;
botavam aquelas pobres criancinhas, com as pernas... Aquelas brancas, com o
cativeiro, elas queriam os negrinhos com as pernas mais finas.
Antenor: Diziam que aqueles eram os bons.
Laura: Botar para as mulheres aguardar cria, já pensou isso? Que nem bicho! A
gente não, graças a Deus.
Antenor: Mudou muito. (Laura Lopes, 87 anos e Antenor Rodrigues, 85 anos,
outubro de 2003).
A melhoria nas condições de existência não anula as marcas deixadas pela violência
no corpo. O poder senhorial incidia sobre a vida de homens e mulheres negras, pois
sujeitava, dominava, ordenava e dispunha das vidas. Como nota Gilroy (2001:375), as
histórias de amor e perda ganham destaque nas formas expressivas negras, estando na base
das “dramaturgias da recordação”. Ao comentar a divisão que dispunha negros de um lado
e brancos de outro nas festas, Jorge Lopes comenta:
E: E se se apaixonasse por uma branca, Seu Jorge? Ou um branco se apaixonasse
por uma morena?
Jorge: Se se apaixonasse por uma branca se escondiam numa sanga. Se ela
gostasse dele. Mas ela precisava ir junto, né? Devia ser, né? Mas escondiam só
ele. Ela ficava. Matavam, né? Matavam ele.
E: Mas teve algum caso de algum moreno se apaixonar por uma branca?
Jorge: Muitos. Alguns desapareceram, né? [Risos].
E: Aí diziam que era por isso?
241
Jorge: Ora, mas era o que existia, né? [...]
E: Mas os brancos faziam os enxerto nas morenas...
Jorge: É. Eles não eram condenados. (Jorge Pereira Lopes, 89 anos, outubro de
2003).
Em setembro de 2007, Jorge contou-me com maior pormenor um desses casos. Um
moreno (nascido há 60 anos pelo que pude depreender) era peão em uma fazenda dos
arredores e envolveu-se com a filha da patroa (viúva), engravidando-a. Os irmãos da moça
ficaram inconformados e decidiram matar o preto. A moça grávida interviu e convenceu a
mãe a buscar outra solução para o caso. A fazendeira avisou a seu peão a intenção dos
filhos e disse-lhe para nunca mais voltar ao local. O peão fugiu para a fronteira com o
Uruguai.
Meses depois a moça deu à luz. A avó da criança ofereceu dinheiro para uma
família pobre (branca) encarregar-se da criança. Tudo transcorria normalmente quando o
negro resolveu voltar para a região. Na mesma semana, foi encontrado morto em um
galpão, sobre as cinzas de uma fogueira, com uma garrafa de cachaça ao lado do corpo. O
inquérito policial concluiu que o consumo excessivo de álcool ocasionou a morte. O peão
teria bebido tanto que não sentiu seu corpo queimar.
As narrativas de Laura e Jorge, ambos netos de fazendeiros brancos, acentuam a
violência contra a mulher escrava e o homem negro. A denominação de cria não é fortuita.
Tal como ocorre com os animais, as crianças concebidas por escravas serviam para a
criação dos senhores. A referência a situações de animalização, neste e em outros relatos,
dá bem o tom da violência infligida às escravas. A liberdade dos homens brancos para
transgredir as obrigações matrimoniais não era condenada, ao passo que a violação deste
bem sagrado que é a mulher branca era extremamente controlada. A transposição desses
limites constituía sério risco. A vida dos antepassados de Jorge e Laura é um convite para
mapearmos a persistência da violência racial da escravidão e a incrustação dessas
experiências na geografia do corpo e na trajetória histórica dessa comunidade.
A visão da mestiçagem enquanto prática largamente difundida que contribuiu para
diminuir a distância social, que de outro modo teria se conservado enorme, entre a casa-
242
grande e a senzala, entre a casa-grande e a mata tropical (Freyre, 2006 [1933]), é fundada
não apenas nos pressupostos caros a Freyre, como a distinção analítica entre raça e cultura e
na (suposta) plasticidade característica da índole lusitana. A análise de Freyre minimiza as
tensões entre os três povos formadores da nação ao fim e ao cabo do processo de
mestiçamento. Ou seja, Freyre positiva a mistura pelos seus resultados – a democratização
social do Brasil194 – baseado numa romantização do processo de mestiçamento. O ilustre
pernambucano praticamente ignora as violências e estupros constituintes dessa mestiçagem
– como bem demonstram as narrativas acima – em função do sexismo subjacente a sua
teoria do Brasil.
É bem verdade que Freyre traga alguns casos de sinhás-moças que castigam suas
escravas por ciúmes (sevícias em geral empregadas para deixar cicatrizes). Esses casos
trazidos por Freyre são sintomáticos. As mulheres indígenas e negras constituíam objeto de
satisfação dos lascivos ímpetos sexuais dos lusitanos. Já as relações entre homem negro e
mulher branca restam no âmbito do impensável. É o varão português quem dissemina o
mestiçamento e funda uma nova nação195. Ao negro cabia reproduzir os plantéis. Em sua
teoria, o “processo de equilíbrio de antagonismos” era prerrogativa dos varões lusitanos.
Devemos a eles a cordialidade do nosso país.
Outro ponto que chama a atenção na narrativa de Jorge é a convivência com a
proximidade da morte. O poder sobre a vida dos escravos, sobremodo nas vidas concebidas
por escravas, encontra equivalência na punição a transgressores de certas fronteiras – essas
sim divisões perigosas. A ameaça de morte persistiu nas décadas posteriores à abolição.
Anália Ferreira apresenta um caso:
Anália: O doutor Baltazar [ex-intendente de Cachoeira do Sul] mandou fazer
uma vacina. Tinha um pessoal de Cachoeira, mas era só nos morenos. O senhor
nunca ouviu falar nisso?
E: Não
Anália: Mas o seu pai acho que sim, quantos anos ele tem?
194
Em seus primeiros escritos Freyre fala em democracia social. O conceito de democracia racial só surge
em meados da década de 50. Para um histórico minucioso desta última noção, ver Guimarães (2002).
195
O romance “Menino de Engenho”, de José Lins do Rego – livro este dedicado a Freyre – expressa
perfeitamente essa visão.
243
E: 67
Anália: Então ele ouviu falar, foi muito falado. Ele andava aí pelo posto fazendo
aquela vacina. Primeiro ele mandava ir em casa, mandava lavar, para
desinfetar, não sei como era. A pessoa chegava em casa naquela quentura,
naquela tontura e morria. O meu pai foi disso que morreu.
E: O seu pai morava aqui na comunidade?
Anália: Não, era lá em Cachoeira. O doutor era de lá. Decerto era para terminar
com os negros. Era só em negro que ele mandava fazer isso. Meu pai foi um
deles, e o irmão dele. [...]
E: Mas por que a senhora acha que o Baltazar ia fazer uma vacina para matar os
morenos?
Anália: Pois é, ele matou só os negros. Era só os negros, nós era guria mas todos
falavam, e quantos foram lá. A minha mãe foi lá por que tinha uma vizinha que
era branca e disse para mãe: ‘olha comadre, a senhora vá se embora, se escape
com as suas crianças que ele vai mandar fazer a vacina em vocês’. Ele mandava
lavar, mandava tudo tomar banho e depois vinha com aquela seringa enorme.
E: E a vacina era aplicada no braço?
Anália: Era, tinha que ser no braço. O meu pai chegou numa tremura assim. E a
mãe quis fazer um chá e a vizinha disse: ‘a senhora não pode dar chá, não dê
chá para ele’. Aí eu acho que quando nós saímos, ele não existia mais, daí a mãe
se escapou. Nós pousamos num campo e não chegamos a alcançar. Era eu, uma
outra no colo e a comadre Maria [Maria Ferreira, irmã]. No outro dia cedo, nós
cheguemos lá em São Lourenço [distrito de Cachoeira do Sul], aí uma senhora
mandou me levar para lá, ele deu café para nós e ficamos lá. Depois o meu avô
foi nos buscar. (Anália Ferreira, in memorian, outubro de 2002).
Independentemente da vacina ter ocasionado, ou não, os sintomas no pai de Anália,
está em jogo aqui menos uma reserva das ‘classes populares’ a vacinações, e mais a
percepção de um contexto desfavorável aos negros. Assim como no caso do entrevistador
de Anália (ver entrevista acima), essas histórias em geral residem em territórios
desconhecidos, inominados e silenciados.
5.4 A sonoridade da história
E: Da sua bisavó o senhor não lembra de nenhuma história, que contaram dela, do
tempo de cativeiro?
Antenor: Não. Às vezes eu me recordo que ela contava, mas eu não me recordo o
que era. (Antenor Rodrigues, 85 anos, outubro de 2003).
244
Antenor Rodrigues profere essas palavras minutos após narrar o castigo sofrido por
seu avô. Sua fala é um sutil lembrete sobre a necessidade de pensarmos as temporalidades
inscritas no registro e transmissão da história. Parece-me o momento apropriado para
pensar os cortes e cesuras temporais dessas narrativas. Desde o capítulo anterior venho
chamando atenção para o fato de as temporalizações dos narradores não se limitarem a
referenciais datais e cronológicos. As cadeias de continuidade e descontinuidade dos
eventos freqüentemente são distintas da ordenação dos documentos e obras historiográficas.
A aproximação entre antropologia e história ganha um solo fértil no âmbito da
confrontação entre dito e escrito. Boa parte deste capítulo ocupou-se com as tênues
fronteiras constitutivas dos territórios da escravidão e da liberdade. As experiências
transmitidas por essas narrativas possuem um plano de confluência com recentes obras
historiográficas, como o excelente estudo de Rios e Mattos (2005), por exemplo, nas quais
há um deslocamento da preocupação da transição de grandes períodos para a experiência de
ex-escravos e seus descendentes.
Nesse sentido, deve-se relativizar 1888 como divisor de águas. Opta-se por
desvencilhar-se do evento, direcionando a atenção para o cotidiano de marginalização e as
estratégias de sobrevivência da ‘população de cor’ nos anos que se seguiram a 1888. Não se
procura trilhar um caminho linear e irreversível; parte-se do princípio que a libertação
comportou outras historicidades, experiências e interpretações do evento. A atenção devese voltar para os espaços de significação nos quais a experiência da liberdade tenha sido
interpretada (Cunha; Gomes, 2007:8-9). A ruptura ou o corte entre estatutos sociais
distintos – o do escravo e do cidadão – constitui uma rede de temporalidades diversas,
porém internamente conectadas:
‘Escravidão’ e ‘liberdade’ não são termos antitéticos, e o terreno que separa um
conjunto complexo de experiências que se abriga em cada um deles merece nossa
atenção. A ausência de vínculos de submissão, a distensão de hierarquias legais
de subordinação no plano jurídico e consensual, bem como o desaparecimento
dos textos e instrumentos burocráticos que legitimaram a sujeição – são essas de
fato as marcas da restauração de um direito primordial? Certamente que não. A
liberdade não foi restaurada; ao contrário, foi inventada e experimentada por
aqueles que não a conheciam. Por isso, o território da liberdade é pantanoso e
muitos dos sinais que sacralizaram a subordinação e sujeição tornaram-se parte de
245
um ambíguo terreno no qual ex-escravos e ‘livres de cor’ tornaram-se cidadãos
em estado contingente: quase-cidadãos. O que fazer então com as marcas físicas e
simbólicas desse passado, inalteráveis mesmo diante de operações jurídicas,
institucionais e simbólicas diversas? (Cunha; Gomes, 2007:13).
As narrativas sobre escravos, ex-escravos e livres incitam-nos a traçar as linhas de
continuidade e descontinuidade dos períodos históricos. Aparte os brados e interesses de
Silvio Romero e Nina Rodrigues, raras pesquisas devotaram-se às experiências de exescravos e seus descendentes no Brasil (fonte inestimável para uma reconstrução das
condições de vida no cativeiro e após a abolição). Exceções notáveis são as obras e artigos
de Maestri (1988), Janotti; Rosa (1995), Vecchia (1994), Funes (1995; 1996) Mattos e Rios
(2005)196. Há um imenso caminho a ser trilhado na tentativa de captar as experiências
ocultas da história. A reduzida produção científica manifesta não só um habitus científico
pouco atento a esse tema, mesmo quando ele é evidente197, mas também o arraigamento de
certos ideais na produção da história.
A nação brasileira, na sua versão liberal e republicana, foi imaginada como
resultado de um esquecimento voluntariamente provocado pela destruição de arquivos
que contivessem registros sobre a escravidão (Cunha, 2002:27). Le Goff já notara que os
esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de
manipulação da memória coletiva (Le Goff, 1991:426). O que sobrevive não é o conjunto
daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças operantes no
desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos indivíduos dedicados à
ciência do passado e da passagem do tempo, os historiadores (Le Goff, 1991). Sobre a
queima de documentos levadas a cabo pelo decreto proposto por Rui Barbosa, Cunha
comenta:
O mito da perda e da impossibilidade da história nacional seria, a partir de então,
constantemente realimentado. A imagem trágica do fogo que apagara o passado
196
Ver também Mattos (1998:339-344).
Ver, por exemplo, as lembranças de D. Risoleta, constantes em Bosi (1994 [1973]:363-401). O vocabulário
utilizado pela entrevistada, nitidamente marcado por relações escravistas, não recebe muita atenção da autora.
Isso não anula a qualidade e o pioneirismo de Bosi, mas revela uma tendência em subsumir distintas
trajetórias e memórias em rotulações mais amplas como “lembranças de velhos”.
197
246
transformara-se, ao mesmo tempo, em uma narrativa de salvação e redenção, ao
projetar a nação no futuro. Haveria de se reescrever a história não só a partir da
imaginação, mas, sobretudo, de um necessário esquecimento. Sobre as marcas da
escravidão um novo arquivo se erigia, empenhado em transformar em registro
práticas imersas no que Rebecca Scott e outros autores têm denominado
‘problemas de liberdade’. Outras lembranças não só seriam possíveis, mas
necessárias (Cunha, 2002:27) [grifos no original].
O “silenciamento do passado” e a produção da história (Trouillot, 1995) são um
convite para acertarmos contas com aquilo que Gilroy (2002:368) denominou de “tensão
entre temporalidades”. A proposta de Gilroy de reescrever a história do Ocidente sobre o
ponto de vista dos escravos coloca em primeiro plano experiências históricas características
que criaram um corpo único de reflexões sobre a modernidade e seus dissabores (Gilroy,
2001:108). A escravidão não é um ‘patrimônio’ exclusivo de intelectuais negros ou
condição hereditária das populações negras; é uma herança ética e cultural do Ocidente
(Gilroy, 2001). Contudo, permanece dentro e fora da modernidade, na suposição de sua
incompatibilidade com a razão iluminista. Deve-se rever o postulado que concebe a
escravidão como um resíduo pré-moderno que desaparece uma vez revelada
fundamentalmente incompatível com a racionalidade iluminista e a produção industrial
capitalista.
‘Raça’ e racismo são constitutivos do quadro temporal etnocêntrico na construção
da diferença cultural. Expurgar ‘raça’ do vocabulário conceitual científico não anula os
produtos das cisões temporais engendradas pelos discursos fundados em algo inexistente
(as raças), mas eficiente nos efeitos desencadeados no mundo social198. Trata-se, ao
contrário, de reconceituar a relação ortodoxa entre a modernidade e o que é tomado como
sua pré-história (Gilroy, 2001:115), libertando-nos da cumplicidade com o contemporâneo
dentro da modernidade ocidental, fundada na suposição de que ‘raça’ representa um
momento arcaico, a-histórico e exterior à “modernidade” da comunidade imaginada da
nação (Bhabha, 1998:342).
As narrativas trazidas ao longo desta dissertação, em especial neste capítulo, dão
especial relevo às violências motivadas pela crença na existência de raças. O desfrute do
corpo da escrava, a ameaça de morte do homem negro, os castigos, reprimendas e
198
Remeto o leitor ao capítulo 2 para uma análise mais detalhada a respeito do meu uso do conceito raça.
247
açoitamentos, os bailes divididos por cordas e os bailes reprimidos, as vacinas, as
repressões, as práticas discriminatórias, os estigmas associados à cor, as crias botadas a
trabalhar, as privações, as humilhações, a marginalização. Essas e tantas outras
experiências vividas demonstram que se ‘raça’ não existe, é inegável que insiste199. O
registro das trajetórias históricas de ex-escravos e seus descendentes chamam atenção para:
o poder da história em diversos níveis: com as concepções de tempo em disputa
que possibilitaram seu registro, com a necessidade da memória histórica
socializada e com os desejos de esquecer os terrores da escravidão e a
impossibilidade simultânea de esquecer (Gilroy, 2001:413).
As experiências recuperadas pelas narrativas mudam o foco dos grandes períodos
para as distintas temporalidades e historicidades comportadas por essas experiências. A
linearidade entre passado/presente é informada pelas continuidades e descontinuidades
salientadas pelos relatos e pelas cisões do registro da história. O trecho de abertura deste
capítulo, do brilhante observador que foi Machado de Assis, revela justamente os impasses,
ambivalências e impotências das tentativas de domar a história. O diagnóstico de Machado
é de rara perspicácia ao notar a persistência da escravidão em pelo menos dois níveis: da
memória nacional e da continuidade das prerrogativas de mando das camadas abastadas
brasileiras. As cinzas da história permanecem chamas bem acesas na vida de certas
populações.
Muitos membros de Cambará atestam nunca terem conhecido a escravidão. Embora
não tenham nascido no período em que o escravismo vigia, a convivência com parentes
egressos do cativeiro incrustou essas experiências nas gerações livres. A reserva ao falar de
escravos demonstra a íntima conexão entre o dito e o não-dito (Pollak, 1989). Lembrança e
esquecimento são aspectos concomitantes do trabalho da memória enquanto práxis cultural,
como notou Fabian (2007:82).
Num famoso conto200, Borges (1997) recorda a história de um personagem dotado
de uma rara capacidade de memorização, Funes. Recordações que sozinho teve-as mais que
todos os homens, a memória de Funes é um despejadouro de lixos, pois é incapaz de
esquecer diferenças, generalizar e abstrair. A partir de Borges, podemos pensar que os
199
200
Idéia apropriada de um texto produzido por Anjos (2007) em outro contexto.
Trata-se de “Funes, o Memorioso”.
248
rastros do passado respondem antes a um trabalho de seleção e fixação de relevância do que
a uma incapacidade. Com o tempo foi ficando evidente para mim que minha pergunta devia
ser por que lembrar determinado evento, e não outro, é importante para os membros do
grupo, e não quais suas limitações mnemônicas.
Acresce que calar não significa esquecer. As histórias sobre a escravidão habitam
zonas de silêncio onde há um permanente cuidado com as palavras. Admitir que um antigo
ou parente foi escravo pode ser não só indesejado, mas também evitado, principalmente
quando se trata dos terrores indizíveis vividos, sofridos e infligidos durante a escravidão
(Gilroy, 2001) ou das histórias para não se passar adiante, admiravelmente retratadas no
romance “Amada”, de Toni Morrison (2006 [1987]).
Na atualidade, as histórias vão ganhando outro estatuto, sendo valorizadas pela
própria comunidade. As reivindicações identitárias do presente vêm alterando a percepção
do grupo sobre si e sua história. Como Márcio me disse recentemente (setembro de 2007),
antes dos quilombos havia uma vergonha da expressão da história da comunidade. De
acordo com ele, o laudo antropológico e os pesquisadores da universidade tiveram papel
fundamental na mudança desse quadro. Porém, não devemos caracterizar essa situação de
forma linear. O estatuto assumido pela história não pode ser resumido a uma ‘positivação
da negatividade’, noção implícita no conceito (simplificado) de etnogênese. A história é um
campo aberto de interpretações, mas o estatuto que assume é repleto de fraturas.
***
Caminhava com Eraldo naquela escaldante tarde de sábado de outubro de 2003.
Encontrei-o logo após ele ter tomado banho em uma sanga. Conversávamos no caminho –
Eraldo tinha compromissos. Nossa conversa constantemente era interrompida por um som
ensurdecedor de um trator. Ouvia-se apenas o ruidoso motor e retumbantes sons de
devastação. A terra estava sendo arada por um italiano que chegara à região há pouco mais
de vinte e cinco anos. Estrondos. Conversa novamente interrompida. Interlocutores tão
próximos obrigados a gritar face a face. As terras outrora pertenciam à comunidade, e
foram tomadas por outro italiano. Estrondo. Franziu a testa, barulho ensurdecedor aquele.
249
Eraldo pára por alguns instantes. Estávamos circundados por árvores, e atrás delas várias
outras haviam sido lançadas por terra. Comentou haver um pacto entre o gringo, ele e seu
pai, Geraldo. O gringo ficara responsável por preparar a terra (daí a necessidade de derrubar
a vegetação), e Eraldo e seu pai plantariam sementes de feijão. Quando chegasse a época de
colheita, cabia a eles fazer isso. Ao final de tudo, a colheita seria repartida. Nesse meiotermo, o trator parou por alguns instantes. Era como se o breve silêncio fosse ensurdecedor,
pois não havia mais nada lá, e isso era o mais difícil de presenciar. Não, o trabalho não
acabou. O trator volta a funcionar com toda sua força. Silêncio. Dessa vez entre aqueles que
elevavam o tom de voz para conversar. Silêncio rompido com apenas uma frase: O cara
trabalha como um escravo aqui.
250
CONSIDERAÇÕES FINAIS
INVENÇÃO, INVENTIVO E CRIATIVO
A terra tem suas páginas: os caminhos.
Mia Couto, Um rio chamado
tempo, uma casa chamada terra.
Algum dia, você vai estar andando pela rua e vai ouvir
alguma coisa ou ver alguma coisa acontecendo. Tão
claro. E vai pensar que está imaginando. Uma imagem
do pensamento. Mas não. É quando você topa com uma
rememória que é de alguma outra pessoa. Lá onde eu
estava antes de vir para cá, aquele lugar é de verdade.
Não vai sumir nunca. Mesmo que a fazenda inteira –
cada árvore, cada haste de grama dela morra. A imagem
ainda está lá, e mais, se você for lá – você nunca esteve
lá –, se você for lá e ficar no lugar onde era, vai
acontecer tudo de novo; vai estar ali para você,
esperando você.
Toni Morrison, Amada.
Principiei esta dissertação analisando os efeitos desencadeados pela assunção
quilombola em âmbito local. Optei por essa ordem de exposição com o intuito de trazer o
contexto no qual a comunidade se insere, de modo a oferecer com maior detalhe o pano de
fundo no qual as entrevistas e as narrativas surgiram. O capítulo dois levou a cabo uma
primeira interface com a história, enfocando o papel constitutivo das ‘relações com o
exterior’. Cambará nunca foi uma comunidade contida em si mesma. Talvez a maior
diferença no presente seja a crescente visibilização do grupo e a cada vez mais freqüente
interação com agentes de vários campos do mundo social. Essas interações, decorrentes da
assunção quilombola, afetaram decisivamente as políticas de inclusão e exclusão: por um
lado, os limites grupais abarcaram comunidades negras vizinhas na qualidade de público
beneficiário de políticas públicas, agregando maior número de indivíduos na ‘luta’; por
outro, as relações com os brancos ganharam contornos específicos.
251
A auto-imagem local e as relações com os brancos devem muito ao contexto atual,
mas não se restringem a ele. A assunção quilombola gerou novas percepções, visões e divisões do mundo social. A influência de mediadores, como eu mesmo, é elemento
preponderante a ser levado em conta, bem como a incorporação de novos esquemas de ação
pelo grupo (ou parte dele, principalmente as lideranças). Para compreender essa dinâmica,
foi necessário suspender juízos valorativos sobre o ‘político’. Suas dimensões não
necessariamente obedecem aos ‘nossos’ esquemas de entendimento sobre elas. A inclusão e
a exclusão devem seu formato, sem dúvida, ao contexto atual, mas se dão em esquemas de
ação preexistentes. Assim, as relações com os brancos manifestam, ao mesmo tempo, o
peso das obrigações morais entre as partes e a diferenciação entre elas. A diferenciação
para com os vizinhos passava menos por um ‘rompimento’ motivado pela ‘conscientização’
(seja ela ‘política’, organizacional ou da ‘negritude’), do que pela avaliação dos limites de
inclusão em função dos padrões de interação já existentes (as relações de reciprocidade).
Por essa razão, pode-se definir Cambará como uma “cidade doméstica”, para utilizar a
terminologia de Boltanski e Thévenot (1991). Na cidade doméstica, a definição dos
‘direitos’ de cada parte, bem como o que é justo ou injusto, baseiam-se em um nível
pessoalizado. A interrupção do circuito de reciprocidade poderia contrariar obrigações
morais, e essa é uma faceta do ‘político’ a ser levada em conta. Ao chamar atenção para
esse ponto, não pretendi negligenciar ou conferir um papel irrelevante às disputas por
recursos entre os grupos. A posição estrutural de cada sujeito, o poderio econômico dos
brancos e o acesso facilitado a meios jurídico-burocráticos são dados indispensáveis a
serem levados em conta. O contexto racializado e as situações de desrespeito baseadas na
‘raça’ são, igualmente, elementos fundamentais.
O caminho trilhado com o intuito de investigar o papel desempenhado pela memória
em uma dinâmica identitária ganhou contornos específicos em razão de algumas
características desta pesquisa. A localização de documentos sobre a história do local era
consoante em diversos aspectos com as falas locais. Busca motivada pela produção de um
gênero específico de saber – o laudo antropológico –, o material compulsado abriu um novo
leque de questões, deslocando os objetivos mesmos de meu projeto de pesquisa. A partir do
terceiro capítulo, estabeleceram-se outras interfaces com a história. Precedidos de um
252
capítulo sobre a formação histórica do lugar, os capítulos quatro e cinco acompanharam os
eventos marcantes para o grupo por meio de fontes orais e escritas.
Esse exercício de confrontação entre oralidade e escrita passou pela tentativa de
superar visões desqualificadoras do oral. A assimetria entre oral e escrito é mantida,
sustentada e erigida não só pelo esquecer que se lembra (Fabian, 2007)201, mas sobretudo
pela redução da criatividade de outras culturas à nossa realidade (Wagner, 1981). Enquanto
avaliarmos os relatos orais como formas imperfeitas e inacabadas de registro do passado,
continuaremos a reduzir novas potencialidades e possibilidades de viver a vida aos termos
de nossas ideologias. Ao invés de estabelecermos uma relação de conhecimento que
permita a emergência de mundos possíveis, procederemos a uma alegoria das
discriminações operadas no nosso dia-a-dia. Nas sociedades ocidentais, a história é
encarnada e vivida em lugares da memória como o arquivo.
Como nota Nora (1984), vivemos numa era ansiosa por conservar. A distinção entre
memória e história proposta pelo autor refere-se à constituição gigantesca e vertiginosa de
suportes materiais do passado. Menos a memória é vivida do interior, mais ela necessita de
suportes exteriores. Daí a obsessão pela preservação integral do passado. “Há lugares da
memória porque não há mais meios de memória”, diz o autor francês (Nora, 1984:23).
Rede mobilizadora de uma enorme amplitude de humanos e não-humanos, os lugares da
memória definem o trabalho de instrumentação que oferece os padrões de medida e
comensurabilidade entre sociedades (Latour, 1994). Os artefatos do arquivo são pensados
menos enquanto suportes mnemônicos e mais como repositórios de um passado pronto a
ser desvendado pela autoridade do documento202. Mas cabe perguntar: será que a ausência
de repositórios gigantescos de conservação do passado manifesta carências mnemônicas ou,
ao contrário, revela formas diferenciadas de vivê-lo, conviver com ele e interpretá-lo?
Na interface com o direito, as dimensões do vivido poderiam assumir um novo local
de enunciação. Trata-se, portanto, de trazer à tona narrativas silenciadas e proceder a um
201
Como nota Fabian (2007:72), esquecer que outros povos lembram é um mecanismo para deixá-los
esquecidos. Ironicamente, continua Fabian, esquecer que outros povos lembram é um risco premente
justamente nos estudos de tradições orais, pois tais tradições só são levadas em conta enquanto correspondam
ao mesmo tratamento metodológico dado às fontes escritas.
202
Neste ponto, Foucault (2003 [1969]) é um interessante ponto de amparo para pensar o arquivo não só
como espaço repositório de conhecimento, mas também de produção dele.
253
esforço de simetrização que desloque a interface entre oral/escrito para outro plano. A
antropologia simétrica proposta por Latour (1994) e a antropologia reversa de Wagner
(1981) constituem aportes inovadores ao deslocarem o foco de atenção para os efeitos
reflexivos aos quais as experiências e experimentações com o ‘pensamento nativo’ podem
exercer nas nossas práticas de conhecimento203. Os relatos e lembranças dos moradores de
Cambará permitiram-me estabelecer uma relação em outros termos com o arquivo. Os
eventos que emergiram dos documentos foram especialmente enriquecidos pela forma
como eu confrontava o passado e pela forma pela qual o passado me confrontava. O
documento remetia-me a um passado. A diferença é que o mosaico que o compunha estava
povoado por vozes: as vozes dos narradores e narradoras de Cambará.
A produção de um texto descritivo sobre esses encontros tornou-se o registro de
várias historicidades: a dos artefatos que capturam o tempo, a das memórias e lembranças
compartilhadas em um momento específico e aquela produzida pela narrativa
antropológica204. São esses diferentes encontros e relações de conhecimento que
descortinam outras possibilidades na produção de uma narrativa sobre o passado. O
passado compartilhado pelos homens e mulheres de Cambará em diferentes contextos de
pesquisa traz a possibilidade de trazer à lembrança memórias e narrativas ausentes
justamente nos espaços e lugares repositórios do passado (Mello, 2006; 2008).
Não estou supondo que os relatos remetam a ‘àquilo que de fato aconteceu’,
tampouco que sejam versões estáticas e intactas. Um dos potenciais da chamada história
oral consiste justamente em oferecer novos temas e problemas à história, não desconhecêla. Há uma tendência nos trabalhos antropológicos dedicados à realização de laudos em
tomar a história oral como substituta dos documentos, reclamando para si uma
materialidade, validade e exclusividade a qual o universo escrito e histórico sempre
203
O caso da oralidade exemplifica bem a tendência da antropologia em deslizar entre o culturalmente
razoável e o conforme a razão sem muitas problematizações. Para ser mais preciso, supõe-se diferentes
princípios cognitivos em funcionamento, passando-se sem mediação das representações culturais aos
processos de pensamento (Fausto, 2001:492). Ao invés de propor uma interpretação sobre o modo de pensar
indígena, talvez fosse interessante realizar uma experimentação com ele e, portanto, com o ‘nosso’ (Viveiros
de Castro, 2002:123-4).
204
Ver Cunha (2005).
254
reservou para si. O problema desse tipo de postura consiste na substituição de um
substancialismo por outro, como nota Arruti (2005:124-5).
Esse perigo só se apresenta se tomarmos a oralidade exclusivamente como fonte ou
metodologia. Pensar a oralidade além da metodologia (Ferreira; Amado, 1996) e de fonte
histórica (Vansina, 1985; Thompson, 1992; Prins, 1992) permite colocar outras questões,
estabelecer novas relações de conhecimento. As mediações com os arquivos, permeadas
por relatos orais, podem descentrar o estatuto do documento (artefato) e localizá-lo não
como um simples retorno ao pretérito. Antes, um retorno que também é mediado, seguindo
padrões de relevância de fixação e não-fixação dos eventos. Ao eleger o documento como
locus privilegiado de reconstituição do passado, outras histórias e outras memórias restam
obliteradas. Os efeitos de conhecimento podem ter grande valia não tanto por apresentar
uma versão ‘mais verdadeira’ do que aquela oferecida pelo arquivo, mas por apresentar
outras possibilidades de apreensão do passado.
A dinâmica da memória e da identidade é central justamente nas interconexões entre
concepções locais de direito e a interpretação das formas institucionalizadas de direito com
as quais o grupo se depara atualmente. A identidade de seus integrantes não jaz numa
suposta ‘cultura negra originária’, mas justamente nas concepções de justiça formuladas por
meio da experiência da escravidão e da história incorporada na paisagem. Essa
constituição da identidade e da memória manifesta o duplo processo em jogo em Cambará.
Escravos, lembranças, reminiscências, aparições, fantasmas, injustiças, estórias e histórias
são mobilizados e ao mesmo tempo mobilizam aqueles que recordam. Passado vivo,
trabalhado no presente e sujeito às perspectivas do futuro; fruto de vivências da história,
não despertado do sono por uma História.
***
Numa das últimas conversas com Dalva da Silva (setembro de 2007), 74 anos,
perguntei-lhe sua opinião sobre o laudo antropológico realizado por nós (equipe do laudo).
Dalva respondeu achar bom esse estudo, pois até então os mais novos julgavam ser
inventivo aquilo que lhes era contado sobre antigamente. Soprou o ar com força, balançou o
255
corpo bruscamente em tom de reprovação, e atalhou: casa de barro, lavoura de arroz,
trabalho danado... Novo sopro, novo balançar.
À parte as intromissões dos membros da equipe, o ‘estudo’ poderia ter esse efeito
sinalizado por Dalva: conferir credibilidade aos relatos do passado. Isso faz pensar também
no grau de legitimidade exercido por nós, estudantes universitários, sobre as visões do
grupo sobre o próprio grupo; a influência de ouvintes externos sobre a apreensão do
conteúdo narrado pelos ouvintes do grupo (mesmo que o acesso às narrativas se dê pela
leitura, e não pela escuta). A fala de Dalva aponta para a dinamicidade do estatuto e das
interpretações conferidas às versões do passado: o ‘estudo’ podia dissipar o tom ‘inventivo’
da narrativa, evitando que as vivências de um outro tempo se dissipassem, perdendo-se nos
caminhos desabonados da história. De igual modo, depreende-se da fala de Dalva que as
experiências estão situadas em um plano pouco sujeito à ‘inventividade’, falsificação e
mentira. E isso se explica facilmente: os fatos e eventos do passado não aconteceram
simplesmente; eles foram vividos.
Diversas investigações antropológicas, especialmente sobre identidade étnica, vêm
mobilizando o conceito de “invenção das tradições” (Hobsbawm; Ranger, 1997) para dar
conta justamente do caráter histórico e datado das tradições, costumes, celebrações, rituais,
etc., historicizando, deste modo, o passado. Ao operacionalizarem essa noção,
freqüentemente os pesquisadores expandem sua significação, pois os autores distinguem-na
do “costume”, vigente nas sociedades ditas “tradicionais” (Hobsbawm; Ranger, 1997:
11)205. Mas se as tradições são dinâmicas e datadas, há um quê de não-inventivo nas
práticas de resgate do passado. Note-se a grande diferença entre falar em invenção, e não
em criação, constituição ou transformação. Afinal de contas, nada se cria do nada e há
limitações para que a invenção seja ‘inventiva’. Na contemporaneidade, um novo estatuto é
conferido ao passado, mas de certo modo ele já contém em si os limites de sua plasticidade.
Como faz notar Godoi:
Consideramos que as versões do passado são instrumentos fundamentais de
definição da realidade atual e perspectivas futuras, mas que o contrário não deixa
205
De certo modo, o mesmo se passa com a noção de “comunidades imaginadas”. Formulado por Anderson
(1993) para pensar o surgimento histórico dos Estados-Nações, o conceito expandiu-se para analisar distintas
configurações históricas.
256
de ser verdadeiro, isto é, as perspectivas de mudanças futuras também podem
redefinir versões do passado, de forma a tê-las, até mesmo, como instrumento de
ação política (Godoi, 1999:29).
O material do passado não está pronto à espera de sua recapitulação. Lembrar é
sempre lembrar no presente e o presente envolve necessariamente expectativas quanto ao
futuro. Se a memória é seletiva, não resulta numa plasticidade irrestrita, tampouco numa
mera adequação às necessidades políticas do presente. As evocações do passado trabalham
uma matéria-prima da experiência, articulando diversas historicidades e temporalidades. As
considerações de Godoi permitem falar em um ato de lembrar. Trabalhar a partir de algo
– o que chamei de experiências incrustadas – sempre em contextos determinados.
O referencial teórico de Hobsbawm e Ranger não dá conta justamente dessa
dimensão. “Passado um tanto falsificado” (Sahlins, 2005:4-5), a invenção das tradições
tende a ser vista mais como manifestação de processos macrosociais e menos como
atividade criativa dos sujeitos. Por essa razão, considero mais proveitoso abordar a
reivindicação de direitos e a assunção quilombola pelos moradores de Cambará por meio
do referencial fornecido por Luc Boltanski e Laurent Thévenot e Axel Honneth.
Na sociologia de Boltanski e Thévenot (a sociologia da crítica) há um afastamento
da figura do sociólogo como detentor das razões últimas que a razão dos sujeitos
desconhece. Para eles, a crítica do sociólogo não é tão distinta assim daquelas produzidas
pelos atores em suas disputas e conflitos ordinários. Trata-se de questionar a pretensão
científica de interpretar o sentido verdadeiro e último das ações das outras pessoas. Assim,
o foco deve recair sobre as justificações mobilizadas pelos próprios sujeitos nas situações
práticas. Interessa, além da exposição dos contextos onde se dá a ação, a descrição das
construções argumentativas utilizadas como justificações nessas situações ordinárias.
Esse referencial é de valia para pensar as situações nas quais os membros de
Cambará fazem referência ao passado – a um evento, a um sucedido, a um causo, a algo
que os antigos diziam – para justificar demandas, pleitos ou mesmo expressar juízos em
situações práticas, conflituosas ou não. Baseados no modelo da economia das grandezas,
Boltanski e Thévenot oferecem a possibilidade de pensar nas articulações entre ordens de
justiça. A história do grupo é reelaborada em um esforço de adequação às exigências do
presente, e projetos quanto ao futuro, justamente por expressar noções de justo e injusto.
257
Assim, os ‘novos direitos’ são interpretados no quadro das experiências vividas. As
lembranças figuram como justificações não só por razões utilitárias, mas também por serem
o solo para onde confluem essas ordens de justiça.
Ao atentarmos para a dimensão moral da luta por reconhecimento, conforme
apregoado por Honneth (2003), podemos complementar essa descrição. Para o filósofo
alemão, as teorias que atribuem o surgimento e o curso das lutas sociais à tentativa de
grupos sociais de conservar e aumentar seu poder de dispor de certas possibilidades deixa
em segundo plano as experiências morais. Ao distinguir formas de reconhecimento e
desrespeito, Honneth chama atenção para a presença das normas morais no cotidiano social.
Nada garante que os sentimentos de injustiça e desrespeito tornem-se uma convicção
política e moral que incite a ação coletiva de determinado grupo. Somente quando o meio
de articulação de um movimento social está disponível é que a experiência de desrespeito
pode tornar-se uma fonte de movimentação para ações de resistência política. No entanto,
só uma análise que procura explicar as lutas sociais a partir da dinâmica das experiências
morais instrui acerca da lógica seguida pelo surgimento desses movimentos coletivos
(Honneth, 2003:224). O modelo da teoria do reconhecimento não precisa necessariamente
substituir aquele primeiro (da disputa por recursos), mas sim complementá-lo, pois
permanece sempre uma questão empírica saber até que ponto um conflito social segue a
lógica da persecução de interesses ou a lógica da formação da reação moral. Como nota
Honneth:
A fixação da teoria social na dimensão do interesse também acaba obstruindo o
olhar para o significado social dos sentimentos morais, e de maneira tão tenaz que
incumbe hoje ao modelo de conflito baseado na teoria do reconhecimento, além
da função de complementação, também a tarefa de uma correção possível:
mesmo aquilo que, na qualidade de interesse coletivo, vem a guiar a ação num
conflito não precisa representar nada de último e originário, senão que já pode ter
se constituído previamente num horizonte de experiências morais, em que estão
inseridas pretensões normativas de reconhecimento e respeito (Honneth,
2003:261-2).
São justamente essas experiências morais que estão embutidas nas narrativas
trazidas ao longo da minha dissertação. Constituídas previamente porque incorporadas na
história – e no refletir sobre a história. Isso sem perder de vista as esferas de interação
criadas em função dos padrões de reconhecimento, que certamente influem na dinâmica e
258
configuração da memória. Mas não se trata apenas de repetir o óbvio: de que a justiça não
se realiza sem que essas territorialidades sejam protegidas, mas de tomar os relatos orais
sobre as terras como princípios de justificação, tão válidos e coerentes como os recursos
argumentativos de cientistas sociais.
***
Em uma de nossas andanças pela região, localizamos uma antiga e imponente casa.
Os efeitos do tempo se abatiam sobre ela. A estrutura estava comprometida, o telhado caíra,
as paredes esfarelavam-se. Provavelmente fora construída no período de vigência da
escravidão, pois pertenceu a uma família escravocrata. Era possível perceber no terreno
circundante à casa um muro de pedras, também em desmoronamento. A imagem era
interessante: naquele muro que ruía, uma árvore deitava suas raízes, estendendo-se para
ambos os lados separados pelo muro. Pus-me a pensar na consonância daquela paisagem
com as narrativas de Cambará: as tênues fronteiras entre escravidão e liberdade e as (re)
configurações do território ao longo dos anos afiguravam-se semelhantes a ela. A árvore
estava localizada sobre algo que separava, mas suas raízes alastravam-se para todos os
lados, não possuindo um ponto único de fixação.
259
Figura 31 - Muro
Foto: Marcelo Mello
Vidas e experiências temporais em fronteiras. A imponente casa outrora habitada
por uma família escravista desmorona lentamente; algumas paredes caíram, o telhado não
mais existe, o assoalho é frágil. Outro tempo parece estar impregnado nas paredes e
alicerces ainda existentes. O mesmo sucede com o muro. A construção sobrevém, mas a
marcha do tempo é inelutável. O tempo é um rato roedor das coisas, mas nem por isso a
história morre, disse Machado de Assis (epígrafe desta dissertação). O muro é intersticial,
separa espaços, mas é consumido por eles; a vegetação apartada pelo muro invade-o, toma
conta dele, contribuiu para sua erosão. A árvore que cresce e floresce junto a ele está
enraizada nessa região de fronteira. Tal como os territórios da memória, não alheios à
passagem do tempo, mas enraizados em tempos e espaços de vivência entrecruzados por
diversas temporalidades.
260
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