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II Congresso Internacional Sobre Culturas DIALOGOS BRASIL PORTUGAL Anais do II Congresso Internacional sobre Cultura Organização Annamaria Palacios Edilene Matos Joevane Sena II Congresso Internacional Sobre Culturas Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Elaboração: Fábio Andrade Gomes - CRB-5/1513 C749 Congresso Internacional Sobre Culturas (2. : 2016 : Salvador, BA) Diálogos Brasil Portugal : Anais do II Congresso Internacional Sobre Culturas [recurso eletrônico], [14 e 15 de novembro de] 2016 / Annamaria Palacios, Edilene Matos, Joevane Sena, organização. -- Dados eletrônicos (1 arquivo). -Salvador : UFBA, 2016. 668 p. Acesso em: http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/23442 ISBN 978-85-8292124-1 1. Cultura - Brasil - Congressos. 2. Cultura - Portugal Congressos. I. Palacios, Annamaria, org. II. Matos, Edilene, org. III. Sena, Joevane, org. IV. Título: Anais do II Congresso Internacional Sobre Culturas. SUMÁRIO CDU: 008(81:469) II Congresso Internacional Sobre Culturas APRESENTAÇÃO 8 CULTURA E DESENVOLVIMENTO A coletividade como solução de desenvolvimento numa perspectiva da economia criativa Aloma Lopes Galeano 10 A culinária do açúcar como fonte de empreendedorismo desenvolvimento local em Sergipe Rosana Eduardo da Silva Leal, Ángel-Baldomero Espina Barrio 20 feminino e Me conta universidade livre do médio rio das contas: cultura, participação e desenvolvimento Luciano Simões 26 Perspectivas e possibilidades das relações entre Brasil e Portugal Antônio Albino Rubim 45 A geografia política linguística nos negócios da confederação empresarial da comunidade dos países de língua portuguesa (CE-CPLP): O processo de internacionalização da Andrade Gutierrez Engenharia S.A. Marcelo Goulart 57 CULTURA E DISCUSOS MIDIÁTICOS Construções discursivas sobre as identidades nacionais: estudo de campanhas promocionais do turismo do Brasil e de Portugal Patrícia de Souza Figueiredo Lima 65 Discursos midiáticos e pentecostalismo brasileiro: a cultura religiosa em vias de midiatização Catiane Rocha Passos de Souza, Rita de Cássia Aragão Matos 77 A publicidade no centro da controvérsia: análise do filme casais pela ótica da teoria Ator-Rede André Bomfim dos Santos 86 O discurso jornalístico sobre artistas plásticos contemporâneos e populares: uma análise no Brasil e EM Portugal Adalton dos Anjos Fonseca 96 A produção de sentido do discurso informativo construído entre assessoria de imprensa e jornalismo Claudiane de Oliveira Carvalho Sampaio 107 Fotografia publicitária e enunciação: a imagem publicitária e o posicionamento discursivo das marcas contemporâneas Nelson Soares 119 O sagrado e o corpo feminino: estudo de casos – José Saramago e a playboy portuguesa e jorge amado e a playboy brasileira Carla de Araujo Risso 131 II Congresso Internacional Sobre Culturas CULTURA E EXPRESSÕES ARTÍSTICAS Aspectos da atividade artística de Vieira da Silva no Brasil Maria Isabel Azevedo da Silva 139 A ação de mediação cultural no projeto solos baianos Poliana Bicalho 147 A arte contemporânea no metrô da cidade de São Paulo: um estudo sobre o acervo Maria Lúcia Wochler Pelaes, Norberto Stori 155 A contribuição estético musical da música colonial portuguesa: do chorinho brasileiro ao “estudando o samba” na desconstrução sonora de Tom Zé Larissa Caldeira Gaspar Padre 164 Diálogos Brasil-Portugal: a tropicália de tom zé e a noção de “cultura de fronteira” de boaventura de Sousa Santos Paula Oliveira Campos Augusto, Rachel Esteves Lima 172 O terno de reis no território de identidade litoral Sul da Bahia Rita de Cássia Curvelo da Silva 183 Mike sam chagas e camões: um diálogo entre signos épicos e líricos Olímpio Pinheiro Santana 196 O fazer artístico de buridina: representação cultural e identitária de um povo Gisele Luiza de Souza, Gláucia Vieira Cândido 206 Travessia da fé: as (re)apresentações de santa quitéria no aquém-mar Jussara Duarte Soares Dias 215 Entre a fotografia e a literatura: cidade e sertão em palavras e imagens Victor Godoi Castro, Marília Flores Seixas de Oliveira 226 CULTURA E EXPRESSÕES DE GÊNERO Museu virtual dos graffiti feitos por mulheres Melissa Santos dos Santos 235 Mulher e poder: entrelaçamentos entre gênero e humor em dilma bolada Adriana Jacob Carneiro 243 Comunidade terra mirim: gênero, memória e patrimônio Ana Paula dos Anjos Fiuza 251 Gênero e cultura Yorùbá na diáspora: signos pós coloniais no enfrentamento ao racismo Cauane Gabriel Azevedo Maia 258 Europa, França e Bahia: as mulheres negras vão a cannes Maria de Fátima Fróes e Almeida Souto Maior 266 Gênero e crise política: notas sobre o declínio das presidentas Sul-Americanas Fernanda Argolo 274 II Congresso Internacional Sobre Culturas Por uma descolonização dos corpos no direito: tensionando os limites jurídicos do gênero Carolina Grant 282 Kika: a perfeita mulher casada Marise da Silva Urbano Lima 296 CULTURA E PRODUÇÃO AUDIOVISUAL A representação de casais em comédias televisivas brasileiras: uma análise a partir de Os Normais Emaxsuel Roger Rodrigues 305 Entre Fátima e Aparecida: estilo e processos decisórios nas transmissões ao vivo da emissora católica tv aparecida Caio Barbosa Nascimento 311 Linguagem e produção audiovisual na era da comunicação interativa: a linguagem audiovisual em canais dO Youtube no Brasil e em Portugal Fernando José Reis de Oliveira, Carine Batista Ribeiro 319 World cinema e cidades cinemáticas - confrontos entre Brasil e Portugal Fernanda Aguiar Carneiro Martins 330 Contributos da teoria portuguesa para a definição do conceito de radiodifusão na legislação brasileira: ampliação da divulgação da cultura nacional nos serviços de audiovisual Carlo José Napolitano 336 Subalternidades, subversões e fronteiras no cinema brasileiro contemporâneo Rodolfo Nonose Ikeda, Maurício Matos dos Santos Pereira 344 CULTURA E SEXUALIDADE Disforia de gênero na infância: uma forma de patologização das performatividades dxs meninxs afeminadxs Murillo Nascimento Nonato 353 CULTURA, MODA E ARTE Coleção vozes: processos criativos sob a perspectiva do ativismo antiracista Caroline Barreto Lima 364 A potência da aparência: entrelaçamentos entre cultura, moda e arte Renata Pitombo Cidreira 373 Não é apenas um turbante. experiências de invenção da aparência no filme carlota joaquina, princesa do Brazil: provocações dialógicas Brasil – Portugal Etevaldo Santos Cruz 380 Moda, cultura e arte na Revista Elle Brasil: corpo, imagem e expressao no jornalismo de moda Larissa Molina 388 II Congresso Internacional Sobre Culturas Impressão digital em tecido: o estilo da elementais na sua estamparia a partir das relações entre Brasil e Portugal Gina Rocha Reis Vieira 397 Moda de Bárbara e Iansã: a produção da indumentária na festa de Santa Bárbara, na cidade de Salvador Giovana Santos Dantas da Silva 406 Elegância do mês: notas sobre moda e imprensa em Salvador dos anos 1920 Henrique Sena dos Santos 417 Moda brasileira: diálogo com o processo de colonização Luis Fernando Lisboa Rodrigues 427 Tessituras da fé: sacralidade s estetização do vestuário nas festividades à boa morte Vanhise da Silva Ribeiro 437 Antropologia e moda: reflexões a partir de uma designer de acessórios Luana Nascimento Vieira 445 Corpos acordantes, corpos discordantes - reflexões sobre algumas das inúmeras técnicas contemporâneas de modificação corporal e sobre alguns dos inúmeros comportamentos sociais a elas vinculados Beatriz Ferreira Pires 454 Procedimentos e processos de atuação do ator que anima o personagem-boneco para cena Yarasarrath Alvim Pires do Carmo Lyra 463 Vitor Meirelles e Varvara Stepanova, experimentações artísticas além da moda Flávio Vivas de Souza Barreto 472 CULTURA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Estética e engenharia: uma discussão das possibilidades para além da racionalidade tecnológica Adriana Santos Auzani, João Rodrigues, Levi Leonido 480 Universos ficcionais afetivos e a construção de pontes entre a escola e seus alunos Iuri Rubim, Maria Helena Bonilla, Nelson de Lucca Pretto 492 Nem público, nem privado: pensar a gestão das obras intelectuais, e dos direitos a elas relacionados, a partir do conceito de comum Márcio Pereira 503 O fenômeno pokémon go: mediatização e subversão das lógicas tecnológicas na atualidade Fabrício Barbosa C., João Paulo Lemos Cavalcanti 510 Mi holograma favorito: convergências entre estética e política e a intervenção artístico-cultural hologramas por la libertad Ana Carolina Dantas Santos 521 II Congresso Internacional Sobre Culturas CULTURAS DIVERSIDADES E IDENTIDADES A ação de mediação cultural no projeto solos baianos Poliana Bicalho 532 A reinvenção do corpo da mulher idosa: imagens corporais na cultura contemporânea Cássio Luiz Aragão Matos 540 Identidades e territorialidades híbridas: materializações de uma nova ruralidade Cláudia Cambruzzi 551 Florestas e geladeiras: sobre a ética da resistência Orivaldo Nunes Junior 559 Dó-ré-mi-fé: o consumo de música entre os jovens da Igreja Sara Nossa Terra Fábio Vivas de Souza Barreto 568 O conceito de deficiência em evolução no Brasil e em Portugal Lúcia Pereira Leite 576 O problema da identidade do estudante brasileiro em Coimbra. uma reflexão sob a luz do diálogo O Sofista de Platão Lúcia Pereira Leite 585 Terno de reis: entre a tradição e a atualização da identidade na comunidade quilombola nova esperança, Wenceslau Guimarães, estado da Bahia Cledineia Carvalho Santos 593 CULTURAS E INDUSTRIAS CRIATIVAS O design de moda e o artesanato no âmbito das indústrias culturais e da economia criativa no Brasil Ana Rita Valverde Peroba 602 O processo criativo na produção do audiovisual infantil para a televisão no Brasil Natacha Stefanini Canesso, Kátia Morais, Renata Cerqueira 618 Economia criativa sob as perspectivas de políticas culturais do Brasil e de Portugal Renner Coelho Messias Alves, Janaina Machado Simões 628 GESTÃO E POLÍTICAS CULTURAIS Patrimônio cultural no Brasil e em Portugal: o estado enquanto gestor das inovações nas políticas públicas de salvaguarda dos seus legados nacionais Lívia Magalhães de Brito 638 Cópia privada: o baldio do vizinho. usos livres de obras artísticas, literárias e científicas protegidas por direito autoral no Brasil e em Portugal Eduardo José dos Santos de Ferreira Gomes 649 O museu nas políticas públicas de argentina, Brasil e Uruguai: uma reflexão sobre as políticas culturais nos governos democráticos populares do século XXI em perspectiva comparada Ana Ramos Rodrigues 661 II Congresso Internacional Sobre Culturas 8 APRESENTAÇÃO II Congresso Internacional sobre Culturas: Diálogos Brasil-Portugal O extenso conjunto de textos que, ora apresentamos, reúne trabalhos inscritos nos onze Grupos de Trabalho (GTs) do II Congresso Internacional sobre Culturas: Diálogos Brasil-Portugal. Indispensável acentuar que tal evento não teria sido possível não fossem as relações de Cooperação Acadêmica, Científica e Cultural estabelecidas entre o Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade/Instituto de Humanidades Artes e Ciências da Universidade Federal da Bahia e o curso de Ciências da Cultura/ Faculdade de Artes e Letras da Universidade da Beira Interior. O II Congresso Internacional sobre Culturas: Diálogos Brasil-Portugal marca a continuidade de um calendário programático firmado entre universidades brasileiras e portuguesas que, juntas, enfrentam o desafio de debater, aprofundar e difundir os domínios conceituais e práticos sobre Cultura, nos horizontes das complexas sociedades contemporâneas. Cultura é a pedra basilar dos instigantes movimentos de interações acadêmicas historicamente vividos entre os dois lados do Atlântico, entrelaçados pelo léxico comum. Oxalá as profundas águas que nos separam façam emergir, cada vez mais, processos cooperativos, propiciando a fertilidade da criação e da compreensão das variadas formas de manifestações culturais. Desejamos que nossos intercâmbios possam estender-se e alcançar um número considerável de professores, estudantes, pesquisadores e profissionais agrupados pelo interesse comum com relação aos estudos sobre Cultura, em ambos os países. Com foco no universo de estudos e saberes sobre Cultura, foi estruturado o II Congresso Internacional sobre Culturas: Diálogos Brasil-Portugal. Conscientes do ínfimo recorte, selecionamos onze áreas temáticas que representam o vasto exercício do pensar sobre Cultura. Portanto, cabe, aqui, insistir que a escolha das áreas de abordagem de cada GT recaiu na legitimidade de nossas vocações e interesses, expressada no exercício da docência e da pesquisa. Em edições futuras do evento, esperamos que outras áreas temáticas emerjam, no sentido de ampliar e consolidar o conjunto temático que norteou esta jornada. II Congresso Internacional Sobre Culturas 9 Acreditamos que os textos aqui reunidos vão contribuir tanto do ponto de vista teórico, quanto metodológico e/ou epistemológico, para estimular frutíferos debates sobre Cultura. Annamaria Jatobá Palacios e Edilene Dias Matos Coordenadora e Vice -Coordenadora do II Congresso Internacional sobre Culturas: Diálogos Brasil-Portugal II Congresso Internacional Sobre Culturas 10 A COLETIVIDADE COMO SOLUÇÃO DE DESENVOLVIMENTO NUMA PERSPECTIVA DA ECONOMIA CRIATIVA Aloma Lopes Galeano1 RESUMO O objetivo deste artigo é promover uma discussão acerca das potencialidades de ação e de contribuição de setores artísticos e culturais diversos — a partir da classificação prevista no Plano Nacional da Secretaria de Economia Criativa — no âmbito dos coletivos criativos informais, grupos originários da sociedade civil, nos quais diversos profissionais da indústria criativa reúnem-se para desenvolver propostas com finalidades sociais e culturais. Partindo do reconhecimento da emergência nos últimos anos de práticas de organização e produção artística e cultural marcadas por perspectivas colaborativas e em rede, a ideia é compreender, no contexto do estado da Bahia, como isso se dá e como essas novas práticas dialogam com a economia criativa. Palavras-chave: Coletivos criativos. Colaboração. Economia criativa. ABSTRACT The aim of this paper is to promote discussion about the action and contribution of various artistic and cultural sectors potential - from the classification laid down in the National Creative Economy Secretariat Plan - within the informal creative collectives, groups originating from civil society, in which several professional creative industry meet to develop proposals for social and cultural purposes. Recognizing the emergence in recent years of organization practices and artistic and cultural production marked by collaborative perspectives and networking, the idea is to understand, in the state of Bahia context, how it happens and how these new practices dialogue with the economy creative. Keywords: Creative collective. Collaboration. Creative economy. INTRODUÇÃO O estudo voltado ao tema de economia criativa, embora bastante recente no Brasil, vem ao longo dos anos, conquistando espaço em circuitos acadêmicos (pesquisas e publicações), governamentais (gestão pública) e não-governamentais (rede privada e grupos do terceiro setor). A abordagem de uma nova modalidade econômica de gestão baseada num desenvolvimento sustentável local e global é aplicada em lugares como: Reino Unido, Austrália, França e China. A economia criativa como uma estratégia para o desenvolvimento passou também a ser difundida em países emergentes como: 1 Mestranda em Cultura e Sociedade pelo Instituto de Humanidades, Artes e Ciências - Prof. Milton Santos, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Vínculo Institucional: Fundação de Amparo a Pesquisa no Estado da Bahia – FAPESB. aloma.galeano@gmail.com II Congresso Internacional Sobre Culturas 11 Argentina, Colombia e Brasil. Há, porém, na atualidade, pesquisadores descrentes na continuidade do implemento a economia criativa em países do cone sul , devido a instabilidade da crise financeira mundial sustentada por governos conservadores que têm assumido presidências em diversos países latinos. O fato, porém, é que ter uma proposta de desenvolvimento, diferente da idéia de espaço, coisas e quantidades, e aproximada a idéia de tempo, pessoas e qualidade, conforme expressa Lala Deheinzelin2 faz cada vez mais sentido para uma sociedade contemporânea imersa em desigualdades e injustiças sócio-culturais. A cultura compreendida como um ambiente capaz de emancipar sujeitos e amplificar a diversidade existente entre os mesmos está presente no debate da economia criativa, ou como diz Messias Bandeira3: Associada aos processos de desenvolvimento,a cultura entendida para além de seus vetores identitários e antropológicos, mas longe de ser reduzida a indicadores econômicos que servem a formuladores de políticas de governos e empresas privadas; a cultura não como mero recurso instrumentalizado e reapropriado pelas esferas políticas e econômica, mas enquanto elemento que “corporifica nossa humanidade comum”, conforme anotou Eagleton (2011, p.17) ao analisar a relação entre estado e cultura. (BANDEIRA, 2015: p.188) O conceito da economia criativa é correlato a processos participativos, sustentabilidade e empreendedorismo coletivo, os quais também se fazem presentes nas relações executadas por coletivos criativos. Ao longo do desenvolvimento deste artigo será apresentada a relação entre coletivos criativos e economia criativa, partindo inicialmente da definição destas organizações, seu surgimento e como o seu modus operandi está assentado em estruturas e características associadas ao conceito de economia criativa presente no Plano Nacional da Secretaria de Economia Criativa. No artigo também serão discutidas as potencialidades de ação e de contribuição de setores artísticos e culturais diversos, tendo como base algumas experiências de coletivos criativos baianos. O capítulo também se destina a uma breve contextualização de ações de políticas públicas aplicadas a área de economia criativa as quais tem tido 2 Conceito sobre economia criativa apresentado pela produtora cultural no texto: Cultura e negócios, rumo à economia criativa. Disponível em: <http://laladeheinzelin.com.br/wpcontent/uploads/2013/05/2006-Livro-Cultura-e-Neg%C3%B3cios-Sebrae-Alagoas.pdf>. II Congresso Internacional Sobre Culturas 12 adesão dos coletivos criativos no que diz respeito a ampliação da cadeia produtiva: criação – produção – consumo dos bens culturais derivados por estes núcleos. Com relação ao percurso metodológico utilizado neste artigo, além de autores basilares sobre o tema da economia criativa, foi desenvolvida uma pesquisa sobre coletivos criativos existentes na Bahia na internet e a partir de matérias e reportagens jornalísticas; em seguida, identificamos a recorrência do termo coletivos criativos em publicações de órgãos como: SEBRAE - Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, Escritório Bahia Criativa – Secretaria de Cultura do Estado da Bahia e Ministério da Cultura. COLETIVOS CRIATIVOS E ECONOMIA CRIATIVA: UM ESFORÇO DE DELIMITAÇÃO CONCEITUAL Entre as décadas de 60 e 70 houve uma complexa transformação estrutural das sociedades contemporâneas, cujas relações passaram a utilizar muito fortemente a tecnologia para concepção de novas estruturas comunicacionais e organizacionais. Esta configuração, de acordo com o sociólogo espanhol Manuel Castells, deu início a uma Era da Informação4, resultante de 03 elementos principais: Revolução da Tecnologia da Informação; Crise econômica do capitalismo e do estatismo; e Apogeu de movimentos sociais e culturais. Surge, portanto, devido as últimas décadas, uma concepção de mundo arraigada a uma nova estrutura social dominante que prevê a organização da sociedade em rede e que por conseqüência estabelece novos sistemas sociais, culturais e econômicos. Apesar da revolução da tecnologia ter sido ponto de partida para este tipo de reflexão, difundida dentre outros estudiosos, por Castells, não é a tecnologia que determina a sociedade, mas há uma interação dialética entre sociedade e tecnologia. De acordo com este pensamento Castells diz: A geração de riquezas, o exercício do poder e a criação de códigos culturais passaram a depender da capacidade tecnológica das sociedades e dos indivíduos, sendo a tecnologia da informação o elemento principal dessa capacidade. A tecnologia da informação 4 Expressão utilizada por Manuel Castells para diagnosticar, mudanças estruturais nas sociedades contemporâneas do século XX. II Congresso Internacional Sobre Culturas 13 tornou-se ferramenta indispensável para a implantação efetiva dos processos de reestruturação econômica. De especial importância, foi seu papel ao possibilitar a formação de redes como modo dinâmico e auto-expansível de organização da atividade humana. Essa lógica de redes transforma todos os domínios da vida social e econômica. (CASTELLS: 1999, p.62) Em decorrência de um longo processo sociopolítico, com as revoluções tecnológicas e a nova fase do sistema capitalista, sucessivas crises foram enfrentadas desde a década de 70; originaram-se, portanto, limitações dos modelos de produção e de desenvolvimento econômico. Estes entraves passam a reforçar cada vez mais, alternativas de desenvolvimento não mais fundadas na ideologia do progresso, mas no conceito de criatividade. Conforme Paul Tolila afirma: Em seu estágio atual, a globalização está fundada num modelo que nasceu ao longo do desenvolvimento impetuoso de fenômenos industriais que podemos definir como crescimento endógeno. Nesse modelo, fundado na transformação dos próprios processos produtivos, nas novas complexidades dos mercados internos e das carências mundiais, o que conta já não é a pura posse de matérias-primas (ainda que isso seja um trunfo), a quantidade de braços, mas o capital humano, sua qualificação, seu nível intelectual e sua capacidade de fazer funcionar um imenso complexo produtivo. (TOLILA: 2007, p. 89). A partir desta nova lógica, o surgimento de coletivos criativos evidencia uma proposta de novo mundo motivada pelo libertarismo e promovida por movimentos sociais e culturais. Apesar de organizações integradas por artistas não serem recentes na história da humanidade, os coletivos criativos estão na contemporaneidade como um reflexo de uma era na qual o autor prevê a colaboração como premissa para suas produções. São organizações coletivas integradas por diferentes profissionais de cadeias produtivas criativas das mais diversas, cujo princípio parte da criatividade e da organização em rede. Os coletivos criativos são organizações informais e o seu surgimento sugere estratégias propostas pela sociedade civil para derivação de novas formas de desenvolvimento local e global. Boa parte dos coletivos se localiza em centros urbanos, porém isso não significa que estão sediados em espaços físicos, pois alguns sequer possuem sede; a colaboratividade5 entre os integrantes dos coletivos se dá desde modo presencial através 5 O termo colaboratividade está sendo utilizado neste artigo como sinônimo de troca de idéias e experiências, sempre com base na criatividade. II Congresso Internacional Sobre Culturas 14 de reuniões, ou da convivência numa mesma casa ou espaço, até modo virtual, através do uso da internet, a partir de redes sociais e plataformas gratuitas. Outro aspecto peculiar é a forma de gestão dos coletivos que está baseada na idéia de holocracia6 - um sistema sem autoridade definida, no qual os processos e ações são decididos pelo grupo e colocados em prática da mesma forma. Com relação a organização setorial dos coletivos criativos é importante entender que pode estar relacionada exclusivamente a um setor criativo, como por exemplo moda, música, audiovisual, teatro, literatura, design, artesanato, comunicação, propaganda, mas como também pode se organizar de modo interdisciplinar, unindo profissionais de diferentes formações. A escolha de se atuar coletivamente, agregando habilidades e experiências parece ser um modo escolhido por agentes culturais para dar sustentabilidade a projetos, produtos e serviços criativos. O objetivo comum a estes núcleos autônomos e deserarquizados é desenvolver o cenário artístico-cultural de determinada região. Seguindo o contexto de uma abordagem de desenvolvimento embasada na capacidade criativa humana que é bastante presente na atuação dos coletivos criativos, não podemos deixar de referenciar o Plano da Secretaria de Economia Criativa elaborado para o período 2011-2014. Este instrumento de cunho administrativo para execução de políticas públicas no país dialoga diretamente com a concepção libertária e interdisciplinar proposta pelos coletivos. Esse diálogo fica evidente em fatores presentes no Plano como: relação da economia criativa a setores e não com indústrias criativas; e setores que vão além dos daqueles denominados como tipicamente culturais, ligados à produção artístico-cultural (música, dança, teatro, ópera, circo, pintura, fotografia, cinema), mas que compreende outras expressões ou atividades relacionadas às novas mídias, à indústria de conteúdos, ao design, à arquitetura entre outros. Trata-se fundamentalmente de um esforço para entender a economia criativa como principal elo de conexão entre os coletivos criativos e os conceitos e os princípios descritos no Plano da Secretaria de Economia Criativa. Um paralelo possível para a compreensão de desenvolvimento com base em aspectos de: coletividade, liberdade, 6 Termo traduzido do verbete inglês Holacracy, criado pelo empreendedor norte americano Brian Robertson que se baseia num método de gestão no qual retira o convencional sistema de poder hierárquico e o distribui a todos os funcionários, que passam a ter papéis (roles) — e não cargos — executados autonomamente. II Congresso Internacional Sobre Culturas 15 interdisciplinaridade, inclusão social, sustentabilidade, inovação e diversidade cultural brasileira. Aqui finalizamos com uma citação extraída do 2 capítulo do plano: Tomando-se como exemplo a pintura, verifica-se que a expressão artística associada à técnica do pintor, representada na tela, corresponde ao cerne do seu valor cultural e econômico, indo muito além dos materiais (tela, tintas, pincéis etc.) utilizados para sua produção. O mesmo ocorre com um designer gráfico cujo valor do resultado do seu trabalho é constituído essencialmente do valor simbólico gerado a partir do seu processo de criação associado a sua habilidade técnica. Apesar da importância dos instrumentos e softwares para o desenvolvimento do seu trabalho, a essência e o valor do bem criativo se encontra na capacidade humana de inventar, de imaginar, de criar, seja de forma individual ou coletiva. (PLANO: 2011, p.13) A COLETIVIDADE CRIATIVA NA BAHIA: COLETIVOS E POLÍTICAS PÚBLICAS EXISTENTES Os processos criativos e ações colaborativas na Bahia, na região metropolitana de Salvador, destacaram-se a partir de 2007, principalmente nas áreas de artes cênicas (dança e teatro). Desse período em diante, coletivos relacionados aos setores criativos7 de: expressões culturais (artes visuais e artesanato); artes de espetáculo (música e circo); e audiovisual (cinema e vídeo) passaram a aparecer no cenário da capital baiana. A repercussão de coletivos criativos também se deu em municípios do interior da Bahia, como Feira de Santana, Cachoeira, Vitória da Conquista e Juazeiro. Os coletivos criativos baianos se debruçam em conceitos e princípios conforme já explicitados em capítulo anterior. A autonomia-colaborativa é para estes agrupamentos uma proposta para pensar as relações entre singularidade e coletividade a partir da criação compartilhada, para daí resultarem ações, e/ou produtos a se inserirem numa cadeia produtiva da cultura8. Podemos citar alguns exemplos de atividades realizadas na Bahia por meio de idéias compartilhadas: Minifestival Itinerante De Solos e Coletivos9, concebido pelos coletivos sotorepolitanos Quitanda e Vagapara; o Feira 7 Embasamo-nos, para este artigo, a classificação de setores criativos adotada no Plano Nacional da Secretaria de Economia Criativa 8 Conceito de cadeia produtiva adotado no Plano Nacional da Secretaria de Economia Criativa, cuja compreensão da economia Criativa é derivada a partir das dinâmicas culturais, sociais e econômicas construídas a partir do ciclo de criação, produção, distribuição/circulação/difusão e consumo/fruição de bens e serviços oriundos dos setores criativos, caracterizados pela prevalência de sua dimensão simbólica. 9 Festival na área de dança, realizado durante 04 anos consecutivos (2011 até 2014), resultado do projeto Construções Compartilhadas o qual integrou os coletivos Quitanda e Vagapara. II Congresso Internacional Sobre Culturas 16 Noise Festival10, executado pelo Feira Coletivo Cultural; e a loja colaborativa multicultural11 administrada pelo coletivo Somos. O reconhecimento através do estado, por meio de políticas públicas para fomento a ideia dos coletivos, iniciou-se na Bahia somente a partir de 2014. A Secretaria de Cultura da Bahia - SecultBa derivou um edital específico para apoio a iniciativas compartilhadas denominado: Grupos e Coletivos Culturais que de acordo com relatório desenvolvido no mesmo ano de execução do edital, das 72 propostas apresentadas, apenas 35 foram efetivamente inscritas. Ainda de acordo com relatório, o resultado obtido se deu em decorrência da necessidade de maior instrução sobre os documentos exigidos para o edital, bem como boa parte das propostas não atendia satisfatoriamente ao objeto do edital. Durante 2014 o edital Grupos e Coletivos Culturais obteve 72,7%, com 08 projetos selecionados de Salvador e 27,3%, com 03 projetos selecionados de outras cidades. As propostas apoiadas equivaleram ao total de R$ 3.920.000,00 do fundo de cultura da Bahia para assistir aos contemplados no período de dois anos. Em 2016, foi lançado novamente o respectivo edital com uma média de 64 propostas apresentadas, 49 consideradas inscritas, 53,3% com 08 projetos selecionados de Salvador e 46,7% com 07 projetos selecionados de outras cidades. O montante financiado pela SecultBa para esses projetos em 2016 foi de R$ 2.260.000,00. Nota-se que, mesmo com a redução de R$ 1.660.000,00 de financiamento oriundo do estado para apoio a iniciativas de coletivos, a média entre inscritos e selecionados se manteve semelhante em comparação aos dois anos que houve o edital Grupos e Coletivos Culturais. Outro aspecto interessante foi com relação ao resultado obtido, no qual a capital baiana ficou com apenas um projeto a frente dos demais municípios, diferente do que ocorreu em 2014. No entanto, ainda há muita disparidade com relação ao apoio a projetos da Região Metropolitana de Salvador e demais Territórios de Identidade. Diante do exposto percebemos que os coletivos se utilizam de recursos públicos oriundos do estado, no entanto não fazem disso a única forma para sustentabilidade e continuidade das ações e idéias compartilhadas. Outro ponto a ser levantado é que apenas a existência de edital não configura efetivação de política pública para o setor. É 10 Festival de música realizado há 10 anos na cidade de Feira de Santana pelo Feira Coletivo Cultural. Loja sediada no shopping da Bahia na qual se encontram produtos de moda, artesanato, artes visuais e design, fundada em marco de 2016 através do coletivo Somos. 11 II Congresso Internacional Sobre Culturas 17 insuficiente o apoio estatal a estas iniciativas da sociedade civil na Bahia. Diferente do que se prevê no Plano Nacional de Economia Criativa (editais específicos, ações de circulação através de festivais e feiras, mapeamento de coletivos, dentre outras ações concretas), o estado não apresenta um direcionamento para apoio efetivo aos coletivos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Pensar a relação entre cultura e economia a partir de uma concepção mais ampliada que deriva um desenvolvimento local e global, conforme proposto na perspectiva da economia criativa introduz um redimensionamento da própria cultura na contemporaneidade. Compreender que a cultura está para além do entretenimento e do seu aspecto simbólico não significa porém solidificar uma dicotomia entre o tradicional e o contemporâneo, mas agrupar as duas formas enxergando-as enquanto complementares e passíveis de re-inveção. Re-iventar-se na sociedade contemporânea pressupõe modos de visão e ações como a economia criativa e, consequentemente os coletivos criativos. O debate proposto aqui se aproxima da visão de que a vantagem produtiva não está apenas associada à força física e ao número, mas ao espírito, à sua formação e à sua capacidade de adaptação e inovação. Nossa noção de desenvolvimento dialoga com aquela proposta por Yúdice, para quem a cultura transforma-se em recurso “a arte se dobrou inteiramente a um conceito expandido de cultura que pode resolver problemas, inclusive o de criação de empregos [... e] os artistas estão sendo levados a gerenciar o social” (YUDICE: 2013, p. 28-29). O reconhecimento da diversidade/transversalidade no modelo de economia proposto no Plano Nacional da Secretaria de Economia Criativa insere os coletivos criativos, partindo do princípio de que toda singularidade é plural diante da concepção de que nada vive isolado no mundo. As coisas têm historicidade e o “novo” é uma organização, em termos novos, de elementos pré-existentes, ou como diz Bandeira ao abordar a economia criativa como “um destes conceitos em permanente revisão. apresentá-la como uma nova economia e também situá-la no entre-lugar da cultura e suas transversalidades” (BANDEIRA: 2015, p.189) Certos modos de organizar processos de criação em grupo, como os que são propostos pelos coletivos, lidam de maneira consciente com os princípios como autonomia e colaboração, configurando ambientes mais favoráveis à emergência de II Congresso Internacional Sobre Culturas 18 estados de criatividade, aprendizagem e convivência, sendo a alteridade, e a heterogeneidade possíveis fundamentos para o convívio político e social e da integração coletiva. O resgate do coletivo em oposição a individualidade, proposto pelos coletivos e pelo entendimento de uma nova economia atrelada a estes agrupamentos, além de atender características das nossas sociedades, salienta que através da coletividade e da colaboração no individual podem se dissolver oposições para propor outras possibilidades de integração. REFERÊNCIAS BANDEIRA, Messias. Políticas Criativas para um Novo Ecossistema Cultural. In: Bandeira, Messias e Costa, Leonardo (org.). Dimensões criativas da economia da cultura: primeiras observações. Salvador: EDUFBA, 2015, p. 185-200. BENHAMOU, Françoise. A economia da cultura. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007. BOKOVA, Irina. As indústrias criativas impulsionam as economias e o desenvolvimento, segundo o Relatório da ONU. UNESCO Brasil. Disponível em <http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/singleview/news/creative_industries_boost_economies_and_development_shows_un_report/# .VivmYry60RA> Acesso 10.10.16. 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Assim, ofícios tradicionais apreendidos na infância, como o saber fazer doce, passaram a constituir uma moeda de troca para entrar na cadeia produtiva local, tornando-se uma importante fonte de visibilidade, protagonismo, empregabilidade e renda feminina. Palavras-have: culinária, empreendedorismo, desenvolvimento local, doçaria tradicional. INTRODUÇÃO A cultura tem importante papel na promoção do desenvolvimento social, sobretudo em nações pobres. Além da sua dimensão simbólica, envolve também a dimensão econômica, uma vez que constitui um importante campo de empreendedorismo e empregabilidade local. Neste âmbito podemos encontrar a doçaria, legado sociocultural construído no processo de formação do Brasil, que absorveu as diversas influências dos povos que aqui estiveram. Já que, além de ser uma comida que absorve uma diversidade de ingredientes e modos de produzir, possui uma função cultural, na medida em que carrega consigo heranças ancestrais que dialoga com novos ingredientes e formas de produzir, absorvendo reelaborações e a criatividade de quem os produz. É nesta vertente que está situado o presente artigo, cujo objetivo é analisar o papel da doçaria como campo de empreendedorismo feminino, protagonismo e desenvolvimento local. 12 Doutora em Antropologia pela UFPE. Docente do curso de Turismo na Universidade Federal de Sergipe e líder do Grupo de Pesquisa em Antropologia e Turismo. E-mail: rosanaeduardo@yahoo.com.br 13 Doutor em Filosofia. Professor Titular da Universidad de Salamanca no Programa de PósGraduação em Antropologia de Ibero-América. E-mail: espina@usal.es II Congresso Internacional Sobre Culturas 21 A proposta do estudo é, portanto, compreender como a culinária tradicional movimenta a microeconomia local, por meio de iniciativas individuais e coletivas, considerando seu diálogo com a cultura, com o turismo e o processo de geração de emprego e renda. Para tanto, trataremos teoricamente de temas como mercado de trabalho; empreendedorismo feminino e cidadania. O estudo teve por base a pesquisa bibliográfica e de campo. A primeira serviu para identificar conteúdos teóricos e empíricos capazes de contribuir para análise dos dados coletados. Já a pesquisa de campo, de cunho etnográfico, foi utilizada para compreender a estrutura sociocultural e econômica que perpassa a cultura doceira nas localidades estudadas, a partir da observação direta, de entrevistas e do registro audiovisual. No território sergipano, a pesquisa de campo foi realizada no centro histórico de São Cristóvão, permeando espaços como a Casa da Queijada, a Cooperunidoces, a Santa Casa de Misericórdia) e a fábrica Santa Helena. Além disso, contemplou ambientes turísticos como a orla de Atalaia (Feira do Turista), o aeroporto, os mercados públicos no centro histórico de Aracaju, a loja Coisas Nossas, a Casa Doce Caseiro em Areia Branca, bem como o Doce Caseiro de Dona Nena na divisa de Monte Alegre e Nossa Senhora da Glória. A investigação seguiu uma abordagem antropológica, partindo do pressuposto que tal repertório culinário apresenta-se como importante campo etnográfico, sobretudo pela capacidade que tem em revelar indivíduos, práticas e tradições, bem como modos de fazer e microeconomias locais. TRABALHO, CIDADANIA E EMPREENDEDORISMO FEMININO NA DOÇARIA Nas últimas décadas, o mercado de trabalho passou por uma radical reestruturação devido a sua a incapacidade em gerar novos empregos regulares e regulamentados, com a ampliação da subutilização da força de trabalho. A redução do vínculo duradouro do trabalho trouxe consigo a sua precariedade, através de sistemas de contratação flexíveis que passaram a ser compatíveis com a nova dinâmica da produção e dos mercados. Os trabalhadores altamente especializados foram paulatinamente substituídos pelos trabalhadores polivalentes e multifuncionais. II Congresso Internacional Sobre Culturas 22 As mudanças empreendidas pela tecnologia têm contribuído paulatinamente para a precariedade do trabalho. Tal realidade passou a elevar as estatísticas de desemprego; o aumento da terceirização ou a contratação por tempo determinado e horas de trabalho reduzidas. A tecnologia alterou não só a divisão do trabalho, mas também o conteúdo das tarefas e o processo de qualificação profissional, redefinindo a concepção do sujeito enquanto trabalhador e empregado. A formação profissional passou a ser exigida através de parâmetros externos de qualificação, reorientado as formas de gestão existentes. Tais medidas foram tomadas como exigências diante dos padrões de qualidade exigidos, para que os produtos pudessem circular livremente conforme padrões de qualidade no mercado mundial. A proliferação de opções parciais, temporárias, terceirizadas e informais de contração causou perdas significativas para a classe trabalhadora, favorecendo a proliferação de problemas sociais nefastos, como os altos índices de desemprego e exclusão social. Tal realidade tem elevado às estatísticas de desemprego; o aumento da terceirização ou a contratação por tempo determinado e horas de trabalho reduzidas. A tecnologia alterou não só a divisão do trabalho, mas também o conteúdo das tarefas e o processo de qualificação profissional, redefinindo a concepção do sujeito enquanto trabalhador e empregado. Os produtores familiares e os trabalhadores locais tornaram-se os mais vulneráveis neste processo de modernização produtiva e reestruturação econômica local, pois as novas estratégias de acumulação repercutiram diretamente na estrutura social local e na vida dos atores sociais envolvidos. Essa nova era das desigualdades, como já vem sendo chamada, tem sido resultado da perda da proteção social, do aumento dos índices de pobreza em âmbito global e do aumento das disparidades sociais (RAMALHO & SANTANA, 2003). O caráter seletivo do mercado de trabalho ampliou o processo de exclusão social, atingindo de forma mais intensa alguns grupos que enfrentam barreiras para terem acesso a ele, como as minorias étnicas, as mulheres, os jovens, os idosos, os deficientes, entre outros. A luta pela cidadania das mulheres perseguida pelos movimentos sociais está na conquista da autonomia, bem como igualdade e direitos civis, políticos e sociais diante das diversas barreiras e restrições enfrentadas no dia-a-dia. O trabalho apresenta-se como um dos contextos em que esta autonomia é buscada, uma vez que se trata de uma esfera em que processos de exclusão e assimetria entre homens e mulheres se fazem presentes. “Afinal, é justamente a construção social de gênero, como estrutura simbólica II Congresso Internacional Sobre Culturas 23 e também de expectativas sociais e individuais, que torna precária a cidadania das mulheres: a dupla função que elas exercem é fonte parcial do estatuto de cidadania” (SOARES, 2003, p.91). No caso da realidade das mulheres pobres no Nordeste do Brasil, o acesso ao mercado de trabalho formal torna-se ainda mais difícil. Dessa forma, ofícios tradicionais apreendidos ainda na infância no seio da família constituem moeda de troca para entrar na cadeia produtiva local. Assim, o artesanato e a culinária apresentam-se como importantes fontes de geração de renda feminina, congregando com os demais afazeres domésticos da vida familiar. Historicamente, há muitas atividades femininas que escapam ao modelo tradicional de trabalho formal, sendo consequentemente desconsideradas pela lógica do capital (SILVA, 2012). O trabalho artesanal é uma dessas atividades, tendo importante função na constituição da identidade de suas produtoras. O artesanato apresenta-se como objeto útil para situarmos o lugar da mulher na esfera pública que corresponde ao mundo do trabalho. Isso porque a atividade encontra-se hoje em uma encruzilhada conceitual, ora associada a um tipo de produção material exposta ao reconhecimento público e passível de comercialização, ora relacionada a um saber vivencial, recolhido ao domínio privado do indivíduo (FIGUEIREDO; CAVEDON, 2012, p.80). No Brasil, o artesanato e a culinária constituem-se importantes mecanismos de empreendedorismo, inclusão social, sociabilidade e melhoria da autoestima de diversas mulheres pobres. Isso porque, por meio de um saber-fazer, muitas artesãs transformam a sua realidade, utilizando-se de habilidades manuais como mecanismo de empregabilidade e manutenção econômica. Concordamos com Silva (2012, p.03) quando explica que pensamos que o artesanato passe por uma dupla exclusão pois, por um lado, constitui-se em uma atividade que não se adequou à produção industrial em massa (alicerce do capitalismo industrial) por sua característica de trabalho manual e criativo e, por outro lado, foi historicamente relegado quase que exclusivamente às mulheres e usado como forma de mantê-las atreladas ao espaço doméstico. É o que acontece com a culinária, que representa um modo de fazer artesanal e tem as mulheres como protagonistas. Estas atuam como guardiãs deste patrimônio cultural, a partir da manutenção e reinvenção de receitas. Nas cozinhas regionais, muitas II Congresso Internacional Sobre Culturas 24 mulheres, sobretudo às mais idosas, apresentam-se como referências da memória coletiva dos saberes e costumes culinários, sendo responsáveis pelas transmissões destas tradições. Trata-se de um ofício tradicional ligado à herança histórica do país, que contou com a intensa influência europeia, indígena e africana neste saber-fazer. Em diversas cidades brasileiras fazer doce transformou-se em um mecanismo de subsistência que está baseado em uma economia familiar, congregando diversos integrantes da família no processo de feitura e comercialização. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em Sergipe, a tradição doceira pode ser encontrada em diversas comunidades do estado, servindo como mecanismo de inclusão social e geração de renda na cadeia produtiva do turismo. Trata-se de uma produção que integra a cultura tradicional e popular, carregando um diversificado conjunto de elementos simbólicos que envolve técnicas, saberes e fazeres tradicionais. Para tanto, utiliza-se em grande medida de matéria-prima da região onde é produzida, constituindo-se como manifestação da cultura e elemento identitário local. A cultura do doce pode ser facilmente observada no cotidiano sergipano. Tal produção está presente no interior dos lares, restaurantes, hotéis, empresas e cooperativas, que possibilitam a manutenção e a longevidade desta cultura alimentar dia após dia. Tal oferta é vendida nas ruas, mercados, supermercados, no comércio de bairros e na casa dos próprios produtores, possibilitando uma economia própria desta cultura. Como salienta Freyre (2007), no Brasil o doce é mais doce. E em Sergipe não poderia ser diferente. Na doçaria sergipana tem-se uma intensa presença de frutas tropicais próprias do estado, que são criativamente transformadas, dando vida a um diversificado conjunto de iguarias. Frutas como a mangaba, o jenipapo e o caju dão um toque próprio na culinária doceira local. As frutas também possibilitam uma variada produção de licores artesanais, que são muitas vezes elaborados e comercializados pelos mesmos doceiros e doceiras. Diante da pesquisa realizada, observou-se que muitas são as formas pelos quais as doceiras sergipanas buscam inserir-se no mercado de trabalho local. Isso porque, com o caráter seletivo do mercado de trabalho formal, ampliou-se o processo de exclusão social, atingindo de forma mais intensa alguns grupos, como as minorias étnicas, as II Congresso Internacional Sobre Culturas 25 mulheres, os jovens, os idosos, entre outros. Assim, ofícios tradicionais apreendidos ainda na infância no seio familiar passou a constituir uma moeda de troca para entrar na cadeia produtiva local. A culinária artesanal é uma dessas atividades, tendo importante função na constituição da identidade de suas produtoras. Tal prática muitas vezes suplanta o espaço doméstico e chega ao espaço público, contribuindo para dar visibilidade e reconhecimento às suas produtoras, reconhecidas como mantenedoras de um ofício tradicional e de uma culinária identitária. Neste âmbito está a atividade turística, que proporciona maior visibilidade às doceiras, na medida em que valoriza uma tradição que reflete a identidade e o patrimônio cultural local, proporcionando uma valorização econômica, cultural e social. REFERÊNCIAS DELGADO, Andréa Ferreira. Memória, trabalho e identidade: as doceiras da cidade de Goiás. Cadernos Pagu. Campinas, n.13, p.293-325, 1999. DIEZ-GARCIA; Rosa; CASTRO, Inês R.R. A culinária como objeto de estudo e de intervenção no campo da Alimentação e Nutrição. Ciência e Saúde Coletiva, vol. 16, núm. 1, janeiro, 2011, pp. 91-98. FIGUEIREDO, Marina Dantas de; CAVEDON, Neusa Rolita. Com açúcar, com afeto? A profissionalização do fazer amador de doces artesanais de Pelotas. Revista Interdisciplinar de Gestão Social – RIGS. Set/dez. 2012. V.1, n.3, p. 79-99. ISSN: 2317-2428. Disponível em: http://www.rigs.ufba.br/pdfs/RIGS_v1_n3_art4.pdf. Acesso em: 13.jan.2015. FREYRE, G. 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São Paulo: Coordenadoria Especial da Mulher, 2003 II Congresso Internacional Sobre Culturas 26 ME CONTA UNIVERSIDADE LIVRE DO MÉDIO RIO DAS CONTAS: CULTURA, PARTICIPAÇÃO E DESENVOLVIMENTO Luciano Simões14 RESUMO O artigo compartilha as conclusões do estudo de caso do projeto ME CONTA Universidade Livre do Médio Rio das Contas realizado entre 2011 e 2015 no âmbito do programa de doutorado multidisciplinar “Cultura e Sociedade” do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC-UFBA). O ME CONTA é um projeto concebido pelo Instituto Cultural Casa Via Magia e tem como foco o Território de Identidade Médio Rio das Contas do Estado da Bahia. Analisamos neste artigo como o ME CONTA contribuiu para ampliar, diversificar e fortalecer a participação dos sujeitos locais nos processos de fortalecimento da cultura e desenvolvimento territorial e suas convergências com a Política de Territorialização da Cultura do Governo do Estado da Bahia. Palavras Chave: Identidade territorial, desenvolvimento, cultura e participação. Escrever sobre a história da minha família me traz muita alegria e vontade de continuar vivendo para poder escrever mais e contar mais histórias (...). Antes de qualquer coisa, peço a bênção e licença ao meu pai, Aurelino Ferreira Costa, e aos meus antepassados para poder falar nos nomes deles e dizer aquilo que penso sobre a vida de cada um (...). Desde pequena sempre prestei atenção na maneira de viver do meu pai. Seu jeito de ser, sua crença e o seu modo de ver a vida eram coisas que por vezes me faziam refletir. O meu pai que durante muito tempo (...) dizia falar com Deus, recebia visita de alguns mortos, dizia ter visões em sonhos e uma fé inabalável em Deus. Ele que cresceu participando da fé Católica complementada no Candomblé e na Umbanda, pois meu avô Pompílio era curador, raizeiro; fazia rituais de “macumba”, assim diziam as más línguas! (...) Além disso, cantava para Santo Reis e fazia caruru! (...) Ele também criava novas letras de samba e tocava todos os instrumentos do Terno. (...) Apesar de eu me identificar muito com essa folia, por vezes eu cheguei a sentir vergonha de dizer que minha família era reiseira. Na escola eu ouvia vagamente a respeito das culturas populares e me lembro de uma apresentação em que todos os meus colegas, e eu, estávamos envergonhados em estar ali na frente apresentando... (Elisiária Ferreira Costa) 14 Luciano Simões é Doutor pelo Programa Multidisciplinar Cultura e Sociedade (IHAC-UFBA), professor do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas (CECULT) da Universidade Federal do Recôncavo (UFRB). E-mail: lucianosimoessouza@gmail.com II Congresso Internacional Sobre Culturas 27 Estas são as palavras introdutórias do livro que Elisiária Ferreira Costa está escrevendo sobre a história da sua família. Nascida em São Sebastião da Goaiabeira, comunidade rural localizada na região do semiárido de Boa Nova, Elisiária faz parte da quarta geração do reisado que foi chefiada durante 30 anos por seu pai, Aurelino Ferreira Costa. Em 2010, apoiada pela equipe do Instituto Cultural Casa Via Magia15, Elisiária roteirizou e dirigiu o documentário Reisados de Boa Nova, que narra a história dos grupos que realizam a folia de reis nas comunidades rurais da cidade de Boa Nova. O caminho trilhado para compreender o reisado e os costumes de sua família foi para ela bem sinuoso: Quando cheguei à escola me senti estranha, ninguém falava de reza, de reisado, me sentia um ser estranho. Queria entender. (...) A geração de meu pai é toda ligada a traços da cultura indígena, africana, sobretudo em relação à religiosidade. (COSTA, 2013). Foi neste contexto de um ambiente cultural rico, com fortes tradições, mas também marcado por processos de negação dentro das próprias comunidades que se desenvolveu o ME CONTA Universidade Livre do Médio Rio das Contas, projeto que articula os campos da cultura, da educação e da ecologia para potencializar o desenvolvimento local e inclusivo. O ME CONTA foi concebido e é liderado pelo Instituto Cultural Casa Via Magia e tem como foco 16 municípios16 que compõem um dos Territórios de Identidade da Bahia17 – o Médio Rio das Contas. Entre 2011 e 2015 realizei no âmbito do programa de doutorado multidisciplinar “Cultura e Sociedade” do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC-UFBA) o estudo de caso do projeto ME CONTA Universidade Livre do Médio Rio das Contas, cujas conclusões são compartilhadas resumidamente neste artigo. O objetivo da pesquisa foi analisar a experiência do projeto ME CONTA avaliando seus produtos, práticas artístico-culturais e atividades 15 educativas, O Instituto Cultural Casa Via Magia é uma associação civil sem fins lucrativos, fundada em 1982, cuja missão é “promover a cooperação cultural e o desenvolvimento comunitário, através do estímulo à educação, cultura e da pesquisa pedagógica sistemática, com vistas a contribuir para o auto-conhecimento e formas de expressão individual, assim como para a integração comunitária.” 16 Aiquara, Apuarema, Barra do Rocha, Boa Nova, Dário Meira, Gongoji, Ibirataia, Ipiaú, Itagi, Itagiba, Itamari, Jequié, Jitaúna, Manoel Vitorino, Nova Ibiá, Ubatã, numa área equivalente a 10.033 km² e com um total de 367.991 habitantes 17 Cf. SEPLAN, 2012. Com o objetivo de identificar prioridades temáticas definidas a partir da realidade local, possibilitando o desenvolvimento equilibrado e sustentável entre as regiões, o Governo da Bahia passou a reconhecer a existência de 27 Territórios de Identidade, constituídos a partir da especificidade de cada região. Sua metodologia foi desenvolvida com base no sentimento de pertencimento, onde as comunidades, através de suas representações, foram convidadas a opinar. II Congresso Internacional Sobre Culturas 28 identificando os aspectos do processo que se mostraram favoráveis ao fortalecimento da cultura e ao desenvolvimento local. Através da pesquisa, também se buscou refletir sobre os pontos de convergência entre as estratégias do ME CONTA e a Política de Territorialização da Cultura do Governo do Estado da Bahia em relação a processos de fortalecimento de identidade territorial e de empoderamento da sociedade civil. O projeto ME CONTA Universidade Livre do Médio Rio de Contas vem sendo desenvolvido desde 2007 e tem como ponto de partida a realização de um levantamento das riquezas socioculturais e ambientais de cada município envolvido que, uma vez sistematizadas em materiais impressos e digitais passam a ser compartilhadas com a comunidade, gerando propostas de ações de desenvolvimento local que tenham a cultura como mola propulsora principal. A partir dessas representações identitárias territoriais, o ME CONTA desenvolve práticas culturais e educativas com o objetivo mobilizar e capacitar as comunidades a atuarem em iniciativas voltadas para o seu desenvolvimento. Dentre estas práticas, estão a produção das Enciclopédias da Cidade, a realização anual da Caravana do Mercado Cultural, a realização de cinco edições do Festival de Reisados e a criação e gestão do Museu do Processo, iniciativas adotadas como objeto de estudo na pesquisa. A Enciclopédia da Cidade é uma peça de comunicação, através da qual é apresentada uma leitura do patrimônio material e imaterial de cada município. A perspectiva é que uma vez pesquisado, sistematizado e compartilhado o conhecimento sobre este patrimônio, sejam pensadas e desenvolvidas de ações de desenvolvimento local e um ciclo contínuo de produção de novas informações sobre o território. Na Caravana do Mercado Cultural produtores e artistas nacionais e internacionais visitam as cidades do Território de Identidade do Médio Rio das Contas, realizando em parceria com grupos locais um evento com shows musicais, apresentações teatrais, mostras de artes plásticas e de fotografia, exibições de vídeos, lançamento de livros, intervenções artísticas, seminários, oficinas, trilhas ecológicas e as Feiras de Arte, Artesanato e Projetos. Realizado anualmente, o Festival de Reisados é o encontro de grupos de folia de reis nas praças públicas da cidade de Boa Nova. O Festival de Reisados vem criando possibilidades de intercâmbio entre comunidades rurais não apenas em relação às músicas, danças, brincadeiras e religiosidade, mas também em relação aos seus cotidianos, formas de produzir, de viver. Compõe também a programação do Festival, um seminário com reflexões sobre estas manifestações. Tanto o Festival de Reisados II Congresso Internacional Sobre Culturas 29 quanto a Caravana do Mercado Cultural envolvem processos de planejamento com o poder público e com sociedade civil de cada uma das cidades envolvidas, a capacitação em produção cultural dos atores locais, a mobilização comunitária e debates públicos sobre a articulação entre estas iniciativas e potenciais projetos culturais e de desenvolvimento para as cidades e para o Território Médio Rio das Contas. O Museu do Processo, inaugurado em 2011 na cidade de Boa Nova, é um espaço cultural que disponibiliza para a comunidade um acervo de livros e audiovisuais com temas relacionados à cultura, ao meio ambiente e à educação, incluindo as produções realizadas no projeto ME CONTA (Enciclopédias da Cidade, documentários, fotografias, exposições, etc). O Museu do Processo realiza exposições multimídia e desenvolve capacitações para professores, estudantes e agentes culturais, se propondo a ser um centro dinâmico de promoção da cultura e produção de conhecimento, valorizando as manifestações populares e o patrimônio natural do Médio Rio das Contas. O objetivo geral do projeto ME CONTA é Promover, na região do Médio Rio das Contas e cidades circunvizinhas, um centro de pesquisas e reflexões relacionadas a temas das áreas de educação, cultura e ecologia, incluindo as mais diversas fontes de saber (de origens científicas ou populares) e que visam, em última instância, o desenvolvimento sustentável da região e do seu entorno. (CASA VIA MAGIA, s/d, mimeo) A pedagogia do projeto ME CONTA se desenvolve a partir de três eixos de ação: “escutar”, “entender” e “expandir”. A prática do escutar compreende o esforço de pesquisa e sistematização do patrimônio material e imaterial de cada cidade onde o projeto está atuando, tendo como princípio incluir o olhar da própria comunidade sobre ela mesma e sobre seu contexto ambiental e cultural, incluindo o registro de uma ampla iconografia do local estudado. Já entender corresponde ao conjunto de seminários, oficinas e práticas, visando à formação de agentes sociais locais. A pretensão é ser um processo de educação contínuo, incluindo a capacitação em escolas, associações e instituições dos municípios da região. Expandir envolve difundir com maior abrangência as ações realizadas, a exemplo da participação dos municípios envolvidos nas quatro edições da Caravana do Mercado Cultural, entre 2009 e 2012, e da abertura de equipamentos culturais locais como o Museu do Processo. O ME CONTA produz um conhecimento compartilhado sobre o território (escutar), para formar agentes II Congresso Internacional Sobre Culturas 30 culturais (entender), cujas ações vão possibilitar a criação de redes e a implantação de parcerias em torno de ações mais amplas (expandir) em benefício de cada cidade e da região. A POLÍTICA DE TERRITORIALIZAÇÃO DA CULTURA, O ME CONTA E AS CONVERGÊNCIAS COM PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO Em 2003, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), através da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT), introduziu o Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais (PRONAT) com o objetivo de “promover o planejamento e a autogestão do processo de desenvolvimento sustentável dos territórios rurais e o fortalecimento e dinamização de sua economia” (DIAS, 2006). Desse programa, surgiu a Política de Territórios Rurais que na Bahia recebeu posteriormente a denominação de Territórios de Identidade. A Bahia aderiu ao Programa de Desenvolvimento Rural Sustentável onde foram identificados 27 Territórios de Identidade através de um processo que reuniu órgãos públicos federais, estaduais e organizações da sociedade civil. O processo de definição desses territórios envolveu aspectos culturais, geoambientais, político-institucionais e econômicos. Os Territórios de Identidade passaram a se constituir a unidade de planejamento das políticas públicas do estado da Bahia. Os programas de desenvolvimento territorial passaram a atuar proativamente na inclusão dos diferentes segmentos sociais e dos múltiplos grupos de interesses presentes no território, sendo o protagonismo dos atores sociais um meio para desenvolvimento das políticas e a ampliação da democracia um dos principais resultados esperados. O Território de Identidade também ampliou a visibilidade dos espaços rurais, resgatando sua importância como espaço de vida, de produção, de relações com a natureza, bem como de demandas por serviços, equipamentos públicos e garantia de direitos. Assim, as políticas culturais passam a ter um papel estratégico em uma abordagem territorial do desenvolvimento que tem por base reconhecer, respeitar, valorizar e integrar as diversas culturas, indivíduos e grupos sociais. Alinhada ao conjunto de políticas do governo estadual, a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia passou adotar, desde 2007, os Territórios de Identidade como foco prioritário de direcionamento de suas políticas, concebendo e liderando uma política de Territorialização da Cultura, entendida como um processo de reconhecimento das II Congresso Internacional Sobre Culturas 31 diversas manifestações culturais presentes nesses territórios e a implementação e consolidação de políticas culturais no interior do estado e na periferia de Salvador, através de metodologias participativas, debates e consultas públicas. Na prática, a territorialização da cultura significou a implantação de uma base organizacional estruturante para a descentralização de políticas culturais; a organização e a consolidação do Sistema Estadual de Cultura e a descentralização do financiamento público estadual da cultural. A Política de Territorialização da Cultura e as oportunidades de financiamento estatal dela decorrentes foram fundamentais para que o Instituto Cultural Casa Via Magia adotasse o Território de Identidade do Médio Rio das Contas como abrangência e foco de atuação do projeto ME CONTA. Vale destacar que, para além da relação instrumental de financiamento, o ME CONTA tem muitos valores e objetivos comuns em relação à Política de Territorialização da Cultura, entre os quais, o empoderamento de atores locais, a perspectiva multidimensional de desenvolvimento, a democratização de processos decisórios, a transversalidade e o conceito ampliado de cultura. A Política de Territórios de Identidade aposta na perspectiva que a identidade territorial desempenha um papel estratégico nos programas de desenvolvimento local e endógeno. A consciência de pertencer a uma comunidade, a um lugar, a um território e os laços de solidariedade e unidade entre os indivíduos favorecem a mobilização dos cidadãos em torno da concepção e atuação em projetos coletivos. A concretização dos Territórios de Identidade envolveu, portanto, dois processos distintos e complementares: as regionalizações construídas no cotidiano dos habitantes a partir de uma apropriação simbólica e material do território e as regionalizações institucionais como base de estratégias estatais de desenvolvimento regional/territorial. A regionalização institucional resultou da atuação do Estado através de mecanismos de intervenção, atos administrativos e legislativos, investimentos econômicos que são simultaneamente instrumentos de desorganização da ordem precedente e organização da ordem proposta. Para instituir os Territórios de Identidade o Governo do Estado da Bahia adotou este recorte geográfico como foco das políticas públicas, institucionalizou espaços de participação na elaboração e gestão das políticas (CODETER18, CEDETER19, etc), criou instrumentos de planejamento (PDTS20) e 18 CODETER – Colegiado Territorial de Desenvolvimento CEDETER - Conselho Estadual de Desenvolvimento Territorial 20 PDTS – Plano de Desenvolvimento Territorial Sustentável 19 II Congresso Internacional Sobre Culturas 32 espaços de diálogo entre o governo estadual e os municípios (DIÁLOGOS TERRITORIAIS). A Secretaria de Cultura contribuiu com esta regionalização institucional ao criar as Conferências Territoriais, os Planos de Desenvolvimento Territorial da Cultura. O Edital Territórios de Identidade do Fundo de Cultura estimulou o surgimento de projetos culturais em que a articulação da sociedade civil extrapolasse os limites dos municípios e atuasse em torno do Território. A outra regionalização, construída pela sociedade, ocorre a partir da postura ativa dos grupos e agentes sociais no espaço regional que vão consolidando uma consciência regional. O sentimento de pertencimento é estruturante do processo de regionalização. Os indivíduos pensam em si mesmo como membros de uma coletividade na qual seus símbolosestão atrelados àquele espaço geográfico, ou seja, há um sentimento e uma crença de pertencerem aquele Território. O desafio é a convergência desses dois processos. As pesquisas e representações identitárias vivenciadas no ME CONTA contribuíram de forma significativa com o sentimento de pertencimento dos indivíduos em relação ao Território de Identidade do Médio Rio das Contas. Um aspecto importante da experiência foi o fato de que os elementos que foram destacados como constitutivos da identidade de cada território e das comunidades foram reconhecidos predominantemente a partir das vivências cotidianas, lúdicas e de celebração das comunidades. Foram apropriações que levaram em conta o valor dos lugares, com forte dimensão afetiva, arraigados na experiência cotidiana compartilhada localmente pelos integrantes das comunidades envolvidas, o que difere de processos de representação para fins econômicos através dos quais se prevalecem descrições em que se projetam imagens ou valores culturais que atendam a uma pretensa expectativa de mercado. No ME CONTA, as pesquisas sobre as cidades e a partilha de imagens e relatos deram as comunidades uma maior consciência sobre seu próprio patrimônio, colocando a cultura na agenda sobre o desenvolvimento local e criando situações em que ações culturais foram vivenciadas e debatidas de forma transversal às questões de educação, meio ambiente, geração de renda e conquistas de direitos sociais. Numa perspectiva crítica de desenvolvimento, ao se pensar na construção de uma sociedade democrática, inclusiva, que respeite e promova a diversidade cultural, o próprio sentido de desenvolvimento é um aspecto importante a ser discutido, por isso, um dos grandes desafios do ME CONTA e da Política de Territorialização da Cultura é que o envolvimento do campo da cultura em processos de desenvolvimento não se dê de II Congresso Internacional Sobre Culturas 33 forma meramente instrumental, mas que seja capaz de produzir debates sobre os projetos políticos das cidades e do Território de Identidade. Refletir sobre quem está incluído nos processos de decisão e como se articulam as questões econômicas, políticas, sociais e ambientais de maneira que não se reproduza o efeito excludente e ambientalmente insustentável do modelo de desenvolvimento até então vigente no Brasil. É importante que o direito cultural seja valorizado como um fim em si mesmo, evitando reduzir o campo da cultura a um instrumento a serviço de outros fins, tais como geração de renda, defesa do meio ambiente, combate à violência, inclusão social. Questionar a necessidade de ter o desenvolvimento como meta central de um território considerando o modelo hegemônico não significa ignorar as demandas das comunidades deste território por mais acesso à renda e aos direitos sociais básicos de qualidade, tais como saúde, segurança, educação e lazer. Há uma relação estreita entre a questão da pobreza e a ameaça à diversidade cultural, uma vez que a maioria dos pobres pertence a culturas oprimidas (LANGON, 2003, p. 74). O turismo ecológico, comunitário e cultural, a produção e comercialização de produtos orgânicos provenientes da agricultura familiar, o fomento ao artesanato foram alternativas experimentadas e/ou propostas no contexto do ME CONTA que podem ser retomadas, debatidas coletivamente e melhor apropriadas pelos participantes do projeto. Para aproveitar tais oportunidades, seria estratégico que o processo iniciado pelo ME CONTA de pesquisa e relato das singularidades locais pudesse ser continuado a partir da ampliação da autonomia de diferentes grupos da comunidade de (auto) reconhecer seus próprios territórios, culturas, identidades, produzindo seus próprios relatos e intercâmbios. Outra perspectiva de se potencializar a dimensão econômica da cultura está no fato de que a própria atividade artístico-cultural pode ser mobilizadora de recursos que permitam a manutenção e aperfeiçoamento de suas vivências e a sustentabilidade dos seus praticantes. É fundamental dar continuidade e ampliar o processo de empoderamento dos atores locais para que suas participações não fiquem restritas a realização de eventos ou ao empreendedorismo. Não se trata apenas na questão de se pensar em projetos culturais, ou capacitá-los a buscar recursos, mas de haver uma efetiva diversidade de atores locais, sobretudo as comunidade rurais, atuando em espaços e em dinâmicas de reflexão e de decisão sobre seus projetos de vida coletivos. A partir disso, as competências instrumentais, tais como a capacidade de buscar recursos e acessar novas redes de parceria e a possibilidade de concorrer de forma mais II Congresso Internacional Sobre Culturas 34 qualificada aos recursos públicos e privados são fundamentais. É estratégico conhecer as formas de financiamento no campo da cultura, da educação, do meio ambiente, do turismo e das políticas de desenvolvimento, aprendendo a lidar de forma transversal e intersetorial com estas áreas e fontes de recursos. Quanto mais articulações e redes houver, mais sustentável tende a ser o processo de empoderamento das comunidades capacitadas a acionar os recursos próprios, oriundos de trocas com outros territórios e dos investimentos públicos. A criação de uma afinidade cultural e geográfica entre os municípios do Médio Rio das Contas poderia produzir um mercado de circulação de bens culturais, estimulando e apoiando o associativismo entre os grupos de cultura popular e destes com redes externas diversificadas. Em relação ao processo de empoderamento dos atores locais em torno de projetos comuns de fortalecimento da cultura e de desenvolvimento local, ainda há uma longa trajetória a percorrer para que estes grupos tomem decisões e liderem processos com impactos mais estruturantes sobre suas vidas. A experiência do ME CONTA se alinha a proposição de que o patrimônio cultural, ambiental pode ser o eixo estruturante do desenvolvimento das cidades. Mas isso só acontece se a comunidade se apropriar e gerir seu próprio patrimônio. Em todas as cidades do Médio Rio das Contas há uma tradição de gestão pública excludente, hierarquizada e clientelista. A mobilização popular para lidar com decisões amplas de desenvolvimento é em si um ato político, mas demanda novos e continuados processos educativos. O cidadão precisa reconhecer a riqueza daquilo que possui coletivamente, para tomar parte ativa no processo de desenvolvimento, aspecto bastante trabalho no ME CONTA e que requer continuidade. Um dos méritos do ME CONTA foi ter se vinculado a um Território de Identidade que, até então, demonstrava pouca força e trajetória de articulação. O ME CONTA contribuiu para o conhecimento e valorização dos saberes, valores, estéticas e modos de vidas das comunidades rurais ao representa-las a partir de aspectos afirmativos de sua cultura e abrir espaços privilegiados de participação nas ações de intercâmbio cultural. O desafio atual é fortalecer os processos de planejamento coletivo, de maneira que sejam ao mesmo tempo capacitadores, dialógicos, participativos, envolvendo sistematicamente os diversos atores existentes no território responsáveis pela cultura local no dia a dia. Na construção social do território, pactos territoriais e propósitos comuns compartilhados não advêm de consensos fáceis, envolvem práticas de II Congresso Internacional Sobre Culturas 35 construção coletiva, algo além de um evento. A participação dos atores sociais é diferenciada, se desenvolve em esferas marcadas por desigualdades, relações de conflito e de poder. As diferenças socioeconômicas, simbólicas e políticas funcionam como obstáculos à participação, podendo inclusive aprofundar a desigualdade política no âmbito dos próprios dispositivos participativos. O processo de participação tende a se fragilizar com o tempo, quando não está vinculado a um processo continuado de aprendizagem, entendido também como desconstrução-reconstrução de padrões culturais. As políticas culturais também se concretizam quando intervêm em espaços políticos, dão novos significados às interpretações culturais dominantes da política, ou desafiam práticas políticas estabelecidas (DAGNINO, 2000, p. 23). Sem isso, corre-se o risco de envolver grupos anteriormente excluídos de forma subordinada. BIBLIOGRAFIA ÁLVARES, Sonia E; DAGNINO, Evelina; ESCOBAR, Arturo. Cultura e política nos movimentos sociais latino americanos: novas leituras. Belo Horizonte: UFMG, 2000. ARAÚJO, Tânia B. Desenvolvimento Regional Brasileiro e Políticas Públicas Federais no Governo Lula. In: SADER, E. 10 Anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro, FLACSO Brasil, 2013. BARBALHO, Alexandre. Política cultural. In: RUBIM, Linda (org). 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II Congresso Internacional Sobre Culturas 37 OS ESTUDOS SOBRE HÁBITOS E PRÁTICAS DE CONSUMO CULTURAL COMO INDICADORES DE DESENVOLVIMENTO Sérgio Sobreira Araújo 21 Kadma Marques Rodrigues22 RESUMO Este trabalho traz o registro parcial do desenvolvimento de pesquisa de pós-doutorado que está sendo realizada pelo autor, com a colaboração e supervisão da coautora, e que tem por objetivo analisar como os indicadores sobre hábitos e práticas de consumo cultural, apresentados por três pesquisas realizadas nos últimos anos e dedicadas especificamente ao estudo do consumo de cultura no Brasil – Públicos da Cultura (SESC/Fund. Perseu Abramo, 2013) Consumo Brasileiro de Práticas Culturais (Panorama Setorial da Cultura Brasileira, 2013/2014) e Cultura em SP (J. Leiva, 2013), podem favorecer à formação de um quadro de referência com capacidade de mensurar e delimitar os enlaces entre cultura e desenvolvimento no Brasil. Palavras-chave: Cultura. Desenvolvimento. Consumo Cultural. Hábitos. Públicos. Até recentemente, o Brasil padecia de uma triste tradição de ausência de dados e informações quantitativas sobre o campo da cultura, que só começou a ser desfeita nos últimos vinte anos com algumas abordagens dispersas. Em 1996, no início da gestão de Paulo Gaudenzi a frente da Secretaria da Cultura do Estado da Bahia, foi realizado o Programa de Estudos dos Indicadores Macroeconômicos da Cultura – denominado de PIB Cultural – dimensionando, de forma inédita, o impacto da atividade cultural baiana no processo de desenvolvimento do Estado. O programa foi reeditado em 1997 e, tendo chegado ao conhecimento do Ministro Wetfort, levou o Ministério da Cultura a encomendar a Fundação João Pinheiro (MG) um estudo sobre a participação da Cultura no PIB nacional (GAUDENZI in ARAÚJO, 2007:85), posteriormente publicado com o título de Economia da Cultura (BRASIL, 1998). O documento tinha o objetivo de avaliar o impacto dos investimentos públicos e privados em cultura na economia brasileira, no período entre 1985 e 1995. Em 2003, o IBGE iniciou o Sistema de Informações e Indicadores Culturais 2003-2005, cujos resultados foram publicados em 2007. 21 Doutor em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia. Professor Adjunto da Faculdade de Comunicação da UFBA, sergiosa@ufba.br. 22 Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. Professora Adjunta do curso de Ciências Sociais e Coordenadora do Programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Estadual do Ceará - UECE, kadmamarques@yahoo.com.br. II Congresso Internacional Sobre Culturas 38 Apesar de estudos sobre políticas culturais e outras temas conexos terem se expandido em volume e qualidade de produção, como pode ser exemplificado nas inúmeras publicações do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura – CULT, ligado a Universidade Federal da Bahia e do Itaú Cultural, entre outros, a pesquisa com base em dados quantitativos em cultura só agora alcança patamares mais abrangentes. A partir de 2013, foram publicados novos indicadores sobre hábitos e práticas de consumo cultural, apresentados por três pesquisas realizadas nos últimos anos e dedicadas especificamente ao estudo do consumo de cultura no Brasil – Públicos da Cultura (SESC/Fund. Perseu Abramo, 2013) Consumo Brasileiro de Práticas Culturais (Panorama Setorial da Cultura Brasileira, 2013/2014) e Cultura em SP (J. Leiva, 2013). A emergência desse inédito banco de dados sobre consumo de cultura no Brasil – antes havia algumas abordagens de nicho, sobre números de leitores ou ingressos vendidos em cinema, etc. – instigou o autor deste trabalho a propor novas possibilidades de investigação e análise. Canclini (2010) propõe em “Consumidores e cidadãos” que “as mercadorias servem para pensar”, portanto, pode-se presumir que os hábitos e práticas de consumo de cultura fornecem pistas e permitem obter muitas leituras sobre a realidade brasileira no campo da cultura. No caso dessa pesquisa, o que o autor propõe é verificar se esses indicadores revelados pelos hábitos e práticas de consumo permitem se inferir o estágio de desenvolvimento cultural brasileiro e qual seria a arquitetura ideal para constituir essa prefiguração. Alguns desafios estão colocados, tanto de ordem epistemológica quanto de caráter metodológico e operacional. O primeiro deles é definir que perspectiva de desenvolvimento está sendo adotada pela pesquisa e, a partir dessa definição, quais parâmetros podem ser adotados. O segundo é delimitar as categorias e métricas de análise dos dados quantitativos para, por fim, proceder à interseção de análise entre estes e os parâmetros de desenvolvimento selecionados pela pesquisa. Este trabalho apresenta alguns componentes do processo de pesquisa em andamento, subdivididos em (1) Cultura e Desenvolvimento e (2) Cultura e Consumo. CULTURA E DESENVOLVIMENTO Os enlaces entre cultura e desenvolvimento emergiram com mais evidência e sistematicidade no meio acadêmico e no ambiente político institucional a partir da segunda metade do século XX, mas somente em 1966 é que surge, no âmbito da II Congresso Internacional Sobre Culturas 39 UNESCO, o primeiro elemento de reflexão sobre as políticas culturais e o desenvolvimento ao constar no artigo primeiro da Declaração de Princípios sobre a Cooperação Cultural que: 1. Cada cultura tem uma dignidade e um valor que devem ser respeitados e preservados; 2. Todo o povo tem o direito e o dever de desenvolver a sua cultura; 3. Na sua rica variedade e diversidade e nas influências recíprocas que exercem entre si, todas as culturas fazem parte do património comum de toda a humanidade (www.unesco.org). Aspectos como “valor”, “patrimônio”, “preservação”, “diversidade”, “direitos” e “deveres” ao serem acionados demarcam as configurações iniciais dessa relação em que a cultura é entendida como algo valioso em si, mas que também tem o poder de influenciar de forma determinante a melhoria da vida humana. Em 2005, a Convenção para a Proteção e Promoção da Diversidade Cultural avança na demarcação dessa relação ao estabelecer entre seus objetivos que vai: f) Reafirmar a importância da ligação entre cultura e desenvolvimento para todos os países, em particular para os países em desenvolvimento, e apoiar as ações empreendidas a nível nacional e internacional para garantir o reconhecimento do verdadeiro valor desta ligação; (idem). Nos princípios orientadores da mesma Convenção são estabelecidos: 5. Princípio da complementaridade dos aspectos econômicos e culturais do desenvolvimento. Uma vez que a cultura é um dos principais motores do desenvolvimento, os aspectos culturais do desenvolvimento são tão importantes quanto os seus aspectos econômicos, que os indivíduos e os povos têm o direito fundamental de participar e desfrutar. 6. Princípio do desenvolvimento sustentável. A diversidade cultural é um bem rico para os indivíduos e as sociedades. A proteção, a promoção e a manutenção da diversidade cultural são um requisito essencial para o desenvolvimento sustentável em benefício das gerações presentes e futuras. (ibidem) Após quase quarenta anos, o avanço no foro internacional em termos de vinculação entre cultura e desenvolvimento alcançaram a condição de ordenamento explícito, com a cultura alçada ao protagonismo de ser um dos motores do desenvolvimento. Por outro lado, é preciso considerar ainda que os marcos legais exarados no âmbito da UNESCO, além das repercussões e implicações jurídicas e institucionais, refletem tanto a progressão dos embates (com avanços, hiatos e recuos) no plano das políticas culturais, quanto a primazia que a cultura alcança na II Congresso Internacional Sobre Culturas 40 contemporaneidade, como afirma Paulo Miguez (2014) em “Cultura, diversidade cultural e desenvolvimento”: Recorrendo à gramática das relações internacionais, pode-se dizer, portanto, que o lugar destacado de que desfruta a cultura no contexto contemporâneo sugere seu deslocamento do amplo leque das low politics (educação, saúde, emprego, segurança etc.) na direção das high politics, repertório com sua exclusiva e restrita agenda de temas considerados vitais para os Estados, como política exterior, comércio internacional, defesa e segurança. A expansão do campo tem adensado sua conceituação e tantos são seus modos de interpretação (Thiry-Cherques aponta quatorze exemplos de definição de cultura em “De falácias e de Cultura”, 2001) que Jean-Claude Passeron adverte que a cultura “é o mais proteiforme dos conceitos sociológicos [...] é o termo que leva ao labirinto mais vertiginoso de uma biblioteca babeliana” (PASSERON apud FLEURY, 2009, p.13). A cultura se espalhou de tal modo por outros campos da vida social que favoreceu aquilo que George Yúdice (2004) denomina de usos da cultura: a percepção da cultura como recurso e sua empregabilidade para as mais diversas finalidades. Entretanto, o protagonismo da cultura e de suas agendas na contemporaneidade não se dá sem tensões, especialmente na relação desta com o desenvolvimento. Ainda que o entendimento economicista de desenvolvimento como resultante de crescimento econômico esteja em declínio, a noção de desenvolvimento como um fenômeno endógeno, portanto “em busca de relações de preservação com o ambiente, aberto ao câmbio institucional e dependente da história, que se realiza sobre territórios, e que, por isso tudo, é dependente de fatores externos e internos a esses territórios”, proposta por Beth Loiola e Paulo Miguez (2007) em “Sobre cultura e desenvolvimento” e que reflete o conjunto de proposições e axiomas de diversos autores, não transcende plenamente a condição de formulação teórica, tendo em vista que sua aderência ao campo institucional e político brasileiro não se espraia com efetividade nas políticas públicas de cultura em curso, não obstante os incontáveis avanços das últimas duas décadas. O diálogo da dimensão econômica da cultura - um campo novo, avançado e inovador - com o estado, um setor marcado pela burocracia, pela inaptidão, inépcia é marcado pela falta de agilidade dos governos em absorverem os novos paradigmas que aquele campo propõe, conforme ilustra Yudhishthir Raj Isar: II Congresso Internacional Sobre Culturas 41 Mais aporias são causadas pela falta de coerência entre a política cultural, da forma como hoje é estruturada, e as realidades da economia cultural. As atividades e os processos dessa última “encontram-se incomodamente dentro da estrutura de políticas públicas”, como apontado por Pratt (2005: 31), que até agora tem se engajado de forma muito limitada na “baixa” cultura orientada ao mercado, enfocando a provisão das formas de “alta” cultura, que devem ser apoiadas e financiadas como bens públicos. Logo, a maior parte das indústrias culturais com fins lucrativos existe em tensão crescente com a maior parte do setor cultural sem fins lucrativos, que é o principal objeto da política cultural. [...] É claro que há muitas interconexões entre atividades culturais subsidiadas, comerciais e voluntárias, mas essas não são suficientemente reconhecidas. Há fragmentação nas estatísticas relativas a tais fenômenos culturais mensuráveis, como o desempenho das indústrias criativas, suas taxas de crescimento e o impacto das iniciativas tomadas para incentivá-las (ISAR, 2000, p.44). O efeito acumulado de tais frustrações nos últimos anos transformou as indústrias culturais de todas as partes em algo “irritante” (PRATT, 2005: 31) para os responsáveis por políticas culturais, porque são tão dirigidas pelos valores de mercado enquanto promovem estéticas alternativas, e também porque as suas contribuições têm de ser medidas em termos que desafiem as suposições nas quais a política cultural tem se baseado até agora. De modo inverso, os agentes da indústria cultural acreditam que não são compreendidos de forma adequada pelos formuladores das políticas culturais. (ISAR in REIS, org., 2008, p.84) De todo modo, é preciso estabelecer no contexto das políticas públicas a compreensão que o crescimento econômico não é um fim em si mesmo para o desenvolvimento. Se o desenvolvimento é um processo de “apropriação universal pelos povos da totalidade dos direitos humanos, individuais e coletivos, (incluindo-se nesse contexto os direitos políticos, civis, sociais, econômicos e culturais, os direitos coletivos ao desenvolvimento, ao meio ambiente e à cidade)” Bobbio(1990) e Lafer(1994), o crescimento econômico passa a ser um dos meios através dos quais o ser humano poderá ter acesso aos direitos que lhes são devidos. Amartya Sen (2010) vai além e declara que “o desenvolvimento pode ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam”. Para ele, os fatores que podem promover a expansão dos diferentes tipos de liberdades humanas estão inter-relacionados. “A privação de liberdade econômica pode gerar a privação de liberdade social, assim como a privação de liberdade social ou política pode, da mesma forma, gerar a privação de liberdade econômica. [...] Liberdades de diferentes tipos podem fortalecer umas às outras”. Celso Furtado (1984) afirma que a cultura de uma sociedade é o que define a sua visão de desenvolvimento assim como as condições que irão lhe permitir sua II Congresso Internacional Sobre Culturas 42 consecução. Portanto, uma sociedade desenvolve-se na medida da sua compreensão sobre o sentido e o significado do desenvolvimento, e esse significado é, em grande parte, construído no domínio da cultura. Nesse sentido, podemos estimar que o próprio desenvolvimento é uma expressão cultural, pois modelos de desenvolvimento articulam percepções e respostas aos problemas que as sociedades enfrentam, logo guardam atinência aos modos de ser e viver, aos valores, às características e condições de vida, ou seja, ao repertório cultural. CULTURA E CONSUMO Para entender as motivações de consumo das artes por parte da população brasileira, e, por conseguinte, sobre os impactos dessas conformações nas cadeias produtivas do setor cultural, estabelecemos como esteio conceitual as perspectivas operacionais trazidas pela sociologia da cultura que concentra sua análise nos “bens de cultura” disponíveis (objetos, artefatos e obras como quadros, esculturas, espetáculos, shows, exposições, mas também os serviços que organizam a gestão, a difusão, os usos sociais etc.). Como afirma Hannah Arendt (1972), “A cultura concerne aos objetos”, reiterada por Béra e Lamy (2015) quando afirmam que “o processo de objetivação da cultura [...] corresponde também à realidade prático econômica: o desenvolvimento das indústrias culturais induz a “mercantilização” e confirma que a cultura é antes de tudo uma questão de objetos”. Nessa perspectiva, descrever e compreender como coisas, atividades e pessoas são qualificadas de “culturais” consiste em analisar os processos e mecanismos coletivos que lhes conferem uma especificidade e uma identidade próprias, e depois repertoriar os diversos efeitos sociais que deles provém nas esferas política, econômica e simbólica. A esta perspectiva se soma a defesa que Canclini faz (2010), de que o consumo também serve para pensar já que consumir, para além de seu sentido etimológico – gastar, absorver – se aplica indistintamente a bens, objetos, serviços, informações, constituindo um sistema de significados capaz de dizer sobre os sujeitos e os círculos de pertencimento aos quais eles se filiam. O consumidor é um ator social e o que ele consome reflete suas aspirações, desejos, valores e necessidades, sobretudo aquelas que se inscrevem na formulação simbólica das imagens e no trânsito destas nas formas contemporâneas de mediação e interação social. II Congresso Internacional Sobre Culturas 43 O prazer estético em viver determinadas experiências artísticas enquanto público de ações, expressões e manifestações culturais formam o gosto e, em decorrência deste, estabelecem padrões de consumo cultural. Para Bourdieu, o gosto seria determinado por um habitus de classe em que as instâncias primárias de socialização (família e escola) têm um papel preponderante. Entretanto, para Bernard Lahire (2006), o habitus de classe não é mais suficiente para explicar o consumo de cultura, pois a complexidade do mundo contemporâneo implica que o sujeito está sob a influência de diversos fatores. A dualidade entre classes é um conflito de alcance limitado posto que, a partir do advento de novas formas de socialização, o acesso ao repertório cultural tornou-se mais amplo, favorecendo o fenômeno do ecletismo cultural no qual as distinções entre alta cultura e baixa cultura têm seus sentidos esvaziados em favor de uma heterogeneidade que permite aos indivíduos acessarem e consumirem formas culturais indistintas da “classe” a que pertencem. Na perspectiva do enfoque associativo entre cultura & desenvolvimento, este trabalho está verificando como os enquadramentos e categorias operacionalizados pelas pesquisas citadas: compostos censitários (idade, sexo, renda, escolaridade, profissão, estado civil etc.), usos do tempo livre, frequência, assiduidade, gostos, hábitos, preferências, informação, mediação etc., são capazes (ou tem a potencialidade) de apresentar referências e insumos para ilustrar o enriquecimento cultural brasileiro que é, no dizer de Celso Furtado (1984) a razão para o desenvolvimento. A essa operacionalização serão necessários outros desdobramentos de investigação e procedimentos metodológicos como, por exemplo, pesquisar e analisar o sistema de distribuição de bens e serviços culturais. Sabe-se que no Brasil apenas 10,4% dos 5.570 municípios brasileiros têm ao menos um cinema, 23,4% possuem teatro ou sala de espetáculos, 27,2%, museu, e 37%, centro cultural. Os dados, de 2014, são da Pesquisa de Informações Básicas Municipais do IBGE. Com esse gargalo, problematizado pela concentração dos equipamentos culturais em cidades com mais de 500 mil habitantes nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, as condições de acesso e fruição da oferta cultural antecipam um quadro de dificuldades ante aos parâmetros de desenvolvimento sugeridos. Outros componentes como a centralidade da televisão aberta na mediação cultural brasileira (está presente em 100% dos municípios e faz parte do hábito diário da maioria da população), precisam ser analisados quanto ao impacto da cultura de massa na formação do gosto e dos hábitos de consumo, sobretudo quanto a formação de II Congresso Internacional Sobre Culturas 44 hegemonias em favor da indústria cultural. A pesquisa segue em curso com previsão de conclusão para julho de 2017, após o qual deverá ser publicada. REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. La Crise de la culture. Paris: ed. Gallimard, 1972. 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II Congresso Internacional Sobre Culturas 45 PERSPECTIVAS E POSSIBILIDADES DAS RELAÇÕES ENTRE BRASIL E PORTUGAL Antônio Albino Rubim Aos colegas da UBI Aos colegas Annamaria e Marcos Palácios Companheiros por uma ativa cooperação Brasil – Portugal “...essa carência de relacionamento, desde o econômico ao cultural, é, em certo sentido, menos um mistério que um escândalo...” Eduardo Lourenço A sugestão de priorizar a apresentação de trabalhos que se dediquem aos diálogos Brasil-Portugal no âmbito do Congresso Internacional de Cultura, como modalidade de tecer sua identidade e seu diferencial no proliferante arquipélago dos encontros de estudos, impôs como uma quase obrigação o esboço de algum trabalho inserido nesse universo de trocas, em especial, desenvolvidas no ambiente cultural. A diplomacia parece ser o lugar, por excelência, da conversação. Ela deve ser capaz de imaginar e efetivar as conexões entre as nações no registro apropriado de cooperação e intercâmbio. Ela, como modo de tratar as relações internacionais, possui diferenciadas dimensões: políticas, militares, econômicas e culturais. No texto não se acionam os fatores militares e econômicos, nem mesmo os políticos, em sentido estrito, das possíveis interlocuções Brasil-Portugal. O olhar está atento às potencialidades e aos impasses da cena cultural. Das dimensões mais políticas deve-se reter, com destaque, as recentes experiências democráticas desses países, ambos saídos, não faz muito tempo, de traumáticos autoritarismos: o Estado Novo de Salazar, em Portugal, e a Ditadura Militar, no Brasil. Experiências democráticas abaladas, de modo e em graus distintos, por crises também recentes. A crise da União Europeia, que atingiu e atinge Portugal, e o recentíssimo golpe midiático-jurídico-parlamentar, que se instalou em 2016 no Brasil, conformando um estado de exceção, com impactos dilacerantes sobre a vida democrática no país. II Congresso Internacional Sobre Culturas 46 Os episódios autoritários, paradoxalmente, possibilitaram, pela imposição do exílio, a realização de diálogos e trocas culturais, a exemplo da relevante presença de intelectuais portugueses no Brasil, vítimas da ditadura de Salazar. Nomes como Agostinho da Silva, Eduardo Lourenço e Miguel Urbano Rodrigues viveram o Brasil e deram contribuições nada desprezíveis aos enlaces Brasil-Portugal. Agostinho da Silva e Eduardo Lourenço, por exemplo, lecionaram na então Universidade da Bahia, tendo Agostinho da Silva papel destacado na criação do Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), primeiro órgão universitário no país voltado para os estudos africanos, tão necessários em uma Bahia e um Brasil marcados por potentes culturas negras afrobrasileiras e em uma África portuguesa que vivia os primórdios de sua luta pela independência, naqueles anos. A recente publicação do livro Eduardo Lourenço: Do Brasil Fascínio e Miragem, reunindo textos do autor, escritos entre 1945 e 2007, estimula um diálogo com e a partir do instigante pensamento do Eduardo Lourenço (Soares, 2015). Escritos na melhor tradição da tessitura de ensaios, que navegam no universo das constelações esboçadas por Theodor Adorno (Cohn, 1986), tais textos desvelam, com perspicácia, temáticas do mundo contemporâneo, com destaque para as possibilidades e impasses das relações entre Brasil e Portugal. O presente texto busca refletir sobre tais perspectivas, agora pensadas na circunstância contemporânea, que introduz novas e potentes variáveis com impacto notável sobre intercâmbios internacionais. OLHARES PRIMORDIAIS Como ponto de partida, Eduardo Lourenço crítica o mito de uma comunidade luso-brasileira. Para ele, as relações Brasil-Portugal têm que se estabelecer por meio do enfrentamento crítico de convergências e divergências que conformam a trajetória dos países e não a partir de uma comunidade idealizada. Ele busca, por exemplo, entender o nosso desconhecimento, aparentemente recíproco, mas revelador de posicionamentos distintos de brasileiros e portugueses. Tais comportamentos derivam de diferenciadas atitudes, a exemplo daquelas associadas às diversas maneiras de conceber a história comum dos dois países. Conforme Eduardo Lourenço, os brasileiros imaginam que sua história se inicia com a independência, olvidando todo nosso passado compartilhado, enquanto os portugueses encaram o Brasil, com atenção ao momento colonial, como sua II Congresso Internacional Sobre Culturas 47 própria criação, como fruto especial de sua larga presença no mundo e nesse singular espaço da América. Outro aspecto desenhado por Eduardo Lourenço, dentre os diversos visitados pelo autor para elucidar encontros e desencontros entre brasileiros e portugueses, diz respeito aos modos também distintos de estar e viver o mundo. Lourenço considera que os portugueses vivenciam seu passado, visto sempre com olhos de orgulho. Nada estranho que o tempo esplendoroso dos chamados descobrimentos, em que Portugal “mudou o mundo” (Page, 2008) ocupe centralidade na construção identitária de Portugal (Soares, 2015; Sobral, 2012). Já os brasileiros, conforme Eduardo Lourenço, sempre desatentos ao passado, à memória e à história, normalmente se alimentam e navegam em outro horizonte temporal: cultuam o futuro como destino inexorável de florescimento do país. O Brasil se diz e se reivindica reiteradamente como país do futuro. Tais dissonâncias poderosas tensionam culturalmente as possíveis interações entre estes países. A reivindicação e a possível idealização da história compartilhada tende a se contrapor ao esquecimento e mesmo rechaço ao passado comum. Olhares divergentes, atentos ao passado e ao futuro, parecem interditar ou dificultar convergências de visões acerca do presente e viabilizar parcerias culturais entre os dois países. Os desafios tornam-se imensos e exigem atitudes proativas para serem equacionados e enfrentados. Este breve trabalho retoma as inspiradoras observações de Eduardo Lourenço, contidas nos seus ensaios, para pensar as perspectivas, impasses e possibilidades das relações entre Brasil e Portugal no momento contemporâneo, no qual novos fatores disruptivos entram em cena. Como ele próprio reconheceu, com impressionante atualidade: hoje Portugal não só está na Europa, mas se encontra “...implicado vitalmente na empresa, de rara dificuldade, de construção de um espaço europeu de novo perfil e de futuro incógnito. Não menos verdade é que o Brasil está hoje implicado, como nação-piloto da América do Sul, na transformação ou refundição desse espaço...” (Lourenço, 1996, p.200). Em suma, além de uma história de afirmação e delimitação incrustada na Europa (Saraiva, 1998), detidamente nas disputas de demarcação com a Galícia e a Espanha, Portugal está, para o bem e para o mal, mais que nunca imbricado e inscrito no projeto europeu. Fundamental considerar essa novidade histórico em qualquer análise das possibilidades e impasses das relações Brasil-Portugal, pois tal inserção desvia a II Congresso Internacional Sobre Culturas 48 atenção e o olhar de Portugal sobre o Brasil. De modo semelhante, o Brasil atual, pelo menos até 31 de agosto de 2016, navegava em outros mares: cosmopolitas como requer o mundo contemporâneo, mas também atentos ao seu destino sul-americano e aos blocos inter-regionais de países, que igualmente definem a contemporaneidade. Tais inscrições também tendem a desviar a atenção e o olhar do Brasil sobre Portugal. Cabe perguntar, como essas atualíssimas dinâmicas imanentes aos processos de glocalização estimulam e inibem as conexões Brasil-Portugal. BRASIL NO MUNDO Durante muito tempo a inserção internacional do Brasil no mundo se deu de modo subordinado, seja pela condição de colônia de Portugal (1500-1822), seja pela posição de país dependente e subalterno às potências mundiais (Inglaterra e França e depois Estados Unidos da América). Só a partir dos anos 30 do século XX, o país começou a vislumbrar uma política externa mais independente e alicerçada em seus próprios interesses, quando Getúlio Vargas (1930-1945) utilizou a política externa para alcançar projetos de interesse nacional (VIZENTINI, 2005, p.17-18). Desde então, o país vive um zigue-zague contínuo em suas relações exteriores, oscilando entre instantes mais autônomos e outros de submissão, até servil, aos desígnios norte-americanos. As políticas externas de subordinação às potências dominantes interditaram o olhar mais atento aos países vizinhos, geográfica ou culturalmente, como Portugal. Neste último caso, a situação se agravava pela convivência história muitas vezes complexa entre ex-colônias e antigas metrópoles. O processo de colonização marca de modo indelével colonizados e colonizadores. As teorias descoloniais e as diferentes formatações adquiridas pela colonialidade têm insistido e investigado esses processos de modo substantivo. Com avanços e recuos, aos lampejos iniciais se somaram construções mais elaboradas de políticas externas, como as esboçadas pelos presidentes Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961-1964). O Ministro das Relações Exteriores San Tiago Dantas (1961-1962) deu consistência às formulações e práticas da política externa independente inaugurada no governo anterior (VIZENTINI, 2005, p.26). Como princípios da política externa independente eram elencados, conforme Paulo Vizentini (p.23): exportações brasileiras para todos países, inclusive socialistas; defesa do direito internacional, da autonomia e autodeterminação dos povos; política de paz, II Congresso Internacional Sobre Culturas 49 desarmamento e coexistência pacífica; apoio à descolonização e formulação autônoma de planos nacionais de desenvolvimento. A Ditadura Militar (1964-1985) impôs, de início, uma política alinhada aos interesses norte-americanos, depois abandonada em prol de relações exteriores cada vez mais autônomas. Esta atitude permitiu uma aproximação, ainda tênue, dos países vizinhos, geográfica ou historicamente. Emblemático a ditadura militar ter sido o primeiro país a reconhecer a independência de Angola, protagonizada e governada pelo Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), assumidamente de esquerda, em rota contraposta às posições norte-americanos a respeito do tema. A tessitura da política externa independente, após um século da independência, permitiu ao Brasil se inscrever no mundo a partir de outros olhares, nos quais os países vizinhos ganharam atenção. Ela se acentua, com idas e vindas, nos governos democráticos pós-ditadura (MIYAMOTO, 2000): José Sarney (1985-1990), Fernando Collor de Melo (1990-1993), Itamar Franco (1993-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). A “convergência perversa”, no dizer de Evelina Dagnino (2005), entre o processo de democratização em andamento e a presença do neoliberalismo no plano internacional e sua penetração no país, provocou, em maior ou menor graus, tensões e ambiguidades advindas desta convivência conflituosa. De todo modo, as contradições não conseguiram obscurecer a atenção para as regiões vizinhas, em horizontes geográficos ou históricos. A fundação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em 1996, expressou, por exemplo, essa visão nas relações exteriores (NOVAIS, 2013, p.163). A política externa independente, com suas renovadas visões de mundo, se aprofundou no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e se manteve, ainda que de modo mais branda, no governo Dilma Rousseff (2011-2016). Sem desconsiderar as relações com a Europa e os Estados Unidos da América, tradicionais polos das relações internacionais do Brasil, a política externa independente buscou a diversidade de parcerias em uma visão multipolar do mundo. Ela destinou atenção especial à América do Sul, à América Latina e Caribe, aos grandes países em desenvolvimento, à África e aos países árabes. Nada casual, a constituição nesses anos de organismos como: União das Nações Sul-Americanas (UNASUL); Comunidade dos Estados LatinoAmericanos e Caribenhos (CELAC) e articulações como BRICS, que envolveu Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, além da atenção com o Mercosul, a Comunidade II Congresso Internacional Sobre Culturas 50 dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e outros parceiros internacionais (GUIMARÃES, 2015). DIPLOMACIA CULTURAL BRASILEIRA As relações culturais internacionais do Brasil envolveram nesses governos, pelo menos, os ministérios das Relações Exteriores; Cultura; Educação; Ciência e Tecnologia; Esporte; Turismo e Indústria, Desenvolvimento e Comércio Exterior, conforme Bruno Novais (2013, p.76). O Ministério das Relações Exteriores já possuía experiência na difusão internacional da cultura, em especial, através de Departamento Cultural (DC) e suas atividades no exterior. O Ministério da Cultura atuou em sintonia com diretrizes do governo Lula. Gilberto Gil, ministro entre 2003 e 2008, chegou a afirmar que: “...o governo Lula e o Ministério da Cultura vêm deslocando as políticas culturais para o centro do debate do desenvolvimento nacional e das relações de intercâmbio do Brasil com outros países” (GIL apud NOVAIS, 2010, p.220). Afinado com a política de maior presença internacional do Brasil, o Ministério da Cultura agiu, associado com o Ministério das Relações Exteriores, na ampliação do trabalho cultural fora do país. A convergência de esforços ocorreu, em emblemático exemplo, na delicada construção da convenção da diversidade cultural, na qual os dois ministérios realizaram uma competente ação conjunta, reconhecida por diversos estudiosos (KAUARK, 2009; KAUARK, 2010; NOVAIS, 2010). A atenção destinada à América do Sul, à América Latina e Caribe, aos grandes países em desenvolvimento, à África e aos países árabes foi compartilhada, mas efetivada de modo desigual, nos governos Lula e Dilma. Tal ênfase obscureceu as relações com alguns países a exemplo de Portugal. Mas essa inibição não ocorreu no âmbito cultural. A Ibero-América não apareceu entre as prioridades dos governos Lula e Dilma, apesar da história comum do Brasil com Portugal e da presença recente de muitas empresas e capitais espanhóis no país. Neste caso específico, o Ministério da Cultura assumiu posição dissonante do governo e do Ministério das Relações Exteriores. Assim, o Ministério da Cultura protagonizou relações diferenciadas e intensas com a Ibero-América e seus organismos multilaterais, em especial a Secretaria Geral Ibero-Americana (SEGIB) e Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI). II Congresso Internacional Sobre Culturas 51 O Brasil participou de todas os congressos de autoridades ibero-americanas, organizados pelas SEGIB, inclusive sediando a III Cimeira de Chefes de Estado e de Governo, realizada em Salvador-Bahia, em 1993. Já Portugal, por duas vezes, acolheu a Conferência Ibero-Americana: a VIII na cidade do Porto em 1998 e a XIX em Estoril / Cascais em 2009. A presença do secretário-geral da OEI como única autoridade estrangeira na mesa de abertura da I Conferência Nacional de Cultura, em 2005, expressou o positivo relacionamento existente entre o ministério e a OEI. Ela, o Ministério da Cultura e o Centro de Estudos Multidisciplinares da Cultura (CULT) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) estiveram juntos na organização do IV Campus Euro-Americano de Cooperação Cultural, acontecido em Salvador-Bahia, em 2005 (OEI; MINC, 2005). Em 2007, Almada / Portugal sediou o V Campus Euro-Americano de Cooperação Cultural. Nada estranho que anos depois, no primeiro governo Dilma, o então ex-Ministro Juca Ferreira fosse dirigir projetos na SEGIB e que ex-reitor Paulo Speller se tornasse o primeiro brasileiro a assumir o cargo de secretário-geral da OEI, em 2015. Não cabe no texto listar todas as iniciativas culturais que associaram o Brasil à Ibero-América. Algumas, no entanto, devem ser lembradas. A Carta Cultural IberoAmericano, documento precioso de compromisso com a diversidade cultural, aprovada na XVI Cimeira Ibero-Americana de Chefes de Estado e de Governo, ocorrida em Montevidéu, em 2006, com participação ativa do Brasil (SEGIB; OEI, 2006). O I Encontro Ibero-Americano de Museus desenrolado em Salvador - Bahia, em 2007, com repercussões relevantes. O recém-criado Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) tornou-se ativo participante do Programa IBERMUSEUS. O Brasil, além do IBERMUSEUS, passou a atuar em diversos programas dos organismos iberoamericanos, tais como: Programa de Desenvolvimento Audiovisual em Apoio à Construção do Espaço Visual Ibero-Americano (IBER-MEDIA); Programa da Associação de Estados Ibero-Americanos para o Desenvolvimento das Bibliotecas Nacionais dos Países Ibero-Americanos (ABINIA); Repertório Integrado de Livros em Venda em Ibero-América (RILVI); Rede Ibero-Americana de Teatros e Salas de Concerto (IBERES-CENA); Programa do Fórum Ibero-Americano de Responsáveis Nacionais de Bibliotecas Públicas e Programa de Fomento à Produção e Teledifusão do Documentário Ibero-Americano (DOCTV-IB), um desdobramento do DOCTV Brasil, assim como o DOCTV-CPLP, que se tornou uma das melhores iniciativas culturais no âmbito da CPLP. II Congresso Internacional Sobre Culturas 52 A listagem pode acolher outras iniciativas. A Cátedra Andrés Bello implantada nos anos de 2005 e 2006, em Salvador - Bahia, através da parceria entre o Convênio Andrés Bello, que reunia diversos países ibero-americanos, e CULT-UFBA, com apoio do Ministério da Cultura. As duas versões da Cátedra, que conjugaram curso e pesquisa, tiveram como tema: Políticas e redes de cooperação em cultura no âmbito iberoamericano (RUBIM; RUBIM; VIEIRA, 2005 e RUBIM; RUBIM; VIEIRA, 2006). Livros sobre o tema da cultura na Ibero-América têm sido publicados no Brasil, a exemplo de Culturas da Ibero-América. Diagnósticos e propostas para seu desenvolvimento, organizado por Néstor García Canclini e editado com o apoio da OEI (CANCLINI, 2003) e Políticas culturais na Ibero-América, lançado no Brasil (RUBIM; BAYARDO, 2008) e na Colômbia (RUBIM; BAYARDO, 2009). Outro livro sobre o Panorama da Gestão Cultural na Ibero-América está sendo publicado em 2016 (RUBIM; YANEZ; BAYARDO, 2016). Nesses dois últimos livros existem textos específicos sobre as políticas culturais do Brasil e de Portugal, escritos respectivamente por mim, no caso brasileiro, e por Maria de Lourdes Lima (2008) e Maria Manuel Baptista e Jenny Campos (2016) no contexto luso. Dois outros livros podem ser agregados nessa listagem: Estudos da cultura no Brasil e em Portugal (2008) e Políticas públicas culturais: dinâmicas, tensões e paradoxos (2014), que trata das políticas culturais brasileiras e portuguesas. A esses livros deve ser acrescida a publicação proveniente do I Congresso Internacional de Cultura, ocorrido na Covilhã, em 2015. DIÁLOGOS CULTURAIS BRASIL-PORTUGAL HOJE A viagem realizada, talvez longa, por territórios ibero-americanas permite um retorno aos diálogos Brasil-Portugal em uma perspectiva distinta. Eles agora podem redescobrir a história compartilhada sob olhares mais contemporâneos, tentar equacionar as descompassadas visões temporais que perpassam esses países, repensar dilemas e reavivar interesses comuns. Brasil e Portugal já não estão mais integrados, ao estilo do antigo império colonial constituído pelos navegadores portugueses, ou esgarçados como nos momentos pós-independência brasileira. Eles se inscrevem na comunidade ibero-americana de nações. Comunidade recente que conjuga, a partir de meados do século XX, as culturas ibérica e americana, hispânica e lusa. Uma comunidade cultural nova, com II Congresso Internacional Sobre Culturas 53 desconhecimentos e descobrimentos, recuos e avanços, ambiguidades e clarezas. Comunidade ampla e não hegemônica, possível alternativa às dominantes articulações atlânticas. Comunidade ainda em construção com passos andados e muitos a serem dados. Nela novas tessituras podem ser engendradas. Brasil e Portugal se tornam membros entre muitos e aparecem como potenciais nós de rede latina da conexão euroamericana. A história e a cultura comuns podem costurar laços compartilhados da aventura conjunta vivida no passado, no inquietante desafio do presente e no potencial de futuro. Um espaço cultural não para se isolar no mundo contemporâneo, mas para se inscrever na contemporaneidade com base em suas peculiaridades assumidas e respeitadas. Brasil e Portugal podem ser elos de uma conexão alternativa euro-americana. Para transitar nesse horizonte, Brasil e Portugal, devem se exercitar não apenas como membros atuantes da Ibero-América, mas o Brasil precisa assumir papel ativo na conformação da América de fala hispano-portuguesa e Portugal necessita ser ativo participante ibérico da União Europeia. Conectores integrados culturalmente em suas regiões e também entre si. Dessa maneira, as atuais inserções territoriais de Brasil e Portugal não atuam como forças dilacerantes, mas agem potencializando as trocas culturais Brasil-Portugal. O maior obstáculo a esse enlace euro-americano, através da rota iberoamericana, deriva da própria construção dessa rota. Mas com Antonio Machado se aprendeu que o caminho se faz caminhando. As iniciativas culturais listadas acima, talvez exaustivamente, apontam o esforço empreendido. Hoje, entretanto, elas se encontram em cheque. Portugal, inscrito vivamente na União Europeia, precisa assumir em plenitude sua inserção ibero-americana e, em especial, hoje o Brasil necessita confirmar sua inserção mais autônoma no mundo. O chamado país do futuro, paradoxalmente, tende repetidas vezes a interditar o futuro. Todas as vezes em que ele é vislumbrado de modo mais consistente e nítido, em que o futuro começa a ser traduzido em presente, surgem enormes empecilhos a bloquear a realização do futuro, a exemplo do que ocorreu com o golpe militar de 1964 e hoje com o golpe midiático-jurídico-parlamentar de 2016. Ele representa, com bem notou o jornalista Mino Carta, uma ponte para o passado e não para o futuro como querem fazer crer o governo ilegítimo que impõe ao país um projeto neoliberal não legitimado pelas urnas, que rebaixa mais uma vez o Brasil a um lugar II Congresso Internacional Sobre Culturas 54 secundário no mundo das nações. As primeiras políticas pós-golpe apontam, mais uma vez, no retorno pendular da política externa de submissão internacional aos interesses das grandes potencias e da ausência de um projeto nacional. Tais opções comprometem os diálogos culturais do Brasil com os países vizinhos, geográfica e historicamente, pois, desconhecendo as singularidades culturais brasileiras, assumem uma visão profundamente colonizada de transformar o país em mero consumidor da cultura do chamado “primeiro mundo”. BIBLIOGRAFIA ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: COHN, Gabriel (org.). Theodor W. Adorno. São Paulo, Editora Ática, 1986, p.167-187. BAPTISTA, Maria Manuel. Políticas públicas culturais: dinâmicas, tensões e paradoxos. Coimbra, Grácio, 2014. CANCLINI, Nestór García. Culturas da Ibero-América. Diagnósticos e propostas para seu desenvolvimento. São Paulo, Moderna, 2003. DAGNINO, Evelina. Políticas culturais, democracia e o projeto neoliberal. In: Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, (15):45-65, janeiro/abril de 2005. GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Prefácio. In: CASTRO, Nils. América Latina e Caribe. Integração emancipadora ou neocolonial. São Paulo, Editora da Fundação Perseu Abramo, 2015, p.9-29. 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Marcelo Goulart23 Resumo A CE-CPLP é a organização responsável por estimular a cooperação e parceria entre as instituições lusófonas a fim de incrementar os negócios em território lusófono. A relevância das suas ações está alicerçada em um projeto político − a Lusofonia − em fase de expansão que abrange nove Estados-membros – falantes de um idioma único, a Língua Portuguesa − responsáveis por 3,4% do PIB mundial. Deste modo, a intensa competitividade no mundo empresarial torna a internacionalização das grandes empresas essencial para a ampliação dos negócios. Este artigo tem como objetivo geral analisar, sob um olhar geográfico voltado à polissemia do conceito de lusofonia, o processo de internacionalização da Andrade Gutierrez Engenharia S.A. no contexto lusófono. Palavras-chave: CE-CPLP. CPLP. Lusofonia. Andrade Gutierrez. INTRODUÇÃO Por intermédio dos acordos estabelecidos em Bretton Woods, a nova ordem mundial, reorganizada em um contexto econômico globalizado estabeleceu novas esferas, dentre elas, a comercial (HAESBAERT, 2006). Com base nisto, o presente artigo tem o objetivo de verificar o processo (estratégico) de internacionalização da Andrade Gutierrez Engenharia S.A. sob o contexto territorial da CE-CPLP a partir de um olhar geográfico voltado à polissemia do conceito de lusofonia − conceito-chave para a compreensão dessas relações. Para atender o objetivo proposto, dividiu-se este artigo em três eixos: o primeiro abordará a vinculação teórica entre Território e Língua. O segundo descreverá as principais estratégias da CE-CPLP em médio prazo que visam promover o desenvolvimento econômico no território lusófono. Já o terceiro, abrangerá uma análise do processo estratégico de internacionalização da Andrade Gutierrez Engenharia S.A. vide os principais modelos teóricos sobre internacionalização de empresas. 23 Mestrando em Geografia na Universidade Federal da Bahia sob orientação do Prof. Dr. Alcides Caldas. com graduação em Geografia (Licenciatura e Bacharelado) E-mail para contato: marcelogoulart@hotmail.com. II Congresso Internacional Sobre Culturas 58 O TERRITÓRIO LUSÓFONO A desterritorialização das empresas e das pessoas promovido pela globalização e pelo neoliberalismo ocasionou o enfraquecimento do Estado-Nação. Passemos a considerar Estado-Nação à forma de Langenbuch (2009), cujo Estado é “composto, portanto, por três elementos básicos: um território, uma população e um governo” (Langenbuch, 2009, p. 18) e que nação é “um povo claramente definido, distinto de outros pela língua, costumes, tradições e talvez religião” (LANGENBUCH, 2009, p. 18). É nessa perspectiva geográfica – a relação entre território e língua − que a CPLP, criada em 1996, é uma aliança regional, ou ainda, um Mecanismo Interregional de acordo com o Ministério das Relações Exteriores do Brasil (MRE), entre nove EstadosNação em fronteiras não contíguas, com relevantes aspectos culturais e direitos de soberania nacional garantidos nos Artigo 3º e 5º, respectivamente, do Estatuto24 da organização. A representação da língua, sem dúvida, é um dos principais aspectos do EstadoNação, pois além de se configurar por si só uma unidade, ela também “ocupa um lugar especial no campo do poder. Uma opressão por meio da língua é, portanto, possível. Essa opressão surge cada vez que uma língua diferente da materna é imposta a um grupo” (RAFFESTIN, 1993, p. 108). Por outro lado, a língua fornece identidade a grupos humanos, cuja percepção reflete na valorização do passado cultural hereditário sem negar a evolução desta, haja vista a intrínseca ligação estabelecida com o campo do poder, independentemente da esfera a ser discutida. Ao encontro com este pensamento, a CPLP tem em seu idioma oficial um poderoso recurso comunicativo que permite unir os distantes países que o representam. Na disputa pelo poder, o fato de um idioma ser mais usado do que outro implica em - ao se pensar a língua enquanto recurso (RAFFESTIN, 1993) - conquista de espaço e de poder. Em Timor Leste, Moçambique e Guiné Equatorial, por exemplo, a Língua 24 CPLP. Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Estatuto da CPLP. Lisboa, 2007. Disponível em: <http://www.cplp.org> Acesso em 22 set 2016. II Congresso Internacional Sobre Culturas 59 Portuguesa25 não é considerada como a principal língua do país, mesmo sendo língua oficial. De modo que a relação existente entre espaço e poder caracterizam o Território, aqui abordadas através de Souza (2012) e Haesbaert (2013). Derivadas dessa discussão, a ideia de territorialidade se faz presente através de Sack (2013). Para Souza (2012), o território é um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder e que os territórios são construídos (e desconstruídos) nas mais diversas escalas (geográficas), da mais acanhada à mais internacional. Para Souza (2012), em essência, o que define território é o poder, isto é, a dimensão política das relações sociais, o que não implica em desconsiderar os aspectos culturais e econômicos, em concordância à Haesbaert. Souza (2012) denomina de “campos de força”, aos quais só existem enquanto durarem as relações sociais das quais eles são projeções espacializadas. Para Haesbaert (2013), o território, ainda que privilegie as relações de poder, nunca pode ficar restrito ao poder político estatal, pois deve-se levar em conta os múltiplos sujeitos do poder, bem como a dimensão simbólico-cultural e a admissão de territórios descontínuos. Por sua vez, os “campos de força” existentes em um espaço definido e delimitado pela construção humana sob a égide das relações político-sociais sem desconsiderar os aspectos culturais e econômicos nada mais é o que se denomina de territorialidade. Para Sack (2013, p. 78), territorialidade é “a estratégia para estabelecer diferentes níveis de acesso a pessoas, coisas e relações. Sua alternativa sempre é a ação não territorial, e a ação não territorial é requerida em qualquer caso, para dar apoio moral”. De maneira que se torna óbvia a associação com a CPLP, cuja territorialidade é a lusofonia, meio pelo qual pode-se controlar os diferentes tipos de acessos. Assim, nesta perspectiva, enquanto a territorialidade da CPLP é a lusofonia, a territorialidade do Estado-Nação é a ideologia. O termo lusofonia, em sua forma reduzida, significa qualquer cultura expressa em língua portuguesa. Após a criação da CPLP, o papel da língua portuguesa ou da 25 Com exceção de Portugal, a Língua Portuguesa não é a língua materna nos Estados-membros da CPLP. No Brasil, por exemplo, o artigo 13 da Constituição Federal apresenta a seguinte descrição: “A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil”. II Congresso Internacional Sobre Culturas 60 cultura em geral portuguesa assumiu um papel geoestratégico26. A lusofonia polemizase a partir do pressuposto que os contrários à idéia questionam como um espaço não contíguo e variado cultural e lingüisticamente sob realidades sociais diversificadas a partir de um alinhamento ideológico centralizado pode ser considerado homogêneo? Cahen27 (2010), um dos principais autores que discordam da lusofonia difundida atualmente, sugere a substituição do termo “lusofonia” pelo emprego do termo “lusotopia”. O autor justifica que o fato de o idioma e/ou a cultura expressa em língua portuguesa serem as mesmas, isso não a torna totalmente igual, e acrescenta que apenas o idioma não é suficiente para produzir um sentimento de unidade entre os povos. Cahen (2010), ao lembrar ironicamente a definição de Lourenço sobre lusofonia, diz que o autor português, na realidade reforça a idéia de lusotopia quando trata a lusofonia como uma área específica de intersecção com outras identidades. Outro importante conceito no entorno das relações de poder é o de hegemonia. Busca-se em Gramsci a compreensão fundamental sobre o que é ideologia, pois se esta última significa visão de mundo, a primeira trata da construção desta visão. As ideologias são múltiplas e contraditórias entre si porque, conforme ressalta Dias (1995, p. 27), são racionalidades de diversas classes, em diversos momentos e conjunturas. Ou seja, os interesses sociais, que se colocam historicamente e se articulam de modo conflitante, se manifestam nos diversos discursos ideológicos. Para utilizar uma expressão de Raffestin (1993, p. 60), “o campo da ação dos trunfos” da CPLP, o território lusófono, está muito longe de ser homogêneo. Na perspectiva social, os países africanos de língua oficial portuguesa (e Timor Leste) estão posicionados entre os últimos, aqueles com pior Índice de Desenvolvimento Humano28 (IDH). Em termos econômicos, a CPLP, apresenta-se muito aquém, por exemplo, da maior economia do mundo, os Estados Unidos. Em 2013, por exemplo, o PIB total do espaço lusófono atingiu pouco mais de US$ 2,6 trilhões, enquanto que o dos Estados Unidos cerca de 17,1 trilhões de dólares. 26 Comparação realizada frente à Commonwealth e Francofonia. Lourenço (2001) reconhece que a língua portuguesa sempre desempenhou um papel de liderança na solidificação da cultura portuguesa, porém nunca se traduziu na desejada imperialidade como aconteceu no caso do inglês e do francês. 27 Michel Cahen. Pesquisador do Centre National de La Recherche Scientifique (CNRS) no Centre “Les Afriques dans le Monde”, do Instituto de Estudos Políticos da Universidade de Bordeaux, na França e Diretor da revista Lusotopie, de 1992 a 2009. 28 PNUD. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Disponível em: <http://www.pnud.org.br> Acesso em 12 out 2016. II Congresso Internacional Sobre Culturas 61 Certa que a Língua Portuguesa adquiriu um potencial econômico relevante, a CPLP promoveu em 2004 a criação da Confederação Empresarial da CPLP, como o pilar econômico e empresarial da organização. A CONFEDERAÇÃO EMPRESARIAL DA CPLP A CE-CPLP29 objetiva a ampliação dos negócios − importações e exportações, interna e externamente ao contexto da CPLP – a partir do estímulo à cooperação e parceria entre instituições privadas e públicas resultando desta forma no fortalecimento do setor privado. O comércio exterior da CPLP, segundo os dados da Divisão de Inteligência Comercial, vinculada ao Ministério da Indústria e Comércio (MDIC), entre 2009 e 2013 variou 59,4% nas exportações, 58,2% nas importações, 58,8% no intercâmbio comercial e 73% no saldo comercial. O plano estratégico30 estipulado para o qüinqüênio 2015-2020 prima pelo desenvolvimento do setor privado intra-bloco e que estão articulados em três pilares, a saber: (1) Melhorar o ambiente de negócios e o clima de investimento; (2) Alargar o acesso às infraestruturas sociais e econômicas; (3) Promover o desenvolvimento das empresas. No entanto, é de interesse da CE-CPLP um olhar além do território lusófono. Novos mercados são analisados a partir de articulação dos membros da CPLP em outras Comunidades Econômicas Regionais − África, CEDEAO, CEEAC e SADC; América, MERCOSUL; Europa, UNIÃO EUROPEIA; e Ásia, ASEAN – os quais sugerem um espectro comercial que atinge 86 países situados em quatro continentes com população estimada, em 2012, em torno de 2 bilhões de habitantes. É nesse contexto que a internacionalização das empresas, baseada na intrínseca ligação histórica e cultural entre os membros da comunidade lusófona e o alto grau da globalização atual, ocupa importante papel no incremento dos negócios na CPLP. 29 Ostenta esta denominação desde 2010, já que em sua criação, em 2004, denominava-se Conselho Empresarial. 30 CE-CPLP. Confederação Empresarial da CPLP. Apresentação das Estratégias 2015-2020. Disponível em <http://www.cplp.org>. Acessado em 14 jun 2016. II Congresso Internacional Sobre Culturas 62 O PROCESSO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DA ANDRADE GUTIERREZ ENGENHARIA S.A. A Andrade Gutierrez Engenharia S.A. é uma das unidades de negócios do Grupo Andrade Gutierrez (Grupo AG), que em sua estratégia de atuação global mantém operações na América Latina, Ásia, Europa e África31. Em se tratando de empresas nacionais no exterior, Francischini (2009, p. 75), alerta que “a adoção de estratégias de internacionalização por parte de empresas brasileiras é um processo tardio, principalmente quando comparado com outras, de países emergentes”. Os estudos sobre internacionalização de empresas estão baseados nos aspectos comportamentais e econômicos. O primeiro aspecto, baseado nas teorias de marketing, pressupõe conhecimento prévio sobre as variáveis do mercado são fundamentais para o processo de internacionalização. O segundo, por outro lado, apóia-se nas teorias econômicas que procuram explicar os estímulos que levam as firmas a se internacionalizarem. Scherer (2012) observa que a indústria da construção pesada, composta por grandes empresas como, por exemplo, o Andrade Gutierrez Engenharia S.A., apresenta peculiaridades relativas à atividade internacional, em especial, no que tange a entrada em um mercado estrangeiro deste tipo de empresa, pois esta ocorre de forma mais intensa, principalmente, por se tratar de prestação de serviços que não podem ser entregues por intermédio de mera exportação. De forma conclusiva, diz que a aplicação dos estudos de Johanson e Vahlne (apud Scherer, 2012), autores do Modelo de Uppsala, nas empresas pesadas de construção não se aplicam diretamente ao setor em particular, pois supõem que tais situações não poderiam ser utilizadas por empresas de engenharia e construção. À Andrade Gutierrez Engenharia S.A. parece mais próxima ao processo de internacionalização de Douglas e Craig (apud Scherer, 2012) chamada de fase 2 – Expansão no mercado local. Neste caso, a empresa procurou desenvolver estratégia em uma base de país a país. No tocante ao território lusófono, a compra da Zagope, empresa portuguesa, na década de 1990 consolidou a presença no mercado Europeu ao permitir que a multinacional brasileira se adequasse à legislação da Comunidade Européia, que 31 A internacionalização da Andrade Gutierrez Engenharia S.A. teve início efetivo em 1984, com a construção de uma rodovia no Congo, África. Segundo o Relatório Anual da Andrade Gutierrez Engenharia S.A. (2004), o desaquecimento da economia no início da década de 1980 exigiu da empresa uma nova postura, a qual se tornou imperativo diversificar as operações para outras atividades no Brasil e internacionalizar os negócios (com financiamento do governo brasileiro. II Congresso Internacional Sobre Culturas 63 protegia seu mercado em relação a empresas não européias. A Zagope passou a operar em 2013 como AG Europa, África, Ásia. A motivação da Andrade Gutierrez Engenharia S.A. se deu pelo desejo da manutenção do crescimento, visto que as empresas majoritárias no mercado nacional reconhecem na internacionalização um caminho para a continuidade de crescimento a partir da redução de contratos governamentais para a construção de grandes obras. Outra importante motivação está ligada à superação das barreiras alfandegárias, visto que as empresas que consideram essa motivação reconhecem o IDE (Investimento Direto no Estrangeiro) o que não poderia ser realizado somente através de exportações de seus produtos. Assim, a internacionalização das atividades também é entendida como um caminho para acessar mercados protegidos, como é o caso da Andrade Gutierrez Engenharia S.A. CONSIDERAÇÕES PARCIAIS Certo que o desenvolvimento econômico da CPLP está atrelado às políticas neoliberais, por outro lado isso não é impeditivo de reconhecer que as mesmas estão carregadas de ideologias coercitivas. Para Crocetti (2004, p. 1), “o neoliberalismo, como sistema político hegemônico mundial, é na realidade o neoimperialismo, que se alimenta na conquista de territórios”. Neste sentido, Portugal e Brasil, enquanto Estados-Nação, em diferentes graus parecem se alimentar dessa experiência. Enquanto o primeiro tenta reviver um passado longínquo cheio de memórias e nacionalismo, o segundo dá os primeiros passos para um subimperialismo travestido de cooperação técnica para o desenvolvimento. Por isso, o governo brasileiro recebe muitas críticas por parte dos países africanos da CPLP que não entendem qual é, efetivamente, o papel do Brasil nesse jogo político-econômico. De forma que o conteúdo aqui exposto ainda está em construção, especialmente o que abrange informações referentes ao IDE da Andrade Gutierrez Engenharia S.A em âmbito lusófono. II Congresso Internacional Sobre Culturas 64 REFERÊNCIAS CAHEN, M. Lusitanidade e Lusofonia: considerações conceituais sobre realidades sociais e políticas. Plural Pluriel – RevuedesCultures de Langue Portugaise. nº 7, automne-hiver, 2010. CROCETTI, Z. S. Geografia do Neoliberalismo. Revista Intellector. vol 1, n 1.Rio de Janeiro, 2004. DIAS, E. Cidadania e Racionalidade de Classe. Revista Universidade e Sociedade. São Paulo: Andes, 1995. FRANCISCHINI, A. S. N. Tecnologia e Trajetória de Internacionalização Precoce na Indústria Brasileira. Tese. Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Engenharia de Produção. São Paulo, 2009. HAESBAERT, R. Territórios Alternativos. São Paulo: Contexto, 2006. LANGENBUCH, J. R. Geografia Política Linguística: língua e dialetos na vida de povos e países. São Paulo: Hucitec, 2009. LOURENÇO, E. A Nau de Ícaro e Imagem e Miragem da Lusofonia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder. Tradução de Maria Cecília França. São Paulo: Ática, 1993 SACK, R. O Significado de Territorialidade. In: DIAS, L. C.; FERRARI, M. (orgs) Territorialidades Humanas e Redes Sociais. 2ª ed. rev. Florianópolis: Insular, 2013. SCHERER, F. L. Estratégia de Internacionalização de Empresas Brasileiras de Construção Pesada: Reflexões sobre a Trajetória e Resultados. Revista Ibero Americana de Estratégia. Vol. 11, num. 2. São Paulo, 2012. SOUZA, M. J. L. de. O Território sobre Espaço e Poder, autonomia e Desenvolvimento. In: CASTRO, I. E. de; GOMES, P. C. da C.; CORRÊA, R. L. Geografia: Conceitos e Temas. 15ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. HAESBAERT, R. O Território e a nova des-territorialização do Estado. In: DIAS, L. C.; FERRARI, M. (orgs) Territorialidades Humanas e Redes Sociais. 2ª ed. rev. Florianópolis: Insular, 2013. II Congresso Internacional Sobre Culturas 65 CONSTRUÇÕES DISCURSIVAS SOBRE AS IDENTIDADES NACIONAIS: ESTUDO DE CAMPANHAS PROMOCIONAIS DO TURISMO DO BRASIL E DE PORTUGAL Patrícia de Souza Figueiredo Lima32 Resumo Por meio da análise de campanhas publicitárias realizadas pelos órgãos oficiais de turismo do Brasil e de Portugal no mesmo período, objetivamos investigar como traços identitários dos brasileiros e dos portugueses são evidenciados pelos referidos países para a atração de turistas estrangeiros, apresentando a hospitalidade como traço genuíno de ambos os povos. Para tanto, analisamos a campanha “O mundo se encontra no Brasil. Venha celebrar a vida”, lançada pelo Instituto Brasileiro de Turismo – Embratur, em 2012, e o vídeo “Portugal, Portugueses”, lançado no ano de 2013, pelo Turismo de Portugal. Palavras-chave: Identidades. Publicidade. Turismo. INTRODUÇÃO Além de sua importância econômica, o turismo é uma atividade que, além de motivar o deslocamento de mais de 1 bilhão de pessoas por ano ao redor do mundo, segundo dados da Organização Mundial do Turismo (2015), promove, muito além da viagem, o intercâmbio entre diferentes pessoas, culturas e lugares. É também uma atividade complexa que influencia e é influenciado significativamente pelos ambientes natural e cultural dos lugares, além de promover relevantes trocas materiais e simbólicas e contribuir na construção discursiva sobre as identidades locais. Partindo do pressuposto que o discurso publicitário turístico adquire um relevante papel na construção da imagem sobre os destinos turísticos na contemporaneidade, objetivamos neste artigo investigar como traços identitários dos brasileiros e dos portugueses são evidenciados por seus países enquanto fator de atratividade de turistas estrangeiros, observando especialmente como a hospitalidade e a cordialidade são apresentadas como traços genuínos de ambos os povos. Para tanto, apresentamos aqui a síntese da análise da campanha “O mundo se encontra no Brasil. Venha celebrar a vida”, lançada pelo Instituto Brasileiro de Turismo – Embratur, em 2012, e a descrição do vídeo “Portugal, Portugueses”, lançado no ano de 2013, pelo Turismo de Portugal. 32 Mestra em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia. E-mail: paty_tur@yahoo.com.br. II Congresso Internacional Sobre Culturas 66 AS IDENTIDADES, O DISCURSO PUBLICITÁRIO E O TURISMO Diversos teóricos (HALL, 1997; VIEIRA, 2009; CANCLINI, 2008; COELHO; 2008) apontam para o enfraquecimento da ideia de identidades nacionais unificadas. Outros apontam para ideia de que as identidades culturais foram inventadas (SILVA, 2007) e construídas pelo Estado (BAUMAN, 2005). Especialmente nos processos globalizados que marcam o mundo contemporâneo, as identidades são variáveis, dinâmicas, relacionais, narradas e marcadas simbolicamente através de processos de representação, Deste modo, estão cada vez mais articuladas através dos processos de midiatização da sociedade. Segundo Martino (2010, p. 30), as identidades necessariamente passam por relações de comunicação estabelecidas interna e externamente, “a partir das quais são criados e disseminados as narrativas e discursos que permitem às pessoas se reconhecerem como parte de alguma coisa, como ‘iguais’ a determinado grupo e ‘diferente’ de outros”. A comunicação é considerada tanto em um sentido mais amplo, como a interação cultural entre os indivíduos, como também através de vínculos propiciados através da cultura midiática. Este autor avalia que, frente o processo da globalização, a identidade não é apenas definida pelo espaço local e pelas práticas da comunidade imediata. Martino (2010, p.45) afirma a existência de uma identidade global, já que, segundo o autor, “na globalização, a cultura é desterritorializada na sua produção e recepção, as expressões culturais são retiradas de seu contexto original e reapropriadas de maneira diferente em cada lugar (...)”. Deste modo, as identidades, afirma Martino (2010), são construídas a partir da intersecção de um fluxo global de imagens, em movimentos híbridos de apropriação de significados, que articula o local e o global. E, neste cenário, a midiatização torna-se condição fundamental para este processo de interação. A comunicação turística surge, dentro deste contexto de midiatização globalizada, como elemento chave na diferenciação dos destinos turísticos através da utilização das expressões culturais e de características naturais como forma de distinção no mercado turístico globalizado. Conforme defendem Gastal e Sales (2012, p. 22), “as marcas do lugar e, portanto, as identidades a ele vinculadas, são elementos importantes na construção de produtos turísticos”. Para elas, a cultura torna-se um importante insumo para os II Congresso Internacional Sobre Culturas 67 produtos turísticos, em especial aquela advinda das especificidades étnicas. As autoras defendem que as identidades sob o turismo estão cada vez mais dinâmicas, já que quanto mais aumentam deslocamentos turísticos, maior as trocas culturais. Deste modo, segundo as autoras, reunidos “em regiões ou em bairros das grandes cidades, árabes, judeus, alemães, italianos, japoneses e chineses, dentre outros, mostram sua cultura em museus, centros de memória, parques temáticos, restaurantes e festas alusivas” (GASTAL; SALES, 2012, p.23). Assim, as localidades aproveitam da herança cultural destes grupos para a constituição de seus produtos turísticos. Conceição (1998) defende que a publicidade turística representa uma das principais chaves de interpretação do real pelo turista, promovendo um processo de antecipação da experiência de consumo ao turista. O discurso promocional deve, segundo a autora, retratar aquilo que o turista irá encontrar, transformando a viagem em algo que reflita “o universo, os gostos e as aspirações de quem deseja partir” (CONCEIÇÃO, 1998, p. 72). Defende a autora que, através da antevisão, a viagem ganha um contorno mais concreto aos olhos do potencial turista. A publicidade turística, embora situada em um contexto maior – o do processo de midiatização da sociedade – tem o papel específico de fazer conhecer, estimular e antecipar a experiência a ser vivida por um turista em destino Entretanto, compreendemos que através da utilização de recursos visuais e simbólicos esta forma de comunicação publicitária acaba por confirmar estereótipos e formas de representação já massificadas em relação ao destino turístico. O MUNDO SE ENCONTRA NO BRASIL A partir do Plano de Marketing Turístico Internacional do Brasil, o Plano Aquarela 2020, é elaborada uma campanha publicitária direcionada especificamente para o público internacional intitulada “O mundo se encontra no Brasil. Venha celebrar a vida”, lançada na abertura das Olimpíadas de 2012, em Londres. “O mundo se encontra no Brasil”, segundo a Embratur, se refere à história de miscigenação além dos encontros promovidos pelos grandes eventos internacionais, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas. “Venha celebrar a vida” convida pessoas de todo o mundo a experimentar experiências inesquecíveis no país (INSTITUTO BRASILEIRO DE TURISMO, 2012). II Congresso Internacional Sobre Culturas 68 O objetivo da campanha, de acordo com a Embratur, é realçar a riqueza cultural como um diferencial do Brasil no cenário turístico internacional. A campanha pretende ressaltar que, além da variedade de destinos, o país oferece gastronomia, manifestações artísticas e grandes festivais culturais em todas as regiões do país. A ideia é mostrar estes pilares que, somados à simpatia do povo brasileiro, proporcionariam, de acordo com a Embratur, experiências aos turistas que somente são possíveis de ser vivenciadas no Brasil (INSTITUTO BRASILEIRO DE TURISMO, 2012). Na ocasião do lançamento desta campanha, foi veiculado um vídeo promocional do Brasil que também foi disponibilizado através do site YouTube, no canal criado pela Embratur - o VisitBrasil, com o objetivo de mostrar a receptividade do povo brasileiro e o Brasil como “destino ideal para realizar grandes eventos”. (INSTITUTO BRASILEIRO DE TURISMO, 2012). O vídeo, com duração de 2’03’’, criado pela agência Artplan, constrói a seguinte sequência: estrangeiros de diferentes nacionalidades chegam a diferentes regiões do Brasil, utilizando diversos meios de transporte (como trem, barco, balão, bicicleta, motocicleta, paraquedas, dentre outros veículos), sendo muito bem recebidos por brasileiros e se encontram, ao final, na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. Diferentes regiões e cidades do Brasil são apresentadas ao longo do vídeo, a começar por Salvador, mais precisamente o Pelourinho. Um casal de turistas e seu filho caminham pelo Centro Histórico de Salvador. Neste momento, são mostrados dois importantes ícones da cultura local: “baianas” vestidas com trajes brancos, turbantes e outros enfeites circulando pelo Largo do Pelourinho e uma roda de capoeiristas. Em outros trechos, são feitas referências à cultura do maracatu, em Pernambuco, aos vinhedos da região sul do país, e construções modernas em Brasília e em São Paulo. Museu, estação de trem, restaurante, boate e praia do Rio de Janeiro também são compõem a cenografia construída neste material promocional audiovisual. A trilha sonora durante o vídeo vai se alterando à medida que cada lugar é apresentado e associa-se ao tipo de manifestação cultural ou encontro ocorrido. No início, o som dos berimbaus e cantiga de capoeira. Em seguida, uma música que lembra danças flamencas enquanto são mostradas pessoas tomando vinho e dançando. Depois vem o samba, enquanto ciclistas e balões percorrem a cidade de São Paulo e pessoas celebram no carnaval de Recife e Olinda. Depois, o samba é mixado com música eletrônica enquanto jovens dançam em uma boate. II Congresso Internacional Sobre Culturas 69 Evidencia-se, em toda a sequência de imagens do vídeo, uma suposta mobilidade das pessoas, brasileiros e turistas, através de exibição de ciclovias, sistema de transporte ferroviário, aeroportos, estradas livres e ruas de grandes cidades fluindo perfeitamente para que todos possam circular e conhecer os diversos tipos de atrativos existentes no país. Acessibilidade e inclusão de pessoas com deficiência também são ressaltadas através da imagem de um guia de turismo cadeirante guiando visitantes em um museu. Ao mesmo tempo, há uma associação clara dos modais com variadas práticas esportivas (balonismo, natação, ciclismo, windsurfe, mergulho, futebol, dentre outros) fazendo referência direta aos grandes eventos esportivos internacionais realizados no Brasil: a Copa do Mundo FIFA 2014 e os jogos olímpicos de 2016. Ao longo do vídeo, são apresentados personagens originários de diferentes nacionalidades que podem ser identificados, na maior parte das vezes em que são exibidos, através de características físicas (amarelos, brancos, negros etc.), traços marcantes de cada cultura e também por alguns estereótipos e símbolos relacionados a elas, tais como: saias escocesas, turbantes, sáris, bandeiras, dentre outros. Este conjunto de estereótipos relacionados a diferentes nacionalidades pretende reforçar o discurso de que o Brasil promove, de forma pacífica, o encontro de povos das mais diferentes partes do mundo. Figura 1 – Cenas do vídeo promocional da campanha “O mundo se encontra no Brasil. Venha celebrar a vida” Fonte: Instituto Brasileiro de Turismo (2012c) Na cena final, na cidade Rio de Janeiro, os turistas das mais diversas nacionalidades e os brasileiros se encontram na Praia de Copacabana e celebram juntos, aparentando felicidade e cordialidade entre si. A riqueza natural e cultural do Brasil é evidenciada e, mais do que isso, o intercâmbio festivo entre culturas diferentes oportunizada no país, conforme pode ser visto nas na figura 1 II Congresso Internacional Sobre Culturas 70 Ao final, o vídeo possui um enunciado, em áudio e em off, que conclui e resume tudo o que foi apresentado e deixa claro o posicionamento de marketing adotado pela Embratur nesta campanha: “O estilo de vida do brasileiro. A diversidade da natureza e a força de uma cultura extraordinária. Um local onde pessoas de diferentes origens convivem em harmonia. Você vai descobrir um país jovem, moderno e sensacional, assim que chegar aqui. O mundo se encontra no Brasil. Venha celebrar a vida” (BRASIL, 2012a) Este enunciado possui a função principal de ancoragem, diante da diversidade da sequência de imagens exibidas anteriormente e das diversas possibilidades de interpretações, explicitando ao coenunciador que o lugar que reúne tudo o que foi apresentado na cenografia construída pelo enunciador é o Brasil. Todo ato de enunciação é fundamentalmente assimétrico, conforme aponta Maingueneau (2004, p. 20), já que “a pessoa que interpreta o enunciado reconstrói seu sentido a partir de indicações presentes no enunciado produzido, mas nada garante que o que ela reconstrói coincida com as representações do enunciador”. Segundo o autor, para compreender um enunciado, é preciso mobilizar diversos tipos de saberes. Assim, o coenunciador/espectador deste vídeo promocional da Embratur, deve mobilizar regras pragmáticas e suas competências comunicativas para compreensão. A competência comunicativa, ou seja, a aptidão para produzir e interpretar enunciados, reúne, segundo Maingueneau (2004), outras competências: a linguística (domínio da língua em questão), a enciclopédica (conjunto de conhecimentos sobre o mundo) e a genérica (capacidade de identificar os gêneros). Neste vídeo, o coenunciador deve possuir, para que a mensagem publicitária cumpra seu propósito (o de captar a atenção do espectador e atraí-lo para o “produto” anunciado, neste caso o Brasil), inicialmente a competência linguística para compreender a enunciação – ainda que só ao final do vídeo seja transmitida uma mensagem verbal. O coenunciador deve possuir também alguns conhecimentos enciclopédicos, como, por exemplo, saber que o Brasil é país sede da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Ao mesmo tempo, também é necessário possuir uma competência genérica: perceber que se trata de um vídeo promocional, cujo objetivo é divulgar um país e, por ser do gênero publicitário, são permitidas algumas transgressões com a realidade (como por exemplo, em uma das cenas do vídeo aparecem balões com executivos voando no pleno centro da cidade de São Paulo). II Congresso Internacional Sobre Culturas 71 Toda enunciação, segundo Maingueneau (2004), está inserida em um quadro cênico, que inclui uma cena genérica (gênero de discurso) e uma cena englobante (tipo de discurso). Além disso, uma cenografia é construída no interior da enunciação e serve para legitimá-la. No caso do gênero publicitário, a cenografia é construída de modo a captar o imaginário do coenunciador e atribuir-lhe uma identidade, por meio de uma cena de fala validada. Neste vídeo, a cenografia foi construída a partir da diversidade de imagens do Brasil e das pessoas interagindo, de modo a atrair e motivar o consumidor e especificar de modo direto, através do enunciado do áudio em off, com sentenças objetivas, sem conectivos, indicando agilidade e precisão, as características do país. Em seguida o enunciado “Você vai descobrir um país jovem, moderno e sensacional, assim que chegar aqui”, se dirige ao coenunciador, chamando-o, convidando-o a conhecer o país. Ao final do enunciado, está o slogan da campanha “O mundo se encontra no Brasil. Venha celebrar a vida”, com a finalidade de resumir a mensagem não verbal já transmitida ao longo do vídeo, fazendo referência aos encontros propiciados pelos grandes eventos internacionais, e convocando a todos a “celebrar a vida” aqui. Um slogan segundo, Maingueneau (2004, p 171), “está associado sobretudo à sugestão e se destina, acima de tudo, a fixar na memória dos consumidores potenciais a associação entre uma marca e um argumento persuasivo para compra”. Segundo o autor, o slogan é inseparável de imagens e histórias que estão em seu contexto, apreendido juntamente com um fluxo de outros signos, conforme vemos neste discurso do referido vídeo. É possível perceber, através da descrição do vídeo, que a cultura ocupa um papel fundamental na construção da imagem do país, apontada como o grande diferencial do Brasil frente a outros destinos internacionais. Ao mesmo tempo, pode ser observado que, a despeito da diversidade cultural apresentada, o “estilo de vida” do brasileiro é comum em todo o país: um povo alegre, que aproveita a vida e sabe conviver, valorizar as diferenças e receber bem todos que chegam ao país. Há, portanto, referência ainda a uma identidade cultural nacional que, embora reúna diversidade, se mostra unificada em estereótipos como a cordialidade e a hospitalidade presentes no discurso do Instituto Brasileiro de Turismo. Ao mesmo tempo, a cultura é representada como um insumo ao produto turístico brasileiro, um diferencial em um país que conjuga, na construção discursiva da Embratur, uma natureza diversa e uma cultura extraordinária, o que oportunizaria, segundo este discurso, uma experiência “sensacional” aos que visitam o país. O II Congresso Internacional Sobre Culturas 72 enunciador enfatiza uma cultura que não deve ser apenas exibida e apreciada de forma estática pelo turista, ao contrário, deve ser vivenciada através do intercâmbio harmônico com um povo que, ao menos nas imagens no vídeo promocional, interage pacificamente, isso tudo em belos cenários presentes nos destinos brasileiros que reúnem mobilidade e modernidade.. PORTUGAL, PORTUGUESES A campanha “Portugal, portugueses” foi lançada pelo Turismo de Portugal, “entidade pública central responsável pela promoção, valorização e sustentabilidade da atividade turística” (TURISMO DE PORTUGAL, 2016), como parte das estratégias de divulgação da imagem turística do país no mercado internacional. O vídeo da campanha “Portugal, Portugueses”, com duração de 3’11”, está disponível no canal YouTube VisitPortugal com legendas em cinco idiomas e enfatiza a hospitalidade e a generosidade dos portugueses como principal atributo turístico do país. Por meio de testemunhos de personagens/turistas de diferentes nacionalidades a respeito das experiências vividas em Portugal, em vez de serem enfatizados atrativos relacionados ao patrimônio histórico ou natural ou os destinos turísticos do país, são evidenciados aspectos intangíveis da oferta turística portuguesa, relacionados sobretudo ao diferencial e genuíno modo de receber dos portugueses. O vídeo promocional é também voltado para o público interno, para “mobilizar os profissionais que atuam no setor do turismo e todos os portugueses em torno de um sentido comum: tratar bem quem nos visita” (TURISMO DE PORTUGAL, 2013) e faz parte de uma campanha exclusivamente online que integra outras ações em redes sociais que estimulam os turistas a relatarem suas experiências de viagens em Portugal. No vídeo, turistas de diferentes partes do mundo (tais como Dinamarca, Espanha, França e Brasil), relatam suas experiências e lembranças vividas no país. Na primeira cena, dois jovens com mochilas nas costas caminham por uma estrada enquanto conversam, em dinamarquês, e relembram fatos vividos em uma viagem que fizeram à Portugal. Na transcrição das legendas em português do diálogo eles dizem: II Congresso Internacional Sobre Culturas 73 Portugal, país lindo. Bons museus, bares fixes. Mas sabes, o melhor foi a Ana. Sim, a Ana. Não sabíamos por onde ir, estávamos completamente perdidos. A Ana apareceu e mostrou-nos tudo! Saímos juntos e fomos dançar. Foi muito divertido! Muito divertido, sim! Amigos para sempre. Amigos para sempre. Na cena seguinte, a cenografia construída é a de uma mulher sentada à mesa, em frente a um prato com comida e alguns alimentos ao lado do prato. A personagem, que aqui assume o papel de fiadora do discurso, é uma mulher espanhola. Essa identificação é feita no vídeo através da legenda “Mercedes de la Sierra, Zaragosa”, a indicação da latitude e hora em que foi registrado o depoimento da turista-personagem, elementos que dão mais credibilidade ao discurso, diz “A comida portuguesa é demais! Adoro! “Muito boa”, como dizem lá. Não sei... as coisas são feitas com muita simplicidade e com amor. Não sei... as coisas sabem melhor”. Enquanto isso, são mostradas imagens de um grupo de pessoas sendo atendidas em um restaurante com simpatia e atenção por um chef de cozinha. Depois, uma família de brasileiros relata sua experiência vivida em Portugal enquanto mostra um álbum da viagem. Eles falam sobre o guia de turismo que os acompanhou, considerado como parte da família: “Esse também é da família... Seu Eurico, nosso guia. Olha ele aqui mostrando o mosteiro pra gente. Esse homem leva a gente a conhecer tudo: as montanhas, as aldeias. Aquilo tem coisas fantásticas. Depois ele fala com aquele jeitinho português que a gente gosta tanto. É mesmo família viu”. No quarto relato, um jovem, em uma praia, conta de sua experiência enquanto criança, no país: “Eu lembro-me que estava sempre a cantar “riders in the sun”. Mais as melhores ondas vieram do Francisco, meu instrutor de surf. Ele tinha uma alma tão grande! Tratou-me como um filho. Obrigado Francisco!”. Enquanto o jovem faz o relato, aparecem imagens de uma criança aprendendo a surfar coma ajuda de um atencioso instrutor de surfe. Em seguida, as fiadoras do discurso são duas mulheres francesas (assim identificadas por seu idioma e pela indicação da cidade Toulouse, ao lado da localização e horário do depoimento), sentadas em frente a uma mesa, ao ar livre, que relatam: II Congresso Internacional Sobre Culturas 74 Adoramos o hotel, a paisagem. Foi magnífico! Sim foi verdadeiramente muito bom. Mas do que me lembro é sobretudo do Sr. Antônio, que me impressionou. Muito gentil, muito atencioso. E o seu sorriso, o seu sorriso verdadeiramente inesquecível. E a atenção com os detalhes, as toalhas todas... E as camisas? As camisas muito bem dobradas, umas em cima das outras... Enquanto descrevem sua experiência no país, são exibidas imagens de um profissional que atua na área de hotelaria cuidando de cada detalhe de uma Unidade Habitacional. No último depoimento, uma mulher caminha sobre um campo de golfe, enquanto relata: “Eu vim a Portugal para jogar golf num país fantástico, com greens lindos e o mar por perto... mas o que ficou mais na minha memória foi o Daniel... Ele me deu tanta confiança que fiz até um birdie”. Então a personagem beija o instrutor de golfe, o Daniel. Ao fim, segue o áudio em off, que sintetiza e define a mensagem construída através dos relatos dos estrangeiros sobre Portugal, além de retomar, historicamente, a origem do bom relacionamento dos portugueses com povos estrangeiros: Em cada gesto amistoso. Em cada sorriso. Em cada tentativa de falar a língua de um estrangeiro estão nove séculos de história e de cultura ... De ir partir para o mundo e de vontade de olhar para um desconhecido como um possível amigo, alguém que gostaríamos de ver feliz. É isso que nos inspira no turismo. Perceber que ao fim de cada dia, por sermos como somos, ao trazermos a quem nos visita momentos de felicidade que os faz querer regressar. Em seguida, aparece uma citação de uma frase de Fernando Pessoa: “Põe o quanto és no mínimo que fazes” e a marca VisitPortugal. Ana, Sr. Alberto, Francisco, Sr. Antônio e Daniel dão nomes a portugueses comuns que representam, no contexto discursivo, a representação do próprio povo português. Através dos relatos estrangeiros sobre os portugueses, os personagens vão construindo uma imagem sobre o português exaltando valores como a simpatia, cordialidade e hospitalidade. Por meio dos relatos, e em consonância com a cenografia apresentada, é construída a ideia de que portugueses, e suas características identitárias são o principal diferencial do país. Ainda que a culinária seja “muito boa”, o serviço de hotelaria seja excelente, as montanhas e aldeias tenham “coisas fantásticas”, o que marca as pessoas que visitam o país é o povo português e seu “jeitinho português” de II Congresso Internacional Sobre Culturas 75 falar – como relata a família brasileira, sua “alma tão grande” quanto à do instrutor de surfe e seu “sorriso verdadeiramente inesquecível” como o do Sr. Antônio. Percebemos, portanto, que o povo português é caracterizado no vídeo promocional do órgão oficial do turismo português como um povo que possui identidade nacional bem marcada e unificada em torno de traços como a cordialidade e a hospitalidade. Esses traços identitários que marcam os portugueses teriam origem, a partir do que aponta a mensagem ao final do vídeo, no passado das grandes navegações e a colonização “amigável” de territórios e povos de línguas e culturas diversas. CONSIDERAÇÕES Conforme pudemos perceber, os traços identitários dos brasileiros e dos portugueses são utilizados pelos órgãos de promoção do turismo internacional de cada país enquanto características marcantes e atrativos diferenciais. A cordialidade e a convivência harmoniosa entre povos de culturas e nacionalidades diferentes são argumentos das duas campanhas. Contudo, se no Brasil sua origem remete a história de miscigenação entre os povos, após o processo de colonização portuguesa e, posteriormente, a vinda de diversos imigrantes ao país, em Portugal, esse traço também teria origem no histórico do país, nos seus nove séculos de história e seu passado de encontro com diferentes povos através da colonização. Notas 1 Este artigo é um desdobramento da pesquisa desenvolvida na dissertação de Mestrado em Cultura e Sociedade, Universidade defendida em agosto de 2016.. REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. 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Notas sobre identidade nacional e globalização. In: VIEIRA, Liszt (org.) Identidade e globalização: impasses e perspectivas da identidade e a diversidade cultural. Rio de Janeiro: Record, 2009 II Congresso Internacional Sobre Culturas 77 DISCURSOS MIDIÁTICOS E PENTECOSTALISMO BRASILEIRO: A CULTURA RELIGIOSA EM VIAS DE MIDIATIZAÇÃO Catiane Rocha Passos de Souza33 Rita de Cássia Aragão Matos34 Resumo Este artigo discute o modo como os discursos midiáticos atravessam e constituem o funcionamento do campo religioso pentecostal em sua formação. Nossa hipótese é que se trata de uma religiosidade entranhada, desde sua origem, no processo evolutivo da semiosis social, portanto midiatizada. O processo de midiatização interpenetra todas as fases do pentecostalismo no Brasil, antes disso, ao Protestantismo cujas bases são a Reforma luterana. Para essa análise, tomamos o conceito de Midiatização do semiólogo argentino Eliseo Verón, também destacamos o conceito elaborado pelo pensador português Adriano Duarte. O trabalho faz um recorte de observação na apropriação da imprensa durante a primeira fase do pentecostalismo brasileiro, ou pentecostalismo clássico (1910-1950), quando se implantaram apenas duas denominações no país: Assembleias de Deus e Congregação Cristã do Brasil. Palavras-chave: Midiatização. Imprensa. Pentecostalismo. Assembleia de Deus. Congregação Cristã do Brasil. RELIGIÃO MIDIATIZADA E/OU MIDIATIZAÇÃO RELIGIOSA Inevitável pensar a religião na contemporaneidade sem tratar de sua relação com a mídia, principalmente porque essa relação ampliou as condições do surgimento e/ou fortalecimento de novas religiosidades. Cada vez mais, surgem novas formas de rituais e autocultivo longe dos espaços e das autoridades religiosas tradicionais. Esse crescimento deve-se às novas técnicas de acesso ao conhecimento, bem como aos novos modos de sociabilidade provenientes do desenvolvimento das tecnologias midiáticas. Proliferam símbolos, discursos e posicionamentos religiosos nos diversos espaços sociais como numa espécie de “reencantamento do mundo”, uma reação contrária à secularização anunciada pela modernidade. A proliferação de novas religiosidades surge como a nova dimensão dessa relação atemporal, pois religião e mídia nunca estiveram desassociadas uma da outra. No artigo “Afinal, o que é mídia?”, Adriano Duarte Rodrigues (2016) esclarece como o termo latino médium (no plural, media) foi introduzido no inglês, no final do século XIX, nos Estados Unidos da América, por conta do uso do telégrafo, da fotografia e do rádio nas sessões espíritas kardecistas 33 34 Doutoranda no Pós-Cult IHAC-UFBA. E-mail: catirochapassos@gmail.com Professora Doutora no IHAC- UFBA, rivalta@uol.com.br II Congresso Internacional Sobre Culturas 78 como forma de tornarem possível a transmissão de mensagens entre pessoas distantes. A questão não é etimológica, mas na capacidade da mídia tornar concreta ou possível a ligação com o sagrado: Religião e mídia pertencem uma à outra porque o próprio ato da comunicação mediada implica questões fundamentais sobre os limites da experiência humana – os nossos corpos frágeis, nossas memórias falhas, a dificuldade de manter contato com outros distantes – e o sonho da comunhão desencarnada e transcendente (STOLOW, 2014, p. 150). Nessa perspectiva, a mídia é importante para a materialização da experiência religiosa e para a ampliação da própria capacidade de “crença” do homem em algo transcendental. A concepção de Verón (2011) do fenômeno midiatização nos leva a pensar na religião enquanto um campo midiatizado em seu modo de existência, pois o sentimento religioso se desenvolveu conforme evoluíram os dispositivos de mediação que geraram e popularizaram crenças. A proliferação de religiosidades tem ligação com a diversidade dos fenômenos midiáticos, ou seja, quanto mais diversos os dispositivos materiais maior a riqueza de manifestações religiosas. A mídia também se constitui pelas capacidades de simbolização, imaginação e sensibilização ampliadas com o desenvolvimento do sentimento religioso. Nesse sentido, quanto mais religiosa for uma sociedade, mais midiatizadas são suas práticas. Estudar a midiatização da religião não é tratar do uso dos meios de comunicação por alguma igreja, mas investigar como esse processo reorientou as práticas religiosas. Segundo Verón (2014, p. 16), pela explicação histórica das apropriações que a comunidade faz dos dispositivos técnicos, podemos alcançar os momentos cruciais do processo de midiatização. Seguindo essa orientação, rastreamos fragmentos que nos conduzem à leitura da religião midiatizada. Conforme nosso recorte de observação, partiremos da raiz embrionária do pentecostalismo midiatizado, a apropriação da prensa, imprescindível para a Reforma Protestante. A RELIGIÃO MIDIATIZADA DA REFORMA LUTERANA AO AVIVAMENTO DA RUA AZUZA Na concepção de Verón (2013, p. 147), “a midiatização é, no contexto da evolução da espécie, a sequência de fenômenos midiáticos históricos que resultam de II Congresso Internacional Sobre Culturas 79 determinadas materializações da semiosis, obtidas por procedimentos técnicos”. Um desses procedimentos técnicos, que acelerou o tempo evolutivo da espécie, reconhecido e discutido por Verón, foi a criação da prensa (1455). Sobre o modo como esse dispositivo redimensionou a evolução, Verón dedica os capítulos 14 e 15 do livro “La Semiosis Social 2”. Antes da prensa, cada cópia de livro exigia um escriba e era alto o preço da reprodução. A prensa surgiu na Europa rumo ao Renascimento, quando crescia o interesse pelo conhecimento escrito, antes de exclusividade da nobreza e do clero. Nesse contexto, quando cópias da Bíblia começam a circular na Europa, Lutero lança a semente de Reforma no Cristianismo se apropriando do mecanismo da imprensa: “o campo em que os historiadores têm reconhecido mais facilmente e mais rapidamente os efeitos do surgimento do dispositivo técnico da imprensa é o da história do protestantismo” (VERÓN, 2013, p. 213). Com cerca de 15 dias, as teses de Lutero circulavam na Alemanha e em um mês por toda a Europa, os reformadores se apropriaram da imprensa como mecanismo de persuasão e publicidade (VERÓN, 2013, p. 214). Não eram as primeiras manifestações contra o império católico romano, condenações por heresias e apostasias foram frequentes na história do cristianismo, a diferença da Reforma Luterana é justamente acontecer no momento que surge um novo dispositivo técnico de comunicação. O acesso à Bíblia paralelo ao protesto de Lutero não pode ser meramente entendido como “coincidência temporal”, trata-se do surgimento de novas condições possibilitadas pelo novo dispositivo técnico. O acesso ao texto sagrado impresso reconfigura outras condições de produção e reconhecimento do discurso: O dispositivo técnico (a multiplicação e a possibilidade de acesso generalizado aos textos) antecipou a figura de uma nova estruturação de vínculo entre o cristão e seu deus, e chegado o momento materialmente possível fez o exercício da autonomia individual na leitura e interpretação da Bíblia (VERÓN, 2013, p. 216). Essa autonomia possível com o acesso a Bíblia foi inovador no quadro das religiões universais, uma espécie de Renascimento religioso, pois cada leitor tornou-se capaz de buscar sua salvação de modo individualizado. Nesse cenário, multiplicou-se a heterogeneidade das interpretações bíblicas e o aumento da complexidade dessa leitura deu espaço ao desenvolvimento de um mercado religioso. Na leitura de Verón (2013), a grande inovação dos reformadores foi perceber a defasagem entre produção e reconhecimento do texto impresso. Além disso, a procura de uma racionalidade em II Congresso Internacional Sobre Culturas 80 contraposição ao absurdo (RODRIGUES, 2001, p. 195) propiciou à religião do livro da capa preta se espalhar pelo ocidente. No cenário ocidental, mas distante do velho continente, já no início do século XX, surge uma renovação no protestantismo americano. O “Avivamento da Rua Azuza” - Los Angeles (EUA), que se popularizou como “Pentecostalismo”, se caracterizou por manifestações sobrenaturais como a glossolalia. Mas essas manifestações e outros elementos do culto pentecostal foram registrados anteriormente em diversas igrejas dos Estados Unidos. Então, o que fez diferença no Avivamento da Rua Azuza? A diferença é que as reuniões da Rua Azuza receberam a atenção da imprensa em sua primeira semana de programação. Os encontros liderados pelo Pastor William Seymour começaram a acontecer dia 14 de abril de 1906 e três dias após, o jornal Los Angeles Daly Times enviou um repórter ao local das reuniões: “O Los Angeles Times enviou um repórter a um culto noturno na primeira semana de existência da Missão. O artigo resultante serviu como propaganda gratuita, apesar de seu patente tom aviltante” (ARAÚJO, 2014, p. 605). O artigo fazia duras críticas à reunião e ao pastor negro e entusiástico, foi publicado em 18 de abril de 1906, dia do grande terremoto da Cidade de São Francisco (Califórnia), mais destrutivo da história dos Estados Unidos. As especulações de que o dia do juízo final se aproximava relacionavam o Avivamento da Azuza à tragédia do terremoto de São Francisco. Milhares de folhetos sobre o cumprimento das profecias foram distribuídos. Após o terremoto, a Rua Azuza passou a receber milhares de pessoas de diversas regiões. A tragédia em São Francisco foi importante sensibilizador das pessoas para a mensagem pentecostal, mas sua visibilidade foi graças à imprensa. O artigo publicado no Los Angeles Times em 18 de abril de 1906 não contava como interpretante um leitor sensibilizado e aterrorizado pelo grande terremoto na manhã daquele dia, ou seja, a defasagem entre as condições de produção e as condições de reconhecimento foi apropriada pelos pentecostais que (re)significaram o conteúdo do artigo a favor da divulgação das reuniões que aconteciam na Rua Azuza. O Avivamento da Rua Azuza durou três anos, mas sua intensidade foi suficiente para mobilizar missionários em diversos países, inclusive no Brasil, para onde vieram os suecos Vingren e Berg, fundadores das Assembleias de Deus, e o italiano Louis Francescon, fundador da Congregação Cristã do Brasil, todos em 1910. II Congresso Internacional Sobre Culturas 81 O PENTECOSTALISMO CLÁSSICO BRASILEIRO EM VIAS DE MIDIATIZAÇÃO Verón (2014) esclarece como a capacidade de semiosis da espécie é ativada de formas diferentes conforme se acumulam os fenômenos midiáticos. Nesse processo, também evolui a capacidade de simbolizar necessária na existência da religiosidade. A religião como um campo da sociedade é redimensionada de formas diferentes pelo caráter radial e transversal dos efeitos produzidos pelos fenômenos midiáticos. Os efeitos radiais, cujos resultados implicam numa enorme rede de relações de retroalimentação, e a não-linearidade “explicam a consequência mais importante desses momentos cruciais de midiatização: a aceleração do tempo histórico (VERÓN 2014, p. 16). O ritmo de aceleração e o modo como ocorre depende dos fenômenos midiáticos que materializam as distorções e produzem as rupturas do espaço-tempo. A aceleração do tempo é observada ao longo da história nas mudanças geradas após a emergência de cada dispositivo técnico-comunicacional em determinados contextos sócio-históricos. Seguindo essa lógica, observaremos a aceleração do tempo histórico no contexto específico da história do pentecostalismo brasileiro a fim de reconhecer o processo de midiatização desse campo religioso de modo particular. Em 1910, o italiano Louis Franscescon fundou em São Paulo a Congregação Cristã do Brasil (CCB) e chegaram a Belém do Pará, Gunnar Vingren e Daniel Berg, suecos que fundaram no ano seguinte o primeiro grupo das Assembleias de Deus no Brasil (ADs). Praticamente em toda primeira metade do século no Brasil somente essas duas denominações pentecostais se estabeleceram. A Congregação Cristã do Brasil centralizou-se na imigração italiana em São Paulo, conservou seu ethos de irmandade, como aponta Alencar (2013), uma igreja étnica e de fundamentação calvinista, bastante conservadora. As Igrejas Assembleias de Deus em menos de duas décadas se espalharam pelo Norte e Nordeste, atingindo 20 estados antes de 1930. Apesar da expansão territorial das AD, a CCB chega aos anos 30 com um número de membros bastante superior aos das ADs: as duas denominações começaram com 20 membros, mas, em 1930, a CCB contava com 30.800 e as ADs com 13.511 membros (ALENCAR, 2013, p. 160). Esse crescimento da CCB teve relação com o processo de identificação: uma religiosidade pregada por um italiano na comunidade italiana em São Paulo. O desenvolvimento industrial em São Paulo atraia uma forte migração em contraponto à II Congresso Internacional Sobre Culturas 82 crise da borracha que redimensionava o fluxo migratório do Norte para as regiões Nordeste e Sudeste do país. A CCB, calvinista, não faz nenhuma atividade de caráter proselitista: não realiza apelo à conversão. Não evangelizam familiares nem amigos, a única literatura é a bíblia, não investe em nenhum meio de comunicação, as únicas publicações são o hinário, um livro de endereços dos templos, um manual para as orquestras e o relatório anual totalmente informativo sem caráter pedagógico ou teológico. Não sistematiza nenhum tipo de educação teológica ou ensino bíblico, nem utiliza qualquer dispositivo técnico-comunicacional para fins religiosos. Assim se implantou a CCB em 1910 e dessa forma se mantém até os dias atuais. A CCB manteve suas características em quase tudo, menos no índice de crescimento do número de seguidores comparado às ADs, ambas pentecostais fundadas no mesmo período histórico por missionários enviados pela North Avenue Mission (Chicago-EUA). A partir de 1930 a CCB não acompanhou mais os índices de crescimento das ADs (ALENCAR, 2013): Membros CCB e ADs CC B ADs 191 0 20 1930 1940 1950 1960 1970 1990 2000 2010 30.80 0 36.64 4 50.00 0 69.667 211.10 8 407.58 8 328.65 5 753.12 9 1.635.98 3 2.439.77 0 2.489.11 3 8.418.14 0 2.289.634 20 13.51 1 120.00 0 12.314.41 0 Os dados indicam uma aceleração da expansão do tempo das ADs a partir de 1930, o ritmo de crescimento das duas primeiras décadas acelerou conforme os números de membros. Essa aceleração deve-se à apropriação do dispositivo técnico-midiático pelas ADs: a imprensa inovou o pentecostalismo assembleiano em 1930, mas sua utilização começou antes, em 1917. O primeiro Jornal “Voz da Verdade” (1917-2018) durou pouco, talvez por seu caráter interinstitucional: o redator principal era um pastor batista. Ou por dificuldades financeiras, pois era de distribuição gratuita. Em dezembro de 1918 (Belém do Pará), Gunnar Vingren fundou o primeiro jornal oficial das ADs o “Boa Semente” que circulou de 1919 a 1930, distribuído gratuitamente. Em 1923 foi montada a primeira tipografia das ADs que além do jornal publicou opúsculos, calendários, hinários e revistas da Escola Dominical. Foi um grande empreendimento em vista das condições dos assembleianos: “Assembleianos pobres na periferia tinham a seu dispor neste momento um elemento incontestável de distinção social, mesmo muitos II Congresso Internacional Sobre Culturas 83 sendo semiletrados (talvez a grande maioria), mas de posse de um livro grande – a Bíblia – e de um jornal, ascendiam em importância” (ALENCAR, 2013, p. 138). O declínio do ciclo da borracha aumentou as taxas de analfabetismo no Norte e o êxodo às demais regiões brasileiras. Esse contexto resultou na criação, em 1929 (Rio de Janeiro), de um segundo periódico assembleiano de distribuição gratuita. Fundado também por Gunnar Vingren que o denominou “O Som Alegre”. Pelas circunstâncias de sua produção esse jornal circulou e ganhou fama entre os assembleianos de todo país (ARAÚJO, 2014, p. 820). Esse sucesso incomodou os pastores brasileiros, principalmente nordestinos que visavam substituir a liderança sueca. Acredita-se também que se deve ao fato de Frida Vingren, esposa do Gunnar Vingren, possuir efetiva e ampla participação na direção da igreja e do jornal do Rio de Janeiro: “Com o apoio do marido, era ela quem, na prática, dirigia O Som Alegre” (DANIEL, 2004, p. 34). Se ainda hoje o ministério feminino é proibido nas ADs, nos anos 20 e 30 era intolerável qualquer iniciativa feminina de liderança. Por conta desses fatores, a liderança das ADs resolveu convocar todos os pastores para a primeira Convenção Geral das ADs do Brasil, em Natal (RN), em 1930. A pauta era: Relatório do trabalho realizado pelos missionários; Nova direção do trabalho pentecostal do Norte e Nordeste; Circulação dos jornais Boa Semente e O Som Alegre; Trabalho feminino na igreja. Todos os pontos estavam vinculados ao quadro das tensões que circulavam em torno da figura de Frida Vingren e do modo como usava a imprensa. Essas tensões levaram a substituição dos dois periódicos por um de circulação nacional, o “Mensageiro de Paz” (MP). “As tensões se agravaram consideravelmente e, em 15 de agosto de 1932, Vingren e família voltam para a Suécia. Quem o substitui no pastoreio da igreja no Rio de Janeiro? Samuel Nystron” (ALENCAR, 2013, p. 133). Samuel Nystron era outro sueco, redator chefe do Jornal Boa Semente, contrário ao ministério feminino teve grande apoio dos pastores brasileiros do Norte-Nordeste na época. Antes dessa Convenção de 1930 que fundou a CGADB (Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil), os pastores se reuniam periodicamente para estudar a Bíblia. Eram encontros chamados de Escolas Bíblias, mas sem caráter burocráticonormalizador. A CGADB se apropriou da imprensa, se autolegitimando dentro do campo pentecostal brasileiro, uniformizou e regulamentou as orientações teológicas e doutrinárias, instituiu o MP como único meio oficial das ADs, se constituindo em um órgão de poder decisório soberano nas ADs em todo o território brasileiro. A II Congresso Internacional Sobre Culturas 84 centralidade do MP resultou na unidade teológica e doutrinária nacional em todas as ADs e igrejas dissidentes, mas no aspecto administrativo já havia disputa entre líderes brasileiros do Norte e Nordeste e missionários suecos do Sudeste e Sul. O MP, diferentemente dos dois jornais anteriores de distribuição gratuita, já instalou desde o primeiro número, em 1 de dezembro de 1930, o sistema de assinaturas e vendas avulsas, com edições quinzenais. A CGADB proibiu a produção de qualquer outro jornal nas ADs do país, com ênfase na ideia de unidade nacional. Em 1933, na AD de Recife/PE surgiu o jornal “Voz Pentecostal”, que foi extinto no ano seguinte por determinação da CGADB: “tendo em vista o Mensageiro da Paz, o órgão oficial das Assembleias de Deus no Brasil, suficientemente apto para atender todas as necessidades das mesmas” (Ata da CGADB em 1934, In DANIEL, 2004:95). Na década de 40, outra iniciativa de quebra da hegemonia do MP partiu da AD em Salvador-BA, o Jornal “Voz Evangélica”, também extinto por determinação da CGADB em 1946. A política de silenciamento (ORLANDI, 2007) de outras vozes impressas nas ADs foi estabelecida até os anos 80 quando uma dinâmica de mudanças afeta as ADs. Ainda hoje, o MP é o principal periódico ligado à CGADB, mas ao passo que muitos pastores das ADs romperam com a CGADB outros periódicos foram surgindo. Atualmente, não há restrição aos Ministérios vinculados à CGADB de produzirem seus periódicos, a exemplo do “Nosso Setor”, do Ministério da AD do Belém/SP, mas essa “liberação” só veio acontecer depois dos anos 90 quando a Casa Publicadora das ADs (CPAD) já havia se consolidado no mercado nacional e internacional. A imprensa já era usada pelos assembleianos brasileiros como meio de evangelismo e ensinamento desde 1918, a grande mudança a partir de 1930 não está na utilização da imprensa, mas na interpenetração que torna imprensa e religião como intersistemas autorreferenciais, auto-organizantes e auto-poiéticos (VERÓN, 2013, p. 298). A imprensa assembleiana criou seus mecanismos de inteligibilidade, foi única no campo do pentecostalismo brasileiro por quase todo o século XX, reformulou às ADs institucionalmente, estabeleceu unidade dos ensinamentos teológicos, validou os mecanismos de identificação da religiosidade pentecostal dos quais se apropriam quase todas as igrejas pentecostais brasileiras até os dias atuais, exceto a Congregação Cristã do Brasil. II Congresso Internacional Sobre Culturas 85 REFERÊNCIAS ALENCAR, Gedeon. Matriz Pentecostal Brasileira: Assembleia de Deus 1911-2011. Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2013. ARAÚJO, Isael de. Dicionário do Movimento Pentecostal. 3ª impressão. Rio de Janeiro: CPAD, 2014. DANIEL, Silas. História da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2004. RODRIGUES, Adriano Duarte. Afinal o que é mídia? http://www.ciseco.org.br/index.php/artigos/279-afinal-o-que-e-a-midia. Acesso em 05/10/16. RODRIGUES, Adriano Duarte. Estratégias da Comunicação: Questão comunicacional e formas de sociabilidade. 3ª Ed. Lisboa: Presença, 2001. STOLOW, Jeremy. Religião e Mídia: Notas sobre pesquisas e direções futuras para um estudo interdisciplinar. Religião e Sociedade. Rio de Janeiro, 34 (2): p.146-160, 2014. VERÓN, Eliseo. La Semiosis Social 2: ideas, momentos, interpretantes. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Paidós, 2013. VERÓN, Eliseo. Midiatização, novos regimes de significação, novas práticas analíticas? IN: FERREIRA, G. M., SAMPAIO, A. e FAUSTO NETO, A. (orgs.). Mídia, discurso e sentido. Salvador: EDUFBA, 2011. p. 17-25. VERÓN, Eliseo. Teoria da midiatização: uma perspectiva semioantropológica e algumas de suas consequências. Matizes. V. 8 - Nº 1, jan./jun. 2014. São Paulo – Brasil. p. 13-19. II Congresso Internacional Sobre Culturas 86 A PUBLICIDADE NO CENTRO DA CONTROVÉRSIA: ANÁLISE DO FILME CASAIS PELA ÓTICA DA TEORIA ATOR-REDE35 André Bomfim dos Santos36 RESUMO O envolvimento de marcas em debates sociais controversos apresenta-se como uma estratégia mercadológica em ascensão. Em uma sociedade midiatizada, as marcas são instâncias poderosas pelo seu poder econômico e arsenal midiático, podendo desempenhar papel crucial no desenrolar das controvérsias. Analisamos o fenômeno a partir do estudo de caso do comercial Casais, da marca líder em cosméticos no Brasil. Ao mostrar casais homossexuais em meio ao mix de personagens no filme em homenagem ao dia dos namorados, a marca reacende o debate em torna da representatividade gay na TV brasileira. Utilizamos como perspectiva teórica os pressupostos da teoria ator-rede (TAR) e sua proposta de instrumentalização, a cartografia das controvérsias (CC). Os resultados revelam o filme publicitário como mediador central em um intenso debate entre as comunidades pró-LGBT e evangélica. Palavras-chave: Publicidade. Mídias digitais. Teoria ator-rede. Cartografia das controvérsias. INTRODUÇÃO Nos últimos três anos, o festival internacional Cannes Lions, instância máxima de consagração do campo publicitário, revela uma tendência em suas premiações: o envolvimento de marcas em temas sociais controversos. Trata-se de campanhas em que as marcas cedem o foco dos seus produtos e atributos institucionais em prol da representação e discussão destes tópicos. Na edição de 2015, por exemplo, A Procter & Gamble saiu premiada com duas campanhas que tocam a questão da equidade de gêneros. A Fiat, com ação em prol da abstinência alcoólica entre condutores. Já a representatividade LGBT foi o mote de peças premiadas da Unilever e Burger King. No Brasil, o filme Casais da marca O Boticário, líder em cosméticos no país, trazia em seus trinta segundos, uma homenagem ao dia dos namorados, com uma peculiaridade: do mix de quatro casais que compunham os personagens, dois eram homossexuais. O fluxo de conversações deflagradas pelo comercial colocou a marca no centro das discussões em torno de temas controversos como homossexualidade, direitos 35 Trabalho apresentado como requisito parcial para aprovação na disciplina COMA75 - Temas em media e cibercultura, ministrada pelos professores doutores André Lemos e André Holanda. 36 Doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas pelo PósCom/UFBA. Bolsista da CAPES proc. nº 23066.045262/14-95. E-mail: andrebomfim01@gmail.com II Congresso Internacional Sobre Culturas 87 LGBT, família e religião. No período de 3 a 8 de junho, semana em que acontecera também a parada gay da cidade de São Paulo, a marca foi citada mais de dez mil vezes nas principais redes sociais digitais, sendo um dos tópicos mais comentados, ao lado de "família", "religião" e "Malafaia" (SCUP MONITORA..., 2015). Especialistas em marketing apontam o engajamento social como o vetor de expansão das marcas nas próximas décadas. Inaugurando o conceito de marketing 3.0, Kotler (2010, p. 4) profere que "em um mundo confuso, eles [os consumidores] buscam empresas que abordem suas mais profundas necessidades de justiça social, econômica e ambiental em sua missão, visão e valores". Em relatório global sobre o comportamento dos prossumidores, o instituto de pesquisa de mercado Havas conclui: "Em todo o mundo, pessoas esperam que as grandes companhias intervenham onde os governos falharam, que contribuam com soluções de crises crônicas como pobreza, falência dos sistemas educacionais e mudanças climáticas" (HAVAS WORLDWIDE, 2013, p. 3). Essas observações foram o ponto de partida para a seguinte questão de ordem comunicacional: quais as estratégias utilizadas nesse processo de envolvimento de marcas e conteúdos em tópicos sociais controversos? A publicidade pode ser um elemento catalisador de questionamentos e debates sociais? Tendo como objetivo analisar o papel de conteúdos publicitários no centro das controvérsias sociais, empreendemos estudo de caso sobre o debate social gerado em torno do comercial de O Boticário. Para tanto, confrontamos a análise poética do filme publicitário em questão com a observação dos rastros digitais do debate em sites de rede social - Facebook e YouTube - e cobertura da imprensa especializada - Meio & Mensagem e Brainstorm 9. O estudo tem como enquadramento teórico os pressupostos da teoria ator-rede (TAR) e a proposta metodológica dela derivada, a cartografia das controvérsias (CC). PERSPECTIVA TEÓRICA A partir da noção central de controvérsia, Latour (2012) desenvolve a metodologia derivada da TAR, a Cartografia das Controvérsias. Venturini (2010) ilustra a importância da controvérsia para a TAR através da metáfora do magma. As controvérsias são apresentadas como a vida social em seu estado magmático, ou seja, onde se desfaz e se forja. A dinâmica entre as bordas que se solidificam e o centro em ebulição conota que a vida social é permanentemente construída, desconstruída e II Congresso Internacional Sobre Culturas 88 reconstruída. O trabalho do cartógrafo é dividido então em dois grandes esforços: observação e descrição. Venturini (2010) compara o processo de observação à troca de lentes em uma câmera ou microscópio, sugerindo 5 lentes, que podem ser encaradas como etapas do trabalho de observação de controvérsias: das declarações às literaturas; das literaturas aos actantes; dos actantes às redes; das redes às visões de mundo (cosmoses); das visões de mundo às visões políticas (cosmopolitics). O movimento deixa claro que as teias de relações são montadas a partir do mapeamento de declarações e identificação dos atores/actantes. Não por acaso, a cartografia se beneficia amplamente da mediação digital, que adiciona aos fenômenos sociais duas propriedades fundamentais: a rastreabilidade e a agregabilidade. Rastrear um fenômeno significa convertê-lo em algum tipo de texto (inscrição). Com as mídias digitais tudo se torna automaticamente rastreável e dados podem ser extraídos de largas populações, não apenas de amostras restritas. Já agregar informação significa apresentá-la em uma forma condensada, como mapas, diagramas e estilizações gráficas. O trabalho de descrição, por sua vez, concentra-se nos esforços de ordenação e representação das complexas teias relacionais mapeadas na etapa anterior. O estudo de caso aqui proposto parte do ressurgimento de uma controvérsia a partir de um produto simbólico audiovisual publicitário. Como recomenda Venturini (2010), trata-se de uma controvérsia "quente", no sentido de atual, além de localizável e observável nos principais sites de redes sociais. Múltiplos atores estão nela envolvidos. Entre os humanos, usuários da mídia social que fizeram da marca um dos tópicos mais comentados no auge da discussão (ver introdução), divididos entre representantes da comunidade evangélica e pró-LGBT. Entre os não-humanos, a própria organização O Boticário, sua marca, o CONAR – Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária, textos da imprensa e a mídia social. Como actante central, uma vez que é a partir deste que se deflagram os debates, o filme publicitário. A presente análise não se constitui, entretanto, numa aplicação direta da cartografia das controvérsias enquanto método. Tal intento superaria nosso escopo, recursos temporais e limitações tecnológicas. Utilizamos os seus princípios de observação e descrição como eixos articuladores entre o campo da publicidade e a TAR. II Congresso Internacional Sobre Culturas 89 POR ONDE COMEÇAR? ANÁLISE POÉTICA DO FILME CASAIS Partimos da análise de um conteúdo simbólico, que dispara uma série de agências por parte de outros actantes. Em se tratando de um produto audiovisual publicitário, cuja linguagem tem relação direta com o código cinematográfico, utilizamos o método de análise poética proposto por Gomes (2004), que se baseia em uma "desmontagem" do texto audiovisual em efeitos estéticos, comunicacionais e poéticos. O comercial revela em sua tessitura narrativa, a estratégia de indução e posterior quebra de expectativas em torno da hetero e da homossexualidade. E o faz em rede aberta de televisão, em nome de uma marca brasileira de 38 anos, cuja comunicação publicitária faz parte do imaginário nacional em torno de datas comemorativas e familiares como Natal, dia dos pais, dia das mães e o próprio dia dos namorados. Desconsiderar tais intencionalidades levaria qualquer análise a uma postura ingênua e leviana. O filme de 30 segundos é dividido na metade, em duas sequências elaboradas num esquema de ações paralelas. A primeira sequência traz diversas pessoas preparando-se para a noite do dia 12. A sequência dos preparativos termina, porém, com uma sucessão de planos que, além de abrirem o espaço para a sequência dos encontros, montam de forma engenhosa a surpresa ou turning point do filme (figura 2). Figura 2 - Fotogramas do ponto de virada (turning point) Fonte: canal de O Boticário no YouTube No primeiro desses planos, uma jovem com um presente nas mãos, toca a campainha do seu par. No segundo plano da sequência, um jovem adulto atende um interfone, sugerindo um rapport entre os planos. Num terceiro plano, o portão é destravado e a jovem entra no edifício. Num quarto plano, o jovem adulto se dirige à II Congresso Internacional Sobre Culturas 90 porta do apartamento para abri-la. Um quinto plano, médio e da porta se abrindo (exatamente aos 15 segundos), revela que o par do homem, ao contrário do que a montagem induzira a pensar, não é a moça, mas um senhor de meia-idade, já visto anteriormente, na sequência dos preparativos. A sequência dos encontros leva adiante o propósito de desafiar as presunções e expectativas do espectador em relação a um comercial da referida marca, no horário nobre da rede aberta de televisão: os dois homens se abraçam com afeto; uma mulher de meia-idade (supostamente par do senhor também de meia-idade) encontra-se com outro jovem adulto; a moça da campainha, com outra jovem; e um outro casal heterossexual, de idades mais próximas, encontra-se numa praça, abraçando-se e encerrando a sequência. Uma locução feminina anuncia então o produto sugerido para o dia dos namorados, apresentado em packshot e compondo a assinatura do filme. A análise mais criteriosa da obra é aqui apresentada não como um mero capricho metodológico. Ela revela uma construção narrativa engenhosa, que induz o espectador, pautado pelo ethos televisivo e da própria marca, à antecipação de um desfecho heteronormativo. E entrega outro, composto por um mix igualitário entre casais homo e heterossexuais. A construção poética da obra, mais notadamente sua narrativa e montagem, deixa claro o propósito de surpreender o espectador através do confronto entre suas expectativas e a mise-en-scène entregue nos últimos 15 segundos. Em seu aspecto comunicativo, o filme entrega uma mensagem clara: O Boticário está inserida em um novo projeto de sociedade, igualitária em relação a questões de gênero e orientação sexual. E através do choque entre expectativa e desfecho, desafia o espectador, levando-a à reflexão, colocando-o ativamente no circuito de decodificação da mensagem e impondo-lhe a questão crucial: e você? DAS DECLARAÇÕES ÀS LITERATURAS O texto midiático constituído pelo filme publicitário é aqui considerado a declaração inicial. Em torno dele, uma série de outras vozes/discursos deu corpo ao debate social. Dividimos a avalanche de declarações em dois eixos: o debate público (3.1) e a cobertura da imprensa especializada (3.2). II Congresso Internacional Sobre Culturas 91 Rastros digitais: como domá-los? Sendo um estudo de natureza exploratória, com o intuito de criar articulações entre os pressupostos da Cartografia das Controvérsias e o campo da publicidade, limitamo-nos à análise de uma amostra intencional, obtida a partir da observação dos comentários sobre a controvérsia no Facebook e no YouTube. No canal oficial de O Boticário no YouTube, o comercial alcançou até o fechamento da análise mais de três milhões e quinhentas visualizações, 386.563 likes e 193.171 dislikes. O volume de comentários chegou a quarenta e sete mil. Longe porém de um debate dialético, observa-se uma disputa dominada pelos afetos entre pontos de vista polarizados. "Uma criança assiste essa propaganda e acha que é normal dois machos barbudos namorarem. Sempre comprei seus perfumes, O Boticário, mas agora não compro mais assim como milhares de cristãos que estão indignados com essa película com más intenções", provoca R.V.37 "Vcs interpretam a bíblia como querem seus babacas, tanta coisa q é dita e vcs não cumprem, só vê o q convém as vcs seus acéfalos!!", retruca A.Y. No canal do pastor Silas Malafaia, outro importante ator na teia de relações em questão, a página com o video Pr. Silas Malafaia critica propagandas que incentivam o homossexualismo38 (sic) traz números que revelam que o seu poder de alcance se deve muito mais ao caráter controverso das suas declarações, do que ao teor quantitativo de concordância em relação a elas. Até o fechamento da análise, cerca de 590 visualizações e 421 comentários. Destes, todos mensagens de apoio e concordância, baseadas em pressupostos de crença e fé. "É isso aí Pastor Silas, aqui em Brasília estamos com a Bíblia e com as verdades divinas; apoiamos sua pregação." (S.S.F.); "Parabéns pastor! Vamos defender a verdadeira família! Abraços e fique com Deus." (R.M.); O video angariou 11.300 likes, contra 68.072 dislikes. Já no Facebook, observou-se, em geral, um tom de maior apoio à marca e a construção de discursos em prol da representatividade LGBT a partir do comercial. Porém uma parcela desta produção chama a atenção pelo que tem de inusitada e criativa: os memes. "Unidades de informação cultural passadas adiante de pessoa a pessoa, mas que gradualmente transcendem para um fenômeno social" (SHIFMAN, 2014, pos. 250/2585), os memes representam um novo espaço de expressão popular, 37 Depoimentos transcritos em sua forma integral. Usamos apenas as iniciais dos seus usuários por questões de privacidade. 38 Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=Rn8ET9Nos9g>. Acesso em 15 jun. 2015. II Congresso Internacional Sobre Culturas 92 onde se cruzam cultura, política e participação. Um exemplo dessa inventividade foi o meme raio boticarizador (figura 4): uma proposição criativa baseada na montagem de duas fotos de uma mesma pessoa do sexo masculino em versões usual e travestido. Muitas vezes vistos apenas como diversão descompromissada, os memes são inscrições de atores que, através do humor, registram seu posicionamento político sobre determinados temas. Enquanto textos midiáticos, espalham-se de forma viral, tornandose assim, importantes actantes na condução das controvérsias. Figura 4 - o meme raio boticarizador Fonte: Facebook As ameaças de boicote à marca lideradas por Malafaia perderam o sentido no momento em que, tendo como oportunidade os eventos derivados do mês do orgulho gay, uma série de outras marcas lançaram materiais comemorativos à causa. Movimento que culminou com a aprovação à legalização da união civil homossexual pela Suprema Corte estadunidense. Gatorade, General Eletric, Netflix e Conselho Nacional de Justiça estavam entre elas (figura 5). Parece-nos evidente que o apoio vindo de marcas desse porte foram fundamentais para incentivar e consolidar as reações em prol da causa LGBT e silenciar paulatinamente as reações contrárias. Textos da imprensa Durante o calor da controvérsia seguimos também os registros da imprensa especializada em publicidade e marketing, que se debruçou de forma mais incisiva sobre o processo aberto no CONAR, a partir da queixa de cerca de 30 consumidores, II Congresso Internacional Sobre Culturas 93 sobre o caráter supostamente ofensivo do comercial39. O principal destes veículos é o Meio&Mensagem, periódico do grupo homônimo, reconhecido nacionalmente como um dos principais na cobertura do segmento. Em paralelo, foram analisadas também a cobertura do Terra e UOL, importantes portais noticiosos. De maneira geral, os veículos adotam um posicionamento favorável ao polo pró-LGBT, com ampla cobertura de eventos favoráveis à causa. O Meio&Mensagem pode ser lido como um termômetro da opinião predominante entre publicitários e mercadólogos, revelando que ambos os campos encontram-se dispostos a lidar com o tema e veem a questão como tendência irreversível. O que O Boticário fez foi aquilo que grandes marcas precisam fazer. Marcas são criadas e posicionadas para vender, mas fazem parte de uma sociedade e precisam dialogar com ela. E as questões defendidas pela bandeira LGBT, como a união estável de pessoas do mesmo sexo, fazem parte dessa sociedade (TURLÃO, 2015). O blog Brainstorm9, por sua vez, dedicou-se a uma entrevista com Rynaldo Gondim, diretor de criação da ALMAP/BBDO, agência responsável pela criação da campanha. O profissional argumenta que a simplicidade e naturalidade foram a tônica na construção das cenas de afeto entre os casais homossexuais. E destaca o fato de que os casais gays têm "o mesmo peso" que os casais heterossexuais. De caráter mais subjetivo, os textos do B9 deixam claro um enquadramento entusiasmadamente favorável à representatividade LGBT na publicidade: "Sem alarde ou tratamento diferenciado, O Boticário estreou uma linda campanha de Dia dos Namorados no domingo, durante o intervalo do Fantástico, na TV Globo" (LAFLOUFA, 2015). Porém, o entusiasmo de seus editores apresenta-se como a provável causa de uma análise menos crítica da peça publicitária, ressaltando apenas o caráter de suposta naturalidade e espontaneidade na representação homoafetiva: "O bacana é que a campanha trata tudo com muita naturalidade e delicadeza, como deve ser" (LAFLOUFA, 2015). Uma leitura possivelmente ingênua, como indicado em nossa análise poética (ver seção 2). LIGANDO OS PONTOS E CONSTRUINDO REPRESENTAÇÕES Considerado um actante central na teia de relações, o filme Casais traz uma construção poético-narrativa que vai de encontro à impressão geral da audiência: uma peça que aborda o tema com naturalidade, espontaneidade e simplicidade 39 O processo contra a campanha foi arquivado por unanimidade no dia 16 de julho. II Congresso Internacional Sobre Culturas 94 descompromissadas. Tal impressão é reiterada nos discursos do diretor de criação da peça, nas análises da imprensa especializada (ver 3.2) e em boa parte das declarações do público em geral. A análise poética, no entanto, revela uma construção baseada na inversão de expectativas, técnica narrativa usada para desestabilizar o espectador, uma vez que suas suposições sobre o desfecho são construídas em uma determinada direção e bruscamente desconstruídas por um ponto de virada. A falsa expectativa ainda é reforçada ao se tratar de uma marca que até então só trouxera representações heterossexuais em seu imaginário. O estratagema narrativo indica uma intenção previamente calculada de chocar, promovendo algum tipo de repercussão. Se a lei da física nos ensina que para cada ação, existe uma reação inversamente proporcional, o comercial gera uma reação em cadeia entre os dois polos opostos na controvérsia: a comunidade pró-LGBT e a comunidade evangélica. A primeira reação em termos cronológicos é o vídeo Pr. Silas Malafaia critica propagandas que incentiva o homossexualismo, publicada no canal do líder religioso. No vídeo, o pastor convoca os adeptos do que define por "família milenar" a boicotar O Boticário e outras marcas que promovem o “homossexualismo”. No mesmo discurso, Malafaia afirma "nós somos a maioria: as pessoas de bem que não concordam com essa promoção de homossexualismo" (sic). Os números, porém, terminam com negar a afirmação do pastor. Seu video conta até o fechamento da análise com 590.250 visualizações e 68.078 dislikes contra 11.306 likes. Os dados quantitativos indicam que a reverberação das suas declarações se apoia muito mais no teor polêmico e fundamentalista do que numa real mobilização populacional. O recente e crescente envolvimento de marcas em tópicos sociais controversos aponta para uma tendência de marketing. O estudo de caso aqui empreendido revela que a peça publicitária definida como nosso mediador central tem caráter meticulosamente provocador. E que o mês de seu lançamento, a despeito de ser uma campanha para o dia dos namorados, coincide com o mês em que se comemora internacionalmente o orgulho gay. Todos os indícios levam à dedução de que se trata de uma estratégia devidamente calculada em termos de riscos e benefícios. Apesar de polêmicos, os tópicos-alvos da publicidade em suas investidas em controvérsias sociais, apresentam-se já consolidados em termos de orientações legais, constitucionais e mesmo sociais. Não há perspectivas de retrocesso, por exemplo, em relação ao tratamento igualitário de mulheres e homossexuais. Ao se posicionarem em prol das posições mais progressistas desses embates, as marcas aderem ao perfil de II Congresso Internacional Sobre Culturas 95 consumidores jovens e abertos às transformações. Certamente, seus futuros consumidores. E promovem a circulação de seus conteúdos publicitários no ecossistema midiático digital. Esses conteúdos revelaram-se aqui actantes fundamentais no desenrolar de debates públicos sobre tópicos socialmente relevantes. Reagregar-se ao social parece ser o novo imperativo para a publicidade. O que torna ainda mais premente, debates sobre seu papel social, bem como o monitoramento mais atencioso desse poderoso mediador. REFERÊNCIAS GOMES, Wilson. A poética do cinema e a questão do método em análise fílmica. The Mwga’s Book. Salvador: Laboratório de Análise Fílmica POSCOM – UFBA, 2004. HAVAS WORLDWIDE. Building brands that matter. Prosumer Report, vol. 17, 2013. Disponível em: < http://prosumer-report.com/blog/category/building-brands-that-matter/>. Acesso em: 20 jul. 2015. KOTLER, Philip. Marketing 3.0. São Paulo: Elsevier, 2010. LAFLOUFA, Jacqueline. Comercial dO Boticário para o dia dos namorados... Brainstorm9, mai. 2015. Disponível em: <http://www.b9.com.br/58022/advertising/comercial-do-boticariopara-o-dia-dos-namorados-traz-casais-homossexuais-e-trata-assunto-com-naturalidade/>. Acesso em: 20 jun. 2015. LATOUR, Bruno. Reagregando o social. Salvador: Edufba, 2012; Bauru: Edusc, 2012. SCUP MONITORA 19ª parada do orgulho LGBT em São Paulo. Scup Ideas, jun. 2015. Disponível em: < http://ideas.scup.com/pt/index/scup-monitora-19a-parada-do-orgulho-lgbt-emsao-paulo/>. Acesso em: 15 jul. 2015. SHIFMAN, Limor. Memes in digital culture. [e-book] Cambridge: The MIT Press, 2014. TURLÃO, Felipe. O Boticário: a questão não é Malafaia. In: Meio&Mensagem, jun. 2015. Disponível em: <http://www.meioemensagem.com.br/home/meio_e_mensagem/blog_redacao/2015/06/OBotic-rio--a-quest-o-n-o---Malafaia.html>. Acesso em: 18 jul. 2015. VENTURINI, Tommaso. Building on fauts: how to represent controversies with digital methods. In: Public understanding of science, v. 3, n. 19, 2012, pp. 258-273. Disponível em: http://pus.sabepub.com/content/21/7/796. Acesso em: 20 jul. 2015. VENTURINI, Tommaso. Diving in magma: how to explore controversies with actor-network theory. In: Public understanding of science, v. 3, n. 19, 2010, pp. 258-273. Disponível em: http://pus.sabepub.com/content/19/3/258. Acesso em: 20 jul. 2015. II Congresso Internacional Sobre Culturas 96 O DISCURSO JORNALÍSTICO SOBRE ARTISTAS PLÁSTICOS CONTEMPORÂNEOS E POPULARES: UMA ANÁLISE NO BRASIL E EM PORTUGAL Adalton dos Anjos Fonseca40 RESUMO Este trabalho tem como objetivo promover uma análise do discurso jornalístico na reconstrução da imagem pública de artistas plásticos contemporâneos no Brasil e em Portugal. Parte-se das Teorias do Jornalismo para fazer um contraponto com as narrativas jornalísticas de produções artísticas. Define-se critérios para a escolha dos seis artistas: a popularidade, a controvérsia, a circulação nacional e internacional da sua obra, as vendas, além da inspiração com elementos da arte contemporânea. Utiliza-se a metodologia de análise de conteúdo em um corpus de 30 textos jornalísticos. Os resultados indicam a recorrência dos mesmos qualificadores e a ausência de uma análise da filosofia estética das obras. Nas conclusões, apresenta-se contribuições e lacunas do jornalismo cultural na narração do campo das artes. Palavras-chave: Jornalismo Cultural. Arte Contemporânea. Artes Plásticas. Imagem Pública. CONFRONTOS ENTRE AS PROPRIEDADES PARTICULARIDADES DO JORNALISMO SOBRE ARTE DO JORNALISMO E 41 O estudo das propriedades do jornalismo, descritas por vários autores clássicos da pesquisa no campo, indica uma série de conceitos que vão de encontro com as formas de tratamento de temas como a arte. O jornalismo narra o presente (MOTTA, 2004) e segue um estilo baseado na periodicidade, universalidade, atualidade e publicidade (GROTH, 2011; FRANCISCATO, 2003). As informações devem ser verdadeiras para cumprirem o “contrato de mediação cognitiva entre realidade e os indivíduos” (GUERRA, 2003, p.15); passam por critérios de noticiabilidade (SILVA, 2005; GALTUNG e RUGE, 1965), que organizam a rotina de trabalho de jornalistas e ajudam a selecionar os principais fatos e acontecimentos do mundo; e por um tratamento na apuração e na estrutura narrativa que conserve o ideal de objetividade, discutido em autores como Genro Filho (1987). O jornalismo cumpre funções essenciais 40 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da UFBA. Membro do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Online (GJOL) e do Projeto Laboratório de Jornalismo Convergente da UFBA. E-mail: adalton.anjos@gmail.com 41 Adotaremos neste artigo a expressão “jornalismo sobre artes” para nos referirmos às narrativas jornalísticas dedicadas a abordar temas ligados às artes plásticas, recorte de análise deste trabalho. II Congresso Internacional Sobre Culturas 97 em sociedades democráticas – informação, investigação, análise, empatia social, fórum público e mobilização (SCHUDSON, 2008) – e, para isto, adota um conjunto de técnicas e procedimentos, como a elaboração da pauta, a edição, a entrevista, a escolha das fontes, as editorias, entre outros. As características que descrevem e prescrevem um gênero narrativo jornalístico são produzidas culturalmente e, por isto, são tensionadas no tempo e no espaço (LEAL, 2013). Partindo deste princípio, confrontaremos estes conceitos, regras e procedimentos da instituição jornalística com particularidades do jornalismo cultural e sobre arte. O jornalismo cultural, que lida com o conceito de cultura42, levanta vários questionamentos, como os apontados por Basso (2010) e Silva e Conceição (2007). Grosso modo, entendemos esta modalidade jornalística como aquela dedicada a análise e divulgação de produtos culturais (literatura, pintura, música, entre outros), populares ou eruditos, que formam “um fórum público de manifestação do pensamento” (BASSO, 2010, p.1). Entre as especificidades do jornalista de cultura estão a missão de lidar com fatos culturais, de expor a filosofia estética de uma obra, de refletir sobre aspectos técnicos sociais e históricos que circundam a obra – inclusive relacionando-a com outras. Ele deve lidar com polarizações, como as expostas por Piza (2003, p.8) – “entretenimento versus erudição, nacional versus internacional, regional versus central, jornalista versus acadêmico, reportagem versus crítica” e pode ser narrado em diferentes gêneros jornalísticos (notícia, entrevista, ensaio, perfil, reportagem, coluna, comentário ou crítica). O jornalismo sobre artes, como parte do jornalismo cultural, ainda lida com o gosto, o belo e a arte, que são temas extremamente difíceis de conceituar. Neste sentido, conceitos importantes para o jornalismo enquanto instituição podem entrar em conflito com o jornalismo sobre artes. A objetividade em torno da análise de uma peça, os critérios para a escolha de um artista ou obra para entrar na agenda ou quais fontes serão ouvidas são apenas alguns destes dilemas. Groth (2011) explica que o jornalismo precisou desenvolver rotinas para cumprir com uma de suas características representativas que é a periodicidade. Com isto, estratégias precisaram ser traçadas nos diferentes “jornalismos”, entre elas no jornalismo sobre artes. 42 Entendemos a cultura a partir da perspectiva de Raymond Williams (1969), que, ao propor uma sociologia da cultura, a descreveu como um modo inteiro de vida. Desta forma, este conceito abrange toda e qualquer produção material ou simbólica feita pelo homem, ou seja, valoriza as manifestações e o conhecimento da cultura popular. No caso do Jornalismo Cultural, concordamos com a crítica de Basso (2010) contra aqueles que limitam sua agenda a temas artístico-literários. Segundo ela, se assim o fosse precisaríamos denomina-lo Jornalismo de Artes. II Congresso Internacional Sobre Culturas 98 O objetivo deste artigo é desvendar, através de textos jornalísticos, as estratégias do discurso jornalístico na composição de uma imagem pública de artistas plásticos contemporâneos no Brasil e em Portugal. Por meio da metodologia de análise de conteúdo, destacaremos quais os atributos dos artistas ou de suas obras que foram mais frequentes nos 30 textos que compõem o corpus e, posteriormente, faremos uma breve discussão sobre as contribuições destas qualificações para as análises e difusão da arte. MODUS OPERANDI: A BUSCA POR ARTISTAS PLÁSTICOS CONTEMPORÂNEOS NA IMPRENSA Em 2015, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma reportagem cujo objetivo era discutir a rejeição ao artista plástico Romero Britto. A publicação, assim como tantas outras, destacava o quão contraditório era a relação do artista e sua obra com os seus diferentes públicos. De um lado, entre os críticos, analistas e parte do público havia um repúdio pela figura dele, suas peças e suas estratégias de marketing e, por outro, existiam defensores, consumidores e celebridades que valorizavam os capitais simbólico e econômico de Britto. Outros textos informativos sobre o artista repetem com frequência alguns destes selos que ajudam a definir sua imagem pública43. A partir desta pesquisa exploratória, tentamos ampliar o espectro de análise. Os critérios para a busca dos artistas foram: geográfico, a popularidade, a circulação da obra, a controvérsia, a estética e o estilo. Os personagens e textos escolhidos estiveram limitados ao Brasil e Portugal, a popularidade e a circulação foram pesquisadas através do próprio conteúdo jornalístico, e na oferta de material para compor o corpus empírico e a controvérsia, a estética e o estilo foram limitados a partir dos conceitos como arte pop, o kitsch e a arte urbana que ajudam a compor o cenário da arte contemporânea. A arte contemporânea se refere a um momento na história da arte entre 1960 e 1970, que traz questionamentos e experimentações para o campo. Entre elas estão: a crítica as grandes narrativas, o pluralismo, o confronto às restrições de um museu e a exigência de nova geração de curadores (DANTO, 2006). Mas, pelas teses que levantam, estes artistas suscitam críticas, como as expostas por Rajchman (2011): 1) a 43 Gomes (2004) discute as dinâmicas e importância da imagem pública como um intermediário entre nós e algo que queremos conhecer. Com foco no campo político, ele também destaca o papel dos meios de comunicação como mediadores importantes nesse processo de formação de imagens. II Congresso Internacional Sobre Culturas 99 arte contemporânea é “pós-suporte”; 2) A arte contemporânea é a arte da “globalização” da arte e de suas instituições; 3) A arte contemporânea é uma arte sem transgressão. O movimento “Pop Art” é um dos principais representantes deste momento, sobretudo com a figura do artista Andy Warhol. Na década de 1960, ele adotou uma estratégia de se vender como um personagem explorando a mídia de massa para ter reconhecimento e desagradou muitos integrantes do campo (BUENO, 2010). Fonte de inspiração para outros artistas contemporâneos, os trabalhos de Warhol têm como características cores mais vivas, o humor, as imagens de celebridades, a crítica a arte e os negócios e a diluição das fronteiras entre arte e comércio (GOMPERTZ, 2013). Uma aproximação frequentemente feita pelos analistas é de aspectos do kitsch e da pop art. Warhol é caracterizado como kitsch. Sêga (2010), que faz uma reflexão sobre como a estética kitsch ultrapassou as barreiras das artes e está presente na vida social, explica que um objeto desta categoria tem como características a imitação, o exagero em texto, cores e formatos, a ocupação do espaço errado e a perda da função original. Com uma origem anterior a da pop art, o kitsch encontrou no contexto da comunicação de massa e da sociedade de consumo um ambiente ideal para alcançar campos como a arquitetura, publicidade, literatura, música e moda. O estilo foi bastante criticado por teóricos e o termo ainda guarda um tom pejorativo no Brasil, porque é confundido com o brega. Dentro das controvérsias que envolvem movimentos característicos da arte contemporânea, inserimos nesta investigação artistas representantes da arte urbana (street art). Esta modalidade engloba trabalhos de artistas feitos para a rua como murais, adesivos e pôsteres. O recorte para este artigo é o grafite. Além do debate pelas qualidades estéticas e conceituais do estilo, o grafite é objeto de críticas por conta do modo que intervém na cidade. Mesmo quando há autorização por parte dos proprietários de um espaço ou do governo, a modalidade artística ainda é mal vista por muitos por ser confundida com a pichação e associada à rebeldia e transgressão pela sua história em movimentos como o de contracultura em 1968 (VIANA, 2007). A partir dos critérios e conceitos elencados, realizamos a busca de seis artistas contemporâneos no Brasil e em Portugal para a seleção do material jornalístico. Os artistas com o maior número de critérios foram: os brasileiros Beatriz Milhazes, OsGêmeos44 e Romero Britto e os portugueses Joana Vasconcelos, José de Guimarães e 44 Eles grafam o nome artístico desta forma. II Congresso Internacional Sobre Culturas 100 Vhils. As unidades de registro que compuseram a análise de conteúdo foram inspiradas nas indicações de Herscovitz (2007). Elas foram identificadas por parágrafo ou por pergunta, no caso de entrevistas. QUAIS AS ESTRATÉGIAS DO DISCURSO JORNALÍSTICO PARA A CONSTRUÇÃO DE IMAGEM PÚBLICAS DESTES ARTISTAS? Com base na análise de conteúdo realizada nos 30 textos do corpus, e em uma pesquisa sobre os artistas, construímos o quadro resumo a seguir. Na sequência, faremos uma reflexão sobre algumas descobertas, para discutir as estratégias do discurso jornalístico na construção de imagens destes artistas, tendo como parâmetros as Teorias do Jornalismo, bem como o conceito de Jornalismo Cultural e recomendações dos teóricos da História da Arte, Ernest Gombrich e Michael Baxandall. Quadro 1 - Resumo das informações coletadas sobre os artistas Artista Identificação Beatriz Milhazes (Brasil) Pintora, faz colagens, arte pop Unidades de registro Aspecto comercial, descrição da obra, biografia OsGêmeos (Brasil) Grafiteiros, arte urbana Descrição da obra, grafite, arte crítica Romero Britto (Brasil) Pintor, escultor e serígrafo, arte pop Aspecto comercial, excêntrico, rejeição Escultora, pintora, arte pop Dimensão das obras, aspecto comercial, descrição da obra Pintor, escultor, gravura, arte pop Biografia, descrição da obra, trabalho Pintor, grafiteiro, arte urbana Trabalho, grafite, biografia Joana Vasconcelos (Portugal) José de Guimarães (Portugal) Vhils (Portugal) Visão geral A artista plástica brasileira viva mais cara do mundo, leva uma vida sem luxos e tem a obra bem aceita. Apresentam obras de arte críticas e que mantêm uma relação com as cidades. Têm uma boa relação de irmãos. Artista excêntrico, popular e rejeitado pela crítica. Usa estratégias comerciais em sua obra e mantém vida de luxo. Artista kitsch, extravagante, uma das maiores representantes de Portugal, mas também é criticada. Artista de longa trajetória, que gosta de viajar e que mantém relação de idas e vindas com Portugal. Artista jovem e com reconhecimento internacional, cuja obra tem uma relação com as cidades. Fonte: Elaboração própria A recorrência das mesmas unidades de registro em diferentes textos jornalísticos de um artista foi o primeiro ponto observado na análise de conteúdo. A frequência destas “marcas” ajuda a construir uma imagem pública consolidada em torno deles, mas torna repetitiva às abordagens em torno dos artistas e das obras, não abrindo espaço para II Congresso Internacional Sobre Culturas 101 novos temas. Assim, temos: Beatriz Milhazes como a artista brasileira viva mais bemsucedida na venda de quadros; Joana Vasconcelos como a artista que produz grandes obras coloridas; José de Guimarães o artista maduro e Romero Britto como o excêntrico, que explora bastante o marketing e que é rejeitado pelos críticos. Quanto aos artistas da street art, OsGêmeos e Vhils, foi possível visualizar uma similaridade nas abordagens pela imprensa no Brasil em Portugal ao ressaltarem a juventude e a questão crítica das suas obras que se relacionam com a cidade. A análise dos títulos também traz indicações sobre o mote e o que é mais destacável no conteúdo. Em Beatriz, o que mais aparece é o aspecto comercial, em 4 de cinco textos; em Joana há uma divisão entre aspecto comercial, circulação e descrição; em Guimarães, é a descrição da obra (3); em OsGêmeos, é a arte, o manifesto e a política (2); em Britto, é o aspecto comercial (3) e a rejeição (2) e em Vhils, é a cidade (4). O segundo ponto está ligado a uma ausência de uma contextualização das obras e da trajetória dos artistas nos textos jornalísticos articuladas a aspectos técnicos e da produção. Em outras palavras, não há uma exploração da filosofia estética da obra, nem o fomento de modo qualificado a um fórum de discussão (BASSO, 2010). De modo geral, tende-se a um distanciamento da perspectiva da análise, uma das funções do jornalismo apresentadas em Schudson (2008), e há um privilégio à informação numa tendência ao entretenimento. O uso de “marcas” como as descritas no primeiro ponto corrobora esta inclinação, sobretudo com Beatriz, Britto e Joana. Em um dos poucos momentos em que a abordagem estimulou o debate, foi na reportagem da Folha de S. Paulo sobre a rejeição a Britto, quando a repórter de cultura expôs as visões de críticos de arte sobre o artista e contribuiu para a formação de apreciadores. Outros dois textos analisados também propuseram novas abordagens sobre os artistas e suas respectivas obras por conta da natureza dos seus gêneros – um perfil e uma crítica em sites portugueses sobre Vhils e Joana. No caso dos textos sobre OsGêmeos, Guimarães e Vhils, houve também um destaque à biografia destes artistas. O último ponto se refere a forma como a questão do gosto aparece nestes textos, uma vez que este elemento tem atributos que divergem de uma das características do discurso jornalístico – a objetividade. Tende-se a descrição das obras. Observamos que a questão do gosto aparece de modo bastante sutil e basicamente atrelada a dois artistas: Romero Britto e Joana Vasconcelos. Em ambos, cita-se a ampla palheta de cores II Congresso Internacional Sobre Culturas 102 explorada em suas obras. No caso brasileiro, também se ressalta os traços que caracterizam a sua marca e a replicação dela nas obras e objetos do cotidiano. CONTRIBUIÇÕES (OU NÃO) DO JORNALISMO PARA O CAMPO DAS ARTES Do ponto de vista das Teorias do Jornalismo e do Jornalismo Cultural, é possível destacar algumas contribuições e lacunas dos textos jornalísticos sobre artes plásticas que compuseram a análise para o campo das artes. Um papel fundamental do jornalismo neste caso é o de apresentar controvérsias e manifestações de artistas plásticos na arena pública. A consequência desta ação se reflete na formação de públicos. Por outro lado, com a ausência de uma análise qualificada, verificada na forma como os temas apareceram nos textos jornalísticos, não há uma contribuição para a formação de um ambiente crítico. Gombrich (1990) relata a importância para o desenvolvimento da criatividade do próprio artista de um público verdadeiramente crítico, que o obrigue a chegar em seu ápice. Neste sentido, o jornalismo pode ser um agente de contribuição. Outra colaboração, no caso das reportagens, está relacionada ao próprio modo de ser do jornalismo, que busca alcançar uma objetividade. Na estratégia de ouvir “todos os lados” da história, uma pluralidade de vozes tem lugar nos textos e abre espaços para que o próprio leitor tire suas conclusões. Contudo, o debate tem ficado mais empobrecido por dois motivos que se complementam: a) os críticos de arte usam os mesmos argumentos e b) os repórteres precisam ser mais especializados para propor abordagens diferentes junto aos críticos e aos artistas. Mais do que descrições isoladas da obra, da trajetória e do contexto ao qual o artista está inserido, Baxandall (2006) recomenda uma descrição crítica, que relacione obras e conceitos. É preciso desvendar a intenção do artista e levar em consideração que muitas vezes nem ele sabe traduzir em palavras algumas decisões que tomou em sua obra. O narrador que tem a arte como objeto, seja ele um historiador, crítico ou um repórter, dentro de sua especificidade, deve ainda evitar conceitos genéricos e nãoinformativos. As discussões propostas tiveram o objetivo de levantar questões ligadas às especificidades do discurso jornalístico e a necessidade de reconfigurações de algumas características desta narrativa para atender novas demandas. Aspectos do campo das II Congresso Internacional Sobre Culturas 103 artes nos ajudaram a visualizar pontos de tensão das propriedades jornalísticas com particularidades do jornalismo sobre artes. Outras descobertas podem ser reveladas a partir de uma diversificação maior do corpus e dos artistas envolvidos ou do estudo do ponto de vista da produção das reportagens. REFERÊNCIAS BASSO, Eliane Fátima Corti. Para entender o jornalismo cultural. Comunicação & Inovação, v. 9, n. 16, 2010. BAXANDALL, M. Padrões de Intenção. São Paulo: Editora Schwarcz, 2006. BUENO, Maria Lúcia. 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Paulo O Globo Trip Zero Hora Gênero Data Reportagem 28-02-2015 Reportagem 27.08.2013 Reportagem 14.11.2012 Entrevista 07.08.2013 Entrevista 24.09.2013 Título Pela primeira vez em 30 anos de carreira, pintora Beatriz Milhazes revela sua técnica Artista viva mais cara do país, Beatriz Milhazes marca 30 anos de carreira com retrospectiva Beatriz Milhazes bate novo recorde em leilão da Sotheby's A artista brasileira mais valorizada no mercado não liga para questionamentos e definições Artista brasileira viva mais cara, Beatriz Milhazes apresenta retrospectiva no Rio II Congresso Internacional Sobre Culturas Site goo.gl/47wmgC goo.gl/mqyioz goo.gl/6FNdvR goo.gl/COJKCN goo.gl/xgskot 105 • Joana Vasconcelos Gênero – Data Entrevista 06-10-2010 Reportagem 26.08.2015 Crítica 25.04.2014 Reportagem 12.08.2015 Reportagem 03.07.2012 Veículo Caras Económico Público Sabado Sol • DN i online Notícias Magazine Observador Sol Joana Vasconcelos: "Sou uma mulher e sou portuguesa e isso condiciona a forma como olho para as coisas" Joana Vasconcelos: Negócios com arte e crochet goo.gl/QiF8A2 É bonito, mas é arte? goo.gl/hdwvYY Isto não é da Joana, é do Rio goo.gl/Ycy5W5 Joana Vasconcelos mostra 'A Noiva' em Paris, um lustre com tampões higiénicos goo.gl/6LH2cU EBC Folha de S. Paulo Gazeta do Povo Gênero Data Reportagem 27-01-2016 Entrevista 06.06.2014 Entrevista 25.01.2016 Matéria 06.08.2016 Entrevista 10.02.2016 Título Quando a serpente e Camões se encontram em José de Guimarães José de Guimarães. "As obras que produzo hoje demoram uns dez anos a ser vistas" José de Guimarães: «Ter de deixar de pintar seria uma coisa terrível» José de Guimarães: “Se não curar o mundo, a arte não serve para nada” José de Guimarães. “As coisas que eu produzo não são muito cómodas” GêneroData Reportagem 1º-02-2015 Reportagem 03.10.2015 Entrevista 17.06.2016 Entrevista 15.07.2013 Título Museu do Pontal recebe primeira obra permanente de OSGEMEOS no Rio de Janeiro Osgemeos faz bunker para discutir ameaça a museu no Rio Em entrevista exclusiva, OSGEMEOS falam de arte e política A vida e os segredos dos filhos coloridos da cidade cinza: 'Desde os cinco anos a gente sabia que nossa missão na Terra era desenhar' A arte-manifesto dos irmãos grafiteiros Uol Reportagem dez.2008 • Romero Britto Veículo Folha de S. Paulo GQ Isto É Playboy Zero Hora goo.gl/aphy74 Site goo.gl/8zhRti goo.gl/TpDqgB goo.gl/9qbMuN goo.gl/wcGNBS goo.gl/vsMYmu OsGêmeos Veículo Trip Site José de Guimarães Veículo • Título Gênero Data Reportagem 03-05-2015 Reportagem 16.11.2014 Reportagem 1º.05.2014 Entrevista 24.11.2014 Entrevista 05.03.2016 Site goo.gl/oaAlny goo.gl/uKBQqA goo.gl/dqKGy5 goo.gl/2xEHfb goo.gl/VuMqnq Título Site Representantes das artes tentam explicar a rejeição de Romero Britto Romero Britto, o brasileiro mais poderoso (e odiado) da arte contemporânea As jogadas de Romero Britto goo.gl/3mmEAF Romero Britto: "Arte precisa vender, e eu vendo" goo.gl/e1PpYd Romero Britto: "Nem todos podem ir ao museu, mas muitos podem ter um relógio com minha arte" goo.gl/C0fXZN II Congresso Internacional Sobre Culturas goo.gl/tCbQJP goo.gl/oQWJmT 106 • Vhils Veículo Dinheiro Vivo Notícias Magazine Público Sol Visão Gênero Data Reportagem 14-03-2016 Entrevista 19.01.2015 Reportagem 24.06.2014 Entrevista 06.07.2014 Perfil 07.06.2012 Título Site Elétrico intervencionado pelo artista português Vhils já circula em Hong Kong «É nas paredes que se sente o pulsar das cidades» goo.gl/wuPbBW Vhils construiu uma cidade goo.gl/LLPbae A cidade de Vhils goo.gl/lj7B08 Vhils, um homem na cidade goo.gl/GQefTb II Congresso Internacional Sobre Culturas goo.gl/K5Lx01 107 A PRODUÇÃO DE SENTIDO DO DISCURSO INFORMATIVO CONSTRUÍDO ENTRE ASSESSORIA DE IMPRENSA E JORNALISMO Claudiane de Oliveira Carvalho Sampaio45 RESUMO Na contemporaneidade, as condições de produção da notícia acentuam, entre outros fatores, a impossibilidade de reportar a grande demanda de fatos sócio- históricos da sociedade complexa sem o auxílio dos news promoters (agências de notícias, comunicação organizacional, jornalismo cidadão etc). Nesse aspecto, emerge a questão sobre o processo de construção do sentido do discurso informativo, quando este é produzido a partir do contato entre assessoria de imprensa (e/ou relações públicas) e redação jornalística. O artigo propõe indicar apontamentos metodológicos para análise do discurso da informação, construído na relação mencionada, articulando Análise de Discurso (AD) e círculo hermenêutico de Paul Ricoeur. Palavras chave: discurso – jornalismo – assessoria de imprensa – Ricoeur – contrato INTRODUÇÃO As recentes alterações na relação entre jornalistas e fontes são apontadas como um dos fatores relevantes para uma mudança estrutural do jornalismo. As organizações (pública, privada e terceiro setor), por exemplo, preocupadas com a gestão da imagem, investem em estruturas e equipes integradas de comunicação organizacional, valorizando, entre outras ações, a mediação com a imprensa. Assim, oferecem aos jornalistas material informativo (releases e press kits) e também produzem conteúdo em suas próprias mídias, criando canais diretos de comunicação com os públicos. Esse fenômeno contribui ainda para as “mudanças no processo de produção das notícias”, provocada pela celeridade imposta pelas novas mídias. Isso porque, para atender à demanda, os jornalistas podem lançar mão do “material pronto”, reduzindo o tempo e a margem de investigação (ADGHIRNI; PEREIRA, 2011). Neste artigo, interessa-nos o processo produtivo da notícia, marcado pela relação entre AI e redação jornalística, que engendra contratos de comunicação e produz discursos, cujas zonas de interseção2 sustentam e ancoram a construção discursiva. Propomos apontamentos metodológicos para a análise da construção do discurso informativo, quando a notícia publicada resulta da relação mencionada, a qual pode ser colaborativa, mas é sempre marcada por uma tensão. Nossa principal referência teórica 45 Pós doutoranda pelo CNPq no Programa de Pós Graduação em Comunicação e Culturas Contemporâneas pela UFBA. Integrante do Centro de Estudos e Pesquisas em Análise do Discurso e Mídia (CEPAD). cauoliveira@yahoo.com.br II Congresso Internacional Sobre Culturas 108 é a Análise de Discurso, em diálogo com a hermenêutica de Ricoeur, que se baseia no funcionamento do processo de comunicação, caracterizad pelas trocas entre as instâncias de produção e de recepção (CHARAUDEAU, 2003 2012; FERREIRA, 1999; FAUSTO NETO et al, 2011; VERÓN, 2004, 2013). O processo de semiotização global do mundo, ou o círculo hermenêutico d Ricoeur, impele-nos a amplificar a relação entre enunciadores e coenunciadores, para além do interior dos discursos. Na tríplice mímesis, o círculo semiológico é parte do percurso e refere-se à mímesis II, sendo precedido pela mímesis I (pré-figuração) e seguido pela mímesis III (refiguração). A chamada mímesis I põe em relevo os enunciadores nos contextos (situacional, institucional e social-macro), destacando, pois, as condições de produção. Na mímesis II, a configuração, essa faculdade da linguagem de dar forma ao mundo, à ação, constitui uma imitação criativa, unindo elementos extradiscursivos e intradiscursivos. No último vetor das três mímesis, há o encontro entre o mundo do texto e o mundo do leitor. A mímesis III incide em todo o círculo, instaurando a semiose ilimitada. Neste texto, defendemos que o círculo hermenêutico, ao ampliar os horizontes da AD, disponibiliza o aporte metodológico para estudarmos os processos de transformação e transação do discurso informativo, construído entre AI e Jornalismo. Em tempo, o processo de transformação consiste na configuração do discurso, na transformação do mundo a configurar em mundo configurado; já o processo de transação (ou negociação) diz respeito às relações entre emissão e recepção para a construção discursiva. No que tange aos processos de transformação, dedicamo-nos a destacar as especificidades configurativas do discurso informativo estratégico3 (produzido por RP e/ou AI) e do discurso informativo jornalístico (produzido pela redação, a partir do texto da AI). Já nos processos de transação, voltamo-nos às relações contratuais, que são engendradas em torno da construção dos discursos mencionados. Nessa negociação, temos o contrato estabelecido entre AI e redação jornalística, de um lado, e o contrato de comunicação entre suporte jornalístico e leitor, do outro. No percurso, promovemos o diálogo entre Ricoeur e pesquisadores da AD e também, por vezes, recorremos aos autores da chamada Comunicação Organizacional, para elucidar aspectos específicos do discurso informativo, enunciado pela assessoria de imprensa. II Congresso Internacional Sobre Culturas 109 PROCESSOS DE TRANSFORMAÇÃO: A CONFIGURAÇÃO DISCURSOS INFORMATIVOS ESTRATÉGICO E JORNALÍSTICO DOS O discurso informativo midiático busca diferentes equações entre o “fazer saber” e a necessidade de “fazer seduzir” e para construção do efeito de sentido de verdade (autenticidade, verossimilhança e dramatização) precisa responder a três questões: Por que informar? Quem informa? Quais são as fontes? As pistas e marcas do discurso jornalístico, seguidas pelos assessores, têm como base a produção da informação nas redações. Para ser reconhecido enquanto notícia, no veículo de comunicação, o material do assessor precisa se adequar às regras desse jogo. Esse domínio do fazer jornalístico e das dinâmicas específicas de cada empresa de comunicação atesta também a qualidade e competência do assessor, relacionadas ao grau de aderência da sua produção aos discursos informativos, ou seja, espera-se que esteja imerso na prática e dotado do habitus (BOURDIEU, 1996). Como numa gangorra de interesses, o assessor parece ter que negociar, em algum instante, entre os interesses da redação/do discurso jornalístico e os interesses da instituição/do discurso estratégico. O contato AI-redação jornalística, no estudo proposto, marca a primeira etapa do processo de construção da notícia, por assim dizer. Para transformar o mundo a configurar em mundo configurado, a AI precisa negociar entre os interesses da instituição (construção de imagem e reputação) e os interesses da redação por boas pautas. Que negociações são feitas para transformar o mundo a configurar (acontecimento a configurar) em mundo configurado (acontecimento configurado) e, ao mesmo tempo, “agradar” cliente e jornalista de veículo? Podemos pensar melhor na produção do discurso informativo, a partir da comparação dos processos expostos nas figuras a seguir: Figura 1 Fonte: Livre adaptação da autora, a partir Charaudeau (2012), Ferreira (1997, 1999), Ricoeur (2010a). Essa figura representa o processo de construção do discurso informativo, considerando apenas a mediação da redação jornalística. Observemos, então, a próxima imagem, que demonstra a construção do discurso informativo, a partir da relação entre assessoria de imprensa e veículo jornalístico. II Congresso Internacional Sobre Culturas 110 Figura 2 Fonte: Livre adaptação da autora, a partir Charaudeau (2012), Ferreira (1997, 1999), Ricoeur (2010a) Ao observar esta imagem, podemos inferir que, na interação AI-Jornalismo, o acontecimento chega à redação como narrativa, e não enquanto mundo a significar. O acontecimento já sofreu sua primeira configuração. Temos, então, que a primeira configuração do mundo a significar em mundo significado, ou seja, acontecimento em acontecimento narrado (notícia), é feita pela AI com vistas para uma instância de reconhecimento, formada pelo jornalista. Entretanto, o alvo último é o leitor. Em outras palavras, se não houver um trabalho de investigação ou redirecionamento da pauta, pelos veículos jornalísticos, existe a possibilidade de ser divulgado o ponto de vista ou o enquadramento pretendido pela instituição fonte da informação. No que tange à análise dos discursos citados e, consequentemente, da zona de interseção entre eles, elaboramos um resumo, espécie de guia, com indicativos de operadores analíticos, que desenvolvemos, mediante as contribuições de Patrick Charaudeau (1997, 2003, 2005, 2012). A partir do pressuposto de que tanto o discurso informativo estratégico quanto o jornalístico são modulados pela necessidade de, simultaneamente, “fazer saber” e “fazer seduzir”, sugerimos que a análise seja conduzida pela busca de repostas para duas indagações chave: a) Como conseguem os efeitos de sentido de verdade? b) Como conseguem os efeitos de dramatização? Quadro 1 - Questões de orientação para a análise do discurso informativo Discurso Informativo O paradoxo do saber fazer e saber seduzir Como conseguem os efeitos de sentido de verdade? Aspectos atinentes à seleção e à construção do acontecimento (Abordagens do newsmaking, agendamento/enquadramento) Como conseguem os efeitos de dramatização? Atributos dos dispositivos Modos de dizer (Espaços de locução, interação e sedução) Fonte: Adaptação da autora, a partir de Charaudeau (2003, 2012), Pinto (2002), Verón (1998, 2004) Já sinalizamos que os critérios para seleção e construção do discurso informativo por parte de assessores e jornalistas precisam convergir, mas são, a priori, marcados por interesses distintos, uma vez que um está vinculado à chamada comunicação organizacional e o outro ao jornalismo, enquanto campo social autônomo II Congresso Internacional Sobre Culturas 111 (BOURDIEU, 1999, 2010). A tarefa do analista, portanto, é mapear em que aspectos os critérios de noticiabilidade são convergentes e divergentes, assim, terápistas que o conduzirá também ao agendamento. Ainda no que tange à questão sobre a busca pelos efeitos de sentido de verdade, dela se desdobram três outras indagações: Por que informar? Quem informa? Quais são as provas? Quadro 2 - Questões de orientação para a busca do efeito de sentido de verdade Discurso Informativo Em busca do efeito de sentido de verdade Por que informar? As motivações do jornalismo e as motivações da assessoria de imprensa/ relações públicas (A construção social da realidade) Quem informa? Características e posicionamentos das fontes (A relação do jornalismo com as fontes e o lugar da assessoria de imprensa como mediadora) Quais são as provas? Do testemunho ao registro Fonte: Adaptação da autora, a partir de Charaudeau (2003, 2012) As perguntas suscitadas pela questão mais ampla sobre a produção dos efeitos de sentido de verdade também reverberam na abordagem do newsmaking. O vínculo entre jornalistas e assessores é estabelecido por meio da partilha e comunhão dos critérios, rotinas, protocolos e práticas do jornalismo (RUSSI, 2010; SANT’ANNA, 2008). Todavia, como já vimos, esses profissionais defendem interesses distintos. No processo analítico, portanto, ao abarcar o discurso informativo estratégico e o discurso informativo jornalístico, é possível deduzir os “modos de dizer” da assessoria e do suporte jornalístico e, também, os critérios de seleção e construção da informação em ambos, além de contemplar o agendamento. Ou seja, a averiguação da zona de interseção entre o discurso informativo estratégico e o discurso informativo jornalístico nos permite: a) inferir quais critérios de noticiabilidade foram trabalhados e acionados, em consonância, nas duas instâncias de produção, a assessoria e a redação jornalística; b) investigar também as convergências entre os “modos de dizer” de ambos e c) verificar, ainda, como essa simultaneidade influiu para o processo de agendamento. Vamos, agora, tratar dos contratos, das negociações, que possibilitam a construção discursiva. II Congresso Internacional Sobre Culturas 112 PROCESSOS DE TRANSAÇÃO: DOS CONTRATOS COMUNICATIVOS E ZONAS DE INTERSEÇÃO A noção de contrato remete ao vínculo entre emissão e recepção, dadas as condições de produção e reconhecimento de discurso. Proposta numa revisão às pesquisas administrativas ou funcionalistas sobre os efeitos, e também às análises imanentes dos discursos, esta noção tenciona reduzir o fosso entre os conhecimentos sobre o texto, de um lado, e os conhecimento sobre o leitor, do outro. O contrato de leitura é formalizado na prática textual, quando se consagra no vínculo entre o produtor e o leitor, e refere-se às regras, estratégias e políticas de sentido que modulam os elos dessa conexão (FAUSTO NETO et al, 2011). Em sua pesquisa sobre o contrato de leitura em revistas e jornais, Verón observa que os elos são estabelecidos logo na capa, uma vez que, nesse primeiro contato, já há traços da identidade, do estilo do suporte e sua forma de abordagem do acontecimento. Ainda segundo Verón (2004), há uma constante negociação entre produção e recepção, o contrato é balizado no conhecimento que os interlocutores têm um da fala do outro (FAUSTO et al, 2011; VERÓN, 2004). Dessa forma, diferentes veículos estabelecem contratos distintos com os leitores e, assim, assumem posicionamentos diferenciados, alimentando e enfrentando a concorrência no mercado (VERÓN, 1985). A noção de contrato de leitura tem uma perspectiva suporte-leitor e, neste estudo, focamos mais as situações de comunicação entre assessoria de imprensa e redação jornalística, por um lado, e redação jornalística (suporte) e leitor, por outro. Enfatizamos, portanto, o caráter relacional da produção do discurso informativo. No mais, apostamos que a relação intercontratual, constituída pela zona de interseção, pode desencadear mudanças na produção discursiva, uma vez que as assessorias de comunicação são convertidas em personagens ativos no processo de construção da informação, na atualidade. A ênfase nas situações de comunicação e no aspecto intercontratual da produção discursiva, estudada neste trabalho, fundamenta, pois, a predominância do uso do termo “contrato de comunicação” (CHARAUDEAU, 2003, 2012). Além disso, essa noção é sustentada teoricamente no percurso mimético de Ricoeur, cujo círculo é aporte teórico-metodológico para nosso estudo. Charaudeau (2003, 2012) argumenta que a situação de comunicação, na qual é construído o discurso, determina seu impacto social e engendra os contratos de comunicação. Assim, a relevância ou interesse social de um discurso vai depender das condições específicas da II Congresso Internacional Sobre Culturas 113 situação de troca da qual ele surge. As situações de comunicação constituem quadros de referência, molduras (GOFFMAN, 1974), cujas restrições são reguladas pelas práticas sociais e discursos de representação, “produzidos para justificar essas mesmas práticas, a fim de valorizá-las” (CHARAUDEAU, 2012. p.67). Os contratos são balizados pela cointencionalidade e são regulados por dados externos e dados internos ao discurso. Os contratos estabelecidos entre os agentes de uma dada situação comunicativa são social e historicamente definidos. No que diz respeito à construção da notícia, na relação entre assessoria de imprensa e redação jornalística, como já explicitado, mapeamos duas situações de comunicação que merecem destaque: 1) a situação de comunicação entre a AI e a redação jornalística e 2) a situação de comunicação entre a redação jornalística (suporte) e o leitor. Esta segunda reverbera na primeira e temos, assim, dois contratos que se encontram e que são estabelecidos em prol da construção dos discursos informativos e de outros interesses. Em outras palavras, as condições de produção da notícia ocorrem na conexão e tensionamento entre esses dois contratos de comunicação. No processo analítico, o desafio é localizar os aspectos externos (características da situação de troca) e os aspectos internos (do discurso), que os determinam. Segundo Charaudeau (2003, 2012), os dados externos compreendem as regularidades comportamentais dos indivíduos envolvidos na situação de troca e as constantes dessa situação. Os discursos de representação confirmam as regularidades e lhes atribuem valores. Os dados externos podem ser agrupados em quatro categorias, que correspondem às condições de enunciação, a saber: identidade, finalidade, propósito e dispositivo. No que tange à condição de identidade, é preciso responder à questão “quem troca com quem?”, traçando um perfil dos parceiros da situação, no que concerne ao ato comunicativo. Essa identificação fica nos limites das representações. A condição de finalidade responde à questão “estamos aqui para dizer o quê?” e está associada à problemática da influência. A pretensão de que os discursos possam ser tematizados e a configuração do acontecimento respondam à pergunta “do que se trata?”, abarcada pela condição de propósito. As indagações sobre as estratégias de enunciação do suporte midiático podem ser respondidas pelas condições de dispositivo. Como discorrem sobre o quadro do ato comunicativo, parcialmente previsível, é possível mapear a manifestação e a organização das condições do dispositivo. Definidos e partilhados os dados externos, cabe aos interlocutores saberem o que II Congresso Internacional Sobre Culturas 114 falar, como falar e os comportamentos adequados às delimitações situacionais. Os dados internos são propriamente discursivos e respondem à pergunta “como dizer?”. Embora as restrições da situação de comunicação sejam dadas previamente ao ato de comunicação, este não está determinado em definitivo e permite ao emissor construir suas próprias estratégias e até remodelar espaços de enunciação. Os espaços enunciativos conformam os dados internos do contrato e dividem-se em três: espaço de locução (o sujeito falante conquista o direito de poder comunicar, assumindo o lugar de fala e identificando seu interlocutor); espaço da relação (ao construir seu espaço de locutor e também ao identificar o interlocutor, o sujeito falante estabelece relações de força, submissão, inclusão, exclusão, dependência etc); espaço de tematização (onde é organizado o tema, ou temas, da troca) (CHARAUDEAU, 2003, 2012; PINTO, 2002; VERÓN, 1985, 2004). Os dados internos dos contratos nos permitem operacionalizar os conceitos de heterogeneidade ou interdiscurso, intradiscurso, sujeitos do enunciado e da enunciação. Já os operadores o poder e o ideológico transitam tanto nos dados internos, quanto nos dados externos, e só podem ser apreendidos neste movimento de complementariedade entre a situação de comunicação e o discurso produzido. Demonstramos que a mecânica de produção do sentido do discurso informativo se complexifica, a partir do momento em que as assessorias de imprensa são contempladas na instância de produção e, consequentemente, nas condições de produção. Aqui, chega o momento de salientar que os contratos de comunicação, nesta construção da notícia, ganham, portanto, outras dimensões e camadas de sentido. Figura 3 Fonte: Livre adaptação da autora, a partir de Charaudeau (2003, 2012), Ferreira (1997, 1999). Os contratos se referem aos processos de transação no círculo hermenêutico, que dispõe sobre a semiotização global do mundo. A título de lembrança, o contrato para produção da informação jornalística é marcado pela contradição entre o faze saber (informar) e o fazer sentir (seduzir). Por sua vez, o contrato para produção d informação estratégica é marcado pelo desacordo entre informar e convencer, mas neste último, acrescentamos a finalidade de relações públicas, concernente à construção de imagem e reputação do cliente. Em ambos os contratos, há a busca por uma aderência ao saber do conhecimento e a presença dos operadores enunciativos para a produção dos efeitos de sentido de II Congresso Internacional Sobre Culturas 115 verdade. Contudo, no que diz respeito à informação estratégica, em todas as etapas, faz se necessário averiguar o apagamento discursivo do tom promocional, enquanto recurso retórico para convencer o jornalista da redação sobre a legitimidade da pauta4. Neste momento, podemos inferir que contradições e encobrimentos fazem parte do contrato da informação estratégica, uma vez que o fazer saber, ou seja, o informar, de maneira ambígua, consiste em: artimanha retórica para posicionar o cliente e subsídio para conquistar a atenção da redação jornalística. Do ponto de vista da assessoria de imprensa, é necessário informar o jornalista e convencê-lo dos valores da pauta, mas também é preciso construir um posicionamento para a organização, que ecoe na sua imagem e reputação (KUNSCH, 2009; DUARTE, 2011). Dito isso, o desafio é abarcar, analiticamente, as características dos contratos estabelecidos entre AI e redação jornalística, por um lado, e redação (suporte) e leitor, por outro. A princípio, a análise precisa atentar para as instâncias de produção e recepção da informação; as finalidades do contratos; o acontecimento em construção e os dispositivos (CHARAUDEAU, 2012). Ao nosso ver, as perguntas devem motivar e orientar o processo analítico. Assim, as questões sobre os agentes dos contratos, por exemplo, levam-nos ao jogo disposto pelos respectivos discursos das representações em confronto com as práticas. As indagações sobre as finalidades e os propósitos reverberam no processo de configuração do acontecimento e nas escolhas que o definem. Já as interrogações em torno do dispositivo concernem à enunciação, que liga aspectos técnicos e simbólicos. Ou seja, os agentes, finalidades, propósitos e dispositivos do contrato são indissociáveis, mantêm relações intrínsecas. No quadro, abaixo, buscamos sistematizar os operadores para a análise dos contratos, nos âmbitos interno e externo. Quadro 3: Apontamentos e operadores para análise dos contratos Contrato de Comunicação Das trocas entre os enunciadores em situações de comunicação Dados externos Identidade (Posições e papéis dos agentes na troca) Finalidade (Os objetivos do acordo) Propósito (Processo evenemencial) Dispositivo (As restrições do dispositivo) Representação dos agentes (Produção – o informante como testemunha ou revelador, assume funções de pesquisador e/ou comentador) (Reconhecimento – idealizado pela produção e empírico) II Congresso Internacional Sobre Culturas 116 Para fazer saber, busca dizer o exato, o que aconteceu, as intenções e fornece provas. Para fazer sentir, recorre às estratégias retóricas da dramatização. A configuração do acontecimento (Aspectos da inteligibilidade, do simbolismo e da temporalidade) Especificidades dos meios As condições materiais (técnicas) e simbólicas. Dados Internos A Locução A Relação O Tema Os modos de dizer, postulados nos dispositivos de enunciação, permitem operacionalizar os conceitos de heterogeneidade, inter e intradiscurso e sujeitos na enunciação. Fonte: Livre adaptação, a partir de Charaudeau (2003, 2012); Pinto (2002); Verón (1987, 1995, 2004) CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trecho do nosso percurso, vimos que os processos de transação consistem nas negociações moduladas pelos contratos de comunicação (e leitura), cuja abordagem analítica nos remete aos dados internos e externos do discurso. Em outras palavras, registra-se, aqui, a inerência entre a transformação e a transação, evidenciada pela dinâmica do círculo hermenêutico. Através da perspectiva da tríplice mímesis, tratar da configuração é, de certa forma, ser impelido a abordar também as negociações que a tornaram possível e, no movimento contrário, entender a negociação é buscar o que foi configurado. A separação dos processos, portanto, cumpre fins metodológicos. E o analista, mesmo ciente dessa escolha, percebe, num dado momento, o quão incontornável é a associação; assim, a divisão, mesmo metodológica, torna-se inviável. Como exemplo disso, podemos citar os estudos dos dispositivos de enunciação, os quais colocam o analista diante da necessidade de abordar, simultaneamente, o que está fora e dentro do discurso, para compreender a produção de sentido. A partir da abordagem do nosso tema de pesquisa, possibilitada pelo círculo hermenêutico, verificamos que, para tratarmos analiticamente o nosso objetivo, precisamos contemplar as zonas de interseção existentes entre o discurso informativo estratégico e o discurso informativo jornalístico. Esta é uma etapa do percurso analítico. A outra consiste em identificarmos as zonas de interseção entre os contratos II Congresso Internacional Sobre Culturas 117 de comunicação estabelecidos entre assessoria de imprensa-redação jornalística, de um lado, e suporte jornalístico-leitor, do outro. Em termos de processos analíticos propostos temos a seguinte disposição: a construção do discurso informativo entre assessoria e redação jornalística se dá a partir de relações (inter) contratuais e negociação entre os discursos informativos estratégico e jornalístico. Para traçarmos as zonas de interseção entre os discursos mencionados, sugerimos que eles sejam analisados, no primeiro momento, separadamente, para, depois, serem comparados, a fim de efetuar a sinalização dos elementos de aproximação e distanciamento. Já no que diz respeito às relações contratuais, vamos verificar como os contratos em jogo podem ser modalizados para atender ao processo configurativo do discurso jornalístico, quando este se ancora numa produção da assessoria. Em síntese, propomos, para além da consideração analítica dos discursos e dos contratos individualmente, a investigação sobre as articulações que são operadas nas conexões entre eles, nas zonas de interseção instauradas. REFERÊNCIAS ADGHIRNI, Zélia L.; PEREIRA, Fábio H. O jornalismo em tempos de mudanças estruturais. Texto. Porto Alegre, v. 1, n. 24, jan./jun. 2011. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/intexto/article/view/19208>. Acesso em: 11 mar. 2013. BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, São Paulo: Papirus, 1996b. CHARAUDEAU, Patrick. El discurso de la información. Barcelona: Gedisa, 2003. CHARAUDEAU. Patrick. Discurso das mídias. 2. ed., 1a reimp. Trad. Ângela S. M. Corrêa. São Paulo: Contexto, 2012. DUARTE, Jorge (Org). Assessoria de imprensa e relacionamento com a Mídia. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2011. FAUSTO NETO, Antonio et. al. (Re)Visitando os conceitos de contrato de leitura uma proposta de entendimento dos pontos de vínculo entre emissor/receptor da sociedade dos meios para sociedade midiatizada. Disciplinarum Scientia. Série Artes, Letras e Comunicação, v. 10, p. 17-28, 2011. II Congresso Internacional Sobre Culturas 118 FERREIRA, Giovandro Marcus. Do círculo semiológico ao círculo hermenêutico: contribuições de Paul Ricoeur à análise de discurso. Interface, Ano III, No 5, Vitória ES, 1999. GOFFMAN, Erving. Frame analysis: an essay on the organization of experience. Cambridge: Harvard University, 1974. KUNSCH, Margarida (Org). Relações Públicas: história, teorias e estratégias nas organizações contemporâneas. São Paulo: Saraiva, 2009a. PINTO, Milton José. Comunicação e discurso: introdução à Análise de Discursos. 2. ed. São Paulo: Hacker, 2002. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. A intriga e a narrativa histórica. Tomo 1. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. VERÓN, E. L'analyse du 'contrat de lecture': une nouvelle méthode pour les études de positionnement des supports presse. Les médias: expériences, recherches actuelles, applications, IREP, Paris, 1985, p.203-230. VERÓN, Eliseo. Fragmentos de um tecido. Trad. Vanise Dresch São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2004. VERÓN, Eliseo. La semiosis social, 2. Ideas, momentos, interpretantes. Buenos Aires, Paidós. Planeta, 2013. II Congresso Internacional Sobre Culturas 119 FOTOGRAFIA PUBLICITÁRIA E ENUNCIAÇÃO: A IMAGEM PUBLICITÁRIA E O POSICIONAMENTO DISCURSIVO DAS MARCAS CONTEMPORÂNEAS46 Nelson Soares47 RESUMO Diante do fenômeno da linguagem, a Análise de Discurso se encontra instrumentalizada para o estudo de qualquer matéria significante. Contudo, é inegável que seu arcabouço teórico está muito mais adaptado para a pesquisa a partir de materiais de natureza verbal, dada a sua origem vinculada aos estudos da linguística. Por outro lado, a comunicação midiática contemporânea, em especial a publicidade, faz intenso uso da matéria significante não verbal, o que impõe o refinamento de metodologias que considerem o estudo da imagem, sobretudo no que se refere à enunciação. Dessa forma, o presente artigo apresenta uma proposta para compreensão e análise da enunciação da fotografia publicitária – ou seja, dos mecanismos a partir dos quais esse tipo de imagens faz referência ao mundo –, com destaque para a categoria de espaço (ou lugar). Palavras-chave: Análise de dicurso. Semiótica plástica. Fotografia publicitária. Enunciação. marcas. INTRODUÇÃO Na contemporaneidade, a comunicação publicitária e as práticas discursivas que configuram o mundo ético das marcas adquirem papel fundamental no desenvolvimento de diferenciais – valores e ideias – entre produtos (ou serviços) similares que concorrem pelo mesmo público48. Assim, enquanto os produtos anunciados e conteúdos transmitidos se apresentam semelhantes, a publicidade e os diversos recursos de comunicação da marca, através do trato dado à linguagem, estabelecem junto a seus coenunciadores a diferenciação necessária entre produtos e marcas concorrentes – ou seja, na seara do discurso publicitário os recursos enunciativos assumem um papel fundamental: estabelecer diferenciais que contribuam na constituição do sistema de valores, padrões de comportamento e mundo ético das marcas na contemporaneidade (MAINGUENEAU, 2008; QUESSADA, 2003). 46 Trabalho apresentado no GT Cultura e Discursos Midiáticos do II Congresso Internacional sobre Culturas: diálogos Brasil-Portugal. Trabalho resultante de pesquisa realizada com o apoio da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB) e do CNPq. 47 Professor dos cursos de Publicidade e Propaganda e Artes Visuais da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB). Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas (FACOM-UFBA). Membro do Centro de Estudos e Pesquisa em Análise do Discurso – CEPAD (FACOM-UFBA). Coordenador do Laboratório de Estudos Multidisciplinares em Linguagens, Comunicação e Cultura – LINC (UFOB) Email: nsoares@outlook.com. 48 Tal necessidade de diferenciação se explicada pela grande semelhança existente entre produtos e serviços que concorrem por um mesmo público – esse fenômeno se chama comoditização (CARRIL, 2007). II Congresso Internacional Sobre Culturas 120 Como já explicitamos anteriormente (PEREIRA JUNIOR, 2005), embora a Análise de Discurso49 tenha um arcabouço teórico aplicável a qualquer matéria significante, é inegável que seu instrumental teórico e metodológico é bem mais desenvolvido no que se refere ao estudo de textos verbais. Desse modo, torna-se necessário um instrumental teórico e metodológico que nos permita a análise da imagem, sem perder de vista os princípios fundamentais que configuram a tomada do fenômeno da publicidade enquanto discurso social. Para isso, num primeiro momento, discutiremos o conceito de enunciação, colocando em relevo os estudos de E. Benveniste. Em seguida, apresentaremos as possibilidades de aproximação entre a Semiótica Plástica, de origem greimasiana, e a Análise de Discurso, como forma de orientar a compreensão da matéria significante não verbal e preservar uma abordagem da produção de sentido enquanto processo histórico, atravessado pelo ideológico e por diversas coerções de ordem social, que nos permite estudar a relação continuada ao longo do tempo entre marcas anunciantes e seus leitores/consumidores. DISCURSO, FOTOGRAFIA E ENUNCIAÇÃO Considerando a matéria significante enquanto resultado de uma ação, a análise discursiva se afasta de um “em si” do texto e busca se aproximar de sua produção – trata-se de um deslocamento que impõe vinculações entre a matéria significante e o contexto de origem. Temos, assim, dois polos fundamentais, a partir dos quais as relações se estabelecem: enunciado e enunciação. O enunciado50 indica, nessa perspectiva, o produto de um ato de enunciação (MAINGUENEAU, 1998, p.54). De maneira mais precisa, Mikhail Bakhtin afirma esse caráter de ato, de ação, do enunciado ao entendê-lo a partir da [...] alternância dos sujeitos falantes, ou seja, pela alternância dos locutores. Todo enunciado – desde a breve réplica (monolexemática) até o romance ou o científico – comporta um começo absoluto e um fim absoluto: antes do seu início, há os enunciados dos outros, depois de seu fim, há os enunciados-respostas dos outros... (BAKHTIN, 1997, p. 294). 49 Doravante, a expressão Análise de Discurso será abreviada pelas iniciais “AD”. Como afirmam CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU (2006), o conceito de enunciado adquire a devida precisão apenas quando posto em oposição a outra noção. Geralmente, opõe-se à ideia de enunciação, conforme fazemos aqui, ou se opõe aos conceitos de frase, texto ou discurso. 50 II Congresso Internacional Sobre Culturas 121 O conceito de enunciação corresponde à “colocação em funcionamento da língua por um ato individual de utilização” (BENVENISTE, 1999, p.83). A enunciação, de acordo com Emile Benveniste, instaura, de imediato, um primeiro parâmetro indispensável: o seu locutor. Antes da enunciação a língua não é nada além de algo possível (mas não concretizado), que só se encarna no mundo, torna-se discurso, a partir de um ato de apropriação da língua por parte do locutor. Tal ato de apropriação, que institui necessariamente a figura do locutor, em seguida, quase que ao mesmo tempo, instaura a ideia de um outro ao qual se dirige o discurso – trata-se do caráter alocutório da enunciação, da relação entre enunciador e coenunciador, que pode ser mais ou menos explícita no discurso, uma vez que a presença do outro na enunciação é passível de assumir diversas formas e graus51. Para além disso, como explica Benveniste (1999), a enunciação se define como algo da ordem do acontecimento e do momentâneo, fazendo referência ao mundo a partir da colocação da linguagem em funcionamento – ou seja, na sua passagem do virtual ao real, a enunciação precisa se ancorar no mundo através de suas referências de pessoa, espaço e tempo. Tais instâncias de fixação do discurso no mundo a partir do ato de enunciação – relações de pessoa, espaço e tempo – são instituídas na e pela enunciação. Ou seja, não se trata de tomar os termos que exercem tais funções em sua lógica de classes linguísticas. Nessa perspectiva, o caráter de singularidade do ato enunciativo é explícito, de maneira que tais termos só adquirem sentido no conjunto de relações que se estabelecem em cada enunciação. Termos como “eu”, “tu”, “aqui”, “lá”, “aquele” e “este” e as diversas variações verbais que indicam a temporalidade têm seu sentido viabilizado a partir de cada enunciação, sempre assumindo novas posições a cada novo exercício da linguagem (BENVENISTE, 1999, p.86). A partir, então, dos múltiplos empregos dos mecanismos de referência ao mundo – os processos de ancoragem das instâncias de pessoa, espaço e tempo –, o enunciado pode adquirir uma infinidade de formas discursivas, que impactam diretamente sobre a constituição do sujeito da enunciação e do sujeito falado e podem influenciar a relação que se estabelece entre enunciador e coenunciador, como afirma Eliseo Verón: “em 51 Este estudo tem consciência dos problemas trazidos por Benveniste ao desenvolver uma teoria da enunciação fundada na conversação oral e que, por isso mesmo, é demasiadamente presa à subjetividade de um sujeito falante individual, num contexto de comunicação “cara a cara”. Ou seja, trata-se de um entendimento muito restritivo, limitado, já que a semiose social é muito mais complexa, como bem evidenciou Eliseo Verón (2013, p.74-75). No entanto, não nos deteremos agora nessa questão. II Congresso Internacional Sobre Culturas 122 cada uma dessas estruturas enunciativas, aquele que fala (enunciador) constrói um ‘lugar’ para ele mesmo, ‘posicionando’ o destinatário de uma certa maneira, e estabelece, assim, uma relação entre essas duas categorias” (1985, p.66. Grifos do autor). A SEMIÓTICA VISUAL E O DISCURSO A semiótica visual, ou semiótica plástica, assim como a AD, origina-se dos estudos que tomam como base o texto verbal. Apesar dessa semelhança, a semiótica visual se desenvolveu a partir de uma perspectiva bastante diversa daquela que compõe os fundamentos da AD: a teoria da significação que estuda as estruturas narrativas, proposta pelo simioticista lituano Algirdas Julien Greimas (PIETROFORTE, 2004). A noção de semi-simbolismo, bastante explorada por Jean-Marie Floch (1985) no campo da significação visual, filia-se dos estudos de Roman Jakobson a respeito da função poética da linguagem (PIETROFORTE, 2004). Partindo de Jakobson, que define a função poética como a projeção do eixo paradigmático sobre o eixo sintagmático, Floch explica o semi-simbolismo como uma relação entre os eixos paradigmáticos do plano de expressão e do plano de conteúdo, projetados sobre o eixo sintagmático (FLOCH, 1985). Assim, se em uma imagem fotográfica a categoria do plano de expressão plástico “luz vs. sombra” se relaciona com a categoria semântica “vida vs. morte”, de maneira que a luz está vinculada à ideia de vida e a sombra está vinculada à ideia de morte, pode-se falar que há uma relação entre os paradigmas do plano de expressão e do plano de conteúdo, que são projetados sobre o eixo sintagmático – temos, nesse caso, uma relação semi-simbólica, como nos explica Floch. Além disso, por projetar o eixo paradigmático sobre o eixo sintagmático, esse semi-simbolismo se define também como um tipo de relação poética, de acordo com a conceituação de Jakobson para as funções da linguagem. A fim de agregar ao modo de compreensão da linguagem próprio da AD instrumentos teóricos e metodológicos mais apropriados para o estudo da enunciação na imagem publicitária – em especial os processos de organização das relações de espaço52 –, esse artigo busca a aproximação entre AD e semiótica visual, de forma que a primeira ganhe maiores condições de explorar a imagem e a última vá além de um estudo 52 Em função das dimensões do texto, nesse artigo, discutimos apenas a articulação da categoria de espaço na fotografia publicitária. II Congresso Internacional Sobre Culturas 123 estritamente lógico e imanentista da linguagem, ao incorporar uma visão mais ampla das relações entre texto e contexto, sobretudo em seus aspectos sociais. A INSTÂNCIA DO ESPAÇO No plano da expressão algumas dessas qualidades plásticas do fotográfico impactam na instância do espaço, instituindo o lugar do “aqui” – o que indica uma enunciação enunciativa – ou um lugar do “lá” – o que configura uma enunciação enunciva. Dessa forma, a manipulação da instância da pessoa ocorre com as articulações possíveis de uma sensação de espaço numa imagem bidimensional, o que envolve a perspectiva, planos fotográficos e também a profundidade de campo, como veremos a seguir. Para operacionalizar a teoria, os processos de enunciação são segmentados, conforme já dito, em três partes: são as instâncias de pessoa, espaço e tempo. Contudo, essa subdivisão é apenas operativa, de maneira que as três categorias benvenistiana não são estanques. Assim, ao se tratar da instância da pessoa, é possível identificar efeitos de sentido vinculados à espacialidade do discurso publicitário, quando relacionamos as categorias plásticas da imagem com os espaços do “aqui” e do “lá”. Conforme expõe Benveniste (1999), a respeito do estudo da enunciação, o que interessa é o ato de mobilização da língua feito pelo locutor, que materializa a língua em texto, no nível do discurso, tirando-a da sua condição virtual. Interessa, assim, definir a enunciação a partir de suas características formais de manifestação individual, o que implica, entre outras coisas, determinar os recursos formais de apresentação, de localização espacial. Considerando a imagem fotográfica, os tipos de enquadramento e a organização da perspectiva orientam não apenas a fixação da categoria de pessoa (SOARES, 2016), mas podem também orientar a espacialidade da imagem. Em relação ao enquadramento, o emprego de tipologias tais como plano aberto e plano de conjunto, por exemplo, muito comuns ao se discutir tecnicamente a fotografia e o cinema, torna-se distante de uma compreensão a partir de qualidades plásticas. É importante, então, perceber a organização dos planos fotográficos em termos de qualidades como proporcionalidade entre as dimensões das figuras e as dimensões da imagem – ou seja, em termos de escala (VILCHES, 1984, p.50-52) – e perspectiva. Em relação à escala, Vilches (1984) indica pensarmos a tipologia clássica dos planos fotográficos da seguinte forma: II Congresso Internacional Sobre Culturas 124 − Plano geral: a escala da figura humana e outros elementos é muito pequena em relação ao quadro da imagem; − Plano de conjunto: a escala da figura humana e outros elementos é um pouco maior, permitindo a identificação de pessoas dentro de um grupo; − Plano inteiro: a escala da figura humana determina um enquadramento, apresentando o corpo humano na justa medida dos limites superior e inferior do quadro; − Plano médio: permite escalas mais variadas da figura humana desde o quadro que determina um corte do corpo humano acima da cabeça e na altura dos joelhos (plano americano); há, também, a escala determinada pelo corte do corpo humano logo acima da cabeça e na altura da cintura (plano médio); e em outros casos, temos um corte do corpo humano logo acima da cabeça e na altura do peito (plano médio curto); − Primeiro plano: é determinado por uma escala de corte do corpo humano que vai da cabeça até a altura dos ombros; − Plano de detalhe: nesse caso, temos apenas um detalhe do rosto humano. Tal tipologia de planos fotográficos, explicada a partir da relação de proporcionalidade entre as dimensões dos objetos de cena (figuras) e as dimensões do quadro (fundo), pode orientar a categoria plástica “próximo vs. distante”, relacionada com os efeitos enunciativos “aqui” e “lá”, conforme esquematizado no quadro a seguir: Quadro 1 – A instância enunciativa do espaço e os planos fotográficos PE próximo aqui vs. distante vs. lá Fonte: elaboração nossa É importante distinguir o que se apresenta acima – ou seja, as relações de proporcionalidade entre os objetos e as dimensões da imagem, que definem os quadros fotográficos – da proporcionalidade entre duas ou mais figuras no interior do mesmo quadro – ou seja, as relações de proporcionalidade produzidas pelas deformações da perspectiva linear. Ambas têm influência sobre a instância da pessoa e do espaço, mas não se confundem. II Congresso Internacional Sobre Culturas 125 Figura 1 – Anúncio Courier Sport Fonte: revista Veja, ed. 1692, p. 82-83, publicada em 21/03/2001. No caso do anúncio da figura 1, acima, há o elemento humano enquadrado num plano médio curto, ao mesmo tempo em que esse elemento humano está bem maior em relação ao veículo. Dessa forma, tanto o enquadramento do homem quanto a proporção entre as dimensões das duas figuras colocam em funcionamento a relação “eu-tu” e o lugar do “aqui”, ao passo que se tem, ainda, um efeito de afastamento, a pessoa “ele”, na relação entre o veículo e o coenunciador. Figura 2 – anúncio F-250 Fonte: revista Veja, ed. 1753, p. 18-19, publicada em 29/05/2002. Ao analisarmos a peça publicitária da figura 2, acima, na imagem da esquerda, há o emprego de um plano de conjunto e a presença de linhas de força da perspectiva linear que situam a figura humana no lugar do “lá”, embora, do ponto de vista II Congresso Internacional Sobre Culturas 126 figurativo, o olhar do homem imponha uma relação direta do tipo “eu-tu”. No caso dos anúncios das figuras 3 e 4, na página seguinte, o homem e a mulher, respectivamente, estão enquadrados em plano médio curto, o que convoca o coenunciador a assumir a relação “eu-tu”, reforçada pelo olhar dos fotografados direcionado para ao leitor. Por outro lado, a quase inexistência da tridimensionalidade nas duas imagens, resultante da impressão de pequena profundidade de campo e focalização no plano das figuras humanas, apaga a existência de um “lá”, ou de um espaço em que se pode situar as figuras de discurso, o que afirma o “aqui” e reforça a relação de direta “eu-tu”. Em paralelo aos efeitos enunciativos resultantes da escala, ou seja, da tipologia dos enquadramentos, há que se considerar, ainda, a perspectiva, ou seja, a tridimensionalidade da imagem e a profundidade de campo, que envolve, além da perspectiva, a nitidez no eixo da objetiva. A relação entre essas qualidades plásticas pode indicar a afirmação dos opostos “aqui” e “lá” – a presença do termo complexo da categoria plástica “próximo vs. distante”. Como já comentado, enquanto nos anúncios das figuras 3 e 4, temos a afirmação do termo “próximo” pelo tipo de plano utilizado, há a negação do termo “distante”, que é resultado da pequena profundidade de campo e da colocação da nitidez no primeiro plano. Por outro lado, quando observamos as peças publicitárias das figuras 1, acima, e 5, na página seguinte, percebe-se que há a afirmação simultânea de um “aqui” e de um “lá” – a concomitância dos opostos, a presença do termo complexo da categoria. Assim, é possível falar de um “aqui” no interior de um espaço mais amplo, o “lá”. Figura 3 – Anúncio Bradesco Celular Fonte: revista Veja, ed. 2388, ano 47, nº 35, de 27 de agosto de 2014 II Congresso Internacional Sobre Culturas 127 Figura 4 – Anúncio O Boticário Fonte: revista Veja, ed. 2388, ano 47, nº 35, de 27 de agosto de 2014 No caso do anúncio da Ford Courier, figura 1, a afirmação concomitante dos termos simples da categoria é garantida pela relação de escala entre os dois objetos (o homem e o carro) – que dão ênfase nos dois planos distantes entre si e, com isso, acentuam a tridimensionalidade da imagem – e pela extensão da nitidez no eixo da câmera. Já na peça da Morena Rosa, figura 5, os elementos postos em funcionamento são as linhas de força convergentes, que se direcionam para o centro da perspectiva, formadas pelas linhas que marcam o trânsito e definem ruas e jardins, e pela grande profundidade de campo. II Congresso Internacional Sobre Culturas 128 Figura 5 – Anúncio Morena Rosa Fonte: revista Marie Clair, ed. 265, ano 2013 Tal concomitância está vinculada à tridimensionalidade, que engloba os elementos da perspectiva linear e a profundidade de campo – fatores vinculados aos efeitos visuais dos diversos tipos de objetivas – e a perspectiva aérea53. CONSIDERAÇÕES Como se vê, os elementos plásticos da imagem fotográfica garantem à publicidade a possibilidade de colocar em discurso a categoria enunciativa do espaço, instaurando o lugar do “aqui”, o lugar do “lá” ou mesmo a correlação entre ambos. E, juntamente com os elementos plásticos que instauram a categoria de pessoa, é possível falar em diversos níveis de aproximação e distanciamento entre enunciador e coenunciador, o que, em última instância, participa da constituição de uma relação de marcária. É no campo dos discursos sociais que as marcas apresentam a seus 53 A perspectiva aérea é o efeito de profundidade causado pela influência da atmosfera, resultando em tons mais claros nas zonas da imagem que estão mais distantes e tons mais escuros nas zonas da imagem mais próximas da câmera (HEDGECOE, 1982, p.180-181). II Congresso Internacional Sobre Culturas 129 leitores/consumidores suas propostas de mundo ético e sistema de ideias socialmente valorizadas, que servirão de lastro distintivo para as marcas que concorrem num mesmo setor da economia e que poderão, a depender de sua pertinência, promover a formação de uma corpo social da marca – verdadeira comunhão imaginária através do consumo simbólico de seus produtos, dentre eles, seus discursos (QUESSADA, 2003). Daí a importância do estudo do discurso da publicidade – em especial, sua enunciação – e das marcas na contemporaneidade. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BENVENISTE, Emile. Problemas de linguística general II. 15. ed. México, DF: Siglo Veintiuno Editores, 1999. CARRIL, Carmem. Qual a importância da marca na sociedade contemporânea? São Paulo: Paulus, 2007. CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, P. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2006. FLOCH, J. M. Petites mythologie de l’oeil et de l’esprit: pour une sémiotique plastique. París, Amsterdam: Editions Hadès-Benjamins, 1985. HEDGECOE, John. Manual do fotógrafo. Rio de janeiro: Editora JB, 1982. MAINGUENEAU, D. Cenas da enunciação. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. MAINGUENEAU, D. Termos-chave da análise do discurso. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. PEREIRA JUNIOR, N. S. Discurso e Imagem: possibilidades metodológicas para uma análise discursiva do fotojornalismo contemporâneo. In: XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2005, Rio de Janeiro. Anais INTERCOM 2005. Rio de Janeiro: UERJ, 2005. 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La lectura de la imagen: prensa, cine e televisión. Barcelona: Paidós, 1984. II Congresso Internacional Sobre Culturas 131 O SAGRADO E O CORPO FEMININO: ESTUDO DE CASOS – JOSÉ SARAMAGO E A PLAYBOY PORTUGUESA E JORGE AMADO E A PLAYBOY BRASILEIRA Carla de Araujo Risso54 RESUMO Apesar da Censura ter sido extinta em Portugal e no Brasil nas últimas três décadas do século XX, ainda é possível observar mecanismos de Controle Social. Encontramos exemplos nos dois países, tais como o ensaio de Carol Castro na revista Playboy brasileira – tema “as mulheres de Jorge Amado” – e o ensaio na Playboy portuguesa em homenagem ao falecimento de José Saramago – tema “Evangelho Segundo Jesus Cristo”. Este artigo procura demonstrar que a ressonância dos aspectos discursivos presentes nas revistas – tanto a brasileira como a portuguesa – se encontra em um território cheio de tabus e preconceitos, mesmo no século XXI. Palavras-chave: Censura. Controle Social. Liberdade de Expressão. Discursos midiáticos. Discursos Circulantes. INTRODUÇÃO Toda sociedade tem costumes, tabus ou leis que regulam os discursos, o modo de vestir, os atos religiosos e a expressão sexual. Em Atenas, berço da democracia, a Censura era reconhecida como um meio de impor a ortodoxia dominante, um instrumento legítimo para regular a moral e a vida política da população. Segundo RODRIGUES (1979, p.14), “pela natureza de seu espírito, o homem não pode lidar com o caos. Seu maior medo é o de defrontar-se com aquilo que não pode controlar, seja por meios técnicos, seja por meio simbólicos”. E é por reconhecer que há algo de intrinsecamente bom e virtuoso na lei e na ordem que, ao longo de toda a história da humanidade, a livre expressão de ideias tem sido submetida a alguma forma de Censura para assegurar a conformidade do comportamento de seus membros a um conjunto de regras e princípios prescritos e sancionados. Contudo, tal Censura não tem uma forma única e pode apresentar-se de várias maneiras: como uma arma usada por regimes totalitários para impedir a propagação de ideias que questionam a organização do poder ou como uma autocensura imposta pelos 54 Mestre (2005) e Doutora (2012) em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo, atualmente é professora do quadro permanente da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Está vinculada ao Grupo de Pesquisa: Estudos de Linguagem: Práticas Midiáticas (Midiato ECA/USP); ao Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (Obcom - ECA/USP); e ao Grupo de Estudo e Pesquisa de Práticas e Produtos Discursivos da Cultura Midiática (FACOM/UFBA). E-mail: carlaarisso@gmail.com II Congresso Internacional Sobre Culturas 132 indivíduos a si próprios são alguns exemplos. As justificativas para a Censura têm variado. O material pode ser considerado indecente ou obsceno; herético ou blasfemo; sedicioso ou traiçoeiro. Assim, as ideias vêm sendo suprimidas sob o pretexto de proteger as três principais instituições sociais: a família, a Igreja e o Estado. Um dos mais antigos estratagemas utilizados é o argumento religioso: certas coisas seriam consideradas “ofensivas” aos olhos da Divindade e em seu nome seriam proibidas. São os tabus. Para FREUD (1950, p.16), “o tabu traz em si um sentido de algo inabordável, sendo principalmente expresso em proibições e restrições”. Cabe ressaltar que, na concepção freudiana, as restrições do tabu são distintas das proibições religiosas ou morais, por não se basearem em nenhuma ordem divina, nem em nenhum sistema que apresente motivos racionais. “As proibições dos tabus não têm fundamento e são de origem desconhecida. Embora sejam ininteligíveis para nós, para aqueles que por elas são dominados são aceitas como coisa natural” (1950, p.16). Para Patrick Charaudeau (2006, p. 116), todo grupo social, para reconhecer-se como tal, precisa regular suas trocas segundo regras de classificação dos objetos, das ações e das normas de julgamento. Os grupos criam representações discursivas que, essencialmente, têm três funções sociais intimamente ligadas umas às outras: a organização e normatização coletiva dos sistemas de valores; a exibição das características comportamentais do grupo (rituais e lugares-comuns), pois, para construir sua identidade, os membros do grupo precisam tornar visível àquilo que compartilham e que os diferencia de outros grupos; a encarnação dos valores dominantes do grupo em figuras (indivíduo, instituição, objeto simbólico) que desempenham o papel de representar a identidade coletiva. Sendo assim, os tabus variam de país para país, de religião a religião, de seita a seita e são em sua maioria, embora nem sempre, de natureza sexual e ligados às formas de utilização do corpo. Vários estudos antropológicos constataram que nenhuma sociedade deixa de restringir, de alguma forma, o comportamento sexual de seus membros. Para FOUCAULT (1988, p.21), talvez tenha havido uma depuração – e bastante rigorosa – do vocabulário autorizado para se referir ao sexo. Codificou-se toda uma retórica da alusão e de metáfora, implantaram-se novas regras de decência e instalou-se um controle também das enunciações. Assim, definiu-se de maneira muito mais estrita onde e quando não era possível falar de sexo: em que situações, entre quais locutores, e II Congresso Internacional Sobre Culturas 133 em que relações sociais. “Estabeleceram-se, assim, regiões, senão de silêncio absoluto, pelo menos de tato e discrição” (FOUCAULT, 1988, p. 22). Ainda no século XXI, pode-se notar um conjunto poderoso de técnicas e argumentos para apoiar os esforços de coibir a liberdade de expressão e a utilização do corpo. Os mitos e narrativas da criação do feminino – que normalmente é representado com existência posterior à existência do masculino –, no imaginário ocidental, trazem em si a culpa e o desterro do Paraíso. “A mulher é assimilada ao pecado: uma tentadora da qual é mister se defender, reduzindo-a ao silêncio, velando-a” (PERROT, 2003, p. 21). Em Portugal, a Constituição de 1976, promulgada após a “Revolução dos Cravos”, voltou a consagrar a liberdade de expressão e informação (artigo 37.º) e a liberdade de imprensa (artigo 38.º). Revisões posteriores alargaram a liberdade de expressão para todos os meios de comunicação social. No Brasil, a Constituição de 1988, em seu inciso IX do Artigo 5º afirma que “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.”. Apesar da Censura ter sido extinta em ambos os países nas últimas três décadas do século XX, ainda é possível observar mecanismos de Controle Social e a existência de uma “censura togada”, tanto no Brasil como em Portugal. Para se ter uma ideia, segundo o Google Transparency Report (2016), o Brasil era o campeão mundial de pedidos governamentais por via judicial para retirada de conteúdo online até 2014 – perdendo o posto em 2015 para a Turquia. Este trabalho apresenta duas publicações que demonstram a existência de Controle Social em seus respectivos países: o ensaio de Carol Castro na Playboy brasileira (agosto de 2008) – tema “as mulheres de Jorge Amado” – e o ensaio na Playboy portuguesa (julho de 2010) em homenagem ao falecimento de José Saramago – tema “Evangelho Segundo Jesus Cristo”. OS CASOS DA PLAYBOY Em agosto de 2008, foi lançada a edição de aniversário da Playboy – um ensaio do fotógrafo Bob Wolfenson com Carol Castro. As fotos realizadas em pontos históricos de Salvador, como o Pelourinho e a escadaria da Igreja do Paço, traziam como personagens Dona Flor, Tieta e Gabriela, as musas de Jorge Amado. II Congresso Internacional Sobre Culturas 134 Em pouco tempo, a foto em que a atriz aparece vestida com um corpete, com os seios à mostra e um terço nas mãos causou polêmica. O padre Juarez de Castro, Secretário de Comunicação da Arquidiocese de São Paulo, disse à época: Isso é um desrespeito. Não só com a Igreja Católica, mas com a fé de um povo. É absurdo usar um objeto de devoção das pessoas para fazer uma coisa como essa. Está na moda falar que essas fotos são um ensaio fotográfico. Mas, na verdade, não passam de um erotismo vulgar. Usar qualquer peça de devoção, nesse contexto, é desrespeitoso”, (BABADO IG, 2008) Rodrigues lembra que os conceitos de "decente" e "indecente" são socialmente aprendidos e todas as culturas têm o conceito de decência. “Todavia, não é verdadeiro que esteja sempre associado primordialmente com a indumentária e com a cobertura dos órgãos sexuais” (1979, p.73). “O corpo significa ao mesmo tempo a Vida e a Morte, o Normal e o Patológico, o Sagrado e o Profano, o Puro e o Impuro” (RODRIGUES, 1979, p.131). E essas dicotomias levaram o juiz Oswaldo Freixinho, da 29ª Vara Cível do Rio de Janeiro, no dia 25 de agosto de 2008, a proibir que a imagem polêmica fosse veiculada em novas edições da revista. A Censura foi pedida em ação conjunta do Instituto Juventude Pela Vida, do Rio de Janeiro, e por um padre de Goiás. No site do jornal Zero Hora, podemos ler alguns comentários de leitores, publicados no dia 26 de agosto, a respeito da decisão do juiz. Cadê a liberdade de expressão? Será q um símbolo ofende tanto assim? A Igreja deveria se preocupar em orientar melhor seu clero para que não tenha problemas como tem acontecido... pedofilia entre outros! Que hiprocrisia! Como sempre vindo da Igreja Católica...... CRISTINA Correta a decisão do Juiz. A nudez é condenada pela igeja católica e a maior parte das religiões cristãs. Usar símbolos religiosos para aumentar a venda de publicações que atentam aos bons costumes é altamente condenável e não encontra guarida nas pessoas que estão comprometidas com a sua fé e crenças. PAULO NICOLAU ELY O colunista Ancelmo Gois, no dia 26 de agosto de 2008, reproduz no Extra a fala da atriz Carol Castro a respeito da polêmica sobre as fotos: II Congresso Internacional Sobre Culturas 135 Já pedi desculpas se ofendi alguém. Óbvio que não era a minha intenção magoar ou desrespeitar ninguém! Mas enfim, a foto fazia parte do contexto do ensaio: Mulheres de Jorge Amado. Elas sempre foram sensuais e religiosas. E na "tal" foto, tratava-se de Dona Flor, viúva, sofrendo pela morte de Vadinho, rezando sua falta. No dia 1.º de julho de 2010, o ensaio de capa da Playboy que chegou às bancas de Portugal conseguiu, ao mesmo tempo, reunir críticas e elogios tanto de fãs do autor quanto daqueles que condenavam seu ateísmo. Raquel Cozer, no O Estado de S. Paulo, 8 de julho de 2010, fala da publicação: Numa espécie de Pietá com papéis invertidos, um homem representando Cristo apoia uma mulher seminua e tatuada no colo, sobre uma cama em cuja cabeceira lê-se a inscrição “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” - nome do livro de 1991 que acirrou a briga entre Saramago e a Igreja Católica. A chamada principal da revista é para entrevista com o escritor, a mesma que foi publicada em 1995 pela Playboy brasileira. A conversa vem acompanhada por ensaio no qual o personagem aparece cercado de mulheres seminuas em situações variadas: num "flagrante" de prostituição; numa cozinha, perto de uma mulher armada; observando uma cena de lesbianismo, etc. Para uma jornalista do Departamento de Comunicação da Playboy as pessoas não entenderam bem o conceito da revista. “O que fizemos foi usar uma produção para falar da obra de José Saramago. Não falamos mal de Jesus, falamos bem, porque Jesus defendia as mulheres". (COZER, 2010) O lusitano Jornal de Notícias, também datado de 8 de julho de 2010, publica a matéria intitulada “Jesus na Playboy portuguesa provoca ira da empresa-mãe”, informando que a Playboy Enterprises Internacional poderia fechar a revista em Portugal porque a homenagem ao livro “Evangelho Segundo Jesus Cristo", de José Saramago, “não foi aprovada” pela empresa norte-americana, como estaria acordado. Efetivamente, em agosto de 2010, deu-se o fechamento da franquia da Playboy portuguesa pela matriz americana um mês após a veiculação a edição polêmica. A vicepresidente de relações públicas internacionais da organização, Theresa Hennessy, explicou a decisão em um e-mail enviado para o jornal britânico Daily Mail: “Nós não vimos nem aprovamos a capa e o editorial da edição de julho da ‘Playboy’ de Portugal. É uma violação chocante de nossas normas e não teríamos autorizado caso nos tivesse sido informado com antecedência”. II Congresso Internacional Sobre Culturas 136 Cabe ressaltar que a presença da Playboy em Portugal era muito recente. Enquanto a Playboy brasileira teve início na segunda metade dos anos 1970, a primeira edição portuguesa se deu apenas em abril de 2009, publicada pela Frestacom. A primeira fase da franquia lusitana durou até agosto de 2010 – um mês depois da capa em homenagem a Saramago. Consolidou-se, assim a ideia de que a revista foi fechada por conta do conteúdo. No SAPONotícias, do dia 24 de agosto de 2010, encontramos, contudo, outra informação: A Playboy Enterprises Internacional interpôs um processo judicial contra a Frestacom – editora responsável – no Tribunal de Illinois, Chicago, EUA, em 12 de Agosto de 2010, pois houve falha em três pagamentos, acarretando uma dívida superior a 150 mil euros. O contrato entre a Playboy e a Fresta terminou em 26 de Julho de 2010. A partir dessa data a Fresta perdeu a licença para publicar a Playboy em Portugal, tendo ainda lançado o número de agosto. A Playboy portuguesa voltou às bancas pela editora Mediapage pelo período de um ano – de maio de 2012 a agosto de 2013. A revista só voltou a circular novamente em junho de 2015, editada pela Black Rabbit, e até hoje continua existindo. CONSIDERAÇÕES A exposição do corpo nu aliado à religião há muito tempo é motivo de tabu. O Papa Pio V, coroado em 1566, escondeu ou enviou para o Capitólio as estátuas grecoromanas desconsideradas como ídolos, e, em 1559, mandou Daniel de Volterra cobrir as “vergonhas” dos corpos do Juízo Final de Michelangelo. Não é de se estranhar que haja um questionamento por parte de uma parcela da sociedade sobre a exposição de corpos femininos nus apresentados junto de terços ou da imagem de Cristo. É de se supor também que haja autocensura imposta pelas revistas que veiculam esse tipo de conteúdo. Não parece à toa que os ensaios estejam vinculados às obras de dois escritores consagrados em seus respectivos países. Podemos nos questionar se o corpo nu e a religião seriam colocados em conjunto em outra situação. De certa forma, as obras ficcionais de Jorge Amado e de José Saramago dão respaldo às propostas apresentadas. Mesmo assim, em ambos os casos houve sanções. No Brasil, ficou determinado pela Justiça que a imagem com o terço não fosse veiculada em novas edições da revista; em Portugal, a Playboy Enterprises Internacional usou o ensaio de Saramago como pretexto para encerrar a publicação. II Congresso Internacional Sobre Culturas 137 Este artigo procura demonstrar que a ressonância dos aspectos discursivos presentes nas revistas – tanto a brasileira, como a portuguesa – se encontra em um território cheio de tabus e preconceitos, mesmo no século XXI. Para além desse estudo de casos, as reflexões sobre a liberdade de expressão estão ainda em andamento e encontram-se muito longe de terminar em um consenso. Há ainda um longo caminho a ser percorrido e esta pesquisa espera contribuir para o debate. REFERÊNCIAS BOURDIEU, P. A Opinião Pública Não Existe. In: Questões de Sociologia. São Paulo: Marco Zero, 1983. P. 137-151. CHARAUDEAU, P. Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto, 2006. FOUCAULT, M. História da Sexualidade. 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Disponível em: http://babado.ig.com.br/noticias/2008/08/13/ igreja_catolica_protesta_contra_foto_de_carol_castro_na_playboy_atriz_se_defende_15 55020.html. 16 out. 2016. JESUS na "Playboy" portuguesa provoca ira da empresa-mãe In: Jornal de Notícias, Porto, 8 de julho de 2010. Disponível em: <http://www.jn.pt/media/interior/jesus-naplayboy-portuguesa-provoca-ira-da-empresamae-1613731.html#ixzz4NIst5VfC>. Acesso: 16 out. 2016. LIPPMANN, W. Opinião Pública. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. II Congresso Internacional Sobre Culturas 138 MENDONÇA, R. Justiça proíbe veiculação da foto de Carol Castro com terço para a 'Playboy'. Rio de Janeiro: EGO/G1, 2008. Disponível em: <http://ego.globo.com/Gente/Noticias/0,,MUL736990-9798,00JUSTICA+PROIBE+VEICULACAO+DA+FOTO+DE+CAROL+CASTRO+COM+TE RCO+PARA+A+PLAYBOY.html>. Acesso: 16 out. 2016. MELLO, R. O Quadro do Contrato Comunicacional de Patrick Charaudeau e o Texto Literário. In: Caligrama, Belo Horizonte, 8:41-54, Novembro 2003. 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Os elementos centrais desse trabalho são os materiais e as técnicas, bem como os peculiares procedimentos no período brasileiro da artista. Pretendemos abordar no contexto da época as questões da abstração e da figuração, bem como suportes e técnicas utilizados. O nosso estudo abrange algumas obras da artista nesse período brasileiro, detendo-se em particular em dois de seus trabalhos: 1) A Floresta dos Errantes (1941) e 2) História trágico-marítima (1944). Palavras-chaves: Vieira da Silva no Brasil. Abstração. Figuração. Modernismo. A mostra “Portugal Portugueses” de arte moderna contemporânea, no Museu Afro Brasil, que destaca o papel das artistas mulheres para a história, apresenta no momento a artista Vieira da Silva. A exposição acontece no período de 8 de setembro deste ano até 8 de janeiro de 2017. É importante ressaltar que Vieira da Silva tornou-se uma artista importante a nível internacional. Segundo Lamego (2007), a história desse período é pouco registrada. "Sentíamos tudo muito frágil, por sorte não tivemos nenhum desastre nem tivemos nenhuma doença tropical - eu tive apenas uma hepatite. Vivíamos assim como uma borboleta" disse Maria Helena Vieira da Silva em entrevista a Scliar (LAMEGO 2007, p.55). Segundo Lamego, O Rio de Janeiro apresenta-se nessa época de guerra, quando o casal chega, como um centro de refugiados de todas as partes do mundo. Eles se encontram para sobreviver e dividir experiências. Vieira da Silva chega ao Brasil em junho de 1940, aos 32 anos. Deixa o Rio de Janeiro em fevereiro de 1947. Vieira da Silva e Arpad Szenes percebem logo que o país dificilmente conseguiria absorver sua arte, sobretudo porque naquela época ninguém compra obras de arte; além disso, uma linguagem artística diferente da convencional certamente tinha menores chances de dar retorno financeiro. Todavia, não faltam propostas de trabalho e atividades. O ambiente de tensão é enorme devido às continuas notícias tristes do conflito. E a guerra interrompe também por cinco anos as exposições públicas de Vieira da Silva; só volta a 55 Doutora em Artes Plásticas. Professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Email: maria.azevedo@ufms.br II Congresso Internacional Sobre Culturas 140 expor em 7 de julho de 1942, no Museu Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro. Lá estão Manuel Bandeira, Vinícius de Moraes, Cecília Meireles, Jorge de Lima, Murilo Mendes, entre outras personalidades famosas das Letras e das Artes daquele tempo (Lamego, 2007). A mostra é largamente anunciada na imprensa. A partir de 1943, a colaboração entre escritores e o casal Vieira da Silva se intensifica. Interessante assinalar a maneira como Vieira da Silva assina sua obra, com o sobrenome masculino, o que chama a atenção da escritora Cecília Meireles (Lamego, 2007). Em entrevista à Revista Arte Hoje (Garcia sd) Vieira da Silva declara que quando pinta não sabe se é um homem ou mulher. Segundo AGUILAR (2007, p.42): "A própria Maria Helena adquiria obras daquele período. Tenho a impressão de que vislumbrava essa fase como pertencendo a uma outra vida, e, ao mesmo tempo, se surpreendendo pela própria resistência em enfrentá-la. Os anos brasileiros foram difíceis." O site da Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva refere-se também ao período brasileiro como uma fase de sofrimento para a artista e sua obra. Segundo site da Enciclopédia Itaú Cultural, a artista traz ao Brasil a abstração que, no caso de Vieira da Silva, apresenta novas relações na composição entre cores, texturas, ritmos e intervalos. Durante sua permanência no Brasil, Vieira da Silva e seu esposo Arpad Szenes criam o Ateliê Silvestre, que se transforma em centro de discussões artísticas. Existem na obra de Vieira processos de construção com materiais de desenho ou a pintura desenhada – gestual abstrata, sobretudo observando-se os seus trabalhos artísticos que se fundam no gesto, e transformam uma superfície em matéria colorida. Uma pintura/desenho. No artigo de Nelson AGUILAR (2007, p. 34) Encontros e desencontros, ele escreve: "Arpad Szenes afirma que os cursos de anatomia que sua mulher seguira na Escola de Medicina aberto aos alunos de Belas-Artes em Lisboa, proporcionou-lhe um desenho 'forte e estruturado'". Estes traços puderam ser observados na obra Vieira da Silva em sua exposição do MAM. Foram observados os trabalhos presentes no livro de Nelson Aguilar que foram expostos no MAM naquela exposição, e a partir daí podemos repensar as questões levantadas pela autora Lehmkuhl. Em relação às questões de origem temática, verificase que sua linguagem poética (desenhos, pinturas) transforma-se consideravelmente, movimentando-se em torno da figuração. Independente da temática, consideramos que a abstração está presente a partir do processo de elaboração dos trabalhos, já que existe a procura de uma arte que se distancia daquela já assimilada. Porém, no nosso entender, a II Congresso Internacional Sobre Culturas 141 origem temática não determina se um trabalho artístico é figurativo ou abstrato. Um ponto de partida de uma observação, ou memória pode se desenvolver num caminho que se distancia desse ponto inicial, elaborando outras possibilidades através do desenvolvimento de sugestões gráficas e pictóricas que vão se tornado visíveis e que vão se articulando à técnica. Os trabalhos desenvolvidos com Vieira da Silva no Brasil estão em grande parte nas categorias "desenho" e "pintura", inclusive abrangendo, num mesmo trabalho, as duas possibilidades. Isso porque as fronteiras entre o desenho e pintura, principalmente no caso do papel, são particulares. No meu entender, não existem as fronteiras que definem desenhos enquanto procedimentos secos e pinturas como procedimentos úmidos. Segundo Lehmkuhl (sd), em relação às técnicas, os seus esboços em papel, desenhos e guaches aumentam consideravelmente em número. As obras do período brasileiro foram executadas com materiais e suportes disponíveis em circunstâncias complicadas, repletas de indefinições. Acreditamos que, também por essas razões, os trabalhos apresentam pequenas dimensões. Segundo Lehmkuhl (sd), são poucos os trabalhos de dimensões superiores a um metro de altura ou de largura. Prossegue Lehmkuhl, colocando que Vieira utiliza vários materiais e suportes, principalmente aqueles mais fáceis de armazenar como: os vários tipos de papel e cartão, lápis e tinta da China, guache, incluindo também o óleo sobre cartão ou sobre tela. Salienta Lehmkuhl que os temas da intimidade do casal, do convívio familiar aparecem com grande frequência: Arpad pinta Maria Helena e Maria Helena pinta Arpad. Cenas Urbanas e os amigos são temáticas muito frequentes para Vieira da Silva. A artista dedica-se também com frequência à temática da Guerra. A partir da exposição e do catálogo (naturalmente essas obras representam pequena parte de sua produção brasileira, como ressalta Aguilar), observamos que o conjunto da sua obra demonstra uma ampla variedade de temas, técnicas e soluções plásticas. Temos no catálogo um grande número de trabalhos no suporte papel. A autora Lehmkuhl (sd) discorda de colocações que dizem que Vieira da Silva conformou sua obra ao gosto predominante do Brasil, ou seja, representando o motivo em detrimento de questões formais. Nessa perspectiva, o período no Brasil é colocado como sendo um interregno na produção da artista, que foi acusada de abandonar a abstração por causa do ambiente desfavorável encontrado no Brasil; prossegue Lehmkuhl (sd) apontando para a importância do período brasileiro que atualmente é reconhecida. A autora ainda demonstra como a artista desenvolve seus trabalhos em sentido contrário, II Congresso Internacional Sobre Culturas 142 desenvolvendo sua poética de forma perspicaz, em comentários relativos a algumas obras por ela realizadas. Segundo Lehmkuhl (sd), artistas estrangeiros presentes no Brasil, entre eles Arpad e Vieira da Silva, estão relacionados à difusão da arte abstrata no país. Escreve AGUILAR (2007, p. 34): "Quando comecei a pesquisar sistematicamente a obra de Vieira da Silva havia dúvidas a respeito de seu percurso. Antônio Bento sustentava que a pintora se converte à figuração no Brasil e Mário Schemberg, que teria atingido a abstração entre nós. Ambos participam da verdade." Prossegue Aguilar, colocando que embora praticante da abstração, a permanência no Brasil a leva para o naturalismo e possibilita um novo ponto de partida para uma nova etapa fértil na sua volta à Europa. Segundo AGUILAR (2007, p. 258): "A pintura não busca o assunto como se ele fosse entidade autônoma, independente; o espaço pictórico realizado pela pintora o incorpora, o submete de acordo com suas próprias dimensionalidades." Segundo AGUILAR (2007, p. 258), Mário de Andrade opinava, a respeito da exposição de Vieira da Silva, realizada Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro em 1942, que ela "tratava muito mais de bordado do que outra coisa". Prossegue AGUILAR (2007, p. 258), considerando essa postura de Mário demasiado naturalista, e ainda "comprometida com o ideário nacionalista da época simbolizada por Cândido Portinari e Emiliano Di Cavalcanti e caucionada até as últimas consequências pela escola muralista mexicana". Geraldo Ferraz também apresenta críticas severas a Vieira da Silva, muitas apresentadas no texto de Aguilar (2007). De acordo com Aguilar (2007), Vieira da Silva está atenta também a uma outra poética latino-americana: a do universalismo construtivo do artista uruguaio Joaquín Torres-García, com quem virá a trocar ideias. Torres Garcia publica artigo no periódico "Alfar" com duas fotos parciais do quadro da artista "A Guerra" e ressalta a abstração e a estrutura do quadro. Essa troca de experiências com Torres Garcia é positiva, segundo Vieira da Silva, para o seu trabalho artístico. Segundo Aguilar (2007), quando Vieira da Silva e Arpad desembarcam no Brasil, a arte abstrata já havia sido exposta nos Salões de Maio realizados em São Paulo; no entanto, no seu entender, a crítica local assimilou mal as novas possibilidades visuais. Segundo Lamego (2007) em dezembro de 1944, Vieira da Silva realiza uma segunda exposição no Brasil, na pequena Galeria Askanasy (que é um importante II Congresso Internacional Sobre Culturas 143 espaço para artistas exilados na época), criada por um imigrante polonês que tinha chegado ao Rio de Janeiro no início dos anos 40. A exposição foi amplamente divulgada. Esses pontos de vista conflitantes nos convidam à observação das obras de Vieira da Silva. Não dispomos das obras originais, mas as reproduções nos proporcionam possibilidades de questionamentos relativos às estruturas consolidadas que gravitam em torno dos conceitos de desenho e pintura e nos convidam ao estudo da especificidade de cada técnica e suporte. Materiais, gestos, energia ao elaborar o trabalho, meticulosidade na construção da composição e de cada detalhe são elementos de pesquisa de um artista. O conjunto da sua obra do momento brasileiro da artista atesta uma grande diversidade temática bem como uma grande variedade em aspectos técnicos e em soluções plásticas, conquistados neste momento por ela considerado como pouco propício à sua arte. Consideramos que a questão da abstração está presente de muitas maneiras na realização figurativa que Vieira da Silva executa. Consideramos também que ainda hoje persistem as ideias relacionadas à desvalorização de trabalhos de desenho e pintura realizados sobre papel. As alterações pictóricas das cores, da iluminação das linhas e da composição podem ser percebidas na apreciação das obras. Em Vieira da Silva, a questão da construção do espaço no suporte, papel, tela, tem uma significação muito especial. Sabemos da nova construção espacial que marca o advento da arte moderna. Dentro desse marco, a arte abstrata vai conquistando todo um novo significado, inclusive com novas experiências com materiais, suportes, técnicas não utilizados anteriormente. Essa é a experiência brasileira de Vieira da Silva. Aguilar (2007) coloca que Vieira da Silva milita pela recuperação do bordado (que se origina no Brasil nos primeiros tempos de colonização portuguesa). No nosso entender, o bordado tem estreita conexão com o desenho e a pintura, ganhando diferenciações em cada técnica, material, suporte. Segundo COUTO (2011, p. 195), Vieira da Silva seduz o espectador através de possibilidades visuais exuberantes, aprofundando sua temática de modificações do espaço pictórico, "criando jogos perspectivos, ritmos e tensões formais cada vez mais refinados". Segundo COUTO (2011, p. 201), Nelson Aguilar, autor de vários estudos sobre a pintora portuguesa Vieira da Silva, afirma que ela "conheceu a crítica mais desfavorável de sua carreira no Brasil". Couto salienta que, no entender de Aguilar, as carreiras da Vieira da Silva e de Arpad Szenes não evoluíram mais significativamente II Congresso Internacional Sobre Culturas 144 no Brasil devido à grande ligação do meio intelectual brasileiro a favor de uma arte figurativa especificamente nacional. Prossegue COUTO (2011, p. 201) com a afirmação de Aguilar: “Havia um ar de autonomia em seu fazer (de Vieira da Silva) que desgostava os intrépidos defensores do modernismo brasileiro, partidários ferrenhos da pintura figurativa, da música narrativa, peças de terror épico, aptas a celebrarem as façanhas dos povos do Novo Mundo". Por outro lado, segundo Aguilar (2007), temos desde agosto de 1941 a crítica favorável de Rubem Navarra à artista. Vieira da Silva, em entrevista à Revista Arte Hoje (Garcia, sd) assinala que a escolha pela abstração resulta em dificuldades para os artistas naquela época, e o caso dela e de Arpad não poderia ser diferente. O nosso estudo abrange algumas obras da artista nesse período brasileiro, detendo-se em particular em dois de seus trabalhos: 1- A Floresta dos Errantes. (1941) e 2- História trágico marítima (1944). Em 1941, Vieira da Silva pinta "A Floresta dos Errantes" (óleo sobre tela, medindo 81.00X100.00 cm), quadro que apresenta uma aparência abstrata, com linhas curvas, retas em sentidos diversos, que se aproximam juntas ou se distanciam. Essa diversidade entre linhas curvas e retas proporcionam regiões de tensões e ritmos, em contraposição com áreas mais vazias ou com intensidade cromática menos intensa. As cores são predominantemente claras, contendo entre outras laranjas, azuis, verdes. Em algumas passagens as cores ganham intensidade; em outras as linhas retas e curvas se movimentam colocando contrastes acentuados em formas também de ritmos. Segundo Aguilar (2007) existe uma influência local na obra "História TrágicoMarítima", em que Vieira da Silva continua a iniciativa de Lasar Segall na “Nau dos Imigrantes”. A artista mostra uma história dramática, onde uma pequena embarcação cheia de pessoas aparece inclinada, prestes a ficar coberta pela água, se encontrando cercada por náufragos envoltos em uma onda gigante. O céu e o restante do mar apresentam-se em cores sombrias. O quadro apresenta forte contraste claro /escuro, o que aumenta a dramaticidade. As figuras de homens, mulheres e crianças, bem como as ondas apresentam-se inclinadas, dando sensação de instabilidade. Além do contraste claro /escuro, encontramos contrastes entre cores complementares, mais marcantes entre o laranja e o azul. Os tons vermelhos e avermelhados também se encontram bastante presentes, aumentando o efeito de inquietude. Segundo LEHMKUHL (sd:8): "vê-se uma miríade de formas que entrelaçam figuras humanas com figuras geométricas, estabelecendo uma solução pictórica cujo II Congresso Internacional Sobre Culturas 145 impacto visual se dá pelo conjunto confuso e denso advindo das linhas e cores, mais do que pelas expressões fisionômicas ou posturas corporais das figuras retratadas". REFERÊNCIAS AGUILAR, Nelson. Vieira da Silva no Brasil. São Paulo: Museu de Arte Moderna, 2007. COUTO, MARIA DE FÁTIMA MORETHY. Antonio Bandeira, Vieira da Silva e a Arte Abstrata no Brasil e na França. Concinnitas, ano 2011, volume 02, número 19, dezembro de 2011. Disponível em http://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/concinnitas/article/view/15261/11563, acesso em 30.10.2016. LAMEGO, Valéria. Dois Mil Dias no Deserto: Maria Helena Vieira da Silva no Rio de Janeiro, 1940-1947. In AGUILAR, Nelson. Vieira da Silva no Brasil. São Paulo: Museu de Arte Moderna, 2007. LEHMKUHL, Luciene. Imagens do Exílio: Vieira da Silva no Brasil. Simpósio MS/MIG3 - Representaciones de lá diáspora latinoamericana: trayectórias del exílio (literatura-arte-cine-história). Disponível em http://www.reseau-ameriquelatine.fr/ceisal-bruxelles/MS-MIG/MS-MIG-3-LEHMKUL.pdf, acesso em 30.10.2016. GARCIA, Gardenia. Vieira da Silva, um encontro. Mistérios Vivos de Madame Vieira. P.35. In Arte hoje. Revista mensal da Rio Gráfica Editora. Rio de Janeiro: Rio Gráfica Editora. IMAGENS Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa9819/vieira-da-silva, acesso em 31.10.2016. A Floresta dos errantes, 1941 | Vieira da Silva. Óleo sobre tela. Dimensões: 81.00x100.00 cm. Reprodução fotográfica autoria desconhecida II Congresso Internacional Sobre Culturas 146 Fonte: http://ondda.com/noticias/2016/09/mostra-no-museu-afro-brasil-destaca-importancia-damulher-para-historia-da-arte, acesso em 31.10.2016. História trágico-marítima,1944. Óleo sobre tela, 81,5x100 cm. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. II Congresso Internacional Sobre Culturas 147 A AÇÃO DE MEDIAÇÃO CULTURAL NO PROJETO SOLOS BAIANOS Poliana Bicalho56 RESUMO O trabalho discorre sobre a ação de mediação cultural, desenvolvida no âmbito do projeto Solos Baianos, do grupo Balé Jovem de Salvador- BJS, contemplado pelo edital Arte em Toda Parte Ano III, da Prefeitura Municipal de Salvador (Ba), com execução no ano de 2016. Para tanto, nesta escrita, a partir do campo teórico –metodológico da mediação cultural, refletiremos sobre as possibilidades de aproximação da dança contemporânea, com os públicos. Visando ainda, problematizar sobre a crescente utilização do termo em produções culturais nesta cidade e sobre a sua importância no campo do direito à cultura. Palavras-chave: Dança contemporânea. Mediação Cultural. Públicos. ABRINDO AS CORTINAS “Continuem a causar essa mistura louca de sentimento nas pessoas.”57 (Estudante, 18 anos) Esta escrita é propulsa pela experiência prática, do trabalho de mediação cultural, executado junto ao projeto Solos Baianos. A ação é uma realização do Balé Jovem de Salvador – BJS, companhia juvenil criada em 2007, sob a direção geral de Matias Santiago, que possui como objetivo principal a qualificação de jovens artistas. No projeto Solos Baianos seis coreógrafos58 convidados criaram um solo em dança para ser executado pelo elenco de bailarinos do BJS. Cada solo foi montado para dois bailarinos que foram selecionados após um workshop de criação artística. Dessa forma, além do trabalho em criação em dança e qualificação profissional de jovens interpretes, o projeto visou o estímulo a fruição artística do trabalho cênico, sobretudo por jovens e adultos, a partir da apresentação do espetáculo Solos Baianos59 no Teatro Gregório de Mattos (Praça Castro Alves - Centro), Centro Cultural Plataforma (Praça São Braz, s/n – Plataforma), Espaço Cultural Alagados (Rua Direita do Uruguai (fim de 56 Poliana Bicalho, mestranda no programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, mediadora e produtora cultural. E-mail: polianabicalho.producao@gmail.com 57 Depoimento coletado em questionário aplicado, em sistema de amostragem, após o espetáculo Solos Baianos. Agosto de 2016. 58 Cristina Castro, João Perene, Jorge Alencar, Jorge Silva, Mestre King e Lia Robatto. 59 O elenco foi composto por: Brisa Carrilho, Clara Boa Sorte, Danillo Queiroz, Edwin Carvalho, Fernanda Cristall, Igor Vogada, Johnny Santos, Luiza Agra, Lukas DiJesus, Matheus Ambrozi, Ruan Wills e Thor Galileo. II Congresso Internacional Sobre Culturas 148 linha), s/n, Uruguai), no ano de 2016, na cidade de Salvador. Importante pontuar que o projeto obteve recursos através do edital Arte em Toda Parte - Ano III60, da Prefeitura Municipal de Salvador (Ba). O percurso do trabalho da mediação cultural foi dividido em quatro linhas de ação. Sendo a primeira: garantia de meia entrada as sessões de espetáculo a educadores. Segunda: realização de atividades de sensibilização artística (pré-espetáculo), para jovens a partir de 15 anos, em instituições públicas de ensino. Terceira: agendamento de grupos educativos e ou culturais para fruírem o espetáculo. E realização de bate-papo após o espetáculo. Quarta: promoção de troca de experiências entre bailarinos do BJS e de grupos artísticos do Subúrbio Ferroviário e Península de Itapagipe. Contudo, para efeito de delineamento nesta escrita vamos nos deter a segunda linha de ação, por acreditarmos que ela nos trará dados importantes para refletir sobre o papel da mediação cultural no cenário cultural da cidade de Salvador, junto a projetos artísticos, como ação efetiva de possibilitar o acesso físico e simbólico à cultura. O ENREDO OU A QUESTÃO? Para tanto, na perspectiva de elucidar o trajeto da escrita, partimos do entendimento do que é mediação. “Por mediação entende-se aqui como processo de circulação de sentidos nos diferentes sistemas culturais, operando um percurso entre a esfera pública e o espaço singular e individual dos sujeitos”. (BARROS, 2013, p.09) A mediação cultural, como um terceiro elemento que se interpõem a recepção e a produção do bem cultural. Partindo-se de tal percepção, pode-se notar que está em causa a criação de um território que convive, articula-se, conecta-se, mas se distingue dos demais (os da produção e da recepção) que constituem o campo cultural amplo. Em sendo assim, ao afirmar e afirmar-se por sua territorialidade, a mediação implicitamente reivindica e marca um lugar especial, uma posição própria e singular, uma centralidade que em modelos históricos e epistemológicos tradicionais era negada aos “passadores”, relegados sempre a uma posição secundária nos quadros das hierarquizações culturais. (PERROTI, 2015, p. 09) O autor nos alerta sobre a importância da consolidação do campo teóricometodológico no Brasil, através do entrecruzamento de diversas áreas de estudos, mas 60 http://www.arteemtodaparte.salvador.ba.gov.br/ Acesso em: 25 de outubro de 2016. II Congresso Internacional Sobre Culturas 149 também do registro das suas práticas, em diálogo com a teoria. Neste sentido, acreditamos que o registro desta experiência também pode contribuir com os estudos nesta área. Desmistificando, sobretudo, o lugar do mediador, como um mero distribuidor ou decodificador do produto cultural. Mas, apresentando um sujeito extremamente propositivo e observador da realidade cultural em qual se insere, pois o seu olhar para o outro (o público) não é de um consumidor cultural, mas principalmente de sujeito do direito (participar, contribuir e ter acesso a vida cultural), para o pleno exercício da cidadania. O autor Edmir Perroti (2015) coloca ainda, que a mediação cultural situa-se em um território discursivo, de embates e possibilidades, ao mesmo tempo que de afirmação da influência da esfera pública/instituições na construção do campo simbólico. Diante do exposto, vamos analisar a realização de atividades de sensibilização artística (pré-espetáculo) que originalmente deverá ocorrer antes da fruição do espetáculo. Visto que no âmbito da mediação teatral pressupõe-se que o público aprenderá, introdutoriamente, os conteúdos específicos do fazer teatral, o jogo cênico e os diversos temas relacionados aos elementos do espetáculo. Esta aprendizagem integra o público e a obra teatral, da forma mais livre, criativa e autônoma possível, favorecendo sua capacidade individual de vivenciar a obra. (WENDELL, 2011, p. 32) O objetivo deste trabalho foi aproximar prioritariamente o público jovem (a partir de 16 anos) da rede pública de ensino, ao trabalho técnico e estético desenvolvido pelo BJS, a partir de uma vivência prática em dança contemporânea. Contudo no decorrer do trabalho foi ampliada a quantidade de instituições61 atendidas, assim como de públicos (adultos, idosos e portadores de necessidades especiais). O trabalho teve o seguinte planejamento, que foi ajustada a partir da especificidade dos públicos atendido: 1 – Bate-papo sobre o Balé Jovem de Salvador e o projeto Solos Baianos; 2 – Vivência prática em dança (CONTEÚDOS: leitura de imagens, alongamento, consciência corporal, foco, integração de grupo, reconhecimento do espaço etc); 3 – Apreciação do fragmento de um dos solos do BJS 4 – Aprendizado de trecho da coreografia; 5- Bate-papo sobre a fruição assistida e registro da experiência. 61 Fundac /CASE Feminina Universidade Federal da Bahia / Curso de Produção e BI em; Artes Centro Estadual De Educacao Profissional Em Artes E Design; Colégio Estadual Alípio Franca; Centro de Esporte, Arte e Cultura César Borges; Escola Municipal Alfredo Amorim; Previs- Previdência Social da Prefeitura; APABB - Associação de Pais e Amigos do Banco do Brasil II Congresso Internacional Sobre Culturas 150 Para a realização deste trabalho a mediadora cultural com o acompanhamento de um bailarino do BJS, atendeu cerca de oito instituições, totalizando 12 ações de mobilização, recebendo um público de cerca de 180 pessoas. O trabalho desenvolvido teve a carga horária aproximada de 2h e contou com a importante parceria de educadores que nos viabilizou o acesso a dinâmica das instituições. Importante pontuar que devida a demanda em alguns casos, fomos duas vezes à mesma instituição. Imagem 1 - Jovens do Colégio Estadual Alípio Franca Crédito Poliana Bicalho É notória a grande diversidade das instituições, neste trabalho. O que nos aponta o quanto a arte, a dança contemporânea é plural e acessível as mais diversas realidades. Pudemos neste trajeto perceber que independente da escolaridade, muitos jovens/adultos/idosos precisam ter o acesso simbólico ao campo da dança. Foi comum nestes encontros, o questionamento dos públicos sobre que dança é esta? Cadê os passos? Quero dançar?! Desta forma, pensando nos desdobramentos que a heterogeneidade de interesses para investigar o corpo traz para o campo da dança, é possível observar que de modo geral não existe uma técnica específica de dança contemporânea, ou melhor, na medida em que existem muitas técnicas específicas ajustadas para cada criação e contexto artístico de um grupo ou de um artista, não existe uma técnica única, universal, de dança contemporânea. Não existem códigos II Congresso Internacional Sobre Culturas 151 base, comumente chamados de “passos”, com variações ou com utilizações distintas. (VIEIRA, 2012,p.02) A autora Maria Carolina Vieira (2012) nos esclarece que as diversas técnicas corporais como o balé clássico, o jaz,, hip hop, moderno são importantes, pois ampliam as possibilidades corporais, tanto para o movimento quanto para a criação, mas a ampliação do entendimento de técnica no interior da dança contemporânea lança o olhar para o projeto estético e principalmente para a questão que a obra possui. Neste sentido a autora Helena Katz (2013) coloca que a dança contemporânea realiza um pacto entre palco e platéia, onde não ocorre apenas um fluxo de emissão e recepção de uma mensagem, mas a um lugar para a co-autoria, uma responsabilidade compartilhada entre todos os envolvidos. Assim, nos interessou na execução destas atividades de sensibilidade artística, foi que os públicos pudessem refletir sobre esta outra experiência estética, estando assim mais disponíveis e talvez motivados para assistir o espetáculo, em um dos teatros, movidos, sobretudo pelo desejo. No trajeto também, pudemos encontrar nos grupos pessoas com necessidades especiais: cego, deficiente físico, deficiente intelectual, ou ainda o encontro com meninas que cumprem a medida socioeducadiva de internação. Estas realidades nos foi bastante desafiador e estimulador para pensar nas possibilidades afetivas e sensíveis do campo da arte, deslocando a profissional da mediação cultural e bailarinos de uma zona de conforto e buscando reajustar um roteiro pré-concebido a partir da escuta do outro. II Congresso Internacional Sobre Culturas 152 FECHAR DAS CORTINAS “Eu gostei muito de assistir e me emocionei com o talento de todos. E que continue. Agradeço a todos.” (Estudante, 15 anos)62 Não pudemos afirmar que todos que participaram destas vivências artísticas foram assistir o espetáculo Solos Baianos, posteriormente nos teatros, durante aquela temporada. Mas, este também é o trabalho da mediação cultural, lançar sementes para o fortalecimento do campo da cultura e não apenas de um projeto isoladamente. Um diagnóstico apontado neste trabalho é a importância de uma maior aproximação dos fazedores da dança contemporânea junto aos públicos, pois é preciso ampliar o imaginário do que é dança nas instituições escolares, sobretudo. Por isso, não basta apenas, disponibilizar ingressos gratuitos para as pessoas irem ao teatro, faz-se urgente criar vias de diálogo, parceira. 62 Depoimento coletado em questionário aplicado, em sistema de amostragem, após o espetáculo Solos Baianos. Agosto de 2016. II Congresso Internacional Sobre Culturas 153 Acreditamos que numa escala muito pequena, talvez, o projeto Solos Baianos atuou para minimizar esta lacuna. Por meio deste processo da mediação cultural, desejou-se que o público mediado pudesse se fortalecer enquanto um espectador emancipado (RANCIÈRE, 2014), diante da obra de arte. Segundo o autor o lugar desta emancipação reside o questionamento entre o olhar e o agir e que o próprio olhar já é uma ação, no sentido em que fazemos relações com outras coisas que vivemos ou que sentimos. Mas, isto só ocorre se existe uma relação de pertencimento, de direito, com o campo cultural. Por fim, o trabalho da mediação cultural/teatral é um exercício constante de escuta frente aos sujeitos envolvidos, conectados por uma rede de afeto e de engajamento político, uma ação de partilha entre todos os entes envolvidos. Desta forma, é um ato político abrir o teatro (edifícios teatrais, projetos culturais, etc) para todos, como um espaço de emancipação dos sujeitos: de contextualização, fruição e criação. Neste sentido, o espaço escolar também precisa ampliar os seus horizontes, buscando considerar a fruição estética, como elemento fundamental no processo de constituição das subjetividades de crianças, jovens, adultos e idosos. REFERÊNCIAS COELHO, Teixeira. Dicionário crítico de política cultural. São Paulo: FAPESP/ Iluminuras, 1997. _______________. Direito cultural no século XXI: expectativa e complexidade. In: Revista Observatório Itaú Cultural / OIC – n. 11 (jan./abr. 2011) – São Paulo, SP: Itaú Cultural, 2011, p. 06-14. KATZ Helena. Por uma teoria do corpo mídia: a pergunta que o corpo faz. Disponível em: http://observatoriodedancacrista.blogspot.com.br/ acesso em 14 de fev de 2014 MEYER-BISCH, Patrice; BIDAULT, Mylène. Afirmar os direitos culturais: comentário à declaração de Friburgo. São Paulo: Iluminuras, 2014. VIEIRA, Maria Carolina. Nas entrelinhas do movimento do corpo: uma experiência em andamento, 2012. Disponível em: http://www.portalabrace.org/viicongresso/completos/pesquisadanca II Congresso Internacional Sobre Culturas 154 OLIVEIRA, Ney Wendell. A Mediação Teatral na formação de público: o projeto Cuida Bem de Mim na Bahia e as experiências artístico-pedagógicas nas instituições culturais do Québec. Tese de doutorado: Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UFBA, 2011. PERROTI, Edmir. Mediação Cultural: além dos procedimentos. In Salcedo, Diego Andres. Mediação cultural. São Carlos: Pedro & João Editores, 2016. 252 p. RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. II Congresso Internacional Sobre Culturas 155 A ARTE CONTEMPORÂNEA NO METRÔ DA CIDADE DE SÃO PAULO: UM ESTUDO SOBRE O ACERVO Maria Lúcia Wochler Pelaes63 Norberto Stori64 RESUMO Este artigo apresenta o resultado de uma pesquisa de campo realizada nas estações de metrô da cidade de São Paulo, Brasil, no primeiro semestre de 2015, que teve como objetivo analisar o acervo de arte do sistema metroviário de São Paulo, a partir do desenvolvimento de um mapeamento segundo os locais que expõem obras de arte contemporânea, verificando que obras estão expostas e em que estações do metrô se encontram, qual a natureza do acervo e que diálogo estabelecem com o local e com seus usuários, transeuntes e visitantes. O problema da pesquisa baseia-se numa questão central: como é composto o acervo de arte contemporânea do sistema metroviário da cidade de São Paulo? A relevância desse estudo se dá a partir do desenvolvimento de pesquisas que permitam identificar acervos culturais e artísticos em espaços públicos. Palavras-chave: Arte Contemporânea. Arte no Metrô. Cidade de São Paulo. ABSTRACT This article presents the results of a field survey conducted in subway stations in the city of São Paulo, Brazil, in the first half of 2015, which aimed to analyze the subway system art collection of São Paulo, from development a mapping according to the sites that expose the works of contemporary art, verifying that works are exhibited and where the subway stations are, what the nature of the collection and establish dialogue with local and with their users, passers-by and visitors. The problem of research is based on a central question: how is made the contemporary art collection of the subway system in São Paulo? The relevance of this study is given from the development of research to identify cultural and artistic collections in public spaces. Keywords: Contemporary Art; Art in the Subway; Sao Paulo City. INTRODUÇÃO A iniciativa de expor obras de arte nas estações de metrô da cidade de São Paulo- Brasil, faz parte de um projeto que permite aos usuários e à população em geral o contato com obras de arte que, geralmente, só são expostas em espaços culturais tais como museus e galerias de arte. Tal iniciativa permite pensar de forma interdisciplinar 63 Maria Lúcia Wochler Pelaes: Doutoranda em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pedagoga, Mestre em Educação pela USF e Licenciada em Artes pela FAAP. Docente e Coordenadora de cursos de graduação e pós-graduação. Atua no ensino há 22 anos. Atualmente é pesquisadora pela CAPES- Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior- junto ao Mackenzie. Desenhista Gráfica e Artista Plástica. E-mail: wpelaes@uol.com.br 64 Norberto Stori: Professor Titular do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Livre docente em Artes Visuais/IAUNESP/SP. Mestre e Doutor pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Artista Plástico. E-mail: nstori@uol.com.br II Congresso Internacional Sobre Culturas 156 em relação à cultura e sua construção, onde um dado espaço urbano e sua função são reinventados e ressignificados nas relações sociais com o espaço público. Atualmente, o acervo do Metrô conta com 91 obras de arte em 37 estações, apresentando obras de artistas renomados tais como Tomie Othake, Alex Flemming, Caciporé Torres, Cícero Dias, Antonio Peticov, José Guerra, entre outros. Desta forma, falar de arte no espaço do metrô, local onde há o movimento mecanizado e rotinizado da vida cotidiana, é refletir sobre um lugar de transporte público que busca a funcionalidade de seus processos e a logística de seus itinerários como um lócus de exposições fixas e itinerantes de arte, que proporcionem ao usuário do sistema uma reflexão sobre a arte e sobre a obra vista, criando um espaço do pensar a estética e o simbólico. Pensar o que é arte nos dias atuais gera conflitos acerca dos códigos e signos utilizados, assim como há uma mudança conceitual e causal de referente e referencial. As dinâmicas da sociedade atual são outras e pertencem à contemporaneidade. A cena contemporânea, como aponta Gombrich (2004), permite que o artista e o espectador interajam, num processo de diálogo incidental, provocado por um contexto que dá significado à obra. Tal contexto atribui sentidos à obra, criando na arte um espaço de interlocução. No metrô, as obras são apresentadas em espaços expositivos abertos como também nas grandes paredes como os murais pintados, com mosaicos ou outros materiais. E o usuário do metrô é um observador de arte incomum, porque ele poderá observá-la ou não ao longo de dias, meses e até anos. Possivelmente, até todos os dias. De forma que sua retina e sua mente levem consigo a percepção da obra pela memória da imagem. Seja ela fugidia ou contemplativa, jamais será passiva. Algo acontecerá com a sua percepção do espaço e das obras. Conforme Radha Abramo (Apud ARTE no Metrô, Livro Digital, 2012), que durante anos foi uma espécie de curadora do projeto Arte no Metrô: [...] a disponibilização de obras de arte para milhares de usuários do metrô resgata o sonho utópico do intelectual inglês John Ruskin de levar a arte até o povo, em função de seu inegável potencial educador. Entende Radha que o homem moderno é caracterizado pela percepção fragmentada das coisas e que essa fragmentação tem suas origens na aceleração da vida. E acrescenta que, normalmente ‘o fruidor não para diante do painel do metrô’. Movimentando-se no percurso convencional que o leva ao trem, vai acumulando formas, cores e linhas que depois se arranjam mentalmente em correspondência com a II Congresso Internacional Sobre Culturas 157 obra vista. Com essa atitude, ele soma ao anterior prazer de admirar concretamente a obra, o prazer maior de recriá-la abstratamente na memória (ABRAMO apud ARTE no Metrô, Livro Digital, 2012, Introdução, p. 8). Assim, a arte dentro dos espaços do metrô, torna-se um meio de socialização e construção culturais, gerando novas funções para os espaços urbanos, revitalizando-os e permitindo uma nova proposta na percepção e na integração da arte como elemento qualitativo e estético, sensibilizando e usuário dentro dos espaços funcionais do metrô. REFLEXÕES SOBRE A ARTE CONTEMPORÂNEA Refletindo sobre a condição da obra de arte contemporânea, Eco (2008), discute a noção de “obra aberta”, quando nos referimos à obra de arte, e sua fruição. Nesse sentido, abre um diálogo sobre as possibilidades semióticas quanto à constituição da obra de arte e a sua fruição por parte de um público. Tal obra apresenta-se ora como objeto acabado e definido, evocando do espectador uma dada fruição que reinterprete o que o autor pensou. Ora enquanto objeto passível de uma multiplicidade de fruições realizadas por uma pluralidade de fruidores, que baseados em sua formação cultural e social, de sua condição histórica e das especificidades da sua sensibilidade estética, criarão “ordens” e demandas relativas à obra no imediato dela, enquanto uma “obra aberta”. Para Archer (2001), no ponto de vista tradicional, não há a apresentação de nenhum material em particular que qualifique as obras atuais como “arte”. Para Archer (2001, prefácio): “Quem examinar a arte dos dias atuais será confrontado com uma desconcertante profusão de estilos, formas, práticas e programas”. Tinta, metais, pedras, ar, luz, som, palavras, objetos de uso cotidiano e, portanto, a priori funcionais, tornamse a posteriori, obras de arte, porque assim estão apresentadas e contextualizadas num dado local que pode ser um museu, enquanto espaço sacralizado de arte, ou outro espaço qualquer que evoque tal significado. Em Art Today, o autor Brandon Taylor (2005) aborda a questão central na definição da arte atual que é a dificuldade em caracterizar a identidade do objeto artístico, legitimado por um mercado de arte. A questão também demanda uma outra análise que é conceituar o significado do trabalho de arte, no que se refere tanto ao processo de criação, quanto ao produto da arte enquanto obra a ser interpretada. II Congresso Internacional Sobre Culturas 158 Já para Ernst Fischer (2010), o elemento problemático nas interpretações das obras de arte é o caráter subjetivo delas. Segundo Fischer (2010, p. 160), “Parece-me, contudo, neste ponto, apropriado mencionar a dificuldade para se chegar em qualquer tempo a uma interpretação acurada”. Pois, indagamos que forças exteriores, que características estilísticas, que aspectos inconscientes têm o poder de atribuir significado à obra? Na arte contemporânea há uma ampliação do repertório que alimenta o processo de atribuição de significados, assim como há uma liberdade expressiva e uma diversidade de linguagens artísticas, caracterizando o universo da manifestação artística, nos dias atuais, como repleto de singularidades. E é desta qualidade do ser que a arte se alimenta. Este vir a ser que solicita múltiplos significados atrelados ao contexto em que tal ente se mostra. Para tanto, Heidegger (2014) aponta para uma reflexão sobre a experiência profunda da obra de arte, a qual revela e esconde a verdade fundadora daquilo que é em essência, enquanto verdade artística e poética. Porém, como postula Argan (2010, p. 145), “Esse novo modelo de arte significa a “utopia” ou o “não-lugar’”, tendo por objetivo encontrar um estrutura artística que traduza uma inserção numa dimensão social. Desta forma, a arte contemporânea apresenta características próprias, presumindo uma relação simbólica que acontece em dado contexto, sugerindo uma poética própria a um dado lugar e a uma gama de espectadores de arte, que com ele vão interagir encontrando significados possíveis, numa negociação de sentidos que extrapolam o discurso atrelado à obra, estabelecendo-se fora dos limites da percepção estética da obra. Descolonizar o pensamento construído a partir de processos de categorização e racionalização da arte e sua estética nos permite, num processo de “práxis”, rever relações paradigmáticas com a arte e sua produção atual, permitindo uma abertura para os diferentes espaços e objetos culturais enquanto experiências possíveis. O ACERVO DE ARTE CONTEMPORÂNEA DO METRÔ DA CIDADE DE SÃO PAULO Histórico Conforme informações sobre o Livro http://www.metro.sp.gov.br/cultura/arte-metro/livro-digital.aspx II Congresso Internacional Sobre Culturas Digital, (vide fonte: referências), 159 quando a Estação Sé do Metrô de São Paulo foi inaugurada, há 34 anos, já com as primeiras obras de arte instaladas, surgiu o momento de colocar em prática uma ideia que vinha sendo trabalhada desde a fundação da Companhia, em 1968: transformar as estações do sistema em galerias de arte subterrâneas e aproximar o cidadão dessas manifestações culturais. Desta forma, foi iniciado o projeto "Arte no Metrô", conforme o Livro Digital (2012, p. 8- 9), formalizado em 1988, que passou a estabelecer critérios e organizar o acervo de obras de arte do Metrô de São Paulo. A intensa procura fez com que o Metrô instituísse, em 1990, a Comissão Consultiva de Arte. Com isso, o projeto aprimorou-se, resultando numa gama de obras e locais expositivos dentro do metrô. Pesquisa de Campo O objetivo da pesquisa de campo, realizada em abril e início de maio de 2015, foi percorrer diferentes estações do Sistema Metroviário de São Paulo, para identificar e analisar algumas das obras de arte contemporânea expostas. A metodologia utilizada consistiu em, inicialmente, analisar o Livro Digital Arte no Metrô, o qual apresenta além de um histórico, o detalhamento de cada obra e a biografia dos artistas das obras de arte expostas nas estações metroviárias da cidade de São Paulo. Posteriormente, foi desenvolvida uma pesquisa exploratória com base num estudo de campo realizado nas estações do metrô. Para tanto, segue a análise de parte das obras estudadas e suas respectivas imagens. Na Estação Tiradentes -mezanino- podemos encontrar a escultura contemporânea de Akinori Nakatami (Osaka –Japão), que foi desenvolvida em barro queimado em forno à lenha, numa temperatura de 1.350ºC, refletindo uma busca do artista por matérias-primas brasileiras. Sua forma orgânica gera a percepção de raízes de uma árvore de grande porte. Não possui título, fato que permite certa liberdade para o observador atribuir diferentes significados e possíveis temas, vide fotos 01 e 02. II Congresso Internacional Sobre Culturas 160 Foto - 01 Foto - 02 arT Fonte: Fotos de Maria. L. W. Pelaes Na Estação Sumaré podemos encontrar a instalação de Alex Flemming – título: “Estação Sumaré”. São painéis transparentes que apresentam a paisagem como fundo. As fotografias foram solarizadas (desprovidas de áreas cinzentas) e os textos impressos com tinta vinílica sobre vidro. A percepção que se tem é a de rostos frios, sérios e quase tristes. São perfis que nos remetem aos usuários do metrô, que passam com pressa indiferentes à paisagem. Obra composta por 22 imagens semelhantes às dos passaportes e RG, apresenta um teor político, porque propõe uma reflexão sobre as questões de identidade e diversidade, como pode ser verificado nas fotos 03 e 04. Foto - 03 Foto - 04 Fonte: Fotos de Maria. L. W. Pelaes. Na Estação Brás -mezanino- encontramos uma instalação da artista Amélia Toledo. Essa instalação, composta por um conjunto escultórico feito de placas curvadas de aço inoxidável, permite um movimento dinâmico e lúdico do fruidor que pode passar entre as placas de aço e ver diversas formas refletidas num efeito óptico que proporciona a visualização de diferentes padrões ornamentais de desenho e composição, vide fotos 05 e 06. II Congresso Internacional Sobre Culturas 161 Foto 05 Foto 06 Fonte: Fotos de Maria. L. W. Pelaes. Na Estação República - -2º subsolo- linha 3 vermelha –podemos observar a instalação realizada pelo artista Bené Fonteles. Título: Século XXI- Resíduos e Vestígios. Essa obra é caracterizada por uma espécie de vitrine contendo elementos orgânicos naturais e artesanais, tais como corais marinhos, seixos rolados e madeira. Vide fotos 07 e 08. Foto 07 Foto 08 Fonte: Fotos de Maria. L. W. Pelaes. Na Estação Sé –jardim interno- encontramos uma escultura de título Garatuja do artista Marcello Nitsche. Desenvolvida em chapas de ferro com zinco e placas de aço vincadas e pintadas com tinta poliuretana, apresenta uma forma helicoidal, caracterizando metaforicamente o movimento dos trens do metrô como minhocas dentro de buracos. Três toneladas de metal soldado formam a sua estrutura que possui uma dimensão de 3 m a 4 m. De grandes proporções, é quase uma intervenção arquitetônica no espaço. Vide fotos 09 e 10. Foto 09 Foto 10 Fonte: Fotos de Maria. L. W. Pelaes II Congresso Internacional Sobre Culturas 162 Na Estação Consolação- sentido Estação Ana Rosa- podemos observar a obra da artista Tomie Ohtake. Título: Quatro Estações. Os quatro painéis (2m por 15,4 m cada ) foram revestidos com pastilhas de vidro coloridas e correspondem ao gênero Abstracionismo Lírico. Apresentam a diluição da forma na cor, num movimento pleno de ritmo e luz. As pastilhas de vidro refletem a luz do ambiente. As cores captam o olhar dos usuários do sistema, vide fotos 11 a 14. Foto - 11 Foto - 12 Foto - 13 Foto - 14 Fonte: Fotos de Maria. L. W. Pelaes Na Estação Ana Rosa- mezanino- podemos encontrar a instalação da artista Lygia Reinach. Título: Figuras. Feitas do barro vindo do ateliê da artista, constituem cerâmicas de alta temperatura (80 peças com 1,7 m x 0,2 m) que foram produzidas no próprio local, tendo como tema os próprios usuários do metrô. Vide fotos 15 e 16. Foto - 15 Foto - 16 Fonte: Fotos de Maria. L. W. Pelaes Pode-se considerar que as obras de arte contemporâneas analisadas nesta pesquisa contribuem para transformar o espaço do metrô num lugar de apreciação artística, através do estímulo de vivências culturais. As obras dialogam tanto com a arquitetura dos espaços quanto com os conceitos e discursos que tecem a trama das relações sociais atuais, propondo reflexões acerca de dimensões estéticas e sobre àquelas correlacionadas ao espaço público na contemporaneidade. II Congresso Internacional Sobre Culturas 163 CONSIDERAÇÕES FINAIS Quanto aos resultados esperados, este estudo permitiu constatar que as obras de arte contemporâneas analisadas nesta pesquisa foram concebidas a partir de uma espacialidade e uma dada plasticidade, onde há a expressão de diferentes linguagens em artes visuais, tais como painéis, murais, esculturas e instalações, de tal forma que os artistas expõem figuras e estruturas arquitetônicas híbridas, abrangendo diferentes materiais e gêneros artísticos. Também foi verificado que a questão central que poderá validar a obra dentro do espaço do metrô é se a mesma estabelece um diálogo com o local, enquanto um contexto pleno de significados, evocando uma interlocução em diferentes níveis de apropriação da obra. Dessa forma, concluí-se que o ato de conviver com obras de arte permite ao observador apreciar o meio cultural a partir de uma pluralidade de manifestações estéticas e linguagens artísticas, enriquecendo as possibilidades de acesso à cultura e à arte. REFERÊNCIAS ARCHER, Michael. Arte Contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. 2. ed. Trad. Denise Bottmann e Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. ARTE no Metrô. Livro digital, 2012. Disponível em: <www.metro.sp.gov.br/cultura/arte-metro/livro-digital.aspx> Acesso em: 22 abr. 2015. ECO, Umberto. A definição da arte. Lisboa: Edições 70, 2008. FISCHER, Ernst. A necessidade da Arte. 9. ed. Rio de Janeiro: LTC- Livros Técnicos e Científicos, 2010. GOMBRICH, E. H. A História da Arte. 16. ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 2004. HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Portugal: Edições 70, 2014. TAYLOR, Brandon. Art Today. London: Laurence king Publishing, 2005. II Congresso Internacional Sobre Culturas 164 A CONTRIBUIÇÃO ESTÉTICO MUSICAL DA MÚSICA COLONIAL PORTUGUESA: DO CHORINHO BRASILEIRO AO “ESTUDANDO O SAMBA” NA DESCONSTRUÇÃO SONORA DE TOM ZÉ Larissa Caldeira Gaspar Padre65 RESUMO O presente artigo propõe uma análise estético social da história da música popular brasileira. Para tanto busca compreender de que maneira a música colonial portuguesa contribuiu estético e musicalmente na formatação do chorinho brasileiro ao disco Estudando o Samba (1976), considerado um marco estético musical dentro da desconstrução sonora proposta pelo compositor baiano, Tom Zé. Utilizando-se dos estudos da “Estética da Recepção” para compor uma análise histórico-cultural da experiência estética do público diante da obra. Palavras-chave: Música colonial portuguesa. Chorinho. Samba. Desconstrução sonora. Estética. recepção. INTRODUÇÃO O chorinho é um gênero musical brasileiro que surgiu em meados do século XIX no Rio de Janeiro, sendo considerado a primeira música popular do Brasil. O nascimento do chorinho sofreu influência da chegada da família real portuguesa ao país em 1808. Na época o Brasil pós-escravagista, vinda sendo modernizado, recebendo investimentos em infraestrutura urbana e serviços públicos, isto principalmente, na cidade do Rio de Janeiro, então capital da colônia lusitana, e sede da Corte Portuguesa. É revelante ressaltar que a Corte trouxe consigo instrumentos musicais de origem europeia como piano, violão, cavaquinho, flauta, clarinete e bandolim. Além desse material físico, a vinda lusitana para o Brasil, contribuiu culturalmente com suas mais diversas expressões artísticas, no âmbito da música pode-se inferir: a valsa, a polca, o xote, a mazurca, a quadrilha e a modinha. Tais manifestações culturais ligadas à Música deram ao Brasil uma nova configuração músico cultural mais híbrida e pulsante. Luiz Tatit ratifica tal afirmação ao dizer, por exemplo, que “as modinhas brasileiras já continham a dicção europeia como parte integrante do gênero” (TATIT, 2004, p.29). E se pensarmos no chorinho e sua origem podemos afirmar que a dicção europeia também se fez presente, haja vista que após a recente abolição da escravidão, a música brasileira institui-se numa vontade “nacionalista”, em busca de uma identidade interligada aos 65 Mestranda do programa de Comunicação e Cultura contemporânea do Pós-com UFBA. E-mail: larissapadre@hotmail.com II Congresso Internacional Sobre Culturas 165 cultos religiosos e ritos percussivos, ligada às danças ancestrais dos negros e indígenas. Estas segundo Luiz Tatit, já estavam impregnadas de séculos de colonização ibérica. De forma que ele afirma que “(…) o vínculo entre a produção sonora do primeiro século de colonização e o ritual religioso dificilmente poderia ser refutado. (…)” (TATIT. 2004, p.20). E POR QUE RETOMAR OS ASPECTOS RELIGIOSOS DA COLONIZAÇÃO? Bom, essa retomada visa justamente explicar o nascimento do choro, já que os sons dos terreiros já haviam há muito inaugurado a sonoridade brasileira, os batuques e as expressões artísticas mais rítmicas interligadas à oralidade dos cantos religiosos e a dança. No que se refere a esta última expressão, pode-se citar os calundus africanos, tipo de dança pela qual os negros evocavam suas entidades espirituais. Mas ao que se refere ao aspecto sonoro, o Lundu, torna-se essencial para nossa análise. Conforme Tinhorão optamos por dissociar o gênero Lundu dos “lundus” ou “calundus”, estes últimos invariavelmente vinculados à religião. Enquanto o primeiro em referência aos batuques e à musicalidade dos negros que originam uma sonoridade brasileira. De acordo com Tatit, esses batuques eram voltados para o lazer, muito embora ainda repletos de signos religiosos, interligavam-se ao que Tinhorão denominou de “canto responsorial”, que seria um tipo de diálogo de uma voz solo com coro. Ainda segundo Tatit, o Lundu, já nasce reforçado “por melodias e sons de viola de participantes descendentes de europeus” (TATIT, 2004, p.22), como por exemplo do fandango ibérico. De maneira que não se pode deixar de registrar a presença branca, mais especificamente, mestiça, nesse processo de configuração do gênero musical Lundu e de grande parte da música do Brasil. No que se refere ao hibridismo sonoro, atrelado ao processo de mestiçagem sociocultural brasileira. Podemos citar, justamente, o chorinho como um gênero musical híbrido, pois configura-se da mescla estético musical da valsa, polca e operetas portuguesas com os ritmos brasileiros já consagrados à época, como o Lundu, maxixe, rabanera e partido-alto. Originando uma nova concepção estético musical, e de efeito estético diverso, que denominou-se de xolo ou choro. Portanto, observa-se que mediante a desconstrução sonora estilística dos gêneros e ritmos europeus e brasileiros, nasce uma música efetivamente nacional. Esse processo de mudanças de horizontes estéticos e de desconstrução sonora é recorrente na música do Brasil. Por exemplo, da variação do II Congresso Internacional Sobre Culturas 166 chorinho, da mescla com outros gêneros musicais brasileiros, como o maxixe e a polca brasileira, atrelados aos ritmos e batuques africanos, mais especificamente, da umbigada, ritmo e dança praticadas no sul de Angola, denominada de semba, surge a variação sonora que hoje conhecemos como samba. Este possui suas variações estéticos musicais internas, daí seus subgêneros: samba-canção, samba-choro, samba rock, samba enredo, samba partido-alto etc. É importante ressaltar que a música brasileira emerge da mistura, desse hibridismo mencionado, que jamais se restringe ao campo étnico. Existe sim um processo de assimilação, enquanto enriquecimento cultural, como bem pontuou Tatit em O Século da Canção. No campo musical, a forma híbrida parte do processo de fusão da oralidade cotidiana com o fluxo sonoro instrumental, o que faz emergir uma Canção brasileira, também presente como uma característica do samba e seus subgêneros. SAMBA, EXPERIMENTALISMO, EFEITOS ESTÉTICOS E METODOLOGIA DA “ESTÉTICA DA RECEPÇÃO” O samba é uma expressão artística musical brasileira que remete a efeitos estéticos e “questão de gosto” que parte tanto daqueles que escutam um disco, uma música (público); como daqueles que produzem (artistas); e daqueles que fazem uma análise de crítica musical. Diante disso, pensar o samba é propor uma análise no âmbito da experiência estética através de Hans Jauss, Marc Jimenez, John Dewey e Jorge Cardoso Filho como contribuição metodológica dentro daquilo que se chama “Estética da Recepção”. Para tanto, se faz necessário um objeto de estudo, aqui nesse trabalho, o disco Estudando o Samba (1976) de Tom Zé, é colocado como um ponto de partida para a análise histórico-cultural da experiência estética do público diante da obra. Através da desconstrução sonora, do experimentalismo, da “descanção” proposta pelo compositor Tom Zé no seu modo de “estudo” sobre/ do samba a partir do seu disco poético controverso e estético inovador das tradições musicais brasileiras. Quanto ao “estudo” do samba proposto por Tom Zé podemos notar a invenção poética, os arranjos musicais desconstruídos e as criativas performances de palco do artista. Todavia, para nossa análise do efeito estético, mais especificamente relacionado às sonoridades do disco, iremos nos ater ao fluxo sonoro, propriamente dito. Esse aspecto rítmico, melódico e harmônico do Estudando o Samba, teve influência do método de composição do dodecafonismo de Schönberg (sistema musical constituído de 12 notas). II Congresso Internacional Sobre Culturas 167 Tom Zé, então estudante de Música da UFBA nos anos 60, teve como mestre o maestro Hans-Joachim Koellreutter, com quem estudou sobre tal método de composição. O que passou a influenciar e modificar sua maneira de fazer e pensar música, passando a ser conhecido já na época do Tropicalismo (movimento cultural que fez parte), como o “descobridor de sons” de Irará, que segundo Silva (2005), arquiteta sua própria música. Haja vista o seu distanciamento daquilo que se entendia como Canção brasileira, e até mesmo daquilo que se definia como canção tropicalista, no final de 1968. Como bem definiu Cardoso Filho, “a canção se estrutura de uma maneira específica (estrofe/ponte/refrão/estrofe/refrão/solo/refrão) com um tempo de duração variável entre três (3) e cinco (5) minutos (…)” (CARDOSO FILHO, 2008, p.36). Segundo Luiz Tatit, ainda no final dos anos 70, o gênero canção era o modelo de produção musical do Brasil. No seu livro O Século da Canção ele também cita quanto a presença de um vírus tropicalista na cultura nacional. Todavia, os setores mais underground da música e os circuitos marginais começam também a emergir nessa época. Expressões artísticas que se distanciavam da “padronização” da canção tradicional e/ou tropicalista. De modo que surge a poesia concreta, os compositores marginais (Sérgio Sampaio, Jards Macalé e Walter Franco, por exemplo), e o experimentalismo musical (destaque para os grupos Quintal de Clorofila e Som Imaginário). Ao contrário do gênero canção e do Tropicalismo, tais expressões artísticas estavam distantes da grande mídia e do grande público. Devido ao aspecto experimental, cujo “(…) o resultado soou demasiadamente singular para caber nos estreitos compartimentos de estilos existentes nas rádios (…)” (TATIT, 2004, p.62). É nesse contexto histórico-cultural que Tom Zé, em 1976, produziu o disco Estudando o Samba, adentrando no viés experimentalista, passou a fazer parte de “um grupo de artistas da música popular brasileira (MPB) nos anos 70 que se caracterizou pelos aspectos experimentais, inovadores e polêmicos de suas obras (…).” (GRAGNANI, 2009, p.1). De forma que, Tom Zé propõe a partir de uma “ruptura” estética, uma “descanção”, de acordo com o pesquisador Rafael Azevedo (2012), Tom Zé pôde revelar um conjunto de reflexões que colocavam a própria linguagem cancional em questão, pois para ele a canção é uma “vitrine”, na qual o artista pode imprimir seus recados. Acrescentemos, então, que ele colocou a própria noção de samba em questão ao experimentar novas formas estéticas nos arranjos, tempos e compassos do samba tradicional, de forma a criar uma “fenda”, uma “abertura” estético musical das linguagens tradicionais. Tal como afirma Azevedo, no seu estudo Tom Zé em Ensaio: II Congresso Internacional Sobre Culturas 168 entre dispositivos e performances, os discos de Tom Zé como Estudando o Samba (1976), Com defeito de fabricação (1998) e Jogos de armar: faça você mesmo (2000) nos convidavam, a pensar em um trabalho conceitual constituído a partir de uma articulação entre canções que pode se oferecer como um investimento reflexivo sobre o estado de seus gêneros mais habituais. (AZEVEDO, 2012, p.12). Ou seja, seria o que Azevedo bem definiu como uma “metacanção” ou “canção metalinguística”, no caso em específico, do gênero samba. Conforme já relatado, os discos de Tom Zé possui no experimentalismo sua base sonora, aquilo que definimos como uma “descanção”. Portanto, o Estudando o Samba propõe um “estudo” sobre o samba, que chamaremos de polifônico e politonal, justamente pela influência do Dodecafonismo, algo confirmado pelo próprio compositor baiano no documentário Tom Zé – quem irá colocar uma dinamite na cabeça do século?. Onde o artista declara que estudou politonalidade, dodecafonismo, serialismo, atonalidade, música eletroacústica. Afirmando que: “o que acabou com a tonalidade pelas notas internas do acorde, tá tudo muito bem, eu estudei, analisei tudo isso, mas na hora de compor tenho que jogar tudo fora. Jogo também a Bossa Nova, que eu amei e que me qualificou como jovem, e me sinto sozinho.” (SILVA, 2005, p. 36). Observamos aqui a “fenda” criada pelo artista para compor o “seu” samba. Como um processo solitário de imersão em todas as fontes sonoras reconhecidas por ele, e ao mesmo tempo, um ato de “regurgitar” todas elas na provocação estética de “(re)criar” uma estética do samba. Como diria Giuliana de Gragnani, no seu estudo Os artistas experimentais da MPB nos anos 70 vistos pela imprensa da época: (…) as composições de Tom Zé são exemplos dessa luta semiótica tratada, no fundo, como recusa das linguagens tradicionais da canção popular – e não da tradição – em prol dos exercícios de novidades que pudessem ampliar a percepção da sociedade. O caso do disco Estudando o Samba, de Tom Zé (1975) é exemplar. Nele, a tradição do samba é retomada a partir das experiências com as estruturas rítmicas, melódicas e poéticas do gênero, no melhor estilo antropofágico. (…) (GRAGNANI, 2009, p.10) Dito isto, entendendo o estilo antropofágico do Estudando o Samba, passaremos à análise do que estabelecemos como efeito estético. Todavia, antes disso, é primordial a partir de John Dewey e Marc Jimenez estabelecer o que seria Estética e Experiência estética. De maneira primária, Estética designa-se como a reflexão filosófica sobre a arte. Contudo, tal como Nietzsche (1872) tomaremos a arte como um “enfeite” da II Congresso Internacional Sobre Culturas 169 existência, como um projeto estético onde o belo é o vir a ser. Para tanto, pensando a partir de Jimenez, “a arte ancora-se na realidade sem ser plenamente real, desfraldando um mundo ilusório no qual, frequentemente – mas não sempre – julgamos que seria melhor viver do que viver na vida cotidiana.” (JIMENEZ, 1999, p.10). A noção de Estética interliga-se à análise do objeto em si, ou seja, parte da interação objeto/ criatura, o que John Dewey denomina como experiência, que “(…) ocorre continuamente, porque a interação da criatura viva com as condições que a rodeiam está implicada no próprio processo da vida“(DEWEY, 1980, p.89). Vale ressaltar que, quando aqui se fala em experiência, refere-se não às cotidianas, mas sim a uma experiência memorável, que lhe desestabiliza positivamente, ou não. Ela é algo individual, mas comunicável por “um estar” em conjunto, ela pode ser partilhada com uma relação de igual valor com outras pessoas, isso é o que Dewey denominou Experiência estética. Logo a Estética seria uma reflexão sobre essa experiência e a arte uma possibilidade da Estética. Sendo uma relação específica, e não universal, ela perpassa e se modifica de acordo com os ambientes e períodos históricos (horizontes estéticos). Diferindo-se do valor estético que pode ser cultivado, a partir de uma instituição sociocultural encarregada de mantê-lo “vivo” dentro de uma dada tradição. O valor estético determina, por exemplo, o fato de uma obra de arte ser ou não ser um clássico. Enquanto que o efeito estético corrobora com a noção de Experiência estética, inserindo-se nela, na medida que se refere às possibilidades sensoriais, cognitivas, auditivas que a criatura, ou melhor, o público tem ou não no ato de apreciação de uma obra, aqui neste artigo, o disco Estudando o Samba (1976). Tomemos o disco de Tom Zé como um objeto estético, no qual as interações com os indivíduos ocorrem dentro de um ambiente sócio comunicacional, sendo também um objeto de arte, devido as relações interacionais de apreciação por parte dos públicos ouvintes, especificamente, do ano de 1976, década de 1990 e dos dias atuais. O ato de se completar a obra torna-se possível a partir dos acontecimentos, dos produtos e dos fatores histórico-culturais referentes a ela, atuando como vetores de uma experiência estética de cada ouvinte. Estimulado ao desejo de detectar condições excepcionais, memoráveis que são intrínsecas, implícitas ao disco, o que o torna uma experiência possível. Logo remente a uma mudança de horizontes estéticos através de uma análise da recepção estética do disco. Essa perceptiva é além de relacional e/ou cultural, sendo conduzida a partir da condição existencial do ato de “aparecer” do objeto estético, que obviamente se estabelece dentro das relações sociais numa dimensão II Congresso Internacional Sobre Culturas 170 cultural. De acordo com Cardoso Filho (2009) é um fenômeno da imanência e não da transcendência. Ou seja, o ouvinte rende-se à presença do objeto estético, isto seria o aspecto ressonante, já que o individuo apreende aquilo que é imanente, intrínseco e indissociável ao objeto que se torna justamente estético a partir desse fenômeno de imanência. Vale então salientar que o disco Estudando o Samba é um objeto estético de valor artístico perante o seu “aparecer”, e não perante a sua aparência, ou ao mero aspecto material. Pois os aspectos materiais da obra tendem a ameaçar seu significado, fazendo com que a mesma desapareça, e somente, reapareça com uma nova roupagem, mediante a uma experiência estética que amplie as possibilidades de leituras. Nesse sentido, Hans Jauss, diz que se faz necessário compreender os códigos da obra para fundamentar a percepção-receptiva estética. Para ele, concordando com Dewey, uma experiência estética deve perpassar por uma unidade triádica (compreensão, interpretação e aplicação). Num procedimento de primeira leitura dos códigos do disco em 1976 não foram decodificados, lidos, compreendidos, e, por conseguinte, não foram interpretados, nem aplicados à percepção estética, logo não houve uma recepção estética da grande mídia e do público na época de lançamento, devido a estética inovadora do disco e ao contexto estético cultural da década de 70. Na perspectiva de segunda leitura, na década 1990, com aval da crítica musical especializada norte-americana, e do músico David Byrne, os códigos do disco foram decodificados por mídia e público nacional, sendo interpretados, compreendidos e aplicados, haja vista que nesse contexto histórico comunicacional, o experimentalismo já não era uma proposta estética tão inovadora, e o Estudando o Samba (re)emerge diante do ato de padecer, o que determina o seu “aparecer”. Porém em se tratando de Tom Zé torna-se uma renovação antropofágica. Tanto que, numa perspectiva de terceira leitura, que remete a contemporaneidade, o que passa a ser visto e ouvido são, justamente, os códigos do disco já decodificados. Pois ao isolar os elementos inseridos na obra dos elementos externos a ela notamos o seu efeito estético, o que segundo Jauss (2002) interliga-se ao compreender – interpretar – perceber. CONSIDERAÇÕES FINAIS Tom Zé, talvez, proponha uma nova estética, mas não um “novo” samba. Ao que parece, propõe mais uma possibilidade estético musical de se tocar, pensar e refletir sobre o samba. Através de uma “fenda” antropofágica, que nasce da sua desconstrução II Congresso Internacional Sobre Culturas 171 sonora experimentalista, tendo como base “um vir a ser” do fluxo sonoro, a partir das diversas sonoridades e possibilidades estéticas diante do ato de “aparecer” do disco como objeto estético. Além dos efeitos estéticos possíveis perante os distintos públicos ouvintes através do ato de “perceber”, “padecer”. Isto configura um processo de recepção estética a partir do ato de ter ou não uma experiência. REFERÊNCIAS AZEVEDO, Rafael José. Tom Zé em ensaio: Entre dispositivos e performances. Universidade Federal de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social. Ano 2012. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br> Acesso: maio. 2012. CARDOSO FILHO, Jorge. Arte: origem e aparecer – notas para uma estética da comunicação. 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II Congresso Internacional Sobre Culturas 172 DIÁLOGOS BRASIL-PORTUGAL: A TROPICÁLIA DE TOM ZÉ E A NOÇÃO DE “CULTURA DE FRONTEIRA” DE BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS Paula Oliveira Campos Augusto66 Orientadora: Rachel Esteves Lima67 RESUMO Este trabalho propõe-se a discutir as relações entre a teoria poético-lúdica de Tom Zé, elaborada em seu disco-tese Tropicália lixo lógico (2012), e a noção de “cultura de fronteira”, idealizada pelo teórico português Boaventura de Sousa Santos. Em seu álbum, o músico defende que a Tropicália resultaria do choque entre a cultura árabe nordestinizada e a cultura ocidental. Ocorreria, então, no caso da Tropicália, um fortalecimento dos espaços locais e transnacionais, em detrimento do espaço nacional, e este modus operandi associa-se ao que Boaventura de Sousa Santos define como “cultura de fronteira”. Dessa maneira, com sua tese, Tom Zé mostra como o acentrismo da cultura portuguesa – isto é, “seu universalismo sem universo feito da multiplicação infinita dos localismos” – teria se estendido ao Brasil. Palavras-chave: Tropicália. Tom Zé. Música popular brasileira. Cultura de fronteira. Boaventura de Sousa Santos. Uma das leituras contemporâneas mais peculiares da Tropicália foi elaborada por Tom Zé em seu disco-tese Tropicália lixo lógico, lançado em 2012 de forma independente, mas com apoio do programa Natura Musical. O disco dá continuidade a uma série de estudos do compositor sobre determinados gêneros de nossa música popular. Fizeram parte dessa série Estudando o Samba (1976), Estudando o Pagode (2005), Estudando a Bossa (2008) e, agora, podemos considerar o Tropicália lixo lógico como um Estudando a Tropicália. Em cada um desses discos, Tom Zé elaborou uma tese particular, a partir da qual compôs as suas canções. Não podemos perder de vista, no entanto, que algumas das formulações apresentadas no álbum Tropicália lixo lógico já se encontravam no livro do músico Tropicalista lenta luta, de 2003. Neste trabalho, escolhemos abordar as relações entre criação artística e representações culturais, enfocando como a identidade cultural é abordada na música popular brasileira. Conforme Liv Sovik, desde os anos 1960, em um contexto de regime militar e da formação de uma sociedade de consumo no Brasil, a música popular brasileira tornou-se uma via para o comentário sobre a situação nacional. De acordo com a autora, “músicos populares e bandas se tornaram ‘intelectuais orgânicos’ da 66 Aluna de Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da UFBA. paulaocaugusto@gmail.com 67 Professora Associada da UFBA, atuando no curso de Graduação em Letras e no Programa de PósGraduação em Literatura e Cultura. rachellima@uol.com.br II Congresso Internacional Sobre Culturas 173 cultura de massa nacional em contexto mundial, enquanto a música popular se tornou um campo de luta pela hegemonia em discursos de identidade nacional” (2005, p. 1-5). Definindo a canção no Brasil como um “campo dialogal”, Paolo Scarnecchia, musicólogo italiano, coloca em relevo essa característica apontada por Liv Sovik. Segundo o autor, os compositores brasileiros, à maneira dos desafios da tradição dos repentistas nordestinos, travam um “constante e contínuo diálogo entre si e com o público, estimulados e às vezes espicaçados pelos acontecimentos sociais e políticos que se exprimem nas contradições de seu país” (SCARNECCHIA apud WISNIK, 2004, p. 219). Compreendendo, portanto, a música popular brasileira como um “campo dialogal”, objetiva-se, neste trabalho: 1) apresentar, em linhas gerais, a tese de Tom Zé sobre a Tropicália; e 2) propor uma aproximação entre a teoria poético-lúdica do músico e a noção de “cultura de fronteira”, idealizada pelo teórico português Boaventura de Sousa Santos68. Em seu álbum, Tom Zé empreende uma leitura sobre a emergência da Tropicália enquanto manifestação artística e cultural brasileira. Para compor o esquema interpretativo do músico, vamos nos deter ao texto da contracapa, às canções “Marchaenredo da creche tropical” e “Tropicália lixo lógico” e à entrevista performática do artista concedida para a Revista Bravo! No texto da contracapa encontramos o seguinte: ATRIBUI-SE ao rock internacional e a Oswald de Andrade o surgimento da Tropicália. Não é exato. Somem-se Oiticica, Rita, Agripino, o teatro de Zé Celso, etc. ...: eis a constelação que cria um gatilho disparador e provoca em Caetano e Gil o vazamento do lixo lógico do hipotálamo para o córtex. O poderoso insumo do lixo lógico, esse sim, fez a Tropicália. De 0 A 2 anos, a placa mental está virgem e faminta. Nunca mais, durante toda a vida, o ser humano aprenderá com tal intensidade. Aí reside a força do aprendizado na creche tropical. Só a partir da escola primária, que para nós começava aos 6 ou 7, tem início o contato com a organização do pensamento ocidental promovida por Aristóteles – um choque delicioso –, cuja comparação com a creche desencadeia o lixo lógico.69 68 Não é nosso objetivo realizar aqui uma análise detida do disco, pois esse empreendimento já foi elaborado em: AUGUSTO, Paula Oliveira Campos. Reciclando a Tropicália: Tom Zé e o lixo lógico, Outra travessia, n. 20, 2015. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/view/44921>. 69 TOM ZÉ. Tropicália lixo lógico. Produtor: Daniel Maia. São Paulo: Tom Zé (Independente/Natura), 2012. 1 CD. II Congresso Internacional Sobre Culturas 174 Sigamos. Na terceira música que aborda a tese (faixa 5), uma marchinha de carnaval, Tom Zé usa pela primeira vez a palavra “analfatotes”70 (um dos muitos neologismos do disco). Em seu livro Tropicalista lenta luta, ele discorre sobre o analfabetismo: O analfabetismo é um ideal difícil. Se você, criança ainda, aprende uma qualquer língua ocidental cuja estrutura de adestramento já esteja codificada subliminarmente pelas reações semânticas, a descultura torna-se um ideal quase impossível, uma utopia. (...) Vaidosamente, tenho me vangloriado de que o livro que me fez analfabeto foi Os Sertões de Euclides da Cunha, em sua segunda parte, “O Homem”. (...) Na verdade foram muitos os passos nesse Gradus ad Parnassum. Tive uma dupla e grande sorte já de nascença: aprendi na infância uma língua de tradição falada; segunda, nasci numa família genial, que se chocava de frente contra alicerces de nossa cultura (TOM ZÉ, 2003, p. 54). Nesses passos rumo ao “analfabetismo”, foi importante também a formação de Tom Zé na Escola de Música da Universidade da Bahia. Segundo o artista, a escola era um “experimento de desculturação”, principalmente por causa do Professor HansJoachim Koellreutter, que dava uma importância grande aos “princípios da músicafilosofia-oriental” (TOM ZÉ, 2003, p. 51). Tom Zé estudou na Escola de Música da Universidade da Bahia de 1962 a 1967, e vivenciou a subversão cultural idealizada pelo reitor Edgar Santos. Com a criação de uma das melhores Escolas de Música do Brasil em 1954, Edgar Santos comete “a ‘impostura sociológica’ de manter, num país pobre e num estado miserável, três eficientes escolas de arte: Música, Teatro e Dança”. Apesar das muitas greves que ocorreram na universidade contra as verbas “perdidas” e “desperdiçadas” nessas escolas de arte, Tom Zé destaca que esse “criminoso procedimento político e social teve um leque de consequências culturais as mais enriquecedoras para as décadas seguintes na vida da Bahia, repercutindo no Brasil, como se sabe” (TOM ZÉ, 2003, p. 54). Na canção “Marcha-enredo da creche tropical”, Tom Zé lamenta a invasão portuguesa no Brasil, mas, ao mesmo tempo, ressalta que por causa dela tivemos uma educação paradoxal e, também, a creche tropical. Há diversas referências nessa canção que compõem o universo da creche tropical, composta pelos “moleques analfatóteles”: o dadaísmo, a poesia provençal, os jograis que eram ouvidos na creche, os rondós dos 70 Tom Zé utiliza duas formas de neologismo para designar o analfabetismo em relação à cultura ocidental: “analfatotes” e “analfatóteles” – as duas significando a mesma ideia. II Congresso Internacional Sobre Culturas 175 nossos avós e, principalmente, a cultura oral, testemunhada pelo escritor Euclides da Cunha, que, com o objetivo de escrever contra os sertanejos, acabou se encantando por eles. A tristeza daquela invasão, / Ai Deus... Ai Deus, valeu, / Valeu para nossa educação paradoxal prazer, e rendeu A creche tropical – pical / Nossa universi- / -Dadal dadal, dadal a a a / Há... nos velhos quintais / cada moleque do lote / dos analfatotes / ouvindo jograis, os mais radicais. (...) Ela entra e sai do sertão, ai Deus, / Ai Deus nos dá descontínuo rincão / Perdida por lá, a cultura oral, oh mal! / Testemunha vai lá - um tal / De Euclides da Cun unha, unha, unha a a a. A quarta música sobre a tese (faixa 7), cujo título é idêntico ao do CD, pode ser considerada o interpretante do disco, por condensar a tese de Tom Zé. A canção começa com duas citações: em primeiro lugar, a orquestração do início da música é retirada do início de “Coração Materno”, em um processo de colagem do arranjo feito por Rogério Duprat para o disco Tropicália ou Panis et Circencis; em segundo lugar, citando a música “Enquanto seu lobo não vem” do disco Tropicália ou Panis et Circenses e, também, a música “Lobo Bobo”, de Carlos Lyra, Tom Zé nos mostra como, apesar de seus “belos motes”, “Aristotes”, assim como o “Lobo Bobo”, não “comeu ninguém”. A canção tem participação do cantor pernambucano Washington, descoberto por Tom Zé através do tio do rapaz, vendedor de redes em Perdizes, São Paulo, bairro onde o artista vive. As partes da música que descrevem a tensão entre Chapeuzinho e o Lobo e entre o lixo jogado no hipotálamo e sua invasão no córtex ficaram a cargo do cantor Washington – a densidade de sua voz e a instrumentalização com violino e cello ajudam a compor a tensão desses embates. Tom Zé canta nas outras partes da canção, acompanhado de uma instrumentalização com guitarra, violão e cavaquinho, em uma dinâmica mais acelerada e animada. Após retratar, na música anterior, o processo de aprendizagem na creche tropical, o compositor apresenta, nessa canção, o choque entre a cultura árabe nordestinizada e a cultura ocidental representada pela lógica aristotélica, que ocorre em um contexto escolar e resulta no lixo lógico. Segundo Tom Zé, esse choque cultural faz com que as equações de “Aristotes” sejam utilizadas e assimiladas, transformando a lógica moçárabe em lixo lógico, porém essa outra lógica não desaparece, ela é jogada no hipotálamo, até que esse lixo retorne e invada o córtex dos tropicalistas, na década de 1960, trazendo de volta aquela lógica que havia sido II Congresso Internacional Sobre Culturas 176 descartada. A música aborda, portanto, o percurso do lixo lógico – desde sua criação até sua invasão/reciclagem no córtex. Não era melhor, tampouco pior, / Apenas outra e diferente a concepção / Que na creche dos analfatóteles regia / Nossa moçárabe estrutura de pensar. / Mas na escola, primo dia, / Conhecemos Aristotes, / Que o seu grande pacote / De pensar oferecia. Não recusamos / Suas equações / Mas, por curiosidade, fez-se habitual / Resolver também com nossas armas a questão – / Uma moçárabe possível solução / Tudo bem, que legal, / Resultado quase igual, / Mas a diferença que restou / O lixo lógico criou. Aprendemos a jogá-lo / No poço do hipotalo / Mas o lixo, duarteiro, / O córtex invadiu: / Caegitano entorta rocha / Capinante agiu. Além de explicar a sua tese no disco, Tom Zé também a esclarece em uma entrevista performática para a Revista Bravo! (TOM ZÉ, 2012). Em linhas gerais, estamos diante da seguinte tese: discordando da afirmação de que a Tropicália não existiria sem Oswald de Andrade, José Celso Martinez Corrêa, Hélio Oiticica, José Agrippino de Paula, os Mutantes e o rock internacional, Tom Zé afirma que “o tropicalismo nasceu do lixo lógico!”. Os agentes citados “desempenharam somente a função de gatilho disparador. O verdadeiro pai da criança é o lixo lógico!”. Para ele, Caetano Veloso e Gilberto Gil tiraram o Brasil da Idade Média e o levaram para a Segunda Revolução Industrial, isto é, a revolução “da publicidade, da televisão, do processamento de dados, da semiótica, da improbabilidade de Werner Heisenberg, o físico alemão”. Fizeram isso ao colocar a música brasileira em diálogo com o que havia de mais revolucionário fora do país – os Beatles, os Rolling Stones, o cinema francês, a cultura pop. Apesar de Tom Zé considerar que Caetano Veloso e Gilberto Gil foram “os nossos heróis civilizadores, os caras que ajudaram a enxertar na juventude o gosto pelo progresso, pela inovação”, eles não fizeram tudo sozinhos, pois ele próprio, Gal Costa, Torquato Neto, José Carlos Capinan, Rogério Duarte e Glauber Rocha aderiram ao movimento e às suas ideias. O grande argumento de Tom Zé é que os participantes do movimento são de interiores nordestinos, onde se consumia “uma prosódia, um saber oral, uma visão de mundo que não advinha dos gregos, e sim dos árabes”, pois, se a Península Ibérica foi, durante séculos, dominada pelos árabes, os portugueses que colonizaram o Nordeste carregavam essa herança. Portanto, até os 7 ou 8 anos, quando as crianças da creche tropical entravam na escola, todas permaneciam analfatotes, isto é, II Congresso Internacional Sobre Culturas 177 analfabetas no que diz respeito a Aristóteles, à cultura/filosofia ocidental e ao racionalismo. Quando entravam em contato com Aristóteles e seu “pacote de pensar”, ficavam fascinadas e jogavam fora o conhecimento anterior no hipotálamo, pois, segundo Tom Zé, tudo que é desprezado pelo córtex migra para lá. Esse lixo lógico, dotado de outra lógica, ficou adormecido no hipotálamo até que, na década de 1960, Caetano e Gil ouviram Beatles e Mutantes, leram Oswald e Agrippino, assistiram às peças de Zé Celso, conheceram as pirações de Oiticica e se incomodaram, como a ostra diante da pedra. Sentiram que um mar de inovações os convocava à luta e que a tal da MPB necessitava abraçar de vez a modernidade. Foi daí que o lixo lógico abandonou o hipotálamo deles e reinvadiu o córtex. Em outras palavras: os dois perceberam que tinham de resgatar o aprendizado do interior, a herança dos árabes, a tradição oral e uni-los à cultura pop do Ocidente, filha direta do pensamento aristotélico. Conseguiram, assim, engendrar um ser inteiramente original, a dona Tropicália (TOM ZÉ, 2012). A teoria poético-lúdica de Tom Zé sobre o nascimento da Tropicália se liga ao seu próprio nascimento enquanto artista. Os elementos que foram imprescindíveis para a sua formação e diferença no campo artístico (“analfabetismo”, cultura oral, poesia provençal) são escolhidos também como definidores para o surgimento da Tropicália. Como afirma Caetano Veloso, “a biografia da Tropicália que ele apresenta nessa nova obra tem muito de autobiografia” (VELOSO, 2012). Percebemos essa relação, sobretudo, quando comparamos o seu livro Tropicalista lenta luta, no qual ele narra o seu percurso artístico, com o disco Tropicália lixo lógico. Visualizamos isso quando Tom Zé apresenta, por exemplo, qual foi a sua Universidade do Palco: o conhecido e popular “Homem da Mala” e sua arte de rua. Segundo o músico: Sabemos que os artistas convencionais quando atuam, já contam com um espaço marcado e instituído como palco. E principalmente, o que muito lhes facilita a vida, há o acordo tácito: um apresenta o espetáculo, outros assistem (...) Mas na praça não há nada disso. No primeiro momento o Homem da Mala tem um desafio múltiplo e complicado: transformar um território comum, uma pequena área da praça em palco e sua conseqüente platéia. À exigüidade de seus recursos materiais soma-se o desconhecimento dos circunstantes (TOM ZÉ, 2003, p. 41-42). Notamos também um movimento de aproximação de Tom Zé em relação à Tropicália ao nos depararmos com as brechas de sua teoria poético-lúdica. Uma das II Congresso Internacional Sobre Culturas 178 brechas é apontada por Caetano Veloso em resenha sobre o disco n’O Globo. O músico faz algumas ressalvas em relação a essa formação primeira ligada a uma cultura nordestina de origens árabes, no caso dos santamarenses e soteropolitanos. Porém, ele acaba se encontrando com a teoria de Tom Zé, no final da citação abaixo: Para os santamarenses e os soteropolitanos as formas mentais sertanejas eram remotas. Não tínhamos o repentista, o cordelista ou o aboiador em voz de alcance. E palatalizávamos os dês e os tês antes do i. Essas sutis diferenças me vêm à cabeça ao ouvir “Tropicália, lixo lógico”, o disco novo de Tom Zé. Em Santo Amaro, eu vivia na periferia do Rio de Janeiro. Santo Amaro era urbana até a medula. (...) Essa versão radical da Tropicália como o choque entre uma mente pré-aristotélica e a terceira revolução industrial é fascinante. Não me ocorreria tal versão. Mas a Tropicália fica belíssima assim tratada nas canções, sons e intenções do CD de Tom Zé. A minha própria pergunta íntima sobre o tema muda de tom: o modalismo de “De manhã” me aparece mais entranhado do que eu supunha. E eu o encontro mais próximo da Tropicália do que sempre cri (VELOSO, 2012). Outras brechas são apontadas na entrevista para a Revista Bravo!, que, sem publicar as perguntas feitas, dá ênfase à performance de Tom Zé: O quê? Gal nasceu em Salvador? Veio do litoral, não do interior? Correto, correto, querido. Estou cometendo uns deslizes, fazendo umas generalizações poéticas... Erro nos detalhes e acerto no conjunto (...) Estou convicto de que o lugar onde crescemos serviu de combustível para a explosão tropicalista. (...) Sangue e imaginário mouros inundavam os lusitanos que colonizaram o interior nordestino. O quê? Também inundavam os gajos que colonizaram o Sul? Não banque o rigoroso, seu Jornalista! Não procure contradições em meu raciocínio (TOM ZÉ, 2012). Observando que ocorre tanto na Tropicália quanto na Antropofagia um fortalecimento dos espaços locais e transnacionais, em detrimento do espaço nacional, associa-se a leitura de Tom Zé ao que Boaventura de Sousa Santos define como “cultura de fronteira” (SANTOS, 1994; 2002). Dessa maneira, o que Tom Zé nos mostra, com sua tese, é que o acentrismo da cultura portuguesa – isto é, “seu universalismo sem universo feito da multiplicação infinita dos localismos” – teria se estendido ao Brasil. Em seu livro Pela mão de Alice e, posteriormente, em seu texto “Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e interidentidade”, Boaventura de Sousa Santos se dedica a explicar o que ele compreende como “cultura de fronteira”, II Congresso Internacional Sobre Culturas 179 defendendo como a cultura portuguesa é uma cultura de fronteira e como a constituição diferenciada do colonialismo português impregnou os regimes identitários nas sociedades que dele fizeram parte, especialmente, na África e na América. De acordo com o teórico, Portugal se configura como país semiperiférico, desde o século XVII até a atualidade, o que lhe rendeu uma posição intermediária entre o centro e a periferia. Essa condição semiperiférica tem base no sistema colonial e perdura até a inserção de Portugal na União Europeia. Nesse sentido, o que Boaventura de Sousa Santos defende é que para pensar o pós-colonialismo português deve-se levar em conta essa condição da cultura portuguesa, além do fato de esse “colonialismo subalterno” português escapar do pensamento pós-colonial dos países centrais, cujo colonialismo, de acordo com o autor, foi hegemônico. A cultura de fronteira é caracterizada por não ter conteúdo, mas sim forma, uma forma fronteiriça, pois, se as culturas nacionais, enquanto criação do século XIX, são o produto da tensão entre universalismo e particularismo gerido pelo Estado, no caso português, o Estado nunca desempenhou este papel. Por esse motivo, a cultura portuguesa teve sempre dificuldade em se diferenciar de outras culturas nacionais, mantendo uma forte heterogeneidade interna. Na constituição das culturas nacionais o Estado possui dois papeis: 1) diferenciar a cultura do território nacional face ao exterior; e 2) promover a homogeneidade cultural no interior do território nacional. Dessa forma, ao não desempenhar essas funções, o Estado português abre espaço para o fortalecimento das “espácio-temporalidades culturais local e transnacional” e para o enfraquecimento da “espácio-temporalidade nacional”. Se, por um lado, esse entre-lugar configura um vazio, também configura a forma cultural da fronteira. De acordo com Boaventura de Sousa Santos: Nos termos da minha hipótese de trabalho, podemos assim dizer que não existe uma cultura portuguesa, existe antes uma forma cultural portuguesa: a fronteira, o estar na fronteira, que, no entanto, é um modo de estar completamente distinto do modo de estar cultural da fronteira norte-americana. A nossa fronteira não é frontier, é border. A cultura portuguesa é uma cultura de fronteira, não porque para além de nós se conceba o vazio, uma terra de ninguém, mas porque de algum modo o vazio está do lado de cá, do nosso lado. E é por isso que no nosso trajeto histórico cultural da modernidade fomos tanto o Europeu como o selvagem, tanto o colonizador como o emigrante. A zona fronteiriça é uma zona híbrida, babélica, onde os contatos se pulverizam e se ordenam segundo micro-hierarquias pouco suscetíveis de globalização (SANTOS, 1994, p.134). II Congresso Internacional Sobre Culturas 180 Além do acentrismo e do cosmopolitismo, a forma cultural da fronteira apresenta outra característica: a dramatização e a carnavalização das formas. Aí se insere o barroquismo da cultura portuguesa, identificando-se mais com as formas do que com os conteúdos dos produtos culturais incorporados e assimilados71. Ademais, o autor defende, também, que esta forma cultural vigora, ainda que de modo muito diferenciado, no Brasil e na África portuguesa: Obviamente que tais características se apresentam com outras variações e nem se deve esquecer a assimetria matricial entre o caso português e os casos brasileiro e africano. Estes últimos tiveram origem num ato de imposição violenta por parte do primeiro, uma imposição que com o tempo se passou a afirmar, do ponto de vista cultural, mais pela omissão ou pela ausência do que por ação cultural efetiva, em suma, por um ato de força feito de fraqueza (SANTOS, 1994, p. 135). Essa especificidade da cultura portuguesa ofereceu tanto leituras inquietantes – por exemplo, a de que o subdesenvolvimento do colonizador produziu o subdesenvolvimento do colonizado, problema que só poderia ser superado por uma política colonialista desenvolvida – quanto reconfortantes – o lusotropicalismo72, por 71 Em entrevista para a revista Cultura!Brasileiros, Pedro Meira Monteiro, professor de literatura brasileira em Princeton e estudioso da obra de Sérgio Buarque de Hollanda, afirma como a palavra “fronteira” é utilizada pelo sociólogo para tratar do modo como “os colonizadores se amoldariam ao meio no embate criativo com novos cenários e novas gentes”. De acordo com Monteiro, “os portugueses se amoldariam ao meio com a consistência do ‘couro’, não com a rigidez do metal, segundo a metáfora que Sérgio Buarque”. A ocorrência disso se deve, em grande medida, ao fato de Portugal não possuir o poder de fogo que outras potências possuíam no período colonial. Na entrevista, o professor destaca ainda a dicotomia entre ladrilhador X semeador e a plasticidade portuguesa, que aparecem na obra do sociólogo, sem perder de vista o caráter crítico em relação a essas noções. Entrevista disponível em: <http://meiramonteiro.com/chega-de-homem-cordial/>. 72 Segundo o antropólogo Gilberto Freyre, o português, por já ser mestiço em Portugal, jamais poderia desenvolver em suas colônias um processo de desenvolvimento histórico centrado no branco europeu. Ao notar um processo civilizatório inter-racial no Brasil e em outras ex-colônias portuguesas, nas quais os elementos negro africano e índio civilizaram o branco português, já aclimatado por amálgamas interraciais, o antropólogo argumenta em favor das possibilidades civilizacionais da integração racial, considerando a mestiçagem como um elemento positivo. Freyre se contrapunha às teorias científicoracialistas desenvolvidas no Brasil na segunda metade do século XIX e nas duas primeiras décadas do século XX, que consideravam a mestiçagem de maneira negativa e como um empecilho para o progresso. A geração pós-romântica brasileira será fortemente influenciada pelo cientificismo europeu, aderindo ao positivismo de Comte, ao evolucionismo de Spencer, à defesa da modernização, ao universalismo e à ocidentalização do país. A aceitação dessas ideias significava admitir a superioridade da “raça branca”, o que resultou na desconfiança do destino do Brasil, por parte dos intelectuais, já que a maioria da população era mestiça, negra ou indígena. Como acreditar no progresso do país se sua população era considerada inferior? Havia um desacerto entre a teoria e a prática, o que causava angústia e pessimismo nos intelectuais da época. Dentre as consequências desse pensamento de época está a imigração europeia, que, a partir de 1880, aumenta consideravelmente e é motivada pela tentativa de branqueamento da população brasileira, tanto no nível étnico, quanto cultural. II Congresso Internacional Sobre Culturas 181 exemplo –, no entanto, “a negatividade do colonialismo português foi sempre o subtexto de sua positividade e vice-versa”. (SANTOS, 2002, p. 26). Uma análise que enfoca o barroquismo contido na Tropicália foi realizada pelo poeta e crítico Mário Chamie no artigo “O trópico entrópico da Tropicália”, publicado em abril de 1968 no Suplemento Literário d’O Estado de S. Paulo. Em seu artigo, Chamie propõe uma leitura comparativa entre o tropicalismo, que, “histórica e sociologicamente deu em Gilberto Freyre”, e o tropicalismo, que “como sensação cotidiana e antropológica, deu em Caetano Veloso”. Segundo o poeta, enquanto aquele “quer ver o mundo através da região, da tradição e da nação”, este “vê o país através do mundo”; enquanto aquele deságua em tropicalismo – “um programa extensivo, carregado de princípios e de normas” –, este deságua em Tropicália – “um compósito cruzado de elementos díspares e heterogêneos”; enquanto Gilberto Freyre “quer ter uma coerência cartesiana, em obediência a supostas raízes e linhas de força da formação brasileira”, além de crer “na perenidade diacrônica da nossa personalidade de povo”; Caetano Veloso “se alimenta de uma substantiva incoerência barroca” e “só admite a provisoriedade sincrônica do volume de informações”. Além disso, o crítico considera a origem pernambucana de Gilberto Freyre e sua “tradição esguia e enxuta da cana-deaçúcar” em contraposição à baianidade de Caetano Veloso, fruto de uma “tradição gorda e redonda do fumo e do cacau, cuja metaforização anárquica sopra em Jorge Amado e se expande com violência em Glauber Rocha”. Com sua análise, Chamie conclui, então, que o tropicalismo de Freyre é “o dado fechado do entendimento” e a Tropicália de Veloso é “o campo aberto da entropia”, cuja linguagem aglutina referências diversas e justapõe os elementos sincronicamente. Portanto, atribuindo ao compositor um componente barroco, o poeta ressalta o alinhamento de Caetano Veloso à cultura de massa e à tecnologia, e a sua recusa ao “folclorismo” e aos ideais de autenticidade da criação artesanal (CHAMIE, 2007, p. 261-265). A Tropicália reinventada por Tom Zé, através da reativação da lógica moçárabe73 da cultura popular nordestina, desempenha um papel importante enquanto estratégia de resistência local contra traços culturais dominantes no contexto da globalização cultural. Apesar de globalizados, possuímos outras lógicas locais, que nos invadem. Tom Zé geografiza a Tropicália, pois busca a diferença de uma manifestação 73 Essa operação já é recorrente no trabalho de Tom Zé. Não podemos esquecer de sua análise do refrão de "atoladinha" como um “metarefrão, microtonal e polisemiótico”. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=hubD31XaHqU>. II Congresso Internacional Sobre Culturas 182 artística latino-americana, brasileira, cujos integrantes, em sua maioria, são do Nordeste. Fortalece, portanto, os espaços locais, sem deixar de lado os espaços transnacionais. Além disso, observamos o valor dos restos na produção artística de Tom Zé e a maior valorização da forma em vez do conteúdo, perceptível no procedimento da reciclagem cultural74. Destacamos, então, essa disponibilidade multicultural da zona fronteiriça, como sendo “uma porta de vai-e-vem, e como tal nunca está escancarada, nem nunca está fechada” (SANTOS, 2002, p. 136). REFERÊNCIAS AUGUSTO, Paula Oliveira Campos. Reciclando a Tropicália: Tom Zé e o lixo lógico, Outra travessia, n. 20, 2015. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/view/44921>. CHAMIE, Mário. O trópico entrópico da Tropicália. In: BASUALDO, Carlos (org.). Tropicália: uma revolução na cultura brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2007. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pósmodernidade. 7. ed. Porto: Afrontamento, 1994. SANTOS, Boaventura de Souza. Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e interidentidade. In: RAMALHO, Maria Irene; RIBEIRO, António Sousa (Orgs.). Entre ser e estar: raízes, percursos e discursos de identidade. Porto: Afrontamento, 2002. p. 23-85. SOVIK, Liv. “O Haiti é aqui / O Haiti não é aqui”: música popular, dependência cultural e identidade brasileira na polêmica Schwarz-Silviano, 2005. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/grupos/mato/Sovik.rtf>. Acesso em: dez. 2013. TOM ZÉ. Tropicalista lenta luta. São Paulo: Publifolha, 2003. TOM ZÉ. Tropicália lixo lógico. Produtor: Daniel Maia. São Paulo: Tom Zé (Independente/Natura), 2012. 1 CD. TOM ZÉ. A Tropicália segundo Tom Zé. Revista Bravo!, Edição 179, jul. 2012. Entrevista a Revista Bravo!. VELOSO, Caetano. ‘Lixo lógico’. O Globo, 5 ago. 2012. Segundo Caderno. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/lixo-logico-5692980>. Acesso em: out. 2012. WISNIK, José Miguel. A gaia ciência: Literatura e música popular no Brasil. In: ______. Sem receita: ensaios e canções. São Paulo: Publifolha, 2004. 74 Para maiores detalhes sobre as relações entre o álbum de Tom Zé, Tropicália lixo lógico, e a reciclagem cultural, ver: AUGUSTO, Paula Oliveira Campos. Reciclando a Tropicália: Tom Zé e o lixo lógico, Outra travessia, n. 20, 2015. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/view/44921>. II Congresso Internacional Sobre Culturas 183 O TERNO DE REIS NO TERRITÓRIO DE IDENTIDADE LITORAL SUL DA BAHIA Rita de Cássia Curvelo da Silva75 RESUMO O Terno de Reis, manifestação do catolicismo popular brasileiro oriunda de Portugal, refere-se à visita dos três Reis Magos ao menino Jesus e caracteriza-se através de encenações, danças e cantorias, com acompanhamento de instrumentos musicais. No sul da Bahia doze municípios têm essa tradição, com destaque para Ubaitaba, onde a manifestação popular inclui o Bumba Meu Boi, bonecos gigantes e carros alegóricos; Maraú, com o Terno de Reis dividido em alas – ciganas, jardineiras e borboletas; Itacaré, onde integrantes de grupo da terceira idade, caracterizados segundo as tradições, visitam a igreja e algumas casas de moradores; Ilhéus, com as tradições centenárias do Reisado da Vila Juerana, o Terno Diamante no Distrito de Urucutuca e o Terno dos índios Tupinambá no Distrito de Olivença; Pau Brasil, município que concretiza um Reisado com pessoas da cidade e índios Pataxó aldeados. Palavras-chave: Arte Popular. Terno de Reis. Sul da Bahia. INTRODUÇÃO O Terno de Reis, em algumas localidades denominado Reisado ou Folia de Reis, é uma tradição da religiosidade católica popular, de origem portuguesa. Para uma melhor caracterização da ascendência lusa dessa dança dramática, buscou-se analisar algumas publicações sobre cultura popular no Brasil, que nos remetem a aspectos culturais herdados dos nossos colonizadores. Brandão (1985, p. 58) assim se refere a essa tradição: “A ‘Folia’ foi uma dança popular, profana, costumeira em Portugal nos séculos XVI e XVII. Uma dança alegre, com homens vestidos ‘à portuguesa’, com guizos nos dedos, gaitas e pandeiros.” Embora concebida inicialmente como dança mundana, o Terno de Reis aos poucos foi se incorporando aos ritos religiosos dos cristãos católicos, que utilizavam a corporeidade nas expressões públicas, para demonstrações de júbilos em louvor a Deus, desde a Idade Média. Refere-se à menção bíblica da visita dos três Reis Magos ao menino Jesus, contida no Evangelho de São Mateus: “os reis desses festejos têm várias origens – desde os reis magos da tradição cristã, até os reis históricos dos brinquedos 75 Doutora em Educação (UFPB – 2008) com pós-doutoramento em Cultura Contemporânea (UFRJ – 2016); Professora Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC/BAHIA. E-mail: ritacurvelo8@hotmail.com. II Congresso Internacional Sobre Culturas 184 peninsulares, sobreviventes nos autos populares e os reis africanos do ciclo dos Congos.” (RAMOS, 1954). Trazido ao Brasil nos primórdios da colonização do nosso País, caracteriza-se através de encenações, danças, cantorias e declamações de trovas com acompanhamento musical através de instrumentos como violas, violões, cavaquinhos, tambores, sanfonas, caixas, pandeiros, reco-recos, flautas, rabecas. Os participantes usam trajes coloridos e adereços que se diversificam de acordo com as regiões brasileiras: das vestimentas bastante estampadas aos ternos brancos com lenços coloridos envoltos no pescoço. Escreve Manuel Querino (1946, p. 29): “Nas expansões calorosas da alma popular figura, com extraordinário brilho, a celebrada Noite de Reis. A gente de poucos recursos e de humilde condição social, o povo propriamente dito, é que se reserva de celebrar, com certo brilhantismo, essa passagem da Bíblia.” O grupo é formado por mestres (que lideram a folia), contra-mestres (que simbolizam os Reis Magos), palhaços mascarados (que significam os soldados de Herodes), foliões (outras pessoas da comunidade que acompanham os festejos, muitas vezes caracterizadas por entes do folclore local), além dos músicos instrumentistas e cantores. Em algumas regiões do Brasil é comum a participação de crianças nos ternos de reis, muitas delas com trajes de anjos. À frente do Terno, enquanto peregrinam ou quando cantam, um festeiro carrega a bandeira dos Santos Reis. Há, ainda, uma pequena varinha (o cetro real), enfeitada com muitas fitas de cores contrastivas, além da coroa. Tudo é muito colorido e alegre, pois a alegria é uma marca constante da peregrinação. (MODESTO, 1990). Há muitos Ternos de Reis espalhados por quase todo o Brasil. Essa expressão da cultura popular brasileira tem sido passada de geração em geração, principalmente através da oralidade, a fim de manter a tradição. Observa-se, também, que há algumas variações de estilo desses reisados, de uma região para outra, com incorporações de elementos socioculturais nativos, diversificação que os torna bastante interessantes, pela inclusão de componentes da identidade regional ou nacional. Sobre essas diferenciações, Wesley Andrade (2009, p. 1) assim se refere: Inserida no contexto da religiosidade popular brasileira encontramos a prática da Folia de Reis. Nela, enquanto manifestação cultural, traz em seu seio as várias características de um povo e suas práticas. Isso deve-se ao fato de que nas diferentes regiões brasileiras ela assume características particulares que traduz a realidade da comunidade na II Congresso Internacional Sobre Culturas 185 qual está inserida. Em muitos lugares ela assume a representatividade das relações sociais existentes, onde se percebe claramente as disputas que existem no seio popular. O TERNO DE REIS NO SUL DA BAHIA Na região sul baiana doze municípios têm a tradição do Terno de Reis. Em Ubaitaba essa manifestação da cultura popular surgiu na década de trinta do século passado, com a denominação de Terno das Nações, sob a liderança de Renato Reis, personagem folclórico da cidade. Atualmente os familiares do comerciante Carlos Moda são os responsáveis por manter a tradição na cidade. Para homenagear a matriarca da família, Dona Terezinha, que aniversaria no Dia de Reis, a manifestação passou a ser chamada de Folia de Reis D. Terezinha. (FOLIA, 2011). Além do Bumba-meu-boi, a Folia de Reis de Ubaitaba contém bonecos gigantes, carros alegóricos e mini trio elétrico, atraindo centenas de pessoas das novas e antigas gerações. Folia de Reis de Ubaitaba, 2014 Fonte: http://ubaitabaurgente.com.br/noticias/ubaitaba/ubaitaba-terno-de-reis-arrasta-multidaopela-cidade/ II Congresso Internacional Sobre Culturas 186 Em Maraú, o Terno de Reis percorre a cidade em 6 de janeiro, com peculiaridades que o distinguem de outras manifestações congêneres. Nessa localidade, o Terno assim se apresenta: É dividido em três alas: As Ciganas – senhoras com vestidos coloridos e de ciganas, as Jardineiras – mulheres com vestidos floridos – e as Borboletas – crianças e/ou senhoras com vestidos brancos e asas de borboletas. Saem pela cidade dançando nas ruas ao som da Filarmônica Lira da Conceição e cantando nas portas de algumas casas, onde os donos das residências oferecem doces e bolos para homenagear o terno. Em seguida, partem para a porta das igrejas levando lanternas coloridas homenageando os reis magos. (ATRATIVOS, 2011). Terno de Reis de Maraú, 2015 Fonte: Arquivos da Autora II Congresso Internacional Sobre Culturas 187 Terno de Reis de Maraú, 2015 Fonte: Arquivos da Autora Em 2016 o Terno de Maraú incluiu um presépio humano, possivelmente inspirado no “presépio de fala”, descrito por Manuel Querino em seu texto sobre a Bahia de tempos passados: um teatro com auxílio da literatura de cordel, com alocuções do Padre Eterno, a posse do mundo conferida a Adão, a criação de Eva, o pecado original; a expulsão do primeiro casal de humanos do paraíso, o dilúvio e a barca de Noé. (QUERINO, 1946, p. 2014 e seq.). Já no município de Itacaré, integrantes do Grupo da Melhor Idade Alegria de Viver, “acompanhados da Filarmônica São Miguel, saem caracterizados segundo as tradições para visitar a igreja e algumas casas de moradores que, em forma de agradecimento à visita, oferecem comida e bebida.” (O MELHOR, 2011). O Terno de Reis existe há mais de setenta e cinco anos em Itacaré. Essa manifestação ocorre, anualmente, no dia 06 de janeiro. Nos últimos tempos o grupo que organiza essa tradição, vem inovando com a criação de “temas” (Terno das Flores, Terno dos camponeses...) com a correspondente caracterização através das indumentárias usadas pelo elenco do Terno: II Congresso Internacional Sobre Culturas 188 Quando os ternos de reis ganham as ruas de Itacaré, o espetáculo vai além da beleza dos figurinos, música e coreografia. Eles são a prova da resistência de uma tradição que desafia obstáculos, como a falta de recursos e apoio, ano a ano. A tradição do Terno de Reis em Itacaré se mantém viva graças a pessoas como Sr. Morenito que com seu dom divino, nunca deixou esta data passar em branco. Este ano o Clube o Clube da Melhor Idade de Itacaré fez a festa e saiu às ruas da cidade com seus trajes lindos, relembrando a época em que a Tradição e a Cultura deste município era respeitada e incentivada pelos gestores públicos. (ITACARÉ, 2013). Terno de Reis de Itacaré, 2015 Fonte: https://web.facebook.com/Sec-CulturaEsporte-e-Lazer-de-Itacar%C3%A9148541308631594/ II Congresso Internacional Sobre Culturas 189 Terno de Reis de Itacaré, 2015 Fonte: https://web.facebook.com/Sec-CulturaEsporte-e-Lazer-de-Itacar%C3%A9148541308631594/ O Terno de Reis também acontece no município de Ilhéus, na Vila Juerana – um povoado de pescadores com cerca de 800 habitantes, originado de uma fazenda da segunda metade do século XIX – e no Distrito de Olivença – uma aldeia Tupinambá em 1500. O Reisado da Juerana teve início há mais de 100 anos atrás, na família de Dona Dalva: seus pais e avós chegaram ao arraial por volta de 1900. Dona Dalva, nascida em 1916 e falecida em 15 de agosto de 2012, costumava contar que ainda criança, aos dez anos, via seu pai Camilo ensaiando passos do bailado com seus irmãos mais velhos e sua mãe Firmina cantando. Depois da morte de seus genitores, assumiu as apresentações do Reisado por várias décadas. Sua filha Adená tem dado continuidade à tradição, com a ajuda dos irmãos. As mulheres da Vila confeccionam as roupas e o estandarte. As músicas foram transmitidas pela oralidade. Dona Adená puxa o canto de saída “Estrela, estrela, vamos nos embora / Estrela, estrela, já sobrou a hora. São Sebastião, rei de Portugal / Ajude a II Congresso Internacional Sobre Culturas 190 vencer, essa batalha real”, acompanhada pelos participantes do Reisado. Os instrumentos são o surdo, timbal, pandeiro, rabeca, ganzá. Antigamente incluía também viola, sanfona e cavaquinho, suprimidos tanto pela carência de recursos financeiros quanto pela inexistência de tocadores. Apresentação do Reisado da Juerana, 2015 Fonte: Arquivos da Autora Durante os cânticos na porta da Igreja de Nossa Senhora de Portugal, a vocalista vai chamando, um a um, personagens de outras tradições da cultura popular: o Boi e o Vaqueiro, a Burrinha, a Jaraguaia (espécie de loba), o Manduzinho, o Pilaqui, o Bigodinho, o Bicho de Folha. Estas figuras brincam rodeadas por oito Garças – as margens do rio que corta a Vila são povoadas por esses pássaros – e seu Rei, cantando: “Ô Senhor dê licença pra oito garças vadiar.” Mas os reiseiros não sabem explicar o significado de cada um desses seres mitológicos. II Congresso Internacional Sobre Culturas 191 Reisado da Vila Juerana, 2015 Fonte: Arquivos da Autora No Distrito de Olivença, o Terno de Reis rememora tradições dos índios Tupinambá, incorporadas provavelmente da mestiçagem cabocla e da convivência do seu povo com os colonizadores portugueses e seus descendentes, conforme antiga moradora do lugar: Sobre o passado mais recente de Olivença são muitas as histórias. Os mais velhos, grandes detentores da história oral dos Tupinambá, falam com prazer do tempo antigo, do passado [...], dos festejos, como a puxada do mastro e terno de reis [...] como relata D. Messíades (67 anos e moradora do Acuípe do Meio) [...] “A Bandeira do Espírito Santo saía em Olivença, aqueles índio velho cantando, tinha algum branco que aparecia, mas se via mais batendo a caixa, cantando, levando a bandeira nas casa era índio. Eles vinha de lá de Olivença e saía pelas roça. Eu era menina quando eu alcancei a Bandeira do Espírito Santo dentro de Olivença.” (COUTO, 2003, p. 17; 41). Além do Terno de Reis dos distritos de Sambaituba e Rio de Engenho, no Distrito de Urucutuca constata-se o Terno Diamante, tradição que ainda resiste ao II Congresso Internacional Sobre Culturas 192 tempo – possui mais de cem anos de existência e quatro gerações –, liderado atualmente pelo mestre da cultura popular Aurelino da Silva Galdino, conhecido como “Seu Oreco”, com a participação de seus familiares. Ele e a turma do Bumba-meu-boi ou Boi de Reis, ao som de instrumentos como o timbal, a sanfona, o trombone e o violão, brincam pelo vilarejo e se apresentam no centro da cidade de Ilhéus, quando conseguem auxílio financeiro do governo municipal. Sobre esse Terno, Valéria Amim e Christiana Profice (2005, p. 12) assim escreveram: O terno preserva seu formato ordenado, mesmo que em uma nova configuração de personagens e de utilização de novos materiais na confecção de instrumentos e fantasias. Apresenta os seguintes participantes: o Mestre, o Secretário, a Secretária, a Rainha, o Vaqueiro, o Boi, o Temeroso, o Jaraguá, a Turubibita, os dançantes, os músicos, compondo um conjunto de 35 participantes. O Mestre se coloca como aquele que ensina e transmite um dado saber ordenado, manifestando preocupação com a atratividade para os jovens que atualmente tem outros interesses. Durante o terno o Mestre tem tudo em suas mãos, o que lhe escapa ele integra. As coreografias e os passos realizados são ainda os da origem do terno, preservando o sapateado e o “arrastar de pés” que o identificam e o diferenciam dos demais ternos. Seu Eureco utiliza o apito como mediador entre o ritmo corporal e instrumental, responsável pela evolução do grupo. Em Pau Brasil, concretiza-se um cortejo preparado por um grupo de reisado da cidade. Tal festividade tem início no dia 1º de janeiro, quando esse grupo, ao som de instrumentos musicais como flauta, pandeiro, reco-reco, tambor e ganzá, e com indumentária de reis, cantam e dançam, passando ao longo das ruas da cidade e saudando as pessoas que encontram pelo caminho. Prosseguindo, manifestam sua religiosidade, homenageando São Sebastião, santo católico comemorado no vigésimo dia do primeiro mês do ano. Nos dias finais das celebrizações de reis, os festejos ocorrem na reserva indígena Caramuru Paraguaçu. II Congresso Internacional Sobre Culturas 193 Reisado na Aldeia Indígena Catarina Paraguaçu – Pau Brasil, 2014 Fonte: https://web.facebook.com/media/set/?set=a.496204460496060.1073742142.311857522264089 &type Outros municípios do litoral sul da Bahia também possuem a tradição cultural do Terno de Reis ou Folia de Reis: Almadina, Canavieiras, Itapé, Mascote, Santa Luzia, São José da Vitória, e Una, este último pela iniciativa dos grupos Forteatro-Sul e Nação Iorubá Capoeira. CONSIDERAÇÕES FINAIS O Território de Identidade Litoral Sul da Bahia, em seus mais de cinco séculos de existência, acumulou e resguardou espólios antepassados, delineando a singularidade cultural, étnica e identitária da região. Nesse contexto o Terno de Reis é permeado por determinações múltiplas – mescla elementos da cultura portuguesa, indígena e africana – concretizando-se em contextos históricos específicos, assumindo formas complexas e variadas de acordo com o local em que ocorre. Através dessa tradição pode-se conhecer II Congresso Internacional Sobre Culturas 194 ideias e expressões das culturas minoritárias, uma vez que os integrantes das populações tradicionais e de outros grupos populares são detentores da memória e da história coletiva dos seus povos. A apresentação de Reisados nesse território, entretanto, tem se reduzido com o passar do tempo – em alguns lugares não mais realizados –, principalmente pela inexistência de políticas públicas (nacionais, estaduais ou municipais) que efetivamente contribuam para a preservação dos bens simbólicos, imateriais e materiais da cultura popular brasileira. REFERÊNCIAS AMIM, Valéria; PROFICE, Christiana Cabicieri. Terno Diamante: estudos preliminares em folkcomunicação. XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Rio de Janeiro, 2005. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2005/resumos/R1319-1.pdf>. Acesso em: 13 ago. 2011. ANDRADE, Wesley Lima. A Folia de Reis e suas Representações em Quirinópolis. História e-História. Revista virtual do Grupo de Pesquisa Arqueologia Histórica da UNICAMP, Campinas, dez. 2009. Disponível em: <http://www.historiahistoria.com.br/materia.cfm?tb=alunos&id=254> Acesso em: 15 ago. 2011. ATRATIVOS da península de Maraú. Maraú, Guia de atrativos turísticos da península de Maraú-BA, 15 jul. 2011. Disponível em: <http://atrativosturisticosdemarau.blogspot.com.br/p/cultura.html>. Acesso em: 27 nov. 2012. BRANDÃO, Carlos. O que é folclore. 5.ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. COUTO, Patrícia Navarro de Almeida. Os Filhos de Jaci: Ressurgimento étnico entre os Tupinambá de Olivença – Ilhéus-BA. 2003. 83 f. Monografia (Bacharelado em Ciências Sociais – Antropologia) – Curso de Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2003. FOLIA de Reis arrasta multidão em Ubaitaba. Tribuna da Região, Ubaitaba, jan. 2011. Disponível em: <http://www.jornaltribunadaregiao.com.br/index.php?page=noticia&codigo_noticia=33 4> Acesso em: 15 ago. 2011. ITACARÉ: tradição do terno de reis foi mantida no município. jan. 2013a. Itacaré. Disponível em: < http://www.itacareurgente.com.br/index.php/itacare-urgente/todas-asnoticias/rss-itacare-urgente/2620-itacare-a-tradicao-do-terno-de-reis-foi-mantida-nomunicipio>. Acesso em: 7 jan. 2013. II Congresso Internacional Sobre Culturas 195 MODESTO, Antônio C. Como se originou a festa de Santos Reis. São Paulo. Ática, 1990. O MELHOR de Itacaré. Itacaré: Guia turístico online, 2011. Disponível em: <http://www.itacareguia.com.br/itacare/historia-e-cultura.php>. Acesso em: 15 ago. 2011. QUERINO, Manoel. A Bahia de outrora. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1946. (Coleção de Estudos Brasileiros, vol. 3). RAMOS, Arthur. Folclore negro no Brasil. Rio de Janeiro: Casa do Estudante, 1954. II Congresso Internacional Sobre Culturas 196 MIKE SAM CHAGAS E CAMÕES: UM DIÁLOGO ENTRE SIGNOS ÉPICOS E LÍRICOS Olímpio Pinheiro Santana76 RESUMO Este artigo propõe uma análise dialógica entre as pinturas de Mike Sam Chagas e quatro estrofes do Canto IX de Os Lusíadas, de Camões. Através da intersemiose, são identificadas similaridades temáticas entre estes dois artistas, com um percurso pelas suas representações de mitos, signos épicos e elegíacos. No caso de Chagas, identificamos signos análogos à liquidez, termo adotado por Zygmunt Bauman. Espetacularização do sujeito, difusão do imaginário da cultura eletrônica e digital, anseio pela popularidade nas redes sociais são alguns problemas focalizados nas obras de Chagas. Palavras-chave: Pintura. Poesia. Feito heroico. Liquidez. Fliperama. INTRODUÇÃO A obra de Mike Sam Chagas (Poços de Caldas-MG, 1977-) é portadora de ícones que interagem fortemente no campo comunicacional e na consciência humana. Seu programa iconográfico (2006-2011), que abrange o corpus de pinturas reproduzidas neste artigo, recria, através do óleo sobre tela, emblemas da cultura eletrônica juvenil, espaços ora cheios, ora vazios (que dão lugar respectivamente ao épico e ao lírico) e cenários, cujas arquiteturas e molduras dão subsídio plástico às narrativas visuais urbanas e alegóricas. Uma obra, pois, de ações coletivas que se caracterizam pela presença de ícones do imaginário popular, relacionados com o que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman chama de metáfora da liquidez, segundo a qual na modernidade nada é feito para durar. Entretanto, numa época assim, como assinala Bauman, tem lugar o que permite “a realização do feito heroico, de modo cotidiano e trivial, por seres humanos comuns, não heroicos.” (BAUMAN, 2008, p. 122). Neste diálogo intersemiótico entre Os Lusíadas, do poeta português Luís Vaz de Camões (1524-80) e pinturas de Chagas, as telas foram o objeto principal, onde se 76 Mestrando em Desenho, Cultura e Interatividade na UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana), bolsista da CAPES. Graduado em Artes Plásticas pela Escola de Belas Artes da UFBA (Universidade Federal da Bahia). Desenvolve pesquisa processual em desenho ilustrativo e em pintura. Sua terceira mostra individual, A carne além da interface: uma releitura de Rembrandt (2014), realizouse no Centro Cultural do Fórum Ruy Barbosa, em Salvador. Foi selecionado para os Salões de Artes Visuais da Bahia 2014, nas edições de Camaçari e Paulo Afonso. Tem um artigo e dois ensaios publicados na Art&Sensorium, Revista Interdisciplinar Internacional de Artes Visuais da Escola de Música e Belas Artes do Paraná da UNESPAR. E-mail: opsants@yahoo.com.br II Congresso Internacional Sobre Culturas 197 procurou “compreender o lugar dos ícones como parte constitutiva dos sistemas simbólicos” (PORTO ALEGRE, 1998, p. 76). Os quadros de Chagas que analisamos revelam aspectos culturais da vida de estudantes, observados por este artista no Centro de Salvador entre 2006 e 2008. Igualmente atento à realidade, Camões narra fatos relacionados à viagem de Vasco da Gama para a Índia e se inspira em suas próprias aventuras marítimas, amores e batalhas. Em relação à mensagem visual, têm importância relevante os três níveis básicos da percepção e expressão visual que Dondis (2007) destaca: o representacional, o abstrato e o simbólico, como categorias interligadas e sobrepostas. É pertinente frisar que o desenho eficiente tem, na poética de Chagas, um papel decisivo no poder de comunicar sua mensagem. A BATALHA DO CAMPO GRANDE A pintura A Batalha do Campo Grande (2007) (Figura 1) representa duas garotas que, interessadas num rapaz, se preparam para brigar, mas, antes que a luta comece, ele já está com outra moça, formando um casal abraçado e risonho, na base do quadro, situado entre dois controles de fliperama77. Embora tenham o domínio da situação, eles estão numa escala menor em relação às lutadoras e ficam fora da tela. A multidão ao fundo permanece indefinida, conectada à massa homogênea da vegetação. O cenário mantém uma aparência festiva com pequenos fachos de luz e bandeirolas, mas evoca melancolia devido ao simbolismo dos tons de lilás, azul cerúleo e azul celeste. A expressão Final Round aparece a modo de bandeira, localizada no ponto de fuga das linhas de convergência. 77 “No Brasil, e somente por aqui, passou-se a nomear a máquina de fliperama e por extensão o ambiente onde se jogavam os pinballs.” (CHAGAS, 2015, p. 14-15). II Congresso Internacional Sobre Culturas 198 Figura 1 — Mike Sam Chagas. A Batalha do Campo Grande. (2007). Óleo sobre tela, 120 x 180 cm. Enquanto se posicionam para assistir ao “espetáculo”, essa multidão parece alheia ao que se passa, porque, a tonalidade azul predominante evoca um silêncio quase absoluto, um congelamento coletivo. As “instruções do jogo” (beijo, abraço, paquera, esquiva) e os “golpes especiais” (beijo roubado, mão-boba etc.) são opções que aguardam a próxima vencedora e que ela provavelmente não escolherá. A atual vitoriosa, em triunfo, desfruta do abraço do rapaz. Todas essas aspirações ao “líquido” status heroico ou à glória pessoal estão relacionadas ao “impulso de ser diferente, de escapar da multidão e da rotina competitiva, a busca em massa da última moda (do próprio momento)” (BAUMAN, 2015, p. 25). São aspirações programadas pela cultura “líquida moderna”, mas, para a grande maioria das pessoas, não passa de uma utopia78. A Ilha dos Amores, Canto IX de Os Lusíadas, simboliza “o reconhecimento dos que escolhem o caminho da utopia como forma de realização, que foi sempre a escolha de Camões.” (TEIXEIRA, 2008, p. 236). Este narrativo quadro de Chagas, assim como o referido episódio camoniano, termina com uma imagem de vitória. A moça sorridente da tela, como as Ninfas, é um objeto de desejo do rapaz que está com ela. Implicadas indiretamente neste jogo solene, que antecede o amor exuberante, as outras garotas assumem uma postura agressiva: atividades exteriores como socos, chutes, a cópula, são indicados pela onomatopeia 78 Decorrente de um inconformismo com a sociedade atual, de uma idealização de vida, uma perfeição que “não é deste mundo.” (MASSAUD, 2006, p. 459). II Congresso Internacional Sobre Culturas 199 POW, ícones de lutadores e sinais tensos e provocativos. Por meio de gestos que acompanham palavras (The King of Lovers, Final Round, Diversões eletrônicas), os personagens pictóricos transmitem estados psicológicos compatíveis com as cores da atmosfera e composição de uma evento mágico e ao mesmo tempo cotidiano. Na estrofe 82, Canto IX, a metáfora do verso “Toda banhada em riso e alegria,” (CAMÕES, 1980, p. 561) dialoga com a perífrase The King of Lovers, que aparece como um título, uma descrição da principal cena da pintura. Na iminência de a moça olhar para o amante que a abraça, volver “o rosto, já sereno”, ela olha para nós, antes de se submeter ao ato viril do parceiro: “Cair se deixa aos pés do vencedor,” e à imagem verbal criada pela hipérbole “Que todo se desfaz em puro amor.”, no seguinte verso. Assim como o renascentista Camões se espelha nos mitos, sintonizando o mundo antropocêntrico do Império Ultramarino Português com a fé católica e a mitologia greco-romana, exprimindo os feitos gloriosos de lusitanos eleitos, os “segundos argonautas”, Chagas transfigura plasticamente um sentimento coletivo, onde, por trás do contingente azulado de espectadores na praça, esconde-se uma cobiça unânime por estar numa posição de eterno triunfo, que refuta o que seria insuportável para a “geração Y”: ver “desaparecer as infinitas escolhas, a liberdade de movimento e de mudança que os jovens contemporâneos se acostumaram a visualizar” (BAUMAN, 2016, p. 61). Ao lado de cada garota, vemos super-heróis de fliperamas, retratos de possíveis seguidores de blogs ou usuários do Facebook, escudos de colégios. São ícones que constituem a persona lírica delas. Seres distantes e melancólicos, em que a uniformização cromática e a fragilidade despertam a sensação do elegíaco. Por serem retratos de pessoas reais na rua, feitos em público, a partir de desenhos de observação direta, Chagas, usando cores vivas e formas sugestivas, capta a realidade interior não de personagens isolados, mas de uma coletividade. Ao problematizar a fotografia, Kafka chama a atenção para as minúcias visíveis do mundo, que incluem a observação diferenciada da realidade feita pelos pintores: A fotografia concentra seu olhar sobre o superficial. Desse modo obscurece a vida secreta que brilha através dos contornos das coisas num jogo de luz e sombra. Não se pode captar isso, nem mesmo com o auxílio das lentes mais poderosas. Devemos nos aproximar dessa vida interior pé ante pé... (KAFKA apud DUBOIS, 2004, p. 44). Toda a efusão lírica dessa pintura deriva da versatilidade de códigos culturais que se articulam para favorecer um ambiente de oposição entre duas moças. Toques II Congresso Internacional Sobre Culturas 200 discretamente sensuais e linguagem corporal desafiante parecem mais reais ao falar diretamente para o observador: a lutadora à esquerda olha a rival com raiva e esta nos encara com malícia. Nesta narrativa visual, vários signos desencadeiam-se: ícones (heróis de fliperama, pessoas reais iconizadas), índices de lazer (as mãos que seguram as fichas), índices de socos (as onomatopeias POW), símbolos de uma batalha decisiva (toda a pintura e a faixa do Final Round). Este último signo situa-se embaixo do Monumento ao Dois de Julho (1895), do escultor Comendador Carlo Nicoli (1843-1915), que personifica o Brasil e simboliza o triunfo dos heróis da Independência da Bahia, consolidada em dois de julho de 1823. As barras laranja de energia das lutadoras manifestam complementaridade cromática com a paleta azulada do cenário; seus tons quentes de pele e cabelos também se destacam, ao passo que a plateia, mesmo perto, foi representada como uma massa apagada, aprisionada pelo sistema que conduz as pessoas a uma vida difusa e aleatória. Figura 2 — Mike Sam Chagas. Entardecer no Largo dos Aflitos. (2008). Óleo sobre tela, 150 x 150 cm. ENTARDECER NO LARGO DOS AFLITOS Entardecer no Largo dos Aflitos (2008) (Figura 2) tem uma composição que expressa a tranquilidade de uma cena: um casal de adolescentes, que, numa postura II Congresso Internacional Sobre Culturas 201 reflexiva, parece desprender-se dos hábitos da cultura “líquida”. Ao redor, vários ícones de personagens de fliperama e recordações de lazer nas casas de jogo. Os estudantes já não miram esse imaginário que povoou suas mentes, mas o que, à frente, embora não visível, é a construção de sua nova subjetividade. Desligados da fantasia eletrônica, estão alheios ao painel, atrás deles, de lutas arrebatadoras e heroicas, cromadas em nostálgicos tons amarelo-esverdeados, o que sugere um sentimento épico e lírico a um só tempo, para o qual contribuem o ritmo dos rastros de nuvens, a silhueta da lua crescente, a textura do ocaso e um cenário do Japão. Harmoniosamente, a estrutura piramidal da moça, do Chafariz da Cabocla (c. 1856) e os lutadores que se elevam ao fundo se conjugam no ritmo poético de ascensão que domina o agrupamento central. O sentido de leitura da diagonal inferior esquerda para a oposta é conseguida a começar pelo direcionamento da garota, seguido pelo topo da escultura e pela figura de costas que sobe com o braço suspenso. A direção da lua e do ápice da casa à direita também contribui para isso. Ilha dos Amores é um episódio em que os heróis lusitanos igualam-se aos deuses, tendo por maior recompensa o prazer sexual, onde a força lírica reside também na exaltação à liberdade do espírito, vivida intensamente por Camões e por Vasco da Gama. Nesta tela de Chagas, esse último aspecto é visível nas figuras principais. São particularidades que refletem, com efeito, em todo o Canto IX de Os Lusíadas: A Ilha é, assim, o restabelecimento da Harmonia, de modo que a consagração e a transfiguração mítica dos Heróis, que na ilha e pela ilha se opera, são, também e sobretudo, a recolocação do Amor, do verdadeiro Amor, como centro da Harmonia do Mundo. A Ilha é uma catarse total, não apenas de todos os recalcamentos, mas das misérias da própria História, e das misérias da vida no tempo de Camões e fora dele. É a reconciliação, a transcendência. (SENA, 1980, p 76). Na estrofe 83, Camões narra o encontro dos amantes à luz do dia, impelidos por Vênus à fruição sexual. Os prazeres do amor sensual são um dos temas mais recorrentes da lírica proveniente da tradição greco-romana, que Camões assimilou. “Milhor é exprimentá-lo que julgá-lo;” (CAMÕES, 1980, p. 562). Simbolizados pela figura da Ninfa, a beleza e o amor da mulher devem ser experimentados como um ideal de purificação para o poeta, “Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.” II Congresso Internacional Sobre Culturas 202 ENTARDECER NA GAMESTATION 3 Diferentemente do quadro anterior, Entardecer na Gamestation 3 (2010) (Figura 3) não tem um título de descrição literal. Entardecer aqui equivale ao fim de uma condição porque as garotas já não se voltam mais para os jogos eletrônicos. Tal qual um monumento, o fliperama de jogo de carro é o símbolo de um novo rumo, uma janela aberta. Vemos na tela de jogo um sofisticado carro amarelo seguindo numa estrada supostamente livre, onde as margens possuem belas casas e árvores frondosas. A cor do veículo contrasta com os tons do asfalto: violeta, carmim e preto. O simbolismo dos números é relevante nesta obra: o tempo da viagem está em 2. Esse número é símbolo “da duplicação, da separação, [...] do equilíbrio, [...] o dois simboliza o movimento que aciona todo o progresso.” (LEXIKON, 2009, p. 76). Outro número é o 7th (do inglês seventh = sétimo). Sete é “o número do ciclo completo, da abundância e da plenitude.” (LEXIKON, 2009, p.183). II Congresso Internacional Sobre Culturas 203 Figura 3 — Mike Sam Chagas. Entardecer na Gamestation 3. (2010) Detalhe de Entardecer na Gamestation 3. Óleo sobre tela, 130 x 100 cm. Ficou para trás a gamestation vazia, daí a uniformidade de cores frias que confluem com essa divisão. Em destaque, o fliperama funciona como um suporte das potencialidades da vida, das conquistas futuras que — para as moças — permanecem latentes. O volante e os pedais simbolizam uma nova subjetividade. A expressão La Belle Époque e o carrossel da estação dialogam com as sensações correspondentes ao sexto verso da estrofe 87, Canto IX: “Em doces jogos e em prazer contino.” (CAMÕES, 1980, p. 564). São notáveis neste verso: no primeiro segmento, a sinestesia “doces jogos”; no segundo, a hipérbole “prazer contino”. Nesta passagem do poema, tais sensações são intensamente vividas por “Tétis, Vasco da Gama, as ninfas e os jovens lusitanos.” (ELIA, 1980, p. 564). CONCLUSÃO A composição das telas de Chagas, em sua complexa estrutura, transmite de imediato o tema unificador, através de mensagens-chave e símbolos contemporâneos. São pinturas que nos levam a perguntar: quantos recursos criativos potenciais são desperdiçados porque, quem os possui, insiste em trilhar caminhos fáceis ou amorfos? Talvez a resposta esteja na reflexão sobre a conquista de um ideal, que — na epopeia lusa é a ilha mitológica e contemporaneamente pode significar a realização de projetos existenciais dignos desse nome. Um ideal que implica esforço ascético, o que é assim II Congresso Internacional Sobre Culturas 204 expresso no sétimo verso da estrofe 90, Canto IX: “Caminho da virtude, alto e fragoso,” (CAMÕES, 1980, p. 564). A obstinação nesse caminho chega, “no fim”, ao que é “doce, alegre e deleitoso”, como se lê no oitavo e último verso da mesma estrofe. Em que pesem tanto a distância no tempo e no espaço entre a criação de Camões e a de Chagas quanto os meios distintos empregados por ambos, foi possível perceber a relação de ressonância mútua entre signos visuais e signos verbais, em sua expressão dos valores universais mais altos, o da vida e do amor pleno. As obras dos dois artistas, na maneira em que transfiguram a realidade, transcendem — com toda lucidez — a fragilidade da condição humana. REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno. Tradução de Vera Pereira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2016. 226 p. BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2015. 111 p. BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 170 p. CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Edição comentada. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1980. p. 648. il. (Coleção General Benício, v. 185, publ. 505). CHAGAS, Mike Sam. Arcaldas: uma corografia poética dos fliperamas em Poços de Caldas. 2015. 182 f. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal da Bahia. Escola de Belas Artes, Salvador, 2015. DONDIS, Donis A. Sintaxe da linguagem visual. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 236 p. DUBOIS, Philipe. O ato fotográfico. 8. ed. Tradução de Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 2004. 362 p. (Série Ofício de Arte e Forma). ELIA, Hamilton. Nota da estrofe 87. Canto nono. In: CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Edição comentada. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1980. p. 562. (Coleção General Benício, v. 185, publ. 505). LEXIKON, Herder. Dicionário de símbolos. Tradução de Erlon José Paschoal. São Paulo: Cultrix, 2009. 214 p. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 13. ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2006. 520 p. II Congresso Internacional Sobre Culturas 205 PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Reflexões sobre iconografia etnográfica: por uma hermenêutica visual. In: FELDMAN-BIANCO, Bela; LEITE, Míriam L. Moreira (Org.) Desafios da imagem. Campinas, SP: Papirus, 1998. p. 75-112. SENA, Jorge de. A estrutura de “Os Lusíadas” e outros estudos camonianos e de poesia peninsular do século XVI. 2. ed. Lisboa: Edições 70, 1980. 315 p. TEIXEIRA, Ivan. Ilha dos Amores. In: CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas: (episódios). Apresentação e notas de Teixeira. 5. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008. p. 229-281. il. (Clássicos Ateliê). II Congresso Internacional Sobre Culturas 206 O FAZER ARTÍSTICO DE BURIDINA: REPRESENTAÇÃO CULTURAL E IDENTITÁRIA DE UM POVO Gisele Luiza de Souza* Gláucia Vieira Cândido ** RESUMO Partindo do pressuposto de que o Brasil se constitui historicamente como uma sociedade multiétnica com uma imensa diversidade artístico-cultural e que as identidades se formam a partir da noção do pertencimento étnico, religioso, racial e linguístico, o presente trabalho tem por objetivo abordar as relações entre a arte indígena produzida pela Comunidade Karajá de Buridina em Aruanã- Goiás e o fortalecimento de sua etnicidade. Para tanto, faremos a priori considerações sobre o processo de colonização portuguesa e a instauração da cultura nos moldes europeus para os povos indígenas e, posteriormente, refletiremos a respeito da manutenção das raízes culturais e do fazer artístico ameríndio que, nesse contexto, aparece como mediação criativa entre a mudança inevitável e o desejo de continuidade de um povo. Palavras-chave: Arte. Raízes Culturais. Identidade Étnica. Povo Karajá. INTRODUÇÃO Ao longo da colonização e dos primeiros anos do Estado brasileiro enquanto Nação, os prejuízos socioculturais de nossos povos nativos foram inúmeros. A determinação de uma filosofia de vida totalmente diferente da anteriormente praticada que em nada contribuiu para a continuidade histórica, cultural e linguística das comunidades ameríndias e as sucessivas perdas linguísticas simbolizaram naquele período agressivas imposições portuguesas sobre a realidade indígena. As características culturais europeias foram brevemente mudando a realidade de vida dos indígenas brasileiros. Segundo Freire (2004, p.23), “as línguas, a tradição oral, o saber e a arte dos povos indígenas foram discriminados e excluídos” e, em pouco tempo, suas culturas e seus conhecimentos foram tolhidos, tornando inevitáveis suas perdas culturais e identitárias. Durante um longo período, essa postura da política indigenista brasileira manteve os índios sob tutela da União, considerando-os sem cultura e sem conhecimento e, somente em 1988, com a promulgação da Constituição Federal, o movimento indígena pôde crescer diante do cenário político brasileiro e conseguir reaver seus direitos à cidadania plena e à preservação de suas características culturais e linguísticas. II Congresso Internacional Sobre Culturas 207 Enfim, esse reconhecimento sociocultural e étnico possibilitou aos indígenas que, conhecendo seus direitos coletivos e específicos, pudessem retomar suas formas próprias de organização social, transmissão cultural, construção de valores simbólicos, tradições, conhecimentos e processos de constituição de saberes. Entretanto, ainda hoje, em face das diversas situações em que somos levados a repensar nosso entendimento acerca de cultura, arte, tradições e costumes, é comum que, inculcados pela ideia ocidental de categorização, valorizemos determinadas práticas e produções em detrimento de outras, rotulando-as quanto a uma superioridade ou inferioridade. Nesta perspectiva, o presente estudo tem o propósito de repensar a arte indígena e seu conceito enquanto produção cultural que, além de despertar emoção, sentimentos e releitura da vida, advém das habilidades e competências do fazer, do produzir e da necessidade que o homem sente de criar. A TRAJETÓRIA INDÍGENA: UM OLHAR SOBRE O PASSADO Voltando nosso olhar para os séculos de submissão, desvalorização e perdas sucessivas da noção de pertencimento a que os indígenas brasileiros foram submetidos, é válido iniciarmos nossa reflexão a partir do período de 1549, data que marca a chegada da primeira missão jesuítica enviada de Portugal por D. João III e que trazia, entre seus objetivos, a tarefa primordial de converter nossos nativos à fé cristã. Nesse processo de catequização iniciava-se também o processo de colonização portuguesa e a instauração da cultura nos moldes europeus, no qual os missionários procuravam se aproximar dos indígenas, conquistar sua confiança e aprender suas línguas a fim de transformá-los em intérpretes linguísticos e culturais para auxiliá-los na civilização de outros indígenas. Sobre essa política colonialista, é interessante pensarmos também na arbitrariedade que envolve a nomeação “índios”, uma vez que este termo generaliza os povos nativos da nossa terra, ignorando as especificidades de cada etnia e desconsiderando as ricas e inúmeras diferenças que, originalmente, possuem entre si. Sobre este período, Leonardi (1996, p.36) diz que “a população indígena brasileira era bastante diversa; estima-se que existiam aproximadamente 10 milhões de índios e cerca de 1.200 línguas diferentes faladas por grupos étnicos com costumes e tradições II Congresso Internacional Sobre Culturas 208 próprios”, porém o cenário de submissão e aculturação, que perdurou ao longo de vários séculos, contribuiu fortemente para o fim dessa diversidade e somente em meados do século XX o Estado começou a estruturar uma política indigenista que intencionava mudar a imagem do Brasil perante a sociedade nacional e mundial, criando, então, os primeiros órgãos governamentais de assistência e proteção aos índios. Quanto a esta iniciativa, vale citar a criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1910, que em 1967 teve seus serviços extintos e substituídos pela Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão vinculado ao Ministério da Justiça que, até os dias atuais, exerce o papel de promover políticas voltadas ao desenvolvimento sustentável das populações indígenas brasileiras. Todavia, o contexto de mudanças só foi realmente firmado quando a Constituição Federal de 1988 surgiu como alavanca mestra no processo das transformações históricas que asseguraram aos índios o direito de permanecerem índios, mantendo vivas suas línguas, culturas e tradições, representando, dessa forma, um divisor de águas que possibilitou o fim de um tempo de dominação, imposição, desigualdade, preconceito, intolerância e estigmatização em relação aos povos indígenas brasileiros. Referindo-se especificamente aos direitos culturais e identitários dos povos indígenas, este documento trouxe no artigo 231 a seguinte determinação: São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. E, em síntese, nasceram aí as primeiras políticas públicas voltadas para o fim do isolamento e da exclusão cultural desses povos. No entanto, vale destacar que, quanto à Comunidade Buridina, cujo fazer artístico é objeto de análise neste estudo, apenas em 1993, com a implantação do Projeto Maurehi79 (Pimentel Silva, 2009) iniciaram-se as primeiras discussões sobre possíveis medidas que assegurassem os direitos e protegessem, linguística e culturalmente, esse povo Karajá. II Congresso Internacional Sobre Culturas 209 O POVO KARAJÁ E SUAS RAÍZES CULTURAIS Apesar dos significativos anos de perdas culturais e identitárias, a diversidade étnica e cultural dos povos ameríndios brasileiros, ricos em semelhanças e diferenças, mereceu, enfim, ser valorizada e protegida a partir do reconhecimento dos saberes latentes cultivados nos rituais, lendas e mitos transmitidos de gerações para gerações em cada etnia. Compreendeu-se que conhecendo a própria cultura, construída a partir das ações e inter-relações sociais, o indivíduo reconhece a importância de mantê-la aquecida na memória como forma de preservar também suas próprias características e sua própria identidade, uma vez que, conforme Laraia (2001, p.24) afirma: o homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridas pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções. Estas não são, pois, o produto da ação isolada de um gênio, mas o resultado do esforço de toda uma comunidade. E, por esse ângulo, a arte, enquanto mediação criativa entre a mudança inevitável e o desejo de continuidade de um povo, surge com o poder de sustentar, ainda que parcialmente, a cultura de um grupo, garantindo a ele o direito de praticar, transmitir, revitalizar e proteger o seu sistema sociocultural, incluindo a língua, a confecção artesanal, as tradições espirituais, as cerimônias e as manifestações. Nesse sentido, para compreender as transformações pelas quais a cultura de um povo tem passado no decorrer dos tempos, faz-se necessário conhecer sua história no início de sua construção e, assim sendo, devemos pensar na história da Aldeia Buridina que, apesar de ter hoje apenas 150 moradores, já foi, nas palavras do cacique Raul Hawakati, atual responsável pela comunidade, a maior aldeia Karajá da qual se teve conhecimento e, de acordo com estudo realizado por Telma Camargo da Silva (2015, p.203), “em 1940, foi praticamente extinta devido acusações de feitiçaria, seguidas de assassinato e uma epidemia de sarampo”. Para este povo Karajá permanecer-se reconhecido como comunidade amerídia e manter seus direitos garantidos, usaram o fazer artístico como ferramenta de reafirmação de suas particularidades e de sua identidade indígena, produzindo artigos de decoração II Congresso Internacional Sobre Culturas 210 feitos com madeira e cerâmica, além de bijuterias coloridas e criativas, que levam sementes, penas de diferentes pássaros e plantas do Cerrado. Diante desse contexto, a reflexão das raízes culturais enquanto formas de memória cultural de um povo, no sentido de afirmação identitária e pertencimento a uma determinada região, torna-se primordial para o real conhecimento da história através das memórias da própria origem. A ARTE INDÍGENA KARAJÁ Neste estudo, antes de refletirmos sobre a arte indígena enquanto linguagem cultural nos caberá reconhecer sua constituição enquanto sistema social que possui códigos próprios e está ligada “a diversas estruturas de poder que a produzem e a apoiam” (FRANCASTEL, 2000, p. 5), dando a ela, portanto, assim como na visão ocidental, múltiplos conceitos. Desse modo, tomaremos como base as palavras de Bosi (1985, p. 13) que apresenta a arte como um fazer, [...] um conjunto de atos pelos quais se muda a forma, se transforma a matéria oferecida pela natureza e pela cultura. A arte é uma produção. [...] Techné chamavam-na os gregos: modo exato de perfazer uma tarefa, antecedente de todas as técnicas dos nossos dias. E, portanto, além das atividades que se caracterizam por provocarem apenas uma reação ou reflexão estética, os trabalhos de artesanato também receberão o nome de arte. Justificando, dessa forma, o motivo para que muitos artefatos – ornatos de penas, objetos rituais, potes e panelas de barro, cestas, arcos e flechas para caça, redes para dormir e as Ritxoko80 – que trazem à tona as tradições, as crenças e os misticismos de um povo, sejam sim, considerados manifestações de profundo sentido estético e embelezamento da vida. Sobre isso, Rondon (2015 apud VIDAL; SILVA, 1995) problematiza que a arte não é tratada como uma especialidade separada do resto da vida na maior parte das culturas não ocidentais e, por isso, os indígenas e outros povos não ocidentais não fazem objetos para serem somente contemplados. Aliás, para esses povos a tradição é II Congresso Internacional Sobre Culturas 211 referência importante na avaliação da beleza de um objeto que precisa, antes de tudo, ser feito segundo os critérios determinados por sua sociedade. Dessa forma, podemos afirmar que para os Karajá de Buridina a arte surge quando o artista consegue criar coisas novas dentro do padrão particular de sua cultura e, portanto, consideram um artefato belo quando também é bom, útil e, antes de tudo, tiver sido produzido segundo os moldes estabelecidos pela sua sociedade, tanto em termos técnicos quanto estéticos, demarcando, assim, a etnia e o lugar de pertencimento de um povo a um determinado território, esclarecendo, conforme afirma Hall (2003, p.12), que “a identidade costura o sujeito à estrutura”. Através das representações contidas na produção artística ameríndia Karajá adentra-se não só à vida social, à transmissão do conhecimento, à cosmologia, à mitologia e às noções de espaciabilidade e corporalidade, mas também ao universo pessoal de cada artesão que, no desejo de continuidade, imprime em seus trabalhos criatividade, originalidade e aponta para a existência de uma autoria individual dentro da comunidade, desafiando, conforme polemiza Rondon (2015, p.158) “a postura de que a arte indígena é sempre coletiva e anônima” e confirmando a fala de Bosi (1985, p.24) que diz que, com o tempo, “a intencionalidade do artista vai plasmando, graças ao domínio das técnicas aprendidas, o seu próprio modo de formar, a certa altura, pode alcançar o nível de estilo pessoal”. A IDENTIDADE CULTURAL KARAJÁ E A MARCAÇÃO DE GÊNERO PRESENTE EM SEU FAZER ARTÍSTICO Quanto aos Karajá de Buridina, vale ressaltar ainda, a manutenção da língua materna e do artesanato tradicional como formas primordiais de manter viva a cultura e a identidade étnica da comunidade que, situada às margens do Rio Araguaia e incrustada no centro da turística cidade de Aruanã – GO, vive um caso extremo de conhecimento e experimentação do mundo não indígena, recebendo grande número de turistas que, além de visitar o Rio, aproveitam para conhecer um pouco mais da cultura indígena. Em uma loja situada na própria aldeia, esta comunidade exibe uma arte diversificada que é comercializada no contato direto com os turistas e compradores, simbolizando uma maneira de manter viva a tradição da etnia e valorizar a peça indígena como objeto de arte. II Congresso Internacional Sobre Culturas 212 Enquanto meio de resistência e reafirmação étnica do grupo, a arte Karajá é fortemente marcada pelo gênero e coloca a mulher num papel central na vida social da aldeia, pois são elas que ensinam e produzem a arte, encontrando na ação criativa uma forma de superação. Através da reelaboração do conhecimento tradicional, eles transformam com maestria o barro, súu no linguajar inỹ81, em figuras antropomorfas, zoomorfas e sobrenaturais sempre seguindo as expressões tradicionais e os padrões culturais praticados na vivência cotidiana da comunidade. As mulheres são para os Karajá a representação da alteridade e do poder transformacional, pois conseguem, em suas criações, reafirmarem o modo de estar no mundo através de um conhecimento que, sendo histórico, mostra-se constantemente dinâmico e criativo. Rodrigues (2015, p.36) afirma que “a ação das ceramistas Karajá talvez tenha sido o primeiro passo de resiliência, a primeira tentativa literalmente concreta de recriar, por meio do barro, os sentimentos de honra, nobreza, beleza e autoestima corroídos pelo contato.” Em âmbito geral, cada peça produzida por elas possui uma linguagem que traduz a cultura nativa e, por isso, faz parte de um universo alheio aos ideais ocidentais que, de forma simbólica, expressam a dinâmica das relações sociais e o caráter processual da identidade étnica de seu povo, trazendo, à tona, o imaginário coletivo que, aos poucos, dá espaço às configurações e aos padrões estéticos pessoais. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em suma, pensar o contexto de uma comunidade indígena é compreender, como diz Laraia (2001, p.25), “um todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”. No entanto, apesar de complexa, tal compreensão se faz necessária quando se pretende observar o fazer artístico dessa comunidade em face do contexto interétnico que ela vivencia. Segundo Bosi (1985, p.8), II Congresso Internacional Sobre Culturas 213 a arte tem representado, desde a Pré-história, uma atividade fundamental do ser humano. Atividade que, ao produzir objetos e suscitar certos estados psíquicos no receptor, não esgota absolutamente o seu sentido nessas operações. Estas decorrem de um processo totalizante, que as condiciona: o que nos leva a sondar o ser da arte enquanto modo específico de os homens entrarem em relação com o universo e consigo mesmos. Sendo assim, pode-se entender que a arte, enquanto fenômeno cultural de identidade própria em cada sociedade e época, é definida em funções estéticas, sociais e culturais diferentes e, para os Karajá de Buridina, mesmo em tempos de mudanças estruturais, rupturas, quebras da continuidade cultural e histórica e, até mesmo, perdas definitivas vivenciadas por seu povo no período de colonização, representa a capacidade simbólica de um rico entrelaçamento entre o sujeito e a sua totalidade. Permitindo-nos, dessa forma, alcançar que, alicerçada nas tradições e hábitos das gerações passadas, essa comunidade consegue, por meio do fazer artístico, manter vivo o legado cultural nas gerações atuais e para as gerações futuras, sem desconsiderar, no entanto, a perspectiva multicultural que a permeia desde sua formação histórica até a atualidade. REFERÊNCIAS BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, 1985. BRASIL. Constituição (1988). 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Notas: Projeto de Educação e Cultura Indígena, apoiado pela Fundação Nacional do Índio, instalado no ano 1993, pela pesquisadora e professora da Universidade Federal de Goiás, Maria do Socorro Pimentel da Silva, com o objetivo de promover a melhoria de vida da comunidade Buridina que, desde então, vê na arte, em todas as suas formas de manifestação, um dos importantes instrumentos para identificar e situar a etnia desse povo no contato com o mundo não indígena. O projeto recebeu esse nome em homenagem à Jacinto Maurehi, responsável, entre as décadas de 50 e 60, pelo repovoamento da aldeia. 1 2 Palavra do dialeto feminino inỹ que designa as bonecas cerâmicas modeladas predominantemente pelas mulheres Karajá, como forma de preservação da identidade étnica e cultural de seu povo. No dialeto masculino, diz-se Ritxoo. Para saber mais sobre, ver: Rondon (2015) e Silva (2015). 3 Autodenominação dos povos de língua Karajá. II Congresso Internacional Sobre Culturas 215 TRAVESSIA DA FÉ: AS (RE)APRESENTAÇÕES DE SANTA QUITÉRIA NO AQUÉM-MAR Jussara Duarte Soares Dias82 Resumo Este trabalho tem como objetivo abordar o culto à Santa Quitéria, trazida do além para o aquém-mar nas naus portuguesas, cujo olhar verticalizaremos sobre a Santa Quitéria da Boa Vista, localizada entre as montanhas de Minas, em Rodrigo Silva, distrito de Ouro Preto e na Santa Quitéria de Pombeiro da Beira, do conselho de Arganil. Buscaremos compreender suas (re)significações, observando sua devoção em Portugal e no Brasil. Palavras-chaves: Devoção. Imagem. Festa. Minas Gerais. Portugal. APRESENTAÇÃO A religiosidade sempre esteve presente na história de vida dos homens; dos egípcios aos gregos, nos aborígenes e entre indígenas, atravessando civilizações e oceanos, tanto no passado longínquo quanto no tempo presente. Nota-se na atualidade um fenômeno de proliferação com suas mais diversas ramificações, da revalorização das matrizes africanas ao budismo ocidentalizado, islamitas, judeus e católicos continuam ganhando espaço, sem citar as doutrinas evangélicas que vem se disseminando impetuosamente. Observamos nos estudos antropológicos que, se divergem em muitos aspectos, as múltiplas religiões, compartilham na essência algo em comum: o acreditar numa força incontrolável que conduz as complexidades mundanas. E, muitas vezes para tentar “compreender o incompreensível”, se utilizam de matérias que concretizam suas ideias através de ritos, símbolos e crenças. Desta forma, criam uma ordem cósmica que explicam a existência terrena e asseguram a harmonia no ritmo da vida em sociedade. Como disse Geertz: “O homem pode adaptar-se de alguma forma, a qualquer coisa que sua imaginação possa enfrentar, mas ele não pode confrontar-se com o Caos”. Através de estudos sobre o catolicismo primitivo, sobre a religiosidade em Pombeiro da Beira e no arraial da Boa Vista, constataremos que ela é eminentemente social, uma invenção e uma necessidade humana. 82 Mestranda em Patrimônio Cultural, Paisagens e Cidadania. Universidade Federal de Viçosa. E-mail: jussara.restauro@gmail.com II Congresso Internacional Sobre Culturas 216 É válido desde já ressalvar que, faremos um estudo multidisciplinar para abordarmos questões artísticas, culturais e sociais, a fim de compreendermos quem foi Santa Quitéria, como se perpetua em terras lusitanas e como se ancorou no aquémmar. Restringiremos a narrativas, discussões e representações referentes ao catolicismo, uma forma dentre tantas outras de olharmos o mundo e que, apesar de todas as vicissitudes, ainda se faz presente em nossa sociedade. AS IMAGENS DEVOCIONAIS E O CULTO CATÓLICO O cristianismo primitivo se institucionalizou por volta do século IV, com ascensão de Constantino que o adotou como religião oficial do Império Romano. E não foi sem resistência que isto aconteceu. Pelo decorrer dos séculos ocorreram sucessões de disputas internas e externas para que a religião dos católicos fosse aceita e transformada em uma poderosa “instituição”. Algumas destas disputas são notáveis, como o movimento dos iconoclastas, no século VIII e a Reforma, a posteriori, no século XVI. Cada qual em seu contexto histórico, político e econômico balançaram e transformaram os dogmas cristãos. Um dos principais questionamentos feitos pelos protestantes estava ligado ao poder que a imagem exercia sobre os fiéis. Concílios, sínodos e diversos encontros, foram organizados ao longo dos séculos para se discutir a natureza do problema: o divino poderia ou não ser representado materialmente? Num primeiro momento podemos observar que os católicos, para se distinguirem das outras religiões universais e dos deuses pagãos, negaram as imagens de culto, evitando assim a adoração por eles tão renegada. Entretanto, com o passar do tempo compreenderam a força destas representações perante os fiéis e se renderam a elas. Desta forma, as imagens passaram a ser vistas como um importante instrumento pedagógico para aqueles que não sabiam ler, como uma Sagrada Escritura desenhada, comumente conhecida como “a bíblia para os pobres”. Os doutores da Igreja cederam às imagens pelo sentimento que despertavam nos fiéis, mas estabeleceram limitações. Como condição para sua existência, era necessário que pudessem explicá-las através dos textos litúrgicos e dos dogmas católicos. Logo, desde o início o papel da imagem não era inspirar, mas ensinar, demonstrar algo estipulado pela igreja. Desta forma, toda imagem provinha de um protótipo, um modelo que era seguido pelo pintor ou escultor, que obtinha na sua II Congresso Internacional Sobre Culturas 217 essência a narrativa teológica. Com esse arquétipo estabelecido a imagem era imbuída de sentidos e através de personificações e alegorias, concretizava-se uma ideia abstrata. “A imagem era considerada encarnação da forma na matéria”83. É sabido que a Igreja utilizou dos signos e símbolos baseada em diversas fontes literárias, mas também se adaptou àqueles já existentes em outras religiões, criando e recriando suas catedrais românicas e góticas. Através de certo “hibridismo cultural” a Igreja Católica conseguiu atingir os quatro cantos do mundo, disciplinando e regendo os acontecimentos mundanos ocidentais, de quase uma era. Já no final da Idade Média o pensamento religioso católico se cristalizava em imagens84. Após os questionamentos feitos por Lutero e seus seguidores, frente aos excessos da Igreja, os teólogos no Concílio de Trento (1545-1563) refletiram e redefiniram as teorias que deveriam ser seguidas pelo catolicismo moderno. Neste Concílio, a Igreja Católica adotou condições a serem dedicadas às imagens, às relíquias e a toda edificação. Frisaram assim, o respeito e a importância que se deveria ter ao correto uso das pinturas e esculturas e o papel dos santos representados, o que abriria as portas para a entrada do espírito artístico do homem barroco. Pelo que mandamos, que nas Igrejas, Capellas, ou Ermidas de nosso Arcebispo não haja em retabulo, Altar, ou fora dele Imagem que não seja das sobreditas, e que sejão decentes, e se conformem com os mysterios, vida e originaes que representão. E mandamos, que as imagens de vulto se fação daqui em diante de corpos inteiros, e ornados de maneira que se escusem vestidos, por ser assim mais conveniente, e decente.85 HISTÓRIA, ARTE E DEVOÇÃO Não há coincidência nas imagens religiosas, tudo o que está nela representado é proposital e carrega uma mensagem. O nosso desafio é ver e saber fazer sua leitura. Em 1593 o italiano Cesare Ripa, escreveu “Iconologia” um tratado de arte que se tornara referência para escultores, pintores e artistas da época e, referência para os estudiosos da área. 83 BELTING, Hans. Semelhança e Presença a história da imagem antes da era da arte. Idem. P.187 HUIZINGA, Johan. O declínio da Idade Média. P.141 85 Constituiçoens Primeiras do Arcebispado da Bahia Feitas e ordenadas pelo Illustrissimo, e reverendissimo Senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, Arcebispo do dito Arcebispado, e do Conselho de sua Magestade, propostas e aceitas em o synodo Diocesano, que o dito senhor celebrou em 12 de junho do anno de 1707. Lisboa, Miguel Rodrigues, MDCCLXV. P.697 84 II Congresso Internacional Sobre Culturas 218 (...) aquela “summa” da iconografia que, abeberando-se em fontes tanto clássicas e medievais como contemporâneas, foi, justamente, chamada de “a chave das alegorias dos séculos XVII e XVIII” e, explorada por artistas e poetas tão ilustres quanto Bernini, Poussin, Vermeer, e Milton...86 Erwim Panofsky, crítico e historiador da arte, escreveu em 1938, os “Estudos em Iconologia”, definindo diferenças entre iconografia e iconologia e, propondo um método de análise para as imagens distinguindo-as em três níveis. O primeiro seria a descrição formal da imagem, o segundo nível uma análise iconográfica propriamente dita e o terceiro, que compreende ao significado último da obra, a interpretação da mensagem que carrega em si. Para ele, as imagens são construções humanas e parte de uma cultura, de um determinado tempo e lugar. Desta forma, não poderiam ser compreendidas fora de seu contexto histórico. Para conseguir interpretá-las e entendêlas é preciso conhecer então, seus códigos culturais. “O homem sempre organiza o céu à imagem da terra”87. Constatamos assim, que a iconografia de Santa Quitéria é marcada pelas passagens de sua vida ao martírio. Ela é representada tendo como atributos a palma, que a identifica como mártir, ou um ramo de açucenas, sinal da sua pureza; um livro aludindo a Sagrada Escritura e uma coroa de rosas, símbolo da glória88. Todavia, alguns episódios com referência a milagres ou por tradições regionais, deram origem a uma iconografia variada e a atributos específicos. Santa Quitéria é reivindicada por outros países, como a França e a Espanha, mas Portugal assumiu direito sobre ela. Em 1651, Pedro Henriques de Abreu escreveu “A vida e martyrio de S. Quitéria e de suas oito irmãs, todas nacidas de hum parto, portuguezas e prothomartyres de Hespanha” aprovado e impresso pelo Tribunal do Santo Ofício. Em 1666, sua vida também foi narrada por Jorge Cardoso, Agiológio Lusitano e, em 1722, na Biografia de Frei Bento da Ascensão. Todos estes escritos situam o nascimento e o martírio de Santa Quitéria em terras lusitanas. 86 PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 216. CASIMIRO, Luís Alberto. Palestra UFMG. Anjos e demônios: do imaginário pagão à iconografia cristã. 2016. 88 CASIMIRO, Luís Alberto. Quitéria, uma santa da Lusitânia nas terras de Entre-Douro-e-Minho. Cultura Revista de História e Teoria das Ideias. V.27. 2010. P. 156. 87 II Congresso Internacional Sobre Culturas 219 Sendo assim, Santa Quitéria teria nascido no norte de Portugal perto da cidade de Braga, durante a ocupação da Península Ibérica pelos romanos. Seu pai era romano que via no cristianismo uma ameaça às instituições do império. É também consensual que nasceu de um parto com mais oito irmãs, fato visto como um mau presságio na época e que levou a mãe a renegá-las. As crianças foram salvas pela criada e entregues ao arcebispo de Braga, Santo Ovídeo. Quando o pai toma conhecimento das filhas anos depois, obrigara-lhes a renunciarem ao cristianismo. E, por não conseguir converter as filhas, condena-as a morte, sendo Santa Quitéria decapitada. Desta forma, é comum encontrar sua imagem carregando a própria cabeça, pois teria caminhado com a cabeça nas mãos de Pombeiro até o lugar onde queria ser enterrada, hoje em Felgueiras. Ali se preserva o seu Santuário com oito passos, todos representando cenas da vida da jovem, despertando forte devoção. Anualmente no mês de maio acontece a festa em sua honra com a tradicional romaria, onde se reza o terço e as novenas, organizam procissões e um coral de mulheres percorre os passos entoando músicas religiosas, unindo moradores da região e turistas. Capelas, imagens, festas, romarias, novenas, procissões, orações e até ex-votos são dirigidos a Santa Quitéria. Curioso observar, pois também a invocam como protetora dos loucos e das doenças raivosas. Sendo assim, em algumas de suas representações vem acompanhada por um ou mais cães, como a Santa Quitéria de Soruhuela del Guadalimar, na Espanha. SANTA QUITÉRIA EM POMBEIRO DA BEIRA Pombeiro da Beira está a 13 km do Conselho de Arganil, com uma população de aproximadamente 1.500 habitantes espalhados por 31 lugarejos. Acredita-se que nesta região teria ocorrido o martírio de Santa Quitéria e seu culto iniciado por volta do século XVI. A capela de Santa Quitéria ali existente é datada do início do século XVII e situa-se a 3 km do centro, na Serra do Salgueiral. Segundo o morador local Antônio Duarte: “a capela tinha lá uma legenda que datava de 1640, mas quando a restauraram não tiveram atenção à legenda, que estava mal escrita, mas estava lá. Viraram a pedra II Congresso Internacional Sobre Culturas 220 ao contrário e a legenda ficou para dentro”89. Ainda hoje, Santa Quitéria é venerada como protetora “dos mordidos das coisas danadas e conhecida por curar angústias e tristezas do coração”. Anualmente, no dia 01 de novembro realiza-se a festa em homenagem a Santa Quitéria, junto com a Feira, movimentando os arredores da capela com barracas, pessoas, comidas e produtos típicos da região. Sobre a festa, Ventura escreveu o livro “Festa de Santa Quitéria: tradição religiosa e gastronômica”, em que destaca a sua tradição e o seu potencial turístico. “O mordomo José Maria Dias Ferrão confirma que a tradição remonta ao século XVII, e que ao local afluía grande número de romeiros, atraídos pela paisagem, mas também pelos produtos comercializados, como o eram as frutas próprias da época outonal (lamentando o desaparecimento da castanha longal); as alfaias agrícolas, obra dos ferreiros das vizinhanças, as fazendas de lã da Serra da Estrela; os tecidos de algodão do norte; o calçado de São João da Madeira, as quinquilharias e objetos de ouro “com que se adornam as gentis raparigas”; o Borda d´Água de Coimbra; e, especialmente, a carne de porco, com o lombo a ser feito em “torresmos” que ali se “preparam e comem em merendas familiares”, acompanhadas de vinho novo.”90 Isabel Nunes Dias91 fez um interessante estudo misturando o “sagrado e o profano” com roteiros turísticos-religiosos, e apontou a “Festa de Santa Quitéria de Pombeiro da Beira” como um incidente diretamente ligado ao desenvolvimento local. Para o presidente da Câmara de Arganil, Ricardo Pereira Alves em entrevista ao “Diário As Beiras”92, a Feira de Santa Quitéria é uma iniciativa que assume particular relevância no âmbito do turismo religioso, potenciando a visita de milhares de turistas ao conselho. Além disso, “é um espaço de comercialização de produtos endógenos, importante para promover o conselho e, simultaneamente, gerar riquezas”. 89 Os Columbinos. Santa Quitéria: história, lenda e tradição. Pombeiro da Beira. Ed. Lit. Associação Juvenil os Columbinos. 2000. Antônio Duarte, morador de Salgueiral, entrevista feita por Sara Pedroso em 1997.p.10. 90 VENTURA, A. C. Quaresma. Festa de Santa Quitéria: tradição religiosa e gastronômica. Pombeiro da Beira: Junta da Freguesia, 2010. P.22. 91 Isabel Nunes Dias em sua tese “Turismo Cultural e Religioso no Distrito de Coimbra: Mosteiros e Conventos: Viagem em entre o Sagrado e Profano”91. Outubro de 2010. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. P.131 92 Jornal Diário As Beiras. 31 de outubro de 2015. II Congresso Internacional Sobre Culturas 221 SANTA QUITÉRIA EM TERRAS TROPICAIS “A religião, mais que a própria língua foi o cimento que amalgamou as raças e unificou o vasto território do Brasil”93. A Igreja Católica com profundas raízes em Portugal desembarcou no Brasil com a missão de transplantar os dogmas cristãos e organizar a nova cultura que aqui se formava. Em terras desconhecidas, índios, africanos e portugueses compartilhavam espaços e seguiam seus padrões culturais. Santa Quitéria chegou com os portugueses e encontrou berço na devoção popular nos estados do Paraná, Maranhão, Pernambuco e Ceará. Em Frexeiras, Pernambuco, Santa Quitéria é invocada para as mais diversas curas e milagres, recebendo milhares de devotos em romarias durante todo ano. Em Minas Gerais, a santa mártir bracarense está presente em: Diamantina, Catas Altas, Esmeraldas, Boa Vista, Ouro Preto e Congonhas. Todas estas regiões são marcadas pela extração de pedras preciosas, fato que pode explicar Santa Quitéria ser popularmente conhecida como a “protetora dos mineradores”. Em Ouro Preto, há menções a uma ermida construída nos primórdios de sua povoação, dedicada “à augusta e odorífera flor de Portugal”, no morro de Santa Quitéria, hoje aterrado com a Praça Tiradentes. Entretanto, não temos estudos significativos sobre esta, sabe-se apenas que ela teria cedido o seu lugar ainda no início do século XVIII para a Irmandade do Carmo, contanto que a imagem da padroeira fosse colocada no altar-mor da nova igreja. Verdade ou não, a capela de Santa Quitéria não mais existe, mas sua escultura está lá na Igreja do Carmo e a ela são oferecidas missas e orações. O antigo arraial da Boa Vista A capela de Santa Quitéria da Boa Vista pertencente à Paróquia do Pilar de Ouro Preto, possui registro desde 1725 e fica localizada no caminho-tronco para antiga Vila Rica. Atualmente resiste às intempéries, mas já foi lugar de destaque. É sabido que Boa Vista era uma região estratégica e servia de paragem para os forasteiros que localizavam os vales do Rio Doce, o Rio das Velhas e o Vale do Rio Paraopeba, além de avistarem os Picos de Itabirito e do Itacolomy, importante referencial geográfico de 93 COELHO, Beatriz. Estudo atual da conservação do patrimônio escultórico no Brasil. 2011.P.7. II Congresso Internacional Sobre Culturas 222 Ouro Preto. Sua terra é rica em topázio imperial e possui registros de extração desde o início do século XIX94. Passaram pela região alguns viajantes estrangeiros, como o barão Wilhelm Ludwig von Eschwege em 1810, o naturalista francês Saint-Hillaire95 entre 1816 a 1822, Johann Emanuel Pohl entre 1817 e 1822 e o inglês Robert Walsh. Estes apontaram, em seus escritos a extensão das terras, a intensa atividade mineradora, as fazendas, a quantidade de escravos e a capela ali existente. No Centro de Estudo do Ciclo do Ouro, instalado na Casa dos Contos em Ouro Preto, encontramos uma escritura de demarcação das terras da Boa Vista pertencentes ao Reverendo Padre Valentim Soares Couto, datada de 16 de julho de 1726. Encontramos na Revista do IPHAN de 1941, os primeiros aforramentos e ranchos de Ouro Preto, e o localizamos com “três braças no arrayal dos Paulistas”96 no bairro Antônio Dias de Ouro Preto, já no ano de 1719. No Arquivo Nacional da Torre do Tombo, há uma ação para “receber a herança de seu irmão o Padre Valentim Soares de Couto, também natural de Lobão, falecido no sítio da Boa Vista, freguesia de Nossa Senhora do Pilar da Vila Rica de Ouro Preto, Brasil no ano de 1754”. Este documento faz menção ao vilarejo Lobão e a família portuguesa do padre. Com estas fontes em mãos indagamos: Quem foi o Padre Valentim? Teria ele trazido do além-mar a devoção a Santa Quitéria? Concluímos em primeira instância que o padre Valentim Soares Couto, homem culto, nasceu no norte de Portugal, na região de Santa Maria da Feira e, no ano de 1719, já se encontrava em terras mineiras com habitação em Ouro Preto, no estado de Minas Gerais, permanecendo como capelão da capela de Santa Quitéria até a sua morte, no ano de 1754. Valores e sentidos culturais Arquitetonicamente a capela de Santa Quitéria é simples, constitui-se de um bloco quadrangular com volumes compactos e uma composição retilínea. É singela, mas podemos imaginar como seria a maioria dos templos religiosos construídos naquela época de capitanias hereditárias e dos primeiros governos-gerais no Brasil. 94 BOHRER, Alex Fernandes. Ouro Preto, um novo olhar. São Paulo: Scortecci, 2011.P.181. HILLAIRE, Saint. Viagens pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais; tradução de Vivaldi Moreira. Belo Horizonte. Ed. Itatiaia. 1975. P.68-69. 96 Revista do IPHAN. M.5. Ano de 1941. P.241. 95 II Congresso Internacional Sobre Culturas 223 “A natureza afetiva do seu propósito é essencial: não se trata de apresentar, de dar uma informação neutra, mas de tocar, pela emoção, uma memória viva. [...] A especificidade do monumento deve-se precisamente ao seu modo de atuação sobre a memória. Não apenas ele a trabalha e a mobiliza pela mediação da afetividade, de forma que lembre o passado fazendo-o vibrar como se fosse presente. Mas esse passado invocado, convocado, de certa forma encantado, não é um passado qualquer: ele é localizado e selecionado para fins vitais, na medida em que pode, de forma direta, contribuir para manter e preservar a identidade de uma comunidade étnica ou religiosa, nacional, tribal ou familiar”97. No seu interior possui dois retábulos laterais, onde outrora abrigavam as imagens: do Sagrado Coração de Jesus; de Santa Efigênia, São Benedito, Nossa Senhora do Rosário e São Sebastião; no retábulo da capela-mor, ficava a imagem de origem portuguesa, representando Santa Quitéria. Atualmente todas elas estão resguardadas no acervo do Museu do Pilar, em Ouro Preto. A imagem que representa Santa Quitéria é uma bela escultura de vulto policromada, datada de 1700. Em terras mineiras é reconhecida como a protetora dos mineradores, desta forma, possui como atributos o livro e a palma, mas o culto local, sobretudo pela iniciativa dos garimpeiros, concedeu à Santa, novos emblemas como os brincos e o colar de topázio imperial. Suas vestimentas são das cores, azul, branca e vermelha, com arremates em douramento. Anualmente, no dia em homenagem à Santa Quitéria, a capela se transforma pelos moradores de Rodrigo Silva para receber a escultura da santa padroeira e honrar a jovem mártir. Os festejos começam dias antes com a preparação do local, onde realizam uma espécie de conservação e pequenos reparos. Devotos de Santa Quitéria retornam no Alto da Boa Vista, se apropriam do espaço ressignificando-o e, ao mesmo tempo, reinventando suas tradições, mantendo-as vivas. Vale destacar que, diferentemente da Festa de Pombeiro da Beira que é preservada e incentivada, a festa da Boa Vista é preparada com muito esforço por “Quitérias”. São 15 mulheres que organizam toda a manifestação religiosa. Não contam com auxílio de órgãos públicos e nem de empresas particulares, não atraem milhares de turistas e nem participam da indústria cultural, mas através de doações dos moradores de Rodrigo Silva, dão continuidade à tradição. Em 2006, a Prefeitura de 97 CHOY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. 4ºed. – São Paulo; Estação Liberdade: UNESP, 2006. P.18. II Congresso Internacional Sobre Culturas 224 Ouro Preto inventariou a Festa a pedido da comunidade como patrimônio imaterial municipal, mas o processo ainda não foi concluído. A capela também está na lista para ser patrimonializada. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste estudo tentamos elucidar a religiosidade como uma construção humana, presente no diálogo entre sociedades do além ao aquém-mar, representada na figura de Santa Quitéria. Através de seus significados e sentidos, acreditamos ser possível compreender o imaginário social de outro tempo e espaço geográfico, assim como sua permanência em algumas localidades, como em Boa Vista e Pombeiro da Beira. Com suas tradicionais festas em homenagem a uma jovem mártir bracarense, estas comunidades, cada qual com suas particularidades, mantêm sua memória viva. O fato da devoção à Santa Quitéria fazer sentido tanto para a comunidade de Pombeiro como para a comunidade de Rodrigo Silva, revela não apenas a continuidade histórica de suas expressões simbólicas, mas também a capacidade de transformação e ressignificação dos seus elementos essenciais. Assim como observamos em Pombeiro da Beira, além reunir turistas e moradores locais sociabilizando-os, conservando e perpetuando a tradição, o culto e a devoção religiosa, pode contribuir para o desenvolvimento local. REFERÊNCIA ABREU, Pedro Henriques de - A vida e martyrio de S. Quitéria e de suas oito irmãs, todas nacidas de hum parto, portuguezas e prothomartyres de Hespanha, Coimbra, por Manuel Carvalho, 1651 [B.N.L.: F. 237]. BAZIN, Germain. História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989. BELTING, Hans. Semelhança e Presença a história da imagem antes da era da arte. Trad. de Maria Beatriz Mello e Souza. Rio de Janeiro: Ars UREBE, 2010. BOHRER, Alex Fernandes. Ouro Preto, um novo olhar. 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II Congresso Internacional Sobre Culturas 226 ENTRE A FOTOGRAFIA E A LITERATURA: CIDADE E SERTÃO EM PALAVRAS E IMAGENS Victor Godoi Castro98 Marília Flores Seixas de Oliveira99 RESUMO Este trabalho discute as formas pelas quais a oposição entre a cidade e o sertão é representada em dois textos: o romance Grande Sertão: Veredas (1956), de João Guimarães Rosa, e o livro A João Guimarães Rosa (1966), de Maureen Bisilliat, que associa imagens fotográficas e trechos literários de Rosa. Bisilliat é uma fotógrafa britânica que vive no Brasil desde 1950 e que produziu ensaios fotográficos a partir de obras de escritores brasileiros, articulando as linguagens da fotografia e da literatura em busca do que ela chama de “equivalências fotográficas”. Utilizando a proposição teórico-metodológica de Kossoy (2002), busca-se interpretar as fotografias de Maureen como representantes de um olhar do urbano sobre o sertão, construído a partir das memórias do relato de Riobaldo em Grande Sertão: Veredas. Palavras-chave: Sertão. Fotografia. Literatura. João Guimarães Rosa. Maureen Bisilliat. INTRODUÇÃO Este trabalho discute as maneiras pelas quais a oposição entre a cidade e o sertão é representada em dois textos: o romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa (publicado em 1956), e o livro A João Guimarães Rosa, de Maureen Bisilliat (publicado em 1969), que associa imagens fotográficas a trechos do romance de Rosa. Bisilliat é uma fotógrafa britânica que vive no Brasil desde os anos 1950 e produziu ensaios fotográficos a partir de obras de escritores brasileiros, articulando as linguagens da fotografia e da literatura em busca do que ela chama de “equivalências fotográficas”. Na obra A João Guimarães Rosa, Bisilliat apresenta fotografias sobre o sertão que dialogam com o livro de Guimarães Rosa e que revelam um universo em que a luz é intensa e as sombras alongadas, quase vivas, um lugar em movimento constante, que tem a morte à espreita. Às fotos acompanham fragmentos do livro de Guimarães Rosa, cuidadosamente escolhidos, como legenda e guia para uma ressignificação de pessoas e locais fotografados. Assim, torna-se possível, ao leitor, 98 Victor Godoi Castro é Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras: Cultura, Educação e Linguagens da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. E-mail: victor.godoicastro@gmail.com. 99 Marília Flores Seixas de Oliveira é doutora em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília e professora titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e professora do Programa de Pós-Graduação em Letras: Cultura, Educação e Linguagens da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. E-mail: marilia.flores.seixas@gmail.com. II Congresso Internacional Sobre Culturas 227 conhecer, por imagens e textos, aspectos do sertão, essa região imaginada que, segundo Custódia Sena (2010) é “uma das mais poderosas representações construídas pela cultura brasileira”. Para discutir os processos de construção de realidades no registro fotográfico, recorre-se a Kossoy (2002), que afirma que a fotografia tem uma realidade própria que não corresponde necessariamente à realidade do assunto, mas que é construída pelo fotógrafo. Pretende-se, assim, propor a leitura do livro A João Guimarães Rosa como uma re-escritura do romance de Rosa pelos olhos do interlocutor urbano. O SERTÃO ESTÁ EM TODA PARTE? O sertão é uma região de localização geográfica incerta. Guimarães Rosa, na voz de Riobaldo, inicia o romance evidenciando essa falta de delimitação. “O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os camposgerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima.” (ROSA, 1967, p. 8). A imprecisão do lugar do sertão se evidencia ainda, em outros trechos, como quando afirma que o sertão “estando em toda parte não está nunca onde está” (ROSA, 1967, p. 191). A palavra sertão é utilizada para designar o “longe”, o “desconhecido”, o “longínquo” e “selvagem”, sempre em oposição ao ponto de vista do enunciador, que se encontra no local “próximo”, “conhecido”, no local “civilizado” (TELES, 2002). A Carta de Pero Vaz de Caminha é considerada o primeiro documento a registrar a palavra no Brasil. Em sua forma arcaica, “sartaão”, é usada para referir-se às terras desconhecidas/interiores do continente recém-descoberto. No início do período colonial, sertão era toda terra situada 100 metros além da faixa litorânea. O processo de colonização e de posterior urbanização do país foi empurrando o sertão para os locais “decadentes, atrasados ou periféricos” (SENA, 2010). A partir do século XX, o sertão passou a ser identificado com as regiões do norte de Minas Gerais, o CentroOeste e o Nordeste. Em suas reflexões sobre o sertão e a cidade, KOEHLER (2007) reforça a oposição entre sertão e litoral, mostrando como essa ideia foi amplamente utilizada para a construção da consciência nacional. Ao definir o sertão como bárbaro, incivilizado, somos capazes de nos reconhecer enquanto civilização. Ou, como propõe Suarez, o sertão e o sertanejo atuam “como cenário e personagem central de uma II Congresso Internacional Sobre Culturas 228 narrativa mítica que conta o surgimento dramático da civilização na nação brasileira.” (SUAREZ, 1998). O sertão é, portanto, uma região imaginária, um espaço de mito, onde a dinâmica da história não tem efeito. Um espaço de “pura subjetividade” e, é por isso que as artes e a literatura são capazes de produzir obras que “conformam o imaginário nacional” (SENA, 2010). Já Willi Bolle (2004) considera que a posição de antagonismo entre o rural e o urbano, que se tornou central nas discussões sobre a formação do Brasil ao longo do século XX (numa tradição que se inicia com Os Sertões, de Euclides da Cunha, e está presente também em Raízes do Brasil de Sérgio Buarque), é equivocada ou, pelo menos, incompleta. O equívoco estaria em abordar esta relação como o confronto de duas sociedades diferentes, e, portanto, não percebê-la como reflexo de conflitos econômicos e sociais que se reproduzem no conjunto da sociedade brasileira. Dentro desta perspectiva, o romance de Rosa seria um retrato da segmentação social no país entre o fazendeiro “sujeito da terra definitivo” e o jagunço que “não passa de homem muito provisório” (ROSA apud BOLLE, 2004, p. 288). Nesse sentido, Grande Sertão: Veredas é estruturado como um diálogo entre um sertanejo letrado e um doutor da cidade. Na construção dessa situação narrativa consiste (...) a diferença qualitativa do romance de Guimarães Rosa em relação às interpretações do Brasil por parte de Euclides e de Sérgio Buarque. A discussão das relações antagônicas e dialéticas entre Cidade e Sertão (...) não ocorre mais somente no plano dos argumentos, mas se instaura no interior da forma do discurso. (BOLLE, 2004, p. 315). “O SENHOR É DE FORA, MEU AMIGO MAS MEU ESTRANHO” (ROSA, 2006, P. 29) A oposição entre o sertão de Riobaldo e a cidade, representada pelo interlocutor urbano, determina o tom da narrativa em Grande Sertão: Veredas. Sperber (1982) considera que a presença desse homo urbano tem função de legitimar a narrativa de Riobaldo: “Como a narrativa se inaugura com a interpelação, tudo o que for contado será inquestionável, porque inquestionado. (...) O receptor invisível se sobrenaturaliza e autoriza o relato.” (SPERBER, 1982:72). No entanto, este interlocutor urbano permanece “oculto” e nunca se manifesta abertamente no romance. II Congresso Internacional Sobre Culturas 229 A palavra implícita representa a outra face do eu que fala. É um outro, que é ele mesmo. É uma pessoa ausente que se converte em destinatário da mensagem conativa. “O destinatário, nós leitores e o interlocutor, transforma-se em cúmplice, em responsável, em participante da narrativa. É um tu que representa o homem urbano e culto.” (SPERBER, 1982, p. 73). O sertão, enquanto narrador, se constrói, a partir do reconhecimento do outro, seu oposto que é, ao mesmo tempo, a outra face de sua imagem. O diálogo/monólogo entre Riobaldo e interlocutor urbano representa a exposição do Brasil arcaico para o Brasil moderno que permite a este enxergar em si a permanência das velhas estruturas de poder, proporcionando uma “autorreflexão da civilização urbana sobre suas violentas contradições” (BOLLE, 2004, p. 319). Em A João Guimarães Rosa, há uma inversão dos papéis: a narrativa sobre o sertão que se apresenta através das fotografias é construída a partir do olhar de um interlocutor urbano, a autora-fotógrafa, Maureen Bisilliat, que também se mantém oculta por detrás da câmera fotográfica. Desta vez, porém, o interlocutor não existe como meio para a construção da narrativa, mas é sujeito ativo na produção de uma narrativa verbo-visual do sertão. De origem inglesa e naturalizada brasileira, Sheila Maureen Bisilliat é uma fotógrafa profissional que vive no Brasil desde 1952. Filha de pai diplomata e mãe pintora, morou em diversos países antes de se estabelecer em São Paulo, para onde se mudou em companhia de seu primeiro marido, o fotógrafo espanhol José Antonio Carbonell. Iniciou sua carreira nas artes plásticas, passando à fotografia no início dos anos 1960, com participações importantes na renovação estilística do fotojornalismo brasileiro, como parte da equipe da revista Realidade. O interesse pela articulação entre as linguagens da fotografia e da literatura se manifesta quando tem contato mais próximo com a obra de Jorge Amado, que inspirou sua busca de “equivalências fotográficas”, produzindo ensaios fotográficos a partir de obras de escritores nacionais. João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Adélia Prado e Mário de Andrade também foram tematizadas pela fotógrafa em seus trabalhos. Realizou ensaios fotográficos sobre os índios xinguanos e o Parque Nacional do Xingu (Detalhes de uma cultura, de 1978, e Território Tribal, de 1979), e foi curadora do Pavilhão da Criatividade da Fundação Memorial da América Latina, desde sua criação até 2011. Sua obra completa se encontra, desde 2003, no acervo do Instituto Moreira Salles. II Congresso Internacional Sobre Culturas 230 Tal como o interlocutor urbano de Grande Sertão: Veredas, Maureen Bisilliat é uma forasteira “com toda leitura e suma doutoração” (ROSA, 2006, p. 12). Conhecedora da história de Riobaldo, seu encontro com o sertão equivale-se a um reencontro: a narrativa atua como um filtro pelo qual será feito o registro de suas imagens. A fotógrafa atua como um interlocutor que reescreve, pelo seu olhar, o romance de Guimarães Rosa. A REESCRITA FOTOGRÁFICA DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS Neste trabalho, duas fotografias de Bisilliat são analisadas com base na proposta metodológica de KOSSOY (2002), com a realização do desmonte do signo fotográfico na intenção de decodificar a realidade exterior do documento fotográfico e do suporte que o contém, e decifrar a realidade interna da representação fotográfica, buscando compreender a história própria do assunto. Sobre as diferentes realidades da fotografia, Kossoy explica: Seria esta, enfim, a realidade da fotografia: uma realidade moldável em sua produção, fluida em sua percepção, plena de verdades explícitas (análogas, sua realidade exterior) e de segredos implícitos (sua história particular, sua realidade interior), documental porém imaginária. Tratamos, pois, de uma expressão peculiar que, por possibilitar inúmeras representações/ interpretações, realimenta o imaginário num processo sucessivo e interminável de construção e criação de novas realidades. (KOSSOY, 2002, p. 47-48). A análise iconográfica é sugerida para apreendermos a realidade exterior da fotografia. Nessa análise, realiza-se uma “arqueologia” do documento, buscando identificar os dados concretos que digam a respeito do processo de produção. A fotografia é uma representação a partir do real, um aspecto da realidade que é selecionado e organizado a partir de seus filtros culturais e estéticos - ideológicos - do fotógrafo (KOSSOY, 2002). Através da interpretação iconológica buscamos decifrar o significado da fotografia, sua realidade interna desmontando o processo de criação que deu origem à representação sobre a qual nos debruçamos. As fotografias de A João Guimarães Rosa foram produzidas em uma série de viagens que Maureen realizou ao norte de Minas Gerais ao longo dos anos 60. A leitura de Grande Sertão: Veredas impressionou tanto a fotógrafa que ela foi procurar por João Guimarães Rosa (então funcionário do Serviço de Demarcação de Fronteiras II Congresso Internacional Sobre Culturas 231 do Itamaraty) e foi, por fim, instigada por ele a percorrer os caminhos do romance para, assim, reconhecer o que havia de ficção e de realidade na história. A primeira viagem se deu em 1966, partindo do Rio de Janeiro para Cordisburgo, terra do autor, e de lá, para Andrequicé. Os roteiros sugeridos por Rosa foram levando a fotógrafa a se adentrar pela região no sentido Norte, chegando até Januária. Ao retornar de cada viagem, ela se encontrava novamente com Rosa, levando para ele um maço de fotografias e "atrás de cada uma, ele anotava detalhes - nome, idade, solteiro, casado ou viúvo, lugar de encontro, como e quando etc. -, recebendo através das imagens mensagens dos gerais" (BISILLIAT, 2013). A atribuição dos trechos que acompanham as fotografias foi feita por Maureen posteriormente, durante o processo de edição do livro. Para a presente análise foram escolhidas duas fotografias (Figuras 1 e 2) que se encontram no livro A João Guimarães Rosa (BISILLIAT, 1969), organizadas verticalmente (à página 48), ficando abaixo da Figura 2 a legenda: “Os dias que são passados vão indo em fila para o sertão”. Ambas fotografias são em preto-e-branco, valorizando os contrastes de luz e sombra produzidos pelo forte sol do sertão que acentuam seu efeito dramático. São um convite ao território da subjetividade, permitindo que a memória participe do processo de apreensão dessas imagens. A utilização de legendas tem papel fundamental na construção da realidade interna da fotografia, pois possibilita a elaboração de um sentido diverso daquele registrado. O processo de pós-produção das fotografias resulta, inevitavelmente, em alterações de seus significados “em função do título que recebem, dos textos que ‘ilustram’, das legendas que as acompanham, da forma como são paginadas, dos contrapontos que estabelecem quando diagramadas com outras fotos etc.” (KOSSOY, 2002, p. 54). Na análise do trabalho de Maureen Bisilliat, é particularmente importante ter consciência desse aspecto, pois além da utilização de legendas, a posição e a ordem das fotografias também são decididas de forma a construírem uma narrativa. II Congresso Internacional Sobre Culturas 232 Figura 1 - Foto de Maureen Bisilliat / Memória e afetividade evocadas em silhueta feminina Figura 2 - Foto de Maureen Bisilliat / Imagem quase onírica de animais sob a luz poente Para auxiliar na análise, tomemos o trecho de Grande Sertão: Veredas (ROSA, 2006) de onde foi retirada a legenda para estas fotografias: Nhorinhá puta e bela. E ela rebrilhava, para mim, feito itamotinga. Uns talismãs. A mocinha Miosótis? Não. A Rosauarda. Me alembrei dela; todas as minhas lembranças eu queria comigo. Os dias que são passados vão indo em fila para o sertão. Voltam, como os cavalos! os cavaleiros na madrugada - como os cavalos se arraçôam. (ROSA, 2006:214). Nesse momento do romance, Riobaldo, com nostalgia, se recorda de seus antigos amores. Evidencia o papel importante da memória para o protagonista que, ao narrar a história de sua vida, busca encontrar um sentido naquilo que viveu. “A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam” (ROSA, 2006, p. 70). Da II Congresso Internacional Sobre Culturas 233 garota da Figura 1, não temos nenhuma informação, ou mesmo uma visão nítida de seu semblante. Resta-nos a imagem de seu negro perfil, à semelhança de um camafeu, uma leve evocação de sua existência, o lenço sobre cabeça contra o sol que se põe. De forma análoga, para o interlocutor de Riobaldo, os personagens que lhe são apresentados ao longo da narrativa não possuem feições definidas, são silhuetas iluminadas apenas por indícios de outros rostos já vistos que possam preencher as lacunas em sua memória. Na Figura 2, um pequeno grupo de bois ocupa o centro da fotografia, que no geral apresenta a mesma conformação da anterior. A luz do sol produz um efeito sobre a lente, evidenciando os raios solares, de modo quase onírico. Assemelha-se a uma imagem incompleta, uma recordação fugidia da qual é possível distinguir pouco além de seus contornos. As duas fotografias de Maureen Bisilliat apresentam como realidade interna uma interpretação do sertão que surge a partir da memória sobre o romance, o olhar do homo urbano que tem como filtro a dimensão sentimental e metafísica proporcionada pelo livro de Rosa. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir da compreensão da subjetividade do ato fotográfico e das possibilidades que o fotógrafo tem de criar novas realidades através de seu olhar particular e do trabalho de pós-produção, observamos que em A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat constrói uma narrativa fotográfica que se encontra entremeada pelas sutilezas da memória e das afetividades, permitindo associar a autora ao interlocutor urbano de Grande Sertão: Veredas. Assim, a fotógrafa atua como uma expressão deste em uma tentativa de reconstituir a narrativa de Riobaldo que, no entanto, produz um relato apenas parcialmente iluminado, ponteado de lacunas correspondentes às pessoas e lugares que ambos não puderam conhecer. Agradecimentos Agradecemos à FAPESB pelo apoio concedido à pesquisa em forma de bolsa de mestrado. II Congresso Internacional Sobre Culturas 234 REFERÊNCIAS BISILLIAT, Maureen. A João Guimarães Rosa. São Paulo: Gráficos Brunner, 1969. __________. A João Guimarães Rosa. Disponível em: http://blogdoims.com.br/a-joaoguimaraes-rosa-por-maureen-bisilliat/. Acesso em outubro de 2016. BOLLE, Willi. grandesertão.br. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2004. KOEHLER, Jaqueline. Lugar sertão se divulga: é onde a cidade carece de fechos. 2007. 138.f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, 2007. KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê, 1999. ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Ed. Comemorativa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. SENA, Custódia Selma. Uma narrativa mítica do sertão. Avá. Revista de Antropologia [online] 2010, (Julio-Diciembre). Disponível em: <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=169020996005>. Acesso em 20/10/2015. SPERBER, Suzi Frankl. Guimarães Rosa, signo e sentimento. São Paulo: Ática, 1982. SUAREZ, Mireya. 1998, Sertanejo: Um personagem mítico. Goiânia: Sociedade e Cultura. Vol.1, n.1. TELES, Gilberto Mendonça. O lu(g)ar dos sertões. In: O clarim e a oração: cem anos de Os Sertões. Organizador Rinaldo de Fernandes; ilustrações T. Gaudenzi. São Paulo: Geração Editorial, 2002. pp. 263-302. II Congresso Internacional Sobre Culturas 235 MUSEU VIRTUAL DOS GRAFFITI FEITOS POR MULHERES Melissa Santos dos Santos100 RESUMO O museu virtual do graffiti feito por Mulheres é definido como uma plataforma colaborativa que atende o conceito de museus, tendo como objeto a produção de graffiti feitos por mulheres. Tornando-se um espaço de diálogo que busca a realização de um intercâmbio cultural e artístico entre mulheres de todo o mundo e de apreciadores desta produção artística. Neste espaço a mulher torna-se a protagonista, onde é notória a maior presença e atuação masculina. O graffiti aqui, não é visto apenas como forma de arte, ou posicionamento diante as adversidades da sociedade, mas principalmente como objeto museal, capaz de narrar os acontecimentos sociais. Esta arte, que muitas vezes foi tratada como vandalismo, hoje, marca presença na cidade do Salvador a cidade do Porto, em Portugal, afirmando a existências de seus produtores e de seus ideais. Palavras chaves: museu digital; mulheres; graffiti; Salvador; Portugal; arte. DEFINIÇÃO DE MUSEU VIRTUAL O Museu Virtual dos Graffiti feitos por mulheres busca envolver um público amplo e favorecer as trocas culturais, a princípio, no âmbito cultural lusófono interessado ou produtor deste tipo de manifestação artística. Antes de iniciarmos nossa discussão é necessário esclarecermos alguns conceitos, a definição de museu, que segundo a Lei nº 11.904, de 14 de janeiro de 2009 se caracteriza como: [...] instituições sem fins lucrativos que conservam, investigam, comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação, contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer outra natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento. Esta definição colabora para a compreensão de que a instituição museal, busca uma relação entre sociedade, território e patrimônio de forma dinâmica, onde existe um sistema de musealização que auxilia esta troca de informações. Sobre as funções comunicacionais dos museus, Castells (2011, p. 16), comenta: 100 Bacharel em Museologia pela Universidade Federal da Bahia. Mestranda do Programa de Pós Graduação em Museologia (PPGMUSEO) – UFBA. Linha 2 – Comunicação e Patrimônio. Email: melissa.santos@ufba.br II Congresso Internacional Sobre Culturas 236 [...] se neste ponto não houver articulação, e os museus se constituírem meramente em arquivos e projeções, eles perdem o contato com a vida. São mausoléus da cultura e não meios de comunicação. Portanto, os museus, como lembretes da temporalidade, devem ser capazes de articular a cultura viva, a prática do presente, com o patrimônio cultural, não só no que se refere à arte, mas também no que diz respeito à experiência humana. Entende-se então, que o museu, tanto físico quanto virtual, atende as demandas museológicas, inclusive o fator comunicacional. Ao analisarmos a utilização destas instituições pelos ciberespaços, é notório que existe um trabalho consistente referente a estas produções. Para compreendermos este espaço, Cunha (2012, p. 242) define o Museu Digital (MD) como: Um elemento que é permanente, relacionado à estruturação da instituição, é a cadeia operatória da Museologia, [...]. Nesta cadeia operatória encontram-se ações relacionadas à Salvaguarda (aquisição, estudo, documentação, tratamento e preservação) e Comunicação (difusão, exposição, ação educativa e cultural, publicações) com atividades especificas para sua operacionalização. Um MD [museu digital] comporta todas estas ações e em certo sentido, tem potencialidades de realizar algumas delas de forma mais ampla e dinâmica, como, por exemplo, a difusão. Ou seja, o museu virtual, se difunde em um espaço, antes pouco explorado, não deixando de realizar suas funções, algumas das quais podem ser melhor exploradas no ciberespaço. A UTILIZAÇÃO DO CIBERESPAÇO PELOS MUSEUS Iniciamos este trabalho avaliando os fundamentos técnicos e teóricos da museologia e experiências anteriores na criação de museus e/ou processos museológicos online, desde a criação de banco de dados, exposições e ações culturais online desenvolvidas por museus presenciais, museus exclusivamente online e até experiências mais recentes de criação de museus digitais comunitários em aplicativos móveis como o caso do museu digital da Associação cultural carnavalesca Bloco Afro Ilê Aiyê. Segundo alguns teóricos, e de acordo com os artigos da conferência, Museums and Web101, existem três categorias de museus digitais, são eles os “folhetos 101 Museums and Web são conferências que tem como tema principal os museus ligados às novas tecnologias. São realizadas anualmente em diversos lugares do mundo; II Congresso Internacional Sobre Culturas 237 eletrônicos”, o “museu no mundo virtual”, e os “verdadeiros interativos”, é nesta última categoria que o Museu Virtual dos Graffiti feitos por mulheres se encaixa. Para Castells, (2011, p.8) Museus virtuais são mais e mais comuns, e a articulação entre o real e o virtual, o físico e o simbólico está cada vez mais desenvolvendo novos híbridos culturais que geram a renovação da comunicação cultural no mundo, utilizando novas formas de tecnologia de informação e comunicação. A utilização do ciberespaço para construção e prolongamento de instituições museais tem se tornado algo comum, como forma de dialogar com os grupos sociais contemporâneos onde se consegue resolver, desenvolver e criar através desta rede de comunicação. Em Salvador podemos observar que a utilização do ciberespaço pelos museus, tem se tornado uma atividade comum, podemos citar o Museu Geológico da Bahia102 que confere ao internauta um tour virtual, podendo ter suas galerias visitadas, colaborando na observação de seu acervo e de sua expografia. Outro museu que podemos exemplificar, é o Museu de Arte Sacra103 da UFBA, que a partir da digitalização do acervo, expôs com o uso de fotografias seus espaços e detalhes de algumas peças encontradas no museu. Nosso acervo existe, pelas galerias urbanas, narrando fatos e colorindo muros, porém, devido a característica principal do graffiti, a sua efemeridade, este acervo possui um prazo de existência. Sob circunstancias externas, como plotagens, reformas e até a própria poluição das grandes cidades, o graffiti é apagado, sem o registro fotográfico não seria possível comprovar a existência desta pintura mural. Registrar estes graffiti, já se tornou uma prática comum pelos seus produtores durante a produção e ao encerrá-la, eles os registram como forma de compor seus arquivos pessoais e divulgar seus trabalhos. Com isso coletamos referenciais de sucesso para criar uma experiência de convergência que valorize, preserve e divulgue a produção do graffiti como arte urbana e também, através do viés escolhido, dando visibilidade a mulher artista do graffiti. Tomando como pressuposto a ideia de que o trabalho de musealização confere reconhecimento e provoca identificação do público com os objetos patrimonializados. 102 103 Disponível em: http://www.mgb.ba.gov.br/; Disponível em: http://www.mas.ufba.br/#/home; II Congresso Internacional Sobre Culturas 238 Consideramos ainda que a mídia digital oferece maiores oportunidades, colaborando com a valorização da mulher produtora desta arte. AS MULHERES GRAFITEIRAS Em salvador, elencamos seis grafiteiras com grande produção, Mônica, Chermie, Sista Katia, Kpitú, Talitha e GataX, ao analisarmos suas produções percebemos a valorização dada a mulher nestas pinturas. A figura feminina, presente nesta arte com traços e poses, se mostra dona do seu corpo e evidenciando sua postura diante os problemas sociais. Estas artistas são cidadãs que enfrentam preconceitos das mais variadas formas, porém utilizam a arte pública, como o graffiti, para afirmarem seu local na sociedade e exigirem respeito. Segundo, Machado (2011, p. 38), O graffiti é encarado como forma de reivindicação social ou expressão própria, mas fortemente associado ao género masculino. As mulheres pelo simples acto de fazerem graffiti interrogam e impõem-se fisicamente face a preconceitos sociais num espaço masculino. Com esta acção contrapõem a imagem de fragilidade e delicadeza já pré-definidas pela sociedade [...]. Podemos observar a partir desta colocação que a possibilidade da realização do graffiti, torna-se uma ferramenta reivindicatória para estas mulheres, que se impõe diante uma cultura que tem na sua origem e prática a maior atuação dos homens. Neste universo de produção do graffiti, podemos perceber a ocupação deste espaço por mulheres cada vez mais atuantes, e estas mulheres utilizam temas variados, como o caso da crew104 Guerrila Girls105, que utilizam a arte urbana, a performance, entre outras vertentes da arte, para se posicionarem diante as imposições da sociedade em que vivem. As artistas lusófonas que utilizam o graffiti como forma de expressão, fazem uso desta arte com o mesmo intuito, mostrar para a sociedade a sua existência e buscarem a sua afirmação como grafiteiras dentro da cultura hip hop. 104 Crews são nomes de grupos de amigos que decidem fazer algum tipo de trabalho juntos, normalmente utiliza-se a sigla quando assinada em algum graffiti; 105 Mais informações sobre este grupo disponível em: http://www.guerrillagirls.com/ II Congresso Internacional Sobre Culturas 239 Assim como Salvador, a produção do graffiti em Portugal, não é manifestada a partir de um graffiti de gênero, não é uma tarefa muitas vezes fácil distinguir uma produção feita por uma mulher comparada ao homem. Mas ao observarmos a arte e suas interfaces, percebemos que ela se descaracteriza e quebra os paradigmas antes impostos, a arte não possui gênero pois ela precisa ser acessível a todos. Sendo assim, Machado (2011, p. 40) comenta: No entanto, a sua forma e estrutura, independente da qualidade e do estilo, ainda não parecem suficientes para marcar uma linguagem identificativa do género, ou porque continuam camufladas nos formatos tradicionais masculinos do graffiti, ou porque pouco se interessam por essas questões. Sendo assim, percebemos que a mulher, ao realizar os graffiti em muitos casos, não busca uma diferenciação dentro da cultura hip hop, mas uma aceitação dentro desta cultura. Esta plataforma, busca abarcar o universo da produção do graffiti feminino, inclusive o universo lusófono com o interesse em estabelecer um sistema de classificação de formas e estilos para o estabelecimento de coleções que reflitam os estilos desta manifestação, elencamos categorias e padrões que favoreçam o conhecimento, estímulo à novas produções e a preservação da produção deste tipo de arte urbana alinhada com a cultura hip hop hoje se projeta à outros tipos de grupos e culturas, chegando também a ocupar espaço nos processos de urbanização oficiais como também através de intervenções de caráter artístico, celebrativo e aparecendo em roupas, exposições de arte e espaços internos ou mesmo em campanhas publicitárias. Podemos ter como exemplo, a utilização desta arte no espaço televisivo, como nas novelas. Temos como exemplo a novela Malhação, Rede Globo (2014), que levou para a composição do seu cenário, o graffiti da Panmela Castro. O GRAFFITI COMO OBJETO MUSEAL O Museu Virtual dos Graffiti feitos por mulheres, criado em primeiro momento para realizar o processo de musealização dos graffiti, torna este espaço, um espaço que vai além da salvaguarda destes registros de graffiti, ele torna-se um espaço de diálogo e intercâmbio artístico e cultural entre estas mulheres produtoras e seus espectadores. Castells, (2011, p. 13) comenta: II Congresso Internacional Sobre Culturas 240 A arte sempre foi uma ferramenta para a construção de pontes entre pessoas de diferentes países, culturas, gêneros, classes sociais, grupos étnicos ou posições de poder. A arte sempre foi um protocolo de comunicação capaz de restabelecer a unidade da experiência humana para além da opressão, das diferenças e dos conflitos. Utilizar a internet como espaço para musealização destas obras, é dialogar com formas de comunicações contemporâneas, ao pensarmos que o graffiti é uma arte que se comunica com a sociedade a qual está inserido, e a internet é um espaço onde as trocas de informações são feitas com grande frequência. Esta produção torna-se relevante ao fortalecer a dinamização deste espaço e possibilitar a projeção se seus trabalhos, personalidades e estilos e incrementar as relações sociais, artísticas e acadêmicas desta comunidade para além fronteiras. A METODOLOGIA UTILIZADA PARA AQUISIÇÃO DO ACERVO A pesquisa referente ao graffiti nos permite compreender que a sua produção, é um reflexo da vocação e impulso estético sobre as adversidades da sociedade e do mercado formal de arte, sendo assim, este estilo de arte possui um pendor pela problematização de temas sociais e/ou polêmicos e apresenta sempre recursos inusitados. São também demarcadores de territórios urbanos e de produções artísticas com potencial de produzir identificações e reconhecimento de lugar e projeção de territórios. Assim como na cidade do Porto em Portugal onde o graffiti se tornou um indicador, a cidade de São Paulo no Brasil reconhecida como um polo expressivo do graffiti no plano internacional. Utilizamos os registros fotográficos, como principal suporte deste museu, que contribuirá na preservação deste acervo, devido as grandes possibilidades que a fotografia nos possibilita no âmbito da sua preservação. O diálogo entre museu e a fotografia digital, nos permite o prolongamento da existência dessa arte. Sobre isto Cunha (2012, p. 243), comenta: Museus existem para auxiliar na tarefa de prolongar o tempo de vida dos objetos, entendidos como documentos da história e da memória. (...). Neste ponto, os museus digitais podem constituir-se como locais privilegiados, pois determinados suportes documentais podem ter o seu tempo de vida aumentado, quando processados digitalmente e depositados em arquivos. II Congresso Internacional Sobre Culturas 241 Muitas das grafiteiras e grafiteiros logo após concluírem suas artes, fotografam-nas como forma de registros, que são na maioria das vezes divulgados em redes sociais ou páginas pessoais. Ao observarmos este ato, percebemos que estes registros fotográficos, seriam ideais para este museu e para este tipo de acervo, pois não lhes seriam retiradas as suas características principais, que são a efemeridade e sua posição como arte urbana. O sentido de ser uma arte que deve alcançar público variados se multiplicaria, ocupando novos espaços e novos públicos. Sobre a virtualidade do objeto Levy (1999, p. 47) comenta: É virtual toda entidade “desterritorializada”, capaz de gerar diversas manifestações concretas em diferentes momentos e locais determinados, sem contudo estar ela mesma presa a um lugar ou tempo particular. Observar esta condição de desterritorialização do graffiti, não o retirando do seu local de origem, permitindo este discurso comunicacional a partir de outros meios, é acrescentar à característica de disseminação da arte, mais uma forma de executar sua função, através do registro fotográfico. As fontes fotográficas nos permitem manter as características dos graffiti e ocasionam a possibilidade de serem utilizadas como fontes de pesquisa, sendo uma das funções deste museu, sobre as fontes fotográficas, Kossoy (1941, p.32) comenta: As fontes fotográficas são uma possibilidade de investigação e descoberta que promete frutos na medida em que se tentar sistematizar suas informações, estabelecer metodologias adequadas de pesquisa e análise para a decifração de seus conteúdos e, por consequência, da realidade que os originou. Utilizar o registro fotográfico como objeto passível de musealização é convergir entre processos digitais comuns, com o objeto de fomentar historicamente esta produção artística dando subsídios para uma construção histórica desta produção a partir destas artistas, que muitas vezes são ocultas devido à grande produção de homens desta cultura. II Congresso Internacional Sobre Culturas 242 CONCLUSÃO Destacamos o graffiti como uma produção artística com alto grau de efemeridade, devido a sua localização, justificando-se assim a criação de um espaço virtual para que ocorram os processos de documentação, exposição e para a interação social registros in loco e a troca de informações e coleta de novos registros através de modo colaborativo. Produzindo uma rede de convergência entre o digital e presencial. Esta prática tem o potencial de impulsionar as práticas museais e o pensamento museológico para além dos paradigmas onde os processos de musealização se tornam processos de representação e ressignificação da produção humana atreladas a materialidade, a presença física e a autoridade curatorial de um pesquisador. Desta forma, é cabível a compreensão da pratica do graffiti como patrimônio cultural, sendo ele reflexo de uma ação de contra hegemonia não só no campo das artes, mas também no panorama cultural de uma cidade. REFERENCIAS BRASIL. Lei nº 11.904. Art.1º, de 14 de janeiro de 2009. Institui o Estatuto de Museus e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L11904.htm > Acesso em: 20/10/2016; CASTELLS, Manuel. Museus na era da informação: conectores culturais de tempo e espaço. Revista Musas, Brasília, ano. VII, n.5, 2011b, p. 8-21.; CUNHA, Marcelo Nascimento Bernardo da. Algumas considerações sobre museus digitais (p. 241 – 26), in A política do intangível: museus e patrimônios em nova perspectiva / Livio Sansone (Organizador). – Salvador: Edufba, 2012. 352 p.:il.; HENRIQUES, Rosali. Museus virtuais e cibermuseus: a internet e os museus. Universidade do Porto, Portugal, 2004, 17 p.; KOSSOY, Boris. Fotografia e História. 2 ed. Rev. – São Paulo: Ateliê Editorial, 2001; LÈVY, Pierre. Cibercultura. Tradução Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 2011; MACHADO, Telma Patrícia Abreu. Graffiti Girl: Contributos para uma identidade feminina no contexto da produção de graffiti e de street art em Portugal. 2011. 100 p. Tese (Mestrado em Design da Imagem) – Faculdade de Belas Artes, Universidade do Porto, Portugal II Congresso Internacional Sobre Culturas 243 MULHER E PODER: ENTRELAÇAMENTOS ENTRE GÊNERO E HUMOR EM DILMA BOLADA Adriana Jacob Carneiro106 Resumo Este trabalho pretende investigar os percursos de elaboração da personagem Dilma Bolada no Facebook, com o objetivo de desvelar os princípios que conformam os sentidos de poder desta criação, inspirada na primeira presidenta do Brasil. Nosso intuito é compreender quais imagens em Dilma Bolada elaboram e estabelecem sentidos de poder para a conformação da mulher presidenta. Essa escolha leva em consideração a relevância da personagem nas redes sociais, hoje consideradas um espaço privilegiado de transformação cultural, a partir das novas relações estabelecidas entre os usuários com as mídias sociais. A análise se debruçará sobre um dos momentos mais emblemáticos da recente disputa política no país, o processo de impeachment que culminou com o afastamento da presidenta do cargo, em agosto de 2016. Palavras-chave: Mulher. Poder. Humor. Gênero. Redes sociais. Dilma Bolada. Palavra que se tornou conhecida nos bailes funks do Rio de Janeiro, “bolado” tem origem no universo da religiosidade de matriz africana. Na umbanda e no candomblé, é chamada bolada a pessoa que foi tomada por um espírito ou orixá, mas que não possui o preparo necessário para receber a entidade. Por isso, embola no chão, sem dominar o próprio corpo e a situação, e que luta contra algo que ainda não conhece. Em algumas acepções, bolado significa estar possuído por um espírito maligno ou demônio107, o que pode remeter a uma visão preconceituosa histórica referente a essas religiões, já que as referidas entidades espirituais trazem energia vital para a comunidade. Do surgimento no contexto religioso até os dias atuais, a palavra “bolada” ganhou outros significados, originalmente no Rio de Janeiro: indignada, revoltada, raivosa, irritada, possuída, chateada. É esse leque de definições que dá nome à Dilma Bolada, personagem que traz, já no sobrenome, um desafio aos estereótipos de gênero que submetem as mulheres a um padrão de comportamento associado à doçura, à meiguice, à gentileza, ao cuidado maternal e às questões referentes ao mundo doméstico, onde lhes foi reservado o posto de Rainha do Lar. É justamente esse lugar restrito à esfera privada que a mulher que 106 Mestre em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia e doutoranda no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (IHAC/UFBA). E-mail: adrianajacob.cultura@gmail.com 107 Dicionário Informal. Acessado em 18/10/2016. http://www.dicionarioinformal.com.br/significado/bolado/5255/ II Congresso Internacional Sobre Culturas 244 inspirou a criação de Dilma Bolada ousou desafiar. Em 1º de janeiro de 2011, Dilma Vana Rousseff tornou-se a primeira presidenta da República do Brasil. Essa conquista, por si só, questiona a divisão sexual do trabalho estabelecida a partir de regras específicas de cada grupo social associadas a gênero e geração. Eleita presidenta do país em segundo mandato em 2014, tendo assumido em 1º de janeiro de 2015, Rousseff perdeu o cargo para o qual foi eleita democraticamente em 31 de agosto de 2016, através de um polêmico processo de impeachment pela Câmara dos Deputados e Senado, considerado um Golpe Parlamentar pela presidenta, seus aliados e diversas personalidades e grupos sociais. Nesse processo, as questões de gênero tiveram lugar de destaque, seja nas manifestações nas ruas ou na cobertura midiática. A suposta agressividade e o alegado “temperamento difícil”108 de Rousseff têm sido elencados como questões responsáveis pela perda de prestígio político e da governabilidade de Dilma. A falta de tato político e o temperamento difícil de Dilma Rousseff já são parte do folclore de Brasília e fizeram com que a presidente colecionasse desafetos. A inaptidão para lidar com o Congresso fez com que a petista perdesse aliados e quase toda a sua base de sustentação. O isolamento pode ser fatal a um presidente da República. (PARTIDO DA SOCIAL DEMOCRACIA BRASILEIRA, 17/04/2016) Neste artigo, analisamos a imagem de Dilma Bolada em um dos momentos mais emblemáticos da recente disputa política no Brasil, iniciado oficialmente em 2 de dezembro de 2015, quando o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, acolheu processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, protocolado pelos juristas Hélio Bicudo, Janaina Paschoal e Miguel Reale Júnior. Como explica a pesquisadora Ana Alice Costa (2002), a guerra e a política, em todas as sociedades, são sempre atividades masculinas. Já o cuidar das crianças e da família, são sempre atividades tipicamente femininas. O fato fundamental nessa divisão sexual do trabalho é que em todas as sociedades, as atividades masculinas são invariavelmente reconhecidas socialmente como mais importantes, mais valorizadas e de maior prestígio do que as atividades realizadas pelas mulheres. (COSTA, 2002, p.70) 108 Ver matéria “Os sete pecados que levaram a presidente Dilma ao impeachment”, 17/04/2016, disponível em: http://www.psdb.org.br/os-sete-pecados-que-levaram-presidente-dilma-rousseff-aoimpeachment/. II Congresso Internacional Sobre Culturas 245 Nesta perspectiva, o modelo de cidadania construído a partir da premissa de liberdade e autonomia não incorpora as mulheres, na medida em que é elaborado a partir de categorias masculinas de participação e representação. A mulher ficou isolada na vida doméstica, o lugar da paixão, do instinto e da reprodução da espécie. Como a esfera privada não é considerada politicamente relevante, esse modelo contribui para a manutenção da exclusão feminina das instâncias de decisão e, em especial, das estruturas de poder formal. Biroli (2014) aponta que é necessário redefinir essas esferas e a relação entre elas, garantindo que exista justiça e que o acesso a posições não seja hierarquizado de acordo com o sexo dos indivíduos. A democracia requer relações igualitárias em todas as esferas da vida e uma sociedade na qual o fato de ser mulher ou homem não determine o grau de autonomia ou vantagens e desvantagens de um indivíduo. Uma crítica feita por alguns pesquisadores à dualidade público-privado referese à singularidade da experiência feminina, ou seja, uma compreensão de que as atividades das mulheres na vida doméstica relacionam-se a uma ética distinta, baseada na experiência do cuidado e da gestão dos afetos. Essa suposta particularidade das mulheres teria um impacto positivo se levada para a esfera política. A experiência que as mulheres desenvolvem na esfera privada, doméstica e familiar produziria identidades socialmente significativas e estaria na base de visões de mundo distintas das dos homens – engendrando uma ética fundada na preocupação com o outro e com outros singulares, diferenciada da ética da justiça, fundada em princípios universais, abstratos e impessoais. O problema identificado na dualidade entre público e privado, nesse caso, é o isolamento da mulher na esfera privada – e não as atividades que nela se desenvolvem. (BIROLI, 2014, p.36) Um dos problemas dessa linha de abordagem é o entendimento de que o cuidado com os outros – que seria tarefa da mulher – produz uma sensibilidade moral singular. Trata-se do “pensamento maternal” que foi criticado por reforçar estereótipos de gênero e enfraquecer a problematização da dualidade entre o público e o privado. De acordo com essa visão, quando uma mulher ocupa um cargo de poder, espera-se dela o mesmo padrão de comportamento tradicionalmente exercido no ambiente doméstico: o cuidado com o outro. (...) em função do processo de socialização e das próprias relações de gênero, as mulheres permanecem fortemente ligadas ao II Congresso Internacional Sobre Culturas 246 privado/doméstico mesmo quando no exercício de atividades públicas, o que faz, como veremos mais adiante, com que sua participação política tenha uma grande ligação com este mundo doméstico e com as atividades para quais é culturalmente direcionada. (COSTA, 2002, p.75) A pesquisadora Ana Alice Costa afirma que a construção da trajetória política das mulheres brasileiras na busca pela sua cidadania plena foi demarcada pela convivência com modelos, estereótipos, visões e práticas que contribuíram com a imagem da mulher na política. Ela destaca algumas dessas imagens: a sufragista, a alienada e conservadora, a esposa ou “mulher apêndice”, a “esposa de político”, que funciona como uma espécie de “força auxiliar” chamada a colaborar sempre que os interesses do grupo político ao qual pertence estão em jogo. Nesse sentido, ao ingressarem na vida pública, as mulheres tendem a realizar atividades similares às que realizam no âmbito doméstico. Ao ocupar cargos públicos, sua atuação segue padrão semelhante. Elas dedicam-se a atividades que, em alguma medida, refletem também o mundo privado. São secretárias de Educação ou de Bem Estar Social e são poucas as que conseguem chegar aos altos escalões dos ministérios considerados da maior importância. Mesmo no campo da política não formal, a participação das mulheres nos movimentos sociais realiza-se a partir do seu papel de mães de família. Todo esse contexto de maternalização da política tem sérias implicações no fazer política no feminino, interferindo diretamente no cotidiano de mulheres que ocupam determinadas posições de poder. A maternalização da política está presente na escolha do guarda-roupa das mulheres, que devem parecer sóbrias, recatadas, preferencialmente com roupas que se assemelhem ao modelo masculino do paletó e gravata (para as mulheres o famoso “terninho”). Está presente também através da exigência de uma postura assexuada, já que à mulher que tem um destaque na vida política está vedado o exercício da sua sexualidade ou manifestação de sua afetividade. Das mulheres exige-se um padrão moral totalmente diferenciado do masculino e para o qual não há controles, cerceamentos e cobranças. (COSTA, 2002, p.81) Quando esses papéis pré-estabelecidos nos espaços público e privado são ultrapassados, especialmente no campo político, não existe uma automática ressignificação dos papéis identitários socialmente estabelecidos. Isso pode ser observado com as mulheres presidentes, onde sempre há uma demanda e/ou suspeição da presença masculina quando estas desempenham suas funções. Possivelmente, no sentido de preservar esse comportamento instituído, sempre que uma mulher ocupa um II Congresso Internacional Sobre Culturas 247 lugar de poder, se espera dela um comportamento que corresponda aos estereótipos de gênero. Essa expectativa de “cuidado” com o outro pode ser observada em Dilma Bolada em uma de suas formas de saudação aos internautas: “Mamãe ama vocês”. Embora se apresente também como Rainha da Nação, Diva do Povo e Soberana das Américas, títulos que representam posições de poder, a imagem da personagem que trabalha pela manutenção de seus filhos, representados pelo povo brasileiro, é vinculada ao papel de mãe. Mesmo comunicados oficiais da “Excelentíssima Senhora Presidenta da República” são encerrados com a saudação “Mamãe ama vocês”. Criada em 2010109 pelo publicitário Jeferson Monteiro, a página chega a outubro de 2016 com 1.764.159 curtidores no Facebook. Em muitas leituras, inclusive da mídia internacional110, Dilma Bolada é considerada o oposto da presidenta, além de mais popular do que sua inspiradora no mundo real. Ela é bem-humorada, irreverente, sintonizada com alguns dos ícones da cultura pop nacional e internacional – do sucesso cinematográfico “Jogos Vorazes” às estrelas da música, como Rihanna e Beyoncé, das quais é amiga íntima. A foto de capa atual da fanpage traz a personagem vestida como Katniss Everdeen e empunhando o arco, arma de luta da protagonista da saga Jogos Vorazes, que é forte, corajosa, destemida, habilidosa e bonita. A imagem foi ao ar - com o título A batalha final contra o golpe - em 11 de dezembro de 2015, nove dias após Eduardo Cunha ter acolhido o processo de impeachment contra Rousseff. Em 05 de setembro de 2016, menos de uma semana após o afastamento definitivo de Dilma Rousseff da presidência do Brasil, as hashtags das fotos foram mudadas para #LutarSempre #TemerJamais. Essa relação da personagem com o estrelato está em sintonia com a forma como a personagem se apresenta (diva) e parece aproximá-la do expressivo público da fanpage que, inclusive, foi vencedora de premiações internacionais111. A escolha de uma página satírica para o estudo também levou em consideração o humor como campo privilegiado para lidar com tensões e contradições sociais. O riso tem uma ligação ativa com a liberdade, por ser uma resposta à censura exterior, à cultura oficial 109 A página foi criada inicialmente na rede social Twitter, onde conta atualmente com 635 mil seguidores. Na sequência, ganhou versão também no Facebook. Está, ainda, na rede social Instagram, com 147 mil seguidores, no Youtube e no Snapchat. 110 Ver a matéria “Dilma Bolada: Brazilian president’s digital alter ego is more popular than she is” (Watts, Jonathan, 09/05/2016). Tradução da autora: “O alter ego digital da presidenta é mais popular do que ela é”. 111 Vencedora de prêmios internacionais como o youPIX e o Shorty Awards por dois anos consecutivos, em 2012 e 2013, Dilma Bolada foi premiada como a melhor ação em redes sociais no Brasil em 2013. II Congresso Internacional Sobre Culturas 248 e séria, além de contribuir para a percepção das ambiguidades da condição humana e de contradições disfarçadas. Um ambiente com os limites e rigidez alargados pelo humor torna possível uma abordagem diferenciada de questões normalmente associadas à Dilma Rousseff, como a falta de características comumente relacionadas à feminilidade, a exemplo da delicadeza, da doçura e da meiguice. Como destaca Simone Faustino da Silva (2015), a fanpage Dilma Bolada compartilha em suas redes diversas pautas em sintonia com as exploradas pela comunicação oficial da dirigente. Entretanto, embora muitas vezes dê conta de fatos circunscritos ao “real”, no discurso do fake prevalece o viés emotivo ao informativo. “Uma outra característica-chave de Dilma Bolada é a emergência de uma perspectiva personalizada, centrada no sujeito e que enaltece características pessoais, de comportamento, valores e vocabulário específicos (...)” (SILVA, 2015, p.107). São utilizadas, ainda, estratégias e fórmulas como o storytelling ou a adoção de papéis míticos, como o da diva. A personagem cria um relacionamento direto e uma relação próxima com os internautas. Essas estratégias foram utilizadas pela personagem ao longo de sua trajetória e no período analisado neste artigo. As qualidades de Dilma Bolada são exaltadas nas postagens, como mostra a publicação feita em 04/12/2015, dois dias após Eduardo Cunha ter acolhido o processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff. Trata-se de um gif112 com 51 imagens da personagem e suas respectivas definições. Cada palavra é sobreposta a uma imagem da personagem. A peça tem início, de forma emblemática, com a palavra Poderosa, e depois segue com as seguintes palavras: Ama animais, trabalhadora, torcedora, jogadora, sincera, tem fãs, solidária, simples, receptiva (na imagem, ao lado Cristina Kirchner), querida, não tem preconceito (na imagem, abraçada com Daniela Mercury), não renega as origens, mãezona, multifuncional, fashion, coloca moral, mostra quem manda (em foto com Aécio Neves), fã do Molejão, gosta de crianças e idosos, amiga de Reis e Rainhas (na imagem, com a Rainha Elizabeth, da Inglaterra), musas nacionais (ao lado da cantora 112 GIF é a sigla para Graphics Interchange Format, que se pode traduzir como "formato para intercâmbio de gráficos". Trata-se de um formato de imagem de mapa de bits muito usado na internet para imagens fixas e animações. II Congresso Internacional Sobre Culturas 249 Ivete Sangalo), e internacionais (ao lado da cantora Shakira), inspiradora, chique, influente, famosa (cercada por jornalistas), fofa (sorrindo sentada na cadeira de presidenta), feliz, humilde (sambando com trabalhadores), tem fé, ensina, não anda, desfila, capa de revista, conselheira e não leva desaforo pra casa, admirada, bolada, ama o Brasil (abraçando a bandeira do país), vencedora, samba, humilha e sapateia no bonde do recalque, linda, diva, presidenta, seu nome? O gif termina com a resposta “Dilma”, diante da foto da personagem usando a faixa presidencial. Uma das estratégias de humor da página consiste no uso de fotos reais da presidenta Dilma Rousseff associadas a legendas ou palavras inusitadas que provocam o riso. Como exemplo, podemos destacar a cena em que é mencionado que Dilma ensina. A imagem que aparece é uma foto dela ao lado da chanceler alemã Ângela Merkel. Já na imagem ao lado de Barack Obama, o gif destaca que Dilma é conselheira e não leva desaforo para casa. Trata-se de uma posição de empoderamento, uma relação de igualdade com líderes mundiais, reforçada pela própria personagem. Em outra cena do gif, Dilma Bolada aparece ao lado do Papa Francisco, com a palavra “influente”. Na mesma medida em que esses diálogos, com linguagem irreverente, mostram a intimidade de Dilma Bolada com personalidades de relevância nacional e internacional, o internauta também desenvolve uma relação próxima com a personagem. Exemplo disso são os milhares de comentários nas postagens. A citada acima, por exemplo, teve 16 mil curtidas e 2.440 comentários. Durante todo o período analisado, as qualidades de Dilma Bolada fazem contraponto aos defeitos de seus adversários políticos, na fanpage. O vice-presidente Michel Temer, que se tornaria presidente interino e, desde 31 de agosto de 2016, presidente do Brasil é chamado de usurpador, golpista, desgraçado e são usadas expressões como “Foda-se o Temer”. Para reforçar a imagem de “Vice Decorativo”, a personagem utiliza recursos como o storytelling, narrativa relacionada à capacidade de contar histórias relevantes que pode utilizar palavras ou recursos audiovisuais. Sua relevância deriva do fato de que contar uma história interessante é uma das maneiras mais eficazes de obter a atenção de alguém, e criar aproximação. Uma boa história é capaz de despertar emoções, usa diálogo realista e é apelativa aos sentidos. Além de Michel Temer, Eduardo Cunha e a jurista Janaina Paschoal foram algumas das pessoas criticadas na fanpage. II Congresso Internacional Sobre Culturas 250 A questão de gênero é abordada em algumas postagens no período analisado, inclusive com críticas à cobertura midiática. No dia 02/04/2016, foi publicada a capa da revista fictícia “Isto é machismo”, uma clara crítica à Revista Isto é. Em diversos momentos no decorrer desse percurso, a mulher – e não a presidenta – foi desqualificada. Podemos considerar que, no período pesquisado, o jeito irreverente e a atitude de quem “mostra quem manda” e “não leva desaforo para casa” de Dilma Bolada não seguiam aos padrões dominantes de gênero. Por outro lado, a personagem adotou comportamentos relacionados ao feminino: auto define-se como fofa, feliz, humilde, mãezona. Essas características publicizadas de Dilma Bolada destoam do padrão da política tradicional e podem indicar um caminho mais alargado para a definição da identidade da mulher no poder. Trata-se de uma discussão necessária para a conquista da equidade de gênero e para a participação equilibrada de homens e mulheres nas lideranças nacionais. REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 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Palavras-chave: Gênero. Memória. Patrimônio. As epistemologias da Museologia aqui discutidas estão baseadas em Araújo (2012) uma vez que a mesma se apresenta como uma constituição científica contemporânea e ao mesmo tempo com longa trajetória no campo dos conhecimentos e das práticas. Também cita-se Cerávolo (2004) como uma forma de se perceber a forte presença das interseccionalidades na Museologia, uma vez que a mesma tomou empréstimos de metodologias das ciências humanas. A autoetnografia é utilizada como uma metodologia de trabalho, fundamentando-se em Arruda (2012), uma vez que esta experiência busca uma alternativa acadêmica para a presença das subjetividades individuais que possibilitam uma provável pluralidade das interpretações, visto que há um processo criativo em diálogo com as memórias da pesquisadora e da Comunidade. As discussões de gênero na Museologia é algo emergente e importante. Há uma dívida dos museus para com a diversidade de gênero, uma vez que por muito tempo, os museus serviram ao discurso hegemônico do patriarcado. Ainda existem museus que cumprem o discurso de dominação que por sua vez, buscam homogeneizar as identidades de gênero através das práticas e discursos da heteronormatividade. Os estudos relacionados à interseccionalidade aqui discutidos, baseiam-se nos estudos da teórica, feminista e professora negra Crenshaw, uma vez que foi a mesma quem criou o termo numa pesquisa realizada em 1991, em que se pesquisou sobre o 113 Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Museologia pela UFBA – Universidade Federal da Bahia. Email: anjosfiuza@gmail.com. II Congresso Internacional Sobre Culturas 253 problema da violência vivenciada pelas mulheres enquadradas nas situações de cor e classe social desfavorecida nos Estados Unidos. Para uma melhor compreensão citase: A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as conseqüências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. (Crenshaw, 2002: 177). Compreender a teoria da interseccionalidade foi essencial para a percepção do cruzamento das memórias que constituíram a Exposição Temporária Terra Mirim 24 anos: ritualizando a história..., uma vez que ali se interseccionaram múltiplas identidades, situação que melhor permitiu a percepção da estruturação das experiências das mulheres da Comunidade Terra Mirim. O processo de ritualização da exposição tem também como base o livro de Maria (2006). A Voz dos Quatro Elementos é uma obra prima da Comunidade, escrita pela líder espiritual Xamã Alba Maria, tal obra, remete à fala de Anzaldúa (2000), discorre a importância de as mulheres escreverem as suas próprias histórias. Ainda que o contexto social e cultural ao qual Anzaldúa se refira seja diferente, torna-se uma ponte importante para as discussões baseadas nas interseccionalidades do gênero. Em A Voz dos Quatro Elementos constata-se a sacralidade dos quatro elementos da natureza: a água, a terra, o fogo e o ar. Estes são os atores principais da ritualização das memórias que compuseram a referida exposição e assim sacralizaram tudo o que lá esteve exposto, algo que remete à reflexão sobre o valor “aurático” dos objetos propostos através do pensamento Bejamin (1994). A Exposição Temporária Terra Mirim 24 anos: ritualizando a história foi inaugurada no dia 29/06/2016 como um fator agregador das comemorações do aniversário da Comunidade, que na presente data completou seus 24 anos. O processo de seleção das memórias e da montagem da exposição foi uma experiência que constituiu um aprendizado sobre o protagonismo das mulheres na construção das suas próprias memórias e dos seus lugares de fala que se fizeram apresentar através da vivência processual da construção da representatividade de um grupo. II Congresso Internacional Sobre Culturas 254 A exposição contou com a presença de roupas e objetos pertencentes à Xamã Alba Maria, juntamente com outros pertences das demais mulheres que compõem aquele grupo comunitário. Também contou-se com a exposição de livros raros publicados por elas mesmas, revistas, projeção de vídeos, etc. A presença carismática da Xamã Alba Maria rememora a pesquisa de Tedlock (2008) que desmonta o xamanismo sob a perspectiva patriarcal, colocando as mulheres em posições de poder e protagonismo, quando revela através das suas descobertas científicas, a presença de documentos que comprovam achados arqueológicos com ossadas e objetos de arte “talismânicos” que corroboram a presença das mulheres xamãs na pré-história . A exposição se manteve aberta ao público por um período de 30 dias. Durante este ínterim, o espaço esteve aberto à visitação pelo público em geral, ao qual inclusive contou com a visitação de estudantes de escolas públicas do município de Simões Filho, BA. O espaço expositivo contou com a interação dos festejos do aniversário da Comunidade.. A palavra patrimônio refere-se à uma etimologia patriarcal, ou seja, refere-se a um bem herdado de pai para filho. Como disse o professor, poeta e museólogo Dr. Mário Chagas, talvez seja necessária a substituição da palavra patrimônio por “fratrimônio” como uma forma de assegurar uma igualdade de gêneros, até mesmo nos usos de vocabulário técnico. Em diálogo com Cecília Londres apud Brayner (2007) através de uma publicação do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) pode-se pensar o patrimônio como: “O patrimônio é tudo o que criamos, valorizamos e queremos preservar: são os monumentos e obras de arte, e também as festas, músicas e danças, os folguedos e as comida, os saberes, fazeres e falares. Tudo enfim que produzimos com as mãos, as ideias e as fantasias”. (Brayner, 2007, p 5). Sob influência do pensamento de Brayner (2007), pode-se acrescentar as identidades de gênero aos grupos sociais, tendo em vista que as pessoas, através de uma organização social própria, socializam as suas visões de mundo, histórias e memórias coletivas, situação que faz uma reflexão a respeito da memória e da cultura como elementos de identidade responsáveis pela interconexão entre as pessoas, fazendo com que as mesmas se reconheçam e compartilhem os seus vários traços coletivos. II Congresso Internacional Sobre Culturas 255 Para que determinada manifestação cultural seja considerada patrimônio, tornase necessário que haja o reconhecimento da manifestação cultural como algo que sirva de referência para aquele grupo social específico, e é aí que a memória entra em cena, visto que pode-se percebê-la vivida e manifestada no cotidiano das pessoas. O texto de Carvalho (2008), faz uma classificação dos repertórios de gêneros. A autora divide as individualidades sexuadas entre ações centrípetas e centrífugas, sendo que a primeira encontra-se agregada ao gênero masculino, enquanto a segunda ao feminino respectivamente. Situação que denuncia a projeção das ações e atividades ditas masculinas como situações de prestígio projetadas para fora do lar, enquanto as de cunho feminino não obtinha o mesmo patamar por conta de, obrigatoriamente encontrarem-se restritas ao espaço domiciliar, inclusive os exemplos de mulheres que tinham acesso à escrita, demonstram que as suas produções gráficas não conseguiam obter o mesmo valor que as de versão masculina pelo mesmo motivo. A transgressão de conceitos envolve práticas e militância que irá desaguar na ocupação. Como efeito ilustrativo, cita-se o exemplo do primeiro museu feminista do mundo, criado em outubro de 2014, localizado na cidade sueca de Umeå, do qual recebeu o nome de: Museu da História das Mulheres, cuja modalidade não dispõe de acervo permanente. Sob a perspectiva do patrimônio, busca-se trabalhar uma Museologia que concebe e legitima a palavra museu como um lugar de poder e memória que conta com a importante contribuição do gênero feminino para que o museu se torne um espaço de poder e memória, mostrando através do arquétipo dos mitos, a possibilidade da interação entre os gêneros sem a presença da subalternidade, para tanto, cita-se Chagas (2006): Avançando um pouco se pode reconhecer, ao lado de Pierre Nora (1984), que os museus vinculados às musas por via materna são “lugares de memória” (Mnemosine é a mãe das musas); mas por via paterna estão vinculados a Zeus, são estruturas e lugares de poder. Assim, os museus são a um só tempo: lugares de memória e de poder. Estes dois conceitos estão permanentemente articulados em toda e qualquer instituição museológica. (Chagas, 2006, p.31) O fato de reunir objetos no museu representa a síntese da cultura material, que é o patrimônio e, por sua vez, representa a identidade de grupo discutida um pouco II Congresso Internacional Sobre Culturas 256 mais acima. Cada museu desenvolve sua singularidade de forma que nenhum museu é igual ao outro. A função dos museus não é dar respostas, mas criar questionamentos e reflexões. Sob influência de Moreno (2006), reflete-se aqui os objetos como possuidores de uma qualidade de sobreviver às pessoas, situação que faz com que se consiga tocar o mundo dos mortos, quando os seus donos e donas não puderem mais falar, pois os seus objetos falarão. Tal circunstância consagra o objeto como documento. Por fim, pode-se refletir e associar as diversas relações de gênero vivenciadas na sociedade como um espaço de fértil contribuição para a criação dos questionamentos que envolvem as problemáticas sociais da sociedade contemporânea. Como foi visto no discorrer do texto, percebe-se que um único recorte cultural, pode servir de argumento e contexto para uma pluralidade de segmentos sociais, como por exemplo: a memória, o poder, o patrimônio, o gênero, a cultura material, etc., que no caso específico deste texto, estão centradas nas relações estabelecidas entre a cultura e a Comunidade Terra Mirim. REFERÊNCIAS ANZALDÚA, Gloria E. "Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo". Revistas Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 1, p. 229-236, 1. sem. 2000. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_nlinks&ref=000150&pid=S0104026X201400030001500003&lng=en . Acessado em 30/05/2015. ARAÚJO, Carlos Alberto Ávila Araújo. Museologia: correntes teóricas e consolidação científica. Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio – PPG-PMUS Unirio | MAST - vol. 5 no 2 – 2012. 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Para tanto, não me furto de elucidar as opressões impostas pelo colonialismo, eurocentrismo e, especialmente, racismo como fio condutor da análise que norteia esse artigo. Evitando o essencialismo universalizante, a proposta do artigo é evidenciar novos elementos para o debate. Palavras-chave: Racismo. Gênero. Cultura Yorùbá. INTRODUÇÃO No final de 2015, no Terreiro de Candomblé Ilé Asé Olorumfunmi, localizado na cidade de Florianópolis, foi realizado o seminário Teologia de Oguian Kalafô: Terreiro e Cidadania que deu origem ao grupo de estudos Valores Civilizatórios Africanos e Dinâmicas Culturais na Diáspora Negra, com o intuito de desenvolver, a partir de um projeto político e pedagógico, reflexões acerca da tradição africana e sua introdução no contexto colonial através do tráfico e da escravidão, vislumbrando conectar as visões de mundo dos povos africanos em um novo contexto pós-colonial. Foi nesse espaço que iniciei minha aproximação com estudo da cultura Yorùbá que, concomitantemente, com o curso de mestrado em antropologia social me trouxe o debate sobre gênero e cultura, em seus diversos significados. Tendo como pano de fundo os debates em diversos momentos no espaço acadêmico e no grupo de estudos, a temática racial que versou os conceitos de gênero provocou-me sobremaneira a escrever, através de outra perspectiva, especialmente sobre as questões que se referirem às religiões de matrizes africanas no Brasil. Proponho, primeiramente, a amplitude conceitual acerca dos terreiros como espaço de 114 Mestranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós Graduação em Antropologia Social (PPGAS). Graduanda em Ciências Econômicas. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bacharel em Administração - CRA/SC 26145. E-mail: cauanemaia@yahoo.com.br II Congresso Internacional Sobre Culturas 259 dinâmica civilizatória, para além dos ritos e mitos, sendo um local de acolhimento e escuta, como também, de convivência das famílias extensivas denominadas, diasporicamente, como “famílias de santo” e não somente um local de práticas religiosas. Desse modo, escolhi abordar a cultura Yorùbá, por saber do grande contingente de negras e negros traficados oriundos do continente africano para o Brasil, a fim de servirem de mão de obra escrava. Sendo assim, faz-se necessário uma breve contextualização histórica e delimitação geográfica para definir com mais exatidão a proposta de um olhar descolonizado, bem como, uma conceituação mínima para evitar distorções no entendimento acerca da temática. Contudo, não me furto de elucidar as opressões impostas pelo colonialismo, eurocentrismo e, especialmente, racismo como fio condutor da análise que norteia esse artigo. Para evitar o essencialismo e a amplitude exacerbada, que tendem a universalização, escolhi o artigo da Rita Segato (2003) como ancoradouro, transformando-o na coluna dorsal desse texto, onde os demais autores orbitarão ao seu redor emprestando-lhe conceitos ou complementando, através dos reforços teóricos, as ideias que extrai da autora para elucidar as minhas reflexões acerca do tema. A compreensão e aprofundamento sobre as tradições de matrizes africanas no Brasil, considerando as influências da diáspora e o colonialismo, bem como as violências que as mesmas sofrem rotineiramente através do racismo, eurocentrismo e dogmas judaíco-cristãos que municiam os atos de intolerância, como citado pelo Aimé Cesaire, o grande responsável pela hipocrisia colonialista foi o pedantismo cristão que propôs que quanto maior o cristianismo equivalia a maior civilização e quanto maior o paganismo o mesmo ocorreria com a selvageria (CESAIRE, 1978). O autor ainda complementa que o pseudo humanismo diminuiu o direito dos homens e teve uma concepção estreita e feita sordidamente através do racismo. Não é possível dissociar o racismo da intolerância religiosa no Brasil, que acomete as religiões de matrizes africanas. Como também não se pode pensar os espaços de terreiros e seus adeptos imunes aos efeitos do colonialismo e racismo, tendo essa primeira constatação, não se pode avançar sem avaliar criticamente o papel de cada indivíduo na reprodução e manutenção dessas opressões. É importante compreender os efeitos do colonialismo, como exposto pelo Aimé Cesaire: II Congresso Internacional Sobre Culturas 260 As civilizações extintas e arruinadas pela brutalidade, crueldade, sadismo e pancadas parodiando formações culturais e fabricando um intensivo de funcionários subalternos ( CESAIRE, 1978) A formação da sociedade brasileira se estabelece através da visão eurocêntrica e de uma ciência embranquecida que invisibiliza as contribuições dos povos originários e esses fatos podem ser constatados nas produções intelectuais, nos indicadores socioeconômicos e nas representações midiáticas. Como cita o autor Gabineau (apud CESAIRE, 1978) só há histórias e etnografias brancas, é o ocidente que faz a etnografia do mundo. Com base nessas inquietações é que o artigo se propõe a oferecer uma nova perspectiva que amplie a compreensão acerca dos conceitos de gênero no Brasil. Os estudos e produções intelectuais sobre a constituição das religiões de matrizes africanas na diáspora afro brasileira, bem como problematização sobre as manifestações da intolerância religiosa pela ótica do racismo para composição do discurso de unificação dos espaços de terreiro e reconstrução identitária, deve considerá-lo como constituidor de um modelo microcósmico da África, também como reprodutor da imagem do mundo. Mais do que um simples lugar de culto, o terreiro constitui uma comunidade, uma sociedade, um egbé (WOORTMAN, 1977). É preciso também refletir sobre a influência das projeções que os pensamentos feministas, amparado nas demandas de mulheres brancas, ocidentais e judaíco-cristãs, fizeram sobre as tradições africanas e como repercutem na diáspora, uma vez que suas produções acerca da temática se dão no período pós colonial. Desse modo, o texto discorrerá sobre a abordagem de gênero através de perspectiva negro-africana e descolonial da cultura Yorùbá para a reflexão dos reverberes na diáspora e a formação identitária afro-brasileira. CULTURA YORÙBÁ E O GÊNERO NA DIÁSPORA O período de 1530 à 1888 de tráfico dos negros trazidos do continente africano para o Brasil como mão de obra escrava tornou-se um capítulo nebuloso na constituição das subjetividades do povo brasileiro, especialmente os afro brasileiros, que esbarram constantemente em controversas afirmações acerca da herança africana. As estratégias violentas de apagamento da humanidade dos negros sequestrados se deu em todos os sentidos: físico, material, epistêmico, religioso, entre outros. E esse fator II Congresso Internacional Sobre Culturas 261 contribui para que o sistema racista se perpetue e que os negros e negras sigam na base da pirâmide social do país desconhecendo as mazelas que permeiam efetivamente o deslocamento do povo africano e, mais ainda, seus reverberes na atualidade, negandolhes a humanidade. As negras e negros foram sequestrados de diversas partes do continente africano. Contudo, embora os documentos e arquivos referente à escravização tenham sido queimados em 1890 por ordem do Doutor Rui Barbosa, é possível afirmar, aproximadamente, que os Nagô foram os últimos a se estabelecerem no Brasil durante o fim do século XVIII e início do XIX, segundo Juana Elben Santos (1975:27), sendo em Òyó, capital do reino Yorùbá, um dos principais locais onde o tráfico negro se estabeleceu. Nagô é um nome genérico de todos os grupos advindos do centro e do sul Daomé e do sudeste da Nigéria, portadores de uma rica tradição que derivou culturalmente dos diversos reinos africanos que os compuseram, como afirma Muniz Sodré (1982:120). Para a compreensão sobre o conceito de cultura que ampara esse artigo é necessário uma imersão breve sobre como o autor Roy Wagner (2012) discorreu sobre a cultural como uma invenção, fazendo uso mais tradicional do termo, sendo um fator positivo e esperado na vida humana. Em seu sentido mais amplo, o termo “cultura” também procura reduzir as ações e propósitos humanos ao nível de significância mais básico, com o objetivo de compreendê-lo e examiná-lo em termos universais. Desse modo, o antropólogo é obrigado a incluir-se em seu objeto de estudo, usando sua própria cultura para estudar outras (WAGNER, 2012). Portanto, é por meio da invenção da cultura Yorùbá, definida através dos significados próprios dos colonizadores, que buscar-se-á compreender as contribuições alegóricas que parte de um ideário eurocêntrico que, em certa medida, escamoteou a verdadeira essência e as invariáveis civilizatórias africanas e afro-brasileiras, bem como seus reverberes na diáspora. A proposta de deslocamento do olhar leva em conta a afirmação da intelectual negra Bell Hooks: ao descentralizar-se intelectualmente das civilizações ocidentais, do cânone do homem branco, revele-se o medo profundo dos grupos hegemônicos de um ato de genocídio cultural (2013:49), mas é urgente também que se considere os efeitos devastadores às populações afro brasileiras ao manter-se o epistemicídio115 contra os 115 Termo cunhado e difundido pela Sueli Carneiro no Brasil para referir-se ao extermínio dos saberes do povo negro. II Congresso Internacional Sobre Culturas 262 mesmos, bem como as demais violências, através da prerrogativa infundada de uma retaliação que utilize-se dos mesmos meios escusos que o ocidentalismo. Na diáspora, a forma mítica teve papel fundamental para a preservação dos dispositivos culturais de origem, os negros e negras desenvolveram formas paralelas de organização social. Com isso, os espaços de terreiro se constituíram, simultaneamente, em um contínuo cultural através da persistência do relacionamento com o real, mas repostas na história com elementos reformulados e transformados no que se refere a ordem mítica original, e um impulso de resistência à ideologia dominante, de acordo com o Muniz Sodré (1983: 122). Há uma imensa complexidade para definir os Yorùbá, sendo eles uma abstração, pois o que existe é o reino e o povo de Ifé, Oyó, Ilesha, Ketú, etc. Como descreve Woortman (1976), os Yorùbá possuem nítida consciência histórica, inclusive utilizando-se dos mitos para descrevê-las. E as variações entre cidades e povos ou do original Yorùbá para o Nagô brasileiro se dão por conta do jogo entre história e mito, ou seja, os mitos são modificados por necessidades históricas. O mito e o rito não apenas exprimem a mesma mensagem como se legitimam reciprocamente e é possível identificar dois níveis de mensagens comunicados através deles: significado visível e significado profundo (WOORTMAN, 1977). Na análise feita por Woortman (1977) sobre os mitos da criação o autor constata um sistema de oposição cósmica composta por contrários, por exemplo entre o òrun (céu) e àiyê (terra) ou água e terra firme, onde a mediação é feita por entidades ambíguas. A complementariedade entre os opostos indica que um não pode existir sem o outro, a interação entre os contrários é uma necessidade para existência. O autor analisa outros mitos, onde ratifica tais constatações. Contudo, é a ausência dos marcadores de gênero, definidos ocidentalmente, que se pode constatar através dos diversos mitos, inclusive os que não são citados pelo autor, como o mito de Logun Edé e Oxumarê onde tais entidade adquirem características transitórias de gênero, ora sendo feminino, ora sendo masculino. Desse modo, os mitos não possuem o caráter heteronormativo, tampouco homoafetivo, mas sim uma característica singular de evidenciar a ausência de supremacia de gênero e sua complementariedade constate. Outro exemplo que podemos evidenciar a inexistência do comportamento heteronormativo é o mito em que Oxum seduz Iansã por considerá-la bela. Woortman (1977) faz uma análise estruturalista dos mitos Yorùbá e é através do mesmo que complemento as ideias abaixo propostas para a ampliação sobre os conceitos de gênero. II Congresso Internacional Sobre Culturas 263 No texto Gênero, Política e Hibridismo na Transnacionalização da Cultura Yorùbá da antropóloga argentina Rita Segato (2003), aborda a constituição do gênero na difusão da cosmologia Yorùbá, que, em alto grau de abstração, se relacionaria com os significados anatômicos, ou seja, inexistindo o essencialismo biológico. Desse modo, o texto evidencia os estudos da feminista nigeriana Oyeronke (1997: 32 apud SEGATO [2003]) a qual aponta para a hipótese de um sistema de gênero na sociedade de Oyó antes da colonização ocidental, constitui mais um caso de dominação que se estabelece através da documentação e interpretação do ocidente. Desse modo, o colonialismo introduz seu vocabulário e práticas de gênero nas tradições de matrizes africanas e os acadêmicos ocidentais, assim como as feministas ocidentais, comentem distorções através deste ato, sendo exemplo a tradução equivocada os termos Obinrin e Okunrin como “homem e mulher”, “macho e fêmea”, uma vez que esses termos não se opõem hierarquicamente nem binariamente (ibidem:32-33). Oyeronke afirma a total ausência de uma estrutura simbólica de gênero116 na sociedade Yorùbá tradicional, ou seja, pré-colonial. Na diáspora as divindades (orixás) se distinguem através dos arquétipo, das personalidades considerando os efeitos do sincretismo com as demais religiões, que podem variar de uma região para outra: em determinada região Oxóssi pode ser sincretizado como São Jorge e em outra com São Sebastião, por exemplo. No zodíaco de gênero, uma pessoa com corpo de mulher pode ter a personalidade classificada como masculina se seu orixá, divindade tutelar for masculina, do mesmo modo, o contrário pode ocorrer. Portanto, o predicado de gênero encontra-se na personalidade da entidade tutelar. A característica anatômica do orixá e a senioridade podem definir alguns ritos como o dobale, ou seja, reverência. Segundo Oyeronke(1997:36 apud SEGATO [2003]) a reverência (dobale) executada no continente africano depende do sexo da pessoa que saúda, no Brasil depende do sexo do seu orixá tutelar, dono de sua cabeça. O ofício sacerdotal pode ser executado por homens ou mulheres, pois na religião e na vida civil Yorùbá o gênero não é articulado como categoria que define as relações entre os orixás, sacerdotes e ancestrais. A superioridade independe do tipo de corpo que se apresenta, pois o Ori é o princípio vital e não possui gênero. 116 Oyeronke utiliza como conceito de gênero a propriedade de um indivíduo ou de um corpo, com a construção de duas categorias com relações hierárquicas opostas. II Congresso Internacional Sobre Culturas 264 Rita Segato (2003) evidenciam em seu texto que “ Muitos acadêmicos reconhecem o sistema peculiar de gênero das religiões afro-americanas e a presença de homossexuais no Brasil (Landes,1940,1967;Ribeiro,1969; Fry,1977,1986; Wafer,1991; Birman,1995) como na Santería de Cuba (Dianteill, 2000) e Vudú Haitiano (Lescot, 2002)” (SEGATO, 2003), sendo a sexualidade interpretada como constituinte estrutural do indivíduo e não um elemento supérfluo e adicional. Assim como, considerando as religiões afro-brasileiras de base Yorùbá as promotoras da demarcação de um espaço de diferenciação e representação simbólica para grupos carentes de livre expressão e visibilidade. Em África a casa Yorùbá era considerada como unidade doméstica, no Brasil os Terreiros são os lugares onde residem as “Famílias de Santo”, onde essas famílias se constituem através do ritual e do processo iniciático, sendo unidades sócio-política e religiosa, assim como no continente africano o agbo-ilé é a célula sociopolítica de uma sociedade (SEGATO,2003). O anti-essencialismo e androginia presentes no sistema como um todo tem impacto nas práticas sexuais, já que libera a sexualidade da ideologia da coação anatômica. Neste sentido que o sistema brasileiro é mais radical na dissolução da matriz ideológica heteronormativa e hierárquica, se distanciando da estrutura simbólica ocidental. A Rita Segato (2003) descreve um esquema de quatro extratos no sistema de gênero Yorùbá do Brasil: papéis sociais são andróginos; papéis rituais são anatomicamente marcados; orientação sexual é nômade; personalidade se dá através do dimorfismo psíquico. O gênero total de uma pessoa, isto é, de um filho de orixá, é consequência de uma situação sempre transacional e em completa intersecção com os quatro extratos citados acima, segundo Segato (2003), que utiliza também o conceito de Homi Bhabha (1994a apud SEGATO [2003]) sobre hibridismo definindo-o como processo dinâmico, pleno de desestabilização não sendo estático nem mecânico. Com isso, é possível compreender que não trata-se de uma mescla por bricolagem ou encontro dos mundos, mas sim o sujeito em movimento evidenciando seu descontentamento e seu incômodo diante dos significados que é obrigado a utilizar. Trata-se de um indivíduo que executa o que o ocidente demanda, e que pesa sobre ele, introduzindo uma torção, uma matiz que torna-se uma marca velada de sua insatisfação. As identidades híbridas não se reduzem a uma receita, mas formam um repertório de modalidades culturais, onde o sujeito híbrido diaspórico se confronta II Congresso Internacional Sobre Culturas 265 com desafio de mover-se entre modos diversos de atuação em mundos culturais e ideológicos distintos, como afirma Ella Shohat (2007: 81). Como um termo descritivo amplo, o “hibridismo” não difere as suas diversas modalidades, como: imposição colonial, assimilação forçada, cooptação política, mímica cultural e assim por diante. E sua assimetria, tem como base as relações de poder (SHOHAT, 2007: 81). REFERÊNCIAS CARNEIRO, Sueli. Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil. Ed. Selo Negro. São Paulo. 2011. CÉSAIRE, Aimé. O Discurso Sobre o Colonialismo. Livraria Sá da Costa Editora. 1978; ELBEN DOS SANTOS, J. Os Nagô e a Morte. Ed. Vozes. Petrópolis. 1975; HOOKS, Bell. Ensinando a Transgredir: A Educação como Prática da Liberdade. Ed. WMF Martins Fontes. São Paulo, 2013. SEGATO, Rita. 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II Congresso Internacional Sobre Culturas 266 EUROPA, FRANÇA E BAHIA: AS MULHERES NEGRAS VÃO A CANNES Maria de Fátima Fróes e Almeida Souto Maior117 RESUMO O presente artigo tem como objetivo discutir a participação da mulher negra no cinema, tomando por base a trajetória das baianas Ceci Alves, Viviane Ferreira e Joelma Gonzaga, oriundas da periferia de Salvador, com significativa produção e participação em prestigiados festivais, a exemplo de Cannes. Pretende-se analisar a ausência de realizadoras negras no cinema nacional, percorrendo as questões intersecionais de gênero e raça na história do cinema brasileiro, e as estratégias de rompimento com esta hegemonia branca e masculina na construção de uma cinematografia no Brasil, e o impacto das políticas públicas que impulsionam essa nova configuração. Palavras-chave: Cinema. Feminismo. Raça. Gênero. INTRODUÇÃO As diretoras Ceci Alves e Viviane Ferreira levaram seus curtas ao Short Film Corner, mostra paralela em Cannes e a produtora Joelma Gonzaga acompanhou o documentário Cinema Novo, do diretor Eryk Rocha, na mostra principal daquele festival. A presença dessas mulheres nesse ambiente é quase um ato de desobediência civil, quando encarada nas perspectivas interseccionais de gênero e raça. Reflexo das desigualdades nos mais diversos campos, do doméstico à produção cultural, a ausência de mulheres negras, nesse campo especificamente, é ainda pouco discutida. Para compreender essa ausência e a justificativa construída para a negação dessa mulher, buscaremos refletir de forma mais aprofundada a relação entre o negro e o cinema no Brasil; a inserção da mulher no cinema; as estratégias transgressivas traçadas pelas três cineastas baianas, para chegarem, com as suas produções, a um dos mais significativos festivais europeus. Por fim investigaremos qual a contribuição das políticas de caráter afirmativo para uma mudança desse quadro. A partir das entrevistas com as realizadoras e análise das suas trajetórias profissionais, pretendemos compreender as relações entre as políticas públicas de inclusão social no período vivenciado, as lutas sociais das mulheres e negros para ocupação de espaço, o feminismo negro e a luta pela sua afirmação e visibilização. 117 Prod utora e Gestora Cultural, Pesquisadora dos Grupos Qualidade Ambiental em Salvador e Miradas (UFBA). E-mail: fatimafroes@gmail.com. (*)http://blogueirasnegras.org/ II Congresso Internacional Sobre Culturas 267 Por que cinema? Com esse questionamento percorreremos os desejos e possibilidades dessas mulheres que se aventuram nesse árido caminho. O lugar do diretor e do produtor executivo é o lugar de comando, lugar "naturalmente" masculino, um lugar e olhar que indica claramente uma relação de poder. CENÁRIO As obras "O negro brasileiro e o cinema" (RODRIGUES, 2011) e "A negação do Brasil" (ARAÚJO, 2000), foram pioneiras no questionamento das representações do negro no audiovisual, ao chamar a atenção para a inexistência do negro nesse universo ou dos papéis subalternos desempenhados. Tal fato, referido como a "ausência mais notável do cinema brasileiro" (STAM, 2008, pág. 472), é radicalizado quando olhamos para a mulher, seja na perspectiva da sua representação estereotipada, seja como realizadora e as dificuldades de assunção desse lugar. O panorama da participação da mulher negra não se altera significativamente com a chegada dos primeiros diretores negros: Zózimo Bulbul, Waldir Onofre e Antônio Pitanga. Avalia-se que mesmo nas funções menos "glamourosas" a presença da mulher fica restrita aos espaços confinados ou de extensão do trabalho doméstico (camareiras, cuidadoras, faxineiras). ATORES E TRILHAS O universo abordado tem uma clara identidade "periférica". Suas trajetórias refletem o fato de que as mesmas nadam de braçada contra a adversidade, em fluxos contrários às estatísticas. Deparamo-nos, então, com um misto de luta contra a adversidade e com o desejo de cada uma delas, em um cenário de efervescência que se formou no país: a organização de movimentos sociais na luta pelo direito à educação pública, organização do movimento negro pelas políticas de cotas, organização dos movimentos de mulheres colocando a exclusão em pauta, organização dos movimentos de cinema fora do eixo Rio-São Paulo e também um novo Ministério da Cultura, no primeiro governo de um presidente oriundo da classe trabalhadora no Brasil. II Congresso Internacional Sobre Culturas 268 As entrevistas com as três cineastas e o exame de suas produções textuais e filmografia, trajetórias e apoios específicos, nos ajudam a compreender as suas motivações e dificuldades até esse momento especial na carreira de cada uma. Ceci Alves, oriunda de Cajazeiras, bairro periférico, estudou em escolas particulares e tem um currículo invejável. Frequentou a Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia - UFBA, fez especialização na Escuela Internacional de Cine y Televisión em Santo Antonio de Los Baños, Cuba, Mestrado Profissional na França, na Universidade de Toulouse, e tem um Mestrado inconcluso em Cultura e Sociedade pela UFBA. O filme que coroou o seu Mestrado Profissional, "Doido Lelé", selecionado para o Short Film em Cannes, enfrentou muitas dificuldades na sua realização. Após algumas tentativas o projeto foi contemplado com um edital do Ministério da Cultura e a autora buscou melhor desenvolver o seu argumento com uma participação em uma Oficina de Roteiro, num esforço de maturação para o período de filmagem e finalização. À época trabalhava como jornalista, na editoria de cultura de um jornal de grande circulação em Salvador. Joelma Gonzaga, oriunda de Pernambués, periferia da cidade de Salvador, teve uma infância difícil, sem acesso a equipamentos culturais básicos. A televisão era única fonte de informação e de acesso a filmes, mas sempre foi incentivada a ler, tendo acesso à biblioteca variada de sua mãe de criação. Sua aproximação com o cinema se iniciou em locadoras de vídeo, como atendente, passou pela produção de eventos, entrou na UFBA no Bacharelado Interdisciplinar em Artes e fez, por conta própria, diversos cursos em Santo Antonio de los Baños, em Cuba. Seu primeiro set como produtora veio em decorrência de um projeto de formação específica em Cataguazes, Minas Gerais. Trabalhou no núcleo de novelas da TV Globo como pesquisadora, coordenou produções, atuou em diversos projetos como Produtora Executiva e se prepara para os primeiros projetos autorais. Viviane Ferreira chega à adolescência num período mais fértil em termos de organizações sociais e políticas públicas no Brasil. Participou de diversos cursos de formação em ONG´s, a exemplo do Curso de Comunicação na Cipó – Comunicação Interativa e do curso de teatro do CEAFRO, programa de educação para igualdade racial e de gênero do CEAO – Centro de Estudos Afro-Orientais, Unidade de Extensão da UFBA, frequentou escola pública, teve acesso ao cinema negro por meio do movimento cineclubista e frequentou um Instituto Federal. Sua vontade de fazer II Congresso Internacional Sobre Culturas 269 cinema a catapultou a São Paulo, com bolsa integral de um cursinho na capital paulista. A bolsa, conquistada com sua capacidade argumentativa, e o apoio da comunidade negra de Salvador, que se cotizou para ajudá-la a chegar a São Paulo, viabilizaram a busca do seu sonho. Fez Escola de Cinema e, ao mesmo tempo, cursou Direito. Criou a própria empresa para caminhar com seus projetos autorais, ao tempo que trabalha num escritório de advocacia. Três histórias diferentes que constroem individualmente ou coletivamente a ruptura com as estatísticas excludentes. De acordo com pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, as mulheres negras, que representam 51% da população feminina brasileira, não estão presentes, de forma significativa, na produção de cinema no Brasil. Nessa pesquisa, "A Cara do Cinema Nacional", foram analisados 218 filmes produzidos entre 2002 e 2014, e nenhum deles era dirigido por uma mulher negra. As atrizes negras e pardas representam apenas 4,4% do elenco desses filmes. Se avaliarmos a participação das mulheres, independente da etnia, ainda assim é pouca representatividade nos cargos de direção. A distribuição percentual de diretores é de 84% de homens brancos, 2% de homens negros e 14% de mulheres brancas. O cinema é mais um espaço do da hegemonia masculina e branca, que reflete a exclusão das mulheres negras de todos os espaços de trabalho. Segundo o Censo de 2010 do IBGE a mulher negra tem um rendimento médio equivalente a 35% do rendimento de um homem branco e de 52% em relação à mulher branca. O lento avanço das mulheres negras na sua representação midiática tem paralelo com o lento avanço da superação das desigualdades na sociedade. A maioria das representações de mulheres negras no cinema acaba se tornando um simulacro da democracia racial. Qual o movimento insurgente das três mulheres realizadoras que estão retratadas? O que pavimentou os seus caminhos até Cannes? Qual a conjunção de fatores que contribuiu para o rompimento de barreiras? No desenvolver das entrevistas sobre as trajetórias, estamos colocando em foco os movimentos sociais que buscam a inclusão, a rede de solidariedade que vai abrindo o lento caminho para mudanças de paradigmas e mais especificamente, os movimentos de mulheres, movimentos negros, de nordestinos e do cinema independente. O acesso à produção através de editais específicos do Ministério da Cultura, financiados pelo Fundo de Cultura, assim como os mecanismos de acesso às Leis de Incentivo através de editais das Empresas Estatais, eram concentrados no eixo Rio-São II Congresso Internacional Sobre Culturas 270 Paulo no período anterior ao Governo Lula. A luta das Associações de Cinema e Vídeo para a regionalização fez renovar a cena do cinema. Novos atores, novos festivais, novos caminhos que foram sendo pavimentados. O primeiro projeto profissional de Ceci Alves foi resultado de um edital do Ministério da Cultura. A passagem de Joelma Gonzaga pelo árduo processo da burocracia da licitação de eventos abriu espaço para compreensão e apropriação dos caminhos dos editais, tornando-a Produtora Executiva de diversos projetos, acessando diversos concursos. Somente após consolidar uma carreira como Produtora chegará ao trabalho de direção. No caso de Viviane diversas oportunidades viabilizadas pela organização social se somam aos seus próprios esforços de formação, e o filme que a leva a Cannes, autoral, foi resultado de um edital da Prefeitura Municipal de São Paulo. PLANO GERAL Se desconsiderarmos a questão racial e nos concentrarmos na questão de gênero, ao realizar uma pequena análise do percurso de mulheres no cinema também constatamos a lentidão dos avanços. A primeira mulher diretora de cinema, Alice GuyBlaché, realizou o seu primeiro filme em 1896 e o seu primeiro longa metragem, "La vie de Christ", em 1906. No Brasil, o primeiro filme dirigido por uma mulher aconteceu em 1930, e a pioneira foi Cléo de Veberenna com o filme "O mistério do dominó negro". Na década de 40 surgem mais duas diretoras: Carmen Santos e Gilda de Abreu. O filme "O ébrio", de Gilda de Abreu foi detentor, por 30 anos, do maior sucesso de bilheteria entre filmes nacionais. Na década de 60, encontramos o registro de Helena Solberg, como única diretora a participar do Cinema Novo. Com o surgimento do Movimento de Mulheres no Brasil e no mundo, na década de 70, surgem as primeiras diretoras engajadas: Teresa Trauttman, Tetê Moraes, Helena Solberg, entre outras. Surgem novos cursos de cinema que contribuem para aumentar o acesso a uma formação específica. Nessa década tiveram início os festivais de cinema de mulheres, na Escócia e em Nova Iorque, ambos em 1972, coincidindo com o surgimento do movimento feminista. A partir desse momento o cinema realizado por mulheres passa a ter maior visibilidade, quase como uma categoria a parte. II Congresso Internacional Sobre Culturas 271 A primeira diretora negra no cinema brasileiro foi Adélia Sampaio, que em 1984 realizou o seu primeiro longa, "Amor maldito", depois de ter realizado alguns curtas-metragens. A marcação temporal é de oitenta anos depois da primeira mulher cineasta e meio século depois da primeira brasileira cineasta. Na historiografia do cinema nacional não encontramos referências a Adélia, foi invisibilizada no percurso. A inserção do seu nome na história do cinema nacional se dá agora em 2016, quando novos atores (e atrizes) sociais retomam sua narrativa, fazendo uma revisão e apontando o esquecimento. Este desaparecimento das mulheres e das mulheres negras, como fatos menores, consolida o paradigma branco e masculino. A diretora Adélia Sampaio em entrevista ao site Blogueiras Negras(*) atribui às mulheres o papel, não reconhecido pela historiografia oficial, de força motriz da retomada do cinema brasileiro na era pós-Collor, década de 1990, citando as diretoras Carla Camuratti, Norma Bengell e Sandra Werneck. Também percebemos que muitos dos artigos que se referem ao Cinema Novo não citam Helena Solberg, única representante mulher do período. Num mercado ainda frágil e de difícil distribuição como o mercado audiovisual brasileiro, o cinema de autor circula principalmente por festivais. A chegada a Cannes, mesmo que em mostra paralela, credencia as diretoras e a produtora para muitos outros caminhos e alguma visibilidade. As novas tecnologias estão desenhando um outro cenário para produção, distribuição e diferentes possibilidades de articulação. Às políticas específicas de produção de cinema, somam-se outras importantes políticas públicas como a ampliação do número de universidades públicas, políticas de cotas de acesso às universidades, políticas de financiamento específico (FIES) para universidades e editais regionalizados com consequente descentralização da produção, que convergem com o avanço dos movimentos sociais organizados, novas tecnologias e novas mídias. Além disso, aconteceram editais específicos para diretores ou diretoras negras, realizados pelo Ministério da Cultura- MINC entre 2012 e 2014, e um edital para diretoras mulheres, o Edital Carmen Santos, lançado em 2013 também pelo MINC. Neste novo cenário, grupos de mulheres negras se articulam muito rapidamente, criando amplas possibilidades futuras de reivindicação de novos espaços, distribuindo, divulgando e revendo a história. Alguns festivais, desde 2015, começam a organizar mostras específicas para mulheres negras, a exemplo do Cachoeira Doc, realizado na cidade de Cachoeira (Bahia) e a Mostra Olhos Negros, realizado no Rio de Janeiro. A Universidade de II Congresso Internacional Sobre Culturas 272 Brasília recém realizou uma chamada de inscrição para a I Mostra de Cinema Negro Mulheres. CONCLUSÃO Se o cinema brasileiro está distante do imaginário popular, o cinema realizado pela mulher negra brasileira é ainda mais distante, conforme nos afirma Bell Hooks: "O sexismo e o racismo, atuando juntos, perpetuam uma iconografia de representação da negra que imprime na consciência cultural coletiva a ideia que ela está neste planeta principalmente para servir aos outros. Desde a escravidão até hoje" (HOOKS, 1995, p. 468). A misoginia e o racismo marcaram a trajetória no cinema das três mulheres. Desqualificação das vitórias, exigência da diversidade de papéis, provas constantes das competências em quaisquer dos caminhos traçados e superqualificação para garantir pequenas inserções. A rede de solidariedade construída e políticas específicas garantem, junto à tenacidade, persistência e capacidade de luta das três, a permanência no caminho escolhido. Viviane Ferreira escreve: "De acordo com ZENUM (2014), é do imperativo de implantar uma produção cultural capaz de “revelar o que nem sempre é visível e dar origem a novas representações” (DIAKHATÉ, 2011:85), que surge o cinema negro. Nesta concepção encontramos guarida para a compreensão do “movimento de translação” que, a cada ano, nos revela novas facetas da produção cinematográfica negra seja por meio da realização dos filmes: Cinzas (2015) de Larissa Fulana de Tal, Kbela (2015) de Yasmin Thainá, O Dia que Ele Decidiu Sair (2015) de Thamires Vieira, O Dia de Jerusa (2014) de Viviane Ferreira, Caixa D’água Qui-Lombo é Esse? (2012) de Everlane Morais, Aquém das Nuvens de Renata Martins (2012), Cores e Botas de Juliana Vicente (2008); ou por meio da atribuição de luz à produção cinematográfica de Adélia Sampaio – primeira mulher brasileira negra a dirigir um longa metragem – buscando a subjetividade de seu pertencimento racial em obras como Amor Maldito (1984)" (FERREIRA, 2016). A Bahia, sempre citada como de grande população negra, não deu régua e compasso, uma vez que ainda tem um mercado frágil, com pouca produção audiovisual e editais extremamente disputados. Todas as mulheres aqui citadas tiveram que buscar uma validação em outras paragens, outro estado ou país para sua II Congresso Internacional Sobre Culturas 273 afirmação. A participação em Cannes foi importante porque significa coroar e validar um caminho. Santo Antônio de los Baños, como centro de formação, Rio de Janeiro e Cataguazes, locais em que Joelma produz, São Paulo, onde trabalha Viviane, Toulouse, onde Ceci Alves realizou o seu mestrado profissional, caminhos de ressignificação das trajetórias, que se distantes da possibilidade imediata podem garantir a realização dos sonhos. Na busca de cada uma o sonho inicial de fazer cinema foi uma ousadia que parecia que não iria se concretizar, mas uma vez que o caminho começa a ser traçado, a marcação de um novo tempo, onde cada uma deverá abrir espaços para as que chegam, é um pensamento constante de cada uma delas, que entendem que a primeira chance, a formação, deva ser investimento necessário para quem quiser escapar das mais diversas armadilhas da exclusão histórica. O avanço vai permitir que a resposta à pergunta inicial, “Por que cinema?”, seja rebatida como o fez Ceci Alves: “por que não?”. REFERÊNCIAS ACSELRAD, Márcio , A teoria feminista vai ao cinema: configurações e reconfigurações do feminino na tela, Revista Vozes e Diálogos, V 14, nº 1, Itajaí, jan/jun 2015 ARAUJO, Joel Zito, A Negação do Brasil, Rio de Janeiro, São Paulo, SENAC, 2000, FERREIRA, Viviane, Cinema Negro: Totem sempre vem de longe, São Paulo, 2016, disponível em http://nobrasil.co/cinema-negro-totem-sempre-vem-de-longe/, Acesso em 12 out. 2016. HOOKS, Bell, Intelectuais Negras, Revista Estudos Feministas, nº2, UFSC, 1995, disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/viewFile/16465/15035, acessado em 09 set. 2016. KAPLAN, E. Ann, A Mulher e o Cinema os dois lados da câmera, Rio de Janeiro, Rocco, 1995. MARCONDES, Mariana Mazzini... [et al.].(org) - Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil / Brasília: Ipea, 2013. 160 p.: gráfs., tabs. RODRIGUES, João Carlos O Negro Brasileiro e o Cinema, São Paulo, Pallas, 2011, STAM, Robert, Multiculturalismo Tropical Uma História Comparativa de Raça na Cultura e no Cinema Brasileiro, São Paulo, EDUSP, 2008 II Congresso Internacional Sobre Culturas 274 GÊNERO E CRISE POLÍTICA: NOTAS SOBRE O DECLÍNIO DAS PRESIDENTAS SUL-AMERICANAS Fernanda Argolo118 RESUMO Nos últimos dois anos as três presidentas sul-americanas Cristina Kirchner, Dilma Rousseff e Michele Bachelet passaram por uma longa campanha de desgaste de suas imagens. As narrativas das crises enfrentadas por elas possuem elementos comuns: recessão econômica, corrupção e gênero. A última componente desta tríade da crise, o gênero das presidentas, é frequentemente considerado irrelevante pela opinião pública, mas, em observação mais acurada, dá-se a perceber como um dado central para entendermos algumas questões que vêm alimentando o descrédito nessas gestoras. Tendo como base essa problemática, este artigo reflete a partir da literatura feminista, de que modo as questões de gênero têm sido abordadas na cobertura da mídia para tratar o desempenho da mulher na política. Palavras-chave: Gênero. Mídia. Política. INTRODUÇÃO Na última década assistimos a ascensão de três mulheres ao comando do Executivo dos três países de maior expressão econômica da América do Sul: Chile, Argentina e Brasil. A vitória de Michele Bachellet, Cristina Kirchner e Dilma Rousseff constituiu uma marca importante na história do continente, marcado por uma cultura machista e patriarcal, e prometeu um novo cenário de participação das mulheres no campo político. Reeleitas com altos índices de popularidade, as presidentas sofreram um revés nos últimos dois anos, com uma intensa campanha contra seus governos e desgaste severo de suas imagens. Cristina chegou ao final do mandato em 2015 com uma intensa campanha de combate ao kirchnerianismo e não conseguiu eleger seu sucessor. A presidenta argentina ainda responde a processo de fraude contra a administração pública por prejuízo deliberado ao Estado119. No Chile, Bachelet em junho de 2016 chegou ao seu pior índice de popularidade, na casa dos 22%. Entre os motivos apontados para esse desempenho estão o baixo crescimento econômico, aumento da taxa de desemprego e as 118 Jornalista. Mestre em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia. Doutoranda IHAC/UFBA. Pesquisadora do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura da UFBA, vinculada ao grupo de pesquisa Miradas, Gênero, Cultura e Mídia. E-mail: nandaargolo@gmail.com 119 A acusação refere-se à medida adotada pelo Banco Central argentino para controlar a disparada do dólar, mas que teria resultado em grande dano aos cofres públicos (CUÉ, 2016). Adicionalmente, Cristina foi associada a diversas denúncias de corrupção e lavagem de dinheiro por meio do complexo de hotéis da família. II Congresso Internacional Sobre Culturas 275 manifestações estudantis contra o projeto de reforma universitária (G1, 2016). Entretanto a crise da presidenta chilena foi iniciada em 2015 a partir das denúncias de tráfico de influência e especulação financeira que envolviam, além de integrantes do governo, o filho e a nora da presidenta. Durante alguns meses a imprensa chilena especulou a possibilidade de renúncia, desmentida por Bachelet. O Brasil apresenta o quadro mais grave. Após a vitória para o segundo mandato, Dilma Rousseff enfrentou um quadro generalizado de instabilidade política e a recessão econômica alimentou o desgaste da popularidade da presidenta, potencializado pelos sucessivos escândalos deflagrados pela Operação Lava-Jato, que expunha os esquemas de corrupção no âmbito da Petrobras e que comprometia empreiteiras, doleiros e agentes políticos. O estado de ingovernabilidade da presidenta se consolidou e para além foi à frente o processo de impeachment que a afastou do cargo. A semelhança das crises enfrentadas pelas gestoras, com a incidência de elementos comuns, corrupção e crise econômica compôs um quadro intrigante, que se somou a outro dado contundente, a questão de gênero. O jornal The New York Times, durante o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff destacaria o fato de três mulheres presidentes perderem o apoio popular praticamente na mesma época, e depois de vitórias tão expressivas. O título da matéria questiona: - seria uma questão de gênero? (GILBERT, 2016). Neste sentido é que este trabalho tematiza como a categoria gênero tem influenciado a cobertura da mídia a respeito da entrada e desempenho no campo político, tomando como foco o enquadramento utilizado para descrever o comportamento das presidentas Cristina Kirchner, Dilma Rousseff e Michelle Bachelet ao longo de seus mandatos. Este artigo é parte de pesquisa de doutorado em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação Cultura e Sociedade, da UFBA, onde discutimos a influência da categoria gênero no desempenho das mulheres políticas, com estudo de caso sobre o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. MÍDIA E GÊNERO: O DISCURSO DA INCAPACIDADE AO CAMPO POLÍTICO Lauretis (1987), a partir de um argumento foucaultiano, destaca que não há “nenhuma realidade social para uma sociedade fora de seu sistema particular de sexoII Congresso Internacional Sobre Culturas 276 gênero (as categorias mutuamente exclusivas e exaustivas de masculino e feminino” (LAURETIS, 1987, p. 237). O campo político não foge a esta regra, pois se vê que o sistema sexo-gênero estabelecido em nosso corpo social demarca também a atuação política de homens e mulheres, e suas obrigações em termos de exposição midiática. Como instituição que se tornou ordenadora da sociabilidade, a mídia tem desempenhado papel central nas discussões políticas, organizando a agenda, impondo a lógica do escândalo ao debate político, e instituindo o que se convencionou chamar de opinião pública (CHAMPAGNE, 1998). Assim ela assume centralidade na formação e desenvolvimento das carreiras políticas. No caso das mulheres políticas a tendência observada pela literatura é de que a mídia usa enquadramento semelhante ao aplicado às celebridades para tratá-las, mas com fortes questionamentos à capacidade feminina de assumir determinadas funções no espaço público. Os discursos jogam com elementos que constituiriam a ‘natureza feminina’, atribuindo-lhes menos valor na comparação com as qualidades ditas masculinas. Como bem observado por Fraser (2015) os “padrões que consideram as qualidades ‘’masculinas’ melhor do que as ‘femininas’ estão arraigados nas nossas instituições e práticas sociais”, e a mídia reflete esse padrão, mantendo inalteradas as relações de poder. Foi a partir de estratégias semelhantes que Cristina Kirchner, Michelle Bachelet e Dilma Rousseff ascenderam à presidência da república. Mas ainda no período de campanhas eleitorais presidenciais a mídia sustentava argumentos de suspeição sobre a capacidade dessas mulheres para o mais alto cargo do Executivo. Os conteúdos frequentemente desabonavam as candidatas desqualificando-as enquanto sujeitos portadores de autonomias, mas como apenas ‘laranjas’ dos presidentes em exercício. (ARGOLO, 2014). Este comportamento torna-se claro ao verificarmos os discursos veiculados pela mídia. Em outubro de 2010, logo após o anúncio da morte de Néstor Kirchner, o Jornal da Globo em uma espécie de editorial televisivo fez uma análise do impacto da ausência do ex-presidente para a política Argentina. Após apontar que Néstor Kirchner controlava o governo argentino por meio da esposa, o âncora William Waack pergunta: “Qual é a sua impressão a respeito de Cristina Kirchner? Ela consegue governar sem o marido?” (G1, 2010). Este não é um caso isolado, Dilma foi intitulada “O poste de Lula” (ARGOLO, 2014, p.132-133), e durante a campanha de 2010, uma campanha de telemarketing questionava: “Será que a Dilma da conta, sem o Lula?”. II Congresso Internacional Sobre Culturas 277 A chegada ao segundo mandato das três presidentas parecia sinalizar o fim das desconfianças sobre o desempenho das gestoras, mas o cenário de crise econômica e escândalos de corrupção renovou o argumento da falta de adaptação daquelas mulheres ao jogo político. Os argumentos empregados pela mídia para tratar a crise vivenciada pelas gestoras são similares e destacam características das presidentas que dificultaram o rendimento à frente do cargo, e resultaram em falta de apoio a seus governos. Durante o levantamento dos conteúdos da imprensa verificamos títulos de matérias idênticos, de diferentes veículos, que tematizavam a crise de popularidade e a falta de apoio para ajudá-las a superar as crises: “A solidão de Cristina”, O Globo, outubro de 2012; “A solidão de Dilma Rousseff”, capa Revista Época, abril de 2016; “A solidão de Michelle Bachelet”, FolhaBlog, agosto de 2016. As três matérias passeiam pelo descrédito, queda de popularidade e dificuldade de apoio no poder legislativo, sem, no entanto, apresentar um contraponto, como as medidas oposicionistas que contribuíram para os quadros de instabilidade das gestoras. A opinião pública brasileira reforçou durante o processo de impedimento de Dilma Rousseff a “falta de jogo de cintura para se relacionar com o Congresso Nacional” (MONTEIRO; NOSSA, 2016). Cristina Kirchner foi acusada do mesmo: “O estopim para iniciar a manifestação urbana foi a falta de jogo de cintura de Cristina para resolver o conflito” (CLICRBS, 2008). Verifica-se em diferentes textos da mídia o argumento da incapacidade de diálogo e negociação das presidentas com seus pares e setores da oposição. No caso de Cristina Kirchner, a crise com a imprensa foi intensificada após a edição da Lei dos Meios de Comunicação que estabelece limites para a quantidade de emissoras de rádio, canais de televisão e operadoras de serviços pagos sob responsabilidade de um único grupo120. Em outra linha argumentativa, aparecem nos produtos da mídia questões de comportamentos e características inadequadas apresentadas por essas presidentas. Os discursos jogam com elementos que constituiriam a ‘natureza feminina’, atribuindolhes menos valor na comparação com as qualidades ditas masculinas. Como dito anteriormente, as mulheres ocupantes de cargos de poder passam por um jogo de adaptações, onde se institui uma equação entre características ditas 120 O regulamento obrigou o maior conglomerado de comunicação argentino, o grupo Clarín, a se desfazer de várias empresas, ensejando uma luta judicial entre o grupo empresarial e a presidenta argentina. II Congresso Internacional Sobre Culturas 278 femininas e outras ditas masculinas que devem ser assumidas por elas. Entretanto, autores (GENOVESE; THOMPSON,1993; SOURD; 2003) que trabalham com a temática de mulheres na política, têm apontado que determinadas características quando associadas ao masculino podem ser irrelevantes ou mesmo positivadas. Mas se associadas às mulheres assumem um significado negativo. Assim características como agressividade, centralização e arrogância associadas à Cristina Kirchner e Dilma Rousseff são considerados elementos que acarretaram o declínio de ambas (RANGEL, 2016). Novamente, se fazem presentes às questões de natureza cultural, mais especificamente as representações sociais partilhadas pelo senso comum, que essencializam o comportamento feminino, circunscrevendo-o à docilidade, fragilidade, e ao silêncio público. Observe-se que o contrário também é utilizado de modo discriminatório a ação das mulheres, que uma vez consideradas “muito femininas”, não estariam aptas a esses cargos. No Chile, Bachelet, é vinculada a uma imagem de gestora conciliadora, materna e por isso apontada como uma líder fraca (RANGEL, 2016). Outro aspecto explorado pela mídia para tematizar a presença das mulheres políticas refere-se a questões etárias e de saúde. De modo inflamado, em editoral do programa argentino Periodismo para Todos, exibido pelo canal El Trece, o âncora Jorge Lanatta disparou: “usted es sólo una pobre vieja enferma” (YOUTUBE, 2016). Em um dos episódios mais lamentáveis da cobertura da crise do governo Dilma Rousseff no Brasil, a edição de 01/04/2016 da Revista Isto É, trouxe uma reportagem sem fontes oficiais que afirmava o descontrole emocional da presidenta e comparava-a com a rainha Maria I, a louca. Os últimos dias no Planalto têm sido marcados por momentos de extrema tensão e absoluta desordem com uma presidente da República dominada por sucessivas explosões nervosas, quando, além de destempero, exibe total desconexão com a realidade do País. (...) Para tentar aplacar as crises, cada vez mais recorrentes, a presidente tem sido medicada com dois remédios ministrados a ela desde a eclosão do seu processo de afastamento: rivotril e olanzapina, este último usado para esquizofrenia, mas com efeito calmante. A medicação nem sempre apresenta eficácia, como é possível notar. (...) (PARDELLAS; BERGAMASCO, 2016) Esses episódios quando comparados ao enquadramento adotado para os homens na política revelam a desigualdade de tratamento e avaliação. A idade, II Congresso Internacional Sobre Culturas 279 aparência, ou estado de saúde no caso dos homens é argumento irrelevante para o exercício de suas funções públicas; no caso das mulheres, conforme observado é mais um elemento de constrangimento. Neste sentido, resta claro, que a relação entre a mídia e as mulheres permanece orientada por antigos papeis e estereótipos de gênero. CONSIDERAÇÕES FINAIS A saída das mulheres do espaço privado para o público não reconfigura de modo basilar as relações do espaço privado tampouco as institucionalidades do espaço público. A incorporação das mulheres aos espaços de poder, a exemplo, dá-se num modelo adaptativo, em que elas devem aprender e submeter-se àquela gramática, que por sua vez, denega a validade dos elementos associados à cultura feminina. Deste modo não se estabelecem rupturas, ou assimilações parte a parte, mantém-se inalteradas as relações de poder (ESTEVES, 2009). Em adição a literatura que versa sobre questões de identidade e justiça social ( YOUNG, 1996; FRASER, 2006) vai reafirmar que na relação entre mulheres e espaço político está evidenciado o problema da falta de reconhecimento social das mulheres, e as implicações de sua vinculação ao espaço privado. A mídia enquanto atual “centro de gravidade do espaço político” (CHAMPAGNE, 1998, p.139) continua a perpetuar as relações de poder baseadas no sistema sexo-gênero desqualificando as características associadas ao feminino, e tratando as mulheres políticas em representações estereotipadas e conservadoras. É neste sentido que Kellner (2001) reforça a necessidade de interpretação articulada dos textos da mídia, observando-se a dinâmica das relações e das instituições sociais, nas quais os textos são produzidos e consumidos. A semelhança das pautas e textos que vem acompanhando a trajetória das presidentas sul-americanas revela a tentativa de homogeneização do comportamento da mulher no poder, e desconsidera a autenticidade do indivíduo. Assim Cristina Kirchner, Dilma Rousseff e Michelle Bachelet figuram em um discurso padrão conservador, que desqualifica as características identificadas com o ‘feminino’ e corrobora o argumento da inaptidão da mulher ao campo político. II Congresso Internacional Sobre Culturas 280 REFERÊNCIAS ARGOLO, Fernanda. Dilma Rousseff: Trajetória e Imagem da Mulher no Poder. Salvador: UFBA, 2014. 151f. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidaes, Artes e Ciências Professor Milton Santos. Salvador, 2014. BOURDIEU, Pierre. O campo político. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 5. Brasília, janeiro-julho de 2011, pp. 193-216. CASADO, José. A solidão de Cristina. 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II Congresso Internacional Sobre Culturas 283 POR UMA DESCOLONIZAÇÃO DOS CORPOS NO DIREITO: TENSIONANDO OS LIMITES JURÍDICOS DO GÊNERO Carolina Grant* RESUMO O presente trabalho se propõe a analisar a forma como a questão de gênero se revela no ordenamento jurídico brasileiro, em um primeiro momento; as vivências de gênero e sexualidade que tensionam os limites encontrados, em um segundo momento; e, por fim, as alternativas possíveis que apontem para uma descolonização dos corpos desses indivíduos aparentemente ininteligíveis às normas de gênero e “inumanos”, em especial os corpos travestis e intersexuais. Para tanto, desenvolver-se-á uma pesquisa teórica, voltada para a análise de conteúdo da doutrina e legislação sobre o tema, tendo em vista a percepção tanto da visão consolidada, quanto das alternativas possíveis. Palavras-chave: Direito. Gênero. Biopoder. INTRODUÇÃO Utilizar a categoria “gênero” para pensar o Direito, na esteia do que realiza Scott (1995) com a análise histórica, significa lançar-lhe um olhar capaz de pôr em xeque um dos pilares mais sólidos e essenciais de todo o ordenamento jurídico: a aparentemente necessária diferenciação entre masculino e feminino, homem e mulher, enfim, o binarismo consolidado desde a Lei de Registros Públicos – que conduz a uma concepção a princípio imutável do nome e do sexo civil – até os seus múltiplos desdobramentos em um amplo rol de direitos específicos previstos em função do sexo de registro (direitos trabalhistas e previdenciários diferenciados, por exemplo). Erodir tais categorias, questioná-las, portanto, implica questionar a próprio lógica estrutural do Direito, a heteronormatividade que lhe é imanente – sobretudo quando a perspectiva de gênero adotada é queer (BUTLER, 2008; LOURO, 2008; MISKOLCI, 2009; GRANT, 2013). Valer-se, ademais, dos conceitos de biopoder e dispositivo (FOUCAULT, 1979; 1988), nesta missão voltada para o revelar da faceta gendrada (LAURETIS, 1987) do sistema jurídico, permite pôr em evidência uma compreensão do Direito * Mestre em Direito Privado e Econômico pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos pela Universidade Cândido Mendes (UCAM-AVM). Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora da Universidade Salvador (UNIFACS). Professora da Faculdade Baiana de Direito (FBD). Assessora de Gabinete de Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado da Bahia (TCE/BA). Pesquisadora nas áreas de Direitos Humanos e Internacional, Propedêutica Jurídica (IED, Filosofia do Direito, Antropologia e Sociologia Jurídicas, Hermenêutica e Metodologia), Direito Civil, Bioética e Gênero. E-mail: carolinagrant@hotmail.com. II Congresso Internacional Sobre Culturas 284 justamente como um dos mecanismos mais eficazes deste dispositivo da sexualidade – que produz ou força a produção de corpos e subjetividades – sobre o qual tanto nos alerta Foucault (1988); um mecanismo de gestão eficiente da vida e administração dos corpos, enquadrando-os de acordo com a norma heterossexual, para que cada um possa cumprir a função, o papel social que lhe fora designado desde (ou mesmo antes – LOURO, 2010) o nascimento. O que fazer, então, diante de corpos “abjetos” – corpos estranhos (LOURO, 2008), corpos intersexuais (PINO, 2007; CANGUÇU-CAMPINHO, 2012), corpos reinventados (BENTO, 2006), corpos transformados pelas tecnologias de gênero (PRECIADO, 2008; BENEDETTI, 2005) a ponto de se tornarem ininteligíveis para a linha de coerência entre corpo-sexo-gênero-sexualidade entranhada na linguagem e no imaginário social, para os quais esses corpos sequer chegariam a ser propriamente humanos (BUTLER, 2008)? É que se pretende discutir a seguir. A COLONIZAÇÃO DOS CORPOS PELO DIREITO Com o objetivo de resguardar a autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, a Lei de Registros Públicos (LRF – Lei n.º 6.015/1973) determina que todo nascimento ocorrido em território nacional deverá ser registrado dentro do prazo de quinze dias (regra) a três meses (exceção para os casos de lugares ermos), devendo constar da certidão de registro o prenome, o nome e o sexo da criança, dentre outras informações obrigatórias (art. 54). A partir de então, a LRF fixa os parâmetros de identificação da pessoa, cujos dados são considerados, via de regra, permanentemente imutáveis, salvo as hipóteses taxativas arroladas pela própria lei; tudo em prol da segurança jurídica. Ao fazê-lo, “o Direito fixa as bases mais elementares (nome e sexo) sobre as quais irão erigir-se a personalidade e a consciência de si do indivíduo, principalmente a partir do tratamento que lhe será conferido por seus pares e concidadãos” (GRANT, 2013). Ocorre que as bases utilizadas para o citado registro são exclusivamente biológicas, sobretudo no que diz respeito à definição do sexo e do nome da criança. Ou seja, é com base na identificação da genitália do bebê que o seu sexo será definido e um nome culturalmente considerado compatível com tal sexo, escolhido. O Direito, dessa forma, passa a funcionar como um importante mecanismo integrante do II Congresso Internacional Sobre Culturas 285 dispositivo da sexualidade (FOUCAULT, 1988) no Brasil, forçando a classificação prematura dos corpos e o seu enquadramento no binarismo dos sexos e gêneros. O mecanismo se intensifica à medida que, para além da classificação registral e a partir dela, o direito brasileiro passa a conceder ao indivíduo uma série de direitos e deveres em razão do seu gênero. É o que se pode inferir da própria análise do texto constitucional, a pedra angular – e, portanto, balizadora – de todo o ordenamento jurídico pátrio. Com efeito, embora o caput do art. 5º disponha que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, visando a alcançar uma igualdade material, no sentido aristotélico de “dar a cada um o que é seu”, ou nos termos em que se consolidou entre os constitucionalistas, “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade” (MELLO, 2000 etc), o inciso XX do art. 7º irá determinar a “proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei”; o art. 39, que fixa diretrizes gerais para o regime jurídico a que se submetem os servidores públicos, irá estabelecer, em seu §1º, inciso III, condições especiais e diferenciadas de aposentadoria para homens e para mulheres; o art. 143, §2º, irá dispensar as mulheres do serviço militar obrigatório; o art. 201, que trata da previdência social, em geral, irá, mais uma vez, fixar regras distintas para a aposentadoria de homens e de mulheres; e o art. 226 irá equiparar tanto a união estável entre o homem e a mulher à entidade familiar (art. 226, §3º – ainda que este entendimento, não sem muito debate, polêmica, questionamentos e dificuldades de implementação121 tenha sido ampliado para incluir as uniões entre “pessoas do mesmo sexo” (sic) após o julgamento conjunto da ADI 4277 e da ADPF 132122), quanto o exercício dos direitos e deveres conjugais da mulher aos do homem (art. 226, §5º). No contexto da doutrina constitucionalista brasileira, Manoel Jorge e Silva Neto (2006, p. 532) corrobora o que ora se expôs. Senão, vejamos: 121 Somente após a edição da Resolução n. 175/2013 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), foi que houve uma harmonização nacional do entendimento acerca da decisão proferida, no sentido de determinar aos cartórios que não mais se recusassem a celebrar “casamentos civis de casais do mesmo sexo” ou deixassem de converter em casamento a união estável homoafetiva. Cf. na íntegra notícia do STF sobre o assunto em: <http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/destaquesNewsletter.php?sigla=newsletterPortalInte rnacionalDestaques&idConteudo=238515>. Acesso em: 25 set. 2016. 122 Cf.: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178931>. Acesso em: 31 out. 2016. II Congresso Internacional Sobre Culturas 286 Dispõe o art. 5º, I, que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. O Texto Constitucional reconhece a igualdade entre homens e mulheres, conquanto ressalve que tal igualização se faz de acordo com a disciplina nela posta. Firmando a igualdade de cariz substancial, é a própria Constituição que promove tratamento diferenciado entre homens e mulheres no que se refere ao direito à aposentadoria, tanto no âmbito do serviço público (art. 40, III, alíneas a e b), como no setor privado (art. 201. §7º, incisos I e II). [...]. (grifamos). Ainda ao examinar o que diz a doutrina majoritária, José Afonso da Silva (2005, p. 217) associa a discussão sobre a igualdade entre homens e mulheres a uma igualdade entre os sexos, num reforço tanto à matriz binária, quanto ao fundamento biológico desta: Essa igualdade já se contém na norma geral da igualdade perante a lei. Já está também contemplada em todas as normas constitucionais que vedam discriminação de sexo (arts. 3º, IV, e 7º, XXX). Mas não é sem consequência que o Constituinte decidiu destacar, em um inciso específico (art. 5º, I), que homens e mulheres são iguais em direito e obrigações, nos termos desta constituição. [...] Importa mesmo é notar que é uma regra que resume décadas de lutas das mulheres contra discriminações. Mais relevante ainda é que não se trata aí de mera isonomia formal. Não é igualdade perante a lei, mas igualdade em direitos e obrigações. Significa que existem dois termos concretos de comparação: homens de um lado e mulheres de outro. Onde houver um homem e uma mulher, qualquer tratamento desigual entre eles, a propósito de situações pertinentes a ambos os sexos, constituirá uma infringência constitucional. (grifos do original e grifos nossos). Ingo Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2012, p. 536), por sua vez, mencionam a diferença biológica como elemento do qual decorreria o tratamento diferenciado entre homens e mulheres, o que poderia ser evitado através da observância do princípio constitucional da igualdade: [...] Ao proibir diferença salarial com base na diferença de gênero, por exemplo, a Constituição Federal não deixa margem de liberdade que eventualmente se poderia buscar, em termos de uma tentativa de justificar um tratamento distinto por conta, por exemplo, de eventual diferença biológica ou outro argumento. Convém registrar, que as cláusulas especiais de igualdade justamente foram uma resposta ao modelo da igualdade formal, no sentido de uma mera igualdade perante a lei. Além disso, tais cláusulas especiais cumprem a função de afastar os argumentos daqueles que buscavam, mediante uma demonstração da desigualdade entre diversas categorias de pessoas (filhos ilegítimos e filhos legítimos, homens e mulheres, negros e II Congresso Internacional Sobre Culturas 287 brancos, adeptos de determinada religião e os demais, não adeptos, nacionais e estrangeiros etc.) justificar como juridicamente legítimos toda sorte de tratamentos desiguais [...]. (grifamos). O que se pretendeu pôr em evidência com a brevíssima análise da legislação pátria e da doutrina majoritária realizada acima não foi, jamais, o desprestígio ou desvalorização das lutas feministas pela igualdade não apenas formal (“primeira onda”), como material (“segunda onda” em diante) entre homens e mulheres, mas a perspectiva gendrada, no sentido de Lauretis (1987) – isto é, marcada por especificidades de gênero e apoiada na diferença sexual – do Direito. Nesse sentido, esclarece De Lauretis (1987) que, “com sua ênfase no sexual, a ‘diferença sexual’ é antes de mais nada a diferença entre a mulher e o homem, o feminino e o masculino; e mesmo os conceitos mais abstratos de ‘diferenças sexuais’ derivados não da biologia ou da socialização, [...] acabam sendo [...] uma diferença (da mulher) em relação ao homem [...]” (grifamos). Dessa forma, o que se está a destacar é que tal diferenciação estabelece a compreensão do gênero como binária, dimórfica, sobretudo quando o fundamento é, tal qual adotado pela LRF, biológico. Por consistir num mecanismo integrante do dispositivo da sexualidade, o Direito revela e reforça a faceta não apenas negativa e normativa do poder (através de suas inúmeras proibições), mas a dimensão positiva, de biopoder, capaz de produzir corpos, sexos, gêneros e subjetividades, numa gestão eficiente da vida e suas potências, administrando corpos e os pondo a serviço da ordem vigente, como bem delineou Foucault (1988) e relata Roberto Machado: “A ação sobre o corpo, o adestramento do gesto, a regulação do comportamento (...) faz(em) com que apareça (...) esta figura singular, individualizada – o homem – como produção do poder (...) e ao mesmo tempo como objeto de saber”, explica Roberto Machado (In: FOUCAULT, 2009, p. XX). É por tudo isso que se afirmou que o Direito coloniza corpos, procurando torna-los dóceis e adstritos à (hetero)normatividade. CORPOS ININTELIGÍVEIS Existem, contudo, determinados corpos que dão ainda mais trabalho para serem devidamente “enquadrados” pelo Direito, são os corpos transexuais, travestis e, sobretudo, os corpos intersexos. Corpos que acabam, por isso, ficando à margem e II Congresso Internacional Sobre Culturas 288 tendo os seus direitos mais basilares, tais como os que decorrem de sua dignidade e personalidade, vilipendiados. Os corpos transexuais já foram considerados uma impossibilidade lógica tão grave, pelo Direito, que o médico que realizasse a cirurgia de redesignação sexual (“mudança de sexo”) até fins dos anos 1990 poderia ser acusado de praticar o crime de lesão corporal de natureza gravíssima (art. 129, §2º, III, do Código Penal Brasileiro) ou infração ética. Passaram, entretanto, a serem considerados doentes (desde a edição da primeira Resolução do Conselho Federal de Medicina sobre o assunto, a RES/CFM n.º 1.482/1997) e, de certa forma, embora a doutrina jurídica contemporânea, além dos estudos sociológicos e do próprio movimento social o questionarem, clamando pela despatologização desta experiência, ainda o são até hoje. Isso, porém, lhes conferiu o acesso a alguns direitos, como a realização do “processo transgenitalizador” pelo Serviço Único de Saúde (Portaria n.º 457/2008 do Ministério da Saúde), em se tratando da efetivação do direito à saúde, bem como à alteração do nome e do sexo registrais após a realização da cirurgia (entendimento já consolidado pela jurisprudência sobre a matéria). Ou seja, foi preciso promover o acesso à “adequação” do corpo das pessoas transexuais às suas respectivas identidades de gênero vivenciadas socialmente para que o Direito autorizasse o acesso a direitos fundamentais e da personalidade, por exemplo. Em contrapartida, existem corpos que não desejam se “conformar” à norma, serem “adequados”, como os corpos travestis, entendendo-se estes últimos como pertencentes àquelas pessoas que vivenciam um gênero supostamente incompatível com a sua genitália, mas não desejam modifica-la e, sim, conviver com ela. A esses corpos não se poderá exigir a prévia realização de procedimento cirúrgico para a efetivação de seus direitos da personalidade, por exemplo, como a mudança de nome e sexo civis, se desejarem. Para estes casos, o Direito passou a adotar uma medida paliativa, o uso do nome social123, capaz de lhes conferir o que Berenice Bento chamou de “cidadania a conta gotas” em palestra conferida à OAB/SP124. Embora aqui 123 Dentre as hipóteses mais abrangentes encontram-se as instituídas pela Portaria n.º 1.820/2009 do Ministério da Saúde, que admite o uso do nome social pelos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS); pela Portaria n.º 233/2010 do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, que prevê o uso do nome social pelos servidores públicos; pela Portaria n.º 1.611/2011 do Ministério da Educação (MEC), que estabelece a possibilidade de uso do nome social em instituições e estabelecimentos de ensino; e pelo Decreto n.º 8.727/2016, que dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. 124 Cf. <https://www.youtube.com/watch?v=2Kf7vzRiw0I>. Acesso em: 31 out. 2016. II Congresso Internacional Sobre Culturas 289 se reconheça a importância desta conquista, no sentido da inclusão social das pessoas travestis125, defende-se que é preciso ir além e permitir a alteração dos próprios documentos de identidade destas pessoas, não o uso de um nome alternativo, eventualmente. Há, ainda, os corpos intersexos, aos quais não se permite sequer existirem, no Brasil, quanto mais o seu reconhecimento enquanto tais. Tratam-se de corpos também considerados, pelo saber médico, como anômalos e passíveis de intervenção cirúrgica “corretiva”, conforme se depreende da RES/CFM n.º 1.664/2003, que “define as normas técnicas necessárias para o tratamento de pacientes portadores de anomalias de diferenciação sexual” (grifamos). De acordo com o art. 2º da referida resolução, “pacientes com anomalia de diferenciação sexual devem ter assegurada uma conduta de investigação precoce com vistas a uma definição adequada do gênero e tratamento em tempo hábil”. Ou seja, também estes corpos devem ser “adequados” ao binarismo dos sexos e dos gêneros, bem como devidamente “tratados” para que sejam incluídos no convívio social. Enquanto estes corpos não forem conformados, permanecem ininteligíveis às normas de gênero. Nesse diapasão, Judith Butler (2008, p. 38) explica que “gêneros ‘inteligíveis’ são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, pratica sexual e desejo”; sendo assim, a ininteligibilidade, por sua vez, decorre da descontinuidade ou quebra da lógica de coerência entre tais elementos. São estes corpos e experiências – cuja humanidade muitas vezes lhes é negada, dada à sua suposta impossibilidade lógica de existirem tal qual se apresentam – que tensionam os limites da colonização do gênero pelo Direito, posto que, a princípio, se mostram inclassificáveis. ALTERNATIVAS EM DISCUSSÃO É chegado o momento de retornar-se à pergunta que introduziu este trabalho: o que fazer com estes corpos “inclassificáveis”, “inumanos”, “abjetos” de que tanto falam os estudos queer126? Será que a forma como o Direito construiu respostas para 125 Cf. “Nome social é maior conquista para transexuais e travestis”. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2016/04/201cnome-social-e-maior-conquista-para-astransexuais-e-travestis201d-diz-lideranca-transexual>. Acesso em: 11 set. 2016. 126 Os estudos queer surgem das provocações oriundas do e promovidas no âmbito do próprio movimento social nos EUA, desde o final da década de 1980, mas, sobretudo, a partir da década de II Congresso Internacional Sobre Culturas 290 eles, via intervenções cirúrgicas (intersexuais e transexuais) e medidas paliativas (uso do nome social para travestis), tem se mostrado suficiente? Diante de tudo o que já se discutiu foi possível perceber que as conquistas sociais obtidas até então se deram às custas da imposição da necessidade de adequar, conformar, minimizar ou invisibilizar esses corpos indesejáveis. Tudo porque o paradigma de gênero adotado pelo Direito revelou-se binário, dimórfico e em última instância, estritamente biológico, enquanto os gêneros são múltiplos, múltiplas possibilidades de vivencia-los, construí-los, desconstrui-los e reconstruí-los ao longo de toda uma vida. Pressuposto para pensar-se alternativas é, portanto, assumir uma diferente concepção de gênero, por si só mais inclusiva. Sugerimos, então, a compreensão de gênero performativo de Judith Butler (2008), que, influenciada pela “Teoria dos Atos de Fala” de John L. Austin, de acordo com a qual enunciados performativos não seriam descritivos, não relatariam, nem constatariam nada – e, por isso, não se sujeitariam a um critério de verificabilidade (classificação como verdadeiro ou falso) – mas, sim, teriam a capacidade de realizarem uma ação (daí a origem do termo “performativo” que, no inglês, “to perform”, significa “realizar”), defende que: [...] se os atributos de gênero não são expressivos mas performativos, então constituem efetivamente a identidade que pretensamente expressariam ou revelariam. A distinção entre expressão e performatividade é crucial se os atributos e atos do gênero, as várias maneiras como o corpo mostra ou produz sua significação cultural, são performativos, então não há identidade preexistente pela qual um ato ou atributo possa ser medido; não 1990. Surgem frontalmente contrários à “lógica das minorias” (mais especificamente das “minorias sexuais”) e às políticas identitárias excludentes, questionando os pressupostos normalizadores que instituíram a heterossexualidade como padrão de orientação sexual, assim como fixaram o lugar do dominante e do alternativo/diferente. Ao assumir a terminologia queer, pretenderam retirar a carga injuriosa do termo (de anormalidade, desvio, perversão, estranheza), de modo a representar uma valorização simbólica da população excluída, marginalizada e potencialmente tida, também, como “abjeta”. Originários dos Departamentos de Filosofia e Crítica Literária, estes estudos sofreram ampla influência do pós-estruturalismo francês, que problematizava a compreensão clássica acerca do sujeito, de sua identidade, agência e identificação, rompendo com o paradigma cartesiano, fruto da Revolução Científica do Séc. XVII e do Iluminismo, enquanto premissa ontológica e epistemológica. O sujeito do pós-estruturalismo passa a ser compreendido, então, conforme esclarece Richard Miskolci (MISKOLCI, 2009, p. 152) como provisório, circunstancial e cindido. O foco dos estudos queer, portanto, tem sido o delineamento crítico da heteronormatividade e de suas correlatas implicações, a fim de promover a desconstrução desse modelo conformador tanto de identidades, corpos, sexos, gêneros e sexualidades, quanto das exigências de coerência entre estas dimensões do indivíduo, reafirmando a lógica inclusiva da diferença. II Congresso Internacional Sobre Culturas 291 haveria atos de gênero verdadeiros ou falsos, reais ou distorcidos, e a postulação de uma identidade de gênero verdadeiro se revelaria uma ficção reguladora. O fato de a realidade do gênero ser criada mediante performances sociais contínuas significa que as próprias noções de sexo essencial e de masculinidade ou feminilidade verdadeiras ou permanentes, também são constituídas, como parte da estratégia que oculta o caráter performativo do gênero e as possibilidades performativas de proliferação das configurações de gênero fora das estruturas restritivas da dominação masculinista e da heterossexualidade compulsória. (BUTLER, 2008, p. 201 – grifos do original e grifos nossos). O gênero não é, pois, um dado da natureza ou um construto social fundado nesta base biológica e, assim, passível de ser verificado objetivamente, constatado como verdadeiro ou não. É discursivo, assim como o corpo o é, construído na e pela linguagem, através de atos performativos. Uma construção que não está livre de choques, tensões, contradições, assimilações ou resistências. Por isso é também “uma complexidade cuja totalidade é permanentemente protelada, jamais plenamente exibida em qualquer conjuntura considerada. Uma coalizão aberta (...) identidades alternativamente instituídas e abandonadas (...) uma assembleia que permita múltiplas convergências e divergências, sem obediência a um telos normativo e definidor” (BUTLER, 2008, p. 37 – grifamos). Ao se assumir uma tal compreensão, antinormativa, não mais seria possível valer-se do Direito para fixar as possibilidades do sexo e do gênero, colonizando os corpos, mas, sim, impor-se-ia a necessidade de atribuir aos próprios sujeitos de direito a prerrogativa de dizerem o seu sexo e o seu gênero, exercendo sua autonomia e possibilitando a efetivação e reivindicação de seus direitos fundamentais, da personalidade e afins. Os Princípios de Yogyakarta127, elaborados por um grupo de organizações jurídico-humanistas com a finalidade de fortalecer a aplicação da legislação internacional contra a violação de direitos humanos por questões sexuais e de gênero, já adotavam um conceito de identidade de gênero não binário: A identidade de gênero, ao seu turno, para os fins do citado documento, corresponderia à “profundamente sentida experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso 127 Cf. na íntegra: <http://www.clam.org.br/uploads/conteudo/principios_de_yogyakarta.pdf>. Acesso em: 31 out. 2016. II Congresso Internacional Sobre Culturas 292 pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos”. Tais princípios poderiam orientar, desde já e por si só, não apenas a compreensão dos Direitos Humanos (isto é, da DUDH – Declaração Universal dos Direitos Humanos), mas da própria Constituição Federal, no que pertine ao tratamento igualitário e à não discriminação em razão do sexo e do gênero. Não obstante, projetos de lei também já foram pensados com o intuito de propiciar a aceitação e a inclusão de pessoas transexuais, travestis e intersex sem a necessidade de adequação de seus corpos à heteronormatividade. O projeto de lei do Estatuto da Diversidade128 (elaborado por mais de 60 Comissões da Diversidade Sexual e capitaneado pela Ordem dos Advogados do Brasil – OAB) prevê, dentre o seu amplo rol de dispositivos, os seguintes: Art. 37 - Não havendo risco à própria vida, é vedada a realização de qualquer intervenção médico-cirúrgica de caráter irreversível para a determinação de gênero, em recém-nascidos e crianças diagnosticados como intersexuais. Art. 41 - É reconhecido aos transexuais, travestis e intersexuais o direito à retificação do nome e da identidade sexual, para adequá-los à sua identidade psíquica e social, independentemente de realização da cirurgia de transgenitalização. Art. 42 - A alteração do nome e sexo pode ser requerida diretamente junto ao Cartório do Registro Civil, sem a necessidade de ação judicial. (grifamos). O projeto de lei de Identidade de Gênero129 (Projeto de Lei João W. Nery – elaborado pelos Dep. Jean Wyllys e Érika Kokay), por sua vez, embora foque no reconhecimento da identidade de gênero do indivíduo, não tendo a mesma abrangência do Estatuto da Diversidade (que inclui direitos previdenciários, trabalhistas e à educação, por exemplo), representa outra alternativa igualmente potencial no reconhecimento da pluralidade das identidades de gêneros, em oposição ao binarismo, ao prever que: 128 Cf. na íntegra em: <http://www.abglt.org.br/docs/ESTATUTO_DIVERSIDADE_SEXUAL.pdf>. Acesso em: 26 set. 2016. 129 Cf. na íntegra em: <http://prae.ufsc.br/files/2013/06/PL-5002-2013-Lei-de-Identidade-deG%C3%AAnero.pdf>. Acesso em: 26 set. 2016. II Congresso Internacional Sobre Culturas 293 Artigo 2º - Entende-se por identidade de gênero a vivência interna e individual do gênero tal como cada pessoa o sente, a qual pode corresponder ou não com o sexo atribuído após o nascimento, incluindo a vivência pessoal do corpo. Artigo 3º - Toda pessoa poderá solicitar a retificação registral de sexo e a mudança do prenome e da imagem registradas na documentação pessoal, sempre que não coincidam com a sua identidade de gênero auto-percebida. Artigo 4º, Parágrafo único: Em nenhum caso serão requisitos para alteração do prenome: I - intervenção cirúrgica de transexualização total ou parcial; II - terapias hormonais; III - qualquer outro tipo de tratamento ou diagnóstico psicológico ou médico; IV - autorização judicial. (grifamos). Ou seja, existem alternativas jurídicas viáveis e mais inclusivas para a população transexual, travesti e intersexual brasileira. Elas só precisam ser implementadas, seja a nível jurisprudencial (via interpretação conforme à Constituição e aos Princípios de Yogyakarta), seja a nível legislativo (o que seria, de fato, o ideal). CONCLUSÃO De todo o exposto, é possível inferir que, enquanto países como a Alemanha e a Austrália adotaram um terceiro gênero130, seguindo uma lógica identitária (isto é, criando mais uma categoria de gênero), a Argentina já aprovou a sua Ley de Identidad de Género131 desde 2012, apostando na possibilidade de o próprio indivíduo determinar o seu sexo e gênero, e o Brasil já conta com dois projetos de lei que contemplam as demandas transexuais, travestis e intersexuais sem demandar a adequação de seus corpos à heteronormatividade ou mesmo medicalizá-los. O debate está lançado, portanto, em termos de alternativas jurídicas possíveis. É preciso apenas intensificar a discussão sobre o que é gênero e o quanto a colonização dos corpos pelo Direito interfere ou mesmo inviabiliza a efetivação dos direitos desta população. Uma discussão que deverá se dar não apenas no campo 130 Cf.: <https://noticias.gospelprime.com.br/mundo-reconhece-terceiro-sexo/>. Acesso em: 26 set. 2016. 131 Cf. na íntegra: <http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/195000199999/197860/norma.htm>. Acesso em: 31 out. 2016. II Congresso Internacional Sobre Culturas 294 jurídico, mas prioritariamente no campo da ação política, uma vez que já se demonstrou que as alternativas pensadas não são incompatíveis com a ordem vigente, pelo contrário, representam uma maneira de conferir ainda mais efetividade à Constituição Federal (art. 1º, III; art. 5º caput e inciso X, etc.). REFERÊNCIAS BENEDETTI, Marcos Renato. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. BENTO, Berenice. 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II Congresso Internacional Sobre Culturas 296 KIKA A PERFEITA MULHER CASADA Marise da Silva Urbano Lima132 RESUMO Este ensaio tem por objetivo identificar a posição que a personagem Kika ocupa enquanto mulher evangélica e casada na narrativa do longa-metragem Amarelo Manga (Claudio Assis, 2002), a partir dos três olhares propostos por Laura Mulvey; dialogando com o modelo da perfeita mulher casada da Idade Média descrita por Luis de León no século XVI , ainda atual e reproduzido pelo audiovisual. Kika é uma personagem que carrega em si significados fincados na sociedade, como a perfeita para uns e a reprimida sexualmente para outros, enquanto evangélica. Palavras-chaves: Kika. Perfeita mulher casada. Amarelo Manga. INTRODUÇÃO Este ensaio é uma análise prévia da personagem Kika (Dira Paes) do longametragem pernambucano Amarelo Manga (Claudio Assis, 2002), cujo objetivo é perceber se a representação da personagem Kika produz um sentido para a trama ou, se apenas é portadora de significado reproduzindo um possível discurso cultural. “A perfeita mulher casada” é o título do livro de Fray Luis de León, publicado no século XVI cujo objetivo foi prestigiar uma mulher, considerada de importância naquela sociedade, que tinha se casado. Luis de León apresenta o modelo da figura feminina na Idade média sob a égide do cristianismo. O comportamento descrito por León nesta obra é percebida na atualidade “naturalizada” nos discursos e corpos de muitos homens e mulheres brasileiros. Em Amarelo Manga (Claudio Assis, 2002), a personagem Kika traz consigo traços culturalizados do comportamento perfeito de uma mulher casada. E o discurso de Wellington Kanibal (Chico Diaz) sobre sua esposa crente é uma fala comum de ser ouvida, ainda hoje, reforça o pensamento da Idade Média sobre as mulheres casadas. Percebe-se que este filme é um reflexo de uma parcela da sociedade brasileira. Os comportamentos apresentados pelas personagens Kika e Kanibal não são meras ilustrações irreais, elas transpõem a lente da câmera, são reproduções de comportamentos de pessoas comuns, em especial, as que vivem em comunidades 132 Cineasta, professora da rede pública de ensino e mestranda do Programa Multidisciplinar em Sociedade e Cultura pela UFBa. mariseurbano@bol.com.br II Congresso Internacional Sobre Culturas 297 periféricas, locais de grande aceitação do discurso evangélico neopentecostal. Aqui na periferia, se observa a Kika passando para ir aos cultos com sua bíblia embaixo do braço. Assim como também, homens discursando em alto e bom tom que preferem as crentes, um indicativo da fidelidade e honra a ele. Para analisar a personagem Kika no filme Amarelo Manga (Claudio Assis, 2002) me aproprio da metodologia das três visões indicadas por Laura Mulvey (1975), que na década de 70, em um segundo movimento feminista, em conjunto com outras mulheres, analisou as mulheres representadas pelos filmes clássicos de Hollywood e percebeu que haveria três olhares indicativos para se perceber a personagem feminina na trama. O que se constatou a mulher enquanto portadora de sentido, aquela cujo objetivo é ser enfeite da trama, uma possível beleza, usada enquanto objeto de prazer pelo olhar voyeurístico do homem. Sendo assim, no artigo O prazer visual, narrativa no cinema, Mulvey apresenta os três olhares, o primeiro referente à câmera, cujo plano desenha a personagem vista, o segundo olhar está vinculado ao olhar das personagens entre si, aqui usaremos o olhar Wellington Kanibal para entender quem é Kika, e, o terceiro olhar, diz respeito ao espectador (a), que analisa mediante informações apresentadas na narrativa através da linguagem cinematográfica e sua vivência de mundo. Neste ensaio faremos a análise dos três olhares. Começaremos pelo o olhar de Kanibal sobre Kika entendendo-a enquanto a perfeita mulher casada; em seguida, perceberemos Kika sobre a construção dos planos e de sua fala sobre si, e o terceiro olhar, a percepção da espectadora sobre Kika durante a trama. “Dona de casa muito respeitável, encontrou seu marido com a amante, ai a coisa ficou preta, Ela uma evangélica, partiu pra cima da fulana e foi um tal de Deus nos acuda, resultado, a amante no hospital ferida e a corna ninguém sabe, ninguém viu. ” Essa é a história narrada pelo radialista de uma rádio, ouvida por Isaac (Jonas Bloch) em seu carro enquanto percorre por Recife. Esta é a descrição antecipada da história de Kika, a evangélica, que só saberemos ao término da trama. II Congresso Internacional Sobre Culturas 298 A PERFEITA MULHER CASADA – KIKA SOB O OLHAR DE KANIBAL Em sua primeira aparição no filme, em um ambiente de carnificina, onde se vêem carnes penduradas e sangue pelo chão, vísceras pelos cantos; encontramos Wellington Kanibal que diz: Eu sou capaz de matar um homem. Entre todas as espécies que habitam o mundo, o homem é o bicho que mais merece morrer. Na verdade isso é uma coisa minha, por isso me chamam de Kanibal, Wellington Kanibal. Olha, a única coisa que eu não seria capaz de matar é Kika, não é a mulher mais bonita do mundo não, mas é a melhor, porque é crente. É. Que Deus a conserve daquele jeito assim. Por Deus eu lhe digo, em Manolo, eu confio mais em Kika que em mim. Ela diz cada coisa bonita. O termo crente aqui usado é referente a pessoas que congregam em igrejas evangélicas, aquelas que crêem em Deus mediante a Bíblia. Kanibal já diz neste momento que “[...] Kika, não é a mulher mais bonita do mundo não, mas é a melhor, porque é crente.” A beleza física de Kika é avaliada por ele em primeiro momento, logo em seguida o discurso de admiração e de comparação, afirmando que ela é a MELHOR por ser crente. Por ser religiosa. Além disso, ele afirma confiar mais em Kika do que nele próprio. Sobre isso, Luis de León (s/d, p. 26) diz que a primeira obra louvável da mulher é gerar em seu marido a confiança – recaindo sobre a mulher a responsabilidade do homem em acreditar nela – Para isso, a mulher é responsável pela construção e manutenção da conduta ideal para o conforto e bem estar de seu marido. Em um segundo momento, enquanto entrega carne ao Hotel Las Vegas, conversando com Dunguinha (Matheus Nachtergaele), Dunguinha – E dona Kika. A quantas anda? Wellington – Aquela ali com a graça de Deus é ajuizada. Crente. Qualquer dia, sabe, Dunquinha, sou eu que embarco nessa. To mesmo precisando parar de fumar. Dunguinha – Aquela que é mulher de sorte, come muita carne, não é? Wellington – Gosta não. Ela na cama é até fraquinha. Ela é boa como mulher. É crente. Dunguinha – Risos. Para Kanibal Kika é ajuizada, tem juízo, não o desonrar. Ele continua, e diz que ela é fraca na cama, mas é boa, porque é crente. Novamente ele compara o algo II Congresso Internacional Sobre Culturas 299 físico a posição de fé que Kika ocupa, na fala anterior se referiu a beleza e agora ao ato sexual, em ambos os casos ela tem poucos créditos, mas estes são superados por ela ser crente e ajuizada. Ser temente a Deus é para Kanibal sinal de orgulho e adoração, León (s/d, p. 19), afirma que Deus ama a mulher que é santa e honesta. E continua afirmando que a boa mulher é adorada por seu marido. (León, s/d, p. 20) Para León a perfeita mulher casada é uma raridade e assim deve ser encarada, pois, para ele, uma pedra preciosa é rara e o homem que encontrar esta raridade valiosa deve se sentir rico e venturoso. Este é o estado em que Kanibal é apresentado ao se referir a Kika. Para León, o homem deve respeitar sua esposa a fim de manter a mulher de valor ao seu lado. Contudo, não é o que acontecerá entre Kika e Kanibal, pois Kika descobre a traição de Kanibal e some. Dayse (Magdale Alves), a amante, fica ferida e Kanibal vai conversar com Dunguinha e relata o ocorrido Wellington – Kika Dunguinha, Kika me pegou com Dayse. Kika comeu a orelha de Dayse. [...] Kika desapareceu. To puto com Dayse, Dunguinha. Puto. Me separar da bichinha. Fui em casa, não vi Kika. Quero Kika. Kanibal demonstra tristeza pela perda de sua pedra preciosa, de Kika, aquela que não é a mulher mais bonita do mundo e é fraquinha na cama, mas é a boa mulher por ser crente. QUEM É KIKA? O OLHAR DA CÂMERA Kika é apresentada por um plano médio durante um culto religioso, onde ouvimos o pastor dizer que Aleluia irmãos, devemos temer ao Demônio e glorar ao senhor. Não devemos dar espaços em nossas mentes, para que satanás invada nossos corações. Amém? E faça sua morada. Aleluia. A arma contra o sofrimento é a crença em nosso senhor Jesus Cristo. Amém. Louvemos ao Senhor. II Congresso Internacional Sobre Culturas 300 Kika na celebração do culto religioso Para o pastor, crer em Jesus Cristo é vencer todo sofrimento que acometa ao crente. E é o caminho que Kika percorre, pois se comporta de forma a temer o demônio que se sujeita a carne. Kika é vista em planos abertos em conjunto ou geral. Ela caminha nas ruas, muitas vezes da direita para esquerda, percebemos sua vestimenta comportada e seu cabelo sempre preso, em suas mãos tem a Bíblia. Kika pela rua em direção ao ponto de ônibus Em sua casa, conhecemos um espaço limpo e organizado, onde há inúmeros objetos com citações de passagens bíblicas, desde a própria Bíblia a quadro com mensagens bíblicas na parede da cozinha. II Congresso Internacional Sobre Culturas 301 Kika em casa Kika vira-se ao se perceber frente ao espelho de sutiã e calcinha. Uma demonstração do pudor que há nesta personagem. Ela nega-se. Kika no quarto de costas para o espelho Quando se arruma para sair de casa e descobrir se Kanibal está a traindo, ela abaixa-se e pega por detrás do guarda-roupa um batom vermelho que ela coloca na bolsa, percebemos neste quadro, que a Bíblia encontra-se aberta sobre a cama. Kika no quarto abaixa-se para pegar o batom detrás do guarda-roup II Congresso Internacional Sobre Culturas 302 Kika ao perceber a traição, pula furiosa sobre Dayse e Kanibal, agredindo a ambos e sai, percorrendo da direita para esquerda com passos ligeiros e desorganizados e agora de cabelos soltos. Kika caminha pela rua após descobrir a infidelidade de Kanibal Isaac aparece em seu carro ao lado dela e pára, ela pergunta o que ele quer, ele manda que ela entre, ela não rejeita o convite e entra, no carro, Isaac pergunta se é sangue na blusa dela e ela diz: “Arranquei a orelha da amante do meu marido. (Risos seguindo de silêncio) Era uma mulher morta por dentro.” Primeira vez que Kika rir em toda trama, e pôde se definir enquanto uma mulher que estava morta, referindo-se ao fato de se anular diante do mundo. Kika com Isaac no carro Daí em diante Kika se torna uma mulher “viva”, transa com Isaac. No dia seguinte, retira a aliança do dedo e lança à rua, assim, não será mais a perfeita mulher casada. II Congresso Internacional Sobre Culturas 303 Kika no dia seguinte a descoberta infidelidade de Kanibal KIKA – UMA MULHER REPRIMIDA Kika é admirada por Wellington, o que deixa a entender em suas falas. Kika é uma mulher que usa saia longa e camisa de manga, anda com os cabelos presos e a Bíblia debaixo do braço. Uma personagem comum de ser vista pelos bairros da periferia. A primeira aparição de Kika se dá em um culto religioso, onde ela ouve a pregação e confirma com um “Amém”. Kika percorre as ruas com passos tímidos e organizados, os quais serão distorcidos quando ela se tornar a outra Kika, ou renascer, já que ela diz que estava morta por dentro. O se esconder do reflexo frente ao espelho. O batom escondido detrás do guarda-roupa. A reviravolta tomada por Kika depois da descoberta da traição, cria no espectador (a) a sensação de se tratar de uma mulher reprimida sexualmente por conta de sua crença. Ela se nega a carne/corpo e vive em espírito, como se diz nas igrejas evangélicas. Contudo, esse viver no espírito, é considerado o estado de morte, na fala da própria personagem. Uma mulher reprimida. Uma mulher que se esconde ou tem sua sexualidade escondida pela religiosidade é o que fica visível nesta personagem. CONSIDERAÇÕES Kika é a representação de um discurso de que a mulher crente é a ideal para o matrimônio, pois esta personagem é rara, uma pedra preciosa, como diz León (s/d) por II Congresso Internacional Sobre Culturas 304 ser temente a Deus, honrar sua casa e seu marido, e obter a confiança do homem, como ocorreu com Kanibal. Quando Kanibal conversa com sua amante Dayse ela chega a dizer que “as crentes são as mais safadas”. Um discurso que recorre às mentes de um coletivo, pois se acredita que se esconder por debaixo de vestimentas longas e reprimir os desejos. Claudio Assis apresenta-se como figurante e diz ao pé do ouvido de Kika em dado momento que “O pudor é a forma inteligente de perversão”. Com a fala de Dayse e do figurante e analisado o final da trama, compreendo que Kika é a uma personagem carregada de significados culturais, ora, enquanto a mulher perfeita, ora como a crente pudica que deseja se libertar sexualmente e quando o faz, torna-se outra pessoa. Os dois comportamentos passeiam sobre o imaginário coletivo, sobre o olhar dos outros, Kika não disse o que era e quem era, foi/ é construída sobre o olhar do outro. Kika é uma personagem portadora do significado de repressão sexual a partir da crença religiosa. REFERÊNCIAS AMARELO MANGA. Claudio Assis. Olhos de Cão Produção. 100min. Recife: 2002 GUBERNIKOFF, Giselle. A imagem: representação da mulher no ciınema. Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 8, n. 15, jan./jun. 2009. LEÓN, Luis de. A perfeita mulher casada. São Paulo, Editora Escala; S/d. KAPLAN, E. Ann. A mulher e o cinema: os dois lados da câmera. Rio de Janeiro: Artemídia; Rocco, 1995. MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. 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A obra que analisamos é a série Os normais, programa que foi exibido pela Rede Globo de Televisão, entre os anos de 2001 e 2003, dirigida por José Alvarenga Júnior e roteirizada por Fernanda Young e Alexandre Machado. Palavras-chave: Comédias televisivas. Televisão brasileira. Narrativas seriadas A base lógica do casamento é o recíproco mal-entendido Oscar Wilde Lembro-me de ler em Nestor Canclini (1995, p.103) uma frase de Wim Wenders sobre motivos para se contar histórias. Dizia ele o seguinte: “En tanto que los hombres producen nexos y concatenaciones, las historias hacen la vida soportable y son un auxilio contra el terror”. Não pude encontrar motivo mais importante do que esse para que me pusesse a reler e rever mentalmente programas televisivos, filmes, peças de teatro, espetáculos, livros. Senti que compreendia e muito a frase de Wenders, bem como o sentido de que as histórias que me acompanham – e tomo a liberdade de pensar as histórias que nos acompanham – deixam a vida mais leve, suportável. Em uma busca por histórias, surgiu a ideia de propor um estudo para compreender mais a fundo a construção dessas narrativas que me salvam. Foi então que optei por pesquisar narrativas seriadas de humor, mais especificamente, narrativas cômicas televisivas. Escolher um corpus para pesquisa não foi tarefa fácil. Entre tantas opções, estava uma série que me acompanhou durante a adolescência e que, depois de descobri-la disponível na internet, passou a também me acompanhar na minha idade 133 Mestrando em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Participa do grupo de pesquisa A-Tevê – Laboratório de análise de teleficção. Email: emaxsuelroger@gmail.com II Congresso Internacional Sobre Culturas 306 adulta. Trata-se da série Os normais, que foi ao ar entre os anos de 2001 e 2003, pela Rede Globo de Televisão, tendo como roteiristas principais Fernanda Young e Alexandre Machado. Ao escolher esta série, alguns questionamentos começaram a surgir, sobretudo a ideia de como funcionam as séries que apresentam o universo da representação de casal como principal foco de atenção, ou, sendo mais específico, como se dá a construção de representação de casais em comédias televisivas. Esse foi o questionamento que me trouxe a teorias, a análises e a muita pesquisa. O primeiro ponto da pesquisa que gostaria de abordar é a descoberta da importância do humor para a televisão brasileira. É ponto comum em biografias e trabalhos de historiadores, como as biografias de Daniel Filho (2001), José Bonifácio de Oliveira Sobrinho – o Boni – (2011), estudos sobre Guel Arraes e suas experimentações humorísticas televisivas (FECHINE, 2007), que o humor se fez presente nos primeiros momentos da televisão, o mesmo humor que já tinha uma forte tradição nas rádios. Muitos humoristas, inclusive, transitavam entre essas duas mídias. O repertório e a experiência do humor nas rádios se fez cada vez mais forte na televisão, como conta Daniel Filho (2001) em sua biografia que também é, de certa forma, a biografia da teledramaturgia brasileira, até o ponto de muitos artistas se fixarem na mídia nascente, como foi o caso de um dos mais importantes produtores de conteúdo humorístico da televisão brasileira: Cassiano Gabus Mendes. Mendes foi, inclusive, o diretor de uma comédia televisiva com a primeira representação de casal, uma espécie de adaptação de uma série televisiva estadunidense chamada I love Lucy: a série Alô, doçura!, que foi ao ar entre os anos de 1951 e 1963, protagonizada por Elva Wilma e John Hebert. Esta série, inclusive, foi criada para rádio, pelo pai de Cassiano, Octávio Gabus Mendes. Desde suas primeiras experiências, o humor na televisão ganhou um espaço importante na grade de programação, ao ponto de ser quase impossível um canal de tevê aberta não investir em núcleos cômicos. Entender as raízes do humor na televisão tornou-se uma tarefa imprescindível para melhor compreender em qual cenário se insere a série Os normais. Em busca de uma compreensão da série pesquisada, fiz um levantamento sobre a trajetória dos roteiristas, como uma forma de contextualizar em qual vertente de humor esta série estava vinculada. Em suas primeiras participações na RGT, Fernanda Young e Alexandre Machado trabalharam como roteiristas para o programa A comédia da vida privada, programa baseado, inicialmente, nas crônicas de Luís Fernando Veríssimo. Veríssimo é um escritor bastante conhecido e reconhecido II Congresso Internacional Sobre Culturas 307 por suas crônicas. Aliás, são muitos os jornalistas, escritores e dramaturgos que se dedicaram a este gênero da literatura, alguns, inclusive, com trabalhos que se destacaram na televisão durante as décadas de 1960 e 1970, como foi o caso de Mário Prata. Na década de 1980, grupos como Casseta Popular e Planeta Diário fizeram participações em importantes programas de humor, como foi o caso de TV Pirata e Dóris para maiores. Com a fusão dos dois grupos, surgiu o programa Casseta e Planeta, Urgente! que teria um longo percurso na televisão, sendo exibido de 1992 a 2010. A tradição do humor presente na crônica jornalística brasileira está fortemente relacionada com algumas séries de humor da televisão. Muitos roteiristas de tevê que surgem no final da década de 1980 tinham trabalhos publicados em jornais e revistas alternativas – Alexandre Machado era um deles. A série Os normais, desse modo, pode ser vista como uma série que dialoga com a tradição do humor antes veiculado em crônicas jornalísticas e em programas radiofônicos. Além das raízes do estilo de humor que é apresentado na série analisada, há um outro fator que também é preciso mencionar: trata-se da experiência do núcleo Guel Arraes. Este núcleo de criação e produção de conteúdos televisivos é bastante conhecido por suas experimentações e também por aproximar colaboradores oriundos do cinema e do vídeo independente (FECHINE, 2007). Muitos escritores cronistas/roteiristas trabalharam como membros da equipe de produção desse núcleo. É o caso de Alexandre Machado e Fernanda Young. O núcleo Guel Arraes abriu possibilidades para que novos cronistas, comediantes e dramaturgos do humor participassem e construíssem programas cômicos na tv. Os roteiristas Alexandre Machado e Fernanda Young seriam, desse modo, uma nova geração de escritores que encontraram, no núcleo Guel Arraes, um espaço na televisão. Quando fiz um esforço de retornar à série que impulsionou esta pesquisa, passei a rememorar alguns casais importantes da literatura, do cinema e, mesmo, da televisão. Foi um exercício preliminar, uma tentativa de captar o universo ao qual um artista, em seu momento de criação, recorre, pois, lembrando um pouco a fala de Peter Pal Pélbart (2000), o artista é aquele que viu demais e foi atravessado por outras obras. E, essas obras, por sua vez, devem transitar por sua criação, ainda que seja de forma inconsciente. Assim, as inúmeras representações de casal podem ser encaradas como modelos para ele – o artista – construir sua própria. Das inúmeras representações de casais existentes, tentei me aproximar de uma que fosse significativa, ou seja, uma representação de casal que tivesse importante respaldo no mundo ocidental. Foi assim II Congresso Internacional Sobre Culturas 308 que cheguei a Adão e Eva, talvez a mais icônica no ocidente judaico-cristão. Um esforço para interpretar o modo como se deu a construção dessa representação de casal foi empreendido e consegui algumas pistas para analisar o casal de Os normais. É conhecida a história de que Deus criou Adão do barro. Eva, como viria a se chamar sua companheira, foi criada a partir de uma costela de Adão. Em uma interpretação possível, Eva é a primeira representante da humanidade, ou seja, ela representa um ser humano que teria sido gerado a partir de outro ser humano. Desse fato aparentemente simples, inicia-se um processo bastante complexo, pois Eva se torna uma personagem bem mais complexa no decorrer da breve narrativa; Eva se encanta com a possibilidade de tornar-se conhecedora do bem e do mal, pois é uma personagem que apresenta curiosidade em relação ao mundo, ao mesmo tempo em que se mostra disposta a correr riscos e desafiar regras estabelecidas por Deus. É Eva quem prova do fruto proibido e o entrega para que Adão faça o mesmo. Em resumo, neste casal há um personagem que movimenta a narrativa, ao passo que o outro torna-se seu cúmplice. Um teria a disposição de sair de seu lugar de conforto e, neste ato, consegue demover seu companheiro. Uma característica desse casal é o fato de que a cumplicidade os une; é por meio da cumplicidade que se inicia a história bíblica. Essa característica, presente em uma narrativa milenar, perpassará grande parte das representações de casal durante séculos, chegando às narrativas contemporâneas. A seguir, apresento uma análise preliminar do primeiro episódio da série Os normais, como tentativa de explicitar algumas caminhos para pensar a construção de representações de casais em comédias televisivas. O primeiro episódio da série Os normais pode ser dividido em três atos. O primeiro ato revela o comportamento dos personagens preparando-se para um encontro. O segundo momento se inicia com o jantar em um restaurante, quando encontram um outro casal que acredita que Ruy e Vani se relacionam sexualmente com outros casais. Há o desenvolvimento de mal entendidos por parte dos quatro personagens que acabam indo procurar um baile funk, erram o caminho, são assaltados e ficam nus próximos a um motel. O terceiro e último ato é a resolução dos mal entendidos neste motel. As frases “Somos todos malucos” e “Quem não quer ver malucos deve quebrar os espelhos” atribuídas pelos autores a Voltaire, ilustram os primeiros questionamentos feitos pelos personagens de Ruy e Vani, sobretudo ilustrando o que é ser normal. Ruy e Vani, em planos diferentes, dialogam com a câmera sobre esse II Congresso Internacional Sobre Culturas 309 assunto, apresentando perspectivas diferentes. Ruy aparece tomando banho e discorrendo sobre como lhe parece normal a maneira como se ensaboa. Vani, por sua vez, está em um monólogo com o público refletindo sobre o que é ser normal, sobre suas constatações de normalidade, ainda que sinta vontade de se suicidar com um sabonete. Essas primeiras cenas dialogam entre si, com planos entrecortados dos dois personagens como se os dois estivessem mantendo uma conversa. Palavras, inclusive, ditas por um são retomadas pelo outro. Dessa apresentação de personagens, fica a ideia de que a personagem com maior propensão ao risco, a aventuras, ou seja, a personagem que assume o papel de movimentar as narrativas que se seguirão será Vani. Na cena do restaurante, há o início do segundo movimento do episódio. Vani, depois de ter comido um cabelo de Ruy para provar que ela não tinha nojo dele, sai para vomitar no banheiro. A personagem de Drica Moraes – Beth – encontra com Vani no banheiro e interage com ela oferecendo um remédio tarja preta. Ao retornar do banheiro, os dois casais começam a reparar uns nos outros. Logo, por uma percepção equivocada do parceiro de Beth, Tato, o casal começa a prestar atenção em Ruy e Vani como se fossem praticantes de swing. Novas cenas entrecortadas entre os casais vão construindo piadas independentes. Por fim, Ruy e Vani saem do restaurante e são seguidos pelo outro casal, que insinua querer continuar com os dois. O mal entendido faz com que Ruy e Vani ofereçam carona. Os desentendimentos continuam. Os quatro personagens estão no carro de Ruy. Vão trocando percepções acerca das músicas que estão sendo tocadas na rádio até que Vani tem a ideia de ir a um baile funk. Eles se perdem, são assaltados e ficam sem roupa. O início do terceiro ato se dá com a entrada no motel dos quatro personagens. Lá, entre confusões e desacertos, as verdadeiras intenções de Ruy e Vani são reveladas. Apresenta-se, então, a piada final com a mãe de Vani, que aparece no motel por engano e flagra a filha com outras três pessoas peladas. Trata-se de um episódio introdutório, mas bastante revelador da forma como se dará a construção da representação do casal. Vani será protagonista nas escolhas de aventuras, ao passo que Ruy será seu quase fiel companheiro. Juntos, o casal demonstra ao público a cumplicidade que os une e como esse elemento será importante em qualquer outra situação vivenciada por eles em seu cotidiano ficcional, em suas narrativas. E para retomar a passagem que abriu esse texto e a necessidade de se analisar narrativas produzidas e moldadas pela lógica do capital, bem como a II Congresso Internacional Sobre Culturas 310 complexidade embutida neste processo, é sempre interessante ressaltar que elas estão nos relatos do cotidiano que tentam abarcar um pouco o universo de complexidades a que estamos submetidos, no lugar para se falar e trazer o riso, para deixar a vida mais suportável. REFERÊNCIAS BORDWELL, David. Figuras traçadas na luz: a encenação no cinema. Campinas: Papirus, 2008. CANCLINI, Néstor Garcia. Consumidores y ciudadanos. Conflictos multiculturales de la globalización. México: Editorial Grijalbo, 1995. FECHINE, Yvana. O núcleo Guel Arraes e sua “pedagogia dos meios”. Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação – Compós. Vol. 8, 2007. FILHO, Daniel. O circo eletrônico. Fazendo TV no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. MILLS, Brett. The Sitcom. Edinburgh: Edinburgh University Press Inc, 2009. OLIVEIRA SOBRINHO, José Bonifácio. O livro do Boni. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2011. PÉLBART, Peter Pal. A vertigem por um fio. Políticas da subjetividade contemporânea. São Paulo: Editora Iluminuras, 2000. ROWLANDS, Marks. Tudo o que sei aprendi com a TV: A filosofia nos seriados de TV. 1ªed. Rio de Janeiro, 2008. II Congresso Internacional Sobre Culturas 311 ENTRE FÁTIMA E APARECIDA: ESTILO E PROCESSOS DECISÓRIOS NAS TRANSMISSÕES AO VIVO DA EMISSORA CATÓLICA TV APARECIDA Caio Barbosa Nascimento134 RESUMO Neste artigo, analisamos os processos decisórios implementados pela equipe de produção da TV Aparecida para transmitir a Missa de entronização da imagem de Nossa Senhora de Fátima no Brasil em maio de 2014. O intuito é evidenciar, a partir da metodologia dos pesquisadores Michael Baxandall e David Bordwell, a existência de um estilo próprio deste canal nas práticas telemidiáticas religiosas católicas. Partimos do pressuposto que os processos de composição e implementação dessas estratégias são permeados de decisões tomadas pelos integrantes da equipe que dialogam com tradições estilísticas, estético-religiosas que as precedem e concluímos que a transmissão buscou dar acesso à celebração aos fiéis fisicamente distantes possibilitando, neste percurso, experiências de devoção religiosa e participação do evento em questão através da mídia. Palavras-chave: Estilo. Televisão. Experiência religiosa. A RELIGIÃO EM VIAS DE MEDIATIZAÇÃO Os produtos criados pela linguagem audiovisual e transmitidos pela televisão tornaram-se, ao longo das últimas décadas, mediadores de experiências intelectuais, sociais, culturais, afetivas e até mesmo religiosas, como pretendemos mostrar neste trabalho, para muitas pessoas. Desta forma, esta mídia tem contribuído significativamente para moldar e para expressar, em alguns aspectos, a subjetividade e a identidade do homem contemporâneo. A dimensão religiosa, historicamente associada a espaços bem definidos e fortemente institucionalizados como “sagrados”, encontra também neste meio de comunicação possibilidades de gerar “experiências que se assemelham às dimensões “religiosas” de comunhão extática, mistério, destino apocalíptico, ou visão transcendente” (STOLOW 2014, p.152). Isso porque, para além da dimensão do sentido, que exige do homem apenas um esforço interpretativo para compreender uma “mensagem”, a própria linguagem televisiva utilizada com maestria por mãos que dominam sua materialidade e 134 Mestrando em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia. E-mail: caiobn.j@gmail.com II Congresso Internacional Sobre Culturas 312 linguagem próprias, é capaz de suscitar afetos, guiar o olhar e possibilitar experiências diversas. A partir desta perspectiva, partimos do pressuposto de que podemos entender quais as causas específicas (recursos, estratégias, efeitos pretendidos) e os modos de expressão postos em uso por agentes históricos envolvidos nos processos decisórios implementados pela direção de produção de TV, e toda a sua equipe, para gerir a programação e orientar a elaboração midiática de uma transmissão ao vivo. ESTILO E PROCESSOS DE DECISÃO NA TRANSMISSÃO TELEVISIVA O corpus de nosso trabalho consiste nas transmissões feitas pela TV Aparecida do evento que inaugurou as comemorações do surgimento das duas principais devoções religiosas de matriz católica em Portugal e no Brasil: as aparições de Nossa Senhora de Fátima em Portugal e a aparição da imagem de Nossa Senhora Aparecida no Brasil. Ambas as devoções comemorarão, respectivamente, 100 e 300 anos de existência em 2017, por isso, foi promovida por decisão dos bispos de Aparecida do Norte – SP e de Leiria - Fátima, um evento religioso simbólico: a “entronização” da imagem de Nossa Senhora de Fátima no Brasil, em maio de 2014, cuja transmissão televisiva para o Brasil, Portugal e diversos países da Europa e da África, pretendemos analisar. Compreendemos que durante a transmissão televisiva de uma Missa ao vivo, existem diversos processos de composição e implementação de estratégias que são permeados de decisões tomadas pelos integrantes da equipe que dialogam com tradições estilísticas estético-religiosas e midiáticas que as precedem e que têm buscado resolver um problema específico: o melhor acesso possível à celebração pelos fiéis fisicamente distantes; possibilitando, neste percurso, experiências de devoção religiosa e participação do evento em questão através da mídia. Para analisar essas estratégias expostas, utilizaremos o arcabouço teórico e metodológico desenvolvido por dois autores que trabalham com perspectivas semelhantes sobre produtos culturais e artísticos distintos: o galês Michael Baxandall (2006) com a pintura e o americano David Bordwell (2009) com cinema. Apesar da diferença dos produtos analisados, ambos os pensadores têm pontos que se tocam profundamente e são contribuições essenciais para pensar autoria e estilo nos produtos midiáticos. II Congresso Internacional Sobre Culturas 313 Michael Baxandall problematizou em sua obra Padrões de Intenção: a explicação histórica dos quadros (2006) modos de se aproximar historicamente de pinturas, preocupado com a intenção presente na obra, o autor da própria obra e todo o contexto que envolve esse processo. Ele desenvolveu o esquema analítico que leva em conta três fatores para compreender uma obra: “os encargos e diretrizes [de quem a desenvolveu], os conceitos pertinentes aos recursos que ele usou ou deixou de usar e os conceitos referentes à descrição propriamente dita [do objeto]” (BAXANDALL 2006, p. 71). A partir deste triângulo, seja em sua totalidade ou em algum de seus elementos, nos é possível compreender as escolhas individuais do produtor, os problemas que ele visava solucionar e os recursos que tinha à sua disposição para solucioná-lo, sempre “guiado pelos vestígios visuais, pela materialidade da obra” (FONSECA 2014, p. 46). Já o pesquisado americano David Bordwell, em sua obra Figuras traçadas na luz (2009) aponta que compreender os modos de expressão presentes nas obras e nas escolhas efetuadas pelos seus criadores é caminho para entender quais os efeitos ele queria alcançar e as estratégias utilizadas para isso. Falando sobre cinema, ele explica que a própria obra apresenta elementos expressivos em sua materialidade e em sua linguagem que são resultado do processo criativo dos autores e são esses elementos “transmitidos pela iluminação, pela cor, pela interpretação, pela trilha sonora e por certos movimentos de câmara” (BORDWELL 2009, p. 60) que nós apreciamos ao nos depararmos com a obra. A partir desta perspectiva teórica, nosso intuito é evidenciar: 1 – quais os efeitos pretendidos pela equipe de direção, e pelo diretor do programa em questão, Ronaldo Souza, durante o processo de transmissão da Missa em questão; 2 – quais as estratégias utilizadas, os modos de expressão criados e os estilos desenvolvidos para dar conta de alcançar os efeitos pretendidos. No primeiro objetivo, queremos dialogar com o lugar da Encomenda e da Diretriz proposta por Baxandall135, ou seja, quais necessidades específicas estavam 135 O interesse de Baxandall está em explicar a intenção artística presente nas obras de arte a partir de suas causas e do seu contexto. Ao falar de causa de uma obra de arte ele não se restringe a responder perguntas demasiadamente genéricas sobre o que levou a realizar aquela obra. Mas busca saber que problema visava solucionar. Por isso ele utiliza os conceitos de Encargo e Diretriz. O Encargo se refere às condições específicas do processo de produção de uma obra e é dado, por exemplo, pela instituição que encomenda determina obra ou produto e tem necessidades que o artista deve tentar atender na execução de sua obra. Mas esse encargo não é ainda muito claro. Ele só vai tomando forma com as diretrizes. Essas que vão formatando a obra e implicam na escolha de determinado material, no diálogo com tradições obras com as quais o autor tem contato, e o desejo de realizar algo novo que avance nessa II Congresso Internacional Sobre Culturas 314 postas para serem respondidas com transmissão desta celebração (encomenda) e quais eram as condições também específicas engendradas neste processo (diretriz). E, no segundo objetivo, com base em Bordwell, queremos pensar a questão dos modos de expressão utilizados pela equipe de TV, e pelo diretor especificamente, para possibilitar a concretização dos efeitos pretendidos. No entanto, o espaço disponível para esse trabalho e a complexidade do método abordado não nos permitiram realizar uma analise mais pormenorizada, utilizando todas abordagens metodológicas de Baxandall, bem como outras perspectivas e abordagens de Bordwell. A TV Aparecida é um canal concedido à Fundação Nossa Senhora Aparecida que é gerida pelos padres Redentoristas (congregação religiosa que desenvolve, em todo o mundo, trabalhos também ligados aos meios de comunicação social) e possui parâmetros bem claros do que desejam para a programação e quais critérios e efeitos ela deve produzir. Em entrevista gravada em 2014 por ocasião do aniversário de nove anos da emissora, o padre redentorista Josafá Moraes, diretor geral da TV Aparecida, explicou quais os objetivos das transmissões efetuadas pelo canal, sobretudo da Missa, levando em conta o progresso tecnológico da emissora que implantou o sistema de transmissão em HD. “A televisão nos encanta com sua parte de equipamento, tecnológico, porque nos faz ter uma aproximação muito maior do sagrado e a gente faz uma experiência mais profunda. [...] A gente vai viver emoções mais fortes. E como a gente trabalha com espiritualidade isso vai tocar e transformar a todos nós.” (a.12.com, 20014, destaque nosso) Podemos inferir que, por ser um canal relativamente novo, com uma equipe pequena e formada, em sua maioria, por membros da Igreja Católica, instituição essa que possui uma forte estrutura hierárquica e que tem orientações precisas136 sobre os tradição. É preciso saber nestas amplas possibilidades o que, realmente, nos interessa para compreender o objeto específico que estamos estudando. 136 A Igreja Católica possui, de fato, diversos documentos com orientações precisas sobre a produção e consumo dos produtos midiáticos e de seus conteúdos. Entre esses documentos, destacamos as Cartas para o Dia Mundial das Comunicações Sociais. Neste texto publicado anualmente, o papa – líder máximo da Igreja Católica Romana – explica quais intenções as pessoas, famílias e instituições ligadas à Igreja devem visar ao fazerem uso dos meios de comunicação. Apesar de abordarem temas específicos, pudemos notar nos estudos realizados para nosso TCC da graduação em Comunicação Social, que o objetivo é conduzir o homem e a sociedade para este “religare” com o sagrado e com Deus. II Congresso Internacional Sobre Culturas 315 objetivos dos meios de comunicação utilizados por instituições a Ela ligadas, que este espírito imbui toda a prática e o trabalho dos profissionais que lá atuam. De fato, no depoimento concedido a nós pelo diretor de produção, Ronaldo Souza, o profissional que possuiu a palavra final durante a transmissão da celebração de Entronização, faz eco à entrevista concedida pelo padre diretor geral, ao dizer que: “[...] me preocupei em desenvolver, junto com toda a equipe, uma linguagem na qual o telespectador tivesse a oportunidade de fazer uma experiência orante. Que a partir da semiótica da Missa, pudéssemos levar a quem está em casa o sentido da liturgia e da Missa parte por parte.” (2016, grifo nosso) Analisando a transmissão específica, e com base nesses depoimentos, nos foi possível perceber que o encargo da TV Aparecida, acatado pelo diretor responsável, para a transmissão da Missa e da celebração de entronização da imagem de Nossa Senhora de Fátima em Aparecida, seja proporcionar aos fiéis católicos que assistem à celebração de suas casas uma experiência com o sagrado através dos meios de comunicação. O diretor de produção foi o profissional que teve que lidar com as expectativas, pressões e tensões advindas da instituição TV Aparecida que decidiu transmitir o evento promovido por duas dioceses católicas no Brasil e em Portugal para, a partir das tradições profissionais com as quais ele se envolveu, suas competências técnicas, equipe, material e estrutura à sua disposição, realizar a transmissão para dar conta da encomenda e avançar nesta área de atuação; até mesmo para ser reconhecido pelos seus pares. A partir disso, podemos passar para a análise do produto para perceber nele os elementos de expressão, na perspectiva de Bordwell, que respondem a esse efeito almejado. Queremos assim reconhecer e classificar o que é estilo nesta obra, identificando a recorrência de traços marcantes, que o historiador da arte inglês, Ernest Gumbrech (1990) vai chamar de “tradição”, sempre tencionada com o processo de “criatividade”. Já entre as diretrizes podemos destacar que a celebração da Missa que deu início à Entronização da imagem de Fátima no Brasil ocorreu dentro do Santuário de Aparecida e que toda a programação e o roteiro do rito já estavam preparados e não estavam sobre o controle do diretor de programação e de sua equipe. Tudo que eles puderam fazer foi transmitir o ritual e o evento sem alterar a sua tradição milenar. O diretor de programação determina qual a posição da câmera e define os ângulos e II Congresso Internacional Sobre Culturas 316 planos durante a gravação. Naquele momento, o equipamento de transmissão ainda era analógico (mudou para HD alguns meses depois). A estrutura para transmissão consistia em cinco câmeras robóticas fixas em pontos estratégicos no Santuário Nacional e duas câmeras móveis. Além disso, o departamento operacional disponibilizou mais duas câmeras, uma na saída da Porta Santa e duas próximas ao local onde a imagem foi entronizada. Neste trabalho, elegemos alguns aspectos da transmissão que consideramos mais relevantes para entender o ofício do diretor de programação da TV Aparecida e como as suas escolhas dialogam com uma tradição consolidada de transmissão da Missa Católica, sendo capaz, no entanto, de criar um estilo próprio, tendo em vista proporcionar aos “telefiéis” que assistiram a celebração de casa, uma experiência de caráter religioso, o efeito pretendido. Durante a celebração, cerca de 40 mil pessoas estavam na Basílica de Aparecida e 25 mil do lado de fora assistindo a Missa por um telão. A maior parte dos fiéis que estavam lá dentro não teve acesso visual aos detalhes do rito, às sutilizas da liturgia, e um contato mais direto com as imagens sagradas e com todos os símbolos que comportam o ritual católico. Já os telefiéis que assistiram de casa a celebração da entronização, puderam ver com riqueza de detalhes tudo que estava acontecendo, nos ângulos mais privilegiados. No momento da transubstanciação, o ritual mais importante da Missa católica, enquanto o bispo traça o sinal da cruz sobre hóstia e vinho, a transmissão ficou mais focada, com movimentos em zoom in, e enquadramentos mais fechados para que o telespectador também pudesse contemplar este ato. Todo o momento da liturgia eucarística ganhou grande destaque, sobretudo quando o pão e o vinho consagrados foram elevados sobre o altar e ficam sobre primeiríssimo plano enquanto os sinos da basílica repicavam. Além disso, durante a celebração, também os elementos arquitetônicos do templo, seus vitrais, imagens sacras e a própria imagem de Nossa Senhora de Fátima, vinda e presenteada por Portugal, são focalizadas em situações e ângulos estratégicos. Por exemplo, quando a música sacra está sendo executada, com canções que fazem parte do repertório tradicional da Igreja Católica e que, associadas a movimentos de câmara, seja em panorâmica, chamando a atenção para a arquitetura, ou o tilt, com o movimento vertical da câmara, destacando as pinturas sacras expostas no teto do templo. Ou seja, o trabalho do diretor ao explorar os aspectos plásticos, artísticos e estéticos do rito e do templo onde ele é celebrado através da materialidade própria do II Congresso Internacional Sobre Culturas 317 seu ofício, alinhado a outros elementos estéticos, é capaz de possibilitar experiências religiosas aos fiéis que se aproximam de forma única e privilegiada, midiatizada, não natural do evento que ali se desdobra e dos seus personagens. Neste processo, o diretor de produção repercute um modo de transmitir a Missa cuja tradição está ancorada no Centro Televisivo Vaticano, nas Missas celebradas pelo papa. O próprio produtor reconheceu que há muitas diferenças de costumes, posturas e cultura entre os europeus e os brasileiros, mas que busca referências no trabalho técnico que vem de Roma e tenta adaptá-lo à forma de celebrar a Missa no Brasil, mais especificamente no Santuário Nacional. Outro momento importante da celebração também ganha destaque no processo de criação de efeitos religiosos ao telefiel: a transmissão da procissão de saída da imagem de Nossa Senhora de Fátima do templo para a área externa onde acontece o ritual de entronização. Durante toda a procissão de saída, enquanto o Pe. Antônio Maria entoava canções marianas tradicionais, os takes da imagem de Nossa Senhora de Fátima que saia em procissão, era ora alinhada à imagem de Cristo crucificado ou do Cristo pintado na parede, em contraplongée, como se viesse dele ou fosse por ele enviada ou, ainda, estritamente vinculada à imagem de Seu Filho, e por efeito de fusão se sobrepunha aos fieis presentes no templo, em plongée, acima deles a abençoá-los. Desta forma, através da posição das câmaras, inferimos que o diretor foi capaz de expressar ao público que tem um repertório da fé católica, um dos pontos mais importantes do dogma desta Igreja: a intercessão realizada por Maria entre a humanidade e seu Filho Jesus. Esta ação não é fruto do acaso, mas a compreendemos como resultado de uma intenção do próprio diretor de produção, que é católico e tem uma formação toda dentro da Igreja Católica, como resposta ao problema que lhe foi dado: inspirar devoção aos telefiéis. Outros pontos da celebração também contribuíram, na mesma perspectiva, para propiciar essa experiência religiosa. Pretendemos, no entanto, desenvolver esse estudo em outro momento de nossa pesquisa. CONCLUSÃO A transmissão televisiva diária de um evento que parece se repetir há quase 2 mil anos, a Missa Católica, pode se apresentar como um desafio para o diretor. A II Congresso Internacional Sobre Culturas 318 celebração que analisamos aqui teve problemas únicos para os quais foram encontradas soluções específicas no processo de tradução da celebração em linguagem midiática. Queremos chamar a atenção para importantes questões: primeiro, que apesar de dialogar com o modo como este produto é criado em outros contextos históricos e sociais, o modo como a Missa é transmitida em Aparecida tem características únicas e modos específicos de lidar com o ritual católico. Segundo: que o processo de decisão e as escolhas estilísticas de cada diretor não são frutos do acaso, mas são desenvolvidas num âmbito de expectativas de quem encomendou essa transmissão com as quais o diretor tem que lidar para realizar o seu ofício do modo que lhe parece melhor; e que existem condições específicas de estrutura, equipe, formação e tradições que contribuíram para o resultado visto na televisão. Concluímos ainda que são essas mesmas escolhas, dentro da materialidade própria da linguagem televisa que foram capazes de proporcionar os efeitos de devoção religiosa, pretendidos e anunciados, e que foram se consolidando durante momentos singulares do processo de composição do produto e que só podemos compreender ao olharmos para a obra. REFERÊNCIAS BAXANDALL, Michael. Padrões de Intenção: a explicação histórica dos quadros. Salgueiro, SP: Companhia das Letras, 2006. BORDWELL, David. Figuras Traçadas na Luz: A encenação no cinema. Campinas, SP: Papirus, 2008. (Coleção Campo Imagético). STOLOW, Jeremy. Religião e Mídia: notas sobre pesquisas e direções futuras para um estudo interdisciplinar Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 34(2): 146-160, 2014. FONSECA, Diogo Guedes Duarte da Subversão em três quadros: padrões de intenção na obra de Laerte Coutinho / Diogo Guedes Duarte da Fonseca. – Recife: O Autor, 2014.126 f.: il. II Congresso Internacional Sobre Culturas 319 LINGUAGEM E PRODUÇÃO AUDIOVISUAL NA ERA DA COMUNICAÇÃO INTERATIVA: A LINGUAGEM AUDIOVISUAL EM CANAIS DO YOUTUBE NO BRASIL E EM PORTUGAL Fernando José Reis de Oliveira137 Carine Batista Ribeiro138 RESUMO A esfera da comunicação guarda íntima relação com a dimensão da cultura, onde valores e símbolos flutuam ao sabor da representação e dos interesses, por vezes conflitantes, de atores, que trabalham na produção e reprodução da ordem social. Este trabalho apresenta os resultados de uma pesquisa sobre as transformações na produção cultural e simbólica do campo audiovisual, com as possibilidades abertas pelos inúmeros recursos técnicos e práticas da comunicação interativa, através das redes digitais de comunicação, cujas mudanças repercutem na qualidade e diversidade da produção audiovisual, e suas linguagens, destinada à plataforma Youtube. Palavras-chaves: Produção audiovisual. Linguagem audiovisual. Comunicação interativa. Ciberespaço. Youtube e prossumidor. APRESENTAÇÃO Costuma-se afirmar que a primeira Revolução Industrial foi de origem britânica, enquanto a das novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) – a Revolução Informacional e Tecnológica - em franco desenvolvimento, é de origem norte-americana, com veia californiana. Neste caso estamos diante das grandes mudanças no paradigma tecnológico da sociedade contemporânea, centrado nas tecnologias digitais da informação e da comunicação. Em ambas constata-se o envolvimento de atores – governos, políticos, conglomerados empresariais, industriais, cientistas, organismos multilaterais, investigadores, pesquisadores, formadores de opinião, publicitários e marqueteiros, artistas e celebridades - enfim, profissionais das tradicionais mídias de massa (o jornal, o rádio, a televisão e a indústria do cinema, etc,.), bem como pesquisadores, estudiosos da comunicação, da cultura e da mídia. É no ambiente atual da cultura da virtualidade real que vemos uma explosão da produção audiovisual voltada para plataformas de mídias sociais, criadas por blogueiros, 137 Dr. em Comunicação (PUC-SP), Professor-Adjunto e Vice-diretor do Departamento de Letras e Artes da UESC. E-mail: fjrdeoliveira@gmail.com 138 Graduada em Comunicação Social – Rádio e TV pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), e-mail: carineribeiro14@gmail.com II Congresso Internacional Sobre Culturas 320 vloggueiros, etc., em regime de colaboração compartilhada de conteúdos através das mídias sociais e dispositivos de mídias móveis, influenciando definitivamente comportamentos, condutas sociais, sentidos de pertencimento ao ambiente cultural e midiático da sociedade atual. Eis o que vamos examinar nas breves linhas desse artigo. DA COMUNICAÇÃO DA MASSA À COMUNICAÇÃO INTERATIVA: O PAPEL DAS MÍDIAS SOCIAIS A transformação mais significativa no processo de comunicação da sociedade contemporânea foi a transição da comunicação de massa – representada pelos veículos tradicionais de comunicação, o rádio, o jornal (mídia impressa) e as redes de televisões tradicionais, estruturadas pelos advento dos grandes conglomerados empresariais de comunicação no mundo e no Brasil – para a comunicação através da infraestrutura das redes digitais de comunicação, que se tornou possível com a criação do ciberespaço – cyberspace - o desenvolvimento da internet e sua consolidação como principal meio de comunicação interativa do capitalismo informacional na era digital. Pierre Lévy (1997) distingue três grandes categorias de dispositivos de comunicação, a saber: a comunicação do tipo um-todos, a comunicação um-um e a comunicação do tipo todostodos. No primeiro caso um centro emissor envia mensagens a uma gama de receptores passivos e dispersos; este é o caso típico da televisão, do rádio e do jornal; no segundo temos o exemplo que se aplica perfeitamente ao telefone e o correio, onde a comunicação se faz segundo contatos ponto a ponto, de indivíduo a indivíduo. O último caso expressa a comunicação no ciberespaço; um espaço inteiramente novo onde sujeitos individuais e coletivos podem constituir de forma progressiva e compartilhada o universo de suas relações e seus textos audiovisuais em comum. O mundo da internet é um ciberespaço, um cérebro global, que cria as condições para uma nova cidadania eletrônica criada pelos homens em suas trocas através de redes de comunicações. Ele é, em última instância, uma encarnação do mundo virtual, um lugar onde se embaralha a ideia de interconexão, técnica, simbolismos, natureza e sociedade. A primeira definição de ciberespaço é atribuída ao escritor William Gibson, que criou o termo cyberspace em Neuromancer, publicado em 1984, em referência à palavra necromante, feiticeiro que desperta dos mortos, noção que por sua vez remete à experiência de desencarnação – o corpo deixa a carne para viver fora dela. O ciberespaço é o espaço-tempo eletrônico da interconexão digital entre computadores, II Congresso Internacional Sobre Culturas 321 viabilizada pelas redes digitais, que permitem o processamento de informações e dados: O ciberespaço – que chamaremos também a “rede” – é o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores e das memórias informatizadas (...) Uma das ideias, ou talvez devêssemos dizer, um dos impulsos mais fortes na origem do ciberespaço é o de interconexão. (LEVY, P. 1997, apud MUSSO, P. 2006, P. 195). O ciberespaço é uma dimensão eletrônica criada pelas redes de comunicação interativas e suas interconexões entre computadores: é um espaço de redes interligadas, constituindo-se em novo meio de comunicação, a partir do momento em que surge a interconexão de computadores. A construção do ciberespaço baseia-se no sistema de vínculos de lugares, cuja ligação se faz através de redes, nas quais os próprios lugares também são redes que conectam cérebros e computadores, daí muitos estudiosos acreditarem na hibridação entre homem e máquina, pela assimilação entre cérebro e rede de computadores. Segundo LÉVI (1997) apud MUSSO (2006) enquanto os meios de comunicação de massa tradicionais, difundem uma informação gerada e programada de um centro de emissão para uma infinidade de receptores anônimos, passivos e isolados uns dos outros – esse é o modelo de comunicação de massa da imprensa, cinema, rádio e televisão, operando em sua forma clássica – o ciberespaço não opera com centros de difusão direcionados a receptores. Contrariamente, trata-se de espaços comuns onde cada pessoa pode oferecer a informação que dispõe e retirar desse ambiente (mercado de informação) aquilo que lhe interessa, sendo que a iniciativa parte do próprio solicitante. O ciberespaço estimula a troca recíproca e comunitária – convoca as pessoas para as inúmeras possibilidades práticas de comunicação interativa e compartilhadas no uso de imagens, sons e letras, etc., - enquanto as tradicionais mídias de massa – a imprensa, o rádio e a televisão – prezam pela comunicação unidirecional na qual os receptores tendem ao isolamento mútuo. REDES SOCIAIS E PRODUÇÃO AUDIOVISUAL COLABORATIVA As mídias sociais forjam diariamente o ambiente de nossas vidas, e nossa própria percepção da realidade, recriando o mundo em uma aparente imagem de uma II Congresso Internacional Sobre Culturas 322 aldeia global. Já vimos que as mídias tradicionais - a exemplo do rádio, do cinema e sobretudo da televisão, configuram sua estrutura comunicativa como uma via de mão única – não obstante os esforços para ampliar a participação do público em modelos do tipo “você decide”. A estrutura de mídia da internet, sobretudo com o desenvolvimento da comunicação interativa e a cultura do compartilhamento, através das redes de mídias sociais – que também está na base da evolução dos movimentos sociais do século XXI, vide (CASTELLS,1999,2014, 2015) - foi o passo crucial para a revolução atual da comunicação e o retorno do audiovisual, controlado e guiado pelos próprios usuários, redirecionando a sensibilidade humana novamente para os ouvidos, os olhos e a voz. É nesse novo ambiente informacional, social e cultural que devemos analisar as mudanças nos processos de comunicação através das redes de comunicação interativa e as práticas de criação compartilhada de conteúdos audiovisuais, com as possibilidades abertas pela internet através das mídias sociais e sua interconexão entre redes digitais e dispositivos móveis, acessível a todos. Segundo Castells (2015) a evolução da comunicação para os dispositivos sem fio, através das chamadas mídias móveis, permitiu conectar dispositivos, dados, pessoas, organizações, criando uma ampla teia de comunicação – resultando na explosão dos sites de redes sociais (SNS, de Social Networking Sites ou SRS, Sites de Rede Social). As redes sociais surgem em 2002, como sites de serviços baseados na web, tonaram-se plataformas para todos os tipos de atividades: Friendster, Facebook, YouTube, Twenti, QQ, Baidu, Cyworld, Vkontakte, Skyrock, Orkut e tantos outros. O desenvolvimento da autocomunicação de massa através das redes digitais baseadas na internet - a rede das redes - e nas plataformas sem fio tornaram-se ferramentas decisivas para mobilizar, organizar, coordenar, deliberar e decidir na era da sociedade em rede. Nos dias atuais, a atividade mais importante na internet ocorre através das redes sociais, plataformas abertas à criatividade cultural, distribuição de mídia e conteúdo de entretenimento, educação, e-commerce, marketing, aplicação de saúde e ativismo sociopolítico, além de espaço de conversão, bate-papos e amizades. As mídias sociais tornaram-se espaços de convivência que permitem conectar todas as dimensões das experiências pessoais; elas podem produzir e compartilhar realizações conjuntas, produzem conteúdos, estabelecem vínculos e conectam práticas. Os SRS permitem a intensificação das troca através da interconexão permanente por meio dessas sociedades autoconstruídas, as redes de interações permanentes de eletrônicas. As pessoas criam redes para estar com as outras no ambiente das mídias sociais. II Congresso Internacional Sobre Culturas 323 Os SRS são construídos pelos próprios usuários, tanto sobre critérios específicos de agrupamento (empreendedorismo na criação de sites e, então, escolha das pessoas pelo site), quanto, em redes de amizade maiores, adaptados pelas próprias pessoas com diferentes níveis de criação de perfis e privacidade. A chave para o sucesso não é o anonimato, mas o contrário: a autoapresentação de uma pessoa real que se conecta a pessoas reais. Desse modo são sociedades autoconstruídas pela rede e em conexão a outras redes. Entretanto, não são sociedades virtuais: há uma estreita ligação entre redes virtuais e redes na vida em geral. Trata-se de um mundo híbrido, um mundo real; não um mundo virtual ou um mundo segregado. (CASTELLS, M. 2015, p.40). A intensificação da convivência das pessoas no espaço virtual das redes de comunicação interativa está transformando definitivamente a forma das sociabilidades contemporâneas, na medida em que as pessoas passam a viver mais suas experiências, trocas profissionais, emocionais, afetivas e práticas no mundo da virtualidade real, porém não no mundo virtual. Ninguém vive na realidade virtual. A vida virtual tende a se tornar mais social, dinâmica e (viva?) do que a vida física. Todavia, não podemos esquecer que os sities de redes sociais são espaço sociais gerenciados por uma companha, ou seja, são negócios que se baseiam na venda de liberdade de expressão e de sociabilidade gerenciada. Não obstante a contradição, própria do fato de que por trás desse universo de aparente liberdade e autonomia potencial propiciadas pelas redes sociais, impera a velha lógica mercantil capitalista de converter tudo em mercadoria à venda; muitos estudiosos – (CASTELLS 1999, 2014 e 2015) e (ATALLI & CASTELLS, 1998) - acreditam que esse é o potencial libertador da internet e graças à rede das redes evoluiremos a partir do ciberespaço para a construção de uma autonomia plena de nossas vidas, uma autêntica democracia eletrônica, já que as redes tem poder potencial para criar estratégias de autonomia pela dissolução do território, da política e do Estado. II Congresso Internacional Sobre Culturas 324 INTERNET E INTERATIVIDADE NA PRODUÇÃO AUDIOVISUAL PARA O YOUTUBE (139) A emergência redes digitais de comunicação e a interatividade contínua dos processos participativos através das mídias sociais, culminaram nas práticas de criação audiovisual compartilhada, bem como na permeabilidade do experimentalismo estético das narrativas audiovisuais, dos formatos e das linguagens. Eis como as novas gerações de produtores de conteúdos estão investindo na criação de vídeos, vlogs, etc, destinados às plataformas de mídias on-line - YouTube, facebook, instagran, etc. Outro aspecto relevante a ser analisado nas estratégias da produção audiovisual através das mídias digitais é sua tendência contínua de convergência entre as mídias e como ela tem influenciado as estratégias de produção e as narrativas audiovisuais, sobretudo quando se estuda a questão na perspectiva dos profissionais da TV brasileira, aberta e fechada. Um dos elementos típicos da cultura da convergência é a narrativa transmídia, tal como apontada por (JENKINS, 2009) como resultado da transição de um modelo de transmissão unidirecional para uma cultura da participação, com múltiplas telas e muitas possibilidades de escolha e compartilhamentos nos atos de consumo de mídias. A cultura da convergência é aqui entendida como um processo resultante das transformações cultural e tecnológica, na relação entre as novas e as velhas” mídias. Para (JENKINS, 2009) o fluxo de conteúdo veiculado nas diversas plataformas midiáticas, gera um diálogo contínuo entre os diversos meios de comunicação, a exemplo das informações que transitam entre o rádio, a televisão e a internet. Nesse tipo de projeto, as estratégias de produção e distribuição de conteúdo valorizam a condição da audiência de massa como produtora de conteúdo, criando vínculos narrativos com os produtos. O surgimento de uma cultura da convergência transformou a internet em um ambiente de mídia propagável. Os produtos criados especificamente para a internet são passíveis de interferência direta ou indiretamente dos consumidores no próprio processo de criação. Nessa “cultura participativa” o 139 Gostaria de registrar as contribuições para este artigo oriundas de dois trabalhos de pesquisa realizados na forma de trabalho de conclusão de curso (TCC) do Curso de Comunicação Social da UESC, a saber: Programe-se – Uma proposta de experimentação transmídia, de autoria dos egressos BRIGLIA, T., ALVS, D. e PIANTAVINHA, T., (2016); e o TCC Interativo – Análise das produções audiovisuais para o YouTube de autoria de RIBEIRO, Carine & REDENÇÃO, Thais (2016) realizado sob minha orientação. II Congresso Internacional Sobre Culturas 325 consumidor também molda, compartilha, reconfigura aquilo que está sendo produzido. Mais além, a mídia propagável permite produzir aquilo que se deseja consumir. Vamos ao autor: O crescimento da comunicação em rede, especialmente quando associada às práticas da cultura participativa, cria diversidade de novos recursos, e facilita novas intervenções para uma variedade de grupos que há muito tempo lutam para se fazer ouvir. Novas plataformas criam aberturas para mudanças sociais, culturais, econômicas, legais, políticas, além de construírem oportunidades para a diversidade e a democratização, pelas quais vale a pena lutar. (JENKINS, 2014, p.18). Derrick de Kerchove (1997) colaborador de Mc Luham (1975) da teoria dos meios de comunicação como extensões do homem, discute o papel da interatividade à luz da ciberatividade, quando analisa as atividades do ciberdesigner, para demonstrar o que estimula os consumidores a produzirem conteúdos em regimes colaborativos. A mudança do controle do produtor/emissor para o consumidor/utilizador transformara uma minoria de utilizadores nos seus próprios produtores, ou prosumidores. A descentralização das emissoras será acompanhada pela descentralização das tecnologias produtivas. (KERCHOVE, 1997, p. 97). Na condição de agentes de transformação e protagonistas do ciberespaço o ciberdesign pode ser visto como uma variante do design tradicional, mas aplicado especificamente aquela nova figura do mercado que é o prossumidor”, diz (KERCKHOVE, D. 1997, p. 137). No espaço da comunicação interativa cada indivíduo pode utilizar os recursos disponíveis para exercitar o potencial de sua atividade como criador. Todavia não podemos esquecer da advertência de Matellart (2006) de que a tão desejada e propalada liberdade do consumidor no ambiente da comunicação de massa, como pretendem os partidários das ideologias neoliberais e mesmo os neodarwinistas, assíduos nos fóruns e nas negociações dos organismos multilaterais, é sempre resultado de lutas negociadas para garantia do direito dos cidadãos à informação e à diversidade cultural, nem sempre respeitada pelos países hegemônicos. No primeiro momento, a produção audiovisual de criadores para o YouTube tem por característica a utilização de aparatos técnicos simples, por vezes precário, lembrando aquela máxima do cinema novo: uma câmera na mão e uma ideia na II Congresso Internacional Sobre Culturas 326 cabeça, primando pelo experimentalismo da linguagem e a irreverência própria do amadorismo das produções. Atualmente já se observa a utilização de técnicas de colagens digitais, - zappings, jump cut e samplings, etc, na edição dos vídeos disponibilizados nas redes sociais em busca do reconhecimento. Eles versam sobre temas pertinentes à política, cultura, religião, moda, beleza, comportamento, ames, mundo das celebridades, etc, e sobretudo ao cotidiano dos próprios youtubers, - muitos já se tornaram webcelebridades – atingindo o grande público das mídias tradicionais tratados em diferentes ângulos e formatos, de acordo com a proposta de cada produtor de conteúdo e a linguagem utilizada; é a contínua interatividade com o público do canal que retroalimenta o processo criativo dos produtores. Vejamos a opinião de (BURGESS & GREEN 2009), a esse respeito: No curso normal de sua prática cultural enquanto Youtubers, esses usuários visivelmente mais engajados do site participam ativamente modelando, contestando e negociando a cultura emergente da rede social do YouTube, a ideia de uma comunidade YouTube e suas relações com os interesses da empresa. (BURGESS e GREEN, 2009, p. 91). O fenômeno das webcelebridades, em que pessoas normais ganham reconhecimento público e tornam-se celebridades da noite para o dia, é ilustrativo de como a cultura da celebrização do trivial espalhou-se por toda a sociedade. Ele está intimamente relacionado com a produção e reprodução de vídeos amadores através do YouTube, cuja persistência da replicação - viralização - permite alcançar o público das mídias sociais e criar o efeito de propagação para fama instantânea que vai se estender para as tradicionais mídias de massa: o jornal, o rádio, o cinema e sobretudo a televisão. Além da celebração da cultura do trivial, o que estaria por trás desse fenômeno da webcelebridade nos ambiente das redes sociais? Seria esta uma demonstração do poder da internet e da emergente cultura colaborativa, através das mídias sociais, de ruptura e quebra dos circuitos restritivos criados pelas mídias tradicionais – das indústrias culturais - e ao mesmo tempo de continuidade, uma vez que esses fenômenos, por sua força viral, logo vai atingir o público e se integrar à pauta da grande mídia – televisão, jornal, rádio e mesmo o cinema de massa? II Congresso Internacional Sobre Culturas 327 O CANAL DO YOUTUBE “HOJE TÔ AQUI” Cada canal tem sua personalidade! Um formato predominante na produção audiovisual do YouTube é o formato vlog ou videoblog. No âmbito dessa pesquisa muitos foram os canais analisados, a exemplo do canal Não faz sentido, do youtuber Felipe Neto, com críticas em linguagem humorística; e o canal Mas Poxa Vida de Paulo Cézar Siqueira, ou PC Siqueira, Cauê Moura, do canal Desce a Letra e Kéfera Buchmann, youtuber do canal 5icoMinutos, dentre outros. Por limitações de espaço vamos apresentar apenas o canal Hoje Tô Aqui, em que o publicitário brasileiro e morador de Lisboa, o vlogger Bruno Cunha, narra em uma série de vídeos sua percepção da cultura lusitana e da vida naquele país. O canal do YouTube “Hoje Tô Aqui”, teve seu primeiro vídeo postado em 15 de janeiro de 2015, tendo como objetivo inicial relatar a experiência de sua mudança de São Paulo para Cascais, distrito de Lisboa, Portuga. O youtuber compartilha experiências que vivenciou nessa trajetória de sua chegada em terras lusitanas, problemas vividos na fase de adaptação – choque cultural – a relação com a família, a luta para se estabelecer no mercado de trabalho, etc. O canal dá dicas de como viver em Portugal, com vídeos sobre como tirar passaporte, dia a dia, dicas de gastronomia e curiosidades sobre o país. Em pouco mais de um ano de existência, o canal já acumula mais de 2 milhões de visualizações. Esse é o segundo canal de Bruno Cunha. A periodicidade do canal “Hoje Tô Aqui” é de três vídeos por semana, em média e conta com aproximadamente 350 vídeos já postados, divididos nas seguintes categorias: “Compras”, onde ele compartilha as compras do mês para casa, ressaltando as diferenças e as especificidades de Portugal no que se refere a custos e opções de alimentos; “Fala Aê Brunão!”, em que ele responde perguntas dos inscritos em seu canal, tira dúvidas e estabelece um contato mais direto com as pessoas que acompanham suas postagens; “Ano2 – Dia a Dia”, onde ele conta sua experiência um ano após ter se mudado para Cascais. Nesse vídeo ele divide as vivências mais divertidas, apresenta visitas a parques e padarias da cidade, principalmente acompanhado de sua namorada; em “Cidadania Portuguesa” comenta sobre os documentos necessários para morar em Portugal, questões de cunho legal e burocrático acerca da sua mudança do Brasil para o país, dupla nacionalidade, e sua experiência como empresário do ramo publicitário em terras lusitanas; em “Enchendo a Pança” passeia pela culinária portuguesa, prova comidas inusitadas e mostra as semelhanças e diferenças entre a cultura brasileira e portuguesa em relação a culinária; II Congresso Internacional Sobre Culturas 328 em “Portugal – Viagens e Passeios” grava vídeos visitando outras cidades do país, sempre ressaltando os pontos turísticos e dando dicas de lugares interessantes. A produção audiovisual deste canal apresenta uma análise comparativa entre os dois povos e as duas culturas – brasileira e portuguesa. Valendo-se uma narrativa que o aproxima do espectador por meio da linguagem e da simplicidade, Cunha procura falar direto para a câmera para obter esse efeito de intimidade. Ele também explora amplamente a interatividade com o público inscrito em seu canal, pela sessão de comentários nos vídeos do YouTube. Na estratégia de divulgação do canal, lança mão de outras redes sociais, quando alimenta seu perfil na rede social SnapChat, em que ele posta vídeos mais curtos e objetivos, fazendo um link com os assuntos já tratados nos vídeos do YouTube. Assim como o Instagram e o Facebook, onde os inscritos também podem interagir e conhecer um pouco mais da vida do criador do canal “Hoje Tô Aqui”. Neste caso, as redes sociais adicionais, servem não só como redes de apoio à divulgação do canal em si, mas como estratégia colaborativa de retroalimentação do conteúdo. É como se os conteúdos se complementassem e o consumidor das imagens do canal pudesse compartilhar da experiência de como é de fato, viver em Portugal. Essa estratégia é comumente usada por produtores de conteúdo para o YouTube. Dessa forma, o conteúdo se torna mais dinâmico, como também aproxima o produtor do seu inscrito, facilitando a troca colaborativa e aproximando o público alvo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Rapidez, dinamicidade, simultaneidade, interatividade, convergência e transmidiatização são apenas algumas das qualidades da comunicação interativa, da cultura participativa e práticas de compartilhamento na produção audiovisual para o YouTube. A interatividade entre as partes desenvolve-se pela participação contínua através das redes sociais, onde acontecem inúmeras operações de feedback que facilitam essas colaborações participativas no processo de criação de conteúdo audiovisual para as redes sociais. As mídias sociais e as redes digitais interativas de comunicação afetam definitivamente as condições de produção, difusão e de consumo audiovisual, para qualificar como as estratégias de compartilhamento interferem nos processos de criação de bens simbólicos audiovisuais – vídeos, filmes e mesmo na forma atual de se produzir tv - na sociedade atual. É isso que está alimentando e influenciando as escolhas temáticas, a linguagem, a estética, enfim o processo de II Congresso Internacional Sobre Culturas 329 criação de conteúdos audiovisuais dos blogueiros ou vlogeiros para as redes sociais, através das práticas interativas de comunicação e particularmente para o YouTube. As mídias sociais ao impulsionarem a democratização da informação, através da disseminação das práticas de compartilhamento e estímulo à cultura participativa na produção do audiovisual, reservam um lugar especial para a figura do consumidor que molda, compartilha, reconfigura o conteúdo audiovisual que está sendo produzido, ou produzindo ele mesmo quilo que deseja consumir. Esse processo de criação também cria aberturas para as mudanças sociais, culturais, políticas, econômicas e legais para o futuro da sociedade. REFERÊNCIAS BURGUESS, Jean; GREEN, Joshua. Youtube e a revolução digital: como o maior fenômeno da cultura participativa está transformando a mídia e a sociedade. 1. ed. : Aleph, 2009. CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. _______________ O Poder da comunicação. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. _______________ Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009. __________Cultura da conexão: criando valor e significado por meio da mídia propagável. São Paulo: Editora Aleph, 2014. KERKOVE, Derick de. A pele da cultura. Editora Relógio D´Agua, Lisboa, 2009. MATELLART, A. Para que “nova ordem mundial da informação”? Espanha, 2004 in MORAES, Denis (org.). Sociedade Midiatizada. Rio de Janeiro:Mauad, 2006. MUSSO, Pierre. Ciberespaço, figura reticular da utopia tecnológica. In MORAES, Denis (org.). Sociedade Midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006. II Congresso Internacional Sobre Culturas 330 WORLD CINEMA E CIDADES CINEMÁTICAS - CONFRONTOS ENTRE BRASIL E PORTUGAL Fernanda Aguiar Carneiro Martins140 RESUMO O presente trabalho de investigação se propõe a abordar um corpus específico de filmes, cujo relevo dado à cidade nos conduz à noção genérica de “cidade cinemática” (Clarke, 1997). Para tanto, os estudos do world cinema - tendência atual favorável à descoberta das facetas múltiplas, subterrâneas, das diversas formas de criação cinematográfica, compondo um “cinema com sotaque”, minor, intercultural, parecem oferecer uma perspectiva válida. Ater-nos-emos, por um lado, a São Paulo, Sinfonia da Metrópole (1931), de A. Kemeny e R. Lustig, Lisboa Crônica Anedótica (1930), de J. L. de Barros, Douro Faina Fluvial (1931, 1934), e, por outro, a Bem-Vindo a São Paulo (2004), de L. Cakoff e a Porto da Minha Infância (2001), de M. de Oliveira – pondo em confronto dois momentos históricos, a saber, o despontar dos séculos XX e XXI, no Brasil e em Portugal. Palavras-chave: World cinema. Íntermedialidade. Experimentalismo. Cidades cinemáticas. Brasil. Portugal. Por world cinema entende-se, inicialmente, no final dos anos 1990, em contexto anglófono, a busca em mapear e em definir a cultura cinematográfica mundial, sob uma perspectiva crítica e teórica, abolindo a ideia de uma hegemonia da cultura europeia ocidental e de Hollywood em particular. Observa-se como fundamento um “cinema de resistência”, o qual em sua acepção popular se aproxima do sentido de “música mundial” e “literatura mundial”, produtos e práticas culturais primordialmente não ocidentais. Ora, mais recentemente, o conceito ganha amplitude. Verifica-se um esforço para desvincular o conceito de “cinema mundial” de seu aspecto negativo, a saber, restritivo e reativo, que o coloca na contramão da cultura ocidental, de um modo mais geral, e hollywoodcêntrica, de um modo mais preciso. Sem dúvida, há uma tendência recente apta a descobrir facetas múltiplas, subterrâneas, das diversas formas de criação cinematográfica, compondo um “cinema com sotaque”, minor, intercultural, assegurado por um intercâmbio global em um processo sociopolítico de resistência. Aqui nos interessa estudar filmes, cujo enfoque especial dado à cidade, nos conduzem à noção genérica de “cidade cinemática”, extraída do livro The Cinematic 140 Doutora, UFRB, martnanda@gmail.com II Congresso Internacional Sobre Culturas 331 City (1997), sob a organização de David B. Clarke, uma atenção sendo dada a exemplos encontrados no Brasil e em Portugal. Sob esse ângulo, uma série de títulos surge, envolvendo locais e épocas os mais variados. Clarke destaca como formas cinemáticas mais significativas o Primeiro Cinema, o filme documentário, o film noir, a Nova Onda e o Cinema Pós-moderno. Se não resta dúvida que o papel desempenhado pela cidade é central em uma variada gama de filmes, o mais interessante de sua proposta parece ser o fato de que, na nossa experiência cotidiana, as cidades pareçam elas próprias ser dotadas de uma qualidade cinemática ou, melhor ainda, cinematográfica. A presente abordagem comparativa, entre os cinemas brasileiro e português, se propõe igualmente, de modo mais preciso, a interrogar o viés experimental desses filmes, tendo como base a tradição das sinfonias urbanas, surgida nos anos 1920, cujas realizações se estendem à produção contemporânea. Eis o que se coloca, de maneira sistemática, em São Paulo, Sinfonia da Metrópole (1931), de Adalberto Kemeny e Rodolfo Lustig, Lisboa Crônica Anedótica (1930), de José Leitão de Barros, Douro Faina Fluvial (1931), de Manoel de Oliveira (com duas novas versões em 1934 e em 1994). Tais filmes serão confrontados a Bem-Vindo a São Paulo (2004), de Leon Cakoff e a Porto da Minha Infância (2001), de Manoel de Oliveira, os quais têm também como foco cidades precisas, porém seguindo uma outra orientação. Cabe examinar, pois, a produção de dois momentos históricos distintos, o despontar do século XX, em suas décadas iniciais, e o do XXI, em seus primeiros anos. O cinema sendo entendido enquanto “fenômeno policêntrico com picos de criação em diferentes locais e períodos” (NAGIB apud DENNISON, 2013: 18) merece uma atenção especial no caso dessas produções com viés documentário, por vezes, experimental, homenageando as respectivas cidades – São Paulo, Lisboa, Porto – eleitas protagonistas, objetos de reconhecimento e de celebração. Nesse caso, o dizer de Leon Tolstói, “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia” nos intriga, fazendo-nos refletir e perceber o caráter a um só tempo nacional e transnacional dessas realizações, em seu aporte cinemático original da cidade. Enfatiza-se aqui o trabalho de cineastas que desafiam qualquer sugestão de fomento à homogeneidade, que a globalização possa colocar em marcha. No âmbito de uma cultura cinematográfica transnacional, importa salientar a diversidade cultural, importa trazer à tona o que vozes individuais possam falar das especificidades de suas culturas. Nesse sentido, II Congresso Internacional Sobre Culturas 332 David Held sugere “a partilha de culturas e da compreensão entre as nações ao redor do mundo” (apud DENNISON, 2013: 29). Porém, em que consistem as sinfonias urbanas, outra noção em foco na abordagem que aqui se propõe? O estudioso Edward Dimendberg, tendo como base a década de 1920 profícua nesses termos, nos explica: Abrangendo cerca de vinte títulos as sinfonias urbanas repousam de modo significativo no trabalho da montagem para representar o fluxo de vida na moderna metrópole. De modo típico são encenadas em uma metrópole mais ou menos identificável, cujas população, região central, cujos locais de residência, emprego e lazer são mostrados no curso de um dia, uma estrutura temporal que influenciou os filmes noir como Cidade Nua (The Naked City, Jules Dassin, 1948), exemplos incontáveis de cinema narrativo e experimental. (DIMENDBERG, 2002: 109). A importância dessa forma fílmica é tal que elas exerceram uma influência decisiva nos mais variados filmes. Nas sinfonias urbanas, observa-se a presença da cidade como elemento crucial com seus habitantes, espaços e ações cotidianas, evocados em um trabalho de montagem preciso, obedecendo a uma estrutura temporal, que envolve os ritmos e movimentos sutis ao longo de um dia. Cabe aqui acrescentar o fato de as sinfonias de cidade abolirem a narrativa e o uso da linguagem verbal, vale repetir, a cidade exercendo o papel de protagonista, um destaque sendo dado à relação que se estabelece entre imagem e som. Graças ao experimentalismo, resultante dessa inter-relação imagem e música mais propriamente, e a consequente ruptura com os códigos que regem o cinema-narrativo-representativo-industrial, observa-se a pertinência do foco intermedial, fazendo o cinema dialogar com a música. Voltemos, então, a Dimendberg, o estudioso continua: De todo modo estes trabalhos resistem à categorização enquanto documentário, experimental ou filme narrativo. Seu interesse reside na preservação cinematográfica da vida urbana efêmera não menos que uma estrutura estética que em si evoca os ritmos, paralelos e contrastes da civilização metropolitana. (DIMENDBERG, 2002: 109) Urge ressaltar, pois, a dificuldade de sistematização da noção. Eis uma forma fílmica sempre apta a se reinventar, sujeita à cultura e às opções estéticas de seu realizador, o que pode ser examinado tanto em obras de ficção ao longo de toda a história do cinema, quanto em obras contemporâneas. De todo modo, dado o caráter II Congresso Internacional Sobre Culturas 333 diversificado do conjunto de filmes, selecionado nesse ensaio, ao nos valermos da noção de “cidade cinemática”, ampliamos a discussão. No que diz respeito aos títulos do século passado, uma afinidade maior entre os filmes pode ser examinada, uma vez comparados aos exemplos contemporâneos, à medida que eles põem em jogo certo experimentalismo da imagem e do recurso da montagem. Embora São Paulo, Sinfonia da Metrópole (1931), Lisboa Crônica Anedótica (1930) e Douro Faina Fluvial (1931, 1934) se diferenciem quanto a seus propósitos de origem – São Paulo sendo feito sob encomenda do governo, a fim de celebrar o centenário da metrópole brasileira, Lisboa se afirmando como uma despretensiosa e simples crônica e Douro Faina, este, sim, imbuído por ideais vanguardistas explícitos (fazendo com que seu cineasta exigente criasse duas novas versões, em busca da música e da montagem perfeitas); essas três realizações oferecem um olhar singular seja de São Paulo, Lisboa ou Porto. Entretanto, no que concerne aos dois títulos mais atuais, Bem-vindo a São Paulo (2004), de Leon Cakoff, e Porto da Minha Infância (2001), de Manoel de Oliveira, apesar do fato de homenagearem São Paulo ou Porto, nenhum deles traz em si o projeto de uma sinfonia. Enquanto Bem-vindo a São Paulo é constituído por um conjunto de curtas metragens, reunindo cineastas do mundo inteiro e seu aporte particular sobre a cidade, Porto da Minha Infância, tal como o título indica, consiste numa obra autobiográfica, a cidade de Porto sendo objeto de um enfoque eminentemente subjetivo e pessoal, pondo em jogo a memória. Ora, mais recentemente, testemunhamos a realização de Of Time and the City (2008), de Terence Davies, e I am Belfast (2015), de Mark Cousins, centrados em Liverpool e Belfast, respectivamente. Como explicar o renovado interesse por essas “criações cinemáticas” sinfônicas da metrópole, que, em plena contemporaneidade, abrangem ainda a trilogia Qatsi (koyaanisqatsi, de 1982; Powaqatsi, de 1988; Naqoyqatsi, 2002), do americano Godfrey Reggio, além da releitura da sinfonia urbana emblemática do alemão Walter Ruttmann, Berlim, Sinfonia de uma Grande Cidade (1927), sob a pluma do também alemão Thomas Schadt em 2002? Ao que parece, uma confluência de aspectos culturais e estéticos migram de uma época a outra, criando ciclos de nascimentos e renascimentos. No caso do Brasil, tal projeto contemporâneo de criação sinfônica parece inexistir, salvo certas produções amadoras encontradas online. De um modo geral, ao longo de sua história, obras ficcionais se nutrem de ideais sinfônicos, ao menos de II Congresso Internacional Sobre Culturas 334 maneira mais pontual e localizada como, por exemplo, São Paulo S. A. (1969), de Luiz Sérgio Person. Assim sendo, o horizonte de investigação adquire maior complexidade ainda face a uma conceitualização em si resistente à categorização. Com Bem-vindo a São Paulo (2004), satisfaz-se o desejo de descortinar o olhar estrangeiro, visões sobre cidade, graças à colaboração de cineastas do mundo inteiro, o que o coloca na linhagem de longas-metragens coletivos como Paris, eu te amo (2006) e Nova York, eu te amo (2008). No caso de Portugal, Manoel de Oliveira, um de seus maiores expoentes, há a ambição em compor e deixar como legado a versão de 1994 de Douro Faina Fluvial, buscando cumprir o virtuosismo estético próprio a uma sinfonia urbana, o que não impediu o cineasta pôr em prática um projeto totalmente diferente: o de revisitar sua cidade natal, estabelecendo um paralelo entre suas experiências passadas e o momento atual. Com esse estudo, verificamos que o cinema mundial contemporâneo, brasileiro e português, se apresenta suficientemente heterogêneo, instigando o trabalho de pesquisa voltado para zonas menos salientes da produção que, no entanto, convidam à investigação. Conceitualizações como world cinema, cidade cinemática e sinfonia urbana funcionaram enquanto instrumentais teóricos eficazes a fim de, por um lado, situarmos os rumos mais recentes dos estudos acadêmicos, por outro, delimitarmos melhor as relações entre cinema e cidade, cujo interesse se revela sempre renovado, revestindo as mais variadas formas de criação cinematográfica, diversa mesmo ao reivindiar o passado. REFERÊNCIAS CLARKE, David B. (org.) (1997), The Cinematic City, London & New York: Routledge. DENNISON, Stephanie (org.) (2013). World Cinema – as Novas Cartografias do Cinema Mundial, Campinas, SP: Editora Papirus/SOCINE. DIMENDBERG, Edward. “Transfiguring the Urban Gray - L. Moholy-Nagy´s Film Scenario Dynamic of the Metropolis” In. ALLEN, R., TURVEY, M. (editors) (2002). Camera Obscura, Camera Lucida: Essays in Honor of Annette Michelson, Amsterdan: Amsterdan University Press. MACHADO Jr., Rubens. “Cosmopolitismo e aspiração de progresso no entre guerras: Sobre a presença da cidade no cinema em São Paulo, a sinfonia da metrópole (1929)”. Disponível em: II Congresso Internacional Sobre Culturas 335 http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1310580261_ARQUIVO_rubens_ machado.pdf. Acesso em: 30.10.2014. MARTINS, Fernanda A. C.; SANTOS, E. R. “Les Symphonies Urbaines: Origines et Inventeurs” In. OLIVEIRA, H. L. L. de et al. (org.) (2013), Voix et Images de la Diversité, Paris: l´Harmattan. II Congresso Internacional Sobre Culturas 336 CONTRIBUTOS DA TEORIA PORTUGUESA PARA A DEFINIÇÃO DO CONCEITO DE RADIODIFUSÃO NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA: AMPLIAÇÃO DA DIVULGAÇÃO DA CULTURA NACIONAL NOS SERVIÇOS DE AUDIOVISUAL Carlo José Napolitano141 RESUMO O trabalho resultado de pesquisa bibliográfica e documental almeja apontar as contribuições da teoria jurídica portuguesa para a definição de um conceito de radiodifusão e considera que uma definição clara e precisa pode ampliar as possibilidades para a divulgação da cultura nacional em todos os serviços audiovisuais. A Constituição brasileira trata do tema com várias abordagens e inúmeros termos. Essa indefinição conceitual gera insegurança jurídica e impede, no Brasil, a aplicação de regras que garantem a veiculação de conteúdos culturais, a promoção da cultura nacional e a regionalização da produção cultural para todo e qualquer tipo de produção audiovisual. Teoria e legislação portuguesa, por sua vez, adotam um conceito mais preciso o que favorece essa aplicação, sendo esta a principal conclusão do trabalho. Palavras-chave: Audiovisual. Cultura. Radiodifusão. INTRODUÇÃO A presente comunicação almeja apontar as contribuições da teoria jurídica portuguesa, em especial, as de Machado (2002), Cordeiro (2004) e Correia (2005) para a definição de um conceito de radiodifusão, considerando que uma definição clara e precisa do termo pode ampliar as possibilidades para a divulgação da cultura nacional em todos os serviços audiovisuais. A Constituição brasileira traz inúmeros termos relacionados à radiodifusão, fato que pode gerar insegurança jurídica. Diferentemente a Constituição portuguesa é mais precisa. Por hipótese, o trabalho parte da premissa que a utilização do conceito alargado de radiodifusão, tal como proposto pela teoria jurídica portuguesa e pelas diretivas europeias, possibilitaria no Brasil a aplicação de regras jurídicas que garantem a veiculação de preferência de conteúdos culturais, a promoção da cultura nacional e a regionalização da produção cultural para todo e qualquer tipo de produção audiovisual, independentemente do meio ou do tipo de transporte do conteúdo, inclusive para os 141 Doutor em Sociologia pela Faculdade de Ciências e Letras da UNESP/Araraquara, docente do Departamento de Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da UNESP/Bauru e Pós-doutorando na Faculdade de Direito, da Universidade de São Paulo. e-mail: carlonapolitano@faac.unesp.br II Congresso Internacional Sobre Culturas 337 serviços on demand e via streaming, além da radiodifusão estrito senso já garantida pelo próprio texto constitucional. A lei brasileira do Serviço de Acesso Condicionado que é guiada por princípios que almejam a promoção da diversidade cultural, da língua portuguesa e da cultura brasileira, além de estar amparada na Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, restringe a aplicação desses preceitos, excluindo da sua abrangência os serviços de radiodifusão stricto sensu, sendo uma condição inibidora para a promoção da cultura nacional. A presente comunicação - trabalho integrante de pesquisa de pós-doutorado em andamento142 – baseada em pesquisa bibliográfica e documental e utilizando-se de método analítico-sistemático dedutivo objetiva demostrar e comprovar juridicamente as questões acima mencionadas e para tanto está assim estruturado: apresentação das constituições brasileira e portuguesa no que tange ao termo radiodifusão; indicação das contribuições da teoria jurídica portuguesa em relação à definição de um conceito de radiodifusão; aportes de diretiva europeia acerca dos serviços de audiovisual; apresentação de contribuição da teoria brasileira para uma definição do termo e, por fim, apresentação de considerações finais em sede de conclusão. RADIODIFUSÃO NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRA E PORTUGUESA A Constituição brasileira por oito vezes trata expressamente da radiodifusão, de diversificadas maneiras. No artigo 21, XII, alínea a, ao tratar das competências administrativas da União, dispõe que uma dessas atividades é a exploração dos serviços de “radiodifusão sonora, e de sons e imagens”. No artigo 22, V está disposto que compete privativamente à União legislar sobre “radiodifusão”. O artigo 48, XII atribui competência ao Congresso Nacional para tratar dos assuntos referentes à “radiodifusão”. O artigo 139, III trata das restrições de direitos em Estado de Sítio, prevendo que uma dessas hipóteses é a restrição à “radiodifusão e televisão”. O artigo 155, X, d, dispõe que o imposto sobre circulação de mercadorias e serviços não incidirá nos serviços de “radiodifusão sonora e de sons e imagens de recepção livre e 142 Trata-se da pesquisa denominada “Políticas públicas de comunicação no Supremo Tribunal Federal: a liberdade de expressão em julgamento”, que está sendo realizada em estágio de pós-doutoramento, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob supervisão do Prof. Titular Elival da Silva Ramos, do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito e do Departamento de Direito do Estado II Congresso Internacional Sobre Culturas 338 gratuita”. Nos artigos 222 e 223, do Capítulo da Comunicação Social, a Constituição repete três vezes a expressão “radiodifusão sonora e de sons e imagens”. Desse excerto extrai-se que a Constituição brasileira trata do assunto radiodifusão ora qualificando os serviços para os de rádio e televisão, ora especificando o sinal aberto e ora distinguindo-o da televisão, em uma pluralidade de termos que resulta em insegurança jurídica, pois conceitos vagos e indeterminados desestabilizam as expectativas de comportamento (MACHADO, 2002). Ademais, convém também mencionar que a Constituição brasileira, no Capítulo V, do Título VIII que trata da Comunicação Social traz inúmeros termos que podem estar relacionados à radiodifusão, dentre eles os contidos no caput do artigo 220 que dispõe que a manifestação do pensamento não pode sofrer restrições em relação à “forma, processo ou veículo”. No parágrafo primeiro menciona que “veículo de comunicação social” não pode sofrer embaraço a liberdade de informação, o parágrafo quinto determina que “os meios de comunicação social” não podem ser objeto de monopólio ou oligopólio, o artigo 221 menciona o termo “emissoras de rádio e tv”, o 222 emprega a expressão “empresa de radiodifusão”, no parágrafo terceiro do mesmo artigo trata dos “meios de comunicação social eletrônica”. Esse breve apanhado das normas constitucionais indica uma pluralidade, indeterminação e vagueza dos termos relacionados à radiodifusão, condição que pode gerar sérias consequências em termos de segurança jurídica. A despeito dessa pluralidade e indeterminação do conceito, a legislação infraconstitucional brasileira define radiodifusão como sendo o serviço “destinado a ser recebido direta e livremente pelo público em geral, compreendendo radiodifusão sonora e televisão” (art. 5º, 4d, da lei 4117/62). Trata-se de um conceito restrito que limita a sua abrangência exclusivamente para a difusão de conteúdo via espectro eletromagnético. Essa é a compreensão da teoria e do poder judiciário brasileiro e reforçada, em âmbito legislativo, pela lei 12.485/11 - conhecida como a lei do Serviço de Acesso Condicionado (SeAC) - ao excluir do campo de abrangência dessa lei “os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens”, entendido aqui os serviços disponibilizados via espectro eletromagnético. Por sua vez, a Constituição portuguesa é mais clara e precisa. Há apenas uma menção ao termo no texto no artigo 38º, 7 ao dispor que “As estações emissoras de radiodifusão e de radiotelevisão só podem funcionar mediante licença, a conferir por II Congresso Internacional Sobre Culturas 339 concurso público, nos termos da lei”. Trata-se, portanto, dos serviços de radiodifusão sonora (rádio) e de sons e imagens (televisão), nos termos da Constituição brasileira. A teoria portuguesa por sua vez alarga o conceito de radiodifusão para além do espectro eletromagnético, como será visto a seguir. CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA PORTUGUESA A tese central do trabalho de Cordeiro (2004, p. 12) consiste em “demonstrar que existe um conceito único de radiodifusão cuja elaboração remonta ao século passado, mas que se mantém actual e continua operativo em todas as situações” e que não há diferenças relacionadas ao suporte ou forma de transmissão pois na radiodifusão tradicional, na efectivada por cabo, por satélite ou pela Internet, normalmente designada por ‘webcasting’, estamos, em todas elas, perante modalidades de uma mesma realidade, havendo variações meramente quantitativas. O conceito jurídico de radiodifusão mantém-se, contudo, inalterável e operacional em qualquer dos casos. Conclui Cordeiro (2004, p. 484/485) “que existe um conceito único de radiodifusão” e que “consiste na comunicação pública de obras ou prestações através de emissões, por fio ou sem fio, destinadas a ser recebidas directamente pelo público”, por fim, menciona que tanto “No âmbito tradicional, por satélite ou por cabo, ou na sua vertente digital, este é um conceito que tem valor universal”. Para Correia (2005, p. 38/40) a radiodifusão é uma espécie dos serviços “de teledifusão ou telecomunicações de uso público de difusão”, sendo que a transmissão pode ser feita por “meio de ondas radioelétricas ou de qualquer outro meio apropriado”. Machado (2002, p. 601) pontua que não há um conceito de radiodifusão no texto constitucional português, tal como na Constituição brasileira, no entanto, o autor enfrenta a questão dizendo que a radiodifusão compreende, genericamente, toda a comunicação dirigida a um número indeterminado de pessoas através de ondas electromagnéticas, com ou sem utilização de cabo. Nesta acepção, ela abrange a rádio e a televisão, por via hertziana terrestre, por cabo ou por satélite. De acordo com Machado (2002, p. 602) os conceitos são forjados a partir de “aspectos arquitectónicos e estruturais relativos à emissão e à recepção, deixando para segundo plano o conteúdo”. O autor exclui os serviços via internet, privilegiando os II Congresso Internacional Sobre Culturas 340 elementos arquitetônicos e estruturais no conceito e adota um conceito mais restrito de radiodifusão, ao excluir os serviços de internet, diferentemente de Cordeiro e Correia que não fazem essa exceção. DIRETIVAS EUROPEIAS A Diretiva Europeia sobre os serviços de comunicação social audiovisual também contribui de maneira incisiva e significativa para a definição de um conceito de radiodifusão. No caso, a definição se dá pelo conteúdo e não pelos aspectos arquitetônicos e estruturais do serviço e, por esse motivo, considera que tais serviços “são, simultaneamente, serviços culturais e serviços económicos.” (Considerando 5, Directiva, 2010/13, p. 95/1). Por sua vez o Considerando 27 dispõe que A radiodifusão televisiva inclui actualmente, em particular, a televisão analógica e digital, a transmissão em directo via Internet (live streaming), a teledifusão na web e o quase vídeo a pedido, enquanto que o vídeo a pedido, por exemplo, é um serviço de comunicação social audiovisual a pedido. (Directiva, 2010/13, p. 95/4). O artigo 1º da Directiva, alínea e, define serviços de comunicação social audiovisual, da seguinte maneira: Radiodifusão televisiva ou emissão televisiva (ou seja, um serviço de comunicação social audiovisual linear), um serviço de comunicação social audiovisual prestado por um fornecedor de serviços de comunicação social para visionamento simultâneo de programas, ordenados com base numa grelha de programas; (Directiva, 2010/13, p. 95/12). Por sua vez a alínea g define: Serviço de comunicação social audiovisual a pedido (ou seja, um serviço de comunicação social audiovisual não linear), um serviço de comunicação social audiovisual prestado por um fornecedor de serviços de comunicação social para visionamento de programas pelo utilizador, a pedido individual deste, num momento por ele escolhido para o efeito com base num catálogo de programas seleccionados pelo fornecedor do serviço de comunicação social; (Directiva, 2010/13, p. 95/12) Verifica-se deste modo que o conceito está centrado no conteúdo, ou seja, no conceito de programas audiovisuais. II Congresso Internacional Sobre Culturas 341 CONTRIBUIÇÃO DA TEORIA BRASILEIRA Dantas (2013, p. 124) em trabalho que trata dos desafios brasileiros em um cenário de mundialização midiática e ao analisar a televisão sem fronteiras na Europa afirma que “Para as autoridades europeias, televisão, independentemente da plataforma ou modelo de negócios, permanece sendo um serviço de radiodifusão destinado a transmitir conteúdos ao público”, corroborando a ideia mencionada acima de que de acordo com as diretivas europeias a definição de radiodifusão deve pautar-se pelo conteúdo. Ainda analisando o plano Europeu, Dantas (2013, p. 142) menciona que, de acordo com estudos elaborados naquele continente, “radiodifusão deixou de ser sinônimo de transmissão de programas de rádio e televisão por vias atmosféricas, abrangendo hoje em dia também a transmissão por cabo e satélite”. O mesmo Dantas, durante audiência pública realizada no Supremo Tribunal Federal, para instruir o julgamento da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade 4679, que questionava dispositivos da lei 12.485, afirmou que estudos e relatórios atestam que o mundo inteiro entende que televisão é ainda televisão, não importa se nas frequências VHF e UHF, como até passado recente, ou se no cabo, no satélite, em altas frequências atmosféricas, ou até em formato IPTV (via internet). (BRASIL, 2015, p. 46) (destaque no original). O fundamento para a regulação da radiodifusão sempre foi, de acordo com Farias (2004), o da escassez do espectro eletromagnético. Com as novas tecnologias esse fundamento deixa de ter relevância, sendo que um novo fundamento regulatório precisa ser explicitado, sugerindo o autor que o seu delineamento, independentemente do suporte, deve ser como serviço público, porque este se afigura o regime jurídico mais apropriado para garantir que as emissoras de rádio e televisão possam efetivamente contribuir com a consecução dos princípios básicos que fundamentam a sociedade e o Estado brasileiros, máxime quanto à preservação da dignidade da pessoa humana, da soberania popular, da cidadania, do pluralismo político (CF, art. 1º, I, II, III, V), quanto a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (CF, art. 3º, I) e à prevalência dos direitos humanos (CF, art. 4º). (FARIAS, 2004, p. 218), Dentre esses bens jurídicos apontados por Farias podem ser incluídos o acesso aos bens culturais por meio de conteúdos audiovisuais. II Congresso Internacional Sobre Culturas 342 CONCLUSÕES De acordo com o que foi exposto, verifica-se que teoria e legislação portuguesa, acrescidas das diretivas europeias sobre o audiovisual, podem contribuir para a definição de um conceito mais preciso de radiodifusão na legislação brasileira, ampliando-se o conceito para além do espectro eletromagnético, abarcando todo e qualquer serviço de comunicação social audiovisual, independente do suporte tecnológico, fato que favoreceria a divulgação da cultura nacional pelos serviços audiovisuais. REFERÊNCIAS BRASIL. Lei 4117 de 27 de agosto de 1962. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4117.htm. Acesso em 25 de outubro de 2016. ______. Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em 25 de outubro de 2016. ______. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade n. 4679, de 25 de junho de 2015. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4679.pdf>. Acesso em 29 de março de 2016. CORDEIRO, P. J. F. Direito de autor e radiodifusão: um estudo sobre o direito de radiodifusão desde os primórdios até à tecnologia digital. Coimbra: Almedina, 2004. CORREIA, L. B. Direito da comunicação social. v. 1. Coimbra: Almedina, 2005. DANTAS, Marcos. Comunicações, desenvolvimento, democracia: desafios brasileiros no cenário da mundialização mediática. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2013. Directiva 2010/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 10 de março de 2010. Disponível em http://www.gmcs.pt/ficheiros/pt/directiva-201013ue.pdf. Acesso em 17 de outubro de 2016. II Congresso Internacional Sobre Culturas 343 FARIAS, E. Liberdade de expressão e comunicação: teoria e proteção constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. MACHADO, J. E. M. Liberdade de expressão: dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa de 25 de abril de 1974. Disponível em http://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx. Acesso em 17 de outubro de 2016. II Congresso Internacional Sobre Culturas 344 SUBALTERNIDADES, SUBVERSÕES E FRONTEIRAS NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO Rodolfo Nonose Ikeda143 Maurício Matos dos Santos Pereira144 RESUMO Este trabalho integra uma pesquisa de doutorado sobre filmes do cinema nacional contemporâneo que focalizam as relações de poder na cultura brasileira, (re)inventam regimes discursivos da subalternidade e, tendo em vista as circunstâncias de produção articuladas ao contexto social e histórico, fornecem possibilidades de reflexão, subversão e fragilização dos discursos dominantes e das relações de poder instituídas. Para tanto, e de uma perspectiva teórico-crítica entre os Estudos do Cinema Brasileiro, Culturais, Subalternos e Teorias PósEstruturalistas, analisar-se-á neste trabalho a reconstrução de discursos da subalternidade no filme “Os Matadores” (BRANT, 1997). Palavras-chave: Subalternidades. Cinema Brasileiro Contemporâneo. Subversão. INTRODUÇÃO Nos anos 1990, as relações entre a consolidação da redemocratização, a criminalidade e os diversos movimentos sociais se tensionavam cada vez mais no país. Época da chamada “retomada”, o cinema nacional voltava a se desenvolver paralelo às novas políticas públicas e privadas de produção e consumo. Um dos primeiros representantes dessa “retomada”, “Os Matadores” (BRANT, 1997) continua atual pelos temas (violência e desigualdades socioculturais) e pelos recursos expressivos (conectados ao heterogêneo cinema contemporâneo). Ambientado na híbrida fronteira Brasil-Paraguai, com estética e narrativa fragmentadas e com influências hipertextuais de estilos e gêneros cinematográficos diversos, o filme conta a história de vida de assassinos profissionais que atuam nesta região e que, enquanto aguardam a próxima vítima, revelam em seus diálogos e reflexões o presente e o passado desta história que interliga diversos personagens, bem como a fronteira do país aos seus grandes centros urbanos, onde a criminalidade e a 143 Doutorando do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (UFBA), bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) e membro do Grupo de Pesquisa Cultura e Subalternidades CULT/IHAC. E-mail: rodolfoikeda@yahoo.com.br. 144 Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos e do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (UFBA), Coordenador do Grupo de Pesquisa Cultura e Subalternidades filiado ao Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura CULT/IHAC. E-mail: mauriciomsp@ufba.br. II Congresso Internacional Sobre Culturas 345 violência se relacionam à defesa da propriedade, do poder do capital, dos interesses políticos e da sobrevivência. Assim, o filme realiza sua discussão a partir de um lugar de fala diferenciado da conjuntura política e da estrutura social brasileiras. Na esteira de Deleuze (1985), Derrida (1991) e Foucault (1979), refletir-se-á sobre os discursos da subalternidade em “Os Matadores” e, principalmente, sobre os personagens que dão título à obra, que servem como chave de leitura das relações de poder e da vida política recente, em função de suas relações de pertencimento e de fronteira quanto ao sistema democrático e à política instituída. A metodologia de leitura do filme será feito a partir de uma análise pósestruturalista do discurso, articulando o contexto da redemocratização e a emergência do tráfico de drogas e do crime organizado para situar as posições dos “matadores” e analisar alguns aspectos referentes aos processos de construção de subjetividades. OS MATADORES O filme “Os Matadores” é ambientado em sua maioria em um bar, na fronteira Brasil-Paraguai, onde um homem está para ser assassinado por Toninho (ladrão de carros, carioca e “aprendiz de matador”) e Alfredão (“matador”, local e experiente). O presente e o passado destes homens - que vêem a morte como ofício - se misturam em seus diálogos, lembranças e ponderações sobre a vida e a morte de um quarto personagem: Múcio, amigo de Alfredão e o “matador” boliviano mais perigoso da região, mostrando que entre matar ou morrer há também uma fronteira fácil de se atravessar. Conforme Almeida (2007, p. 167), Brant expõe a fronteira como o “território da liminaridade, no qual não vigorariam as regras que regem o espaço ‘normal’, central”, um lugar de embaralhamento entre os limites do legal e do ilegal, do ético e do não-ético, do moral e do imoral, que permeiam a sociedade local. Porém, Almeida (2007) observa que o filme não cai na armadilha de tratar a fronteira como a exceção, mostrando-a conectada a uma totalidade – a qual, na perspectiva teórica aqui adotada, é o contexto vivido pelo país nos anos 1990, no período pós-ditadura conhecido como redemocratização, onde os efeitos da globalização se articulam a diferentes mecanismos de subalternização e naturalização da violência, decorrentes da produção da desigualdade entre uma elite empresarial II Congresso Internacional Sobre Culturas 346 neoliberal e um empobrecimento crescente, combinada à emergência de movimentos sociais, do crime organizado e do tráfico de drogas. Algumas sequências deixam claro o contexto em que se inserem os “matadores”: na primeira, vemos várias paisagens do Rio de Janeiro antes da câmera enquadrar Toninho roubando um carro, que será vendido por ele na fronteira à Helena, a bela esposa de Carneiro, pecuarista, latifundiário e representante da elite empresarial neoliberal local que, neste caso, se articula com o crime organizado e o tráfico de drogas; outra sequência mostra Múcio e Alfredão expulsando e assassinando integrantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) ou, em outras palavras, representantes de movimentos sociais que invadiram uma fazenda de Carneiro em busca de seus direitos. A fronteira exposta passa a se constituir como lugar de fala dos “matadores”, cruzando diferentes perspectivas acerca da história da vida política recente no Brasil, bem como um entre-lugar de produção de diferenças. Na esteira de Santiago (1978) e Matos (2009; 2012; 2015), este trabalho analisa os “matadores” como diferenças, relidos como diferentes processos de construção da subjetividade, deviressubjetividade articulados de acordo com o contexto da fronteira com os discursos dominantes e a política instituída. Habitantes das fronteiras do país, das cidades e dos sonhos da redemocratização, os “matadores” emergem na trama articulando-se entre um mundo de belas esposas, famílias, propriedades, casas e carros luxuosos (ilustrada pela cena onde vemos uma festa na casa de Carneiro), e o outro mundo daqueles que ficaram de fora dos sonhos criados pela redemocratização (ilustrados pelos integrantes do MST). Num primeiro momento, há um forte sentido conferido à diferença social entre Carneiro e os “matadores”. Tal diferença se traduz na cena em que Carneiro paga a Múcio e Alfredão pelo cumprimento de um contrato referente ao assassinato de um político desafeto. O que os difere é a posição de cada um na sociedade que, por sua vez, se traduz na relação contratual que se estabelece e no modo como o filme, para marcar essa diferença, se utiliza da estratégia de mostrar Carneiro em seu suntuoso escritório, observando Helena na piscina pela janela logo após pagar seus contratados, os “matadores”. As contratações desses assassinatos, também chamados de “crime de encomenda”, aproximam os personagens na trama dos acontecimentos. São estas contratações que conectam mundos distintos que, à princípio, se encontravam II Congresso Internacional Sobre Culturas 347 separados por diferentes valores. Nestas contratações, todavia, não há limites instituídos pela lei e pelo direito, respeito aos espaços destinados à construção da subjetividade ou às opiniões divergentes. Apesar do profissionalismo e lealdade dos “matadores”, Carneiro contrata Alfredão para assassinar Múcio (por fazer sexo com sua esposa, Helena), e Toninho para assassinar Alfredão (por “saber demais” e estar velho). Estas contratações tornam visíveis as diferenças e os processos de subjetivação produzidos a partir da relação com os discursos dominantes. Isto porque a contratação de cada assassinato põe em movimento a subalternidade de classe e o uso indiscriminado e criminoso do poder econômico – para ser mais exato, a reatualização do poder soberano de “fazer morrer” nos termos de Foucault (1979), conferido à defesa da propriedade e ao poder do capital, indicando aquilo que Pelbart (2000) chama de o fim da exterioridade no capitalismo tardio. No filme, vemos o fim da exterioridade do capitalismo tardio indicado por Pelbart (2000), onde passamos da sociedade disciplinar diagnosticada por Foucault para a sociedade de controle diagnosticada por Deleuze, em que as instituições de confinamento entraram em crise mas, paradoxalmente, sua lógica disciplinar se generaliza ao campo social inteiro, tornando a sociedade uma prisão sem fronteiras onde, assim como os integrantes do MST, os próprios “matadores” são prisioneiros a céu aberto de indivíduos como Carneiro. Os “matadores” não abandonam a condição de subalternos em relação à posição social habitada por Carneiro, pois a mando deste, Alfredão assassina Múcio (apesar da forte amizade e admiração que tinham um pelo outro), e Toninho quase assassina Alfredão (que, apesar de conseguir fugir de carro com sua família, sua pressa e nervosismo, combinados a outro carro que aparece na estrada, parecem indicar que continuará perseguido por Carneiro). À medida que a narrativa avança, os “matadores” não conseguem se encaixar em nenhuma organização social mas, como processos distintos de construção da subjetividade, circulam entre o dentro e o fora dos discursos dominantes e da política instituída, são subalternizados pelos detentores do capital (como Carneiro) e subalternizam outros a mando deles (como os integrantes do MST), por desejarem ocupar e obter seu lugar, poderes e privilégios, simbolizados pela propriedade, pela mulher, pelo carro importado, pela família e, principalmente, pelo dinheiro que garante o acesso a tudo isso e ao que mais desejarem, mesmo que por um alto preço e por pouco tempo. II Congresso Internacional Sobre Culturas 348 “O único limite do capital é a lei do valor, ele não está submetido a nada além dessa lei imanente”, diz Pelbart (2000). No capitalismo tardio, pode-se trocar tudo por um equivalente geral (o dinheiro), através da regra da simples igualdade dos valores permutáveis, inclusive a vida e a morte – afirmação ilustrada pela contratação dos assassinatos e pela sequência onde Carneiro, antes de colocar um maço de dinheiro para pagar a conta de um restaurante, diz à Helena para não ir mais à cidade para resolver quaisquer problemas, pois é melhor sempre pagar alguém para tanto (explicitando assim que também pagou pelo assassinato de Múcio e Alfredão, entre outros, porque o dinheiro lhe confere o poder para obter e proteger sua propriedade, sua “honra” e tudo que quiser). O processo de construção da subjetividade dos “matadores” não está situado no espaço exterior às leis que regulam a economia globalizada, mas, ao contrário, estão no cerne de sua constituição histórica. Relendo o social por parte do lugar de fala dos “matadores”, percebe-se que a lei do valor determina a subjetividade destes, que matam em nome da lógica do poder do capital. A lei do valor determina a ação dos “matadores”, ou seja, os assassinatos visando o carro importado de Múcio, a casa de Alfredão, ou mais dinheiro como deseja Toninho, mesmo que esta lógica os coloquem em risco de vida. Todas estratégias de subjetivação se aproximam pelas contratações e pela lei do valor, seja pelo assassinato de integrantes do MST, seja pelo assassinato do melhor amigo de profissão de Alfredão (Múcio) ou do mentor de Toninho e “matador” de confiança de Carneiro (Alfredão), ao mesmo tempo em que estas diferentes dinâmicas naturalizam-se como efeitos de superfície de uma força mais profunda e violenta que tanto organiza a relação homem versus mundo, quanto põe em construção as subjetividades (MATOS, 2012). O filme deixa claro que quaisquer afetos entre os personagens, como a amizade entre Múcio e Alfredão, não superam a lei do valor – a não ser o afeto pela própria vida e o medo de Toninho, que o impedem de matar Alfredão em um duelo no banheiro do bar em que se ambienta a maioria do filme. Situado em um mundo exterior ao dos sujeitos reconhecidos estabilizados pelas políticas públicas e pelo reconhecimento de direitos, o desejo de cada um dos “matadores” não é se diferir daquele mundo que invade quando compra um carro importado ou faz sexo com a esposa de Carneiro (como Múcio), quando circula por entre os corredores de uma exposição agropecuária atrás de contratações (como II Congresso Internacional Sobre Culturas 349 Toninho) ou quando almoça com sua família em uma casa no campo (como Alfredão). Eles querem ser o mesmo, ter poder, fazer parte e/ou habitar o mundo de Carneiro. Os “matadores”, como já se viu anteriormente, circulam pelo mundo de Carneiro e, eventualmente, os invadem e obtém parte de seus poderes e privilégios porém, não deixam de ser subalternos. Desta forma, suas subjetividades passam a ser devires. De “matadores” a invasores, tornam-se devires, invasores no mundo do outro que, ao mesmo tempo em que “desconstroem as relações instituídas aproximando mundos incompatíveis pela força do crime, fragmentam sua condição de subalternidade transformando-a num devir em busca do mesmo ou do fora da condição de subalternidade” (MATOS, 2012, p. 08). Os “matadores” não querem só pertencer ao mundo do poder, mas querem habitar os dois mundos ao mesmo tempo, seja o mundo dos poderes sociais reconhecidos, seja o mundo do crime. Trata-se de devires associados à construção da subjetividade que, se por um lado habitam os dois mundos simultaneamente, os personagens que os constituem continuam subalternos, não sendo reconhecidos como alguém no discurso dominante. Os “matadores”, assim, localizam-se na fronteira, isto é, no fora e ao mesmo tempo dentro do mundo dos ricos, tornando-se próximos dele, mesmo que por pouco tempo. Tais processos de subjetivação funcionam como chave de leitura das relações de poder e da vida política recente, em função das relações que estabelecem com o sistema democrático e à política instituída, reatualizando historicamente o poder soberano de matar em nome da lei do valor e colocando a vida e a morte de tudo e todos à venda, em um fronteiriço entre-lugar onde linhas de fuga parecem impossíveis ou, no máximo, efêmeras – assim como são para Toninho, Alfredão e Múcio. O filme “Os Matadores”, portanto, subverte o discurso dominante e a política instituída da sociedade de controle e da redemocratização por denunciá-los, expondo o caráter múltiplo e móvel da subalternidade e o fato de que esta é produzida social e culturalmente no interior da economia discursiva dominante regida pela lei do valor, em um contínuo vir a ser. CONSIDERAÇÕES FINAIS Colocando em perspectiva outros filmes brasileiros, como “Cidade de Deus” (MEIRELLES, 2002), e “O Som ao Redor” (MENDONÇA, 2013), vale dizer que: 1) II Congresso Internacional Sobre Culturas 350 o subalterno aparece continuamente no cinema brasileiro nas suas relações com novas forças políticas atuando no contexto contemporâneo; 2) o tema da subalternidade retorna a partir das diferentes relações do subalterno, da periferia do país e das grandes cidades do Brasil até seus respectivos centros. Assim, o cinema brasileiro contemporâneo produz suas diferenças quanto á emergência de uma nova perspectiva da subalternidade: os traficantes em “Cidade de Deus” e os integrantes da milícia em “O Som ao Redor” são o retorno dos “matadores” como outros devires-subalternos. Não há fim para aqueles que habitam a condição de subalternos, sendo que o ambiente desta subalternidade se manifestar passa da periferia do país e das grandes cidades até seus próprios centros; lugares, de toda forma, que continuam do lado de fora dos sonhos criados pela política instituída pela (re)democratização. Verifica-se que os finais abertos dos filmes citados – em que cabe ao espectador preencher o sentido que resta em aberto, sujeito a inúmeras interpretações, especulações e possibilidades – podem servir como ilustração da multiplicidade, assim como metáfora e metonímia da condição relacional deste subalterno, que em sua construção depende das relações entre seus pares e seus outros dentro e fora das telas em um contínuo devir. Assim como “Cidade de Deus” analisada por Matos (2009), pode-se dizer também que em “Os Matadores”, a subalternidade, o tráfico de drogas e o crime organizado adquirem visibilidade, tornando-se discursos interessantes às diretrizes da indústria cultural, porém aproximando a perspectiva da subalternidade à construção da facção criminosa que ali se fortalece (e que não põe fim à condição do oprimido), colocando em evidência o caráter paradoxal da subalternidade articulado com a complexidade das relações entre classes, centros e periferias, reinventando assim a vinculação mercadológica do cinema junto com sua abordagem de questões políticas na relação entre cinema brasileiro e Brasil. Diante do crescente sucesso nacional e internacional de bilheteria, pirataria, crítica, premiações e indicações dos filmes citados, além de diversos outros como “Central do Brasil” (SALLES, 1998), “O Céu de Suely” (AINOUZ, 2003), “Tropa de Elite” (PADILHA, 2007) e o recente “Que horas ela volta?” (MUYLAERT, 2015), podemos refletir que a subalternidade pode ser o leitmotiv, o fio condutor e a razão do sucesso e da repercussão deste cinema, justamente por expor o caráter múltiplo da II Congresso Internacional Sobre Culturas 351 subalternidade, bem como o fato de que esta é produzida social e culturalmente no interior da economia discursiva dominante. REFERÊNCIAS AINOUZ, Karim. O céu de Suely. Brasil, França e Alemanha: Videofilmes, 2006. 1 DVD (90 min.), son., color. ALMEIDA, Marco Antônio de. O cinema policial no Brasil: entre o entretenimento e a crítica social. In: Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria. Campinas: Unicamp, v. 10, n.17, jan./jun., 2007, p. 397-410. BRANT, Beto. 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Para ele, muitas características que descrevem o comportamento sexual são, na verdade, características de gênero. Ele aponta que, em alguma medida, associações entre sexo e gênero permaneceram incoerentes durante e depois do surgimento das epistemologias desenvolvidas pelos sexólogos europeus no século XIX. A man who engages in sex with other men might have come to be classified as a homosexual since then. However, the methods applied for identifying a homosexual—or, in other words, the so-called ‘symptoms’ of homosexuality—appear to remain irrevocably similar to those symptoms used to identify gender nonconformists. (MESSIAS, 2012, p. 49) Segundo o autor, tipos sexológicos como “o invertido” (primeiramente desenvolvido por Krafft-Ebing e posteriormente trabalhado por Ellis) e “o corpo de uma mulher preso no corpo de um homem” (desenvolvido por Ulrich) foram originalmente descritos como formas de desvio de gênero e falha psicológica. Vale lembrar que esses tipos são considerados como uns dos primeiros personagens da tipologia homossexual. 145 Mestrando pelo Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e integrante do grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade (CUS). E-mail: nonato.murillo@gmail.com II Congresso Internacional Sobre Culturas 354 The primacy of gender behaviour over sexual practice as a defining characterisitic of the invert—one of the first characters in the typology of homosexuality—has been highlighted by Sinfield. “In the case of the invert in the discourse of the 19th century sexologist,” he has shown, “social behaviour [i.e. ‘effeminacy’] was defining, and sexual practice was secondary” (Sinfield 1994: 46). Furthermore, on the discursive construction of identities, Norton (in Sinfield 1994: 110) reminds us that “as far as we can tell, gay men did not think of themselves as women trapped in men’s bodies until the sexologists began popularising this term in the 1860s.” (MESSIAS, 2012, p. 51) Os sexólogos tornaram a homossexualidade uma condição congênita e patológica a partir de um modelo baseado primordialmente em características de desvio de gênero, o que levou a homossexualidade a ser incluída posteriormente no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). No ano de 1973, a American Psychiatric Association (APA) removeu a homossexualidade da lista de transtornos mentais da terceira edição do DSM, mas a patologização do comportamento afeminadx seguiu constando no livro a partir de um novo código. Segundo Piontek (2006), apesar de não mais constar a homossexualidade como um transtorno, o DSM III foi a primeira edição do manual a incluir o código de Disforia de Gênero na Infância. O DSM V, publicado em 2013, é a versão atualizada do manual e nele o referido código segue constando como uma disforia. Analisarei nesse texto, a partir do referido código, as reverberações da patologização do comportamento afeminadx nxs afeminadxs de hoje. GÊNERO, PATOLOGIZAÇÃO E XS MENINXS AFEMINADXS De acordo com o DSM V, as crianças que sofrem desse transtorno sentem discordância entre o sexo identificado no nascimento e suas experiências de gênero, expressam de maneira regular interesse por objetos identificados socialmente como relacionados ao gênero oposto, entre outras características. Vejamos o que diz o manual na íntegra: “Disforia de Gênero - Critérios Diagnósticos - Disforia de Gênero em Crianças 302.6 (F64.2) A. Incongruência acentuada entre o gênero experimentado/expresso e o gênero designado de uma pessoa, com duração de pelo menos seis meses, manifestada por no mínimo seis II Congresso Internacional Sobre Culturas 355 dos seguintes (um deles deve ser o Critério A1): 1. Forte desejo de pertencer ao outro gênero ou insistência de que um gênero é o outro (ou algum gênero alternativo diferente do designado). 2. Em meninos (gênero designado), uma forte preferência por crossdressing (travestismo) ou simulação de trajes femininos; em meninas (gênero designado), uma forte preferência por vestir somente roupas masculinas típicas e uma forte resistência a vestir roupas femininas típicas. 3. Forte preferência por papéis transgêneros em brincadeiras de faz de conta ou de fantasias. 4. Forte preferência por brinquedos, jogos ou atividades tipicamente usados ou preferidos pelo outro gênero. 5. Forte preferência por brincar com pares do outro gênero. 6. Em meninos (gênero designado), forte rejeição de brinquedos, jogos e atividades tipicamente masculinos e forte evitação de brincadeiras agressivas e competitivas; em meninas (gênero designado), forte rejeição de brinquedos, jogos e atividades tipicamente femininas. 7. Forte desgosto com a própria anatomia sexual. 8. Desejo intenso por características sexuais primárias e/ou secundárias compatíveis com o gênero experimentado. B. A condição está associada a sofrimento clinicamente significativo ou a prejuízo no funcionamento social, acadêmico ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo. Especificar se: Com um transtorno do desenvolvimento sexual (p. ex., distúrbio adrenogenital congênito, como 255.2 [E25.0] hiperplasia adrenal congênita ou 259.50 [E34.50] síndrome de insensibilidade androgênica). Nota para codificação: Codificar tanto o transtorno do desenvolvimento sexual como a disforia de gênero.” (APA, 2013, p. 452) O código de Disforia de Gênero na Infância estabelece critérios que os profissionais de saúde devem identificar para diagnosticar o paciente com a “doença”. Para ser diagnosticada com a disforia, a criança deve se enquadrar em seis dos oito sintomas supracitados, sendo um deles o critério A1. Dessa forma, o código estabelece (ou deveria estabelecer) uma diferença entre os pacientes que sofrem da disforia daqueles que apresentam apenas um desajuste em relação às expectativas sociais para o gênero. O código diz ainda que: Meninos pré-puberais com disforia de gênero podem expressar o desejo ou afirmar que são meninas ou que serão meninas quando crescerem. Preferem usar trajes de meninas ou mulheres ou podem improvisar roupas com qualquer material disponível (p. ex., usar toalhas, aventais e xales como cabelos longos ou como saias). Essas crianças podem desempenhar papéis femininos em brincadeiras (p. ex., brincar de "mãe") e com frequência se interessam intensamente por bonecas. Na maioria das vezes, preferem atividades, jogos estereotípicos e passatempos tradicionalmente femininos (p. ex., "brincar de casinha", desenhar quadros femininos, assistir a programas de televisão ou vídeos com personagens femininos favoritos). Bonecas estereotípicas femininas (p. ex., Barbie) geralmente são os brinquedos favoritos, e as meninas são as companheiras de brincadeira preferidas. Eles evitam brincadeiras II Congresso Internacional Sobre Culturas 356 agressivas e os esportes competitivos e demonstram pouco interesse por brinquedos estereotipicamente masculinos (p. ex., carrinhos, caminhões). Alguns fingem que não têm pênis e insistem em urinar sentados. Mais raramente, podem dizer que sentem repulsa pelo pênis ou pelos testículos, que gostariam que eles fossem removidos ou que têm, ou gostariam de ter, uma vagina. (APA, 2013, p. 452) O código de Disforia de Gênero na Infância patologiza e estigmatiza as pessoas transexuais e a todos xs meninxs afeminadxs já que esses são vistos como sujeitos que acreditam pertencer a outro gênero ou como pré-transexuais (ignorando e invisibilizando suas performatividades). A existência desses critérios no código e a descrição dos comportamentos considerados doentios estabelecem que xs afeminadxs são sujeitos incapazes de se alinhar de maneira adequada às normas de gênero, tornando-os projetos falhos de masculinidade. Como apontam Langer e Martin (2004, p. 14), a Disforia de Gênero na Infância “represents a conflation of conformity with healthy in which effeminate boyhood is considered not just different, but pathological”. Para Langer e Martin (2004), as formas desviantes do comportamento padrão de gênero podem ser, de fato, estatisticamente desviantes. Porém, para os autores, os estudos existentes ainda não conseguiram provar que eles sejam de fato uma disfunção. Estudos mostram (HALPERIN,2004; MESSIAS, 2012; HENNEN, 2008) que a feminilidade no corpo masculino ao longo do espaço-tempo são variações que fazem parte da experiência humana. O DSM V (APA, 2013) afirma que pessoas com Disforia de Gênero (tanto na infância como adolescência e vida adulta) sofrem com ostracismo social, com o desejo de evadir da escola e com pensamentos suicidas. O manual aponta essas formas de angústia como sintoma da disforia. Segundo Wilson e Hammond (apud LANGER e MARTIN, 2004), o DSM tende a não considerar diferenças entre a angústia provocada por fatores ligados a experiências internas do sujeito (angústia inerente) das experiências externas que possam ocasionar tal sofrimento (angústia social). Langer e Martin (2004) explicam que a angústia inerente é uma forma de sofrimento que é experimentada pelos indivíduos com uma condição patológica que é originada dentro deles, enquanto a angústia socialmente imposta é o resultado de forças externas. Segundo os autores, o perigo em não distinguir ambas as formas de sofrimento é que os indivíduos podem ser patologizados por reagirem contra forças políticas e sociais opressoras. Eles relatam, por exemplo, que sujeitos que dissidiam politicamente na II Congresso Internacional Sobre Culturas 357 União Soviética eram diagnosticados com esquizofrenia (distúrbio cerebral em que o indivíduo distorce a realidade) e afrodescendentes escravizados nos EUA do século XIX que fugiam de seus senhores eram diagnosticados com drapetomania (um diagnóstico médico proposto em 1851 por Samuel A. Cartwright que visava explicar a tendência humana de querer escapar). De acordo com Langer e Martin (2004), o problema em patologizar o comportamento atípico de gênero é que não existe um consenso em relação ao o que é apropriado para o gênero. Afirmam os autores: In addition, what was considered gender-inappropriate several years ago might be considered appropriate today. For exemplo, studies using the Bem Sex Role Inventory (Bem, 1974, 1977) and Personality attribute Questionaire (spence, Helmreich, and Stapp, 1974) found that half of adult woman would not be considered feminine based on their score on these tests (Bem,1981; Hoffman and Fidell, 1979; Hyde, Krajnik and Skuldt-Niederberger, 1991; O’Heren and Orlofsky, 1990; Oldham, Farnill and Ball, 1982). A likely reason may be that conceptualizations of feminine gender roles have changed radically since the 1970. (LANGER e MARTIN, 2004, p. 13) No exemplo anterior, Langer e Martin mostraram como as normas de gênero sofrem alterações em tempos distintos. Colling (2012) nos mostra como essas normas podem apresentar diferenças no mesmo período de tempo, mas em espaços diferentes. O autor utiliza as identidades masculinas heterossexuais (pouco questionadas e geralmente compreendidas como fixas) para apresentar essa variabilidade. Para terminar, vou apontar apenas alguns aspectos de como os homens heterossexuais também são diferentes nas suas formas de expressar a sua identidade de gênero. Em Salvador, é muito comum ver homens que fazem e pintam as unhas, pintam os cabelos e fazem a sobrancelha (alguns as deixam finíssimas). Ao dançar, quase todos rebolam. Em muitas outras cidades do Brasil (falo, por exemplo, do interior do Rio Grande do Sul, onde nasci) a heterossexualidade de todos esses homens baianos seria colocada em questionamento por causa disso. Ou seja, a depender da cultura de cada lugar, um homem pode fazer determinadas coisas ou não. (COLLING, 2012, s/p) II Congresso Internacional Sobre Culturas 358 Segundo o autor, a identidade do homem heterossexual não se compõe apenas através do fator biológico, mas se constrói também através da cultura. Tanto Colling quanto Langer e Martin mostram, através de seus exemplos, que, de fato, não há um discurso único acerca do que é apropriado para o gênero no espaço-tempo e que não há uma verdade inerente ao gênero. Butler também argumenta que, “[...] o gênero nem sempre se constitui de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos” (2012, p. 20). Segundo ela, o diagnóstico de Disforia de Gênero é, na verdade, uma forma de reforçar as normas de gênero. […] “gender dysphoria” is a psychological disorder simply because someone of a given gender manifests atributes of another gender or a desire to live as another gender. This imposes a model of coherent gendered life that demeans the complex ways in wich gendered lifes are crafted and lived(grifo nosso). (BUTLER, 2004, p. 4) Se Butler estiver correta e a disforia for uma forma de impor um modelo coerente de gênero na sociedade, podemos dizer que a patologização dos indivíduos através do referido código é uma forma de punição aos sujeitos que reagem contra forças políticas e sociais opressoras, tal qual ponderaram Langer e Martin (2004). Xs afeminadxs, ao romperem com as normas de gênero socialmente impostas, de forma consciente ou inconsciente, reagem contra tais forças políticas que estão interessadas na manutenção do status quo. O preço a pagar pela desobediência é ter sua identidade de gênero patologizada e estigmatizada, o que os condena a uma narrativa de vida marcada pela violência e exclusão social. Eve Sedgwick (1991), no texto How to bring your kids up gay, analisa a literatura produzida entre a década de 70 e 80 pela psicanálise revisionista após a decisão da APA de retirar a homossexualidade da lista de transtornos do DSM. A autora tenta entender qual seria o destino das crianças na saúde mental após a despatologização da homossexualidade e da inclusão da Disforia de Gênero na Infância no DSM. Segundo Sedgwick (1991), essa literatura, na época, se limitou a pesquisa envolvendo meninos. Um exemplo delas é o texto de Richard C. Friedman Male homossexuality: a comtemporary psychoanalitic perspective, publicado em Yale, no ano de 1988. A obra contém inúmeras histórias de homens gays que se relacionaram com o psiquiatra fora do contexto terapêutico. II Congresso Internacional Sobre Culturas 359 These include “Luke, a forty-five-year-old career army officer and a life-long exclusively homosexual man” (152); and Tim, who was “burly, strong and could work side by side with anyone at the most strenuous job”; “gregarious and likeable”; “an excellent athlete; Tim was “captain of [his high-school] wrestling team and editor of the school newspaper” (206-7). Bob, another “well-integrated individual”, “had regular sexual activity with a few different partners but never cruised or visited gay bars or baths. He did not belong to a gay organization. As an adult, Bobhad had a stable, productive work history. He had loyal caring, durable friendship with both men and woman” (92-3). Friedman also, by way of comparison , gives an example of heterosexual man with what he considers a highly integrated personality, who happens to be a combat jet pilot: “Fit and Trim, in his late twenties, he had the quilety commanding style of an effective decision maker” (86). (SEDGWICK, 1991, p. 19) Esse trecho revela que, para os psicanalistas revisionistas, a homossexualidade poderia ser considerada saudável e poderia ser aceita na sociedade desde que o sujeito fosse adulto e reproduzisse o padrão heteronormativo. Friedman (apud SEDGWICK, 1991), define, na verdade, a feminilidade masculina como uma “global character pathology” e o que ele chama de “the lower part of the psychostructural spectrum”. De acordo com Sedgwick (1991), essa literatura está embebida de novos pressupostos teóricos para o período dentro dos estudos gays e lésbicos e que distinguiam o gênero da sexualidade. Para autora, essa perspectiva teórica vinha trazendo inúmeros avanços, porém foi deturbada em sua locomoção para os estudos da psiquiatria revisionista. Segundo ela, esses novos estudos na área da psiquiatria levaram a criação do conceito de Core Gender Identification, criado por John Money e Robert Stoller. De acordo com ela, o conceito versa sobre a identificação do sujeito com o masculino ou feminino. Essa identificação estaria separada ou operava de forma independente da sexualidade. O conceito, no entanto, se ancora no reforço do alinhamento entre a relação sexo-gênero criticado por Butler (2012). Para que houvesse uma identificação de gênero saudável, segundo essa perspectiva, o comportamento de gênero do sujeito deveria estar em conformidade com o sexo atribuído no nascimento. Para Sedgwick (1991, p. 21), “one serious problem with this way of distinguishing between gender and sexuality is that, while denaturaling sexual object-choice, it radically renaturalizes gender”. II Congresso Internacional Sobre Culturas 360 De acordo com Sedgwick (1991), a disforia de gênero na infância seria uma patologia envolvendo o conceito de Core Gender Identification. Nesse caso, a disforia refletiria a falha do sujeito em alinhar o seu comportamento de gênero com o sexo que lhe foi atribuído. Para que houvesse uma identificação de gênero saudável, nos moldes propostos por Money e Stollen (apud SEDGWICK 1991, p. 22), “a non-transexual person with a pênis, nothing can ever be assimilated to the self trough this process of consolidation [do gênero] unless it can be assimilated as masculine” . Wilkison (2011), descreveu, no texto “Drop the Barbie” If you Bend Gender far enough, does it brake?, métodos de tratamento para crianças diagnosticadas com Disforia de Gênero na Infância propostos pelos revisionistas. Em um deles, de acordo com a autora, pede-se para que as crianças desenhem. As meninas que desenham homens em posição de poder e os meninos que desenham princesas são consideradas suspeitas de terem ou estarem desenvolvendo a Disforia de Gênero na Infância. No teste Barlow Genders-Specific Motor Behaviour, os profissionais analisam quão longe ou perto as crianças sentam do apoio da cadeira. Se sentam longe, é um comportamento masculino e se sentam perto é um comportamento feminino. Ela afirma ainda que são medidos nesses testes o ângulo formando entre o pulso e a mão ou quanto os quadris mexem quando uma criança está andando. O DSM e a literatura dos psiquiatras revisionistas analisadas demonstraram que o diagnóstico de Disforia de Gênero na infância segue códigos que utilizam o corpo do sujeito como base para os diagnósticos. Os afeminadxs assimilam em seus corpos justamente as características que são consideradas como femininas ou não masculinas. Xs meninxs afeminadxs vestem-se de princesas; colocam toalhas em suas cabeças para fingir que têm cabelos longos, brincam com bonecas; dançam; podem não ter interesse por brincadeiras que envolvem competição ou violência, entre outros. Por apresentar essas características que divergem da expectativa social para o gênero masculino, psiquiatras revisionistas como Money, Stolen e Friedman consideram xs afeminadxs apenas como falhas ocorridas durante o processo de identificação de gênero, ou seja, sujeitos patológicos. O corpo afeminadx, de acordo com a visão desses profissionais, são como falhas na identificação de gênero do sujeito que precisam ser normalizadas. De acordo com Messias (2012, p. 47), x afeminadx, a partir do discurso proposto pelos saberes médicos, deve se adequar às normas de gênero, pois esses tratamentos se resumem a: II Congresso Internacional Sobre Culturas 361 [...] (a) “behavior therapy”, where gender typical behaviour is rewarded whereas cross-gender behaviour is not; (b) psychotherapy and (c) the treatments of parents, who are taught to establish boundaries. All of the suggested forms of treatment appear to be designed to encourage boys to conform to traditional gender and heterosexual rules, further stressing the conflation between health and conformity. Em suma, os tratamentos de Disforia de Gênero na Infância parecem se resumir a trazer garantias de que o corpo afeminadx será corrigido e normalizado. Os esforços estão direcionados para o processo de masculinização do seu comportamento. Através dos esforços depositados nessa correção, se espera, no fim, o apagamento do sujeito afeminadx da sociedade. AS CONSEQUÊNCIAS DO TRATAMENTO DE DISFORIA DE GÊNERO NA INFÂNCIA NAS CRIANÇAS Langer e Martin (2004) afirmam que a experiência de ser diagnosticada com Disforia de Gênero na Infância pode ser dolorosa para a criança de diversas maneiras. Segundo os autores, “the primary way in which diagnostic labeling might harm children is trough de experience of being stigmatized” (LANGER e MARTIN, 2004, p 17). De acordo com eles, não existem estudos que mostrem o alcance das consequências da estigmatização nas crianças, no entanto, afirmam que “there is evidences that adults experience stigma associated with being labeled mentally ill or substance abusers” (Link et all apud LANGER e MARTIN, 2014, p. 17). Essas experiências de estigma podem fazer com que os sujeitos diagnosticados se sintam desvalorizados, o que pode causar depressão. De acordo com Langer e Martin (2004), para que esses sintomas sejam contidos, as pessoas diagnosticadas com essas doenças devem manter contato com sujeitos em situação similar ou com a mesma condição. Esses sujeitos precisam ser integrados a uma comunidade que espelhe sua identidade. No entanto, para as crianças que são diagnosticadas com a disforia de gênero, tratadas para serem “normais”, não é dada essa oportunidade. Os autores apontam que o isolamento dessas crianças deve tornar a experiência de estigma ainda mais dolorosa e solitária. II Congresso Internacional Sobre Culturas 362 Burker (apud LANGER e MARTIN, 2004) aponta que várias crianças foram prejudicadas a partir desse tratamento e para algumas ele foi letal. O pesquisador descreveu o caso da tomboy Becky, que aos sete anos iniciou o tratamento. Aos oito anos de idade ela começou a apresentar fantasias sexuais obsessivas com homens adultos. Em outro caso, Burke conta a história de Kraig. Kraig era um garotx afeminadx de 4 anos que após o tratamento passou a apresentar comportamento agressivo e destrutivo. A mãe dx garotx relatou que no período do tratamento a relação entre Kraig e o pai se deteriorou. Aos 17 anos de idade Kraig apresentava obsessão por parecer masculino. Elx relatou que o tratamento fez com que se sentisse envergonhado de si mesmo e aos 18 anos cometeu suicídio. Esses exemplos mostram que impor o tratamento de Disforia de Gênero na Infância pode gerar consequências desastrosas. O diagnóstico pode fazer com que as crianças se sintam estigmatizadas; envergonhadas de seu próprio comportamento; levar à depressão e ao suicídio. Os esforços depositados na mudança de comportamento de gênero nas crianças diagnosticadas com Disforia de Gênero na Infância mostram que a sociedade não se refuta ao risco de sacrificar vidas na tentativa de corrigir o corpo afeminadx para que ele caiba nas normas de gênero estabelecidas. A sociedade sedenta pela regulação dos corpos, como bem apontou Sedgwick (1991), mal esconde seu desejo de que os corpos afeminadxs sejam apagados da sociedade. A existência do código de Disforia de Gênero na Infância evidencia que o corpo afeminadx encontra-se fora dos discursos da normatividade e se apresenta como forma de resistência. É justamente por incomodar e escancarar a não naturalidade dos gêneros que mecanismos como a patologização e marginalização foram e são acionados para controlar esses corpos. REFERÊNCIAS ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSICOLOGIA (2014). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais – V. Artmed, 2014. Porto Alegre. 976. BUTLER, J. Undoing Gender. Nova York e Londres: Routledge, 2004. __________. Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. II Congresso Internacional Sobre Culturas 363 COLLING, L. A diversidade da heterossexualidade. 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II Congresso Internacional Sobre Culturas 364 COLEÇÃO VOZES: PROCESSOS CRIATIVOS SOB A PERSPECTIVA DO ATIVISMO ANTIRACISTA Caroline Barreto Lima146 RESUMO Este trabalho visa a elaboração de uma reflexão teórico-prática e crítica, dos resultados construídos por meio do Projeto de Circulação Internacional da ‘Coleção VOZES: Moda e Ancestralidades’ de minha autoria como designer de moda, militante feminista, anti-racista e acadêmica. Esse texto visa registrar brevemente as etapas do Projeto VOZES desde a criação, às fases de confecção e processo criativo colaborativo com estudantes de moda e artes visuais, as interlocuções com as comunidades Quilombolas do Recôncavo Baiano e as ações de difusão e circulação internacional. O debate acontece sob a perspectiva da discussão sobre Racismo, provocando uma reflexão acerca da importância da moda na contribuição à desconstrução dessas assimetrias sociais. Palavras chave: Design de Moda; Cultura, Racismo; Feminismos. O projeto de Circulação Internacional da ‘Coleção Vozes: Moda e Ancestralidades’ está pautado no compartilhamento de saberes e também de experiências moderadas na produção horizontal no âmbito da criação em moda, música, audiovisual e na confecção de têxtil e vestuário, pensando o campo das artes também como ativismo político no enfrentamento aos processos de subordinação e opressão, bem como, nos processos de invisibilização de outras vozes e paisagens culturais na esfera criativa, intentando produzir resultados que possam fazer ecoar identidades de fronteira e referências de comunidades ainda vulneráveis na Bahia. A coleção Vozes apresentada na Black Fashion Week Paris em 2015, evoca um debate sobre pós-colonialidade e questiona: O que significa ser fruto de um país que foi colonizado? Que marcas de identidade podem ser interpretadas como subalternidade ou resistência? E, por tratar sobre os processos de colonização no Brasil, foi elaborada a partir de resíduos e retalhos de tecido africano, outras bases de algodão e têxteis sintéticos, como meio para a construção de tecidos exclusivos e modelagem inovadora, por meio de oficinas e laboratórios criativos com estudantes de Design de Moda e Artes Visuais. A fase atual da pesquisa consiste em registro e reflexão teóricoprática e crítica, acerca das etapas e significados que compõem o Projeto de 146 Mestre, Universidade Federal da Bahia, demodee@gmail.com Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher – NEIM – UFBA II Congresso Internacional Sobre Culturas 365 Circulação Internacional da ‘Coleção VOZES: Moda e Ancestralidades’, que ainda está em andamento. A elaboração do projeto VOZES se iniciou em fevereiro de 2015, quando se passou às fases de confecção e processo criativo colaborativo, com estudantes de moda e artes visuais, no período entre julho a novembro de 2015; as interlocuções com as comunidades Quilombolas de Santiago do Iguape, São Francisco do Paraguaçu, Engenho da Ponte e Quilombo Tabuleiro da Vitória, situadas em Cachoeira – BA em outubro de 2015. As ações de difusão e circulação internacional se iniciaram com o desfile na Black Fashion Week Paris, em dezembro de 2015, em fevereiro de 2016 como convidada a representar o Brasil dentre 07 criadores da Diáspora Africana, na exposição Water Carry Me Go, no Royal Ontario Museum e no Harbourfront Center em Toronto – CA, em março de 2016 exposições e Artist Talks em duas galerias de arte em Chicago – IL – EUA, em outubro de 2016 representando o País na 2ª edição do Mercado de Indústrias Culturais dos Países do Sul (Micsul), compondo o catálogo oficial do evento em Bogotá, Colômbia. Essa circulação internacional abarca também, as apresentações dos resultados do projeto nas comunidades quilombolas supracitadas em maio de 2016 e o lançamento em Salvador do Edudoc ‘Moda.Devir’ (das criações de Carol Barreto), dirigido por Claudio Manoel Duarte, em julho de 2016 na Saladearte Cinema do Museu em Salvador-BA, com apresentação em Maceió – AL em outubro de 2016 e exibições agendadas em outros países como Alemanha e Angola. Os resultados e desdobramentos construídos nesse intercâmbio contribuíram para uma análise das relações de poder estabelecidas no campo das artes, modificando tais estruturas uma vez que uma mulher negra baiana foi protagonista de espaços de circulação de trabalhos artísticos, usualmente excludentes para a população negra brasileira. Tais ações contribuem no sentido de ampliar o alcance do debate racial para o campo da moda e das artes, pensando sobre o campo vestimentar e da construção da aparência com locus de relações de poder, contribuindo assim para a elaboração de estratégias de enfrentamento do racismo, etnocídio e da misoginia que ainda hoje se fazem presentes no campo da cultura. Da minha trajetória individual e profissional aos enfrentamentos no âmbito prático do universo da moda, vejo materializarem-se as estratégias de invisibilização que a estrutura racista da sociedade brasileira e baiana continuam a produzir. Como designer de moda, segundo análises de registros midiáticos, fui a primeira mulher negra brasileira – das poucas estilistas negras em atuação no Brasil e que assume a II Congresso Internacional Sobre Culturas 366 perspectiva feminista e anti-racista nas criações - a alcançar visibilidade internacional. Não obstante, são pouquíssimos os convites para apresentação ou exposição das coleções no Brasil. Como criadora de moda autoral, me inspiro a continuar trabalhando num universo limitado e excludente, pela possibilidade de expressar por meio da moda interpretações sobre Brasilidade sob a perspectiva do meu pertencimento, materializando e construindo por meio da visualidade da roupa, dos processos criativos e produtivos envolvidos, o desafio de expressar as referências culturais de um país com dimensões continentais, descentralizando essas mesmas representações - geralmente pautadas em padrões hegemônicos. Nesse projeto, a postura contra hegemônica se compõe antes da passarela ou da elaboração da imagem de moda, constituindo um compartilhamento também de experiências pautadas na produção horizontalizada, no que tange à compreensão da possibilidade de que a produção de uma coleção para um desfile pode fazer ecoar identidades de fronteira ou referências de comunidades ainda vulneráveis no Brasil. Por esse motivo as imagens de divulgação da Coleção Vozes foram feitas na região de antigos quilombos em Cachoeira-BA, local de refúgio e resistência de africanos escravizados na colônia, onde hoje podem ser encontradas diversas manifestações culturais e artísticas de resistência e ao mesmo tempo ouvir ecoar um profícuo debate sobre as dificuldades e a importância dessa população se reconhecer como Remanescente Quilombola. Assim, podemos ao mesmo tempo pensar o campo da moda como linguagem que se pretende universal, estereotipando grupos humanos com características e valores estéticos específicos, assim como também um campo de luta política. A simulação da neutralidade e da universalização é estratégica e está comumente pautada na idéia de perpetuação do cânone europeu, em detrimento às demandas e questões políticas da diversidade da população brasileira nas nossas lutas descoloniais. Por isso permeio o meu trabalho de motivações para expansão de uma nova prática em design de moda, prezando pela diversidade de referências envolvidas na criação dessas imagens, que influenciam milhares de pessoas que geralmente não se vêem representadas nas passarelas e editoriais de moda. Desse modo, tenho apresentado imagens prioritariamente com modelos negras, criando coleções que trazem fazeres artesanais populares caraterísticos da região do Recôncavo da Bahia e outros têxteis artesanais nordestinos, envolvendo as pessoas que os constroem, adotando materiais e técnicas que marcaram as estratégias de transcendência da condição de permanente II Congresso Internacional Sobre Culturas 367 sofrimento e violência no período de escravização e que até hoje são tidas como motivo de agrupamento de mulheres trabalhadoras, lavadeiras, marisqueiras e etc, como os bordados e a rendas, criações vistas como menores por suas marcas de identidade não-hegemônicas, produzidas majoritariamente por mulheres negras, pobres, de zona rural, adultas e idosas, mães, chefes de família e com baixa escolaridade. Do mesmo modo, muitas coleções anteriores trazem à tona um debate sobre brasilidade e ancestralidades africanas. Nesse âmbito, pretendo por meio da pesquisa acadêmica, contribuir para uma reflexão acerca da centralidade da moda e da aparência nos processos de autoreconhecimento e empoderamento de mulheres negras, elaborando uma provocação no que se refere às possíveis interlocuções entre forma e conteúdo, propondo se pensar numa prática e numa escrita ativistas que façam ecoar vozes subalternizadas numa proposta descolonial, tanto de nossas experiências, modos de produção de conhecimento, como de práticas acadêmicas e artísticas. Daqui em diante se faz necessário um debate sobre as relações entre moda, aparência, raça e racismo, campo ainda incipiente no Brasil, tanto na esfera acadêmica quanto no cotidiano das pessoas, onde a discussão é ainda mais invisibilizada pelo “mito da democracia racial” que ainda ocupa o imaginário das pessoas, muitas vezes interferindo em processos de auto reconhecimento. Portanto, se faz útil a conceituação da categoria Raça e dentre diversos (as) autores (as) que trabalharam na definição do termo, Antônio Sérgio Guimarães no texto “Como trabalhar com “Raça” em Sociologia”, reconhece Raça como um construção social, estudada por um campo específico da Sociologia ou das Ciências Sociais, que debate as identidades sociais, situdas no campo da cultura e também da cultura simbólica – que aqui muito me interessa para a análise proposta – e construído portanto na base do discurso e das narrativas sobre origem, como explica: As sociedades humanas constroem discursos sobre suas origens e sobre a transmissão de essências entre gerações. Esse é o terreno próprio às identidades sociais e o seu estudo trata desses discursos sobre origem. Usando essa idéia, podemos dizer o seguinte: certos discursos falam de essências que são basicamente traços fisionômicos e qualidades morais e intelectuais; só nesse campo a idéia de raça faz sentido. O que são raças para a sociologia, portanto? São discursos sobre as origens de um grupo, que usam termos que remetem à transmissão de traços fisionômicos, qualidades morais, intelectuais, psicológicas, etc., pelo sangue II Congresso Internacional Sobre Culturas 368 (conceito fundamental para entender raças e certas essências). (GUIMARÃES, p. 96, 2003) Compreendedo a Aparência como discurso, e os traços fisionômicos como cita o autor como índice ou símbolo de aspectos morais, intelectuais dentre outros a partir da produção da noção de essência X aparência o fato de estar inteiramente visível (CIDREIRA, 2005, p. 17), não nos dá necessariamente a possibilidade de manipulação acerca da interpretação sobre a nossa aparência como aspecto simbólico da nossa origem, limitando, mas não eliminando as possibilidades de manipulação uma vez que, no caso de pessoas negras, ainda não reconfiguraram-se as memórias de subalternidade elaboradas a partir do passado e do presente ainda escravista e assimétrico, como declara Marcelo Paixão no artigo “Das relações raciais no Brasil: Entre a emergência de um novo tempo e a persistência do modelo autoritário”: Em geral costuma-se associar as assimetrias de cor ou raça no Brasil ao distante passado escravista. De fato, nosso país abriga um triste legado em seu período colonial e imperial; indelevelmente maculado pelo signo do regime servil. Tal como dizia Joaquim Nabuco no seu célebre O Abolicionismo, a escravidão — e seus amplos efeitos econômicos, sociais, políticos e culturais — era a marca por excelência da identidade nacional. Talvez ainda o seja. (PAIXÃO, p. 17, 2015) A marca desses efeitos econômicos, sociais, políticos e culturais como traço de brasilidade inclusive, pode ser facilmente percebida no campo das representações imagéticas locais, especialmente nas narrativas televisivas por meio das novelas, da ausência de negros e negras como âncoras de jornais e demais programas de TV e no contexto da Moda, as assimetrias são bem perceptíveis. Um termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado em 2009 entre a São Paulo Fashion Week e o Ministério Público do Estado de São Paulo, que sugeriu às grifes que pelo menos 10% dos modelos nos desfiles da temporada sejam negros, acordo estabelecido entre o MPS (Ministério da Previdência Social) com a empresa Luminosidade, responsável pela organização do SPFW e Fashion Rio que estabelecia que 10% das modelos de cada desfile precisariam ser, necessariamente, negras ou de descendência indígena, e caso alguma marca não cumprisse o acordo a organização estaria sujeita a uma multa de 250 mil reais, mas esse TAC teve a duração de apenas dois anos, terminando em 2011. Nesse período foram escritas muitas matérias jornalísticas sobre o assunto e, hoje, numa rápida pesquisa via internet, poderemos colecionar as reações II Congresso Internacional Sobre Culturas 369 destes jornalistas e demais profissionais da área com indescritíveis posicionamento racistas. Na Bahia também, mesmo que sejamos maioria numérica da população, as modelos negras trabalham pouco e compõem a cota obrigatória na moda e na publicidade. Especialmente, sendo um estado composto por um recorte significativo de africanos capturados no período da colonização, podemos reconhecer na estética da cultura, um dos traços que contribui para diagnosticar os efeitos da segregação racial analisando como foi efetiva a manutenção de um legado cultural riquíssimo, como o candomblé, a capoeira, o samba de roda, o maculelê, a música e outros ritos tradicionais e festas populares que não se encontram em qualquer outro lugar fora do Brasil: ‘O Brasil foi a nação que mais importou africanos sequestrados em seu continente ancestral entre os séculos XVI e XIX. (…) igualmente foi o último a acabar com o regime servil no Hemisfério Americano, em 1888.’ (PAIXÃO, p.13, 2015). Este grande quantitavo é inversamente proporcional à condição de minoria em representatividade que as pessoas negras ocupam nos mais diversos setores da sociedade brasileira. Assim, busco também questionar qual o papel das artes, do design e de demais produções da nossa cultura material nos processos de autoreconhecimento e representatividade da população negra. A compreensão da relação entre imagem e autoestima nos processos de autoreconhecimento é tema de interesse de muitas (os) ativistas e acadêmicas (os) da área de estudos sobre Relações Raciais no Brasil e nos Estados Unidos. Consideramos como necessária essa radicalização cognitiva para criar novas condições para formação de uma diferente gramática para conceituar, refletir, informar a existência negra como uma existência política, que faz de grande importância para a desconstrução e reconstrução da imagem das pessoas negras no Brasil. Tal atitude só se torna possível a partir de uma leitura crítica das formas de produção de conhecimento, arte e política que nos são ofertadas, analisando se são passíveis de reforçar a branquitude como modelo e prática que se instala desde a colonização. No artigo ‘Etnografias do Brau: Corpo, Masculinidade e Raça na Reafricanização em Salvador.’ Osmundo Pinho (2005) apresenta uma interessante reflexão acerca das interseccionalidades (CRESHAW, 2000) entre raça, gênero, classe social ao trazer uma reflexão sobre o ‘brau’ como uma forma de representação e de reinvenção de identidade, fruto também de um processo de reafricanização da cidade de Salvador, como uma forma de guerra e resistência da população negra local que II Congresso Internacional Sobre Culturas 370 recupera e reinterpreta os signos de Àfrica reinventando também as identidades negras nas aparências, percebendo o corpo como locus de disputa e representação de referências estéticas dissonantes da hegemonia. Pensando a construção da imagem e performance do corpo como registro da relação entre pessoa e sociedade, num fluxo entrecortado por relações raciais, de gênero, de sexualidades e demais marcadores sociais de diferença, o autor elabora um entendimento sofisticado sobre a centralidade do corpo e consequentemente da aparência como uma fronteira de si, frente aos padrões impostos socialmente, de maneira intersubjetiva e interelacional, desconstruindo a idéia de sociedade como entidade autônoma, pensando o indivíduo como invenção da cultura, no entanto afirma que no caso específico do corpo negro, este só poderia ser analisado como um “objeto” cultural se interpretado a partir do campo das batalhas discursivas e, nesse aspecto, podemos compreender o potencial da linguagem da aparência como maneira de reinventar-se, ressignificar os estigmas impostos sobre si mesmos: Meu argumento para esse aspecto, é preciso dizê-lo claramente, é de que as formas de alteração visual, de manipulação da aparência e de reversão de estigma são formas políticas de inscrição da visualidade afrodescendente no ‘corpo’ da cidade, subvertendo a paisagem e reinventando os lugares como espaços públicos para o contrapúblico negro incipiente em Salvador. Identidades sociais reafricanizadas, nesse sentido, seriam formadas não contra o pano de fundo da paisagem e das culturas urbanas, mas nesses complexos arranjos interconectivos de paisagem, corpo e discurso. O gesto negro, fixado como uma re-presentação, é marca da constituição do indivíduo afrodescendente sob os constrangimentos sociais que constituíram o ambiente integral do racismo e da divisão racial do trabalho, repetido como forma alienada de viver a cultura. A reafricanização tem dado nova inflexão às formas tradicionais de intervenção crítica afrodescendente, assim como para a tradição contracultural da diáspora. O gesto negro como ato subversivo, encarnado na performance do brau, revela o corpo negro como um não-ser, uma fronteira variável e em disputa. (PINHO, p.141, 2005) Esse modo de inscrição do corpo numa cidade segregada racialmente como Salvador, carrega em si uma potência controlada uma vez que, as regras de conduta social, de performance estética e de visualidade no que tange à aparência, são regulados exclusivamente sob a égide da branquitude, situando a aparência de negritude como característica somente dos espaços de serviço e do entretenimento inferiorizados. Nesse ínterim, para o autor, o corpo negro seria um elemento disputado e mediado pelas representações e estereótipos, muito embora reconheça que as II Congresso Internacional Sobre Culturas 371 imagens são potentes tanto para definir expressões de autoridade, quanto de subalternidade, portanto os deslocamentos de fronteira e perturbações de sentido são possíveis. Assim podemos pensar que além da naturalização da ausência de diversidade étnico-racial, de geração, acessibilidade, silhueta e outros marcadores de diferença, são diversos os padrões excludentes que no cenário profissional brasileiro tornaram reconhecíveis a linguagem do desfile de moda. No Brasil, a passarela ainda espelha um país branco, de olhos azuis e mesmo estando na Bahia, essa característica dos eventos de moda, permanece. Observo que a participação de profissionais negras, quando não são modelos, está majoritariamente atrelada a funções vistas como menores como a organização de camarim, passadeiras, costureiras, cortadeiras e etc. No meu trabalho como criadora de moda autoral, mesmo com a necessidade de atender minimamente a certos modelos e padrões de apresentação das criações de moda, intento construir uma mudança em termos de metodologia, de ação, processo e performance na produção das coleções, o que se materializa na minha trajetória e por meio das identidades das artistas colaboradoras que se conectam com os ativismos presentes, pois nossas criações estão pautadas em processos criativos que visibilizem visualidades e sonoridades lidas como inferiores por conta dos sujeitos que as constituem, elaborando um olhar inovador nesse campo pela expressividade de número e de atuação de mulheres negras e de referências da cultura afro-brasileira com as quais trabalho. REFERÊNCIAS CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 1, 2000, pp. 171-188. BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e Branquitude no Brasil. In: Psicologia social do racismo – estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil / Iray Carone, Maria Aparecida Silva Bento (Organizadoras) Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p. (25-58). CIDREIRA, Renata Pitombo. Os sentidos da moda (vestuário, comunicação e cultura). São Paulo: Annablume, 2005. II Congresso Internacional Sobre Culturas 372 GUIMARÃES, Antônio Sérgio A. Como trabalhar com “raça” em Sociologia. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 93-107, jan./jun. 2003. PAIXÂO, Marcelo. Das relações raciais no Brasil: Entre a emergência de um novo tempo e a persistência do modelo autoritário.LasaForum, Spring 2015: volume xlvi: issue 2. PINHO, Osmundo de A. Etnografias do Brau: Corpo, Masculinidade e Raça na Reafricanização em Salvador. In: Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 216, janeiro-abril/2005. II Congresso Internacional Sobre Culturas 373 A POTÊNCIA DA APARÊNCIA: ENTRELAÇAMENTOS ENTRE CULTURA, MODA E ARTE Renata Pitombo Cidreira147 RESUMO A moda exerce um poder enorme na nossa sociedade, sobretudo na dita contemporânea, que vive sob a égide da estetização generalizada ou de uma “ética da estética”, como prefere batizar o sociólogo Michel Maffesoli (1996). Neste artigo, vamos ilustrar essa potência criativa através da estética dândi e suas reelaborações contemporâneas, a exemplo do movimento da República Democrática do Congo e do Clube dos Dandys Portugueses. Palavras-chave: Aparência. Moda. Potência. Cultura. Arte. INTRODUÇÃO A moda é, por um lado, a expressão mais completa que parece sintetizar a emergência de tendências e, por outro, do instinto estético, fundamentalmente emocional daqueles que a criam, bem como daqueles que a portam. Ainda que para alguns seja considerada como algo frívolo, instrumentalizada por uma indústria mundializada ávida por resultados, a moda é um fenômeno cultural extremamente potente, capaz de esclarecer vários aspectos da vida social e psicológica dos indivíduos, nas suas interfaces com a criatividade e as relações de pertencimento. Nesse sentido, vamos procurar evidenciar essa potência da aparência que concerne a todos nós. Inicialmente, gostaríamos de destacar dois elementos que implicam numa certa complexidade do fenômeno moda. O primeiro deles diz respeito ao fato de que ela muda constantemente; seu único elemento de estabilidade é sua constante mudança. O segundo aspecto, para além da sua instabilidade, é a multiplicidade de instituições nela envolvidas. O acaso e a estética são outros elementos extremamente fortes quando pensamos na moda e na aparência. Como observa o sociólogo Frédéric Godart (2011), existe uma certa irracionalidade no mundo da moda, uma vez que não sabemos que estilos e tendências dominarão numa determinada estação. Eles provêm de mecanismos incontroláveis, disseminados de forma difusa no seio de uma comunidade, expressando, assim, os gostos dos indivíduos. Ancorada nesses gostos, a moda se relaciona diretamente com as noções do belo e da sensibilidade. “A moda enquanto indústria, redefine os critérios do belo ao menos duas vezes por ano e o que parece belo em março não parece mais em setembro”, comenta Godart (p. 16). 147 Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA. Professora associada da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). E-mail: pitomboc@yahoo.com.br II Congresso Internacional Sobre Culturas 374 Assim, observamos que a moda é um grande dispositivo para compreender os mecanismos de formação dos gostos. Além disso, não podemos desconsiderar sua dimensão afetiva; o modo como a moda, sobretudo vestimentar, toca nossos sentidos, através do toque, do cheiro e do olhar. A maneira como nos apegamos a determinadas vestes exibe o grau de incorporação das peças ao nosso corpo, num diálogo intenso em que nossas capacidades sensório-motoras, nossa percepção e nossa afetividade são moduladas. Dito isto, parece não restar dúvidas que estamos diante de um fenômeno rico e complexo, extremamente poderoso. A moda exerce um poder enorme na nossa sociedade, sobretudo na dita contemporânea, que vive sob a égide da estetização generalizada ou de uma “ética da estética”, como prefere batizar o sociólogo Michel Maffesoli (1996). A POTÊNCIA DA MODA E DA INDUMENTÁRIA Para explorar o poder da moda e da indumentária, acionamos a contribuição de Mara Rúbia Sant’Anna (2007) que procura compreender o poder da aparência, florescendo a discussão sobre sua dimensão simbólica. Em se tratando especificamente desse poder que se plasma na ‘composição da aparência’, vale ressaltar que a autora recorre as observações de George Balandier que afirma que “todo poder requer uma representação, um decorum, um cerimonial e suas pompas, uma distância em relação aos súditos” (BALANDIER apud SANT’ANNA, 2007, p. 37), para, assim, se efetivar enquanto acontecimento. Atualizando suas considerações, devemos pensar, como o faz Mara Rúbia Sant’Anna, que as estratégias de poder, na contemporaneidade, instituem-se no fluxo, no jogo do efêmero e no âmbito da imagem e, nesse sentido, estão próximas da apropriação do novo. A novidade aparece, assim, como categoria fundamental para pensar a dimensão do poder remodelado a partir da aparência. Como reforça a autora, o poder se institui a partir da elaboração de si mesmo como um sujeito inovador, capaz de propor um novo ao social. “Um novo que cada sujeito pretende ser” (p. 41). A aparência se apresenta, desse modo, como uma reivindicação pela individualização, ou melhor, da afirmação de si enquanto aparição. Portanto, a composição da aparência se estabelece nessa potência que se constitui na relação entre a indumentária e o corpo. Podemos também pensar que outra forma de afirmação de poder se efetiva quando a indumentária se impõe como elemento significante da prática de resistência dentro da relação com o poder institucionalizado. Se a indumentária e a aparência se configuram como elementos comunicacionais, elas tem a potência de propor estratégias de sentidos nas relações de poder e resistência. E, desse modo, concordamos com Sant’Anna ao afirmar que “a aparência e o poder são instâncias da experiência da vida (...) que se interferem infinitamente (p. 43). Nesse caso, em particular, a indumentária assume um papel político, através do qual o II Congresso Internacional Sobre Culturas 375 sujeito procura “(...) não se assujeitar, contestando, desafiando e expondo fraturas por onde novas intersubjetividades possam ser inventadas" (CRUZ, 2016, p.177). De certo modo, a constituição mesma da moda, quando do seu surgimento enquanto dinâmica cíclica, já se efetivava numa relação de poder, em que as classes superiores procuravam se distinguir das classes inferiores, como demonstra Georg Simmel (1989); mas também já compreendemos que esta é apenas uma das facetas da potência da moda. Como já observou Gilles Lipovetsky (1989), a ação da dinâmica da moda acaba por interferir nas mais diversas instâncias da vida contemporânea, disseminando características que lhes são próprias nas esferas mais significativas da vida social como a política, a economia e as relações sociais, todas atingidas e modeladas a partir da efemeridade, da sedução, da novidade (como já apontamos) e da diferença marginal. É nesse horizonte interpretativo amplo que compreendemos a potência da moda e da indumentária, um meio através do qual identidades e posições de gênero e classe podem ser contestadas e desafiadas; mas, sobretudo, um meio em que todo e qualquer modo de existência pode se afirmar e se exercer plenamente num contexto cultural. POR UM DANDISMO POTENTE: CULTURA E ARTE Nesta fala gostaríamos de destacar a estética dândi como uma dessas formas de potência da aparência e de exercício pleno de uma forma de estar no mundo, adotando a “composição da aparência” como exercício criativo e elegendo-a como uma espécie de artisticidade. O dândi, como afirma Andreia Miron (2015), é um sujeito para quem “o amor pela beleza e pelo excepcional manifesta-se como costume na maneira de vestir-se e como prática de vida (p.37). Estes homens reverenciaram a elegância e incorporaram de modo fecundo a ideia de que o aparecer expressa o ser, de que toda aparição só se efetiva através de uma apresentação e de que esta última diz respeito, de modo igualmente importante, ao modo de ser deste ser que é. Além disso, souberam como ninguém dinamitar a mentira social, ainda que respeitando-a. Como observa Patrice Bollon “a convenção social erguia a ‘tela imóvel sobre a qual o ‘Belo’, como artista de si próprio, podia traçar sua imagem e a curva do seu destino” (1993, p. 210). O dandismo aparece na Inglaterra, sobretudo em Londres, no século XIX, incorporado na figura de George Bryan Brummel, que personifica a elegância no traje com distinção e discrição a um só tempo, num momento em que se vivenciava as novas revoluções científicas e a emergência da modernidade e seus dilemas. Tal movimento propaga-se até o início do século XX, adquirindo maior força na França, especialmente em Paris, e através da obra de Jules-Amédée Barbey d’Aurevilly, que reflete sobre o tema no texto intitulado Du dandisme et le Lord Brummel, 1845. II Congresso Internacional Sobre Culturas 376 Posteriormente, a observação sobre o comportamento e a estética dândis serão foco dos estudos do filósofo Charles Baudelaire, que destaca a excentricidade desses homens como uma atitude de protesto, através da provocação e do desprezo. O dândi rejeita os valores burgueses e, nesse sentido, faz a apologia do ócio, devotando muita atenção a sua aparência e marcando sua distinção em pelo menos três aspectos essenciais, como destaca Miron: “a aposta em sua representação como indivíduo; a transgressão sem rupturas dos valores estabelecidos e a procura permanente da qualidade, não deixando transparecer os seus sofrimentos físicos ou emoções” (2015, p. 37). Na composição da aparência desses homens a simplicidade refinada aparece nas calças, colete e casaco de estilo sóbrio, tudo sempre confeccionado com os melhores materiais e com um meticuloso cuidado na modelagem e acabamento das peças. O preto e o branco eram as cores preferidas e o toque de sofisticação era realçado por uma gravata, ou melhor, pelo modo de dar o nó na gravata: o colarinho da camisa ficava com as pontas viradas para cima, projetadas sobre o rosto, e por cima vinha o lenço de plastrom, uma faixa dura de musselina, gaze ou seda, enrolada e amarrada no pescoço com um nó ou laço frontal. Ao vestir-se assim, o dândi imita os valores aristocráticos sem necessariamente o ser, apropriando-se de uma posição social por empréstimo. Este estilo incarnado pelo dândi será uma espécie de discurso social “impossibilitado de vir à tona por outro caminho, fazendo da aparência sua meta e modo de funcionamento carregado de um ‘indizível’, cujas palavras não bastam para representar” (idem, p. 41). Os Dândis e depois deles muitos outros movimentos de estilo, revelaram-nos que as formas que modelam o corpo são constitutivas da dinâmica do ser, manifestando-o de maneira decisiva, na sua condição radicalmente relacional. Elas são marcas evidentes de uma condição e de uma conduta que, apresentadas ao outro, expressam uma individualidade, uma presença, enfim, visível e incontornável. Assim podemos dizer que a aparência corporal expressa o ser, presentifica certos pertencimentos e determinadas adesões. Nesse sentido, é preciso ressaltar que todo aspecto positivo da vestimenta reside no momento em que um uso determinado lhe confere um sentido próprio, singular, que confirma, ao mesmo tempo, um certo contato com o outro, estabelecendo, assim, uma sensação de comunhão. É neste sentido que a aparência e a moda vestimentar fazem alusão a dimensão emocional, efêmera e, finalmente, sensível da vida cotidiana. Atualmente assistimos a uma certa apropriação lúdica, poética e simbólica da vestimenta. O homem redescobriu o fascínio da indumentária enquanto pura fantasia, e situase em uma ambiência em que há uma sintonia com o belo, a sedução, a harmonia das formas e o prazer. Ao se vestir buscando a beleza e demarcando uma singularidade, o homem contemporâneo chama a atenção do outro e, por vezes, expressa de modo incisivo uma recusa as normas vestimentares estabelecidas. Assim, adota um estilo e se põe em cena. Essa II Congresso Internacional Sobre Culturas 377 performatividade vestimentar alimenta, por vezes, impulsos de resistência e demarca espaços, valores e comportamentos próprios de uma certa comunidade, reforçando esse laço entre moda e poder e moda e cultura; mas também enlaça mecanismos criativos, ressaltando também o entrelaçamento entre moda e arte. Como assinala Michel Maffesoli (1996), as vestimentas, os cuidados com a cabelo, a maquiagem, ou seja, toda preocupação com a aparência é um elemento decisivo na composição dos diversos personagens que incarnamos todos os dias e das atuações que executamos na nossa vida cotidiana. E, como já mencionamos, quem muito bem soube se apropriar desta dimensão expressiva da indumentária foram os Dândis, que fizeram da aparência a sua razão de ser. Esses seres, conforme destaca Baudelaire (2009), “não têm outra ocupação a não ser a de cultivar a ideia do belo em sua pessoa, de satisfazer suas paixões, de sentir e de pensar” (p. 14). Ao que acrescenta: “É uma espécie de culto de si mesmo, que pode sobreviver à busca da felicidade a ser encontrada em outrem; na mulher, por exemplo; que pode sobreviver até mesmo a tudo aquilo que se chama ilusão” (p. 15). Vale ainda destacar que os dândis, na visão do autor, são homens deslocados de sua classe, descontentes, destituídos de uma outra ocupação, e capazes de conceber “uma nova espécie de aristocracia”; “o dandismo é o último rasgo de heroísmo nas decadências” (p. 15). CONSIDERAÇÕES FINAIS Fortemente celebrado no século XIX e início do XX, o dandismo não desapareceu completamente. Na contemporaneidade, encontramos alguns movimentos de estilo que ressignificam a estética dândi, tanto na África, quanto em Portugal. Momentos históricos distintos, contextos políticos e econômicos também diferenciados, mas uma mesma vontade de celebrar a elegância, de comprazer-se na aparência e de expressar um descontentamento com os valores vigentes. Adotada por alguns membros da comunidade de Brazzaville, na República Democrática do Congo, a estética dândi revela também aqui um descontentamento da condição em que se encontram. Propicia que estes homens descubram na beleza e na ‘composição da aparência’ uma possibilidade de sobrevivência e, mais do que isso, a possibilidade de uma existência potente. As fotos de Baudouin Mouanda exibem homens que revivem um dandismo em tons vibrantes: eles são conhecidos como “les sapeurs”, homens que respeitam e se vestem com elegância. Nos seus ternos em tons de vermelho, verde, ou mesmo amarelos, em suas meias quadriculadas, e no uso de acessórios como lenços, gravatas borboletas, bengalas, entre outros, eles acolhem de maneira lúdica e simbólica a vestimenta e todo o universo da aparência e expressam um modo de ser e de estar no mundo. Nos seus II Congresso Internacional Sobre Culturas 378 modos de vestir e de se comportar revelam uma força, em que o belo e o temível se confundem misteriosamente. Expressam um “fogo latente que se deixa adivinhar, (...) que se expressa com perfeição nessas imagens” (BAUDELAIRE, 2009, p. 19). Também em Portugal, muito recentemente, foi criado o Clube dos Dandys. O clube é formado por um grupo de 13 homens que se identificam com o dandismo enquanto filosofia de vida. Para um dos integrantes, Vitor Varela, ser um dândi é uma maneira de estar em sociedade, sempre privilegiando a boa educação e o bom gosto. “Ter o gosto pelo bom gosto e cultivar isso sempre”, essa é a nossa meta. Além disso, destaca que se sentir diferenciado no vestir também é essencial. Também para Paulo Batista é fundamental cuidar da boa educação e da aparência. “Desejamos ser verdadeiros gentlemans”, acrescenta. Marco da Cunha destaca que o dândi é o cavalheiro de antigamente e o que eles almejam é retomar os bons costumes e o cavalheirismo que tem se perdido na nossa sociedade. Observamos, assim, que a elegância e o culto à imagem de si são dois valores fundamentais para esses homens que têm redescoberto a magia e o poder da aparência. Em ambos os casos, nos deparamos com corpos altivos e diferenciados, que a sua maneira, protestam contra a situação vigente: bem humorados e irreverentes, no caso da República de Brazaville, em que os sapeurs ousam, sobretudo, na combinação de cores fortes; e mais refinados, em se tratando do investimento português, em que o terno e a modelagem do mesmo é uma preocupação constante. De todo modo, o que gostaríamos de ressaltar é que essas expressões revelam a potência das vestes e do corpo de cada um de nós, evidenciando, uma vez mais, a força expressiva da aparência e da aparição. REFERÊNCIAS BAUDELAIRE, Charles. O dândi In TADEU, Tomaz (Org.). Manual do dândi: A vida com estilo. Belo Horizonte. Autêntica editora, 2009. BOLLON, Patrice. A moral da máscara. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. CIDREIRA, Renata Pitombo. Os sentidos da moda. São Paulo: Annablume, 2005. CRUZ, Etevaldo. Por entre linhas, agulhas e tecidos: Processos intersubjetivos do manto da apresentação de Arthur Bispo do Rosario. Salvador: Dissertação de mestrado, Poscultura, UFBA, 2016. GODAR, Frédéric. Penser la mode: Textes choisis et présentés par Fréderic Godard. Paris: Editions du Regard, 2011. II Congresso Internacional Sobre Culturas 379 LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedade modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989 MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Tradução de Bertha Halpern Gurovitz. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1996. MIRON, Andreia. Dândi: modo e moda masculina. São Paulo: Scortecci, 2015. PortugueseDandys In https//www.facebook.com/portuguesedandys/vídeos SANT’ANNA, Mara Rúbia. Teoria da moda : sociedade, imagem e consumo. Barueri, SP: Estação das Letras Editora, 2007. SIMMEL, Georg. Philosophie de la modernité: la femme, la vie, l’individualisme. Trad. Jean-Louis Vieillard-Baron. Paris: Éditions Payot, 1989. II Congresso Internacional Sobre Culturas 380 NÃO É APENAS UM TURBANTE. EXPERIÊNCIAS DE INVENÇÃO DA APARÊNCIA NO FILME CARLOTA JOAQUINA, PRINCESA DO BRAZIL: PROVOCAÇÕES DIALÓGICAS BRASIL – PORTUGAL Etevaldo Santos Cruz148 RESUMO O leitmotiv da presente reflexão está situado num recorte do Filme: Carlota Joaquina, Princesa do Brazil (1995), de Carla Camurati. O trecho da película mostra o momento do desembarque da Família Real Portuguesa em solo brasileiro, em 1808. Na cena, Carlota Joaquina usa um turbante branco na composição de sua visualidade por conta do surto de piolhos durante a viagem. No entanto, a moradora local, Custódia, imediatamente, procura compor sua apresentação usando um turbante, trazendo nesse gesto, uma das dinâmicas da moda, a saber; a imitação. O objetivo é problematizar a relação entre as culturas de Portugal e Brasil, onde os elementos da moda, da arte e da cultura tornam-se os lugares de construção da presença lançando mão da caricatura tal como definida por Georg Simmel, enquanto estratégia metodológica. Palavras-chave: Caricatura. Portugal. Brasil. Aparência. Cultura. Imitação. INTRODUÇÃO: A CARICATURA COMO RECURSO METODOLÓGICO A caricatura, segundo Georg Simmel (1858-1918), no ensaio A Caricatura (2008), está situada na capacidade de ampliação dos traços que no interior da vida objetiva, buscam evidenciar a escassa homogeneidade que permeia a nossa cultura. O exagero da caricatura se propõe ao alargamento das fronteiras de uma pretensa totalidade objetiva. Por isso, é preciso entender a caricatura como elemento de superação dos próprios limites que são personificados por nós mesmos. O autor destaca que o exagero e o traço acentuado em um determinado recorte são os lugares onde o ser se equilibra em si mesmo, mediante a sua pluralidade de traços que o reenvia à unidade, mas conservando alguns aspectos na condição “natural” da figura que mesmo despedaçada em múltiplos fragmentos, não perde sua dimensão habitual. Em outros termos, diz o filósofo: “um exagero que atingisse todos os aspectos não seria uma caricatura”(SIMMEL, 2009, p.199). Assim, se observarmos um traço agigantado em uma obra, devemos considerá-lo como algo exterior contrastante com a unidade interior que ainda permanece operante. Desse modo, Simmel encontra nesse 148 Graduado em filosofia, Mestre e Doutorando pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia-UFBA. Membro do Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura- CNPq-UFRB E-mail: etevaldoc@ufba.br/ theozurc@hotmail.com. II Congresso Internacional Sobre Culturas 381 ponto, a “premissa da caricatura”, isto é, a “unidade da personalidade, aquilo que, depois de ter-se cindido na pluralidade das qualidades, dos movimentos e das experiências vividas, apresenta-se como sua proporção determinada” (SIMMEL, 2008, p. 199). Na própria caricatura reside o movimento das diferenças onde os pontos escondidos possibilitam, através da acentuação de outros, a unidade objetiva do visível. O surgimento da caricatura é marcado quando uma medida não encontra correspondência harmônica entre as partes que possam contrabalanceá-las. Dessa forma, o que faz uma caricatura não é a falta de medida em si mesma, mas a falta que se acentua no nível de correspondência entre a construção e a destruição, na qual se realiza o processo da vida. A caricatura se apresenta como uma espécie de trauma no interior das harmonias pretendidas: “É isso que a caricatura faz sentir como deformação, como destruição da forma da vida enquanto tal” (SIMMEL, 2008, p. 200). Eis o ponto de acentuação que buscamos identificar na caricatura enquanto estratégia metodológica. Ela é diferente da acentuação artística do caráter - acentuada numa determinada obra, a grandeza de um sentimento ou traço de um personagem devem nos fazer sentir a universal grandeza na existência de tal personagem, e segundo Simmel, só desse modo, o traço intensificado não é desproporcional. No entanto, do contrário, quando uma acentuação é introduzida numa vida que, sobre outros aspectos, não corresponde à grandeza de tal traço já que os demais aspectos permanecem na pequenez de sua condição, eis que surge a caricatura. A caricatura, desse modo, revela a condição trágica da vida, pois evidencia as fragilidades dos limites existenciais e ameaça tais limites por meio da fulgurante potência de extrapolação e exterioridade. Ela “é a lente de aumento que torna visível aquilo que, num primeiro momento, a olho nu, não conseguimos ver, mas que se torna acessível uma vez que o aumento nos tenha mostrado”. (SIMMEL, 2008, p.202). A caricatura conduz o olhar à dimensão até então escondida do fenômeno. Simmel considera a caricatura artística como uma caricatura de segundo grau, já que ela exagera mais uma vez o exagero no ser do objeto, fazendo com que este se torne visível. E eis que nos reintroduzimos no jogo de medida e desmedida onde a imagem caricatural artística não pode ultrapassar a linha que demarca o exagero real do objeto. A consciência de quem o percebe deve efetuar a correspondência do sercaricatural naquele exagero do exagero sem que a desproporção incorra no erro. De II Congresso Internacional Sobre Culturas 382 outro modo, a caricatura não deve se estender para além do seu fim, ela precisa corresponder ao objetivo proposto dentro do horizonte de expectativa daquele que observa. Sobre isso diz Simmel em outras palavras: De fato, o próprio exagero pode ser exagerado, e se sentimos que uma caricatura sofre de falta de medida – se bem que caricatura signifique, em essência, falta de medida – isso não depende da grandeza em si que sofre a intensificação da unilateralidade de seu conteúdo, mas do fato de essa grandeza se estender para além do fim que deve ser atingido, de modo que a proporção psicológica entre a desproporção caricatural do original e a desproporção da caricatura está errada. (SIMMEL, 2008, p. 203) A falta de medida e a acentuação no exagero são marcas do filme de Carla Camurati, Carlota Joaquina, Princesa do Brazil (1995), segundo alguns críticos e historiadores149. Contudo, amparada na afirmativa de uma ficção - e aqui reside uma significativa manobra de Camurati, a obra nos oferece importantes elementos para compreendermos as nuances de nossa contemporaneidade. Daí a importância em lançarmos mão da caricatura como estratégia metodológica. Pelo viés da caricatura é preciso observar como os personagens se deslocam nesse complexo mosaico. Se no início do filme a diretora usa como estratagema a leitura de uma carta ficcional e caricata do pintor Salvador Dalí sobre o Brasil - lugar que ele descreve apenas pelo “ouvir dizer”, ela justifica sua obra no campo da paródia e da caricatura sem se comprometer com a fidelidade dos relatos da “história oficial”. Ainda que esse movimento nos reintroduza na cilada quase inescapável que nos torna reféns das “figuras” da história, a exemplo das práticas de corrupção e submissão às ordens estrangeiras, é nesse ponto que centramos um olhar sobre a controversa personagem Custódia/Viscondessa de mata-porcos. É ela que nos servirá de fio condutor para problematizarmos a invenção da aparência e como esta se coloca enquanto um dos elementos centrais da dinâmica da moda, diga-se de passagem, um aspecto pouco abordado nos estudos sobre o filme. 149 Destacamos as obras de: VAINFAS, Ronaldo. Carlota Joaquina: Caricatura da História, in Marisa de Carvalho Soares; Jorge Ferreira. A História Vai ao Cinema. Rio de Janeiro, 2008 e VILLALTA, C. Luiz. Carlota Joaquina, Princesa do Brazil: entre a história e a ficção, um “romance” crítico do conhecimento histórico. In: REVISTA USP, São Paulo, n.62, p. 239-262, junho/agosto 2004. II Congresso Internacional Sobre Culturas 383 CUSTÓDIA/VISCONDESSA DE MATA-PORCOS: UM TURBANTE NADA INOCENTE Custódia (Eliana Fonseca) é uma portuguesa, moradora local que aparenta pertencer à burguesia nativa. Ela é uma ficção da ficção - uma personagem introduzida na narrativa amparada, por si, numa condição ficcional. Malgrado à generalidade das análises dedicadas a Custódia em parte dos estudos sobre a obra de Carla Camurati, ela revela-se uma complexa e escorregadia figura no emaranhado de cores e profusão da obra. Como moradora local, acompanha esfuziante o desembarque da Família Real na cidade do Rio de Janeiro. As mulheres da corte, dentre elas Carlota Joaquina, usam uma espécie de turbante na cabeça. Conforme aponta a narrativa, o adorno é mais funcional do que de apelo estético – ele atendia à necessidade das mulheres que, por causa do surto de piolhos durante a viagem, tiveram que raspar os cabelos (SCHWARCZ, 2015, p.168). Contudo, quando Custódia se depara com aquele acontecimento, imediatamente procura compor sua visualidade/apresentação, usando um turbante semelhante como forma de estabelecer uma empatia visual com o outro, trazendo nesse gesto, uma das dinâmicas da moda, a saber; a imitação. A imitação é um dos sentidos da dinâmica da moda, ela provoca o deslocamento da vida do grupo para experiência individual. É um impulso de uma vida íntima que se lança numa alargamento de sua própria exterioridade visível, trazendo em sua dinâmica, infindáveis manifestações e forças para além daquele dado imediato. Em Filosofia da moda (2008), Simmel pontua que a materialização do dualismo duração e mudança, do geral e do particular encontra sustentação na imitação. A imitação é o que Simmel chama de ‘transmissão psicológica’ e sua dimensão fascinante reside na possibilidade de “fazer apropriado e significativo mesmo onde, no plano, nada de pessoal e criativo emerge” (SIMMEL, 2008, p.23). Desse modo, a imitação encontra sua condição trágica de “filho da reflexão e da irreflexão” (idem). Ainda com Simmel, é preciso concordar que a ação da imitação retira do indivíduo a responsabilidade de envergar em si mesmo com vistas à produção de elementos de seu aparecer. Em outras palavras; “não permanecer sozinho em seu agir, mas apoiar-se nos exercícios habituais da mesma atividade (...) alivia o ato presente da dificuldade de se suster a si próprio”. (SIMMEL, 2008, p.23). Ora, se a escolha pela II Congresso Internacional Sobre Culturas 384 imitação retira do indivíduo a responsabilidade pelo agir, relegando ao grupo as demandas de escolha, essa escolha também produz a sensação de pertencimento ao grupo e, assim, a dimensão intersubjetiva parece diluída na rede dos conteúdos sociais. A ação de Custódia/Viscondessa de mata-porcos transita nesse jogo de deslocamentos. Ao passo que ela entende que a princesa portava um adorno que a distinguia dos demais, a imitação é o impulso de lançar-se nesse campo de distinção para “parecer fazer parte dessa classe que dita moda”. É preciso destacar que o jogo das aparências lança todos numa dinâmica intencional, não inocente de exposição ao olhar do outro. O desejo imitativo de Custódia não é algo desprendido de intenções - um simples movimento imitativo, pelo contrário, ela é uma atividade conveniente que se entrelaça numa complexa rede envolvendo trocas culturais, fragmentação das matizes e extratos, relações de poder e estabelecimentos de jogos sociais que passam todos eles, pelo primeiro elemento de produção da aparência. É preciso observar como Custódia acentua seus adornos justamente ao se aproximar da corte. Assim, encontramos no gesto da Viscondessa de mata-porcos a manifestação da moda em sua forma particular dentre outras formas, da tendência à igualização social que não pode ser analisado ou considerado sem a unidade ensimesmada da diferenciação e diversidade individual. Unidade e diferenciação “são as duas funções básicas que aqui se unem de modo inseparável, das quais uma, embora constitua ou porque constitui a oposição lógica à outra, é a condição de sua realização” (SIMMEL, 2008, p.25). O elemento disparador desse movimento reside, como dissemos anteriormente, na presença do turbante que atende a outra demanda para quem o porta, mas é experienciado por Custódia como um adorno de moda. Assim, concordamos com Georg Simmel em Psicologia do adorno (2008), na compreensão de que o adorno produz “na forma do elemento estético, uma síntese muito sua para as grandes pretensões da alma e da sociedade, que interagem uma com a outra e uma contra a outra” (SIMMEL, 2008, p.70). Animados pelo pensamento de Simmel, continuamos a pensar sobre os elementos impulsionadores que levaram a Viscondessa a lançar mão do ‘turbante’. Sob dois vetores ela tenta agradar e compor um quadro de pertencimento em direção a uma vontade de poder. O primeiro aspecto diz respeito à forma de acesso ao grupo social acima de si e com isso, passando a compor um lugar que a coloca acima II Congresso Internacional Sobre Culturas 385 de outros grupos. Essa questão já nos leva ao segundo ponto referente ao complexo de ações e posições que a imitação produz, pois no ato mimético Custódia passa a exercer um dinamismo fluído. Pelo elemento visual, ela afirma-se enquanto diferença e meio de acesso entre as camadas subalternizadas e a corte. Custódia, ao mimetizar o pertencimento, passa a subalternizar àqueles que a ela estão subordinados. Identificamos esse movimento na emblemática cena quando ela negocia favores junto à moradora local, colocando-se como intermediária entre a população e a corte: em troca dessa mediação ela fica com as joias como pagamento. Significativo observarmos a precariedade do corte do tecido nessa tomada, o turbante desequilibrado e o descompasso dos gestos. É o instante onde o detalhe se descola e cria uma nova totalidade, escapando para novas acentuações, devir e retorno da diferença. O adorno opera como um vetor de amplificação da personalidade, que no contexto ao qual nos referimos, é “fabricada” a partir de arranjos e artifícios intencionais de tal modo que a personalidade explode no caleidoscópio social como uma afirmação intensa de si mesmo. Nas palavras de Simmel, “por ser ao mesmo tempo e de algum modo um objeto de notável valor, o adorno é uma síntese do ter e do ser dos sujeitos (...) a simples posse torna-se tangibilidade sensorial e persistente da própria pessoa” (SIMMEL, 2008, p.61-62). Além disso, não reside nessa problemática, um dos pontos nodais do drama da construção da aparência, cujo sentido da indumentária presentificada no corpo passa a estabelecer uma rica relação com a cultura? Num determinando momento do filme, Camurati nos presenteia com uma intrigante cena de dinâmica cultural. Custódia – Viscondessa de mata-porcos entra nos aposentos de Carlota Joaquina sendo surpreendida pela princesa. Ambas trajam indumentárias vermelhas, turbantes e joias. No entanto, a presença do excesso é em Custódia – seu vestido possui plumas, pedrarias e babados. Na cena, Carlota Joaquina recebe flores vermelhas de um de seus amantes e suspira pelo presente. O sentido do presente é logo explicado por Custódia que de imediato passa a apresentar os significados de cada gesto local. Sobre as rosas diz Custódia: “significa amor eterno e imorredouro”, abrindo a caixa de desvelamentos dos costumes locais ela continua: “E se um dia a princesa receber uma frutinha chamada ca-já significa ‘venha imediatamente’”. Ademais, os elementos que compõe a referida tomada se harmonizam nas cores das indumentárias, passando a compor II Congresso Internacional Sobre Culturas 386 uma harmoniosa relação entre os personagens como se pertencessem em pé de igualdade ao mesmo grupo. No entanto, o excesso de Custódia, além de acentuar o traço caricato desse pertencimento, demostra a vontade de saltar sobre a própria presença. Ainda na mesma tomada, Carlota Joaquina fratura os costumes locais ao tomar banho de mar, trazendo um novo olhar e prática para os costumes da cidade. E mais, não é nessa teia que se funde, conforme defende Renata Pitombo Cidreira (2013), uma questão mais ampla que diz respeito ao fenômeno do aparecer e a atuação do sujeito através de sua visualidade? No artigo Presença e aparição (2013), a autora explora a dimensão da aparência a partir da constatação de que, “a aparição só se efetiva através de uma apresentação, que faz parte da dinâmica de abertura ao outro, característica da própria existência”. (CIDREIRA, 2013, p. 109). Assim, os elementos que adornam o corpo que se apresenta são acentuações da própria relação intersubjetiva, trazendo com isso, um complexo repertório de intenções e condutas visivelmente incontornáveis de uma dada presença. Como dissemos anteriormente, o gesto de Custódia se desloca da simples e previsível imitação para uma rede de intencionalidades que envolvem poder, distinção e constituição de outra intersubjetividade aberta a mudanças. O gesto de Custódia nos reenvia à questão colocada pela autora ao retomar as considerações de David Le Breton no que concerne à aparição enquanto “estilo de presença” que envolve a presença física de si e a “capacidade de demonstrar pertencimentos e valorações sociais” (CIDREIRA, 2013, p.112). O turbante de Custódia é um adorno que diz muito mais do que sua superfície precariamente colocada sobre a cabeça. Simultâneo às voltas dadas do tecido na cabeça, ela carrega na atitude, uma rede de posicionamentos morais que não devem ser desconsiderados. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ainda com Cidreira, é preciso atentar para “o jogo que se desenrola entre a indumentária e o corpo” (CIDREIRA, 2013, p.114), nos interesses e na constituição das redes de sentido que procuram dar conta dos imbricamentos culturais entre Brasil e Portugal que não passam despercebidos. Portar o turbante é para ela, colocar-se na direção do olhar de quem a observa, estabelecendo níveis de empatia a uma ‘presença intencionalmente interessada’ em ser vista como tal. Veremos em Custódia um II Congresso Internacional Sobre Culturas 387 platonismo às avessas na medida em que na superfície dos tecidos, dobras e arranjos se efetivam não uma representação, mas a própria lógica daquilo que se desvela ao invés de esconder. Custódia é o manifesto da constituição cultural que se dilui nas dobras e barras dos vestidos, no corte precariamente trabalhado, na desproporção das cores que evidenciam o anseio pelo pertencimento e do empenho por uma filiação que de forma paradoxal amplifica a capacidade de transcender a si mesmo na intensa relação com o outro, demarcando com isso, a inventividade na composição da aparência e o seu sentido comunicacional que, através da empatia visual, o indivíduo se arrisca à exteriorização. É também pela caricatura que podemos efetivar essa capacidade de saltarmos sobre nós mesmos, arriscando nossas incursões especulativas. Tal como nos mostrou Simmel no início do texto, a caricatura nos propõe ao alargamento da condição objetiva, espedaçando acentuações e exageros, conservando essa grandeza de estender para além do fim que deve ser atingido, sem perder a proporção da medida da desmedida. Por fim, a inserção de um personagem fictício na ficção nos possibilitou refletir sobre a problemática da invenção da aparência e a complexa relação que esta se coloca no interior da cultura e da sociedade, tomando como viés, a moda como vetor significativo dos gestos miméticos. REFERÊNCIAS CIDREIRA. As formas da moda: comportamento, estilo e artisticidade. São Paulo: Annablume, 2013. SCHWARCZ, Lilia e STARLING, Heloísa. Homens à vista: uma corte ao mar. In: Brasil: uma bibliografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. SIMMEL, Georg. Filosofia da Moda e outros escritos. Lisboa: edições texto e grafia, 2008. _______. Psicologia do adorno. In: Filosofia da Moda e outros escritos. Lisboa: edições texto e grafia, 2008, p.59-71. SIMMEL. A caricatura. In: BAKHTINIANA, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 197-204, 2o sem. 2009. II Congresso Internacional Sobre Culturas 388 MODA, CULTURA E ARTE NA REVISTA ELLE BRASIL: CORPO, IMAGEM E EXPRESSAO NO JORNALISMO DE MODA Larissa Molina150 RESUMO O trabalho busca discutir a representação do corpo, sua relação com a cultura, a arte, a imagem e suas possibilidades expressivas nas capas das revistas de moda. A partir de um estudo de caso em algumas capas da revista Elle Brasil, traz alguns aspectos parte de uma pesquisa mais ampla que visa observar como o jornalismo de moda brasileiro discute o papel do corpo na cultura contemporânea e padrões culturais socialmente estabelecidos. Palavras-chave: Moda. Corpo. Cultura. Revista. INTRODUÇÃO O presente estudo parte da perspectiva da moda enquanto um fenômeno cultural, que a compreende como dinâmica que estimula a mudança periódica de estilo e gosto pela novidade em que a mídia atua de maneira central para o seu estabelecimento nas sociedades, como aponta Lipovestky (1989). Além disso, compreende-se a moda também como comunicação e expressão cultural, parte do modo de vida. Williams (2000) também inclui a moda como uma das linguagens que caracterizam o conceito ampliado e complexo para a cultura que vai além das atividades artísticas e intelectuais, incluindo outras práticas significativas, relacionada a uma nova atitude em relação a linguagem. Barnard (2003) defende que por meio da roupa uma pessoa tenciona comunicar suas mensagens a outra. A moda e a indumentária são formas de comunicação nãoverbal, uma vez que não usam palavras faladas ou escritas, e também fenômenos culturais que promovem a interação social. Uma noção complementar também auxilia a entender a moda reconhecida enquanto parte da expressão cultural e mas também um espaço de mediação entre indivíduos, como argumenta Cidreira (2005), que relaciona a moda também ao comportamento, maneira de ser, viver e se vestir, e a função comunicativa da roupa, através da concepção de que a moda é comunicação na medida em que “partilha sentido”. 150 Mestranda no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Integra o Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura (CNPq). E-mail: larimolina@gmail.com II Congresso Internacional Sobre Culturas 389 Não só a moda é comunicação como o corpo é que possibilita essa expressão. De acordo com Villaça (2007, p. 143) o corpo organiza significações diversas da linguagem falada, e a leitura de suas articulações, de seus gestos e possibilita a compreensão da organização social. Segundo a autora a moda estimula uma atitude fetichista de consumo que se amplia num processo de identificação e é como uma prótese do corpo, um elemento dinâmico e definitivo para a produção de sentido na sociedade contemporânea. Deste modo, num contexto cultural marcado pela comunicação global e constante exibição do corpo na mídia, e compreendendo-o também como uma instancia significativa, sede de processos simbólicos inscritos na cultura e de toda a experiência, o presente texto visa discutir a representação do corpo nas capas das revistas de moda e suas possibilidades expressivas. MODA, IMAGEM E REVISTA O formato revista, principalmente a partir do uso da fotografia ajudou a difundir o destaque dado a imagem e a aparência e na moda na cultura. A relação entre moda e as revistas é histórica pois seus títulos são grandes exemplos de sucesso. Segundo Scalzo (2014), as revistas tem em sua essência a segmentação por assunto e tipo de público, deste modo tem foco no leitor. Podem ser semanais, quinzenais, ou mensais, e por isso as rotinas de produção, apuração e redação de textos jornalísticos são diferentes do jornalismo diário. Ainda de acordo com Scalzo (2014, p. 19), as revistas são objetos que permitem uma liberdade em carregar, guardar, colecionar ou até mesmo rasgar, e possui qualidade de leitura do texto e da imagem, e maior durabilidade do papel. Assim são capazes de gerar emoções e identificações com seus leitores e uma maior proximidade. A autora também destaca a força da fotografia e da imagem nas revistas que parecem ter nascido uma para a outra. Sobre a capa de revista a autora destaca que “precisa ser o resumo irresistível de cada edição, uma espécie de vitrine para o deleite e a sedução do leitor.” (SCALZO, 2014, p. 62). Assim o jornalista deve ver a capa não é uma obra de arte mas sim um elemento editorial, que tem uma função estratégica. Mesmo com essa característica comercial, também podemos considerar o cuidado estético de suas fotografias, a atividade criativa de diversos profissionais envolvidos na produção. Além disso, as revistas tem um grande poder de registro, pois II Congresso Internacional Sobre Culturas 390 se tornam uma das fontes de valor histórico e cultural para intepretação de um modo de vida de uma época ou momento. Além de que mesmo num contexto de crescimento dos meios digitais, em que meios impressos tem perdido espaço, o formato revista ainda revela sua força e as capas de revistas com seu mundo de “sonho” principalmente do segmento moda, em todo mundo ganham destaque recorrente em outros meios, seja por alguma inovação, algum tema polêmico ou alguma personalidade em destaque. De acordo com Hinerasky (2010), o cenário da comunicação de moda na contemporaneidade convive tanto com as mídias tradicionais, quanto com digitais e “revistas impressas, cinema e grandes veículos pautam sítios de moda (e vice-versa), num fluxo comunicacional de retroalimentação” (HINERASKY, 2010, p.15). Além disso, o advento da cultura blogueira modificou de forma decisiva a trajetória do jornalismo de moda do século XX, quando as revistas de moda dominavam o mercado especializado. Neste cenário as revistas de moda dividem os privilégios da “edição de moda” mas ainda demonstram influência e explora bastante a linguagem visual. Além das matérias e reportagens onde há objetivo principal de informar, interpretar e divulgar temas ligados a moda, o jornalismo de moda e as revistas principalmente possuem, ainda, uma especificidade em relação as outras áreas que é o editorial de moda. O editorial além de um artigo opinativo, pode ser definido também como um ensaio fotográfico que através do conceitual ou artístico, exibe uma proposta de produção de moda, geralmente acompanhada dos dados dos produtos utilizados. Hinerasky (2010) observa que editorial de moda, de modo geral, é a ênfase da maioria das revistas especializadas ou femininas, bem como do suplemento feminino dominical dos jornais, explorando principalmente imagens e restringindo o texto às legendas, ao título e à abertura. Outros elementos também vão influenciar nesse formato como a diagramação da revista e a produção de moda. De acordo com Joffily (1991, p. 103), produção de moda é “uma composição que organiza elementos na busca de um estilo, ou mais concretamente, de um certo clima global da foto que traduza um estilo.” A organização desses elementos cabe ao produtor, que também trabalha com a linha editorial da publicação, e se preocupa com o tema, elementos como cor, forma, textura etc, escolha de modelos, maquiagem, penteado, e escolha de locações. Joffily (1991) também explica que, no momento em que se busca compor elementos como se veem na vida real, a produção de moda quer criar algo que pareça II Congresso Internacional Sobre Culturas 391 real, mas que é uma ficção. Nesse sentido, na fotografía de moda de acordo com Cidreira (2011b, p.10) o movimento corporal e a expressividade são fundamentais e a apresentação do vestuário está relacionada também ao belo, à sedução, do que propriamente a funcionalidade ou materialidade da roupa. CORPO, CULTURA E EXPRESSÃO NA REVISTA ELLE BRASIL O percurso metodológico foi fundamentado a partir da análise de conteúdo de Bardin (2000), a qual se caracteriza com o que se pode deduzir ou o sentido que se pode atribuir às palavras, aos temas, às personagens etc. Busca compreender o sentido da comunicação como se fosse o receptor normal, mas principalmente desviar o olhar para outra significação. Numa fase inicial de pré-análise foram selecionadas três capas da Revista Elle Brasil veiculadas no ano de 2015 que tematizavam o corpo, cultura e expressão. Depois foi a fase de exploração do material e análise e interpretação dos resultados, ancorada na bibliografia do tema e textos complementares, como Joffily (1991), Cidreira (2005, 2011), Villaça (2007), entre outros. A partir de elementos tais como ambientação, cores, o uso da luz e da sombra, maneira como o corpo é apresentado, sua postura, suas formas, roupas utilizadas etc, em uma tentativa de se extrair as mensagens advindas dessas escolhas, foi elaborado um estudo interpretativo observando também o modo de recepção do conteúdo de caráter visual a partir da disposição gráfica, fotografias, ilustrações e verificando de que forma estão associadas ao texto na linguagem da revista de moda. A revista Elle Brasil, escolhida nesta pesquisa como um objeto para estudo de caso é uma das revistas de moda mais significativas no mercado editorial brasileiro. De acordo com Scalzo (2004, p. 25), foi criada na França no século 20, logo depois da segunda guerra mundial, em 1945, com a intenção de restituir à mulher francesa o gosto pela vida. De acordo com dados da Editora Abril151 a revista Elle está presente em 43 países e há 26 anos no brasil, possui atualmente cerca de 35 mil assinantes, 63,1 mil de seus exemplares são vendidos por mês e possui 150 mil leitores no total das revistas impressas e digital. Seu público é composto por 83% classe AB e 56% até 29 anos. Se intitula como uma marca que “inspira leitoras de todo brasil a terem o seu 151 Dados disponíveis em: http://publiabril.abril.com.br/marcas/elle. Acesso em 30/10/2015. II Congresso Internacional Sobre Culturas 392 próprio estilo com atitude sem deixar as principais tendências, onde o luxo pode ser jovem contemporâneo e acessível”. É importante destacar que nesta análise observamos apenas as capas principais de cada edição selecionada, pois a revista tem aderido a diversas alternativas e plataformas para suas capas. Nas impressas, algumas possuem mais de uma capa em cada edição no mesmo papel, outras trazem um capa diferente para assinantes. Mais recentemente, em 2016 também produziram versões de capas diferentes para cada região do Brasil. Nas versões digitais, algumas capas também são diferentes da impressa e conteúdo com materiais em vídeo e áudio. A primeira capa da Revista Elle analisada traz fotografia, texto e roupas que possuem referências diretas a cidade do Rio de Janeiro, numa edição em comemoração do aniversário de 450 anos da cidade. Estão presentes alguns elementos como a iluminação de sol e cenário próximo ao mar, esportes, dança do passinho e dicas de beleza de meninas da cidade. A modelo colabora com uma postura que lembra as fotografias de moda de rua, mais espontâneas e a roupa é informal, sugerindo também o conforto. Assim, a imagem vai demonstrar um ideal de estilo da mulher carioca, como inspiração para todas as brasileiras, com dicas de como adaptar e usar as tendências no seu cotidiano. Figura 1 - Capa da Revista Elle Brasil Março 2015 – Ed. Nº 322 Fonte: http://elle.abril.com.br/edicoes, 2016. Outra capa traz a temática da “moda sem regras”, sugerindo liberdade na hora de se vestir. A fotografia em plano médio em preto e branco e a capa com cores II Congresso Internacional Sobre Culturas 393 neutras valoriza a cor do cabelo e maquiagem colorida da modelo que foge do “normal” da moda. A roupa exibida é mais conceitual com detalhes de trabalhos manuais. As chamadas são para dicas de um estilo urbano. Esta é a capa principal da edição que a modelo é uma leitora da revista, além de outras capas que traziam o registro de outras duas leitoras: uma mulher idosa branca e uma jovem negra. Nesta edição é preciso contextualizar que é uma continuação da anterior que foi especial de aniversário da revista, quando fizeram a campanha “#vocênacapa” que pedia para as leitoras tirarem suas próprias fotografias a partir de um aplicativo e na versão impressa uma capa espelhada possibilitava a leitora se ver na capa da revista. A edição digital do mês anterior trouxe ainda uma blogueira plus size nua sem editar a fotografia. Tentativas de se expressar em relação a discussão e valorização da beleza real para qualquer mulher se sentir “capa de revista”. Figura 2 - Capa da Revista Elle Brasil Junho 2015 – Ed. Nº 325 Fonte: http://elle.abril.com.br/edicoes, 2016. Outra capa analisada não possui chamadas para outros assuntos do conteúdo da revista e o texto e imagem traz o tema central de um manifesto feminista. A fotografia em preto e branco, e o design e frases diretas utilizando o vermelho, além da roupa escura da modelo remetem a violência e ao perigo. A modelo de pele clara posa numa postura de proteção ao próprio corpo e com um pouco de nudez. Esta é a capa principal da edição que trazia outras mulheres no mesmo editorial. Foi a última do ano de 2015, em a questão do feminismo foi bastante discutida nas redes e na mídia brasileira e nela a revista também se expressa num posicionamento em relação a II Congresso Internacional Sobre Culturas 394 violência e assédio contra as mulheres, vinculando essa pauta com o corpo, as roupas e também a moda. Figura 3 - Capa da Revista Elle Brasil Dezembro 2015 – Ed. Nº 331 Fonte: http://elle.abril.com.br/edicoes, 2016. CONSIDERAÇÕES FINAIS As capas da revista fornecem material significativo para interpretação da cultura, sociedade e suas práticas, apresentando o corpo como território de expressão cultural e, articulada com a dinâmica da moda e do consumo, valoriza e influencia seu modo de apresentar na busca de identidades social, pessoal e feminina. As três capas selecionadas tematizam a relação entre corpo, cultura e expressão com a moda em três diferentes apreensões: uma está ligada um estilo de vida próprio de uma cidade específica, outra tenta problematizar a “beleza real” e a outra relaciona a moda com um assunto em discussão nas correntes sociais. As imagens e chamadas da capa também dão pistas para identificar o perfil das leitoras, além do tipo físico das modelos ou pessoas que são escolhidas para aparecer nas fotografias e construir estereótipos e padrões culturais. É nesse sentido que de acordo com Villaça (2007), a moda oferece essas estratégias ao corpo para sua expressão/liberação e, por outro lado, os mecanismos de controle. E as revistas, a partir de seus “personagens”, despertam desejos de identificação, aspiração e consumo. Além de reflexões sobre a perda do espírito crítico, a crise da representação, dos fundamentos e da possibilidade de projetar. Por II Congresso Internacional Sobre Culturas 395 isso, podemos perceber nas revistas como a moda oferece a interpretação de questões simbólicas relacionadas ao corpo, questões de gênero, éticas, etárias e políticas. Procura-se enfatizar que esses aspectos podem ser verificados principalmente a partir da forte ligação que o jornalismo de moda faz com fotografia e a arte, a partir da força da imagem, da produção de moda, fotografia e design também como linguagem construtora de sentidos e da relação de reciprocidade entre corpo, design, cultura e comunicação nas especificidades do meio “revista” e principalmente nas capas. Formato que principalmente no meio impresso ganha um valor simbólico e histórico na cultura, e unida à moda, constrói uma linguagem muito própria em suas capas, e possibilita uma experiência de consumo dela mesma enquanto um produto. Característica comercial que coloca em risco sua credibilidade jornalística e verdadeiramente informativa. De acordo com Cidreira (2006, p. 86), a própria expressão é sugestionada pelo modo como somos atingidos pela dinâmica em vigor na nossa cultura. Experimentamos de um determinado modo, pois estamos submetidos a padrões que se constituem da ação de forças que agem sobre nós. O presente trabalho portanto traz alguns aspectos sobre o corpo, a cultura e a imagem nas revistas, porém não é um retrato de tudo que a revista Elle Brasil expressa pois foi um estudo de caso apenas de algumas capas e seu conteúdo oferece materiais com outras muitas especificidades e necessidades de aprofundamento. REFERÊNCIAS BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2000. BARNARD, Malcolm. Moda e Comunicação. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. CIDREIRA, Renata Pitombo. Os sentidos da moda. São Paulo: Annablume, 2005. _______. A fotografia com François Soulages: Imagem e Etnia. Moda aparência e representação. VIII Colóquio internacional Franco- Brasileiro de Estética da Bahia, 2011. HINERASKY, Daniela Aline. Jornalismo de moda no Brasil: da especialização à moda dos blogs. In: 6 COLÓQUIO DE MODA, São Paulo, Anais, 2010. Disponível em: <http://coloquiomoda.com.br/anais/anais/6-Coloquio-de Moda_2010/71881_Jornalismo_de_moda no_Brasil_da_especializacao_a_mod.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2014. II Congresso Internacional Sobre Culturas 396 JOFFILY, Ruth. O jornalismo e produção de moda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. SCALZO, Marília. Jornalismo de revista. 4 ed. São Paulo: Contexto, 2014. VILLAÇA, Nízia. O corpo da moda, o corpo das marcas. In: A Edição do corpo: tecnociências, artes e moda. Barueri: Estacao das Letras, 2007. WILLIAMS, Raymond. Cultura. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira. 2 ed, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. II Congresso Internacional Sobre Culturas 397 IMPRESSÃO DIGITAL EM TECIDO: O ESTILO DA ELEMENTAIS NA SUA ESTAMPARIA A PARTIR DAS RELAÇÕES ENTRE BRASIL E PORTUGAL Gina Rocha Reis Vieira152 RESUMO O artigo propõe uma reflexão sobre o desenvolvimento da estamparia nas coleções da Elementais a partir das influências portuguesas na construção das híbridas culturas nacional e baiana. Durante seus 23 de anos de mercado, o investimento em estamparia vem sendo uma das principais apostas para a impressão de sua assinatura diante de um mercado tão competitivo. A partir de uma concisa contextualização histórica, associada aos entrelaçamentos entre moda e arte para a construção de uma identidade nacional, pretende-se analisar a presença de elementos (cores, motivos, textura, padronagem, indicadores culturais) que aproximam Brasil (em especial, a Bahia) e Portugal à composição das estampas criadas pela marca baiana Elementais. Palavras-chave: Moda. Estamparia. Elementais. Bahia. Brasil. Portugal. INTRODUÇÃO A passagem dos séculos XVIII para o XIX foi um momento pulsante para a economia do Brasil e baiana, especificamente. Após um longo período de instabilidade política, ocasionado pelas constantes disputas fronteiriças e tratados diplomáticos, os portugueses conseguiram demarcar sua força no território brasileiro. Conforme ressalta Antônio Risério, em Uma história da cidade da Bahia (2004, p. 287), “aquela gente não estava apenas ‘arranhando’ o litoral, mas assentando as bases de um império ultramar”. A sucinta reflexão aqui apresentada não tem pretensões históricas, porém é imprescindível para o entendimento desse cenário de maior estabilidade política e geográfica que culminou em um “período de alta animação econômica” (RISÉRIO, 2004, p. 292) mesmo para Salvador, que se viu escanteada ao deixar seu posto de capital, assumido estrategicamente pelo Rio de Janeiro. O panorama favorável foi complementado com a fuga da Família Real para o Brasil, em 1808, quando foi autorizado o recíproco comércio entre o Brasil e outras Nações. Foi nessa conjuntura histórica de abertura dos portos que a estamparia em tecido começou a se desenvolver no Brasil. Àquela altura, os teares manuais já tinham sido introduzidos pelos colonizadores no século XVI, com incentivo dos jesuítas, que ensinaram a técnica para 152 Mestranda do Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia. E-mail: gicarr@gmail.com. II Congresso Internacional Sobre Culturas 398 padres e índios a fim de produzirem panos para consumo próprio e para vestir os habitantes nativos. Desde os primeiros investimentos, o modelo estrangeiro serviu de referência com máquinas, equipamentos e padrões de tecidos importados. A própria chita, considerada uma das estampas mais características brasileiras, teve sua origem na Índia, e consolidou-se no Brasil através das importações feitas a partir do século XVII, principalmente, pelos portugueses que utilizavam como moeda de troca o tráfico de escravos. No início do século XIX, constam registros do surgimento de fábricas que utilizavam lã e algodão à produção de tecido. Dentre elas, Ricardo Bueno (2013, p. 23) destaca a tecelagem Todos os Santos (Bahia, 1844) 153 ; e a fábrica Santo Aleixo (Rio de Janeiro, 1844). Três irmãos mineiros tiveram então a ideia de aproveitar a crise do algodão norte-americano154 para criar a primeira grande indústria a fabricar chitas no Brasil, a Companhia de Fiação e Tecidos Cedro et Cachoeira155, inaugurada em 1872 no município de Curvelo (..). Pouco depois surgiria outra grande indústria para a produção de chitas: a Companhia Progresso Industrial do Brasil, ou fábrica Bangu, foi inaugurada no Rio de Janeiro em 1889. (BUENO, 2003, p. 24) Contudo, Luz Garcia Neira, em Estampa na tecelagem brasileira: da origem à originalidade (2012, p.102), ressalta que, “ainda que a indústria têxtil tenha sido uma das primeiras a ser instalada no país, a estamparia foi um segmento bem mais recente, que conta com apenas um século de existência”. Os investimentos mundiais e, inclusive, nacionais no setor deram força para a que a estamparia alcançasse novos padrões no início do século XX. O empenho era estimulado, em especial, pelo desenvolvimento das “redes de comunicação e de transporte, das atividades de lazer, da consolidação do comércio como atividade social” (NEIRA, 2012, p. 53). Houve, consequentemente, uma maior facilidade de compartilhar gostos entre os consumidores, que passaram a ter acesso aos produtos nas grandes lojas do comércio. Surgiram, então, os primeiros designers ou marcas de design-têxtil célebres, como a Liberty, em Londres, e o Atelier Martine, em Paris. Simultaneamente, houve “a 153 Em 1844, foi criado na Bahia o primeiro centro manufatureiro têxtil do país, com abertura de pequenas fábricas, das quais se destacou a tecelagem Todos os Santos. 154 Causada pela Guerra de Secessão, ou Guerra Civil americana, entre 1861-1865. 155 Em atividade há 140 anos, a indústria, hoje denominada Cedro Têxtil, é formada por um complexo de quatro fábricas e dois centros de distribuição. Atualmente, a Cedro tem sua produção voltada, principalmente, para o jeans (produtos moda) e tecidos profissionais (produtos workwear). Desde 1983, mantém também o Museu Têxtil Décio Mascarenhas (Caetanópolis), com acervo de mais de 1.000 peças, que busca preservar e perpetuar a história da indústria têxtil nacional. II Congresso Internacional Sobre Culturas 399 alteração no processo de gravação de matrizes que, ao possibilitar a gravação de qualquer variedade de traços, promoveu o surgimento de novas ideias aos tecidos estampados” (NEIRA, 2012, p. 53). POR UMA FACE ESTAMPADA DO BRASIL Figura 1: Telas de Tarsila do Amaral: A Feira, 1924, e Palmeiras, 1925, respectivamente. Exposição A cor do Brasil, Museu do Mar (RJ), out.2016. Fonte: Gina Reis. Esse avanço estimulou muitos artistas plásticos a despertarem para o design têxtil. A técnica passou também a ser muito utilizada na decoração de interiores. Como resultado, o interesse em delinear uma face para o Brasil foi despertado, sobretudo, por movimentos culturais, como a Semana de Arte Moderna (1922). Tarsila do Amaral com suas obras é um exemplo da influência modernista para a composição de uma identidade nacional reconhecida, especialmente, na estamparia em tecidos. Em As formas da moda (2013, p. 104-105), Renata Pitombo Cidreira evidencia o entrelaçamento entre moda e arte. Citando o filósofo Luigi Pareyson, a autora afirma que podem existir empreendimentos na área da moda, sobretudo, vestimentar, que se aproximam da feitura e do resultado exigido por uma obra de arte. Para ela, é desse modo que podemos reconhecer, por exemplo, o estilo de grandes estilistas156. Assim, ao apreciar obras de arte como as telas Abaporu, A Feira e Palmeiras de Tarsila do Amaral, seu traço, suas cores, os elementos culturais que ilustram as figuras, são logo reconhecidos, compõem o estilo da artista. Percebe-se também o quanto essa influência artística, há aproximadamente um século, se mantém tão viva e próxima às tentativas de produções expressivas que deem conta de uma ideia de Brasil alicerçada, por sua vez, em um contexto intercultural híbrido com cursos constantemente abertos. 156 O conceito de estilo - a partir da relação moda e arte - não será aqui detalhado, a fim de que seja esboçada de forma objetiva a análise proposta por este artigo. II Congresso Internacional Sobre Culturas 400 Toda essa base histórica, social e cultural foi, sem dúvida, essencial para o crescimento do segmento da estamparia no Brasil, sob o pleito de uma identidade nacional, inclusive, através da produção e divulgação de tecidos estampados a partir da década de 50. Identifica-se uma produção estética que também pretendia difundir a unidade política (...). O que equivaleria a dizer que se intencionava em alguma medida a produzir arte para o Brasil e não somente sobre o Brasil. (NEIRA, 2012, P. 131) Por seu turno, Lima e Sakurai (2016, p. 3) afirmam, em A identidade brasileira na estamparia de tecidos para interiores: a “Larmod” na década de 1970, que, durante a década de 1960, o consumidor brasileiro finalmente conheceria tecidos estampados por designers renomados, como Aldemir Martins (1922-2006) e Genaro de Carvalho (1926 – 1971) nos catálogos de tecidos para moda da Rhodia. Em Moda e Publicidade no Brasil nos anos 1960, Maria Claudia Bonadio (2014, p. 117) destaca a coleção Brazilian Look (1963), assinada por 35 costureiros brasileiros, dentre eles, Dener Pamplona (1937-1978); criada pela Rhodia Têxtil com o objetivo de reforçar o aspecto nacional. A preocupação em associar tais produtos e marcas ao Brasil – entendido pelas campanhas como uma terra repleta de riquezas naturais, de natureza próspera e exuberante – é enfatizada também nas estampas criadas por artistas plásticos para algumas peças da coleção e na composição gráfica dos editoriais de moda, ou seja, nos logotipos, nas chamadas para os editoriais de moda, nas frases impressas sobre as fotos e nas legendas dessas imagens. (BONADIO, 2014, p. 118) As ações da Rhodia foram essenciais para que outras tecelagens investissem em tecidos estampados com temas considerados brasileiros. Segundo Lima e Sakurai, “a iniciativa contagiará outras tecelagens, levando à comercialização de tecidos com temas brasileiros, como a coleção Brasiliana de Genaro de Carvalho para a Companhia Deodoro Industrial em 1960”. Porém, a influência estrangeira continuava assinalando seu espaço nas criações. O que pode ser evidenciado na escolha de nomes em inglês para as coleções, assim como nos editoriais fotográficos feitos em locações turísticas internacionais, principalmente, em Portugal, na França e na Itália. Para Bonadio (2014, p. 122), as teorias de Collin Campbell157 sobre o “prazer imaginativo”, 157 Bonadio cita Collin Campbell ao chamar de “prazer imaginativo” a sensação promovida pelas publicidades da Rhodia com suas viagens internacionais. Campbell defende que a atividade II Congresso Internacional Sobre Culturas 401 aliadas à expectativa de tornar-se moderno por meio do acesso “ao primeiro mundo”, provavelmente explicam o uso recorrente das viagens internacionais por parte da Rhodia. Um fluxo contraditório entre “estar de acordo” e “fazer diferença”; entre construir uma “cara para o Brasil” ou “sobre o Brasil”. Apesar da seleção por parte dos designers de alusões tidas como próprias do Brasil – fauna, flora ricas em cores vivas e alegres (motivos tropicais), influências artísticas e arquitetônicas de negros, brancos e índios – conserva-se nas publicidades o vínculo com o que vem de fora, que pode ser ratificado na precisão em chancelar tais criações a partir de um sistema europeu. Um exemplo é o texto publicitário que compõe a campanha da Rhodia fotografada na Piazza di Spagna que diz: “Os estampados brasileiros caracterizam-se pelo forte acento local. Pelo fato de serem bem brasileiros, é que conseguem ter categoria internacional”. Figura 2 - Reportagens promocionais da Rhodia com locação na Itália, com estampas de Aldemir Barros e modelos feitos pelos costureiros João Miranda, José Nunes e José Ronaldo Fonte: Moda e publicidade no Brasil nos anos 1960 (2014, p. 120-121). A publicidade realça uma brasilidade delineada a partir dos entrelaçamentos históricos, onde o ponto de origem é sempre confuso, mas que, ao mesmo tempo, se apega à imponência de um passado herdado através da sua continuada condição de Colônia. Investimentos como os realizados pela Rhodia persistem ainda rejuvenescidos, em pleno século XXI, no design de moda de grandes marcas nacionais, como da carioca Farm que ostenta coleções ricas em frutas, pássaros e muito verde; mas cheias de referências internacionais. E também no processo criativo fundamental do consumo não é a verdadeira seleção, compra ou uso dos produtos, mas a procura do prazer imaginativo, a que a imagem do produto se empresta, sendo o consumo, em grande parte, resultado desse hedonismo ‘mentalístico’. II Congresso Internacional Sobre Culturas 402 de grifes regionais, como a baiana Elementais (objeto desta breve análise), ao associar às suas criações uma série de elementos alusivos a uma diversidade intercultural nacional. BRASIL E PORTUGAL NAS ESTAMPAS DA ELEMENTAIS Há 23 anos no mercado, a Elementais é uma das marcas mais consolidadas de moda na Bahia. Durante sua trajetória, o investimento em estamparia vem sendo uma das principais apostas para o estabelecimento de sua assinatura diante de um mercado tão competitivo. Para Mayume Mizoguchi (2014, p. 178), é preciso que o indivíduo tenha afinidade e desejo pelos produtos que escolhe. Certamente, uma das coisas que mais influencia essa escolha é a estampa. Assim, atenta a este poder da imagem impressa no tecido, a Elementais encontrou na estamparia uma forma de diferenciação em um mercado pautado, essencialmente, pela mimese de produção. Através das suas estampas, a marca consegue gravar em suas criações um “DNA” - construído sobre um caldeirão cultural com influências diretas de negros, índios e brancos (português/europeu) - sem, no entanto, se desvencilhar da sua essência de empresa comercial de confecção. A partir da visualização de imagens publicadas na rede social Instagram (IG) 158, referentes às coleções de Inverno 2016 e Primavera/Verão 2016 da marca, é possível identificar elementos (cores, motivos, textura, padronagem, indicadores culturais) que aproximam Brasil (em especial, a Bahia) e Portugal à composição das estamparias criadas pela marca baiana. Na figura 3 abaixo, o post159 exibe cartela de cores e estampa do Inverno 2016, revelando uma composição com a imagem seguinte do Centro Histórico de Salvador (Bahia), cidade sede da marca. As influências lusitanas são vistas na arquitetura dos casarões, no colorido e na própria disposição geográfica acidental da imagem do Pelourinho, que também é notada nas linhas assimétricas que compõem a estampa. Outro forte elemento nas publicações é o sincretismo religioso que explora, principalmente, o desenho dos tradicionais azulejos portugueses (tão presentes nas igrejas católicas baianas) em harmonia com produções 158 A Elementais alimenta três redes sociais: Instagram, Twitter e Facebook. Escolheu-se a rede social Instagram para a análise, uma vez que a mesma tem sido o principal canal de comunicação da marca com seus clientes no ano de 2016. A página do Facebook passa, normalmente, por poucas atualizações e o Twitter se mantém com link inativo no site oficial da marca. A última tentativa de acesso foi feita em 24 de outubro de 16. 159 A palavra estrangeira post foi incorporada à linguagem virtual, e significa o mesmo que publicação. II Congresso Internacional Sobre Culturas 403 que valorizam adornos figurativos da religiosidade negra e indígena, como o uso de patuás. Figura - Série de posts para divulgação das referências para o Inverno 2016 Elementais Fonte: IG Elementais, maio, abril e fevereiro de 2016, respectivamente. A arquitetura portuguesa e seus azulejos são inspirações constantes da Elementais ao explorar ainda os ladrilhos típicos para a construção das narrativas em suas estampas. Com influências árabes, a arte em cerâmica decorativa lusitana incorpora originalidade a partir do diálogo com outras expressões, dentre elas, a gravura e os têxteis. Tornando-se assim uma das manifestações portuguesas mais difundidas e apreciadas mundialmente. A figura 4 apresenta um exemplo da composição de estamparia a partir da representação dos ladrilhos portugueses nas coleções da marca. Suas cores, linhas e seus traçados podem ser nitidamente associados a um dos painéis expostos no acervo histórico do Museu Nacional do Azulejo160, em Lisboa, realçando a conversa luso-brasileira por meio de histórias contadas em tecidos. 160 Disponível em:< http://www.viaggiando.com.br/2013/07/lisboa-museu-nacional-do-azulejo.html>. Acesso em: 24 de outubro de 2016. II Congresso Internacional Sobre Culturas 404 Figura 4 - Mix de estampas em tecido com motivos que remetem aos ladrilhos vistos no acervo do Museu Nacional do Azulejo (Lisboa, Portugal). Fonte: Museu Nacional do Azulejo |Site Fonte: IG julho de 2016 – Viaggiando Preview verão CONSIDERAÇÕES FINAIS Como se observa, a iniciativa de transpor motivos de um determinado repertório cultural para o tecido funciona assertivamente, sobretudo na contemporaneidade, como uma das incontáveis formas expressivas para a identificação e difusão de determinada assinatura. Neira (2012, p. 221) salienta: “Os discursos produzidos sobre os tecidos brasileiros são tão ou mais importantes que eles mesmos, pois não fossem os discursos, esse imaginário provavelmente não teria se constituído de maneira tão evidente”. Essa “impressão digital” fica potencialmente mais clara ao se investir em pinturas nos tecidos na tentativa de contemplar os diálogos diversos e latentes que persistem e se renovam entre as fronteiras nacionais e internacionais. Aqui, especificamente, entre Brasil e Portugal. Importante observar que, diante de um território múltiplo com divisas cada vez mais díspares, esses diálogos são, muitas vezes, estabelecidos de forma natural, uma vez que fazem parte também do chamado “inconsciente coletivo”. Isso, porém, não descredita as interseções culturais de encenação de uma identificação própria de Brasil. REFERÊNCIAS BUENO, Ricardo. Alma Brasileira. 1ª edição, Porto Alegre: Totalcom Comunicação e Eventos, 2013. BUENO, Ricardo. Alma Brasileira. 2ª edição, Porto Alegre: Usina Projetos Culturais: Quattro Projetos, 2014. II Congresso Internacional Sobre Culturas 405 CIDREIRA, Renata Pitombo. As formas da Moda: Comportamento, estilo e artisticidade. 1ª ed. São Paulo, Annablume, 2013. LIMA, Ricardo Ferreira de Oliveira; e SAKURAI, Tatiana. A identidade brasileira na estamparia de tecidos para interiores: a “Larmod” na década de 1970. In: 11º Seminário Docomomo_BR – O campo ampliado do movimento moderno. Recife, 2016. MIZOGUCHI, Mayume Hausen. Moda, identidade, singularidade. In: BUENO, Ricardo. Alma Brasileira. 2ª edição, Porto Alegre: Usina Projetos Culturais: Quattro Projetos, 2014. NEIRA, Luz Garcia. Estampa na tecelagem brasileira: da origem à originalidade. São Paulo, 2012. Tese de doutorado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – Universidade de São Paulo. RISÉRIO, Antonio. Uma história da cidade da Bahia. 2. ed. Rio de Janeiro: Versal, 2004. II Congresso Internacional Sobre Culturas 406 MODA DE BÁRBARA E IANSÃ: A PRODUÇÃO DA INDUMENTÁRIA NA FESTA DE SANTA BÁRBARA, NA CIDADE DE SALVADOR Giovana Santos Dantas da Silva161 RESUMO Esse artigo apresenta um ensaio fotográfico e propõe uma reflexão acerca da indumentária produzida e utilizada pelas mulheres que participam da Festa de Santa Bárbara, que acontece no dia quatro de dezembro, na cidade de Salvador - Bahia. Ao se cultuar Santa Bárbara, também se rende homenagem a Iansã, pois a vida na colônia facilitou o diálogo entre africanos, ameríndios, portugueses e muitos outros povos. A Festa se inscreve numa tradição de séculos, mas seu acontecimento no presente se mostra como renovação e potência criativa. A fotografia é uma possibilidade de registro e também meio de expressão no campo da arte, que reescreve esse fenômeno cultural e a relação corpo e moda que nele se revela. A construção simbólica presente na escolha das peças das indumentárias mostra uma condição culturalmente compartilhada, em especial, pelo corpo feminino, que integra esse espetáculo. Palavras-chave: Festa. Fotografia. Cultura. Indumentária. A FESTA DE SANTA BÁRBARA A Bahia possui um rico calendário de festas populares, dedicadas aos mais diversos santos católicos e orixás. No entanto, venho dedicando especial atenção à Festa de Santa Bárbara. Ao longo de nove anos, produzi uma série de ensaios fotográficos, sob os mais variados recortes temáticos da Festa; às vezes como registro documental, em outros momentos, buscando ângulos mais inesperados, que compõem enquadramentos menos usuais. Na produção artística, utilizo a fotografia também como processo para a criação em outros meios expressivos da contemporaneidade. Logo, pode-se dizer que lanço mão da fotografia como um lugar de passagem da imagem, fazendo-a circular por diversas formas e técnicas, como instalações, projeções e hibridizações. Nesse texto, destaco uma dessas séries fotográficas, cujo recorte torna possível direcionar o olhar para detalhes específicos da paisagem, ou seja, para a indumentária produzida pelas mulheres para comemorar e prestar homenagem de fé às duas figuras religiosas ali presentes. Nos detalhes, é imprescindível observar a força do corpo feminino que compõe esse irreverente evento da cultura baiana. 161 Instituto Federal da Bahia-IFBA II Congresso Internacional Sobre Culturas 407 Sabe-se que, anualmente, no dia quatro de dezembro, na cidade de Salvador, rende-se homenagem à Santa Bárbara e, também, à entidade de matriz africana, Iansã. Nessa data, presenciamos o coroamento de uma construção coletiva desenvolvida ao longo do ano, que revela o trabalho e a dedicação das pessoas que se empenham para a sua realização. Assim, todo o resultado dos preparativos – que se desdobram nas igrejas, nos terreiros e nas residências dos devotos – invade a rua e se mostra nas comidas, nos cânticos, na cenografia dos andores e, especialmente, na produção das roupas e adereços em tons de vermelho encarnado e branco, que compõem a indumentária das mulheres que se vestem e se enfeitam para expressar sua devoção. A Festa de Santa Bárbara acontece desde 1641, “quando foi instituído o Morgado de Santa Bárbara, composto de propriedades e capela ao pé da Ladeira de Montanha”. Segundo Ubiratan Castro Araújo, “aquele foi o primeiro Mercado de Santa Bárbara” (ARAÚJO, 2010, p. 9). Na década de 80 do século XX, as celebrações foram transferidas para a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Pelourinho. A procissão, com seus andores, parte, então, do Pelourinho, passa pelo Terreiro de Jesus e desce a Ladeira da Praça; faz uma parada no Corpo de Bombeiros, que reverencia Santa Bárbara como padroeira; e percorre a Baixa dos Sapateiros, onde os comerciantes enfeitam suas vitrines com peças de roupas vermelhas e brancas; em seguida, passa em frente ao Mercado de São Miguel e, mais adiante, muitos dos devotos se dirigem para o Mercado dos Arcos de Santa Bárbara. Nessa festa, o caruru, o samba e os folguedos acontecem nesse Mercado, espaço que tem um importante papel na história dos festejos, pois, como aponta o antropólogo baiano Vilson Caetano de Sousa Jr., “a devoção de Santa Bárbara na cidade de Salvador liga-se, profundamente, aos mercados, à vida dos vendedores, caixeiros; mulheres de gamela, vendendo fato de boi, peixe, mingau; mulheres do tabuleiro, mercando cuscuz, cocadas; mulheres de balaio ou ganhadeiras” (SOUSA JR., 2003, p. 129). Imersa na Festa, observo o movimento das pessoas, suas vestimentas e adereços, bem como a relação que estabelecem com os ritos. Diante disso, percebo que as mulheres se produzem com criatividade, exibindo os componentes de suas indumentárias, cuidadosamente produzidos para tornar a sua imagem uma aparição de fé e sensualidade. Devotos, ambulantes e comerciantes se produzem em tons de vermelho encarnado e branco. A rua vai sendo ocupada gradativamente ao longo da II Congresso Internacional Sobre Culturas 408 manhã por essa paisagem, formada pela multidão e por esse espaço urbano que nos instiga a refletir sobre a cultura e a memória do povo baiano. O fluxo das pessoas que caminham nas vielas do Centro Histórico, também vai crescendo ao longo da tarde e as comemorações, com muito samba e batuque, continuam na rua e no Mercado até depois de cair a noite. Sobre este aspecto, Antonio Risério ressalta a pré-disposição festiva do período colonial, cuja natureza ultrapassava os limites dos eventos oficiais. Ao descrever o comportamento do povo da cidade da Bahia, no século XVIII, observa ainda que as festividades se estendiam para uma “espécie de transbordamento, com a massa da população prolongando a celebração pública organizada pela elite dirigente em espaços de comemoração em que ela podia se entregar, sem maiores inibições, aos jogos do prazer” (RISÉRIO, 2004, p. 172). Diante disso, pode-se dizer que a natureza festiva da vida baiana continua mantendo suas influências barrocas, de fé e erotismo, evidenciando, no seio mestiço da religião, o jogo do prazer. Como o fenômeno do sincretismo é universal e, por isso, acompanha os grandes modelos religiosos do início de sua formação, ao se cultuar Santa Bárbara, também se rende homenagem a Iansã. Nesse aspecto, importa lembrar que o viver em colônia facilitou o diálogo entre africanos, ameríndios, portugueses e muitos outros povos. O resultado foi a produção de modelos religiosos onde símbolos provenientes de várias matrizes culturais não apenas transitam externamente, mas também dentro do corpo dos próprios iniciados. No entanto, destaca-se aqui a junção do pensamento africano ao universo católico português. Não obstante o sincretismo religioso ser abordado de diversas maneiras, Sousa Jr. esclarece que, ao contrário do que muitos especialistas afirmam, o fenômeno do sincretismo é absorvido, interpretado ou vivido de forma diversa pelas pessoas. Ou seja, “ao contrário da ideia de ‘faz de conta’, mistura, fusão, justaposição, jogo de correspondências, analogias, confusão, dentre outras, o fenômeno do sincretismo tem a ver mesmo com atribuição de significados, com sentimentos” (SOUSA Jr., 2006). Nesse sentido, acreditava-se que a relação do candomblé com o catolicismo se dava apenas no nível superficial e que poderia ser explicada como farsa, diante da obrigatoriedade dos escravos de cultuarem os santos católicos. O sincretismo afrocatólico, contudo, vai além das relações exteriores, uma vez que não mais funciona como uma imposição do sistema colonial nem como algo que pode ser descartado do II Congresso Internacional Sobre Culturas 409 âmbito da cultura. Existe, é fato, um entrelaçamento afetivo entre as duas religiões, e a indumentária feminina é um dos sinais que comprovam essa tessitura. Além disso, a Festa de Santa Bárbara, que é iniciada na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, se estende para o Mercado dos Arcos. Lá, se misturam imagens da santa católica com a iconografia de Iansã. Isso nos leva a ver que o projeto lusitano de transposição cultural dos códigos europeus sofre, aqui, novos direcionamentos, pois, é no encontro com as práticas religiosas e festivas do povo negro que o Brasil colonial configura suas expressões barrocas. Nessa perspectiva, Risério argumenta que “o barroco é um traço fundamental da nossa formação”, uma arte erótica, voltada para o jogo, o prazer e o desperdício, para uma transgressão do utilitário, reforçando o diálogo natural dos corpos. Além disso, o antropólogo e historiador brasileiro esclarece que nossas influências africanas não são apenas do período colonial, graças à poderosa intervenção da cultura nagô-iorubá, na virada do século XVIII para o XIX. Antônio Risério ainda afirma “que uma cultura essencialmente barroca e as ondas culturais africanas que atravessaram o Atlântico estruturaram, em sentido profundo, a sensibilidade baiana. Ou, dito de outro modo, a sensibilidade baiana é uma sensibilidade afrobarroca” (RISÉRIO, 2004, p. 534). Consequentemente, “Bárbara e o Barroco” estabelecem uma articulação em rede, um espaço de “entre imagens” que agrega uma festa de transbordamentos, desperdício, volumes, corpos em estado de êxtase, onde sagrado e profano se misturam e se atualizam, sem necessariamente constituírem campos apartados e delimitados por espaços específicos de ocupação. Na verdade, os espaços vividos e as pessoas acolhem a diversidade de manifestações de fé pelas duas entidades femininas, de matrizes distintas, mas afetivamente entrelaçadas. A FESTA E A PRODUÇÃO NO CAMPO DA ARTE Sabe-se que a arte contemporânea e as novas linguagens abriram um campo vasto para investigações que tornaram a matéria artística uma área fértil para o diálogo com outras áreas do conhecimento. Trata-se, é fato, de um diálogo desafiador, que favorece uma postura maleável em relação às várias formas do saber e suas áreas fronteiriças. Do mesmo modo, quando conheci e me envolvi com a Festa de Santa Bárbara, fui tomada por uma necessidade de descrever, narrar e produzir novas significações II Congresso Internacional Sobre Culturas 410 acerca desse evento. Os meus primeiros ensaios fotográficos surgiram em consequência dessa contínua inquietação, e foram imprescindíveis nos processos de pesquisa em arte e como registro para os “diários de bordo”. Assim, se em alguns momentos, os ensaios se tornaram a própria obra; em outros, a produção fotográfica também se apresenta como uma provocação para novas construções como instalações, videoinstalações e objetos, não necessariamente documentais. A Festa de Santa Bárbara se inscreve numa tradição de séculos, mas seu acontecimento no presente se mostra como renovação e potência criativa, o que despertou em mim o desejo de utilizar a fotografia como um meio que me possibilitasse reescrever esse fenômeno cultural e a relação corpo e moda que nele se revela. Com relação a essa perspectiva, o filósofo italiano, Giorgio Agamben, defende que “a contemporaneidade se escreve no presente assinalando-o antes de tudo como arcaico, e só quem percebe no mais moderno e recente os índices e assinaturas do arcaico pode dele ser contemporâneo” (AGAMBEN, 2009, p. 69). Venho acompanhando a Festa de Santa Bárbara com olhar atento e procurando viver esta experiência. Realizei diversos registros fotográficos e as mostras: “A Tempestade de Bárbara”, na Casa do Benin - Salvador - BA, 2006 (A Gosto da Fotografia), e no Museu Nacional Cláudio Santoro - Brasília - DF, 2007 (Foto Arte). As imagens que integraram essas exposições foram produzidas como um híbrido de fotografia e pintura, e já evidenciam meu interesse pelas formas do vestir feminino presentes na Festa. Série: Moda de Bárbara Série: Festa no Mercado Série: Devoção A primeira imagem faz parte de uma série de fotografias das lojas da Baixa dos Sapateiros, que são arrumadas especialmente para a passagem da procissão. Para tanto, suas fachadas e vitrines são produzidas com diversos tipos de roupas, adereços e uma decoração em que priorizam a cor vermelha. Já a segunda e terceira imagens são flagrantes da Festa no Mercado, onde mulheres se vestem de vermelho e se enfeitam para dançar, cantar e também louvar. II Congresso Internacional Sobre Culturas 411 Em 2013, produzi uma videoinstalação intitulada “Insustentável Leveza”, que foi exposta na Caixa Cultural de São Paulo e na Caixa de Recife. A mostra foi desenvolvida no Instituto Sacatar, uma Residência Artística localizada na Ilha de Itaparica, na Bahia; e as obras foram concebidas como vídeos instalados em objetos ou dispostos de forma a integrar a participação do visitante no espaço da galeria. Em virtude de compreender a produção videográfica como uma derivação das experiências em fotografia, procuro usar a imagem em movimento não apenas para documentar a Festa, mas também como um lugar de trânsito da própria imagem, que atinge seu ponto alto quando integrada a videoinstalações e videobjetos. Dando continuidade aos procedimentos em vídeo, trouxe essa vivência para o processo investigativo sobre a Festa de Santa Bárbara. A propósito, imagens videográficas capturadas na Festa também foram trabalhadas como videoinstalação na obra “Transbordamentos” (2016), na qual um jogo de espelhos multiplica de maneira infinita a imagem em movimento das danças no Mercado. Giovana Dantas. Transbordamentos. Videoinstalação / Frames do vídeo Museu de Artes da Bahia, 2016 Pode-se observar que nessa obra, as imagens foram trabalhadas não só como registro, mas também como metáfora da constituição sincrética da Festa, como uma reelaboração visual própria, carregada de excessos. Nas imagens em vídeo ainda se pode observar a diversidade e o cuidado com a produção das indumentárias adotadas pelas mulheres. INVENÇÃO DAS COISAS VERMELHAS No processo de imersão na Festa, tive a oportunidade, como artista visual, de perceber a riqueza de signos culturais que ali se concentram. Por isso, nos anos posteriores às mostras realizadas utilizando a fotografia híbrida, misturada a traços pictóricos, me dediquei ao registro de detalhes. Fugindo de uma tradição documental, II Congresso Internacional Sobre Culturas 412 priorizei uma especial atenção nos enquadramentos específicos de temas variados. Uma das séries produzidas tem como foco as indumentárias usadas pelas mulheres e figuras femininas. Tanto nas ruas, quanto no Mercado, as cores predominantes são o vermelho e o branco. No entanto, quando o olhar é absorvido na multidão, a paisagem que se vê é de um “mar” de coisas vermelhas, porque o que prevalece no campo visual é o movimento de ondas formadas por passantes, devotos e brincantes. A Ladeira do Pelourinho ondula como águas vermelhas num espetáculo indescritível. Imersa nessa experiência, atentei para os detalhes, delicadamente construídos com objetos, cores, fios, rendas, flores, sapatos e tantos outros, escolhidos com esmero para que, nesse dia, cada corpo feminino fosse o mais representativo da fé, mas também da personalidade forte e sensual que ocupa a alma das mulheres de Bárbara e de Iansã. Frente a isso, percebi que a construção simbólica presente na escolha das peças das indumentárias na Festa de Santa Bárbara revela não só uma condição culturalmente compartilhada pelo corpo feminino, mas também nos mostra o poder da dimensão artística das atividades humanas, sem que estejam necessariamente vinculadas ao sistema geral do campo da arte. Com as fotografias, pude flagrar detalhes de roupas e adereços produzidos com a vontade de expor o ser criativo que habita em cada pessoa, pois, como aponta Luigi Pareyson: Em toda a obra humana está presente um lado inventivo e inovador como primeira condição de sua realização. Isso explica como pode haver arte em toda atividade humana, ou melhor, como há a arte de toda atividade humana, no sentido de que, em qualquer circunstância, trata-se de fazer com arte (PAREYSON, 1997, p. 31). Para o filósofo italiano, existe na atividade de criação humana um caráter de pessoalidade que é constitutivo, primordial e inerente a todo fazer, porque é dirigida por uma iniciativa pessoal de liberdade e dedicação, na qual o sujeito encontra no seu exercício uma afirmação de si. Logo, sob o aspecto social, observa-se que na vestimenta coexistem o potencial de individualização e de socialização, quando é compartilhada no coletivo. Sobre a mulher que é devota de Santa Bárbara ou tem Iansã como seu orixá, observa-se que traz uma sensualidade nata, além de carregar consigo uma autoestima visivelmente expressa na maneira com que se prepara para sua Festa. Essas são observações de um simples Caderno de Bordo que carrego pelos caminhos das II Congresso Internacional Sobre Culturas 413 experiências cotidianas, e no qual vou registrando ideias, imagens e esboços. No entanto, de acordo com as observações do historiador Ubiratan Castro Araújo, gente de toda a cidade, de todas as classes sociais, de todas as cores (principalmente a negra), e de todos os sexos (principalmente as mulheres) reúne-se para missa, procissão, samba e caruru. Duas figuras místicas de mulher associam-se no vermelho da festa: a Santa Bárbara, mártir cristã da antiguidade, e a laba Iansã, orixá dos Iorubás. Ambas representam o arquétipo unificado de mulher guerreira, que conquistou a sua liberdade ainda que no martírio, e que levantou a cabeça em rebelião contra o poder masculino (ARAÚJO, 2010, p. 9). Dessa forma, podemos ver na produção popular das indumentárias, sempre criativas, uma forte carga simbólica, presente nos vestidos, sapatos, bolsas, chapéus e adereços. Também observamos mais detalhadamente as produções das baianas, com suas saias em camadas superpostas, com bicos e rendas, variando entre o vermelho e o branco. As mulheres de santo ainda se ornam com muitas pulseiras, anéis e símbolos religiosos de matriz africana, como os colares de contas e torços dos mais diversos formatos. II Congresso Internacional Sobre Culturas 414 II Congresso Internacional Sobre Culturas 415 Giovana Dantas. Série: Moda de Bárbara, 2014/15. Fotografia Sabe-se que a razão técnica tenta organizar, do melhor modo possível, pessoas e coisas, a cada um atribuindo um modelo de uso, como ressalta Michel de Certeau (2009). Entretanto, o homem comum escapa a esse modelo de vida, pois ele inventa o cotidiano, graças à arte de fazer suas ferramentas de ação, ao exercício do jogo simbólico, às astúcias sutis e às estratégias de resistência, pelas quais ele altera objetos, códigos e comportamentos, dando novas formas de uso às práticas, aos espaços e às coisas. Para ele, não importa mais a separação ou definição dos campos Cultura Erudita e Cultura Popular, mas as operações culturais de desvios de práticas e os seus usuários, como ocorre na Festa de Santa Bárbara. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesse artigo, abordo a experiência de imersão no espaço da Festa de Santa Bárbara, buscando estabelecer relações de apropriação perceptiva, articulando corpo e espaço, seus fluxos e movimentos, como condição para instauração de uma poética artística. Adoto a fotografia como meio de passagem para outras formas significativas de expressão no campo da arte. Por esse viés, a captura do real torna-se apenas um pretexto para novas trilhas que se desdobram de maneira multidirecional, formando redes de conexões inusitadas e necessárias para a prática artística e expansão do pensamento criativo em rede. Por meio do recorte aqui apresentado, busquei refletir, em especial, sobre as formas do vestir numa festa popular da cidade de Salvador. Por isso, apresento algumas imagens fotográficas, reunidas sob o ponto de vista da indumentária feminina. Na Festa de Santa Bárbara se verificam criações anônimas e passageiras que se instauram no ambiente e não se inserem no sistema capital da produção de moda. Também ocorrem criações regidas por códigos religiosos de tradição de matriz africana, que se perpetuam no tempo. Por fim, considerando que a vida cotidiana II Congresso Internacional Sobre Culturas 416 sempre se abre para o inusitado, tornando-se um espaço de trocas constantes entre rotina e invenção, nos defrontamos com possibilidades inesperadas, que excedem nosso sentido de provável, mas que podem ser produzidas e reconhecidas na multidão. REFERÊNCIAS AGAMBEN. Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Tradução de Vinicius Nicastro Honesco. Chapecó, SC: Argos, 2009. ARAÚJO, Ubiratan Castro. Apresentação. In: BAHIA, Governo do Estado, Secretaria de Cultura, IPAC. Festa de Santa Bárbara. Salvador: Fundação Pedro Calmon, 2010. p. 9. (Cadernos do IPAC, n. 5) CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes do fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2009. PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. Tradução de Maria Helena Nery Garcez. São Paulo: Martins Fontes, 1997. RISÉRIO, Antônio. Uma história da Cidade da Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2004. SOUSA JR., Vilson Caetano de. Orixás, santos e festas: encontros e desencontros do sincretismo afro-católico na cidade de Salvador. Salvador: EDUNEB, 2003. ______. Balaio de Ideias: Orixá Ilu e Orixá Igbó. Jornal A Tarde, Salvador, BA, 22 set. 2006. Disponível em:<http://mundoafro.atarde.uol.com.br/tag/ilu/>. Acesso em: 14 fev. 2016. II Congresso Internacional Sobre Culturas 417 ELEGÂNCIA DO MÊS: NOTAS SOBRE MODA E IMPRENSA EM SALVADOR DOS ANOS 1920 Henrique Sena dos Santos162 Resumo: Este trabalho busca problematizar de que forma a moda, tendo como suporte a imprensa ilustrada, se constituiu enquanto uma temática fundamental para o processo de introdução de Salvador em novas formas de sociabilidades e sensibilidades ditas como modernas. Tivemos como mote a análise da coluna A Elegância do Mês da revista ilustrada A Renascença, principal mensário de variedades em, Salvador nos anos 1920. Ao analisar os textos e imagens reunidos na rubrica que sugeriam e criticavam as tendências da moda e o seu valor social, esperamos contribuir também para perceber como a moda se articulou com a emergência de uma imprensa moderna preocupada não só em se afirmar enquanto um veículo definidor das marcas da modernidade, como também um empreendimento comercial que visava lucro no então nascente mercado editorial. Palavras-chave: Imprensa. Moda. Revistas ilustradas. Salvador.Cultura. Ainda que de modo heterogêneo e descontínuo, é possível observar entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, um processo de modernização da imprensa nas principais capitais brasileiras (SODRÉ, 1999; MARTINS e DE LUCA, 2008). De modo paulatino, o estilo de produção artesanal, manual e não especializado foi sendo abandonado e os periódicos começaram a ser concebidos no interior de uma lógica empresarial, que envolvia a adesão das novas tecnologias de impressão, por meio do uso de máquinas modernas de rápido processamento, que permitiam o aumento da tiragem, da qualidade e da quantidade de páginas dos periódicos. Acrescente-se, ainda, o processo de divisão do trabalho, via especialização das funções de editor, redator, repórter, revisor, entre outras, que antes eram desempenhadas por um mesmo indivíduo. Observe-se que, de modo também gradativo e nem sempre linear e progressivo, a imprensa transcendeu o caráter estritamente político, vinculado à defesa de posicionamentos de grupos políticos, dentro ou fora do poder instituído, para começar a se comprometer com a difusão da informação, em consonância com as transformações em curso no início de século, bem como desenvolver em suas páginas novos hábitos comportamentais inspirados em valores modernos e tidos como 162 Mestre em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Membro do Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura. Email: henrisena@hotmail.com II Congresso Internacional Sobre Culturas 418 civilizados. A diversificação dos conteúdos e abordagens não pode ser dissociada do fato de a imprensa articular-se aos ideais de lucro e tornar-se um negócio, ou melhor, uma indústria. Tais mudanças não podiam desprezar as expectativas dos leitores, ansiosos por notícias que dessem conta da vida social, dos esportes e das novas formas de viver no espaço urbano. Com efeito, as transformações da imprensa foram significativamente potencializadas pela introdução no país de novas tecnologias, que ampliaram os sistemas de transporte e comunicação. A partir das décadas finais do século XIX assistiu-se, no Brasil, a chegada e/ou difusão do cabo submarino, do telégrafo, do telefone, do gramofone, do cinematógrafo, dentre outras invenções que favoreceram a constituição de novas sensibilidades e sociabilidades, que afetaram de forma direta a imprensa. Como têm destacado os estudiosos do tema, carros, trilhos dos bondes, estações de trem e a “fada da eletricidade”, para retomar uma expressão corrente na época, entraram no cotidiano das cidades, contribuindo para o encurtamento das distâncias bem como para a difusão e acesso rápido às informações. (SUSSEKIND, 1987; COSTA E SCHWARCZ, 2000). Por fim, a transformação da imprensa e a sua intensa relação com as novas tecnologias deve ser inserida no contexto das substanciais mudanças ocorridas na sociedade brasileira. A abolição da escravidão, a proclamação da República, a articulação mais intensa com o capitalismo internacional, a busca pelos ideais de modernidade e civilidade, bem como a construção da ideia de nacionalidade, agora em termos diversos do vigente no Império escravista, foram processos que ocorreram naquelas décadas de transição do século XIX para o XX (FERREIRA & DELGADO, 2003). Foi nesse contexto que emergiram as revistas ilustradas, espaço privilegiado para apreender os embates que cercaram as transformações socioculturais no contexto da Primeira República. Não tão efêmeras como as notícias dos jornais e menos densas que os livros, as revistas ilustradas incorporaram intensamente os novos recursos no campo da comunicação, o que permitiu que suas páginas se tornassem um espaço decisivo para a difusão de novas sensibilidades, sociabilidades e de discussão acerca da nova conjuntura política republicana, como indica o surgimento, em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, de semanários e mensários ilustrados e de variedades, esportivos, literários, científicos, dedicados ao cinema e que não deixavam II Congresso Internacional Sobre Culturas 419 de tocar em questões relativas à situação política do país. (MARTINS, 2001), (DE LUCA 1999), (DE LUCA, 2011), (OLIVEIRA, VELLOSO, LINS, 2010). Dentre os inúmeros conteúdos veiculados por estes periódicos destacam-se a preocupação com o corpo e as sociabilidades. Nesta direção, a moda passa a ser uma grande preocupação da imprensa e das revistas ilustradas na medida em que os espaços reformados como ruas, avenidas demandam um novo tipo de comportamento do corpo no que se a sua exibição e visualidade. (CIDREIRA, 2011) Tendo como pano de fundo este cenário, o nosso objetivo é pensar de que modo a imprensa buscou se relacionar com a moda, não só como mais uma frente de afirmação da modernidade, como também um poderoso nicho de construção de um mercado editorial responsável por angariar lucro. Para efeito deste texto nossa análise se concentrou na leitura de textos e imagens veiculados na coluna A Elegância do Mês, publicada na revista A Renascença, fundada em 1916 e principal periódico ilustrado dos anos 1920. A RENASCENÇA: BREVE PERFIL GRÁFICO-EDITORIAL A Renascença foi fundada, 1916, por Diomedes Gramacho e José Dias da Costa, personagens ligadas à fotografia e ao cinema, atividades que traziam as marcas da modernidade. Eles aprenderam o ofício com Rodolfo Lindemann, alemão radicado em Salvador e que foi um dos principais fotógrafos da cidade, a quem fizeram questão de homenagear ao intitular a empresa que fundaram de Photografia Lindemann, destacada em seu gênero e que deu origem à revista. As edições d’ A Renascença traziam, em média, de quarenta a cinquenta páginas e eram mensais, com seções fixas sobre esportes e moda, ao lado de outras menos perenes, dedicadas a assuntos diversos, como ciência. Além disso, já possível identificar que os editores do mensário destinavam uma parte significativa de suas páginas para a publicação de um conteúdo literário, expresso em poemas, contos e principalmente crônicas. Enfim, podemos caracterizar A Renascença como uma revista de variedades. Entretanto, uma temática que prevalece em suas páginas é uma preocupação de incutir nos leitores um desejo de mudança no comportamento, em sintonia com as transformações urbanas em curso na cidade especialmente nos quatro anos que antecederam a fundação da revista. II Congresso Internacional Sobre Culturas 420 Entre 1912 e 1916, o governador J. J. Seabra empreendeu uma série de reformas urbanas, que favoreceram a constituição de sociabilidades, das quais muitas foram difundidas pela imprensa (LEITE, 1996). É marcante n’A Renascença, um conteúdo exaltando as reformas empreendidas por J. J. Seabra e os eventos que ocorriam nestes espaços. Duas secções com presença constante nestas primeiras edições tratam-se d’A Bahia Moderna e Vida Social. A primeira apresentava fotorreportagens exaltando as principais reformas da cidade, como a avenida sete e a avenida oceânica, além de mansões e casarões de políticos e empresários. Já a Vida Social, privilegiando o uso de muitas imagens noticiava eventos da alta sociedade soteropolitana como casamentos, bailes, soirées, entre outros. Figura 1 Um exemplo da secção A Babia Moderna Revista A Renascença, nº 10, Fevereiro, 1917, p. 31 Não só nas rubricas como as citadas acima A Renascença atuou no estímulo de novas formas de lazer. Desde estratégias mais indiretas como o uso de temática mundanas na sua parte literária que, aliais tinha grande presença no mensário, como em texto de caráter mais opinativo percebemos críticas, sugestões e elogios ao esforço da elite local em mudar os costumes da cidade. A título de exemplo seguem trechos de um artigo sobre a realização de uma audição musical com periodicidade mensal: [...] A Bahia, digam ao contrário os inconscientes ou espíritos desbotados, progride. A sua vida social sofre dia a dia, asecnsoriamente, os influxos do progresso, fazendo subir no termômetro elegante calorias de esperanças de um renascimento áureo dos bons tempos. II Congresso Internacional Sobre Culturas 421 [...]A iniciativa de Manoel Augusto, o nosso maior intérprete dos mestres musicais alemães, exigindo de suas alunas, cada mês, a moldes da vida europeia, uma audição e recepção íntima e singela, de efeitos sociais inconfundíveis, foi o primeiro passo para a reforma desse mundo elegante, vazio de convívios, enraigado por demais nesse torvelinho do carrancismo. Ainda hoje, entre nós, poucos, muito poucos são os que recebem, em dias determinados, seu amigos.[...] (A RENASCENÇA, nº 29, maio de 1918, p. 17) Se Diomedes Gramacho, José Dias da Costa e seus colaboradores desejam expor na revista uma Salvador moderna e civilizada, seja através de uma nova espacialidade urbana ou na adoção de novas sociabilidades como passeios recitais teatros e cinemas, existia uma preocupação de orientar o leitor na forma como este deveria frequentar e se comportar nestes espaços, o que envolveu uma atenção considerável na exibição do próprio corpo na cena pública. Nesta direção, ao menos nas primeiras edições, a moda parece ter se constituído como uma das principais temáticas favoritas do mensário. Exemplo disso é a publicação da coluna que iremos discutir agora. A ELEGÂNCIA DO MÊS A coluna A Elegância do Mês surgiu desde o primeiro número d’A Renascença e até o momento de escrita deste texto foram localizadas pouco mais de 10 edições em que a rubrica aparece. A sua disposição no periódico é relativamente irregular, por vezes o texto aparece nas primeiras páginas e em outras surge entre a metade e o final o mensário. Porém, algo sempre presente em todas as colunas observadas até agora é o fato dela ser assinada sob o nome de Aidole. Ainda não é possível saber se quem escreve o texto é uma mulher ou um homem. Na verdade, até este nome nos deixa dúvida sobre ele ser masculino ou feminino. Esta inquietação sobre a condição de gênero da autoria da coluna faz um sentido na medida em, embora houvesse cada mais iniciativa de mulheres que escreviam, no início do século XX a escrita ainda era um espaço majoritariamente masculino, mesmo em se tratando de temas mais tradicionalmente relacionados ao universo feminino. Outra presença constante na rubrica é uma quantidade significativa de gravuras e clichês que acompanhavam o texto, ou exemplificando uma opinião daquele ou ilustrando a coluna. Estas imagens ocupavam uma boa parte de coluna e o recurso utilizado para se articular com o texto era que este margeava a imagem gerando um II Congresso Internacional Sobre Culturas 422 efeito gráfico simétrico. Ao longo das edições identificamos que a rubrica passou a ter uma vinheta que ilustrava o seu título, possivelmente um recurso para destacar o texto, revelando possivelmente uma gradativa centralidade que a coluna passou a experimentar. Figura 2 Exemplo do uso de vinheta e gravuras na coluna Revista A Renascença, nº 4, 26 de setembro, 1916, p. 39 Em relação ao conteúdo seu conteúdo até agora identificamos uma variedade considerável de temáticas e abordagens relacionadas a moda, dentre as quais podemos destacar: a preocupação com o uso de toilletes curtas, o que vestir em situações de casamento, velório, quais cores usar em determinada estação, a composição da roupa com o formato do rosto e a cor dos olhos, qual roupa mais apropriada para determinada idade, a relação da roupa com os acessórios como colares e brincos entre outras. A despeito desta variedade de temáticas, o que marca o modo como se escreve sobre elas é a necessidade de apresentar ao leitor e leitora que a escolha de uma roupa envolve um método e um rigor. Em uma passagem da primeira vez em que a rubrica foi publicada encontramos: A mulher é a graça e o encanto da sociedade. Sendo assim, deve ser escrupulosa na escolha de suas vestes, preferindo a singeleza e combinação de cores, à muitos ornamentos, que às vezes quebram as linhas da elegância Muito difícil é escrever sobre os tons da moda, talvez mais do que sobre as toilettes, porque a escolha das cores não deve obedecer a uma fantasia e sim a um estudo sério sobre a tonalidade dos cabelos e dos olhos, de quem deseja vestir bem. Na harmonia da toilette com a cor dos olhos, faz-nos esquecer as rendarias e fitas que nos II Congresso Internacional Sobre Culturas 423 causariam uma só impressão, para nos lembrar a inteligência, goto e arte da mulher chic. Não devemos ter ilusão e julgarmos que a beleza não se transforma. As mulheres elegantes devem concordar que para se mostrar as pernas é necessário não as ter muito finas ou musculosas de mais. Podemos seguir a última criação de acordo com o físico, e aí está a dificuldade da moda. (A RENASCENÇA, Nº 1, julho de 1916, p. 28) Observe que mais do que apresentar a leitora o modo de usar determinada roupa, o texto defende que tal escolha envolve um estudo sério e não uma fantasia. Podemos pensar que existia uma preocupação muito do contexto da época de articular a mundo da moda ao universo científico. Dito de outra forma, a legitimidade da moda parece estar associada ao fato de a forma como se pensava ela era marcada de metodologias, estudos e critério o que a credenciava, enfim, a ter uma legitimidade na sociedade e na própria imprensa distanciando-se de uma visão fantasiosa e meramente mundana. A forma como se pensa o modo como as mulheres devem exibir as suas pernas levando em consideração critérios físicos como a fisiologia daqueles membros é uma clara evidência do pensamento científico. Por outros textos da coluna vimos que esta defesa da moda não era consensual. Nesta direção, o autor ou autora do texto mobiliza outras estratégias para defender a preocupação com a composição das toilletes: Nada mais galante e atraente que uma toilette bem organizada. Esta, sendo executada com rigor e o poder de dar as senhoras menos dotadas de beleza um quer que seja de atrativa e simpático. Quantas vezes nos deleitam o conjunto e a elegância e o modo de trajar de uma senhora que apesar de feia torna-se tolerável e até encantadora. Embora divirja de algumas opiniões esquisitas, acho que é natural a mulher atrair, encantar e deleitar sendo para isso indispensável a sociedade a sua toillete bem formada Alguns classificam de coquetismo as mulheres que se trajam com requinte, mas não havendo exagero, acho que a garradice faz parte da civilização e mesmo da educação. (A RENASCENÇA, nº 2, agosto de 1916, p. 43) Aqui fica evidente que mesmo quem discorde de ver a moda como algo sério e metódico, a sua importância reside em dotar de alguma beleza e elegância as mulheres consideradas feias. Este argumento parece ser mais incisivo uma vez que busca trabalhar principalmente com a estima das mulheres atingindo-as de modo muito mais direto do que tentando convencê-las ou a sociedade de ver a moda com algum valor por ela também compartilhar do universo da ciência. II Congresso Internacional Sobre Culturas 424 Já é possível pensar que um dos motivos de reservas para com a moda, sobretudo em se tratando de uma sociedade patriarcal, era o perigo das mulheres passarem muito tempo pensando em ser elegante e se esquecendo de suas obrigações como esposa, mãe e companheira. Como defesa deste argumento o autor ou autora afirmou: Ser bela, ter atrativos é o ideal de toda a mulher. Mas como chegar a este fim sem estudar a parte integrante e uma das principais que é a elegância? A mulher, por esmerar pela sua elegância, não deixa de ser uma boa dona de cassa, uma mãe extremosa, uma companheira fiel, contrariamente aos que julgam certos espíritos satíricos e atrasados. Com as suas preocupações de elegância, adequadas ao seu meio social, dotada de cultura de espírito e preciosos sentimentos, ela saberá ser soberana do coquetismo e ao mesmo tempo anjo do lar. A moda é uma coisa útil, uma criação genial e indispensável que é estudada quotidianamente nos países civilizados. A verdadeira elegância não consiste somente no vestuário, sim também no modo desembaraçado e leve do andar, no tratamento das unhas, na maciez das mãos, na conservação da pele, etc. Em todo recinto a moda tem o seu pretexto para a alegria dos olhos. Até nas igrejas ela é contemplada e admissível. (A RENASCENÇA, nº 10, fevereiro de 1917, p. 19) Observe que o texto deixa claro que a preocupação com a moda não é exclui a obrigação da mulher em ser boa dona do lar, mãe e esposa. Pelo contrário, ser elegante acaba por ser um atribuído a mais nesta tríade. Como isso o texto, na verdade reforça a mesma lógica patriarcal, uma vez que a moda não é pensada primordialmente enquanto um espaço para a construção de uma autonomia feminina, pelo contrário, passa a ser mais uma esfera que as mulheres devem dominar muitas vezes para satisfazer interesses que não o dela. Também não passa desapercebida uma terceira forma de legitimar o valor da moda, sem se esquecer do fato dela ser estudada: a comparação com os países civilizados, uma preocupação constante das elites locais. Estar na vanguarda é adotar modos de comportamentos europeus e se estes veem a moda como um marco civilizatório, deve-se segui-los. Finalmente, pela primeira vez na coluna, há uma ampliação da ideia de a moda não tratar apenas de roupas, mas de comportamento e performance corporal na relação com o andar e o estado das unhas, mãos e pele. II Congresso Internacional Sobre Culturas 425 EM CONCLUSÃO Embora ainda em caráter inicial, a leitura d’A Renascença já nos permite supor que, de fato, a moda se constitui enquanto um lugar privilegiado de discussão sobre o lugar que Salvador deveria ocupar no novo contexto moderno e mundano. Parece existir no periódico uma preocupação latente de construir na cidade uma nova forma de se e estar nas ruas, praças restaurantes e festas, sendo necessário para isso apresentar ao leitor um modo de pensar a moda que envolve não só a roupa, mas também os gestos corporais e o cuidado com o corpo, revelando uma busca por um ideal civilizatório. Por outro lado, esta preocupação não deixa de estar articulada à emergência de um mercado editorial. Ainda que não possamos pensar em uma conclusão mais definitiva, temos observado na revista uma quantidade surpreendente de anúncios de consultórios de beleza que prometiam tratamentos para cabelos e pele, reclames de lojas de departamento, sapatarias e outros estabelecimentos comerciais. Acreditamos que parecia existira uma dupla relação entre a revista e o comércio. Preocupados em tornar A Renascença um produto vendável, nada mais coerente para Diomedes Gramacho e José da Costa fazer das colunas do mensário um espaço que também estimulasse os leitores a consumirem produto que eram anunciados na própria revista. Pela quantidade de páginas destinadas a publicação de propagandas, em torno de dez a quinze, podemos supor que uma boa parte do lucro do empreendimento vinha da venda de espaços no periódico para a publicação de reclames. REFERÊNCIAS CIDREIRA, Renata Pitombo. A Sagração da aparência: o jornalismo de moda na Bahia. Salvador: Edufba, 2011. COSTA, Ângela Marques da; SCHWARCZ, Lilia Moritz. 1890-1914: no tempo das certezas. DE LUCA, Tania Regina. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (n)ação. São Paulo, Editora da UNESP, 1999. DE LUCA, Tania Regina. Leituras, projetos (Re)vista(s) do Brasil (1916 – 1944). São Paulo: Editora Unesp, 2011. FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.). O Brasil Republicano, Vol. 1: o tempo do liberalismo excludente: da Proclamação a República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. II Congresso Internacional Sobre Culturas 426 LEITE, Rinaldo. E a Bahia Civiliza-se...: ideais de civilização e cenas de anticivilidade em um contexto de modernização urbana: Salvador, 1912-1916. Salvador, 1996. Dissertação (Mestrado em História) — FFCH, UFBA, 1996. MARTINS, Ana Luiza e DE LUCA, Tânia Regina. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Contexto, 2008. MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista. 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II Congresso Internacional Sobre Culturas 427 MODA BRASILEIRA: DIÁLOGO COM O PROCESSO DE COLONIZAÇÃO Luis Fernando Lisboa Rodrigues163 RESUMO Esse artigo busca, a partir de uma abordagem compreensiva (CIDREIRA, 2014), trazer à tona algumas problemáticas sobre o processo de construção histórica do vestuário brasileiro e os impactos de uma herança colonial nesse trajeto. Sabendo que entre os séculos XVI e XIX o Brasil era colônia do império ultramarino português, é possível perceber que a moda usada no país tinha uma relação muito próxima com os parâmetros europeus de vestuário, principalmente vindos de Paris. Sendo assim, busca-se criar mais caminhos para investigações sobre a chamada moda brasileira. Palavras-chave: Moda. História. Brasil. Estrutura. Colonização INTRODUÇÃO Se existem, ao redor do mundo, buscas de especificidades nas produções de moda localizadas em nível nacional e regional, também há no Brasil uma reivindicação sobre o uso da expressão “moda brasileira”. Desde a década de 1990, o setor moda ocupa espaço decisivo na economia do país, recolhendo números cada vez mais expressivos. Hoje, “a indústria [...] possui 300 mil empresas formais e representa 5,5% do PIB da indústria de transformação, tendo gerado R$ 140 bilhões em 2012, segundo dados da Texbrasil (BORGES, 2014)”. Como aponta a Renata Pitombo Cidreira (2005): Atualmente, cerca de 4.391 indústrias têxteis e 18 mil confeccões registradas compõem o complexo têxtil do Brasil, sem contar o grande número de confecções informais que vem somar a estimativa de US$ 24 bilhões aproximadamente de faturamento no setor. A cesta têxtil brasileira se caracteriza, sobretudo, pela produção de fios, tecidos e confeccionados de algodão (camisetas e tecidos felpudos), chegando a exportar mais direcionalmente para a América do Norte e para Comunidade Econômica Europeia, que absorvem juntamente cerca de 67% das nossas vendas. Tal porcentagem faz com que o Brasil ocupe hoje o 21º lugar no ranking internacional dos maiores exportadores de produtos têxteis. Uma radiografia atual do setor evidencia que o mesmo é composto por 11 empresas de fibras têxteis, 700 tecelagens, 380 empresas dedicadas a acabamento, 300 163 Mestrando do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (Pós-Cultura) do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pesquisador do Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura (CNPQ). Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação (FACOM) da UFBA. E-mail: luisflisboa@gmail.com II Congresso Internacional Sobre Culturas 428 que trabalham com fiações, 3.000 malharias e 18.000 confecções (ibidem, p. 66-67). Antes de enveredar pelas articulações conceituais vale demarcar que, neste trabalho, o que se busca é uma abordagem compreensiva sobre o fenômeno moda. Dessa forma, o livro A moda numa perspectiva compreensiva (2014), da pesquisadora Renata Pitombo Cidreira, é utilizado como norte teórico no uso de tal procedimento metodológico. O posicionamento intelectual compreensivo, em linhas gerais, opõese ao paradigma positivista, refutando, portanto, a existência de um mundo real, de uma realidade exterior ao sujeito. Nesse sentido, a abordagem compreensiva afirma a interdependência do objeto e do sujeito, assinalando, desse modo, que os objetos são dependentes das características sociais e pessoais das pessoas que os observam e constituem. Postula que os fatos humanos e sociais são fatos portadores de significações veiculadas pelos atores (homens, grupos, instituições…), partes constituintes de uma situação inter-humana (CIDREIRA, 2014, p. 14). PASSADO COLONIAL E MODA BRASILEIRA Historicamente, a moda produzida no Brasil tem uma relação muito próxima com parâmetros europeus de vestuário. Com a colaboração de autores como Paul Gilroy (2001) e Sidi M. Omar (2007) apresentam-se dois questionamentos que mobilizam as argumentações teóricas dessa investigação: o colonialismo ainda encontra modos de atualizar as estruturas (WILLIAMS, 2012) da moda produzida no Brasil? Elementos da história de colonização permanecem como influências na edificação daquilo que pode ser nomeado como “moda brasileira”? De todo modo, antes de qualquer engendramento textual que busque dar conta das influências do contexto social e histórico no campo do vestuário nacional, é preciso recorrer às reflexões que dizem respeito às particularidades do fenômeno moda e suas lógicas internas de funcionamento. Por isso, é válido trazer à tona as considerações feitas por Georg Simmel, sobre a moda e o estrangeiro, no clássico texto Filosofia da Moda (2014), publicado ainda em 1905: [...] A moda é importada do exterior com particular predilecção e é muito mais apreciada dentro de um círculo, se ela não tiver surgido no seu seio; já o profeta Sofonias fala, indignado, da ostentação com a indumentária estrangeira. Na realidade, a origem exótica da moda II Congresso Internacional Sobre Culturas 429 parece favorecer com especial intensidade a fusão dos círculos em que ela se aplica; justamente por vir de fora, suscita aquela forma particular e significativa de socialização, que se inicia através da comum referência a um ponto situado no exterior. Por vezes, é como se aparentemente os elementos sociais, tal como os eixos dos olhos, convergissem para um ponto que não se encontra demasiado perto. Assim, entre os povos primitivos, o dinheiro, portanto, o valor económico sem mais, o objeto do interesse geral mais extremo, consiste muitas vezes em sinais que se importam de fora; por isso, em várias regiões (nas ilhas Salomão, em Ibo no Níger) existe uma espécie de indústria para elaborar, a partir de conchas ou de outra coisa, sinais pecuniárias que circulam como dinheiro, não no lugar de fabrico, mas nas regiões vizinhas, para onde são exportados – tal como as modas são produzidas em Paris com o simples fito de tornarem modas em qualquer outro lugar (SIMMEL, 2014, p. 30). O livro História da Moda no Brasil (2010), escrito pela jornalista Gilda Chataignier, apresenta um apanhado histórico e descritivo das diversas fases pelas quais passou o vestuário usado e/ou produzido no Brasil. Sobre a relação da vestimenta vigente no território brasileiro com sua metrópole, já no início do século XVI, a autora afirma que a colônia “começou sua história sob o signo do vermelho, cor considerada preciosa desde a Antiguidade, onipresente e de grande importância no Renascimento europeu. Para Portugal e a vizinha Espanha era o tom mais adequado e luxuoso [...] (p. 19)”. A expansão colonialista de Portugal e da Espanha trouxe para ambas as nações ibéricas uma visão mais nítida dos novos tempos. O Renascimento em Portugal (período que vai do século XIV ao XIX segundo a maioria dos historiadores) foi caracterizado, entre outros acontecimentos, pelos descobrimentos de terras ao sul do Equador (que seriam identificadas depois como América do Sul), pelo povoamento e organização das colônias ultramarinas, pela expansão do catolicismo por meio da catequese dos índios e também pelo investimento nas riquezas naturais dos lugares recém-descobertos (CHATAIGNIER, 2010, p. 21). Nos séculos XVII, XVIII e XIX, quem ditava o que era bom gosto e deveria ser usado – tanto na Europa quanto em todo mundo ocidental – era a França. “Essa realidade histórica criou por aqui o hábito de se vestir à la française. De certa forma, o brasileiro ainda hoje valoriza mais as ideias e estilos importados (da França ou de outros países) do que os aqui genuinamente desenvolvidos (BRAGA, 2014, p. 46)”. O esplendor dos tecidos de seda com que vão se vestir os [...] senhores do Brasil, nos séculos XVII e XVIII, tem uma função simbólica nos dois sentidos que acabam de lhe dar: fortalece o corpo social dos proprietários e impulsiona o comércio marítimo. Gilberto II Congresso Internacional Sobre Culturas 430 Freire [em Casa Grande e Senzala] relata inúmeras histórias e análises nesse sentido, referentes à Bahia. Ele mostra, em particular, que, mais que ao sustento, o aspecto suntuário liga-se ao adereço [...] de fato, trata-se de uma suntuosidade que representa um ato de fundação. Despesa pura, supérflua, servindo de semente: ostentação que deseja provar às nações estabelecidas do velho mundo que o que está nascendo, desempenhando um papel importante no presente, está seguro de um futuro promissor (MAFFESOLI apud CIDREIRA, 2014, p. 51). No século XIX, Paris já tinha se estabelecido como a capital internacional da moda (SOUZA, 1987) com potencial de irradiar padrões de vestimenta. Nesse contexto, a cidade dita o ritmo da moda: “com a hegemonia da Alta Costura aparece uma moda hipercentralizada, inteiramente elaborada em Paris e ao mesmo tempo internacional, seguida por todas mulheres up to date do mundo (LIPOVETSKY, 2009, p. 83)”. Até a segunda metade do século XVIII, Paris, que era então o grande centro criador de modas, enviava de tempos em tempos, para as grandes cidades europeias, pequenas bonecas vestidas com as últimas coleções. É claro que tal processo rudimentar fazia com que o resto do mundo apresentasse sempre um considerável atraso em relação à moda reinante na capital francesa. A invenção dos figurinos veio solucionar o problema. Surgido no fim do século, na Inglaterra e na França, em breve se multiplicaram, tornando-se um dos elementos indispensáveis da mulher elegante. O mais antigo de todos talvez seja The Lady Monthly, aparecido em 1798 e que logo teve rivais no Le Beau Monde e em La Bele Assemblée. [...] O mesmo acontecia com nossas publicações como a Revista Popular ou o Novo Correio de Modas, que reproduziam as admiráveis aquarelas de Anais Toudouze, fazendo uma pormenorizada descrição dos trajes. Por isso, no Brasil, a entrada do paquete inglês era esperada com sobressalto, pois junto com as notícias internacionais chegavam as regras da elegância. A crônica social de 16 de março de 1860, da Revista Popular, abre-se alvissareira com a notícia da última revolução [...] nas altas e aristocráticas regiões da moda - a imperatriz Eugênia havia abandonado a crinolina (SOUZA, 1987, p. 224). Os levantamentos históricos aqui feitos são úteis para corroborar na localização, em perspectiva histórica, do papel executado pelo continente europeu como polo difusor de tendências na moda brasileira. Reconstituir comportamentos passados ajuda a melhor compreender como determinadas instituições estão organizadas na contemporaneidade. II Congresso Internacional Sobre Culturas 431 Foi só em 1822 que o Brasil deixou de ser colônia portuguesa. Na época do Império, os cariocas andavam nas ruas como se estivessem em Londres, o que significava usar sobrecasaca e cartola pretas. Para as mulheres, a influência era 100% francesa, e até mesmo as crianças chamavam suas mães de maman164. Uma mulher elegante da época devia ter tudo importado de Paris, e [o] que não fosse francês deixava de ser imediatamente reconhecido como chic. Assim, traziam-se da França vestidos de todos os tipos (das roupas de festa às do dia a dia), sapatos, meias, espartilhos e roupas íntimas, perfumes, maquiagem (o rouge), acessórios e luvas. Na Belle Époque, uma brasileira que saísse sem luvas não seria considerada ‘bem vestida’. A sombrinha completava o conjunto. As cores eram escuras: pretos, pardos e cinzentos – como era moda em Paris (PALOMINO, 2010, p. 73). Após a Semana de Arte Moderna de 1922, a valorização do que poderia ser chamado de cultura brasileira nas manifestações artísticas começou a ser esboçada de maneira mais concreta. No entanto, vale ressaltar que “parte dos artistas envolvidos tinha estudado na Europa (especialmente em Paris) e a própria Tarsila do Amaral, em suas segundas núpcias, casou-se com um vestido assinado por um grande costureiro francês – Paul Poiret (BRAGA, 2014, p 46)”. O próprio Oswald de Andrade passava metade do ano na capital francesa. Nesse contexto, um dos principais catalisadores para que começassem a ser esboçadas modificações no vestuário brasileiro foi o clima do país. Sobre esse aspecto, o sociólogo Gilberto Freyre (1987), no livro Modos de homem & Modas de mulher, afirma: “não consta que, contra esse martírio da mulher brasileira, por uma arte tão antibrasileira de vestir e calçar, de pentear-se e de adornarse, tenham protestado os ‘Modernistas’ da célebre Semana de 22 em São Paulo (p. 106)”. Nesse livro, o autor pernambucano aborda, de maneira contundente, o impacto da colonização - e também do que chama de reeuropeização do Brasil pósIndependência da República - nos costumes, modos e hábitos de vestuário da população brasileira. O estopim foi o movimento regionalista que, irradiado de Recife na década de 20, pretendeu dar destaque positivo à cozinha do Nordeste (por meio da culinária afro-brasileira) e à medicina e (pioneiramente) à moda feita em território nacional Teve início uma valorização de elementos característicos do tropicalismo brasileiro, com eco no movimento modernista do eixo Rio-São Paulo. Os recifenses influíram decisivamente na adoção de um vestuário apropriado para o clima brasileiro, substituindo o traje europeu. Os 164 “Nota-se interessante pormenor que hoje se chamaria sociolinguístico de influência francesa sobre o brasileiro da época de Pedro II: o das próprias crianças dizerem maman em vez de mamãe (FREYRE, 1987, p. 135)”. II Congresso Internacional Sobre Culturas 432 homens deixaram de usar chapéu, e o paletó não era mais imperativo para o trabalho e o lazer (PALOMINO, 2010, p. 75). Sendo assim, compreender a moda como um braço do que se compreende como cultura brasileira (que não é vista ou interpretada aqui como detentora de apenas uma faceta) é também buscar um entendimento mais esquematizado sobre o contexto do Brasil Colônia. Nesse sentido, os processos de colonização, escravidão e diáspora deixam claro por quais motivos as culturas africanas e indígenas, por exemplo, foram colocadas à margem durante a configuração de uma estética dominante. A esta altura, é oportuno acentuar-se que, durante o século XIX, a importação, pela burguesia brasileira, de bonecas francesas, louras e róseas, para as meninas, concorreu para criar nessas meninas uma associação de ideia de beleza feminina com esse tipo antropológico de mulher. Daí, o recurso da parte de mulheres, a cabelos oxigenados ou pintados de louro e a rouges que amortecessem o moreno pálido das faces, para que parecessem róseos europeus (FREYRE, 1987, p. 33). No livro Atlântico Negro (2001), por exemplo, o autor Paul Gilroy debruça suas análises nas “relações especiais entre ‘raça’, cultura, nacionalidade e etnia que possuem relevância nas histórias e culturas políticas dos cidadãos negros do Reino Unido (GILROY, 2001, p. 36)”. No entanto, os posicionamentos e reflexões apresentados pelo estudioso ajudam a melhor perceber alguns mecanismos engendrados sobre esses conceitos na trajetória histórica do Brasil e que, consequentemente, também podem ser constatados nas análises sobre o campo da moda nacional. As noções particularmente cruas e redutoras de cultura que formam a substância da política racial hoje estão claramente associadas a um discurso antigo de diferença racial e étnica, que em toda parte está emaranhado na história da ideia de cultura no Ocidente moderno. Esta história passou a ser ardorosamente contestada em si mesma depois que os debates sobre multiculturalismo, pluralismo cultural e as respostas aos mesmos, que às vezes são desdenhosamente chamadas ‘politicamente corretas’, passaram a investigar a facilidade e a velocidade com que os particularismos europeus ainda estão sendo traduzidos em padrões universais absolutos, para a realização, as normas e as aspirações humanas (GILROY, 2001, p. 43). A partir disso, podemos contextualizar algumas pistas sobre as relações próximas entre o universo da moda brasileira e o parâmetro europeu de II Congresso Internacional Sobre Culturas 433 comportamento. O uso do texto de Gilroy (2001) manifesta uma tentativa de compreender como certos mecanismos de alteridade, oriundos do processo de desenvolvimento histórico da nação, ainda estão embutidos no funcionamento de certas estruturas do Brasil. O conceito de estrutura pode ser aqui compreendido como um caráter de sistema. “As relações sociais são a matéria-prima empregada para a construção dos modelos que tornam manifesta a própria estrutura social. Em nenhum caso esta poderia, pois, ser reduzida ao conjunto das relações sociais observáveis numa sociedade dada (LÉVI-STRAUSS, 1976, P. 13)”. Na leitura que o autor James Williams faz sobre o pós-estruturalismo propagado por Deleuze, ele afirma que uma estrutura, para o francês, “deve ser expressa em formas identificáveis atuais (WILLIAMS, 2012, p. 96)”. Já que esse processo é nomeado como “atualização” é importante ter em mente que as estruturas encontram maneiras de se tornar contemporâneas. Merece atenção, por isso, os modos como elas se movimentam para ganhar feições mais atuais. Portanto, a estrutura não tem a ver com símbolos como algo que possa ser percebido (um sinal de trânsito) e que tenha um significado (“Pare”). Tem a ver com o simbólico como um processo em que o símbolo implica um rearranjo de relações em estruturas (o novo sinal de trânsito implicando outro grupo de relações simbólicas com outros sinais é muito mais amplo) (WILLIAMS, 2012, p. 90). No caso da moda brasileira, a impressão é de que as estruturas estão sempre em busca de novos modos de renovar essa relação com comportamentos ainda balizados por uma referência externa no momento da criação. É claro que existem também iniciativas que operam na contramão de um pensamento dominado. No entanto, de maneira geral, há sempre um fantasma do passado colonial que olha para fora com o intuito de angariar melhores resultados simbólicos (como numerosas inserções na imprensa especializada de moda, por sinal, cada vez mais distante dos possíveis exercícios de crítica) e econômicos (expressivas vendas de peças das coleções de marcas nacionais)165. Mesmo depois de o Brasil abandonar o seu vínculo com Portugal, ainda: 165 Análise: Moda Brasileira Ainda Depende de Estrangeirismo. Crítica publicada no jornal Folha de S. Paulo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/10/1698422-analise-modabrasileira-ainda-depende-de-estrangeirismo.shtml. Acessado em 26 de outubro de 2015. II Congresso Internacional Sobre Culturas 434 [...] em 1914, a Europa tinha sob seu domínio aproximadamente 85% do planeta em formas de colônias, protetorados, dependências, domínios e commonwealths (comunidades de nações). Dessa forma, fica evidente o motivo pelo qual o estudo do colonialismo e suas formas sutis de dominação econômica, política e cultural segue pertinente para entender e abordar a persistência de relações desiguais de poder em nosso mundo (OMAR, 2007). Na revista bibliográfica que faz em Los estudios post-coloniales: una introducción crítica (2007), o autor Sidi M. Omar afirma que “a teoria pós-colonial foi criada no momento em que os colonizados começaram a refletir sobre a tensão com a condição colonial em seu conjunto e a expressar essa preocupação em uma mescla vibrante e poderosa do idioma imperial e as expressões locais (p. 35)”. Além disso, é importante citar que esse campo de estudos é usado “para indicar as diferentes contestações às incursões coloniais e seus legados contemporâneos nas nações e comunidades antes e depois da independência (OMAR, 2007, p. 37)”. Como já apresentado nesse trabalho, um tipo de parâmetro foi escolhido como dominante dentro de uma lógica histórica (e, por conseguinte, no engendramento de uma estrutura). Por isso, usamos as culturas africanas como importante exemplo para assinalar a relevância dos modos de resistências de manifestações culturais subjugadas. A história do Atlântico negro, ziguezagueado pelos movimentos de povos negros – não só como mercadorias mas engajados em várias lutas de emancipação, autonomia e cidadania –, propicia um meio para reexaminar os problemas de nacionalidade, posicionamento [location], identidade e memória histórica (GILROY, 2001, p. 59). É fato que o continente africano ainda é visto por alguns eixos produtivos da moda “como restrito e simplificado por uma compreensão exclusiva da escravidão. O olhar que permanece, assim, é o olhar congelado do século XIX, com o fenômeno da abolição (LODY, 2015, p. 15)”. Porém, existem ações que visam resgatar essa autoestima, do ponto de vista da imagem. O uso do turbante, signo em geral associado às vestimentas de fé, é um bom exemplo disso. Ele ganhou muito espaço na busca de mulheres negras por dialogarem com suas outras matrizes culturais e como meio de alargar os sufocantes padrões estéticos que as rodeiam. Por isso, depois de falar sobre aspectos da colonização, hierarquias culturais e resistência, é importante resgatar Cuche (1999): II Congresso Internacional Sobre Culturas 435 [...] Nesse tipo de análise, é necessário evitar as interpretações redutoras demais, como a que supõe que o mais forte está sempre em condições de impor pura e simplesmente sua ordem (cultural) ao mais fraco. Na medida em que a cultura real só existe se produzida por indivíduos ou grupos que ocupam posições desiguais no campo social, econômico e político, as culturas dos diferentes grupos se encontram em maior ou menor posição de força (ou de fraqueza) em relação às outras (CUCHE, 1999, p. 144). De qualquer forma, mesmo que já abordado de certa maneira neste trabalho, é preciso ter em mente que “se todas as culturas merecem a mesma atenção e o mesmo interesse por parte do pesquisador, isto não leva à conclusão de que todas elas são socialmente reconhecidas como de mesmo de valor (CUCHE, 1999, p. 144)”. REFERÊNCIAS CHATAIGNIER, G. História da moda no Brasil. São Paulo: Estação das Letras, 2010. CIDREIRA, Renata Pitombo. Os sentidos da moda: vestuário, comunicação e cultura. 2ª edição. São Paulo: Annablume, 2005. ________________________. A moda numa perspectiva compreensiva. Cruz das Almas/BA: Editora UFRB, 2014. CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 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II Congresso Internacional Sobre Culturas 437 TESSITURAS DA FÉ: SACRALIDADE S ESTETIZAÇÃO DO VESTUÁRIO NAS FESTIVIDADES À BOA MORTE Vanhise da Silva Ribeiro166 RESUMO Baseando-se na percepção dos aspectos estéticos e simbólicos do vestuário da Irmandade da Boa Morte de Cachoeira, desenvolve-se um estudo de cunho antropológico, sob a lente da moda, enquanto modo de vida, no sentido de assimilar os comportamentos, códigos e/ou símbolos processados, apreendidos e (re)significados por essa devoção religiosa, que há quase dois séculos promove, uma das mais expressivas manifestações culturais do Recôncavo Baiano, a Festa da Boa Morte. A sensibilização do olhar para este vestuário que paramenta, significa e expressa a cultura desta irmandade, visa desenvolver um diálogo mais fértil entre cultura e moda, revelando as tradições, os rituais, as memórias, os aspectos sociais e afetivos, as estéticas e, em certa medida, a artisticidade dessa devoção. Palavras- chaves: vestuário, cultura, moda, ritual, estética, boa morte. No bojo dos estudos culturais, o privilégio dado ao entendimento das diversas formas de cultura, apreendida em uma dimensão mais ampla, ganha ainda mais importância na contemporaneidade, na medida em que problematizações da cultura perpassam os domínios do popular, salientando as mais variadas e complexas formas de expressão da cultura de um dado contexto social. Nesse sentido, a pertinência dos estudos voltados para os aportes culturais atrela-se ao fato de que a produção cultural evidencia, em grande medida, as construções simbólicas e/ou identitárias, revelando as diversas práticas e formas de expressão de uma cultura. Muito embora o vestuário tenha, por muito tempo, sido alvo de concepções simplistas, podemos afirmar que vestir o corpo implica, dentre outras acepções, atribuir sentido, compartilhar códigos, atuar no campo das simbologias, reforçar condutas e comportamentos, expressar cultura. Mais do que um esforço em problematizar a moda vestimentar enquanto um dado da cultura, buscamos nos aproximar da sua dimensão formativa e, em parte, da sua dinâmica, demonstrando sua estreita correlação com as experiências individuais e coletivas processadas há décadas por uma corporação religiosa, formada exclusivamente por mulheres negras. 166 Mestranda Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais: Cultura, Desigualdades e Desenvolvimento da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Email: hiseribeiro@yahoo.com.br II Congresso Internacional Sobre Culturas 438 Para nos aproximar da dimensão cultural da moda dessa confraria é necessário compreendê-la no corpo a corpo da sua práxis, na correspondência com as realizações materiais e espirituais produzidas. Seja num plano concreto ou imaterial da cultura, a compreensão da indumentária deve se apoiar nas relações, nos pontos de vista e nos esquemas de interpretação do mundo social, do modus operandi como é concedida, produzida, experimentada e (re)significada. É no exercício prático da observação, que o pesquisador vivencia de forma prolongada o cotidiano dos sujeitos pesquisados e deles, busca absorver seus modos de existência, seus conhecimentos, sua cultura, suas habilidades e condutas. É a partir dessa vivência em campo que se busca visualizar aspectos da cultura popular, sob a lente da moda como modo de vida167. Para isso, é imprescindível distanciar desta análise da recorrente noção de moda enquanto novidade, fenômeno efêmero, que alude a um gosto transitório, passageiro. Por isso, cabe aqui tecer algumas considerações que evitem a restrição do conceito de moda às dinâmicas de mercado, consumo e inovação. Para Cidreira e Ribeiro (2015): Muito embora a construção de tal conceito nos remeta ao universo esplendoroso das passarelas, do mercado e da mídia, que amplia e redimensiona o seu poder de alcance, a Moda não deixa de estar atrelada a uma tradição, a um hábito, um costume, sobretudo a moda vestimentar, por sua relação estreita com o corpo humano. A vestimenta é, por assim dizer, o invólucro do corpo e, como tal, dá a este uma forma ideal. (CIDREIRA; RIBEIRO, 2015, p.55). Corpo e vestimenta supõe uma estreita correlação, que vai além das noções comumente difundidas, que seriam conforme Cidreira (2005): pudor, proteção, ornamentação. Para Macluhan (1964, p.140), o vestuário está implícito na nossa cultura corporal, chegando a ser considerado como extensão de nossa pele, mecanismo que controla termicamente o nosso corpo, mas que também pode ser visto "como um meio de definição do ser social". Para Stralibrass (2004) a roupa tem o poder de materializar presenças, de carregar a forma de quem a vestiu, o cheiro, os desgastes, as manchas, servem também como meios de reanimar memórias, épocas, circunstâncias, aspectos sociais e também afetivos. "Ao pensar nas roupas como modas passageiras, nós expressamos apenas uma meia-verdade. Os corpos vêm e vão: as roupas que receberam esses corpos sobrevivem” (STRALIBRASS, 2004, p.10). 167 Ver: A moda como modo de vida. [consta nas referências] II Congresso Internacional Sobre Culturas 439 Por outro lado, conforme aborda Malcolm Barnard (2003), a moda relaciona-se com um “fazer”, uma atividade social consubstanciada, que se reflete na relação que constantemente estabelecemos entre nós e entre as coisas, entre o corpo e a vestimenta. Segundo Barnard (2003, p.24). “a moda e a indumentária podem ser as formas mais significativas pelas quais são construídas, experimentadas e compreendidas as relações sociais entre as pessoas”. Portanto, reconhecemos nas cenas do cotidiano e no ato corriqueiro de vestir o corpo e de significá-lo, a capacidade expressiva do vestuário e a sua correlação com os costumes, com os valores, memórias, afeições e estilos de vida. Para Mafesoli (1996, p. 173), o entrelaçamento entre corpo e roupa resulta numa forma única, ou melhor, num modo peculiar de ser "(...) o vestuário e os costumes estão ligados. É nesse sentido que a forma faz o corpo social". Dentro dessa perspectiva, a análise do vestuário da Boa Morte deve assimilar os comportamentos, códigos e/ou símbolos processados, apreendidos e (re)significados nas festividades à Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira168, trazendo à baila a relação entre sacralidade e estetização do vestuário, na dinâmica da ordem sociocultural processada por esta irmandade. Sobre essas instituições religiosas podemos afirmar que se tratam de reminiscências do catolicismo barroco. Para Lessa (2012, p.55), "as confrarias são associações religiosas nas quais se reuniam os leigos do catolicismo tradicional". Divididas em Irmandades e Ordens Terceiras169, ambas são de origem medieval. Segundo Reis (2012, p.49), estas "existiam em Portugal desde o século XIII pelo menos, dedicando-se a obras de caridade, voltadas para os seus próprios membros ou para pessoas carentes não associadas". Longe de representar uma organização religiosa restrita a Portugal, Lucilene Reginaldo (2011, p.81) afirma que as confrarias religiosas espalharam-se por todo território, inclusive as confrarias de negros, que segundo a autora, "foram criadas em todas localidades que concentraram populações de origem africana". No Brasil, as irmandades fomentaram o projeto missionário do catolicismo ibérico, que dentre outras funções, buscava segundo Lessa (2012, p.59) "manter o 168 Tendo em vista a peculiaridade das manifestações religiosas e culturais das irmandades existentes na Bahia que cultuam a Boa Morte é preciso elucidar que esta pesquisa trabalhará especificamente com a Boa Morte de Cachoeira, atendo-se aos signos e ritos professados por esta confraria. 169 Segundo Reis (2012), as Ordens Terceiras seriam ordens religiosas conventuais (franciscana, dominicana, carmelita) que culminaria no seu maior prestígio. II Congresso Internacional Sobre Culturas 440 status quo, ajudar o Estado para que o sistema colonial escravista desse certo e o negro aceitasse a sua condição de escravo". As irmandades negras por sua vez, souberam utilizar a seu favor o uso desses espaços, conquistando uma certa "cidadania" e promovendo de modo consciente ou não, práticas que possuem fortes referências com aspectos da sua cultura. A noção de morte possui grande correspondência com a cultura africana, mas também se trata de um conceito caro aos portugueses, que em geral, sempre se encarregaram de preparar bem seus mortos. Segundo Reis (2012) há nesse sentido grande proximidade entre africanos e portugueses. Tanto na África como em Portugal, os vivos _ e quanto maior o número destes melhor_ muito podiam fazer pelos mortos, tornando sua passagem para o além mais segura, definitiva, até alegre, defendendo-se de serem atormentados por suas almas penadas. Espíritos errantes de mortos circulavam tanto em terras portuguesas como africanas. Para protegerem-se e protegerem seus mortos desse infeliz destino, portugueses e africanos produziam elaborados funerais, o que os tornava mais próximos uns dos outros do que, por exemplo, os católicos dos protestantes, estes últimos adeptos de funerais ritualmente econômicos (REIS, 2012, p. 90). Na esteira dos sistemas de crença professados pelos portugueses a noção de bem morrer encontra forte relação com o tipo de morte experimentada pela Virgem Maria, amplamente cultuada em Portugal. O termo, Boa Morte refere-se segundo Lessa (2012, p.70), "à morte e subida aos céus de Nossa Senhora". A virgem, que teve a vida livre de pecado, não passou por nenhum conflito espiritual. "Logo após a morte, seu espírito ascendeu para a glória, para a vida eterna" (LESSA, 2012, p.71). Como tradição do cristianismo ibérico, o culto Mariano atravessou o atlântico. No Brasil, segundo Lessa (2012, p.71) "a devoção foi apropriada pelos negros, que após tantos maus tratos aspiravam uma boa morte, espécie de compensação e de libertação de uma vida sofrida e oprimida". Nesse sentido, podemos afirmar o intercâmbio cultural a que o culto à Virgem Maria está ligado. A devoção à Santíssima Virgem passou a ser popularizada, ganhando status de uma manifestação religiosa de grande vulto, bastante alegre e festiva. A Irmandade da Boa Morte de Cachoeira surge no bojo dessa prática do catolicismo popular. Instituição com quase dois séculos de existência, a devoção de suas adeptas à Maria teria, possivelmente, surgido nas primeiras décadas do século II Congresso Internacional Sobre Culturas 441 XIX na Igreja da Barroquinha. Tratava-se de uma devoção católica, mas também fiel aos orixás e as tradições de matriz africana. Nas irmandades, segundo Lucilene Reginaldo (2011, p.38), "a aceitação do catolicismo não significou, de modo algum, o abandono das antigas crenças e costumes tradicionais". É assim que nas primeiras décadas do século XIX, estas mulheres notabilizavam-se como pioneiras na fundação do primeiro candomblé170 na Bahia. Sobre a notoriedade e distinção dessas mulheres, alguns registros históricos evidenciam que esse corpus feminino gozava de certa autonomia social, econômica e religiosa. Evidenciando essa "elite" feminina nagô-iorubá, Campos (2001) assim descreve essas mulheres: "eram aquelas criaturas, negras do partido alto, endinheiradas, pimponas, as mais moças cheias de dengues e momices. Estonteava a indumentária custosa que então exibiam, a ourama profusa que traziam. Traziam a tiracolo uma fita larga de cetim branco, bordada a ouro" (CAMPOS apud SILVEIRA, 2006, p. 448). O comportamento social possui estreita relação com o vestuário, pois embora sintetize determinados contextos socio-históricos e culturais, reflete também singularidades presentes no modo de ser e de viver dos indivíduos. As devotas dessa confraria organizam a quase dois séculos as festividades à Maria. Em Cachoeira a Festa da Boa Morte é um dos maiores eventos culturais e religiosos do recôncavo baiano. O vestuário é um espetáculo à parte, sua esteticidade e beleza cumpre ritos significativos dentro da concepção religiosa dessa confraria, dentre eles: A Procissão de enterro de Nossa Senhora, a qual o método etnográfico, busca dar conta: "Ao final da cerimônia litúrgica, celebrada pela autoridade católica, a imagem de Nossa Senhora repousa num esquife a imagem de Nossa Senhora. Pele clara e suave, cabelos naturais171, castanhos e volumosos, olhos fechados, esse é o semblante da Virgem Mãe, a sua feição mais parece preservar o frescor da vida como se estivesse em um sono sereno, porém profundo. A virgem está vestida com uma túnica branca e usa um manto de cor púrpura, que possui delicados bordados com ramagens de flores e pedrarias. Ao seu redor, mulheres negras de idade avançada, fitam a imagem da santa; suas mãos seguram tochas e nelas, as chamas das velas que pouco a pouco são consumidas, se 170 Segundo Silveira (2006), era denominado Ìyá Omi Àsè Àirá Intilé. A imagem da virgem cultuada na Boa Morte nos dias de Anúncio da Morte, no Enterro e no dia da Glória é uma imagem que possui cabelos naturais, característica do Catolicismo Barroco, que enfatizava o aspecto dramático, emocional e estético da iconografia sacra. 171 II Congresso Internacional Sobre Culturas 442 encarregam de iluminar a vigília do corpo presente, onde por hora cânticos e orações clamam solenemente por uma transição tranquila e por luz eterna à virgem As vestes dessas senhoras transmitem o rigor de um momento solene. Saias plissadas, batas, panos da costa e lenços presos na cintura com delicados detalhes em rechilieu. Este dia, em especial usa-se poucos adereços, em geral contas brancas e prateadas. Encobrindo suas cabeças está o bioco, lenço branco que acompanha o contorno de suas faces até o arremate final, dado logo abaixo do queixo. O uso do acessório parece simbolizar recato, respeito, comedimento. Na composição do traje é perceptível um contraste pela alternância entre o preto e o branco, também presente no piso da capela. Vistas do alto e, sob o meu ângulo de visão, busco em uma fotografia capturar a expressividade desse momento. A estética da cena, que mais parece um tabuleiro de xadrez, se revela. Os movimentos dos corpos sobre o tabuleiro se posicionam numa configuração significativa: ao centro a peça mais enigmática, a Rainha e em torno dela os peões, ou melhor, uma irmandade de mulheres que irrestritamente protegem e zelam pela virgem e por sua dormição. Preparadas para saírem às ruas em cortejo, as mulheres se enfileiram no interior da capela. Mais atrás, as irmãs da comissão da festa cobrem a imagem da virgem com um véu e se encarregam por conduzir o esquife até a rua para darem início a procissão que anunciará a Morte Gloriosa da Virgem Santíssima. Na porta da capela já é possível notar um aglomerado de fotógrafos, cinegrafistas e turistas, buscando os melhores lugares para se posicionarem. Os sons dos cliques das máquinas fotográficas são uma constante. O assédio à essas mulheres, reverenciadas por suas práticas culturais e por sua estética singular é perceptível durante toda festa, principalmente durante as procissões. O esquife é então passado pelas irmãs para as mãos dos devotos que conduzirão a santa durante a procissão, que tem como ponto inicial e final a Capela de Nossa Senhora da Boa Morte. Para a saída da procissão é ainda hasteado sobre a virgem, um pálio172, espécie de toldo confeccionado com tecido nobre, carregado por quadro pessoas. A organização espacial do cortejo segue a seguinte ordem. À frente um corroinha segura a imagem da cruz, logo atrás, de braços dados com cônego da cidade, as quatro irmãs integrantes da comissão da festa formam uma linha de frente. O percurso é indicado por elas e acompanhado pelas demais irmãs, juntas, formam um bloco esteticamente distinto e coeso em sua performance pelas ruas da cidade. Há neste grupo também as noviças ou como são 172 Reis (2012) aborda o uso do pálio ao descrever a obra de Jean B. Debret [Animada procissão do Viático] que retrata uma espécie cortejo, a pomposa procissão do viático, em que havia a saída de uma comissão da igreja, composta pelo pároco, clérigos, soldados e músicos em direção a casa do moribundo para levar comunhão eucarística nos seus últimos suspiros de vida (o autor relata que haviam pelo menos três tipos de cortejos do viático). II Congresso Internacional Sobre Culturas 443 comumente chamadas, irmãs de bolsa, mulheres recém iniciadas e, que por isso, se vestem diferentes das veteranas. Seus trajes são exclusivamente brancos e, no cortejo, suas posições são atrás das irmãs mais velhas nessa irmandade. Nessa configuração, a imagem da virgem vem logo depois, posiciona-se em meio aos fiéis, são eles que a carregam sobre os ombros e a aclamam por diversas vezes. Por último, acompanhando o cortejo uma Filarmônica com aproximadamente 30 músicos. Em meio a esse aglomerado de pessoas é possível ser tocado pelo silêncio que acompanha os momentos iniciais do cortejo e que domina o espaço público. Aos poucos a marcha fúnebre passa a ser tocada pela Filarmônica, o tom é de pesar, ouve-se a trompa, o rufar dos tambores, um concerto compassado e harmônico de instrumentos que se alia ao som dos sinos, que do campanário da Igreja da Matriz, dobram fúnebres com a passagem da procissão. O toque dos sinos é agudo e pausado e, para quem acompanha a marcha, a batida estrídula dos sinos é sentida no corpo. Em determinados momentos, as irmãs acompanhadas pelos fiéis entoam cânticos, solicitando o desejo de comunhão com cristo e de bênçãos à missão que cumprem a cada ano. O avanço da procissão pelas ruas da cidade, se dá a passos lentos e comedidos. À luz de velas as irmãs vão abrindo caminho e ratificando o tom fatídico da procissão: O enterro de Nossa Senhora. Suas feições são ponderadas e toda gestualidade coaduna com o rigor do ritual fúnebre. As velas iluminam o caminho e as faces de suas portadoras. São as irmãs que dão forma a imagem conceitual desse cortejo, que nos permite diversos olhares e considerações, chegando a evocar percepções, identificações, pertencimentos ou mesmo a ideia do que ter uma experiência, noção tão cara à consumação da arte. Considero esta uma experiência, uma obra viva da cultura, sentida de forma autêntica a cada passo desse cortejo (Trecho da observação participante feita no dia 14/08/2016). Sobre essas mulheres, que a cada ano promovem à devoção mariana e com ela a multiplicidade de símbolos e signos que fazem parte da sua estética, podemos dizer que, fervorosas em suas crenças e enérgicas nos papéis que desempenham para nutrir a amplitude da festa, essas mulheres não deixam de lado as suas vaidades, querem estar bonitas, bem vestidas e enfeitadas. Querem que a festa seja também um momento sublime de beleza e contemplação. Portanto, a noção de moda como modo de vida, nos auxilia a encontrar as linhas mestras dessa tessitura, de acompanhar seus pontos correntes, suas trilhas e seus enlaces. Para isso é preciso olhar em perspectiva, perseguir a linguagem sensível, percebendo os detalhes que meticulosamente contribuem para inteireza do todo. II Congresso Internacional Sobre Culturas 444 REFERENCIAS CARDOSO, Ruth C. L. (org.). A Aventura Antropológica: Teoria e Pesquisa. Eunice R. 4a. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. CASTRO, Armando Alexandre Costa de. 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II Congresso Internacional Sobre Culturas 445 ANTROPOLOGIA E MODA: REFLEXÕES A PARTIR DE UMA DESIGNER DE ACESSÓRIOS173 Luana Nascimento Vieira174 Resumo Este trabalho apresenta o funcionamento de uma pequena empresa de moda a “Andrômeda Acessórios”, através do processo de criação, confecção e circulação da artista/designer Ellen Trindade. Partindo de uma abordagem etnográfica realizo uma imersão neste universo de significações culturais que a moda representa no intuito de abrir novos horizontes de investigações para a Antropologia. Por meio de uma imersão em campo associada a uma reflexão teórica acerca da história da moda pelos autores Lipovetsky e Barthes, pelo embasamento literário pautado na “agência dos objetos” de Tim Ingold, na antropologia do cotidiano de Thales de Azevedo e na abordagem de Roberto DaMatta sobre a “casa” e a “rua”, foi possível correlacionar Antropologia e Moda e estabelcer reflexões que aproximem estas áreas. Palavras-chave: Moda. Antropologia. Criação. Confecção. Circulação. INTRODUÇÃO Quando penso nos habitantes das grandes capitais metropolitanas e suas manifestações corriqueiras e não corriqueiras me vem à mente alguns questionamentos relacionados ao vestir, ao criar, a estética e ao comportamento. O primeiro é que não consigo imaginar transeuntes desnudos pelas cidades. Dentro de um universo privado, da casa, as pessoas também evitam expor seus corpos completamente, escolhendo mesmo que de modo menos seletivo, algo para vestir. Embora a moda ainda seja pouco explorada enquanto objeto de pesquisas científicas não posso deixar de afirmar que não tem como pensar em sociedades sem roupas, acessórios ou adereços, estando aí localizada a sua primordial relevância analítica. Se todas as pessoas têm algo para vestir, proteger o corpo, utilizar, destacar, afirmar, envaidecer e pontuar identidades é porque têm também pessoas que estão criando, pensando, confeccionando e produzindo roupas e acessórios que compõem os tecidos sociais vestidos. A relação entre o criar e o vestir é o desdobramento deste trabalho que tem como ponto de partida minha monografia que se debruça sobre a relação entre a moda e a antropologia a partir de um trabalho etnográfico realizado com uma designer de acessórios da cidade de Salvador. 173 Trabalho apresentado no II Congresso Internacional sobre Culturas, realizado entre os dias 14 e 15 de novembro de 2016 na Universidade Federal da Bahia. 174 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFBA, pesquisadora bolsista da Fapesb, email: luananascimento.vieira@gmail.com II Congresso Internacional Sobre Culturas 446 A escrita monográfica partiu de uma análise mais microscópica pautada no acompanhamento da trajetória profissional da designer de Moda Ellen Trindade, desde seu processo criativo até à comercialização de seus produtos (acessórios). Seu cotidiano está intrinscecamente relacionado às suas criações, já que sua casa é também seu principal local de trabalho. O modo de criação, produção e comercialização da Andrômeda Acessórios possui um protagonismo que não acompanha o sistema de produção de moda globalizado pois em sua proposta nota-se um movimento de contracultura da tendência homogeneizante do mercado global. Sua produção em pequena escala e preocupada em gerar conceitos contestatórios aos códigos sociais “normativos” me fez pensar se a moda pode ser apenas reduzida a um universo de frivolidades. No tempo em que estive em campo, entre maio de 2015 à maio de 2016, observei que a Andrômeda não é a única marca de produção em pequena escala em Salvador que leva o trabalho para além da finalidade comercial. Inclusive boa parte desses criadores e criadoras mapeados podem constituir uma rede de designers que compõem uma produção mais alternativa na cidade, pesquisa que está atualmente em andamento no mestrado de Antropologia da Ufba. Para esta apresentação, porém, o enfoque está no trabalho da Ellen, desde seu processo criativo à comercialização e as possíveis reflexões que foram levantadas a partir daí, ou seja, como se define a moda enquanto debate antropológico. ANTROPOLOGIA E MODA O processo de construção de um trabalho etnográfico tem como etapa metodológica primordial o trabalho de campo. Este, permite que o pesquisador “esteja lá”, que realize suas próprias análises e talvez perceba nuances até então não percebidas podendo contribuir assim para o enriquecimento analítico de um universo de pesquisa. Antes disso, porém, se faz necessário sistematizar a produção de um saber a partir da leitura teórica direcionada a temática a ser desenvolvida, sendo esta a primeira etapa metodológica fundamental. O presente trabalho é classificado enquanto uma pesquisa etnográfica, compreendendo a etnografia segundo a definição de PEIRANO (1995, p. 41): II Congresso Internacional Sobre Culturas 447 [...] o estreito vínculo entre teoria e pesquisa na antropologia, demonstrando a tese de que a pesquisa etnográfica é o meio pelo qual a teoria antropológica se desenvolve e se sofistica quando desafia os conceitos estabelecidos pelo senso comum no confronto entre a teoria que o pesquisador leva para o campo e a observação entre os nativos que estuda [...] A etnografia então não configura apenas num método pautado na observação participante, nem somente numa forma de escrita, em que o autor ou autora traduz as vivências compartilhadas em campo, mas também numa forma de realizar um diálogo entre a teoria e a prática de campo. Um pouco do que o que pesquisador possui de bagagem teórica e do que emerge no campo enquanto reflexão para uma teoria já existente ou quem sabe até para a produção de uma nova teoria, nativa ou não nativa. Como este trabalho correlaciona duas áreas de interesse a Antropologia e a Moda tratarei agora dos principais teóricos que conduziram a investigação. O autor Roland Barthes (1979) contribuiu para o entendimento da relação entre pessoa-objeto a partir de uma interpretação do sistema de moda diante do consumo não calculado e desenfreado pelo desejo nas sociedades modernas. O desejo aqui, é imbutido nos objetos, afinal não é necessariamente o objeto que se consome, mas o nome, a marca, a assinatura que está por trás deste, configurado símbolicamente e constituído por significante e significado. Algumas ideias elaboradas pelo sociólogo Lipovetsky (1989) em sua obra “O império do efêmero” contribuíram para a definição de moda. Mais especificamente ao se contrapor às teorias dominantes relacionadas ao tema no sentido de não evidenciar as rivalidades de classes enquanto o centro de justificação das variações incessantes do fenômeno. De fato as rivalidades de classe existiram e ainda existem, são influentes, porém as mudanças constantes passaram a ocorrer muito mais devido a um novo paradigma do mundo moderno: a valorização do indivíduo em relação ao coletivo; “do desejo de afirmar uma personalidade própria que se estruturou ao longo da segunda metade da Idade Média nas classes superiores.” (LIPOVETSKY, 1989, p. 59). O que possibilitou o surgimento deste fenômeno no final da Idade Média nessa perspectiva, foi a valorização do Novo, das novidades, do momento presente, do “moderno” em detrimento da exaltação do passado e do tradicional; assim com a expressão da individualidade. II Congresso Internacional Sobre Culturas 448 A definição de moda cunhada por Ellen, a interlocutora desta pesquisa, dialoga com o que foi colocado pelo autor. Para ela moda é uma forma de expressar suas ideias, sentimentos e posicionamentos políticos, ultrapassa os limites exclusivos da venda. Existe um desejo em gerar conceitos, em questionar comportamentos e modos de pensar, o que fica evidente na última pulseira lançada pela Andrômeda, que ao invés de ter letras esperadas, tais como: fé, dinheiro, paz, saúde ou amor, tem escrito “puta”. Esses objetos então são pensados e confeccionados enquanto mediadores de conduta, de atitude, estilo e posicionamento político. No exemplo tratado questiona o papel da mulher rebatendo a ideia da “bela, recatada e do lar.” Em relação ao debate antropológico emerge ao longo do trabalho de campo ao perceber como os acessórios Andrômeda são dotados de agência. Para embasar esta percepção reitero o contraponto que Ingold (2012) fez ao modelo hilemórfico da criação. O qual está pautado num modelo fixo de pensar como as coisas são feitas e usadas analisando-se principalmente o produto final produzido e a agência de quem os produz. Segundo INGOLD (2012, p. 26): [...] Na história subsequente do pensamento ocidental, esse modelo hilemórfico da criação arraigou-se ainda mais, mas também se desequilibrou. A forma passou a ser vista como imposta por um agente com um determinado fim ou objetivo em mente sobre uma matéria passiva e inerte [...] O objetivo de Ingold ao se contrapor a este modelo é dar relevância a todo o processo envolvido no momento de criação, inclusive aos próprios objetos através dos fluxos e transformações dos materiais. Compartilhando da noção de que o processo é importante na análise de construções criativas que me propus a compreender todo o processo criativo da marca, a confecção, as vendas e os possíveis desdobramentos que estas etapas englobam incluindo as relações sociais. Ellen encara seus acessórios muito mais como coisas no sentido de Ingold, do que como objetos, “a coisa, por sua vez, é um ‘acontecer’, ou melhor, um lugar onde vários aconteceres se entrelaçam” (INGOLD, 2012. p. 29). Ao confeccionar seus acessórios, Ellen coloca um pouco dela, suas relações, experiências de vida, inspirações e referenciais estéticos, e pretende compartilhar tudo isso com seus consumidores. II Congresso Internacional Sobre Culturas 449 Essa ideia da relação estabelecida entre Ellen e seus acessórios, e dela com seu público através da circulação desses objetos-coisas, pode ser compreendida pelo que Ingold (2012, p.29) explanou: [...] A coisa tem o caráter não de uma entidade fechada para o exterior, que se situa no e contra o mundo, mas de um nó cujos fios constituintes, longe de estarem nele contidos, deixam rastros e são capturados por outros fios noutros nós. Numa palavra, as coisas vazam, sempre transbordando das superfícies que se formam temporariamente em torno delas [..] Seus acessórios vazam, não em suas formas ou matérias, mas ao serem utilizados por outras pessoas que carregam sentimentos e ideias elaborados por Ellen. Pode-se afirmar então, a partir daí, que os objetos-de-moda da Andrômeda têm agência, “se as pessoas podem agir sobre os objetos que as circundam, então, argumenta-se, os objetos ‘agem de volta’ e fazem com que elas façam, ou permitem que elas alcancem, aquilo que elas de outro modo não conseguiriam.” (INGOLD, 2012, p. 33). É através dos acessórios que Ellen alcança outras pessoas, as atinge de alguma maneira ao adquirir ou ganhar novos sapatos, colares, bolsas ou pulseiras. Seus acessórios configuram uma espécie de intermediação simbólica entre Ellen e as possíveis relações estabelicidas com seu público consumidor que é composto por boa parte de seus amigos. As possibilidades dessas pessoas serem afetadas por esses objetos são infinitas: podem representar um presente especial que será sempre guardado, ou voltando a pulseira com as letras “puta”, uma forma de posicionamento político e de gênero. CRIAÇÃO, CONFECÇÃO E CIRCULAÇÃO Antes de adentrar em como se deu a investigação acerca do processo da marca Andrômeda Acessórios devo explicitar como esse trabalho foi realizado. A metodologia utilizada para a elaboração do texto monográfico foi a pesquisa qualitativa através da observação participante. Apesar de não ter um contato diário com minha interlocutora ao longo de um ano de pesquisa, não passava nem um mês que não a encontrasse e participasse de seu cotidiano profissional. Os encontros foram em sua casa-ateliê, no bairro de Amaralina, II Congresso Internacional Sobre Culturas 450 nas ruas da cidade, nas lojas do centro que Ellen frequenta para comprar o material de confecção dos acessórios ou nos eventos de Gastronomia e Moda que a Andrômeda participa, tais como A Feira da Cidade ou Festival Foodstock. Sempre estabelecendo conversas, observando as interações sociais com fornecedores, colegas trabalho, consumidores e anotando as relevâncias no caderno de campo. Utilizei também em alguns momentos, em sua casa, a entrevista semiestruturada com a ferramenta do gravador para posterior rememoração através dos dados transcritos. Além disso, realizei registros fotográficos tanto na casa-ateliê quanto na Feira da Cidade que contribuíram enquanto ferramenta metodológica para o detalhamento da escrita etnográfica. A abordagem etnográfica realizada tem como foco a vida profissional de Ellen Trindade, uma pessoa mergulhada em relacionamentos sociais que a configura enquanto ser pensante, criativo e artístico. Através destes pude perceber uma rede maior, um grupo de pessoas que produzem moda de forma semelhante à Andrômeda. O modo de pensar da Ellen está então inserido numa representatividade maior, coletiva, de um grupo que vê a moda não apenas como um meio de comercialização mas também como um instrumento de comunicação sociocultural. Ellen reivindica a moda enquanto uma forma de arte, e por conta disso se auto define designer/artista. Trabalhar com uma pessoa que tem a arte como meio de vida se torna relevante ao concordar com o que (GEERTZ, 1997, apud SOILO, 2012, p.74) colocou: [...] A arte não se torna um “espelho” dos acontecimentos, nem uma forma de manter e definir as relações sociais, mas a materialização de como se pensa, de uma forma de viver construída a partir do sentimento que o social proporciona [...] A moda através da Ellen toma uma dimensão que amplia e diversifica as noções de lucro, luxo, exploração, desperdício e futilidade que são muitas vezes atribuídas ao fenômeno. Não nego que existam todas essas situações implicadas, porém não é o caso em questão. Dentro desse universo lúdico e inescapável, existem pessoas criando não apenas com a finalidade do lucro excessivo ou exploratório. No caso de Ellen, ela vê a moda como um modo de expressão, como uma forma de vida e a Andrômeda como uma extensão de si mesma, na medida em que sentimentos, comportamentos e posicionamentos políticos em seus produtos. II Congresso Internacional Sobre Culturas expressa 451 Segundo ela, seu processo criativo está cada vez mais distanciado do universo da Moda, das revistas especializadas, dos estilistas que estão evidência, das modelos e dos lançamentos dos grandes desfiles. Ellen tem se inspirado mais nos trabalhos de arte contemporâna, em colagens, no grafitte, enfim, em outros lugares. Concluo então que para ela fazer moda é de certa forma estar num limiar entre seguir tendências, uma exceção que segundo ela ocorre quando necessita aumentar as vendas, e criar tendências, compreender e absorver o que está no gosto das pessoas e devolver esse gosto apropriado às suas criações particulares. Fazer moda enquanto arte, o que Ellen propõe a fazer de sua vida, é então ser participante ativo das transformações estéticas e comportamentais através da criação dos seus acessórios. A confecção da Andrômeda acontece em suas casa e em duas confecções externas, numa fábrica em Jauá e num ateliê localizado na rua do Taboão. Sua casa se configura no principal local de confecção dos acessórios, onde ela constrói manualmente brincos, colares e pulseiras e faz as modelagens das bolsas, polchetes e sapatos, que são terceirizaddos nos locais anteriormente mencionados. Para compreender o processo de confecção da marca, presenciei o cotidiano da Ellen que está fortemente entrelaçado ao cotidiano da Andrômeda, diria até que são inseparáveis. Identifiquei alguns contrapontos a serem feitos em relação ao pensamento dos antropólogos brasileiros Roberto da Matta (1985) e Thales de Azevedo (2004). O objetivo aqui não é o de me aprofundar nestes contrapontos mas destacar que ambos possuem uma análise acerca do cotidiano generalista, normativa e reducionista que não se aplica a rotina da Ellen em sua casa e ao seu estilo de vida. É como se tanto DaMatta quanto Thales escrevessem sobre um todo unificado, sobre culturas normativas e por uma ótica exclusiva à uma camada social mais privilegiada. Como se eles, apesar de todo mérito que possuem, deixassem de fora a ideia de que “a ordem cultural inclui tanto a regra quanto a transgressão” (CLIFFORD, 2002, p.144). Por fim, o que chamei de “circulação” na pesquisa é como Ellen dá visibilidade a seus acessórios com o intuito de dialogar sobre seus conceitos e também com o de vender. Através das fotografias ela divulga seus produtos por imagens carregadas de conceitos artísticos influenciados por colagens e pelo surrealismo. A própria Ellen veicula essas fotografias nas redes sociais muitas vezes acompanhadas por textos que refletem seus pensamentos e posicionamentos políticos mais libertários. II Congresso Internacional Sobre Culturas 452 A comercialização da marca é feita pela internet, na própria casa-ateliê, nos eventos de Gastronomia e Moda e em algumas lojas físicas. Concluo a partir deste trabalho que a Moda hoje é um fenômeno aberto. Todas as possibilidades em que envolva criação, objetos-de-moda e a comercialização dos mesmos podem estar inseridas no universo da Moda. Por isso, proponho falarmos em Modas e não apenas em Moda. A diversidade dos processos criativos, de modos de produção e de formas de divulgação e comercialização reflete que este é um fenômeno que ainda tem muito o que ser explorado enquanto análise sociocultural. O universo das Modas é diverso, amplo e complexo, e sugiro que através dele é possível alcançarmos nuances culturais relevantes para se compreender os atuais comportamentos humanos. Esse trabalho de conclusão do curso de Ciências Sociais com habilitação em Antropologia (Ufba) foi o começo de um campo de pesquisa que tem sido desdrobrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Ufba. Pretendo seguir investigando acerca das Modas na cidade de Salvador e como os criadores locais representam uma fatia das nossas manifestações culturais e identitárias. REFERÊNCIAS AZEVEDO, Thales de. O cotidiano e seus ritos: praia, namoro e ciclos da vida. Recife: Editora Massangana, 2004. CLIFFORD, James. Estar lá: a antropologia e o cenário da escrita. In: ______. Obras e vidas: o antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009. cap 1, p. 1139. DAMATTA, Roberto. Espaço: casa, rua e outro mundo: o caso do Brasil. In:______. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. cap. 1, p. 25-54. INGOLD, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n. 37, p. 25-44, jan./jun. 2012. II Congresso Internacional Sobre Culturas 453 LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. PEIRANO, Marisa. A favor da Etnografia. In:______. A favor da Etnografia. Rio de Janeiro : Relume-Dumará, 1995. cap. 2, p. 31-58. SOILO, Andressa Nunes. A Arte da Fotografia na Antropologia: o Uso de Imagens como Instrumentos de Pesquisa Social. Revista Habitus: revista eletrônica dos alunos de graduação em Ciências Sociais - IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, p.73-80, Dezembro. 2012. Semestral. Disponível em:< www.habitus.ifcs.ufrj.br >. Acesso em: 01 jun. 2016 II Congresso Internacional Sobre Culturas 454 CORPOS ACORDANTES, CORPOS DISCORDANTES - REFLEXÕES SOBRE ALGUMAS DAS INÚMERAS TÉCNICAS CONTEMPORÂNEAS DE MODIFICAÇÃO CORPORAL E SOBRE ALGUNS DOS INÚMEROS COMPORTAMENTOS SOCIAIS A ELAS VINCULADOS Beatriz Ferreira Pires175 RESUMO A contemporaneidade, incessantemente produz desejos, necessidades, técnicas e instrumentos voltados para a aquisição e a feitura de modificações corporais. Se em tempos remotos tais práticas se relacionavam à tradição, à magia e ao sagrado, na atualidade se relacionam à conquista do corpo ideal. Finalidades diferenciadas que evidenciam no corpo diferentes culturas. Palavras-chave: Corpo. Body Modification. Moda. Diane Arbus. Corpos diversos, aparências discrepantes, costumes divergentes. Num período em que, muitos são os meios que veiculam textos e imagens relativos ao comportamento e à aparência corporal de indivíduos pertencentes a diferentes culturas ou adeptos de práticas que não correspondem às momentaneamente estabelecidas e massivamente reproduzidas, corpos discordantes despertam o sentimento de estranhamento. Por discordantes compreendem-se nesse artigo, tanto os corpos que, ao adquirirem elementos que em nada se assemelham aos inatos, se distanciam da estética humana, como os que, ao exacerbarem formas e traços pertencentes à espécie, se tornam incomuns pelo excesso. Ao primeiro grupo pertencem os corpos modificados através das técnicas de tatuagem, piercing, escarificação, implante sub e transdermal que não reproduzem formas inatas, skin removal, etc. Ao segundo os corpos alterados através de técnicas médicas/estéticas como cirurgias plásticas das mais variadas, realizadas em toda e qualquer região corporal, implantes estéticos que reproduzem formas inatas, remoção de costelas, etc. Enquanto o propósito das técnicas e dos elementos empregados nas modificações corporais, tanto bi, como tridimensionais, adquiridas pelos componentes do primeiro grupo evidenciam o intento de torná-los esteticamente diversos de seus 175 Doutora pelo programa “Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte”- FE/UNICAMP (FAPESP/2006). Professora e pesquisadora do Curso: Têxtil e Moda da EACH/USP. E-mail: beatrizferreirapires@usp.br II Congresso Internacional Sobre Culturas 455 semelhantes, os elementos utilizados pelos componentes do segundo grupo somente demonstram o deslocamento destes em relação à espécie quando do exagero, para mais ou para menos, das formas por eles adquiridas. Estes indivíduos impulsionados pelo desejo de se aproximarem o máximo possível do modelo de beleza vigente obtém um resultado às avessas e tornam-se alheios, tanto à sua natureza, como ao padrão estipulado. Não incomumente, tais indivíduos passam a apresentar mudanças comportamentais juntamente com as modificações corporais. Entre estas, as mais facilmente reconhecíveis são a mudança postural e a contínua exposição do corpo modificado na mídia digital e nas redes sociais. A cada nova alteração segue-se uma nova sequência de fotografias publicadas. Em alguns casos o desejo de alterar a silhueta está diretamente relacionado à necessidade de publicar as imagens de um “novo” corpo, de um corpo que passou por um processo de (re)design. A hipótese de que a facilidade de acessar tais informações possibilitaria uma maior familiaridade com o que é diferente e, consequentemente, uma maior assimilação de novos modos de pensar e agir, de se portar, se adornar e se vestir não se legitima totalmente. Para muitos, mesmo discordâncias banais relativas à aparência física ou comportamental ainda geram agressivos comentários e insufladas críticas. Às vezes, o que é considerado estranho nem sequer pertence a outras culturas ou nem sequer é algo que nunca tenha sido visto. Nestes casos, o dito diferente/estranho simplesmente não se enquadra nos padrões de beleza e de comportamento socialmente vigentes no momento histórico em que surgem. Para exemplificar, podemos citar no que diz respeito ao indumento, o desconforto que atualmente muitos indivíduos pertencentes à nossa sociedade sentem ao ver homens vestindo saia. Outro exemplo, agora relativo ao tegumento, seria a reação despertada, também em alguns, ao ver homens de cabelos compridos. Elementos corriqueiros em diferentes tempos e sociedades, fartamente representados em diversas linguagens artísticas. Por imersão às normas sociais, dificilmente padrões são rompidos e dificilmente padrões são percebidos, eles próprios como estranhos. Na segunda metade do século passado, o trabalho desenvolvido pela fotógrafa norte-americana Diane Arbus (1923-1971) colocou em foco, justamente, estes dois tipos de estranho, o que se encontra fora e o que está dentro das normas sociais. Nascida na cidade de Nova York, filha dos proprietários da loja Russeks, que comercializava elegantes casacos e estolas de pele, Diane iniciou seu caminho pelo II Congresso Internacional Sobre Culturas 456 universo da fotografia em 1946, quando fundou juntamente com seu marido Allan Arbus a agência de fotografia Diane & Allan Arbus (1946-56). O negócio, focado em fotografia de moda, com o passar dos anos, revelou-se como o avesso do real interesse da fotógrafa. Após o fechamento da agência, Diane passa a percorre outros caminhos. Seu trabalho um instrumento voltado a trazer a público intimidades individuais expressas em silhuetas, gestualidades, habilidades, desejos e ações pertencentes àqueles que foram postos à margem da sociedade e a revelar ao olhar desta mesma sociedade os curiosos hábitos, ritos, comportamentos e processos voltados para o corpo e a aparência, desenvolvidos, divulgados e incentivados coletivamente como meios de pertencimento, expõe não somente o que é considerado estranho por ser desconhecido, como também exibe o estranho, contido nestas mesmas esferas, que por fazer parte do cotidiano não é, pela maioria, percebido como tal. Ao comtemplar o estranho contido nos comportamentos revelados por Arbus e se deparar com a falta de propósito existente em determinadas ações pertencentes à sociedade em que vive, o espectador percebe que o estranhamento não está na ação desenvolvida pelo outro ou no corpo do outro e sim no olhar de quem os observa. As imagens abaixo exemplificam o borrar das margens que o trabalho de Arbus produz. Arbus - The King and Queen of a Senior Citizens’ Dance. Arbus - Muscle Man in his Dressing Room with Trophy Brooklyn. http://lounge.obviousmag.org/tao_legal/2014/ 09/alem-dos-olhos-de-arbus.html http://lounge.obviousmag.org/tao_legal/2014/ 09/alem-dos-olhos-de-arbus.html II Congresso Internacional Sobre Culturas 457 Arbus - Tattooed Man at a Carnival. http://daclac2013.blogspot.com.br/2012/06/ diane-arbus-weird-and-wonderful.html Arbus - Mexican dwarf. http://daclac2013.blogspot.com.br/2012/06/ diane-arbus-weird-and-wonderful.html Atualmente a facilidade instrumental - fotografia digital, aparelho celular com câmera, internet, etc. - e a criação do desejo de incessantemente registrar e divulgar a própria imagem dispensa o olhar do outro no momento do registro e aumenta em muito o acesso visual a corpos que extrapolam o normativo através das duas formas aqui expostas. Entre os inúmeros adeptos da body mod, destacaremos seis casos divulgados na internet. Três protagonizados por indivíduos que as realizam com o intuito de se distanciar da espécie - Lucky Diamond Rich, Zombie Boy e The Lizardman - e três por aqueles que buscam se aproximar do corpo designado como ideal - Chelsea Charms, Victoria Wild e Rodrigo Alves. Protagonista do primeiro caso, o performer e artista de rua, Lucky Diamond Rich, nascido na Nova Zelândia no ano de 1971 e batizado com o nome de Gregory Paul McLaren, possui o corpo completamente coberto por tatuagens, inclusive as pálpebras, os lábios e o interior das orelhas. Além desta característica, o corpo de Lucky possui várias camadas de tinta. A primeira camada feita de vários desenhos foi totalmente recoberta pelo pigmento preto. A homogeneidade conseguida com essa coloração possibilitou a aquisição de uma nova camada de desenhos, desta vez, feitos com pigmento branco. O branco, por sua vez, permitiu que novos desenhos coloridos fossem realizados. Sendo assim, até o momento o performer possui quatro camadas de tatuagem. Invólucros sobrepostos, formados por desenhos e cores diversos que ora se mesclam, ora se anulam, povoam a pele de Lucky. Comportamento distinto no qual a constante renovação não combina com a ideia de que toda tattoo é indelével. II Congresso Internacional Sobre Culturas 458 Outro performer acostumado a se apresentar em freak shows e agora modelo, Rick Genest, cujo nome artístico é Zombie Boy, nasceu no Canadá no ano de 1985. As tatuagens de Zombie transpuseram sua estrutura óssea para o exterior de seu corpo. O desenho do esqueleto sobreposto à pele, respeitando as reais dimensões e a correta localização de cada osso, dá a impressão de que o corpo do performer/modelo está do avesso. Importante lembrar que além destes desenhos Genest possui outros tatuados em seu corpo. Ao ser descoberto pelo designer, stylist, editor e diretor de moda Nicola Formichetti e a atuar em campanhas publicitárias e desfiles de moda, também ele, assim como o desenho de seus ossos, transpõe sua condição de estar à margem da sociedade e invade o espaço destinado aos modelos, ou seja, àqueles que servem de imagem a ser imitada. O protagonista do terceiro caso é também um performer acostumado a se apresentar em freak shows. Erik Sprague, conhecido como The Lizardman, nasceu nos Estados Unidos em 1972. É bacharel em filosofia pelo Hartwick College em Oneonta, Nova York e cursou doutorado nesta mesma área na Universidade de Albany. Para atingir seu objetivo de transformar-se esteticamente em um lagarto, utilizou as técnicas de tatuagem, implante subdermal feito com quatro esferas de teflon em cada sobrancelha, lixamento de dentes, alongamento e bifurcação da língua. Interessado por filosofia medieval, psicologia quântica e o conceito de personalidade múltipla controlada, Sprague acredita que a conscientização do lado instintivo e ancestral pode alterar positivamente a qualidade de vida das pessoas. O que motivou sua transformação foi o desejo de sentir uma unidade entre seu corpo e sua mente. Em declaração dada em uma entrevista publicada no site BMEzine - Body Modification Ezine - disse que muitos estranham não sua aparência, mas sim suas ideias e crenças. II Congresso Internacional Sobre Culturas 459 Lucky Diamond Rich https://www.tattoodo.com/a/2015/1 1/lucky-diamond-rich-the-world-smost-tattooed-person/ Zombie Boy The Lizardman http://www.theapricity.com/forum/showt hread.php?150393-Classify-Canadianartist-Rick-Genest-(aka-Zombie-Boy-) http://www.prweb.com/releases/ 2012/3/prweb9344370.htm O primeiro caso que citaremos de indivíduos pertencentes ao segundo grupo é o da atriz e modelo erótica Chelsea Charms. Nascida nos Estados Unidos no ano de 1976, Chelsea, com o intuito de aumentar o tamanho de seus seios, se submeteu a três cirurgias plásticas. Nas duas primeiras recebeu implantes mamários salinos - conchas de silicone preenchidas inteiramente com solução salina. Na terceira, implantes mamários de polipropileno, também conhecidos como String Breast Implants implantes mamários de cordas. Desenvolvidos pelo cirurgião plástico norteamericano Dr. Gerald W. Johnson este tipo de implante, atualmente proibido nos Estados Unidos, na União Europeia e no Brasil, propicia a contínua expansão da região corporal na qual é inserido. Isso ocorre porque o material de que é feito absorve os fluídos corporais. Embora pequeno, o ininterrupto crescimento resulta em seios com dimensões bem acima da média. O fato do implante feito por Chelsea ter sido proibido pelos riscos que o material utilizado causa e o esforço que suas estruturas óssea, muscular e epidérmica fazem para sustentar o peso de suas próteses não faz com que ela pense em retirá-lo. Ao assumir este posicionamento a modelo rompe com a ideia contemporânea, altamente propagada, que associa tratamentos estéticos à saúde. Também modelo Victoria Wild, nasceu na França no ano de 1984. Segundo declarou em entrevista ao jornal britânico Daily Mail, quando era adolescente por ser magra e ter seios pequenos era chamada de Barbie. Neste período odiava, tanto seu corpo, como o apelido. Diferentemente do que podemos pensar a aversão que sentia em relação ao apelido não era pelo fato de ser comparada a uma boneca - objeto fabricado pelo homem que se assemelha a estética humana -, mais sim a esta boneca II Congresso Internacional Sobre Culturas 460 específica, cujo corpo não representava seu ideal de beleza. Já adulta, para conquistar seu modelo de corpo ideal que é o de uma boneca sexual inflável, ela se submeteu a vários procedimentos médico-estéticos: implantes labiais permanentes, mamoplastia de aumento, rinoplastia e botox. Victoria que diz se sentir confiante e admirada pelos homens por ter essa nova aparência conta com o incentivo de seu namorado para dar prosseguimento às modificações. O terceiro caso relativo aos indivíduos pertencentes ao segundo grupo tem como agente o relações públicas Rodrigo Alves. Conhecido com Ken humano - além de Rodrigo, outros rapazes modificam seus corpos com o objetivo de se tornarem esteticamente semelhantes a esse boneco -, ele nasceu em São Paulo no ano de 1984. Atualmente morando em Londres, Rodrigo já se submeteu a inúmeros procedimentos médico-estéticos, entre eles: plásticas no nariz, cirurgias na mandíbula e queixo, próteses no peito, abdômen, panturrilha e coxas, botox na bochecha e nos lábios e lipoaspirações, peeling químico, tratamento com luz de led, pílulas de colágeno, aplicação de Aqualift - hidrogel de preenchimento e aumento do volume corporal - nos braços. Dois desses procedimentos, a aplicação de Aqualift e uma das plásticas feitas no nariz, geraram infecções e o colocaram em situações delicadas de saúde. Mesmo correndo esses riscos Rodrigo, que foi diagnosticado com Transtorno Dismórfico Corporal ou Síndrome da Distorção da Imagem, não sabe se conseguirá deixar de se submeter a outros procedimentos estéticos. Chelsea Charms Victoria Wild http://www.snews.bg/bg/statiya/amerika nka-stana-pritezhatelka-na-naygolemite-gardi-v-sveta-galeriya:7496 http://www.thehollywoodgossip. com/slideshows/victoria-wildplastic-surgery-photos/ Ken Humano http://fotografia.folha.uol.com.br/ galerias/34349-rodrigo-alves II Congresso Internacional Sobre Culturas 461 Dissonantes e perturbadores, causadores de desordem, desarranjadores do senso comum. Redesenhados a partir de particulares desejos e com intuitos diversos, estes corpos, que aqui exemplificam tantos outros, seja pela alteração da aparência física, seja pela motivação que leva à transformação, colocam em cheque as certezas do observador. Parte da diferença existente na intensidade da desestabilização causada quando da observação dos corpos pertencentes aos dois grupos deve-se ao fato de que, enquanto as técnicas utilizadas pelo primeiro, originárias de sociedades ágrafas, são realizadas por profissionais cujo conhecimento não é chancelado pela sociedade, as utilizadas pelo segundo, oriundas da cultura recente e constantemente atualizadas, são realizadas por médicos, ou seja, por profissionais que possuem alto prestígio social. Dentro da perspectiva aqui apresentada, enquanto as técnicas desenvolvidas por nossos mais longínquos ancestrais eram - e ainda são para alguns - utilizadas para que o indivíduo ao inserir no corpo determinado desenho adquirisse características e potencialidades de outros seres, viventes ou divinos, as da atualidade o são para dissimular o fluxo do tempo e para assemelhar os indivíduos a seres não viventes. Intuitos diferenciados que espelham diferentes relações entre corpo e cultura. REFERÊNCIAS PIRES, Beatriz Ferreira. Corpos Insólitos - Adensadores de Tempos, Reveladores de Longínquas Memórias. Pós-Doutorado em Moda, Cultura e Arte (Bolsa FAPESP). Centro Universitário SENAC/ SP - Faculdade de Moda, 2009. PIRES, Beatriz Ferreira. O Corpo como Suporte da Arte - Piercing, Implante, Escarificação, Tatuagem. São Paulo: SENAC, 2005. PIRES, Beatriz Ferreira. “Divagações sobre Impermanências, Imanências e Representações” in: Styling e Criação de Imagem de Moda. Façanha, Astrid e Mesquita, Cristiane (Org.). São Paulo: SENAC, 2012, p. 99-110. http://www.claudiolemos.com/imprensa/terra/. Acesso: 18/10/2016. http://mundoestranho.abril.com.br/blogs/contando-ninguem-acredita/tag/chelseacharms/. Acesso: 18/10/2016. http://vejasp.abril.com.br/materia/ken-paulistano. Acesso: 18/10/2016. http://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/entretenimento/2014/09/18/modelofrancesa-faz-plasticas-para-virar-boneca-inflavel.htm#fotoNav=5. II Congresso Internacional Sobre Culturas 462 Acesso: 18/10/2016. II Congresso Internacional Sobre Culturas 463 PROCEDIMENTOS E PROCESSOS DE ATUAÇÃO DO ATOR QUE ANIMA O PERSONAGEM-BONECO PARA CENA Yarasarrath Alvim Pires do Carmo Lyra176 RESUMO Trata-se da produção de um contexto poético-reflexivo que teve como objeto disparador a prática da atriz que construiu e animou seu próprio personagem-boneco no espetáculo Protocolo Lunar, no qual operou as interfaces do Teatro de Animação. Logo, foram compreendidos, interpretados e tornados visíveis Princípios e Procedimentos criativos. Nesse artigo, fez-se um recorte específico do trabalho de atuação do ator que anima o personagem-boneco para cena. Assim, para a realização da pesquisa, foi feito uso de uma metodologia adequada a Processo de Criação, a Abordagem Compreensiva, realizando imersões em laboratórios criativos. Esse espetáculo nasce de uma chuva de imagens, em um processo prático-teórico de criação cênica a partir de descoberta por tentativas, nunca incoerentes e abortivas, sempre com organização e resultados inventivos que iam se modificando no trajeto. Palavras-chave: Processo de Criação. Imaginário. Teatro de Animação. Ator que anima. PROCEDURES AND ACTOR ACTING PROCESSES THAT ANIMATES THE CHARACTER-PUPPET TO SCENE SUMMARY It is the production of a poetic and reflective context that aimed trigger the practice of the actress who built and animated his own character-puppet in the show Protocolo Lunar, which operated the interfaces of the Animation Theater. So they were understood, interpreted and made visible Principles and creative procedures. In this article, there was a specific cut of the actor's acting work that animates the character-puppet to the scene. So for the research was done using an appropriate methodology creation process, the Comprehensive Approach, performing immersions in creative workshops. This show is born from a rain images in a practical-theoretical process of scenic creation from discovery by attempts, never inconsistent and abortion, always with organization and inventive results that would be modifying the path. Keywords: Creation Process; Imaginary; Animation Theater; Actor animating. [...] o devaneio está sob o signo da anima. Quando o devaneio é realmente profundo, o ente que vem sonhar em nós é a nossa anima. (Gaston Bachelard, 2008). Precisamos considerar como ideia inicial que o Teatro de Animação, antes de qualquer outro sentido, é teatro. Portanto, as investigações que o alimentam devem ser 176 mestrado em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia. Professora de Teatro – IFBA: Campus Jacobina. e-mail: yarasarrath.lyra@ifba.edu.br II Congresso Internacional Sobre Culturas 464 concebidas e admitidas a partir das práticas e teorias que governam a linguagem teatral, sem perder de vista suas especificidades. Logo, percebe-se que o Teatro de Animação revela que sua particularidade está relacionada como algo próprio de sua forma, como: o discurso visual, a plasticidade e o movimento. Por efeito, o objeto ocupa um lugar privilegiado nesta cena e tem como aliado o ator, principal força motriz do seu movimento. Assim, aqui descrevo meu processo em Protocolo Lunar como atriz que anima, lembrando que se trata de um processo colaborativo, no qual a participação do outro, completa e enriquece o meu trabalho como intérprete na criação do personagem-boneco. Para a realização dessa pesquisa artística e acadêmica, foi feito uso de uma metodologia adequada a Processo de Criação, a Abordagem Compreensiva apresentada por Sonia Rangel (2006), a qual, entre outros autores, apoia-se na Teoria da Formatividade de Luigi Pareyson. Nessa abordagem, o pesquisador propõe a compreensão da trajetória criativa, na qual o sujeito, imerso no processo de sua obra, coloca-se em contato com as mudanças ou variações da sua criação. Nas palavras de Rangel (2006, p. 311), [...] significa colocar-se dentro, em processo, em contacto, sem um pré-modelo a ser comprovado, sem um pré-conceito, numa atitude de reconhecer o que emerge ou se configura como fluxos do pensamento encarnado nas ações, princípios da criação, ou seja, compreender, na medida do possível, a invenção e a recepção para o artista da sua própria obra; e, no campo das ideias, compreender como o próprio pensamento opera com suas recorrências e originalidades. A partir do entendimento dessa abordagem, realizou-se imersões em laboratórios criativos, as quais puderam instaurar e ampliar a problemática da pesquisa, num processo cênico de descobertas por tentativas. Desta forma, foram realizados em Protocolo Lunar três Laboratórios Criativos para Cena, os quais tiveram duração de cinco semanas com cinco encontros semanais de quatro horas cada, na Sala 5 da Escola de Teatro da UFBA. No Laboratório Criativo para Cena I – corpo do ator, fizemos um longo trabalho de consciência corporal no qual buscávamos atingir um estado de presença, sensibilização, desbloqueio, conscientização dos movimentos, aumento da percepção e concentração, sem perder o lado “lúdico do movimento” (VIANNA, 1990, p. 126). A prática de Klauss Vianna, tanto em sala de aula como na preparação corporal do ator/dançarino para a cena, revela a conscientização do intérprete pelo seu arcabouço corporal, a particularidade dos seus movimentos e a conexão interna e externa com o ambiente. A abordagem corporal praticada por Vianna dispensa exigências prévias, II Congresso Internacional Sobre Culturas 465 capacidades especiais e não segue modelos pré-fabricados. Esse autor parte da individualidade de cada sujeito, encorajando suas próprias inventividades em um processo de autoconhecimento, no qual corpo/mente, pensamento/ação são faces da mesma moeda. Dessa forma, após cada laboratório tínhamos um repertório individual de imagens que eram partilhadas e em seguida registradas. Essas imagens, que nutriam nossa imaginação, posteriormente foram convocadas e experimentadas com os bonecos. O Laboratório Criativo para Cena II – personagem-boneco, – a sugestão era que experimentássemos uma trajetória básica de movimentos com o boneco, ou seja, respirar, caminhar, deitar, levantar, parar, transferir peso, dar impulso, mover apenas uma parte do corpo do boneco e manter fixa a outra, verificar diferentes qualidades de ritmo, perceber as possibilidades articulatórias e de movimento oferecidas pelo boneco, em um primeiro momento sozinho e depois na contracena. Esse também foi o momento de descobrir as qualidades vocais e sonoras que podiam pertencer aos bonecos. Tínhamos a referência de que eles não teriam voz articulada. Então, precisávamos testar um “idioma” próprio para Protocolo Lunar, no qual fosse possível identificar intenção, subtexto e sentimento. A estratégia usada para encontrar uma possível voz das duas personagens que animei, Senhora Veredê e Menina Gisele, foi de identificar na personalidade sugerida na dramaturgia e nas relações com os outros personagens, aspectos que pudessem colaborar para a formação de um conjunto de fonemas, timbre e altura próprios para cada uma. Foi no Laboratório Criativo para Cena III – criação de cenas, – que as imagens das cenas começaram a surgir, e, assim, aspectos como intenção, subtexto e sentimento aparecem nas cenas, embora estivéssemos ainda inseguros. Isso tudo ocorreu já na quarta semana de trabalho. Após esse laboratório, iniciamos o processo de ensaio, cruzando as cenas dos personagens-bonecos e das atrizes. O registro das cenas em formato de fichas foi um documento de processo importantíssimo para recuperar e aprimorar as cenas criadas anteriormente. Começamos os ensaios e a primeira dificuldade encontrada com os personagens-bonecos foi em relação ao espaço. Identificamos imediatamente a necessidade de ensaiarmos com o cenário, “palco”, adequado para os personagens-bonecos. Muitas cenas criadas no laboratório exigiam anteparo para uma série de partituras dos bonecos. Não era possível aprimorar as cenas sem a dimensão espacial correta. Ainda durante os ensaios, descobrimos que havia um descompasso de entendimento entre corpo neutro e um corpo expressivo do ator que anima. Como a II Congresso Internacional Sobre Culturas 466 proposta era manter os atores à vista para o público, então, na concepção da codireção esse corpo deveria apresentar alguma expressividade sem comprometer o foco do personagemboneco. Não tínhamos a compreensão da medida ideal. Falava-se de contenção da expressão do ator, movimentos sutis e delicados, foco no boneco, mas, ao mesmo tempo, queria-se um corpo vivo, cênico, presente e visível, não um corpo robotizado, mecânico. Logo, inquieta com as proposições, comecei a me questionar sobre quais eram os possíveis modos de atuação. Como seria esse corpo em cena? Deveria adotar em meu corpo características do personagem-boneco? Que modo de atuação era possível colocar em cena sem tirar o foco do boneco? Questões como essas circulavam por meus pensamentos ainda sem respostas. Para contribuir com a minha pesquisa corporal, fiz um breve levantamento de vídeo de formas animadas, na tentativa de melhor perceber as possibilidades de atuação. Por final, já depois de muita pesquisa no período dos ensaios, fizemos o Laboratório Criativo para Cena – modo de atuação, encontramos por meio de improvisos modalidades de atuação que pudessem contemplar a proposta poética da encenadora juntamente com a codireção. Trata-se de uma poética que admite a presença visível do ator que anima, não como um desvio do foco do personagemboneco, mas como uma complementação dos sinais emitidos do personagem-boneco pelo personagem vivido pelo ator. Nesse sentido, a partir deste contexto e diante das pesquisas realizadas com a atuação, considero ser possível apontar alguns modos de atuação de quem anima. Segue alguns modos de atuação identificados. Atuação disfarçada, o ator que anima compartilha com o boneco o mesmo espaço cênico visível, empregando um grupo de técnicas e sutilezas, as quais tornam a presença de quem anima mais escondida para o espectador. O ator não apresenta em seu corpo nenhum personagem, apenas coordena os movimentos e a interpretação mediada pelo personagem-boneco. Isto de forma alguma garante que o público não perceba a presença do ator, antes suscita um sentido de interação harmoniosa, institui uma convenção, uma espécie de unidade conjunta. Já na atuação duplicada, o ator compõe em seu próprio corpo e no boneco o mesmo personagem, criando um duplo. Nesta atuação, ocorre também uma diversificação que suplementa os sinais emitidos pelo personagem vivido pelo ator e o personagem-boneco. É possível que em um espetáculo existam sinais do personagem emitidos pelo ator num determinado momento, agregando a outros sinais emitidos pelo boneco. II Congresso Internacional Sobre Culturas 467 Em relação à atuação distinta, o ator que anima interpreta um personagem diferente do encenado com a mediação do boneco. Essa modalidade requer da atuação uma clareza e precisão na composição dos personagens tanto do objeto quanto do ator. Muitas vezes, ocorre com bonecos ventríloquos, pois o personagem-boneco é diferente do personagem-ator. Isto se torna evidente na cena quando os diálogos entre atores e bonecos são estabelecidos pela mudança da voz, de humor, de ritmo e, em alguns casos, também é solicitada a participação da plateia. Assim, nesse laboratório de atuação, buscávamos espelhar em nosso corpo, de forma sutil e hábil, o corpo do personagem-boneco, destacando o modo de atuação duplicada. Este permite ao ator criar um duplo do personagem-boneco em seu próprio corpo. A interpretação do ator que anima articulada aos signos da fala, do movimento e da forma do personagem-boneco poderiam oferecer ao espectador a clareza de estar em frente de um único corpo. A intenção era criar um prolongamento do corpo do boneco no corpo do ator. A sutileza, a precisão e a prontidão do movimento e do gesto nesse modo de atuação são fundamentais para que não ocorra um duplo foco, desviando e confundindo a atenção do espectador. O modo de atuação duplicada contribuiu também para tornar mais suaves e fluídas as entradas e saídas de cena dos atores. Havia uma preocupação da codireção no sentido de não deixar que os movimentos dos atores ficassem robotizados, duros, mecânicos, trazendo uma compreensão equivocada do corpo neutralizado. Segundo Beltrame (2008, p. 36), acerca da neutralidade do ator que anima: Este princípio tem gerado muitas controvérsias, porque é difícil conceber a ideia de presença neutra na cena, uma vez que tudo o que está no palco adquire significado. A “neutralidade” é aqui concebida como predisposição do ator-animador para estar a serviço da forma animada, tornar-se “invisível” em cena, atenuar sua presença para valorizar a do boneco. [...] Trata-se de trabalhar com a noção de consciência de estar em cena, o que exige movimentos comedidos, discretos, elegantes, suficientes para que se remeta o foco das atenções ao boneco presente na cena e não ao seu animador. Quando os gestos do ator-titeriteiro e sua presença são mais eloquentes que a presença do boneco, cria-se um duplo foco que desvaloriza a cena. O autor mostra um conceito que esclarece a questão da neutralidade, associando este princípio com a percepção da presença cênica. Para o trabalho do ator, quanto maior for o estado de consciência do seu corpo e da relação com o espaço, melhor será o desempenho da presença cênica, estabelecendo uma condição equilibrada com o boneco. Assim, II Congresso Internacional Sobre Culturas 468 neutralidade não deve ser confundida com não presença cênica. Entendo e compartilho que, conforme Beltrame, a neutralidade é um recurso utilizado pelo ator que anima para canalizar o direcionamento do olhar do espectador nos justos instantes em que se determina o foco da cena, o qual é o personagem-boneco. Dessa forma, foi possível perceber na poética de Protocolo Lunar a plena necessidade desta “noção de consciência de estar em cena”, uma vez que o jogo complexo do movimento entre o ator que anima e o personagem-boneco solicita uma qualidade contínua de expressividade presente em ambos. Essa expressividade requer do ator precisão em apurar a neutralidade, quando escolhe os movimentos oportunos na modalidade de atuação duplicada, de maneira que se torna conveniente subtrair as “sobras” que levariam o espectador a destinar o olhar somente para si. No modo de atuação duplicada, o ator torna possível que o personagem seja percebido pelo espectador por diversos pontos de vista, ampliando o plano de sentido e percepção, logo que são dilatadas as possibilidades de emitir sinais derivados de constelações imaginativas e criativas. No entanto, essa profusão circunstancial de signos convoca habilidades técnicas na efetivação dos códigos e passagens de foco, demandando precisão na edição da partitura e concisão nos sinais expressos. Também, vale lembrar que a neutralidade/foco do ator que anima está intimamente relacionada à escuta do objeto ao qual se articula o movimento. Como afirma Claire Heggen (2009, p. 55 e 56), trata-se de um: [...] diálogo incessante, sensível, sensorial, perceptivo (entre objeto e sujeito) que produzirá matéria teatral, alimento dramático para o ator manipulador: desempenho em que o corpo do ator objetivado pelo objeto se põe às ordens do próprio objeto. Informações, pressões, resistências, o corpo é obrigado a transigir. [...] O objeto des-loca o ator, ele o de-porta da sua centralidade, o des-trona, o obriga a ficar ao lado de si mesmo. Ai, nessa fragilização, é que tudo ocorre e que ≪isso≫ atua. É na escuta atenta do objeto pelo ator, pela sua maneira de dar ≪atenção simples para o simples≫ através do toque, pelo olhar ou pelo não-olhar, pela relação de duas gravidades, que o espectador orientará os seus olhos para o objeto, prioritariamente ou não. Nesse sentido, escutar os códigos que o dirigem permite descobrir um jeito próprio do boneco de oferecer dispositivos corporais, “matéria teatral”, para que não haja perdas desnecessárias de energia, conferindo-lhes movimentos mais precisos e econômicos. A ativação do sentido da escuta autoriza o ator a dilatar sua percepção cênica, o obriga a sair da sua região de conforto, fragilizar-se, e encontrar no objeto II Congresso Internacional Sobre Culturas 469 subsídios para a criação do personagem. Como afirma Ana Maria Amaral diante da disposição do ator em escutar seu objeto: “[...] a capacidade de o ator se expressar através de um boneco é não só relativa às suas características e possibilidades técnicas, mas também à capacidade em observá-lo, respeitá-lo e perceber o ‘nervo vital que vem do seu interior’” (AMARAL, 2004, p. 81). Assim, de nada vale um boneco bem articulado, bonito e bem construído se o ator não colocar a seu serviço suas habilidades perceptivas, sensoriais, desejando encontrar por meio do contato, do toque, na ação, as possibilidades criativas de seu funcionamento. Nessa relação íntima e sensível de escuta entre ator e objeto, o espectador se permitirá acreditar no acordo ficcional do espetáculo. Nesse contexto, não existe boneco teatral sem ator. O objeto inanimado ganha movimento, porque o ator é a sua principal força motriz. Conforme Marcos Souza (2005, p. 37), “[...] tornase fundamental chamar atenção para o aspecto animado do Teatro de Animação, ou seja, para o corpo humano que é o que instaura, recebe e troca possibilidades de relação e de significação com o objeto manipulado”. O boneco se move, porque o ator deseja, e é na resposta do boneco a esse mover que o ator se depara com outras informações, capacidades de composição, as quais emergem na potência transformadora do ator, um movimento de ir e vir, estabelecendo uma permanente relação de troca entre ator e objeto, “[...] é nas modulações da relação entre objeto e sujeito que se constituem ao mesmo tempo a ligação e o fundo de uma textura [...]” (HEGGEN, 2009, p. 56) e ainda como defende Claire Heggen “é do relacionamento sensível, constantemente reativado e renovado pela materialidade do objeto, que nasce uma narração portadora de sentido e que se dirige aos nossos sentidos” (IDEM, ibidem). Igualmente, reforço que o boneco ainda em construção já desperta no ator que constrói e anima tais potencialidades de ligação, relação sensível e troca, pois, no justo momento de encontro com a matéria-prima, são deflagradas as contingências criativas, permitindo a esse artista um maior contato para a criação do personagem-boneco. Logo, aqui sinalizo que no teatro, como em qualquer outra arte, os resultados são múltiplos, diversos, e o caráter ímpar dos processos criativos de cada poética indicam caminhos muito particulares. Nesse sentido, ao mostrar minha prática, tento compreender as recorrências dos Princípios e Procedimentos, que se aproximam e se distanciam na busca pela criação do personagem-boneco. Aqui, posso observar que foi a partir dos laboratórios práticos de criação de Protocolo Lunar que foi possível descobrir por tentativas um modo próprio de dar forma aos personagens criados. Dessa maneira, II Congresso Internacional Sobre Culturas 470 recupero o pensamento de Luigi Pareyson (1993) acerca da formatividade, quando “dar forma” significa fazer, mas não um fazer predefinido, idealizado, de regras prefixadas, um fazer que a todo tempo cria o modo de fazer. Pareyson reporta-se a um formar que requer tentativas, execução, realização; por outro lado, exige inventar, descobrir, encontrar o modo de fazer, ou seja, a criação caminha junto com a produção, atuando com suas próprias regras no ato das tentativas. Estas tentativas, segundo Pareyson, levam ao bom resultado, ao sucesso. No entanto, não se trata do sucesso enquanto uma boa realização das regras, mas a descoberta de regras no instante do seu emprego. Consequentemente, apoio-me em Luigi Pareyson (1993, p. 91) para compreender um processo por tentativas. Tentativa e organização não são portanto incompatíveis e dissociáveis, pois até o próprio conceito de um resultado que seja critério para si mesmo as evoca ao mesmo tempo, íntima e inseparavelmente unidas, de sorte que se, por um lado, o bom resultado só se obtém como o fruto feliz de tentativas, por outro, não pode ser critério de si mesma a não ser orientando, urgindo, organizando as tentativas de onde há de resultar. Nesse processo de descobertas por tentativas pude registrar que todo o processo prático-teórico de criação em Protocolo Lunar foi a partir de diversas tentativas, nunca incoerentes e abortivas, porém sempre com organização e resultados inventivos que iam se modificando no trajeto. Nesta perspectiva, com o registro da memória de processos criativos em formas animadas, além da reflexão resultante desta pesquisa, espero contribuir com a discussão sobre o ator que anima o personagem-boneco. Sendo assim, termino com o intuito de colaborar com o aprofundamento, desdobramentos e ampliação das reflexões que já existem neste campo, articulando meu pensamento ao de outros artistas e autores interessados em Teatro de Animação. REFERÊNCIAS AMARAL, Ana Maria. O Ator e Seus Duplos. São Paulo: SENAC, 2004. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008. BELTRAME, Valmor. Princípios técnicos do trabalho do ator-animador. In: BELTRAME, Valmor N. (Org.). Teatro de Bonecos: distintos olhares sobre teoria e prática. Florianópolis: UDESC, 2008. II Congresso Internacional Sobre Culturas 471 HEGGEN, Claire. Sujeito – objeto: entrevistas e negociações. Revista Móin-Móin: revista de estudos sobre teatro de formas animadas, n. 6, Jaraguá do Sul: SCAR/UDESC, 2009. JURKOWSKI, Henryk. Métamorphoses: la marionnette au xx siècle. Tradução de Eliane Lisboa, Gisele Lamb e Kátia de Arruda. Charleville-Mézières: Éditions Institut International de la Marionnette, 2000. PAREYSON, Luigi. Estética: teoria da formatividade. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1993. RANGEL, Sonia Lucia. Processos de criação: atividade de fronteira. ABRACE IV Congresso de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, 2006, Rio de Janeiro. ABRACE IV Congresso. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Intermeios, 2011. SOUZA, Marco. O Kuruma Ningyo e o corpo no teatro de animação japonês. São Paulo: Annablume, 2005. VIANNA, Klauss; CARVALHO, Marco Antonio. A dança. São Paulo: Summus, 1990. II Congresso Internacional Sobre Culturas 472 VITOR MEIRELLES E VARVARA STEPANOVA, EXPERIMENTAÇÕES ARTÍSTICAS ALÉM DA MODA Mara Rúbia Sant’Anna177 Tatiane Rebelatto178 RESUMO Apresenta diálogo entre duas pesquisas em andamento no laboratório de pesquisa Moda e Sociedade. Em comum entre elas o estudo de dois artistas não contemporâneos entre si, que produziram desenhos de trajes em um momento de sua trajetória criativa. Seguindo um processo de montagem e desmontagem de algumas imagens produzidas por Vitor Meirelles e Varvara Stepenavo, conforme Didi-Huberman (2009) propõe, a comunicação irá debater os elementos pictóricos adotados em cada um dos casos e, submetido a um olhar heterocrônico (DIDI-HUBERMAN, 2005) e dialético (BENJAMIN, 2006), para suscitar discussões em torno de um proceder artístico que vai além da moda. Palavras-chave: Vitor Meirelles. Varvara Stepanova. Arte. Moda. Vitor Meirelles (1932 – 1903) durante seu estágio na Itália entre 1853 e 1856 produziu diversos desenhos de trajes femininos e masculinoas de diferentes papéis sociais. O Estudo de Trajes Italianos trata-se de um conjunto de pequenas obras que não ultrapassam a 30 cm de altura. As obras dessa série foram produzidas com diferentes materiais, sendo, em sua maioria, pinturas feitas em aquarela sobre papel. Há algumas realizadas com materiais diferentes, como grafite, tinta a óleo sobre papel, em papel colado sobre madeira, entre outros. Não há um número exato de quantas produções ao todo compõe a coleção de Estudo de Trajes Italianos, já que algumas se perderam ao longo dos anos e muitas fazem parte de coleções particulares. Estima-se em torno de 200 pinturas, estando apenas uma parte em acervo públicos, sendo esses o Museu Victor Meirelles (Florianópolis) e o Museu Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro). Neste estudo serão debatidas as imagens MVM 06, 07, 52 e 53. Varvara Stepanova (1894 – 1958) compartilhou juntamente com outros artistas construtivistas a geometria, a abstração, o desenho técnico e as formas despersonificadas. Experimentou, amadureceu e criou seu próprio modo de fazer ao longo de sua carreira. Passou por diferentes grupos artísticos como o Cubo-Futurismo e o Futurismo antes de aderir aos ideais construtivistas. Stepanova produziu pinturas, desenhos e xilogravura que proporcionaram a ela o desenvolvimento de estudos de 177 Doutora em História, Professora efetiva da Universidade do Estado de Santa Catarina, membro dos programas de Pós-graduação em História e Artes Visuais da mesma instituição. modaesociedade@gmail.com 178 Bacharel em Artes Visuais. Mestranda em História. tatirebelatto@hotmail.com II Congresso Internacional Sobre Culturas 473 figura humana, sendo a produção de vestuário uma particularidade de o seu fazer artístico. Já na década de 20 após a Revolução Russa, começou a participar do Inkhuk179, um centro onde eram produzidos textos, desenhos, materiais de divulgação para debater sobre arte, em Moscou. Posterior, ela trabalhou com sua amiga Luibov Popova na primeira fábrica de estampas em tecido de Moscou, na qual desenvolveu projetos para o vestuário com estampas, roupas de esporte e figurinos e cenários para teatro. Nesses projetos processou e aplicou os princípios do Construtivismo, gerando roupas geométricas, unissex, confortáveis que permitiam o livre movimento do corpo e recusa do erotismo. Neste estudo serão utilizados quatro modelos de roupas de esportes de 1924. VICTOR MEIRELLES E OS TRAJES FEMININOS DE 1853 O acesso ao Estudo de Trajes Italianos deu-se através do acervo e documentação presentes no Museu Victor Meirelles, em Florianópolis. Obteve-se uma primeira informação a respeito delas por meio de um catálogo produzido junto com a exposição em comemoração aos 174 anos do nascimento do artista e 150 anos de criação do conjunto dessas obras. No catálogo se observa 26 obras, sendo 16 pertencentes ao MVM e as outras dez, que fazem parte de uma coleção particular emprestada ao museu, temporariamente, em 2006. As vinte e seis obras analisadas apresentam, cada uma delas, apenas um traje desenhado. O formato das pinturas é retangular, quase todas com tamanho em torno de 30 cm por 20 cm, tendo alguns cm de variações, mas não foge muito desta média. Não se sabe quem são e o motivo de terem sido escolhidas as personagens dos quadros. A falta de identificação das figuras enfatiza a hipótese de ser apenas um estudo encomendado por seus professores. Das vinte e seis produções, seis são masculinas e vinte femininas. Dentre os masculinos há três camponeses, um músico, um nobre e um padre. Já dentre as vinte figuras femininas há uma pertencente a nobreza, duas freiras e as demais são camponesas. 179 Instituto de Cinema e Vídeo Arte em Berlim. II Congresso Internacional Sobre Culturas 474 O que há em comum e diferente nas figuras femininas escolhidas para a análise sob o propósito de pensar o feminino, o vestir e o artístico? Primeiramente é preciso respeitar a proposta do artista que não atribui um nome ao seu trabalho e nem deixou algo escrito sobre estas figuras femininas que se vê nas pranchas. Logo, considerando o nome que agrupa todas as pranchas, trata-se de trajes representados sobre papel. Logo, não se pode falar em mulheres desenhadas, mas em roupas que vestem um corpo que, por suas formas e elementos, se define como feminino. Os elementos que designam o gênero do corpo são: as saias em primeiro destaque; seguido dos cabelos e seus arranjos. Na continuidade poderia se citar os traços da fisionomia, mas que apenas em dois estão mais nitidamente evidenciados. Também a forma das mãos, especialmente nas figuras 07 e 53. Por último, o indicio das cores e formas que se produzem nos traços do panejamento, nos singelos elementos coloridos e no volume de todo o conjunto. Do ponto de vista artístico a escolha pelos tons claros e pasteis sugerem a delicadeza do feminino, assim como o uso de tons mais fortes nas saias oferece II Congresso Internacional Sobre Culturas 475 equilíbrio às imagens, colocando a figura firme no chão e “elevada” no tronco e cabeça por meio das volumosas mangas brancas, dos rostos singelos e claros. Alguns detalhes, como o azul das listras ou o vermelho da decoração do longo avental da figura 06 balanceiam a imagem, dando um efeito de harmonia e continuidade no conjunto. Nenhuma das figuras representadas encontram-se voltada para o espectador, o que remete a um preceito de recato, timidez e descrição condicionados culturalmente como próprio do feminino. E por último, do ponto de vista de uma história do traje ou da moda, o estudo de Victor Meirelles nos oferece alguns pontos de reflexão. Inicialmente, os comprimentos e volumes são próprios de trajes dos séculos passados, não necessariamente dos primeiros anos da década de 1850. A composição camisa e corpete sugere as tradições vestimentares da Europa presentes desde o século XVIII, quando os decotes deixaram de ser tão quadrados e os tecidos tão pesados como do século anterior. Todavia, há um indício de algo próprio e relativo ao século XIX devido a presença tão manifesta das camisas, cujas mangas são volumosas, com aplicações e sobreposições diferenciadas. Nos cabelos os arranjos em forma de véu em 3 das figuras também data os trajes e os distância das tendências de moda vigentes para o período nos meios urbanos e mais desenvolvidos economicamente como Paris, onde os cabelos eram decorados com diferentes tipos de chapéus e não mais com véus ou tocados de pano. Também o volume das saias que não contam com uma armação como a crinolina indicam a distância destes trajes com os modelos vigentes no período. Portanto, o artístico e o aperfeiçoamento da técnica de panejamento e representação dos trajes é a motivação que predomina na produção destas pranchas de Victor Meirelles. Os corpos femininos ausentes e presentes nestas imagens se fazem pela mediação dos traços que representam os trajes, negociando com uma forma consolidada de dizer sobre o vestir feminino. Nem mesmo uma preocupação relativa ao registro histórico de como mulheres reais vestiam-se na Itália da segunda metade do século XIX pode-se identificar nestes estudos de traje, na medida em que não se tem registros de onde e quem eram estas figuras, se elas eram reais ou talvez puras montagens do desejo artístico do pintor em formação. Quatro trajes de Varvara Stepanova II Congresso Internacional Sobre Culturas 476 Varvara Fiodorovna Stepanova iniciou seus estudos em artes no Instituto de Artes de Kazan, onde conhece o também artista plástico Alexander Rodchenko, que depois se tornou seu marido. Por volta de 1917 ambos se mudaram para Moscou, onde começaram a frequentar o instituto de Arte de Stroganov. Varvara se destacou nas produções de vestuário, mas também passou por diferentes processos de experimentação, produzindo pinturas, desenhos, xilogravuras, cartazes para teatro, fotomontagens e ilustrações de poesias. O engajamento da artista com o projeto socialista e a arte de produção, se mostra principalmente nas produções têxteis, em roupas de esportes, de teatro, uniformes e estamparia. São nessas produções que se percebe o modo como atua no seu tempo, analisa a realidade a sua volta e passa a ter outra compreensão sobre o seu papel de artista. Ela soube empregar no vestível os princípios que o movimento construtivista defendia, como: os padrões, os modelos para serem feitos em série, a técnica que gerava eficiência e o coletivo. Levando em consideração essas imagens, que representam uma parte muito pequena da produção da artista, é possível perceber o predomínio da geometria e da abstração. Os conceitos que sustentam a arte construtivista também foram aplicados nos vestir. Nas figuras notam-se linhas precisas e rígidas, formando listras mais largas, outras mais estreitas. O discurso construtivista considerava que a linha continha a pureza e era um elemento fundamental para a formação da construção. As linhas traçadas de forma precisa, os círculos feitos perfeitamente com o compasso, representavam a técnica do construtor livre de qualquer subjetividade. “A displicência de uma linha trêmula, desenhada pela mão do artista, é considerada menos precisa e, portanto, de valor menor que uma linha traçada com o auxílio do esquadro, como se a mão não participasse” (BRIONY; BATCHELOR; WOOD, 1998, p. 113). II Congresso Internacional Sobre Culturas 477 Em meio a essa construção precisa e de um desenho técnico, os construtivistas também consideravam essencial o uso de formas despersonificadas. O fazer artístico não estava mais pautado no individual assim como ocorria na arte tradicional, o que era marcado pela assinatura e estilo do autor. A despersonalização através da geometria e abstração retirava o autor da sua indivudualidade e unicidade. Para a obra em construção, era vital distinguir-se dos padrões ornametais da arte aplicada ou decorativa. Observando os croquis de roupas de esporte a geometria predominante pode ser vista pelo viés da descontrução. A descontrução com o tradicional, a descontrução do erostismo, da organicidade da roupa e do movimento que ela representa. A descontrução do vestir como o exercício diário da reafirmação do lugar social, de gênero e etário dos sujeitos sociais. Sem cabeça ou outros membros associados aos croquis, sem cores que evidenciem o lugar do feminino ou formas que lhe sejam atribuídas condicionadamente, os desenhos de Varvara são a expressão do não feminino, do não gênero e de uma sociedade que queria suplantar o sistema de moda. Enfim, concluindo este breve texto, pode-se afirmar que os trajes de Meirelles são portados por corpos femininos, cujo gênero é facilmente atribuído pela forma corporal e traços fisionômicos desenvolvidos pelo artista brasileiro, os de Stepanova, por sua vez, se apresentam sem corpos e sem gêneros. Nos dois casos há um forte distanciamento do sistema de moda. Na opção de Meirelles o que se evidencia é o registro preciso de uma tradição artística ligada ao desenvolvimento das técnicas de panejamento e representação dos trajes em corpos com movimento. Na de Stepanova a evidencia também se construiu no campo artístico, no caso de ruptura com um sistema ocidental de produção de trajes e de uma forma de representação, propondo o uso de uma lógica construtivista que primava pelo geométrico e por um ideal de desconstrução, que pretendia desmontar a norma estética vigente no Ocidente para o corpo, o gênero e mesmo o artístico. Em ambos, uma marcada de tempo e espaço precisos. A formação acadêmica firmada no exercício constante e observação dos grandes mestres para o jovem Victor, enquanto a busca inquieta e incessante de ruptura e inovação para a também jovem Stepanova que pretendia desarticular a proposta ocidental firmada num modelo de feminino e de beleza vestimentar. Ambos têm um compromisso com o rompimento do presente, seja congelando o passado ou antecipando o futuro. II Congresso Internacional Sobre Culturas 478 Portanto, espera-se que ao comparar estes desenhos de trajes, realizados por cada um dos artistas, se tenha despertado uma discussão e inquietação a todo espectador dos modelos da última tendência de moda, que numa vontade de antecipação do futuro, pelas composições que apresentam, podem reafirmar modelos de gênero, como Meirelles fez ou propor rupturas, negações e novas concepções, como Stepanova o faz com seus trajes esportivos de 1924. REFERÊNCIAS BRIONY, Fer. BATCHELOR, David. WOOD, Paul. Realismo, Racionalismo, Surrealismo: A arte no entre-guerras. Tradução de Cristina Fino. São Paulo: Cosac&Naify Edições Ltda, 1998. CATÁLOGO DE EXPOSIÇÃO DOS ESTUDOS DE TRAJES ITALIANOS DE VICTOR MEIRELLES. Florianópolis: Museu Victor Meirelles, 2006. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998. ______. 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A Arte Moderna: Século XIX e XX Ensaios Escolhidos. Tradução de Luiz Roberto Gonçalves. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010. TURAZZI, Maria Inez. Victor Meirelles: novas leituras. São Paulo: Studio Nobel Museu Victor Meirelles, 2009. XEXEO, Monica. Victor Meirelles, um artista do império. Rio de Janeiro: Museu Nacional de Belas Artes, 2004. II Congresso Internacional Sobre Culturas 480 ESTÉTICA E ENGENHARIA: UMA DISCUSSÃO DAS POSSIBILIDADES PARA ALÉM DA RACIONALIDADE TECNOLÓGICA Adriana Santos Auzani 180 João Rodrigues 181 Levi Leonido 182 RESUMO O objetivo deste artigo é apreender a racionalidade tecnológica no contexto da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Única no país com esta denominação, ela tem a maioria dos seus cursos voltados à formação de engenheiros no Brasil. Junto a essa formação, incluímos o estudo da estética, como discussão alternativa, por entendê-la significativa na formação social do sujeito enquanto dimensão emancipatória gerada no movimento de criação e de inovação tecnológica e que hoje é deixada em segundo plano nesse contexto. Este artigo constituiu-se a partir da revisão das ideias de Herbert Marcuse, Adorno, Habermas e Horkheimer, Rancière , os quais abordam a presente temática sob a perspetiva da autonomia do sujeito em oposição às interpretações normativas e tecnocráticas da sociedade. Palavras-chave: Educação tecnológica. Estética. Teatro. Engenharia. Arte. ESTHETICS AND ENGINEERING: A DISCUSSION OF THE POSSIBILITIES BEYOND THE RATIONALITY OF TECHNOLOGY ABSTRACT The purpose of this article is to understand the technological rationality in the context of the Federal Technological University of Paraná. Unique in the country for its name, the majority of its courses are aimed at training engineers in Brazil. Along with such training, the study of aesthetics has been included, as an alternative argument, by understanding its significance in the social formation of the subject as an emancipatory dimension generated in the movement of creation and technological innovation which has today been third-stringed in this context. This article arose from the review of Herbert Marcuse, Adorno, Horkheimer and Habermas’ ideas, Rancière, which address the present theme in the perspective of the individual’s autonomy as opposed to the normative and technocratic interpretations of society. Keywords: technological education, aesthetics, theater, engineering, art. 180 ADRIANA SANTOS AUZANI. Professora Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Doutoranda do curso em Ciências da Educação na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Correio eletrónico: auzani.coinf@gmail.com. 181 JOÃO BARTOLOMEU RODRIGUES - Professor da Escola das Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Direção do Doutoramento em Ciências da Educação. Centro de Investigação: Instituto de Filosofia da Universidade do Porto. Correio eletrónico: jbarto@utad.pt. 182 LEVI LEONIDO FERNANDES DA SILVA – Professor Escola das Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Diretor da Revista Europeia de Estudos Artísticos. Direção do Doutoramento em Ciências da Educação. Centro de Investigação em Ciências e Tecnologias das Artes – Universidade Católica Portuguesa - Porto. Portugal. Correio eletrónico: levileon@utad.pt. II Congresso Internacional Sobre Culturas 481 A formação do profissional, ética e cultural para antecipar o desenvolvimento científico e tecnológico, requisitado na sociedade mundial, traz preocupações sobre a formação do sujeito da ação que atua na sociedade. Nesse contexto de formação tecnológica, está a Universidade Tecnológica Federal do Paraná- UTFPR a qual nasce como uma escola de Aprendizes e artífices em 1909, no Paraná, Brasil, com o objetivo de qualificar mão-de-obra para a indústria nascente daquela época e que, desde então, ocupa-se em formar, com padrão de excelência, vários profissionais em nível técnico e acadêmico em diversas áreas do conhecimento. A discussão aqui circunscreve-se aos cursos de engenharia da UTFPR. Dentre os teóricos buscados estão Herbert Marcuse, Theodor W. Adorno, Jungen Habermas e Max Horkheimer, os quais abordam a presente temática sob a perspetiva da autonomia do sujeito em oposição às interpretações normativas e tecnocráticas da sociedade. Neles, busca-se o entendimento da formação do engenheiro pautada num indivíduo ativo e crítico potencializada pela via estética, por ela proporcionar o habitar e o construir contextos sociais, políticos e culturais os mais diversos possíveis; compreender a função dela é encontrar a universalidade que a arte contém em si, ciência, história e humanidade, ou seja, pela via da Estética conjugam-se, com efeito, o sensível e a ideia, um elo que, do mundo das perceções, vai direto à alma do universo. Para tanto, a linguagem escolhida, a arte dramática, é o teatro, pelo fato de essa arte traçar um modelo global de racionalidade, onde a forma de constituição estética “é uma assembleia, na qual agentes do povo tomam consciência da sua situação e discutem seus interesses (...) é o ritual purificador onde uma coletividade é posta na plena posse das energias que lhe são próprias”( RANCIÈRE, 2010, pp. 11,13). O objetivo deste artigo é compreender a racionalidade tecnológica no contexto da UTFPR. Única no país com esta denominação, ela tem a maioria dos seus cursos voltados à formação de engenheiros no Brasil. Junto à formação tecnológica, incluímos o estudo da estética, como discussão alternativa, por entendê-la significativa na formação social do sujeito enquanto dimensão emancipatória gerada no movimento de criação e de inovação tecnológica. Este estudo da racionalidade tecnológica com estética traz uma discussão sobre a importância de se estabelecer um o diálogo entre a objetividade e a subjetividade que envolve processo de formação do engenheiro na UTFPR. II Congresso Internacional Sobre Culturas 482 Assim, a discussão da proposição intelectual da estética vir junto à formação do engenheiro, mediada pelo teatro, é a possibilidade de por em diálogo a razão tecnológica, ontológica, com a razão estética, subjetiva resultando em uma formação do saber-fazer-para quê da tecnologia, ou seja, um engenheiro dotado de um saber e de uma formação que vai do olhar à ação de forma emancipada. ESTÉTICA, UM CONTRAPONTO NA FORMAÇÃO TECNOLÓGICA A discussão das instâncias, por vezes antagônicas, da razão estética e da razão tecnológica exigem, neste momento, um entendimento de conceitos que permeiam a formação tecnológica. Nisso, encontramos o da razão instrumental ligada à aplicação do conhecimento; o conceito de tecnologia voltado à construção do conhecimento, pleno e o relacional, onde há a integração das potencialidades humanas da práxis e da ciência. De acordo com o pensamento de Habermas “o alargamento de espaços de ação para os indivíduos, possibilita o exercício da autonomia pessoal e da autorrealização individual, da liberdade de escolha.” Entendemos que a estética, aliada ao pensamento científico e ao conhecimento de um proce sso, traz entre as diversas disciplinas dos cursos acadêmicos, um processo intersubjetivo de reconhecimento mútuo, ou seja, o sujeito surge dialeticamente por meio da comunicação com o outro, seja pela teoria científica, seja pela arte; os símbolos, permitem ao indivíduo, de acordo com Habermas (1978, p. 43 ), “ racionalizar ações em vista das reações recebidas” ; para ele, “a individuação não pode ser representada como a autorrealização de um sujeito isolado e solto, mas como um processo de socialização e de constituição de uma história de vida auto consciente mediada pela linguagem, na qual focamos a da estética.” Neste sentido, Marcuse relaciona os traços próprios da tecnologia ao contexto social; enquanto razão, a tecnologia permeia a sociedade como um todo e firma-se também como política. Habermas assinala o exame de Marcuse a cerca da ciência e da técnica contemporânea como ideologia tecnocrática, onde a sociedade constitui-se em um grande aparato técnico no âmbito institucional e normativo das sociedades industriais, concebidos de forma simultânea e indissociável. Ou seja, a racionalidade do âmbito II Congresso Internacional Sobre Culturas 483 institucional pode medir-se pela “relação entre sistema de dominação e tradição cultural (...): em que medida os valores culturais são consumidos como ideologias ou sufocados como utopias” (HABERMAS, 1978, p. 354). Na análise de Pedro Ferraz, a ideologia ao ignorar o caráter valorativo cultural politicamente legitimador das instituições sociais, ao pretender controlá-las tecnicamente, projeta toda a sociedade como um grande sistema regulador; um sistema que deve operar segundo uma regularidade e que, mesmo como ocasional surgimento de eventos acidentais, seja capaz de ser reestabelecido com correções externas; um imenso sistema homem-máquina no qual a ação humana se esvazia de conteúdo moral e valorativo e se limita a um comportamento condicionado e repetitivo. Nesse sentido, Habermas (1978, p. 357), alerta que “somente através de uma discussão reflexiva e não especializada é que se pode configurar um progresso técnico-científico vinculado à práxis social consciente. Por esta razão, interpomos a esta dinâmica, a estética, onde Marcuse dizia ser possível pensar uma tecnologia alternativa, moldada segundo os princípios de uma racionalidade estética, a qual promove a reconciliação entre razão e emoção, uma relação de integração, e não de dominação, entre homem e natureza. Desse modo, consideramos o que destaca Andrew Feeberg, ao propor uma teoria crítica da tecnologia, quando em 1990 traz o conceito de tecnologia em dois níveis, nos quais tanto a dimensão objetiva quanto subjetiva têm espaço determinante; ele busca o entendimento de tecnologia como um processo eminentemente social “ afirma a especificidade social e histórica dos sistemas tecnológicos, a relatividade do desenho e do uso das técnicas em relação à cultura e a estratégia de uma variedade de atores técnicos” (FREDMAM, 1999), incorporada à tecnologia, segundo ele, há uma dimensão de valores, de paradigmas e hábitos sociais que muitas vezes se opõem à lógica da racionalização. Unir polos antagônicos como os da razão tecnológica e da estética, equivale a unir um princípio do homem fragmentado do nosso tempo ao binômio políticoeconómico resultando em uma formação tecnológica plena na realização do saberfazer para quê da tecnologia. Permeia, no entanto, essa relação, a razão capitalista, onde a matematização do conhecimento é transposta ao acadêmico e dele solicita medidas de eficiência, remetendo a um domínio tecnológico; para tanto, há de se superar a indiferença dada à formação humana, nesse caso, na formação tecnológica; para tanto, trazemos a estética agindo nos contextos de formação de engenheiros na II Congresso Internacional Sobre Culturas 484 perspetiva criativa e de inovação resultante de um conjunto teórico prático aberto à ação do pensamento subjetivo. Essa clássica cisão entre a ciência e arte remete ao contraponto da razão estética e da razão tecnológica. De acordo com Silva (2013, p. 31), a razão é coetaneamente subjetiva e objetiva. Subjetiva, no tocante à condução autônoma da vida do próprio homem. Objetiva, pois visa à relação do homem com o mundo, compreendendo-o agindo sobre ele. Em se tratando de conceitos, encontramos o da razão instrumental, ligado à aplicação do conhecimento; o conceito de tecnologia voltado à construção do conhecimento, pleno e o relacional, onde há a integração das potencialidades humanas da práxis e da ciência. A via filosófica é uma das trilhas escolhidas para o entendimento das características da racionalidade na contemporaneidade. Marcuse recupera (1997) a centralidade da estética numa tentativa de acomodá-la em uma nova conceção de realidade, na qual a existência e o livre jogo das faculdades humanas se tornam complementares. Ele desenha um novo princípio de relação entre o homem e o mundo, no qual o racional possa incorporar a sensibilidade e a imaginação, emergindo dessa vinculação uma razão tecnológica de propósito eminentemente libertária. Faz, com isso, esse filósofo, a transposição do princípio do desempenho para o princípio estético. É essa, capaz de fazer transcender a formação tecnológica, por vezes inibida por uma ordem social que afasta o homem de suas dimensões e aspirações. Já a razão que dita o modo de pensar e de agir dos indivíduos, a razão tecnológica, domina o contexto técnico-científico e a organização social do trabalho e, consequentemente direciona operacionalização das forças produtivas humanas. A partir disso, observa-se uma lógica de controle onde o cientista desta realidade tecnológica é funcional, onde a falta de participação do sujeito, do humano frente a capacidade criativa tem reduzida a possibilidade de inovação necessária ao aumento da produtividade em determinado contexto. Junto a isso, vemos a capacidade de inovar do cientista, ou do engenheiro potencializada pela arte por ser ela uma disposição para produzir (Poièsis) acompanhada de regras. Produzir é “trazer a uma existência das coisas que são suscetíveis de ser ou de não ser e cujo princípio de existência reside no artista. Segundo Platão, a Arte é, antes de tudo, fabricadora, afirmativa, autônoma. Entendemos a arte como produtora de conhecimento em um processo por conduzir o pensar, o interrogar a realidade; quando se interroga o que se II Congresso Internacional Sobre Culturas 485 vê na obra de arte, se produz estética e ao interrogar a sociedade, se produz realidade; a reflexão de tais contextos de acesso à estética é o engendramento que produzirá, é a antecipação de desenvolvimento para esta ou aquela área do conhecimento. A fim de alcançar tal propósito, a humanidade precisaria desenvencilhar-se de necessidades repressivas e trilhar um caminho que a levasse ao desenvolvimento de novas necessidades vitais. Entre as necessidades opressoras Marcuse, lista a constante luta pela existência, o conformismo, a adequação à normalidade, a produtividade calcada no desperdício, o sufocamento dos instintos. Segundo ele, a dimensão estética da ação humana é que abre a experiência humana livre de restrições e propósitos a uma relação do sujeito com a realidade (FERRAZ, pp.50-51) Ainda que em contraponto à educação tecnológica, comprovada pelo protagonismo de um currículo eminentemente voltado às disciplinas técnicas e ao conhecimento tecnológico, afirmamos a importância da estética nesse meio por Hegel, citado por Marcuse, quanto destaca que “O Ser é, na substância, um sujeito. A ideia de substância como sujeito concebe a realidade como um processo dentro do qual todo ser é a unificação de forças contraditórias; sujeito designa não somente o eu ou a consciência epistemológica, mas um modelo de existência, uma unidade que se autodesenvolve em um processo contraditório.” (Marcuse, 1978, p. 21) UTFPR, UM CONTEXTO EDUCACIONAL DE FORMAÇÃO TECNOLÓGICA ÚNICO NO BRASIL A história da UTFPR teve início no século passado. Sua trajetória começou com a criação das Escolas de Aprendizes Artífices em várias capitais do país pelo então presidente, Nilo Peçanha, em 23 de setembro de 23 de setembro de 1909. No Paraná, a escola foi inaugurada no dia 16 de janeiro de 1910. Após passar por várias nomenclaturas que se justificaram nos cursos que eram sendo ofertados por essa instituição de ensino, a partir da demanda do mercado, chegase à UTFPR, primeira e única universidade tecnológica do Brasil. Ela é pública, mantida pelo governo federal, e sua sede esta localizada na cidade de Curitiba, capital do Estado brasileiro do Paraná. Abrange cursos técnicos integrados e ensino superior, oferecendo: Bacharelados, Licenciaturas e Cursos Tecnológicos, onde muitos acadêmicos podem estender sua formação para Mestrados e Doutorados em diversas áreas de conhecimento. II Congresso Internacional Sobre Culturas 486 A UTFPR conta com treze campi no Estado do Paraná, nas cidades: Apucarana, Campo Morão, Cornélio Procópio, Curitiba, Dois Vizinhos, Francisco Beltrão, Guarapuava, Londrina, Medianeira, Ponta Grossa, Pato Branco, Toledo e Santa Helena. Tem um total de 975 docentes efetivos e 166 substitutos da carreira de 1º e 2º grau, 236 professores efetivos e 48 substitutos da carreira de ensino superior e 640 servidores técnico-administrativos. No quadro docente, 143 são mestres e 95 doutores. O corpo discente é constituído por 11.942 estudantes, sendo 1.132 estudantes matriculados em 19 cursos de educação profissional técnica de nível médio; 8.088, em 27 cursos superiores de tecnologia; 2.371, em 22 cursos de bacharelados (incluindo-se as engenharias) e 2 licenciaturas; 446 inscritos em 5 programas de mestrado e 54, em um programa de doutorado. A UTFPR registrou, em 2006, no cadastro do CNPq, um total de 15 grupos, com 42 linhas de pesquisa e 117 pesquisadores envolvidos. Tem como o objetivo a formação de profissionais ativos e dedicados ao desenvolvimento nacional; a UTFPR conta com cursos como o Técnico Pós-Médio (técnico para alunos que já concluíram o ensino médio), Tecnologia, Graduação, Pósgraduação, sendo o curso de mestrado em Engenharia Elétrica o primeiro do Paraná e o curso de Doutorado também de Engenharia Elétrica o primeiro e o único do Paraná. Toda esta estrutura pauta as ações de ensino no PDI (Plano de Desenvolvimento Institucional) 2013-2017 para balizar o cotidiano desta Universidade, orientando e dimensionando recursos, articulando pessoas, monitorando e, por conseguinte, dos princípios, finalidades e objetivos definidos pela Lei de criação da UTFPR. O Projeto Político-Pedagógico Institucional (PPI) da UTFPR foi elaborado em processo de construção coletivo e aprovado pela Deliberação nº. 01/2007 do Conselho Universitário (COUNI). Na sua conceção, o PPI foi estruturado com vistas ao alcance dos seguintes objetivos: (i) Construir uma identidade própria para a UTFPR, sem desconsiderar o conhecimento acumulado em quase cem anos de existência da Instituição; (ii) Explicitar em seus valores, a atuação prioritária na área tecnológica; (iii) Articular o ensino, a pesquisa e a extensão; (iv) Orientar a mobilidade acadêmica, nacional e internacional; (v) Ampliar a articulação e a interação com a comunidade externa; II Congresso Internacional Sobre Culturas 487 (vi) Estabelecer a gestão com sistema de representação de todos os segmentos nos planos e ações nas diversas instâncias da Universidade. Contatamos, nisso, a organização e a gestão de processos de formação humana na UTFPR, voltados à educação pautada na produtividade; a exigência por profissionais de saberes universais é frequentemente evocada pelo mercado de trabalho atual, o que faz com que se repense a presença da arte nos contextos da educação tecnológica. No entanto, sabe-se da tensão existente entre a arte e a práxis nesse meio, e propomos uma reflexão da formação tecnológica, onde, na relação sujeito-objeto, possa haver possíveis relações entre estética e Educação Tecnológica, no sentido de refundir arte, ciência e tecnologia no contexto educacional tecnológico é, nesse momento, em certa medida, uma volta ao termo techné, dos gregos que representa nesse contexto de discussão: “o poder criador de uma sabedoria total e secreta, e que teria fundamentado todas as ciências e previsto todas as invenções — capaz de tudo conhecer e tudo realizar”. Assim, trabalhar, conjuntamente, as dimensões da arte, da ciência e da tecnologia, é, de acordo com Grinspun (1999), compromisso de uma educação de qualidade que tem na tecnologia a base tanto de um saber-fazer, como de um saber-fazer-para quê. Ou seja “Tanto a construção do conhecimento para gerar a tecnologia, como a produção e a avaliação da tecnologia são tarefas que necessitam da educação como fundamentação e princípio para o alcance de seus objetivos” (GRINSPUN, 1999, p. 55). A contribuição à educação tecnológica, nesse sentido, vem pautada num indivíduo ativo e crítico, à medida que traz a via estética como uma possibilidade de relação entre educação tecnológica e arte imprimindo um novo diálogo onde as interfaces arte e educação tecnológica venham a intensificar tanto a formação de um profissional competente, quanto de um ser humano consciente dos valores sociais, ou seja, a consciência do impacto, da repercussão de sua engenhosidade no contexto social. TEATRO, RAZÃO ESTÉTICA REPRESENTATIVA NO CONTEXTO DE FORMAÇÃO TECNOLÓGICA A experiência estética do teatro posta em pauta nesse artigo, advém de uma experiência, quase que invisível, do teatro na UTFPR, campus há 20 anos. A pouca II Congresso Internacional Sobre Culturas 488 importância desta atividade no referido contexto é observada à medida que os espaços e investimentos para essa atividade são quase inexistentes. Feitas tais constatações e refletindo sobre a persistência do teatro na instituição em meio a sua s constantes alterações de nomenclaturas e criação de novos cursos, vemos alguns alunos, principalmente os que vem de outros Estados, que solicitam, a cada ano, que o teatro resista, pois precisa de um grupo para além da sala de aula, que é tímido, que não consegue se expressar em público, dentre outros objetivos; isso, no entanto, tais considerações por parte dos alunos, constiuem-se em desafio ao coordenador do projeto de extensão, no caso o teatro, pois frente aos parcos incentivos e investimentos nessa arte está também a pouca valorização da arte nesse contexto. Iniciamos, então, pelo entendimento no que seja o teatro e as implicações dele no contexto contraditório das tecnologias. O teatro, sob a ótica de Rancière (2010, p. 130) “ É o único lugar de confrontação consigo próprio, enquanto coletivo. Significa que o teatro é uma forma comunitária exemplar. Introduz uma ideia de comunidade como autopresença, por ocasião à distância da representação (...) O teatro surgiu, então, como uma forma de constituição estética, da constituição do sensível, da coletividade (...) comunidade como maneira de ocupar um lugar e um tempo, como o corpo em ato oposto ao simples aparelho das leis, como um conjunto de percepções, de gestos e atitudes que precede e pré-configura as leis e as instituições políticas. Assumir sentimentos humanos, de alerta de medo, de alegria, de surpresa põe o ser em trans (ir além) formação (negação do antigo); a presença do novo faz o espectador repensar, questionar, reformular ou renovar conceitos, desafiando-o a romper com preconceitos, mitos, tabus; assumem a imprevisibilidade a experimentação, a instabilidade e à necessidade de inovar para avançar. Durante determinada encenação, perpassam o pensamento de quem a assiste uma peça de teatro, diante do conflito em pauta, ou da cena cómica proposta, o que fazer, como fazer e com quem fazer diante de tais situações encenadas e a partir disso, dão impulso a atitudes criativas gerando ansiedade durante a uma realidade instável; pensar e repensar criticamente; refletindo sobre o que vê, amplia e aprofunda a lucidez e o poder de síntese da razão. Tais experiências com o teatro também são vividas em processos investigativo no contexto da educação tecnológica quando há o processo de apreensão de um conhecimento ou de uma investigação científica; no caso da II Congresso Internacional Sobre Culturas 489 experiência catártica com o teatro, o sentido libertador e criativo desencadeado por essa vivência estética, traz dimensões afetiva, humanizadoras, à formação tecnológica, permitindo trocas e um jogo aberto das relações humanas, ampliando os sentidos e a perceção do contexto. Entrepomos a isso o pensamento de Hegel (MARCUSE, l997, p. 18) destaca “que o pensamento deve governar a realidade, o que os homens pensam ser verdadeiro e bom deve realizar-se na organização do real da sua vida social e individual (...) a racionalidade é possível pela erupção do sujeito no próprio conteúdo da natureza e da história. A importância do teatro enquanto fator de humanização no contexto de formação tecnológica, fica desta forma justificada uma vez que, rompe, no momento em que libera o homem do fazer e o confronta com a própria realidade, desalienandoo. Nesse sentido, afirma Hegel (idem, 1997. p. 220) que “só o homem tem o poder de auto-realização, o poder de ser um sujeito que se autodetermina em todos os processos do vir-a-ser, pois só ele tem entendimento do que sejam suas potencialidades, de adaptação da sua vida às ideias da razão (...) a mais importante categoria da razão é a liberdade (...) o poder de agir de acordo com o conhecimento da verdade, o poder de ajustar a realidade às potencialidades”. Deste modo, trazemos a questão estética para o contexto da formação tecnológica como presença considerável no processo criativo dos acadêmicos dos cursos de engenharia da UTFPR no que diz respeito a capacidade de inovarem, uma vez que “a razão só é uma força objetiva e uma realidade objetiva porque todos os modos de ser são, uns mais, outros menos, espécies de subjetividade, modos de realização. O sujeito e o objeto não estão separados por um abismo insuperável, pois o objeto é, em si mesmo, uma espécie de sujeito, e todos os tipos de objetos culminam no sujeito compreensivo capaz de realizar a ação (...) a realização é uma força histórica e a palavra que designa razão como história é espírito, a qual não é uma cadeia de atos e acontecimentos, mas uma luta incessante para adaptar o mundo às crescentes potencialidades humanas”. Razão e Revolução p 23) A imaginação é o que nos leva para além, é a transdisciplinaridade; nós imaginamos e a ciência se serve desta imaginação para criar, para engenhar e finalmente inovar nas mais diferentes áreas do conhecimento. Acreditamos, assim, na potencialidade da arte enquanto potencializadora do contexto de formação tecnológica II Congresso Internacional Sobre Culturas 490 à medida que ela vem a por os sentidos e a percepção dos acadêmicos em contato direto com o ser humano para o qual, em termos de solução de problemas, deve estar a tecnologia, ou devem ser destinadas as criações dos engenheiros; voltadas ao progresso da humanidade e para tanto, esse aluno deve estar atento ao outro e ao mundo ao qual faz parte. CONCLUSÃO É inevitável aceitar a inovação na vida do ser humano, em todas as épocas, em todos os tempos, pois a humanidade está em movimento de criação e de invenção ininterrupto, ou seja, a evolução é inevitável. Nesse processo está presente a educação solicitada por vários contextos; dentre os quais está a universidade tecnológica, de onde provém a possibilidade de soluções inovadoras aos mais diversos tipos de problemas e, consequentemente, de aumento de produtividade para o país. A motivação para a escrita desse artigo se deu mediante a solicitação do chefe de graduação (PROGRAD), Álvaro Alencar ao corpo docente da UTFPR, em Pato Branco em reunião com os professores no início deste ano de 2015, quando expôs junto ao grupo de graduação dessa instituição, a necessidade de melhorarmos o que já existe em termos de currículo e de criação de um itinerário alternativo para uma maior autonomia do aluno frente aos desafio das competências da profissão de engenheiro. Partimos para o itinerário alternativo do diálogo entre as interfaces estética e engenharia pelo teatro, como via representativa da estética nesse contexto, uma vez que a arte dramática é capaz de contribuir à emancipação do sujeito, pois conforme assinala Jacques Rancière (2010, p. 31), o teatro tem a função de “desmantelar a fronteira entre os que agem os que veem, entre indivíduos e membros de um corpo coletivo”. Constatamos junto aos filósofos Marcuse e aos demais teóricos referendados nesse artigo, a instauração de um possível diálogo entre arte e educação tecnológica desde que as instâncias envolvidas nesse processo de ensino estejam abertas à discussão da qualidade e da supremacia do pensar humano, onde a objetividade e a subjetividade sejam igualmente valorizadas e estimuladas enquanto potencialidade das atitudes do homem que pensa e opera a tecnologia. II Congresso Internacional Sobre Culturas 491 REFERÊNCIAS Adorno, T. W. (1995). Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Bastos, J. A. S. L. (Org.). (1998). Tecnologia e integração: Coletânea "Educação e Tecnologia". Curitiba: CEFET-PR. Cauquelin, A. (2005). Teorias da arte. São Paulo: Martins Fontes. Domingues, D. (Org.). (1997). A arte no século XXI: A humanização das tecnologias. São Paulo: Fundação Ed. UNESP. Enguita, M. H. (1993). Trabalho, escola e ideologia: Marx e a crítica da educação. Porto Alegre: Artes Médicas. 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O texto tem como pano de fundo as mudanças culturais na era da convergência e das narrativas transmídia. Palavras-chave: Universos ficcionais afetivos. Narrativas transmídia. Educação. Escola. Interesse. Estudante. INTRODUÇÃO Qualquer pessoa que tenha frequentado a praia do Arpoador, nos últimos anos, deve ter se deparado com o “Jack Sparrow do Arpoador” (O DIA, 2013), uma versão nacional do personagem interpretado por Johnny Depp, em “Piratas do Caribe”. Nas manifestações populares de 2013, ocorridas no Brasil e no exterior, foi possível avistar cartazes “diferentes”, com os dizeres: “Unbowed Unbent Unbroken”, “Dracarys” e “The Doctor Wouldn’t let this happen”186 (AMARAL, 2015). A cada feira de games, dezenas de jovens são vistos fazendo cosplay. Incursões de narrativas fictícias no mundo real, esses fenômenos mostram a importância atribuída pelo público a alguns universos ficcionais, que acompanham o dia a dia das pessoas, seja em protestos políticos, na batalha pelo sustento ou em muitas outras situações cotidianas. Aqui chamadas de “universos ficcionais afetivos”, essas criações têm depositado em si 183 Jornalista e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFBA – iuri.rubim@gmail.com 184 Doutora em Educação e professora associada da Faculdade de Educação da UFBA - bonilla@ufba.br 185 Doutor em Comunicação e professor titular da Faculdade de Educação da UFBA – nelson@pretto.info 186 Os dois primeiros cartazes fazem referência à série de livros Crônicas de Gelo e Fogo, do autor George R. R. Martin (transformada em série de TV, pelo canal HBO), e o terceiro, à série Doctor Who, do canal Syfy. O primeiro quer dizer: “Insubmissos, Não Curvados, Não Quebrados” e é o lema da Casa Martell, uma das dinastias na narrativa. O segundo, uma ordem (intraduzível, pois está na língua fictícia “valiriano”) para que dragões cuspam fogo. O terceiro, “O Doutor não deixaria isso acontecer”, em referência ao personagem principal da série. II Congresso Internacional Sobre Culturas 493 grande investimento emocional de leitores/ espectadores – uma parcela significativa deles constituída de jovens e adolescentes. É possível citar como exemplos os universos que abrigam as narrativas de Harry Potter Matrix Star Wars Star Trek Game of Thrones Batman Vingadores Turma da Mônica, dentre muitos outros. Embora a adesão emocional remonte às primeiras histórias contadas, o ambiente ultraconectado da atualidade permite que esses universos hospedem narrativas transmídia – um tipo de história que se desenvolve através de vários meios de comunicação e pode ser lida, assistida (e vivida) colaborativamente. A energia dedicada por jovens aos universos ficcionais afetivos contrasta com sua experiência escolar, tida como “algo terrivelmente ‘chato’”, “uma espécie de calvário cotidiano para os dinâmicos jovens contemporâneos” (SIBILIA, 2012, p.65). A falta de engajamento e interesse dos estudantes, bem como a distância entre as escolas e a realidade dos alunos, são considerados hoje problemas centrais na educação brasileira. Este artigo discute o potencial da incorporação dos universos ficcionais afetivos nas práticas pedagógicas cotidianas das escolas como fator de aproximação com os estudantes. ABISMO ENTRE A ESCOLA E SEUS ESTUDANTES Ainda nos idos de 1953, o educador baiano Anísio Teixeira (1977) escrevia sobre “o ‘arcaísmo’ da escola brasileira”. Teixeira criticava o modelo da atividade escolar, centrada em aulas em que somente o professor fala e na ideia de que estudar corresponde a fixar de memória os ensinamentos verbalmente transmitidos nas aulas. “Esta pedagogia podia funcionar perfeitamente numa escola da idade média”, conclui Teixeira (p.18). Não seria absurdo dizer que a descrição de Teixeira se aplica à pedagogia exercida em muitas escolas da atualidade. (2012) e Dayrell (2012), fazem eco às críticas de Teixeira quanto ao descolamento da escola em relação à sociedade de seu tempo. "Será que o modelo clássico da sala de aula - aulas expositoras na escola, lição de casa solitária à noite - ainda faz sentido numa era digital?”, reflete o criador da Khan Academy (2013, p.14). Alves e Pretto relatam a mudança pela qual passou a escola, criada como um espaço de lazer e prazer, que “começa a perder esse significado, passando a ser vista como um lugar onde se vai buscar e adquirir novas informações, na maioria das II Congresso Internacional Sobre Culturas vezes de forma 494 descontextualizada, tornando-se um lugar enfadonho e desprazeiroso” (2008). Já Sibilia argumenta que “A apatia e o escasso entusiasmo que eles demonstram em tais contextos seriam sintomáticos dessa falta de sentido, evidenciada também pelas altíssimas taxas de “deserção escolar” que se constatam em todo o mundo” (2012, p.65). A pesquisa Motivos da Evasão Escolar, da Fundação Getúlio Vargas, constata que o principal motivo de abandono da escola, no Brasil, para 40% dos estudantes do ensino médio, é o “desinteresse” (FGV, 2009). Coordenador da pesquisa, Marcelo Néri assevera que não há mais crise de oferta de educação no país e, sim, de demanda. Na opinião de Néri, este é um desafio muito maior, pois implica em “convencer o jovem que a escola vale a pena” (NÉRI: 2009). Uma das trilhas possíveis para superar a distância entre as escolas e a realidade dos alunos e reanimar a relação estudanteescola passa pela compreensão das práticas transmídia na cultura da convergência. NARRATIVAS TRANSMÍDIA NA ERA DA CONVERGÊNCIA Esta é uma era de convergência dos meios de comunicação. O código binário forneceu uma base comum para o processo de digitalização do mundo. Zeros e uns são a linguagem universal que permite dar fluidez (BAUMAN, 2001) a produtos midiáticos e práticas sociais, antes fundados no analógico. “O código digital é um denominador comum para realizar traduções integrando as mídias analógicas anteriormente separadas”, explica Santaella (2003, p.146). O pesquisador Henry Jenkins propõe ir além do aspecto tecnológico, agregando ao fluxo de conteúdos midiáticos em múltiplos suportes (possibilitado pelo código binário) uma nova relação de cooperação entre mercados de mídia e “o comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que desejam” (2008, p. 27). Enquanto Jenkins considera a convergência uma “transformação cultural” (p. 27/28), Santaella adiciona mais um ingrediente à mistura, lembrando que a convergência também se dá no plano das linguagens, criando formatos híbridos do que anteriormente poderia ser considerado “cinema”, “rádio” ou “televisão”, dentre outros. Assim, o mundo “fora da escola” passa por uma transição acelerada do analógico para o digital. A crescente digitalização das mais variadas práticas sociais tem permitido que a produção cultural da humanidade, convertida em bits e bytes, II Congresso Internacional Sobre Culturas 495 circule livremente por cada vez mais suportes. Tais suportes, a seu turno, multiplicamse em quantidade, variedade e funções, facilitando ainda mais o fluxo de conteúdos entre as mídias. Como ratifica Jenkins, “a convergência das mídias torna inevitável o fluxo de conteúdos pelos múltiplos suportes midiáticos” (2008, p.145). Este contexto abre espaço para inovações estéticas e formais. “Estamos descobrindo novas estruturas narrativas, que criam complexidade ao expandirem a extensão das possibilidades narrativas, em vez de seguirem um único caminho, com começo, meio e fim”, afirma Henry Jenkins (2008, p. 165). O estudioso americano enfatiza que os novos formatos narrativos presumem a ambiência em rede e interação entre várias mídias. E usa o exemplo da famosa franquia dos irmãos Wachowski: “Matrix é entretenimento para a era da convergência, integrando múltiplos textos para criar uma narrativa tão ampla que não pode ser contida em uma única mídia” (Ibid., p. 134). Segundo Carlos Scolari (2011), as narrativas transmídia podem ser definidas a partir de duas variáveis: (a) história é contada através de vários meios e plataformas e (b) os prossumidores colaboram na construção do mundo narrativo. Sobre a primeira variável, o autor defende que, em oposição aos relatos monomediáticos, nas narrativas transmídia o relato pode começar em um meio e continuar em outros. “Pode-se dizer que o relato aproveita o melhor de cada meio para se contar e se expandir” (Ibid. tradução nossa)187. Acompanhar a história em várias mídias intensifica o conhecimento da história e a empatia estabelecida com o público. Segundo Gosciola (2014): “o engajamento sucessivo com cada mídia aumenta para a audiência a compreensão, o prazer e a afeição com a história”. O autor ressalta, porém, que “a incorporação da história em cada mídia precisa ser satisfatória por si só de modo a que o desfrutar de todas as mídias seja maior que a soma de todas as partes”. A segunda variável descrita por Scolari destaca o papel dos “leitores/espectadores” na criação das histórias. O autor argentino se refere a eles como prossumidores, na medida em que são consumidores que contribuem para a criação de um produto (a narrativa transmídia). 187 No original: “Podría decirse que el relato aprovecha lo mejor de cada medio para contarse y expandirse”. II Congresso Internacional Sobre Culturas 496 PROSSUMIDORES DE HISTÓRIAS Envolvido em uma narrativa transmídia, o leitor/espectador, consciente ou inadvertidamente, passa a “escrever” a história, quando coleta (coleciona?) fragmentos que compõem a narrativa e direciona a sua expansão. Ao amarrar estes fragmentos, o leitor/espectador muda de status. Torna-se também um autor – ou “prossumidor”, pois personaliza a narrativa a partir de sua trajetória. Esse processo de autoria é cada vez menos individualizado. Todos os dias, as lacunas e os mistérios das narrativas transmídia são debatidas por milhões de pessoas em posts de redes sociais, fóruns na internet e canais de vídeo em plataformas como o Youtube. Os fãs expõem toda a sua “erudição” a respeito das narrativas, revisando trechos de livros, falas de personagens nos filmes, acontecimentos ocorridos nas histórias em quadrinhos ou séries de TV. Juntos, criam, discutem, validam e repetem “teorias” sobre a origem de certos personagens ou desfechos possíveis para a trama. Conforme explica Jenkins, “A era da convergência permite modos de audiência comunitários, em vez de individualistas” (2008, p. 53). Massarolo e Mesquita expandem a percepção sobre o assunto: As jovens audiências já estão acostumadas a participar do processo criativo de construção dos personagens e de suas histórias, se constituindo no principal motivo da sua migração de uma plataforma para outra. Essas características transformam a narrativa transmídia na nova estética da cultura participatória, pois sua metodologia pressupõe a interatividade e a colaboração. (MASSAROLO, MESQUITA, 2013, p. 36) Muitos prossumidores decidem ir além de conectar partes da narrativa e investigar seus segredos. Assumem uma postura mais ativa e efetivamente passam a ampliar a história original, mesmo que à revelia dos autores originais. “Os consumidores [...] estão reivindicando o direito de participar da cultura, sob suas próprias condições, quando e onde desejarem”, alerta Jenkins (2008, p.228). A partir da existência de universos ficcionais com os quais cultivam ligações afetivas, os espectadores/autores escrevem finais alternativos, concebem novos personagens, criam desdobramentos totalmente imprevistos para as narrativas originais, controladas (?) pelos autores iniciais e corporações de entretenimento. Como afirma Scolari, II Congresso Internacional Sobre Culturas 497 [...] se existe um relato oficial (“cânone”), gerido pelo emissor, a este relato criado de cima para baixo (top-down) se devem somar as histórias vindas de baixo (bottom-up) pelos consumidores convertidos agora em produtores. Todo o domínio textual do “fandom” vem de baixo e se integra ao “cânone” oficial, contribuindo ainda mais para a expansão do mundo narrativo transmidiático. (2011, tradução nossa)188 As histórias produzidas pelos fãs percorrem todo o espectro da multimídia, isto é, são elaboradas em vídeos, animações, games, quadrinhos, texto, dentre outros. Ganharam muita evidência os sites de fanfiction (ficção de fã). Mais interessantes que os sites em si são as comunidades de colaboração criadas em torno deles. A atuação dos escritores amadores nas comunidades de fanfic (como costumam ser chamadas) vai muito além da postagem de textos. Boa parte dos autores trabalha para o desenvolvimento de toda a rede, atuando como editores ou beta readers. Segundo o próprio site Nyah! Fanfiction, Em linhas gerais, um beta reader (ou leitor beta) é aquele que avalia o trabalho do autor antes de ele ser "lançado ao mundo", ou seja, publicado. É uma espécie de leitor teste, que pode ajudar a analisar se determinada história "está pronta" ou se ela ainda precisa de alguns ajustes. E isso não apenas no aspecto gramatical, mas também no que diz respeito à redação, à estética, à construção do enredo, das personagens etc. (2008) O site ainda faz menção a outra função desempenhada pelos seus prossumidores, o critique partner: “Seu trabalho, mais refinado que o do beta (que normalmente pega uma fanfic pronta para ler) é acompanhar o escritor em todo o seu processo de composição da história” (ibid), numa relação muito mais próxima do binômio mentor-aprendiz que do formato de uma aula de redação. Essa ideia da acolhida e orientação dos iniciantes pela comunidade também é descrita por Jenkins: “Numa cultura participativa, a comunidade inteira assume uma parte da responsabilidade em ajudar os iniciantes na internet” (2008, p. 238). Aqui fica patente a ideia da inteligência coletiva em operação (LEVY, 2004), propiciando uma rede horizontal de suporte a novos escritores, que reproduz, renova e multiplica o conhecimento de seus elos. 188 No original: “si bien existe un relato oficial (“canon“) gestionado por el emisor, a este relato creado de arriba hacia abajo (top-down) se deben sumar las historias creadas desde abajo (bottom-up) por los consumidores convertidos ahora en productores. Todo el dominio textual del “fandom” surge desde abajo y se integra al “canon” oficial, contribuyendo aún más a la expansión del mundo narrativo transmediático”. II Congresso Internacional Sobre Culturas 498 A jovem Flourish, que publicou seu primeiro romance online aos 14 anos, indica um dos motivos do sucesso: “[...] uma coisa é discutir sobre o tema de um conto que você nunca ouviu falar e para o qual você não dá a mínima. Outra coisa é discutir o tema de um trabalho de 50 mil palavras sobre Harry e Hermione que um amigo levou três meses para escrever” (FLOURISH apud JENKINS, 2008, p. 236). O comentário da escritora expressa a distância entre a experiência vivida na escola e nas comunidades online de fanfiction. UNIVERSOS FICCIONAIS AFETIVOS E SEU POTENCIAL PARA A EDUCAÇÃO É perceptível que a adesão emocional é o motivador da relação dos fãs prossumidores, que complementam e ampliam as histórias. “Essas crianças são apaixonadas pela escrita porque são apaixonadas pelo assunto sobre o qual estão escrevendo” (JENKINS, 2008, p. 245). A noção de universos ficcionais afetivos, portanto, supõe intimidade com uma gramática própria, um conjunto de regras, leis e temas que estruturam qualquer história acolhida por determinado universo narrativo. Quem é fã de Jornada nas Estrelas sabe que negociação pacífica e respeito à diferença são pilares sobre os quais se edifica qualquer história envolvendo a USS Enterprise. O preconceito é central para as narrativas do universo mutante dos X-Men ser “dono da rua”, para os personagens criados por Maurício de Souza. Da mesma forma, ninguém espera um super-herói nas histórias de Harry Potter ou Star Wars – os únicos poderes admitidos nesses universos são, respectivamente, magia e o domínio sobre a “Força”. Um roteirista experiente explicou, de forma bastante simples, o caminho até a criação desses universos imaginados: Quando comecei, era preciso elaborar uma história, porque, sem uma boa história, não havia filme de verdade. Depois, quando as sequências começaram a decolar, era preciso elaborar um bom personagem, porque um bom personagem poderia sustentar múltiplas histórias. Hoje, é preciso elaborar um universo, porque um universo pode sustentar múltiplos personagens e múltiplas histórias, em múltiplas mídias (roteirista anônimo, citado por JENKINS, 2008, p. 158/159). Uma vez estabelecido, o universo pode abrigar várias histórias a partir daquele quadro de referências específico. Não há dúvida que esta é uma estratégia da indústria II Congresso Internacional Sobre Culturas 499 cultural para ampliar o retorno a partir de “clientes” já apaixonados por seus produtos – além de alongar a vida útil de contratos de licenciamento. Entretanto, o mesmo fator que dilata os lucros – o vínculo afetivo – é também centelha para a apropriação daquele território imaginado, desafiando, inclusive, legislações de direitos autorais e ditames das grandes corporações. Os universos ficcionais são parte da vida dos fãs. A intensidade dessa relação lhes “autoriza” a baixar e compartilhar obras pela internet, publicar traduções “livres” na web e, sim, produzir versões não autorizadas a partir dos elementos de seus universos ficcionais favoritos. O engajamento presente na relação com os universos ficcionais afetivos pode ser estratégico na recuperação da escola com um espaço de lazer e prazer. Implicado, o estudante vai assumir o processo educativo como uma agenda sua, e não um conjunto de demandas “da escola”. Dewey, no início do século passado, sinalizava a importância desse comprometimento: Nós já observamos a diferença na atitude do espectador e do agente ou participante. O primeiro é indiferente para o que está ! " # $ # um é apenas algo a ser visto. O segundo é absolutamente envolvido # % & ' & ença para ele. Seu destino meio que depende do desenrolar dos eventos. Consequentemente, ele faz o que puder para influenciar a direção que os acontecimentos tomam (1966, p. 124 – tradução nossa189) Jenkins também enfatiza o valor da apropriação de narrativas já existentes no âmbito da educação. “Cada vez mais, experts em educação estão reconhecendo que encenar, recitar e apropriar-se de elementos de histórias preexistentes é uma parte orgânica valiosa do processo através do qual as crianças desenvolvem o letramento cultural” (2008, p. 237). Ele conta a história de Heather Lawver, editora-chefe do jornal escolar fictício The Daily Prophet, homônimo ao periódico existente nas histórias do bruxinho. O jornal digital chegou a contar com mais de 100 criançascolaboradores no mundo inteiro. A jovem Lawver, aliás, chegou a escrever orientações pedagógicas sobre como usar a versão “não autorizada” do Daily Prophet em sala de aula, aplicadas com sucesso por diversos docentes. 189 No original: “We have already noticed the difference in the attitude of a spectator and of an agent or participant. The former is indifferent to what is going on; one result is just as good as another, since each is just something to look at. The latter is bound up with what is going on; its outcome makes a difference to him. His fortunes are more or less at stake in the issue of events. Consequently he does whatever he can to influence the direction present occurrences take.” II Congresso Internacional Sobre Culturas 500 Uma garota que não frequentava a escola desde a primeira série [ela era educada em casa] estava liderando uma equipe mundial de estudantes escritores, sem supervisão de adultos, e publicando um jornal escolar para uma escola que existia somente em sua imaginação (Ibid., p.231). A experiência do jornal fictício mostrou apenas uma das muitas possibilidades para a incorporação dos universos ficcionais afetivos no cotidiano das escolas. Nesse sentido, Massarolo e Mesquita defendem que “no ambiente escolar, a migração dos jovens estudantes pelos espaços caracterizados pela mobilidade, interatividade e a colaboração reforça a emergência de uma nova cultura baseada na participação dos alunos nos processos criativos das histórias” (2013, p. 36). Entretanto, para que esta cultura sugerida pelos autores seja incorporada de forma substantiva ao cotidiano escolar, a escola precisa superar um modelo de aprendizagem individualizado e solitário, ante a aprendizagem colaborativa própria do mundo organizado em redes, cujas conexões entre seus nexos potencializam o conhecimento acumulado por cada um. Até agora, nossas escolas ainda se concentram em gerar aprendizes ( & )" ! classificado como “cola”. No entanto, na vida adulta, estamos dependendo cada vez mais dos outros para nos fornecer informações que não conseguimos processar sozinhos. (JENKINS, 2008, p. 178) Compreendidos de forma abrangente, os universos ficcionais afetivos podem incentivar uma revisão metodológica em práticas escolares – a partir da produção colaborativa – e, ao mesmo tempo, ser utilizados na perspectiva do conteúdo. Que tal um estudo comparativo entre os Dothraki – povo fictício do universo de Guerra dos Tronos – e os Hunos e Mongóis, sua inspiração na “vida real” (TOWER OF THE HANK, 2015)? Este é um dos muitos artigos do blog Tower of the Hawk, mantido por alunos de Estudos Medievais da universidade canadense Wilfrid Laurier, cujo subtítulo é “uma investigação escolar do mundo de George R. R. Martin” (tradução nossa)190. Este blog é exemplar das milhares de iniciativas que podem ser encontradas na web, associando universos ficcionais afetivos e conhecimentos de currículos escolares. CONSIDERAÇÕES FINAIS 190 No original, “a scholarly exploration of the world of George R.R. Martin”. II Congresso Internacional Sobre Culturas 501 O mundo avançou e a escola continua reproduzindo práticas de outros tempos, boa parte delas sem sintonia com a sociedade contemporânea. Essa desconexão se reproduz na relação da instituição com seus alunos. Muitos deles não conseguem se identificar ou ver sentido na escola, passando a frequentá-la quase que unicamente por obrigação, sem desejo ou prazer. A era da convergência, com seus hibridismos, fluxos por múltiplos suportes e acesso cada vez maior a meios de comunicação e produção multimídia, é um campo rico em oportunidades educativas. A perspectiva de uma produção implicada do conhecimento, com base na adesão emocional a universos ficcionais – “paixão” compartilhada por um grande número de pessoas – pode ser um atalho para retomar o engajamento de estudantes no ambiente escolar. Esta opção, todavia, implica, por um lado, na revisão de práticas da própria instituição, na direção de uma cultura escolar mais colaborativa, na qual todos são capazes de produzir conhecimento. Implica também em outro olhar da escola para com os universos ficcionais afetivos – um olhar mais poroso à fantasia e imaginação, solidário ao encantamento de milhares de pessoas e que reconheça nesses universos possibilidades pedagógicas. REFERÊNCIAS ALVES, L. R. G. e PRETTO, N., 2008. Escola: um espaço de aprendizagem sem prazer? Comunicação & Educação, (6), 29-35. * + , - ./0 +- 1- *.2345+. 6- 78 9 : ; shippagem do beijo gay na TV brasileira”. Ativismo de fãs: conceitos, resistências e práticas na cultura digital. Galaxia (São Paulo, Online), n. 29, p. 141-154, jun. 2015. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. DAYRELL, Juarez. Juventude, Socialização e Escola. In: DAYRELL, Juarez et al. Família, escola e juventude: olhares cruzados Brasil-Portugal. 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Assim, buscando deslocar a clássica dicotomia Público vs. Privado – dicotomia essa que fortemente domina o debate em torno dos bens culturais e dos direitos a eles atrelados – o artigo procura trazer o conceito de Comum para contribuir para o debate. Palavras-chave: Obras intelectuais. Direito autoral. Público. Privado. Comum. OBRAS INTELECTUAIS E SISTEMA DE DIREITO AUTORAL PELA CHAVE “PÚBLICO VS. PRIVADO” A criação de qualquer obra intelectual (música, livro, por exemplo) é, como se sabe, inegavelmente marcada por um processo de apropriação, articulação e tensão travada com nossa herança cultural compartilhada. Afinal, como pensar no processo de criação de um poema, por exemplo, ignorando todo o caldo cultural comum que o envolve e/ou que o precedeu? Nesse sentido, há quem inclusive diga que o trabalho de criação artística – gostemos ou não – é fundamentalmente baseado em uma “lógica de plágio” (SMIERS, 2006). Seja como for, o que é certo aqui é que a figura do gênio que cria a partir do nada, do lampejo criativo que irrompe do grau zero, é completamente romântica, mistificada, ou, em uma palavra, irreal. Pois bem, qual não é nossa perplexidade quando confrontamos a realidade que acabamos de descrever (isto é, o fato de a criação de qualquer obra intelectual ser profundamente marcada pelo diálogo com nossa herança cultural compartilhada) com o sistema de direito autoral, ou copyright, contemporâneo? É que, na contramão da dinâmica Comum que permeia todo e qualquer processo de criação artística, o sistema de direito autoral vigente tenta nos impor um regime quase absoluto de propriedade privada. Nesse sentido, indústrias culturais, e seu poderoso lobby, não raro, vêm a público tentar nos convencer da legitimidade de um modelo jurídico que trata como 191 Doutorando em cotutela pelas Universidades de Queen’s (Canadá) e USP; email: marciofrpereira@gmail.com II Congresso Internacional Sobre Culturas 504 propriedade privada aquilo que é fruto de um inegável processo de troca social, resultado de uma riqueza social comum (commonwealth). Um exemplo emblemático: hoje, diversas obras intelectuais (músicas, por exemplo) ficam sob a “proteção autoral” (restrição à coletividade, a bem da verdade) pelo prazo de 70 anos após a morte do autor. Nessa linha, como lembra Ascensão (2004), se criada na juventude do artista, a obra intelectual, frequentemente, estará “protegida” (leia-se: bloqueada ao público) pelo prazo de 150 anos!? E aqui precisamos ser claros. A perplexidade dessa situação está no seguinte: como é possível que obras intelectuais fiquem “protegidas” por mais de um século quando o processo que as concebe é inegavelmente baseado em uma dinâmica de troca com nossa herança cultural compartilhada? Como impor um regime quase absoluto de propriedade privada, conforme o faz o sistema de copyright contemporâneo, a algo que é inquestionavelmente resultado de um processo de troca social difusa? Parecendo tratar o autor de uma obra intelectual como uma espécie de gênio que cria a partir do nada, o sistema de direito autoral contemporâneo demonstra toda sua incoerência e, por isso mesmo, insustentabilidade. Como se pode imaginar, os efeitos de um sistema de direito autoral assim – que trata as obras intelectuais como propriedade quase absoluta – são amplamente nocivos para a coletividade. Dentre esses efeitos nocivos, podemos destacar os seguintes: (1) dificuldade ou impedimento ao acesso e circulação das obras intelectuais, uma vez que muitas das obras ficam, durante longo período, sob um regime privado de propriedade; e (2) dificuldade ou impedimento de criação de obras derivadas – que, em suma, são aquelas obras explicitamente baseadas em uma outra criação prévia (exemplo: a adaptação de um livro para um filme). Isso porque, conforme determina a lei, a criação da obra derivada depende de prévia autorização do autor da obra primígena (no exemplo dado, o autor livro); autorização essa que, com frequência, vem acompanhada da cobrança de um montante estabelecido pelo autor da obra primígena. Logo, como as obras intelectuais ficam, como vimos, sob a proteção autoral durante um longuíssimo período, a criação de obras derivadas, nesse contexto, sofre uma restrição substancial. Uma pergunta que pode surgir aqui é: qual o interesse de as indústrias culturais incentivarem um sistema de direito autoral assim tão rígido e repleto de efeitos nocivos para a coletividade? O leitor mais apressado poderia imaginar que tais indústrias estariam II Congresso Internacional Sobre Culturas 505 defendendo os interesses dos próprios criadores intelectuais. Porém, uma análise mais detida descarta a hipótese. Na realidade, o principal interesse das indústrias culturais em um sistema de direito de autor rígido é o de ampliar o aumento de suas próprias receitas através da intensificação da exploração econômica dos produtos culturais sob o seu domínio. Sobre o tema, é preciso talvez dar um passo atrás e recordar que, especialmente a partir do final do século passado, as indústrias culturais, além de terem incorporado um rol de atividades cada vez mais complexas, agregaram para si a função de gerir e arrecadar os direitos autorais de diversas obras intelectuais. Com efeito, as indústrias culturais se tornaram gigantes corporativos da gestão de um extenso leque de produtos culturais, bem como da exploração econômica desse amplo leque pela via dos direitos autorais (copyright). Com a vertiginosa desmaterialização192 dos produtos culturais, ocorrida principalmente a partir dos anos 1990, isto é diante da desnecessidade de suporte físico para os mais variados produtos culturais (o exemplo mais emblemático ainda é o advento da digitalização da música, o mp3), uma das mais importantes receitas das indústrias do entretenimento passou a ser, sem dúvida, a arrecadação pela via de direitos autorais. Não por outro motivo que Smiers (2006, p. 91) afirma que o direito autoral “está se tornando um dos mais valiosos produtos comerciais do século XXI”. Nesse sentido, Jacquet (1997 apud SMIERS, 2006, p. 92) também é categórico: As fusões atuais [das indústrias culturais] não são apenas sobre como conseguir uma fatia maior do mercado comprando outro selo musical, estúdio de filmagem ou editora de livros. São também sobre a aquisição dos direitos musicais, de filmagem e publicação. Trata-se de um investimento no capital intelectual, na expressão criativa – a mais valiosa mercadoria do século XXI. Daí se explica o porquê de os conglomerados culturais buscarem tão intensamente, por meio de seu poderoso lobby, transformar o sistema de direito autoral contemporâneo em um regime quase absoluto de propriedade privada. Justamente por essa razão que, em um outro trabalho nosso193, escrevemos que, diante da aguda influência exercida pelas indústrias culturais na legislação, o direito autoral tinha, há tempos, deixado de ser um direito de autor para se transformar em um verdadeiro 192 Por desmaterialização entenda-se o vertiginoso processo de digitalização pelo qual os produtos culturais passaram nas últimas décadas. 193 Ver o nosso “Direito de Autor Ou de Empresário? Considerações, Críticas e Alternativas ao Sistema de Direito Autoral Contemporâneo” (Campinas: Servanda, 2013). II Congresso Internacional Sobre Culturas 506 direito de empresário. NEM PÚBLICO, NEM PRIVADO: PENSAR AS OBRAS INTELECTUAIS, E DIREITOS A ELAS RELACIONADOS, A PARTIR DO CONCEITO DE COMUM Frente à investida Privada que as indústrias culturais empreendem aos bens culturais, aos direitos autorais a eles relacionados e, no limite, à nossa própria herança cultural compartilhada, é habitual fazer oposição pela via do Público. Isto é, tensionar para que o Estado, por meio de seu poder de legislar e também através de políticas públicas mais equitativas, priorize o Público na gestão e nos direitos relacionados aos bens culturais – algo que, a princípio, nos asseguraria um modelo jurídico mais "democrático", aberto e plural daqueles bens do que o perseguido pelas indústrias culturais. Entretanto, pensamos que, mesmo um regime predominantemente Público de gestão dos bens culturais, ainda assim, não parece conseguir expandir toda a potencialidade que nossa vida cultural é capaz assumir. É que, segundo pensamos, um regime preponderantemente Público de gestão dos bens culturais e de direitos autorais efetuado pelo Estado (embora, a princípio, mais democrático do que um regime Privado) se configura, ainda assim, em uma forma de controle e disciplinamento do fazer artístico e, de modo mais profundo, de um controle e disciplinamento de como experimentamos nossa própria vida cultural em sociedade. Isso porque as medidas legislativas estatais e suas políticas públicas, como já bem o sabemos, invariavelmente, não conseguem estar à altura dos desafios que o campo da criação intelectual apresenta hoje. Igualmente, as tradicionais medidas legislativas e demais ações estatais parecem não conseguir dar conta do desejo de criação e experimentação artística que a coletividade apresenta. Cremos que potencialidades, desejos e capacidades de criação intelectual ficam assim represadas, em diferentes intensidades obviamente, na clássica dicotomia Público/Privado. E aqui chegamos ao tema do Comum. Pensamos que a noção de Comum pode nos fornecer novos modos de pensar a gestão dos bens culturais e dos direitos a eles relacionados. Mas de qual noção de Comum estamos falando aqui? II Congresso Internacional Sobre Culturas 507 Por Comum, temos aqui em mente os delineamentos conferidos a esse conceito por Michael Hardt e Antonio Negri; sobretudo aqueles apresentados na obra Commonwealth (2009). Em síntese, para os autores, o conceito de Comum - rompendo com a clássica dicotomia que, praticamente, só visualiza o mundo a partir de regimes de propriedade "Público" vs. "Privado" - sugere a capacidade de a multidão, por meio de instituições próprias, gerir, coletiva e democraticamente, não apenas os recursos naturais relativos à sobrevivência humana (água, por exemplo), mas, também, processos comunicacionais como a linguagem, informações, saberes, códigos, dentre outros. Em suma, o Comum refere-se à capacidade de as múltiplas singularidades assumirem, pelas próprias mãos, as condições biopolíticas de sua existência: do próprio modo de viver, trabalhar, se relacionar e, segundo pensamos, de realizar a gestão de bens culturais e de construir direitos relacionados a esses bens. Primeiro, porém, é preciso sublinhar que evocar a noção de Comum no campo da gestão das obras intelectuais e dos direitos a elas relacionados não se trata de uma estratégia infundada. Ao contrário, conforme vimos acima, o fazer artístico encontrase absolutamente implicado no campo do Comum. Como dissemos antes, a criação de qualquer obra intelectual é inquestionavelmente marcada por um processo de apropriação, articulação e tensão travada com nosso acervo cultural compartilhado, ou seja, com o Comum. Nesse sentido, no processo de criação intelectual, linguagens, códigos, saberes, dentre tantos outros commons, são trocados, apropriados e ressignificados, evidenciando assim a profunda imbricação entre criação artística e Comum. Portanto, segundo pensamos, evocar a noção do Comum para pensar a gestão das obras intelectuais e de seus direitos significa evocar um conceito potente e que se mostra à altura dos desafios e desejos que o campo dos bens culturais apresentam. Com efeito, a noção de Comum, mais profunda e sofisticada que a própria ideia de Público, é capaz de nos dar pistas de novas formas de pensar a gestão das obras intelectuais, bem como em novas formas de pensar os direitos a elas relacionados. Com apoio no Comum, pode-se potencializar interessantes iniciativas como a do projeto Creative Commons, que merece aqui algumas breves linhas. Criado em 2001 e tendo como um de seus fundadores o professor Lawrence Lessig da Universidade de Stanford (California, EUA), o projeto Creative Commons, em resumo, tem o objetivo de desenvolver modelos de licenças jurídicas para trabalhos artísticos que sejam facilmente compreensíveis por todos e que, também, II Congresso Internacional Sobre Culturas 508 sejam flexíveis ao artista, permitindo que este (o artista) escolha aquela licença que melhor se acomode aos seus propósitos. Oferecem-se assim aos artistas variados modelos de licenças que possam atender aos mais diversos desígnios daqueles. Dessa maneira, o autor, ao escolher um desses modelos de licença, é quem, no final das contas, decide o que poderá ou não ser feito com o seu trabalho artístico. Em razão das regras de utilização serem determinadas pelo próprio criador intelectual no Creative Commons, e não por meio de uma lei abstrata e genérica, LEMOS (2005, p. 84) afirma que o projeto promove uma operação de disponibilidade feita “de baixo para cima”, ou seja, do autor para a sociedade “sem a intervenção estatal ou a modificação na lei”. Em outras palavras, sustenta-se que, pelo Creative Commons, a disposição sobre a utilização da obra é feita diretamente pelo autor que comunica à sociedade como poderá usá-la (de baixo para cima), diferentemente do que ocorre pela forma tradicional, em que uma lei genérica e abstrata estabelece quais são as hipóteses em que a obra pode ser usada livremente (fair use), ficando todas as demais formas de uso dependendo da autorização do autor. Livre de um regime predominantemente Público de direito autoral, e afastado também da voracidade de um regime Privado perseguido pelas indústrias culturais, o projeto Creative Commons parece estabelecer um interessante diálogo com o conceito de comum ao estimular que a própria coletividade construa um direito outro que escapa da clássica dicotomia Público/Privado. BIBLIOGRAFIA ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito de autor e desenvolvimento tecnológico: controvérsias e estratégias, in Revista de Direito Autoral, ABDA (São Paulo), ano I, no. I, agosto de 2004, p. 3-33. HARDT, Michael; NEGRI, Antonio, Commonwealth. Cambridge: Harvard University Press, 2009). LEMOS, R. Direito, tecnologia e cultura. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005 II Congresso Internacional Sobre Culturas 509 LESSIG, Lawrence. Free culture: the nature and future of creativity. Penguin Books, 2004. PEREIRA, Marcio. Direito de Autor Ou de Empresário? Considerações, Críticas e Alternativas ao Sistema de Direito Autoral Contemporâneo. Campinas: Servanda, 2013. SMIERS, Joost. Artes sob pressão. São Paulo: Escrituras editora, 2006. II Congresso Internacional Sobre Culturas 510 O FENÔMENO POKÉMON GO: MEDIATIZAÇÃO E SUBVERSÃO DAS LÓGICAS TECNOLÓGICAS NA ATUALIDADE Fabrício Barbosa C.194 João Paulo Lemos Cavalcanti195 RESUMO O presente trabalho aborda o lançamento do jogo para smartphones Pokémon Go, que propõe um novo padrão de jogabilidade mobile e que se transformou num fenômeno de audiência mundial. Discutimos o processo de mediatização das brincadeiras, a partir da perspectiva de Stig Hjavard (2014), destacando os processos de imaginarização, narrativização e virtualização presentes nesse aplicativo. Também tratamos das novas possibilidades apresentadas pelo jogo no que tange ao uso das tecnologias de geolocalização e realidade aumentada e suas implicações diretas na maneira com que os jogadores se relacionam com o seu smartphone e sua comunidade. Palavras-chave: Jogos eletrônicos. Mediatização. Pokémon Go. INTRODUÇÃO A relação das pessoas com a tecnologia vem se modificando rapidamente ao longo do tempo, conforme novos gadgets, ferramentas e recursos digitais vão sendo lançados e disponibilizados no mercado. Boa parte dos indivíduos possui hoje um aparelho celular, que permite, além da função original de realizar telefonemas, conectar-se à internet, fazer o download de aplicações, ouvir músicas, assistir vídeos, entre inúmeras outras funcionalidades. De fato, conforme indica o jornalista Michael Harris (2016), em 40 ou 50 anos não existirão mais pessoas que acompanharam a transição do analógico para o digital. E as experiências dessas pessoas sobre como era a vida antes e depois do digital tendem a desaparecer junto com elas, de forma com que a sociedade viverá um momento em que os indivíduos terão contato com a tecnologia digital desde o momento de seu nascimento até o fim de suas vidas. Diante da ascensão e influência do digital, é inevitável não se questionar de que forma a tecnologia está modificando a vida das pessoas (TURKLE, 2011). Uma das esferas em que tais mudanças têm se mostrado mais evidentes é a do entretenimento, por exemplo: hoje há uma infinidade de conteúdos audiovisuais que podem ser 194 Doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas (FACOM/UFBA). Contato: fabriciobarbosac@gmail.com 195 Graduado em Engenharia Mecatrônica (UNIFACS). Contato: jaumpc@gmail.com II Congresso Internacional Sobre Culturas 511 acessados de qualquer lugar com conexão à internet, como filmes, músicas, vídeos ou jogos. Não existe mais a obrigatoriedade de se locomover até uma sala de cinema para assistir um filme; nem mesmo o aparelho de televisão tradicional é indispensável. A independência e individualidade são características marcantes desse período. Dentro desse cenário, um fenômeno recente tem chamado a atenção por ter se aproveitado de recursos tecnológicos da atualidade para inserir um novo modelo de utilização, que vai na contramão do que vinha sendo feito até então. Trata-se do jogo para aparelhos smartphone Pokémon Go, desenvolvido pela Niantic Labs a partir de uma franquia de sucesso da Nintendo. Pokémon Go propõe que os jogadores saiam de suas casas com os seus celulares e se movimentem entre diferentes pontos de sua cidade, a fim de coletar itens e capturar os personagens que aparecem de maneira aleatória pelo mapa, numa espécie de safári digital. E, após isso, os incentiva a competirem entre si para ganharem a liderança de ginásios espalhados em pontos estratégicos para coletarem moedas e trocarem por itens dentro do próprio jogo. Ao invés de reforçar práticas que já são comuns entre os usuários das tecnologias, Pokémon Go se apropria dos recursos e ferramentas disponíveis e subverte a sua lógica dominante até então ao propor que as pessoas saiam de suas casas, visitem pontos de sua cidade e interajam entre si. E, mesmo com uma proposta que, a princípio, pudesse parecer arriscada, o jogo transformou-se num sucesso instantâneo e alcançou a marca de 7,5 milhões de downloads ao redor do mundo em apenas três semanas após o seu lançamento. Uma das correntes teóricas que se dedica a analisar a influência crescente dos meios de comunicação e seus desdobramentos tecnológicos sobre as esferas culturais e sociais é a da mediatização. Dentre os autores que tratam desse conceito, destacamos nesse artigo o trabalho de Stig Hjavard (2014), que fez um estudo de caso sobre a mediatização da brincadeira. Utilizamos os conceitos de imaginarização, narrativização e virtualização, propostos por Hjavard, para analisar e discutir o jogo Pokémon Go, a fim de determinar de que forma o processo de mediatização da brincadeira se faz presente nesse caso e entender como o jogo altera as lógicas das relações entre as pessoas e a tecnologia nos dias atuais, bem como contribui para a formação de novas comunidades ao resgatar e reinventar uma franquia de sucesso. II Congresso Internacional Sobre Culturas 512 O CONCEITO DE MEDIATIZAÇÃO196 E SUAS IMPLICAÇÕES Stig Hjavard (2014), em seu livro The mediatization of culture and society, indica que o conceito de mediatização surgiu com intuito de reavaliar questões antigas no que diz respeito ao papel e à influência dos meios de comunicação na cultura e na sociedade, especificamente na compreensão da propagação, entrelaçamento e influência da mídia sobre outras áreas ou instituições sociais. Para tal, parte-se de uma questão principal, que seria: como se opera a influência da mídia sobre a cultura e a sociedade em geral? Dentro da perspectiva dos estudos sobre mediatização, a cultura e a sociedade atual já estão tão permeadas pela mídia que se torna quase impossível concebê-la como algo à parte das instituições culturais e sociais, uma vez que tais instituições e seus processos derivados mudaram de caráter, função e estrutura como resposta à onipresença dos meios de comunicação. Diante de tal realidade, os estudos de mediatização tratam das mudanças estruturais de longo prazo relativas ao papel da mídia na cultura e na sociedade uma vez que os meios de comunicação alcançam “maior autoridade para definir a realidade e os padrões de interação social” (HJAVARD, 2014, p.15). Para Hjavard (2014), os meios de comunicação não são apenas tecnologias que podem ou não serem utilizadas conforme um indivíduo ou grupo julgar conveniente; na verdade, sua presença se tornou “uma condição estrutural das práticas sociais e culturais, quer em esferas culturais particulares, quer na sociedade em geral” (LIVINGSTONE, 2009 apud HJAVARD, 2014, p.16). Sob essa perspectiva, qualquer questão relacionada ao uso e ao efeito da mídia precisa considerar as circunstâncias nas quais cultura e sociedade se tornaram mediatizadas. Como conceito, mediatização indica a transformação estrutural de longo prazo e a larga escala de relações existentes entre meios de comunicação, cultura e sociedade. Tem como objetivo “[...] examinar quando e como as mudanças estruturais entre os meios de comunicação e as diversas instituições sociais e fenômenos culturais vêm a influenciar o imaginário, as relações e as interações humanas” (HJAVARD, 2014, p.16). Assim, uma das contribuições principais dessa teoria está em fornecer 196 Em português, são utilizadas duas formas de grafia, mediatização e midiatização, em diferentes traduções. Neste artigo, optou-se por utilizar a forma mediatização, por fazer referência direta aos media e evitar confusões com outros usos da palavra mídia, como, por exemplo, para se referir a CDs, DVDs, pendrives, etc. II Congresso Internacional Sobre Culturas 513 ferramentas para analisar e construir uma compreensão teórica sobre as possibilidades de interação dos meios de comunicação com outros processos culturais e sociais, assim como um conjunto de hipóteses sobre possíveis resultados da presença crescente de diferentes mídias na cultura e na sociedade. A MEDIATIZAÇÃO DA BRINCADEIRA Em um dos capítulos de seu livro sobre a mediatização, Hjavard (2014) se dedica a analisar o processo de mediatização das brincadeiras, brinquedos e jogos em geral. Segundo o autor, hoje os brinquedos são cada vez mais dotados de uma natureza imaterial, muitas vezes nas formas e/ou desdobramentos de softwares para computadores e videogames e ainda em suas representações simbólicas em filmes e programas de TV. Para Hjavard (2014, p. 167), o ato de brincar transformou-se em uma atividade mental que envolve, entre variados processos, “imaginação, planejamento, simulação, comunicação [e] representação de papeis, entrelaçados com a manipulação de representações e narrativas audiovisuais”. Essa transformação da brincadeira teria sido estimulada principalmente pela proliferação dos meios de comunicação, de forma que o ato de brincar passou a ser progressivamente influenciado pela lógica da mídia, com toda sua tecnologia, conteúdo simbólico, infraestrutura econômica e affordances comunicativas. A brincadeira mediatizou-se de tal forma que parte considerável da diversão de crianças, jovens e adultos ocorre a partir de sua interação com os meios de comunicação, sendo os maiores exemplos disso os jogos para computadores e videogames, que não apenas adaptaram uma infinidade de atividades e brincadeiras do mundo físico, como jogos de tabuleiro, cartas, esportes, etc., mas também criaram seus próprios gêneros de jogos a partir de suas particularidades e possibilidades tecnológicas. Como indica Hjavard, “no final dos anos 1990, empresas como a Nintendo, Sony e Microsoft despontaram como importantes atores do setor de brinquedos, levando fabricantes tradicionais a perderem participação de mercado ou serem forçados a desenvolver brinquedos com um componente midiático. Com efeito, os meios de comunicação já não constituem aspectos secundários dos brinquedos, tampouco sua função se resume à de anunciantes de brinquedos ‘reais’; eles passaram a fazer parte dos brinquedos e do próprio ato de brincar (2014, p.180)”. II Congresso Internacional Sobre Culturas 514 Como desdobramento de sua pesquisa sobre mediatização, Hjavard (2014) realizou um estudo de caso sobre a mediatização dos brinquedos da franquia LEGO e descreveu três aspectos desse processo, distintos, porém dependentes: imaginarização, narrativização e virtualização. Utilizamos a seguir os mesmos conceitos para discutir o jogo eletrônico Pokémon Go. O CASO POKÉMON GO Pokémon Go é um jogo de realidade aumentada no qual os jogadores, ao se movimentarem, usam a câmera, a tela touch e a geolocalização de seus aparelhos smartphone para encontrar, capturar e batalhar com seus Pokémon, que aparecem nas telas dos aparelhos como se estivessem no mundo real. Pokémon, forma abreviada de pocket monsters (monstros de bolso), são personagens ficcionais de uma série de videogames, animes e jogos de cartas TCG (trading card games) mundialmente conhecida (GREEN, 2016). No Brasil, a popularidade da série se deu, principalmente, com a exibição do anime (desenho animado) na TV aberta em meados dos anos 2000, contando a história do protagonista Ash e de seu parceiro Pikachu em uma jornada para se tornar um mestre Pokémon, e que foi lançado simultaneamente a outros produtos da franquia. Jogos de realidade aumentada envolvendo atividade física já existiam antes de Pokémon Go, como, por exemplo, Ingress e Zombies, Run!. No entanto, as mecânicas de exploração do mundo real a partir da realidade aumentada combinadas com a popularidade de Pokémon resultaram num sucesso sem precedentes. Como resultado de uma colaboração entre a Nintendo, criadora e proprietária das licenças sobre a marca e a Niantic, uma subsidiária do Google que se especializou em jogos de realidade aumentada, vimos o surgimento de um fenômeno nas mídias sociais, sem precedentes na história dos jogos mobile e sem comparações no que tange a angariar usuários de maneira massiva num período tão curto de tempo (GUPTA, 2016). Lançado em 06 de julho de 2016, o jogo obteve mais usuários ativos do que o Twitter e o Facebook nas primeiras semanas após o seu lançamento e a Nintendo viu o valor de suas ações aumentarem em 7,5 bilhões (GREEN, 2016). Ao observarmos como se dá a utilização do aplicativo, conseguimos identificar procedimentos bastante semelhantes aos propostos por Hjavard (2014) ao tratar da mediatização das brincadeiras. Segundo tal autor, um dos três aspectos que envolve tal II Congresso Internacional Sobre Culturas 515 processo seria o da imaginarização, na qual o conteúdo simbólico do brinquedo/jogo passa a designar um mundo imaginado, ao invés de uma realidade existente. Apesar de se manter no centro, o brinquedo/jogo é utilizado para criar universos fantasiosos e irreais. No caso de Pokémon Go, vemos o jogo se utilizar de referenciais reais, como mapa, localização e pontos específicos das cidades para construir o cenário de sua ação fictícia, na qual os personagens vivem e devem ser procurados pelos jogadores. Cada ponto do mapa, de acordo com suas próprias características, se torna o habitat ideal para determinados tipos de monstrinhos: se você se dirigir a uma região litorânea ou próxima a rios e lagos, terá uma chance maior de encontrar um Pokémon aquático, por exemplo. Além disso, o jogo também se apropria de pontos estratégicos no mapa e os transforma em ginásios, nos quais os jogadores devem levar seus Pokémon para batalharem. Muitos desses ginásios estão em locais com uma lógica no mundo real muito distinta daquela proposta no jogo; não foram poucos os casos de igrejas, cemitérios ou museus que foram transformados em ginásios em Pokémon Go e tiveram problemas com o número crescente de jogadores que passaram a frequentar os espaços com objetivos distantes daqueles aos quais tais localidades se dedicam normalmente. Notamos aqui que, apesar de haver um referencial real, os jogadores tendem a ignorar em qual local, de fato, se encontram, e passam a trata-lo apenas como o ginásio virtual que faz parte do universo imaginário do jogo. O segundo aspecto descrito por Hjavard (2014) é o da narrativização, processo no qual o brinquedo/jogo estimula a brincar com propriedades narrativas. Uma narrativa consistiria em “uma sequência de eventos (p.ex., uma luta, uma perseguição, etc.) organizados em uma unidade de ação dotada de interesse humano e configurada como projeto humano” (BREMOND, 1973 apud HJAVARD, 2014, p.196). As ficções midiáticas não apenas proporcionariam um contexto narrativo para a brincadeira, como ofereceriam ainda papeis e personagens altamente desenvolvidos para nela ser representados. No caso de Pokémon Go, desde os momentos iniciais já somos apresentados ao papel que devemos desempenhar, que é o de um treinador Pokémon. Apesar de permitir que o usuário escolha entre algumas variações de roupas e acessórios, o avatar é padronizado e não é passível de sofrer grandes alterações. O seu primeiro objetivo é capturar o maior número possível de Pokémon e, ao atingir determinado nível, poderá escolher à qual das três equipes existentes no jogo você irá se filiar: Team Valor, Team Mystic e Team Instinct, cada uma com uma cor, símbolo, filosofia e capitão diferentes entre si. A maneira como essas escolhas são conduzidas II Congresso Internacional Sobre Culturas 516 não são aleatórias; o jogador é instigado a criar a sua narrativa e embarcar nela – “escolherei a Team Mystic porque seus valores são mais próximos dos meus” ou “escolherei a Team Valor porque é lá que estão os treinadores mais fortes” ou ainda “escolherei a Team Instinct porque possui a minha cor favorita e o capitão com o qual me identifiquei mais” são todas possibilidades plausíveis dentro do contexto do jogo. O terceiro e último aspecto seria o da virtualização, na qual objetos ou ações perdem parte de suas características ou atributos físicos em favor de uma representação e interação de caráter simbólico, muitas vezes por intermédio de um joystick, mouse ou teclado (HJAVARD, 2014). Aqui destacamos como a interação com o dispositivo smartphone é traduzida para ações dos personagens dentro do jogo, ou, em outras palavras, como nossas ações no mundo real são virtualizadas e repropostas dentro do universo do aplicativo. Devemos mover o aparelho com a câmera apontada para onde desejamos visualizar o Pokémon; existem movimentos específicos realizados com o dedo na tela touch para lançar Pokébolas de diferentes maneiras (diretas, curvas, giratórias); em uma batalha de ginásio, podemos deslizar o dedo pela tela a fim de que o Pokémon desvie dos ataques adversários ou tocá-la repetidas vezes para que nosso Pokémon utilize seus ataques; e, é claro, precisamos nos movimentar no mundo real para que nosso personagem se movimente dentro do universo virtual do jogo. No entanto, além de identificarmos todos os estágios de um processo de mediatização, acreditamos também que Pokémon Go conseguiu, de certa forma, transpor algumas das lógicas tecnológicas que já estavam estabelecidas entre os usuários de smartphones e suas aplicações. A primeira e mais marcante característica do aplicativo é a de que ele exige que você se movimente de fato para que consiga progredir in game. Os videogames, em sua maioria, são jogados de maneira sedentária – você se senta no sofá ou em uma cadeira e movimenta apenas os olhos e os dedos, mas isso não é o suficiente aqui. Como indica Green (2016), Pokémon Go tem o potencial para inspirar um boom nas aproximações gamificadas na área da saúde pelos setores privados. A maioria dos aplicativos de saúde que promovem atividade física tendem a atrair usuários que querem ser saudáveis; Pokémon Go não está classificado como um “aplicativo de saúde”, mas acaba contribuindo com que seus usuários façam bastante caminhada. As possibilidades dos aplicativos tornarem as ruas um “playground ativo e requisitado” são ilimitadas e o aumento da atividade física seria “um efeito colateral tentador” (McCARTNEY, 2016, p.1). II Congresso Internacional Sobre Culturas 517 Especialistas em saúde tem elogiado o jogo por ele encorajar jogadores a caminhar; usuários tem utilizado o aplicativo para explorar sua vizinhança de diferentes maneiras e os negócios locais estão se beneficiando nesse aumento de tráfego; e muitos jogadores inclusive destacaram melhoras em sua saúde mental e bem-estar graças às possibilidades de interação social proporcionadas pelo jogo. De fato, conforme ressaltado por Quinn (2016), esse aplicativo é apenas um exemplo de como um jogo pode afetar a dinâmica das comunidades: “Este jogo parece ter criado uma mudança nas prioridades que está dando às pessoas motivação para fazer coisas que elas normalmente não fariam. Pessoas que normalmente se sentam em seus quartos durante horas [para jogar ou utilizar a internet] de repente obtêm motivação para andar, correr, pedalar ou realizar qualquer forma de exercício, a fim de chocar ovos de Pokémon. Pessoas que normalmente são muito cuidadosas com sua segurança pessoal estariam dispostas a caminhar por um bairro mais perigoso para chegar até um [ponto com] incenso para atrair Pokémon. Pessoas que normalmente são tímidas com estranhos vão conhecer outros jogadores e iniciar uma conversa que pode até levar a uma nova amizade, especialmente se eles estão na mesma equipe. A emoção do jogo combinada com as interações dentro de uma comunidade de jogadores cria uma experiência nova e divertida para quem joga (QUINN, 2016, p.1-2, tradução nossa). Com o fenômeno Pokémon Go, pudemos ver comunidades se reunirem fisicamente e espontaneamente em torno de um interesse em comum, e é muito provável que essas situações não aconteceriam sem o jogo/tecnologia que motivou tais eventos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesse artigo, retomamos a ideia principal da teoria da mediatização, que busca entender de que forma os meios de comunicação e seus desdobramentos afetam a cultura e a sociedade. Dentro dessa perspectiva, utilizamos os conceitos de imaginarização, narrativização e virtualização, propostos por Hjavard (2014) para tratar da mediatização da brincadeira, e os aplicamos ao caso de Pokémon Go, aplicativo para smartphone que propõe uma experiência de jogo que vai contra as lógicas dominantes do mercado de jogos mobile no momento atual. Foi possível identificar em Pokémon Go os três processos descritos por Hjavard (2014), uma vez que o aplicativo incentiva os jogadores a participarem de um II Congresso Internacional Sobre Culturas 518 universo imaginário, criarem suas narrativas e verem suas ações no mundo real serem virtualizadas e replicadas dentro do jogo; no entanto, percebemos também que esse aplicativo vai além no uso das affordances disponíveis em seu suporte e propões novos usos para tecnologias que já estão consagradas entre o grande público, como o smartphone e suas diversas aplicações. Ressaltamos que, conforme indicado por Hjavard (2014, p.196), a brincadeira, em seu sentido mais essencial, sempre envolveu elementos de caráter imaginário e/ou narrativo, de forma que o processo de mediatização não significa “a passagem absoluta de uma atividade realista, não narrativa, do mundo físico, para outra imaginária, de caráter narrativo, realizada em um ambiente virtual”. Nossa intenção foi sinalizar o quanto a tecnologia pode potencializar tais elementos e propor novas possibilidades de engajamento e interação entre os usuários – no caso de Pokémon Go, principalmente a partir do uso da realidade aumentada e da geolocalização dos dispositivos smartphone. A avaliação da influência global deste jogo sobre a dimensão cognitiva, física e emocional da sociedade neste momento será puramente conjectural, uma vez que o jogo foi lançado apenas alguns meses atrás e por já ter sido reportado que o interesse dos usuários tem diminuído e que o número de jogadores ativos continua decrescendo dia após dia. No entanto, conforme assinala Gupta (2016), um estudo do impacto geral do jogo depois de algum tempo fornecerá algumas informações interessantes e levantará uma série de questões que envolvem o papel da tecnologia em uma sociedade mediatizada e nos comportamentos dos usuários de jogos eletrônicos em particular. REFERÊNCIAS GREEN, Nick. Behavior Science, Technology and Health – How Pokémon Go Caught’em All in Behavior Analysis and Technology. Disponível em: https://batechsig.com/2016/09/12/behavior-science-technology-and-health-howpokemon-go-caught-em-all/ (última consulta em 26/10/2016). GUPTA, Gp Capt Ashish. ‘Pokémon Go’ Mania: an inflection point for augmented reality? in Caps in Focus. Disponível em: http://capsindia.org/files/documents/CAPS_Infocus_AG_17.pdf (última consulta em 26/10/2016). II Congresso Internacional Sobre Culturas 519 HARRY, Michael. Citado em: O que significa ser a última geração que viveu o mundo analógico. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/09/05/O-que-significa-ser-a%C3%BAltima-gera%C3%A7%C3%A3o-que-viveu-o-mundo-anal%C3%B3gico (última consulta em 14/09/2016). HJAVARD, Stig. A midiatização da cultura e da sociedade. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 2014. McCARTNEY, Margaret. Game on for Pokémon Go. Disponível em: http://www.bmj.com/content/354/bmj.i4306 (última consulta em 28/10/2016). QUINN, Jasmine. Identity of Pokémon Go Players: How Social Gaming Affects Behavior. Disponível em: http://scholarcommons.scu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1019&context=engl_176 (última consulta em 28/10/2016). TURKLE, Sherry. Alone together: why we expect more from technology and less from each other. New York: Basic Books, 2011. II Congresso Internacional Sobre Culturas 520 1 Chamo tempos difíceis esses tempos fraturados no sentido proposto por Eric Hobsbawn (2014) marcados por incertezas, instabilidades, possibilidades e impossibilidades e obsolescência das coisas; tempos perfilados de reconversões no cerne da cultura política, onde as redes de compartilhamento tornam-se espaços e condutores de vozes e protestos, sobretudo de identidades fragmentadas que se constituem em células vitais da alteridade nesta nossa “sociedade em rede”. 1 Habermas conceitua o mundo da vida como sendo um conjunto de “tradições, embebidas em formas de vida culturais, entrelaçadas com histórias de vida individuais” (1982, p.250). 1 O termo reativo aqui empregado segue o sentido aplicado por Charles Tilly, Doug McAdam e Sidney Tarrow, em diversos de seus trabalhos individuais e em conjunto, nos quais consideram os movimentos sociais indissociáveis da política, uma vez que são categoricamente não mais vistos como “comportamento coletivo”, mas como uma forma de política, considerando as dimensões a esta inerentes e também as dimensões orgânicas, organizacionais. Neste sentido, esse movimento reativo está ligado a capacidade de engendrar um movimento político dissensual na ordem do sensível, de modo a reagir em escala de protesto a uma ação contestada, no caso, o estabelecimento de um ordem limitadora de direitos cidadão, a Ley Mordaza. 1 Plataforma que reúne mais de 100 organizações de cidadãos, ativistas e juristas na luta conta a reforma de Lei de Segurança Cidadã e do Código Penal Espanhol. No Somos Delito. Disponível em: http://nosomosdelito.net/ . Acesso em: 12 de jan. de 2016. 1 Dados informados pelo site do movimento, disponível em: <http://www.hologramasporlalibertad.org/#home>. Acesso em: 12 jan. de 2016. 1 Vide site disponível em: < http://www.hologramasporlalibertad.org/#home>. Acesso em: 12 jan. de 2016. 1 Ley Mordaza ou Lei de Segurança Cidadã, é uma lei espanhola que restringe o que as pessoas podem fazer quando se manifestam e permite a expulsão de imigrantes sem documentação, apresentada ao Parlamento em novembro de 2013 e já em vigor desde Julho de 2015. 1 UM HOLOGRAMA EM MADRID PARA PROTESTAR PELO DIREITO A PROTESTAR. Disponível em: <http://www.publico.pt/mundo/noticia/um-holograma-em-madrid-para-protestar-pelodireito-de-protestar-1692170>. Acesso em: 12 jan. de 2016. 1 A Lei de Segurança Cidadã, ou “Ley Mordaza”, foi aprovada em 26 de março e entrou em vigor em 1 de julho de 2015. A polémica Lei Mordaça já está em vigor em Espanha. Disponível em: http://observador.pt/2015/07/01/polemica-lei-mordaca-ja-esta-vigor-espanha/. Acesso em: 17 jan. de 2016. 1 ASÍ VERÁ MADRID LA PRIMERA PROTESTA DE HOLOGRAMAS DE LA HISTORIA. El Mundo. Disponível em: http://www.elmundo.es/economia/2015/04/10/5526c59ae2704e5c498b456d.html .Acesso em: 12 jan. de 2016. 1 Tradução nossa do original em espanhol “Nuestra manifestación con hologramas es una ironía, Con las restricciones que estamos sufriendo en nuestras libertades de asociación y reunión pacífica, al final la última alternativa que nos van a dejar va a ser protestar a través de nuestros hologramas”. Disponível em: http://www.elmundo.es/economia/2015/04/10/5526c59ae2704e5c498b456d.html .Acesso em: 12 jan. de 2016. 1 Através da desconstrução derridariana, Spivak expõe uma apropriação errônea do termo subalterno ao dizer que este não pode ser utilizado por qualquer sujeito marginalizado. Desta forma, a autora resgata a relação de uso de Gramsci, que utilizou o termo para se referir ao proletariado, “aquele cuja voz não pode ser ouvida” (p. 12), aqueles das camadas mais baixas da sociedade que são cerceados de representação política e legal, da possibilidade de fazer parte do estrato social dominante e do mercado por diversos modos de exclusão. 1 Poiesis aqui empregada sob a ótica platônica e muito referenciada em Rancière em suas considerações sobre política e estética, e que diz respeito a ideia de produção de coisas em geral e da produção de coisas com palavras, ação que transforma e continua o mundo. II Congresso Internacional Sobre Culturas 521 MI HOLOGRAMA FAVORITO: CONVERGÊNCIAS ENTRE ESTÉTICA E POLÍTICA E A INTERVENÇÃO ARTÍSTICO-CULTURAL HOLOGRAMAS POR LA LIBERTAD Ana Carolina Dantas Santos197 RESUMO Uma grande onda de manifestações multitudinárias ocorridas em fins de 2010, mundialmente conhecida como Primavera Árabe, reverberou globalmente naquele ano até os dias de hoje. Desde então, muito se tem discutido sobre o poder das redes e da sua capacidade de capilarizar em tempo real, protestos em que unem-se - sob a égide de solidariedades e indignações identidades diversas e pautas múltiplas, em prol de uma democracia mais participativa e da garantia de direitos fundamentais. A partir da interferência artístico-cultural da Plataforma espanhola No somos delito, que projetaram mais de 15 mil hologramas em frente ao parlamento espanhol, na cidade de Madri, em abril de 2015 para protestar contra a Ley Mordaza, discuto as interseções entre estética e política, e a potência de tais narrativas em produzir novos contextos de arte e significado, fazendo da cultura instrumento de mudança política pela via de condução da estética. Palavras-chave: Hologramas. Estética. Política. Cultura. Manifestações multitudinárias. Redes. INTRODUÇÃO A partir das interseções possíveis que se estabelecem entre a experiência questionadora, quase sempre subversiva e transgressora da estética, e uma racionalidade cognitivo-instrumental premente na política, observa-se uma criatividade político-artística nas formas emergentes de protestos oportunizadas pelas novas tecnologias de informação e comunicação que se apresenta sob o viés de uma cultura política de debate e ativismo, fomento ao pensamento crítico e mudança de atitude cívica. Acredito que desse processo emerge um entre-lugar onde a experiência questionadora-mediadora da estética articula-se no âmbito das atividades políticas (mais especificamente de participação e resistência) de modo a questionar uma ordem injusta de distribuição de visibilidades e de vozes entre os sujeitos sociais, de cerceamento de direitos impostos por leis consideradas arbitrárias, permitindo que desigualdades que hoje são apagadas sob um regime de invisibilidade “consentida” 197 Mestranda do Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (IHAC), professora de educação a distância e profissional das áreas de Comunicação e Marketing. Bolsista FAPESB, pesquisa na linha de Cultura e Identidade, na perspectiva das discussões identitárias no cerne dos movimentos sociais contemporâneos. E-mail: anacarolinadantas@hotmail.com II Congresso Internacional Sobre Culturas 522 sejam deslocadas do pano de fundo das certezas inquestionáveis do mundo da vida e passem a ser desafiadas publicamente. Aqui, trato deste tema associado a uma realidade que presenciamos a uns seis anos atrás e que vimos reverberar ao redor do mundo até os dias de hoje, de tensões estabelecidas no campo mesmo da política no que diz respeito à luta e resistência em busca da participação política e pelo estabelecimento de um estado de bem-estar social (GIDDENS; BECK; LASH, 1997) e de uma democracia participativa que venha a convergir na expansão em serviços públicos, tal qual saúde, educação, transporte e moradia. Sobretudo, procuro discorrer sobre isso observando as interrelações deste quadro político-social e o de uma cultura política em redes, em tempos difíceis198 onde se (re) configuram novas formas de manifestações sociais. Assim, estabeleço a importância dessa abordagem tomando como suporte o mundo da vida199 contemporânea, como Habermas (1982; 2012) o coloca, onde a cultura – ou as experiências culturais – sempre provocará, fustigará nossa individualidade dentro de um macroprocesso social, que a despeito da história de vidas individuais, só passam a fazer sentido numa perspectiva de totalidade social. Nesse sentido, presenciamos na contemporaneidade uma atuação política rizomática que ultrapassa as dimensões frequentemente tratadas, vista desde a eclosão da Primavera Árabe, quando reverberaram protestos que trazem como papel fundamental na roda de discussões a respeito, uma desconstrução do cenário político vigente. Partindo das considerações sobre estética e política de Rancière (1996; 2009), discuto desdobramentos que emergem de uma tessitura do contato com o outro, do dissenso posto na tentativa de estabelecer ligações entre universos fraturados e na constante resistência à permanência desses vínculos. Oportunamente, no entremeio dessa resistência, proponho uma breve intersecção com a temática da subalternidade, tão refinadamente discutida pela teórica dos Estudos Pós-coloniais, Gayatri Spivak (2010). A partir daí, me empenho em analisar por meio da mobilização reativa200 da 198 Chamo tempos difíceis esses tempos fraturados no sentido proposto por Eric Hobsbawn (2014) marcados por incertezas, instabilidades, possibilidades e impossibilidades e obsolescência das coisas; tempos perfilados de reconversões no cerne da cultura política, onde as redes de compartilhamento tornam-se espaços e condutores de vozes e protestos, sobretudo de identidades fragmentadas que se constituem em células vitais da alteridade nesta nossa “sociedade em rede”. 199 Habermas conceitua o mundo da vida como sendo um conjunto de “tradições, embebidas em formas de vida culturais, entrelaçadas com histórias de vida individuais” (1982, p.250). 200 O termo reativo aqui empregado segue o sentido aplicado por Charles Tilly, Doug McAdam e Sidney Tarrow, em diversos de seus trabalhos individuais e em conjunto, nos quais consideram os movimentos sociais indissociáveis da política, uma vez que são categoricamente não mais vistos como “comportamento coletivo”, mas como uma forma de política, considerando as dimensões a esta inerentes e também as dimensões orgânicas, organizacionais. Neste sentido, esse movimento reativo II Congresso Internacional Sobre Culturas 523 plataforma espanhola “No somos delitos”201 – que em Abril de 2015 exibiu uma manifestação holográfica em frente à Câmara de Deputados da Espanha –, como, na emergência deste entre-lugar da experiência estética, pode-se in(sub)verter a ordem das visibilidades e das vozes entre os sujeitos, remodelando os inquestionáveis espaços desiguais e os desafiando publicamente. Assim, a projeção holográfica da plataforma espanhola No somos delito, é aqui entendida como o caleidoscópio que possibilita olhares nesta perspectiva analítica de um panorama onde se (re) configuram novas formas de manifestações sociais, marcadas por pautas locais, sob uma perspectiva de cidadanias globais e engendrada pelas revoluções em redes on line. Dito isso, não lanço-me na busca de posições definitivas; tampouco me permitem tais eventos marcados por uma instabilidade recursiva. Antes, sigo conduzida pela força que há nas interrogações, muito mais do que pela satisfação proporcionada pelas respostas. MI HOLOGRAMA FAVORITO [A transgressão é] talvez alguma coisa como o relâmpago na noite que, desde tempos imemoriais, oferece um ser denso e escuro ao que ela nega, o ilumina por dentro e de alto a baixo, deve-lhe, entretanto, sua viva claridade, sua singularidade dilacerante e ereta, perde-se no espaço que ela assinala com sua soberania e por fim se cala, tendo dado um nome ao obscuro. (FOUCAULT, Ditos e escritos, v.I, p.237) Dezessete mil oitocentos e cinquenta e sete hologramas202, Madri, 10 de abril de 2015. No relógio dos tempos modernos, o intervalo de uma hora; na Câmara dos deputados da Espanha, uma lei aprovada pelo Partido Popular (partido do governo). Foi o suficiente para uma manifestação de hologramas-cidadãos indignados marcar definitivamente estes tempos contemporâneos já tão acostumados à efervescência das revoluções digitais e aos devires de uma cultura política das redes. Entre às 21h30 e 22h30 daquela sexta-feira de abril, na Praça das Cortes, frente ao Parlamento Espanhol, Madri e o mundo assiste a uma modalidade de protesto antes está ligado a capacidade de engendrar um movimento político dissensual na ordem do sensível, de modo a reagir em escala de protesto a uma ação contestada, no caso, o estabelecimento de um ordem limitadora de direitos cidadão, a Ley Mordaza. 201 Plataforma que reúne mais de 100 organizações de cidadãos, ativistas e juristas na luta conta a reforma de Lei de Segurança Cidadã e do Código Penal Espanhol. No Somos Delito. Disponível em: http://nosomosdelito.net/ . Acesso em: 12 de jan. de 2016. 202 Dados informados pelo site do movimento, disponível em: <http://www.hologramasporlalibertad.org/#home>. Acesso em: 12 jan. de 2016. II Congresso Internacional Sobre Culturas 524 nunca vista. Milhares de pessoas de todo o mundo - convocadas através da criação do site Hologramas por la libertad203 - participaram de uma manifestação contra a Lei de Segurança Cidadã ou Ley Mordaza204, como batizada pelos ativistas. Esta lei, aprovada em março de 2015 por maioria governista na câmara, entre outras deliberações, restringe assembleias populares em espaços públicos, cerceando a liberdade de expressão e penalizando cidadãos através de multas e detenção. De acordo com os porta-vozes do No Somos Delito205, a Lei da Mordaça tem como principal objetivo frear o lastro de protestos iniciados no país com as mobilizações dos Indignados e o 15-M, em fevereiro de 2011. Seria mais uma manifestação como tantas outras que presenciamos desde a Primavera Árabe, não fosse pelo fato de que participantes, cartazes empunhados, palavras de ordem, compunham imagens projetadas por hologramas. A convocatória aconteceu via rede (YouTube, Facebook, Twitter), sobretudo através dos sites da organização e do movimento Hologramas por la libertad, onde constam detalhes sobre a posição do grupo e as consequências da nova lei, além de uma ferramenta que permite ao usuário gravar sua imagem para conversão em holograma e assim ter participação em próximas manifestações. Todo protesto se configurou de forma virtual, em espaço já proibido aos corpos físicos206, frente a Câmara dos Deputados de Madri e por isso mesmo considerada uma ironia contra a legislação. Sobre isso, afirma o porta voz da plataforma No Somos Delito, Carlos Escaño207: Nossa manifestação com hologramas é uma ironia. Com as restrições que estamos sofrendo em nossas liberdades de associação e de reunião pacífica, no final a última alternativa que vão nos deixar 203 Vide site disponível em: < http://www.hologramasporlalibertad.org/#home>. Acesso em: 12 jan. de 2016. 204 Ley Mordaza ou Lei de Segurança Cidadã, é uma lei espanhola que restringe o que as pessoas podem fazer quando se manifestam e permite a expulsão de imigrantes sem documentação, apresentada ao Parlamento em novembro de 2013 e já em vigor desde Julho de 2015. 205 UM HOLOGRAMA EM MADRID PARA PROTESTAR PELO DIREITO A PROTESTAR. Disponível em: <http://www.publico.pt/mundo/noticia/um-holograma-em-madrid-para-protestar-pelodireito-de-protestar-1692170>. Acesso em: 12 jan. de 2016. 206 A Lei de Segurança Cidadã, ou “Ley Mordaza”, foi aprovada em 26 de março e entrou em vigor em 1 de julho de 2015. A polémica Lei Mordaça já está em vigor em Espanha. Disponível em: http://observador.pt/2015/07/01/polemica-lei-mordaca-ja-esta-vigor-espanha/. Acesso em: 17 jan. de 2016. 207 ASÍ VERÁ MADRID LA PRIMERA PROTESTA DE HOLOGRAMAS DE LA HISTORIA. El Mundo. Disponível em: http://www.elmundo.es/economia/2015/04/10/5526c59ae2704e5c498b456d.html .Acesso em: 12 jan. de 2016. II Congresso Internacional Sobre Culturas 525 será protestar através de nossos hologramas. (EL MUNDO, 2015, tradução nossa). 208 Ao admitir o caráter irônico, caricatural desta forma de intervenção, seus organizadores nos advertem que este seria o sonho de protesto de qualquer governo disposto a limitar as liberdades de direitos. Se por um lado mostrou-se factível este tipo de manifestação multitudinária, por outro não resta dúvida de que entre uma projeção holográfica e uma multidão em corpo físico, toda estrutura governamental elegeria o seu holograma como favorito. Apesar de ocupar a vanguarda no histórico de reverberação destas manifestações, e ter resguardada a sua originalidade ao se valer de uma manifestação genuinamente virtual em espaço público na busca por manter seu lugar de fala, não é a primeira vez que esse viés estético se faz presente em protestos. Interferências estéticas independentes na ordem dos manifestos permeiam os eventos de resistência desde o início dos dias de protesto associados às redes digitais, a exemplo do prelúdio às revoluções que se deram na Islândia a partir de Outubro de 2008. Nesta ocasião, como relata Castells (2013, p.35) em Redes de indignação e esperança, o cantor Hordur Torfason, acompanhado de sua guitarra, sentou-se em frente ao Parlamento islândes, em Reykjavik, e cantou sua fúria contra os “banksters” e políticos que lhes eram submissos. Naquele momento a performance foi gravada e disseminada em rede, incentivando a partir dali, novas manifestações de caráter performático nos dias que se seguiram. O mesmo autor nos aponta alguns efeitos importantes presentes nos movimentos sociais da contemporaneidade, desvelado pelo viés de uma cultura política de debate e ativismo, fomento ao pensamento crítico e mudança de atitude cívica, dentre eles a criatividade político-artística que permeia as interconexões entre estética e política na busca incessante por se fazer ver e ouvir pelas instituições hegemônicas. Sobre este ponto, Castells (2013, p. 85) declara que “o poder das imagens, assim como das emoções criativas provocadas pelas narrativas, ao mesmo tempo mobilizadoras e tranquilizantes, produziram um ambiente virtual de arte e significado [...], transformando assim a cultura em instrumento de mudança política”. 208 Tradução nossa do original em espanhol “Nuestra manifestación con hologramas es una ironía, Con las restricciones que estamos sufriendo en nuestras libertades de asociación y reunión pacífica, al final la última alternativa que nos van a dejar va a ser protestar a través de nuestros hologramas”. Disponível em: http://www.elmundo.es/economia/2015/04/10/5526c59ae2704e5c498b456d.html .Acesso em: 12 jan. de 2016. II Congresso Internacional Sobre Culturas 526 Enquanto experiência estética, por natureza transgressora e reativa, essas “formas de inscrição no sentido da comunidade” (RANCIÈRE, 2009) nos dá a notar como obras ou performances participam politicamente, a despeito das intenções que as regem, dos tipos de inserção social de seus atores-agentes ou do modo como tais formas artísticas configuram estruturas ou movimentos sociais. Indignações e esperanças partilhadas na ordem do sensível: meandros da subalternidade Na esfera do pensamento contemporâneo, assistimos entre o assombro intelectual e o alvoroço da crítica, o estabelecer de uma relação simbiótica entre estética e política que nos conduz a desvendar de que maneira a estética, entendida enquanto partição cultural e via de representação, influencia a política; em contrapartida, como a política retroalimenta a estética. Se por um lado há um espaço de representação que parece ser um recorte do social, muito embora não necessariamente represente a totalidade da sociedade, por outro, a estetização da política faz da imagem midiática uma ferramenta tecnológica de poder. Tal situação que parece ser de natureza transnacional, uma vez que assim notamos em realidades além-mar, dá-me a impressão de que não vivemos a política, mas uma estética da política; parece se desvelar um entre-lugar onde a política se apropria da estética para fins escusos de teatralizações programadas em prol de um já bem estabelecido agir paternalista. Não obstante, talvez estejamos presenciando uma substituição das costumeiras ideologias históricas por uma espécie de cidadania global, onde a busca pelas liberdades substantivas (SEN, 2009; BANDEIRA, 2015) - saúde, educação, transporte – pautam o enfrentamento do Estado e do mercado através da resistência dos atores sociais. Por outro lado, em suas considerações sobre estética e política, Rancière (2009) procura estabelecer elos de articulação entre estes dois polos através de uma indução de novas formas de subjetividade política que emanam de atos estéticos enquanto configurações da experiência que possibilitam novos modos do sentir. Nesse sentido, o autor, ao pensar a contemporaneidade, aposta que não é preciso compreender a estética sob o viés desta cooptação deformadora – como simples registro de “uma captura perversa da política por uma vontade de arte” (RANCIÈRE, 2009, p. 16). Para ele, na multiplicidade dos discursos de caráter denunciativo seja da crise da arte, da crise II Congresso Internacional Sobre Culturas 527 político-social, da crise histórica, residem indicadores suficientes para afirmar que “(...) hoje em dia, é no terreno estético que prossegue uma batalha ontem centrada nas promessas da emancipação e nas ilusões e desilusões da história” (RANCIÈRE, 2009, p. 11-12). No livro O desentendimento (RANCIÈRE, 1996), quando começa a tecer suas primeiras elucubrações sobre uma ordem sensível na política, o autor define nessa instância aquilo que é visível, dizível e digno de valor; fundamenta as interlocuções políticas ao nível do discurso dissensual entre as partes, ou seja, em torno das relações entre os sujeitos sociais há uma simbiose recorrente entre o dissenso e o consenso, que preconiza as formas de atuação e representatividade nas instâncias sociais. Rancière (1996) afirma a existência de uma lógica que “distribui os corpos no espaço de sua invisibilidade ou visibilidade e coloca em concordância os modos de ser, do fazer e do dizer que convêm a cada um” (1996, p.40). Acredito ser oportuna, neste espaço de (in) visibilidades proposto por Rancière, as contribuições da indiana Gayatri Spivak trazidas em sua obra Pode o subalterno falar? (2010), onde discute a possibilidade de autorrepresentação do subalterno209 fora de um contexto patriarcal e pós-colonial, sem os regimes de agenciamento e mediação de outrem. Para questionar o lugar de onde teoriza, Spivak (2010) lança mão do termo “representação”, distinguindo dois termos que partem dos sentidos dos vocábulos em alemão: Vertetrung e Darstellung – o primeiro enquanto ato de assumir o lugar do outro na acepção política da palavra; o segundo, parte de uma visão estética que prefigura o ato de performance e de encenação. Há uma simbiose entre o ato de falar por e re-presentar na medida em que os dois se configuram em atos de fala que pressupõe um falante e um ouvinte. Esta estrutura discursiva suprime o intercâmbio entre falante e ouvinte, consequentemente não há interação concreta do sujeito subalterno neste espaço dialógico. Desprovido de qualquer forma de agenciamento, o subalterno, de fato, não pode falar, uma vez subtraído o caráter dialógico da fala deste sujeito. Se o ato de ser ouvido não ocorre, também o processo de autorrepresentação do subalterno não se concretiza. Creio, contudo, que a estética enquanto experiência questionadora, reconverte os espaços e fronteiras entre o visível e o invisível, o enunciável e o silenciável, o ruído (dos pobres) e o discurso inteligível (dos ricos), vindo a ser, então, “(...) a emancipação das 209 Através da desconstrução derridariana, Spivak expõe uma apropriação errônea do termo subalterno ao dizer que este não pode ser utilizado por qualquer sujeito marginalizado. Desta forma, a autora resgata a relação de uso de Gramsci, que utilizou o termo para se referir ao proletariado, “aquele cuja voz não pode ser ouvida” (p. 12), aqueles das camadas mais baixas da sociedade que são cerceados de representação política e legal, da possibilidade de fazer parte do estrato social dominante e do mercado por diversos modos de exclusão. II Congresso Internacional Sobre Culturas 528 normas da representação, em segundo lugar a constituição de um tipo de comunidade do sensível (...) que inclui aqueles que não estão incluídos, ao fazer ver um modo de existência do sensível subtraído à repartição das partes e das parcelas” (RANCIÈRE, 1996, p. 68). Quando retoma as discussões no livro A partilha do sensível, Rancière (2009) refina seus argumentos ao tratar de uma “partilha do sensível” inerente à política e que vem a ser o sistema de evidências sensíveis que revela [...] a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa [...] um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda na partilha de espaços, tempos e tipos de atividades que determina a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nesta partilha. (RANCIÈRE, 2009, p. 15, grifos do autor) Assim, a política, pelas vias da estética, dá a ver aquilo que antes não era visto e que permite escutar como discurso aquele para o qual não existia lugar de fala, necessita da poeisis210, enquanto espaço metafórico e potência transformadora e condutora de atos à reabertura de mundos, revelando suas contingências, permitindo recriações de linguagens e códigos sensíveis que o sustentam. Para Rancière (2009) tais formas vêm-se comprometidas com um certo regime da política, no que tange a indeterminação das identidades, fragilização das posições de palavra e fraturas das partilhas do espaço e do tempo. Esse regime estético da política, na concepção do autor, é propriamente a democracia, movimento de simulacros desvelados às identificações do público. A estética ou a experiência estética, proporciona então, comunicação entre sistemas antes separados de expressão, de modo a possibilitar a fruição de sujeitos sociais antes invisíveis e silenciados, em termos de partilhar suas indignações pelo agir arbitrário das instâncias representativas, assim como suas esperanças em busca de uma utopia no centro da democracia e da cultura da sociedade em rede, que é a autonomia do indivíduo em relação às instituições sociais. 210 Poiesis aqui empregada sob a ótica platônica e muito referenciada em Rancière em suas considerações sobre política e estética, e que diz respeito a ideia de produção de coisas em geral e da produção de coisas com palavras, ação que transforma e continua o mundo. II Congresso Internacional Sobre Culturas 529 TEMPOS DIFÍCEIS, ESPERANÇAS UTÓPICAS: TRANSPONDO A SUBALTERNIDADE Longe de chegar a uma posição simplista da problemática inicialmente apresentada no título de sua obra ao responder se o subalterno pode falar, Spivak (2010) traz a luz uma reflexão no sentido dos processos de intermediação, da necessidade praticamente obrigatória do falar agenciado do sujeito marginalizado, que é apenas ouvido pela voz de outrem – aquele que se coloca na posição de reivindicar algo em nome de um outro. Na urgente tarefa de desconstrução das tentativas de falar em nome de/por alguém, inicia-se a construção de espaços através dos quais minorias possam falar e serem ouvidas. A via para tanto parece partir da possibilidade de espaços de interlocução, provenientes da extinção do agenciamento enquanto forma de ação validada institucionalmente. Ao discutir as reais possibilidades de desconstrução de um cenário político, social e culturalmente hegemônico a partir da experiência dos Hologramas por la libertad por meio do caráter subversivo imbuído nas práticas estéticas, creio que vozes antes abafadas pelo discurso dominante que permeia a ordem do sensível, possam a partir daí se converter em discursos potentes. Assim, ao tomar como pano de fundo uma manifestação holográfica como precursora de uma experiência que pode se dizer estética, na medida em que se configurou em canal de partilha sensorial, emotiva e metafórica das vicissitudes sofridas por um comum que agora transcende os espaços invisíveis e indizíveis a que estava fadado, procurei tecer sob um viés transgressor de participação política e de esperanças utópicas do mundo da vida, uma colcha que permita envolver estes tempos difíceis e fraturados, na esperança e no alento de que uma experiência questionadoramediadora da estética possa reconverter espaços de ilegitimidade em transposição de uma ordem injusta de distribuição de visibilidades e de vozes entre os sujeitos sociais e proporcionando aquele espaço de fala antes inexistente. Em tempos de cerceamento de direitos impostos por leis arbitrárias, proponho que desigualdades que hoje são apagadas sob um regime de invisibilidade “consentida” sejam deslocadas do pano de fundo das certezas inquestionáveis e passem a ser desafiadas publicamente, por meio de uma potência transformadora inerente à estética enquanto operador cultural. A partir daí, o que se espera é a reconversão de ordens historicamente impostas pelas vias da contestação do poder e da convergência de ideias capazes de criar espaços de interlocução a fim de transformar esperanças utópicas em realidades circunscritas na II Congresso Internacional Sobre Culturas 530 emancipação dos sujeitos. Certamente, penetrar nos entre-lugares de (in)visibilidades produz latentes significados na direção de uma nova cultura política de debate e participação democrática, ao tempo que possibilita espaços de interlocução às, desde sempre, minorias. Acredito que por meio do caráter subversivo imbuído nas práticas estéticas, tão presente nos Hologramas por la libertad, podemos desenvolver visões mais refinadas do bem-estar social e permitir que os “ruídos” abafados pelo discurso dominante se convertam em discursos transformadores capazes de “criar significados, articular mentes, contestar o poder” (CASTELLS, 2013) e transformar esperanças utópicas em realidades circunscritas na emancipação dos sujeitos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BANDEIRA, Messias G. Pautas locais, cidadanias globais: cultura política em redes. Discurso proferido em aula da disciplina Cultura e Contemporaneidade, Programa Multidisciplinar de Mestrado em Cultura e Sociedade, IHAC/UFBA, Nov. 2015. CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, 1ª edição. GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernização Reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. 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Para tanto, nesta escrita, a partir do campo teórico-metodológico da mediação cultural, refletiremos sobre as possibilidades de aproximação da dança contemporânea, com os públicos. Visando ainda, problematizar sobre a crescente utilização do termo em produções culturais nesta cidade e sobre a sua importância no campo do direito à cultura. Palavras-chave: Dança contemporânea. Mediação cultural. Públicos. ABRINDO AS CORTINAS “Continuem a causar essa mistura louca de sentimento nas pessoas.”212 (Estudante, 18 anos) Esta escrita é motivada pela experiência prática, do trabalho de mediação cultural, desenvolvido no projeto Solos Baianos. A ação foi uma realização do Balé Jovem de Salvador – BJS, companhia juvenil criada em 2007, sob a direção geral de Matias Santiago, que possui como objetivo principal a qualificação de jovens artistas, sobretudo na cidade de Salvador. No projeto Solos Baianos foi previsto que seis coreógrafos de reconhecida trajetória profissional, sendo eles: Cristina Castro, João Perene, Jorge Alencar, Jorge Silva, Mestre King e Lia Robatto, criassem um solo inédito em dança para ser executado pelo elenco de bailarinos do BJS. Assim, cada solo foi montado para dois bailarinos que foram selecionados após um workshop de criação artística. Nesta primeira etapa do trabalho, o projeto teve como diretriz o trabalho em criação em dança e a qualificação profissional de jovens interpretes. A segunda etapa foi direcionada ao estímulo a fruição artística do trabalho cênico, sobretudo por jovens e adultos, a partir da apresentação do espetáculo Solos Baianos213 no Teatro Gregório de 211 Poliana Bicalho, mestranda no programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, mediadora e produtora cultural. E-mail: polianabicalho.producao@gmail.com 212 Depoimento coletado em questionário aplicado, em sistema de amostragem, após o espetáculo Solos Baianos. Agosto de 2016. 213 O elenco foi composto por: Brisa Carrilho, Clara Boa Sorte, Danillo Queiroz, Edwin Carvalho, Fernanda Cristall, Igor Vogada, Johnny Santos, Luiza Agra, Lukas DiJesus, Matheus Ambrozi, Ruan Wills e Thor Galileo. II Congresso Internacional Sobre Culturas 533 Mattos (Praça Castro Alves - Centro), Centro Cultural Plataforma (Praça São Braz, s/n – Plataforma), Espaço Cultural Alagados (Rua Direita do Uruguai /fim de linha Uruguai), no ano de 2016, na cidade de Salvador. Importante pontuar que o projeto obteve recursos através do edital Arte em Toda Parte - Ano III214, da Prefeitura Municipal de Salvador (BA). Neste aspecto, cabe registrar que o Estado contemporâneo não produz cultura, apenas cria as condições para que a cultura aconteça. Os direitos culturais são direitos assimétricos: o direito está claro, o dever nem tanto. Isso talvez porque a ideia dos direitos culturais se prenda demasiado à noção de necessidades culturais. Quais são as necessidades culturais de uma dada pessoa? (COELHO, 2011, p.09) Assim, a partir do entendimento que existe no contexto baiano a urgência e necessidade de descentralizar o objeto artístico, foi feita a escolha de um edifício teatral mais central e dois localizados em comunidades populares da cidade, o que oportunizou o acesso físico ao espetáculo, de públicos não freqüentadores do principal circuito de arte da capital baiana. É nesta etapa do projeto, que o trabalho de mediação cultural passa a ser desenvolvido, considerando os territórios de localização dos equipamentos culturais e organizados em quatro linhas de ação. Primeira: garantia de meia entrada as sessões de espetáculo a educadores. Segunda: realização de atividades de sensibilização artística (pré-espetáculo), para jovens a partir de 16 anos, em instituições públicas de ensino. Terceira: agendamento de grupos educativos e ou culturais para fruírem o espetáculo. E realização de bate-papo após o espetáculo. Quarta: promoção de troca de experiências entre bailarinos do BJS e de grupos artísticos do Subúrbio Ferroviário e Península de Itapagipe. Contudo, para efeito de delineamento nesta escrita vamos nos deter a segunda linha de ação, por acreditarmos que ela nos trará dados importantes para refletir sobre o papel da mediação cultural no cenário cultural da cidade de Salvador, junto a projetos artísticos, como ação efetiva que possibilita o acesso físico e simbólico à cultura e, por conseguinte a uma produção artística de dança. AS QUESTÕES E O ENREDO 214 http://www.arteemtodaparte.salvador.ba.gov.br/ Acesso em: 25 de outubro de 2016. II Congresso Internacional Sobre Culturas 534 Para tanto, na perspectiva de elucidar o trajeto da escrita, partimos do entendimento do que é mediação. “Por mediação entende-se aqui como processo de circulação de sentidos nos diferentes sistemas culturais, operando um percurso entre a esfera pública e o espaço singular e individual dos sujeitos”. (BARROS, 2013, p.09). A mediação cultural, como um terceiro elemento que se interpõem a recepção e a produção do bem cultural. Partindo-se de tal percepção, pode-se notar que está em causa a criação de um território que convive, articula-se, conecta-se, mas se distingue dos demais (os da produção e da recepção) que constituem o campo cultural amplo. Em sendo assim, ao afirmar e afirmar-se por sua territorialidade, a mediação implicitamente reivindica e marca um lugar especial, uma posição própria e singular, uma centralidade que em modelos históricos e epistemológicos tradicionais era negada aos “passadores”, relegados sempre a uma posição secundária nos quadros das hierarquizações culturais. (PERROTI, 2015, p. 09) O autor nos alerta sobre a importância da consolidação do campo teóricometodológico no Brasil, através do entrecruzamento de diversas áreas de estudos, mas também do registro das suas práticas, em diálogo com a teoria. Neste sentido, acreditamos que o registro desta experiência também pode contribuir com os estudos nesta área. Desmistificando, sobretudo, o lugar do mediador, como um mero distribuidor ou decodificador do produto cultural, mas, apresentando-o como um sujeito extremamente prepositivo e observador da realidade cultural em qual se insere, pois o seu olhar para o outro (os públicos) não é para um passivo consumidor cultural, mas principalmente de sujeito do direito (participar, contribuir e ter acesso a vida cultural), para o pleno exercício da cidadania. Desta forma, o mediador cultural atua como construtor de um elo entre a obra de a arte e os públicos. O autor Edmir Perroti (2015) coloca ainda, que a mediação cultural situa-se em um território discursivo, de embates e possibilidades, ao mesmo tempo em que de afirmação da influência da esfera pública/instituições na construção do campo simbólico. Diante do exposto, vamos analisar a realização de atividades de sensibilização artística (pré-espetáculo) que originalmente deverá ocorrer antes da fruição do espetáculo e executadas pela ação de mediação cultural, no projeto Solos Baianos, visto que II Congresso Internacional Sobre Culturas 535 no âmbito da mediação teatral pressupõe-se que o público aprenderá introdutoriamente, os conteúdos específicos do fazer teatral, o jogo cênico e os diversos temas relacionados aos elementos do espetáculo. Esta aprendizagem integra o público e a obra teatral, da forma mais livre, criativa e autônoma possível, favorecendo sua capacidade individual de vivenciar a obra. (OLIVEIRA, 2011, p. 32) O objetivo deste trabalho foi aproximar prioritariamente o público jovem (a partir de 16 anos) da rede pública de ensino, ao trabalho técnico e estético desenvolvido pelo BJS, a partir de uma vivência prática em dança contemporânea. Contudo no decorrer do trabalho foi ampliada a quantidade de instituições215 atendidas, assim como de públicos (adultos, idosos e portadores de necessidades especiais), por demanda das próprias instituições que souberam do trabalho que estava sendo realizado. A metodologia do trabalho consistiu num contato prévio com as instituições, apresentando a proposta de trabalho do projeto Solos Baianos e contextualizando sobre a importância da vivência artística, como antecedente da vivência estética. O trabalho teve a seguinte sequência didática, que foi ajustada a partir da especificidade dos públicos atendidos. Sendo: 1) Bate-papo sobre o Balé Jovem de Salvador e o projeto Solos Baianos; 2) Vivência prática em dança (conteúdos: leitura de imagens, alongamento, consciência corporal, foco, integração de grupo, reconhecimento do espaço etc); 3) Apreciação do fragmento de um dos solos do BJS; 4) Aprendizado de trecho da coreografia; 5) Bate-papo sobre a fruição e registro escrito e /ou desenho da experiência. Para a realização deste trabalho a mediadora cultural com o acompanhamento de um bailarino do BJS, atendeu cerca de oito instituições, totalizando 12 ações de mobilização, recebendo um público de cerca de 180 pessoas. O trabalho desenvolvido teve a carga horária aproximada de 2h e contou com a importante parceria de educadores que viabilizou o acesso as instituições. Pontuamos que devida a demanda em alguns casos, fomos duas vezes à mesma instituição. É notória a grande diversidade das instituições, neste trabalho. O que nos aponta o quanto a arte, a dança contemporânea é plural e acessível as mais diversas realidades. Pudemos neste trajeto perceber que independente da escolaridade, muitos jovens/adultos/idosos precisam ter o acesso simbólico ao campo da dança. Foi comum 215 Fundac /CASE Feminina Universidade Federal da Bahia / Curso de Produção e BI em; Artes Centro Estadual De Educacão Profissional Em Artes e Design; Colégio Estadual Alípio Franca; Centro de Esporte, Arte e Cultura César Borges; Escola Municipal Alfredo Amorim; Previs- Previdência Social da Prefeitura; APABB - Associação de Pais e Amigos do Banco do Brasil II Congresso Internacional Sobre Culturas 536 nestes encontros, o questionamento dos públicos sobre que dança é esta? Cadê os passos? Quero dançar?! Desta forma, pensando nos desdobramentos que a heterogeneidade de interesses para investigar o corpo traz para o campo da dança, é possível observar que de modo geral não existe uma técnica específica de dança contemporânea, ou melhor, na medida em que existem muitas técnicas específicas ajustadas para cada criação e contexto artístico de um grupo ou de um artista, não existe uma técnica única, universal, de dança contemporânea. Não existem códigos base, comumente chamados de “passos”, com variações ou com utilizações distintas. (VIEIRA, 2012, p.02) A autora Maria Carolina Vieira (2012) nos esclarece que as diversas técnicas corporais como o balé clássico, o jaz, hip hop, moderno são importantes, pois ampliam as possibilidades corporais, tanto para o movimento quanto para a criação, mas a ampliação do entendimento de técnica no interior da dança contemporânea lança o olhar para o projeto estético e principalmente para a questão que a obra possui. Neste sentido a pesquisadora Helena Katz (2013) coloca que a dança contemporânea realiza um pacto entre palco e platéia, onde não ocorre apenas um fluxo de emissão e recepção de uma mensagem, mas a um lugar para a co-autoria, uma responsabilidade compartilhada entre todos os envolvidos. Assim, nos interessou na execução destas atividades de sensibilidade artística, foi a possibilidade de reflexão sobre esta outra experiência estética, estando assim mais disponíveis e talvez motivados para assistir o espetáculo Solos Baianos, em um dos teatros, movidos, sobretudo pelo desejo. No trajeto também, pudemos encontrar nos grupos pessoas com necessidades especiais: cego, deficiente físico, deficiente intelectual, ou ainda o encontro com meninas que cumprem a medida socioeducadiva de internação. Para este encontro, nos deparamos com o rigor exigido no processo de revista para que pudéssemos ter acesso as meninas, a desconfiança e descrédito das mesmas, mas também um olhar atento e curioso. Estas diversas realidades foram desafiadoras e estimuladoras para pensar nas possibilidades afetivas e sensíveis do campo da arte, deslocando a profissional da mediação cultural e bailarinos de uma zona de conforto e buscando reajustar um roteiro pré-concebido a partir da escuta do outro. II Congresso Internacional Sobre Culturas 537 Registro da experiência de uma interna da CASE FEMININA/FUNDAC - 02/08/16 Registro da experiência de um aluno da À Associação de Pais e Amigos e Pessoas com Deficiência do Banco do BrasilAPABB – 22/08/16 FECHAR DAS CORTINAS “Eu gostei muito de assistir e me emocionei com o talento de todos. E que continue. Agradeço a todos.” (Estudante, 15 anos)216 Não pudemos afirmar que todos que participaram destas vivências artísticas foram assistir ao espetáculo Solos Baianos, posteriormente nos teatros, durante aquela temporada realizada em agosto de 2016. Mas, este também é o trabalho da mediação cultural, lançar sementes para o fortalecimento do campo da cultura e não apenas de um projeto isoladamente. Uma tarefa contínua e de resultados muitas vezes pouco palpáveis. Contudo, a certeza de que 216 Depoimento coletado em questionário aplicado, em sistema de amostragem, após o espetáculo Solos Baianos. Agosto de 2016. II Congresso Internacional Sobre Culturas 538 por meio da arte, é possível desenvolver a percepção e a imaginação para aprender a realidade do meio ambiente, desenvolver a capacidade crítica, permitindo analisar a realidade percebida e desenvolver a criatividade de maneira a mudar a realidade que foi analisada. (BARBOSA, 2009. p.21) Um diagnóstico apontado neste trabalho é a importância de uma maior aproximação dos fazedores da dança contemporânea junto aos públicos, pois é preciso ampliar o imaginário do que é dança nas instituições escolares, sobretudo. Por isso, não basta apenas, disponibilizar ingressos gratuitos para as pessoas irem ao teatro, fazse urgente criar vias de diálogo e parceira. Acreditamos que numa escala muito pequena, talvez, o projeto Solos Baianos atuou para minimizar esta lacuna. Vislumbramos ainda, a importância no processo de formação de jovens interpretes em estimular o lugar de multiplicador de dança, na busca da consolidação de competências e habilidades. Na nossa prática foi um implicador o receio dos bailarinos em atuar neste lugar de mediador da aprendizagem, o que gerou resistência de alguns no acompanhamento das atividades de pré-espetáculo, mas que também despertou em outros, a curiosidade e o interesse em ampliar o seu fazer no campo da dança. Por meio deste processo da mediação cultural, desejou-se que o público mediado pudesse se fortalecer enquanto um espectador emancipado (RANCIÈRE, 2014), diante da obra Solos Baianos. Segundo o autor o lugar desta emancipação reside o questionamento entre o olhar e o agir e que o próprio olhar já é uma ação, no sentido em que fazemos relações com outras coisas que vivemos ou que sentimos. Mas, isto só ocorre se existe uma relação de pertencimento, de direito, com o campo cultural. Por fim, o trabalho da mediação cultural é um exercício constante de escuta frente aos sujeitos envolvidos, conectados por uma rede de afeto e de engajamento político, uma ação de partilha entre todos os entes envolvidos. Desta forma, é um ato político abrir o teatro (edifícios teatrais, projetos culturais, etc) para todos, como um espaço de emancipação dos sujeitos: de contextualização, fruição e criação. Neste sentido, o espaço escolar também precisa ampliar os seus horizontes, buscando considerar a fruição estética, como elemento fundamental no processo de constituição das subjetividades de crianças, jovens, adultos e idosos. II Congresso Internacional Sobre Culturas 539 REFERÊNCIAS BARBOSA, Ana Mae e Coutinho, Rejane Galvão. Arte/Educação como mediação cultural e social. São Paulo: UNESP,2009. BARROS, José Márcio. Mediação, Formação, Educação: duas aproximações e algumas proposições. Revista Observatório Itaú Cultural: OIC – N. 15 (dez. 2013/maio 2014) São Paulo: Itaú Cultural, 2013, p. 08- 14. COELHO, Teixeira. Dicionário crítico de política cultural. São Paulo: FAPESP/ Iluminuras, 1997. _______________. Direito cultural no século XXI: expectativa e complexidade. In: Revista Observatório Itaú Cultural / OIC – n. 11 (jan./abr. 2011) – São Paulo, SP: Itaú Cultural, 2011, p. 06-14. KATZ Helena. Por uma teoria do corpo mídia: a pergunta que o corpo faz. Disponível em: http://observatoriodedancacrista.blogspot.com.br/ acesso em 14 de fev de 2014. MEYER-BISCH, Patrice; BIDAULT, Mylène. Afirmar os direitos culturais: comentário à declaração de Friburgo. São Paulo: Iluminuras, 2014. VIEIRA, Maria Carolina. 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II Congresso Internacional Sobre Culturas 540 A REINVENÇÃO DO CORPO DA MULHER IDOSA: IMAGENS CORPORAIS NA CULTURA CONTEMPORÂNEA Cássio Luiz Aragão Matos217 Corpo = parte da pessoa que nas últimas décadas concentra muitas descobertas e emancipações, embora a mercadologia tenda a reduzi-la a algo que serve para ir à academia, usar roupas para divulgar marcas escritas sobre as peças em letras cada vez maiores, exibir estilos de vida e atitudes distintivos. Nestor Garcia Canclini. RESUMO O objetivo do artigo foi analisar a imagem corporal das idosas como estratégia de distinção social e simbólica, e (re) definição da identidade cultural. Este artigo parte da premissa que as representações, práticas, hábitos e comportamentos que as idosas têm em relação ao corpo reforçam a valorização da aparência física e têm levado idosas a frequentarem academias, centros de estética e universidades para a terceira idade; a adquirirem, de modo crescente, produtos farmacêuticos, nutricionais e estéticos; a buscarem cirurgias plásticas, reparações estéticas, a consumirem a moda e a realizarem atividade física em vista do aprimoramento das dimensões corpóreas. A imagem corporal que essas idosas têm do corpo velho é de feiura, senilidade, decrepitude, doença, insegurança, invisibilidade e medo das limitações funcionais. Palavras-chave: Envelhecimento. Cultura. Corpo. Identidade. Imagem Corporal. INTRODUÇÃO Na cultura contemporânea a visão do humano está centrada na presença corporal. O sujeito não é visto apenas como um ser exclusivamente biológico, nem somente como produto da cultura, mas sim resultante das várias interações: biológico, social e cultural. Na contemporaneidade a sociedade é organizada também em função dos padrões de consumo e tem como referência o comportamento, a beleza, a aparência física, o estilo de vida. O corpo da juventude assume um papel preponderante, e 217 Doutorando e Mestre pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA); Especialista “lato Sensu” em Docência do Ensino Superior pela Associação Baiana de Educação e Cultura (ABEC), em parceria com a Fundação Visconde de Cairu, e em Comunicação Social com habilitação em Relações Públicas; Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Relações Públicas pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), e Bacharel em Fisioterapia pelo Instituto Baiano de Ensino Superior (IBES). Fui Docente do Curso de especialização “lato Sensu” em Comunicação Organizacional e Novas Tecnologias da Faculdade Social da Bahia, e de vários Cursos Técnicos Profissionalizantes da cidade do Salvador. Bolsista pela Capes. E-mail: cassioaragaofisio@gmail.com II Congresso Internacional Sobre Culturas 541 assim, podemos dizer que é difícil alguém nessa cultura de consumo desejar ter um corpo envelhecido. As imagens do corpo na velhice são tantas que muitas vezes diferem segundo o gênero, a classe social, a época ou a sociedade em que se vive e têm como elemento fundamental a imagem corporal. A imagem corporal é o modo pelo qual o corpo apresenta-se para nós, ou seja, a representação mental que possuímos do nosso corpo. É considerada uma construção multifatorial que envolve percepção, afeto e componentes cognitivos. O que define corpo é o significado que cada indivíduo dá a este. O fato de o corpo ser natural ou biológico, e, ou produto da cultura, sua construção é o que difere para cada pessoa e para casa sociedade. O que vai além das semelhanças biológicas que são universais. Bourdieu (2007) apresenta três conceitos de corpo que tem grande importância para o entendimento da percepção social do corpo e de como a corporalidade participa das interações sociais: as noções de corpo real, corpo ideal e corpo legítimo. O corpo legítimo é um corpo social, é arbitrário e modificado pela classe dominante. O corpo ideal é o corpo mais distante da natureza e mais próximo da civilização. Ambos são corpos que não podem ser alcançados por todos, mas só por uma parcela da sociedade que dispõe de tempo e de dinheiro (BOURDIEU, 2007). Lembramos também que a busca por um corpo belo não carrega a mesma conotação para os dois sexos, pois a intensidade e o vigor, os efeitos sobre a relação com o corpo e a função na construção da identidade pessoal são diferenciados segundo o sexo. A beleza feminina é importante fator na diferenciação sexual do ponto de vista cultural e psicológico, e não apenas estético (LIPOVETSKY, 1999). A velhice passa, sobretudo pelo corpo, mas em que corpo se não sabemos defini-lo, se não o conhecemos, se não fomos habituados a compreendê-lo e se não aprendemos a ouvi-lo? O homem ainda busca por um entendimento sobre o corpo, e ainda continua sendo alma, razão e inteligência. No Brasil, é visto como sinal de falta de cuidado, de desleixo, o fato de deixar o corpo na sua aparência natural, principalmente se esse natural é um corpo gordo ou envelhecido (GOLDENBERG218, 2008). Goldenberg (2013) ao discutir o papel do 218 Goldenberg ( 2013) em Corpo, gênero, envelhecimento na Cultura Contemporânea explica o papel do corpo como uma importante forma de capital (físico, simbólico e social) na cultura brasileira. A autora (2013) revela os traços distintivos de uma cultura como a brasileira em que o corpo é um elemento crucial na construção de uma identidade nacional. Pode-se afirmar que no Brasil, o corpo é um capital, talvez o mais desejado por indivíduos das camadas médias urbanas e também das camadas mais II Congresso Internacional Sobre Culturas 542 corpo e do envelhecimento na cultura brasileira afirma que o corpo é um elemento crucial na construção de uma identidade nacional. PERCURSO METODOLÓGICO Este artigo parte do resultado da pesquisa do mestrado. Realizamos um estudo etnográfico, privilegiando como eixo de análise o universo sociocultural do sujeito idoso. Partimos do pressuposto de que são os sujeitos, em seu processo de interação com a cultura, a sociedade, os meios de comunicação, os dizeres sobre corpo que, em última instância, constroem sentidos, produzem formas de representação e ações sobre o mundo. Do ponto de vista metodológico esta é uma pesquisa qualitativa. O procedimento de amostragem utilizado foi o não probabilístico intencional. Os procedimentos metodológicos que embasaram esta investigação decorrem de duas unidades: a unidade de análise e a unidade de estudo. A unidade de análise é representada pela amostra de sete sujeitos, residentes na cidade de Salvador – Bahia. Os critérios de definição da amostragem foram: sexo feminino, ter idade entre 60 e 75 anos - idosos jovens (MOTTA, 2006), ensino médio completo ou superior, ter feito algum procedimento cirúrgico de cunho estético (cirurgia plástica, correção de mama, lipoaspiração, uso de prótese ou órtese, implante dentário, tratamento de calvície, tatuagem), ou já ter realizado tratamentos estéticos (drenagem linfática, depilação, limpeza de pele, escova ou tintura massoterapia, fazer uso de medicamentos no cabelo, fazer unha, farmacológicos para rejuvenescimento ou emagrecimento, fazer dieta, frequentar academia no mínimo duas vezes por semana, ter hábitos frequentes de consumo como: usar regularmente cosméticos, ir ao shopping no mínimo uma vez por mês, comprar roupas regularmente, fazer viagens regularmente, sair com amigos para festas, eventos sociais; possuir disponibilidade de contribuir para a pesquisa. O lócus escolhido para realizar a pesquisa foi uma academia de ginástica. Tal decisão foi tomada levando-se em conta que as frequentadoras da academia – as idosas, de alguma forma e em algum momento das suas vidas, decidiram trabalhar seus corpos seja por motivações estéticas, por questões de rejuvenescimento, por baixas, que percebem o corpo como um veículo fundamental para ascensão social, e também uma forma importante de capital no mercado de trabalho, no mercado de casamento e no mercado erótico. II Congresso Internacional Sobre Culturas 543 saúde, seja em busca de um bem estar, de uma melhor qualidade de vida, ou em busca de uma maior sociabilidade, já que as academias na cultura contemporânea representam esse espaço de sociabilidade. Imagem Corporal das Idosas O envelhecimento dos seus corpos se confirma externamente, através do espelho como as entrevistadas mesmas disseram, e assim, não podemos dizer que se trata apenas de uma percepção interior. Olho para o espelho e para minha idade. Meu corpo envelheceu. Acho a velhice a pior coisa da vida, Sinto-me decrépita, feia, sem cor, sem vida. A velhice é uma coisa assombrosa. Minha sogra, Dona Olga, era assim. A velhice é feia, cruel. Tudo de ruim é a velhice. E as doenças? É deprimente ter um corpo velho. Vai murchando. Vai machucando. Deus me livre! É a pior coisa. Fiz tudo já. Várias plásticas. Tiro e boto. Já coloquei botox, já puxei e estiquei rosto, coloquei lábios. Não queria ter um corpo velho nunca. Era linda e hoje, quando olho no espelho, sinto-me decrépita. Tem dias que fico pensando comigo, porque isso de envelhecer comigo meu Deus? Sempre cuidei de mim, mas chega uma hora que não adianta, é a força da natureza (Entrevistada 7, 67). A imagem que tenho do meu corpo hoje é bacana, mas quando olhei há vinte anos atrás no espelho foi péssima, me senti feia, horrível, horrorosa, hoje convivo melhor. Me gosto. Bola pra frente. Não tenho mais vontade de mudar, tenho dinheiro e não faço plástica nenhuma. Corpo na velhice você tem que olhar a alma, ter uma estrutura na mente, alma e espírito. O pior são as doenças. Tem que cuidar do corpo, como se cuida da alma. Se olhar o corpo e a relação com a beleza na velhice você não aguenta (Entrevistada 1, 60). Eu achava que não ia envelhecer, mas vejo pelo espelho que envelheci. Olho para meu corpo e vejo as rugas, triste, muito triste (Entrevistada 3, 60). O espelho para as entrevistadas é o grande vilão. É ele que mostra que a velhice do seu corpo chegou, embora Beauvoir219 (1990) já discutisse que é difícil estabelecer se o centro da questão é a velhice ou o corpo. Mas a certeza está como 219 Ver, especialmente (Beauvoir, 1990), A Velhice. Na década de setenta, a autora (1990) publicou a Velhice, uma obra de caráter filosófico e sócio-antropológico, discutindo mudanças e atitudes relacionadas com a chamada Terceira Idade, que começariam a ocorrer no Brasil a partir das décadas de 80 e 90. A autora (1990) caracteriza a velhice como uma instituição social, e não simplesmente como uma condição biológica, analisando através da história e situando-a em diversas sociedades e culturas, trata da gerontologia, medicina, sociologia, psicologia e economia. Com a expressão “conspiração do silêncio”, Beauvoir (1990) chamou a atenção para o fato de que a velhice era uma espécie de segredo vergonhoso do qual era indecente falar. O livro é considerado um clássico, e é imprescindível conhecer, principalmente quem pesquisa sobre temáticas como envelhecimento, feminismo e cultura. II Congresso Internacional Sobre Culturas 544 afirmou a autora (1990): “Em que ela é vivida no corpo, e uma vez que sabemos que a velhice o habita, o corpo, esse estranho, nos inquieta” (BEAUVOIR, 1990, p. 56). Não gostaria de envelhecer. Olho pelo espelho e constato que envelheci muito. Muito triste ter um corpo velho. Preconceitos têm doenças, as pessoas olham para você com um olhar contra o velho. Nunca fiz cirurgias de correção. Tenho amiga que fez. Piora. Quando volta a ruga na cara, volta pior. O pescoço então um horror, as mãos murchas (Entrevistada 2, 61). Quando olho no espelho vejo que para minha idade meu corpo tá adequado para minha idade. A aparência é tudo! Sempre fui muito cortejada, adorava dançar e escolhia meus parceiros para dançar a dedo quando era jovem. Tinha um bumbum arrebitado, me trajava de forma elegante. Chegava no baile, a micareta, na festa e olhava para o rapaz e dizia é aquele ali. Só dançava com o que eu escolhia e queria. Só dançava com homens bonitos. Chamava muito a atenção nas festas que eu ia, pela beleza que tinha. Corpo na velhice vem com doença, dependência. Eu era muito vaidosa, quando tinha o corpo jovem era bem feita, não sou mais jovem, quem vai olhar para mim hoje, muito triste ter um corpo velho (Entrevistada 4, 73). No espelho, essas mulheres não ignoraram a condição da velhice dos seus corpos, ao contrário, aprendem a conviver com sua imagem, buscando elementos que reforcem sua autoestima, bastante afetadas pelas mudanças na aparência, e procurando encontrar sempre o passado como uma forma de minimizar o presente. Quando olho para o espelho não sinto. Não estou satisfeita com a imagem corporal, não. A velhice no seu corpo deixa marcas, cicatrizes que não apagam. Só quem tem tempo de fazer muitas plásticas fica com o corpo melhor e mesmo assim depois acaba ficando desfigurada. Faz parte do meu show, da minha vida, mas ninguém fica feliz em ter um corpo velho. Não queria que meu corpo envelhecesse. A natureza age assim. E ainda tem as doenças para piorar. Ninguém fica feliz com o corpo na velhice (Entrevistada 5, 74). Estou com o corpo maravilhoso quando olho. Tenho pensado sobre isso, o que deve ser cultivado e o que não deve ter meu corpo na velhice. Primeiramente manter a mente bem, depois vísceras, ossos e vou continuando bem com as doenças (Entrevistada 6, 64). Goldfarb (1998), na análise que fez dos aspectos subjetivos do envelhecimento na atualidade e de suas articulações como o processo de construção da identidade, compara o primeiro encontro do humano com o espelho como um momento de construção e de confirmação da sua identidade como imagem, quando se olha é II Congresso Internacional Sobre Culturas 545 olhado, “este sou eu” – com o processo de envelhecimento em que ocorre algo diametralmente oposto. O espelho para os sujeitos da pesquisa reflete uma imagem com a qual o sujeito não se reconhece: este “não sou eu”. Pois o espelho confirma a perda, o declínio do corpo, a perda da beleza física, e antecipa-se o processo de envelhecimento, a velhice e a morte. A antecipação do envelhecimento encontra seu reflexo no espelho sob a forma de um eu de feiura que é rejeitado e que pode se manifestar como uma simples estranheza ou mesmo sentido como uma aberração, um horror. Ou seja, instala-se um conflito identitário que pode também produzir uma crise em outras imagens narcísicas de onipotência, perfeição e sabedoria. A imagem atual revelada pelo espelho é confrontada com a imagem da juventude, modelo idealizado pela sociedade contemporânea. Entretanto, não se trata somente de uma imagem corporal, mas de todo um modo de vida. Sobre a imagem do corpo da velhice recai o peso de uma responsabilidade, de uma aparência física que não volta mais, e de uma imagem corporal que pode ser adiada, no entanto jamais esquecida. No espelho, essas idosas vivem um confronto entre a realidade corporal do passado e do presente, embora entendam que o envelhecimento dos corpos é um processo natural, é também um momento de lembrar do corpo da juventude, confrontando o corpo passado com o corpo presente, que se encontra em um processo de envelhecimento. O envelhecimento dos corpos dessas idosas é pensado como um ciclo de vida oposto ao da juventude. Ou seja, para essas idosas, o corpo no processo do envelhecimento as torna antiprodutivas, feias fisicamente, em um processo de declínio corporal. A identidade que essas idosas assumem é o de comparar seus corpos atuais com os seus corpos da juventude, adiar o envelhecimento através das técnicas de rejuvenescimento e assumirem o processo natural de seus corpos. Quando estas idosas se olham no espelho, o que elas entendem sobre suas imagens é uma imagem ligada à deterioração, uma decrepitude, uma imagem em que nenhuma delas se identificaram. Não há alegrias, só estranhezas e tristezas. O corpo na velhice é decrépito. A pior coisa do mundo é ter pele com rugas e manchas. Quem disse que envelhecer o corpo é bom? II Congresso Internacional Sobre Culturas 546 Pior é quando o outro olha para você com aquele olhar de tirania e não diz nada, só o olhar é suficiente. (Entrevistada 7, 67). Envelheço por que não tenho jeito. Sofremos muito preconceito. O jovem quando olha seu corpo com aquele olhar de deboche (Entrevistada 2, 61). Beauvoir (1990) afirma que: “A velhice é particularmente difícil de assumir, porque sempre a consideramos uma espécie estranha: será que me tornei, então, outra, enquanto permaneço eu mesma” (BEAUVOIR, 1990, p. 78). O velho é sempre o outro, e não nos reconhecemos como tal. A imagem da velhice parece sempre estar fora, do outro lado, e embora saibamos que “aquela” é a nossa imagem, nos produz uma impressão inquietante, de estranheza, apavorante. A imagem do espelho, a imagem que o outro nos vê, é a imagem que confirma a velhice, é a imagem corporal no seu processo natural do envelhecimento. Então essa imagem é para fora, é exterior. Como mostra o depoimento abaixo, é mais fácil ver o corpo velho do outro, do que em si, o seu próprio corpo. Além do espelho, o outro também nos traz de volta a realidade, fazendo lembrar que também estamos velhos. Eu me lembro como se fosse hoje o dia em que mamãe disse para mim: Se cuide, se trate, mulher velha nenhum homem quer, mamãe tinha 63 anos. Depois de uns dias descobri que meu marido me traía com uma mulher bem mais jovem do que eu. Tinha acabado de fazer quarenta anos, e ganhei como presente de aniversário uma traição. Foi aí que percebi que estava velha e acabada (Entrevistada 3, 60). CONSIDERAÇÕES FINAIS A imagem corporal que essas mulheres idosas têm sobre seu corpo é o de um conflito entre o corpo passado e o corpo presente. Os corpos passados as remetem às lembranças da juventude, do tempo em que tinham o corpo belo, o corpo bonito, que podiam concorrer nos jogos de sedução, de feminilidade e de conquistas amorosas. Tinham corpos saudáveis, sexys e magros e se destacavam por tê-los. A principal característica corporal que essas idosas trazem em seus discursos na época da juventude é o da aparência física, o ser belo e jovem dava um lugar de status. Ao contrário do tempo presente, a imagem corporal dos corpos dessas idosas é o da falta de beleza física, de juventude, de saúde. Seus corpos velhos perdem significados quando deixam de apresentar as características do corpo jovem. Para II Congresso Internacional Sobre Culturas 547 essas idosas seus corpos velhos sofrem na cultura contemporânea preconceito, falta de prestígio, de beleza, de vigor físico e de reconhecimento. A imagem corporal que essas idosas têm dos seus corpos é a de ordem biológica. Seus corpos físicos envelhecem, os sinais de rugas e as manchas na pele aparecem, as limitações físicas, junto com as doenças, tornam os seus corpos velhos e decrépitos. A imagem corporal atual na fala das entrevistadas é o de decrepitude, de insatisfação com a aparência física, de senilidade, de invisibilidade isso tudo é ter um corpo velho. Cuidar da beleza, ser elogiada, observada é uma dimensão central na construção da identidade feminina. O corpo jovem é um caminho para o sucesso financeiro e sexual. Para evitar ou retardar o envelhecimento busca-se negar ou retardar o envelhecimento dos seus corpos através das técnicas corporais de rejuvenescimento tão presentes na cultura de consumo. A aparência física sempre foi ao longo da história preocupação para as mulheres. A beleza, o chamar atenção, o ser paquerada, é algo que essas mulheres valorizavam e que sentem falta por não existir mais. Os valores que essas mulheres entendem o seu corpo é uma visão da cultura contemporânea. O corpo bonito é o corpo jovem. O corpo que atrai o olhar masculino é o corpo da mulher jovem. Os aspectos da sedução, do desejo e da conquista para essas mulheres não permitem atrair o homem, já que seus corpos encontram-se em processo de envelhecimento. A saúde entendida por essas mulheres é a ausência de doença, é não sentir e não ter nenhuma doença instalada no seu corpo ou no seu organismo. Ter saúde para essas mulheres é uma “graça de Deus”, já que o envelhecimento é a fase da vida em que à medida que os anos passam e avançam, as doenças aparecem, pioram e se instalam mais. Portanto o processo de envelhecimento, o ser velho, o ter o corpo velho é sinônimo de doença, este é o entendimento para essas idosas entrevistadas. Mesmo que algumas idosas não tenham doenças instaladas, se continuarem vivas, se envelhecerem mais, no futuro não escaparão às doenças. Na juventude as idosas entendem o contrário: é o período da saúde, do bemestar, do vigor físico e o período tido como ausente de qualquer doença que possa ser instalada no corpo. A identidade cultural corporal dessas idosas é tentar buscar um adiamento do envelhecimento dos seus corpos, preocupam-se com o quesito da saúde, e buscam com os avanços da ciência realimentarem o mito da eterna juventude, da II Congresso Internacional Sobre Culturas 548 imortalidade existente desde a criação da humanidade. O envelhecimento dos seus corpos pode ser vencido ou adiado por uma série de técnicas disponíveis no mercado de consumo para juvenilizar e revitalizar os seus corpos. A identidade cultural que essas idosas buscam é encontrar uma associação entre juventude, beleza e saúde e quem sabe, uma pílula antienvelhecimento para os seus corpos na cultura contemporânea. Então nos perguntamos: que corpo velho teremos no futuro? Notas 1 Doutorando e Mestre pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA); Especialista “lato Sensu” em Docência do Ensino Superior pela Associação Baiana de Educação e Cultura (ABEC), em parceria com a Fundação Visconde de Cairu, e em Comunicação Social com habilitação em Relações Públicas; Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Relações Públicas pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), e Bacharel em Fisioterapia pelo Instituto Baiano de Ensino Superior (IBES). Fui Docente do Curso de especialização “lato Sensu” em Comunicação Organizacional e Novas Tecnologias da Faculdade Social da Bahia, e de vários Cursos Técnicos Profissionalizantes da cidade do Salvador. Bolsista pela Capes. E-mail: cassioaragaofisio@gmail.com 1 Goldenberg ( 2013) em Corpo, gênero, envelhecimento na Cultura Contemporânea explica o papel do corpo como uma importante forma de capital (físico, simbólico e social) na cultura brasileira. A autora (2013) revela os traços distintivos de uma cultura como a brasileira em que o corpo é um elemento crucial na construção de uma identidade nacional. Pode-se afirmar que no Brasil, o corpo é um capital, talvez o mais desejado por indivíduos das camadas médias urbanas e também das camadas mais baixas, que percebem o corpo como um veículo fundamental para ascensão social, e também uma forma importante de capital no mercado de trabalho, no mercado de casamento e no mercado erótico. 1 Ver, especialmente (Beauvoir, 1990), A Velhice. Na década de setenta, a autora (1990) publicou a Velhice, uma obra de caráter filosófico e sócio-antropológico, discutindo mudanças e atitudes relacionadas com a chamada Terceira Idade, que começariam a ocorrer no Brasil a partir das décadas de 80 e 90. A autora (1990) caracteriza a velhice como uma instituição social, e não simplesmente como uma condição biológica, analisando através da história e situando-a em diversas sociedades e culturas, trata da gerontologia, medicina, sociologia, psicologia e economia. Com a expressão “conspiração do silêncio”, Beauvoir (1990) chamou a atenção para o fato de que a velhice era uma espécie de segredo vergonhoso do qual era indecente falar. O livro é considerado um clássico, e é imprescindível conhecer, principalmente quem pesquisa sobre temáticas como envelhecimento, feminismo e cultura. REFERÊNCIAS BEAUVOIR, Simone. A Velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. BOURDIEU, Pierre. A Distinção. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007. 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II Congresso Internacional Sobre Culturas 551 IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES HÍBRIDAS: MATERIALIZAÇÕES DE UMA NOVA RURALIDADE Cláudia Cambruzzi220 Resumo: O rural não é mais o mesmo. Diante das mudanças, nos vemos em um novo cenário, de novas ruralidades, um espaço que não pode mais ser percebido como o lócus do atraso, muito pelo contrário, este vem cada vez mais acompanhando as mudanças da modernidade na mesma velocidade que o urbano e, consequentemente, o ator social deste território passa também a ser influenciado pelas transformações. A partir desta realidade, surgem questionamentos que vão permear este trabalho, mas que ainda são muito difíceis de serem respondidas com veemência, como o surgimento de novas identidades, ou a presença de uma identidade híbrida, ou ainda um personagem que pertence ao denominado entre lugar. São estas questões, que norteiam este trabalho. Palavras-chave: Identidade. Território. Ruralidades. INTRODUÇÃO O espaço rural tem sido o palco de constantes transformações, no qual se constroem e reconstroem complexas realidades compartilhadas por seus atores. Esse processo tem levado à emergência de um debate sobre seus (re)direcionamentos; não há mais que se compreendê-lo como um lugar de “isolamento”, mas sim um espaço de gradativa heterogeneização, devido à crescente mobilidade física e pelo seu novo perfil populacional. A sobreposição de atividades, atores, cotidianos, enfim, tem conduzido o rural à transformações que influenciam as lógicas tradicionais e trazem como consequência a mudança de valores e hábitos, provocadas por esta intensificação de trocas com o mundo urbano, sejam elas pessoais, simbólicas ou materiais. Com isso são distinguidos novos contornos, e não apenas no território, mas também em suas personagens, que, até então, com seu estilo de vida atrelado e seu fazer cotidiano, construíam uma paisagem característica. 220 Doutora em Cultura e Sociedade. Professora do Instituto Federal Catarinense – Campus Rio do Sul Integrante dos Grupos de Pesquisa Miradas (CULT/UFBA) e do Grupo de Pesquisa em Educação, Meio Ambiente e Agricultura Familiar (IFC) claudiacambruzzi@ifc-riodosul.edu.br II Congresso Internacional Sobre Culturas 552 Essas ressignificações são o resultado de uma mudança de valores. O rural passa a ser agora um espaço a ser consumido por aqueles que buscam uma realidade diferenciada da urbana, que procuram uma paisagem com qualidade de vida, uma saída do cotidiano. Com isso o fluxo de pessoas oriundas da cidade, seja como turistas ou como residentes, é cada vez maior, o que acabará por (re)configurar relações de vida com e no espaço de seus atores sociais. Diante destas constatações, pretende-se discutir se estamos, ou não, diante de um processo de (re)construção identitária, de (re)construção de um sistema social e cultural e a consequente (re) construção do próprio território. CAMINHOS DA PESQUISA A pesquisa foi desenvolvida junto a famílias de agricultores familiares que vivem em comunidades rurais próximas ao meio urbano em cinco municípios da região do Alto Vale do Itajaí (SC), em um raio de até 10 km de seus respectivos centros urbanos e onde fosse constatada a presença de um número significativo de moradores antes citadinos e um forte entrelaçamento entre atividades rurais e urbanas. As famílias selecionadas também possuem uma particularidade: desenvolvem atividades ligadas à agropecuária e, ao mesmo tempo, um ou mais membro da família dedica-se a atividades não agrícolas dentro ou fora de suas propriedades rurais. Para a análise optou-se por investigar dois grupos com distintas faixas etárias. Um composto por jovens com idade entre 18 e 30 anos e o outro por homens e mulheres entre 31 e 60 anos. O intuito de pesquisarem-se grupos de diferentes gerações se alicerça no propósito de traçar um paralelo entre as percepções identitárias sobre o que é ser um agricultor hoje, bem como de que forma se dá a sua relação com e no território. O instrumento utilizado para a pesquisa foi um questionário semiestruturado, aplicado de forma individual, com a possibilidade dos participantes complementarem suas respostas com comentários pessoais, caso sentissem a necessidade. TERRITÓRIOS, RURALIDADES E IDENTIDADES COMPLEXAS A realidade do mundo rural da região em estudo é o resultado de décadas de transformações, que se deram de forma gradual nos últimos cinquenta anos, mas com II Congresso Internacional Sobre Culturas 553 maior impulso nas últimas duas, onde o território passa por um contexto de profundas transformações políticas, produtivas, econômicas, decorrentes entre outros fatores, dos efeitos da globalização da economia, através da abertura de novos mercados, por novas formas de produzir e pelas comunicações. Estas alterações acarretam mudanças significativas na relação dos atores com o espaço. A soma desses componentes produz relações sociais cada vez mais dinâmicas em um cenário que também é dinâmico. Apesar de tantas transformações que estão se dando, é possível perceber-se que este ainda é um espaço marcado pela presença de um patrimônio cultural, de uma paisagem e de saberes tradicionais, que marcam fortemente a construção das identidades, perpetuadas pela contínua (re)construção das memórias coletivas e individuais, que circulam fisicamente ou metaforicamente. Os agricultores fazem questão de perpetuá-las, através de diferentes ferramentas, para que permaneçam na lembrança, de forma que cada um possa inscrever nele sua representação, permitindo o sentimento de pertença, deve ser modelado na memória e passado de geração em geração. Mas, ao mesmo tempo, há uma efervescência patrimonial, cultural, social e econômica, que deixa suas marcas, numa reação à aceleração da vida moderna e acaba emaranhando-se à tradição local. Quando se fala da identidade dos personagens do rural, assim como qualquer outra, é carregada de significados e se constrói pela memória coletiva e pelas relações de poder dentro do território. Dessa forma há de se questionar o que identifica um agricultor familiar nos tempos atuais. Basicamente o agricultor era o personagem que vivia no rural e desenvolvia atividades relacionadas ao meio. No entanto, o rural, como afirma Maria José Wanderley (2001), é um espaço que se move em um lócus específico, com uma “dupla face”. Primeiramente por ser um espaço físico diferenciado, pela forma de ocupação do território, por sua construção e formas de dominação social, que tem como base material entre outras a estrutura de posse e uso da terra e outros recursos naturais. Em segundo lugar, por ser um lugar de vida, isto, é um local onde se vive com as particularidades de um modo de vida com referências identitárias específicas. O rural da região do Alto Vale do Itajaí (SC), também vem sendo cada vez menos exclusivamente agrícola. É lugar de incremento de atividades distintas e uma opção de viver dos citadinos, o que acaba por alterar valores sociais, culturais, como também o processo de organização. Essa nova realidade é decorrente de um grande contingente de agricultores que foi liberado das atividades tradicionais, devido a II Congresso Internacional Sobre Culturas 554 presença cada vez maior de tecnologias no campo, como também pela proximidade do rural com o urbano propiciada por um infraestruturas cada vez melhor. A opção por atividades diversas não é um fenômeno novo. Os agricultores familiares sempre mantiveram a combinação de múltiplas ocupações. Contudo, esta opção era sazonal, transitória, mas cada vez mais assume feições permanentes. As pesquisas dedicadas a compreender os efeitos desses fenômenos nas famílias de agricultores, confirmam que estes ampliam e estabilizam a renda das propriedades, além de estimular os mercados locais e contribuir para a permanência da população no rural (SCHNEIDER, 2003). No entanto, continua o autor, a perda da monoatividade, as múltiplas formas de inserção no mercado de trabalho e sua crescente segmentação, podem gerar distintos efeitos sociais, psicológicos, identitários e culturais (SCHNEIDER, 2005). Aqueles que se identificam como agricultores familiares na região são a terceira ou quarta geração de descendentes de imigrantes, principalmente de alemães e italianos. A imagem do passado colonial é a de famílias trabalhadoras, que enfrentaram uma floresta hostil e com muito trabalho, ergueram suas comunidades, que prosperaram. Apesar da rememoração do passado colonial, os agricultores negam a identificação como “colonos”, pois o termo é acionado como uma referência valorativa, mas com ressalvas e poucas vezes bem-vindo. Ele tem múltiplos significados, mas para os agricultores está associado à imagem de uma pessoa vestida, às vezes suja de terra, pobre, sem estudo, sem cuidados, eram “os antigos”. A estigmatização como colonos, afirma Goffman (1982), é interiorizada e gera desigualdades sociais e políticas, o que leva a uma crise de identidade entre os agricultores mais jovens, que procuram negar alguns valores, o que ocasiona a perda de elementos importantes, como dialetos, comportamentos em si, aspectos que identificam o sujeito proveniente de determinado meio rural. Afirma ainda Tedeschi (2010, p.18), que a maneira como o agricultor se percebe e é percebido é o produto de um continuum histórico, onde as concepções tradicionais continuam a ter influência capital na sociedade contemporânea. Apesar da negação em alguns momentos, os grupos tentam preservar sua percepção de identidade como agricultores, pois ela é dispositivo de referencialidade e um elemento de pertencimento, a partir dos sistemas de representação do território, apesar destes, cada vez mais serem permeados por processo de troca entre universos II Congresso Internacional Sobre Culturas 555 cada vez mais intercambiáveis, o que interfere diretamente na cristalização de uma única identidade. É perceptível entre as comunidades pesquisadas um processo interessante em andamento. Os sujeitos procuram cada vez mais perpetuar elementos de sua cultura, de seu modo de vida, do patrimônio, em meio a este redimensionamento do espaço, na tentativa de que se tornem traços de referências, de identificação e de (re)afirmação a sua pertença frente a outras culturas que se impõem, como também, como um legado de identificação para as próximas gerações. É a identidade de projeto de Castells (2008), na qual os sujeitos sociais fazem uso de diferentes elementos culturais para a construção de uma nova identidade habilitada a redesenhar seu posicionamento social e com isso transformar a própria estrutura social. Mas apesar da tentativa de perpetuação desta representação quase idílica, as identidades, como também as representações sociais, são caracterizações socialmente construídas a partir dos diálogos interações com o seu cotidiano, o que não permite uma configuração estática, mas sim uma representação híbrida, composta de diferentes elementos, que não se sobrepõem, mas sim se complementam. Segundo Castell (2008), a integração rural-urbano deu origem ao entre lugar, que (re)produz um sujeito que acaba interpretando um papel holístico, a soma de todas as suas experiências. Ou seja, as (re)composição, as alterações e a continuidade das identidades, são ordenadas pela jornada em comum dos indivíduos que dela fazem parte. Continua o autor, que as identidades são um elemento chave na construção das estruturas de poder, estruturas estas que estão em constante transformação, pois se alicerçam em interesses, valores e projetos, baseados nas experiências tanto individuais como coletivas e recusam-se a diluir-se, estabelecendo uma relação especifica entre natureza, historia geografia e cultura. As identidades consolidam as bases de poder em alguns segmentos da estrutura social e ordenam sua resistência ou seus ataques na luta informacional pelos códigos culturais que constroem o comportamento e novas instituições. Hall (2003) destaca que os sujeitos podem encontra-se no meio de duas identidades, uma é a sua a outra é aquela que pode ser assumida. Constrói-se assim, uma relação “entremeios” ou de “entre-lugares”. Para o autor (2003, p.13), os indivíduos, neste mundo globalizado, inclinam-se a adotar identidades distintas, de acordo com o momento, e que podem ser contraditórias. A hibridação identitária é II Congresso Internacional Sobre Culturas 556 fruto da negociação da representação, que só é reconhecível nas fronteiras territoriais, onde acontecem as trocas culturais e identitárias. Isso porque os agricultores estão em movimento, e produzem inter-relações complexas. Não é possível estabelecer o exato momento de conexão e desconexão entre as realidades, nem entre as relações que se dão em seu cotidiano. O território já não pode ser considerado uma fronteira para as conexões, pois as fronteiras, como afirma Bourdieu (1989), toda fronteira é um ato de jurisdição e produz a diferença cultural. Com isso, o sujeito assume um posicionamento social em relação aos sujeitos com quem mantém relações sociais, no espaço em que ele encontra-se inserido. No entanto, ao assumir diferentes papéis em diferentes contextos, não significa necessariamente que se descaracterize deu sistema social e cultural. Segundo Carneiro (1998), as mudanças de hábitos, costumes, e mesmo de percepção de mundo, se são de maneira assimétrica, em distintos graus e conteúdos diversos, de acordo com a inclinação e a posição social dos sujeitos, o que implica uma ruptura total com o sistema social. Apesar da cada vez maior interação entre campo e cidade, onde o modo de vida e os valores urbanos adentram com grande intensidade no território rural, elementos e traços culturais deste espaço continuam a ser perpetuados, valorizados e transmitidos entre as gerações, pois representam a memória social do grupo, como também, sua identidade. Dessa forma, a construção das identidades dos agricultores familiares está intimamente relacionada ao território, onde se materializa grande parte das dimensões de sua vida. A relação identidade-território toma forma por meio das trajetórias individuais, ou seja, ocorre ao longo do tempo, tendo como elemento principal o sentimento de pertença do indivíduo ao grupo e ao espaço. O território rural não deve ser percebido apenas como o local onde se habita e sim como espaço de cultura, que influencia na construção das identidades que é, indubitavelmente, formada a partir dos laços ali criados. CONSIDERAÇÕES FINAIS O rural, como território e como lócus de vida é um espaço em que se encontra em transição, o que gera identidades que podem ser consideradas fluidas, híbridas, que II Congresso Internacional Sobre Culturas 557 se constituem pelos inúmeros devires da vida, proporcionados pela constante interação com experiências múltiplas e com a multiplicidade de grupos sociais que interagem. Porém, o que se percebe no mundo rural é que, apesar das descontinuidades inerentes à pós-modernidade, da potência dos fluxos das experiências cotidianas, os grupos ainda conseguem traçar uma história que preserva fortes aspectos de sua identidade, no caso, de pequenos agricultores, ainda que transformados pelas forças do presente (do novo), pois sentem a necessidade de reafirmar sua integridade identitária. Os grupos tentam preservar sua identidade, pois ela é tanto um marcador de pertencimento quanto um dispositivo móvel de referencialidade, reforçada a partir dos sistemas de representação do espaço a que pertence, apesar destes, cada vez mais resultarem de um singular processo de troca entre universos cada vez mais intercambiáveis, resultado de complexas integrações e negociações simbólicas, o que interfere diretamente na cristalização de uma única identidade. A identidade dos agricultores, principalmente entre os mais jovens, torna-se mais fluida e que se (re)elabora cotidianamente, através de suas práticas dentro e fora do rural. Agora se percebem múltiplos; podem adotar sua identidade como agricultores e assumir diferentes papéis, o que os torna multifacetados, o que imprime ao próprio território uma multiplicidade de valores. Já os pertencentes a segunda faixa etária, compreendem-se exclusivamente como agricultores, não abrindo espaço para outro possível enquadramento. E, ao mesmo tempo, verificou-se, que as novas dinâmicas ocasionaram a (re)valorização e a (re)afirmação de sua identificação, isso porque não se percebem mais como o “colono”, um personagem dissociado dos contextos mais atuais, ele se identifica como agricultor familiar, um papel valorizado, tanto no rural quanto fora dele. Por fim, compreende-se que os sujeitos não conseguem escapar às influências do mundo globalizado. O discurso adotado por ambos os grupos revela que a representação social, compreendida como o resultado de uma elaboração dada pelos modelos culturais e sociais vigentes no cenário local, age como ferramenta de entendimento do mundo e, portanto, lhes confere as identidades. São as representações coletivas que possibilitam as diferentes leituras de mundo. Ao longo do tempo, as leituras validam e engendram as relações sociais, que são cambiáveis durante o contexto histórico e, portanto, podem gerar identidades cambiáveis. II Congresso Internacional Sobre Culturas 558 REFERÊNCIAS BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. CARNEIRO, Maria José. Ruralidade: novas identidades em construção. Estudos Sociedade e Agricultura, n. 11, out. p. 53-75, 1998. CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Tradução Klauss Brandini Gerhardt. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008. GOFFMAN, Erving. Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4 ed. 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II Congresso Internacional Sobre Culturas 559 FLORESTAS E GELADEIRAS: SOBRE A ÉTICA DA RESISTÊNCIA Orivaldo Nunes Junior221 RESUMO Para Platão, na República, Justiça traz consigo a ideia da superioridade da vida do homem justo sobre o injusto, sendo aquele o virtuoso e bom, e este, por oposição, viciado e mal. Para Aristóteles a virtude era a vitória da razão sobre os impulsos humanos. Diante disso, temos que os fundadores da Filosofia relacionavam a razão como equalizadora de uma sociedade suscetível aos impulsos, assim, a virtude sobre os vícios, a inclinação ao bem sobre a inclinação ao mal. Porém, quando se referem à conduta virtuosa, expõe uma ética que cria a moral social. Norberto Bobbio (Elogia da serenidade, 1998), analisou a ética da virtude e ética das regras, sendo a primeira a ética do nobre, do governante; e a segunda a ética do não-nobre, do submisso. Diante disso, nos propusemos a pensar a resistência indígena e quilombola nesta situação colonial, não sendo nobreza real, nem subordinando-se à coroa. Palavras-chave: Platão. A República. Ética. Serenidade. Povos Indígenas. GRÉCIA CLÁSSICA Para Platão, na República, Justiça traz consigo a ideia da superioridade da vida do homem justo sobre o injusto, sendo aquele o virtuoso e bom, e este, por oposição, viciado e mal. De onde o filósofo grego clássico teria se baseado para chegar a tais conclusões, aparentemente tão comuns nos nossos dias? Na região da atual Grécia, antes de 2.000 a.C, viviam povos que foram chamados pelos gregos de “pelasgos”, nome genérico dado aos povos indígenas da região. Esta região foi ocupada pelos aqueus, povo semi-nômade de indo-europeus que, migraram para onde se localiza a Grécia em busca de terras férteis por volta de 2 000 a.C.. Os aqueus foram os primeiros descendentes de Heleno a ocupar a península grega e iniciar a Civilização Helenística. 221 Currículo resumido do autor: Filósofo pela UFSC, escritor e indigenista. Mestre em Educação e Comunicação. Instituição de vínculo: ACR – Anarquistas Contra o Racismo. E-mail: nunonunes3@gmail.com II Congresso Internacional Sobre Culturas 560 Os Aqueus ficaram famosos pela Guerra de Troia, em que Menelau, rei aqueu da Lacedemônia (depois chamada de Esparta), teve sua esposa Helena roubada por Páris, um troiano. A guerra também ocorreu por motivos econômicos, pois os aqueus reuniram os exércitos de suas cidades-estado para ocupar a rica região de Troia (na Anatólia, Turquia), ocupada até então pelos Fenícios. Os Jônios (Iônios), descendentes de Íon, foram a segunda leva migratória de Helenos para a região da península grega. Construíram suas cidades-estado na Ática e no Peloponeso e foram depois para a Ásia Menor pela chegada dos Dórios, descendente de Doro, também Helenos, na região do Peloponeso, que ocuparam as cidades e subjugaram os pelasgos (indígenas), aqueus e Jônios, tornando escravos aqueles que não conseguiram fugir. Entre as cidades do Peloponeso invadidas pelos Dórios contam-se Corinto, Olímpia, Esparta e Micenas. Os Dórios se consideravam descendentes de Hércules (Héracles), que na mitologia grega, era um semideus, filho de Zeus e Alcmena, é bisneto de Perseu. Hércules ficou conhecido pelos 12 trabalhos que teve de realizar para punir pelo assassinato de sua esposa e filhos. Os trabalhos foram dominar seres ferozes da natureza. Diante isto, supomos que os Dórios possuíam uma ética similar à Héracles, de dominação da natureza, não permitindo serem subjugados à ela. Diferentemente dos Jônios, que deixavam-se dominar pela vontade dos deuses, da natureza, dos instintos, dos prazeres. Isto pode ter influenciado diretamente, como características étnicas, no pensamento grego clássico e no surgimento da Filosofia. Podemos inferir isto analisando os primeiros filósofos e sofistas, os pré-socráticos, da Escola Jônica, temos Tales de Mileto, Anaximenes de Mileto, Anaximandro de Mileto e Heráclito de Éfeso. Todos são caracterizados por apontar ser a origem de tudo a um elemento natural, água, fogo, ar; ou ainda ser o princípio infinito e ilimitado. Segundo Nietzsche, não importa o que apontaram como princípio, mas sim que afirmaram ser uma única coisa. No caso de Parmênides de Eleia, também da Escola Jônica, afirmava que entre a multiplicidade de coisas, pode-se descobrir qual a inicial usando da lógica com distinção entre "o que é" e "o que não é": ser ou não-ser. Da multiplicidade das coisas naturais, ao se chegar à dualidade, uma apenas seria a verdade, e caberia ao filósofo descobrir qual delas é, ou seja, o "Ser Absoluto".222 222 Poderíamos apontar que esta seria as origens do debate ocidental entre as diferenças entre natureza e cultura, muito discutida na Antropologia, com vistas a argumentar se povos não-ocidentais baseariam seu pensamento em um ou outro. II Congresso Internacional Sobre Culturas 561 Parmênides baseou seu pensamento em outro Jônio, Pitágoras, nascido em Samos, no Mar Egeu, e que viajou ao Egito, à Grécia, Pérsia e talvez a Índia, em 520 a.C. voltou a Samos. Cerca de 530 a.C. se mudou para Crotona, ao sul da península italiana onde funda sua escola pitagórica. Pitágoras havia aprendido muitas coisas com os Egípcios e Persas e trouxe para ensinar em sua escola. A principal contribuição foram os números, e a ideia de que o cosmos é regido por relações matemáticas. Um dos Jônios mais influenciados pela escola pitagórica foi Platão, que copiou o modelo de ensino e fundou sua própria escola em Atenas: a Academia. Platão era um racionalista, realista, idealista e dualista. Suas obras foram influenciadoras de todo o mundo ocidental até nossos dias, começando pelo diálogo que deu nome ao sistema de muitas nações: A República. Platão foi dos principais seguidores de Sócrates, filósofo ateniense que viveu na época da Guerra do Peloponeso (431 a 404 a.C.), tendo servido como um dos generais. Esta guerra ocorreu entre a Liga de Delos, jônicos comandados por Atenas; e a Liga do Peloponeso, dóricos comandados por Esparta. O estopim da guerra foi a situação mal resolvida após a expulsão dos Persas nas Guerra Médicas, que resolveram subjugar os Helenos da península grega por terem apoiado as revoltas das cidades-estado Jônias na Ásia-Menor, dominadas pelos Persas. Os Helenos juntaramse num só exército e afastaram o Império Persa, e na sequência guerrearam entre si pelo domínio da região. Basicamente, a Guerra do Peloponeso deu-se entre Dórios e Jônios. Os Dórios reunidos sob o comando de Esparta, com seu estado militar organizado desde à época da colonização Dória na região, foram os primeiros a atacar os Jônios, e suas democracias, sob o comando de Atenas, para evitar que fossem rendidos por ataque surpresa pela Liga de Delos. Após forte resistência, os Jônios foram vencidos e os Dórios dominaram a península grega, encerrando o ciclo democrático de Atenas e instaurando um governo formado por oligarcas, conhecido como os Trinta Tiranos. Sócrates presenciou este período vergonhoso pelo qual passaram os Atenienses e Platão, de família participante das oligarquias, recusou-se a colaborar por considerar um regime criminoso e saiu em viagens em busca de conhecimento. Mesmo com o retorno da democracia a Atenas, Platão se desagradou com a morte forçada de Sócrates, acusado de desvirtuar os jovens, não crer nos costumes e deuses gregos, ainda unir-se a deuses destruidores de cidades. Com isto, inferimos que a obra de Platão criticava a cultura Jônica, sua oligarquia que governava segundo interesses II Congresso Internacional Sobre Culturas 562 próprios, mesmo em tempos democráticos. Apesar de não defender os Dórios, inimigos de Atenas, Platão de certa forma demonstra apreciar o modelo educacional deles, com treinamentos militares aos jovens como em Esparta, selecionando-os segundo suas aptidões e dando-lhes funções conforme as mesmas. Seguindo este raciocínio, podemos afirmar que Platão juntou o modelo escolar que aprendeu com os pitagóricos a uma educação que iniciasse na formação de guerreiros, cidadãos para as cidades-estado, e entre estes seriam selecionados os melhores que as governariam, sendo estes chamados de filósofos-reis. Em resumo, esta era a proposta em A República. Contudo, nosso foco aqui é analisar as origens do platonismo, e para tanto, precisaremos seguir a questão de onde Platão tirou a ideia do Mito da Caverna, seu principal argumento na defesa de um governo de filósofos, sendo este o único habitante fictício das sombras que teria conhecido a luz vinda de fora. ORIGENS DO PLATONISMO Nesta análise consideraremos que a cultura Jônia seguia os fluxos da natureza, dos deuses, reafirmado pelo pensamento de seus pensadores que consideravam coisas naturais como princípios de tudo (água, terra, fogo, ar). Ao contrário, consideraremos que a cultura Dória buscava controlar a natureza e não subjugar-se à ela. Assim, os Dórios, seguidores de Héracles, não produziram grandes pensadores, retóricos, pessoas que tenham permanecido na tradição filosófica, mas produziram guerreiros fortes e dominadores. Analisando a forma de governo Jônia e Dória, a primeira chegou à democracia, e cultuava a retórica política bem como grandes festas regadas à vinho onde oradores concorriam com discursos. Os Dórios tinham governos distintos em suas cidades-estado, mas sempre sob comandos treinados e hierarquia fortemente estabelecida, com regras militares aprendidas desde à infância. Contudo, após a queda da Atenas jônica para Esparta dórica na Guerra do Peloponeso, o sistema de defesa ateniense começou a ser repensado, bem como toda sua tradição cultural que provara-se insuficiente. Pelo menos é a isto que as críticas de Platão nos fazem deduzir. Em sua obra A República, Platão discutiu acerca da Justiça, e a definiu como a vontade de um cidadão de exercer sua profissão e atingir seu nível pré-determinado e não interferir em outros assuntos. Isto era importante para a cidade que Platão planejava com o filósofo como governante. Pois, assim o cidadão exerceria II Congresso Internacional Sobre Culturas 563 apenas aquilo ao qual tem inclinação, aquilo que faz bem e que lhe faz bem fazer, isto é, aquilo que lhe é "virtude". Com isto, Platão levou seu leitor a debater o que seria a virtude, o qual ele definiu como uma qualidade moral do cidadão em suas atitudes, buscando sempre o bem para si e para seus concidadãos, transformando a sociedade de pessoas virtuosas em uma cidade que perseguiria seu aperfeiçoamento, sendo que todos os cidadãos buscariam o bem coletivo, moralmente verdadeiro. Como caminho para encontrar a virtude, Platão propôs o que aprendeu com Parmênides e os pitagóricos, em uma multiplicidade de coisas, levar-se-ia à pesquisa e ao questionamento até que resistiriam apenas duas possíveis soluções, e destas, uma teria de se provar verdadeira. Assim que a verdadeira fosse observada, não haveria mais dúvidas sobre qual caminho seguir. Platão contava com a matemática para realizar suas discussões, pois sabia o que perseguia: quatro ou mais argumentos teriam que ser agrupados em dois, a dualidade, e destes dois grupos um teria de ser o vitorioso no debate. Quentes e frios, claros e escuros, abertos e fechados. Esta forma de pensamento por dicotomias, tão comum para nós atualmente, foi revolucionário para a época grega clássica. Tal metodologia não surgiu do nada. Nesta análise a submeteremos como tendo origens mitológicas e, por consequência, no “subconsciente coletivo” do povo mediterrâneo, desde os persas, egípcios, hebreus, gregos e fenícios. Todos compartilhavam em seus mitos uma cosmo-lógica em que o universo primeiramente fora formado pela unidade que se dividiu em dois (Caos se divide em Urano, céu e Gaia, terra, para os Gregos; Atum se dividiu em Shu, deus do ar, e Tefnut, deusa da chuva, que tiveram dois filhos, Geb, deus da terra e Nut, a deusa do céu, para os Egípcios). Na matemática que Pitágoras aprendeu com os persas e levou para sua escola, os números facilitavam o pensamento para 1, 2 , 3 etc. Voltando a Platão, sua estratégia era aparentemente simples, e abusava da dialética para alcançar seu objetivo. Ao alcançar a dualidade, digladiava entre os dois argumentos finais até um deles se mostrar contraditório. Ensinar este método aos cidadãos, selecionar os melhores nesta forma de pensamento e colocá-los na liderança da cidade era o ideal de sociedade de Platão. Para comprovar sua tese, ele exemplificou como pensa um cidadão comum, e comparou-o a um ser vivendo dentro de uma caverna observando apenas as sombras do que ocorreria do lado de fora, ao tempo que o filósofo seria aquele que conseguiria sair da caverna e contemplaria de onde a luz viria, e o que criaria as formas das sombras que os demais acreditavam serem verdadeiras. II Congresso Internacional Sobre Culturas 564 Assim, o Filósofo-Rei que Platão esperava ser criado a partir de seu método, semelhante ao guerreiro no estilo Dório, o superaria como também aos oligarcas e senadores Jônios, como também superaria os imperadores persas e faraós egípcios. Contudo, Platão não desejava que sua estratégia fosse usada por outros povos, pois seu desejo era, portanto, unificar o povo Jônio para dominar os demais gregos (dóricos, aqueus e eólios), e não serem dominados pela força de outros povos, como havia ocorrido há pouco quando Atenas quase foi tragada pelos persas e dóricos espartanos. Ainda, o Filósofo-Rei não precisaria ser eleito, mas sim aclamado pelos cidadãos que confiariam em suas virtudes para governar, afastando todos os vícios que os tiranos são suscetíveis. Porém, quanto aos povos dominados, escravizados, estes não receberiam a mesma educação, pois para Platão sua virtude seria servir, realizando suas artes para manter a cidade e a economia. A República imaginada por Platão, então, seria o próprio estado em guerra de unificação, pois os deuses não necessitariam ser consultados por meio de oráculos, pois bastaria consultar a lógica que levaria todos a concluírem qual o melhor caminho a seguir. Nesta República platônica não necessitaria de batalhas entre as cidades, mas reconhecimento pelos cidadãos de que seria melhor unificarem-se sob o comando virtuoso evitando a escravização dos gregos por outros povos. A República de Platão seria, portanto, um estado de exceção. REPÚBLICA COMO ESTADO DE EXCEÇÃO E A RESISTÊNCIA INDÍGENA Nesta República, o Filósofo-Rei elaboraria as leis para seus cidadãos, com a prerrogativa de ter “virtude de criar leis” e governar a partir delas. Bem como os julgamentos seriam executados a partir de tais "iluminadas leis". Platão tentou debater o tema em Atenas, mas não obteve sucesso, correndo para outras cidades-estado, sendo amparado somente na Sicília por um amigo que gostaria de ver ali um governante filósofo, porém foi defenestrado pelo rei siciliano que não aceitou ter um estrangeiro como conselheiro. O legado de Platão ficou para os membros de sua Academia, sendo Aristóteles um dos que levou a cabo seus ensinamentos após ocorrer em Atenas o que seu mestre temia, a ocupação estrangeira. Após a Guerra do Peloponeso, os Dórios do norte, os Macedônios recém libertos do Império Aquemênida, que entrava em disputa interna II Congresso Internacional Sobre Culturas 565 após a morte do imperador aquemênida, invadiram a península Grega dominando toda a região e impondo seu rei, Felipe II. Os Macedônios queriam invadir e tomar o Império Persa (Aquemênida), mas Felipe II foi assassinado precocemente, deixando o cargo a seu filho Alexandre. Aristóteles era tutor do menino Alexandre e o educou nas artes do pensamento ateniense, e logo que o jovem rei assumiu seu posto, iniciou a conquista de toda a região grega, partindo para a dominação dos Persas. Alexandre pilhava as riquezas das cidades conquistadas, mas colocava-se não como um colonizador, e sim como um libertador dos povos, respeitando suas tradições e religiões, esposava-se com uma princesa local e deixava um governador macedônio no comando de uma junta de líderes locais. Assim Alexandre tornou-se O Grande, e conquistou o vasto território Persa desde o Egito até o atual Paquistão. Com a morte precoce de Alexandre, O Grande, seu Império Macedônio foi repartido entre seus governantes, que buscavam substituí-lo. Nesta época (por volta de 100 a.C.), outra cidade-estado estava se despontando na região do Mar Mediterrâneo: Roma. Há versões que narram que a região onde foi criada Roma teria sido ocupada por Eneias, troiano sobrevivente da antiga Guerra de Troia, em que os aqueus atacaram a cidade troiana em busca de riquezas e da esposa de Menelau, rei aqueu da Lacedemônia, como vimos no início desta análise. Temos por esta versão que Roma fazia parte da história do mundo helênico. Os Romanos ostentavam suas virtudes e costumes, qualidades que todo cidadão romano deveria aspirar em sua vida, bem como divulgar para romanizar as regiões que conquistaram e, com isto, muitas virtudes eram relacionadas a deuses romanos. Os povos subjugados pelo Império Romano não faziam parte do mundo privilegiado de Roma, e eram vassalos ao poder central. As origens desta forma de imperialismo no Mediterrâneo, podemos deduzir que teve influência na Mesopotâmia (atual Iraque), entre os rios Tigre e Eufrates, com Sargão I, da Acadia, que reinou sobre as cidades sumérias por 56 anos, de 2.270 a 2.215 a.C.. Sargão foi o primeiro registro histórico de saque, estratégia usada para manter o pagamento ao exército ácade. Outro rei que copiou as estratégias de Sargão I de transformar a região em seu império, foi Hamurabi, de origem amorita que fundou o Império Babilônico e que reinou de 1.792 a.C. até sua morte, em 1.750 a.C. Hamurabi também formou exército para atacar as cidades e dominá-las, porém, diferente de Sargão I, para manter seu exército ele tomava reféns e cobrava pelo resgate. Antes dos helenos ocuparem a península grega, percebemos que a subjugação de um povo sobre outro era subsequente. II Congresso Internacional Sobre Culturas 566 Os gregos na época em que Platão escreveu A República, portanto, estariam seguindo um ciclo secular de ocupações e subjugações. Os subjugadores seriam os virtuosos. O conceito grego para "virtude" é "aretê", cuja raiz da palavra é "aristos", donde vem "aristocracia", que significa superioridade, e era constantemente usada para denotar "nobreza". Um homem justo, virtuoso, que cumprisse seu destino, poderia ser considerado um "herói". Do grego, "herói" é considerado "sagrado", uma dimensão intermediária entre deuses e homens. O método, assim, para o homem buscar as divindades era por meio de sua conduta justa, baseada em decisões éticas que auxiliassem a sociedade a constituir sua moral boa, em que todos praticassem o bem para todos. Porém, e isto nos parece claro, "todos" se refere apenas aos superiores, aos nobres. E como ficam os não-nobres? Para tal discussão, pedimos auxílio do Filósofo italiano Norberto Bobbio (Elogia da serenidade, 1998), que analisou a ética da virtude e ética das regras. A primeira é a ética do nobre, do governante, daquele que pode usar inclusive da violência para alcançar seus fins. A segunda é a ética do não-nobre, do submisso, daquele que para agir tem apenas um beco entre os direitos e os deveres. O primeiro é aquele que pode criar um Estado e declarar guerra a outro. O segundo é aquele que sofre as punições caso descumpra as regras internas e as punições caso deserte das batalhas à qual é um mero peão. Em analogia, na relação entre Portugal e Brasil, temos que à época da colonização, Portugal e sua corte, ou mesmo os degredados, ao chegarem em terras coloniais se sentiam mais próximos à ética das virtudes colonizadoras do que da ética das regras dos colonizados. A relação com os subordinados brasileiros se distanciou quando ocorreu a fuga da corte para o Brasil em 1808, e a nobreza se estabeleceu primeiramente em Salvador, e depois no Rio de Janeiro. Diante disso, a resistência indígena e quilombola nesta situação colonial, não sendo nobreza real, nem subordinando-se à coroa, conforme Bobbio nos auxilia a entender com seu conceito de "virtude da serenidade", teríamos: o homem sereno é aquele que "não é nem submisso nem concessivo, porque a concessividade é a disposição daquele que aceitou a lógica da disputa, a regra de um jogo no qual, ao término, há um que vence e um que perde (um jogo de soma zero, como se diz na teoria dos jogos)". Ainda, o sereno "deixa o outro ser o que é, ainda quando o outro é o arrogante, o insolente, o prepotente". O desafio aqui é, então, pensar a ética como fundo da cultura de resistência de povos que não aceitaram submissão à coroa, nem ao Estado, como cita Pierre Clastres em "A Sociedade contra o Estado". O que nos II Congresso Internacional Sobre Culturas 567 guiaria nesta análise seriam os sistemas sociais, chamados também de "culturas", o que aqui faríamos um paralelo com "sementes", as unidades sociais, mais acertadamente chamadas de "comunidades", conforme Henrique Dussel, bem como "florestas" serão as diversidades de culturas num mesmo espaço. As "geladeiras", neste paralelo, seriam as "identidades", a saber, a necessidade do dominante e colonizador de "congelar", "unificar", “universalizar”: identidade em oposição à multiplicidade dos povos. Os povos originários do continente americano e africano que viveram sob o julgo de Império Português desde 1500, resistem até nossos dias com seus sistemas sociais, apesar do ataque cotidiano. Nesta análise, para compreender como conseguiram manter suas tradições, podemos concluir que valem-se da conduta serena, da ética da serenidade, e constroem a moral não-submissa, mesmo com a pressão constante do colonizador. A pergunta “até quando resistirão”, a resposta seria, conclusivamente: resistirão até que deixem a serenidade e passem a ética das virtudes, ou à ética das regras. REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. Elogia da serenidade e outros escritos morais, UNESP, 1997 CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o estado, 1974 PLATÃO, A República, CALOUSTE GULBENKIAN, 2014. WIKIPÉDIA. Www.wikipedia.org II Congresso Internacional Sobre Culturas 568 DÓ-RÉ-MI-FÉ: O CONSUMO DE MÚSICA ENTRE OS JOVENS DA IGREJA SARA NOSSA TERRA Fábio Vivas de Souza Barreto RESUMO No universo da fé, os evangélicos neopentecostais destacam-se não apenas pelo fervor com que professam seus credos, mas também pela retidão com que conduzem suas posturas diante das mais variadas situações, sempre pautados pelos ditos ensinamentos da palavra de Deus. Neste bojo, observa-se a presença cada vez maior de jovens nas fileiras ditas evangélicas, mas é preciso entender quem é este indivíduo e quais os parâmetros que o levam a decidir pelo consumo de música em suas várias vertentes. Pretende-se, portanto, realizar um estudo de recepção, sob a égide dos preceitos de Stuart Hall(2003), no que concerne às vertentes de representação, identidade e consumo, observando a construção de uma rede semântica que propõe a compreensão da interferência da religião nas escolhas musicais destes indíviduos. Palavras-chave: Consumo evangélico. Neopentecostais. Estudos de recepção. Religião, música. INTRODUÇÃO O universo da fé religiosa, notadamente a de vertente considerada evangélica, é por vezes enigmático e paralelamente encantador. Assim, conhecer seus meandros e como pensam os indivíduos que professam este credo pode acabar por esclarecer como é feita a construção de seu raciocínio diante das mais diferentes situações cotidianas, levando-nos à possibilidade de traçar possíveis estratégias de aproximação e, quiçá, conquista deste público, entendendo elementos que o afastam ou aproximam, mantendo a sua propalada identidade. Entender especificamente como se dá este processo com o indivíduo considerado jovem, neste tocante apenas cronologicamente pensando, pode ser interessante a partir do instante em que se entende o momento de formação de conceitos e preconceitos deste, elaborando a conduta que deve guiar seus caminhos. RELIGIÃO X RECEPÇÃO: MEDIAÇÃO? É precípuo compreender que o hedonismo consumista permeia também as crenças religiosas e, assim, seus representantes acabam por buscar aliviar as angústias do cotidiano através de produtos e serviços que os fazem parte integrante do todo que II Congresso Internacional Sobre Culturas 569 representam. Consumir, mesmo para o evangélico, é ser cidadão, afirmou Cunha(2004) em seu estudo sobre o crescimento do mercado Gospel(God of spell) no Brasil, deixando claro também que, neste universo, consumir bens e serviços ligados à sua religião significa estar ainda mais próximo do reino de Deus. Youngblut(2007 p.22) afirma que o ambiente evangélico, apesar de por vezes ser tocado pelo universo mundano que o cerca, não consegue estabelecer dissociação total de ambos e busca elementos simpáticos aos jovens, estrato cada vez maior nesta comunidade religiosa. Segundo levantamento do autor, a partir da participação destes em eventos chamados cristãos, como a Marcha para Jesus(que reúne anualmente cerca de 3 milhões de pessoas na cidade de São Paulo), o crescimento de movimentos juvenis paraeclesiásticos como os surfistas de Cristo ou os atletas de Cristo e ainda o crescimento de vertentes evangélicas de apelos genuinamente jovens, como o ministério Arena Jovem, da Igreja Sara Nossa Terra, ou ainda o uso de linguagens textuais e visuais também com este apelo acabam por contribuir e consolidar o interesse em aprofundar estudos no sentido de compreender as consequências desta nova onda, que pode ajudar a direcionar algumas estratégias de mercado. Para além disto, Carreiro (2003) analisou o crescimento evangélico no Brasil e seu consequente impacto no mercado e na economia como um todo, entendendo que o mercado religioso – neste tocante referindo-se apenas à existência de diversas correntes que concorrem entre si, funciona através de paradigmas que tentam construir um corpo de generalizações transculturais e trans-históricas, a partir da relação do indivíduo com os dogmas perpetrados e de suas escolhas. Pressuposto que aponta para o máximo de ganho com menor custo material ou ideológico. Desta forma, as ações, destacado neste prisma o comportamento de consumo, determinam o que o indivíduo considera aquilo razoavelmente interessante para ele ou ainda se estas mesmas ações descansam sobre conjecturas plausíveis. Comportamentos estes que podem começar a ser elucidados, no caso do jovem evangélico, a partir de fatores como os tabus e as obrigações pertinentes à religião, tendo ainda a função de contribuir para o delineamento da cultura, das normas, das atitudes e dos seus valores. As mediações, em crivo específico as de caráter religioso, atravessam a relação dos receptores com os meios e não existem fora das mesmas: classes sociais, orientação religiosa, gênero, etnia, família, escola, grupos de amigos e indivíduos. Já as mediações comunicativas na recepção são apreendidas através da análise dos textos II Congresso Internacional Sobre Culturas 570 midiáticos relevantes no cotidiano do receptor, abrangendo o exame do texto e dos usos, da sua circulação no espaço/tempo do receptor e da conformação desta relação. Esta abordagem está relacionada às primeiras pesquisas que levaram em conta a audiência, seguindo a tradição da escola funcionalista de entender os efeitos da mídia sobre os sujeitos. De natureza mais psicológica, pensada em termos do processo estímulo-resposta, pode ser considerada como a gênese dos estudos de recepção, principalmente no continente americano (Jacks e Escosteguy, 2005 p. 12). São estudos, portanto, que levam em conta as relações entre os conteúdos midiáticos e os sujeitos a partir da lógica da recepção, buscando detectar as influências e impactos gerados, em alguns casos mesmo que o referencial teórico-metodológico apresentado seja de abordagem sociodiscursiva ou sociocultural. Estudos com abordagem sociocultural, por sua vez, são aqueles que enfatizam uma “visão ampla e complexa do processo de recepção dos produtos midiáticos, levando em consideração múltiplas relações sociais e culturais” (Escosteguy, 2005 p.27). Mais do que o estudo do fenômeno de recepção em si, as pesquisas do gênero pretendem problematizar e pesquisar, do ponto de vista teórico ou empírico, sua inserção social e cultural. É preciso compreender ainda que o indivíduo está sempre em relação com o outro(a linguagem, os rituais, sujeitos, etc), e tal relação é articulada por um trabalho singular, dele próprio, junto às outras enunciações. Apesar de instalado em redes e em contratos que os transformam em coletivos, o indivíduo distingue-se apesar dos outros. E por isso é que ele se constitui em unidade de análise. Apesar de estar no coletivo, sua enunciação se singulariza, pois nenhum outro pode falar por ele. Nestas condições, os receptores indicam as configurações de contatos e de suas apropriações dos discursos religiosos midiáticos a partir de um trabalho de individuação dos sentidos (Verón, 2004 p. 272). Sob o ponto de vista de Bordieu(2015, p. 40): As diferentes formações sociais podem ser distribuídas em função do grau de desenvolvimento e de diferenciação de seu aparelho religioso, isto é, das instâncias objetivamente incumbidas de assegurar a produção, a reprodução, a conservação e a difusão dos bens religiosos. Outrossim, a escolha por estudar o comportamento de pessoas entre 18 e 24 anos – jovens, segundo o critério da UNESCO 2012(Projeto CNE/UNESCO “Desenvolvimento, aprimoramento e consolidação de uma educação nacional de II Congresso Internacional Sobre Culturas 571 qualidade”), ambos os sexos, dá-se justamente por ser a fase em que muitos estão em fase de construção e/ou solidificação de sua personalidade e de suas convicções, religiosas ou não, sendo o alicerce para a condução do seu comportamento durante o resto de suas vidas. Assim é possível entender melhor as respostas aos estímulos que lhes são apresentados, especificamente pelo ambiente religioso que frequenta e, em especial, o particular universo das igrejas autoproclamadas como neopentecostais – corrente menos rígida. O UNIVERSO NEOPENTECOSTAL DA IGREJA SARA NOSSA TERRA No meio neopentecostal, uma das vertentes que vem ganhando cada vez mais relevância é a da Igreja Sara Nossa Terra, surgida em Brasília, capital brasileira, oficialmente no ano de 1992 - apesar de haver registros de seu início datando de 1976, quando o seu fundador, Robson Rodovalho, entabulou o que seria o seu embrião. Em 2016, a Sara registra em seus quadros cerca de 2 milhões de fiéis, em mais de mil templos espalhados pelo Brasil e ainda Argentina, Paraguai, Uruguai, Peru, Portugal, Finlândia, Inglaterra, França, Espanha, Itália, EUA e em Guiné-Bissau, conforme afirma seu próprio sítio eletrônico, cujo acesso em 19/06/2016. A Sara Nossa Terra possui um sistema de crescimento por células estratégicas, onde o indivíduo é preparado para doutrinar no ambiente de sua casa, cooptando vizinhos e amigos. Acima deste, estão os diáconos, seguidos dos pastores, bispos e, no topo da hierarquia, os apóstolos, que são os fundadores - neste caso, Rodovalho e sua esposa, Maria Lúcia. Observa-se, portanto, uma hierarquia muito bem definida através de sua estrutura organizacional. Estrutura que conta ainda com uma muito bem montada rede de comunicação: Rede Sara Brasil FM, Rede Gênesis de TV, Sara Brasil Edições e Produções(responsável pelas publicações de livros e organizações dos eventos) e o selo gospel Sara Music, também de acordo com o sítio eletrônico da igreja. Aqui cabe ilustrar que Rodovalho é hoje um próspero empresário do meio neopentecostal, notadamente por todas as variantes de negócio propiciadas pela Sara Nossa Terra. Robson Rodovalho é graduado em Física pela UFGO-Universidade Federal de Goiás, além de ter cursado em seguida Teologia e Filosofia em entidades não reconhecidas pelos meios legais brasileiros que regem a educação. Fundou a Igreja Sara Nossa Terra em união com sua esposa, Maria Lúcia, e tem hoje vários títulos II Congresso Internacional Sobre Culturas 572 publicados, sempre versando sobre variantes da Teologia da Prosperidade – cujo princípio rege que o acúmulo de bens materiais denota bênçãos divinas - e sobre a evolução da sua corrente religiosa. Dentre os ministérios da Sara Nossa Terra – como são chamadas suas subdivisões – talvez o destaque seja o Arena Jovem, considerado no meio evangélico como o maior movimento direcionado para este segmento. Uma vez ao ano, inclusive, a Conferência Arena Jovem reúne, em média, 5 mil participantes em alguma cidade brasileira, segundo o sítio eletrônico da igreja. AFINAL, QUEM É ESTE INDIVÍDUO CHAMADO ”JOVEM”? É preciso compreender que, sociologicamente, enquadrar qual indivíduo consegue ser classificado como jovem é uma situação bastante densa, uma vez que não se trata apenas de considerar a idade, mas uma série de outros fatores corroborativos, entendendo que “a juventude e a velhice não são dados, mas construídos socialmente na luta entre os jovens e os velhos. As relações entre a idade social e a idade biológica são muito complexas”, destaca Bordieu(1983 p. 113). Assim, à medida em que uma pessoa de 19 anos, como simples exemplo, é considerada cronologicamente jovem e assume alguns papéis sociais como sua inserção no mercado de trabalho, constituir família ou somente ter um filho, este já passa à condição de adulto, sociologicamente falando, a partir do surgimento de uma série de obrigações a cumprir pela mudança de condição. Sobre isto, afirma Pais(2009 p.372) que “embora socialmente reconhecidos, os marcadores de passagem, não instituem, porém, uma colagem dos indivíduos à idade induzida por efeito desses marcadores (casamento, filhos, reforma do mercado de trabalho, etc.)”. Sobre isto ainda, destaca Oliveira(2010, p.3) que, no que concerne à juventude, “os elementos que antes serviam como norteadores de pertencimento e identidade ruíram-se em um mundo marcado pelas incertezas”. É preciso entender que não se vive mais em uma sociedade orgânica estruturada em um único centro, mas em um contexto social que acaba por obrigar os indivíduos a se tornarem cada vez mais autônomos em relação a várias esferas de sua vida. No espaço religioso, esta situação torna-se ainda mais real ao ser possível observar a facilidade com que estes mesmos indivíduos aderem a inúmeras formas de manifestação, mesmo que estranhem ou não conheçam a sua origem. II Congresso Internacional Sobre Culturas 573 Para Hervieu-Léger (2000 p.25) em se tratando de religião, os filhos jamais serão aquilo que os pais esperam: a imagem fiel deles mesmos. Para ela, há uma tendência na sociedade atual ao enfraquecimento da transmissão religiosa, o que acaba gerando uma crise em relação à tradição. Por outro lado, a autora afirma ainda que a mudança não se configura como ameaça à continuidade e que esta resta assegurada pela própria mudança. Torna-se quase impossível pensar em juventude sem lembrar de detalhes que podem caracterizá-la, como seus gostos musicais. Nesse interim, é preciso repensar a música como expressão de grande relevância na atualidade, isto é, como uma das principais forças motrizes do mundo contemporâneo, problematizando-a a partir de sua intensa e capilarizada presença na cultura urbana, caracterizada pela centralidade do entretenimento e espetáculo. É preciso ainda entender o elemento música como conjunto de práticas comunicacionais de cunho estratégico, suas articulações e tensões entre espacialidade e poder – enfocando estrategicamente o ambiente religioso neste quesito, assim como a condição ambígua da juventude na contemporaneidade – oscilando entre estereótipos e clichês que sugerem processos destrutivos ou de inovação. Sobre isto, a pesquisadora Jênifer Rosa(2014) mostra-nos que para atraí-los – os jovens - a religião submete-se à lógica do mercado, permitindo que seus elementos sacros, notadamente a música, sejam apropriados também como objeto de consumo e entretenimento. Nota-se, portanto, a possibilidade de observar indicativos de ALTERIDADE, PERTENCIMENTO e EVANGELIZAÇÃO, a partir da análise do comportamento de consumo de música dos jovens em questão, entendendo as suas motivações para escolhas de cantores e grupos, bem como as similaridades possíveis entre a sua opção religiosa e a maneira como conduz suas posturas. Deste ponto, depreende-se a possível utlização de um modelo específico, baseado nos estudos de Hall(2003) acerca de indícios, por assim saber, de representação, identidade e consumo, entrelaçando-os e elucidando em quais momentos estes podem ser observados sobrepostos ou, quiçá, isoladamente. ONDE É POSSÍVEL CHEGAR O intuito deste estudo é justamente o de elucidar o grau de interferência do ambiente religioso no discernimento dos indivíduos, ainda que estes não percebam e II Congresso Internacional Sobre Culturas 574 pensem estar agindo por conta própria, entendendo a religião como uma dos principais grupos de referência e de conduta. Espera-se, ao final, apontar quais os caminhos que podem ser percorridos para abordar jovens evangélicos de forma não invasiva, respeitando de maneira não equivocada os seus preceitos. REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 8ed. São Paulo: Perspectiva, 2015. 361p. BOURDIEU, Pierre. 1983. Questões de sociologia. 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São Paulo/SP: USP, 2007. 34p II Congresso Internacional Sobre Culturas 576 O CONCEITO DE DEFICIÊNCIA EM EVOLUÇÃO NO BRASIL E EM PORTUGAL223 Lúcia Pereira Leite224 RESUMO Pautada nos preceitos da Psicologia histórico-cultural este estudo objetiva analisar o conceito de deficiência e de pessoas que se encontram nessa condição a partir da revisão documental. Traz para o debate a evolução do conceito propalado em normativas do Brasil e Portugal que orientam as ações governamentais dirigidas a esse público. Na atualidade, o conceito de deficiência tem sido revisto nos dois países de forma superar a localização dessa condição apenas no indivíduo que apresenta diferenças orgânicas, físicas, sensoriais e/ou comportamentais. Tanto no Brasil como em Portugal percebe-se uma evolução do conceito. A deficiência passa a ser nominada numa perspectiva mais social nos documentos oficiais das duas realidades investigadas. Palavras-chave: Deficiência. Inclusão social. Psicologia histórico-cultural. INTRODUÇÃO Para Vigotski (2000) a palavra é fundante na formação de um conceito. Inicialmente possui uma função de mediadora e, posteriormente, torna-se seu símbolo – representante. No entanto, uma palavra não ganha significado pleno para um sujeito de maneira automática, pois é nas relações, ou melhor, no uso efetivo da língua que as palavras tomam vida, sendo passíveis de atribuição de significado compartilhados socialmente, e sentidos são dados a partir do seu uso. Ao investigar um conceito, no caso aqui retratado o de deficiência, há que se entender a sua evolução histórica e o seu contexto de emprego. A deficiência transitou e transita por diversos períodos históricos, sendo ressignificada culturalmente, indo desde uma concepção marginalizante, assistencialista, médica (voltada para reabilitação) até perspectivas mais sociais que sustentam modelos inclusivos – participativos. Porém, ainda é bastante comum a destinação de crenças e/ou mitos construídos envoltos a esse conceito. Refletir e repensar o conceito de deficiência em termos culturais é parte da psicologia social em prol da garantia dos direitos humanos de grupos minoritários (LEITE; MATTOS, 2016). 223 Trabalho derivado da pesquisa “AS CONCEPÇÕES DE DEFICIÊNCIA NUMA UNIVERSIDADE PÚBLICA: as implicações para a inclusão social”, que conta com auxílio da Fapesp, auxílio regular, proc. 2014/03811-2. 224 Doutora em Educação – Pós-doutorado em Educação Especial Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia e Desenvolvimento da Aprendizagem. Universidade Estadual Paulista – UNESP/Bauru, São Paulo-Brasil. E-mail: lucialeite@fc.unesp.br II Congresso Internacional Sobre Culturas 577 Entender a formação de um conceito nominativo é uma tarefa complexa, uma vez que o sujeito se apropria dos conceitos nas relações sociais, e que essas carregam em si ideologias e interesses de determinados grupos dominantes. O conceito, dado como objetivo, na realidade se configura como subjetivo, influenciado por quem o define e por quem o mantém. No entanto, o modo como cada indivíduo conceitua vai além do universal e passa para a esfera particular, estando atrelado a sua experiência – contato (direto ou indireto) com o fenômeno em si. Nessa ótica, as diferenças individuais, sociais e/ou culturais podem ser categorizadas como vantajosas ou não, dependendo da lógica que sustenta e regulamenta a sociedade. O psiquismo humano se forma pela apropriação dos processos interacionais que se engendram em comunidades culturais, em que a produção de significados e sentidos que medeiam o modo de pensar, sentir e agir do homem (GESSER et al, 2013). Contudo, o conceito de deficiência esteve - e ainda está - atrelado a determinadas qualidades negativas atribuídas as características de uma pessoa e/ou de um grupo. Com isso cria-se um fenômeno social chamado de desvio, em que os sujeitos que se encontram nessa condição culturalmente são conceituados de desviantes – fora do ‘normal’. Amaral (1998) acrescenta que o desconhecimento/distanciamento desse fenômeno é um elemento fundamental na criação do estigma e de atitudes preconceituosas e estereotipadas da deficiência. Omote (2004) esclarece que, ao reduzir os atributos e comportamentos como inerentes aos sujeitos desviantes, a sociedade lhe confere descrédito social e, em consequência, os exclui, segregando dos demais. A esse sujeito marginalizado é atribuído o conceito de estigma - marca negativa resultante de julgamentos, em grande medida consensuais, dados pela comunidade onde o fenômeno ocorre. É oportuno lembrar que pessoas com deficiência ao longo da história sofreram e ainda sofrem com estigma de inválidas, ineficientes, deficitárias, dentre outros. Para Goffman (1982) o estigma tem como função o controle social, pois a partir dessa marca que se valoriza positivamente o “normal” em detrimento do “anormal”, criam-se assim códigos de conduta, mecanismos de fiscalização do cumprimento desses códigos e programas de tratamento para os desajustados, além de mecanismos de defesa pessoal para justificar o convívio segregado (AMARAL, 1998). II Congresso Internacional Sobre Culturas 578 DADOS DE BRASIL E PORTUGAL Em termos numéricos a população com deficiência nos dois países está assim dividida: No Brasil, o censo “Características Gerais da População, Religião e Pessoas com Deficiência” – IBGE/2010, ao considerar a população residente no país, apontou que 23,9% possuíam pelo menos uma das deficiências investigadas: visual, auditiva, motora e mental ou intelectual, demonstrando um índice bastante alarmante. Em função das políticas públicas se pautarem no segmento das pessoas que apresentam deficiência severa, a cartilha dos dados do Censo, publicada em 2012, faz uma projeção do contingente de pessoas identificadas por possuir deficiência severa. Tal índice foi calculado pela soma das respostas positivas às perguntas “tem grande dificuldade” e “não consegue de modo algum”. Com essa medida, constatou-se que, em 2010, 8,3% da população brasileira apresentava pelo menos um tipo de deficiência severa, sendo: 3,46% com deficiência visual severa 1,12% com deficiência auditiva severa 2,33% com deficiência motora severa 1,4% com deficiência mental ou intelectual. É oportuno informar que na época o Brasil contava com uma população de 190.732.694, e as pessoas com deficiência severa somavam 15.830.813, em termos absolutos. Desse contingente 67,73% pertencem ao grupo de 65 anos ou mais, sendo mais ocorrente em mulheres. Em Portugal, os dados são semelhantes. Do ponto de vista funcional essas pessoas são classificadas em nos tipos de deficiências e incapacidades, ou mais especificamente olhando o tipo de alterações funcionais com vistas às limitações para o exercício de determinada atividade, conforme relatado pelo documento “Elementos de Caracterização das Pessoas com Deficiências e Incapacidades em Portugal” (CRPG, 2007). No mesmo documento, segundo dados censitários mais recentes realizados por amostragem, 8,2% da população de Portugal apresenta alguma deficiência e incapacidade decorrente. Em termos absolutos tem-se 1.235.100 de pessoas, sendo a maior parte no universo feminino, com 838.670 e no masculino 397.320, sendo que mais de dois terços da amostra possui mais de 50 anos. No documento oficial, ou seja, no Recenseamento Geral da População (Censo), de 2001, em Portugal existiam 634.408 pessoas com deficiência, numa população (residente) de 10,3 milhões de indivíduos, ou seja, uma percentagem de 6,13%, da população tinha uma deficiência. II Congresso Internacional Sobre Culturas 579 Em termos conceituais a semelhança também é notada, pois nos dois países encontram-se conceitos distintos, ou melhor, dois modos de conceber a deficiência estão em uso. Na atualidade, no Brasil, o primeiro a define a sua essência focado numa limitação de ordem individual, como pode ser percebido na leitura do Decreto Federal 5.296, de 02 de Dezembro de 2004, no primeiro parágrafo do Art. 3º, “[...] toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano” (BRASIL, 2004). A deficiência passa a ser categorizada por tipo de comprometimento: física, mental, auditiva, visual ou múltipla. O modelo biomédico para compreensão da deficiência, sendo esta vista como um atributo orgânico e inerente ao sujeito. Portanto, tais diferenças foram tomadas como prejuízos que geravam impeditivos para o desenvolvimento humano, dessa forma ações interventivas deveriam ser criadas para reabilitar o sujeito deficiente. Em Portugal, o primeiro se pauta em classificar os tipos de limitações causadas pela deficiência com base na Classificação Internacional de Funcionalidade225, dividindo-a em: aprendizagem e aplicação de conhecimentos; mobilidade; tarefas e exigências gerais; comunicação; vida doméstica; autocuidados; interações e relacionamentos interpessoais; visão; audição; fala. É interessante notar que a classificação leva em conta o desempenho, deixando de somente de categorizar a deficiência em si, mas sim o prejuízo ou a dificuldade decorrente da mesma. Se por um lado isso pode ser considerado como um avanço, por outro, ainda, ao seguir esse padrão, acaba por concentrar a definição de deficiência no organismo que a apresenta, deixando de abordar o quanto o contexto pode ou não agravar essas condições. Dito de outro modo, por exemplo, será que se tivermos uma casa adaptada à pessoa irá apresentar incapacidade na sua residência mesmo fazendo uso de cadeira de rodas? 225 De acordo com a CIF, a atividade é nominada como “a execução de uma tarefa ou ação realizada por um indivíduo” e limitações da atividade são compreendidas como “dificuldades que um indivíduo pode ter na execução de atividades”. II Congresso Internacional Sobre Culturas 580 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE DEFICIÊNCIA NO BRASIL E EM PORTUGAL A questão da revisão conceitual tem sido uma preocupação governamental nas duas realidades investigadas. No documento “1º Plano de Acção para a Integração das Pessoas com Deficiências ou Incapacidade”, elaborado pelo Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social (2006, p. 14, destaque dos autores) é enfatizada a necessidade de mudança no modo de conceber a deficiência, uma vez que, A tradição das teorias e modelos explicativos do fenómeno da deficiência de raiz médica tem sido dominante ao longo das últimas décadas. Neste caso a deficiência é vista como um problema da pessoa numa perspectiva estritamente individual, como uma ‘consequência da doença’ e que requer uma acção que se confina ao campo médico, seja ao nível da prevenção seja ao nível do tratamento e da reabilitação médica. Por outro lado subentende que seja a própria pessoa a adaptar-se ao meio. Percebe-se que, como no cenário brasileiro, existe uma preocupação por parte da gestão pública portuguesa em admitir a necessidade de deslocar do campo médico à ideia da deficiência, distanciando de uma doença ou disfunção somente de cunho individual, em que o sujeito que se encontra nessa condição seja por inteiro deficiente - inválido. A adoção de um modelo social começa a ser difundido e incorporado e amplia a compreensão do conceito da deficiência, reconhecendo-a como decorrente do meio. Omote (1996) sustenta que o conceito passa a ser produto social, ou seja, para que a deficiência exista é preciso uma audiência que identifique e trate o sujeito como deficiente. Com os estudos advindos do modelo psicossocial, a deficiência ora vista como universal passa a ser reconhecida como contingencial. Nas palavras do autor [...] “Os mesmos atributos ou comportamentos podem, assim, receber interpretações e tratamentos bastante díspares em diferentes circunstâncias”. (OMOTE, 2004, p.289). No entanto, as mudanças, tanto na concepção de deficiência como no trato as pessoas que se encontram nessa condição, começaram a ocorrer após mais acentuadamente após Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, em que os dois países são signatários. No Brasil ratificado pelo decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009 e adotado pela comunidade europeia o “Plano de Ação II Congresso Internacional Sobre Culturas 581 Europeu para a Deficiência”, em 2003. Passa-se a então adotar que “Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”. Portanto, percebe-se uma nova forma de conceituar a deficiência, com um formato mais amplo indicando a presença de barreiras como limitadoras da participação social. Políticas públicas como essa produzem uma substancial revisão no modo de conceber a deficiência, em Portugal é reconhecida que a incapacidade não é inerente à pessoa, pois decorre de um [...] “conjunto complexo de condições, muitas das quais criadas pelo ambiente social, muda o enfoque da anomalia ou deficiência para a diferença” (MTSS, 2006, p. 14). Ao adotar perspectiva, percebe-se que a luta pelos direitos humanos é eminente quando buscamos uma sociedade mais inclusiva, ou seja, que promova a participação de todos os seus grupos sociais independentemente das condições que seus componentes possam apresentar. Acreditamos que em termos de dispositivos legais a realidade portuguesa parece mais preocupada em adotar um modelo biopsicossocial para se referir à deficiência. Tal parte é fundamentada na Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (WHO, 2001), em que se faz o desuso da nominação deficiência em prol do termo incapacidade, com localização na barreira de acesso aos contextos ambientais. No Brasil a conquista legal se deu recentemente com a promulgação da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência - Lei 13.146, de 6 de julho de 2015). A LBI, como tem sido chamada, representa uma conquista em termos legais na garantia da fruição dos direitos fundamentais da pessoa com deficiência, com vistas à sua inclusão social e condições para o exercício cidadania, além de ampliar o foco de análise para conceituar o fenômeno da deficiência. Em outros termos, não significa desconsiderar as diferenças individuais, mas notar que a condição de deficiência se dá em função das barreiras contextuais. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo da pesquisa realizada constataram-se avanços normativos recentes notados nas duas realidades, evidenciando uma preocupação por parte dos dois estados no trato as pessoas com deficiência (e/ou incapacidade). Porém Leite (2014) acredita II Congresso Internacional Sobre Culturas 582 que o modelo social ainda não dê conta de compreender a deficiência na sua essencialidade, pois a sua nominação está diretamente condicionada ao modo como uma determinada cultura entende e se relaciona com determinados grupos sociais dentro de um período. Com isso pautada nos estudos da defectologia, apresentados originalmente por Vygotski em 1929, compreende que a deficiência numa perspectiva histórico-cultural deve ser interpretada como: [...] dinâmica, relacional e processual com base na relação entre indivíduo e contexto sociocultural, que ocasiona um desenvolvimento humano diferenciado, que pode ser alterado em função das expectativas e de atitudes dirigidas a ele. A deficiência decorre de uma disfunção biológica que acarreta limitação, e como consequência uma barreira social. É significada historicamente no contexto de sua ocorrência (LEITE, 2014, p. 12). Isso implica entender que o conceito de deficiência não é estático e extrapola as condições orgânicas, funcionais ou comportamentais diferenciadas, pois o prejuízo individual está fortemente atrelado à relação que a sociedade mantém com este indivíduo, ou seja, a falta ou a inadequação social, vinculada aos conceitos negativos atribuídos à pessoa com deficiência poderão dificultar ou não a sua participação social e consequentemente o seu desenvolvimento humano. Entende-se por fim que, nos dois países, a ampliação do conceito pode direcionar a adoção de modelos mais inclusivos, em que a sociedade reconheça a necessidade de ajustes para atender a todos, independentemente das suas condições. Isso não impede a promoção de ações dirigidas especificamente às pessoas com deficiência, mas sim o reconhecimento da diversidade humana e a necessidade de provimentos que visem à remoção das barreiras atitudinais, físicas, instrumentais que dificultam o acesso de uma parcela populacional expressiva aos bens sociais e culturais, favorecendo que esse contingente possa participar mais ativamente de espaços não segregados. REFERÊNCIAS AMARAL, L. A. Sobre crocodilos e avestruzes: falando de diferenças físicas, preconceitos e sua superação. In: AQUINO, J. G. (Org.). Diferenças e preconceitos na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 1998. p. 11-30 II Congresso Internacional Sobre Culturas 583 BRASIL. Presidência da República. Lei Nº 13.146, de 6 de Julho de 2015.Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20152018/2015/Lei/L13146.htm. _______. 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A Psicologia histórico-cultural na compreensão dos conceitos relacionados à deficiência: uma análise investigatória com futuros profissionais. Universidade Estadual Paulista (UNESP), 2014. Relatório Científico CNPq. (Texto não publicado). LEITE, L.P.; MATTOS, B. M. Aplicação da escala de concepções de deficiência (ECD) em uma universidade pública do Brasil. Journal of Research in Special Educational Needs, v. 16, p. 155-158, 2016 doi:10.1111/1471-3802.12277 MINISTÉRIO DO TRABALHO E DA SOLIDARIEDADE SOCIAL (MTSS). 1º Plano de Acção para a Integração das Pessoas com Deficiências ou Incapacidade. Lisboa, 2006. Disponível em http://www.inr.pt/uploads/docs/programaseprojectos/paipdi/PAIPDIdesenv.pdf OMOTE, S. Perspectivas para conceituação de deficiências. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v. 2, n. 4, 127-135, 1996. II Congresso Internacional Sobre Culturas 584 ________. O Estigma no tempo da inclusão. Rev. Bras. Ed. Esp., Mar., set-dez 2004, v. 10, n. 3, p. 287-308. 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Ao adaptar-se os conceitos para o contexto contemporâneo dos imigrantes brasileiros em Coimbra, estabelece-se uma relação de aproximação com o que será chamado de retórica da negação. Palavras-chave: Platão. Estrangeiro. Imigrante. Brasileiro. Portugal. INTRODUÇÃO Com o intuito de compreender de onde advém o conceito de Mesmidade trabalhado dentro do conceito original de identidade é que se retorna aos discursos de Platão. Especificamente busca-se o diálogo O Sofista para compreender a separação entre o Ser e o Não-Ser apresentada com o intuito de “ser por meio do outro para que pudesse ser nele mesmo”. A Alteridade e a Mesmidade fazem-se presentes em uma busca constante de pertencimento pelo Ser. Essa conceituação relacional é que permitirá tanto ao estrangeiro quanto ao imigrante ser no país de acolhimento. Os dados apresentados neste artigo advém do inquérito on-line apresentado na dissertação de mestrado em Comunicação e Jornalismo da Universidade de Coimbra, A Estudante Brasileira em Portugal – auto-identidade e repercussão dos Media On-line. A relação do Ser, do Mesmo e do Outro para o discurso O Sofista pode ser adaptado ao contexto contemporâneo dos estudantes brasileiros na Universidade de Coimbra em Portugal. Leva-se em consideração que o estudante brasileiro é um estrangeiro em relação aos portugueses. Neste caso, a flexão e a retórica pela negação, de possível sofista ou filósofo, o põe no processo de adaptação no país de acolhimento. A busca pelo Ser é um caminho decorrente tanto por aquele que imigra quanto por 226 Artigo escrito para o II Congresso Internacional de Cultura. Doutoranda no programa de Comunicação e Cultura do PPGCOM-UFRJ, linha de pesquisa Mídia e Mediações Socioculturais, email: robertaavillez@gmail.com 227 II Congresso Internacional Sobre Culturas 586 aquele que vive no país de acolhimento. Portanto, percebe-se como estratégia de adaptação do imigrante o uso da mímesis para que se faça sentido dos códigos e ritos. A INSERÇÃO DO ESTRANGEIRO DE ELÉIA NO DISCURSO É interessante perceber que a personagem que conduzirá o diálogo O Sofista não é Sócrates. Ao contrário, neste dialogo de maturidade, o método da dialética será proferido por uma personagem exterior ao ambiente grego de Atenas, de nome desconhecido, apenas apresentado como um estrangeiro com a sua origem ressaltada. O desconhecimento do nome da personagem desqualifica-a das propriedades que a tornam quem ela é. Ou seja, ao ressaltar a sua origem reconhece-se o não pertencimento às praticas culturais gregas e atenienses, assim como reconhece a origem de Estrangeiro como a mesma de Parmenides e Zenão. Essa tentativa de estabelecer semelhanças aponta a possibilidade de este ser um sofista assim como os demais originários de Eléia. Entretanto, problema da identidade de Estrangeiro encontra-se introduzida já no início do diálogo. É Teodoro que introduz Estrangeiro à Sócrates. A primeira questão relacional – A em relação a B – encontra-se presente já de início na fala de Teodoro, quando este diz: “no que concerne a sua origem, ele nasceu em Eléia; no entanto, é diferente de seus companheiros Parmenides e Zenão, embora ele seja um verdadeiro filósofo228” (PLATON, trad.CORDERO, 1993, p.73, trad. livre). Percebe-se que afirmação do nascimento de Estrangeiro em Eléia deixa implícito sua relação com o sofismo, porém quando Teodoro continua em seguida a sua fala “no entanto, é diferente de seus companheiros”, acaba por estabelecer uma negação com relação à afirmação implícita anteriormente. A terceira oração surge como um acréscimo, uma revelação ao que seria, então, o Estrangeiro, portanto um “verdadeiro filósofo”. Percebe-se que a fala de Teodoro vai ao encontro das questões relativas ao outro, à Alteridade, quando aponta a origem do Estrangeiro como relevante. É enfatizada a diferença entre aqueles que são gregos, filósofos, e os eleatas, sofistas. Assim como é ressaltada a distinção entre o próprio Estrangeiro e seus conterrâneos eleatas, Parmênides e Zenão. Portanto, há uma diferença interna referente àqueles que 228 “En ce qui concerne ses origines, il naquit à Elée; cependant, il est différent dês compagnons de Parménide et de Zénon, quoiqu´il sois un véritable philosophe” (PLATON, trad.CORDERO, 1993, p.73) II Congresso Internacional Sobre Culturas 587 habitam em Eléia. Aqui estabelece-se a questão da diferença como relacional – A em relação a B, e exterior à unidade, além de representada pelo indivíduo. Entretanto, não é explicitada que diferença é essa apontada no outro que não é nomeado, mas apresentado como estrangeiro. A retórica do Estrangeiro, no Sofista, diz respeito a falar e pensar por meio de outrém, portanto a fazer uso da diferença – “um processo de permanente Alterização de si ao pensar e escrever” (MARQUES, 2006, p.40). Neste momento, faz-se preciso estabelecer rapidamente uma distinção entre a retórica filosófica e a retórica sofista. Enquanto a primeira busca a verdade, a segunda busca a disputa sem levar em consideração a verdade em si. O que o sofista desvela é uma opinião (doxa) que poderá ser verdadeira ou falsa pela refutação (MARQUES, 2006). Será por meio da retórica filosófica e o método dialético que a personagem Estrangeiro obterá a purificação e com ela a verdade. Com isso, faz-se necessário distinguir para que se possa unificar. Portanto, o método de divisão por distinção categoriza para que ao final possa-se chegar ao que é uno, Mesmo. Sócrates questiona Teodoro quanto a natureza do Estrangeiro, pois esse apresenta-se como um filósofo externo à Grécia. Seria, então, um deus ao estar acompanhado de um homem justo como Teodoro229? Pois, até então, os filósofos eram identificados como gregos. Ou seria um sofista a fazer-se a imagem de um filósofo? Quando Platão se faz falar na personagem Estrangeiro de Eléia, ele deixa-se atravessar pela negação de sua própria Mesmidade em relação aos pensadores com os quais dialogava, como Parmenides (MARQUES, 2006). O Estrangeiro representa uma personagem com um estatuto ambíguo no diálogo, pois ao mesmo tempo em que é incluído por participante da retórica, ele é excluído por ser um não-grego. Já no início do estudo com Teeteto, Estrangeiro afirma que ambos encontram-se de acordo em um ponto, o Nome. Porém, o que cada um compreende sobre o Nome pode diferir aos dois. Para isso, fez-se proposto que fosse trabalhado em exemplos e com isso feita as separações pelas suas diferenças de acordo com o método – aqui divide-se o mais próximo possível (MARQUES, 2006). Inicia-se pela questão da tekhné, pois esta tem por objetivo separar os gêneros. Toma-se como exemplo a técnica da caça. O Estrangeiro associa o sofista àquele que caça pela pesca, pela técnica da aquisição, pois ambos fazem o mesmo uso. Portanto, 229 Referência ao poema de Parmenides em que coloca o homem acompanhado de Justiça. II Congresso Internacional Sobre Culturas 588 EE- Por deus, nós não podemos ignorar! Que os dois indivíduos são relacionados? Teeteto- Quais indivíduos? EE - O pescador e o sofista. Teeteto - Como? EE -Me parece que os dois são caçadores. (…) EE - Então, exatamente nesta etapa, o sofista e o pescador alinham-se conjuntamente a partir da técnica de aquisição230. (PLATON, trad. CORDERO, 1993, p.85, trad. livre) A princípio, a caça é uma relação entre o sujeito e a natureza, uma função de aquisição de algo pertencente à natureza que visa os seres vivos. Essa natureza pode ser dividida entre os seres aquáticos referente a pesca, os seres que caminham sobre a terra e os seres domésticos, portanto os humanos, referente a caça em si. O sofista exercerá a caça ao humano, no caso ao jovem e o fará por meio da persuasão. Portanto, o uso do discurso sofista estabelece-se a caça como uma troca de relações humanas com o propósito de aquisição de jovens, é empreendida por adultos e focaliza nos desejos para tal. É interessante perceber que a persuasão produz uma opinião (doxa). A partir de dois interlocutores dispostos a refutação, o intuito passa a ser o de adquirir um ao outro como um bem de consumo. Portanto, o Estrangeiro esclarece que poder-se-á fazer a caça ao ser humano, animal domesticado, pela via do discurso231. Para que o interlocutor seja persuadido é preciso que o discurso toque-lhe o desejo (velado ou não). Será a partir do reconhecimento do desejo que trabalhar-se-á a persuasão (MARQUES, 2006). A questão relativa ao Ser e ao Não-Ser remete ao poema de Parmenides, cuja hipótese sobre o Ser diz “que um que é, que não é para não ser” (PARMÊNIDES, 2009). Desvela-se uma crise que exigirá do interlocutor a capacidade de separar e distinguir (nomear) aquilo que se encontra misturado. A aporia do Não-Ser surge, pois o poema afirma que o Não-Ser é ignoto e portanto, não é passível de ser nomeado. Logo, “não poderás conhecer o não-ser, não é possível, nem indicá-lo” (PARMÊNIDES, 2009). A nomeação do Ser o atribui como pertencente ao gênero dos seres, portanto ao nomear o Não-Ser, também por concomitância faz-se a sua nomeação dentro do gênero dos seres. Enunciá-lo por si só, sem nenhuma predicação é 230 L´Etranger - Pourrons-nous ignorer, par les dieux! que les deux individus sont apparentés? Théétète - Quel individus? L´Etranger - Le pêcheur à la ligne et le sophiste. Théétète - Comment? L´Etranger - Il me semble que les deux sont des chasseurs. (…) L´Etranger - Jusqu´à cette étape, donc, le sophiste et le pêcheur à la ligne allaient conjointement en partant de la technique de l´acquisition. (PLATON, trad. CORDERO, 1993, p85) 231 Porém, a via optada pelo sofista é a caça pelo discurso oral. A caça será feita pela via do “discurso judiciário, do discurso político, das conferências privadas e, ao mesmo tempo, de tudo que abrange o nome de uma única técnica, que é captável pela persuasão” (PLATON, trad. Cordero, 1993, p.88, trad. livre). II Congresso Internacional Sobre Culturas 589 da ordem do impossível, visto que o “não-ser é algo”. No diálogo O Sofista, o Não-Ser de Platão, difere-se do Não-Ser parmenídico. Apresenta-se a possibilidade de haver um outro Não-Ser. O viés platônico conecta o Não-Ser ao Ser para que este seja passível de nomeação. É dizer aquilo que é pela sua negação, por aquilo que não é. Portanto, é nomear pela perspectiva do outro, da Alteridade. Ao mesmo tempo, no poema de Parmenides, é apresentado o Ser como semelhante a uma esfera bem rotunda, completo, compacto, inabalável e sem telos (PARMÊNIDES, 2009). Com isso, o Ser parmenídico não admite movimento e, tampouco alteração. Diferente dele encontra-se o Ser Outro platônico que ao apresentar-se como semelhante à uma esfera rotunda, na verdade se apresenta como a imagem do Ser em si. A representação pela imagem exclui o Ser como verdade e aponta-o como um Ser Outro. Assim, de acordo com Platão, no diálogo O Sofista, o Ser é três: ele Mesmo, Outro e o ignoto parmenídico. A nomeação do Ser introduz a questão do movimento e do repouso no diálogo, por meio do debate em que o Uno e o Todo podem existir na sua Mesmidade e na sua Alteridade. A questão da imagem é percebida no diálogo em uma imagem visual e falada. A variação da imagem em Mímesis aparece como uma subcategoria, entretanto, refere-se ao que é do caráter da semelhança, ou seja, ao que aparenta mas não é. O problema da identidade no diálogo O Sofista desvela-se pelas relações entre Mesmidade e Alteridade. Ao projetar-se no outro pelo movimento, o Ser transmuta-se na negação, ou seja, no Não-Ser. É a partir dessa relação de A e B que fazer-se-á a transmutação entre Mesmidade e Alteridade. Este conceito relacional, apresentado por Platão será percebido por identidade quando empregado para analisar o estudante brasileiro em Coimbra. A PERCEPÇÃO DO ESTRANGEIRO COMO O ESTUDANTE BRASILEIRO EM PORTUGAL O inquérito on-line revelou-se bastante interessante, pois dos 14 estudantes brasileiros que responderam ao formulário, a maioria é solteira e mulher (11 solteiros, 12 mulheres). Dos inquiridos 57,14% são jovens e jovens adultos. Percebe-se que exatamente metade da amostragem participou de algum tipo de migração antes de ir estudar e morar em Portugal, dentro ou fora do Brasil. Da amostra, a idade relativa daqueles que apresentaram algum tipo de migração varia II Congresso Internacional Sobre Culturas 590 entre 29 a 47 anos de idade. Essa informação, aponta que a trajetória e história de vida pessoal e familiar é um fator de influência e estímulo para a migração dos estudantes. Apesar dos inquiridos relatarem a percepção de haver muitos estudantes em mobilidade, especialmente de nacionalidade brasileira, foi apontado um estranhamento entre a cultura brasileira e portuguesa pelo formalismo acadêmico. Essa situação inicial de estranhamento acaba por ser estendida para além dos muros acadêmicos quando se percebe que há uma dificuldade em assimilar os códigos e ritos do país acolhedor. A percepção de diferenças culturais aparece nos discursos dos inquiridos com um sentido positivo e também negativo. Às vezes essa duplicidade de sentidos pode surgir no discurso de uma mesma pessoa, no caso dos inquiridos surge como um indicador de adaptação à condição de imigrante: Tive um pouco de dificuldade no início para entender os “códigos e ritos” da universidade, mas nada que tenha me causado grandes transtornos. (…) Notei que há bastante estudante de mobilidade, especialmente os brasileiros. Os alunos portugueses costumam dizer que os professores são mais “condescendentes” conosco no que se refere a notas. Não senti essa condescendência na correção em si das provas e muito menos na atribuição de notas. Na verdade, a flexibilidade existe na possibilidade de anteciparmos as datas para os exames”. (13B, 47 anos de idade, F) Percebe-se que na fala acima as diferenças culturais trazem um estranhamento e até mesmo uma dificuldade de adaptação para a estudante brasileira de 47 anos de idade, mas que não lhe é tão agressivo. A inquirida acaba por indicar, também, uma adaptação às práticas culturais em Coimbra ao apontar a sua dificuldade no início de sua permanência. Essas diferenças e dificuldades foram-lhe apresentadas como uma distinção pela origem, em que separa-se no primeiro instante, assim como foi feito no diálogo O Sofista com a personagem Estrangeiro. O seu discurso aponta, também, para um tratamento diferenciado entre acadêmicos e estudantes brasileiros, relatado entre estudantes portugueses. Entretanto, a estudante brasileira (13B, 47 anos de idade) tem clareza quanto ao tratamento acadêmico e o que possa ser referido como tratamento diferenciado quando aponta para a possibilidade de antecipação dos exames, visto que entre os estudantes brasileiros alguns retornam ao país de origem e, por isso, têm viagens que precisam ser organizadas de acordo com a viabilidade das II Congresso Internacional Sobre Culturas 591 passagens e do cronograma acadêmico. Novamente as diferentes práticas culturais entre os países lusófonos surgem na fala da estudante brasileira, 48 anos de idade, associado ao sistema hierárquico e à formalidade: “Sou estudante de doutoramento em Estudos Contemporâneos. Como tal, sinto algumas dificuldades, as quais atribuo às diferenças culturais entre Portugal e Brasil. Por exemplo, acho o sistema hierárquico muito forte e marcante.” (2B, 48 anos de idade, F) Entretanto, volta-se a fazer referência às diferenças entre as práticas culturais, mas agora com uma conotação positiva e associada às experiências com estudantes portugueses e com estudantes de outras nacionalidades: A experiência de viver como imigrante estudante em Portugal tem me enriquecido como profissional e também como ser humano uma vez que tenho de conviver com pessoas de culturas diversas, além evidentemente dos próprios portugueses.” (10B, 41 anos de idade, F) A brasileira 10B, 41 anos de idade, F transmutou-se aos poucos pelo conviveis com pessoas de diversas culturas que lhe trouxe novas práticas culturais e formas de reflexão. Essa transmutação só pode ocorrer ao longo do tempo e na condição de imigrante, portanto tanto o movimento quanto o repouso surgem pela experiência de um Ser Outro (brasileiro) que passa a compartilhar de práticas culturais em comum com o Ser (português). CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar das semelhanças entre as duas culturas e da troca pelos media232, a percentagem de imigrantes brasileiros na cidade representa 1.2%, enquanto a percentagem de imigrantes provenientes de países lusófonos representa 9% na Universidade de Coimbra. A transmutação resultante da busca pela verdade, assim como faz o filósofo, pode ser percebida na capacidade de adaptação do imigrante ao país de acolhimento. O imigrante é um Ser em constante relação com o movimento e o repouso. O movimento coloca-o em questionamento e em relação com o outro e, por concomitância, consigo 232 Os meios televisivos de Portugal apresentam diversas telenovelas brasileiras. II Congresso Internacional Sobre Culturas 592 mesmo. A transmutação do brasileiro no Ser Outro ou no Não-Ser virá a partir desses questionamentos impulsionados pelo convívio com a nação anfitriã e pela própria experiência de adaptação e história de vida do brasileiro imigrante. Por sua vez, o repouso apresenta-se quando, a partir do momento em que as transmutações adquirem uma imagem. Surgem as Mesmidades capazes de identificar e representar a si mesmo em semelhanças e distinções desveladas à luz das transmutações pela Alteridade. Portanto, assim como o filósofo, o imigrante brasileiro é um Ser em busca pela verdade –responder a pergunta “quem sou eu?”. O Não-Ser ou o Ser Outro irá distinguir e diferenciar-se para aos poucos unificar-se pela semelhança. REFERÊNCIAS AVILLEZ, R. A Estudante Brasileira em Portugal – auto-identidade e repercussão nos Media On-line. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2015. Disponível em: http://hdl.handle.net/10316/29723 . Acessado em Outubro, 2016. GIDDENS, A. Sociologia. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. MARQUES, M.P. Platão, Pensador da Diferença. Ed. Humanitas e Ed. UFMG., 2006. PLATON. Le Sophiste. Trad. Nestor Cordero. Ed. GF Flammarion, 1993. PLATÃO. O Sofista. Trad. Carlos Alberto Nunes. Ed. UFPA, Belém, 2011. SCHAFER, C. (org.). Léxico de Platão – conceitos fundamentais de Platão e da tradição platônica. Trad. Milton Camargo Mota. Edições Loyola, 2012. II Congresso Internacional Sobre Culturas 593 TERNO DE REIS: ENTRE A TRADIÇÃO E A ATUALIZAÇÃO DA IDENTIDADE NA COMUNIDADE QUILOMBOLA NOVA ESPERANÇA, WENCESLAU GUIMARÃES, ESTADO DA BAHIA Cledineia Carvalho Santos233 RESUMO Este artigo pretende através da perspectiva da etnicidade e dos estudos culturais, construir uma abordagem sobre O Terno de Reis ou Folia de Reis na comunidade de Nova Esperança em Wenceslau Guimarães Bahia. Nesse contexto, torna-se pertinente observar que o Terno de Reis, comemora o nascimento no menino Jesus, portanto surge de uma narrativa Bíblica, que é contado e cantado através da oralidade, de narrativas que passam de geração para geração, afirmando traços da identidade coletiva de um povo, bem como traços da resistência Quilombola. Nesse sentido, torna-se pertinente pesarmos a cultura, com algo dinâmico, vivo e que ultrapassa o tempo e o espaço, se re(significando) avivando a memória do povo. Os resultados parciais evidenciam que a comunidade visitada tem buscado manter viva sua história a partir das manifestações culturais, sendo o Terno de Reis a sua maior representatividade. A pesquisa será subsidiada pelos aportes teóricos que trata das seguintes categorias: quilombo (ARRUTI, 2008), Identidade (HALL 2000; 2014) e Cultura (WAGNER, 2010). Por questão ética os nomes dos depoentes serão preservados, os mesmos serão Identificados como D1, D2, sendo D= Depoente. Palavras-chave: Quilombo. Terno de Reis. Cultura. Identidade. Nova Esperança. INTRODUÇÃO Como símbolo do amanhecer a festa de Santos Reis comemorada no dia seis de janeiro, data em que O Menino Jesus se manifestou aos gentios e quando foi revelada ao mundo a vinda do Messias, o Terno de Reis faz parte da herança cultural do povo brasileiro, trazido pelos colonizadores portugueses. Ela é uma festa popular folclórica, que por meio da tradição e da memória oral, se mantém viva em seus costumes e crenças revelando a identidade cultural de um povo. Faz-se pertinente, no entanto considerar que a escravidão no Brasil foi um evento que marcou a história, de forma negativa, mas deixaram marcas na memória de um povo que a duras penas resistiu a sentença de sofrimento, morte, que, porém se abraçou em coletivos, comunidades de quilombos que resistiram bravamente a todo esse suplício. Nesse contexto o Quilombo tornou-se um local de empoderamento identitário, reavivando as lutas políticas através do processo de resistência, assegurando o direito fundamental de ''Existir'' desses seres humanos que 233 UFBA- Mestranda em Cultura e Sociedade do Programa Multidisciplinar de Pós Graduação; Especialista em Ensino de Língua portuguesa pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia- UESB; Licenciada em Letras pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia- UESB; Licenciada em História pela Universidade do Estado da Bahia- UNEB; Professora da Rede Municipal de Ensino de JaguaquaraBahia.EMAIL: keucarvalho@yahoo.com.br II Congresso Internacional Sobre Culturas 594 foram tão (des)umanizados, pelo desejo de superioridade racial de alguns poucos que tinham o poder sobre o mundo. Atualmente, o reconhecimento às comunidades de remanescente quilombolas, surge como reparação aos danos históricos causados aos povos escravizados e que ainda hoje luta pelo seu reconhecimento indenitário de como estas comunidades se percebem e reivindicam sua cidadania. “(...) existe, pois, uma atualidade dos quilombos deslocados do seu campo de significação original, isto é, de matriz colonial. Quilombo se mescla com conflito direto, com confronto, com emergência de identidade”. (ALMEIDA, 2002, p.17). Sobre o termo “remanescentes quilombolas” o pesquisador Arruti (2006) afirma que há uma “difícil relação de continuidade e descontinuidade com o passado histórico, em que a descendência não parece ser um laço suficiente” (ARRUTI, 2006, p. 121). Nesse contexto, a comunidade de Remanescentes Quilombolas de Nova Esperança em Wenceslau Guimarães234, apresenta-se como símbolo de resistência da cultura e oralidade de um povo que mantém nos seus lábios toda uma sabedoria, toda uma vivência, e todo um amor pela religiosidade que é cantada por crianças, jovem e idosa todos os anos no mês de Janeiro, quando os presépios natalinos são desmontados e a comunidade vai agradecer aos Reis Magos pelos presentes que eles levaram para o menino Jesus, incenso, mirra e ouro, em um “desfile” no qual a Bíblica recebe lugar de destaque. Com isso observa-se a relação íntima entre os rituais católicos e o sincretismo religioso, pois a festa dar continuidade com as visitações de casa em casa e aquela que “aceita” a chegada do terno festeja com bebidas e guloseimas típicas do lugar. O terno de Reis de Nova Esperança surge concomitantemente com a chegada do desbravador do lugar, o Sr. Faustino235 dos Santos que segundo a história contada oralmente pelos moradores mais antigos veio de muito longe, Canudos, trazendo consigo, mulher, filhos e a Santa protetora dos pretos, Nossa Senhora do Rosário236 e que apesar de muito religioso, gostava de festa e o Terno de Reis passou a ser a extensão dos 234 A Comunidade Quilombola Nova Esperança, situada na zona rural do município de Wenceslau Guimarães - BA tem seu surgimento há mais de um século quando o Sr. Faustino dos Santos, refugiado da guerra de Canudos chegou à região juntamente com mulher e filhos e ali fincou moradia, abrindo as matas e a viver da plantação de subsistência. Filho de escravos trouxe consigo os ritos, crenças e mitos africanos junto com os sincretismos religiosos. Após passar por vários lugares e trabalhando em condições ainda de escravos, a chegar à região, viu ali a oportunidade de construir uma nova vida, daí batizou o lugar de Nova Esperança. 235 Negro sobrevivente da Guerra de Canudos que andando de fazenda em fazenda chegou à região por volta de 1896 e desbravou a o lugar e estabeleceu moradia dando início a ocupação da região. 236 Padroeira da Comunidade Quilombola de Nova Esperança. II Congresso Internacional Sobre Culturas 595 ritos religiosos no intuito de entreter os foliões por mais tempo na festa até o raiar do dia e que permanece até os dias atuais. Frente ao exposto é possível dizer que a identidade não é inerente ao nascimento, ao contrário, é construída ao longo de nossa existência a partir das relações construídas e individualizadas pelas das narrativas do eu e reelaboradas continuamente na contemporaneidade no qual o sujeito vai tecendo sentidos em perspectivas híbridas nas comunidades que vivem. Para Hall (2011), “a identidade pode ser construída precisamente com aquilo que falta por meio das diferenças e não fora dela”, por isso, a identidade torna-se uma “celebração móvel” (HALL, 2006, p. 13), formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou queremos representar a nós, o outro e o lugar a partir modelos culturais que nos rodeiam. A identidade é, portanto, um processo interminável de interações entre pessoas resultada em fronteiras e proximidades em um território cultural, ou seja, construímos identidades em interação com o outro – em contato com a família, a comunidade, a cultura, em espaços diversos – de maneira que adquirimos informações que resultam em subjetividades – como nos fala Wagner (2010, p. 211), o homem “é um mediador de coisas, construtor e capaz de transformar-se nas coisas em seu entorno, de integrá-las ao seu conhecimento, ação e ser”. E sendo o Terno de Reis a sua maior representatividade cultural passada de geração a geração, podemos esperar como resultados preliminares de que esta cultura permanece viva, mesmo não tendo a mesma intensidade de antes, dada a migração de parte dos jovens da comunidade para os centros urbanos a procura de trabalho, e que em grande parte, não retornam para suas respectivas comunidades, para que possam dar continuidade as tradições que compõem a identidade e a cultura destes povos. O autor enfatiza as mudanças que vem ocorrendo com as noções de sujeito e identidade. Em perspectiva antropológica a cultura nos estudos de Wagner se dá na compreensão do modo pelo qual os homens criam a realidade em que vivem, e do como a realidade ela mesma pode criar os homens que através dela se fazem existir que “em certo sentido, a invenção não é absolutamente um processo inventivo, mas um processo de obviação”. ( WAGNER, 2010 240). Supomos, portanto que o Terno de reis na Comunidade em estudo é uma invenção da invenção visto que o seu existir tem uma lógica de posicionamento político para a manunteção da identidade local. II Congresso Internacional Sobre Culturas 596 PERCURSO METODOLÓGICO Por ser de natureza interpretativa, coloca-se como um trabalho qualitativo e a metodologia empregada foi a História Oral por meio de entrevistas com dois integrantes237 da Comunidade Quilombola de Nova Esperança que compõem o grupo do Terno de Reis a fim de compreender seu entendimento sobre a importância da manutenção do Terno de Reis para a afirmação da identidade do quilombo pois a história oral tem um diferencial, vez que o narrador assume as suas escolhas, os esquecimentos, os silêncios. Nesse tipo de pesquisa o investigador valoriza a narrativa e prioriza a fala do narrador para que este faça as associações dos assuntos à medida que sua memória é ativada. Para Meihy (1998) a “História oral é um conjunto de procedimentos que se iniciam com a elaboração de um projeto e continuam com a definição de um grupo de pessoas (ou colônia) a serem entrevistadas, com o planejamento da condução das gravações, com a transcrição, com a conferência do depoimento (...)”. Analisamos algumas fotografias, a fim de observar as indumentárias e os sentidos que foram dados porque acreditamos que a imagem pode fortemente nos auxiliar a conhecer as representações sociais por permitir ir além de da expressão verbal. Pretende-se ainda um estudo historiográfico da vinda do Terno de Reis enquanto cultura originalmente portuguesa, mas que se tornou tradição no Brasil. O TERNO DE REIS: DE PORTUGAL A UMA TRADIÇÃO NO BRASIL A festa de Reis, enquanto festa popular apresenta-se como forma de resistências a manunteção da cultura e da identidade de um povo. Sobre estes festejos espalhados e reinventados em tantos lugares no Brasil, estudos historiográficos apontam que o “Terno de Reis” ou “Folia de Reis”, tem marcador cultural tradicionalmente católica e chegou ao Brasil ainda no período da colonização portuguesa. Em seus estudos Pergo238 afirma: a tradição da “Folia de Reis” teria chegado ao Brasil por intermédio dos portugueses no período da colonização, uma vez que, essa manifestação cultural era realizada por toda a Península Ibérica sendo comum a doação e recebimento de presentes a partir da entoação de cantos e danças nas residências. Nessa linha de argumentação, a Folia 237 Por questão ética o nome dos depoentes será preservado. Os mesmos serão Identificados como D1, D2, D3 e D4, sendo D= Depoente. 238 No artigo da autora não aparece o ano da publicação. Disponível em: http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf/st1/Pergo,%20Vera%20Lucia.pdf II Congresso Internacional Sobre Culturas 597 de Reis teria surgido no Brasil no século XVI, por volta do ano de 1534, por meio dos Jesuítas, como crença divina para catequizar os índios e posteriormente os negros escravos. (Pergo. p. 1) Aqui no Brasil, os festejos de Reis acontecem na visitação às casas pelos reiseiros que chegam tocando instrumentos de percussão e muitas músicas do Gênero “cantigas” de fácil assimilação como esta cantada nos festejos de Nova Esperança quando pede permissão para abrir a casa: Ô de casa, ô de fora Maria vai vê quem é São os cantador de reis Quem mandou foi São José (bis). A exemplo desta cantiga, outras cantorias vão surgindo durante a folia que repetida infinita vezes forma um coro ao som dos pandeiros e palmas. O fato é que o Terno de Reis ao chegar no Brasil ganhou força e se constituem um tradição em vários lugares do país, sobretudo nas pequenas cidades e nos interiores destas, como é o caso do local aqui apresentado. De forma sintética, o Terno de Reis se configura como mais uma das representações das festas populares inerentes aos grupos tradicionais, especialmente, das comunidades negras onde esses festejos tomaram também uma forma de resistência de seus sincretismos. Destarte, as festas aos Reis Magos representam uma religiosidade não institucionalizada vez que cada lugar agrega elementos culturais característicos e identitariamente marcado e no caso do Brasil esta festa é a junção do catolicismo e dos ritos das religiões de matrizes africanas, logo nas comunidades de remanescentes quilombolas ela vem se afirmando como bem imaterial para as políticas afirmativas das identidades locais. O TERNO DE REIS EM NOVA ESPERANÇA O “Terno de Reis” é uma manifestação cultural religiosa muito expressiva para a Comunidade de remanescentes Quilombolas de Nova Esperança no interior do município de Wenceslau Guimarães Bahia. O evento é parte integrante da constituição da histórica do lugar e tem grande valor religioso. O mesmo acontece no dia 6 de janeiro, período em que “levanta” os presépios armados durante o Natal. A festa tem um misto do sagrado e do profano. No campo do sagrado está a festa na igreja local que celebra a festa da visitação do Três reis Magos ao menino Jesus. No decorrer da celebração há uma II Congresso Internacional Sobre Culturas 598 representação do episódio Bíblico citado por Mateus 2: 1,2-11: 1-E, tendo nascido Jesus em Belém de Judéia, no tempo do rei Herodes, eis que uns magos vieram do oriente a Jerusalém, 2-Dizendo: Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? porque vimos a sua estrela no oriente, e viemos a adorá-lo. 11-E, entrando na casa, acharam o menino com Maria sua mãe e, prostrando-se, o adoraram; e abrindo os seus tesouros, ofertaram-lhe dádivas: ouro, incenso e mirra. (Mateus 2:1-11) O fato é que o relato bíblico recebe outros elementos próprios do lugar como a substituição dos presentes que ao invés de Ouro, incenso e mirra oferece pratos e riquezas próprias e a associação dos Três Magos com a Trindade. O profano acontece logo após o ato na igreja quando os integrantes do Terno saem em visitação com suas indumentárias e tocando instrumentos artesanais, como tambores, pandeiros e sanfonas, que seguido por todos vão até as casas com o Presépio onde pedem licença para entrar. O dono da casa permanece com as portas da casa fechada só abrindo após os sambadores239 cantarem entre duas e três cantigas. Quando a casa abre as portas acontece a representação da alegria com muitas comidas e bebidas típicas240 seguida de muitos sambas. É possível perceber esta mistura no depoimento de D1: O terno de reis prá nós é uma apresentação da religião herdada de nosso avô. Todo ano depois das festa ... a missa , sempre terminava com o terno de reis. Hoje os “jove” não quer participar. Diz ser coisa de velho. Eu gosto muito. Gosto de festa. Sempre gostei de dançar. To nessa idade e todo ano to aqui. Hoje ficou uma coisa importante para o lugar. Depois que aqui virou quilombola. ( D1, Sexo masculino, 86 anos) Nota-se na fala do depoente sambador o sentimento de perda de entusiasmo dos jovens para dar seguimento a cultura herdada de seus ancestrais. Esta preocupação tem certa razão de ser posto que são poucos os jovens que mostram interesse em pegar os instrumentos ou “puxar” um samba; outro possível fator é a saída destes para a cidade grande em busca de melhores condições de trabalho e educação. Dando sequência aos festejos, sambadores e seguidores só saem da casa quando o proprietário puxa o “samba de despedida” sendo este a seguir o mais cantado: 239 Assim são chamados os integrantes do terno. Canjicas, bolos de folha de bananeira, licores e vinhos com frutas do lugar como o cacau, a laranja, o jenipapo, etc. 240 II Congresso Internacional Sobre Culturas 599 Nosso Terno se despede O Santo Reis já vai embora Fica Deus na sua casa Vamos com Nossa Senhora (...) Vale ressaltar que a composição dos sambadores é formada por parentes, amigos, geralmente pelas pessoas mais velhas, mas não impede ninguém que queira participar de integrar-se ao grupo. As indumentárias idealizam a visão do sagrado com a bandeira que representa a Trindade e atualmente outro estandarte foi incluso no conjunto, a bandeira do “Quilombo” o que representa a afirmação da identidade e que Wagner ( 2010) vai chamar de Cultura inventiva ao argumentar : ( A cultura )...opera através de nossos formulários, cria em nossos termos, pede emprestado nossas palavras e conceitos para seus significados e nos recria através dos nossos esforços. (...) Se a nossa cultura é criativo, então as "culturas" estudamos, como exemplos desse fenômeno dos outros, também deve ser. Para cada vez que fazemos os outros parte de uma "realidade" que só nós inventamos, negando a sua criatividade. (WAGNER 2010, p. 16 ). As roupas também têm significados no qual cada cor tem uma representatividade seja no campo do sagrado ou da cultura local. As roupas, as comidas colaboram para a afirmação da identidade quilombola que reproduzem acrescendo significados de acordo o que desejam que o outro veja e saiba da comunidade no intuito de se manter frente às novas perspectivas de políticas culturais da contemporaneidade o que pode ser evidenciado na falada do D2 ( Sexo masculino, 68 anos) “Olha, eu acho que aos poucos, depois que aqui foi conhecido como comunidade quilombola, o terno de reis reviveu. Faz parte da nossa cultura né? A escola já colocou como atividade da escola. Na semana da consciência negra tem apresentação mirim. Eu mesmo acho isso importante”. II Congresso Internacional Sobre Culturas 600 Crianças representando o Terno de Reis na Escola Quilombola Nova esperança Após ter sido reconhecido como local de quilombos, o terno de reis tomou uma dimensão mais consciente e, portanto é manipulável de acordo o querem dizer e visibilizar sobre o lugar, ainda em Wagner: A produtividade ou criatividade de nossa cultura é definida pela aplicação, manipulação, reatualização ou extensão dessas técnicas e descobertas. Qualquer tipo de trabalho, seja ele inovador ou simplesmente "produtivo", como se diz, adquire sentido em relação a essa soma cultural, que constitui seu contexto de significação.(WAGNER, 2010, p.56) Vestimentas do Terno de Reis em uma apresentação. Fotografia: Acervo da comunidade, O terno se apresentando na casa de um morador. Presépio instalado no centro da comunidade. RESULTADOS Ainda segundo Wagner ( 2010, p. 57) a “ 'cultura' no sentido mais restrito consiste em um precedente histórico e normativo para a cultura como um todo: ela II Congresso Internacional Sobre Culturas 601 encarna um ideal de refinamento humano" . Diante da assertiva, a pesquisa em torno do Terno de Reis de Nova Esperança no momento são inconclusivas, mas já é possível dizer que o folguedo contribui no processo de construção identitária e influenciam para a manutenção cultural da comunidade. No decorrer da pesquisa, os membros externaram a satisfação de fazer parte do grupo e são conscientes da importância do evento para a afirmação da história do lugar e ao mesmo tempo demonstram preocupação com a baixa participação dos jovens. É preciso e será feito um inventário com registros do Terno de Reis para ser encaminhado ao Poder público para que seja reconhecido formalmente como patrimônio cultural e imaterial da comunidade no qual será enfatizado o processo de autoafirmação dos membros da comunidade quilombola como os protagonistas de sua identidade e a importância da manunteção da cultura que é sua de fato e direito para mantê-la viva enquanto tradição local. REFERENCIAL TEÓRICO ALMEIDA, Almeida W. B. Os quilombos e as Novas etnias. In: Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Eliane Catarino O’Dwyer (org). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002. ARRUTI, J.M. Mocambo: Antropologia e História do processo de formação de quilombola. Bauru: Edusc, 2006). BÍBLIA ONLINE - Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/acf/mt/2, Acesso em 27 de Outubro de 2016. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. _____, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. MEIHY, J.C.S.B. Manual de história oral. 2. ed. São Paulo: Loyola, 1998. PERGO, Vera Lucia. Os rituais na folia de reis: uma das festas populares brasileiras.Artigo disponível em: http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf/st1/Pergo,%20Vera%20Lucia.pdf. Acesso em 28 de Outubro de 2016. WAGNER, Roy. A invenção da cultura. Trad. Marcela Coelho de Souza e Alexandre Morales. São Paulo: Cosac Naify, 2010. II Congresso Internacional Sobre Culturas 602 O DESIGN DE MODA E O ARTESANATO NO ÂMBITO DAS INDÚSTRIAS CULTURAIS E DA ECONOMIA CRIATIVA NO BRASIL Ana RIta Valverde Peroba241 RESUMO O corrente artigo aborda o conceito de Economia Criativa (EC), no recorte brasileiro em articulação com a Cultura, com as suas respectivas estruturas organizacionais, governamentais e legais. A compreensão da interferência destas estruturas na relação artesão/designer/mercado, no processo criativo dos artesãos que trabalham com produtos voltados para a moda foi o foco do trabalho. Investigou-se até que ponto a própria lógica do mercado capitalista contemporâneo, da qual se origina o conceito de EC, e suas políticas públicas, contribuem para a sustentabilidade de comunidades artesãs. Palavras-chave: Artesanato. Cultura. Design de Moda. Economia Criativa. INTRODUÇÃO O projeto de pesquisa que eu origem a este artigo investiga as dinâmicas sócioculturais que envolvem as relações de trabalho, poder, mercado e criação, entre designers, artesãos, governo e o mercado da indústria da moda brasileira. Analisa e discute estas relações e os mecanismos criativos e produtivos de artífices que trabalham com designers assim como suas metodologias, dentro do contexto capitalista. Deste modo, a pesquisa investiga as interconexões entre os campos do Design, da cultura, do artesanato, da moda, das ciências sociais, da economia e da geopolítica. O método utilizado foi histórico-analítico. E avaliou criticamente a produção da literatura sobre a problemática sociocultural, econômica e política de comunidades ou grupos de artesãos do nordeste do Brasil que desenvolvem processos criativoprodutivos nos quais o designer figura como fio condutor entre estes e o mercado globalizado da moda. O Procedimento prático utilizado foi receptivo, referente à percepção e valorização estética e crítica de um objeto, atividade ou processo. Utilizou-se de estudo de caso de grupo artesão da praia da Penha na Paraíba, em projeto de 241 Mestra em Design pela Universidade Anhembi Morumbi (2008) doutoranda desde 2014. e.mail: ana.peroba@gmail.com II Congresso Internacional Sobre Culturas 603 desenvolvimento de coleções de produtos de moda com a tutela do designer Ronaldo Fraga [1]. Apesar do notório desenvolvimento das atividades artesanais na história da humanidade, comunidades artesãs bem como seus conhecimentos de técnicas e matérias se perderam devido a diversos fatores da realidade brasileira que pressionaram por décadas a desvalorização do fazer artesanal. Contemporaneamente vislumbra-se uma revalorização do fazer, das habilidades manuais e suas aplicações principalmente daqueles que podem ser voltados para o mercado através do sistema da moda. Além disto, a afirmação da diversidade cultural e a valorização de seus intangíveis como commodities trouxeram, na última década do século passado, o redirecionamento de políticas públicas em diversos continentes. No Brasil, vários fatores contribuem para um movimento de formação de trabalhadores autônomos e empreendimentos individuais (questões sociais, diferenças regionais, direcionamentos políticos). O que impulsiona e ativa comunidades a re-valorizarem seus saberes e fazeres tradicionais, trabalhando este conhecimento para inserir novos produtos com valor cultural e ambiental além de econômica e ambientalmente sustentável no mercado globalizado. O DESIGN DE MODA O século XIX é considerado o. Século da moda por excelência. Os anos 1800 concentraram a invenção da máquina de costura, seus aprimoramentos, o crescimento da produção de têxteis que se tornou a base para a revolução da industrialização na Inglaterra. A partir disto, as lojas de comercialização de artigos prontos, jornais e revistas especializados aliam-se a cada vez maior aceleração da produção o que permitiu a difusão do consumo de artigos do vestuário e a criação do denominado “Sistema da Moda”[2]. A alta-costura e o prêt-à-porter [3] funcionavam na perspectiva da produção, difusão e consumo da moda. Este último, em especial, utilizava a pesquisa regular das tendências e sua disseminação a cada estação como forma de controlar o mercado com informações específicas. Esta engrenagem foi replicada através do mundo, e no século XX com as tecnologias digitais e os sistemas online alcançou uma conexão internacional de grandes conglomerados de produtos e serviços. II Congresso Internacional Sobre Culturas 604 A moda contemporânea apresenta uma grande diversidade nos seus diversos níveis socioeconômicos e nichos de mercado. Por isso atualmente a moda viveria de proposições e não mais de imposições de estilos, como ocorria no passado com o domínio da alta-costura europeia. O estilista Ronaldo Fraga, explica que poderíamos trocar a expressão a “ultima tendência” e o “o que está usando” por “o que estamos pensando”. Pois a forma de vestir roupas e acessórios deixou de ser um código determinado de comportamento social (“relação com condições sociais, níveis de vida e papéis” [4]) e passa a ser expressão própria, de cada indivíduo. Neste mercado, as indústrias que trabalham com produtos de moda sofrem com a velocidade de acesso às informações e tendências, na mesma medida que se utiliza dela. As imagens dos produtos tornam-se valiosas para o mercado paralelo dos produtos piratas. Pois a rápida circulação facilita a produção de cópias e a ocorrência da falsificação: o que por um lado enfraquece o valor dos produtos e coloca em dúvida a sua autenticidade. Por outro, o sistema paralelo garante o desejo de aquisição e acaba impulsionando o consumo bem como a inovação constante dos produtos de moda. Então as cópias passam a ter o papel de difundir a informação de moda e ajudar na criação de novas tendências. Os desafios enfrentados neste início de século XXI são múltiplos: a revolução tecnológica, a questão ecológica, a concorrência mundial cada vez mais acirrada etc. Neste cenário, as empresas precisam reinventar-se para continuarem competitivas, no jogo capitalista. Não basta apenas lançar novos produtos, mas estes produtos e serviços precisam dar conta das questões sociais e econômicas impostas pelas novas dinâmicas do panorama mundial. O design se torna peça-chave neste quadro, pois atua não só na implementação das inovações (ergonômicas, tecnológicas, estéticas, de uso etc.) quando projeta os artefatos. E o escopo de seu trabalho não está restrito às questões funcionais ou estéticas, na atualidade, o design projeta principalmente com referência às problemáticas sociais. O direcionamento do trabalho do designer está alinhado à economia, à sociedade ao meio ambiente e possibilitando a instauração de novas dinâmicas sociais. (FRANÇA, 2015) Concordando com o que afirma Rey (2013,): “a inovação não-tecnológica proposta pelos designers é uma das respostas às problemáticas [contemporâneas]; de fato o designer não desenha apenas objetos, imagina novos modos de se viver, novos usos.” (tradução nossa) Assim, o design extrapola as questões meramente estéticas e carrega o potencial de movimentar a sociedade e a economia. II Congresso Internacional Sobre Culturas 605 Desta forma, percebe-se que a noção de design contempla o desenvolvimento de soluções para atender a demandas objetivas, necessidades de usuários e o design de moda se desdobra para atender além dessas as questões estéticas e subjetivas. Abordagens que de certa maneira, também estão contempladas no escopo do artesanato. Os produtos pertencentes ao universo da moda tem uma qualificação e são valorizados de forma diferenciada no mercado. As empresas e suas marcas reconhecidas, bem como os designers, criadores, estilistas renomados imprimem quase que automaticamente este diferencial ao que é produzido sobre sua tutela. Do mesmo modo, estes objetos se distinguem por seus produtores e/ou por seus atributos de tempo, espaço e referencial cultural. O designer de moda participa de um processo de compilação de informações que são pilares na construção dos produtos (cor, forma textura visual, textura tátil, material, etc.) e os combina num arranjo original, ou inovador com uma temática, que em geral é hibridizada. Permitindo assim, as mudanças periódicas dos objetos investidos do caráter de moda. (RAINHO, 2010; CHRISTO e SABRÁ, 2014) Assim, a inovação implementada a cada temporada nos produtos e esta necessidade de apresentar um caráter original regularmente é o que caracteriza a moda. Como afirma Borges (2012) “a inovação industrial [perseguida pelo design de moda] surge a partir e em consequência da sabedoria artesanal” Esta percepção tem crescido de forma contínua desde o final dos anos 1970 na Europa principalmente. E se intensificou na passagem do século XX para o XXI. O Brasil por seu processo de industrialização tardio foi alcançado numa aglutinação de forças políticas, econômicas e sociais, que determinaram diversas ações e projetos pelo país que trabalham no sentido de aproximar o design de moda e o artesanato. O ARTESANATO O objeto artesanal, ao contrário dos objetos industriais, pelos quais as relações são funcionais, diárias, de uso, para além disto, propiciam também uma relação carregada de uma certa satisfação interior, exerce uma atração, tem o apelo do seu conteúdo simbólico. Ele representa costumes da comunidade, localidade, herança familiar, tradições e em muitos casos, carrega ainda o argumento ecológico. Portanto, esses objetos apresentam-se com múltiplos sentidos. (BARTHES, RAINHO, 2010) II Congresso Internacional Sobre Culturas 606 Cada tipo de tradição artesanal carrega consigo a memória do lugar onde nasceu. A conexão entre a disponibilidade da matéria abundante no meio ambiente e o instinto de utilizá-la para solucionar questões cotidianas, acaba por criar uma fotografia daquele ambiente no tempo. E estes objetos se tornam a memória dos aspectos nativos do espaço onde foram desenvolvidos. Para Santos, isto “[…] os transforma em fetiches, carregados de um sentido de nostalgia.” (SANTOS, 2002, p. 11) Ao se reconhecer toda esta carga contida nos objetos artesanais, percebe-se que o artesanato tem o potencial de agregar inovações de baixa tecnologia, ou mesmo não tecnológicas aos produtos de moda, tornando-se uma das vias para equacionar a questão da inovação para as indústrias de confecção na contemporaneidade. O apelo artesanal modificaria não a natureza material dos objetos, mas a natureza social do objeto, e agregaria a esta questão a da responsabilidade ambiental. (BOURDIEU) Como afirma Rainho (2010, p.159) o apelo estaria na “raridade do produtor” ao invés de na “raridade do produto.” Ou seja, um objeto com apelo artesanal é investido de uma aura que carrega valores sociais, ambientais, exóticos, se tornando míticos através dos sentidos a eles empregados. Esse jogo está de acordo com o mercado, serve a ele, e não deixa de servir aos artesãos, tanto na questão de recolocação do status social das artesanias quanto na valorização econômica do seu fazer. Por outro lado o público que adquire estes objetos e o usa, carrega um valor de transcende a moda e declara um estilo de vida, uma série de valores e crenças que são positivas: o respeito ao meio ambiente, a solidariedade com as comunidades, até certo grau de intelectualidade por possuir e utilizar um objeto incomum, feito pelas mãos, investido de uma “perfeição do imperfeito”, que só esse modo de produção faculta. Como afirma o antropólogo Ricardo Lima (MAURÍCIO, 2010) o “Artesanato tem um caráter muito grande de símbolo, de significado – significado para quem faz e que deve ter para quem consome [...] porque é isso que dá valor a esse objeto artesanal de cunho cultural que a gente tem no Brasil.” Esta característica cultural quando se torna um diferencial ganha o status de rótulo, como afirma Senett (2009, p. 81) “A originalidade também é um rótulo social, e os originais estabelecem laços especiais com as outras pessoas.” Ou seja, produzem um vínculo entre o artesão e a peça, entre a peça e a cultura e entre o comprador e o objeto, o que para o mercado, agrega valor intangível aos produtos. Segundo afirma Santos (2002, p. 10) os objetos artesanais II Congresso Internacional Sobre Culturas 607 produzidos no Brasil, carregam com eles um valor de expressão da identidade cultural do povo brasileiro e suas tradições, “[…] constituindo-se assim, em uma propriedade cultural coletiva.” É a reunião deste valor cultural dos objetos artesanais, com os interesses do mercado e por consequência dos governos, que a associação entre o design de moda e o artesanato nacional é cada vez mais promovida e celebrada. O artesão volta a ser reconhecido como produtor da cultura através do seu fazer, não apenas quem se apropria dela. O processo de uso do tempo de uma forma diferenciada da produção em série fabril e a participação em todo o processo produtivo que ativa física e mentalmente (mãos e cabeça) as relações entre ele e o objeto produzido criam uma singularidade. Assim alimentando uma referência íntima e interligada com sua história cotidiana (presente) e o seu passado (memória e tradições). Como afirma Senett (2009, p. 328) “A lentidão do trabalho artesanal também permite o trabalho de reflexão e imaginação – o que não é facultado pela busca de resultados rápidos. Maduro quer dizer longo; o sujeito se apropria de maneira duradoura da habilidade.” Para dar conta da relação artesão/objeto é necessário o tempo que conecta o produtor ao objeto de forma afetiva. E esta conexão gera o empenho em imprimir ao objeto o melhor de si, gerando a qualidade percebida. A produção artesanal contemporânea atende a diversos fluxos: participa do sustento, realiza comunicação e desenvolve a consciência social, o espírito de solidariedade e de cooperação entre os indivíduos de uma comunidade. Além de se tornar via de transformação (física, mental, econômica e social) do sujeito. Como confirma Rey (2013, p. 67) a partir do início do século XXI, o artesanato “[...] começou a ser duplamente valorizado: como patrimônio cultural e como indústria criativa e expressão cultural, o que em consequência dá reconhecimento aos artesãos como portadores da expressão cultural imaterial.” (tradução nossa) Isto ocorreu após as discussões em torno do patrimônio cultural imaterial, disparadas pelas diretrizes estabelecidas por entidades como ONU [5] e UNESCO [6]. Como afirma Paz, A volta ao artesanato é um dos sintomas da grande mudança que está acontecendo com a sensibilidade contemporânea. Estamos presenciando, mais uma expressão de revolta contra a religião abstrata do progresso e contra a visão quantitativa do homem e da natureza. Daí porque a popularidade do artesanato é um sinal de saúde. ( 2006, p.89). II Congresso Internacional Sobre Culturas 608 Percebe-se nesta revalorização a lógica da volta ao passado “[...] para extrair dele a força para o futuro, da mesma maneira que, na analogia de Aloísio [Magalhães], quanto mais para trás fosse a borracha de um estilingue, mais longe a pedra alcançaria.” (BORGES, 2012) Atuando nesta linha, os produtores e criadores de moda brasileiros trouxeram o artesanato com suas técnicas, materiais e tradições para seus processos criativos e produtivos. Este movimento teria a possibilidade de ampliar os referenciais do design de moda nacional exponencialmente. Os defensores desta corrente de trabalho concordam que desta forma a moda brasileira ganha corpo para disputar uma fatia do mercado globalizado. AS INDÚSTRIAS CULTURAIS E A ECONOMIA CRIATIVA NO BRASIL A cultura hoje é compreendida de forma ampla. Ela abrange diversos aspectos, relações, interações do modo de vida das pessoas, não só participando da interpretação do mundo, mas principalmente na formação dele. (ADORNO, 1971) A cultura abarca questões filosóficas, antropológicas e históricas, por isto de certa forma a sua definição tornou-se uma caixa preta. O termo cultura contemporaneamente assumiu um significado intuitivo, empírico. O senso comum, sem preocupações ontológicas ou etimológicas, aceita e emprega o termo cultura como parte de cada pessoa. Uma gama de informações, crenças, experiências que norteiam o comportamento das pessoas na sociedade e perante o mundo. Entendida desta maneira, a cultura não seria apenas um aglomerado de informações, mas aquelas que se relacionam e participam da formação da personalidade do indivíduo. (REALE, 1996, p. 2) A cultura ganha sentido na relação entre os objetos e os grupos sociais e nas manifestações destas relações, entre os produtos da cultura e a comunidade que os consome. Para Teixeira Coelho (1993), o gatilho da sociedade de consumo que propiciou a instauração das indústrias culturais, foi forjado na Revolução Industrial do século XVIII. As condições necessárias se fizeram presentes a partir da economia baseada no consumo de bens. Contemporaneamente, a cultura vem sendo utilizada cada vez mais como escudo aos conflitos políticos e econômicos, a partir da instauração da “era da cultura” após a segunda guerra. (WILLIAMS, apud CEVASCO, 2003, p. 11). Cevasco afirma que o que marca esta “era da cultura” é a interpenetração cada vez maior e mais evidente da economia, com a história e as ideologias políticas “[...] quando o poderio II Congresso Internacional Sobre Culturas 609 econômico se entrecruza com a expansão cultural.” (Op. cit., p. 12) As inter-relações entre os fenômenos culturais e socioeconômicos, onde as “revoluções democrática, industrial e cultural” estão imbricadas, como afirmava Williams desde 1961. (Ibidem) As Indústrias culturais referem-se às indústrias que produzem e distribuem bens e serviços culturais. Esses são considerados sob o ponto de vista da sua qualidade, do seu uso ou de finalidade específica, incorporando e/ou transmitindo expressões culturais. (BRASIL, 2006) Graças ao aperfeiçoamento dos meios de comunicação de massa e da informática, a globalização da economia associa-se ao fenômeno da globalização cultural. (TEIXEIRA COELHO, 1997, p. 182) Essa economia ao invés de voltada para fabricação de produtos em massa para gerar mais valor, utiliza a informação como capital e assim, produzir mais valor a partir de bens criativos e inovadores. O processo de globalização apresenta diversos caracteres: econômico, ideológico, político, cultural entre outros. Alguns pesquisadores observam que o processo de globalização não é recente, se desenrola em ciclos desde o final do século XV. O processo implica na recriação das relações por todo o mundo, permeadas pela ideologia neoliberal, as relações econômicas entre os países passam a ser cada vez mais direcionadas por empresas, corporações e conglomerados (multi e transnacionais) e como consequência, as relações financeiras são internacionalizadas com uma interconexão nunca experimentada antes por conta da revolução da informatização. O processo, desta forma, abarca as mais diversas esferas da vida das pessoas, de tanto individual como também coletivamente, alterando as relações entre os indivíduos e o mundo. (CASTELLS, 1999; IANNI, 2002). Para Campos e Canavezes (2007, p. 10) subentende-se que“ [...] acontecimentos, decisões e atividades em determinada região do mundo têm significado e consequências em regiões muito distintas do globo.” Ou seja, outra implicação foi a sensação de diminuição das distâncias, tanto geográficas quanto temporais, na troca e disseminação de informações, imagens, sons e experiências. (SEVCENKO, 2009; ERIKSEN, 2005 apud KOSLINSKI, 2011) No Brasil o processo de globalização acarretou em importantes mudanças: provocou uma reestruturação produtiva a partir de 1990, gerou a mundialização do capital, direcionou a implantação de políticas neoliberais ente outros. As principais consequências para economia do país foram: abertura comercial, endividamento interno e externo, privatizações e desemprego crescente. Para Pochmann (2014) olhando-se para as últimas três décadas, na passagem do século XX para o XXI “[...] o II Congresso Internacional Sobre Culturas 610 quadro de crise do capitalismo globalizado, gerador de maior desemprego, pobreza e desigualdade em termos de renda, riqueza e poder, segue ainda inconcluso [...]” O que o processo legou aos países mais pobres e em desenvolvimento é a instabilidade, o aumento na informalidade que tornou as condições de trabalho nos mais diversos setores e níveis vulneráveis. A instauração destas problemáticas gerou o interesse por alternativas como as implentadas em países como a Inglaterra e França. No mundo, a partir da publicação australiana Creative Nation: commonwealth cultural policy [7] (A Nação Criativa) documento que disparou o movimento de organização das políticas culturais para o globo, o efeito foi praticamente instantâneo. (REIS, 2012; LEITÃO, 2015) As diretrizes do documento foram baseadas no bem-estar comum. E a principal ideia tratada era a de que a cultura gera riqueza, produz saúde e qualidade de vida para as pessoas. O relatório gerado, como consequência, ampliou a definição de cultura com a inclusão das indústrias culturais: cinema, rádio, bibliotecas entre outros. No texto original, destaca-se “Culture adds value, it makes an essential contribution to innovation, marketing and design.” Ou seja, além de participar do capital da comunidade, ela poderia tornar-se o diferencial para os produtos industriais. Esta ideia é a que recoloca o artesanato como potência coletiva e faz crescer um movimento de reconhecimento, por parte da máquina pública, da sua da importância para a economia e a sociedade. (SANTOS, 2002) Canclini (1995, p. 80) parece concordar com este direcionamento quando afirma que “A ausência de uma visão global —econômica, social e cultural — é a causa do fracasso das políticas voltadas para o artesanato, que são concebidas apenas como uma modernização técnica.” Acredita-se que no Brasil, este tipo de abordagem já não é mais homogênea. No Brasil o poder público se une a diversos agentes e instituições para estimular transformações na operacionalização da produção artesanal, direcionando esforços para torná-los formais e lucrativos. Nesta linha de trabalho, congregando o artesanato não apenas como bem cultural, mas uma articulação que permite atuar nas questões sociais, econômicas e ainda ser fonte de originalidade para as indústrias temse Valdés et All: II Congresso Internacional Sobre Culturas 611 Dentro das indústrias culturais, o setor de artesanato é um dos mais potentes e sustentáveis, já que permite um desenvolvimento em muitas dimensões: pode fomentar a geração de trabalho e o crescimento econômico, mas revalorizando a cultura ao recuperar os conhecimentos tradicionais em um tempo como o presente no qual é difícil evitar a homogeneização cultural imposta pelos processos de globalização. (VALDÉS et all, 2013, p. 67, tradução nossa) A cultura e a economia por ela movimentada, passam a ser tratadas com um novo conceito o da Economia Criativa. Apesar de existir efetivamente há aproximadamente 25 anos, a EC não possui um único conceito. Genericamente é a economia que opera com bens imateriais. (REIS apud DOUEK, 2011). Vieira (2015) aponta que no plano mundial, a EC é compreendida como um avanço do sistema capitalista “[...] na produção de bens e serviços protegidos pelo copyright.” Leitão (DOUEK, 2013) discorda deste direcionamento para o caso do Brasil, e entende que para o país o conceito ainda está em construção, pois a diversidade das dinâmicas entre bens e serviços culturais exige uma outra via. No Brasil de acordo com o SEBRAE, o conceito adotado alega que a Economia Criativa é um termo criado para nomear modelos de negócio ou gestão que se originam em atividades, produtos ou serviços desenvolvidos a partir do conhecimento, criatividade ou capital intelectual de indivíduos com vistas à geração de trabalho e renda. Ainda numa visão estreita do potencial da Economia da Cultura, mas certamente um ponto inicial para o país iniciar atuações políticas e discutir direcionamentos. O artesanato neste contexto é tratado como patrimônio cultural e “Em tempos de globalização, quando há uma pressão mundial para a homogeinização de padrões, a preservação desse patrimonio é essencial, pois ele mantém os referenciais distintivos e únicos de nossa cultura.” (SANTOS, 2002, p. 10) Agregando a esta linha de pensamento às questões sociais, iniciadas com o alastramento do desemprego no país percebe-se que os esforços empreendidos para costurar a parceria entre o artesanato e a indústria através do design de moda é apontado como ideal. ESTUDO DE CASO DO GRUPO ARTESÃO DA PRAIA DA PENHA NA PARAÍBA II Congresso Internacional Sobre Culturas 612 O Programa João Pessoa Artesã (JPA), programa municipal de artesanato, instituído em 2013, foi desenvolvido pela Secretaria de Trabalho, Produção e Renda da prefeitura Municipal de João Pessoa (PMJP), com o objetivo de resgatar [...] a identidade cultural do artista pessoense, além de contribuir para melhorar a situação econômica e social dos artesãos de João Pessoa e estimular a formação de atividade economicamente sustentável, gerando emprego e renda a partir das artes produzidas por cidadãos criativos e qualificados. (JOÃO PESSOA, 2013) O governo municipal a partir de um projeto sócio-ambiental proposto juntamente com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) e o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB), iniciam projeto para atender os habitantes de duas comunidades existentes no entorno do Centro de Convenções de João Pessoa- PB: Penha e Jacarapé. (FRAGA, 2015, p. 16; SEREIAS, ?) O espaço foi construído às margens da rodovia PB-008, e teve a sua primeira etapa inaugurada em 2012. Após a chegada da rodovia, ocorreu uma imigração de populações empobrecidas, oriundas do centro urbano, em busca de alternativas de sobrevivência. Assim, com a construção de barracas e residências foram se unindo aos poucos pescadores que lá residiam ocupando a área do entorno, onde existe a lagoa do Jacarapé que empresta o nome à praia e à comunidade. (SILVA ET alli, 2003) A outra comunidade contemplada, da praia da Penha, foi estabelecida a partir de 1763 no entorno da capela Nossa Senhora da Penha. O povoamento foi composto basicamente por pescadores e comerciantes locais que após mudanças de propriedade das terras e disputas, acabou sendo divido em três aglomerados urbanos distintos: a faixa Beira Mar, a Praça Oswaldo Pessoa e a Vila dos Pescadores, que se mantém até os dias de hoje. (XAVIER et al. apud SILVA, 2006; SILVA, 2010) As duas comunidades conviviam com a precariedade, nas questões de trabalho, qualificação e emprego. E em parte, esta condição foi estabelecida por processos sociais, políticos e econômicos que as vitimizaram. (MARTINS apud SILVA, 2006; ZIONI, 2006) O poder público imbuído da necessidade de responder às demandas destas populações promove alternativas para geração de emprego e renda, como forma de compensação. Assim, com a proposta de fortalecer o empreendedorismo local, as instituições desenharam um projeto de inclusão social través da capacitação de II Congresso Internacional Sobre Culturas 613 artesãos. Na oportunidade, o designer Ronaldo Fraga estava presente e participou das discussões para a formatação da proposta. No final de 2014, com a coordenação do JPA e financiamento dos parceiros, foi iniciada a primeira ação: consultoria para criação de peças com escamas de peixe e conchas de mariscos oferecida nas duas localidades. (FRAGA, 2015, p. 16; NÓBREGA e LIMA, 2015; SEREIAS, ?; IFPB, SEBRAE e PREFEITURA MUNICIPAL DE JOÃO PESSOA, 2015) A qualificação foi realizada através de curso de Artesanato de Biojóias [8], oferecido numa escola Estadual por três artesãs paraibanas: Fabiana Macêdo, Lia Cajú e Sandra Mori. Uma segunda etapa ocorreu na Estação das Artes em 2015, com oficinas de produção e nivelamento sobre a iconografia da comunidade. Nesta fase, foram introduzidas técnicas de crochet [9] com material diferenciado (fio de cobre). As técnicas aprendidas foram aplicadas na confecção de acessórios de moda: bolsas, brincos, broches, colares, pulseiras e tiaras. (IFPB, 2015; NÓBREGA e LIMA, 2015) Na última etapa do processo, o designer Ronaldo Fraga passou 4 dias com as artesãs desenvolvendo uma coleção com valores agregados. AS “SEREIAS DA PENHA” A coleção de acessórios trabalhada a partir deste primeiro encontro entre o designer de moda e as artesãs se tornaram parte da coleção desfilada pelo estilista em 2015 na São Paulo Fashion Week (SPFW) e batizada de “Fúria das Sereias”. O designer batizou o grupo de artesãs que se formou, com o nome de “Sereias da Penha”, desde então, as sereias nadaram para o mundo. No encontro entre o designer e a comunidade, “[...] entram em jogo modos de ver, de sentir, e de pensar diferentes.” No processo de aproximação e (re)conhecimento o respeito aos participantes como parte central da ação legitima os resultados. Ao final, ambos saem modificados. Os indivíduos participantes da comunidade passam a contar suas estórias através dos objetos de forma integral. Se empoderam delas, e assim podem expandi-las e relacioná-las com o momento presente (tempo e espaço). Trazendo para seus objetos um significado e uma força que ultrapassa as meras questões binárias: local/global, rural/urbano, tradição/inovação. Acaba ocorrendo o que Canclini (2001, apud ZEN, 2013) denomina de hibridação de práticas sociais. O que acontece quando um patrimônio “da criatividade individual e coletiva”, no foco trabalhado, artesanal (saberes e técnicas), é transformado para ser II Congresso Internacional Sobre Culturas 614 reinserido em novas condições de fabricação e mercado. (tradução nossa) Neste processo são geradas novas estruturas sociais e renovadas as práticas artesanais. (CANCLINI, 1995; BORGES, 2011) Os grupos de artesãos se apropriam do seu fazer de um novo modo, passam a ter a condição de re-interpretar as técnicas aprendidas e replicadas por gerações bem como os materiais utilizados. Desta maneira, cria-se a partir de um processo artesanal, um objeto com técnicas e/ou conceitos e metodologias do design, que amplifica o potencial desses objetos. Para Ronaldo Fraga o Projeto ultrapassa a questão de geração de emprego e renda inicial. A força da ação residiu na aculturação do Design, que levou o grupo artesão a se apropriar do processo como agentes da cultura. A tomada de consciência, a elevação da auto-estima, a valorização do trabalho executado é o que pode-se denominar de empoderamento da comunidade artesã. Rosso e Romanini (2014) explicam que a auto-estima de grupos sociais é tratada principalmente nas dimensões psicológica e individual de cada participante. Como explica Senett (2009, p. 30), quando a mão e a cabeça, a técnica e a ciência, o artesanato e a arte, trabalham em conjunto, a mente é ativada, a expressão e o entendimento do artesão são libertados. Neste processo, o designer atua como ponte, auxiliando o desenvolvimento das capacidades e habilidades. Para Paulo Freire, este “[...] é um processo absolutamente necessário para o processo de transformação social.” O desenvolvimento crítico dos artesãos torna-se “[...] fundamental para a transformação radical da sociedade. Sua curiosidade, sua percepção crítica da realidade são fundamentais para a transformação social [...]” e alerta que embora apenas este fator não seja suficiente para a implementação da transformação, é parte essencial do seu mecanismo. (FREIRE & SHOR apud ROSO e ROMANINI, 2014, p. 86). A superação de um estado de vulnerabilidade (precariedade econômica, física, social etc.) promove um avanço nas pessoas e grupos, que é denominado empoderamento. Nesse sentido, ele implica a conquista da liberdade, realizada na passagem de sujeitos passivos, para sujeitos ativos na expansão da paisagem cultural. As mesmas considerações são realizadas por outros projetos que tratam do design e do artesanato no Brasil: “o produto do artesão deve ser visto como materialização de seu complexo patrimônio cultural. Isso significa que toda mudança no objeto implica também uma mudança na pessoa que o fez e, por consequência, no II Congresso Internacional Sobre Culturas 615 contexto ao qual pertence.” (LABORATORIO PIRACEMA DESIGN apud BORGES, 2011, p. 107) O grupo é então batizado por Ronaldo Fraga em “uma homenagem às mãos que criaram” as peças. O trabalho com as escamas de peixe, conchas e mariscos, que antes eram descartados como lixo remete ainda à questão ambiental. Os materiais inorgânicos trabalhados contemplaram ainda: linha de pesca, contas de pérola, fios de cobre e inox, ouro e prata. O respeito à natureza, a reutilização e a revalorização do que até então existia apenas como detrito unindo-se com design a materiais nobres transformaram-se em texturas e formas para as biojóias das Sereias. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ... O Projeto Sereias da Penha demonstra a viabilidade de propostas de interação entre comunidades com alguma tradição artesanal e a ação de instituições que as aproximam do design de moda. Considera-se que em cada grupo social a intervenção e a aproximação devam seguir o seu próprio fluxo, não se constituindo em uma receita, mas sim numa metodologia de abordagem. A extensão territorial e a riqueza de tradições étnicas colocam o Brasil numa posição de destaque em ações que envolvem a denominada Economia Criativa. Pesquisas que aprofundem quais os caminhos e as metodologias a serem trabalhadas são necessárias. Pois entende-se que estas embasarão as políticas públicas que serão instituídas. Notas [1] Designer de Moda brasileiro, graduado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especializado na Parson's School of Design - NY e na Central Saint Martins em Londres. Desfila suas coleções no Brasil desde 1996. [2] Termo utilizado pelo semiologista Roland Barthes, no título de seu livro: Sistema da moda. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1979. [3] Terminologia derivada do inglês ready to wear (pronto para usar) é o sistema de fabricação do vestuário em série, processo industrial com máquinas e equipamentos automatizados. [4] Expressão utilizada por Rainho em seu artigo. [5] Organização das Nações Unidas. [6] Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura. [7] Título do primeiro documento sobre política cultural, lançado pelo governo da Austrália em 30 de outubro de 1994: Creative nation: Commonwealth cultural policy. Disponível em: http://pandora.nla.gov.au/pan/21336/20031011-0000/www.nla.gov.au/creative.nation/ contents.html [8] Jóia construída a partir de matérias-primas coletas da natureza sem danos a ela. [9] Técnica que trabalha com duas agulhas com ponta de gancho para criar tramas e construir superfícies. II Congresso Internacional Sobre Culturas 616 REFERÊNCIAS ADORNO, T. W. A Indústria Cultural. In: COHN, Gabriel (Org.). Comunicação e Indústria. São Paulo: Companhia editor nacional, 1971. Pp. 287-295 Disponível em: http://periodicos.anhembi.br/arquivos/ebooks/102612.pdf 1971. BRASIL. Texto oficial ratificado pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo 485/2006 da 33ª Convenção sobre a proteção e promoção da Diversidade das Expressões Culturais, publicado em Paris, 2005. 2006. Disponível em: http://www.ibermuseus.org/wp-content/uploads/2014/07/convencao-sobre-adiversidade-das-expressoes-culturais-unesco-2005.pdf Acessado em: BORGES, Adelia. Design + Artesanato: O camino Brasileiro. 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II Congresso Internacional Sobre Culturas 618 O PROCESSO CRIATIVO NA PRODUÇÃO DO AUDIOVISUAL INFANTIL PARA A TELEVISÃO NO BRASIL Natacha Stefanini Canesso242 Kátia Morais243 Renata Cerqueira244 RESUMO O artigo discute criatividade na produção do audiovisual infantil para televisão como resultado processual de ações integradas de indivíduos que estabelecem redes e se relacionam com as variáveis do ambiente organizacional. A obra audiovisual é apresentada na perspectiva da economia criativa como resultado de um trabalho coletivo complexo no qual os processos criativos encontram espaço amplo e promissor de experimentação e inovação. O trabalho aproxima duas publicações da área das indústrias criativas (Relatório da Economia Criativa 2013 - UNCTAD; Mapeamento da Indústria Criativa 2014 - FIRJAN) aos debates conceituais de gestão organizacional sobre criatividade e às experiências mercadológicas do processo de produção da obra infantil “Sítio do Picapau Amarelo” com o intuito de sinalizar inputs, outputs e correlações nos processos criativos geradores de inovação e consagração da obra. Palavras-chave: Criatividade. Processos Criativos. Indústrias Criativas. Audiovisual Infantil. A criatividade sempre esteve atrelada à atividade artística e o processo criativo relacionado à intuição e subjetividade de um indivíduo em uma atividade solitária dissociada do trabalho e associada à arte. Entretanto, os estudos das indústrias criativas incorporaram a visão empresarial e mercadológica ao componente criativo que passou a ser gerador de inovação e propriedade intelectual, com consequente valorização de profissionais que vivenciam o processo criativo nas atividades profissionais cotidianas. Dois documentos são utilizados como suporte para debates sobre indústrias criativas no Brasil e apresentam um conceito para criatividade: o Mapeamento da Indústria Criativa da FIRJAN (2014) e o Relatório da Economia Criativa - UNCTAD (2013)245. O primeiro, referência nacional, foi realizado pelo Sistema da Federação das 242 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Facom/UFBA). Docente da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB) - Centro Multidisciplinar de Santa Maria da Vitória. Email: nscanesso5@gmail.com 243 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Facom/UFBA). Docente da Universidade Estadual da Bahia (UNEB). Email: katiamorais01@gmail.com 244 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Facom/UFBA). Bolsista do CNPq. E-mail: renatacbc@gmail.com 245 Creative Economy Report pode ser traduzido como Relatório da Economia Criativa e foi preparado pela Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (United Nations Conference on Trade and Development - UNCTAD) e Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (United II Congresso Internacional Sobre Culturas 619 Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN) em diálogo com o Ministério da Cultura e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O segundo é nossa referência internacional para conceitos, modelos e exemplos. O Mapeamento da FIRJAN atualiza as estatísticas brasileiras no que se refere às indústrias criativas e também acompanha o desenvolvimento do mercado de trabalho criativo. Nesta pesquisa, a criatividade é definida como “capacidade de inovar de forma significativa” (FIRJAN: 2014, p. 10) e é abordada na perspectiva organizacional “baseada nos conceitos mercadológicos de propriedade intelectual, na qual marcas, patentes e direitos autorais fornecem os princípios para transformação da criatividade em produto” (HOWKINS, 2001 apud FIRJAN, 2014). Destaca ainda o conceito de “classe criativa” de Richard Florida (2001) para denominar profissionais que, em seus processos criativos, são capazes de contribuir como desenvolvimento econômico e social. Importante ressaltar que o paradigma da classe criativa entrou em declínio, pois não foi comprovado empiricamente e o próprio autor reconheceu a fragilidade da proposta (UNCTAD, 2013, p.20-21). O Relatório da FIRJAN não apresenta esta questão. A criatividade é considerada uma capacidade de gerar valor aos produtos e serviços e vantagem competitiva aos indivíduos e instituições. O Relatório da Economia Criativa - UNCTAD, por sua vez, define criatividade como “um senso geral e qualidades expressivas que caracterizam serviços e produtos culturais”. A perspectiva teórica do relatório evidencia a relação criatividade e cultura: “criatividade e cultura são processos ou atributos que estão intimamente ligados na imaginação e geração de novas ideias, produtos e maneiras de interpretação do mundo.” O relatório alerta que criatividade nunca foi tão debatida e que não há um consenso sobre sua definição, nem mesmo na psicologia, onde é possível localizar teorias com ênfase no indivíduo, seus processos mentais e comportamentais. Desde as pesquisas em psicologia de Alfred Adler (1927), Joy Paul Guilford (1967) e Hans J. Eysenck (1983) até a criatividade no contexto da economia criativa, a convergência de ideias é de que está diretamente relacionada ao potencial de inovação, como propõem, de maneira simplificada, o Livro da Psicologia (2012), o Relatório de Economia Criativa - UNCTAD (2013) e o Mapeamento da FIRJAN (2014). Outro Nations Development Programme - UNDP) através do Escritório das Nações Unidas para Cooperação Sul-Sul (United Nations Office for South-South Cooperation - UNOSSC) em cooperação com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization - UNESCO), Organização Mundial de Propriedade Intelectual (World Intellectual Property Organization - WIPO) e Centro Internacional de Comércio (International Trade Centre - ITC). II Congresso Internacional Sobre Culturas 620 alinhamento conceitual é que, relacionada à cultura, mas em conjunto com as políticas de desenvolvimento social e à tecnologia, a criatividade é percebida como elemento de engajamento, autoconfiança, perspectivas e alternativas futuras e pode ser estudada em sistemas de produção, distribuição e consumo. Explicita-se, portanto, que a criatividade debatida neste artigo admite fundamentação teórica na psicologia, mas não está associada ao gênio criativo e ao processo individual de criação, e sim à combinação de ideias, repertórios, conhecimento e estímulos que se apropriam, exploram e reconfiguram recursos naturais, científicos e tecnológicos resultando em ações, produtos e serviços diversos, originais e pertinentes. Esta proposta aproxima-se aos estudos da criatividade nas organizações que a admite como um fenômeno individual que pode ser afetado por variáveis a partir da interação entre pessoas e situações (WOODMAN, SAWYER E GRIFFIN´S, 1993) e que pode ser analisada em fases (AMABILE, 1996), etapas (MAINEMELIS, 2001), tipos (UNSWORTH, 2001) ou como um processo espiral em que os indivíduos se revezam entre centro e extremidades, realizando diversas conexões com redes sociais externas (PERRY-SMITH & SHALLEY, 2003) (apud ZHOU; SHALLEY, 2013). AUDIOVISUAL NO CONTEXTO DAS INDÚSTRIAS CRIATIVAS O Mapeamento da FIRJAN propõe às indústrias criativas brasileiras, quatro grandes áreas: consumo, cultura, mídias e tecnologia. A cadeia produtiva é organizada em três categorias: núcleo da indústria criativa, atividades relacionadas e de apoio (FIRJAN, 2014, p.7-9). O audiovisual é categorizado como Indústria Criativa (Núcleo) de Mídias e inclui desenvolvimento de conteúdo, distribuição, programação e transmissão. Já o Relatório da Economia Criativa - UNCTAD apresenta seis diferentes sistemas de classificação, desenvolvidos e adotados por diferentes instituições. Existem os modelos lineares, na mesma lógica da FIRJAN, que agrupam por semelhança os tipos de atividade e existem modelos circulares que se baseiam na relação cultura/criatividade, já explicada, e que têm como ponto central a expressão de valor da ação, produto ou serviço e na conexão entre expressão criativa e seu potencial gerador de propriedade e direito intelectuais. Valores sociais, históricos, simbólicos, II Congresso Internacional Sobre Culturas 621 espirituais e de autenticidade compõem os critérios de organização e classificação das atividades no sistema (UNCTAD, 2013, p.22-24). O modelo circular concêntrico mais difundido é o de David Throsby (2008) no qual o audiovisual é compreendido como cinema e televisão. Mas justamente por estar dividido em duas instâncias possibilita um segundo viés interpretativo: concepção e produção, classificadas como “Filmes” em “outras indústrias criativas centrais”; distribuição, programação e transmissão, classificadas como “Televisão e rádio” em “indústrias culturais mais amplas”. Throsby propõe que artes visuais, performativas, literatura e música se reúnam no centro do sistema como “expressões culturais”; e arquitetura, design, publicidade e moda ocupem as extremidades como “indústrias relacionadas” (UNCTAD, 2013, p.23). Aplicar uma análise acerca de processos criativos no audiovisual a partir de um modelo circular com ênfase em criatividade/cultura, produz um recorte específico sobre a obra sem desconsiderar que fatores relacionados à distribuição, programação e transmissão também consistem em atividades com potencial criativo. Já a categorização da FIRJAN, que não foi desenvolvida a partir de critérios relacionados especificamente à cultura e criatividade, pressupõe que todas as atividades do audiovisual - desenvolvimento de conteúdo, distribuição, programação e transmissão – têm a mesma dimensão na cadeia produtiva. E esta é uma questão a ser investigada em pesquisas futuras, inclusive no sentido de compreender as influências de programadoras e canais nos processos criativos do audiovisual brasileiro. Sobre o cenário nacional do mercado audiovisual, o Mapeamento da FIRJAN destaca o Rio Content Market, Rio Market e Films From Rio como exemplos de projetos que acontecem no Rio de Janeiro e fomentam o desenvolvimento e internacionalização do setor. Estas iniciativas capacitam os empreendedores da cadeia produtiva com debates e workshops e proporcionam o contato direto com os principais realizadores, executivos e produtores do mercado mundial do audiovisual. [...] É o caso do Rio Content Market, maior evento de produção de conteúdo audiovisual da América Latina, e do Rio Market, área de negócios do festival do Rio. Já o projeto Films From Rio prepara os projetos para serem apresentados no mercado mundial, através de consultoria comercial e legal além de levar as produções fluminenses aos principais mercados externos, como o festival de Cannes. (FIRJAN, 2014, p. 35) II Congresso Internacional Sobre Culturas 622 Evidencia-se o esforço para criação de redes, trocas, compartilhamentos e conexões. Cria-se, desta maneira, um ambiente favorável para desenvolvimento de projetos inovadores a partir de culturas organizacionais que dialogam com os indivíduos, estabelecendo um fluxo de informações capaz de melhorar habilidades, proporcionar conhecimento, renovar o sentido e a motivação das atividades profissionais cotidianas (FORD, 1996 apud ZHOU; SHALLEY, 2003). O RioContentMarket possibilita o estudo empírico sobre criatividade, processos criativos do audiovisual e dinâmica de negócios baseados na economia criativa. Trata-se de um evento anual do mercado audiovisual idealizado e realizado pela Brasil Audiovisual Independente (BRAVI) na cidade do Rio de Janeiro. O objetivo da associação é auxiliar no desenvolvimento do mercado audiovisual brasileiro, representar o setor em diversos fóruns de debates, incentivar a produção e novos modelos de negócio; analisar e estimular a utilização da legislação do setor, participando ativamente de suas regulamentações e alterações, além de oferecer capacitação ao produtor e apoiar a atuação do empresário brasileiro no mercado internacional por meio de projetos como o Brazilian TV Producers.” (WEBSITE RioContentMarket) Em 2016 foram realizadas edições do RioContentLab em estados do nordeste – Bahia, Ceará e Pernambuco – para aprimorar projetos, capacitar e preparar os produtores em três gêneros: documentário/factual, ficção e animação. O intuito foi discutir a obra audiovisual, seu potencial de venda e negociação e orientá-la para as Rodadas de Negócios do RioContentMarket2017. Foram realizadas master classes246, oficinas de pitching247 e consultorias individuais. A MasterClass de animação em Salvador foi realizada por Reynaldo Marchesini, diretor da produtora Flamma e consultor, produtor artístico e produtor executivo da série de animação “Sítio do Pica Pau Amarelo”. Em sua apresentação oral, Marchesini dividiu metodologicamente a produção do audiovisual em duas etapas: obra e produção. O que se pretende aqui é comprovar empiricamente os processos criativos do audiovisual como processos produtivos inter-relacionados com participação de agentes em rede em uma obra que gerou inovação e propriedade intelectual. Para isso, estão descritas as informações obtidas na MasterClass de Marchesini acrescidas dos dados constantes na ficha 246 Aula dada por um especialista detentor de notório saber em determinada área do conhecimento. Exposição objetiva, rápida e convincente de um projeto a ser comercializado, em curtíssimo espaço de tempo para defesa/apresentação. 247 II Congresso Internacional Sobre Culturas 623 técnica da obra disponível na Wikipedia e nos artigos correlatos. Durante o relato, que se atém ao recorte da etapa que Marchesini definiu como “obra”, todos os agentes (indivíduos, instituições, ações) com possibilidade de inputs e outputs248 criativos apresentam grifo. Como conclusão, foi elaborado um quadro quantitativo para análise das possibilidades de construção de uma rede criativa indicando a participação de cada agente na concepção/produção e/ou distribuição/programação/transmissão da obra. PROCESSOS CRIATIVOS DA OBRA AUDIOVISUAL A criação de uma obra audiovisual de animação inclui, segundo Marchesini (2016), conceito, público, formato, narrativa e arte. Em conceito, deve-se definir tema, gênero e tom; em público, faixa etária, sexo e, no caso de produções para o público infantil, se será desenvolvido para canais de entretenimento e/ou educativos; em formato, quantidade de episódios, duração e quais os conteúdos transmídia249; em narrativa, personagens, universo ficcional, sinopses/roteiro e linguagem; em arte, características físicas dos personagens, cenários e técnica. Marchesini relatou que o projeto da série de animação “Sítio do Picapau Amarelo”250 foi debatido e acolhido pela Rede Globo, que tem os direitos de licenciamento da obra de Monteiro Lobato. A Mixer foi responsável pela coprodução. Houve a pré-venda para a Cartoon Network. Importante pontuar que as pré-vendas de obras audiovisuais para televisão viabilizam participação nas ações de fomento da Agência Nacional do Cinema (Ancine). A obra contou com fomento da Lei do Audiovisual. Posteriormente, veio o reconhecimento. Foi veiculada em canais de 14 países da América Latina e América Central o que lhe possibilitou ser vencedora de melhor série de animação da América Latina - prêmio popular e do Júri do Festival Chilemonos em 2014. Sobre o conceito: o objetivo consistia em resgatar o Sítio para as crianças pequenas e suas famílias. Também se pretendia inovar em termos de adaptações literárias quebrando o formato da série original live action251 de capítulos sequenciais para episódios fechados. Este é um recurso facilitado pela animação que, pela sua 248 Expressões utilizadas para caracterizar entradas e saídas de informações em um sistema. Diferentes mídias (os meios) irão transmitir diferentes conteúdos (as mensagens) para o público (o receptor), mas de forma que os diferentes meios se complementem. 250 O título para o mercado internacional norte americano e europeu é “Pirlimpimpim” e para o latinoamericano é “El Rancho del Pájaro Amarillo”. 251 Termo utilizado no mercado audiovisual para definir os trabalhos que são realizados por atores reais, ao contrário das animações. 249 II Congresso Internacional Sobre Culturas 624 possibilidade de dublagem, também tem como ponto positivo o fácil trânsito para outros países. O gênero original aventura foi mantido, mas com uma dose a mais de comédia, impactando na escolha de um tom confiante e também irreverente, divertido, alegre e encantado. Sobre o público: crianças na idade pré-escolar, de 2 a 5 anos, equilibrando entre meninas e meninos, mas com uma protagonista feminina (Emília). Direcionada aos canais de entretenimento, a exemplo do Cartoon Network e do Boomerang. Em Portugal, foi exibida no SIC K e Canal Panda. Sobre o formato: inicialmente 26 episódios de 11 minutos, sendo que foram desenvolvidas a segunda e terceira temporadas, com acréscimo de personagens, totalizando 78 episódios. Antes do lançamento da animação, a Globo.com criou a primeira comunidade virtual para crianças “Mundo do Sítio” com o intuito de aproximar o público das características dos personagens da animação. Na Biblioteca do Visconde, a criança poderá ter acesso a uma gama de livros infantis e educativos, muitos deles ilustrados por ilustradores famosos, como Fernando Vilela. [...] Para manter as características nacionais do jogo, a trilha sonora ficou a cargo da banda "1/2 Dúzia de 3 ou 4", especializada em música brasileira, que criou sons e ritmos baseados no forró e na música caipira, para acompanhar o jogo. (NETO, 2011. Grifos nossos) No portal, desativado em 2015, as crianças de 5 a 10 anos criavam seus avatares e escolhiam os caminhos da brincadeira nos cenários da animação. Mais de 20 jogos educativos estavam disponíveis. Sobre a narrativa: as sinopses da primeira temporada foram desenvolvidas a partir de trechos dos livros de Monteiro Lobato, mas não contêm as cenas de violência e os traços escravocratas dos personagens da versão original. O ritmo da narrativa foi acelerado tanto em relação à narrativa original como a outras séries pré-escolares, assim como a trilha da abertura que precisou ser regravada por Gilberto Gil (CASALETTI, 2012). Uma especificidade do processo criativo da animação é a concepção dos personagens com a preocupação de indicação de vozes para a dublagem. As gravações de voz do desenho foram realizadas em São Paulo, pelo estúdio Ultrassom, com direção de voz e de casting de Melissa Garcia e junto de Hugo Picchi, na terceira temporada. O processo de gravação das vozes é chamado de voz original, e não de dublagem, II Congresso Internacional Sobre Culturas 625 pois foi todo feito antes da animação, servindo de base para a produção do desenho animado. Gessy Fonseca, a voz de Dona Benta, já atuou no papel da personagem em um programa de rádio de 1943, chegando a conhecer Monteiro Lobato. (WIKIPEDIA. Grifos nossos). Sobre a arte: o design do artista Bruno Okada, escolhido em um concurso realizado pela Rede Globo, privilegia a brasilidade nos ambientes internos e externos. Os personagens foram adaptados mais em seus detalhes físicos do que em suas essências narrativas. A direção é de Humberto Avelar e os serviços de animação foram realizados pelos estúdios cariocas 2DLab (temporadas 1 e 2) e Split/Animatório Content (temporada 3). A técnica de animação usada para essa nova versão do Sítio é chamada "cut out" (WIKIPEDIA. Grifos nossos) Trata-se de uma animação em 2D que favorece a dinâmica do trabalho na relação tempo/custo. Cada episódio da série levou cinco semanas para ficar pronto. O orçamento da primeira temporada foi de 4 milhões de reais (WIKIPEDIA). AGENTES – INPUTS E OUTPUTS Rede Globo Produtora Mixer Obras de Monteiro Lobato Globo.com Mundo do Sítio (comunidade virtual) Concurso Rede Globo para designer Cartoon Network Boomerang Canais Latinoamericanos (14) Canais Portugueses (SIC K e Panda) Ancine Festival Chilemonos Banda ½ Dúzia de 3 ou 4 Estúdio Ultrassom 2D Lab Split/Animatório Content Reynaldo Marchesini Fernando Vilela Gilberto Gil CONCEPÇÃO/PRODUÇÃO DISTRIBUIÇÃO/PROGRAMAÇÃO TRANSMISSÃO II Congresso Internacional Sobre Culturas 626 Melissa Garcia Hugo Picchi Gessy Fonseca / Outras Vozes Bruno Okada Humberto Avelar Quadro Resumo - Inputs e outputs – a partir dos agentes – presentes nos processos criativos da obra audiovisual infantil de animação “Sítio do Picapau Amarelo”, considerando suas participações nas etapas de concepção, produção e/ou distribuição, programação e transmissão. Este estudo comprova a permanência sistêmica dos processos criativos na cadeia produtiva do audiovisual. Também indica desafios na relação entre desenvolvimento de conteúdo (criação e produção), distribuição, programação e transmissão, limites propostos pelos modelos de estudos das indústrias criativas, já que esta análise tem como ponto de partida apenas a criação da obra, mas se esbarra com uma diversidade de agentes atuantes em outras etapas/fases da cadeia produtiva. E, por fim, é possível propor a metodologia de Análise de Redes para pesquisas futuras dos processos criativos da obra audiovisual. REFERÊNCIAS CASALETTI, Danilo. “Sítio do Picapau Amarelo” ganha versão em desenho animado para a TV. Revista Época. 6 de janeiro de 2012. Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/cultura/noticia/2012/01/sitio-do-picapau-amareloganha-versao-em-desenho-animado-para-tv.html FIRJAN. Mapeamento da indústria criativa no Brasil. Rio de Janeiro: Sistema FIRJAN, 2014. MARCHESINI, Reynaldo. Masterclass Animação. RioContentLab Bahia. Salvador, 5 a 8 de julho, 2016. NETO, Dorly. 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Disponível em: http://flamma.net.br/ RioContentMarket. Disponível em: http://riocontentmarket.com/ Wikipedia. Sítio do Picapau Amarelo (série animada). Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%ADtio_do_Picapau_Amarelo_(s%C3%A9rie_ani mada) II Congresso Internacional Sobre Culturas 628 ECONOMIA CRIATIVA SOB AS PERSPECTIVAS DE POLÍTICAS CULTURAIS DO BRASIL E DE PORTUGAL Renner Coelho Messias Alves252 Janaina Machado Simões253 RESUMO Esta pesquisa buscou analisar comparativamente as políticas públicas de economia criativa fomentadas pela Secretaria de Economia da Cultura, coordenada no Brasil, e pelo Setor Cultural e Criativo, gerenciado em Portugal. Realizado no segundo trimestre de 2016, o trabalho qualitativo teve como percurso metodológico a pesquisa de comparação documental dos documentos oficiais desses países. Ambos trataram do assunto no Ministério da Cultura, considerando a economia criativa com base na criatividade de produtos com valor simbólico e comercializável. Como divergências, o Brasil estipulou ainda outros eixos de atuação que contemplaram o patrimônio natural e cultural e espetáculos e celebrações artísticas. Já Portugal, por sua vez, enfatizou sua afirmação no cenário internacional. Palavras-chave: Economia criativa. Políticas culturais. Indústria cultural luso-brasileira. INTRODUÇÃO Os estudos sobre cultura envolvem a análise a respeito das relações entre diversos agentes e contextos. Ao considerar especificamente as ações estabelecidas pelo Estado, as políticas públicas dessa área cada vez mais influenciam questões ligadas à cidadania e ao desenvolvimento dos países. Além de propiciar intervenções econômicas, as políticas culturais também estão associadas à manifestação artística de tradições, à expressão musical específica de determinada região, à produção cultural, entre outras modalidades da economia criativa. A economia criativa, por sua vez, diz respeito à tentativa de criar sinergia entre cultura, economia e criatividade. Com essa dinâmica de interpenetração, esses componentes se manifestam por meio de arranjos variados e disseminados por todo o território de uma nação. Ou seja, a diversidade desses setores criativos revela que “atividades produtivas têm como processo principal um ato criativo gerador de um produto, bem ou serviço, cuja 252 Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Discente do Programa de Mestrado Acadêmico em Administração. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Secretário Executivo da Reitoria E-mail: rennercma@gmail.com 253 Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Docente do Programa de Pós-Graduação em Administração e do Departamento de Administração e Turismo. E-mail: janainamsimoes@gmail.com II Congresso Internacional Sobre Culturas 629 dimensão simbólica é determinante do seu valor, resultando em produção de riqueza cultural, econômica e social” (MINC, 2012, p. 22). Ao avaliar o cenário brasileiro, são evidentes os esforços envidados para formular e implementar diretrizes para as políticas de desenvolvimento do setor de economia criativa. Esse segmento de atuação também é fomentado por outros países, a exemplo de Portugal, por meio do gerenciamento do Setor Cultural e Criativo. Dessa forma, torna-se cada vez mais importante compreender as prioridades dos governos locais para o setor, bem como observar as metodologias de formulação de suas políticas culturais. A partir disso, o objetivo desta pesquisa consiste em analisar comparativamente as políticas públicas de economia criativa fomentadas pela Secretaria de Economia da Cultura, coordenada no Brasil, e pelo Setor Cultural e Criativo, gerenciado em Portugal. Nessa medida, em sua primeira seção, esta investigação teoriza cultura e economia criativa, de modo a, nas próximas seções, explorar as abordagens adotadas em cada país. Em sua última etapa, são realizadas considerações sobre os dados encontrados em relação à temática estudada. CULTURA E ECONOMIA Nos primórdios, a ideia de cultura era diretamente associada ao cultivo e ao trato com os meios agrícolas. Com o passar do tempo, a cultura passou a ser considerada como o processo simbólico pelo qual o homem torna cognoscível sua percepção da realidade, conforme o conceito de cultura discutido por Greenfeld e Malczewski (2010). Além desses autores, Eagleton (2003) expressou outros sentidos relacionados à cultura, sendo as acepções “civilidade” e “civilização”. Diante da construção social da cultura, nota-se, portanto, o fato de a cultura ser considerada como fator de desenvolvimento (CALABRE, 2007), seja de caráter artístico, seja de recursos econômicos. Além da fruição da dimensão artística da cultura, por vezes tomada como entretenimento, sua faceta de desenvolvimento é praticada a partir da busca de outros desdobramentos relacionados à memória, preservação cultural, empreendedorismo artístico e economia criativa, por exemplo. Para Botelho (2007), a adoção de políticas de fomento cultural propicia também princípios norteadores de emancipação dos indivíduos, os quais são beneficiados tanto por sua execução artística como por sua II Congresso Internacional Sobre Culturas 630 dinâmica econômica. Destaca-se, assim, o potencial transformador da cultura, a qual influencia diversos setores da vida humana. Ainda sobre cultura, ressalta-se que a multidimensionalidade da natureza humana carece de elementos imateriais e intangíveis. Dessa forma, somente a geração de renda não assegura o bem-estar coletivo (SEN, 1999, 2000), pois as liberdades substantivas também perpassam pela prática cultural, assim como pelos direitos plenos a educação básica, assistência médica, liberdade política, entre outras facetas básicas inerentes ao ser humano. Por isso, há o desafio de incentivar ações culturais, de um lado, e assegurar a realização cultural esteja em sintonia com as necessidades humanas. Uma das possíveis estratégias de desenvolução cultural diz respeito à economia criativa. Associada às leis mercadológicas e aos anseios de variedade cultural, inclusão social, sustentabilidade e inovação (MADEIRA, 2014), a economia criativa (também intitulada de indústria criativa) agrega valor aos bens e serviços de natureza cultural, ao passo que lhes oferece maior competitividade em termos econômicos. Admitindo-se esse postulado, a economia criativa se propagou por distintas nações de todos os continentes. Para tanto, a presença estatal torna-se vital para estimular a realização de políticas culturais (NUSSBAUMER, 2007). No caso específico do Brasil, um país localizado na América do Sul e preenchido por ampla diversidade cultural, novas estruturas estatais, implementadas no início do século XXI, favoreceram a formulação e a implementação de políticas de incentivo à cultura. Em sintonia com Calabre (2007) e Rubim e Barbalho (2007), as propostas culturais são significativamente influenciadas pelo poder público. Um exemplo de ação governamental que desencadeou uma instituição com influências na implementação de políticas culturais foi a Secretaria de Economia Criativa (MINC, 2012), substituída pela Secretaria de Economia da Cultura (BRASIL, 2016), ambas vinculadas ao Ministério da Cultura. Assim como o Brasil, outros países também adotaram os pressupostos da associação entre cultura e economia, a exemplo de nações como Austrália, Reino Unido, China, Índia, África do Sul e Portugal (MADEIRA, 2014). Especificamente em Portugal, o Setor Cultural e Criativo (MATEUS, 2010) é previsto pelo Ministério da Cultura de modo transversal, com interações associadas ao Ministério da Economia. Além disso, cabe ressaltar que a indústria cultural e criativa portuguesa tende a II Congresso Internacional Sobre Culturas 631 alinhar-se às diretrizes emanadas pela União Europeia (CE, 2010, 2012; FCT, 2016), à qual se encontra atrelado desde 1986. A ECONOMIA CRIATIVA Assim como outros segmentos sociais, a cultura também está suscetível às forças mercadológicas. A conexão entre criatividade, cultura e economia produz bens e serviços que reúnem atividade financeira e modelos de confecção laboral baseado na colaboração (MADEIRA, 2014). Em outros termos, agentes comerciais buscam criar renda por meio de produtos e serviços de ordem cultural, os quais são geralmente fabricados a partir de pessoas associadas entre si. Dessa forma, busca-se gerar riquezas tanto de ordem monetária como de natureza simbólica. Com essas perspectivas, a economia criativa está diretamente ao desenvolvimento socioeconômico propiciado pelas atividades de cunho cultural. Para o brasileiro Ministério da Cultura (MINC, 2012, p. 23), a economia criativa pode ser definida como “dinâmicas culturais, sociais e econômicas construídas a partir do ciclo de criação, produção, distribuição/circulação/ difusão e consumo/fruição de bens e serviços oriundos dos setores criativos, caracterizados pela prevalência de sua dimensão simbólica.” Esse processo criativo pertinente à indústria criativa pode ser ilustrado a partir da Figura 1. Figura 1 – Cadeia de valor da economia criativa Fonte: Mateus (2010, p. 23). II Congresso Internacional Sobre Culturas 632 Por intermédio de um esquema baseado em interações múltiplas, os produtos culturais perpassam pelas fases anteriormente mencionadas. Segundo Mateus (2010), as ideias, os conteúdos e as obras se situam no início da hipotética linha de produção, de forma a serem transformados em bens e serviços, os quais são distribuídos e comercializados por distintos consumidores. Nesse sentido, o valor é agregado à medida que avança nas etapas simbólicas da economia criativa. PERCURSO METODOLÓGICO Esta pesquisa de comparação luso-brasileira no campo da cultura foi realizada no segundo trimestre de 2016 e é um estudo qualitativo (MINAYO, 2012), com base, fundamentalmente, em pesquisa documental (MARCONI; LAKATOS, 2003), tendo como pilar a coleta de dados em documentos oficiais dos Ministérios da Cultura do Brasil e de Portugal, entre outros, o Plano Nacional da Economia Criativa do Brasil (MINC, 2012) e o estudo sobre o Setor Cultural e Criativo em Portugal (MATEUS, 2010). Além disso, os dados coletados foram avaliados a partir de manipulação, interpretações e conclusões expressas em diagramas lógicos (TBCS, 2012). Em sintonia com os estudos realizados por Demo (1985) e Schwandt (1994), esta investigação procurou destacar potencialidades e limitações dos fenômenos em cada país estudado, admitindo-se a construção social de políticas culturais. A PRESENÇA DA ECONOMIA CRIATIVA NO BRASIL E EM PORTUGAL Ao estabelecer as relações entre Brasil e Portugal, nota-se a presença da economia criativa como fator de produção cultural. Em ambos os países, essa temática está associada aos Ministério da Cultura (2016). No Brasil, a Secretaria de Economia da Cultura é uma subunidade administrativa destinada a tratar do fomento cultural com geração de renda. Diferentemente do caso brasileiro, não foi possível identificar qual setor específico era responsável por essa área no governo português (2016), pois suas informações estatais sinalizaram apenas o nível ministerial. Esses e outros itens são melhor descritos no Quadro 1. II Congresso Internacional Sobre Culturas 633 Quadro 1 – Economia criativa: comparações entre Brasil e Portugal Item comparativo Adoção de políticas culturais Indústria/ economia criativa Instituição governamental Eixos de atuação Resultados/ impactos esperados Brasil Portugal As políticas culturais consistem na formulação e aplicação de estratégias tendentes a fomentar ou promover aqueles aspectos da cultura que os atores destas políticas consideram mais valiosos ou convenientes. Para eles, alguns desses possíveis objetivos são: ampliar o acesso à cultura, promover uma cultura pluralista, fomentar e apoiar a defesa dos direitos humanos e a liberdade de expressão, melhorar a qualidade dos meios de comunicação de massas, fortalecer o potencial das produções culturais, etc. Economia Criativa diz respeito às “dinâmicas culturais, sociais e econômicas construídas a partir do ciclo de criação, produção, distribuição/circulação/difusão e consumo/fruição de bens e serviços oriundos dos setores criativos, caracterizados pela prevalência de sua dimensão simbólica.” Secretaria da Economia da Cultura, do Ministério da Cultura 1. Patrimônio natural e cultural: museus, sítios históricos e arqueológicos, paisagens culturais e patrimônio natural. 2. Espetáculos e celebrações: artes de espetáculo, festas e festivais e feiras. 3. Artes visuais e artesanato: pintura, escultura, fotografia e artesanato. 4. Livros e periódicos: livros, jornais e revistas, outros materiais impressos, bibliotecas e feiras do livro. 5. Audiovisual e mídias interativas: cinema e vídeo, tv e rádio, internet podcasting e videogames. 6. Design e serviços criativos: design de moda, design gráfico, design de interiores, design paisagístico, serviços de arquitetura e serviços de publicidade. a) Vetor macroeconômico: desenvolvimento e monitoramento; territórios criativos; estudos; e pesquisas e marcos legais. b) Vetor microeconômico: empreendedorismo, gestão e inovação; fomento a empreendimentos criativos; formação para competências criativas; e redes e coletivos. As políticas mais interessantes combinam objetivos culturais (diversidade, qualidade e distribuição) e econômicos (inovação, empreendedorismo, exportação, investimento, clusterização e crescimento econômico). (...) A maioria das políticas visando estimular o desenvolvimento das indústrias criativas têm origem e são fundadas nos setores culturais. A consciência do seu potencial económico aumentou, mas não conduziu a um equilíbrio apropriado entre a política económica convencional e a política cultural. Indústrias Criativas são “as atividades que têm a sua origem na criatividade individual, habilidade e talento e com potencial de criação de emprego e riqueza, através da geração e exploração da propriedade intelectual.” Ministério da Cultura 1. Atividades culturais nucleares: artes performativas, artes visuais e criação literária e património histórico e cultural. 2. Indústrias culturais: música, edição, software educativo e lazer, cinema e vídeo e rádio e televisão. 3. Atividades criativas: serviços de software, arquitetura, publicidade e design. Inovação e diferenciação por meio de: fator estratégico de competitividade; setor gerador de emprego e riqueza; meio de reforço da cidadania; alavanca de coesão social e territorial; e veículo de afirmação internacional das comunidades. Fonte: Adaptado de Mateus (2010) e de MinC (2012). Estudar as políticas culturais presentes nas nações luso-brasileiras conduz à compreensão de como a ação estatal pode influenciar sobremaneira na definição e na implementação de programas e projetos culturais, conforme as discussões realizadas por Calabre (2007), Nussbaumer (2007) e Rubim e Barbalho (2007). Nesse sentido, isso é II Congresso Internacional Sobre Culturas 634 exemplificado a partir do alinhamento dado por Portugal em função das diretrizes emitidas pela União Europeia (CE, 2010, 2012; FCT, 2016). Além de gerar renda, aos Estados é demandado assegurar elementos imateriais e intangíveis na busca pelo bemestar coletivo (SEN, 1999, 2000; DINIZ, 2011). Uma diferença das abordagens assumidas por esses países consiste no eixo de atuação. O Brasil se propôs a percorrer todas as linhas apontadas por Portugal, porém o plano brasileiro estipulou ainda outros eixos de atuação que contemplaram patrimônio natural e cultural (sítios históricos e arqueológicos, paisagens culturais etc.) e espetáculos e celebrações artísticas (por exemplo, festas, festivais e feiras). Assim, o Brasil se posicionou de modo diferenciado ao valorizar a vocação turística presente em paraísos naturais e divulgar manifestações culturais regionais. Se, de um lado, o Brasil priorizou suas características internas, por outro lado, Portugal priorizou sua afirmação internacional. Conforme discutido nesta pesquisa, um dos resultados esperados por Portugal estava relacionado à projeção de suas ações no cenário global. Certamente, essa internacionalização revela indícios da ampliação econômica atribuída aos produtos culturais criativos (MADEIRA, 2014). Evidenciar a realidade de cada país confirma a premissa de que as políticas culturais são socialmente construídas. Apesar de haver proximidades entre Brasil e Portugal no âmbito da economia criativa, parte das estratégias assumidas em cada nação se diferem em razão de suas características demográficas e territoriais. Assim, o potencial de um país não representa o mesmo valor no outro estado. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir dos dados apresentados nesta pesquisa, as discussões teórico-empíricas referentes à economia criativa que perpassam pelos cenários brasileiro e português são complexas e envolvem múltiplos atores dos processos de elaboração, seleção, implantação, desenvolvimento e avaliação de políticas culturais. Assim, a partir das políticas evidenciadas pela Secretaria de Economia da Cultura (Brasil) e pelo Setor Cultural e Criativo (Portugal), em caráter comparativo, compreendeu-se como as políticas culturais são gerenciadas por esses países. Os documentos oficiais do governo português revelaram similaridades e diferenças em relação à realidade da economia criativa brasileira. Ambos trataram do assunto no Ministério da Cultura, considerando a economia criativa com base na II Congresso Internacional Sobre Culturas 635 criatividade de produtos com valor simbólico e comercializável. Como divergências, o Brasil estipulou ainda outros eixos de atuação que contemplaram o patrimônio natural e cultural (sítios históricos e arqueológicos, paisagens culturais etc.) e espetáculos e celebrações artísticas (por exemplo, festas, festivais e feiras). Já Portugal, por sua vez, enfatizou sua afirmação no cenário internacional. Adicionalmente, este estudo, ao apresentar a temática, potencializa a busca por aprimoramento de políticas públicas e de outros processos de tomada de decisão pertinentes a políticas culturais, de modo a compreender potencialidades e limitações no desempenho das propostas gerenciadas por esses países. Em ambos os cenários, foi notória a presença dos contornos mercadológicos como delineadores da promoção da cultura. Conceitos como produto, valor agregado, distribuição e consumo foram recorrentes. Por isso, haveria o risco de a cultura estar em segundo plano diante dos produtos comercialmente atraentes. Diante do exposto, outros pesquisadores interessados no assunto podem ampliar essa discussão a partir da ideia de cultura do desenvolvimento em vez do desenvolvimento da cultura. REFERÊNCIAS BOTELHO, I. Teorias e políticas da cultura. In: NUSSBAUMER, G. M. (Org.). Teorias políticas da cultura: visões multidisciplinares. Salvador, EDUFBA, 2007. p. 171-180. CALABRE, L. Políticas culturais no Brasil: balanço e perspectivas. In: RUBIM, A. A. C. (Org.) Políticas culturais no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2007. p. 87-107. COMISSÃO EUROPEIA (CE). 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II Congresso Internacional Sobre Culturas 638 PATRIMÔNIO CULTURAL NO BRASIL E EM PORTUGAL: O ESTADO ENQUANTO GESTOR DAS INOVAÇÕES NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SALVAGUARDA DOS SEUS LEGADOS NACIONAIS Lívia Magalhães de Brito254 RESUMO O objetivo do presente artigo é retratar uma visão suscita do panorama da preservação do patrimônio em Brasil e em Portugal, apresentando desta forma, uma comparação entre o desenvolvimento de possíveis ações de inovação na gestão dos bens culturais nesses dois países. Nesse sentido, serão consideradas as políticas públicas de patrimônio de ambos, atreladas à evolução do conceito de preservação do patrimônio. Como resultado espera-se dar início à investigação o papel dos Estados brasileiro e português na perspectiva de preservar o legado da nação, através da institucionalização de políticas públicas de salvaguarda dos seus Patrimônios Culturais bem como levantar as principais ações perfilhadas neste campo e assim poder contribuir para a construção de conhecimentos relacionados à história das inovações nos processos de preservação do patrimônio cultural no Brasil e em Portugal sob a égide desses Estados. Palavras-chave: Patrimônio Cultural. Inovação. Políticas Públicas. Gestão. Estado. INTRODUÇÃO O presente trabalho fora construído na perspectiva dar inicia a estudos que pudessem responder o seguinte questionamento: Por qual motivo as políticas de Preservação do Patrimônio Cultural do Estado possuem características de inovação? Nesse sentido, busca-se encontrar as medidas que são adotadas no Brasil e em Portugal, entender como se desenvolvem, qual o caminho esses dois países seguiram na perspectiva de gestão dos bens culturais e quais as perspectivas inovadoras adotadas por cada um deles. A presente pesquisa encontra-se em sua fase inicial. A ideia é aprofundar posteriormente a discussão para que se possa abranger não somente o Estado, mas também as relações de cooperação que é estabelecida (ou deixa de estabelecer) no âmbito das ações inovadoras para a salvaguarda dos legados Nacionais. 254 *Mestranda (2015-2017) em Preservação do Patrimônio Cultural no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN (Superintendência do Iphan no Rio Grande do Norte). Comunicóloga com Habilitação em Relações Públicas, graduada pela universidade Salvador – UNIFACS. Currículo Lattes disponível em: <http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4608305T3>. Acesso em 30 out. 2016, 18h35min. E-mail: liviamagalhaesrp@gmail.com. II Congresso Internacional Sobre Culturas 639 O Estado português, instituiu como responsável pela gestão do patrimônio cultural no país, a Direção-Geral do Património Cultural – DGPC. No Brasil, quem desenvolve este papel é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan. A atuação dos órgãos estatais, ao institucionalizar as políticas de Preservação do Patrimônio Cultural, nesses dois países, tem sido em muitos momentos, numa perspectiva inovadora, a fim de atender às questões complexas que envolvem a preservação do seu patrimônio cultural. A metodologia adotada consiste em pesquisa bibliográfica, com consulta a livros, artigos, artigos, teses e dissertações impressas e virtuais (PDF, na rede WEB), bem como pesquisa documental através de consulta a leis, decretos e regimentos relativos à atuação estatal do Brasil e de Portugal no sentido de proteger e preservar o patrimônio cultural. BREVE CONTEXTO INTERNACIONAL DA SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO CULTURAL Muitos eventos históricos, no contexto internacional, influenciaram a noção de patrimônio cultural e de alguma maneira marcaram a forma como a maioria dos países do mundo pensa a gestão dos seus legados culturais, numa perspectiva de salvaguardálos para que as gerações futuras pudessem usufruir deles e ter referência cultural. Como o espaço aqui disponível para desenvolvimento da temática, no momento, é limitado, segue então um relato sucinto de alguns desses marcos, relacionados às discussões acerca desta temática, que estão ligados à história da gestão dos bens culturais no Brasil e em Portugal. Segundo Santos (2016), o final da Segunda Guerra Mundial (2ª GM) possibilitou a incorporação da dimensão cultural ao Estatuto das Nações Unidas (ONU) e a noção de patrimônio cultural passou a ser hegemônica na reconstrução do mundo. Fonseca (2016) corrobora com esta informação ao explicar que: Após a Segunda Guerra Mundial, essa questão foi introduzida na agenda internacional com a criação de um organismo multilateral – a Unesco, braço das Nações Unidas para a educação, ciência e cultura – que assumiu a missão de defender os bens culturais considerados patrimônio da humanidade. (FONSECA, 2016) II Congresso Internacional Sobre Culturas 640 Nasce então, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, criada em Novembro de 1945 com o objetivo de garantir a paz no mundo através da cooperação intelectual entre as nações, de forma que acompanhem o desenvolvimento mundial e servindo de auxílio para os Estados-Membros. (NAÇÕES UNIDAS, 2016). A partir daí, a UNESCO tem produzido documentos orientadores para as políticas de seus Estados-Membros, estabelecendo as linhas mestras para a execução de políticas culturais e determinando as ações dos autorizados a fazerem a distinção entre o que pode subsistir e o que pode desaparecer. (SANTOS, 2016, p.71) Outro marco importante do contexto internacional é a Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural. Trata-se de uma Conferência Geral da UNESCO, realizada em Paris, em Novembro de 1972, instituiu a proteção nacional e internacional de bens culturais e naturais. O artigo 4º, estabelece que “Cada Estado-parte da presente Convenção reconhece que lhe compete identificar, proteger, conservar, valorizar e transmitir às gerações futuras o patrimônio cultural e natural situado em seu território. ”. (UNESCO, 2016b). Os artigos 1º e 2º definem patrimônio cultural como monumentos, conjuntos arquitetônicos e sítios arqueológicos. E o natural enquanto monumentos naturais os bens constituídos por formações físicas, biológicas, geológicas e fisiográficas, zonas delimitadas que constituam habitat de espécies animais e vegetais ameaçados, os sítios ou áreas naturais detentoras de valor universal excepcional. (UNESCO, 2016b). O Brasil aderiu à convenção do patrimônio mundial cultural e natural em 1977, através da adoção do Decreto Legislativo nº 74 de 30 de junho de 1977 (2016), que aprovou o texto da referida convenção, entrando em vigor na data em que foi publicado. Já a participação do Estado português, também com aprovação do texto da referida convenção, se deu em 1979, conforme Decreto de nº 49, de 6 de Junho. Em Outubro de 2003, em Paris, na França, acontecia a Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial que tinha por finalidade estabelecer a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, a conscientização no plano local, nacional e internacional da importância deste tipo de patrimônio, etc. Neste texto, “entende-se por “salvaguarda” as medidas que visam garantir a viabilidade do patrimônio cultural imaterial.”. (UNESCO, 2016a). II Congresso Internacional Sobre Culturas 641 As discussões no cenário internacional foram se aperfeiçoando para que as Nações participantes pudessem pensar juntas, as formas de gerir seus bens culturais. Para Santos (2016), a compreensão da aplicação do conceito de Preservação do Patrimônio Cultural e a configuração das políticas públicas direcionadas a área cultural está relacionada diretamente às ações da UNESCO. Nunes (2011) fortalece esta afirmação ao observar que o conceito de Patrimônio cultural, por influência de instrumentos normativos criados pela UNESCO, sofreu alterações nas últimas décadas. Para o autor “o patrimônio cultural não se esgota nos monumentos e coleções de objetos. Ele inclui também as tradições e expressões de vida herdadas de nossos antepassados e passadas aos nossos descendentes.”. (Nunes, 2011, p. 66). BRASIL: A CRIAÇÃO DO IPHAN O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan fora criado como resultado de uma mobilização envolvendo personalidades públicas do movimento modernista e simpatizantes. Segundo Fonseca (2005), 1934 foi o ano em que “o ideário do patrimônio passou a ser integrado ao projeto de construção da nação pelo Estado” (FONSECA, 2005, p. 96). Quando criado por força do Decreto-Lei nº 378 de 13 de Janeiro de 1937, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN tinha “a finalidade de promover, em todo o país e de modo permanente, o tombamento, a conservação, o enriquecimento e o conhecimento do patrimônio histórico e artístico nacional” (Brasil. Decreto-Lei, artigo nº 46, 1937). O Decreto-Lei nº 25 de 30 de Novembro de 1937, veio para organizar a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional e definia como principal instrumento de preservação do patrimônio o tombamento. Souza Filho considera este termo sob a ótica jurídica e classifica-o como o “ato administrativo da autoridade competente que declara ou reconhece valor histórico, artístico, paisagístico, arqueológico, bibliográfico, cultural ou científico de bens que, por isso, possam ser preservados” (SOUZA FILHO, 2006). Fonseca (2005) explica que o principal critério de seleção de um bem enquanto patrimônio cultural brasileiro era o seu “excepcional valor”, e a decisão sobre o seu tombamento ou não, era exclusiva dos funcionários do Iphan e dos seus colaboradores. Em 1967, a Instituição buscou se aproximar da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO e da Organização dos Estados Americanos – OEA, numa tentativa de aliar o desenvolvimento à preservação de II Congresso Internacional Sobre Culturas 642 valores tradicionais. (FONSECA, 2005). Um fator importante a ser considerado neste período é o fato de que os anos de 1970, segundo Porta (2012), foram propícios às discussões com o objetivo de atualizar e ampliar o conceito de patrimônio histórico e artístico nacional para que fosse capaz de abarcar os legados históricos e culturais do Brasil. Já em 1979, a administração da Instituição passou a se dar sob a perspectiva de participação social na seleção de bens culturais e não mais sob o viés de seleção rigorosa de bens de valor excepcional, marcando a gestão com modificações políticoinstitucionais como resultado das novas formas de preservação em voga no cenário nacional e internacional (FONSECA, 2005). Com o advento da Constituição de 1988, um novo olhar foi lançado sobre o campo da preservação do patrimônio cultural. As demandas relacionadas aos bens culturais de natureza imaterial ficam agora asseguradas pelo artigo de nº 216 conforme descrito a seguir: Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais. V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.”. (BRASIL. Constituição, 1988). Segundo Porta (2012), a Constituição de 1988 é um marco na atualização da política de preservação do patrimônio nacional permitindo assim, “conhecer, valorizar e a preservar um universo muito mais extenso de bens culturais” (PORTA, 2012). O Iphan tem acompanhando a evolução do conceito de patrimônio bem como as transformações sociais e culturais, se mantendo ligada aos marcos legais de sua criação/função social, ou seja, a preservação do patrimônio cultural do país. PORTUGAL: LEGISLAÇÃO E CRIAÇÃO DO PDGC A Constituição da República Portuguesa entrou em vigor no dia 25 de Abril de 1976, no que tange as questões do Patrimônio Cultural de Portugal, o seu artigo de nº 9 determina que as tarefas fundamentais do estado são “e) Proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o ambiente, preservar os II Congresso Internacional Sobre Culturas 643 recursos naturais e assegurar um correcto ordenamento do território;” (PORTUGAL, 1976). Já o artigo de nº 78 institui que a fruição e a criação cultural é direito de todos, assim como é compartilhado o dever de preservar, defender e valorizar o patrimônio. A referida Constituição estabelece que o papel do Estado, em parceria com agentes culturais é o de “Promover a salvaguarda e a valorização do património cultural, tornando-o elemento vivificador da identidade cultural comum;” (PORTUGAL, 1976). Entretanto, a Direção -Geral do Património Cultural – DGPC, instituição vinculada ao Estado português, para se dedicar à Preservação do seu Patrimônio Cultural, no formato que é conhecida hoje, só viria a ser criada em 2012, através da adoção do Decreto-Lei n.º 115 de 25 de maio que no artigo de número 2º, alínea 1 determina como sendo a sua missão: [...] assegurar a gestão, salvaguarda, valorização, conservação e restauro dos bens que integrem o património cultural imóvel, móvel e imaterial do País, bem como desenvolver e executar a política museológica nacional. (PORTUGAL, Decreto-Lei, 2012). Na alínea de nº 2, dentre as várias atribuições relacionadas ao campo da salvaguarda do Patrimônio português, como função da DGPC, consta: a) Assegurar o cumprimento das obrigações do Estado no domínio do inventário, classificação, estudo, conservação, restauro, proteção, valorização e divulgação do património cultural móvel e imóvel, e também no domínio do estudo, valorização e divulgação do património imaterial. (PORTUGAL, Decreto-Lei, 2012). A Portaria de n.º 223 de 24 de julho 2012, complementa o Decreto -Lei n.º 115/2012, pois realiza o detalhamento da estrutura da Direção -Geral do Património Cultural bem como os seus departamentos com as suas respectivas competências. Vale ressaltar que a institucionalização pelo Estado português, de práticas de Preservação do Patrimônio Cultural, assim como no contexto brasileiro, têm sido no sentido tentar alinhar-se às discussões internacionais, em especial, em relação às recomendações da UNESCO. II Congresso Internacional Sobre Culturas 644 INOVAÇÕES NO ÂMBITO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL NO BRASIL E EM PORTUGAL Ao buscar o significado da palavra inovação no dicionário virtual Aurélio, é possível encontrar como definição deste termo, “ato ou efeito de inovar” (AURÉLIO, 2016). Inovação implica em mudança de postura e de práticas, pressupõem arriscar em nome de algo ainda incerto e a ruptura com as velhas práticas na tomada de decisões. Chiavenato e Sapiro asseveram que “se inovar é arriscado, muito mais perigoso é deixar de inovar.” (2003, p. 359). Sendo assim, inovar nas práticas institucionais requer observação nas constantes transformações no ambiente em que as organizações estão inseridas, conforme é discutido por Neves et al. (2010), que argumenta que as instituições públicas não estão isentas das pressões que existem por inovação e modernização, visto que “a todo o momento, faz-se necessária a superação das barreiras constituídas pelos antigos comportamentos organizacionais, por meio da quebra de modelos construídos com base em uma realidade passada. (NEVES; et al. 2010, p. 4). As inovações introduzidas nas práticas da Preservação do Patrimônio Cultural estão relacionadas às contribuições das diversas áreas do conhecimento, tais como arquitetura, história, arqueologia, sociologia, antropologia. Sendo assim, foram criados novos instrumentos de preservação do patrimônio, além do tombamento1. No Brasil, a criação do Sistema Integrado de Conhecimento e Gestão (SICG) que tem por objetivo organizar a coleta, o armazenamento e a gestão das informações sobre patrimônio cultural é uma inovação, embora recente, sob tutela do Estado. Tratase de uma ferramenta importante no processo de consolidação do Sistema Nacional de Patrimônio Cultural, que visa a construção de um cadastro unificado que funcione como base cartográfica do patrimônio cultural do Brasil (PORTA, 2012). Têm-se também, enquanto inovador, o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), utilizado para identificação e estudo do patrimônio imaterial em um dado território, “visa documentar os processos de criação, recriação e transmissão das expressões culturais e suas características. Visa também identificar eventuais dificuldades para a sua permanência” (PORTA, 2012, p.45). II Congresso Internacional Sobre Culturas 645 Vale enfatizar que o INRC é um instrumento de identificação de bens culturais tanto imateriais quanto materiais. A indicação de bens para Registro e/ou para Tombamento pode resultar de sua aplicação, mas não obrigatoriamente. (BRASIL. Minc. Iphan, 2000, p.8) Falar do INRC enquanto inovador traz à tona a importância de abordar o Decreto nº 3.551/2000 que instituiu no Brasil o Registro de Bens Culturais Imateriais e o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial, enquanto instrumento de reconhecimento e valorização das expressões culturais imateriais. Segundo Porta (2012), a sua metodologia difere do tombamento por não gerar obrigações legais e sim o compromisso do Estado na documentação dessas expressões e o estímulo à sua continuidade de forma sustentável. Em Portugal está em funcionamento um sistema de nome Matrix (2016), que fora desenvolvido pela DGPC a fim de inventariar, gerir e divulgar através da WEB o Património Cultural e Natural do país. Através dele podem ser acessados o catálogo coletivo de museus portugueses, coleções fotográficas da DGPC, constitui-se enquanto suporte para a política do Inventário Nacional do Patrimônio Cultural Imaterial, etc. Trata-se de uma plataforma de pesquisa com campo de busca simples e de fácil navegação. Têm-se enquanto inovador, sob tutela do Estado português, o que determina o Decreto-Lei de nº 139, de 15 de junho 2009, que estabelece regime jurídico para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial. Em seu Artigo 1º alínea 2 determina a abrangência dos seguintes domínios: a) Tradições e expressões orais, incluindo a língua como vector do património cultural imaterial; b) Expressões artísticas e manifestações de carácter performativo; c) Práticas sociais, rituais e eventos festivos; d) Conhecimentos e práticas relacionados com a natureza e o universo; e) Competências no âmbito de processos e técnicas tradicionais. (PORTUGAL. Decreto-Lei, 2009). CONSIDERAÇÕES FINAIS É de total importância, o papel desempenhado pelo Brasil e por Portugal no sentido de promover, em diálogo com a UNESCO, políticas públicas no âmbito de sua gestão para a salvaguarda do Patrimônio Cultural. A evolução do conceito de patrimônio tem possibilitado a institucionalização das formas de gerir o patrimônio II Congresso Internacional Sobre Culturas 646 cultural protegido de forma a atender as particularidades de cada bem cultural. Mesmo sendo também fruto de acordos internacionais, essas práticas tem possibilitado ao Iphan e ao DGPC modernizarem as suas práticas, através de adoção de técnicas diferenciadas de preservação, buscando desta forma, a concretização dos seus papeis sociais. Sendo assim, as inovações realizadas incluem desde ferramentas e instrumentos de preservação do patrimônio cultural material e imaterial; o comportamento institucional, através da tentativa de aproximação com os diversos agentes sociais que são em conjunto com o Iphan e o DGPC, responsáveis pela sobrevivência dos bens culturais; passando pela inovação através da incorporação de áreas do conhecimento que se relacionam com este segmento, até com os tipos de bens a serem preservados. Dessa forma, é necessário que se procure mecanismos para que os conhecimentos que transitam durante o compartilhamento de boas práticas sejam de fato utilizados e praticados. É sob esse prisma que a modernização institucional desenvolve suas capacitações. (NEVES; et al. 2010, p. 5). 1 Não cabe aqui elencar exaustivamente os processos inovadores implantados em Brasil e em Portugal. Desse modo, o presente trabalho limitou-se a explicar de maneira mais detalhada, uma ação desenvolvida nestes dois países no âmbito da preservação do patrimônio cultural, sob a tutela do Estado. REFERÊNCIAS AURÉLIO. Inovação. Disponível em: <https://dicionariodoaurelio.com/inovacao>. Acesso em: 12 abr. 2016. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, artigo 216. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/Constituicao_Federal_art_216.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2016. ______. Decreto nº 3.551 de 04 de Agosto de 2000. Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3551.htm>. Acesso em: 13 jun. 2016. II Congresso Internacional Sobre Culturas 647 ______. Decreto - Lei nº 25, de 30 de Novembro de 1937. Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del0025.htm>. Acesso em: 18 abr. 2016. ______. Decreto Legislativo nº 74, de 30 de Junho de 1997. Aprova o texto da Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural. Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=124088>. Acesso em: 16 ago. 2016. ______. Minc. Iphan. Inventário nacional de referências culturais: manual de aplicação. Apresentação de Célia Maria Corsino. Introdução de Antônio Augusto Arantes Neto. – Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2000. 156 p. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Manual_do_INRC.pdf>. Acesso em: 13 jun. 2016. CHIAVENATO, Idalberto. Administração Geral e Pública. 3ª ed. Barueri, SP: Manole, 2012. CHIAVENATO, Idalberto. SAPIRO, Arão. Planejamento estratégico. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. DIREÇÃO Geral do Patrimônio Cultural – DGPC. Patrimônio Cultural. República Portuguesa. Disponível em: <http://www.patrimoniocultural.pt/pt/>. 02 set. 2016. ______. Matriz. Disponível em: <http://www.matriz.dgpc.pt/>. Acesso em: 30 out. 2016. FONSECA, Maria Cecilia Londres. Trajetória da política federal de preservação no Brasil. 2ª ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Minc - Iphan, 2005. NEVES, F. et al. Inovação e compartilhamento de boas práticas na gestão pública: caminhos para o comprometimento dos pares e a valorização das ideias. Disponível em: < http://www.escoladegestao.pr.gov.br/arquivos/File/Material_%20CONSAD/paineis_II I_congresso_consad/painel_14/inovacao%20e_compartilhamento_de_boas_praticas_n a_gestao_publica_caminhos_para_o_comprometimento_dos_pares_e_a_valorizacao_d as_ideias.pdf>. Acesso em: 11 jun. 2016. NUNES, Rosiane da Silva. UNESCO: Patrimônio Cultural Imaterial e a Sociomuseologia. 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Portaria de n.º 223 de 24 de julho 2012. Disponível em: <http://www.patrimoniocultural.pt/static/data/dgpc_enquadramento_legal/223_2012.p df>. Acesso em: 22 out. 2016 às 08h05min. SANTOS, Adalberto S. Patrimônio e memória: da imposição de identidades à potencialização de atos coletivos. Disponível em: < http://www.repositorio.ufba.br:8080/ri/bitstream/ri/7663/1/Politicas_artigo4.pdf>. Acesso em: 28 ago. 2016. SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Tombamento e outros instrumentos de proteção. In: ______. Bens culturais e sua proteção jurídica. 3ª ed. (ano 2005), 2ª tir. Curitiba: Juruá, 2006. UNESCO, Portal. Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001325/132540por.pdf>. Acesso em: 16 ago. 2016a. ______. Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001333/133369por.pdf>. Acesso em: 29 ago. 2016b. II Congresso Internacional Sobre Culturas 649 CÓPIA PRIVADA: O BALDIO DO VIZINHO. USOS LIVRES DE OBRAS ARTÍSTICAS, LITERÁRIAS E CIENTÍFICAS PROTEGIDAS POR DIREITO AUTORAL NO BRASIL E EM PORTUGAL Eduardo José dos Santos de Ferreira Gomes255 RESUMO A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/1988) deu grande importância ao tema Cultura, impondo ao Estado o dever de garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o pleno acesso às fontes da cultura nacional. A Emenda Constitucional (EC) n. 48/2005 determinou a criação de um Plano Nacional de Cultura (PNC), de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público, sendo efetivado em 2010, com a promulgação da Lei 12.343. O PNC traça como um de seus objetivos, no tocante aos Direitos Autorais, revisar a legislação, buscando o equilíbrio entre os autores, investidores e usuários, com atenção especial aos limites e exceções jusautorais. Este artigo analisa algumas questões controvertidas acerca dos usos livres previstos na Lei 9.610/1998, Lei de Direitos Autorais brasileira, e no Código de Direito de Autor e Direitos Conexos (CDADC) de Portugal, sobretudo com relação às cópias privadas, comparando o tratamento legal adotado nos dois Estados. Palavras-chave: Plano Nacional de Cultura. Direito Autoral. Usos Livres. Cópia Privada. DO DIREITO CULTURAL NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 E DO PLANO NACIONAL DE CULTURA A Assembleia Constituinte de 1988, é cediço, deu grande importância à Cultura, impondo ao Estado o dever de garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o pleno acesso às fontes da cultura nacional. Estabeleceu, ainda, que é função do Estado apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais. Há, no sistema jurídico brasileiro, um conjunto de legislação que regulamenta o patrimônio cultural material, o patrimônio cultural imaterial, os documentos e territórios detentores de reminiscências dos antigos quilombos, os Direitos Intelectuais, ações estatais de incentivo cultural, como o vale-cultura e a meia-entrada, e programa de fomento e financiamento da cultura, estabelecido pela denominada Lei Rouanet. Entretanto, diferentemente do tratamento dado à Educação, em que a Constituinte determinou a elaboração de uma Lei que estabelecesse o Plano 255 Doutorando em Cultura e Sociedade pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos da Universidade Federal da Bahia, e Doutorando em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em regime de cotutela, processo BEX 6182/15-1, CAPES (inserção obrigatória). E-mail: eduardo.ferreira.gomes@hotmail.com Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2520265211445511 II Congresso Internacional Sobre Culturas 650 Nacional da Educação (PNE) com o objetivo de articular o Sistema Nacional de Educação (SNE), não houve previsão expressa para a elaboração do Plano Nacional de Cultura (PNC). É verdade que a sua não previsão não impediria que tal Lei fosse elaborada; todavia, sem um comando direto da Constituição, no contexto político do Brasil daquele tumultuado final dos anos 1980 e início da década de 1990, seria uma realidade bem distante. De fato, na última década do século passado, o Governo não priorizou a cultura e nem estabeleceu políticas culturais. Conforme Rubim (2007, p. 109), “o governo Fernando Henrique Cardoso [Partido Social Democrata Brasileiro, 1995 – 2002] deve ser considerado o ponto final da errática transição para a democracia e para um novo modelo econômico no país”. Rubim (2007) explica que a substituição, em quase todas as áreas e inclusive na cultura, do Estado pelo “todo-poderoso” mercado, fez com que as Leis de incentivo à cultura fossem a única política cultural até 2002. O principal slogan do Ministério da Cultura (MinC) era Cultura é um Bom Negócio! O autor, fazendo uma análise geral das políticas culturais brasileiras desde o Governo de Dom Pedro II (tido por alguns pesquisadores como quem inaugurou as políticas de cultura no Brasil) até o início da Presidência de Luiz Inácio Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores, 2003 – 2010), momento em que considera como de flexão, entende que esse enorme período é marcado por três tristes tradições na área das políticas culturais: ausência, autoritarismo e instabilidade. Reforçar-se, assim, na realidade brasileira, a percepção de Yvonne Donders (2015), que os Direitos Culturais são a Cinderela dos Direitos Humanos, sempre esquecidos ou tratados de forma improfícua. Contudo, na alegoria que aqui apresentamos, a fada-madrinha do conto de fadas, como veremos, surgiu (embora a transformação da pobre Cinderela em princesa não tenha se dado por mágica...). Em 19/12/2003, foi promulgada a EC n. 42, que, embora tivesse como objetivo alterar o Sistema Tributário Nacional, promoveu a primeira modificação da seção da CRFB/1988 que a Constituinte destinou para Cultura (os originais arts. 215 e 216). A EC n. 42/2003 incluiu um parágrafo ao art. 216, estabelecendo que “é facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular a fundo estadual de fomento à cultura até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida, para o financiamento de programas e projetos culturais”. Cabe observar que tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 150 de 2003 objetivando a aplicação na cultura, pela União, de nunca menos de 2%, pelos II Congresso Internacional Sobre Culturas 651 Estados e pelo Distrito Federal de 1,5% e pelos Municípios de 1% da receita resultante de impostos. Corrigindo a ausência imposta pela Constituinte, o Poder Reformador promulgou, em 10 de agosto de 2005, a segunda das três emendas ocorridas na seção de cultura da CRFB/1988, a EC n. 48. Foi incluído um parágrafo ao art. 215 dispondo que “a lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público”. A EC n. 48/2005 estabeleceu, ainda, que as políticas culturais sejam norteadas para: a defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; a produção, promoção e difusão de bens culturais; a formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; a democratização do acesso aos bens de cultura; e a valorização da diversidade étnica e regional. Efetivando o comando da Constituição, em 2 de dezembro de 2010, foi promulgada pelo então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Lei n. 12.343, que instituiu o PNC e criou o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais. Com duração de dez anos e revisão periódica, o PNC é composto de um anexo com cinco capítulos contendo diretrizes, estratégias e ações. O preâmbulo do anexo do PNC explica que a diretriz adotada foi a concepção ampliada de cultura, considerada em toda sua extensão antropológica, social, produtiva, econômica, simbólica e estética. Nesta acepção, cultura é entendida como fenômeno social e humano de múltiplos sentidos. Estabelece, ainda, que o Estado tem o papel regulador, indutor e fomentador, com missão de valorizar, reconhecer, promover e preservar a diversidade cultural. Finaliza que o planejamento, a implementação, a avaliação, o monitoramento e a fiscalização das ações, projetos e programas na área cultural, bem como a elaboração de políticas públicas culturais, cabem aos governos e suas instituições, dialogando com a sociedade civil. Em 29 de novembro de 2012, foi promulgada, até o presente momento, a terceira emenda da seção de cultura da CRFB/1988, instituindo o Sistema Nacional de Cultura (SNC). A EC n. 71/2012 acrescentou o art. 216-A, que dispõe, no caput, que: II Congresso Internacional Sobre Culturas 652 O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais. O SNC, conforme o art. 3º, XII, § 1º, da Lei n. 12.343/2010, é (ou pretende ser) o principal articulador Federativo do PNC entre os entes Federados e a sociedade civil, estabelecendo mecanismos de gestão compartilhada. O SNC será regulamentado, conforme mandamento do art. 216-A, §§ 3º e 4º, por Lei Federal que disporá, quando for promulgada, da articulação do SNC com os demais sistemas nacionais e políticas setoriais de governo; outrossim, os demais entes Federados organizarão seus respectivos sistemas de cultura em Leis próprias. II DA REVISÃO DA LEI DE DIREITOS AUTORAIS, DA NATUREZA E ESTRUTURA JURÍDICA DO DIREITO DE AUTOR E DOS USOS LIVRES Nas estratégias e ações, o PNC traça como um de seus objetivos, no tocante aos Direitos Autorais, revisar a legislação, buscando o equilíbrio entre os autores, investidores e usuários, com atenção especial aos limites e exceções jusautorais. Quanto à natureza e à estrutura jurídica do Direito de Autor, idealizamos a Teoria da Simbiose Culturautor, pela qual entendemos que o Direito de Autor é um Direito Cultural; está ao lado de outros incontáveis direitos culturais subjetivos, como os direitos de acesso à cultura, à educação, à identidade, de proteção ao patrimônio material e imaterial, de acesso à informação, à produção cultural, de acesso aos territórios culturais, de demarcação de territórios quilombolas e indígenas, de fomento à cultura, de proteção da cultura etc.. O Direito de Autor é, pela ordem constitucional, um exclusivo de proteção e um vetor promocional da cultura; um Direito transversal, de caráter intrinsecamente temporário e preeminente coletivo, com preponderância do interesse público, que tutela as criações de arte, de ciência e de literatura, quando atendidos os requisitos legais para a proteção. Neste diapasão, o objetivo precípuo do Direito de Autor é incentivar o fazer cultural, para tanto, garantindo a preservação de direitos pessoais do criador e o seu aproveitamento econômico, devido por quem incorrer em determinados usos da obra protegida. II Congresso Internacional Sobre Culturas 653 A legislação autoral brasileira em vigor, a Lei 9.610/1998 (LDA/1998), dispõe no capítulo IV do Título III, do art. 46 ao 48, as limitações aos Direitos Autorais, id est, usos públicos de obras protegidas por Direito de Autor que prescindem de autorização do titular e de, tampouco, qualquer aproveitamento econômico (pagamento). Alguns usos são livres porque, em determinados casos, no balanceamento entre a restrição ao acesso à cultura, para remunerar o criador, a fim de incentivar a produção cultural, e o livre acesso à cultura, prevalece o acesso. Neste sentido, Bittar (2013, p. 92) explica que os usos livres foram tecidos “com linhas ditadas pela prevalência da ideia de difusão da cultura e do conhecimento”. Enquanto que, em regra, nos países de tradição romanística, os usos livres são estabelecidos por instrumentos normativos (leis e acordos internacionais), conforme Leitão (2011, p. 159), “no sistema da Common Law esses limites resultam de cláusulas gerais, como os conceitos de fair use nos EUA e do fair dealing na Inglaterra”. No Brasil, o caput do art. 46 da LDA/1998 dispõe que “não constitui ofensa aos direitos autorais: (...)”. Por conta desta redação, a doutrina diverge se os incisos seguintes são exemplificativos ou taxativos, isto é, se existem outros usos livres além dos que a Lei traz ou se são apenas aqueles. De fato, a Lei poderia ser mais clara. Poderia, por exemplo, caso as limitações fossem exemplificativas, terminar a redação com a expressão “tais como”; por outro lado, caso as limitações fossem taxativas, terminar a redação com a expressão “os determinados usos”. Nesta esteira, Bittar (2013) interpreta que se trata de um rol taxativo, enquanto, por exemplo, Souza (2006, passim), que se trata de um rol exemplificativo. Embora não exista, claramente, uma posição majoritária, o caminho natural, sobretudo por conta dos avanços quanto aos estudos do Direito Cultural, certamente, é que venha prevalecer, enquanto a legislação não for alterada, que se trata de um rol exemplificativo. Controvérsias como esta reforçam a necessidade de alteração da LDA/1998, como asseveram, na mesma linha de intelecção, Proner e Wachowicz (2012, p. 35): A revisão [da LDA/1998] deve buscar o equilíbrio dos interesses das empresas, dos criadores e do público em geral que são os destinatários finais das obras protegidas pelo direito autoral na busca de um uso justo e equilibrado. Dados estatísticos do Governo Americano apontam os modelos de negócios estabelecidos a partir do fair use [uso justo] chegam a movimentar mais de 4,5 trilhões de dólares ao ano nos Estados Unidos. É o fair use que regulamenta o II Congresso Internacional Sobre Culturas 654 remix, distinguindo o uso comercial e o não comercial, como também permite a criação de conteúdo na Internet no caso dos videologs. (...) Assim, para se reformar a legislação que tutela os Direitos Intelectuais deve-se, primeiramente, perceber a nova ótica estruturante desta nova ordem econômica subjacente aos setores criativos nacionais, de seus fatores de produção/criação/comercialização que criarão vantagens para todos os partícipes, e assim, instrumentalizar por meio de leis as Políticas Públicas voltadas ao fomento das externalidades positivas inerentes a estes setores criativos. Todavia, embora a legislação não seja clara e a doutrina divirja se os usos livres são apenas aqueles dispostos pela Lei, a jurisprudência vem sendo firmada com a tese que se trata de um rol exemplificativo, adotando como critério para a identificação das demais restrições e limitações (aquelas que não estão exemplificadas na Lei) a regra dos três passos, prevista pela Convenção da União de Berna (CUB), em que a República Federativa do Brasil é signatária, senão vejamos: STJ. RECURSO ESPECIAL Nº 964.404 – ES. EMENTA: RECURSO ESPECIAL. COBRANÇA DE DIREITOS AUTORAIS. ESCRITÓRIO CENTRAL DE ARRECADAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO- ECAD. EXECUÇÕES MUSICAIS E SONORIZAÇÕES AMBIENTAIS. EVENTO REALIZADO EM ESCOLA, SEM FINS LUCRATIVOS, COM ENTRADA GRATUITA E FINALIDADE EXCLUSIVAMENTE RELIGIOSA. I - Controvérsia em torno da possibilidade de cobrança de direitos autorais de entidade religiosa pela realização de execuções musicais e sonorizações ambientais em escola, abrindo o Ano Vocacional, evento religioso, sem fins lucrativos e com entrada gratuita. II - Necessidade de interpretação sistemática e teleológica do enunciado normativo do art. 46 da Lei n. 9610BC à luz das limitações estabelecidas pela própria lei especial, assegurando a tutela de direitos fundamentais e princípios constitucionais em colisão com os direitos do autor, como a intimidade, a vida privada, a cultura, a educação e a religião. III - O âmbito efetivo de proteção do direito à propriedade autoral (art. 5º, XXVII, da CF) surge somente após a consideração das restrições e limitações a ele opostas, devendo ser consideradas, como tais, as resultantes do rol exemplificativo extraído dos enunciados dos artigos 46, 47 e 48 da Lei 9.610BC acordo com os direitos fundamentais. III - Utilização, como critério para a identificação das restrições e limitações, da regra do teste dos três passos ('three step test'), disciplinada pela Convenção de Berna e pelo Acordo OMCB3+5 IV - Reconhecimento, no caso dos autos, nos termos das convenções internacionais, que a limitação da incidência dos direitos autorais II Congresso Internacional Sobre Culturas 655 "não conflita com a utilização comercial normal de obra" e "não prejudica injustificadamente os interesses do autor". V - RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO. (Grifamos). Conforme a CUB, quando, no uso de obras protegidas, houver a caracterização dos seguintes passos, trata-se de uma limitação ao Direito de Autor: Quadro 1 - Regra dos três passos Regra dos Três Passos Passo 1 Passo 2 Passo 3 As exceções e limitações são admitidas apenas em casos especiais. Não podem prejudicar a exploração normal da obra. Não podem causar prejuízo injustificado aos legítimos interesses do autor. Ascensão (2012) entende que o three-step test (regra dos três passos) tem a finalidade de limitar os usos livres; seria, portanto, uma exceção das exceções. Neste sentido, o Código de Direito de Autor e Direitos Conexos (CDADC) de Portugal, no art. 75 [dispositivo que regulamenta as limitações], n. 4, dispõe que “os modos de exercício das utilizações previstas nos números anteriores [relação dos usos livres] não devem atingir a exploração normal da obra nem causar prejuízo injustificado dos interesses legítimos do autor”. Ou seja, as limitações ao Direito de Autor na legislação portuguesa são, substancialmente, a regra dos três passos, que, entretanto, a própria Lei fez a previsão dos casos especiais (passo 1). É dizer, em tese, as limitações são apenas as previstas no CDADC. Comparando com a LDA/1998, cumulada com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que entende que o rol das limitações é exemplificativo e que admite a regra dos três passos, deparamo-nos com uma questão: quais são os casos especiais (passo 1)? A LDA/1998 não prevê, transformando as limitações ao Direito de Autor em um sistema aberto. Ou seja, além das possibilidades de usos livres enumeradas na Lei brasileira, há, ao contrário da legislação portuguesa, incontáveis outras limitações ao Direito de Autor. Nesta esteira, embora, certamente, seja favorável ao exercício do direito de acesso à cultura, entendemos que é uma situação que propicia insegurança jurídica e judicializações desnecessárias. Forçoso, destarte, por mais esta razão, constatar que a legislação autoral brasileira deva ser urgentemente atualizada. II Congresso Internacional Sobre Culturas 656 III A CÓPIA PRIVADA O Direito Autoral, este conjunto sui generis de direitos subjetivos, seja na tutela do CDADC, de Portugal, ou na da LDA/1998, do Brasil, com pontuais diferenças, garante ao seu titular, que em tese é o autor, além dos direitos pessoais, os seguintes direitos relativos ao aproveitamento econômico: de Publicação e Divulgação; de Representação Cênica; de Recitação Literária e Execução Musical; de Exibição ou Exposição ao Público de Obra de Arte; de Reprodução, Adaptação, Representação, Execução, Distribuição e Exibição Cinematográficas; de Fixação Fonográfica ou Videográficas de Sons, Imagens ou Imagens e Sons; de Difusão e Comunicação Pública da Obra; de Distribuição; de Aluguel; de Comodato; de Reprodução; de Autorizar a Tradução, Adaptação, Arranjo, Instrumentação ou Qualquer Transformação da Obra; de Autorizar a Utilização em Obra Diferente; de Autorizar a Construção de Obra de Arquitetura Segundo o Projeto; à Compensação Suplementar e de Sequência. O autor (ou o seu representante) deverá autorizar e ser remunerado por quaisquer destes usos, salvo quando se tratar de uma hipótese de limitação. Apesar destes direitos subjetivos patrimoniais do autor, em que se pode reclamá-los pelo uso da obra, por questão de ordem, conforme Ascensão (2012), o direito de uso não é restrito ao autor. Isto porque, depois de publicada, ou seja, depois de quebrado o inédito, qualquer pessoa pode fazer uso da obra. A todos, por exemplo, é dado assobiar a mais nova canção de Chico Buarque; todos podem recitar Vinicius de Moraes; qualquer um pode desenhar O Pensador de Auguste Rodin... uma vez publicada a obra, esta entra na esfera pública, aderindo aos bens culturais do Estado. Neste diapasão, ao autor, é conferida, portanto, a faculdade de excluir a utilização pública de sua obra, estando a utilização privada, assim, conforme Ascensão (2012, p. 200), “pura e simplesmente de fora do exclusivo que é outorgado ao autor”. Todavia, de certo modo, em oposição a este entendimento, considerando o uso privado como um caso especial, às legislações dos Estados unionistas (aqueles que aderiram à Convenção), conforme o art. 9º/2 da CUB, “reserva-se a faculdade de permitir a reprodução das referidas obras em certos casos especiais, contanto que tal reprodução não afete a exploração normal da obra nem cause prejuízo injustificado aos interesses legítimos do autor”. II Congresso Internacional Sobre Culturas 657 Neste vagão, o art. 46, II e IV, da LDA/1998, dispõe, respectivamente, que não constitui ofensa aos direitos autorais “a reprodução, em um só exemplar, de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro” e “a representação teatral e a execução musical, quando realizadas no recesso familiar (...)”. Da mesma fonte, mas com contornos diferentes, os arts. 75/2, a) e 81/b, do CDADC dispõem, nesta ordem, que são lícitas, sem o consentimento do autor, “a reprodução, para fins exclusivamente privados, em papel ou suporte similar, realizada através de qualquer tipo de técnica fotográfica ou processo com resultados semelhantes, com excepção das partituras, bem como a reprodução em qualquer meio realizada por pessoa singular para uso privado e sem fins comerciais directos ou indirectos” e outras utilizações “para uso exclusivamente privado, desde que não atinja a exploração normal da obra e não cause prejuízo injustificado dos interesses legítimos do autor, não podendo ser utilizada para quaisquer fins de comunicação pública ou comercialização”. Ou seja, ontologicamente, a cópia privada, sendo um uso privado, estaria fora do exclusivo jusautoral, sendo uma hipótese de uso livre. Não obstante, a LDA/1998 apenas considera como uso livre cópia privada de pequenos trechos, isto é, não é possível realizar, conforme a legislação brasileira, uma cópia privada da obra inteira, por exemplo, um simples back-up de segurança de um livro digital licitamente adquirido viola a LDA/1988. Ademais, foram suscitadas controvérsias: o que são pequenos trechos? Deve ser medido quantitativamente (em percentual, por exemplo) ou qualitativamente? Há, na doutrina e na jurisprudência, as mais diversas posições. Em Portugal, a solução legislativa foi diferente. Foi adotada, em uma primeira análise, a cópia privada como um uso livre, desde que atenda à regra dos três passos, acompanhando o disposto na CUB. Conquanto, fez-se mais... o CDADC instituiu mais um direito subjetivo relativo ao aproveitamento econômico: o de Remuneração pelas Cópias Privadas. Trata-se de uma compensação equitativa aos autores por esse uso. A legislação prevê que, por exemplo, relativamente a aparelhos de fixação e reprodução de obras e prestações, bem como quanto a fotocópias, eletrocópias e demais suportes oferecidos ao público mediante atos de comércio, a remuneração devida aos autores é fixada em 3% do respectivo preço antes da aplicação do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) – imposto sobre o consumo. Este recurso, também, fomentou inúmeros debates doutrinários e jurisprudenciais. Ascensão (2012), por exemplo, entende que se trata de um tributo e não de um direito autoral, uma vez que a venda de II Congresso Internacional Sobre Culturas 658 equipamentos que propiciem cópia é taxada independentemente do uso; criando, ademais, uma presunção de uso. Em verdade, a compensação equitativa surgiu na primeira metade do século XIX, na Alemanha, com o advento dos primeiros equipamentos de tecnologia analógica, que, de qualquer modo, possibilitasse a reprodução de obras protegidas por Direito Autoral. A Diretiva 2001/29 da Comunidade Europeia, por sua vez, harmonizou a compensação equitativa em seu âmbito de atuação, uma vez que, a grande maioria dos Estados-Membros, desde o início da década de 1980, já havia instituído esse direito patrimonial, com exceção, apenas, do Reino Unido da GrãBretanha e Irlanda do Norte, Irlanda e Luxemburgo. Importante observar que a Câmara dos Lordes, na Inglaterra, em outubro de 2014, introduziu no Copyright, and Designs and Patents Act, de 1988, a Section 28B, que permite, formalmente, o backup de obras protegidas por Copyright, bem como a reprodução de obras, adquiridas licitamente, em formatos diversos ao de aquisição, ou seja, instituiu a cópia privada sem a compensação equitativa. Contudo, conforme decisão de 17/07/2015, no Case n. CO/5444/2014, a Suprema Corte do Reino Unido julgou que a Lei não estava de acordo com a sistemática legal, entendendo pela instituição da cópia privada com compensação equitativa. Em Portugal, o tema controvertido foi razão de diversos processos judiciais e até mesmo de uma queixa contra o Estado português, na União Europeia, feita pela Associação para a Gestão da Cópia Privada (AGECOP). Sob debates calorosos, tramitou, na Assembleia da República, a Proposta de Lei n. 246/XII, que resultou na Lei n. 49/2015, de 05 de junho, que alterou a Lei 68/1998. O arts. 3º desta passou a dispor: Art. 3º Compensação equitativa 1 - A quantia referida no artigo anterior tem a natureza de compensação equitativa, visando compensar os titulares de direitos dos danos patrimoniais sofridos com a prática da cópia privada. (...) 3 - Para os efeitos do disposto no número anterior, e em ordem a permitir a sua correta exequibilidade, devem as entidades públicas e privadas que utilizem, nas condições supramencionadas, aparelhos que permitam a fixação e a reprodução de obras e prestações, celebrar acordos com a entidade gestora referida no número anterior. 4 - No preço da primeira venda ou disponibilização em território nacional e antes da aplicação do IVA em cada um dos aparelhos, dispositivos e suportes analógicos e digitais que permitem a reprodução e armazenagem de obras, é incluído um valor compensatório nos termos da tabela anexa à presente lei. II Congresso Internacional Sobre Culturas 659 Neste comboio, nos alicerces da Teoria da Simbiose Culturautor, pela qual o Direito de Autor é um Direito Cultural; um exclusivo de proteção e um vetor promocional da cultura, o mandamento do PNC, de base constitucional, precisa ser efetivado, tirando, definitivamente, os Direitos Culturais da condição de Cinderela dos Direitos Humanos, que, embora formalmente reconhecidos por inúmeros instrumentos normativos internacionais, são esquecidos e tratados como nonadas, tal qual a pobre órfã do conto de fadas que inspirou o cotejo. Na revisão da legislação autoral que urge, sobretudo com relação aos usos livres, são estes valores que devem ser buscados. Ademais, o uso privado que atenda à regra dos três passos está fora do exclusivo jusautoral, não conferindo ao autor, destarte, a faculdade de intervir na sua utilização. Contudo, no Brasil, a cópia privada depende, legalmente, de anuência do autor e, em Portugal, embora prescinda desta autorização, não desobriga da remuneração, instituindo a compensação equitativa. Assim, nem o de lá e nem o de cá... por qualquer referencial, o modelo adotado pelo vizinho (seja do Brasil para Portugal ou vice-versa) transforma o terreno da cópia privada em baldio: por excesso ou por falta de regulamentação. REFERÊNCIAS ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. ______. O Fair Use no Direito Autoral. In Direito da Sociedade da Informação e Direito de Autor, Vol. IV. Coimbra: Coimbra Editora, 2003. BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor. 5ª edição rev., atual. e ampl. Por Eduardo C. B. Bittar. Rio de Janeiro: Forense, 2013. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6ª edição. Coimbra: Almedina, 1993. CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Direitos Culturais como Direitos Fundamentais no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito de Autor. Coimbra: Almedina, 2011. MELLO, Alberto de Sá. Manual de Direito de Autor. Lisboa: Almedina, 2014. II Congresso Internacional Sobre Culturas 660 PINHEIRO, Marissol Barbosa de Souza. Cópia Privada: Interesses em Jogo. Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2015. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas Culturais no Brasil: Tristes Tradições. Revista Galáxia, São Paulo, n. 13, p. 101-113, jun. 2007. SGANGA. Caterina. Right Cultura and Copyright: Participation and Access. In: C. Geiger (ed.), Research Handbook ou Human Righats and Intellectual Property. Edward Elgar, 2015. SOUZA, Allan Rocha de. A Função Social dos Direitos Autorais. Campos: Editora da Faculdade de Direito de Campos, 2006. ______. Direitos Culturais no Brasil. 2012. UNESCO. Disponível em https://nacoesunidas.org/agencia/unesco/, último acesso em 29/10/2016. VICENTE, Dário (org.) et al. Estudos de Direito Intelectual. Em homenagem ao Prof. Doutor José de Oliveira Ascensão. 50 Anos de Vida Universitária. Lisboa: Almedina, 2016 WACHOWICZ, Marco (org.) et al. Anais do VI Congresso de Direito de Autor e Interesse Público. Florianópolis: GEDAI/UFSC, 2012. II Congresso Internacional Sobre Culturas 661 O MUSEU NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE ARGENTINA, BRASIL E URUGUAI: UMA REFLEXÃO SOBRE AS POLÍTICAS CULTURAIS NOS GOVERNOS DEMOCRÁTICOS POPULARES DO SÉCULO XXI EM PERSPECTIVA COMPARADA Ana Ramos Rodrigues256 RESUMO Este texto aborda algumas reflexões sobre a construção das políticas culturais para a área museológica no contexto do surgimento de três governos democráticos e populares na América do Sul no século XXI (Argentina: governos de Néstor Kirchner – 2003/2006 e Cristina Fernández Kirchner – 2007/2015; Brasil: governos de Luís Inácio Lula da Silva– 2003/2010 e o primeiro mandato de Dilma Rousseff – 2011/2014; Uruguai: governos de Tabaré Vasquez – 2005/2010 e José Mujica–2010/2015). Com o Estado re-orientando suas políticas culturais em um sentido mais amplo e abrangente, procurou-se compreender, contextualizar e analisar o lugar dos museus nessa política cultural. Palavras-chave: Governos Democráticos. Políticas Culturais. Museus INTRODUÇÃO O museu, como uma ferramenta política e social utilizada para inclusão de identidade e cidadania para garantir o direito à memória dos grupos e movimentos sociais, é um instrumento com potencial para fortalecer a percepção crítica e reflexiva da realidade social de cada país. Neste sentido, este texto apresenta alguns apontamentos em relação, as políticas públicas culturais voltadas para os museus, numa perspectiva comparada entre os anos de 2003 e 2015 nos governos de Néstor Kirchner (2003-2006) e Cristina Fernández Kirchner (2007-2015) na Argentina257; Luís Inácio Lula da Silva (20032010) e o primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-2014) no Brasil258; e Tabaré Vasquez (2005-2010) e José Mujica (2010-2015) no Uruguai259. 256 Doutoranda em Políticas Públicas da UFRGS. Professora substituta do Curso de Museologia do Departamento de Ciências da Informação da UFRGS. E-mail: ana.rodrigues@ufrgs.br 257 Durante este período tiveram como Ministro(a)s da cultura da Argentina: Torcuato Di Tella Secretário de Cultura de la Nación Argentina (2003-2004); José Nun - Secretário de Cultura de la Nación Argentina (2004-2009); Jorge Edmundo Coscia - Secretário de Cultura de la Nación Argentina (2009-2014); Teresa Parodi Ministra de Cultura de La Nación Argentina – (maio de 2014 – dezembro de 2015). 258 Durante este período tiveram como Ministro(a)s da cultura do Brasil: Gilberto Gil (2003-2008); Juca Ferreira (2008-2010); Ana Buarque de Holanda (2011- até setembro de 2012); Marta Suplicy (setembro de 2012 até novembro de 2014) ; Ana Cristina da Cunha Wanzeler - interina (novembro de 2014 a janeiro de 2015). 259 Durante este período tiveram como Ministro(a)s da Educação e Cultura do Uruguai: Jorge Brovetto (2005- 2008); María Simon (2008 – 2010); Ricardo Ehrlich (2010-2015). II Congresso Internacional Sobre Culturas 662 Como um construtor de memórias e identidades, o museu também age como um “selecionador” do patrimônio. Neste processo de seleção, apresenta-se algumas implicações de escolha, refletindo-se assim as concepções políticas e ideológicas da coletividade. Ou seja, trata-se de uma delicada equação do que deve ser lembrado e do deve ser esquecido. Neste sentido, é imprescindível conhecer e analisar as políticas públicas que os países com governos democráticos desenvolveram e aplicaram para estimular o respeito à diversidade cultural e natural destas instituições de memória. Para compreender as políticas culturais no campo dos museus é importante, apresentar alguns questionamentos: a) as estratégias de integração de uma Política Nacional de Museus entre os países; b) a composição dos programas e suas ações em relação às políticas culturais voltadas para os museus; c) a organização dos respectivos países na busca de adequar a gestão de seus museus ao orçamento econômico disponível e às ações sociais. A escolha dos países Argentina, Brasil e Uruguai condiz com suas políticas culturais desenvolvidas no campo dos museus durante os seus governos democráticos com características de contribuir para algum tipo de transformação social, a partir das reivindicações de diversas minorias culturais. AS ESTRATÉGIAS DE INTEGRAÇÃO DAS POLÍTICAS CULTURAIS O tema das políticas públicas para a cultura ingressou de forma mais significativa na agenda de discussões dos países latino-americanos no final dos anos 1990. Entendendo a cultura como elemento fundamental para a integração regional, os países do bloco do Mercosul criaram, em 1998, o Mercosul Cultural260. O Mercosul Cultural é constituído pela Reunião dos Ministros da Cultura de cada país (RMC), entidade máxima do setor, e conta com uma Secretaria, um Comitê Coordenador Regional (CCR), onde se reúnem representantes dos Ministérios de Cultura para articular a agenda do setor e três Comissões especializadas, entre elas, a de Patrimônio Cultural (CPC); a de Diversidade Cultural (CDC); e a de Economia Criativa e Indústrias Culturais (CECIC). 260 Com o objetivo de estimular o debate e fortalecer a área, os pontos destacados nesse encontro visaram estimular o intercâmbio de políticas culturais, o desenvolvimento de estudos, a integração de sistemas de informação e estatística, a promoção de intercâmbios técnicos e artísticos, a gestão do patrimônio cultural e a valorização da memória social e da diversidade cultural. II Congresso Internacional Sobre Culturas 663 Embora definidas as diretrizes culturais gerais do Mercosul, somente anos mais tarde se discutiu um plano político para o setor museológico. Em 19 de setembro de 2005, em Buenos Aires, Argentina, ocorreu a Jornada Los Museos y la Política del Mercosur, onde se ressaltou a dimensão dada à política de museus dos países do bloco261. Com o objetivo de aprovar uma agenda de trabalho para articular um plano estratégico para a integração dos museus da região, a "Declaração de Buenos Aires para os Museus do Mercosul" apresentou os aspectos essenciais a serem trabalhados: os museus do século XXI; Governabilidade e Gestão; Interpretação e Proteção dos Bens Culturais: Prevenção contra o tráfego ilícito de Bens Culturais; Circulação de Bens Culturais; Comunicação e Acessibilidade ao Patrimônio; e Política(s) Nacional(ais) de Museus. Em 23 de novembro de 2012, ocorreu em Brasília a XXXV Reunião de Ministros de Cultura do Mercosul. Neste encontro foi apresentada a proposta da criação do Programa MercoMuseus, o qual propôs a reunião das instituições e profissionais de museus dos países do Mercosul em um esforço continuado para o aperfeiçoamento de suas ações e o desenvolvimento de políticas públicas para a cultura, com vistas a estimular a integração sul‐americana pela aproximação entre culturas. No sentido de expor outras ações culturais realizadas no âmbito do Mercosul, em 26 de novembro de 2014 foi realizado um encontro com os ministros de Cultura dos países integrantes do Mercosul, também em Buenos Aires. Após discutirem os principais pontos para avançar a integração entre os países da região, foi definido a implementação do “Selo Mercosul Cultural”, uma certificação para facilitar a circulação de bens culturais entre os países membros do Mercosul. Em tal reunião decidiu-se a aprovação das regras para a criação do Fundo do Mercosul Cultural, visando financiar iniciativas culturais de pessoas físicas ou jurídicas dos países do bloco. Estas aproximações das políticas preenche uma lacuna na história dos países sul-americanos. Segundo Celina Souza (2006), a maioria dos países de democracia recente, em especial os da América Latina, ainda não formaram coalizões políticas capazes de equacionar minimamente a questão de como desenhar políticas públicas 261 Além dos países membros: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, este encontro contou com a presença do Chile, país associado ao Mercosul. II Congresso Internacional Sobre Culturas 664 capazes de impulsionar o desenvolvimento econômico e de promover a inclusão social de grande parte de sua população. Mas, as reuniões realizadas desde 1998 através do Mercosul Cultural, revelam um esforço de entender a cultura como uma variável que pode favorecer o diálogo e a integração. POLÍTICAS CULTURAIS NO CAMPO DOS MUSEUS Embora a Argentina não possua uma legislação específica, existe uma lei de patrimônio que regulamenta o âmbito dos museus – Lei 12665, 08/10/1940 – que criou a Comissão Nacional de Museus e de Monumentos e Lugares Históricos (CNMMLH) sob a subordinação da Dirección Nacional de Patrimonio y Museos262, vinculada à Secretaria de Cultura da Nação, criada no ano de 2002. Trata-se de uma Secretaria de Estado com status de ministério, subordinada diretamente à Secretaria Geral da Presidência. Mesmo que seja uma política que regulamenta o campo museal, o grande entrave para a implementação de uma Política Nacional de Museus reside no fato de que a Argentina não possui a definição legal do termo museu. No entanto, existe uma norma263 administrativa no âmbito da Secretaria da Cultura, o qual se adota a definição de museu do Conselho Internacional de Museus (ICOM). No Brasil, em 2003, com a entrada de Gilberto Gil no Ministério da Cultura (Minc), foi criada a Política Nacional de Museus (PNM). Compreendendo a renovação e a importância dos museus na vida cultural e social brasileira, a etapa seguinte foi a criação do Sistema Brasileiro de Museus (SBM), por meio do Decreto nº 5.264, de 5 de novembro de 2004. Dando continuidade à implementação da política no setor, em 2009, foi criado o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM)264 (Lei nº 11.906, de 20 de janeiro). Outros órgãos foram criados durante o governo Lula tais como o Sistema Nacional de Cultura, o Plano Nacional de Cultura e a construção de um Sistema Nacional de Indicadores e Informações Culturais, bem como os investimentos na área de Economia da Cultura em ação conjunta com o Instituto Brasileiro de Geografia e 262 Tem a responsabilidade de entender, conduzir e planejar estratégias para a investigação, promoção, resgate, preservação, estímulo, melhoramento, acrescentamento e difusão, no âmbito nacional e internacional, do patrimônio cultural da nação, tangível e intangível, imaterial e oral, em todos os campos em que se desenvolve. 263 Resolução SC N.º 1011 de data 28 de abril de 2005. 264 Este órgão foi um marco de uma política pública no setor. As ações propostas pelo IBRAM buscaram (e buscam) qualificar e modernizar os espaços museológicos existentes, garantindo o processo de preservação da memória nacional sob a guarda destas instituições. II Congresso Internacional Sobre Culturas 665 Estatística (IBGE) e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), representando um avanço importante para a gestão da cultura, numa perspectiva democrática e popular. Diferentemente da Argentina, o Brasil apresenta uma definição legal de museu265. No Uruguai a legislação criada para os museus foi assinada durante o governo de José Mujica, com a Lei nº 19.037 de 28/12/2012, denominada de Lei de Museus do Sistema Nacional de Museus. O Sistema Nacional de Museus está vinculado ao Departamento Nacional de Cultura, criado em 2007, que, por sua vez, está subordinado ao Ministério de Educação e Cultura (MEC), com o objetivo de formar um sistema nacional para fortalecer as instituições, promover a cooperação e otimização dos recursos humanos e financeiros dos museus no Uruguai. Assim como o Brasil, o Uruguai possui uma definição legal do termo museu266 (Lei nº 19.037/2012). Uma vez avançada a legislação, os grandes desafios interpostos aos países consiste na aplicabilidade de suas diretrizes para o campo museal, especialmente no que diz respeito ao orçamento disponibilizado, e na manutenção das políticas públicas culturais de modo geral em um contexto marcado pelo rápido avanço conservador nos países sul-americanos, onde as políticas públicas cada vez mais estão subordinadas aos interesses privados. GESTÃO DE MUSEUS No Brasil, a mudança de gestão no campo dos museus está acontecendo de forma gradual através de uma legislação específica para esta área, constituída por uma política pública direcionada para os museus. O Brasil, a partir do Estatuto de Museus (Lei nº 11.904 de 14 de janeiro de 2009), instituiu o Plano Museológico, como uma ferramenta de gestão, o qual vinculase ao primeiro eixo programático da Política Nacional de Museus, intitulada gestão e configuração do campo museológico, como uma ferramenta estratégica na gestão de museus. O Plano Museológico tem como finalidade estimular e respaldar o trabalho de 265 Este órgão foi um marco de uma política pública no setor. As ações propostas pelo IBRAM buscaram (e buscam) qualificar e modernizar os espaços museológicos existentes, garantindo o processo de preservação da memória nacional sob a guarda destas instituições. 266 Artigo 2. São museus a efeitos da presente lei, aquelas instituições sem fins lucrativos, criadas a partir de um conjunto de bens culturais ou naturais considerados de interesse patrimonial, documentados, estudados e expostos, com a finalidade de promover a produção e a divulgação de conhecimentos, com fins educativos e de deleite da população. II Congresso Internacional Sobre Culturas 666 gestão do museu, definindo as diretrizes e metas que precisam ser discutidas pelo grupo de profissionais através da integração entre as diversas áreas de funcionamento da instituição, tanto na requalificação quanto no processo de implantação. No Uruguai de acordo com a Lei 19.037 (Lei de Museus e Sistema Nacional de Museus) e no seu decreto regulamentário, se apresenta um guia para a elaboração do Plano Diretor para Museus e Coleções Museográficas. É um instrumento que contribui para o fortalecimento institucional e na a gestão dos museus e coleção museográfica, no sentido de qualificar o serviço público de qualidade para a sociedade. Na Argentina, como ainda não existe uma legislação específica sobre os museus não há a implantação de um plano estratégico para gestão de museus, mas existe uma Rede de Museus e Institutos Nacionais que oferecem uma série de serviços para orientar e agilizar a gestão, como também a difusão de todas as atividades que se realizam em diferentes áreas dos museus. CONSIDERAÇÕES FINAIS As questões colocadas neste texto apresentam algumas reflexões importantes para compreendermos como estes países estão trabalhando suas políticas culturais no campo dos museus. Sinteticamente, os primeiros desafios dos novos governos foram ampliar o entendimento sobre as questões culturais e estabelecer o alcance pretendido pelas políticas públicas para a área. Para isso, foram realizados encontros e reuniões criando grupos de trabalho e debates entre especialistas com o fim de ampliar os horizontes e tornar a cultura mais acessível e participativa, enfatizando, assim, a diversidade cultural de cada país. O passo seguinte foi a criação e o aperfeiçoamento de legislações no campo dos museus, no sentido de criar e fomentar políticas públicas para o setor. Neste ínterim, o museu ficou entendido como uma ferramenta política e social utilizada para inclusão de identidade e cidadania para garantir o direito à memória dos grupos e movimentos sociais. A gestão cultural está entre um dos desafios contemporâneos presentes na área da política cultural, abordando as transformações contemporâneas associadas às novas dimensões atribuídas ao campo da cultura e trazendo a gestão em museus como II Congresso Internacional Sobre Culturas 667 um dos processos estratégicos e de planejamento gerais das atividades dos diferentes museus existentes. O aumento de diferentes tipologias de museus, tais como comunitários, populares, étnicos, temáticos, além dos museus tradicionais, durante governos democráticos populares do século XXI, demonstram um maior crescimento destes espaços como locais de afirmação de segmentos sociais e uma nova perspectiva dos museus em reivindicar uma afirmação da diversidade cultural e fortalecer a identidade cultural com a ideia de pertencimento a uma determinada coletividade. REFERÊNCIAS BRASIL. Lei nº 11.904 de 14 de janeiro de 2009. Institui o Estatuto de Museu. Brasília, DF, 14 de janeiro de 2009. 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