WHAT CAN PHILOSOPHY OF MUSIC DO? PHYSICS AND METAPHYSICS OF
MUSIC IN SCHOPENHAUER
DANIEL PUCCIARELLI1
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) — Brasil
arelli@gmail.com
RESUMO: O artigo investiga as potencialidades e limites do discurso filosófico sobre música a partir
do pensamento de Arthur Schopenhauer. Em particular, pretende-se plausibilizar a tese de que a
filosofia da música de Schopenhauer, por operar de maneira autoconsciente no terreno da analogia
e por se compreender como uma metafísica robusta da música, é um espaço privilegiado para se
estudar a natureza mesma da estética filosófica. Para tal, o artigo oferece uma reconstrução
panorâmica tanto das principais linhas de força do seu sistema quanto de sua estética, para enfim
interrogar a fundamentação de seus procedimentos de elaboração conceitual a partir de
desdobramentos da estética e teoria musicais do século XX.
PALAVRAS-CHAVE: Filosofia da música. Metafísica da música. Música. Linguagem. Analogia
ABSTRACT: The article investigates the potentialities and limits of the philosophical discourse on
music based on the thought of Arthur Schopenhauer. More specifically, we intend to render
plausible the thesis that Schopenhauer's philosophy of music, by operating in a self-conscious way
in the field of analogy and by understanding itself as a robust metaphysics of music, is a privileged
space for the study of the very nature of aesthetics of music. For doing so, the article offers a
panoramic reconstruction of both the main lines of his system and his aesthetics, in order to
interrogate the ground of its procedures of conceptual elaboration basing on elements of the
aesthetics and musical theory of the 20th century.
KEYWORDS: Philosophy of music. Metaphysics of music. Music. Language. Analogy
INTRODUÇÃO
O leitor dos textos célebres da história da estética está habituado a um
expediente de leitura curiosamente oblíquo: para compreender o tratamento que
determinado autor confere a certo construto artístico ou procedimento técnicoformal em seu sistema das artes, é preciso com frequência recuar para as suas
decisões teóricas mais gerais, que, via de regra, são externas ou mesmo anteriores
à estética propriamente dita. Por exemplo: para compreender o célebre tratamento
1
Pesquisador de Pós-Doutorado (PNPD-Capes) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
SOFIA (ISSN 2317-2339), VITÓRIA (ES), V.7, N.2, P. 226-239, JUL./DEZ. 2018
DOSSIÊ SCHOPENHAUER
O QUE PODE A FILOSOFIA DA MÚSICA? FÍSICA E METAFÍSICA
DA MÚSICA EM SCHOPENHAUER
Daniel Pucciarelli
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conferido à poesia n'A República de Platão, é preciso primeiramente compreender
— ou mesmo subscrever — as decisões epistemológicas e metafísicas centrais que
emergem da hipótese das Formas. Igualmente, dificilmente se compreenderá o
Sistema das Artes de Hegel independentemente de uma mínima consideração de
sua teoria da conceitualidade. Por um lado, é razoável supor que essa sina da
reflexão filosófica sobre as artes provém não apenas — digamos — de vicissitudes
civilizacionais, herdadas e reafirmadas pelos filósofos, acerca do papel e da função
da arte em nossas sociedades, mas da própria natureza dos construtos estéticos.
Constitutivamente abertos quanto a suas possibilidades de interpretação,
tendencialmente resistentes a abordagens sistemáticas totalizantes e unívocas, a
natureza dos próprios construtos acabaria por impor esse destino à estética
filosófica. Por outro lado, o que decorre disso é bastante evidente: acabamos por
enfatizar o aspecto notadamente subordinado e secundário da disciplina estética
no interior da arquitetônica filosófica. Possivelmente, essa é uma das razões pelas
quais não é incomum que verifiquemos um certo desapreço da estética por parte
dos artistas; no máximo — segue o veredito — a estética filosófica tem reflexões
interessantes a oferecer, mas via de regra bastante apartadas, sobretudo em seus
momentos mais “normativos” ou judicativos, de sua prática artística concreta.
À primeira vista, pode-se dizer que o pensamento musical de Arthur
Schopenhauer padece da mesma dificuldade: embora conceda à música uma talvez
inédita posição francamente privilegiada entre as demais artes — razão pela qual
ele atraiu a admiração de grandes músicos como Richard Wagner e Arnold
Schoenberg —, essa posição decorre, em larga medida, de suas decisões metafísicas
globais: “Schopenhauer é muito musical: repetidamente, caracterizei a sua obraprima como uma sinfonia em quatro movimentos; e em seu terceiro movimento,
dedicado ao ‘Objeto da Arte’, ele celebrou a música como nenhum outro
pensador”, sumariza Thomas Mann em um interessante estudo sobre a estética
musical do filósofo, “concedendo à música um lugar inteiramente distinto não ao
lado, mas sobre as outras artes — porque, à diferença destas, ela não é cópia do
fenômeno, mas cópia imediata da própria Vontade, representando, assim, a
metafísica para toda física do mundo, a coisa-em-si para todo fenômeno” (MANN,
1978, p. 217). Em certo sentido, o próprio Schopenhauer demonstra estar ciente
disso em várias passagens de O mundo como vontade e representação: “Quando
devotava meu espírito à impressão da arte dos sons”, escreve o filósofo ao final do
terceiro livro de sua obra magna, “cheguei a uma explanação sobre a sua essência
íntima e sobre o tipo de relação imitativa que tem com o mundo, pressupostas
necessariamente por analogia, que é por inteiro suficiente para mim e minha
investigação, e também o será para todos os que me seguiram até aqui e
concordaram com a minha visão de mundo” (WWV I/MVR I, p. 337s)2. Nesse
sentido, tendo em vista o caráter francamente analógico de suas — ou, mais
importante: de quaisquer — considerações filosóficas sobre música, ficaria a cargo
do leitor “concordar com ou rejeitar” a sua estética musical, “de acordo com o
efeito nele provocado em parte pela música, em parte por todo o pensamento
comunicado neste escrito” (WWV I/MVR I, p. 338). O poder de persuasão de suas
2
Neste texto, utilizou-se a edição brasileira do primeiro tomo de O mundo como vontade e como
representação (SCHOPENHAUER, 2005), doravante citada como “WWV I/MVR I”. No entanto, a
tradução pode ser modificada em alguns momentos sem aviso. As traduções do segundo tomo da
mesma obra são de minha autoria, a partir da edição de Wolfgang Freiherr von Löhneysen, citadas
como “WWV II/MVR II”.
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O que pode a filosofia da música?
reflexões sobre música adviria, assim, de um prévio assentimento ou simpatia da
parte do leitor pela cosmovisão do autor expressa em seu sistema; caberia ao
discurso estético — e particularmente ao estético-musical, dada a natureza
incontornavelmente não conceitual e não representacional do seu objeto — antes
o gesto de mostrar com recursos discursivos sempre limitados o que não pode ser
demonstrado conceitualmente.
Ora, tendo em vista esse diagnóstico introdutório, cabe perguntar: qual é o
estatuto do discurso estético? Deve-se depreender que a estética — e, novamente,
sobretudo a estética musical — é necessariamente, em função do seu próprio objeto,
uma disciplina parasitária ou meramente ilustrativa de decisões teóricas anteriores,
de modo que o mesmo fenômeno pode ilustrar posições possivelmente
contraditórias, ou que o abandono de certo quadro categorial epistemológico ou
metafísico deva implicar, correlativamente, o abandono de certa posição estética?
Como é possível abordar conceitualmente obras de arte não conceituais e não
representacionais, como é o caso da música, e qual o estatuto dessa abordagem?
Antes de procurar negar ou confirmar unilateralmente esse diagnóstico
introdutório, o presente texto gostaria de testar a hipótese de que a estética musical
de Schopenhauer é um espaço altamente privilegiado para se tematizar e recolocar
essas questões — que, bem entendido, transcendem o âmbito estrito da filosofia da
música e alcançam o da estética filosófica em geral. No que concerne
particularmente à filosofia da música, procurarei mostrar que o pensamento
musical schopenhauriano, por saber-se a si mesmo inarredavelmente atrelado a
um modelo de argumentação analógico, toca o cerne do problema sobre as
possibilidades e impasses da disciplina.
I
É útil descrever o empreendimento teórico de Schopenhauer no contexto
intelectual da primeira onda de recepção da filosofia kantiana na Alemanha,
filosofia da qual — como parte substantiva de seus contemporâneos — ele se
compreendia como um continuador e radicalizador. Pode-se dizer, no entanto, que
sua posição nesse contexto é sui generis. De um lado, à diferença do consenso
amplamente compartilhado pelos seus contemporâneos idealistas, que
consideravam o dualismo kantiano entre fenômeno e coisa-em-si uma
inconsistência sistêmica ou mesmo um resíduo pré-crítico no interior da filosofia
crítica — a ser superado por variantes radicalizadas de idealismo em relação ao
transcendental —, o sistema de Schopenhauer baseia-se, como um todo, na hipótese
da correção fundamental desse dualismo. De outro lado, à diferença das
interpretações mais econômicas e deflacionadas de Kant, que procuram ler o
conceito de coisa-em-si como mero artifício intrateórico de fundamentação
sistemática do transcendentalismo3, Schopenhauer procura levar a cabo uma leitura
inteiramente heterodoxa do sistema kantiano, segundo a qual poder-se-ia acessar
por via indireta um conceito positivo de coisa-em-si como Vontade: uma Vontade
metafisicamente saturada como essência irracional do mundo, contraposta ao
mundo fenomênico da representação, compreendida, por sua vez, a partir de uma
3
Um exemplo clássico dessa interpretação deflacionada da filosofia transcendental kantiana no que
concerne ao problema geral da coisa-em-si é a obra de Prauss (1974).
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reforma conscientemente simplificadora do fenomenismo kantiano. Assim, a
categoria cosmológica de “mundo” como totalidade se torna teoricamente
elaborável a partir dessas duas macroperspectivas fundamentais e simetricamente
opostas de vontade e representação. Dessa última, a representação, ocupam-se
analiticamente o primeiro e terceiro livros de sua obra magna, sendo o terceiro
dedicado ao mundo como representação “considerado independentemente do
princípio de razão”, isto é, majoritariamente às Belas Artes.
No Livro III, como em outros momentos decisivos da obra, vê-se uma
curiosa combinação de elementos centrais da estética kantiana — os conceitos de
belo e sublime, a ideia de gênio, a teoria da contemplação desinteressada, entre
outros — com elementos da metafísica platônica. Assim, Schopenhauer mobiliza o
que ele chama de “as Ideias de Platão” como “espécies determinadas, ou formas e
propriedades originárias e imutáveis dos corpos orgânicos e orgânicos e
inorgânicos, bem como das forças naturais que se manifestam segundo leis da
natureza” (WWV I/MVR I, p. 235). Trata-se de entidades puramente intelectuais,
em certo sentido mediadoras entre o mundo da Vontade e o mundo da
representação na medida em que elas são externas ao princípio de razão — o
princípio de toda individuação e a forma geral da representação —, mas se
manifestam no mundo da representação. A manifestação concreta das Ideias no
mundo, por sua vez, “se expõem em inúmeros indivíduos e fenômenos
particulares, com os quais se relacionam como os modelos se relacionam com suas
cópias” (Idem, Ibidem). Bem entendido, as individualidades concretas, as
“existências particulares” são submetidas ao principium individuationis e
pertencem, assim, à esfera da representação. O conhecimento ordinário nada mais
é, portanto, do que o conhecimento dessas individualidades no espaço-tempo e
segundo a lei de causalidade. As Ideias elas mesmas, entretanto, ao passo que são
inacessíveis ao conhecimento submetido ao princípio de razão, são o objeto
próprio da arte.
A objetivação da Vontade no mundo — já submetida ao princípio de razão
— obedece a um princípio hierárquico que segue, em realidade, os estágios de
desenvolvimento do principium individuationis, de modo que o grau mais alto de
objetivação revela igualmente o grau de individuação em que esta se manifesta da
maneira mais límpida. Schopenhauer a ordena conforme uma “escala dos seres”
segundo o nível de complexificação do inorgânico ao orgânico, a saber: os reinos
mineral, vegetal, animal até o homem. A arte, por sua vez, segue um princípio
análogo, exemplificando um estágio específico de objetivação da Vontade; o objeto
de cada forma artística corresponde, assim, à Ideia representada segundo aquela
hierarquia: a arquitetura, a arte de jardim e a pintura paisagística (“uma lição
instrutiva a partir do grande livro da natureza” — WWV I/MVR I, p. 294), a escultura,
a pintura histórica, a poesia e, finalmente, a música.
Como Platão, também Schopenhauer concebe a arte em geral como cópia
de um modelo; à diferença daquele, no entanto, para o pensador prussiano, a arte
não é mera cópia ou mimese do mundo fenomênico — e, como tal, duplamente
distanciada da realidade da Ideia —, mas cópia das próprias Ideias. Confere-se,
assim, um estatuto gnosiológico privilegiado às artes, que são imbuídas de uma
potência intensificada de objetivação da Vontade — ainda que por intermédio da
Ideia. Sem nos distanciar de nosso objeto específico, mencionemos brevemente
que essa constelação teórica implica uma vasta teoria do gênio, da intuição pura e
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da contemplação desinteressada das Ideias por um sujeito puro: uma vez que as
Ideias não são submetidas ao princípio de razão, o acesso a elas exige uma forma
de contemplação desinteressada que seria capaz de suspender esse princípio,
elevando o indivíduo à condição de um sujeito puro, isto é, de um sujeito
virtualmente liberto do principium individuationis. A genialidade consiste,
portanto, principalmente nessa capacidade: “É a arte, a obra do gênio. Ela repete
as Ideias eternas apreendidas por pura contemplação, o essencial e permanente
dos fenômenos do mundo (...) Sua única origem é o conhecimento das Ideias; seu
único fim é a comunicação desse conhecimento” (WWV I/MVR I, p. 253).
II
Há uma única exceção a esse esquema geral: é o caso da música. À
diferença das outras artes, em virtude de sua própria natureza não conceitual e
não representacional, a música não é cópia das Ideias — e, com isso, capaz de
objetivação apenas indireta da Vontade —, mas cópia da própria Vontade. Vejamos
um pouco mais de perto o que escreve Schopenhauer a esse respeito:
Todas [as artes — D. P.], portanto, objetivam a Vontade apenas
mediatamente, a saber, por meio das Ideias. Ora, como o nosso
mundo nada é senão o fenômeno das Ideias na pluralidade, por
meio de sua entrada no principium indiviaduationis (a forma de
conhecimento possível ao indivíduo enquanto tal), segue-se que
a música, visto que ultrapassa as Ideais e também é
completamente independente do mundo fenomênico, ignorandoo por inteiro, poderia em certa medida existir ainda que não
houvesse mundo — algo que não pode ser dito acerca das demais
artes. De fato, a música é uma tão imediata objetivação e cópia de
toda a Vontade, como o mundo mesmo o é, sim, como as Ideias
o são, cuja aparição multifacetada constitui o mundo das coisas
particulares. A música, portanto, de modo algum é semelhante às
outras artes, ou seja, cópia de Ideias, mas cópia da Vontade
mesma, cuja objetidade também são as Ideias. (WWV I/MVR I, p.
338).
Muito se pode depreender dessa passagem. Em primeiro lugar: se à arte
como um todo fora atribuída uma potência gnosiológica privilegiada no sistema
schopenhauriano, então é forçoso dizer que atribui-se à música, por sua vez, uma
potência propriamente ontológica ou metafísica. Aqui reside a ilustrativa crítica de
Schopenhauer a Leibniz, que havia notadamente reduzido a música a sua
dimensão exclusivamente físico-acústica e a concebido como um exercitium
arithmeticae occultum nescientis se numerare animi, isto é, um exercício oculto
em aritmética, no qual o espírito não sabe que calcula (WWV I/MVR I, p. 337);
Schopenhauer, ao contrário, ao conferir um estatuto metafísico — de resto, franca
e corajosamente inflacionado — à música, a define como exercitium metaphysices
occultum nescienties se philosophari animi, isto é, um exercício oculto em
metafísica, no qual o espírito não sabe que filosofa (WWV I/MVR I, p. 347)4. Muito
precisamente, a música está para a Vontade assim como estão as próprias Ideias:
4
Sobre a contraposição com Leibniz encenada por Schopenhauer em sua obra, cf. Schulze (1995)
que, além de analisá-la, oferece também uma reconstrução de ambas teorias musicais.
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às duas instâncias recai exatamente o mesmo grau de realidade, as duas são, nesse
sentido, metafisicamente comensuráveis. De fato, Schopenhauer se refere às duas
explicitamente nos termos de um Parallelismus (WWV I/MVR I, p. 339).
Em segundo lugar: se Ideias e música são instâncias paralelas e
ontologicamente equivalentes no que concerne ao grau de objetivação da Vontade,
então segue-se daí que ambas encontram-se em uma relação de radical
independência em relação ao mundo. Este, por sua vez, é metafisicamente
derivado das Ideias e, portanto, possui menor grau de realidade que elas. Algo
metaforicamente, pode-se dizer que tanto as Ideias quanto a música discorrem, em
meios ontológicos distintos porém comensuráveis, acerca de uma realidade
primordial da qual o mundo é mero simulacro; elas constituem uma espécie de
discurso metafísico depurado de toda singularização proveniente do fenômeno,
embora — bem entendido — se manifestem no mundo físico. Nesse sentido,
Schopenhauer não tem pudores em afirmar que a música não expressa “esta ou
aquela alegria determinada, esta ou aquela amargura, ou dor, ou espanto, ou
júbilo, ou jocosidade, ou tranquilidade de espírito, mas a alegria, a amargura, a
dor, o espanto, o júbilo, a jocosidade, a tranquilidade de espírito elas mesmas, de
certo modo in abstracto (WWV I/MVR I, p. 343).
Em terceiro lugar, se é verdade que a música, como as Ideias, é
ontologicamente anterior e superior ao mundo fenomênico, então todo e qualquer
discurso conceitual sobre a música — articulado, digamos, com palavras deste
mundo — será necessariamente deficitário. Pois a própria linguagem conceitual é
também ontologicamente derivada e dependente das Ideias, de modo que ela se
situa em um âmbito de realidade não apenas enfraquecido, mas qualitativamente
subordinado àquele ocupado pela música:
A música, portanto, caso vista como expressão do mundo, é uma
linguagem universal no mais supremo grau, que está até mesmo
para a universalidade dos conceitos como aproximadamente estes
estão para as coisas particulares. Sua universalidade, entretanto,
não é de maneira alguma a universalidade vazia da abstração, mas
de um tipo totalmente outro, ligada a uma determinidade mais
distinta e contínua. Ela se assemelha, assim, às figuras geométricas
e aos números, que como as formas universais de todos os objetos
possíveis de experiência, aplicáveis a todos a priori, não são no
entanto abstratos, mas passíveis de intuição e sempre
determinados. (WWV I/MVR I, p. 344).5
Assim, a única maneira pela qual a música pode ser abordada
conceitualmente é por via indireta ou analógica, visto que é preciso recorrer a este
mundo, como toda equivocidade e insuficiência constitutiva do discurso sobre o
fenômeno, para tematizar o que se encontra para além dele. É evidente que uma
tal problemática só surge na medida em que atribuímos ao discurso sobre música
o compromisso enfático de ser uma filosofia da música, isto é, não apenas um
discurso sobre a física da música, mas uma metafísica da música, “uma significação
5
Obviamente, Schopenhauer está perfeitamente consciente que a música repetidamente tomará de
empréstimo a linguagem ordinária para si mesma, mas utilizando seu elemento propriamente
linguístico-conceitual de maneira inteiramente acessória e mesmo descartável; mais ainda, em todos
esses casos, a música como que se esforça para falar uma linguagem que não é a sua. Música em
sentido próprio, para Schopenhauer, é música absoluta.
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mais geral e mais profunda em relação com a essência do mundo e nossa própria
essência” (WWV I/MVR I, p. 328). Dito de outro modo, se quisermos passar da
análise unicamente técnico-formal do fenômeno da música — ou seja, do que
podemos chamar de sua sintática intramusical — para a análise propriamente
filosófica da essência da música — ou seja, o seu eventual significado extramusical
—, teremos de nos arriscar, digamos, no salto mortale da sempre problemática e
insuficiente analogia. Ou, retomando os termos da crítica de Schopenhauer a
Leibniz, se quisermos imbuir as análises físico-matemáticas da música de algum
sentido extramatemático, precisaremos invariavelmente nos defrontar com o
problema das próprias condições de possibilidade do discurso sobre música. A
crítica de Schopenhauer a Leibniz no que concerne à metafísica da música levanta,
assim, de uma maneira renovada, o problema da dimensão referencial da música
como linguagem: seria a música um discurso sobre algo ou mero jogo formal
exclusivamente intramusical? De sua parte e como já mencionado, Schopenhauer
é perfeitamente consciente do caráter forçosamente paradoxal de um tratamento
propriamente filosófico do fenômeno musical: um tal tratamento
é do tipo que nunca pode ser comprovada, pois leva em conta, e
estabelece, uma relação da música, como uma representação,
como algo que essencialmente nunca pode ser representação,
pretendendo assim ver na música a cópia de um modelo que, ele
mesmo, nunca pode ser representado imediatamente. Portanto, a
minha explanação apresenta a música como a cópia de um
modelo que ele mesmo nunca pode ser trazido à representação.
(WWV I/MVR I, p. 338).
Por fim, a despeito de sua elaboração teórica sofisticada e muitíssimo
saturada metafisicamente, não é equivocado afirmar que a filosofia da música de
Schopenhauer, tal como apresentada até aqui, concede consistência e
fundamentação filosófica a intuições sobre música essencialmente pré-filosóficas e
mesmo amplamente provenientes do senso comum. É de se supor, portanto, que
seu enorme sucesso entre filósofos da música e músicos também derive desse fato.
Pois, ao caracterizar a música como arte metafísica par excellence, paralela às
Ideias no que concerne à objetivação da Vontade e virtualmente inacessível ao
discurso racionalmente articulado, Schopenhauer está reiterando a opinião
largamente difundida de que a música é uma manifestação espiritual, digamos,
“etérea” em virtude de sua natureza não representacional e não conceitual,
tendencialmente inefável, interlocutora privilegiada dos mais recônditos —
irracionais — afetos humanos e, assim, proveniente como que de “outro mundo”.
Mesmo que não endossemos inteiramente todos os elementos de sua metafísica, a
filosofia da música de Schopenhauer nos devolve uma elaboração conceitual que
oferece sustentação a essas opiniões correntes sobre a natureza do discurso
musical. Mais ainda, ela se propõe a extrair todas as consequências dessa visão
geral da música para as próprias possibilidades do discurso filosófico sobre música.
III
É justamente a partir de um tal procedimento de paralelismo analógico entre
música e Vontade que Schopenhauer confere substância à sua filosofia da música
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compreendida como metafísica da música. Pois, como dito, não se trata, para o
filósofo, de apenas descrever as relações entre os sons em termos unicamente
físicos, isto é, em termos de relações e proporções unicamente formais, mas de
imbuí-las de significado propriamente metafísico. Segundo suas próprias
determinações, no entanto, Schopenhauer só pode estabelecer essas transposições
baseando-se no fenômeno físico da música. Mais especificamente, o filósofo se
vale, para tal, da teoria clássica do sistema tonal sistematizada por Rameau em seu
Traité de l’Harmonie, interpretando-a como a fundação teórica das regras
universais e naturais da música6. Assim descreve o filósofo o princípio geral da
música que serve de fundamento a suas transposições analógicas:
Parto da teoria em geral conhecida e que objeções recentes não
puderam abalarf em nada: toda harmonia dos sons baseia-se na
coincidência das vibrações; para duas notas que ressoam ao
mesmo tempo, essa coincidência se produzirá a cada segunda,
terceira ou quarta vibração, e as notas se tornarão portanto oitavas,
quintas ou quartas uma da outra, etc. Enquanto as vibrações de
dois sons tiverem uma relação racional e exprimível em um
número pequeno, elas podem, uma vez que a sua coincidência se
repete várias vezes, ser captadas em nossa percepção: os sons se
fundem um no outro e formam um acorde. Ao contrário, se a
relação é irracional, ou apenas exprimível em números grandes,
então não surgirá nenhuma coincidência apreensível das
vibrações, mas obstrepubt sibi perpetuo, em função de que elas
resistem a serem captadas em nossa apreensão, de forma que se
chamam dissonância. (WWV II/MVR II, p. 1969).
Dessa teoria geral da música, Schopenhauer crê poder deduzir, justamente,
(a) “a união do sentido metafísico da música com essa base física e aritmética”,
que “se baseia no fato de que o elemento rebelde à nossa apreensão, o irracional
ou a dissonância, se transforma na imagem natural das resistências opostas à nossa
vontade; e, ao inverso, a consonância ou o racional, que se apresenta sem
dificuldade à nossa percepção, representa a satisfação da Vontade” (WWV II/MVR
II, p. 1969); e também (b) uma espécie de psicologia da audição e da arquitetura
natural da música, segundo a qual “a audição, ao escutar um trecho musical,
seguirá sempre e de preferência o som mais elevado, e não o som mais forte”
(WWV II/MVR II, p. 1969s), de onde vem a preponderância natural do soprano e
da melodia nas composições musicais, assim como uma subordinação do baixo e
das duas outras vozes harmônicas tradicionais.
Concretamente, portanto, Schopenhauer emprega esse procedimento de
transposição analógica em virtualmente todas as dimensões do fenômeno musical.
Especialmente dignos de nota são dois aspectos específicos: em primeiro lugar,
trata-se de estabelecer uma relação de correspondência entre a melodia —
entendida como excursão melódica entre tensão e resolução, dissonância e
consonância — e a Vontade tal como ela se manifesta psicologicamente aos seres
humanos. Como escreve o filósofo:
A essência da melodia é um afastar-se, um desviar-se contínuo do
som fundamental, por diversas vias, não apenas para os intervalos
harmônicos, a terça e a dominante, mas também para cada tom,
6 Para uma boa reconstrução sobre a relação de Schopenhauer com Rameau, cf. Ferrara (1996).
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para a sétima dissonante e os intervalos aumentados; contudo
sempre seguido de um retorno ao tom fundamental. A melodia
expressa por todos esses caminhos o esforço multifacetado da
Vontade, mas também a sua satisfação, pelo reencontro final de
um intervalo harmônico, e mais ainda do tom fundamental. (WWV
I/MVR I, p. 341s).
Em segundo lugar, trata-se de estabelecer também uma relação de
correspondência direta entre as quatro vozes harmônicas tradicionais — o baixo, o
tenor, o contralto e o soprano — e os quatro graus de objetivação da Vontade (ou
da supramencionada “escala dos seres”) do inorgânico ao orgânico, a saber: os
reinos mineral, vegetal, animal e a humanidade. Vale a pena chamar a atenção
para uma passagem dentre várias nesse contexto geral em que o filósofo não
poupa o vocabulário diretamente ligado às ideias de correspondência, analogia,
comparação e representação:
O baixo contínuo é, portanto, na harmonia, o que no mundo é a
natureza inorgânica, a massa mais bruta, sobre a qual tudo se
assenta e a partir da qual tudo se eleva e desenvolve. — Ademais,
no conjunto das vozes intermediárias que produzem a harmonia
e se situam entre o baixo contínuo e a voz condutora que canta a
melodia, reconheço a sequência integral das Ideias nas quais a
Vontade se objetiva. As vozes mais próximas do baixo
correspondem aos graus mais baixos, ou seja, os corpos ainda
inorgânicos, porém já se exteriorizando de diversas formas. Já as
vozes mais elevadas representam os reinos vegetal e animal. — Os
intervalos determinados da escala tonal são paralelos aos graus
determinados de objetivação da Vontade, às espécies
determinadas da natureza. O desvio da correção aritmética dos
intervalos mediante um temperamento qualquer, ou produzido
pelo tipo escolhido de tom, é análogo ao desvio do indivíduo do
tipo da espécie. Sim, as dissonâncias impuras que não formam
nenhum intervalo determinado são comparáveis aos abortos
monstruosos situados entre duas espécies animais, ou entre
homem e animal. (WWV I/MVR I, p. 339s, minhas ênfases).
Por meio de tais paralelismos analógicos, enfim, Schopenhauer confere
substância enfática ou de conteúdo a sua tese geral segundo a qual a música seria
manifestação direta da Vontade e, como tal, ontologicamente superior ao próprio
mundo fenomênico. Ao acompanhar a arquitetônica das vozes e um discurso
melódico que transitasse entre regiões de tensão dissonante para enfim aceder a
uma resolução consonante, o ouvinte estaria simultaneamente em condições de
acompanhar, para Schopenhauer, um discurso cosmológico-metafísico sobre a
própria essência do mundo tal como ela se manifesta fenomenicamente em seu
próprio mundo interior; mais ainda, seria a essência do próprio mundo, depurada
das imperfeições do fenômeno, que se apresentaria concretamente na
arquitetônica musical e na melodia assim compreendida.
Vê-se, entretanto, que essas descrições de conteúdo de Schopenhauer sobre
o fenômeno musical baseiam-se umbilicalmente na teoria clássica do sistema tonal
sistematizada por Rameau. O que as torna possível é justamente o fato de que uma
determinada teoria sobre um determinado sistema sonoro é tomada como a
descrição universal e natural de toda música. Não por acaso o gênio musical
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paradigmático para Schopenhauer é Beethoven, cuja obra pode ser compreendida
como o grande marco de consolidação definitiva do sistema tonal, inteiramente
liberta de resíduos musicais pré-tonais e pré-modernos ainda presentes na estética
de seus antecessores, e enfim tributária da consolidação do processo de
racionalização e modernização da tonalidade levado a cabo com o temperamento
e outras inovações tecnológicas do período7. Sem esse expediente naturalizante do
sistema tonal, em suma, as transposições analógicas de Schopenhauer perdem
inteiramente seu lastro físico e, por conseguinte, o seu próprio fundamento teórico.
Efetivamente, se se tem em mente os desdobramentos da música do século XX,
que demonstraram os fundamentos convencionais do suposto naturalismo do
sistema tonal e de sua sintaxe própria, pode-se vislumbrar na metafísica da música
de Schopenhauer um expediente de naturalização indevida ou dogmática de uma
determinada figuração inteiramente convencional do idioma. Antes de poder ser
caracterizado como um mero erro teórico, no entanto, esse expediente de
naturalização indevida é revelador do que está em questão em uma filosofia da
música que se queira metafísica da música.
IV
Vejamos rapidamente em que medida os desdobramentos da música e da
teoria musical do século XX podem abalar a teoria clássica do sistema tonal e, com
ela, a própria metafísica da música de Schopenhauer.
Paralelamente à crise de outros sistemas de configuração estética das Belas
Artes, o século XX vivenciou a consumação da crise da tonalidade e a emergência
de diferentes métodos de ordenação sonora se não inteiramente distintos (como é
o caso da técnica dodecafônica e dos serialismos dela provenientes), ao menos
tributários de profundas reformas, refuncionalizações e perversões autoconscientes
do sistema tonal. Há diferentes, e em certos casos complementares, hipóteses
explicativas sobre a crise do sistema tonal no Ocidente, que via de regra
convergem no sentido do que se caracterizou amplamente como um processo de
emancipação da dissonância. Em linhas gerais, trata-se de um processo de
potencial refuncionalização e autonomização da dissonância do interior do sistema
de referências que tradicionalmente a encapsulara, e de sua afirmação como
unidade de sentido autônoma, não derivada ou subordinada ao padrão estético
normalizador conferido pela consonância. Paralelamente a esse processo,
representantes da musicologia histórica, da estética e da teoria musicais e mesmo
da ciência acústica moderna convergiram no sentido de revelar a evidente
equivocidade da própria terminologia clássica de consonância e dissonância, que
postula a subsistência de complexos sonoros qualitativamente distintos e estáveis
mais ou menos localizáveis na própria natureza do fenômeno sonoro. Quando
Schopenhauer, por exemplo, parte “da teoria em geral conhecida” de que haverá
consonância se “as vibrações de dois sons tiverem uma relação racional” e
dissonância se “a relação é, ao contrário, irracional” (WWV II/MVR II, p. 1192), ele
subscreve justamente essa teoria tradicional que concebe consonância e
dissonância como opostos qualitativos que exprimem uma relação racional ou
7
A respeito da sempre reiterada centralidade de Beethoven para a compreensão da música tonal,
tomo a liberdade de remeter o leitor a meu texto: Pucciarelli (2014).
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irracional dos próprios complexos sonoros. Ao contrário, a teoria musical do século
XX procurou demonstrar que entre consonância e dissonância não impera
nenhuma oposição qualitativa acusticamente localizável, mas apenas uma
diferença de grau — ou, para falar com Carl Stumpf, um importante teórico do
começo do século passado, uma diferença de níveis de sonância.8
A rigor, portanto, não há algo como “dissonância” ou “consonância” em
música; há formas diferentes de gestão dos níveis de sonância e de organização e
disposição sistemática do material sonoro, ele mesmo indiferenciado no que
concerne à natureza “qualitativa” das relações entre os sons. “Tensão” e
“resolução”, “tensão” e “repouso” são mecanismos retóricos e energéticos criados
no interior de um sistema sonoro dado — inventado “artificialmente” no
desenvolvimento da história da música — com funções sintáticas precisas para esse
sistema; por óbvio, eles não correspondem à “natureza” imutável da música, e não
podem tampouco ser interpretados em termos de uma referência essencialista
qualquer. O que assistimos em relação a essa terminologia e à forma de audição
tradicional, tornadas canônicas a partir do sistema tonal, é apenas um tipo de
cristalização e naturalização de estruturas sintáticas determinadas.
No que concerne ao aspecto radicalmente convencional da arquitetônica
musical aceita por Schopenhauer, basta explorar brevemente o próprio conceito
de “modernidade” musical já indicado acima para demonstrá-lo. Foi sobretudo a
partir da Filosofia da nova música, de Theodor W. Adorno, que se convencionou
dividir em duas as principais orientações da modernização em música: de um lado,
aquela seguida por Schoenberg, que consiste na decomposição do sistema tonal e
na criação de um novo sistema de disposição do material sonoro, com uma outra
retórica, uma outra sintaxe, mesmo uma outra temporalidade — em suma, uma
outra linguagem musical totalmente diferente —; e, de outro lado, aquela seguida
paradigmaticamente por Stravinski, que consiste em utilizar o sistema tonal, face à
sua decomposição interna, de maneira irônica e paródica, a fim de revitalizar seus
meios expressivos. De toda forma, nas duas orientações centrais da modernização
musical, trata-se de demonstrar o aspecto inexpressivo e superado da sintaxe
musical tradicional — seja por meio de sua desmontagem sistêmica, seja por meio
da perversão de sua própria estrutura interna. O argumento principal, aqui,
consiste em mostrar que os efeitos tradicionais da sintaxe clássica, defendida por
Schopenhauer como expressão da própria dinâmica da Vontade, perdem sua
própria potencialidade expressiva e sua capacidade comunicativa. Em suma, tratase de compreender que a matéria sonora é rigorosamente histórica e convencional
e, com isso, necessariamente submetida à criação, reificação e reforma sintática:
De forma alguma o compositor tem à disposição indistintamente
todas as combinações de som já utilizadas. Mesmo o ouvido mais
embotado percebe o aspecto pífio e gasto do acorde de sétima
8
Como resenhou o musicólogo Carl Dahlhaus o trabalho de Stumpf: “A partir de experimentos
com pessoas musicalmente destreinadas, Stumpf conclui — sob a premissa de que a consonância
entre dois sons será tanto mais marcada quanto mais os sons conjuntos forem considerados como
um único som pelas pessoas no experimento — que consonância e dissonância não são duas classes
claramente distintas de sons, mas uma sequência de níveis de sonância cuja mais elevada é a oitava
e a mais baixa é a sétima maior e o trítono. Entre consonância e dissonância não há diferença
específica, mas apenas uma distinção gradual” (DAHLHAUS, 2002, p. 698). Sobre as diferentes, e
muitas vezes profundamente equívocas acepções dos termos “consonância” e “dissonância” no
decorrer da história da música e, particularmente, no século XX, cf. também Pucciarelli (2017).
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diminuta ou de certas notas de passagem cromática na música de
salão do século XIX. Para o ouvido tecnicamente experimentado,
um tal desconforto vago se converte em um cânone de proibições.
[...] Não apenas que aqueles sons sejam caducos ou intempestivos.
Eles são falsos. Eles não desempenham mais a sua função. O
estado mais avançado do modo do procedimento técnico
apresenta tarefas para as quais os sons tradicionais revelam-se
como clichês impotentes. Há composições modernas que
entremeiam ocasionalmente em sua construção sons tonais.
Cacofônicos são essas tríades perfeitas e não as dissonâncias.
(ADORNO, 1975, p. 40).
Não se trata de uma simples opção filosófica, ou mesmo de uma concepção
específica de música, mas do movimento concreto da linguagem musical: uma
certa sintaxe musical se desenvolve e, nesse desenvolvimento, exige sua
transformação e mesmo sua substituição por outras estruturas sintáticas a fim de
manter sua própria expressividade. O que Schopenhauer diz sobre a melodia e
que constitui, igualmente, um dos elementos fundamentais de sua “semântica”
musical — “um afastar-se, um desviar-se contínuo do som fundamental, por diversas
vias, não apenas para os intervalos harmônicos, a terça e a dominante, mas também
para cada tom, para a sétima dissonante e os intervalos aumentados; contudo
sempre seguido de um retorno ao tom fundamental” —, se refere apenas a
sintagmas musicais cuja cristalização no interior do sistema tonal pode
efetivamente ter a tendência a criar uma certa semântica — “[a] melodia expressa
por todos esses caminhos o esforço multifacetado da Vontade, mas também a sua
satisfação, pelo reencontro final de um intervalo harmônico, e mais ainda do tom
fundamental” (WWV I/MVR I, p. 341s) —; é justamente quando essa semântica se
cristaliza como tal que ela começa a perder sua expressividade e deve
necessariamente ser reformada. Como diz Adorno, “[h]oje, a relação entre música
e linguagem tornou-se crítica” (ADORNO, 1978a, p. 252).
V
Essa breve digressão sobre a teoria musical praticada sob a égide da crise
do sistema tonal é instrutiva para se avaliar o procedimento filosófico central à
metafísica da música de Schopenhauer. Pois partindo de construtos musicais não
tonais, estruturados segundo outro sistema de ordenação sonoro e,
consequentemente, de outra sintaxe, outra retórica e outra temporalidade musicais,
as transposições analógicas de Schopenhauer perdem tendencialmente seu lastro
material; ou, metaforicamente, é como se esses construtos materializassem outro
mundo — um mundo no qual parece imperar outra “escala dos seres”; em que a
melodia não mais apresenta qualquer linearidade e sentido que possibilite erigi-la
à condição de espelho do “caminho da Vontade”; em que há outros objetos — outra
ontologia —, visto que seu sistema de referências individua outros objetos musicais
— outra ontologia musical, portanto; em que há, em suma, outra e aparentemente
indecifrável intensionalidade segundo os padrões tonais.
Evidentemente, no entanto, não se trata de descartar a metafísica da música
de Schopenhauer unilateralmente como falsa ou equivocada, mas de vislumbrar a
própria relatividade do seu fundamento. Se vislumbramos o caráter convencional
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do sistema sonoro que lhe dá sustentação física, a via intuitiva a tomar consistiria,
justamente, em desnaturalizar esse sistema sonoro e, com ele, as próprias
transposições analógicas que servem de fundamento a toda e qualquer metafísica
da música que opere por meio desse procedimento. Uma tal alternativa implicaria,
evidentemente, um virtual esvaziamento do conteúdo propriamente metafísico
desse discurso, mas nem por isso um esvaziamento de seu caráter substancial. Por
exemplo: se consideramos a consolidação do sistema tonal — e, com ele, das
diretrizes sintáticas, retóricas e energéticas que a ele se coadunam estruturalmente
— não como a expressão direta da essência do mundo, mas de um certo mundo —
digamos, o mundo da modernidade capitalista ocidental —, então conservaremos,
no limite, o mesmo estatuto robusto da filosofia da música advogado por
Schopenhauer, porém esvaziado de sua pretensão metafísica transhistórica. Como
se sabe, é esse, em larga medida, o procedimento teórico operado pelo próprio
Adorno em sua filosofia da música9: a música é um veículo privilegiado para se
investigar não mais o mundo idealmente compreendido, mas a sociedade no
interior da qual um dado sistema de organização sonora emergiu. Em certo sentido,
pode-se dizer que o pensamento de Adorno neste particular, por conservar uma
autocompreensão robusta do que deve ser a filosofia da música, é criticamente
tributário da filosofia da música de Schopenhauer.
O que pode a filosofia da música? Se a hipótese central deste trabalho estiver
correta, então pode-se dizer esquematicamente que o pensamento filosófico sobre
música se verá confrontado com a seguinte alternativa: limitar-se a uma descrição
psicofísica do fenômeno musical, que poderá ser levada a cabo de maneiras
diversas e muitas vezes complementares (análise formal, reconstrução
musicológica, fenomenologia da percepção etc.), ou ousar interpretar esses dados
analíticos em termos que transcendam o registro da mera descrição. No primeiro
caso, a filosofia da música será uma disciplina francamente deflacionada em seus
objetivos e tratará o fenômeno musical, no limite, como “um exercício oculto em
aritmética, no qual o espírito não sabe que calcula”, para retomarmos os termos
da crítica de Schopenhauer a Leibniz. Seu desiderato último será estabelecer em
um discurso coerente os dados analíticos provenientes do contato com o objeto
musical, sem ousar um esforço interpretativo pronunciado. Por sua vez, esse
esforço interpretativo será tarefa da filosofia da música na segunda acepção
supramencionada. Aqui, ela disporá sobretudo da ferramenta conceitual —
essencialmente falível — da analogia e do estabelecimento de correspondências
para conferir substância de conteúdo ao seu discurso. Ao passo que sobretudo
essa acepção da filosofia da música poderá fazer justiça ao seu conceito enfático
de ser uma filosofia da música em sentido próprio, seu risco maior será o da
arbitrariedade e o da introjeção de sentido extramusical ao fenômeno musical. De
qualquer forma, o primeiro imperativo da filosofia da música deve ser a clareza
sobre o princípio geral de que na linguagem musical criticamente compreendida
parece operar um dispositivo de se furtar a toda tentativa de fixá-la em um quadro
de referencialidade estanque e determinado; constitutivo a ela seria assim, em
outros termos, um mecanismo de dissolver toda intensionalidade prévia e de se
afirmar como enigma a ser constantemente decifrado. Compreender a linguagem
9
A melhor exposição de Adorno sobre as possíveis relações analógicas entre música e sociedade
se encontra no artigo de juventude Sobre a situação social da música (1978b), jamais republicado
por Adorno em suas coletâneas musicais de maioridade, ao que tudo indica, pelo seu caráter
justamente esquemático.
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musical, antes de tudo, seria compreender esse mecanismo específico como
insepararável de toda tentativa de abordá-la.
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Werner. Harmonik & Glasperlenspiel (Vortrag). München: Verlag Peter Neubäcker
& Freies Musikzentrum, 1995.
Recebido em: 01-09-2018
Aceito para publicação em: 02-11-18
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