História da ditadura: novas perspectivas
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ARQUIVO
04
AGO
2019
JAIR BOLSONARO: UMA AMEAÇA À MEMÓRIA
O historiador Pierre Vidal-Naquet, no livro Les assasins de la mémorie, publicado em 1987, definiu o
revisionismo como sendo uma doutrina segunda a qual o genocídio praticado pela Alemanha nazista
contra judeus e ciganos não existira, pertencendo, pois, ao domínio do mito, da fabulação, da fraude.[1]
(https://www.historiadaditadura.com.br/wp-admin/post-new.php#_ftn1)
Este mesmo historiador nos conta que o revisionismo não surgira propriamente como um discurso de
negação completa da Shoá. De início, o que ocorreu foram questionamentos quanto ao número de
vítimas existentes e uma relativização do caráter nefasto desse ocorrido. Posteriormente, surgiram
discursos que pregavam a inexistência das câmaras de gás, do uso do Zyklon-b – gás usado nessas
câmaras – e de um plano sistemático para a eliminação dos indesejáveis ao nazismo.
Pelo menos desde 2013, o campo político no Brasil tem sido marcado por uma guinada à direita e por
uma forte polarização social. Consequentemente, as leituras de cunho negacionista acerca do passado
ditatorial brasileiro começaram a emergir no espaço público com grande força. O negacionismo não é
exatamente uma novidade em nosso país, pois sempre esteve presente em certos segmentos da
sociedade. No entanto, agora, setores de extrema-direita vêm propagando a negação da ditadura não
apenas na Internet, mas também em manifestações de rua, quando fazem discursos elogiosos ao regime
de exceção e pedem uma nova intervenção militar. A outra novidade é que, no momento atual, as
narrativas negacionistas chegaram ao Estado brasileiro.
O relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), publicado no final de 2014, contabiliza mais de
duzentas vítimas da ditadura militar que continuam desaparecidas. Mudam-se presidentes, mas, até
agora, nada foi esclarecido a respeito. As Forças Armadas brasileiras, por sua vez, adotaram o silêncio
como política oficial e negam sistematicamente a existência de qualquer documento que possa levar à
elucidação dos casos dos desaparecidos e as circunstâncias das mortes: quem matou, quando, a mando
de quem e o que fizeram com os corpos?
Na última semana, o presidente Jair Bolsonaro deu uma infeliz declaração, incompatível com o Estado
democrático de direito. Em referência a Fernando Santa Cruz, militante da Ação Popular, desaparecido
em 1974 e pai do atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, Bolsonaro
disparou: “Se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu, eu conto”. Na mesma
ocasião, Bolsonaro, em uma atitude deliberada de falseamento dos fatos históricos, criou a versão de que
a culpa pela morte de Fernando seria da própria esquerda.
Em seguida, Bolsonaro contestou os trabalhos da CNV: “E você acredita em Comissão da Verdade? Qual
foi a composição da comissão? Foram sete pessoas indicadas por quem? Pela Dilma?”. Com essas
afirmações, o presidente refutou a lei federal que criou a CNV, a própria comissão e seu relatório.
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Entrega do Relatório da Comissão Nacional da Verdade à Presidenta Dilma Rousseff, em 10 de
dezembro de 2014, no Palácio do Planalto. Fonte: Site da Comissão Nacional da Verdade
(http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/jpg/dilma.jpg). Autor: Fabrício Faria/Comissão
Nacional da Verdade. Wikimedia Commons
As recentes declarações do presidente foram mal recebidas por pessoas até mesmo do espectro
conservador que o ajudaram a se eleger, a exemplo do governador de São Paulo, João Dória.
Não é de agora que Bolsonaro faz declarações totalmente incompatíveis com os valores democráticos. A
essas declarações e ações somam-se outras. Em março deste ano, no contexto dos 55 anos do golpe de
1964, Bolsonaro incentivou “as devidas comemorações”, contrariando uma recomendação do relatório
da CNV. Na ocasião, afirmou que o que ocorrera em 1964 não foi um golpe. Diante da reação da
Organização das Nações Unidas (ONU), que cobrou do Brasil explicações, o Itamaraty respondeu que o
golpe de 1964 não existiu. O que teria ocorrido foi um movimento “legítimo”. Num dos trechos, o
documento chega a falar em “repúdio” à cobrança e aos comentários do relator da ONU. O uso do termo
é usado apenas em situações de extrema ofensa ou de crises. A ONU recebeu a resposta do Estado
brasileiro com preocupação e perplexidade.[2]
Atualmente, há um esforço do Estado brasileiro para reabilitar historicamente o golpe e a ditadura.
Nega-se o golpe de 1964, conferindo-lhe legitimidade, e se retoma a ideia de que a ditadura salvou o país
do comunismo e do autoritarismo de esquerda. Os governantes atuais pretendem impor essas versões
como fatos históricos. Nesse sentido, pretendem diluir a linha divisória que separa e história e memória.
Em outros termos, a verdade histórica e os avanços que foram alcançados pelo Estado brasileiro por
meio de órgãos da justiça transicional[3] são postos em questão.
Essas questões se agravam diante dos ataques oficiais sofridos pelo campo do ensino de história. O exministro da Educação, Ricardo Vélez, afirmou que não houve golpe e que a ditadura não poderia ser
considerada como tal, mas como um “regime democrático de força”. Na ocasião, afirmou também que
haveria mudanças progressivas nos conteúdos dos livros didáticos “na medida em que seja resgatada
uma versão da história mais ampla”.[4] Vélez ficou pouco tempo no cargo. Não resistiu às disputas
internas existentes no Ministério da Educação e acabou sendo demitido. Em seu lugar, Bolsonaro
nomeou Abraham Weintraub, também de perfil conservador. Para Weintraub, o golpe de 1964 foi uma
“contrarrevolução”, uma “ruptura dentro das regras”.
O filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, que exerce grande influência nas decisões políticas do pai,
declarou em seu perfil na rede social Twitter que a ditadura militar é “mal retratada nos livros
didáticos”. Para o deputado federal, “se continuarmos no nosso marasmo, os livros escolares seguirão
botando assassinos como heróis e militares como facínoras”.[5]
As atitudes dos integrantes do governo atual são uma flagrante tentativa de reescrever o passado
ditatorial brasileiro com base no negacionismo e no relativismo. Tal tentativa vai de encontro à narrativa
construída pela CNV e outros órgãos estatais, a exemplo da Comissão Especial de Mortos e
Desaparecidos Políticos (CEMDP), que buscaram esclarecer – com base em um trabalho sério
fundamentado em documentos oficiais e depoimentos – os crimes cometidos pelo Estado durante a
ditadura. Essas investidas contra a memória representam um ponto de inflexão sem precedentes em
nossa democracia.
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Comissão da Verdade do Estado de São Paulo. Data desconhecida. Wikimedia Commons.
O que temos vivido atualmente no Brasil em termos de memória resulta de uma política de trato do
passado baseada na conciliação, na manutenção da Lei de Anistia e na impunidade de torturadores e
assassinos. Tal impunidade tanto fortalece o presidente da República e seus apoiadores, como permitiu
que o então deputado federal Jair Bolsonaro saísse ileso de uma sessão do processo de impeachment
após ter dedicado seu voto ao torturador Carlos Aberto Brilhante Ustra. [6]
As ações do atual governo não se resumem a retóricas odiosas contra as vítimas da ditadura e seus
familiares. Desenha-se um grave ataque ao processo de justiça de transição no país que, desde 1995,
busca sanar as dívidas que o Estado tem com seu passado ditatorial. Os dois órgãos permanentes que
lidam com os mortos, desaparecidos e demais perseguidos pela ditadura, a Comissão de Anistia (CA) e a
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) sofreram duros reveses sob o
governo Bolsonaro.
A CA teve a composição de seus membros alterada para dar lugar a pessoas com posturas totalmente
contrárias aos propósitos da comissão. Tal mudança foi, inclusive, objeto de questionamento por parte
do Ministério Público. Além disso, a ministra Damares Alves[7] rejeitou recentemente mais de mil
solicitações de reconhecimento de anistiados políticos.[8] Afora as declarações de Bolsonaro
defendendo a abertura de uma CPI para investigar as indenizações concedidas. Trata-se de estratégia
política para prejudicar os trabalhos da comissão, inviabilizando o seu pleno funcionamento.
A CEMDP também foi atacada. Primeiramente, em virtude do decreto presidencial n. 9.759/2019, o
Grupo de Trabalho Perus[9] teve seus trabalhos paralisados, pois o dispositivo legal pôs fim à equipe de
identificação. Mais recentemente, após as declarações sobre Fernando Santa Cruz e a CNV, Bolsonaro
excluiu parte dos integrantes da comissão e, em substituição, nomeou militares e integrantes de seu
partido, o PSL. Entre os excluídos está Eugênia Gonzaga, até então presidente da comissão, que fez
críticas a Bolsonaro após suas declarações. Para Gonzaga, a atitude do governo foi uma represália.[10]
A maneira pela qual os temas relacionados à ditadura militar voltaram ao espaço público só reforça a
necessidade de abrir os arquivos das Forças Armadas, esclarecer o paradeiro dos desaparecidos políticos
e responsabilizar penalmente os agentes envolvidos em uma série de violações aos direitos humanos.
Dificilmente, iniciativas nesse sentido irão avançar no momento político atual.
Walter Benjamin, em sua sexta tese sobre a história, afirmou que “(…) os mortos não estarão em
segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”.[11] Os integrantes do
governo, diante do que têm feito e dito, têm proporcionado um duplo assassinato às vítimas da ditadura:
matou-se após 1964; agora, em plena democracia, mata-se novamente, desta vez pela memória.
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João Teófilo (https://www.historiadaditadura.com.br/sobre/) é historiador e colaborador
permanente do site História da Ditadura.
Notas:
[1] VIDAL-NAQUET, Pierre. Les assasins de la mémorie. Paris: Éditions de La Découvert, 1987.
[2] (https://www.historiadaditadura.com.br/wp-admin/post-new.php#_ftnref1) “Tensão no papel”. Uol,
28/05/19. Disponível em: Notícias UOL. (https://noticias.uol.com.br/reportagens-especiais/cartasbolsonaro-onu/index.htm#tensao-no-papel)
[3] (https://www.historiadaditadura.com.br/wp-admin/post-new.php#_ftnref1) Basicamente, pode-se
definir que o objetivo da justiça de transição implica processar os violadores dos direitos humanos,
revelar a verdade sobre crimes passados, reparar as vítimas, reformar as instituições ligadas de algum
modo a essas violações e promover a reconciliação. Cf. VAN ZYL, Paul. “Promoting Transitional Justice in
Post-Conflict Societes”. In: BRYDEN, Alan; HÄNGGI, Heiner (eds.). Security Governance in PostConflict Peacebuilding. DCAF: Genebra, 2005.
[4] (https://www.historiadaditadura.com.br/wp-admin/post-new.php#_ftnref1) “Ministro diz que não
houve golpe em 1964 e que livros didáticos vão mudar”. Folha de S. Paulo, 03/04/19. Disponível em:
Folha de São Paulo. (https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/04/livros-didaticos-vao-negargolpe-militar-e-ditadura-diz-ministro-da-educacao.shtml?utm_source=facebook&utm_medium=socialmedia&utm_campaign=uol&utm_content=geral)
[5] (https://www.historiadaditadura.com.br/wp-admin/post.php?post=5763&action=edit#_ftnref1)
“Filho de Bolsonaro propõe revisão histórica sobre ditadura em livro didático”. Folha de S. Paulo,
10/01/19. Disponível em: Folha de São Paulo.
(https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/01/filho-de-bolsonaro-propoe-revisao-historicasobre-ditadura-em-livro-didatico.shtml?loggedpaywall)
[6] (https://www.historiadaditadura.com.br/wp-admin/post.php?post=5763&action=edit#_ftnref1) Em
2012, em consequência de uma ação movida pela família Teles, a Justiça de São Paulo reconheceu
formalmente Ustra como torturador. Essa foi a primeira vez que uma decisão envolvendo a tortura
durante a ditadura foi reconhecida por um colegiado de segunda instância.
[7] (https://www.historiadaditadura.com.br/wp-admin/post.php?post=5763&action=edit#_ftnref1) Este
ano, a comissão passou a fazer parte do Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos.
[8] (https://www.historiadaditadura.com.br/wp-admin/post.php?post=5763&action=edit#_ftnref1)
“Damares rejeita 1.381 pedidos de reconhecimento de anistiados políticos”. O Globo, 29/07/2019.
Disponível em: O Globo. (https://oglobo.globo.com/brasil/damares-rejeita-1381-pedidos-dereconhecimento-de-anistiados-politicos-23841561)
[9] (https://www.historiadaditadura.com.br/wp-admin/post.php?post=5763&action=edit#_ftnref1)
O GT Perus busca identificar as ossadas encontradas em uma vala clandestina no Cemitério de Perus,
em São Paulo, no início dos anos 1990. Parte dessas ossadas é de militantes políticos que foram
enterrados como indigentes.
[10] (https://www.historiadaditadura.com.br/wp-admin/post.php?post=5763&action=edit#_ftnref1)
“Bolsonaro põe militares e integrantes do PSL na Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos”. O
Globo, 01/08/2019. Disponível em: O Globo. (https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-poemilitares-integrantes-do-psl-na-comissao-de-mortos-desaparecidos-politicos-23847049)
[11] (https://www.historiadaditadura.com.br/wp-admin/post.php?post=5763&action=edit#_ftnref1)
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e crítica histórica. Trad.
Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasilense, 2012.
Crédito da imagem destacada:
Rememorar os Fatos Relacionados ao dia 31 de Março de 1964, véspera do golpe de estado que deu
origem a ditadura militar. Dep. Jair Bolsonaro (PP-RJ) Data: 01/04/2014. Autor: Gustavo Lima / Câmara
dos Deputados. Wikimedia Commons
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