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Reflexões sobre leitura, língua e sociedade na EDUCAÇÃO BÁSICA Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 1 18/06/2019, 17:47 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 2 18/06/2019, 17:47 Reflexões sobre leitura, língua e sociedade na EDUCAÇÃO BÁSICA LITTERIS E D IT O R A Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 3 18/06/2019, 17:47 Copyright© 2019 by Sirley Siqueira e Glayci Xavier Direitos em Língua Portuguesa reservados aos organizadores através da LITTERIS®EDITORA. Capa: Teresa Akil Editoração: Litteris Editora Comissão Acadêmica: Ângela Cristina Rodrigues de Castro (CMRJ), Eveline Coelho Cardoso (CEFET-RJ), Fabiana da Costa Gonçalo (CPII), Jeferson Correia Dantas (CPII), Nadja Pattresi de Souza e Silva (UFF), Raquel Silveira Fonseca (CAp-UFRJ) e Simone da Silva Soares (CPII) CIP - Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. LITTERIS® EDITORA CNPJ 32.067.910/0001-88 - Insc. Estadual 83.581.948 Av. Marechal Floriano, 143 sala 805 - Centro 20080-005 - Rio de Janeiro - RJ Tel: (21)2223-0030/ 2263-3141 E-mail: litteris@litteris.com.br www.litteris.com.br www.litteriseditora.com.br www.livrarialitteris.com.br Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 4 18/06/2019, 17:47 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO......................................................................... 9 CAPÍTULO 1.............................................................................. 15 Ensino de leitura na Escola Básica: formamos leitores autônomos ou autômatos? Beatriz dos Santos Feres CAPÍTULO 2.............................................................................. 31 Falar com propriedade e defender suas ideias: em busca de caminhos para a constituição de sujeitos independentes Sirley Ribeiro Siqueira CAPÍTULO 3.............................................................................. 47 Argumentação na verbo-visualidade: leitura e análise de charges no Ensino Médio Glayci Kelli Reis da Silva Xavier CAPÍTULO 4.............................................................................. 64 Mitologia e letramento literário Marcelo de Souza Pereira CAPÍTULO 5.............................................................................. 87 Estratégias no ensino de leitura e produção textual: Pinóquio na coleção Turma da Mônica – Grandes Clássicos Dennis Castanheira e Luciana Fortuna Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 5 18/06/2019, 17:47 CAPÍTULO 6............................................................................ 106 Parágrafo(s) no mundo real: inter-relação entre o tópico discursivo e a paragrafação Milana Novaes e Marcos Luiz Wiedemer CAPÍTULO 7............................................................................ 125 Ciência, texto e criatividade: como ensinar os processos de formação de palavras? Vítor de Moura Vivas, Wallace Bezerra de Carvalho, Felipe da Silva Vital, Daniel Araujo Conceição CAPÍTULO 8............................................................................ 146 "Pra ler pra onde eu vou e pra onde eu volto": um estudo de caso sobre as práticas socioculturais de letramentos na Educação de Jovens e Adultos Vanessa Teixeira Ribeiro CAPÍTULO 9............................................................................ 166 Textos multimodais como motivadores para a produção textual Júlia Vieira Correia CAPÍTULO 10.......................................................................... 184 Comunidade literária virtual: o uso das redes sociais para as aulas de Literatura Brasileira Catia de Luziete Thomazinho Borges e Victor Terra de Freitas CAPÍTULO 11........................................................................... 195 Escrita literária: A descoberta do “eu” Ana Cristina Bemfica e Silva Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 6 18/06/2019, 17:47 CAPÍTULO 12.......................................................................... 213 Reflexões sobre a formação de professores e o ensino de português como língua adicional e/ou estrangeira Bruno Humberto da Silva e Celso Albuquerque Lima SOBRE OS AUTORES................................................................ 233 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 7 18/06/2019, 17:47 8 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 8 18/06/2019, 17:47 APRESENTAÇÃO O entendimento de que a formação do professor precisa ser contínua levou um grupo de professores dos campi II e III do Colégio Pedro II, em São Cristóvão, a criar um grupo de pesquisa denominado LEPELL – Laboratório de Estudo de Práticas Educativas em Língua Portuguesa e Literatura. Acreditamos que a principal justificativa para a criação de grupos de pesquisas no interior da Escola Básica é a constante necessidade de aperfeiçoamento, decorrente das mudanças no perfil dos alunos, no sistema educacional e na sociedade como um todo. Esta série de aspectos reitera a importância da investigação científica cujo locus de análise seja a própria sala de aula, um local privilegiado quando se busca aliar teoria à prática. Em outras palavras, é no próprio cotidiano escolar que devem ser determinados os ajustes a serem feitos na teoria; é no dia a dia das escolas que são descobertas as ações que mais estarão adequadas aos objetivos traçados e aquelas que devem ser repensadas para que se alcancem os propósitos almejados. É, portanto, a partir da vivência coletiva de educadores envolvidos com a Educação Básica e comprometidos com o ensino de excelência que podem ser consubstanciadas práticas, no caso do professor de Português, que promovam o desenvolvimento da competência linguística e a ampliação e o aprofundamento do letramento literário dos alunos. Esta obra, que tenta aliar a teoria à prática de ensino, foi assim gerada, a partir de múltiplos questionamentos de professores preocupados em fazer com que seja possível o alargamento das vias de acesso a outros espaços de produção e circulação de conhecimentos. Dessa maneira, o compromisso assumido ao longo destas Reflexões sobre leitura, língua e sociedade na Educação Básica é o de contribuir para que a escola pública oferte um ensino de qualidade pautado no anseio de democratizar as relações sociais e o acesso à cidadania. Os 9 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 9 18/06/2019, 17:47 textos que compõem esse livro são de professores do LEPELL e de professores convidados, que trabalham no Ensino Superior ou na Educação Básica, tanto da rede pública quanto da privada, e que tiveram seus trabalhos apresentados na II Jornada do LEPELL.1 O primeiro capítulo deste livro empreende uma reflexão sobre a formação de leitores na escola básica. O ponto de partida desse texto foi uma polêmica veiculada na mídia no ano de 2015, quando o ENEM, em uma de suas questões, trouxe um trecho do livro da escritora feminista Simone de Beauvoir. A repercussão decorrente da leitura equivocada de tal fragmento comprova a necessidade de a escola formar leitores autônomos e não autômatos. Por que é importante priorizar a argumentação em toda a Educação Básica, sobretudo no Ensino Médio? E por que é preciso trabalhar com a oralidade se nossos alunos já sabem falar? Essas são algumas questões sobre as quais a autora do segundo capítulo se debruça a fim de comprovar a importância de a escola fazer da oralidade um objeto legitimado de estudo. O desenvolvimento da tecnologia e o grande acesso ao “mundo” virtual fazem com que a leitura de textos multimodais precise ser desenvolvida. Por isso, o terceiro capítulo apresenta um projeto de Iniciação Científica Júnior voltado para a leitura, interpretação e análise de diferentes gêneros verbo-visuais veiculados pela mídia, que buscam, de alguma forma, influenciar seu interlocutor. A argumentatividade de tais textos encontrase, na maior parte das vezes, implícita, exigindo do leitor que ele ative seu conhecimento de mundo para percebê-la. No capítulo seguinte, o autor se propõe a fazer uma reflexão sobre o uso pedagógico da mitologia, na perspectiva do letramento literário, tanto no Ensino Fundamental quanto no Médio. Parte-se da discussão de algumas linhas teóricas que se _ __ __ _ __ __ _ __ __ __ _ __ __ _ __ __ _ Agradecemos o apoio da PROPGPEC/CPII, que, através da chamada 24/2018, tornou possível a publicação desta coletânea. 1 10 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 10 18/06/2019, 17:47 ocupam da definição do mito, destacando aquelas que enfatizam a narratividade como característica fundamental dos conteúdos míticos. Nessa perspectiva, a narratividade é tomada como o elemento comum que aproxima a mitologia e a Literatura, e a relação simbiótica entre os dois discursos é discutida, tendo em vista o realinhamento do trabalho pedagógico realizado pelo professor. Em “Estratégias no ensino de leitura e produção textual: Pinóquio na coleção Turma da Mônica – Grandes Clássicos”, a partir de uma abordagem de cunho sociocognitivo e interacional, os autores propõem uma série de atividades pré-textuais, textuais e pós-textuais de leitura e produção de textos. As sugestões têm como público-alvo o sexto ano do Ensino Fundamental e discutem aspectos relativos ao levantamento de hipóteses, à interpretação de texto, à construção da narrativa e à construção verbal e não verbal dos personagens. Sem a pretensão de se configurar como um manual instrucional, o texto oferece valiosas indicações que podem ser adaptadas pelo docente, de acordo com a realidade de sua sala de aula. O sexto capítulo se ocupa também da produção textual no contexto da Educação Básica. Os autores defendem o tópico discursivo como categoria analítica de processos textuaisinterativos. Além disso, apresentam uma proposta didáticometodológica para atividades de escrita do parágrafo a partir da articulação da noção teórica do tópico discursivo em que consideram a Perspectiva Textual-Interativa e os processos de organização, continuidade e progressão do texto escrito, atreladas ao estudo das propriedades tópicas de centração e de organicidade. Como tornar o ensino de processos de formação de palavras mais significativo e interessante para alunos do Ensino Médio? Por que é importante repensarmos a abordagem tradicional ao tratarmos de aspectos morfológicos? Os autores do sétimo capítulo respondem essas questões e defendem que é preciso mostrar aos alunos que a língua está em constante mudança e 11 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 11 18/06/2019, 17:47 que processos de atualização lexical são expressões da criatividade dos falantes, decorrentes de suas necessidades comunicativas e textuais. No capítulo seguinte, a autora investiga eventos socioculturais de “letramentos” de estudantes da Educação de Jovens e Adultos. O leitor encontra nesse texto dados de uma pesquisa realizada com sujeitos a quem foram negados direitos básicos como o acesso à escolarização na idade adequada. Por meio de entrevistas a tais sujeitos, foi constatado que as práticas socioculturais de letramentos não escolares se configuram como elementos motivadores para que esses estudantes retornassem à escola. É, portanto, um convite à reflexão acerca do currículo escolar, de modo que o aprendizado da leitura e da escrita atenda às reais necessidades desses educandos, considerando o contexto em que estão inseridos, suas experiências fora da escola, seus anseios e desejos. No nono capítulo, a autora defende o uso de textos multimodais como elementos motivadores para a produção textual, uma vez que estes fazem parte do universo dos alunos do século XXI. As ideias são comprovadas por meio da apresentação de algumas práticas de ensino bem-sucedidas, as quais foram desenvolvidas a partir de uma sequência didática, cujo primeiro momento é o contato com o texto multimodal e sua exploração. O leitor é levado, então, a repensar a aulas tradicionais de produção textual e a perceber o quanto o trabalho pode se tornar mais prazeroso e enriquecido se forem consideradas as novas tecnologias e os interesses dos alunos. A Literatura sempre esteve muito próxima ao educando, porém este possui uma dificuldade para compreender esta premissa. Não entende, por exemplo, que os personagens dos clássicos canônicos brasileiros muitas vezes possuem os mesmos problemas sociais que ele também enfrenta diariamente. O trabalho apresentado no décimo capítulo surgiu com o intuito de promover o letramento literário e incentivar os alunos a 12 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 12 18/06/2019, 17:47 compreender o mundo a sua volta. A atividade propôs que os alunos criassem um perfil no Facebook para personagens da Literatura Brasileira e, durante um mês, fomentassem a página com postagens que tivessem características da personalidade e do caráter de cada um. Nos tempos atuais, temos presenciado, nas salas de aula, uma necessidade maior de motivar e incentivar nossos alunos para o melhor desempenho de suas produções textuais. Com a intenção de provocar “o fazer natural” dos alunos, o penúltimo capítulo discute a importância de se motivar a escrita natural dos discentes, propondo atividades que despertem maior motivação para aquisição do hábito da escrita, por meio da produção de textos literários que contenham outras linguagens além da verbal. A partir do trabalho desenvolvido, foi possível notar a expressão dos múltiplos saberes provenientes da vivência adquirida e experimentada do seu próprio “EU”. Por fim, esta obra se encerra com Reflexões sobre a formação de professores e o ensino de português como língua adicional e/ou estrangeira. Nesse texto, os autores chamam a atenção para a falta de políticas públicas que promovam o ensino de Português como língua adicional ou estrangeira. Tal carência de ações governamentais reflete-se no ínfimo espaço de discussão na maioria das universidades e, consequentemente, na formação dos professores. É, sem dúvida, um tema relevante que precisa ser debatido, tendo em vista os fluxos migratórios a que temos assistido nos últimos anos e o compromisso social da escola de atender a todos os alunos de maneira equânime. 13 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 13 18/06/2019, 17:47 14 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 14 18/06/2019, 17:47 ENSINO DE LEITURA NA ESCOLA BÁSICA: FORMAMOS LEITORES AUTÔMATOS OU AUTÔNOMOS? Beatriz dos Santos Feres (UFF) Leitura se ensina na escola Toda interpretação é uma suposição de intenção. Patrick Charaudeau Uma questão do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) realizado em 2015 ganhou grande repercussão nas redes sociais brasileiras e na imprensa. Nela, citava-se um trecho do livro O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, como motivação para completar a seguinte frase: “Na década de 1960, a proposição de Simone de Beauvoir contribuiu para estruturar um movimento social que teve como marca o(a)...”. A alternativa que completava a frase era “organização de protestos públicos para garantir a igualdade de gênero”. O trecho citado era o seguinte: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino”. (BEAUVOIR, 1980.) Além da reação negativa – que já merece questionamento – à defesa dos direitos das mulheres tão bem representados pela pensadora, houve uma horda de manifestantes que se indignaram contra uma suposta “apologia à escolha de gênero”. Três dias após a aplicação da prova, vereadores de Campinas discutiram se o trecho de Simone de Beauvoir “queria dizer” que “alguém é mulher de dia e homem de noite” (expressão pronunciada na Câmara Municipal) e aprovaram, por 25 votos contra 5, uma moção contra o Ministério da Educação, 15 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 15 18/06/2019, 17:47 solicitando que a questão fosse anulada. Campos Filho, autor da proposta, afirmava: “É uma iniciativa (do governo federal) demoníaca. Porque eles estão querendo empurrar (o conceito) goela abaixo das pessoas quando se coloca uma situação dessas na prova do Enem”. O jornal Estadão ainda relata: O vereador considerou que o governo contrariou a Constituição Federal, a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Plano Nacional de Educação. ‘Foram buscar lá Simone de Beauvoir, lá para o ano de mil trocentos e pouco (sic) um conceito que ela tinha na época, que ela falou e hoje esse pessoal aí usa (para impor a discussão de gênero)’, analisou. O parlamentar ainda considera que a ‘maioria da população é a favor da lei da natureza. Homem nasce homem e mulher nasce mulher’, concluiu. (MAZIEIRO, 2015.) Afinal, o que “quer dizer” o trecho de Simone de Beauvoir? Essa foi a pergunta de muitos candidatos, leitores dos jornais e usuários das redes sociais. O que um texto “quer dizer” é sempre mais do que efetivamente se disse, ou seja, mais do que está explícito (ou parece estar) nas palavras que se organizam em frases, períodos, parágrafos e textos. Dados extratextuais são evocados pelo texto a fim de compor o sentido que ele veicula. O que o texto “quer dizer” é dito na relação entre o que está aparente e o que está implícito, mas é perfeitamente inferível, quando o leitor tem conhecimento de mundo e habilidade para fazer relações entre os modos de dizer e a realidade. E este foi todo o problema de interpretação dos vereadores de Campinas e de todos os internautas que concordaram com a “leitura” referendada pela Câmara Municipal. Não foi um problema causado por “analfabetismo funcional”, ou por incompreensão do texto, mas por uma interpretação incompleta, desviada do tema, malfeita mesmo, 16 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 16 18/06/2019, 17:47 por parte de um leitor que não faz as relações necessárias por ignorância ou por despreparo, geralmente a reboque de outras leituras “prontas”, previamente formatadas: é o leitor autômato. Ao final do Ensino Médio, um leitor bem preparado deve saber observar a situação, as circunstâncias nas quais algo é dito. Nesse caso, é preciso perceber, então, que o enunciador do trecho é Simone de Beauvoir, claramente identificada no comando da questão e na referência bibliográfica que segue o trecho citado, e que o autor do enunciado da questão é o “Enem”. Além disso, em se tratando, o leitor, de um candidato desse exame, presumivelmente apto a reconhecer fatos e personagens históricos que, de alguma maneira, ganharam relevo por causa de sua atuação na sociedade, ele deve considerar a relevância da identidade social da enunciadora do trecho como ativista a favor dos direitos da mulher, numa época (1960, informação fornecida no comando da questão) em que seu lugar no mundo era ainda mais subalterno e submisso ao homem do que (ainda) é hoje. Esse leitor, então, deve interpretar o dito como uma reflexão acerca de como a mulher tem sido levada a assumir “seu papel” (que não nasce com ela; é imposto) de esposa, mãe e “dona do lar”, ou bela, recatada e do lar “no seio da sociedade” – e nada além disso. A “igualdade de gênero” a que a questão se reporta significa, portanto, a igualdade de direitos entre homens e mulheres, e não a defesa da “liberdade de escolha de um gênero”, como entenderam os vereadores de Campinas. Um leitor sofisticado, como deve ser o egresso do Ensino Médio, não pode, porém, se deixar confundir, sobretudo, porque as informações contextuais relacionadas à citação justificam um sentido e não o outro. Afinal, como defende Patrick Charaudeau (2008, p.31), “Toda interpretação é uma suposição de intenção”. Então vamos supor adequadamente. Embora a conceituação de letramento seja bastante controversa (SOARES, 2006), é dela que partimos para a 17 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 17 18/06/2019, 17:47 reflexão acerca do aprimoramento da autonomia leitora em ambiente escolar, já que, como é de consenso, a escola tem sido a principal responsável pela tarefa de formar leitores e produtores de textos. Aqui vamos restringir a definição de letramento como o conjunto de habilidades relacionadas à decifração e à produção de textos desenvolvidas pelo indivíduo durante o Ensino Básico a favor de sua interação social. Esse processo longo e complexo envolve capacidades que vão da decodificação do signo (quase sempre atrelado à alfabetização) à funcionalidade da leitura e da escrita para o engajamento social do indivíduo, considerando-se a criticidade como meta mais elevada. Afinal, espera-se que, ao término do ciclo básico, o indivíduo tenha desenvolvido sua competência linguageira a ponto de não só produzir autonomamente textos claros, coerentes e condizentes com sua intenção comunicativa, mas também tenha aprendido a interpretar o mundo per meado por diversos aparatos simbólicos. No entanto, não tem sido esse o perfil do egresso do EM. O resultado da avaliação trienal do Pisa aplicada em 2015, pior que o de 2012, mostra que 50,99% dos estudantes brasileiros ficaram abaixo do nível 2 de proficiência, considerado o mínimo para a socialização. A média de desempenho foi de 407 pontos. É a segunda queda consecutiva na área de leitura desde 2009. Ou seja, eles não demonstram ser capazes de deduzir informações do texto, ou estabelecer relações entre suas diferentes partes, assim como não compreendem nuances da linguagem, numa fase em que, ao término do Ensino Fundamental, deveriam ser considerados leitores fluentes (ou mesmo críticos). Os motivos desse resultado pífio são muitos e de variada ordem, antropológica, sociológica, filosófica e, sobretudo, política. Dadas as limitações e o objetivo deste trabalho, porém, centralizaremos a discussão no âmbito pedagógico, com ênfase na formação do professor que atua no Ensino Básico e no aspecto linguístico-discursivo do processo 18 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 18 18/06/2019, 17:47 leitor que deve constituir essa formação. Acreditamos que, a partir de estratégias de leitura trabalhadas durante o Ensino Básico e em graus diferenciados de exequibilidade, é possível garantir ao estudante o domínio do ato de ler – desde que o professor seja preparado para mediar o processo. ESTRATÉGIAS DE INTERPRETAÇÃO PARA AUTONOMIA E CRITICIDADE EM LEITURA Parece pertinente ressaltar que leitura, na perspectiva que adotamos, não se refere unicamente à leitura literária – ainda que não se possa prescindir dela em momento algum do processo de letramento. A noção de leitura deve ser tomada, aqui, como processo interativo de construção de sentido, baseado na criação de expectativas concernentes aos saberes partilhados pelos interagentes de uma troca comunicativa estabelecida por meio de um texto. O professor-mediador deve se municiar de estratégias para fazer com que seu aluno-leitor se ajuste ao destinatário projetado em cada texto, assumindo a responsabilidade na construção do sentido, e, ao interpretá-lo, também se veja no direito e com voz para aderir a esse projeto, ou refutá-lo criticamente. Sírio Possenti problematiza a leitura escolarizada, afirmando o seguinte: Quando se fala de leitura, especialmente na escola – os testes de avaliação o comprovam -, enfoca-se basicamente o o quê do texto, seu conteúdo, sua suposta mensagem (...) Ora, ler deveria ser, antes de mais nada, desmontar um texto para ver como ele se constrói, até para que se possa dizer qual a relação entre seu modo de ser construído e os efeitos de sentido que produz (...). (POSSENTI, 2009, p. 104) 19 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 19 18/06/2019, 17:47 Para o amplo desenvolvimento da competência leitora, portanto, é preciso, além da decodificação do signo que compõe a superfície textual, que o leitor seja também capaz de perceber como o sentido é construído; a partir de que arranjo dos elementos constitutivos do texto (explícitos, ou apenas evocados) obtém-se o sentido; quais circunstâncias colaboram para o resultado interpretativo; quais valores socialmente partilhados permitem uma ou outra finalização do cálculo de sentido. Essas estratégias devem ser expostas ao estudante na escola e trabalhadas em espiral ao longo do Ensino Básico até que ele adquira autonomia leitora. Posição complementar é a da Teoria Semiolinguística de Análise do Discurso, postulada por Patrick Charaudeau (2008), ao enfatizar o jogo entre o que é explícito e o que está implícito em um texto. Segundo o analista, é possível reconhecer o sentido explícito de um enunciado mesmo quando este se encontra fora de contexto. Ao enunciar, o falante vale-se, nesse nível de construção do sentido, da simbolização referencial, isto é, ele faz referência à realidade que nos rodeia por meio de signos partilhados socialmente. Trata-se de infor mações inferíveis de acordo com as circunstâncias que compõem a enunciação, numa remissão a algo para além do enunciado explícito. Os signos, portanto, não significam unicamente por si mesmos, mas por uma “totalidade discursiva que os ultrapassa” (CHARAUDEAU, op. cit., p. 25). À simbolização referencial estaria ligado o sentido de língua, explícito; ao processo inferencial dependente da contextualização dos enunciados estaria ligado o sentido de discurso, implícito pelo texto em deter minada circunstância. Por isso o linguista afirma que “para o sujeito interpretante, interpretar é criar hipóteses sobre: (i) o saber do sujeito enunciador; (ii) sobre seus pontos de vista em relação aos seus enunciados; (iii) e também seus pontos de vista em relação ao seu sujeito destinatário, lembrando que 20 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 20 18/06/2019, 17:47 toda interpretação é uma suposição de intenção”. (CHARAUDEAU, 2008, p. 31) A partir dessas ideias, propõe-se, então, a seguinte definição para os dois níveis indissociáveis de leitura: o nível da compreensão é aquele circunscrito ao significado explícito dos signos e à organização linear dos elementos textuais por meio dos mecanismos de coesão; já o nível da interpretação é aquele acionado por meio das inferências, isto é, por meio do sentido implícito deduzido a partir da relação entre os elementos explícitos e o contexto, seja o contexto das circunstâncias imediatas que envolvem a enunciação, seja o das representações coletivas orquestradas pela cultura. Supõe-se que, no início do Ensino Fundamental, deve haver um investimento maior em atividades que deem ênfase às estratégias de compreensão (evidentemente sem ignorar a interpretação); já no segundo segmento e no Ensino Médio, haverá um investimento crescente em atividades que evidenciem estratégias de interpretação, com a oferta de um número mais variado de gêneros textuais e com o aproveitamento do conhecimento enciclopédico e de mundo que o aluno acumula ao longo da vida escolar - e que deverá aprender a aproveitar na interpretação. Nesta proposta de reflexão e de análise, as estratégias de compreensão estarão divididas em dois tipos: estratégias de identificação e de coesão textual. Já as estratégias de interpretação estarão organizados em estratégias de circunstanciação e estratégias do discurso. Está claro que são estratégias que se imbricam todo o tempo, mas que podem ser isoladas e colocadas em evidência, de acordo com a necessidade, em uma ou outra atividade de leitura. Também é relevante atentar que são estratégias que se prestam igualmente à interpretação de textos imagéticos ou multimodais. 21 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 21 18/06/2019, 17:47 Quadro 1 – Estratégias leitoras Na letra de canção “Saiba”, de Arnaldo Antunes, os saberes de conhecimento e de crença são fartamente explorados, afinal, o autor pressupõe que o ouvinte/leitor seja capaz de reconhecer os elementos citados a fim de que a interpretação se conclua. Destaca-se que, sendo uma letra de canção, são pressupostos recursos poéticos, figuras de linguagem e investimento na sonoridade do texto, numa melodia de canção de ninar, que também podem contribuir para a construção do sentido. É preciso, no nível da compreensão, que o leitor identifique, sobretudo, os personagens nomeados para que, no nível da interpretação, seja possível acionar inferências não só a partir das avaliações que a sociedade faz a respeito desses indivíduos, mas também a partir do arranjo desses elementos no texto. Vejamos. Saiba: todo mundo foi neném Einstein, Freud e Platão também Hitler, Bush e Sadam Hussein Que tem grana e quem não tem (...) Saiba: todo mundo teve medo Mesmo que seja segredo Nietzsche e Simone de Beauvoir Fernandinho Beira-Mar (...) 22 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 22 18/06/2019, 17:47 Saiba: todo mundo teve mãe Índios, africanos e alemães Nero, Che Guevara, Pinochet E também eu e você. (ANTUNES, 2006, p. 270-271) Se os nomes de Einstein, Freud e Platão remetem a uma valorização positiva em função do papel de grandes pensadores diante da humanidade, Hitler, Bush e Sadam Hussein, ao contrário, são avaliados negativamente por causa de seu caráter belicoso. O agrupamento desses indivíduos permite que se evidencie a categoria a que podem ser filiados. O que os une, apesar das diferenças, é o fato de todos terem sido nenéns um dia. Na estrofe seguinte, o que há em comum entre as figuras é o fato de todos terem medo, mesmo Nietzsche, Simone de Beauvoir, filósofos corajosos pelas ideias que defenderam, ou Fernandinho Beira-Mar, considerado um dos mais destemidos bandidos brasileiros. Na outra estrofe citada, Nero, Che Guevara e Pinochet, figuras conhecidas pela liderança, mas também por sua radicalidade, são agrupados em função do fato de todos terem tido mãe. O sentido geral do texto, a partir desses agrupamentos, está orientado para a inferência de que, apesar de todos os homens serem, em essência, iguais, alguns, por sua atitude diante da vida, representam positivamente a humanidade; outros, negativamente. Considerando que a injunção – “Saiba” – faz o texto soar como conselho, o fato de se revelar uma humanidade que pode tender para o “bem” ou para o “mal” parece quase uma ameaça. Essa interpretação, bastante sofisticada, depende de farto conhecimento enciclopédico, mas também do conhecimento da avaliação que se faz desses indivíduos como representações sociais positivas ou negativas. São dados discursivos, acionados pela identificação e pela organização dos elementos, mas alcançados apenas pelo leitor/ouvinte dotado de conhecimento. 23 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 23 18/06/2019, 17:47 Nesse caso, o quadro de estratégias poderia ficar assim: Quadro 2 – Estratégias empregadas em “Saiba”, de Arnaldo Antunes Os elementos circunstanciais têm especial importância da finalização de uma leitura, sobretudo para evitar extrapolação, ou desvio de sentido, como percebemos na interpretação equivocada da questão do Enem, relatada no início do texto. Observar quem disse algo a quem e o gênero a partir do qual se modela um texto ajuda na criação de expectativas e na sua confirmação – ou não. Vejamos o cartum de Caulos (1977, p.9): Fig. 1 – Cartum de Caulos 24 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 24 18/06/2019, 17:47 O texto apresenta uma composição bastante simples: quatro pipas voam, mas uma delas não está mais amarrada ao fio que a conduzia. As três ainda presas mostram uma fisionomia triste; a que está solta sorri. Tratando-se de um cartum, cria-se automaticamente a expectativa de que seu sentido tenha tom de crítica. Se solicitarmos a interpretação do cartum a leitores que reconheçam os elementos como pipas e saibam como esses objetos funcionam e como as pessoas os manuseiam, o sentido interpretado estará ligado à valoração positiva da liberdade, metaforicamente representada pela pipa que voa livre, em contraste com a negatividade da falta de liberdade, representada pelas pipas que permanecem presas aos fios. Quadro 3 – Estratégias empregadas na leitura do cartum de Caulos Por si só essa interpretação pode ser considerada finalizada, pois as inferências já se ajustaram aos elementos apresentados superficialmente. Entretanto, se levarmos em consideração outra informação circunstancial relativa ao momento histórico em que o cartum fora publicado, a interpretação ganhará outro sentido – e outros efeitos –, pois, em 1977, quando o cartum fora publicado, o Brasil se encontrava em plena repressão política, vivendo a censura total de expressão e a perseguição de indivíduos considerados subversivos. A liberdade, nesse 25 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 25 18/06/2019, 17:47 contexto histórico, expressa em um cartum, é considerada tema subversivo, pois ganha o status de denúncia, reivindicação e expressão de revolta. Esse sentido, porém, só é alcançado se a data da publicação, como dado contextualizador, circunstancial, for acrescido à interpretação. Os recursos utilizados na textualização são inúmeros e cada arranjo textual, inserido em circunstâncias comunicativas específicas, propicia o acionamento de inferências variadas, ora mais calcadas nas circunstâncias enunciativas, ora nos saberes partilhados socialmente. O letramento ideal a ser alcançado ao término do ciclo básico pressupõe o domínio das estratégias de compreensão e de interpretação, trabalhadas, provavelmente, em aulas de LP, com o aproveitamento do conhecimento que o aluno já adquiriu e com a mediação de um professor que faça com que o leitor realize as relações texto-contexto, além de oferecer conhecimento extratextual necessário para tal quando este não for do repertório do aluno. O que se constata, frequentemente, é, por um lado, o trabalho autodidata de professores dedicados, mas, por outro, a repetição de práticas inócuas para o letramento por parte de docentes que insistem na “tradição”, habituados à classificação descontextualizada e ao estudo fragmentado de conteúdos gramaticais. Em consequência disso, os alunos perdem a oportunidade de reflexão sobre a língua e sobre a construção de sentidos dos textos, que poderia elevá-los à condição de leitores sofisticados. A escola se acostumou a falar sobre a língua, mas nem sempre se mostra preparada para ensinar a usá-la; deseja que o aluno leia, mas ela própria ainda não aprendeu as estratégias de leitura que precisa ensinar. AUTONOMIA E CRITICIDADE NA LEITURA A leitura vem sendo tratada em um novo contexto teórico que considera práticas sob um aspecto crítico e voltado para atividades, sobretudo 26 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 26 18/06/2019, 17:47 sociointerativas. Trata-se de promover a leitura como uma ação solidária e coletiva no seio da sociedade. Luiz Antonio Marcuschi, 2008 As análises e os quadros aqui apresentados não tiveram, evidentemente, a pretensão de esgotar os recursos textuais acionados no ato de ler, mas apenas mostrar como conjugar os níveis de interpretação de um texto a fim de que se alcance o sentido programado pela textualização. Se, ao se ler mais do que está programado, ocorre extrapolação, menos que isso, não há interpretação. Os recursos gramaticais, sobretudo, devem ser somados às estratégias de leitura, assim como as figuras de linguagem e as formas mais recorrentes de organização dos gêneros textuais. As estratégias de leitura estarão vinculadas aos recursos colocados em evidência ao longo da escolarização do aluno, com ênfase, inicialmente, aos mecanismos mais ligados à compreensão (mas jamais sem se despreocupar da interpretação) e, nas séries mais avançadas, àqueles mais ligados à interpretação e ao acionamento de conhecimento de mundo (sem menosprezar as marcas formais que os justificam). É um processo longo, mas de fácil aplicação, inclusive, pelos demais professores que não os de Língua Portuguesa, sempre que se depararem com uma atividade que envolva texto e, consequentemente, compreensão e interpretação. Quando se revela ao aluno que a interpretação começa por aquilo que ele já sabe, pelos saberes de conhecimento e de crença que qualquer um adquire em sua relação social com seu grupo, ele próprio é valorizado também, mostrando, como quer Paulo Freire, que a leitura da palavra (acrescentamos: e de outros meios simbólicos) depende da leitura de mundo que ele faz todos os dias; e que a leitura do mundo também depende da leitura da palavra, que lhe oferece mais conhecimento e mais experiência – ainda que “virtual”. “Ler bem” depende da aceitação do leitor para interagir com o texto, mas com um texto que, em alguma 27 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 27 18/06/2019, 17:47 medida, contenha elementos com que ele se identifique, que “tenham sentido” para ele, que lhe digam respeito. Se o texto não parece “ter sentido” para ele, como interpretá-lo? Vale salientar que, embora os cursos de Letras formem professores que vão atuar, de acordo com a legislação vigente, com o segundo segmento do Ensino Fundamental ou com o Ensino Médio (isto é, na maior parte do ciclo básico), dificilmente se encontrará na grade curricular uma disciplina cujo objetivo seja especificamente a leitura, ou a interpretação de textos, ministrada por especialistas da área de Língua Portuguesa, ou de Linguística, com o intuito de aplicar no processo ensinoaprendizagem as teorias de texto e do discurso – o que seria um fator diferencial na formação de professores, e, consequentemente, no letramento dos alunos. Como consequência, convivemos com o fato de, quase sempre, o professor da Educação Básica trabalhar apenas intuitivamente com leitura. Dessa maneira, a escola passa a acreditar que, quando não se tem a sorte da vocação pessoal, ou da herança genética para “ler bem”, basta ler em quantidade. Em geral, os professores formados pelos cursos de Letras – sublinha-se: responsabilizados, mais do que os outros docentes, pelo desenvolvimento da competência leitora dos alunos ao longo do ciclo básico – costumam se voltar prioritariamente para o ensino da língua e da gramática, e acabam sem (tempo para) desenvolver atividades que vinculem saberes sobre a língua aos saberes de uso da língua – uso que, afinal, só ocorre por meio de textos. O que se constata, frequentemente, é, por um lado, o trabalho autodidata de professores dedicados, mas, por outro, a repetição de práticas inócuas para o letramento por parte de docentes que insistem na “tradição”, habituados à classificação descontextualizada e ao estudo fragmentado de conteúdos gramaticais. Em consequência disso, os alunos perdem a oportunidade de reflexão sobre a língua e sobre a construção de sentidos dos textos, que poderia elevá-los à condição de 28 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 28 18/06/2019, 17:47 leitores sofisticados. A escola se acostumou a falar sobre a língua, mas nem sempre se mostra preparada para ensinar a usá-la; deseja que o aluno leia, mas ela própria ainda não aprendeu as estratégias de leitura que precisa ensinar. Edgar Morin (2008) afirma que é preciso diferenciar uma “cabeça bem cheia”, em que se acumulam e se empilham saberes, de uma “cabeça bem feita”, na qual se colocam e se tratam os problemas; na qual agem os princípios organizadores que ligam os saberes e lhes dão sentido. Em outras palavras, não basta dar ao jovem acesso às informações. É preciso mostrar-lhe como relacioná-las para que tenham sentido. Preparar o aluno para “ler bem” pode significar dar-lhe condições para ligar os saberes e, assumindo sua posição como sujeito do processo interacional em que se baseia a interpretação, transformá-lo em um indivíduo autônomo e crítico. Mas também não basta exigir da escola que forme leitores sofisticados. É preciso também dar-lhe condições para isso, seja oferecendo professores bem formados, seja garantindo-lhe o direito de uma formação continuada que a auxilie na reflexão sobre novas práticas pedagógicas, referendadas por novos valores. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES, Arnaldo. Como é que chama o nome disso: antologia. São Paulo: Publifolha, 2006. BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990. BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980. CAULOS. Errar é humano. Porto Alegre, LP&M, 1977. CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso. Tradução por Ângela M. S. Corrêa & Ida Lúcia Machado. São Paulo, Contexto, 2008. INEP. ENEM. 2015. Disponível em <http:// 29 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 29 18/06/2019, 17:47 download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/provas/2015/ CAD_ENEM%202015_DIA%202_05_AMARELO.pdf >Acesso em 29 abr. 2016. INEP. Pisa no Brasil. Disponível em < http:// portal.inep.gov.br/pisa-no-brasil.> Acesso em 12/11/2018. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo, Contexto, 2008. MAZIEIRO, Guilherme. Câmara de Campinas quer anular questão do Enem que cita Simone de Beauvoir. O Estadão Campinas, Campinas, 30 out. 2015. Disponível em <http:// educacao.uol.com.br/noticias/agencia-estado/2015/10/30/ camara-de-campinas-quer-anular-questao-do-enem-que-citasimone-de-beauvoir.htm.> Acesso em 07 nov. 2015. MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a forma, reformar o pensamento. 15. ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2008. POSSENTI, Sírio. Questões para analistas do discurso. São Paulo: Parábola, 2009. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. 30 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 30 18/06/2019, 17:47 FALAR COM PROPRIEDADE E DEFENDER SUAS IDEIAS: EM BUSCA DE CAMINHOS PARA A CONSTITUIÇÃO DE SUJEITOS INDEPENDENTES Sirley Ribeiro Siqueira (CPII/LEPELL) PALAVRAS INICIAIS Como educadores, precisamos estar o tempo todo dispostos a repensar a nossa prática, tendo em vista a necessidade de colaborarmos para a formação de cidadãos cada vez mais autônomos, capazes de pensar por si, de expressar livremente suas ideias e defendê-las. Esta autonomia, contudo, é construída gradualmente, com ações que precisam ser reiteradas, a fim de se obter o resultado esperado. Em outras palavras, podemos afirmar que somente com o exercício constante e a prática recorrente é possível desenvolver e consolidar as habilidades esperadas. Na década de 1980 e 1990, no Brasil, houve um avanço bastante significativo dos estudos linguísticos, fruto da inquietação de muitos estudiosos, preocupados com os resultados da escola pública e com o seu “descolamento” da vida em si. Como consequência, muitas práticas tradicionais passaram a ser revistas, uma vez que as universidades publicavam cada vez mais subsídios teóricos que davam respaldo a novas maneiras de se trabalhar em sala de aula. Podemos, inclusive, perceber, como culminância deste processo, a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), cuja marca principal (em relação à Língua Portuguesa) é a centralidade do “uso”. 31 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 31 18/06/2019, 17:47 Com o intuito de compartilharmos algumas de nossas reflexões acerca do ensino de Língua Portuguesa, tendo em mente o quanto o “uso”, este componente central dos PCN, é relevante, neste texto, partiremos de duas perguntas: - “Por que é importante priorizar a argumentação em toda a Educação Básica, sobretudo no Ensino Médio?” - “Por que é preciso trabalhar com a oralidade se nossos alunos já sabem falar?” Após tratarmos destas questões, a partir de uma perspectiva sociointeracionista, apresentaremos uma proposta de trabalho que conjuga argumentação e oralidade: a criação de uma Sociedade de Debates no Ensino Médio. ARGUMENTAÇÃO: UMA ATIVIDADE PRESENTE NO DIA A DIA Após um período em que os estudos sobre argumentação foram equivocadamente associados à retórica e esta ser intensamente criticada como disciplina não científica, durante a ascensão do Positivismo, surge, no período da Guerra Fria, o Tratado sobre Argumentação, de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1958), uma obra inteiramente dedicada à argumentação. Tal estudo tornou-se a base para as demais pesquisas na área e foi responsável por renovar o conceito de argumentação. Entretanto, somente anos mais tarde, surgiram obras como as de Ducrot (1973;1980;1990), Anscombre e Ducrot (1983) e Grize (1980) que foram importantes referenciais para o avanço dos estudos relacionados à argumentação, conforme aponta Plantin (2008, p.22). Este renovado interesse pela argumentação, o qual se desdobra em diferentes correntes de estudo, está relacionado ao entendimento de que a argumentação está presente nas mais 32 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 32 18/06/2019, 17:47 diversas ações do dia a dia e, portanto, nos mais variados gêneros textuais. Dessa maneira, tem se tornado um ponto pacífico entre os estudiosos a percepção de que as diferentes sequências textuais podem servir a diversos propósitos argumentativos. Isto pode ser percebido, por exemplo, quando se narra uma história com a intenção de usá-la como argumento, para convencer alguém acerca de uma posição; quando, numa descrição, são cuidadosamente escolhidos adjetivos, de acordo com a intenção do produtor do texto, isto é, quando se pretende orientar o olhar do interlocutor destacando aspectos positivos ou negativos do objeto descrito. Grize corrobora esta ideia afirmando o seguinte: Argumentar, na acepção corrente, é fornecer argumentos, logo, razões, favoráveis ou contrárias a uma tese. [...] Mas é também possível conceber a argumentação de um ponto de vista mais amplo e entendê-la como um procedimento que visa a intervir sobre a opinião, a atitude, ou sobre o comportamento de alguém. Deve-se insistir ainda que tais meios pertencem ao discurso [...]. (GRIZE, 1990, p.41) Esta visão subentende um continuum entre as modalidades argumentativas, na medida em que há atividades em que a argumentação se apresenta de maneira bastante evidente (como quando se há um dissenso acerca de um tema e claramente existe a intenção de se convencer o interlocutor) e também existem aquelas em que a argumentação se encontra bastante diluída no contexto e está quase imperceptível. Entre estes polos, situam-se discursos com diferentes dimensões argumentativas. Amossy, aliás, esclarece a diferença entre dimensão argumentativa e visada argumentativa. Segundo a autora, Para evitar confusões, é preciso, porém, diferenciar a dimensão argumentativa inerente a muitos discursos, da visada argumentativa que caracteriza apenas alguns 33 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 33 18/06/2019, 17:47 deles. Em outros termos, a simples transmissão de um ponto de vista sobre as coisas, que não pretende expressamente modificar as posições do alocutário, não se confunde com uma empreitada de persuasão sustentada por uma intenção consciente e que oferece estratégias programadas para esse objetivo. Uma defesa no tribunal tem uma nítida visada argumentativa: seu objetivo principal é fazer admitir a inocência do acusado cujo advogado tem por tarefa defendê-lo, ou apresentar circunstâncias atenuantes que diminuirão sua pena. Uma descrição jornalística ou romanesca, entretanto, terá mais uma dimensão do que uma finalidade argumentativa. (AMOSSY, 2015, p.44) Esse entendimento de que há diferentes graus de argumentatividade reforçam a relevância dos estudos sobre a argumentação. Além disso, reiteram a importância de tratarmos da argumentação em toda a Educação Básica, uma vez que se tem como ideal de formação aquela que se pauta no desejo de contribuir para a formação de sujeitos capazes de entender as teses subjacentes aos discursos alheios e de veicular com clareza as suas próprias ideias e defendê-las. Cabe frisar também que, em um contexto de escola pública, cujos estudantes sejam oriundos de camadas pouco letradas, o compromisso com o ensino da argumentação precisa ser ainda maior. Isto se faz necessário, especialmente, se almejamos contribuir para a formação de uma sociedade cada vez mais democrática, na qual todos os cidadãos possam compreender discursos autoritários e/ou eivados de preconceito. Ademais, acreditamos que possibilitar a apropriação de estratégias argumentativas é uma maneira de se empoderar cidadãos provenientes de classes sociais menos favorecidas, a fim de que possam reivindicar seus direitos, garantidos, aliás, pela Constituição Federal. 34 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 34 18/06/2019, 17:47 Não podemos pensar, entretanto, que se trata de um trabalho fácil e rápido. É preciso investir tempo para que consigamos observar resultados, pois ações pontuais não são suficientes para dar conta da complexidade da tarefa. Como dissemos, tratase de um investimento, respaldado, inclusive, pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), quando o documento afirma que a argumentação é: capacidade relevante para o exercício da cidadania, por meio da análise das formas de convencimento empregadas nos textos, da percepção da orientação argumentativa que sugerem, da identificação dos preconceitos que possam veicular no tratamento de questões sociais etc. ( BRASIL, p. 41, 1998) Com tal base, propomos neste texto que o trabalho com argumentação seja, portanto, uma prioridade da Educação Básica e que não se restrinja apenas ao texto escrito. Defendemos a importância de se trabalhar também com a argumentação na modalidade oral, conforme será exposto na próxima seção. A ORALIDADE – UMA MODALIDADE POUCO EXPLORADA A segunda pergunta que precisamos responder neste artigo é “Por que é preciso trabalhar com a oralidade se nossos alunos já sabem falar?”. De fato, ao chegarem à escola os alunos já dominam a língua materna. Entretanto, a maior parte do corpo discente emprega apenas a modalidade coloquial e é um direito seu ser informado acerca da necessidade de se adequar a fala, de acordo com o interlocutor e o contexto situacional. Nos PCN, encontramos a seguinte declaração: a questão não é falar certo ou errado e sim saber que forma de fala utilizar, considerando as características 35 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 35 18/06/2019, 17:47 do contexto de comunicação, ou seja, saber adequar o registro às diferentes situações comunicativas. É saber coordenar satisfatoriamente o que falar e como fazê-lo, considerando a quem e por que se diz determinada coisa (BRASIL, 1998, p. 69). Nesta passagem, os PCN reiteram a importância do trabalho com a oralidade, de modo a deixar claro que é preciso haver espaço para o ensino da modalidade falada em nossas aulas de Língua Portuguesa. O quase total esquecimento dessa recomendação que ocorre na maioria das escolas brasileiras, públicas ou privadas, é oposto ao que o mundo da vida e do trabalho espera dos cidadãos. Portanto, conforme já afirmamos, em uma escola que pretende ser relevante para a formação de pessoas capazes de compreender o posicionamento alheio e de expor o próprio ponto de vista, este descompasso precisa ser suprimido. Meyer (2008, p.9) defende que “a vida cotidiana e a atividade profissional atribuem posição preponderante à argumentação oral”. O autor discorre acerca de diversas situações nas quais a fala em público se faz necessária e, por isso, deveria ser objeto de aprendizado na escola. Dentre elas, destacamos duas especialmente relevantes para o jovem. Segundo as palavras do autor: Como candidato a emprego, ele será obrigado a valorizar-se, por meios escritos (carta de apresentação) e orais (entrevista de seleção). Neste último caso, o candidato pode enfrentar uma entrevista individual, em que deverá convencer o recrutador de suas capacidades, mas também pode (é uma tendência crescente) ser posto numa situação de debate em grupo, em que os candidatos precisam trocar ideias sobre um tema, geralmente de cunho social, diante de um ou de vários observadores, que 36 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 36 18/06/2019, 17:47 terão a oportunidade de escolher aquele que tiver mais domínio da argumentação. Como participante no mundo do trabalho, ele terá múltiplas ocasiões de convencer. Não se deve achar que essas situações se restringem a alguns campos particulares, como os das atividades comerciais. Não é só o vendedor que deve saber argumentar eficazmente em nome da promoção de seu produto; praticamente todas as profissões dependem dessa técnica. De fato, na relação com os clientes, fornecedores ou colegas, todas as pessoas em situação profissional, podem ser obrigadas a realizar escolhas e compartilhá-las, portanto, a influir sobre a opinião alheia. Então precisam organizar suas ideias e cuidar de sua apresentação com o objetivo de valorizar suas concepções. (...) Quem quiser não ser submisso, mas ser capaz de fazer que sua voz seja ouvida em pé de igualdade com a dos outros, precisa também saber argumentar e defender-se. (MEYER 2008, p.11-12) Outro estudioso que defende a legitimação da linguagem oral como objeto de saber escolar é Nonato (2018, p. 222), ao expor que a finalidade curricular é “ promover a formação do aluno como cidadão crítico e participante ativo na vida social brasileira da atualidade”. Em outras palavras, se a escola tem por meta ser, de fato, relevante na formação acadêmica e pessoal dos alunos não pode se esquivar da tarefa de trabalhar com a oralidade durante as aulas, especialmente as de Português. De acordo com esse entendimento, é um equívoco colocar em segundo plano o ensino do oral. Tão importante quanto saber expor e endossar suas ideias na modalidade escrita é ter a capacidade para cativar um auditório ao discorrer sobre um assunto e ainda convencê-lo sobre seu ponto de vista. Por fim, Siqueira e Xavier (2018, p. 9), lembram que “em um contexto social marcado pela desigual distribuição de renda, torna-se ainda mais relevante considerar o papel da escola, 37 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 37 18/06/2019, 17:47 especialmente a que é pública, a fim de este espaço se caracterize pela democratização das relações sociais e pelo acesso à cidadania”. Neste sentido, trabalhar com oralidade é necessário para que possamos dar voz ao aluno, principalmente àquele oriundo de um meio com pouco acesso a bens culturais. Tal compromisso tem por finalidade fazer com que ele se sinta capaz de defender suas ideias, exigir seus direitos e se posicionar como cidadão, com a clareza de que o contexto, o interlocutor e o assunto, por vezes, exigem uma fala em público, pautada pela formalidade. Acreditamos, portanto, que a habilidade de empregar a fala adequadamente em contextos formais pode e deve ser objeto de ensino na escola brasileira. Para dar conta dessa tarefa, há uma diversidade de gêneros tipicamente orais que circulam em nossa esfera social e que podem ser mobilizados como ferramenta de trabalho no cotidiano escolar. Escolhemos, contudo, trabalhar com o debate regrado, ou simplesmente, debate por ser este um gênero capaz de desenvolver uma série de habilidades e pela possibilidade de desenvolver projetos interdisciplinares, ao tratarmos de temas transversais. O DEBATE COMO GÊNERO DE VISADA ARGUMENTATIVA Algumas características centrais do debate são a presença de pontos de vista distintos acerca de um tema e a evidente intenção de cada participante de convencer o interlocutor contrário às suas ideias. Neste sentido, confor me já expusemos, se pensarmos no continuum entre as modalidades argumentativas, o debate se situa no polo em que a argumentação deve ser elaborada de maneira mais consciente porque é a que tem um perfil mais persuasivo. Como consequência disso, nota-se a necessidade de se recrutar argumentos cada vez mais sofisticados para se obter êxito no discurso. Além disso, o caráter dialógico inerente ao debate merece sempre ser destacado. Esse aspecto é extremamente 38 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 38 18/06/2019, 17:47 relevante em uma sociedade que busca se tornar cada vez mais democrática e empática. Concordamos com Aquino quando afirma que: O debate, além de contribuir para o desenvolvimento de habilidades necessárias às práticas sociodiscursivas deter minadas, propõe-se que o ensino da argumentação nos gêneros orais se atenha à observação de estratégias selecionadas em interações na quais se destaque o jogo interacional que se delineia quando se busca persuadir os interlocutores. (AQUINO, 2015, p. 227) Diante de tais características e finalidades, propusemos, por meio de uma iniciação científica, um projeto denominado Argumentação e Oralidade cujo objetivo geral diz respeito a desenvolver a habilidade de empregar a língua oral, para defesa de uma tese, em situações que requerem um grau maior de formalidade. O projeto, cujo principal eixo de ação foi a criação de uma Sociedade de Debates, é desenvolvido com alunos do Ensino Médio, no Colégio Pedro II, uma escola pública federal do Rio de Janeiro. Uma Sociedade de Debates consiste em um grupo organizado de alunos debatedores e juízes e, geralmente, segue o padrão do Parlamento Britânico. Em tal modelo, há quatro duplas de debatedores que discutem a moção (recorte mais específico do tema estabelecido) dada no dia do debate. Também no dia do evento, os debatedores descobrem se terão que argumentar favoravelmente à moção ou se deverão apresentar argumentos contrários a ela, de modo que duas duplas fiquem, portanto, a favor e duas duplas sejam contrárias, formando-se duas bancadas de duas duplas cada. O primeiro debatedor a proferir o seu discurso pertence à bancada de defesa e o segundo, à bancada de oposição. Cada debatedor tem até sete minutos para apresentar seus argumentos. 39 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 39 18/06/2019, 17:47 Seguindo este padrão, também há alguns papéis pré-definidos a serem cumpridos pelos debatedores: o primeiro debatedor, da bancada de defesa, precisa fazer a definição da moção, ou melhor, escolher, dentre as palavras que compõem a moção, algumas delas para defini-las de modo a manter o recorte dado na moção e favorecer a sua bancada. O último debatedor de cada bancada tem a função de resumir os argumentos apresentados por sua bancada com o intuito de reiterar a relevância de tais argumentos e justificar por que os argumentos escolhidos foram os mais convincentes para a defesa de suas ideias. A avaliação é feita por dois ou três juízes e julga a apresentação de argumentos acompanhados de referência, a oratória, a linha de raciocínio, a capacidade de responder as perguntas feitas e de refutar os argumentos da bancada oposta e, finalmente, de seguir as regras estabelecidas pelo modelo. Ao final do debate, os juízes declaram qual foi o melhor debatedor individual e qual foi a melhor dupla. Os juízes também precisam dar a todos os debatedores um “feedback” acerca do seu desempenho individual, baseando-se nos critérios anteriormente descritos. O papel de juiz, por isso, precisa ser desempenhado por um aluno mais experiente ou pelo professor. Ao observarmos os PCN, percebemos que a realização constante de debates atinge os propósitos estabelecidos no documento em relação ao ensino da oralidade. A seguir, apresentamos uma figura na qual apresentamos os objetivos traçados pelo documento para o treinamento da fala em público e como as ações desenvolvidas ao longo dos debates são capazes de atingi-los. 40 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 40 18/06/2019, 17:47 Objetivos dos PCN (BRASIL, 1998, p.51) Ações inerentes ao gênero debate regrado planeje a fala pública usando a linguagem escrita em função das exigências da situação e dos objetivos estabelecidos; Os alunos são orientados a pesquisarem sobre o assunto escolhido e a formularem argumentos consistentes, que possam sustentar sua tese. Em outras palavras, precisam pesquisar para planejar a fala, tomando notas, inclusive, em função da exigência do gênero; Cada debatedor desempenha um papel definido, especialmente o primeiro e o último de cada bancada, buscando empregar a língua de maneira formal. Os alunos têm a liberdade de empregar a sua própria variedade linguística, adquirida no contexto familiar e ao longo dos anos de escolarização. Paulatinamente, contudo, vão descobrindo que há outras formas de falar mais adequadas às situações formais; considere os papéis assumidos pelos participantes, ajustando o texto à variedade linguística adequada; saiba utilizar e valorizar o repertório linguístico de sua comunidade na produção de textos; monitore seu desempenho oral, levando em conta a intenção comunicativa e a reação dos interlocutores e reformulando o planejamento prévio, quando necessário; O alunos que são favoráveis à moção precisam estar atentos ao que a bancada opositora estará expondo (e vice-versa), uma vez que será preciso ouvir os argumentos contrários aos seus para compor a contra-argumentação. Além disso, como um gênero dialógico, ao longo do discurso de cada debatedor, é possível que este seja interpelado pela bancada oposta para lhe fazer perguntas, o que reforça ainda mais a necessidade de estar atento à fala do interlocutor; considere possíveis efeitos de sentido produzidos pela utilização de elementos nãoverbais Os alunos são ensinados a perceberem que elementos como os gestos acompanham o discurso e o reforçam. Quadro 1: O debate como meio para atingir os objetivos traçados pelos PCN Além do atendimento aos cinco objetivos mencionados, gostaríamos ainda de lembrar que outra vantagem de se trabalhar a oralidade por meio do gênero debate é o fato de o aluno ser levado a posicionar-se frente a questões que se apresentam na vida em sociedade, uma vez que o pleno exercício da cidadania está atrelado à possibilidade de exposição do próprio ponto de vista e à convivência com posições ideológicas distintas. Nesse viés, destacamos um leque de possibilidades de trabalho com 41 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 41 18/06/2019, 17:47 temas transversais, de modo a se realizar um trabalho integrado por várias áreas. Sobre esse assunto, os PCN (BRASIL, 1998, p.40) reiteram que: “Por tratarem de questões sociais contemporâneas, que tocam profundamente o exercício de cidadania, os temas transversais oferecem inúmeras possibilidades para o uso vivo da palavra, permitindo muitas articulações com a área de Língua Portuguesa”. O tema de cada debate norteará, por conseguinte, os diferentes conhecimentos que precisarão ser mobilizados e quais áreas de estudo serão tocadas, quando os alunos assumirem a palavra. Por fim insistimos, que é justamente a contribuição para a aquisição e o desenvolvimento da habilidade para falar em público em situações formais – capaz de dar voz aos alunos – nosso princípio norteador. Quando lidamos com um corpo discente oriundo de classes sociais menos favorecidas e, por conseguinte, por tanto tempo silenciado, acreditamos que é nosso dever como educadores dar oportunidades para que estes alunos façam valer seus direitos, por meio do uso público da fala. Treinar a expressão oral desses alunos significa, portanto, prover-lhes instrumentos para se posicionarem na sociedade. Antes de passarmos às considerações finais, não poderíamos deixar de expor algumas falas de alunos envolvidos com a Sociedade de Debates, quando perguntados sobre a importância do Projeto para a sua formação. Transcrevemos tais falas a seguir: “bom... a sociedade de debates influenciou na minha vida... na minha acadêmica de uma forma que eu aprendi a argumentar melhor e isso fez com que eu tivesse uma maior desenvoltura ...uma maior facilidade pra realizar os meus trabalhos acadêmicos ... além disso... eh:: eu também acho que é muito importante pro meu desenvolvimento pessoal ... porque no futuro eh:: eu vou precisar falar com o público ... eu vou precisar ter uma melhor desenvoltura pra arrumar um emprego... ou 42 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 42 18/06/2019, 17:47 até mesmo dentro de um emprego ... até mesmo em qualquer situação da vida ... então ... eh:: ela eh:: então ela é muito importante a sociedade de debates foi muito importante pra mim em relação a isso tanto no meu crescimento pessoal quanto no meu crescimento acadêmico” (L., aluna da primeira série do Ensino Médio, Colégio Pedro II, 2018) “se tratando de formação acadêmica e do quanto a sociedade de debate influencia e é positivo para essa formação... a gente pode pensar em três pilares fundamentais de uma formação acadêmica.. a formação... de... pesquisa científica... da academia no geral... a formação para cidadão enquanto... pessoa... e a formação para o mercado de trabalho... e a gente pode apontar como a sociedade de debates é importante para esses três pilares... e no primeiro para a formação científica... a sociedade de debates é importante porque ela me permite pelo menos a aprender como fazer uma pesquisa com propriedade... como aprender em pouco tempo e aprender bastante... porque... a gente não tem tanto tempo assim para pesquisar sobre os temas que vamos debater... eh:: através das pesquisas que eu faço... é fácil para eu conseguir filtrar informações que são ou não úteis para um debate... a conseguir enxergar quais são e quais não são os sites que são recomendáveis para se pesquisar... conseguir filtrar de certa forma quando... quando devo ou não pesquisar cada coisa e no geral... a sociedade de debate me permite de uma forma muito melhor... fazer uma pesquisa de qualidade... indo para outro pilar que é enquanto formação do indivíduo... na sociedade de debates é importante que a gente aprenda a conhecer novos órgãos... novas perspectivas... novas óticas da sociedade... quando você tá em uma sociedade de debates... você tem que obrigatoriamente conhecer diferentes pontos de vista... isso é bom para tirar nosso preconceito... para conseguir realmente fazer com que a gente pare para pensar e identifique que existem outras perspectivas de vida... e não só as nossas... eh:: fazer com que a gente se encaixe nessas pessoas... a sociedade de debates é importante para que a gente tenha empatia por outras pessoas... porque afinal de contas a gente tem que obrigatoriamente que conseguir pensar em argumentos que não necessariamente são 43 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 43 18/06/2019, 17:47 aqueles argumentos que a gente concorda... que a gente tem que pensar... eh:: entender aquele argumento... isso é muito importante para que a gente consiga se colocar no lugar de outras pessoas... indo... por último... para qualificação profissional... a sociedade de debates é importante porque ela permite que a gente fale em público... importante porque em qualquer trabalho que a gente for exercer a gente tem que usar a nossa fala para se comunicar... para criar vínculos... para conhecer pessoas... isso é importante para o trabalho... criar qualquer tipo de vínculo... eh:: a sociedade de debates permite com maestria que a gente faça isso... porque estamos o tempo todo tendo que falar em público... tendo que nos expressar... tendo que ser o mais claro possível... transmitir essa ideia de forma clara... eh:: exatamente assim que a sociedade de debates contribui para mim enquanto formação acadêmica...” (R., aluno do terceiro ano do Ensino Médio, Colégio Pedro II, 2018) CONSIDERAÇÕES FINAIS Esperamos ter respondido, ao longo deste trabalho, as questões enunciadas no início deste texto e sobre as quais nos debruçamos a fim de mostrar que tão importante quanto ensinar sobre argumentação na escrita - muitas vezes o único foco da escola – é tratar da argumentação em contextos orais. Além de todos os motivos já apontados, que justificam a importância de se trabalhar com a oralidade a partir do gênero debate, gostaríamos de lembrar, nestas palavras finais, que os alunos precisam ser orientados a manterem regras de cortesia e respeito, a fim de que a discussão sempre fique restrita ao campo das ideias. Se almejamos uma sociedade melhor, isto passa pela assimilação do conceito de empatia e pela adoção de condutas condizentes com a civilidade. Gostaríamos ainda de reiterar nosso posicionamento de que é a partir da própria prática que são criadas e desenvolvidas as habilidades exigidas para a defesa de uma certa ideia e, com o 44 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 44 18/06/2019, 17:47 exercício constante, os educandos podem se tornar cada vez mais capazes de defenderem seus posicionamentos também na modalidade oral da língua. Deste modo, com este entendimento de que se aprende a debater através da participação em debates e de que a modalidade oral da língua também deve ser um alvo da escola, é que reforçamos a importância de se oferecer cada vez mais oportunidades aos discentes de aprenderem através da experiência e, desta maneira, paulatinamente, se tornarem mais confiantes e seguros ao assumirem a palavra em quaisquer contextos situacionais nos quais estiverem inseridos. Nosso interesse é, portanto, pela formação de sujeitos cada vez mais autônomos, capazes de alçarem a sua voz em defesa de seus direitos a fim de que estes não sejam suprimidos ou concedidos em parte. Além disso, nosso propósito também é o de ampliar ao máximo o letramento de nossos alunos, de modo que sejam capazes de se expressar com desenvoltura também na modalidade oral. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMOSSY, Ruth. A argumentação no discurso. São Paulo: Contexto, 2018. AQUINO, Zilda Gaspar Oliveira. Gênero orais, argumentação e ensino de língua portuguesa. Filologia Linguística Portuguesa, São Paulo, v.17, n.1, p.227-248, jan./ jun.2015. ANSCOMBRE, Jean Claude e DUCROT, Oswald. L’argumentation dans la langue. Bruxelas: Mardaga, 1983. DUCROT, Oswald. La preuve et le dire. Tours: Mame, 1973. ______. Les échelles argumentatives. Paris: Minuit, 1980. GRIZE, Jean-Blaise. Logique et language. Gap: Ophrys, 1990. NONATO, Sandoval. Processos de legitimação da 45 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 45 18/06/2019, 17:47 linguagem oral no ensino de Língua Portuguesa: panorama histórico e desafios atuais. Cadernos Cedes. v. 38, n. 105, p. 222-239, Campinas, maio-ago.2018. PERELMAN, Chain; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Traité de l’argumentation. La Nouvelle Rhéthorique. Bruxelas: Éditions de l’Université de Bruxelles, 1958. PLANTIN, Chrintian. A argumentação. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. SIQUEIRA, Sirley & XAVIER, Glayci. Grupos de pesquisa na escola básica: práticas inovadoras, práxis consolidadas e aperfeiçoamento docente. In: SIQUEIRA, Sirley & XAVIER, Glayci (org.). Práticas Educativas em Língua e Literatura: aprimorando práticas, discutindo saberes. Niterói: SSP Gráfica Editora, 2018. 46 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 46 18/06/2019, 17:47 ARGUMENTAÇÃO NA VERBOVISUALIDADE: LEITURA E ANÁLISE DE CHARGES NO ENSINO MÉDIO Glayci Kelli Reis da Silva Xavier (CPII/UFF)2 PALAVRAS INICIAIS Vivemos, sem dúvida, em uma sociedade cada vez mais imagética. As imagens têm sido meios de expressão da cultura humana desde as pinturas pré-históricas das cavernas, muito antes do aparecimento do registro da palavra pela escritura (SANTAELLA e NÖTH, 2012, p. 13). As imagens carregam em si memórias, culturas e tradições. Quando a imagem se conjuga à palavra, o potencial comunicativo de ambas é ainda ampliado, podendo uma reforçar o que diz a outra, dizer o que a outra não diz, ou mesmo desdizer o que é dito pela outra, criando, assim, diferentes efeitos de sentido. E, nessa relação, muitas vezes a argumentatividade é construída. Conforme aponta Ducrot (apud KOCH, 1998, p. 29), a argumentatividade está inscrita na própria língua e, mesmo quando narramos ou descrevemos, em maior ou menor grau, fazemos uso de estratégias argumentativas. Por esse motivo, o presente trabalho procura mostrar que, com o objetivo de formar cidadãos críticos, existem outras formas de se trabalhar a argumentação na Educação Básica, __ __ ___ __ ___ ___ __ ___ __ __ Este artigo foi escrito com a colaboração dos alunos de Iniciação Científica Júnior do Colégio Pedro II: Amanda Morais Araújo; Letícia Fernandes Szajnberg; Ivan Xavier dos Santos Neto e Rafaela Cardoso Caldas. 2 47 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 47 18/06/2019, 17:47 ampliando os sentidos construídos nas aulas de produção textual. O foco geralmente tem sido o desenvolvimento da habilidade de ler, interpretar e produzir textos verbais na modalidade escrita formal. No entanto, nos dias de hoje, com o avanço da tecnologia e com a popularidade das redes sociais, os alunos têm recebido diferentes estímulos, para além do verbal. Segundo Kress (apud MARCUSCHI, 2011, p. 27), não podemos mais ignorar que hoje vivemos uma “era de novos meios de comunicação” e que, além dos modos linguísticos, isto é, a fala e a escrita, temos de dar conta dos demais modos que estão a eles integrados e que se afiguram como relevantes para o processo comunicativo, tais como som, imagem, gestos, imagens em movimento etc. Podemos dizer, portanto, que, já que as formas de interação entre os homens mudam de acordo com as necessidades de cada sociedade, torna-se imprescindível a revisão, e ampliação, de alguns conceitos basilares no campo dos estudos das interações humanas e no âmbito dos estudos do processamento textual (DIONÍSIO, 2011, p. 135). Nessa perspectiva, o presente trabalho pretende mostrar parte de um projeto de Iniciação Científica Júnior desenvolvido no Colégio Pedro II (São Cristóvão, RJ), voltado para a leitura, interpretação e análise de diferentes textos veiculados pela mídia, textos em que a argumentação está presente, mas muitas vezes não claramente. Serão privilegiadas aqui as charges, textos altamente visuais e, ao mesmo tempo, com grande carga argumentativa. ARGUMENTAÇÃO NA VERBO-VISUALIDADE: OS PRESSUPOSTOS E SUBENTENDIDOS A argumentação é uma característica básica do discurso (FIORIN, 2016, p. 9). Podemos, assim, dizer que todo discurso tem uma dimensão argumentativa, seja ela de forma explícita (como nos artigos de opinião, cartas do leitor, editorial etc.) ou de forma implícita. Conforme aponta Fiorin (2016, p. 9), 48 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 48 18/06/2019, 17:47 Se a sociedade é dividida em grupos sociais, com interesses divergentes, então os discursos são sempre o espaço privilegiado de luta entre vozes sociais, o que significa que são precipuamente o lugar da contradição, ou seja, da argumentação, pois a base de toda a dialética é a exposição de uma teses e sua refutação. Tal perspectiva de que a argumentatividade é intrínseca à linguagem humana tem origem nos trabalhos de Oswald Ducrot e Jean Claude Anscombre. De acordo com os autores, “a utilização de um enunciado tem uma finalidade ao menos tão essencial quanto a de informar sobre a realização de suas condições de verdade, que é a de orientar o destinatário para certas conclusões e não para outras” (ASCOMBRE e DUCROT apud FIORIN, 2016, p. 16). A argumentação, portanto, estaria presente, em menor ou maior grau, em todo ato comunicativo, seja em uma conversa por celular, em notícias, entrevistas ou mesmo em situações mais simples do dia a dia, como na elaboração de uma lista de compras (você deve decidir ou dizer para o outro o que deve ser comprado ou não). De acordo com Koch e Elias (2017, p. 13), Linguagem é interação e seu uso revela relações que desejamos estabelecer, efeitos que pretendemos causar, comportamentos que queremos ver desencadeados, determinadas reações verbais ou não verbais que esperamos provocar no nosso interlocutor etc. Charaudeau (2009, p. 52), por sua vez, afirma que “todo ato de linguagem resulta de um jogo entre o implícito e o explícito” e sua produção tem por intuito agir sobre o outro. Além disso, segundo o teórico “o aspecto argumentativo de um discurso encontra-se frequentemente no que está implícito” (CHARAUDEAU, 2009, p. 204). Um exemplo disso são os 49 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 49 18/06/2019, 17:47 slogans publicitários, que têm por finalidade exaltar qualidades de um produto para convencer o consumidor a adquiri-lo. Também são exemplos os textos verbo-visuais presentes na mídia que, mesmo dizendo-se “neutros”, defendem um ponto de vista. Nesse jogo entre o explícito e o implícito, o sentido é construído, na maior parte das vezes, por meio de inferências. Fiorin (2016, p. 31) define inferência como [...] a operação pela qual se admite como correta uma proposição em virtude de sua ligação (por implicação, por generalização ou mesmo, segundo alguns autores, por analogia) com outras proposições consideradas verdadeiras. O raciocínio inferencial pode estar ou não expresso integralmente no texto. Assim, o processo de leitura implica a realização de inferências. O texto diz mais do que aquilo que está anunciado: ele apresenta pressuposições, subentendidos, consequências não ditas, etc. No processo argumentativo, usam-se inferências. Em linhas gerais, o posto, o elemento que está claramente exposto na frase, está no âmbito do explícito; o pressuposto e o subentendido (as inferências) estão no campo do implícito. Por exemplo, no enunciado “Joana não parou de beber”, o posto é o próprio enunciado (“ela não parou de beber”); o pressuposto seria a inferência feita a partir do posto (“Joana bebe há algum tempo”); o subentendido, nesse caso, pode ser a inferência que Joana disse que iria parar de beber, mas não o fez, ou mesmo que ela tentou fazê-lo, mas não conseguiu. O pressuposto é o conteúdo implícito desencadeado pela formulação do enunciado, independente da situação da enunciação. O uso da pressuposição, como aponta Fiorin (2016, p. 37), é um forte recurso argumentativo, pois ele conduz o interlocutor a aceitar certas ideias do enunciador. Já o subentendido é uma informação cuja atualização depende da situação de comunicação (FIORIN, 2016, p. 39). Por exemplo, 50 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 50 18/06/2019, 17:47 o enunciado “Está chovendo demais”, dependendo da situação de comunicação, poderia produzir diferentes subentendidos. Dito por dois viajantes em um aeroporto, aguardando a partida de um avião, pode significar “O avião deve atrasar-se, pois não há teto para a decolagem”; dito por um juiz de futebol durante uma competição esportiva, pode significar “Vou paralisar a partida, pois não há condições de continuar”; já dito por uma mãe a um filho que se prepara para fazer sua corrida matinal, pode dar a entender: “Acho melhor você não fazer sua corrida agora” (FIORIN, 2016, p. 16). Seguindo essa linha de raciocínio, podemos dizer que os textos verbo-visuais presentes na mídia podem ser altamente argumentativos. O posto é representado tanto pela parte verbal quanto pela parte não verbal e ambas também são responsáveis por produzir inferências. Novos significados também podem decorrer de sua conjugação e da relação estabelecida entre tais partes. Como foi mencionado na introdução, uma pode reforçar o que diz a outra, dizer o que a outra não diz, ou mesmo desdizer o que é dito pela outra, criando diferentes efeitos de sentido. As charges são textos verbo-visuais com grande potencial argumentativo. Por serem baseadas em fatos do noticiário e relacionadas ao cenário atual da sociedade, a situação de comunicação e o contexto em que estão inseridas são extremamente importantes para o direcionamento das inferências, como será discutido a seguir. CHARGES: ARGUMENTAÇÃO E VERBO-VISUALIDADE A charge é um tipo textual composto tipicamente por imagens, podendo conter pequenos textos verbais que ajudam o leitor na compreensão de seu sentido. As charges, diferentemente dos cartuns, que relatam um fato atemporal que independe do contexto de uma época ou cultura, costumam satirizar fatos atuais que normalmente saem nos noticiários. 51 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 51 18/06/2019, 17:47 Ela recria o fato de forma ficcional, estabelecendo com a notícia uma relação intertextual (RAMOS, 2009, p. 21). O termo charge vem do francês “charger” que significa “carga”. “A Campainha e o Cujo”, de Manuel de Araújo Porto Alegre, é considerada a primeira charge publicada no Brasil, no ano de 1837 (SANCHOTENE, 2011, p. 21). Tal charge apresentava um jornalista e diretor de jornal da época, ligado ao governo, recebendo um saco de dinheiro. As charges são capazes de transmitir múltiplas informações de maneira condensada (ROMUALDO, 2000, p. 17). Desse modo, apesar de aparentemente serem de fácil leitura, todos os mínimos detalhes contribuem para a construção do significado. Um de seus principais diferenciais em relação aos demais gêneros opinativos é a realização da crítica em forma de humor e, conforme já foi mencionado, essa crítica é sempre temporal e relacionada a uma situação específica e atual da sociedade. Com relação à argumentatividade presente nas charges, Miani (2002, p. 11) aponta que a charge também se constitui como instrumento de persuasão, já que intervém “no processo de definições políticas e ideológicas do receptor, através da sedução pelo humor, e criando um sentimento de adesão que pode culminar com um processo de mobilização”. Desse modo, podemos dizer que, no universo da comunicação, a charge não pretende apenas distrair o leitor, mas, além disso, “alertar, denunciar, coibir e levar à reflexão” (AGOSTINHO, 1993, p. 229). Pelas características apresentadas, assim como as capas de jornais/revistas e os textos publicitários, as charges constituem um objeto de estudo bastante relevante se o professor deseja apresentar aos alunos a argumentação sobre outros aspectos, mostrando que a tese, neste caso, pode estar implícita. Isso pode ser verificado ao se analisar os elementos verbais e não verbais, além dos pressupostos e subentendidos que emergem da relação entre esses dois elementos, como veremos na descrição do projeto de Iniciação Científica Júnior que foi desenvolvido. 52 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 52 18/06/2019, 17:47 Q UANDO PALAVRAS... UMA IMAGEM PODE DIZER MAIS DO QUE MIL O conceito de letramento tem sido empregado atualmente em um sentido mais amplo, abrangendo vários campos do conhecimento: letramento científico, letramento visual, letramento midiático etc. Ao falar nisso, Dionísio (2011, p. 138) comenta que, na atualidade, uma pessoa letrada deve ser alguém capaz de “atribuir sentidos a mensagens oriundas de múltiplas fontes de linguagem, bem como ser capaz de produzir mensagens, incorporando múltiplas fontes de linguagem”. A autora ainda acrescenta que, na sociedade contemporânea, “à prática de letramento da escrita, do signo verbal, deve ser incorporada a prática de letramento da imagem, do signo visual” e que, por isso, necessitamos falar em letramentos, no plural, já que a multimodalidade é um traço constitutivo do discurso oral e escrito (DIONÍSIO, 2011, p. 139). Sob essa ótica, o projeto “Argumentação in foco: análise de textos verbo-visuais presentes da mídia” teve como principal objetivo fornecer subsídios que pudessem levar os alunos a ler/ interpretar/analisar diferentes textos veiculados pela mídia, textos em que a argumentação está presente, mas muitas vezes não claramente. Foram privilegiados os textos verbo-visuais, já que o desenvolvimento da tecnologia e o grande acesso ao “mundo” virtual fazem com que a leitura de textos multimodais precise ser desenvolvida. Conforme aponta Cagnin (2014, p. 28), “hoje nos vemos cercados de imagens por todos os lados, a todo o momento e em tal profusão que, nela engolfados, mais conhecemos a imagem das coisas do que as coisas da realidade”. Assim, por meio desse projeto, os alunos seriam levados a identificar os recursos linguístico-discursivos e as estratégias da argumentação presentes em diferentes gêneros da instância midiática. Num nível mais específico, pretendia-se que os educandos envolvidos: 53 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 53 18/06/2019, 17:47 - reconhecessem que a argumentatividade está inscrita na própria língua e que, em diversas situações, fazemos uso de estratégias argumentativas em maior ou menor grau; - compreendessem que a argumentação pode aparecer em diferentes gêneros discursivos; - reconhecessem que, em um texto verbo-visual, os sentidos emergem das relações que se estabelecem entre a linguagem verbal e a visual; - identificassem os recursos linguístico-discursivos e as estratégias da argumentação presentes em diferentes gêneros da instância midiática. No ano de 2017, durante a fase de treinamento, foram abordados diferentes gêneros argumentativos em suas especificidades: sua construção composicional (sua forma de dizer, sua organização geral que não é inventada a cada vez que nos comunicamos, mas que está disponível em circulação social), sua função social e comunicativa; seu conteúdo temático (o que pode ser dito em um dado gênero); seu estilo (seleção de recursos disponíveis na língua, orientada pela posição enunciativa do produtor do texto), o interlocutor esperado. Além disso, foram trabalhadas as principais características dos textos verbo-visuais e dos gêneros argumentativos de uma forma geral. Por fim, foi feita a leitura e discussão de textos teóricos que abordassem a argumentatividade presente em gêneros midiáticos – como as tirinhas, as charges, os textos publicitários e as capas de jornal e revistas –, além da noção a respeito dos pressupostos e subentendidos, dos argumentos implícitos e das estratégias de captação. Posteriormente, a professora, juntamente com os alunos, achou que seria mais produtivo, em um primeiro momento, selecionar o corpus de análise pelo tema abordado, em vez de focar um gênero específico. Na fase de desenvolvimento, foi feito o recorte do corpus de análise. O primeiro tema escolhido foi “o sistema de cotas”. 54 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 54 18/06/2019, 17:47 Os estudantes passaram, então, a pesquisar textos verbo-visuais presentes na mídia que tivessem relação com tal tema e que, de alguma forma, tivessem o objetivo de convencer o interlocutor e apresentassem a argumentatividade em seu escopo. Do material apresentado, foram selecionados 11 textos, de gêneros diversos. Esses textos foram numerados de 1 a 11 e os alunos deveriam analisar cada texto, referindo-se a seu respectivo número, dizendo se este era contra ou a favor o sistema de cotas e explicando que elementos da parte verbal e/ou visual fizeram com que chegassem a tal conclusão. Confrontamos, então, os textos de gêneros semelhantes, mas posições opostas. Em uma discussão geral, foram socializados os aspectos elencados individualmente e novas percepções foram construídas em grupo. A discussão foi bastante produtiva. O segundo tema selecionado foi “imigração”. Após a coleta de textos, percebemos que muitos deles eram charges e que oito destas eram do cartunista Latuff. Selecionamos, então, essas charges para análise. Primeiramente, foi feita uma análise inicial por todos os alunos. Após troca de ideias, cada um ficou com duas charges para aprofundar a análise. Posteriormente, por intermédio da professora e pesquisadora de charges Eveline Cardoso, entramos em contato com o Latuff e ele conversou com os alunos por meio de videoconferência, tirando as dúvidas que eles tinham a respeito dos textos selecionados e da produção das charges em geral. Foi uma experiência muito enriquecedora para os alunos. Eles perceberam como cada detalhe é importante para a construção da ideia de uma charge. O resultado de suas pesquisas foi apresentado na II Jornada do LEPELL, grupo de Pesquisa do Colégio Pedro II, em outubro de 2017, e também na aula inaugural do ano letivo de 2019, quando todos os alunos de Iniciação Científica Júnior expõem banners e falam sobre o trabalho desenvolvido. A seguir, serão expostas quatro das charges analisadas no projeto, referentes ao tema “imigração”, com base nos textos elaborados pelos alunos envolvidos. Imigração é a entrada de 55 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 55 18/06/2019, 17:47 indivíduos de um país estrangeiro em outro, em busca de trabalho e residência permanente ou não. Normalmente procuram condições melhores de vida ou são refugiados de guerra. As duas primeiras charges falam da imigração na Europa, enquanto as outras duas abordam a imigração nos Estados Unidos. Figura 1 – Imigração na Europa 1 Fonte: http://formulageo.blogspot.com/2012/06/charges-sobreimigracao.html. Acesso em: 03/10/2018. Nesta primeira charge, podemos ver uma figura feminina vestida com uma roupa que simboliza a União Europeia (azul, com estrelas douradas), protegendo a Europa dos imigrantes. A expressão facial, as unhas grandes (podemos dizer “garras’’) e a maneira em que está posicionado o pé da “Superprotetora” deixa bem claro que a União Europeia não está disposta a receber imigrantes, expulsando-os. Com relação ao imigrantes, podemos notar que estes estão com expressão de tristeza, trajados de roupas simples e sendo “chutados” para fora do continente. A União Europeia é representada por uma senhora para fazer menção ao termo “Velha Europa”. Ao observar tais detalhes, podemos dizer que a tese implícita seria a de que a Europa se demonstra “superprotetora” e, por vezes, preconceituosa, ao não querer receber os imigrantes, que seriam, 56 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 56 18/06/2019, 17:47 na maior parte, “sofredores” em busca de oportunidades ou abrigo. Figura 2 – Imigração na Europa 2 Fonte: https://operamundi.uol.com.br/opiniao/40394/charge-do-latuffuniao-europeia-cogita-envio-de-tropas-a-libia-para-conter-imigracao. Acesso em: 03/10/2018. A segunda charge mostra em uma conversa entre um representante da União Europeia (UE) e um da Organização das Nações Unidas (ONU). A pessoa da UE mostra um mapa escrito “Plano B”, que se trata de uma proposta militar para o problema da imigração. O plano seria enviar tropas da Itália (o que é simbolizado pelas armas saindo do mapa do país) para o continente Africano, mais especificamente Líbia, na intenção de impedir que os refugiados sequer conseguissem pegar um barco para tenta atravessar o Mar Mediterrâneo. Resumindo, eles parecem querer impedir que a travessia seja feita pelo mar, restando somente a fronteira terrestre, que é mais perigosa (por conta das guerras) e maior que a travessia marítima. Essa charge também mostra a tese que a UE é um local com uma forte opinião contra a imigração. Já que eles conversam sobre um “Plano B”, pressupõe-se que poderia existir um “Plano A”. Um plano inicial, mais humano, poderia ser exatamente ao contrário: ajudá-los a chegar ao continente Europeu e dar o refúgio e a ajuda necessária a 57 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 57 18/06/2019, 17:47 eles, para que assim eles “pagassem sua dívida” com o continente Africano, que sempre foi muito explorado. Outro detalhe interessante é que essa conversa se passa com o representante da ONU que, por sua vez, se encontra de braços cruzados, simbolizando passividade perante a tudo o que vem ocorrendo, pois dá a entender que eles não têm feito nada em relação à situação que vem matando milhões de imigrantes/ refugiados afogados na travessia. Pode-se dizer que a tese implícita seria a de que a UE faria tudo para impedir a entrada dos imigrantes, mesmo deixando que muitos morressem na travessia; a ONU, por sua vez, não faria nada com relação a isso. Figura 3 – Imigração nos EUA 1 Fonte: http://old.operamundi.com.br/conteudo/geral/41372/ charge%2Bdo%2Blatuff%2Bdonald%2 Btrump%2Binveste%2 Bcontra%2Bos%2Bimigrantes%2Bmexicanos.shtml. Acesso em: 03/10/2018. Durante a travessia da fronteira entre México e Estados Unidos, os imigrantes mexicanos encontram uma grande dificuldade, já que o muro feito para impedir a imigração é 58 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 58 18/06/2019, 17:47 altamente resistente e longo e, apesar de haver áreas na fronteira nas quais o muro não se estende, há um severo deserto nesses locais. Muitos imigrantes morrem desidratados ao tentar atravessar o longo deserto onde se encontra a fronteira na parte em que a extensão do muro termina. Na charge, o presidente dos EUA, Donald Trump, aparece subindo nas pesquisas eleitorais, enquanto reprime fortemente esses mexicanos. Pode-se citar como exemplo a essa repressão a sua promessa durante o período eleitoral de terminar a construção do muro, estendendo-se por toda a fronteira, com pagamento indireto vindo do próprio México. Alguns elementos presentes na charge funcionariam como argumentos implícitos que expressam crítica às políticas dos EUA e reforçam a tese central, como: a) rombo na grade do muro que divide a fronteira – o chargista utilizou o sarcasmo para retratar a realidade, uma vez que, muito foi investido na resistência e na segurança do muro. Portanto, seria muito difícil de fazer um buraco nele; b) garrafa na mão do mexicano – seria uma garrafa de água, simbolizando como os mexicanos sofrem com a desidratação durante a travessia no longo e árduo deserto. Muitos levam vários litros de água consigo, mas não é suficiente; c) esteira – retrata como a popularidade de Trump é, em muitas vezes, resultado da repressão a imigrantes. Portanto, quanto mais ele, durante sua campanha eleitoral, prometia políticas anti-imigratórias, ou as põe em prática durante seu mandato, mais popular ele fica. Na terceira charge, portanto, pode-se dizer que a tese implícita é a de que Trump não estaria aberto a receber imigrantes em seu país. Seus ideais são refletidos na sociedade americana; logo, para ter cada vez mais apoio, o presidente americano estaria reforçando cada vez mais a política antiimigratória dos EUA, mesmo que isso resultasse na morte de milhares de mexicanos. 59 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 59 18/06/2019, 17:47 Figura 4 – Imigração nos EUA 2 Fonte: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/reservado-aosimigrantes-por-carlos-latuff/. Acesso em: 03/10/2018. A quarta e última charge faz alusão ao decreto do presidente norte americano que levou ao aprisionamento de mais de 2,3 mil crianças filhas de imigrantes. O texto mostra uma criança enjaulada, chorando, com referência direta às centenas de crianças filhas de imigrantes e refugiados que tentaram entrar ilegalmente nos Estados Unidos e foram postas em gaiolas, em armazéns no Sul do Texas, enquanto esperavam pelos pais. Essa é uma das medidas adotadas pela política “tolerância zero” do governo do presidente Donald Trump (ilustrado pelo cabelo loiro com topete), que tem como objetivo desencorajar a imigração ilegal no país. A tese que pode ser inferida a partir de tal texto seria a de que o presidente Trump veria os imigrantes como seres inferiores, animalizados; por isso, prendeu-os em jaulas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do que foi apresentado, por meio de projetos como este, esperamos contribuir para a formação de cidadãos mais 60 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 60 18/06/2019, 17:47 atentos e críticos, que saibam compreender melhor o mundo ao seu redor e expor suas opiniões, e que sejam capazes de ter uma efetiva participação na vida social. Ao criar condições para que os alunos apropriem-se de aspectos linguísticos e discursivos que emergem da relação palavra-imagem presente em diversos gêneros, espera-se desenvolver também sua competência comunicativa. Foi muito gratificante ver o quanto eles se desenvolveram ao longo do projeto. A avaliação de um deles resume o resultado, ao dizer que o Projeto de Iniciação Científica de Língua Portuguesa fez com que seu senso crítico “se aflorasse para a análise de detalhes”, pois pôde perceber como um posicionamento, uma tese, pode estar presente no que está implícito, em simples manifestações da língua e também na conjugação de diferentes elementos, como no caso do texto verbo-visual. Isso aparece na forma como as manchetes de revistas são escritas, nas imagens escolhidas, etc. Os alunos também puderam aprender que a charge é um texto composto principalmente por imagens e que apresenta uma crítica de forma condensada. Por isso, todos os detalhes, mesmo que não percebidos inicialmente, são importantes para a construção de seu significado. Eles perceberam, que para entender uma charge dentro de um determinado contexto, são necessárias basicamente três etapas: primeira observação sobre a charge; análise mais aprofundada, com atenção aos detalhes; pesquisa sobre o tema/notícia a que ela se refere. Outra experiência importante foi o contato com o chargista Latuff, autor dos textos analisados por eles. Durante a conversa, era como se eles “encaixassem as peças de um quebra-cabeça”, ao confirmarem ou levantarem novas hipóteses. Além disso, ficaram sabendo um pouco mais sobre o processo de produção das charges, pois até então só tiveram contato com a instância de recepção. O chargista disse a eles que sua preferência pela linguagem não verbal se deve ao fato de que, em sua visão, as imagens “dizem e simbolizam mais do que as palavras”. 61 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 61 18/06/2019, 17:47 Enfim, foi extremamente rico o trabalho em conjunto, pois partíamos da análise individual para a coletiva e depois voltávamos para a apuração das percepções individuais, de forma mais aprofundada. Desse modo, os alunos puderam ampliar sua capacidade de interpretação e sua competência leitora. Conforme apontou um dos alunos em sua avaliação, a opinião contida nos textos verbo-visuais presentes na mídia e a argumentação implícita estão fortemente ligadas àquilo o produtor quer que o leitor (seu interlocutor) veja; há um ponto de vista crítico a ser mostrado e, muitas vezes, inferido. Dessa forma, o leitor poderá refletir sobre a tese – e os argumentos subjacentes – e aderir ou não a ela. Enfim, tais aspectos da argumentação são pouco explorados com os alunos; todavia, estes precisam ser cada vez mais debatidos, para que possamos contribuir para a formação de cidadãos atuantes na sociedade, que saibam compreender as mensagens explícitas e implícitas ao seu redor e refletir sobre elas de forma crítica, desenvolvendo sua própria opinião sobre os mais variados assuntos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGOSTINHO, A. T. A charge. Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 1993. 330 f. Tese (Doutorado) CAGNIN, Antonio Luiz. Os quadrinhos: linguagem e semiótica: um estudo abrangente da arte sequencial. 1 ed. São Paulo: Criativo, 2014. CHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2009. DIONÍSIO, A. P. Gêneros textuais e multimodalidade. In: KARWOSKI, A. M.; GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S. (org.). Gêneros textuais: reflexões e ensino. 4 ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2011. p. 137-152. 62 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 62 18/06/2019, 17:47 FIORIN, J. L. Argumentação. São Paulo: Contexto, 2016. KOCH, I. V. G. A inter-ação pela linguagem. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 1998. ______; ELIAS, V. M. Escrever e argumentar. São Paulo: Contexto, 2017. MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: configuração, dinamicidade e circulação. In: KARWOSKI, A. M.; GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S. (org.). Gêneros textuais: reflexões e ensino. 4 ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2011. p. 17-31. RAMOS, P. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2009. ROMUALDO, E. C. Charge jornalística: intertextualidade e polifonia: um estudo de charges da Folha de S. Paulo. Maringá: Eduem, 2000. SANCHOTENE, C. R. S. Mídia, humor e política: a charge da televisão. Rio de Janeiro: E-papers, 2011. SANTAELLA, L; NÖTH, W. Imagem: Cognição, Semiótica, Mídia. 1 ed. 6 reimp. São Paulo: Iluminuras, 2012. MIANI, R. A. A Charge na Imprensa Sindical: uma iconografia do mundo do trabalho. Anais do XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Salvador: INTERCOM, 2002. 63 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 63 18/06/2019, 17:47 MITOLOGIA E LETRAMENTO LITERÁRIO Marcelo de Souza Pereira (CPII/LEPELL) ESCOLA: TERRITÓRIO DE LEITURAS De certa maneira, a participação no universo da cultura letrada é menos uma questão de inserção do que de apropriação. Os sujeitos estão inseridos nesse universo desde que nascem, uma vez que, direta ou indiretamente, sofrem os seus efeitos. O problema é que, como ocorre com qualquer outro universo, exige-se que os sujeitos aprendam a se movimentar dentro dele. Mais do que isso: que eles sejam capazes de se apropriar desse universo, até mesmo para protegê-lo, atualizá-lo e criticamente reconfigurá-lo. Daí a importância da escola. Território de múltiplos saberes, a Escola Básica constitui um espaço privilegiado para a efetiva participação dos alunos no universo da cultura letrada, que gira em torno da leitura e da escrita. Em relação à leitura, o espaço escolar permite que crianças e jovens tenham acesso a uma variedade de textos: tanto aqueles com os quais eles estão relativamente familiarizados e que apresentam conhecimentos factuais, quanto aqueles que desafiam seu horizonte de expectativas e que ultrapassam a dimensão pragmática. Essa variedade de textos fornece aos alunos conteúdos literários e não literários, além de outros conteúdos que se situam na fronteira entre esses dois discursos. 64 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 64 18/06/2019, 17:47 No entanto, o simples fato de terem acesso e estarem expostos aos diversos textos que circulam na escola não transforma alunos em leitores, na acepção plena da palavra. O movimento de apropriação da cultura letrada por parte dos alunos solicita a presença de um elemento mediador. Dentro do espaço escolar, esse trabalho de mediação cabe – não exclusiva, mas prioritariamente – ao professor, que planeja, executa e avalia práticas pedagógicas, entrelaçando aspectos cognitivos e afetivos envolvidos na leitura. Tais atividades devem visar ao aprimoramento das habilidades leitoras dos alunos, conduzindo-os também à descoberta do prazer da leitura. O trabalho de mediação do professor é acrescido de novas nuances quando o que está em questão é o texto literário. Do professor, exige-se cautela, no sentido de não tratar a literatura como mero apêndice do estudo da língua. Em si mesma, porém, a cautela pouco significa se não for traduzida em ações que interpelem a problemática particularidade do discurso literário. Por que problemática? Porque apesar de, em sua constituição serem usados os mesmos elementos que aparecem nos textos não literários, a intencionalidade literária apresenta características particulares. Enquanto o texto não literário enfatiza a intencionalidade do enunciador, o texto literário redireciona essa ênfase para a relação entre texto e enunciatário. Estabelece-se, dessa forma, um pacto de leitura diferenciado, o qual mobiliza outros saberes, como a imaginação, a sensibilidade, a empatia, a capacidade de captar nuances ideológicas, o destrinchamento das diferentes vozes que atuam na polifonia dos textos. Além disso, há uma dimensão política no trabalho de mediação literária feito pelo professor que não deve ser ignorada. Não se deve entender o universo da cultura letrada – dentro do qual a literatura está incluída – como um luxo reservado às classes dominantes, mas como um direito inalienável, fundamental para o pleno exercício da cidadania, como bem demonstrou Antonio Candido (2004, p. 191). O espírito de 65 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 65 18/06/2019, 17:47 democratização da cultura literária, de se apropriar de um patrimônio pertencente a todos, tem sido traduzido em ações que, com diferentes graus de sucesso, vêm sendo desenvolvidas nas escolas de todo o Brasil. O conjunto dessas ações ganhou uma terminologia que os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) vieram a consagrar: trata-se do letramento literário. É mais ou menos ponto pacífico que o professor de língua portuguesa, além do letramento linguístico, deve promover o letramento literário dos alunos, que Rildo Cosson e Graça Paulino (2009, p. 67) definem como “processo de apropriação da literatura enquanto construção literária de sentidos”. A construção literária de sentidos, princípio fundamental do letramento literário, depende da orquestração de diferentes frentes de trabalho: a garantia do acesso às obras, a criação de uma comunidade de leitores, a ampliação do repertório literário dos alunos; o desenvolvimento de atividades sistematizadas e contínuas direcionadas para o desenvolvimento da competência literária. O letramento literário vai-se efetivando à medida que, com a orientação do professor, os alunos dão-se conta de que o patrimônio literário não é algo pronto: é construído socialmente. Daí Cosson (2015, p. 183) afirmar que o letramento literário constitui uma experiência de aprendizagem, uma vez que “implica negociar, reformar, construir, transformar e transmitir o repertório que recebemos de nossa comunidade como literário”. Protagonizando experiências de aprendizagem, os alunos não apenas recebem o patrimônio literário, mas agem sobre ele, dinamizando-o e convertendo-o em repertório. É nesse sentido que se fala de apropriação, uma vez que os alunos passam a ver na literatura um território simbólico com o qual eles têm uma relação de pertencimento. 66 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 66 18/06/2019, 17:47 LETRAMENTO LITERÁRIO E LETRAMENTO MITOLÓGICO O conceito de letramento literário pressupõe algumas noções que, em maior ou menor grau, já fazem parte da bagagem conceitual dos professores: as relações entre o real, o imaginário e o ficcional; a natureza multidisciplinar da literatura; os diferentes gêneros literários etc. Mas há um aspecto teórico a respeito do qual pouco tem se falado e que é, entretanto, fundamental: trata-se do caráter multitemporal do discurso literário. Para a materialidade do texto literário, convergem não apenas diferentes saberes, mas diferentes temporalidades. Entrecruzando-se das formas mais variadas, estas constituem uma trama multitemporal que contribui para a incessante produção de sentidos e afetos. A multitemporalidade tem como um de seus efeitos a imbricação, ainda que de forma não explícita, do arcaico com o contemporâneo na trama do texto. A tentativa de encontrar a raiz dessa multitemporalidade nos conduz a um fenômeno antropológico que constitui um dos fundamentos do imaginário humano: o mito. É um fato comum a observação de que os textos literários apelam não somente para o tempo presente, mas também para o passado e para o futuro. Diferentemente dos tempos vindouros, que tendem a cair na conjectura, os tempos presentes e passados, quando incorporados na criação literária, são percebidos como tendo uma espessura que mobiliza o sujeito a partir de sua relação tensa com as experiências vividas. Tratase de uma relação de tensão na medida em que a assimilação das experiências supostamente vividas é afetada tanto pelo senso do real quanto pela emergência do imaginário, principalmente quando as experiências perdem-se no tempo mais longínquo. O mais curioso é que, pela via do imaginário, o presente está sempre sendo assediado pelo passado, de modo que há, com efeito, uma semelhança entre as narrativas literárias e as narrativas mitológicas, semelhança que a passagem do tempo, 67 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 67 18/06/2019, 17:47 ao invés de negar, reafirma, obviamente acrescentando nuances. Atentos aos fundamentos mitológicos da literatura, alguns estudiosos argumentam haver, nas obras literárias, conteúdos que transcendem as limitações históricas e geográficas. Tais conteúdos mantêm-se atuantes, ainda que o tempo do mito, no mundo histórico, tenha sido associado, de forma equivocada, a um tempo morto e enterrado. Testemunha crítica desse equívoco, a literatura incorporou, em sua trajetória diacrônica, o logos sem abrir mão do mito, de modo que sua força continua residindo exatamente na confrontação a que são submetidos esses saberes. As relações entre mitologia e literatura são tão próximas, que há estudiosos, como Eleazar Mielietinski (1987), que atribuem ao mito um papel significativo na constituição do discurso literário: O mito é específico das culturas arcaicas, mas enquanto certo “nível” ou “fragmento” pode estar presente nas mais diferentes culturas, especialmente na literatura e na arte, que muito devem ao mito geneticamente e que apresentam em parte traços comuns aos dele. (MIELIETINSKI, 1987, p.176) Ao afir mar que a literatura e a arte estão ligadas geneticamente ao mito, Mielietinski (1987) sublinha o diálogo que as produções culturais, por mais contemporâneas que sejam, estabelecem com o tempo que as precedeu. Subentende-se, portanto, que há na literatura um duplo movimento: há um vetor temporal que a faz avançar para frente, incorporando as mudanças culturais que se operam a partir das determinações históricas concretas, mas há nela também um vetor temporal que trabalha de modo circular, que a faz mover-se enquanto revisita obsessivamente as questões fundamentais que alimentam e constituem o imaginário humano. Em função dessa ambivalente relação com o tempo, a literatura, de acordo com o autor, nunca abriu mão do mito, mesmo num contexto em que, com a emergência do conhecimento científico, o logos, e 68 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 68 18/06/2019, 17:47 não mais o mito, passa a ser o critério dominante de aferição da verdade dos fatos: Na fantasia artística e mitológica e na fantasia humana em geral há certa identidade, na medida em que ela não é “superável” por um conhecimento racionalista puramente científico (...) na medida em que ela não se reduz inteiramente à sua expressão históricoconcreta. (MIELIETINSKI, 1987, p. 441) Milietinski sugere que o mundo – e, consequentemente, a literatura “ seria muito mais pobre, tanto do ponto de vista estético, quanto epistemológico, se o cabedal de conhecimento mitológico fosse simplesmente abandonado após a consolidação do pensamento científico. Essa riqueza do mito, enquanto fonte geradora de criatividade é também ressaltada por Gilbert Durand (1982), que, ao destacar o papel do mito na formação do imaginário, aponta a sua preponderância enquanto matéria prima para a criação literária. Para Durand, os criadores de literatura, herdeiros de uma longa tradição, têm a seu dispor uma reserva mitológica dos antepassados culturais que fornece praticamente todo o arsenal da literatura ocidental com outros nomes e com outros conteúdos culturais, cujos esquemas – os mitologemas – são idênticos. (DURAND, 1982, p. 66) O que está em jogo, portanto, é a questão da sobrevivência do mito. O mito, ao provar sua força de perenidade frente ao logos, provoca no tempo uma espécie de curto-circuito que provoca dois efeitos: (a) o tempo deixa de ser concebido como unidade e passa a ser percebido como pluralidade; (b) o tempo passa a ser percebido não a partir da lógica da linearidade, mas da circularidade. Para a literatura, a consequência dessa circularidade temporal é a emergência daquilo que Durand (1982) chama de 69 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 69 18/06/2019, 17:47 “mitologemas”, isto é, esquemas poético-narrativos que, pela via da diferença, estão sempre sendo retomados. Os mitologemas, trabalhados esteticamente, tendem a se tornar elementos de experimentação e construção literária. De acordo com a reflexão de Salvatore D’Onofrio (2007), o mito, ao perder seu caráter de rito, vai pouco a pouco se convertendo em escritura: O mito, não mais vivido, passa a ser representado artisticamente. Com a perda da sacralidade e a consequente humanização do mito, dá-se a passagem da forma simples para a forma culta. Poetas e dramaturgos aproveitam as histórias míticas para realizar obras de arte literária. (D’ONOFRIO, 2007, p. 90-91) Dessa forma, depreende-se que os mitos não são apenas um tipo de narrativa que a literatura acolhe. O mito tem participação ativa no nascimento da literatura enquanto fenômeno. Essa formulação interessa à discussão do letramento literário na medida em que aponta para novas possibilidades de atuação pedagógica. O letramento literário é uma forma de ação pedagógica de amplo espectro que inclui uma infinidade de subletramentos, sendo o letramento mitológico um deles. Não se deve depreender daí que o professor seja obrigado a trabalhar mitologia com seus alunos. O que esse encaminhamento teórico sugere é que o professor pode encontrar na mitologia um aliado crucial para a sua prática pedagógica, no sentido de melhorar a sua atuação como mediador do processo de letramento literário. À medida que assimila os vínculos íntimos entre o conhecimento mitológico e o letramento literário, o professor sentirá a necessidade de aumentar a sua compreensão a respeito do universo do mito. A necessidade se justifica não apenas porque ele vai precisar trabalhar esse conteúdo pontualmente, mas porque a compreensão do próprio fenômeno literário implica o reconhecimento de sua associação com as matrizes míticas. 70 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 70 18/06/2019, 17:47 Contudo, deve-se ter em mente que o trabalho com a mitologia não se reduz a contar histórias mitológicas, identificar os personagens, saber sua genealogia. Também não se reduz a questões de compreensão de texto, comparação entre mitos de culturas diferentes. Na sala de aula, é muito comum que os alunos, instigados pelas histórias lidas ou contadas, perguntem ao professor coisas do tipo: “isso aconteceu mesmo ou é tudo invenção?” “Quem inventou essa história?” “Eu já ouvi essa história, mas não foi igualzinha à que você contou”. “Por que a história está diferente?” “Professor, não é meio estranho que um cara confunda o seu próprio reflexo, achando que é um outro cara, e ainda por cima se apaixone por ele?” “Professora, Xangô é o Zeus da mitologia yorubá?” “Professor, qual a diferença entre a Iara e Yemanjá?” Nas perguntas dos alunos, em seus diferentes estágios de desenvolvimento, estão envolvidos outros saberes que correm em paralelo ao conteúdo das histórias. Nessas perguntas, encontram-se sementes de questionamentos que põem inclusive em xeque a questão da fragmentação do conhecimento disseminado na escola. Todos esses saberes também fazem parte do processo de letramento literário. Nos questionamentos dos alunos, estão incluídas questões como autoria, tempo da escritura, relação entre “original” e “versão”, questões de gênero, questões ideológicas, diferenças culturais etc. O letramento literário pede, portanto, que o professor não apenas saiba contar as histórias mitológicas, mas que ele também tenha uma noção dos seus fundamentos. O primeiro passo nessa direção é revisitar o multifacetado conceito de mito. MITO: UM CONCEITO LABIRÍNTICO Definir o que seja um mito é um desafio que não cessa de interpelar os estudiosos, nas mais diversas áreas do conhecimento: na antropologia, na religião, na sociologia, na história, na filosofia. Cada um que tenta definir o mito aborda 71 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 71 18/06/2019, 17:47 um aspecto diferente, não sendo rara a obtenção de resultados bastante diferentes. É próprio do mito gerar teorizações divergentes. As divergências, entretanto, não invalidam os diversos pontos de convergência que as teorizações também apresentam, conforme veremos em seguida. Cabe ao professor, embrenhado nesse labirinto de teorizações, buscar aquilo que pode servir para o seu trabalho em sala de aula. Podemos ir além: cabe ao professor se apropriar dessas teorias e, com elas, montar a sua própria concepção teórica a respeito dos mitos. Joseph Campbell (2007) parte da relação entre o mundo dos deuses e o mundo dos homens. O mito é aquilo que permite que esses dois mundos se comuniquem. Há uma semente divina no homem, que o mito faz germinar e florescer. O cosmos tem determinadas energias que, não estando concretizadas, procuram uma forma de ganharem concretude. “Não seria demais dizer que o mito é a abertura secreta através do qual as energias inesgotáveis do cosmos despejam-se em manifestações culturais humanas” (CAMPBELL, 2007, p. 15). O mito, ao ampliar exponencialmente a atividade fabuladora do homem, dota-o da capacidade de engendrar a sua própria realidade, criando os seus próprios artefatos culturais. O valor dessa teoria consiste no fato de ela fornecer subsídios para que o professor, por meio do mito, seja capaz de contribuir para ampliar a visão dos alunos sobre aquilo que geralmente se entende por realidade. O trabalho com mitos favorece a visão de que a chamada realidade é bastante ampla, ultrapassando bastante o tempo e o espaço imediatamente perceptíveis. Mircea Eliade (1992) também vê uma dimensão religiosa no mito, fazendo da narrativa mítica uma for ma de comunicação entre os deuses e os homens. Eliade define o mito como uma narrativa das origens, ou seja, uma narrativa cuja eficácia simbólica se intensifica na medida em que vai em direção à raiz de determinado fenômeno: 72 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 72 18/06/2019, 17:47 O mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo, ab initio. (...) O mito é, pois, a história do que se passou in illo tempore, a narração daquilo que os deuses ou os seres divinos fizeram no começo do Tempo. (ELIADE, 1992, p. 49) Segundo a autora, para retirar as diversas camadas que impedem que compreendamos a razão de as coisas que nos rodeiam serem como são, é preciso atravessá-las e ir em direção ao momento em que esse real foi concebido. Ou seja, de acordo com Eliade (1992), a força do mito encontra-se na radicalidade da sua episteme: para compreendermos uma determinada coisa, precisamos saber como ela começou, pois o seu começo explica a sua trajetória. Descontando o fato de que é complicado determinar o que seria a origem de algo, essa teoria é útil para ampliarmos o espectro temporal envolvido na compreensão de determinado fenômeno, principalmente quando ele é encenado numa obra literária. Por que determinado personagem (e nós também, leitores) tem uma tendência a ser tão autocentrado? É claro que a referência à história de Narciso não vai fazer ninguém encontrar a resposta para isso, mas a performance da história, trazendo com ela a força do mito, pode abrir vários canais de compreensão. É sempre de bom alvitre, no trabalho com os mitos, confiar desconfiando. É nesse sentido que a teorização de Roland Barthes (2009) pode servir de contraponto para outras formulações, que por vezes resvalam demasiadamente para o metafísico. Diferentemente de outros teóricos, Barthes destaca a dimensão linguística presente nos mitos. O mito seria a formulação de uma espécie de enunciado que tende a escamotear a sua própria ideologia: O que é um mito, hoje? Darei desde já uma primeira resposta, muito simples, que concorda plenamente 73 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 73 18/06/2019, 17:47 com a etimologia: o mito é uma fala. (...) O leitor vive o mito como uma história simultaneamente verdadeira e irreal. (BARTHES, 2009, p.199) Avançando na teorização, Barthes (2009) argumenta que o mito é uma fala despolitizada, que transforma cultura em natureza. Ou seja, o mito naturaliza aquilo que não é natural, levando as pessoas a acharem que as coisas são do jeito que são porque sempre foram assim, ou seja, são assim porque nasceram assim; são assim porque esta é a sua natureza desde o início. Na visão do teórico, portanto, o mito é uma fala que integra um discurso escamoteador, que exige do receptor uma postura de desconfiança, no sentido de desmascará-lo. O conjunto de reflexões proposto por Barthes (2009) é particularmente profícuo no sentido de o professor chamar a atenção dos alunos para a necessidade de questionar aquilo que parece natural, mostrando que o naturalizado muitas vezes esconde posicionamentos ideológicos que precisam ser problematizados. A passagem do tempo cria um novo contexto histórico, cria novas configurações. Tomemos como exemplo um professor que resolveu trabalhar o mito de Penélope “ a mulher que espera o marido voltar da guerra e, para descartar os pretendentes que querem desposá-la, cria um estratagema para nunca terminar o trabalho de tricô a que se dedicava. Dependendo do modo como conduz a discussão sobre o mito, o professor pode acabar naturalizando a figura de Penélope como a epítome da fidelidade, quando na verdade o mito encena e problematiza o próprio conceito de fidelidade. Quando Barthes (2009) argumenta que o mito é um enunciado escamoteador, ele nos alerta para a necessidade de desnaturalizarmos aquilo que parece natural e de repolitizarmos aquilo que aparenta ter sido despolitizado. No caso de Penélope, pelo menos nas versões mais conhecidas do mito, tenta-se vender a ideia de que a essência da personagem está na 74 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 74 18/06/2019, 17:47 fidelidade. Cabe aos receptores da narrativa mitológica desconstruir os conceitos. Dependendo do grau de maturidade dos alunos, o professor pode perguntar se, nos dias de hoje, Penélope agiria da mesma forma. Pode também lançar o seguinte questionamento: se o mito de Penélope tivesse sido, ao longo dos séculos, recontado literariamente por mulheres, a versão seria outra? Que tipo de ideologia estaria por trás da manutenção da imagem de Penélope como símbolo máximo da fidelidade conjugal? Ou seja, a suposta fidelidade de Penélope é uma construção que precisa ser desnaturalizada, mostrando que não faz sentido atribuir a um ser uma determinada essência: aquilo que se apresenta como essência está, na verdade, mergulhado num poço de ambiguidade. Assim como Barthes, Gilbert Durand (1997) também investiga a relação entre o mito e a natureza discursiva da linguagem. Seu alvo, entretanto, é compreender de que modo a discursividade da linguagem transforma a narrativa mítica em formulações de saberes sobre o mundo. Nesse sentido, o mito é visto como uma espécie de saber paralelo, que, não se opondo ao saber filosófico, dele se diferencia na medida em que enfatiza o caráter imagético do conhecimento racional. Para Durand (1997), o mito se apresenta como um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e esquemas, sistema dinâmico, que, sob o impulso de um esquema, tende a compor-se em narrativa. O mito é já um esboço de racionalização, dado que utiliza o fio do discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em ideias. (DURAND, 1997, p. 63-64) Essa teoria, que destaca a importância do mito na formação do nosso imaginário, é útil para entendermos que o desejo de compreender o funcionamento das coisas, de apreender o real por meio da razão, está presente tanto no mito quanto na ciência, 75 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 75 18/06/2019, 17:47 de modo que não faz sentido desqualificar o mito como território do falso. Mito não é sinônimo de mentira, apesar de a palavra, no mundo contemporâneo, ser muitas vezes utilizada com essa conotação. É verdade que os mitos falam de situações que qualquer pessoa tomada pela racionalidade descartaria como sendo inconsistentes ou fantasiosas. A questão é que os mitos trabalham com uma dimensão simbólica que toca em aspectos fundamentais do nosso psiquismo que consegue traduzi-los, colocar em suspensão o que há de absurdo e armazenar aquilo que há de significativo. O mito não pretende ser verdadeiro, ou dito de outro modo, o alvo do mito não é a verdade no sentido cartesiano. A meta do mito é tornar-se significativo ou possibilitar a construção de significados. O mito não quer a razão, mas a sobrevivência. E sobrevive não por ser o portador da Verdade, mas sim por ser portador de sentidos. Tendo em mente que os mitos são sempre plurais, importa trazer para a discussão teórica a respeito dos mitos contribuições que foquem mitologias não hegemônicas. É recomendável visitar as teorias de estudiosos como Campbell (2007), Eliade (1992), Barthes (2009), Duran (1997); no entanto, o problema é que todos eles acabam privilegiando em suas teorias mitologias de culturas europeias – como a grega, a romana e a nórdica – tidas como hegemônicas. Infelizmente, são ainda raros os estudiosos que teorizam o mito a partir, por exemplo, da rica mitologia africana. Um desses estudiosos é Clyde W. Ford (1999), que, debruçando-se sobre o cabedal de conhecimentos acumulados oralmente nas sociedades africanas, também adverte para a inconsistência de se considerar o mito como sinônimo de concepção ingênua ou equivocada da realidade: Porém, numa outra leitura, os mitos são absolutamente verdadeiros- não como fatos, mas como metáforas; não como física, mas metafísica. Porque a reflexão mitológica começa onde para a 76 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 76 18/06/2019, 17:47 investigação científica. A mitologia volta-se para as questões eternas da humanidade: qual a relação entre a vida humana e o grande mistério do ser por trás de toda vida? Como devemos entender a relação entre o planeta que habitamos e o Cosmo em que nos encontramos? (FORD, 1999, p. 32) Pela via da linguagem metafórica, o mito, segundo o autor, responde a questionamentos que se voltam para o próprio mistério do homem enquanto problema metafísico. Ainda que essa formulação seja semelhante às vistas anteriormente, ela tem o mérito de ter sido engendrada a partir de conteúdos mitológicos que enfatizam a complexidade e a abrangência do pensamento dos povos africanos. Fazendo uma releitura do mito do herói de Campbell, na perspectiva da subjetividade negra, a teorização de Ford destaca a importância do mito enquanto gerador de resistência, empoderamento e luta contra o preconceito. Em solo nacional, Reginaldo Prandi (2001) também se volta para a riqueza do patrimônio imaterial representado pelas histórias africanas, focando as narrativas dos povos yorubás. Prandi faz uma compilação de relatos míticos envolvendo os orixás, que fazem parte do panteão de deuses na cultura yorubá e que, no Brasil, deixaram marcas profundas em nossa cultura. Os orixás são entidades associadas a forças ancestrais da natureza que regem os destinos de todos e de cada um. Os fatos do cotidiano, que ocorrem na vida de cada pessoa, são entendidos como reencenações dos mitos, ou seja, vivências experimentadas pelo orixá particular de cada indivíduo. Prandi, portanto, elabora uma formulação de mito que enfatiza a relação entre o passado e o presente, este funcionando como uma revificação constante daquele. O modo de os yorubás compreenderem o mito é o guia que orienta e administra o destino, entendido como encenação ritualística do passado, que se atualiza concretamente no presente: 77 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 77 18/06/2019, 17:47 Durante a iniciação a que é submetido para o exercício da atividade oracular, o babalaô aprende essas histórias primordiais que relatam fatos do passado que se repetem a cada dia na vida dos homens e mulheres. Para os iorubás antigos, nada é novidade, tudo o que acontece já teria acontecido antes. (PRANDI, 2001, p.18) Do ponto de vista do letramento literário, recorrer às valiosas contribuições de autores como Ford (1999) e Prandi (2001) é uma estratégia crucial para fundamentarmos ações pedagógicas que sejam pautadas pela pluralidade e pela valorização das raízes culturais brasileiras. SALA DE AULA: A PRÁXIS DO MITO Embora os PCN e as diversas publicações deles decorrentes tenham despertado nos professores a consciência de que eles devem promover o letramento literário, a maneira de se fazer isso é ainda uma questão cheia de controvérsias e que gera respostas diferenciadas por parte da comunidade docente. Nada mais natural, uma vez que a literatura é um campo de forças que põe em contato diferentes concepções, posicionamentos ideológicos e modos de ação. Longe de constituir um entrave, a variedade de vertentes teóricas que abordam o fenômeno mitológico pode enriquecer a visão dos professores a respeito da complexidade de seu trabalho. O objetivo, portanto, de adentrarmos o labirinto de teorizações a respeito do mito não foi outro senão buscarmos os fundamentos de uma práxis – aqui chamada de letramento mitológico – que pode contribuir para a ampliação do repertório literário dos alunos, favorecendo, portanto, o seu processo de letramento. Faz parte do trabalho do professor, enquanto mediador do 78 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 78 18/06/2019, 17:47 processo de letramento literário, selecionar da multiplicidade de vertentes teóricas aqueles aspectos que podem se materializar em ações efetivas em sala de aula. Vistas em seu conjunto, porém, as teorias que fundamentam o letramento mitológico apontam para alguns princípios que podem subsidiar a elaboração de ações pedagógicas. Em primeiro lugar, o letramento mitológico precisa ser pautado pela lógica da pluralidade. É fundamental que o professor, no planejamento e na execução de sua ação, não promova uma hierarquia entre os mitos mais conhecidos e aqueles de matrizes culturais não hegemônicas. É próprio do mito irradiar-se para outras comunidades, num efeito de contágio. As comunidades estão expostas a diferentes mitos e a mitos de origens diversas. Isso faz com que o aparato psíquico de uma comunidade seja permeado por uma infinidade de mitos, e isso é indício da força de seu imaginário. No contexto brasileiro, o professor deve estar atento para as complexas redes que formam o nosso imaginário: as matrizes negras, indígenas, europeias, orientais, etc. Focar apenas uma mitologia, em detrimento das demais, pode provocar nos alunos a percepção de que uma mitologia tem maior prestígio do que as outras, o que pode alimentar posturas preconceituosas. Tendo em vista que as narrativas mitológicas são expressões profundas da cultura de uma comunidade, é crucial que o professor trateas com equanimidade, valorizando todas elas, no sentido de garantir a pluralidade. Adotar uma perspectiva comparativista pode ser bastante útil. Ao trazer para exame e fruição dos alunos narrativas de matrizes diferentes, o professor pode incentivá-los a refletir sobre semelhanças e diferenças entre mitos em diferentes culturas. No trabalho comparativo, é imprescindível que a força simbólica dessas narrativas seja ressaltada e que elas não sejam tratadas como meras manifestações folclóricas descontextualizadas. O mito grego da criação do mundo, por exemplo, geralmente desperta bastante a curiosidade dos alunos. 79 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 79 18/06/2019, 17:47 O professor pode instigar ainda mais sua curiosidade, perguntando se eles têm conhecimento de como a criação do mundo é narrada mitologicamente pelos yorubás e pelos índios da tribo tupi. Dependendo do interesse dos alunos, o professor pode investir nessas narrativas e suplementá-las com outros textos que, apenas aparentemente, estariam distantes do universo mitológico. Textos contemporâneos que tratem, por exemplo, da fundação de uma cidade, da descoberta de um lugar inabitado, do exílio numa ilha etc. Em todas essas situações narrativas, poéticas ou dramáticas, há um parentesco semântico que dá liberdade aos alunos para vislumbrar fios intertextuais que se conectam com as narrativas mitológicas. Para catalisar essas conexões, o professor pode instigar os alunos a refletirem sobre o modo como um mito de origem indígena, africana ou europeia pode lançar luz sobre determinadas questões trazidos por textos temporalmente próximos de nós. Outro princípio a ser obser vado diz respeito à transversalidade do tema “mitologia”. No Ensino Fundamental, geralmente o professor aborda a mitologia no 6º. ano, quando aparece no programa curricular o gênero “histórias mitológicas”. No Ensino Médio, a mitologia reaparece quando o professor vai tratar do gênero épico e do arcadismo. Com exceção desses momentos, a mitologia aparece de forma episódica, dependendo dos autores e obras selecionados pelo livro didático ou pelo professor. O professor não familiarizado com visão da mitologia como um dos fundamentos da literatura tende a achar que seu conhecimento mitológico só é solicitado nesses momentos. Com isso, ele tende a negligenciar as ricas possibilidades de intertextualidade que podem ser feitas em diversos outros pontos do programa curricular. Nossa sugestão é que, na condução do trabalho de letramento literário, a mitologia seja pensada como um tema transversal, que se conecta com diferentes pontos do programa curricular. Esse princípio implica o necessário esforço, por parte do 80 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 80 18/06/2019, 17:47 professor, de não tratar as histórias mitológicas apenas como um gênero pontual. Acreditamos ser uma vantagem, do ponto de vista do letramento, quando a mitologia é abordada de forma mais sistemática, mesmo quando ela não está explicitamente presente nos textos. Mesmo quando o romance, o conto, o poema, a peça de teatro, a serem trabalhados, não façam alusão a nenhuma figura mitológica, ainda assim é possível recorrer à mitologia. Isso ocorre porque os temas, as situações, os personagens, os enredos podem dialogar intertextualmente com narrativas mitológicas, ainda que esse diálogo não tenha sido conscientemente previsto pelo autor. As histórias mitológicas podem vir em auxílio do professor até mesmo quando ele está tratando das características de um determinado gênero literário, como a crônica, por exemplo. Ao trabalhar o gênero “crônica”, geralmente o professor explica a etimologia da palavra, fazendo referência ao deus Cronos e dá por encerrada a sua incursão mitológica. Nossa sugestão é que o professor conte a história de Cronos, seja informalmente, na própria sala de aula, seja promovendo uma sessão de contação de história. O mito relata que Cronos separa o Céu da Terra (Urano e Gaia, seus pais), cria o Tempo, categoria até então desconhecida, e devora os seus próprios filhos. Ao explorar, junto com os alunos, a carga simbólica contida no relato mítico, o professor constrói a noção de que as coisas, sujeitas à ação do tempo, revelam a sua transitoriedade. Essa noção, construída com o auxílio da ludicidade narrativa, facilita a compreensão, por parte dos alunos, da relação profunda que a crônica, enquanto gênero, tem com o tempo presente, com o cotidiano, com o efeito do tempo sobre as pessoas, com as instituições e com os costumes. Um terceiro princípio a ser levado em conta no programa de letramento é o papel desempenhado pelo texto. Nas ações pedagógicas, há que se ter o cuidado de não negligenciar o protagonismo do texto enquanto lugar de uma experiência estética. O trabalho de diálogo do texto com a mitologia, ou de 81 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 81 18/06/2019, 17:47 resgatar os mitologemas que estão em estado de latência no texto, precisa ser feito a partir do efetivo contato dos alunos com a materialidade do texto. O texto, entendido como material básico, deve ser objeto de uma leitura cuidadosa por parte dos alunos, cabendo ao professor criar as condições para que isso aconteça. Conforme diz a professora Ana Crélia Dias (2016), a experiência estética depende do contato direto do aluno com o texto: Para tentar estabelecer uma real aproximação do estudante com a literatura, faz-se necessário conceber aulas em que o encontro com o texto seja o centro da atividade, numa atitude que busca promover a experiência estética. (DIAS, 2016, p.219) A partir daí, no intuito de exponenciar a experiência estética que se dá a partir do encontro entre o e leitor e o texto, é que o professor pode provocar situações que vão favorecer o estabelecimento das relações intertextuais com os conteúdos mitológicos. Vale lembrar que essa estratégia não precisa e nem deve ser utilizada o tempo todo. Ela é um recurso a mais de que os alunos podem dispor para intensificar a sua experiência estética com o texto, ampliando consequentemente o seu repertório literário. Essa observação é pertinente para que o professor, ao tentar trabalhar com os mitos, não incorra no equívoco de forçar os alunos a fazer as ilações que ele – professor – fez ou que outros já fizeram. Os alunos devem ser incentivados a criar suas próprias estratégias de leitura. É nesse sentido que Rildo Cosson (2006) adverte para o fato de que o contato entre texto e leitor seja primeiramente feito a partir de uma lógica de não interferência, no sentido de os alunos serem incentivados a interagir com o texto numa perspectiva autoral, assumindo-se como autores de sua própria leitura. Conforme argumenta Cosson (2006, p. 23), “é fundamental que se coloque como centro das práticas literárias na escola a leitura efetiva dos textos, 82 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 82 18/06/2019, 17:47 e não as informações das disciplinas que ajudam a construir essas leituras”. Mais importante do que o apego a determinados encaminhamentos de leitura propostos pela crítica ou pela teoria, ou pela história da literatura, é o efetivo corpo-a-corpo que os alunos desenvolvem com o texto. Do ponto de vista do letramento mitológico, essa observação é particularmente relevante no sentido de se evitarem práticas que artificializem o ato de leitura. Não se sugere que os alunos, pressionados pelo professor, saiam obsessivamente caçando ilações mitológicas, simplesmente para cumprir uma tarefa. A ideia é que o letramento mitológico sirva como um ponto de referência a ser administrado tanto pelos alunos quanto pelo professor. Se é crucial que o texto seja o protagonista das ações de letramento, não se pode perder de vista que um texto não se reduz à modalidade escrita da língua. Estudos linguísticos já demonstraram que a fala e a escrita fazem parte de um continuum de modo que o letramento literário transita por esse continuum, não se devendo tratar, por esse motivo, fala e escrita como entidades polarizadas (MARCUSCHI, 2001, p. 37). Com relação à amplitude do letramento literário, Cosson (2015) argumenta o seguinte: Também não se limita à escrita, pois esta é apenas um meio, ainda que com peso considerável pela força da tradição, pelo qual a linguagem literária se presentifica, o que leva tanto à verificação do letramento literário em novos meios e mecanismos de expressão e interação social quanto à recuperação da palavra falada como veículo igualmente legítimo da literatura. (COSSON, 2015, p.182) Ouvir e contar textos, portanto, é um evento de letramento tão eficaz quanto a leitura de textos. Aliás, a vivência direta do mito, por meio da narratividade, pode resgatar o valor da experiência. Ao fazer um círculo de leitura e assumir a posição 83 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 83 18/06/2019, 17:47 de narrador de histórias mitológicas o professor reatualiza o mito, narrando-o. Deflagra-se, desse modo, uma experiência que atingirá os participantes de diferentes formas. Todos, entretanto, passarão por uma desestabilização interna, à qual se seguirá uma reorganização: é o letramento acontecendo. Independentemente da faixa etária dos alunos, o estímulo à fabulação e à contemplação do maravilhoso faz parte do conjunto de preocupações do letramento literário. Ao invés de apenas fazer comentários longínquos e esporádicos à mitologia, o professor deve permitir que os alunos vivenciem os conteúdos mitológicos, por meio da contação de histórias. Nas palavras de Bia Bedran (2012), essa seria uma forma de permitir a instalação do maravilhoso: Eu diria que a arte de contar histórias se faz hoje mais do que nunca necessária exatamente porque quando ela se dá, seja num contexto pedagógico, numa roda informal de contos ou mesmo no que chamamos de indústria do espetáculo, o maravilhoso se instala. O maravilhoso contém elementos e valores ancestrais que vêm caminhando ao lado da existência humana em suas mais diversas culturas, e, quando um conto é narrado, as imagens saltam diretamente para a imaginação criadora do ouvinte, seja ele criança ou adulto. (BEDRAN, 2012, p. 152 e 153) Enfim, toda práxis perderia sua força de atuação se não estivesse o tempo todo aberta para sua própria reinvenção. Do ponto de vista do letramento literário, isso é especialmente relevante, na medida em que a leitura põe em contato as dimensões política, estética, ética e cognitiva. Tais dimensões, por estarem sempre em movimento, demandam novos engajamentos. Num singelo verso da música “Yá Yá Massemba”, de Capinam e Mendes (2003), o eu lírico declara: “Vou aprender a ler pra ensinar meus camaradas”. Lido na clave da política de leitura, esse verso sugere que não existe letramento literário 84 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 84 18/06/2019, 17:47 que não implique também um letramento do professor. Tanto os alunos quanto o professor são ambos sujeitos em processo de experimentação e aprendizagem. A disponibilidade do professor para o letramento mitológico pode ser o veículo que lhe conduzirá à clareza ou à inspiração para compreender a relevância de seu papel nesse processo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTHES, Roland. Mitologias. 4.ed. Rio de Janeiro: Difel, 2009. BEDRAN, Bia. A arte de cantar e contar histórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2007. CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 4ª ed. São Paulo/ Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro Sobre Azul, 2004. CAPINAM; MENDES, Roberto. Yaya Massemba. In: BETHÂNIA, Maria. Brasileirinho. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2003. Faixa 2, cd. COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006. COSSON, Rildo. Letramento literário: uma localização necessária. 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Letramento literário: para viver a literatura dentro e fora da escola. In: ZILBERMAN, R.; RÖSING, T. Escola e leitura: velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global, 2009. PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Cia.das Letras, 2001. 86 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 86 18/06/2019, 17:47 ESTRATÉGIAS NO ENSINO DE LEITURA E PRODUÇÃO TEXTUAL: PINÓQUIO NA COLEÇÃO TURMA DA MÔNICA – GRANDES CLÁSSICOS Dennis Castanheira (UFRJ) Luciana Fortuna (UFRJ) INTRODUÇÃO Nos últimos anos, muitos trabalhos sobre ensino têm sido publicados, mas, muitas vezes, essas pesquisas não apresentam sugestões práticas de tratamento de algum tema em sala de aula. Diante disso, temos como objetivo geral, neste artigo, discutir possíveis estratégias para o trabalho com o livro Pinóquio, da coleção Turma da Mônica – Grandes clássicos, no ensino básico. A escolha da temática é motivada pelos trabalhos de Castanheira (2016; 2018), em que o autor defende a necessidade de trabalhar com diferentes versões do original As aventuras de Pinóquio: histórias de uma marionete (COLLODI, [1883] 2002) analítica e pedagogicamente. Para isso, utilizamos como base teórica a interface Texto e ensino. Essa abordagem, de cunho sociocognitivo e interacional, vê a construção dos sentidos como um processo interlocutivo em que estão presentes diferentes tipos de conhecimentos. Consequentemente, no ensino, devem ser considerados aspectos que vão além da superfície textual, em busca de um ensino contextualizado e pautado na integração entre as práticas de leitura, análise linguística e produção textual (SANTOS; CUBA RICHE; TEIXEIRA, 2012; PAULIUKONIS, 2017). 87 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 87 18/06/2019, 17:47 Metodologicamente, partiremos de uma abordagem qualitativa com sugestões de atividades pré-textuais, textuais e pós-textuais de leitura e produção de textos. As sugestões têm como público-alvo o sexto ano do Ensino Fundamental e discutem aspectos relativos ao levantamento de hipóteses, à interpretação de texto, à construção da narrativa e à construção verbal e não-verbal dos personagens. TEXTO E ENSINO Neste trabalho, como dissemos, adotamos como base teórica a interface Texto e ensino (ANTUNES, 2009; MARQUESI; PAULIUKONIS; ELIAS, 2017; PAULIUKONIS; CAVALCANTE, 2018). Essa perspectiva envolve o intercâmbio teórico e metodológico entre a Linguística do Texto e o ensino de línguas sob um viés sociocognitivo e discursivo, centrado nos efeitos de sentido e no processo constante de negociação entre os participantes da interação. Segundo Marcuschi (2008), atualmente, o texto é definido como um evento comunicativo em que convergem ações linguísticas, visuais, culturais, sociais e cognitivas. Nessa visão, para que os sentidos do texto sejam compreendidos, é necessário que sejam articuladas as informações presentes no cotexto – ou seja, na superfície do texto – e no contexto – isto é, na interação. Para isso, devem ser ativados, concomitantemente, diferentes conhecimentos linguísticos, interacionais e enciclopédicos (cf. VAN DIJK, 2006; CAVALCANTE, 2011). Dois aspectos relacionados a esses conceitos e revisitados pela interface Texto e ensino são gênero textual e intertextualidade. De acordo com Bakhtin ([1979]1992), os gêneros são formas relativamente estáveis estabelecidas como práticas sociais e históricas. Tais padrões enunciativos estão diretamente relacionados ao contexto cultural em que estão inseridos. Marcuschi (2008) aponta, por exemplo, que cada 88 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 88 18/06/2019, 17:47 gênero apresenta uma esfera social típica de circulação: notícias costumam ser da esfera jornalística, cartas do domínio interpessoal e os contos de fadas – gênero aqui destacado – do domínio literário. Já a intertextualidade pode ser definida, segundo Koch, Bentes e Cavalcante (2007), como a relação entre um texto e outros já produzidos e compartilhados pela memória social dos interlocutores, de forma explícita (com citação do intertexto) ou implícita (sem citação da fonte). Assim, os textos são construídos a partir de outros já existentes, do imaginário discursivo dos enunciadores por meio de uma relação de copresença (cf. KRISTEVA, [1969]2005; GENETTE, 1982). Como dissemos, o gênero e a intertextualidade estão diretamente relacionados à interface que exploramos nesta pesquisa, pois defendemos que ensino deva focalizar também os efeitos de sentido. Logo, ao trabalharmos o texto em sala de aula, precisamos partir de um gênero textual e considerar os conhecimentos prévios – incluindo o intertextual – que o aluno já traz acerca do tema tratado e sua interação com o texto; sem abandonar, porém, o processo de compreensão em níveis mais iniciais de leitura (cf. MARCUSCHI, 2008). Para utilizar o texto como objeto de ensino, precisamos considerar que ele não deve ser apenas um pretexto para atividades gramaticais descontextualizadas ou guiado por análises superficiais com perguntas que se atenham apenas a questões, como: qual o título, quem é o autor, quantas linhas e parágrafos foram escritos. Na verdade, é preciso considerá-lo como aspecto central no desenvolvimento pedagógico dos alunos, tendo em vista que nos comunicamos a partir de textos e que a análise dos usos linguísticos deve ser central na formação de cidadãos críticos. É necessário destacar que isso não implica, de forma alguma, deixar de explorar os elementos gramaticais, mas envolve trabalhá-los unindo a metalinguagem com seus efeitos de sentido. 89 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 89 18/06/2019, 17:47 Para isso, devemos trabalhar com a integração entre as práticas de linguagem, das quais destacamos duas: leitura e produção textual. A primeira envolve o processo de compreensão de diferentes gêneros, unindo os elementos linguísticos aos conhecimentos já presentes na mente dos leitores. O objetivo é a formação de leitores críticos que sejam capazes de ler o não-dito, estabelecer inferências e observar as questões contextuais. Já a prática de produção textual tem o papel de colocar o aluno como o agente construtor do texto, percebendo suas interferências no processo de criação. Nessa visão, o texto é tido como um processo, sendo passível, inclusive, de ser reescrito. PINÓQUIO O personagem Pinóquio (originalmente Pinocchio) é oriundo da história escrita pelo jornalista Carlo Collodi no século XIX na Itália. Inicialmente lançada em formato de folhetim no jornal infantil italiano Giornale per i Bambini, a narrativa foi publicada com a reunião dos capítulos em 1883 com ilustração de Enrico Mazzanti e tornou-se um dos maiores clássicos da literatura infantil mundial. De forma geral, são narradas as aventuras do teimoso boneco de madeira Pinóquio e suas conflituosas relações com outros personagens, como Gepeto, Fada de Cabelos Turquesa e Grilo Falante (cf. COLLODI, [1883] 2002). Na primeira versão, Pinóquio não era tão bondoso e ingênuo como em versões posteriores. Em algumas passagens, ele chega a deixar Gepeto passando fome e a matar o Grilo Falante. Em 1940, o livro que reunia as travessuras do boneco, Le avventure di Pinocchio. Storia di un burattino, foi adaptado pelos estúdios Walt Disney e atingiu um público ainda maior. Com enorme repercussão, o longa-metragem tornou-se uma das animações mais importantes da história do cinema, recebendo, inclusive, duas estatuetas do Oscar: trilha sonora e canção original (When you wish upon a star). Com isso, houve uma 90 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 90 18/06/2019, 17:47 popularização bastante acentuada das travessuras do boneco, o que resultou em novas adaptações e “ecos” em obras diversas da literatura e do cinema. Segundo Castanheira (2016), nas histórias em quadrinhos da Turma da Mônica, o personagem é utilizado como um recurso de construção intertextual. O autor apresenta dois quadrinhos em que Pinóquio aparece: em um, Magali recorre ao personagem para pegar maçãs em uma árvore; em outro, Cascão pede sua ajuda para chegar ao outro lado de um rio. Em ambos os casos, é necessário que Pinóquio minta para que seu nariz cresça e, portanto, possa ajudar os personagens. Para compreensão das histórias, é necessário que seja ativado o conhecimento intertextual sobre Pinóquio: quem ele é, quais suas características físicas e psicológicas, etc. Evidentemente, a escolha do boneco também está ligada ao seu apelo junto ao público infantil, alvo principal da revista. Os “ecos” de Pinóquio também podem ser percebidos em filmes e seriados. Na franquia Shrek, ele é personagem constante, exercendo papel importante em trechos-chave da narrativa. Pinóquio faz parte de um grupo composto por outras figuras saídas de histórias infantis e ressignificadas nos longas: Lobo Mau, Três porquinhos, Três ratos cegos e Biscoito. Além disso, ele também aparece no filme A.I. – Inteligência Artificial, por exemplo, e na série Once upon a time. Segundo Castanheira (2018), a presença de Pinóquio no filme envolve um recurso metafórico na construção da história do robô Henri – protagonista do filme – em busca de seu um menino real. Na versão discutida neste trabalho, publicada em 2017 pela editora Girassol Brasil, Pinóquio é um menino ingênuo e bondoso, que é levado a cometer alguns erros pela influência de seus amigos. São mantidos alguns personagens do original: Gepeto, Grilo Falante, Fada de Cabelos Turquesa, Gato Cego e Raposa, por exemplo. No entanto, esses personagens são ressignificados a partir de mudanças em suas características, muitas vezes marcadas por sua representação não-verbal a partir 91 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 91 18/06/2019, 17:47 de personagens da Turma da Mônica: Maurício de Sousa tornase Gepeto, Zé Lelé representa o Grilo Falante, Dona Marocas torna-se a Fada de Cabelos Turquesa (renomeada como Fada Azul, como na versão da Disney), etc. A construção não-verbal desses personagens é feita a partir da mistura da caracterização do personagem original com a versão dos estúdios Walt Disney e com os personagens de Maurício de Sousa. As escolhas desses personagens não é aleatória: Maurício de Sousa é o criador e pai da Turma da Mônica da mesma forma que Gepeto é pai de Pinóquio; Chico Bento é contador de causos, levado e não gosta de ir à escola semelhante a Pinóquio; Dona Marocas é a professora de Chico Bento e exerce um papel materno, cuidando e aconselhando da mesma forma que a Fada Azul, que exerce o papel de tutora de Pinóquio, guiando sua trajetória; Zé Lelé é o melhor amigo de Chico Bento de forma semelhante à relação do Grilo Falante com Pinóquio. É válido ressaltar, porém, que o Grilo é conhecido por sua inteligência e por ser conselheiro, mas Zé Lelé não apresenta essas características. Ou seja, podemos perceber que, diante das opções efetuadas, é necessário fazer algumas adaptações/ modificações. É importante ressaltarmos, também, que a maior parte dos personagens da história foi representada pela Turma do Chico Bento, mas que os demais personagens eram de outros núcleos da Turma da Mônica, como Mingau e Capitão Feio. Percebemos, então, que há uma grande preocupação em manter a coerência das escolhas intertextuais efetuadas. Em relação ao enredo, há manutenção do essencial do original, mas são retiradas partes sombrias e incoerentes – alguns personagens morrem e retornam algumas vezes, por exemplo. Outros personagens são renomeados e ressignificados diante do rearranjo de partes da narrativa. O Gato Cego – aqui representado por Mingau, gato da Magali – e a Raposa – representada por Raposão, da Turma do Jotalhão – passam a 92 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 92 18/06/2019, 17:47 integrar o mesmo entrego narrativo do Dono do Teatro – representado pelo Capitão Feio –, mudança importante em relação ao original, mas que não compromete a construção narrativa. Essa versão, então, apresenta grande suavização da história original, evidentemente motivada por seu público-alvo e pela tradição discursiva inaugurada pela adaptação dos estúdios Walt Disney. SUGESTÕES PARA O ENSINO Neste trabalho, defendemos que o ensino da língua portuguesa deva ser feito de forma contextualizada, relacionando a construção de sentidos ao seu contexto de produção. Ressaltamos que não temos como objetivo esgotar as possibilidades de trabalhos teóricos e práticos com a obra; na verdade, queremos apresentar algumas propostas em que o texto seja o objeto de ensino e não seja visto como pretexto. No presente trabalho, adotamos uma metodologia qualitativa baseada na elaboração de atividades acerca do livro Pinóquio. Tais sugestões envolvem as práticas de leitura e de produção textual e são baseadas em três etapas: pré-textual, textual e póstextual (SANTOS; CUBA RICHE; TEIXEIRA, 2012; PAULIUKONIS, 2017), que podem ser assim definidas: atividades pré-textuais – ligadas à motivação para leitura; atividades textuais – ligadas a aspectos do texto lido; atividades pós-textuais – continuação da análise e motivações para leituras posteriores. As ideias aqui apresentadas tem como público-alvo o sexto ano do Ensino Fundamental por ser “uma etapa transitória em que o aluno entra num novo seguimento do escolar e deve começar a discutir textos mais complexos (CASTANHEIRA, 2018. p. 169). Dessa forma, os alunos lerão um livro que ainda apresenta um caráter lúdico, mas aponta para importantes complexidades, sobretudo nas ligações que o professor deverá 93 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 93 18/06/2019, 17:47 fazer com sua versão original. As sugestões presentes nas subseções seguintes estão ligadas à prática de leitura e produção textual, visando a um ensino crítico a partir da interface Texto e ensino – com destaque dos conceitos de gênero textual e intertextualidade. ETAPA PRÉ-TEXTUAL A primeira etapa envolve atividades pré-textuais com foco na prática de leitura. Inicialmente, devem ser discutidas informações que os alunos já tenham acerca do personagem, pois é necessário fazer um diagnóstico dos seus conhecimentos prévios. É evidente, contudo, que esse processo deve ser mediado pelo professor. Para tanto, devem ser feitas algumas perguntas motivadoras para que o debate seja provocado na turma. Alguns possíveis questionamentos estão presentes no quadro abaixo: Quem é Pinóquio? Quais são suas características? De qual história é esse personagem? Ele está presente em alguma outra história? Quadro 1: perguntas motivadoras sobre o personagem Pinóquio É importante frisar que, diante das respostas dos alunos, cabe ao professor anotá-las no quadro, buscando uma sistematização. Muito provavelmente, haverá uma grande heterogeneidade nos apontamentos dos estudantes, o que precisa ser considerado e mapeado pelo professor, pois essa primeira etapa serve como uma fase diagnóstica, em que 94 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 94 18/06/2019, 17:47 conseguiremos perceber qual o nível de conhecimento da turma sobre a história, sobre o personagem e sobre seus usos intertextuais. Após esse momento, precisamos começar a discutir aspectos relativos ao livro que trabalharemos. Para isso, devemos começar a trabalhar com sua capa para que os alunos possam iniciar o processo de levantamento de hipóteses. Ao se depararem com essa imagem, muitos alunos provavelmente comentarão sobre as figuras encontradas, as cores e os personagens a que remetem. No entanto, mesmo que esses comentários não surjam, é importante que sejam feitos alguns questionamentos para o levantamento de hipóteses. São eles: Quais personagens estão na capa do livro? Como esses personagens parecem estar? O livro que leremos parece contar a mesma história que você conhece? Quadro 2: perguntas motivadoras sobre o livro a ser trabalhado As respostas dos alunos provavelmente serão bastante diferentes, pois, a depender do conhecimento de mundo de cada um sobre Turma da Mônica e sobre Pinóquio, o processo de construção de sentidos será bem distinto. A terceira pergunta, por exemplo, exige diversas inferências dos alunos, pois eles precisam lembrar da(s) história(s) que já conhecem, levantar hipóteses sobre como será contada a história no livro e comparar as duas. Para isso, é necessário que haja uma construção conjunta e gradual, possibilitando que a turma consiga chegar em alguns pontos em comum. Outro conjunto de atividades que deve ser feito em perspectiva pré-textual envolve o gênero conto de fadas. Uma estratégia possível é o uso de perguntas motivadoras que levariam os alunos a refletirem sobre o que já fora discutido e, 95 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 95 18/06/2019, 17:47 ao mesmo tempo, estabelecerem algumas novas indagações. São elas: Por que há diferentes versões para história de Pinóquio? Você conhece outra história que tenha mais de uma versão? Quadro 3: perguntas motivadoras para iniciar a discussão sobre o gênero Diante das respostas dos alunos a esses questionamentos, o professor conseguirá um panorama para, então, explicar algumas características do gênero conto de fadas, dentre as quais: origem milenar, transmissão pela tradição oral, autodescoberta do herói, existência de diversas versões, ausência de autoria definida. Além disso, deve mostrar que, ao longo dos anos, suas características foram mudando, com modificações em sua constituição, em sua temática e em seu público-alvo. No entanto, não pode ser perdido o fato de As aventuras de Pinóquio: histórias de uma marionete e Pinóquio serem obras que se afastam parcialmente dessa caracterização. Corso e Corso (2006) apontam que a história original, na verdade, se trata de uma “antifábula”. Para os autores, há uma hibridez da obra com características de contos de fadas e fábulas. É preciso destacar, ainda, que a história original de Pinóquio apresenta autoria e contexto de publicação definidos – como dissemos, foi escrita por Collodi no século XIX na Itália. Em outras histórias – Cinderela, por exemplo – não é possível definir um autor, nem uma versão original, apenas versões e autores mais conhecidos, como os Irmãos Grimm e os estúdios Disney. Para que essa explicação seja feita, o professor pode recorrer a imagens, vídeos ou trechos de diferentes versões 96 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 96 18/06/2019, 17:47 do mesmo conto de fadas. Assim, será possível que os alunos observem possíveis mudanças no enredo, na representação dos personagens e/ou outros aspectos destacados. É importante que o professor destaque que Pinóquio se diferencia de outros contos de fadas e isso faz com que ele não apresente algumas características do gênero. Sem ter como objetivo esgotar as possibilidades de montagem de enunciados, apresentamos uma proposta no quadro abaixo: Quando os contos de fadas começaram a existir, não havia a tradição do registro escrito, o que levava à sua propagação oral e, consequente, ao surgimento de muitas versões. Diante disso, siga os comandos dos itens abaixo: a) Liste, ao menos, dois outros contos de fadas, além de Pinóquio, que apresentem mais de uma versão. b) Discuta a possível motivação para o surgimento de tantas versões da mesma história. Quadro 4: enunciados para sistematizar a discussão sobre o gênero conto de fadas Após essas atividades, os alunos já conhecerão um pouco da história de Pinóquio e terão criado algumas hipóteses acerca do conteúdo do livro e de algumas de suas marcas intertextuais. Além disso, já terão alguns conhecimentos sobre o gênero textual conto de fadas e algumas de suas características. Sendo assim, a etapa pré-textual já terá sido cumprida. Vale ressaltar, porém, que é importante que essas sugestões sejam encaradas como ideias e propostas passíveis de serem adaptadas e modificadas pelo professor a depender das especificidades da sua turma. É importante destacar, ainda, que podem ser criadas outras atividades pré-textuais para auxiliar no processo de introdução do livro aos alunos. 97 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 97 18/06/2019, 17:47 ETAPA TEXTUAL A segunda etapa de elaboração de atividades é composta por sugestões/ exercícios textuais. Nessa fase, é preciso que haja o adentramento do texto com atividades ligadas à leitura efetiva do livro, sendo o texto o principal objeto de ensino. Inicialmente, devem ser elaboradas atividades em busca de um nivelamento de leitura da turma, pois, muitas vezes, vários alunos de uma mesma classe apresentam níveis de compreensão muito diferentes, o que pode gerar grandes problemas na execução de atividades de interpretação de texto. Por isso, é necessário que sejam elaboradas atividades de verificação de leitura, como as que apresentaremos abaixo: No início do livro, Pinóquio é criado por Gepeto. a) O que levou Gepeto a criar o boneco? b) Como Pinóquio ganhou vida? Posteriormente, Pinóquio é levado ao teatro por alguns personagens. a) Quem são eles? b) Qual sua motivação para levá-lo até lá? c) O que o dono do teatro deseja fazer com Pinóquio? Em outra parte do livro, Pinóquio vai para o parque. a) Em que animal Pinóquio e seus amigos foram transformados enquanto dormiam? b) Quanto tempo eles ficam no parque até que isso ocorra? Quando Pinóquio voltou para casa, já no final da narrativa, Gepeto não estava lá, pois tinha saído a sua procura. a) Onde Pinóquio e o Grilo o encontraram? b) Como eles se livraram desse local? Um dos aspectos principais da história é a relação de Pinóquio com outros personagens. a) Qual a função do Grilo na vida de Pinóquio? b) Como é a relação entre Pinóquio e a Fada Azul? Outro aspecto bastante relevante é o crescimento do nariz de Pinóquio. a) Por que isso ocorre? 98 b) Qual a condição para que Pinóquio se torne um menino de verdade? Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 98 18/06/2019, 17:47 b) Quanto tempo eles ficam no parque até que isso ocorra? Quando Pinóquio voltou para casa, já no final da narrativa, Gepeto não estava lá, pois tinha saído a sua procura. a) Onde Pinóquio e o Grilo o encontraram? b) Como eles se livraram desse local? Um dos aspectos principais da história é a relação de Pinóquio com outros personagens. a) Qual a função do Grilo na vida de Pinóquio? b) Como é a relação entre Pinóquio e a Fada Azul? Outro aspecto bastante relevante é o crescimento do nariz de Pinóquio. a) Por que isso ocorre? b) Qual a condição para que Pinóquio se torne um menino de verdade? Quadro 5: atividades textuais de verificação de leitura Como dissemos, essas atividades têm como objetivo trabalhar com os alunos ideias presentes ao longo do livro, mas que exigem níveis de leitura mais iniciais. Muitas delas necessitam que o aluno (re)conheça as etapas da construção narrativa e resuma alguns acontecimentos e informações presentes ao longo do texto. É importante destacar, ainda, que o professor pode suprimir e/ ou adaptar tais propostas a partir das necessidades da turma. Além disso, é necessário que tais sugestões sejam articuladas com propostas que, de fato, exijam níveis mais complexos de interpretação textual, como as que apresentaremos no quadro abaixo: A Turma da Mônica é uma história em quadrinhos, um outro gênero textual. Qual a semelhança entre as histórias que torna possível essa nova versão? Ao longo da história, Pinóquio passa por algumas modificações em seu comportamento e em sua representação não-verbal. Diante disso, responda: a) Como é a personalidade de Pinóquio na primeira parte e no final da narrativa? b) Qual é a principal modificação que ocorre quando ele muda de atitude? c) Quais acontecimentos levam Pinóquio a modificar suas atitudes? d) Por que a representação visual do personagem é modificada ao fim do livro? A escolha dos personagens para composição dessa versão envolve algumas razões. Diante disso, siga os comandos abaixo: a) Liste os principais personagens presentes na obra. b) Elabore um quadro com suas características psicológicas e visuais. c) Após a elaboração, tente relacioná-los com os personagens do universo da Turma da Mônica escolhidos para representá-los nesta versão. d) Diante das relações estabelecidas, quais as semelhanças que justificam essas escolhas? e) Esses personagens mantém as características da(s) versão(ões) que você já conhecia? Quadro 6: atividades textuais de leitura 99 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 99 18/06/2019, 17:47 Para que essas atividades sejam feitas, é necessário que haja a 1 Observe as seguintes ilustrações : mediação do professor, levando em consideração o desenvolvimento coletivo alunos. Alguns Após leiturados atenta das imagens, faça deles o que seconseguirão pede: responder a essas dificuldade. Por isso, é importante que elasna sejam feitas uma a uma com a b) Quais as semelhanças e as diferenças construção das três imagens? colaboração de toda a turma e auxílio do quadro para sistematização c) Eles provém de qual história? dos apontamentos e achadosfeitas dossejam alunos. d) Você acredita que as alterações relevantes para suas histórias? Após essa etapa, os alunos provavelmente já conhecerão a história e) Caso sua resposta anterior tenha sido afirmativa, justifique. do livro trabalhado, englobando níveis mais complexos de leitura. Diante disso, é possível que haja a formulação de atividades póstextuais, como apresentaremos na subseção seguinte. questões rapidamente e outros a) Quem sãomais os personagens representados nasapresentarão imagens acima?mais ETAPA PÓS-TEXTUAL Para que seja concluído o trabalho aqui proposto, é preciso elaborar algumas atividades pós-textuais. Elas têm como objetivo apresentar um fechamento dos exercícios anteriores, refletindo, em alguma medida, as discussões já efetuadas. Ou seja, elas exigem um grau mais elevado de reflexão e precisam ser construídas a partir do que fora efetuado anteriormente. Inicialmente, apresentaremos a proposta abaixo, vinculada à prática de leitura: Observe as seguintes ilustrações1: Após leitura atenta das imagens, faça o que se pede: a) Quem são os personagens representados nas imagens acima? b) Quais as semelhanças e as diferenças na construção das três imagens? c) Eles provém de qual história? d) Você acredita que as alterações feitas sejam relevantes para suas histórias? e) Caso sua resposta anterior tenha sido afirmativa, justifique. Quadro 7: atividades pós-textuais de leitura 1 O professor deverá exibir três imagens: Pinóquio em sua versão original, Pinóquio na versão da Disney e Pinóquio na adaptação de Maurício de Sousa. 100 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 100 18/06/2019, 17:47 Nas atividades apresentadas no quadro acima, podemos perceber que, após a observação das imagens, é necessário que os alunos reconheçam o personagem da adaptação apresentada, bem como sua representação em outras versões. Caso não conheça previamente tais imagens, o aluno deverá mapear algumas características não-verbais comuns aos três Pinóquios para que consiga inferir que são o mesmo personagem. É importante ressaltar que o item “c” provavelmente exigirá maior intervenção do professor, pois alguns alunos não devem inferir que a imagem é do livro de Collodi. Outra sugestão de atividade pós-textual envolve a prática de produção textual. Acreditamos que o aluno só será capaz de produzir um texto caso já seja um leitor proficiente do gênero desse texto, reconhecendo suas características. Ou seja, ele precisa ser leitor para ser produtor de fato consciente. O exemplo que apresentaremos a seguir tem como objetivo discutir uma proposta pós-textual nesse sentido. Agora que já sabemos o porquê do surgimento de várias versões de uma mesma história, reescrevam a história de Pinóquio em grupos formados por até cinco alunos. Busquem utilizar, em sua versão, tudo que discutimos no processo de (pré) leitura do livro. Vocês devem ser criativos, mas devem manter o essencial da história de Pinóquio. Após a elaboração, elegeremos as 5 melhores versões feitas pela turma. Nessa eleição, a autoria dos textos e os votos dos alunos serão mantidos em sigilo. Os textos eleitos como os melhores serão divulgados no mural e no perfil da escola no facebook. Quadro 8: atividade pós-textual de produção Podemos perceber que há uma proposta de produção de uma nova versão da história. Isso se deve a termos apresentado aos alunos diferentes características das versões do mesmo conto de fadas. Nessa nova versão, eles podem misturar enredos, criar personagens, mudar trechos da narrativa, produzir novas construções não-verbais, mas devem manter o essencial da história. 101 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 101 18/06/2019, 17:47 Ressaltamos que as diferentes estratégias a serem usadas pelos alunos estão diretamente ligadas ao processamento dos sentidos por meio dos desenvolvimentos interacionais relacionados a questões sociais e cognitivas, apontando para seu mapeamento intertextual e para sua construção pragmática. Destacamos que um dos aspectos mais relevantes é a circulação dos textos. Um dos grandes problemas da produção textual na escola é que os alunos não veem finalidade que ultrapasse o processo avaliativo. Embora algumas vezes, de fato, não tenhamos alternativa, é possível que pensemos na possível circulação dos textos em alguns casos. Além disso, acreditamos que a própria turma possa escolher anonimamente os melhores textos. Por fim, eles podem ser expostos na escola e postados em plataformas digitais, pois esse processo ajudará na divulgação das produções por meio de compartilhamentos pelos alunos e familiares. Ou seja, a produção textual não deve ser vista como um aspecto separado das aulas de leitura, mas como um processo, uma consequência de um trabalho que já vinha sendo desenvolvido em sala de aula com os alunos. Assim, eles conseguirão compreender que ela está inserida como uma etapa de um desenvolvimento mais amplo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante da interface Texto e ensino, apresentamos, neste artigo, algumas propostas de atividades pré-textuais, textuais e pós textuais, tendo como base a obra “Pinóquio” da “Turma da Mônica – Grandes Clássicos”. Para isso, unimos propostas com níveis diferentes de complexidade de leitura, pois acreditamos que sua integração poderá levar os alunos a atingirem uma compreensão mais detalhada da história. Esses 102 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 102 18/06/2019, 17:47 dois grupos de atividades, então, constituem caminhos necessariamente complementares e articulados. Também buscamos focalizar atividades que ressaltassem a importância de trabalhar “enredos, personagens, ilustrações e outros recursos semióticos que constroem o texto e, consequentemente, seus sentidos” (CASTANHEIRA, 2018, p. 173). Além disso, acreditamos que, diante das necessárias adaptações à realidade de cada contexto pedagógico, elas possam ser utilizadas por professores do ensino básico. Por fim, ressaltamos que elas constituem apenas sugestões e não um manual instrucional, sendo passíveis de modificações e reorganizações pelo docente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS A. BIBLIOGRAFIA FICCIONAL COLLODI, C. As aventuras de Pinóquio: histórias de uma marionete. Traduzido por Marina Colassanti. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002. SOUSA, M. Turma da Mônica – grandes clássicos: Pinóquio [adaptação de Paula Furtado]. Barueri: Girassol Brasil, 2017. B. BIBLIOGRAFIA TEÓRICA ANTUNES, I. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Traduzido por Maria Ermantina Galvão Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992 [1979]. 103 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 103 18/06/2019, 17:47 CASTANHEIRA, D. Intertextualidade e ensino: “Pinóquio”, “Turma da Mônica” e “Shrek”. In: BITTECOURT, R. L.; CAMERINI, N. C.. (org.). Formação de professores em debate. Cabo Frio: Dictio Brasil, 2016, v. 3, p. 73-92. ______________ “As aventuras de Pinóquio”: por um ensino em perspectiva textual. Palimpsesto, v. 26, p. 164-182, 2018. CAVALCANTE, M. Os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2011. CORSO, D.; CORSO, M. Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre: Artmed, 2006. GENETTE, G.. Palimpsestes: la littérature au second degré. Paris: Éd. du Seuil, 1982. KOCH, I. K.; BENTES, A. C.; CAVALCANTE, M. 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Discourse Studies, 8(1), 159-177, 2006. 105 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 105 18/06/2019, 17:47 PARÁGRAFO(S) NO MUNDO REAL: INTER-RELAÇÃO ENTRE O TÓPICO DISCURSIVO E A PARAGRAFAÇÃO3 Milana Novaes (UERJ/SEEDUC/RJ) Marcos Luiz Wiedemer (UERJ) INTRODUÇÃO Canonicamente, o estudo do parágrafo é visto a partir de arquétipos básicos que são normalmente relacionados à composição do texto (narração, descrição e dissertação), bem como a certos princípios estruturais, tais como, introdução, exemplificação, comparação, entre outros, conforme apontam FIGUEIREDO, 1999, SERAFINI 2000, GARCIA, 2010, FERRAREZI e CARVALHO, 2015. Esses autores compartilham de uma visão assentada na composição do texto, e, principalmente, no tópico frasal, em que é visível a explanação de uma ideia-núcleo, que de maneira sumária e sucinta, configura o parágrafo. Conforme aduz Garcia (2010, p. 223), “o tópico frasal garante de antemão a objetividade, a coerência e a unidade do parágrafo, definindolhe o propósito e evitando digressões impertinentes”. Assim, a primazia do tópico frasal está na sua natureza sintática e se restringe à natureza da frase. No entanto, produzir linguagem significa criar discursos e “o discurso, quando produzido, manifesta-se linguisticamente __ __ __ ___ __ __ ___ __ __ __ Este texto retoma algumas reflexões desenvolvidas na dissertação de mestrado de Novaes (2018). 3 106 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 106 18/06/2019, 17:47 por meio de textos. Desta maneira, pode-se afirmar que o texto é um produto da atividade discursiva oral ou escrita que forma um todo significativo e acabado, qualquer que seja sua extensão” (BRASIL, 1997, p. 23). Refletir sobre o texto é ter ciência de que ele não é resultado de um emaranhado de palavras ou simplesmente o somatório de frases. Texto deve ser compreendido como uma forma de manifestação da linguagem, visto que o ser humano se comunica por textos (gêneros), ou seja, discursos. Além disso, deve ser entendido como um todo organizado de sentido estabelecido na interação entre os sujeitos e o próprio texto. Em outras palavras, tanto o enunciador quanto o leitor têm importantes papéis na construção de sentido, na coerência da produção textual. Sobre essa questão, Koch (2015, p. 18) explicita que “o sentido de um texto é, portanto, construído na interação texto-sujeitos [...] e não algo que preexista a essa interação. Também a coerência deixa de ser vista como mera propriedade ou qualidade do texto, passando a dizer respeito ao modo como os elementos presentes na superfície textual”. Ao construir o texto, o produtor se vale de uma gama de elementos, que envolve as experiências, os objetivos, a relação com o mundo, com o contexto no qual o elaborador textual está inserido, entre outros fatores. Com isso, ao usarmos “a língua para produzir nossas enunciações discursivas, não estamos apenas transformando objetos do mundo em objetos de discurso [...] estamos produzindo objetos de discurso” (MARCUSCHI, 2006, p. 10), que são representados em tópicos discursivos. Do entendimento do tópico discursivo como fio condutor da organização textual-interativa (JUBRAN, 2006), que decorre de um processo que envolve cooperatividade dos participantes do ato interacional; estabelecemos a hipótese de que as atividades de escrita, norteadas pelas propriedades definidoras do tópico discursivo, demandam uma atitude responsiva dos sujeitos, no que se refere à construção e ao desenvolvimento 107 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 107 18/06/2019, 17:47 dos objetos do discurso no parágrafo. A organização tópica leva em consideração a identificação e delimitação de segmentos tópicos e como esses segmentos se distribuem na linearidade do texto (organização linear) e como se recobrem hierarquicamente conforme o grau de abrangência dos assuntos (organização hierárquica). Neste sentido, como a topicalidade é uma propriedade da organização do texto, tomamos o tópico discursivo como categoria analítica de processos textuais-interativos (conforme já defendido por PINHEIRO, 2006), apresentamos proposta didático-metodológica para atividades de escrita do parágrafo a partir da articulação da noção teórica do tópico discursivo (doravante TD), em que consideramos a Perspectiva TextualInterativa (JUBRAN, 2006), e os processos de organização, continuidade e progressão do texto escrito, atreladas ao estudo das propriedades tópicas de centração e de organicidade, conforme desenvolvido em Novaes (2018). As reflexões que sustentam esta proposta são oriundas de atividades (oficinas) aplicadas em sala de aula, com alunos do 9º ano, Ensino Fundamental, município de Maricá-RJ. Além da introdução, este texto é apresentado em duas seções. Na primeira delas, caracterizamos o referencial teórico, a Perspectiva Textual Interativa (PTI), conforme Jubran (2006), e destacamos a noção de TD como abalizar as atividades desenvolvidas nas oficinas. Na segunda seção, discorremos sobre as oficinas e os resultados das atividades realizadas no processo de ensino-aprendizagem dos alunos. PERSPECTIVA TEXTUAL INTERATIVA E TÓPICO DISCURSIVO O texto pode ser tido como uma unidade de significação que é tomada pelos seus usuários numa perspectiva interacional. Por conseguinte, essa ideia de interlocução pressupõe o entendimento de que o ato de produzir textos escritos ou falados corrobora uma atividade de integração, e como tal, demanda 108 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 108 18/06/2019, 17:47 uma série de fatores entre os quais se destacam o contexto, os objetivos almejados, o grau de conhecimento das partes envolvidas, assim como os conhecimentos partilhados entre elas. Diante desse panorama, é válido ressaltar que mediante o reconhecimento da complexidade de fatores atrelados à atividade de comunicação, a perspectiva teórica aqui assumida, isto é, que elege o texto como objeto de estudo, terá como princípio pensar o texto como unidade de análise de estatuto textual-discursivo, uma vez que o mesmo se estabelece numa situação de colaboratividade. Desse modo, o TD ganha notoriedade e pode ser caracterizado como “um ‘fio unificado’ que perpassa o texto como um todo, e refere-se também ao modo como um assunto é desenvolvido num contexto interacional de enunciação socialmente definido” (LINS et al., 2017, p. 130). Nesse contexto, Jubran (2006, p. 90) ao tratar do tópico também destaca a interação como um fator relevante, já que ela decorre de um processo que envolve colaborativamente os participantes do ato interacional na construção da conversação. A autora também explicita que a noção de tópico vai além do intercâmbio verbal, uma vez que estabelece o movimento dinâmico da estrutura conversacional. Ela destaca ainda o TD como fio condutor da organização textual interativa, como uma categoria analítica e abstrata, com a qual se opera na descrição da organização tópica de um texto. É possível afirmar, dessa forma, que quando um indivíduo produz um texto, essa escrita não deve ser compreendida como apenas a apropriação de conhecimentos linguísticos e de mundo, nem tampouco ao pensamento e intenções do escritor, mas sim como uma atividade de interação, levando em consideração que envolvidos nesse processo, há objetivos previamente traçados pelo produtor e que este não deve desconsiderar os conhecimentos do leitor. Assim, o sentido construído durante a interação é assentado em fatores contextuais, tais como: 109 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 109 18/06/2019, 17:47 conhecimento de mundo; conhecimento compartilhado; circunstâncias de produção e pressuposições. Essa visão integrativa entre estruturas e processamentos textuais reforça a ideia de que os postulados conceituais aqui enunciados direcionam-se para a construção do objeto de investigação desse artigo, isto é, o texto escrito, especificamente, a estruturação do parágrafo. Os estudos voltados para a paragrafação, assim, são analisados sob a PTI, que segundo Jubran (2006, p. 28), corresponde a uma opção teórica que entende o texto “como unidade globalizadora, sociocomunicativa, que ganha existência dentro de um processo interacional”. Jubran (2006) ao tratar da PTI concentra sua atenção no turno da fala, na conversação. Contudo, o interesse precípuo desse estudo, conforme já fora anteriormente explicitado, é lançar mão das propriedades tópicas estudadas por ela, mas sob o viés da escrita, isto é, aplicando tais propriedades no estudo da paragrafação. Valendo-se assim, dos conceitos apresentados por essa autora e a fim de refletir sobre a PTI, algumas das propriedades por ela analisadas, a saber: a centração e a organicidade serão tratadas. Ao analisar a centração, propriedade particularizadora e qualitativa do tópico, Jubran (2006, p. 92) afirma que esse atributo textual de identificação dos segmentos tópicos abrange diferentes traços: a) concernência: relação de interdependência semântica entre os enunciados de um segmento textual – implicativa, associativa, exemplificativa, ou de outra ordem -, pela qual se dá a integração desses enunciados em um conjunto específico de referentes (objetos-de-discurso); b) relevância: proeminência desse conjunto (dos objetos do discurso), decorrente da posição focal assumida pelos elementos; 110 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 110 18/06/2019, 17:47 c) pontualização: localização desse conjunto, tido como focal, em determinado momento do texto falado. Parafraseando Jubran (2006), a centração pode ser entendida, então, como um conjunto de referentes explícitos ou inferíveis concernentes entre si e em relevância num determinado ponto da mensagem. Referentes estes que cooperam para o sentido global do texto, já que podem retomar inúmeras vezes um tema central. A partir de um tópico central ou supertópico podem ser constituídos subtópicos que possibilitam estabelecer a delimitação de um determinado assunto. Delimitação esta que é configurada mediante os desdobramentos que o tópico central imprime desde uma informação geral para informações subsidiárias ou mais específicas. O esquema a seguir ajuda a visualizar o que foi mencionado: Esquema 1 – Plano hierárquico de organização tópica (Fonte: NOVAES, 2018, p. 38) No primeiro nível é possível identificar o tópico central. No segundo nível são apresentados segmentos tópicos (“conceito de violência” e “violência no Brasil) como subunidades constituintes que configuram os subtópicos do tópico central. 111 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 111 18/06/2019, 17:47 No terceiro nível, a violência deixa de ser tratada de forma genérica, isto é, apresenta tipos específicos de violência (urbana e contra a mulher); e no último nível, constatam-se algumas das plausíveis causas das categorias de violência que foram apresentadas. O esquema (1) caracteriza-se por explicitar relações de dependência entre tópico e subtópico estabelecendo o plano hierárquico da organização tópica de um texto. Eis, então, outra propriedade definidora do TD: a organicidade. Segundo Jubran (2006, p. 94) a organicidade pode se dar simultaneamente em dois planos: a) no plano hierárquico, conforme as dependências de superordenação e subordenação entre tópicos que se implicam pelo grau de abrangência do assunto. b) no plano linear, de acordo com as articulações intertópicas em termos de adjacência ou interposições de tópicos diferentes na linha do discurso. Assim, mediante o âmbito maior ou menor de desenvolvimento de um assunto no TD, configuram-se níveis hierárquicos ou “organização tópica em camadas”, conforme denominam Lins et al., (2017, p. 134). Dessa forma, um tópico central pode ser tratado de forma abrangente, e em seguida, apresentar tópicos específicos, particularizados, a fim de apresentar um assunto. Além do plano hierárquico da organização tópica, Jubran (2006) assinala que de acordo com a linearidade discursiva (plano linear), destacam-se dois fenômenos: a continuidade e a descontinuidade. A continuidade caracteriza-se pela mudança para um novo tópico, quando o seu antecedente é concluído. A descontinuidade, por sua vez, caracteriza-se por uma ruptura da sequencialidade linear causada, segundo Jubran (2006, p. 100), pela suspensão definitiva de um tópico, pela cisão de um 112 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 112 18/06/2019, 17:47 tópico em partes ou pela expansão posterior de um tópico apenas enunciado anteriormente. Sobre esses dois processos, Lins et al., (2017, p. 137) reforçam que: A continuidade é caracterizada pela relação de adjacência entre dois tópicos manifestos na superfície, com abertura de um tópico subsequente, somente quando o anterior é “esgotado”. A descontinuidade se caracteriza por uma ruptura na sequencialidade linear, causada por uma suspensão temporária do tópico em curso. Tomando por base a propriedade de centração e de organicidade, então, esse estudo analisa em que medida os níveis, as camadas de organização tópica, podem contribuir como estratégias de construção textual-interativa. O principal interesse desse artigo, assim, ao abordar a perspectiva textualinterativa, está voltado para reflexão das estratégias de construção e formulação do texto, mais especificamente, a construção do parágrafo. PROPOSTA DE INTERVENÇÃO: OFICINAS A produção de textos no ambiente escolar é uma atividade realizada com o objetivo de desenvolver a capacidade textual do sujeito (PASSARELLI, 2012). No entanto, quando o sujeito, no caso, o aluno não reconhece a pertinência da escrita para as suas necessidades reais pelos mais variados motivos, torna-se comum associar essa prática a trabalho árduo, enfadonho, difícil. A fim de colaborar com o oferecimento de outra perspectiva para esse panorama, isto é, de criar situações interlocutivas propícias ao estímulo da escrita, apresentamos proposta teóricometodológica (denominada, aqui, de intervenção), em que se configuram como atividades sociointeracionais. 113 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 113 18/06/2019, 17:47 Nosso interesse precípuo pelo estudo da paragrafação originou-se a partir de uma breve análise das redações, isto é, dos textos escritos de alunos do 9º ano do Ensino Fundamental, do Colégio Estadual Caio Francisco de Figueiredo, localizado no bairro de Inoã, no município de Maricá-RJ. Para implementar a pesquisa foram realizadas sequências didáticas4 (SD), a fim de refletir sobre a escrita, especificamente, sobre a contribuição do TD na construção do parágrafo, valendose das propriedades tópicas de centração e de organicidade e utilizando variados gêneros textuais como ferramenta para o ato de escrever, que são apresentadas, na sequência. OFICINAS O trabalho com os módulos ou oficinas tem como objetivo preambular apresentar recursos que contribuam para o processo de ensino-aprendizagem dos alunos. Nessa perspectiva, as atividades realizadas nas oficinas estão fundamentadas nas propriedades definidoras do TD: a organicidade e a centração. Desse modo, a SD foi realizada tendo como pano de fundo diferentes gêneros e não um único, uma vez que a proposta da pesquisa não se ateve a ensinar um gênero textual. Este, na verdade, exerceu o papel de instrumento, de suporte para explorar a organização tópica do texto. A seguir, serão delinedas três oficinas realizadas em sala de aula, individual e coletivamente, em prol da construção do parágrafo. PRIMEIRA OFICINA: CONSTRUÇÃO DO PARÁGRAFO ARGUMENTATIVO Esta oficina de incentivo à escrita e, consequentemente, à construção do parágrafo foi realizada por meio do gênero textual _____________ 4 Ao leitor interessado, a sequência didática está detalhada em Novaes (2018). 114 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 114 18/06/2019, 17:47 letra de música, a saber: “Lavagem Cerebral”/ “Racismo é burrice”5, de Gabriel, O Pensador. O objetivo das tarefas propostas a partir dessa canção de Gabriel, O Pensador é estimular a progressão temática mediante uma das propriedades definidoras do TD, isto é, a centração, a partir do traço da concernência Para tanto, primeiramente, foi entregue a cada aluno a letra de música “Lavagem Cerebral” e após a audição realizada em sala de aula, foi proposto um exercício de interpretação, visando levar os alunos à reflexão sobre o TD. Em um segundo momento, foi solicitado aos alunos que realizassem coletivamente, um esquema para que discutíssemos o quanto a temática do preconceito é abrangente. Assim, os alunos voluntariamente foram contribuindo para elaboração do “esquema coletivo”, cujo produto pode ser visto a seguir: Esquema 2 – Progressão temática (Fonte: NOVAES, 2018, p. 59) O próximo passo foi exercitar a organização do texto, a paragrafação a partir do esquema produzido pela turma. Nesse momento, solicitamos aos alunos que elaborassem dois parágrafos, em outras palavras, que expandissem as ideias __________________ 5 Disponível em: https://www.letras.mus.br/gabriel-p ensador/72839/. Acesso em 11/11/2018. 115 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 115 18/06/2019, 17:47 esquematizadas; mantendo, pois, entre os parágrafos produzidos, uma relação de sentido, a manutenção do tópico central. Desse modo, mediante a esse conjunto referencial relativo a tipos de preconceito, foi explorado o traço da concernência, já que os alunos deveriam atentar para o fato dos enunciados se inter-relacionarem por meio da coesão lexical estabelecida pela presença de lexemas do mesmo campo conceitual. Independentemente da forma escolhida para estruturar tais parágrafos, observamos em algumas produções uma unidade de sentido estabelecida pela retomada ou pela articulação entre os elementos do texto, o que corroborou a progressão textual e resultou na concretude do objetivo traçado. Contudo, foi possível também perceber que apesar de haver manutenção do assunto, as ideias apresentadas por determinados discentes, por vezes, eram truncadas, isto é, desestruturadas o que acabou prejudicando a fluidez do texto. Isso porque, de acordo com Lins et al., (2017, p. 141), “a articulação é condição precípua para que a continuidade e a progressão aconteçam no texto, já que só se pode falar de continuidade de um tópico central porque as ideias se articulam”. Para melhor ilustrar essa ideia de progressão temática, segue a produção de parágrafos redigidos por um dos estudantes, exemplificado no quadro (1). É valido atestar que foi mantida a fidelidade nas transcrições não só deste, mas de todos os textos dos discentes aqui apresentados. ALUNO (A) D.V. PARÁGRAFOS “O preconceito é uma atividade muito vista no Brasil e no mundo, pois as pessoas que praticam o preconceito, se acha melhor que os outros, e ficam zoando, a pessoa pela cor, se a pessoa é gordinha eles zoam de baleia, etc”. “O racismo é um tipo de preconceito, mas o racismo é mais pela cor da pessoa, quando a pessoa é negra, as pessoas que praticam o racismo chama ela de macaco, carvão, etc. Isso é crime e quem sofre racismo, tem que procurar a polícia”. Quadro 1 - Construção do parágafo (Fonte: NOVAES, 2018, p. 60) 116 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 116 18/06/2019, 17:47 Decerto, alguns alunos ainda apresentaram dificuldade para estruturar e conseguir criar uma relação de interdependência entre os parágrafos. Mas como já era prevista tal constatação, além do processo de reescrita textual, outras oficinas foram realizadas visando contribuir para o aperfeiçoamento das futuras produções. Desse modo, a construção desses dois parágrafos que ganharam contorno a partir da letra de música “Racismo é burrice”, de Gabriel, O Pensador; teve um desdobramento, pois a fim de estimular, aprimorar a escrita dos alunos, desenvolvemos uma segunda oficina visando dar continuidade ao trabalho que já havia sido iniciado e explorar outra propriedade definidora do TD: a organicidade. SEGUNDA OFICINA: CONSTRUÇÃO DE NÍVEIS DE HIERARQUIZAÇÃO TÓPICA O objetivo primeiro desta oficina é levar os alunos a estruturarem previamente seus textos através de tópicos, a fim de auxiliá-los na construção de parágrafos e, consequentemente, na produção textual como um todo, visto que a propriedade tópica de organicidade pode contribuir para o processo de desenvolvimento e progressão textual. A finalidade deste módulo é fazer com que, a partir do esquema confeccionado, os discentes configurem níveis de hierarquização na estrutura tópica, isto é, apresentem no esquema, por eles produzidos, camadas de organização, indo desde um tópico geral, abrangente até se alcançar constituintes mínimos, ou seja, determinem a particularização do assunto em relevância. Nesse contexto, o TD ou tópico central retomado nessa segunda oficina é “preconceito”. Mediante a este assunto, dessa forma, foram solicitadas duas novas tarefas aos alunos. A primeira delas consistiu na elaboração de um esquema ou 117 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 117 18/06/2019, 17:47 esqueleto referente ao (s) tópico (s) ou subtópico (s) que os discentes pretendessem abordar no texto que iriam produzir em seguida. Dessa forma, essa primeira etapa possibilitou aos aprendizes delinear a partir do tópico central “preconceito”, tópico este que perpassa todo o texto; aspectos inerentes a esse supertópico, ou seja, estruturar informações subsidiárias relacionadas a ele que configuram tópicos menores e que caracterizam o plano hierárquico da organização tópica. A segunda atividade, por sua vez, requeria dos estudantes uma produção textual do tipo argumentativo. Para tanto, os alunos deveriam lançar mão do esquema de subtópicos realizado na primeira etapa dessa segunda oficina, para desenvolver o tópico central “preconceito”. Logo, nessa atividade, o que estava em jogo era a capacidade dos aprendizes estruturar os parágrafos da própria produção textual, tendo como ponto de partida o esquema já elaborado e, desse modo, trabalhar com as relações de interdependência entre os níveis hierárquicos de organização tópica. Eis uma amostra de um dos textos produzidos nessa segunda oficina, acompanhado do seu respectivo esquema, que são dispostos no Quadro 2 - A hierarquia na organização tópica. Essa atividade além de exercitar a estruturação e a manutenção do TD e seus desdobramentos (subtópicos), contribuiu não somente para a construção do parágrafo, mas ainda para a progressão do mesmo. Nessa perspectiva, foi possível observar que os alunos que não fizeram o esquema solicitado, na primeira etapa dessa oficina, apresentaram maior dificuldade de expressar as próprias ideias, de discorrer de forma coerente e coesa sobre a temática do preconceito. Tal fato resultou, por vezes, na elaboração de parágrafos com pouca textualidade devido ao aluno apresentar ideias repetidas, definições de alguns termos sem apresentar nenhum ponto de vista, nenhuma reflexão sobre o que estava sendo abordado, enfim; por não aprofundar os argumentos. 118 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 118 18/06/2019, 17:47 ESQUEMA TEXTO ARGUMENTATIVO O Preconceito “Em um mundo de “ideias formadas”, o homem já está acostumado em praticar o preconceito. O preconceito é uma ideia ou pensamento pré-concebido, ou seja, é quando nós já temos um pensamento formado sobre um assunto ou alguém, na maioria das vezes antes mesmo de o conhecer. Dentre milhares de tipos de preconceito, um dos mais comuns ou até o mais comum, é o ligado à aparência. Uma pessoa com piercings e tatuagens tem uma dificuldade muito grande em arrumar um emprego, por exemplo. As pessoas costumam julgar quem possui essas coisas, como se as tatuagens ou os piercings interferissem no caráter ou na índole da pessoa. Por que é muito mais comum sentir medo de um negro com roupas velhas a uma pessoa branca bem vestida? Porque o homem já se acostumou e se conformou com essa situação. Pensar que um negro tem mais chances de te assaltar, somente por causa da sua cor é a coisa mais retrógrada que existe. A frase 'Não julgue o livro pela capa' é a mais falada, porém é a menos usada e praticada, até porque é mais fácil dizer que 'Somos todos iguais' sendo que na verdade pensamos em todos diferentes”. (V. B.) Quadro 2 - A hierarquia na organização tópica (Fonte: Fonte: NOVAES, 2018, p. 65) Assim, mediante a elaboração prévia dos quadros tópicos, dos textos argumentativos foi possível constatar que quando o aprendiz compreende o processo de construção da própria produção, a atividade escrita pode deixar de ser sinônimo de “trabalho exaustivo” ou de “obrigação” que tem como finalidade apenas agradar, convencer seu eventual interlocutor. TERCEIRA OFICINA: O TRAÇO DA CONCERNÊNCIA NA PRODUÇÃO DO RESUMO A terceira oficina foi pensada e realizada a partir do tipo textual narrativo, visto que o gênero que embasou as atividades dessa oficina foi o romance. No entanto, o objetivo a ser 119 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 119 18/06/2019, 17:47 alcançado, nesse momento, era estimular a construção do parágrafo por meio de um dos traços da propriedade tópica da centração: a concernência. A primeira etapa desta oficina demandava dos alunos a capacidade deles de selecionar, de um quadro previamente elaborado, palavras ou expressões que retomassem ou que contribuíssem para compreensão da obra por eles lida, a saber: Capitães da Areia, de Jorge Amado, e também por eles assistida, pois o longa metragem foi passado em sala de aula. Já nessa etapa inicial, o traço da concernência, isto é, “a relação de interdependência semântica entre os enunciados de um segmento textual”, (JUBRAN, 2006, p. 92), é posto em evidência. Isso porque na atividade proposta, cabia aos discentes o papel de identificar entre os vários termos dispostos no quadro, os lexemas, as expressões que mantivessem tal relação de interdependência semântica com o romance lido e, assim, possibilitassem a construção do texto que fora cobrado na segunda etapa dessa oficina. Nesse sentido, a integração dos termos selecionados pelos alunos, adequadamente, não apenas ativaria um conjunto referencial que circunscreveria o tópico central do romance – a vida de meninos de rua –, como também poderia auxiliá-los no processo de construção do texto, do resumo solicitado. Desse modo, nesse primeiro momento, os alunos deveriam rememorar a narrativa dos Capitães da Areia, as discussões realizadas em classe sobre o livro e sobre o filme, a fim de selecionar de forma adequada as palavras que se integrassem e formassem coerentemente um conjunto específico de referentes (objetos de discurso) e que estivessem em consonância com a obra analisada. Dessa forma, os discentes deveriam ter atenção em relação às palavras que selecionassem no quadro, já que tal escolha poderia influenciar a produção textual exigida na segunda etapa dessa oficina: recontar a história apresentada em Capitães da 120 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 120 18/06/2019, 17:47 Areia. Logo, nessa etapa, aos aprendizes foi proposto que tomassem a posição de narrador (a) e recapitulassem a narrativa de forma coerente. Ou seja, os alunos deveriam resumir o romance, lançando mão dos termos por eles próprios destacados do quadro; e consequentemente, exercitar a construção do (s) parágrafo (s) a partir do traço de concernência. Muitos aprendizes conseguiram construir o próprio texto com o auxílio e o emprego dos termos selecionados de maneira adequada, isto é que dialogavam com a história de Capitães da Areia. Foi possível perceber, desse modo, que tais termos contribuíram positivamente para o encadeamento dos fatos recontados, para as informações apresentadas, enfim; para progressão temática da produção textual discente. A partir das dicussões realizadas sobre o gênero textual resumo, avisamos os alunos quanto à importância da utilização dos termos por eles selecionados na confecção da produção textual. Explicitamos que tal seleção poderia inclusive ajudálos a recontar a narrativa de Capitães da Areia, pois havia uma conexão entre elas. No “Quadro 3 - O traço de concernência na produção do resumo” foi apresentado respectivamente os termos selecionados por um dos alunos e a produção do resumo. Após a análise das produções, observamos que os alunos conseguiram colocar o tópico central do romance em evidência e reiterá-lo pela seleção dos lexemas, o que corroborou a construção de um conjunto referencial, em que o traço de concernência foi posto em destaque. Dessa maneira, tal traço da propriedade tópica da centração foi determinante na elaboração do resumo, visto que possibilitou a construção de segmentos textuais a partir da manutenção do TD central, isto é, “a vida de meninos de rua”, mediante a convergência de diferentes termos que contribuíram ou moldaram o assunto do romance. 121 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 121 18/06/2019, 17:47 PALAVRAS/ EXPRESSÕES SELECIONADAS Salvador/Bahia – Meninos de rua – Pobreza – Abandono – Infância – Furtos – Liderança – Bando – Trapiche (V. B. R.) RESUMO Todos os dias em Salvador um bando de meninos de rua andam pela cidade, mas esses meninos não são como os outros, eles são meninos que abandonam suas infâncias, ou foram abandonados. E para ter o que comer e o que vestir, vivem dos assaltos, e só assim podem ter alguma coisa além de sua pobreza. Muitos dos meninos fugiram da prisão e encontraram no grupo um lugar para ficar. Alguns perderam o resto de familiares que tinham e encontraram no bando de meninos abandonados, um novo lar. Mas não pense que é uma bagunça, embora sejam só meninos, o grupo possui uma liderança que deve ser respeitada. Pedro Bala é o líder. Um menino esperto, rápido e muito ágil. Com Pedro como líder, o grupo chamado “Capitães da areia” começou a se tornar bastante conhecido. E mesmo assim, o bando continuou com seus furtos diários. Mesmo com tudo isso, alguns dos meninos ainda possuem sonhos, mas sem condições é quase impossível de realiza-los. Esperam então por uma oportunidade, e enquanto isso passam todos os dias procurando seu futuro, e o achando em bolsas e carteiras das pobres pessoas que vão e habitam sua cidade. Quadro 3 - O traço de concernência na produção do resumo (Fonte: NOVAES, 2018, p. 81) CONSIDERAÇÕES FINAIS É evidente que a produção/compreensão textual não podem ser reduzidas à mera decodificação frasal. O aluno precisa interagir com o texto como algo a ser construído. Escrever e compreender implicam (re) construir sentidos, ou seja, participação ativa do aluno por meio de estratégias linguísticas, sociocognitivas e pragmáticas. De tal forma, para que o aluno perceba a importância da construção de sentidos, é necessário que as atividades de produção textual o conduzam para o horizonte máximo, ou seja, atividades que não fiquem reduzidas ao tópico frasal. Assim, durante a nossa análise e reflexão sobre as atividades de escrita do parágrafo, a partir da noção teórica do TD, percebemos que além de evidenciar uma prática teórico122 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 122 18/06/2019, 17:47 metodológica exitosa, percebemos que a representação da realidade por meio da linguagem não é apenas um produto de nossa percepção e de nossas práticas sociais, mas também é um processo de conhecimento regulado pela ação, intenção e interação. Constatamos que o trabalho com o TD, na sala de aula, pode significar uma proposta de superação da discussão sobre a separação do ensino gramática/compreensão textual. As atividades com o TD mostraram que os elementos textuais não são escolhidos aleatoriamente e, além disso, são atividades que exigem análise das funções que os elementos linguísticos assumem no texto. Ou seja, o trabalho com TD, entendido como atividade sociodiscursiva realizada por sujeitos ativos e que busca observar o funcionamento da linguagem em contexto de uso situado, solicita reflexão linguística efetiva, que possibilita ao aluno a compreensão dos eventos linguísticos encontrados no texto. Consequentemente, requer uma mudança na prática tradicional do ensino textual, visto muitas vezes como atividade complementar, um ensino mecânico e teórico, que ainda permeia os contextos escolares. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: 1º e 2º ciclos do ensino fundamental: Língua Portuguesa/ SEF/ Brasília: MEC; SEF, 1997. FERRAREZI, J. C.; CARVALHO, R. S. de. Produzir textos na educação básica: o que saber, como fazer. 1. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2015. FIGUEIREDO, L. C. A redação pelo parágrafo. Brasília. Editora: Universidade de Brasília, 1999. GARCIA, O. M. Comunicação em prosa moderna. 27 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. 123 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 123 18/06/2019, 17:47 KOCH, I. Referenciação e discurso. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2015. JUBRAN, C. C. A. S.; URBANO, H.; RISSO, M. S. Tópico discursivo. In: ILARI, R. (Org). Vol. 1: Gramática do Português Falado. Campinas, SP: Editora da UNICAMP; FAPESP, 2006, p. 89-132. MARCUSCHI, L. A. Referenciação e Progressão Tópica: aspectos cognitivos e textuais. Revista Caderno de Estudos Linguísticos. Campinas-SP: IEL/UNICAMP. O Tópico Discursivo, 48 (1), p. 7-22, 2006. PASSARELLI, L. G. Ensino e correção na produção de textos escolares. São Paulo: Telos, 2012. PINHEIRO, C. L. O tópico discursivo como categoria analítica textual-interativa. Cadernos de Estudos Linguísticos (UNICAMP), v. 48(1), p. 43 - 51, 2006. SERAFINI, M. T. Como escrever textos. Trad. MATOS, M. A. B. Adaptação GARCIA, A. M. M. 10 ed. São Paulo: Globo, 2000. 124 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 124 18/06/2019, 17:47 CIÊNCIA, TEXTO E CRIATIVIDADE: COMO ENSINAR OS PROCESSOS DE FORMAÇÃO DE PALAVRAS? Vítor de Moura Vivas (IFRJ) Wallace Bezerra de Carvalho (UFRJ) Daniel Araujo Conceição (IFRJ) Felipe da Silva Vital (UFRJ) PALAVRAS INICIAIS Neste capítulo, pretendemos apresentar críticas à abordagem de morfologia no Ensino Médio, através da análise de aspectos observados nas seções de ampliação lexical (composição, derivação e processos marginais de formação de palavras). Após realizar essa análise, apresentaremos algumas estratégias que podem auxiliar o professor. Este trabalho é fruto de análises feitas pelo grupo de pesquisa “Morfologia e uso: por novas perspectivas para o ensino de português”, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro. Com alunos da UFRJ e do IFRJ, e em parceria com o professor Carlos Alexandre Gonçalves, tentamos aplicar conhecimentos da pesquisa em morfologia às estratégias de docência no Ensino Médio. Dentre as obras analisadas, podemos citar as gramáticas de Cunha & Cintra (1985), Bechara (2000), Rocha Lima (1972), além de livros didáticos como Pontara, Abaurre, & Abaurre (2013) e Cereja & Magalhães (2013). Encontramos os seguintes problemas nas obras: falta de critérios na abordagem de tópicos de morfologia; tradicionalismo exagerado; falta de relação da morfologia com a semântica e a fonologia; ausência de observação do uso e da criatividade; pouca relação da morfologia com o texto. 125 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 125 18/06/2019, 17:47 O tradicionalismo exagerado deve ser entendido como a repetição dos mesmos exemplos ao se tratar da seção de formação de novas palavras por composição e por derivação. ‘Vinagre‘, ‘fidalgo’, ‘girassol‘, ‘embora‘ e ‘aguardente’ são elementos de um grupo que sempre está presente nas seções destinadas à composição. Outros exemplos, como ‘amorperfeito’ (planta violácea, ornamental) e ‘gentil-homem’ (homem nobre, fidalgo), nos mostram que os referentes certamente já nem fazem parte do contexto de uso dos alunos, resultando em um grau máximo de afastamento e de anacronia. Por mais que seja bom que os alunos tenham acesso a dados antigos e até obtenham uma noção de como determinadas palavras surgiram historicamente, só expor formas cristalizadas faz crer que a morfologia não atua mais na criação de novas palavras. Isso leva a um desinteresse do aluno no Ensino Médio pela disciplina. Na derivação, também se verifica a análise dos mesmos dados, em diferentes obras, na abordagem dos processos de formação de palavras. Além disso, os autores estabelecem listas de afixos latinos e gregos, sem abordar contextos de uso. É também notável o emprego de listas sobre os sufixos aumentativos e diminutivos. COMO SE DEFINE DERIVAÇÃO NAS OBRAS? A literatura adotada no Ensino Médio, em geral, divide a derivação em seis tipos: prefixal, sufixal, parassintética, prefixal e sufixal, regressiva e imprópria. Percebe-se que a derivação é entendida como a soma de afixos a uma base (CUNHA & CINTRA, 1985; CEREJA & MAGALHÃES, 2013; RAMOS, 2013). Ao mesmo tempo em que essa é a definição, pelo menos implícita, de derivação nos livros didáticos e gramáticas, apontase para processos com apagamento de marcas (DERIVAÇÃO REGRESSIVA) ou com a entrada de um afixo descontínuo (DERIVAÇÃO PARASSINTÉTICA) 126 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 126 18/06/2019, 17:47 (1) Derivação regressiva JOGAR ’! JOGO VENDER ’! VENDA Derivação parassintética TRISTE ’! ENTRISTECER (EN ... ECER) ALMA ’! DESALMADO (DES ... ADO) Além de não se pautar no uso de dados novos e utilizar uma definição que não contempla todos os processos de formação de palavras derivacionais, desconsidera-se muitas vezes que os afixos apresentam um significado. Como se verifica na citação abaixo apresentada por Vivas et al (2017, p. 218): “Derivação é o processo pelo qual de uma palavra se formam outras, por meio da agregação de certos elementos que lhe alteram o sentido – referindo sempre, contudo, à significação da palavra primitiva” (ROCHA LIMA, 1972, p. 250). Considera que “os sufixos, vazios de significação, têm por finalidade formar séries de palavras da mesma classe gramatical” (ROCHA LIMA, 1972, p. 259). Verificamos uma ideia de que os sufixos não apresentam significado, mas apresentam apenas uma função gramatical. Pensamos ser fundamental, nas atividades em sala, ilustrar o significado do afixo, mesmo quando este exercer mudança de classe; ensinar a morfologia a partir do sentido faz com que as aulas fiquem muito mais cativantes. O QUE ENSINAR AO ALUNO AO ABORDAR DERIVAÇÃO? Muitas vezes, nas aulas de morfologia, priorizam-se os tópicos identificação de morfemas e identificação dos nomes dos processos de formação de palavras. Nesses dois tópicos, verifica-se, pela descrição em livros didáticos e gramáticas, um olhar apenas formal das marcas. Focaliza-se, nas definições e exercícios, o reconhecimento das marcas e a posição em que elas ocorrem. Para definir derivação, devemos nos pautar em 127 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 127 18/06/2019, 17:47 características que definem o processo (GONÇALVES, 2011). O professor deve optar apenas por alguns critérios para apresentar a derivação. Sugerimos, inclusive, que o mesmo seja feito para a flexão. Assim, os alunos são capazes de distinguir os processos morfológicos e entender que podem estudar a língua cientificamente na escola. Ao mesmo tempo em que seria infrutífero apresentar, no Ensino Médio, 10, 15 processos ao aluno, não faz sentido nomear os processos sem apresentar nenhuma definição efetiva. Nas aulas de morfologia dadas no IFRJ (Campus Rio de Janeiro), selecionamos os seguintes critérios para abordar derivação: criação de palavras, possibilidade de mudança de classe, polissemia do afixo e indicação de expressividade positiva ou negativa. A criação de palavras é um critério fundamental para entender a derivação, já que, em geral, usamos esse processo para, a partir de um referente no mundo, nomear outro referente (pedra ’! pedreiro). Diversos afixos são utilizados com a função gramatical de mudar a classe. Podemos, dentre diversos afixos, ensinar o – ção que cria substantivos a partir de verbos (felicitar ’! felicitação, ilustrar ’! ilustração, falar ’! falação); o –mente, que cria advérbios através de adjetivos (feliz ’! felizmente, esperta ’! espertamente). Com relação à polissemia dos afixos, o professor deve apresentar aos alunos os diversos sentidos que um afixo adquire nos usos. O sufixo –dor, por exemplo, em matador, é agente profissional; em falador, agente habitual; na palavra ‘corredor’, local ou agente e, em escorredor, tem o sentido de instrumento. Quanto ao –eiro, pode indicar lugar natural (cachoeira), lugar construído (banheiro); instrumento (cinzeiro, chuveiro, banheiro); agente habitual (fofoqueiro); agente profissional (garimpeiro, lixeiro). A indicação de expressividade consiste no juízo de valor que o falante imprime com relação ao que fala. Essa impressão pode ser positiva (‘mulherão’, ‘festão’, ‘avozinha’) ou negativa (‘bobão’, ‘muambeiro’; ‘mulherzinha’). 128 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 128 18/06/2019, 17:47 É necessário evidenciar, no Ensino Médio, que todo afixo tem significado e que é possível criar dados por processos derivacionais a todo o momento (watsapeiro, ligador, enerdecer). É possível explorar não só a relação entre a morfologia e a semântica, mas também a relação da morfologia com a fonologia: (2) Prefixo de negação i/N/ Infeliz Improvável (alteração) Imbatível (alteração) Imoral (apagamento) Inato (apagamento) Em ‘improvável’ e ‘imbatível’, realiza-se a consoante nasal de i/N/- como bilabial devido à assimilação à consoante seguinte /p/, no primeiro caso, e /b/, no segundo. Já nos dados ‘imoral’ e ‘inato’, o fato de a base iniciar-se com uma consoante nasal faz com que ocorra apagamento da consoante nasal do prefixo. No dado “enerdecer’, que inventamos para demonstrar a produtividade do processo (en ... ecer), também ocorre apagamento da nasal de e/N/-. Apresentando as relações entre morfologia / semântica, entre morfologia / fonologia e definindo a derivação a partir de critérios, somos capazes de despertar o olhar científico do aluno. É fundamental que o professor desperte essa visão do aluno e apresente a morfologia a partir de critérios. Como demonstram Basso & Oliveira (2012) e Franchi (2006), é fundamental desenvolver, no aluno, esse olhar do pesquisador. Precisamos, antes de falar sobre processos de formação de palavras derivacionais, definir, no Ensino Médio, o que é derivação a partir de critérios que deem conta dos dados. Além disso, é fundamental apresentar aos alunos a possibilidade de 129 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 129 18/06/2019, 17:47 criação de novos dados: a produtividade dos processos de formação, a produção em larga escala de alguns e a polissemia que um determinado processo pode exibir. A DEFINIÇÃO TRADICIONAL PARA A COMPOSIÇÃO Na composição, resumindo as definições presentes em todas as obras consultadas (gramáticas e livros didáticos), teríamos: formação de uma nova palavra pela união de dois ou mais radicais, em que a palavra composta representa sempre uma ideia única e autônoma. Tal definição vem acompanhada da costumeira diferenciação entre compostos por aglutinação e justaposição. Devemos deixar evidente aos alunos que a composição produtiva que gera dados novos a todo o momento é a por justaposição. Por mais que o aluno deva reconhecer a aglutinação, a ênfase nas aulas deve ser na justaposição. O professor deve explicitar a função semântica da composição: há um potencial de nomeação que ela cumpre muito bem. O novo dado criado a partir da composição costuma apresentar uma motivação cognitiva metafórica ou metonímica. A interpretação direta pelos componentes nem sempre é possível, como é o caso de ‘pé-de-moleque’, doce que tem uma aparência que remete à imagem de um pé (metáfora de imagem). Geralmente, não se enxergam os usos nem a criatividade do falante, sendo desconsiderados processos cognitivos, como a metáfora e a metonímia envolvidas na formação de palavras. “Salta aos olhos, quando se examina a semântica das palavras compostas, quão grande é o número de compostos metafóricos e metonímicos, o que não causa espécie se se considerar que é principalmente o fator semântico que é responsável (...) pela constituição da palavra composta” (SANDMANN, 1992, p. 45). Devemos explorar os processos cognitivos metafóricos e metonímicos na composição e na derivação, mas também a relação entre morfologia e texto. Apresentar aos alunos os 130 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 130 18/06/2019, 17:47 diversos significados que os afixos podem assumir em diferentes enunciados já é abordar o nível textual, assim como também é um trabalho textual evidenciar as metáforas e metonímias que ocorrem nos processos de formação de palavras. AS HABILIDADES COGNITIVAS METAFÓRICAS E METONÍMICAS NA DERIVAÇÃO Segundo Vieira (2017), não se pode negar que os elementos de natureza formal – relativos aos diferentes níveis da gramática – são essenciais para a construção do sentido, em nível micro ou macroestrutural. Para a Linguística Cognitiva, metáforas e metonímias estruturam o nosso pensamento e, por isso, a linguagem cotidiana contém um grande número de expressões e palavras que se fundamentam nessas habilidades conceptuais (LAKOFF & JOHNSON, 1980; LAKOFF, 1987; CROFT, 1993; SILVA, 2006, FERRARI, 2011). Precisamos explorar, nos alunos do Ensino Médio, a capacidade de observar diferentes processos e reconhecer os diversos significados que eles apresentam, além de expor as metáforas e metonímias que ocorrem. Abaixo, seguem exemplos da exploração de metáfora e metonímia em processos derivacionais que o professor pode realizar em sala: (a) Fulano adora cachoeiras (metáfora) (b) Lá tem um linda bananeira (metonímia) (c) Ela não aprendeu a plantar bananeira (metáfora) (d) Francisco é um ótimo pedreiro (metonímia) (e) Romário sempre foi matador (metáfora) (f) Adorei o corredor da casa (metonímia) Em (a), utiliza-se a palavra ‘cachoeira’, que tem como base a palavra ‘cacho’ devido à imagem da queda d’água no topo remeter à imagem de um cacho de cabelo (metáfora de imagem). ‘Bananeira’, em (b), é um exemplo de metonímia, porque, dentre 131 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 131 18/06/2019, 17:47 as diversas características da árvore, ressalta-se o subdomínio do que esta produz para indicar o nome. Em (c), a base ‘banana’ ocorre, porque a posição da pessoa remete à imagem de uma banana, já que é impossível ficar totalmente reto ao encostar o pé na parede. Em (d), utiliza-se a base ‘pedra’ para apresentar o frame do trabalhador na obra; como a pedra é um dos elementos utilizados da obra, pode haver essa relação intradominial. Em (e), entendese o ato de fazer gol através da ideia de matar (relação interdominial). Em (f), dentre as várias ações que podem ser feitas dentro desse local, uma delas é correr, ação predileta das crianças; ocorre metonímia. O professor deve ser capaz de levar o aluno a enxergar essas habilidades cognitivas e entender a motivação presente na língua. O enfoque deve ser na percepção do processo cognitivo que embasa a criação de novas palavras; deve-se preocupar mais em fazer o aluno entender o processo que o produto. Apresentar as habilidades cognitivas presentes nos processos de formação de palavras e como os dados ocorrem em diferentes contextos é explorar a relação entre morfologia e texto. De acordo com Basílio (1987), formamos palavras, entre as possibilidades existentes, por três fatores: mudança de classe (‘agilizar’ > ‘agilização’), acréscimo semântico numa significação lexical (‘real’ > ‘realiza’) e efeitos expressivos (‘padre’ > ‘padreco’; ‘vida’ > ‘vidinha’, ‘vidão’). Esses fatores, na nossa visão, têm todos influência direta no texto, e o professor deve explorar isso no Ensino Médio das mais diversas maneiras. Devemos sempre 1) atentar para o(s) significado(s) que cada expediente morfológico apresenta; 2) explorar a maneira como os falantes se colocam na língua através da expressividade positiva ou negativa; e 3) evidenciar que eles podem se identificar como fazendo parte de um grupo, de uma classe (função indexical, segundo Gonçalves, 2011). Podemos, ainda, discutir estratégias de referenciação a partir da morfologia. Realizar essas atividades é observar a produção de sentido de 132 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 132 18/06/2019, 17:47 expedientes morfológicos; isso é muito relevante para aprimorar competências de leitura e produção de texto. OUTRAS RELAÇÕES ENTRE MORFOLOGIA E TEXTO Souza e Gonçalves (2018) apresentam uma interface entre a morfologia e a linguística textual, evidenciando que há uma relação muito próxima entre o plano morfológico e o plano textual. Segundo os autores, quando o falante é criativo através de estratégias morfológicas, está, na verdade, atendendo a necessidades comunicativas e textuais. Fundamentando-se em Koch (2014), Souza e Gonçalves (2018, p.176) sintetizam tais necessidades da seguinte maneira: (i) sumarização e categorização de porções textuais em novos objetos de discurso, que permitem ao leitor/ouvinte alocar um novo referente textual na memória, (ii) organização textual, no sentido de que constituem importantes dispositivos anafóricos e catafóricos, responsáveis pela coesão textual... e (iii) orientação argumentativa, de forma que os rótulos representam meios privilegiados de explicitação de pontos de vista do falante/produtor não somente no que se refere aos conteúdos veiculados no texto, como também quanto aos enunciadores. Pretendemos, nesta seção, apresentar estratégias de ensino que relacionam morfologia e texto com os sufixos -ção e -udo. O professor, na sala de aula, deve ver essas análises como algumas possibilidades dentre muitas. Podemos e devemos pensar na relação entre morfologia e texto com os mais diversos processos de formação de palavras. Apresentamos abaixo um exemplo de análise do sufixo –ção no poema “Quero”, de Carlos Drummond de Andrade (ANDRADE, 1996). 133 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 133 18/06/2019, 17:47 (3) Quero Quero que todos os dias do ano todos os dias da vida de meia em meia hora de 5 em 5 minutos me digas: Eu te amo. Ouvindo-te dizer: Eu te amo, creio, no momento, que sou amado, No momento anterior e no seguinte, como sabê-lo? Quero que me repitas até à exaustão que me amas que me amas que me amas. Do contrário evapora-se a amação pois ao dizer: Eu te amo, desmentes apagas teu amor por mim. Exijo de ti o perene comunicado. Não exijo senão isto, isto sempre, isto cada vez mais. Quero ser amado por e em tua palavra nem sei de outra maneira a não ser esta de reconhecer o dom amoroso. Neste texto, o eu lírico se demonstra obsessivo pela declaração repetitiva de amor da pessoa amada. Segundo o eu lírico, a partir do momento em que se para de dizer que se ama, o amor pode diminuir e, consequentemente, acabar. Depois de repetir em vários versos que precisa se considerar amado e ouvir sobre esse amor, ele usa o termo ‘amação’, não exposto em dicionários, que apresenta esse sentido de iteratividade/excesso. Carlos Drummond de Andrade, desse modo, cria uma palavra 134 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 134 18/06/2019, 17:47 que significa “o ato de amar muito/com intensidade. O uso de –ção com sentido de intensidade/iteratividade ocorre atualmente em outras formas como pegação, falação, beijação etc. No dicionário online do português DICIO6, são dados os seguintes exemplos para beijação: (4) Não é dada uma definição para a palavra no dicionário; no entanto, percebe-se, pelos dados, uma ideia de intensidade do ato de beijar e parece que, nesses exemplos, há a ideia de várias pessoas se beijando. No dicionário informal7, verificam-se as definições de falação, apresentadas abaixo. Nessas definições, verifica-se a ideia de intensidade/iteratividade em 1, 2 e 4. Já em 3, com o –ção, indica-se uma expressividade negativa para o ato: (5) _ __ _ __ _ _ __ _ __ _ 6 7 Disponível em: https://www.dicio.com.br/beijacao/ Disponível em: https://www.dicionarioinformal.com.br/fala%C3%A7%C3%A3o/ 135 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 135 18/06/2019, 17:47 Na música “Falação 8”, de Krawk, apresentada abaixo, verificamos o sentido de intensidade e a ideia de pejoratividade ao mesmo tempo durante toda a música. A ideia de expressividade negativa sobre o quanto falam do eu lírico é antecipada pelo título “falação” que evoca esses sentidos na nossa sociedade. (6) Faladores falarão / Pra tentar chamar atenção / Mas graças a deus / Não vivo de opinião / Eu to na minha / Tranquilão / Seguindo meu coração / Pode falar o que quiser / Não vivo de opinião / Sem teoria / Agora vou ser prático / Sei bem quem ta comigo /E quem só paga de simpático / Já perdi as contas / De quantos apertam minha mão/ Sorrindo / Mas com outra intenção / Ah, da licença / Que a coisa fica tensa / É tanta falsidade / Que se fosse pra falar aqui / Nem compensa / Mas, calma ai rapaz / Sua opinião tanto faz / Mas se fala mal por trás / É porque respeita a presença / É quente / Se num guenta / Num tente / Faço um som diferente / E vocês que acreditam / Motivam seguir em frente / É isso / Acredito no que eu faço / To de cabeça erguida / Conquistando meu espaço / É que / Faladores falarão / Pra tentar chamar atenção / Mas graças a deus / Não vivo de opinião / Eu to na minha / Tranquilão / Seguindo meu coração / Pode falar o que quiser / Não vivo de opinião / Eu vim das batalha / Não posso dar falha / Trouxe muita tralha / Mas não sou canalha / Talento bem raro / Que logo se espalha / Deus anda comigo / Dentro da fornalha / Vish / Ô falador, ô falador / Dobra sua língua / Cuida da sua vida / Toma vergonha e / Para de caô / Uma hora a vida ensina / Então é bom aprender / O que ninguém perguntou / É melhor tu num dizer / E tem aqueles / Que quando te ve bem / Perde a linha / Mano, cuida da sua vida / Que eu cuido da minha / Mas, deixa pra lá / Prefiro num me estressa / Eu to trabalhando, então / Deixa eles falar / Até porque to no caminho / Tenho fé, e esperança / Sei que quem fala cansa / E quem trabalha alcança / É simples / Pego a explicação? / Então, fecha o bico / E para de falação __ __ __ __ __ __ __ __ __ _ 8 Disponível em: https://www.vagalume.com.br/krawk/falacao.html 136 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 136 18/06/2019, 17:47 Durante toda a música, o locutor se demonstra crítico a tudo o que falam dele, tendo um olhar pejorativo para essas pessoas (Mas graças a Deus/Não vivo de opinião/Pode falar o que quiser). Essa visão negativa se dá pelo excesso e exagero das pessoas quando abordam a sua vida (Faladores falarão / Pra tentar chamar atenção / Ô falador, ô falador / Dobra sua língua / Cuida da sua vida / Toma vergonha e / Para de caô). Para finalizar, o eu lírico termina com a palavra ‘falação’, sintetizando a ideia que percorre todo o texto e é retomada no final (E para de falação). A mesma palavra “falação” serviu para antecipar o conteúdo trabalhado durante a música e, depois, foi usada no fim como uma forma de retomar e resumir a opinião do eu lírico. É interessante trabalhar outras questões textuais na música9, como a variedade linguística utilizada, a fim de reforçar o pertencimento do Krawker ao grupo daqueles da periferia de São Paulo que produzem rap. Dessa maneira, o professor pode articular um trabalho com os alunos que contempla análise linguística, variação e interpretação de texto. “O desafio, portanto, é acima de tudo metodológico: o de integrar – sempre que possível – a reflexão linguística aos outros objetivos escolares, quanto ao plano textual e à complexidade da variação linguística” (VIEIRA, 2017, p. 70). Usualmente, como retratado em Mansur (2013), ‘-udo/-uda’ indica tamanho, principalmente de partes do corpo humano (ex.: cabeçudo, narigudo, barriguda etc). Na internet, no entanto, o sufixo parece ter sofrido uma ressignificação, apresentando, em situações conversacionais, uma carga de deboche e intimidade do falante para/com o interlocutor. Na coleta de dados, a maioria dos exemplos foi retirada de postagens na rede social Facebook, assim como de conversas pessoais cedidas por diversos indivíduos. Eles foram analisados sob o conceito de função __ __ __ __ __ __ __ __ __ _ Mantivemos fidelidade à forma como foi composta a música mesmo havendo usos em discordância com a norma padrão e até com a norma culta de uso. 9 137 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 137 18/06/2019, 17:47 expressiva (ou atitudinal) e função indexical, de Gonçalves (2011). A chamada função expressiva manifesta-se quando um afixo carrega, em si, uma noção intrínseca a ele, quando utilizada por um falante X a um interlocutor Y. O exemplo mais comum de efeito expressivo é a utilização de ‘-inho’ para expressar afeição (ex.: “como você dormiu hoje, benzinho?”). Já a função indexical é caracterizada pela utilização de um afixo para afirmar ou negar o pertencimento a um grupo social, como marca de posicionamento (ex.: quando um homem hétero gosta de se marcar como tal pelo discurso, costuma usar muito aumentativo: ‘jogão’, ‘mulherão’, ‘timaço’; já o uso de diminutivo ou superlativo em excesso aparece mais frequente na fala de mulheres ou gays que querem se mostrar pertencentes ao seu grupo através do uso da linguagem). As hipóteses traçadas foram as seguintes: a) existe uma predominância da utilização do sufixo -udo pela comunidade LGBTQ, podendo haver função indexical atrelada a ele; b) os dados com –udo/-uda analisados expressam desdém, mas este só entendido realmente em conversas de hábito informal e com intimidade (“coleguismo”); c) quem utiliza apresenta características compatíveis com a Geração Z, com ideais sociais ultimamente relacionados à luta de minorias, à oposição ao modelo capitalista e patriarcal da sociedade. Colocamos a seguir exemplos de –udo com essa função textual. No primeiro exemplo, podemos ver o vocábulo “militudo”, uma referência ao termo “militante”; quando removido ‘-ante, resta apenas o radical ‘milit-’, ao qual é acoplado o sufixo ‘udo’. A imagem é uma postagem do Facebook, em que a locutora faz uma crítica àqueles indivíduos que pregam a militância, porém, ao mesmo tempo, falham na inclusão de pessoas fora do meio normal desta (cegos; leigos etc.). “Militudo”, nesse caso, ganha conotação debochada, que duvida da qualidade e/ ou sinceridade dos atos de militância apenas por militância. A seguir, colocamos outro exemplo de utilização do sufixo. 138 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 138 18/06/2019, 17:47 (7) (8) No segundo caso, o locutor utiliza outra construção (geográfica) com efeito humorístico. Logo, o interlocutor (quem aparece na foto), responde o comentário utilizando o sufixo aqui mencionado. Usando o contéudo de ‘geografia’ e acoplando o sufixo -uda, ele forma um vocábulo com propriedades metonímicas (ao projetar o conceito de geografia a partir do elemento do mapa), mas sem a real intenção de se declarar interessado pela disciplina, mas sim de expor sua expressividade. Ao dizer ‘geografuda’, é carinhoso e, ao mesmo tempo, sacaneia o interlocutor; isso demonstra afinidade, proximidade. A NECESSIDADE DE APRESENTAR OS PROCESSOS MARGINAIS DE FORMAÇÃO DE PALAVRAS Processos marginais de formação de palavras, nomenclatura utilizada por Gonçalves (2016), são, geralmente, negligenciados 139 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 139 18/06/2019, 17:47 nas gramáticas tradicionais e livros didáticos. Sendo assim, acabam não sendo foco do ensino de morfologia. Acreditamos ser uma boa estratégia apresentar alguns desses processos aos alunos. Dentre os processos marginais, podemos citar os cruzamentos vocabulares (macarronese, portunhol, Brumar, russonhol); truncamentos (delega, maraca); reduplicação (batebate, pega-pega). É fundamental ter contato com esses processos na escola, visto que os alunos usam, a cada dia, mais dados com processos não-concatenativos, criando palavras novas a todo o momento. Carvalho et al. (2017) apresenta uma metodologia de ensino de cruzamentos vocabulares que aplicou em turmas do IFRJ. Não nos cabe trazer uma “receita” de como tratar esses processos, mas ilustrar a necessidade de escolher alguns deles e apresentar motivações formais e semânticas para tais usos. Como afirma Carvalho et al. (2017, p. 34), nos compêndios gramaticais e escolares, esses processos “são ora esquecidos, ora vislumbrados apenas rapidamente, com pouca profundidade, não raro apenas por um ou dois parágrafos, como é o caso da siglagem em Rocha Lima”. Nas nossas aplicações em sala, consideramos bastante frutíferas as atividades com os cruzamentos vocabulares. Esse tipo de processo, além de atrair a atenção e curiosidade do aluno em sala, é muito produtivo; a todo o momento, novos dados são criados para, por exemplo, criar nomes de casais (Brumar; Bruna Marquezine e Neymar) ou uniões com nomes de políticos (Bolsodoria; Ciroddad). A CRIATIVIDADE DO ALUNO O professor precisa considerar que os alunos apresentam conhecimentos prévios de mundo/ linguísticos e são agentes do seu próprio aprendizado. Entendemos que eles possuem criatividade linguística e que podemos contar com isso para nossas aulas. Devem perceber que aprender morfologia é possível e, na maioria das vezes, os conhecimentos já fazem 140 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 140 18/06/2019, 17:47 parte de seu repertório. Atividades que explorem a criatividade do aluno e comparem esses usos com a norma padrão tornam a aula mais compatível com a realidade linguística. Devemos atentar para os usos em morfologia nas diversas variedades (cultas ou não-cultas); essa postura torna o ensino muito mais acessível e interessante aos alunos. Um neossufixo como –iane, de ‘falsiane’, ‘escrotiane’, por mais que seja restrito a determinados grupos jovens e tenha uma utilização entre falantes que pertençam a uma mesma rede de relações, pode ser apresentado pelo professor aos alunos. Tal marca morfológica mostra que a morfologia está “viva” e que o falante é criativo e inovador na utilização de estratégias morfológicas. Não se deve restringir a morfologia à identificação de usos formais de variedades cultas e muito menos àquilo que é descrito como a norma padrão. Podemos atentar para o uso criativo de alguns afixos já existentes, mas também observar a formação de novos afixos e palavras. Atualmente, com as redes sociais, palavras novas surgem a todo o momento e são rapidamente espalhadas. Os alunos do Ensino Médio entendem e usam verbos como shipar, trollar, bugar, flopar, por exemplo; cabe ao professor utilizar a seu favor essa criatividade dos alunos. Na página “Catioro reflexivo”, do Facebook, verifica-se a utilização de um sufixo –íneo em detrimento de –inho. Colocamos abaixo dois exemplos: 1) “delicínea” 141 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 141 18/06/2019, 17:47 2) escadínea Como demonstra Vivas et al. (2017), o aluno deve ter acesso à variação no uso de diminutivos; precisa entender os contextos em que se usa o sufixo –íneo e verificar que tanto –íneo como –inho estão a serviço da indicação de expressividade, mas de maneiras diferentes. Pelo surgimento do –íneo, certamente, esse afixo envolve uma diferença na indicação de efeitos expressivos e é interessante que se faça refletir sobre isso na escola. Antes do surgimento do –íneo, já houve –itcho, em dados como ‘roupitcha’, ‘corpitcho’, o que reforça essa necessidade de o falante criar outras formas de expressividade que o –inho não consegue indicar. Esse é apenas um exemplo de uma atividade que envolve o entendimento de variação, além da percepção de que a morfologia é “viva” e de que o aluno pode ser criativo e deve refletir sobre os usos linguísticos. PALAVRAS FINAIS Apresentamos um caminho possível e objetivo para ensinar a ampliação lexical (por derivação, composição e processos marginais) nas escolas. Na nossa concepção, o professor de língua portuguesa deve buscar apresentar a morfologia através da análise de critérios e da evidência de relação dessa área com a semântica, fonologia, sintaxe, pragmática etc. Deve-se considerar a língua como ciência, sendo o aluno um cientista, e 142 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 142 18/06/2019, 17:47 sempre é bem-vinda a busca por observar e explorar a criatividade do aluno na criação de novos dados ou no uso de novos processos. O professor precisa tentar explorar a morfologia no texto: é fundamental que se paute o ensino de morfologia, tendo em vista as habilidades de leitura e produção. Além disso, não se pode perder de vista que o aluno é um ser pensante que se coloca na sociedade em interações a todo o momento, posicionando-se afetivamente, criticando, identificando-se com grupos. Tentar relacionar essas funções sociais e textuais é um desafio e está longe de ser simples; no entanto, certamente, é uma metodologia frutífera. Mesmo que a chegada não seja exatamente aquela que o professor tenha imaginado, certamente, haverá muito prazer e aprendizado na caminhada. Como já disse Confucio, “aprender sem pensar é tempo perdido”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. 35. ed. Rio de Janeiro: Record,1996. BASÍLIO, Margarida. Teoria lexical. São Paulo: Ática, 1987. BASSO, Renato Miguel; DE OLIVEIRA, Roberta Pires. A linguística e a curiosidade, revisitado. Matraga - Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ, v. 19, n. 30, 2012. BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. Nova Fronteira, 2000. CARVALHO, Wallace Bezerra et al. Ensino de morfologia: propostas para um ensino científico de processos “marginais” de formação de palavras. Cadernos do CNFL, Rio de Janeiro, 2017. p. 1910-1918. CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Theresa Cochar. Português: linguagens. 3ª edição reformulada. Volume único. São Paulo: Atual, 2013. 143 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 143 18/06/2019, 17:47 CROFT, William. The role of domains in the interpretation of metaphors and metonymies. Cognitive Linguistics 4-4, 1993. p. 335-370. CUNHA, Celso et al. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. FERRARI, L. Introdução à linguística Cognitiva. São Paulo: Contexto, 2011. FRANCHI, Carlos. Mas o que é mesmo “gramática? São Paulo: Parábola Editorial, 2006. GONÇALVES, C. A. Iniciação aos estudos morfológicos: flexão e derivação. São Paulo: Contexto, 2011. ______. Atuais tendências em formação de palavras. São Paulo: Contexto, 2016. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. As tramas do texto. São Paulo: Contexto, 2014. LAKOFF, George. Women, Fire, and Dangerous Things: What Categories Reveal about the Mind. Chicago: The University of Chicago Press, 1987. ______; JOHNSON, Mark. Metaphors We Live By. Chicago: The University of Chicago Press, 1980. MANSUR, Marina Lima. 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Três eixos para o ensino de gramática. In: ________. (Org.). Gramática, variação e ensino: diagnose e propostas pedagógicas. Rio de Janeiro, Letras, 2017. p. 64-82. VIVAS, Vítor et al. Morfologia e ensino: novas abordagens voltadas para o ensino médio. GONÇALVES, Carlos Alexandre; HIGINO DA SILVA, Neide. (Org.). Novos horizontes da pesquisa em morfologia. Rio de Janeiro: Pontes, 2017. p. 205230. 145 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 145 18/06/2019, 17:47 “PRA LER PRA ONDE EU VOU E PRA ONDE EU VOLTO”: UM ESTUDO DE CASO SOBRE AS PRÁTICAS SOCIOCULTURAIS DE LETRAMENTOS NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS Vanessa Teixeira Ribeiro (FFP-UERJ) INTRODUÇÃO O aprofundamento no tema sobre as práticas socioculturais de letramentos dos estudantes da Educação de Jovens e Adultos nasce da experiência de dez anos trabalhando com esses sujeitos que chegam à escola “empobrecidos, populares, negros, das periferias e dos campos, pensados e inferiorizados como sem direitos a ter direitos” (ARROYO, 2017, p. 105). Entretanto, os alunos jovens e adultos são sujeitos sociais de direitos e, por isso, têm direito a uma educação que repense essa modalidade, ressignificando as práticas escolares a que esses estudantes são expostos, quando chegam às escolas de EJA. Nesse movimento, compreender os sentidos das práticas socioculturais de letramentos dos estudantes da EJA torna-se um desafio diário para educadores dessa modalidade de Educação, uma vez que entender as efetivas práticas de leitura e escrita desses alunos permite-nos lançar mão de práticas escolarizadas que satisfaçam às necessidades pessoais e sociais deles, respondendo às exigências da vida diária e favorecendo a reflexão crítica e imaginativa da realidade. Para que isso aconteça, “seria necessária uma postura etnográfica não etnocentrista, na compreensão do saber o outro. Isso exige 146 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 146 18/06/2019, 17:47 penetrar na cultura local para entendê-la de dentro.” (FREIRE, 2014, p. 183) Assim, quais estratégias poderiam despertar os sentidos para a permanência culturalmente significativa dos estudantes da Educação de Jovens e Adultos no espaço da escola? Essa parece ser uma pergunta-chave para a reorganização curricular da EJA e para a articulação de processos educativos social e culturalmente produtivos no cotidiano escolar. Dada a experiência de docência nas fases iniciais da EJA, percebemos que esses estudantes manifestam o desejo de pertencer à cultura escrita, a fim de circularem com maior propriedade nos espaços letrados pelos quais transitam - a igreja, o trabalho e a escola. Os estudantes valorizam muito as habilidades necessárias ao domínio autônomo da leitura e da escrita como estratégia para agir com desenvoltura nas situações em que a escrita está presente. São sujeitos que buscam a inserção social sem serem discriminados, já que os que não sabem ler e escrever são tidos como pessoas menos capazes na nossa sociedade. Os estudantes da Educação de Jovens e Adultos veem na escola a chance de integrar-se à sociedade letrada da qual fazem parte por direito, mas à qual o acesso pleno só é possibilitado pelo domínio das práticas legitimadas de letramento. No entanto, numa sociedade cada vez mais marcada pela cultura letrada e por diferentes modos de construção de sentidos, é necessário interagir com as muitas modalidades de textos que circulam pelos espaços sociais e apropriar-se criticamente do conhecimento acumulado, como ferramenta para a compreensão e intervenção na realidade. A escolarização, portanto, significa para muitos desses sujeitos, a oportunidade de ter acesso aos bens culturais e à valorização social resultantes do domínio da leitura e da escrita. Desse modo, a escola tem um papel a cumprir, ao favorecer criticamente o acesso a tais tipos de conhecimentos, assim, o contexto deve ser entendido como singular, apoiado por 147 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 147 18/06/2019, 17:47 concepções políticas, sociais, ideológicas e históricas, considerando que diferentes culturas lidam diferentemente com a cultura escrita. Para a análise proposta, projetamos um estudo de caso (YIN, 2001) de natureza qualitativo-interpretativa dessas práticas, recorrendo ao campo da Linguística Aplicada (MOITA LOPES, 1996), à concepção sociointeracionista da linguagem de Bakhtin (1992), aos Novos Estudos do Letramento (GEE, 2008; STREET, 2014; BARTON e HAMILTON,1998, 2000) e à perspectiva crítica de Freire (1997) e Arroyo (2017), a fim de compreender as concepções dos estudantes sobre os usos sociais da leitura e escrita. O estudo foi realizado em uma Escola Municipal da cidade de Maricá, na região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, em uma turma multisseriada do primeiro segmento do Ensino Fundamental da Educação de Jovens e Adultos, composta por 15 estudantes com idade entre 15 e 74 anos, divididos na II e III fases, todos em processo de alfabetização. Em sala de aula, na primeira fase da pesquisa, realizamos atividades pedagógicas exploratórias envolvendo materiais escritos, a partir dos quais buscamos compreender o modo como o grupo pensa a escrita. Para o aprofundamento da investigação, na segunda fase da pesquisa, selecionamos um grupo focal, composto por três estudantes da turma, com as quais realizamos entrevistas e observamos eventos de letramentos ocorridos fora do espaço escolar. Este artigo focalizará as entrevistas com as estudantes, buscando lançar um olhar culturalmente sensível para as vivências não escolares de letramentos dos estudantes da EJA, entendendo-as como práticas socioculturais situadas. 148 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 148 18/06/2019, 17:47 LETRAMENTOS NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS Arroyo (2014, p. 26) define os estudantes da EJA como “os outros”, aqueles sujeitos coletivos históricos - desempregados, camponeses, mulheres, negros, indígenas, crianças e jovens trabalhadores, sem teto, sem creche, adultos da EJA - que aparecem resistindo inseridos num contexto dos grupos periféricos, “cuja humanidade vem sendo negada e traída, cuja existência vem sendo esmagada” (FREIRE, 1996, p. 30). Para compreender como esses “outros” concebem e usam a escrita, buscamos fundamentação nos pressupostos dos New Literacy Studies (Novos Estudos do Letramento), a fim de entender as experiências de letramentos como múltiplas, dotadas de raízes sociais e ideológicas manifestadas por diferentes grupos. Sendo assim, baseamo-nos em uma visão mais sociocultural dos letramentos, entendidos como práticas sociais, propondo uma reflexão sobre como os estudantes compreendem suas experiências com os usos sociais da leitura e da escrita e sobre suas práticas de letramentos. Dessa forma, duas categorizações elencadas por Barton e Hamilton (1998) são importantes para o entendimento situado dos letramentos sociais: eventos de letramento e práticas de letramento. Segundo os autores, eventos de letramento são situações reais de uso da leitura e da escrita, são episódios que emergem das práticas e que são definidas por elas. Já as práticas de letramento são abstrações materializadas nos eventos de letramento, os quais constroem e são construídos pelas concepções de leitura e escrita de um determinado grupo social. Dessa forma, fatores como o contexto social e os papéis sociais se revelam importantes para refletirmos sobre as práticas socioculturais de letramentos, assim, compreendemos melhor a relação de interdependência entre a linguagem, o homem e o mundo. Street (2014) propõe uma discussão que prioriza o modo como as pessoas usam o texto escrito e o que fazem dele em diferentes contextos históricos e culturais, mostrando-nos que: 149 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 149 18/06/2019, 17:47 [...] os sujeitos estão imersos em um ‘armazém’ de conceitos, convenções e práticas, ou seja, vivemos práticas sociais concretas em que diversas ideologias e relações de poder atuam em determinadas condições, especialmente se levarmos em consideração as culturas locais, questões de identidade e as relações entre os grupos sociais (STREET, 2014, p.9). Na compreensão de Street (2014), as instituições de ensino, de modo geral, vêm desprezando os letramentos locais e não escolares, partindo do pressuposto de que o público-alvo é composto de “analfabetos” que mal sabem rabiscar. Nessa concepção de letramento dominante, não é considerado que a autorreflexão e o pensamento crítico também sejam encontrados em sociedades e contextos supostamente não letrados e afirmase a escrita como marca hierárquica de sociedades e indivíduos. Observa-se, assim, que ainda está sendo praticado na escola um modelo de letramento forasteiro e independente do contexto sociodiscursivo do estudante, o qual Street (2014) chama de letramento autônomo. Segundo o teórico: O modelo autônomo de letramento funciona a partir do pressuposto de que o letramento por si só autonomamente - terá efeitos em outras práticas sociais e cognitivas. Entretanto, esse modelo, levando a crer que tais práticas são neutras e universais, na verdade, mascara e silencia as questões culturais e ideológicas que a elas são subjacentes (STREET, 2014, p.7). Entendemos que é necessário pensar junto com Street num modelo ideológico de letramento escolar, para “desenvolver estratégias de letramentos que lidem com a evidente variedade de necessidades letradas da sociedade contemporânea” (STREET, 2014, p. 59), acrescentando que essas estratégias devem estar relacionadas com os letramentos não escolares. O modelo ideológico de letramento concebe o letramento como 150 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 150 18/06/2019, 17:47 uma prática socialmente situada, enraizada em concepções de identidade e conhecimento. Assim, Street (2014) defende para a escola um modelo ideológico de educação: Que se situa numa ideologia linguística mais ampla, na qual distinções entre eventos de leitura, escrita e oralidade são apenas subcategorias, elas mesmas separadas e definidas dentro da ideologia. Não entendemos “ideologia” linguística no sentido fraco de referência a “ideias sobre” língua, embora elas sejam obviamente importantes, mas num sentido mais forte que abrange a relação através de sistemas de signos. (STREET, 2014, p. 143) Os sujeitos da EJA deixaram o espaço escolar e agora têm a oportunidade de retornar a ele, com “uma esperança de que ao menos na escola continuem vivos” (ARROYO, 2017, p. 242). Sendo assim, necessitam de “um modelo pedagógico próprio, a fim de criar situações pedagógicas e satisfazer necessidades de aprendizagem de jovens e adultos” (BRASIL, 2000, p. 9). Como jovens ou adultos, os estudantes já possuem uma história linguística, adquirida por meio de sua experiência social. Assim, quando chegam à escola para aprender a ler, já viram diversas palavras escritas - nos cartazes e placas de rua, nos jornais, nas embalagens de alimentos e remédios. Provavelmente, sabem que a escrita tem significado, embora não percebam exatamente de que maneira os sinais escritos funcionam para transmitir uma mensagem. Dessa forma, considerando que a leitura do mundo ocorre desde antes do aprendizado da leitura da palavra (FREIRE, 2003), supomos que estreitar a nossa relação com as necessidades reais do educando é uma das formas de significar a aprendizagem para o sujeito que, ao usar a escrita para se comunicar com o outro, busca, em seu conhecimento de mundo, suas necessidades, ansiedades, crenças e desejos. 151 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 151 18/06/2019, 17:47 OS EVENTOS E AS PRÁTICAS DE LETRAMENTOS DE TRÊS ESTUDANTES DA EJA Nesta seção, analisaremos três entrevistas semiestruturadas com três estudantes da EJA, as quais compuseram o nosso grupo focal para a investigação dos eventos de letramentos fora do espaço escolar, e que chamaremos neste artigo de “Estudante 1”, “Estudante 2” e “Estudante 3”. Eu escrevo no caderno, porque a hora que eu precisar tá lá as ervas que eu quero (...) O fragmento que intitula a presente seção compõe parte da entrevista concedida pela estudante 1, a qual nos demonstra usar a escrita como ferramenta para a memória, quando nos relata que escreve para consultar em caso de necessidade posterior. Sendo assim, observamos que a Estudante 1 reconhece uma das utilidades pragmáticas da leitura e da escrita, a de registrar. E só consegue fazer de fato essa relação porque entende uma das várias funções sociais da leitura e da escrita. Em outros momentos, durante a entrevista, a Estudante 1 confessou fazer outros usos da leitura e da escrita, como, por exemplo, em sua participação em outra agência de letramento a qual integra, o Centro Espírita. Leiamos um fragmento dessa conversa: (Estudante 1) Frequento o Centro Espírito. Lá, às vezes, usa a escrita, quando chega uma pessoa na emergência para fazer um banho de ervas, para poder passar um xarope. E a gente tem um grupo de negócio do zap, que é aonde a gente envia uma resposta de negócio para um emprego de trabalho para uma pessoa. A gente temo o nosso grupo. Identificamos, no excerto acima, que a Estudante 1 faz diversos usos da escrita em seu cotidiano. Isso demonstra que 152 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 152 18/06/2019, 17:47 o letramento existe na vida das pessoas quando elas fazem uso da leitura e da escrita em atividades diversas em casa, no local de trabalho e na escola, sendo, portanto, um recurso cultural utilizado em relações sociais e não uma propriedade dos indivíduos como afirmam Barton e Hamilton (1998). É interessante percebermos, neste relato, o uso, pela estudante, dos múltiplos letramentos, vemos que a tecnologia também está a serviço das classes populares e fazendo sentido para os sujeitos. Depreendemos, assim, que a estudante está muito mais inserida na cultura escrita do que a escola parece supor. Observemos este outro trecho da entrevista: (Estudante 1) Fora da escola, às vezes, eu leio livros de história para os meus filhos, às vezes, eu pego um livro para estudar com Igor, sobre Redação, essas coisas..., porque ele está na 4ª série. E eu leio para o pequenininho, porque às vezes, ele fica com o pai, mas o pai não lê, aí ele chega em casa e pede para eu ler. Temos, nesse excerto, a menção a um evento de letramento, uma situação em que a estudante interage com o seu filho, utilizando a leitura para uma atividade altamente valorizada nos grupos dominantes da nossa sociedade letrada. Isso nos revela que uma atividade como a historinha antes de dormir “(...) revela padrões diferenciados para, nas palavras de Heath, ‘extrair significado da escrita’” (KLEIMAN, 1995, p.40). Quanto à análise desse evento de letramento, compreendemos que é fundamental para a Estudante 1 e seu filho poderem usar a leitura e a escrita para a aprendizagem, não somente apoiando o filho no desenvolvimento cognitivo, mas também incorporando aos letramentos escolares os próprios conhecimentos. Constatamos, nesse exemplo, que usamos a escrita para diferentes finalidades, nas variadas situações interacionais que 153 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 153 18/06/2019, 17:47 têm lugar em nossa história de vida. Dessa compreensão resulta, em boa medida, o entendimento de que as leituras são diversas tanto quanto as culturas escritas são diversas, olhar que colocou em xeque uma visão monolítica do uso da escrita, comprometida com a erudição e a escolarização. Inferimos, entretanto, que as práticas de letramentos vivenciadas pela estudante oscilam entre a adesão ao letramento dominante e o reconhecimento das próprias práticas de letramento, isso porque ambas as concepções permeiam atividades cotidianas desenvolvidas pela Estudante 1. Vejamos um exemplo do “mito do letramento”, ligado ao modelo autônomo de letramento e a uma perspectiva dominante, presente em seu discurso, no fragmento abaixo: (Estudante 1) Eu voltei para a escola para poder fazer uma autoescola, um curso de corte e costura, curso de culinária, porque eu já tenho o diploma, certificado do curso de manicure que eu fiz. Eu tenho objetivos para subir mais na vida, para eu dar um futuro melhor para meus filhos também, quando passa mal, eu pegar um carro e levar a um hospital, sem estar incomodando ninguém. Ao considerar a escolarização e o consequente domínio da escrita como meio de ascender socialmente, a Estudante 1 reproduz, em sua justificativa para retornar à escola, o discurso tantas vezes disseminado pela sociedade de que as habilidades cognitivas desenvolvidas no ambiente escolar trariam a ela e a sua família grandes impactos em termos de competências sociais e cognitivas. Estas seriam capazes de os levar à mobilidade social, saindo da “escuridão” e do “atraso” sinalizados pelo modelo autônomo de letramento. Percebemos, assim, o mito presente na sociedade letrada acerca do conhecimento institucionalizado pela escola: o da autonomia, transparência e universalidade da escrita como 154 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 154 18/06/2019, 17:47 mediadora do sentido. Esse mito está diretamente relacionado à noção de cidadania e é promulgado institucionalmente pelo direito, ou seja, pela afirmação de quem são os sujeitos de direitos em um dado corpo social. Nesse contexto, as práticas de letramento são concebidas pela Estudante 1 como um caminho a ser percorrido para se chegar a um futuro promissor para si e para a família, confirmando o pensamento da classe dominante acerca do fazer dentro da escola. Infelizmente, podemos ver que ainda fazemos da escola esse espaço de subordinação, porque ainda não percebemos que as teias que movem as desigualdades entre analfabetos e alfabetizados é muito maior do que a linha da escrita: ainda é a linha de subordinados e subordinadores. Então, eu resolvi ler por isso, pra ler pra onde eu vou e pra onde eu volto (...) Nossa segunda entrevista semiestruturada foi conduzida com a Estudante 2, de 64 anos, autora da frase que intitula esta seção e que escolhemos como título de nosso texto. A Estudante 2 justifica seu retorno à escola para exercer seu direito de ir e vir. De modo singular, essa entrevista mobilizou-nos para olhar muito mais de perto um público que chega à sala de aula da EJA com uma bagagem de fracasso escolar e de negação do direito à educação. Com uma história de vida marcada pela superação, a Estudante 2 emocionou-nos ao contar não só suas experiências com a leitura e a escrita, mas também como conseguiu superar as dificuldades advindas do abandono da família, já muito cedo, a fome que passou durante o tempo em que viveu nas ruas e a forma como conseguiu se livrar do vício das drogas. Numa sociedade como a nossa, na qual o valor social dado à escolarização é muito grande, o fato de uma pessoa não ter estado na escola é uma marca distintiva de pobreza, é uma característica marcante da condição de subalternidade, da 155 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 155 18/06/2019, 17:47 exclusão oriunda de suas raízes culturais, imposta pelo grupo dos letrados. Infelizmente, ainda se usa a justificativa social para o analfabetismo, como se este fosse um problema decorrente da pobreza, minimizando a questão sócio-histórica e política detrás da exclusão desses sujeitos. Sempre teremos uma relação de causa e consequência mais estreita do que as aparentemente percebidas. Por isso, ainda temos muito o que pensar sobre a relação sociopolítica que está colocada entre a atribuição de valor aos bens culturais e o prestígio social de determinados grupos. Vejamos outro excerto da entrevista analisada, que ilustra a concepção do letramento como veículo de acesso a outras experiências e oportunidades: (Estudante 2) Eu pedia para os outros me ajudar. Eu pedia para os outros... Ei, que ônibus é aquele, que ônibus é esse? E eu quero ser voluntária do Hospital do Câncer e não podia ir para o Rio fazer pergunta. Eu tinha que andar com babá do lado, para me dar dicas dos ônibus. Então, eu resolvi ler por isso, pra ler pra onde eu vou e pra onde eu volto. E também de receber o meu dinheirinho, né, o ano que vem. Eu não tenho família, sou obrigada a saber mexer no reloginho, porque se leva pessoas estranha, ele rouba a sua senha... (Professora-pesquisadora) Que reloginho você está falando? (Estudante 2) De pegar dinheiro, ué. (Professora-pesquisadora) Ah, tá, o caixa eletrônico. A escrita nos espaços pelos quais a Estudante 2 circula tem finalidades diversas, como listar as compras, registrar reuniões e prestação de contas, mas também está presente em eventos de letramentos que ocorrem em situações de mediação pelos adultos. A funcionalidade da escrita é percebida pela Estudante 156 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 156 18/06/2019, 17:47 2 sob a concepção pragmática dos eventos de letramentos, como podemos observar no fragmento da entrevista abaixo: (Estudante 2) Eu leio muito, medito minha Bíblia. Outras coisas eu não costumo ler não. Escrever só o meu nome, quando é preciso assinar. Assim, um negócio de INSS quando tenho que assinar, negócio de casa, de conta de luz, essas coisas assim... corriqueiras do dia a dia, que precisa assinar, aí eu assino. A Estudante 2 expôs a utilidade da escrita no seu dia a dia e a restringe à necessidade de formalizar alguma situação, utilizando para isso a sua assinatura. A estudante trouxe-nos diversos documentos que materializam os eventos de letramentos dos quais participa na cultura letrada. Tais documentos constituem reificações de eventos de letramentos dos quais a Estudante 2 participa, como relatou no trecho em destaque da entrevista. São situações formais que exigem a assinatura da estudante para efetivar transações como a assinatura do contrato da aquisição de seu apartamento, pelo programa Minha Casa Minha Vida, e os dois formulários preenchidos e assinados, atestando a veracidade das informações. Quando perguntada sobre a disponibilidade de material escrito com o qual tem contato, a Estudante 2 relata, novamente, que somente na Secretaria de Políticas Públicas para a Terceira Idade é que presencia as pessoas fazendo uso da escrita, e que ela mesma só escreve nas situações descritas no parágrafo anterior. Vejamos este fragmento: (Estudante 2) A terceira idade, as meninas escrevem muito lá. Eu fico muito na sala que elas fazem a escritura das pessoas que elas vão cadastrando. É uma salinha. A gente pode ficar junto lá, vendo televisão e elas lá, dando... precisa disso, precisa daquilo. A gente vê elas escrevendo. 157 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 157 18/06/2019, 17:47 Ainda sobre a disponibilidade do material escrito, a Estudante 2 declara que guarda alguns materiais escritos importantes de uso pessoal, como comprovantes de pagamento e um formulário para a obtenção de gratuidade no transporte público. Um fato muito importante na vida dessa aluna, que ela conta com muito orgulho, foi a aquisição do apartamento no programa social da Prefeitura de Maricá, o Projeto Minha Casa Minha Vida. A Estudante 2 recebeu toda a orientação da Secretaria de Políticas Públicas para a Terceira Idade para participar desse programa social, dessa forma, identificamos que a falta de habilidades letradas individuais foi suprida pela comunidade da qual faz parte. Essa outra agência de letramento da qual a Estudante 2 faz parte se mobilizou e encaminhou toda a situação para a resolução do problema. Isso nos mostra que a aquisição de habilidades letradas não é uma necessidade prioritária no nível individual, desde que elas estejam disponíveis no nível da comunidade. Vejamos abaixo o excerto da entrevista que justifica nossa análise: (Estudante 2) Foi assim. Deu um vento lá no meu barraquinho e arrancou algumas telha. Como lá na terceira idade tava tendo um curso, um curso pra gente poder ir... com área de risco. Eu fui umas duas, três vezes. E aí a senhora disse pra mim: D. Marlene, eu posso dar uma palestrinha? Pode. A defesa civil tava lá. Aí, eu disse: Ó, minha casa tá de risco, minha casa tá destelhando toda por dentro. Aí eles marcaram e foram lá olhar, eu não estava nem em casa e deram um laudo. Com esse laudo o pessoal da terceira idade me inscreveu no computador e eu ganhei. A entrevista com a Estudante 2 indicou a busca pela inserção da estudante nos meios sociais pelos quais transita. Na maioria dos casos, aponta em cada comunidade, como a escola e a “terceira idade”, como ela chama a Secretaria de Políticas 158 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 158 18/06/2019, 17:47 Públicas para a Terceira Idade, as maneiras como utilizava a escrita para interagir socialmente e partilhar conhecimentos em eventos de letramentos. Seu comportamento reflete aquilo que se entende como possível de se conquistar socialmente por meio da aquisição do conhecimento escolar, como transitar com autonomia pelos espaços públicos, melhorar sua condição de vida por meio da aquisição de um lugar mais digno para morar e ler a Bíblia, citada pela estudante diversas vezes como um instrumento de refrigério e porto seguro para os momentos de aflição. (...) infância, minha filha, nada de escola, é trabalhar mesmo, (...) você, essa bênção, tá me tirando aquela lerdeza da cabeça, foi embora. Graças a Deus! Nossa terceira e última estudante da Educação de Jovens e Adultos, que nos ajudou na pesquisa, é a Estudante 3, de 74 anos, a qual atribui o fato de não ler e escrever a uma certa “lerdeza da cabeça” que a dificulta nesse processo. Assim, demonstra ter incorporado a ideia de que os sujeitos não escolarizados são irracionais, inferiorizados pelo fato de serem analfabetos. Ela assume para si, por sua suposta incapacidade cognitiva, a culpa por não saber ler, o que entra em contradição com seu relato de uma infância marcada pela desigualdade, como veremos a seguir. A Estudante 3 justifica sua ausência na escola, quando criança, pelo fato de ter de trabalhar muito para ajudar os pais a sustentarem seus irmãos, ficando impossibilitada de frequentar as aulas da escola. Afirmando a própria incapacidade, a Estudante 3 também constrói uma representação de superioridade na imagem idealizada da professora na EJA, conferindo-lhe o poder de fazêla desenvolver o raciocínio - “tirando aquela lerdeza da cabeça” - e, por consequência, “ensinando-a” a ler e escrever. Vejamos abaixo o trecho da entrevista em que essas concepções emergiram: 159 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 159 18/06/2019, 17:47 (Estudante 3) Quando eu era menina, era só trabalhar, você sabe como é antigamente, né, os pais criavam muitos filhos, os filhos mais velhos tinham que trabalhar para ajudar a criar os menores, por aí vai, aí, agora que eu tive oportunidade. Na infância, minha filha, nada de escola, é trabalhar mesmo, me casei o marido não me deu chance, aí, agora que eu tive chance de estudar e com isso, você, essa bênção, tá me tirando aquela lerdeza da cabeça, foi embora. Graças a Deus! Diante do exposto, percebemos que a estudante reproduz um discurso hegemônico sobre sua dificuldade com a leitura e com a escrita, impondo sobre si a exigência da aquisição da cultura escrita, da classe média, em detrimento da bagagem cultural que traz consigo, como se fosse um recipiente vazio à espera da cultura escolar, que é a da classe média. Segundo Ivani Ratto (1995): Essa violação a princípios cooperativos para a relação ensino/aprendizagem que resulta, na maioria das vezes, na desvalorização do saber do aluno pode, em consequência, provocar o enfraquecimento de sua disposição de se colocar em novos empreendimentos na sociedade letrada. Daí o silêncio, a evasão, o apagamento de si mesmo (RATTO, 1995, p. 274). Identificamos também, no discurso da Estudante 3, a reprodução da visão tradicional, conservadora do papel da escola e da construção do conhecimento. Na entrevista com a estudante, percebemos a valorização dos hábitos convencionais das práticas escolares, como a cópia, e, na vida cotidiana, a utilização pragmática da escrita. Vejamos o excerto da entrevista que justifica nossa análise: 160 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 160 18/06/2019, 17:47 (Estudante 3) Escrevo fora da escola, em casa. Escrevo muito, leio muito. Acabo de fazer meu servicinho e vou pra mesa, só to escrevendo. As minha neta fala assim: aí vó, tá só estudando... É isso aí, minha filha, pra logo eu não bater a cabeça. Eu copio do livro que eu ganhei aqui. Tá lembrada que eu ganhei um livro? Então, eu to lendo muito aquele livro. E copiando. Acho que eu vou até trazer pra você dar uma olhada nas minha escrita. Na rua, só quando eu preciso fazer alguma coisa, preencher alguma coisa. A aluna convive com diversos materiais escritos do neto formado em Português e Hebraico, pela Universidade Federal Fluminense (UFF), no entanto, não reconhece que vivencia diversas práticas de letramentos, como, por exemplo, acompanhar o neto nos momentos de estudo em casa, interagir com o objeto de trabalho do rapaz - que é a língua - além sustentálo com o seu salário de pensionista, possibilitando ao neto continuar seus estudos. Isso porque as suas práticas de letramentos não são valorizadas socialmente. Observemos abaixo o trecho dessa análise: (Estudante 3) Ó, meu filho ajuda, meus neto ajuda, bisneto ajuda. Eu tenho muita gente para ajudar. Meu neto é formado, hoje mesmo ele foi trabalhar. Que vai chegar um senhor lá de Israel, um rabino vai chegar lá de Israel pra ele, trabalhar com ele. Ele é formado em Hebraico, Português, Inglês, eu sei que ele tem cinco idiomas. Ele começou aqui no Dr. João, aqui no Janelinha, do Janelinha ele foi para o Dr. João, do Dr. João ele foi para o Aurelino Leal, conhece aquele colégio? Ali tem a faculdade ali perto, ali que ele fez a faculdade, na UFF, ali se formou. Entendeu? Reconhecemos a disponibilidade da escrita, ou seja, da presença física dos materiais escritos, em diversos momentos 161 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 161 18/06/2019, 17:47 no ambiente familiar da Estudante 3. Em sua casa, observamos a presença de livros, folhetos de evangelização da igreja, a Bíblia, TV, celular e outros que circulam no contexto em foco. O incentivo dos familiares da Estudante 3 também é um aspecto relevante no acesso à cultura escrita, uma vez que proporciona a interação da estudante com a cultura escrita presente em nossa sociedade. É possível identificar em vários trechos da entrevista acima a importância que a Estudante 3 atribui à leitura e à escrita, reforçando, várias vezes, que lê e escreve sempre e muito. No entanto, atribui o seu esforço à preocupação de ficar “esquecida”, de “perder a mente”. Essa última expressão empregada pela estudante nos permite inferir que, para ela, a capacidade de raciocínio foi adquirida na escola, com a leitura, por isso, se deixar de ler, deixará de pensar. Para o sujeito inserir-se em nossa sociedade letrada, ler e escrever são habilidades imprescindíveis, quem não possui essas habilidades fica fora dela, à margem, e, por isso, não é considerado como “gente”. É dessa posição imaginária de sujeito que emerge o discurso da Estudante 3, quando afirma querer voltar a estudar para “desenvolver a mente”. O retorno da Estudante 3 à escola demonstra-nos sua capacidade de ressignificar-se no espaço social em que vive, a última frase da citação anterior de Arroyo (2017) traduz com muita precisão a percepção que temos da fala da aluna, quando diz que saber ler e escrever é muito importante, porque “desenvolve a mente”, indicando que a escola é o espaço que permitirá a ela “estar viva”, ou seja, continuar visível e ativa aos olhos da sociedade. Mesmo vivenciando tantas práticas de letramentos, a Estudante 3 não se reconhece como participante de inúmeros eventos de letramentos que envolvem o uso social da leitura e da escrita, como podemos perceber no excerto abaixo: 162 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 162 18/06/2019, 17:47 (Estudante 3) Vanessa, se fosse agora, eu queria estudar para ser professora, eu era invocada para ser professora. Eu alfabetizei meus irmãos mais velhos, com a pouca leitura de um ano que eu tive, eu ensinei eles a ler e a escrever, escrever o nome deles tudinho. Aí, eu tinha essa vontade de ser professora ou trabalhar no hospital, de ser enfermeira. Eu pra fazer um curativo sou muito boa. Lá em casa, eu era chamada para fazer qualquer curativo. Eu tinha a mão muito boa. Com três dias, tava boa. Isso eu aprendi na roça. A Estudante 3 nos indica também, na frase final do trecho acima, os saberes que adquiriu fora da escola e revela que o reconhecimento de seus talentos para ensinar e cuidar lhe suscitaram a vontade de estudar. Desejo frustrado pelas injustiças sociais que viveu como mulher negra analfabeta em uma sociedade marcada pelo racismo, pelo machismo, pelo preconceito em relação aos analfabetos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nossa análise demonstra o equívoco da escola, quando privilegia o modelo autônomo de letramento que afirma o domínio da escrita como condição causal para o progresso e para a mobilidade social, já que tal ideologia desconsidera a possibilidade desses sujeitos vivenciarem essas experiências com a escrita fora das instituições pedagógicas de letramento. A turma multisseriada das fases II e III da EJA e as três estudantes cujos usos e concepções de letramento buscamos compreender no presente artigo representam significativamente esses sujeitos que batalham incessantemente pela recuperação de sua humanidade por meio da escola, porque assim concebem esse espaço de socialização do saber. Como afirma Freire, “[...] a desumanização que resulta da 163 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 163 18/06/2019, 17:47 ‘ordem’ injusta não deveria ser uma razão da perda da esperança, mas, ao contrário, uma razão de desejar ainda mais, e de procurar sem descanso, restaurar a humanidade esmagada pela injustiça” (FREIRE, 1989, p. 97). Isso é o que os estudantes da EJA com os quais convivemos nessa pesquisa nos revelam, e é nisso que nós, como educadores, devemos acreditar. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARROYO, M. Outros Sujeitos, Outras Pedagogias. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. ________. Passageiros da noite: do trabalho para a EJA, itinerários pelo direito a uma vida justa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. BARTON, D. HAMILTON, H. Local Literacies: reading and writing in one community. London: Routlege, 1998, p. 299. BRASIL (2000) Conselho Nacional de Educação/ Câmara de Educação Básica. Parecer nº. 11/2000, de 10 de maio de 2000. Brasília, DF. FREIRE, Paulo. 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Além disso, cursos privados de redação também têm se apresentado como uma possibilidade de preparar o aluno para o vestibular. Nessas aulas, identifica-se, porém, baixa adesão dos alunos. Seja na escola, seja no curso, os temas abordados parecem não despertar interesse, os textos motivadores selecionados apresentam-se como distantes do mundo concreto do aluno e a realidade exterior à escola lhe oferece diversos estímulos atraentes que, muitas vezes, contribuem para essa apatia na sala de aula. Nesse sentido, pode-se questionar: essas coletâneas motivadoras são de fato necessárias? Em um mundo globalizado, prático e tecnológico, por que não tentar trazer outras linguagens 166 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 166 18/06/2019, 17:47 para a leitura? É isso que o estudante já domina e é nesse ambiente plurilinguístico que ele se sente confortável. Em relação à primeira pergunta, Passarelli (2012, p.37) destaca uma das razões pelas quais os alunos têm medo do papel em branco: “o sujeito não tem repertório para desenvolver o tema sobre o qual tem de escrever”. Isto é, pode-se inferir que, de fato, os textos motivadores são necessários. Entretanto, aqueles meramente informativos – predominantes nas propostas de redação –, embora ricos em definições, dados, exemplos e outros, não envolvem o jovem do século XXI, desnorteado com tantos incentivos mais “interessantes”. Buscando respaldo nos dicionários tradicionais, o verbo “motivar” é definido, segundo Ferreira (2010, p.518), da seguinte forma: “despertar o interesse, a curiosidade, prender a atenção (…) estimular”. De acordo com Houaiss (2008, p.515), nessa mesma linha, seria “prender a atenção, interessar (…) ser motivação para; estimular, impulsionar”. Logo, fica evidente que a motivação utilizada em sala não se relaciona muito à motivação estipulada pelos dicionários. Assim sendo, tenta-se resgatar esse caráter motivacional idealizado pelos dicionários na escolha das leituras pré-textuais. Nessa perspectiva, fazem-se pertinentes os conhecimentos da psicologia cognitiva, que visa a estudar os processos mentais, como o da memória. Mora (2013) sugere, a partir de uma análise da educação, que é preciso se emocionar para aprender. Para transformar os conteúdos escolares em memória de longo prazo – um desafio para o professor –, tocar o aluno em sua afetividade é uma alternativa. Corroborando essa ideia, Siqueira (2015, p.23) propõe que “a cognição também é um processo que envolve aspectos emocionais”. E, em seguida, completa: “o aprendizado está envolvido por afetividades, que podem favorecer ou dificultar a aquisição de conhecimento” (SIQUEIRA, 2015, p.23-34). Ou seja, é preciso ter cautela, pois a emoção negativa pode bloquear o estudante. 167 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 167 18/06/2019, 17:47 O SÉCULO XXI Dias, Feres e Rosário (2016, p.11) reconhecem o impacto do advento das novas tecnologias e a denominada cibercultura à noção do texto. É compreensível que o jovem prefira os vídeos do youtube, as séries da netflix e as redes sociais, repletas de textos sintéticos. Sousa (2016, p.85), inclusive, propõe que “a escola não pode ignorar que o leitor contemporâneo tem a seu dispor, vinte e quatro horas por dia, inúmeras redes de contato”. Por isso, atrelar leituras com linguagem híbrida e discussões do interesse do estudante é uma opção. Ademais, sua fala é cerceada, muitas vezes, tendo adquirido a escola – e o professor – a posição de impor. Contudo, para envolvê-lo novamente, travar um diálogo é pertinente. O jovem tem seus assuntos de interesse, por que não os levar para a aula? Passarelli (2012, p.60), em relação ao “medo do papel em branco”, postula: Um dos motivos dessa resistência é que, em geral, os temas propostos para as redações estão distantes da realidade dos alunos. (...) Assim, é desejável que se instaure um espaço interativo em que o professor ouça seus alunos e os ajude a aprender a ouvir, levando em conta o conhecimento prévio deles. Em relação ao conhecimento prévio estipulado por Passarelli, pode-se entender, outrossim, a tecnologia e tudo que ela permite. Nas instituições privadas, aparatos tecnológicos costumam ser de fácil acesso. Nas instituições públicas, essa questão varia. Todavia, apresentar-se-ão apenas algumas possibilidades, que não se limitarão a esses aparatos. Encontram-se, no suporte digital, publicações rápidas, didáticas e com múltiplas linguagens. Apropriar-se delas para motivar, de fato, a produção de um texto apresenta resultados positivos. Conclui-se que interagir com o aluno é realmente fundamental. Passarelli ratifica: “a prática interativa depende prioritariamente do professor, visto ser ele o responsável pela 168 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 168 18/06/2019, 17:47 escolha do conteúdo, pela possível instauração do diálogo com seus alunos e, acima de tudo, é o professor quem pode motiválos para a aprendizagem” (2012, p.81). TEXTOS MULTIMODAIS COMO MOTIVADORES Com base no que já foi exposto, entende-se a necessidade de rever algumas práticas pedagógicas. Os fragmentos motivadores meramente informativos e sobre temas distantes do adolescente não despertam o anseio pela escrita. Os textos multimodais – quer sobre assuntos de relevância para o jovem, quer sobre temas mais distantes de sua vivência – mostraramse eficazes em algumas atividades. Segundo Serafini (2010, p.87), em tradução livre, “os textos multimodais apresentam informações em uma variedade de modos, incluindo imagens visuais, elementos de design, linguagem escrita e outros recursos semióticos (Jewitt e Kress, 2003)”. Isto é, grosso modo, eles envolvem duas ou mais modalidades de forma linguística, havendo, na maioria das vezes, linguagem verbal e não verbal. Textos assim classificados não são desconhecidos para os estudantes. Na internet, eles predominam. Entretanto, como problemática, há a interpretação. Muitas vezes, o aluno está acostumado a se deparar com a multimodalidade, porém tem dificuldades na leitura. Desse modo, a mediação se mostra imprescindível, tendo ela ainda a responsabilidade de possivelmente cativar novos leitores e de formá-los interpretantes e independentes. Ribeiro (2016, p.60) explora bem essa abordagem: Se o professor tem como objetivo o desenvolvimento da capacidade leitora de seu aluno, é necessário que ele trabalhe a produção textual numa perspectiva interacional e reflexiva do ensino da língua portuguesa. Isso significa que o trabalho de mediação do professor entre o texto e o aluno seja investido 169 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 169 18/06/2019, 17:47 sobre o exame das estratégias linguístico-discursivas, acionadas a partir dos diferentes componentes da linguagem, como a sintaxe, a morfologia, semântica, a pragmática, dentro, é claro, de uma situação discursiva determinada. Diante desse trabalho, entrevê-se a esperada costura entre gramática e texto no alcance da produção do sentido. Em somatória, é possível não só trabalhar a capacidade leitora e todos os aspectos destacados por Ribeiro (2016), como também a argumentação. A partir de uma leitura mediada, em que aluno e professor são postos numa comunicação horizontal, todos têm espaço para fala. Com o envolvimento afetivo, todos se sentem confortáveis para expor interpretações e opiniões, sendo estas, muitas vezes, polêmicas, necessitando de bons argumentos para se tornarem válidas. Com essas discussões suscitadas pelas leituras, há uma troca significativa entre todos os interagentes, enriquecendo também o desenvolvimento da produção posterior. Para completar, Feres (2016, p.31) fala em estratégias de leitura que ultrapassam a simples decodificação, que consistem em: Uma perspectiva interativa, que considera a participação do sujeito-leitor na construção do sentido textual a partir de suas experiências e seus conhecimentos, do reconhecimento do outro e das circunstâncias em que se dão as trocas comunicativas engendradas pela leitura, em conformidade com o material formal que se apresenta. Toma-se a noção de leitura em seu sentido mais amplo, dirigida a textos pertencentes a gêneros variados, inclusive os de semiose mista. Embora Feres não esteja discorrendo diretamente sobre os textos multimodais, é correto estabelecer uma analogia. Faz-se 170 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 170 18/06/2019, 17:47 valoroso, assim sendo, considerar “texto” no seu sentido lato, recorrer a trocas com os discentes e integrar multimodalidade e dupla semiose ao quadro de motivação. ALGUMAS PROPOSTAS Para introduzir o gênero artigo de opinião no Ensino Médio do Colégio Miguel Couto, após 3 semestres de dissertação, encontrou-se resistência por parte dos estudantes. Muitos gostariam de continuar dissertando, visto ser o gênero exigido pelos vestibulares. No entanto, o currículo escolar previa a alternância. Na primeira atividade, eles encontraram dificuldade em projetar a 1ª pessoa novamente na redação. Além disso, a argumentação deles ainda não era consistente, seja no artigo, seja na dissertação. Por fim, os temas propostos pelo material escolar encontravam-se sem revisão, inadequados para a situação atual do país e para os dilemas dos adolescentes, que solicitaram discutir sobre o movimento feminista e a legalização do aborto. Para iniciar o trabalho com o primeiro tema, foi requisitada uma pesquisa prévia sobre o movimento iniciado no século XX. Em aula, foi apresentada a publicidade “We can do it” 10, já conhecida por alguns, que, inclusive, dominavam a história por trás do cartaz, que consistiu em uma propaganda para estimular a mão de obra feminina na ausência dos homens devido à guerra. Nesse texto multimodal, foi explorada a questão sóciohistórica, bem como a ilustração: as cores vermelho e azul, fortes e significativas do universo considerado masculino; as vestimentas, sugestivas de trabalho – que pode ser visto como liberdade ou aprisionamento –; o gesto, potente e _ __ __ __ __ __ __ __ __ _ 10 Figura 1. Tradução livre: “Nós podemos fazer isso”. 171 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 171 18/06/2019, 17:47 representativo; a expressão facial, séria, dura e imponente. Esse tipo de leitura mediada e construída coletivamente se torna um exercício de interpretação em que os educandos costumam aprender novas formas de lidar com o texto, entendendo diferentes maneiras de explorá-lo e significá-lo. Essa prática com a verbo-visualidade é imprescindível não apenas para as provas de vestibular – que exploram as diversas linguagens –, mas também para a vida, repleta de multimodalidade. Figura 1. Fonte: http://www.todasfridas.com.br/2018/03/28/a-verdade-sobre-ocartaz-de-we-can-do-it/. Acesso em 10/11/2018. Continuando com os temas propostos pelos próprios discentes e aproveitando o aprendizado do primeiro, articulouse o segundo: “legalização do aborto no Brasil”. Para desenvolver um tema delicado como esse, a alternativa foi levar uma entrevista da BBC Brasil11 em vídeo12 para a escola. O doutor Drauzio Varella13 nela expõe o viés da medicina sobre a prática _ __ _ _ __ _ _ __ _ _ BBC Brasil é uma subsidiária da British Broadcasting Corporation no Brasil. Figura 2. 13 Dr. Drauzio Varella é um médio oncologista brasileiro conhecido por divulgar e popularizar informações médicas na grande mídia. 11 12 172 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 172 18/06/2019, 17:47 do aborto, destacando prós e contras, exemplificando e apresentando, ainda, um olhar político-social da questão. A partir da investigação prévia dos estudantes e da leitura multimodal – que, de fato, despertou o interesse por ser em formato de vídeo do youtube –, houve um debate. Eles puderam se colocar abertamente e, juntos, foram ao quadro levantar argumentos, buscando sistematizá-los para a posterior redação. Figura 2 Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=Q0egxsoS5Ho. Acesso em 27/ 10/2018. Foi notório o envolvimento dos alunos. Ao se montar, na sala, o equipamento audiovisual, eles já oferecem ajuda, pedem silêncio aos colegas mais agitados e organizam a sala. É considerável destacar que a pesquisa do vídeo na plataforma youtube ocorreu no projetor e, desse modo, todos puderam assistir aos procedimentos e constatar como uma averiguação segura e confiável deve ser feita, atentando-se às fontes e às datas. 173 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 173 18/06/2019, 17:47 Figura 3 Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=nf76lGaxgm0. Acesso em 27/ 10/2018. Seguindo por essa abordagem, foi levado para a sala do Préuniversitário popular Fernando Santa Cruz – que, por preparar para o vestibular, aperfeiçoa apenas o gênero dissertação – um vídeo14 de youtuber Júlia Tolezano15, dona do canal “Jout Jout prazer” e conhecida pelos adolescentes. No vídeo, ela se ocupa da reciclagem, que contribui positivamente para o tema “uma responsabilidade social: a questão do lixo no Brasil”. São apresentadas, no texto, diversas possibilidades, além de dados, que contribuem para esse tipo de produção. Também foi perceptível a melhora dos vestibulandos na escrita da proposta de intervenção, solicitada pelo ENEM. Até então, eles apresentavam certa objeção para redigi-la, mas, após o vídeo – que narra de forma prática e clara soluções para o __ ___ __ ___ ___ ___ ___ __ ___ __ Figura 3. Julia Tolezano é uma escritora, jornalista e youtuber brasileira, conhecida por criar o canal “Jout Jout prazer”, com mais de 2 milhões de inscritos, sendo eles predominantemente jovens. 14 15 174 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 174 18/06/2019, 17:47 problema do lixo –, o item avaliado na competência V do ENEM foi mais bem desenvolvido. Nesse mesmo tema, levou-se um poema concreto16 – algo não tão distante da realidade do jovem. Nas redes sociais, são comuns perfis de autores de poesia visual, como “Eu me chamo Antônio”, “Pó de Lua”, “Akapoeta” e outros. Ao se traçar esse paralelo, com as redes sociais e com autores já conhecidos, o adolescente se sente mais próximo da poesia de Campos, capaz de entendê-la. Figura 4 Fonte: CAMPOS, Augusto. Viva vaia. São Paulo: Duas Cidades, 1979. O poema17 de Campos, por isso tudo, não se mostrou de difícil compreensão. A análise não é tão trabalhosa, mas a reflexão é provocativa e necessária. Muitos transformaram essa interpretação em argumento para a dissertação, relacionando consumismo com produção excessiva de lixo. Por fim, a escolha do poema se fez apropriada por apresentar àqueles que ainda não conheciam essa forma de arte verbo-visual e por afirmar, mais uma vez, que o “diferente” não é necessariamente difícil ou tão distante do que já é conhecido pelo jovem. No mesmo espaço, foi lido o clássico da literatura infantojuvenil norte-americana A árvore generosa 18, de Shel Silverstein (2001), a fim de motivar para o tema “caminhos __ ___ __ ___ ___ ___ ___ __ ___ __ Figura 4. Figura 4. 18 Figura 5. 16 17 175 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 175 18/06/2019, 17:47 para combater a exploração excessiva do meio ambiente”. A obra narra a relação de um menino com uma árvore. Ao crescer, ele se afasta de sua grande amiga e retorna apenas para fazer pedidos. Como a árvore só pode lhe oferecer suas partes, ele as leva, deixando a amiga cada vez mais incompleta e sozinha. Esses dois personagens, mimeticamente, representam os seres humanos – exploradores – e o meio ambiente – explorado. Muitos se lembraram de já ter lido a história, contudo relataram uma experiência diferenciada: perceberam que não se tratava apenas da exploração do meio ambiente, mas também das relações humanas, permeadas de abusos. Nesse âmbito, concluise que a literatura destinada aos menores pode ser uma leitura rica e que desenvolve o senso crítico. Figura 5 Fonte: SILVERSTEIN, Shel. A árvore generosa. 9 ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. (Capa e p.39) Como resultado prático dessa aula, além de cativar os vestibulandos para o universo da leitura, a argumentação foi construída de forma mais sólida e inovadora. Houve citações ao clássico, inclusive, na proposta de intervenção, em que eles 176 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 176 18/06/2019, 17:47 mostraram como o tema da exploração do meio ambiente pode ser introduzido na escola desde as séries iniciais. Ainda no pré-vestibular, tentou-se levar um gênero bem atual e do conhecimento do adolescente: um meme19. Constituindose de uma parcela visual e de outra verbal, ele estabelece uma intertextualidade com algo pertencente aos imaginários sociodiscursivos 20. Objetivou-se trabalhar com o tema “Caminhos para combater a propagação de notícias falsas”. Figura 6 Fonte: www.correio24horas.com.br/noticia/nid/memes-brincadeira-temque-ser-levada-a-serio-no-enem/. Acesso em 10/11/2018. Contudo, houve um problema. Parece ser explícita a relação da ironia do meme – que não apresenta uma frase cuja autoria seja de Machado de Assis – com a ironia predominante nas obras do autor. Os estudantes do curso, porém, são oriundos da rede pública de educação de Niterói e São Gonçalo, em que __ __ __ __ ___ __ __ __ __ __ Figura 6. Segundo Charaudeau (2008), os imaginários sociodiscursivos circulam em um espaço de interdiscursividade: “eles dão testemunho das identidades coletivas, da percepção que os indivíduos e os grupos têm dos acontecimentos, dos julgamentos que fazem de suas atividades sociais” (CHARAUDEAU, 2008, p.207). 19 20 177 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 177 18/06/2019, 17:47 o ensino de literatura é predominantemente deficitário ou inexistente. Ainda assim, aqueles que reconheceram a imagem do autor, não reconheceram a figura de linguagem predominante, visto que não conseguiram relacionar o período de vida dele com o advento da internet, algo bem mais recente. Após as explicações, a interpretação pôde ser finalizada com êxito. Nessa perspectiva, os próprios alunos perceberam o quão manipuláveis eles são pelas informações encontradas na internet. Puderam entender, igualmente, a necessidade de se pesquisar em outras fontes antes de admitir um conhecimento como verdadeiro e compartilhá-lo. A discussão do tema, portanto, foi enriquecedora não apenas para a produção textual. Em outro espaço, chamado Oficina de Textos Bebel Pantaleão, cuja finalidade é trabalhar a produção textual em seus diversos gêneros, também são adotadas leituras motivadoras. Um exemplo de multimodalidade abordada no curso é o primeiro capítulo do livro O pequeno príncipe21 (SAINTEXUPÉRY, 1994, p.7-9 - cf. figura 7). O excerto da narrativa, assim como a obra completa, é composto por ilustrações, embora o verbal seja predominante. Figura 7 Fonte: SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O Pequeno Príncipe. 42 ed. Rio de Janeiro: Agir, 1994. (Capa e p.7) 178 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 178 18/06/2019, 17:47 O tema da produção, de acordo com a data comemorativa próxima “dia das crianças”, era escrever sobre a infância. Os mais novos deveriam redigir uma carta a algum adulto apresentando o olhar da criança sobre o mundo e suas incompreensões. Já os mais velhos deveriam preparar uma carta para sua criança interior, para o menino ou a menina que haveria ficado no passado. A partir da leitura multimodal, extremamente enriquecida com os desenhos, as produções obtiveram um resultado lírico e verdadeiro. Conclui-se que a leitura escolhida foi apropriada e inspiradora. Para finalizar, no mesmo espaço, ouvem-se músicas como motivação para a redação. Elas se constituem como um texto multimodal devido às palavras escritas (a letra impressa é apresentada aos pequenos escritores), às palavras cantadas (as músicas são apreciadas através de caixas de som) e à melodia oriunda dos instrumentos musicais utilizados na gravação. Para iniciar o ano letivo, buscam-se aulas leves e agradáveis a fim de introduzir a prática de leitura e escrita. Uma opção foi ler a crônica de Martha Medeiros “O melhor lugar do mundo” (MEDEIROS, 2011), em que a narradora descreve como melhor lugar do mundo um abraço, de forma afetuosa e fruitiva. Posteriormente, abordou-se a música “O melhor lugar do mundo”22, de Jota Quest, inspirada na crônica //de Medeiros. O objetivo era uma redação descritiva sobre o melhor lugar do mundo de cada um. As produções estimuladas pela música delicada e pelo texto ameno – ambos ricos em adjetivos, emoções e descrições – tiveram como resultado crônicas descritivas no mesmo viés. Metáforas, personificações e poesia permearam as redações. Depreende-se, com isso, que a multimodalidade de canções pode tocar o aluno e despertá-lo para registrar suas emoções – desencadeadas ou não pela motivação selecionada. __ __ __ __ ___ __ __ __ __ __ Disponível em: www.vagalume.com.br/jota-quest/dentro-de-um-abraco.html. Acesso em 27/10/2018. 22 179 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 179 18/06/2019, 17:47 CONSIDERAÇÕES FINAIS Averígua-se, com esses relatos, que a multimodalidade pode ser um ponto de partida para conquistar o alunado que se afasta. Iniciar as classes de produção textual de forma dura, explorando apenas os textos informativos e os temas de difícil alcance pode ser um obstáculo para aqueles que apresentam dificuldade e para o jovem do século XXI, de forma geral. Por conseguinte, Passarelli (2012, p.177) se faz expressiva quando afirma que, Ao integrar a dimensão lúdica ao ensino de produção textual, o principal aspecto é a possibilidade de (re)estabelecer um espaço de convívio agradável, verdadeiramente interativo, em que os agentes de sala de aula se mostrem em sua pessoalidade, como quem sente, brinca chora, ri, imagina, inventa, mas que também trabalha. Sabe-se, todavia, que não se pode limitar as leituras a textos multimodais e a temas de real interesse do adolescente, visto que, desse modo, o nível de dificuldade não é elevado e os seus conhecimentos não são expandidos. A escola deve ter isso como umas das finalidades e não pode abandoná-la, mas pode atingila por outros caminhos. Passarelli (2012) fala, nesse seguimento, em resgatar as práticas antigas que ainda são eficazes, mas em não se limitar a elas: “quando o professor não se vale de perspectivas mais atuais (...), os resultados que colhe em relação à qualidade dos textos que seus alunos escrevem deixam muito a desejar” (PASSARELLI, 2012, p.51). Em outras palavras, almejando o melhor resultado na produção textual, é preciso testar novas abordagens, com textos multimodais ou não. É imprescindível buscar técnicas eficazes para o discente atual, já que o mundo à sua volta não é o mesmo de tempos atrás. Dado isso, as palavras de Passarelli (2012, p.105) validam essa ideia: “Não é bem uma questão de se negar 180 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 180 18/06/2019, 17:47 o nosso passado. Trata-se mais propriamente de desfazer o equívoco de acreditar que as práticas que já deram certo têm de dar certo novamente. Os tempos são outros”. Cabe ressaltar, para concluir, que as temáticas trabalhadas com os textos multimodais são de extrema relevância para a formação de um adulto consciente e atuante na sociedade. As leituras podem semear no aluno reflexão, de modo que ele repense suas práticas e busque evoluir. Por fim, os textos multimodais per mitem ao jovem melhor domínio das ferramentas que estão ao seu alcance no cotidiano e interpretações mais aguçadas do verbal e do não verbal, do texto e da realidade. Ser professor é trocar com o aluno, mas, também, mostrar para ele outras possibilidades. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAMPOS, Augusto. Viva vaia. São Paulo: Duas Cidades, 1979. CHARAUDEAU, Patrick. Discurso político. São Paulo: Contexto, 2008. DIAS, André; FERES, Beatriz; ROSÁRIO, Ivo da Costa do. Apresentação. In: ______. (Org.) Leitura e formação do leitor: cinco estudos e um relato de experiência. Rio de Janeiro: 7 letras, 2016. FERES, Beatriz dos Santos. 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Por isso, as instituições de ensino precisam oferecer aos educandos atividades que façam uso das metodologias ativas para que estes se tornem o centro de todo o processo de ensino-aprendizagem, conforme apontam Bacich e Moran (2018, p.4). Para que isso aconteça, é necessário traçar objetivos claros para todo o processo educacional, pois estes influenciarão o modo de planejar, dirigir, controlar, acompanhar, executar, incentivar e direcionar os alunos. O protagonismo do aluno é algo que deveria ser natural em todas as escolas. Desde a pré-escola, a criança, em seu primeiro processo educacional, deveria ser apresentada a esse mundo amplo e maravilhoso da autonomia. Relevante também seria se aos pequenos aprendizes ainda fossem apresentados saberes básicos e gradativos de conhecimentos em vários campos distintos das ciências e das artes, abrindo, assim, um leque de possibilidades e direções as quais cada um, conforme vontade ou aptidão, escolhesse seguir. No entanto, na maior parte das vezes, não é isso o que acontece. Especificamente com relação às aulas de Literatura Brasileira, muitos alunos não demonstram interesse por elas, 184 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 184 18/06/2019, 17:47 pois as enxergam como algo muito distante do contexto social no qual estão inseridos. Partindo desse pressuposto, foi pensada uma maneira de criar mecanismos para que o aluno pudesse se interessar por Literatura. Criou-se, então, um projeto em que os alunos seriam convidados a formar uma comunidade literária virtual na qual personagens e pessoas reais pudessem dialogar. Conforme descreveremos adiante, o projeto foi muito produtivo. Durante a atividade, personagens de movimentos e épocas diferentes e alunos de séries distintas interagiram uns com outros. Assim, luz, aprendizado e entendimento chegaram à vida dos alunos, como que por simbiose. NECESSIDADES DA LITERATURA NA FORMAÇÃO PESSOAL E EDUCACIONAL DO ALUNO Vivemos em um mundo globalizado, no qual, num simples clicar de uma tecla, uma infinidade de possibilidades e respostas são apresentada aos jovens e crianças. Como, então, despertar o interesse dos alunos pela Literatura? Infelizmente, o dedilhar de páginas e páginas de um livro hoje já não é mais tão empolgante como era antes. No entanto, o ser humano ainda tem a necessidade de se alimentar de personagens, tramas e enredos. O homem é um ser capaz de mudar por meio do contato com a Literatura. Por isso, é concernente que o professor insira em sua prática pedagógica o trabalho com a Literatura de modo que este concilie e disponha de informações que venham a contribuir para o desenvolvimento do aluno, permitindo-lhe este ser capaz de pensar em diferentes soluções para os problemas que surgirem. Além disso, de acordo com Cosson (2014, p.27) o contato com textos literários é importante, pois, por meio da leitura, ocorre troca de sentidos entre leitor, autor e a sociedade em que ambos estão inseridos, proporcionando um compartilhamento de muitas visões de mundo. É preciso lembrar que cada aluno tem 185 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 185 18/06/2019, 17:47 seu tempo, cada um desfruta de sentimentos e percepções únicos e, por isso, vislumbrará a obra com um olhar próprio. Conforme já foi mencionado anteriormente, ao longo do Ensino Médio, os alunos tendem a não sentir interesse pelas aulas de Literatura. Cosson (2014, p.21) afirma que, na maioria das vezes, isso acontece porque as aulas são ministradas para contar a história dos movimentos literários e sobre seus autores. Além disso, como atividade, geralmente são apresentados textos em fragmentos e pede-se que o educando procure características das escolas literárias nestes. Como demonstra Cosson (2014, p.21), geralmente, No ensino médio, o ensino da literatura limita-se à literatura brasileira, ou melhor, à história da literatura brasileira, usualmente na sua forma mais indigente, quase como apenas uma cronologia literária, em uma sucessão dicotômica entre estilos de época, cânone e dados biográficos dos autores, acompanhada de rasgos teóricos sobre gêneros, formas fixas e alguma coisa de retórica em uma perspectiva para lá de tradicional. Os textos literários, quando comparecem, são fragmentos e servem prioritariamente para comprovar as características dos períodos literários antes nomeadas. Caso o professor resolva fugir a esse programa restrito e ensinar leitura literária, ele tende a recusar os textos canônicos por considerálos pouco atraentes, seja pelo hermetismo do vocabulário e da sintaxe, seja pela temática antiga que pouco interessaria os alunos de hoje. Com isso, o aluno acaba por considerar a Literatura como algo muito distante da realidade, porque não conseguiu ter experiências com textos que promovessem a fruição ou despertassem a reflexão. Por isso, infere-se que a prática pedagógica das aulas de Literatura precisa ser diferente e, ao mesmo tempo, atrativa para os estudantes. Uma forma é inserir o uso de novas plataformas tecnológicas nas aulas. Assim, as 186 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 186 18/06/2019, 17:47 trocas literárias podem se tornar ferramentas que auxiliem a construção da aprendizagem dos alunos. Como Dionisio e Vasconcelos (2013, p.66) afirmam, Aprender significa extrair informações de um texto ou de uma situação, ampliar o conhecimento, adquirir formas mais eficientes de pensar ou uma estrutura cognitiva, mas diferenciada, modificar comportamentos, estabelecer mais conexões sinápticas e redes neurais, criar mais e mais rotas de aprendizado, utilizar formas de raciocínio mais abstratas e/ou elaboradas, significando, portanto, alcançar e estabelecer um nível de funcionamento neuropsicológico cada vez mais sofisticado. Mas esse processo não é solitário, é fruto das contínuas e intermináveis trocas com o meio ambiente, sendo realizado a cada instante, a cada dia, a cada situação vivenciada. As salas de aula precisam ser campo fértil no qual ideias surgem. Assim, o professor, como mediador, deve apresentar novas possibilidades de acesso ao aprendizado, com o intuito de favorecer, estimular e capacitar os alunos, de modo que aprendam a andar sozinhos, agindo com autonomia. PERSONAGENS LITERÁRIAS INSERIDAS NO COTIDIANO MIDIÁTICO Como assegura Marcuschi (2005, p.20), o meio virtual oferece caminhos comunicativos que não são oferecidos defronte. O projeto “Comunidade literária virtual” foi desenvolvido em três turmas de Ensino Médio (do primeiro ao terceiro ano) no Instituto de Educação Pereira Batista (IEPB), escola privada localizada no bairro Pedra de Guaratiba, no Rio de Janeiro. 187 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 187 18/06/2019, 17:47 Primeiramente, foram apresentadas personagens literárias das grandes obras do cânone literário brasileiro para os alunos e pedimos que os mesmos pudessem escolher uma. O canal utilizado foi a rede social Facebook, com a qual a maioria tinha habilidade. Os alunos ficaram livres para fazer a atividade individualmente ou em dupla. Eles foram incentivados a ter contato com a obra original e também deveriam pesquisar sobre os personagens e procurar artigos acadêmicos que traçassem as características físicas e psicológicas de cada um. Os alunos deveriam criar o perfil para o personagem escolhido na rede social e, ao longo de um mês, fazer postagens como se fosse o próprio personagem escolhido. Ao longo da leitura, os alunos foram descobrindo o universo do livro e puderam, página a página, capítulo a capítulo, demonstrar o que sentiam ao ler o texto, mas em primeira pessoa. Foi pedido, então, que todas as personagens se adicionassem e trocassem informações, opiniões, conversassem ou até mesmo brigassem em rede. O resultado foi uma grande intertextualidade entre obras, autores e escolas literárias, formando assim uma comunidade virtual literária. Marcuschi (2005, p.22) define comunidade como uma coleção de membros que compartilham valores e práticas sociais. O mesmo autor contribui dizendo que a comunidade virtual (CV) “Seriam pessoas com interesses comuns ou que agem com interesses comuns num dado momento, formando uma rede de relações virtuais (ciberespaciais)” (2005, p.20-21). Como exemplo da comunidade criada, temos a Figura 1, na qual Peri dialoga com Ceci. Na narrativa “O Guarani”, de José de Alencar, Peri enfrenta inúmeros problemas para conseguir ficar com Ceci. Os alunos, ao entrar em contato com a obra, criaram a postagem a seguir, fazendo uso da linguagem informal, própria da rede social. 188 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 188 18/06/2019, 17:47 Figura 1: Peri dialogando com Cecília. Fonte: Facebook Os alunos também criaram eventos no Facebook e convidaram outras personagens, como por exemplo, o casamento de Flor e Teodoro do romance “Dona Flor e seus dois maridos”, de Jorge amado, ilustrado na Figura 3. A Figura 2 mostra a lista de convidados para o evento. Na obra, após a morte de Vadinho, Flor casa-se com o farmacêutico Teodoro. Quando os eventos eram criados no Facebook, os alunos os contextualizavam com detalhes da narrativa e ainda convidavam outras personagens para participar da festa. Entre outros convidados, podemos ver que a lista tem Iracema (Romantismo), Capitu (Realismo); Emília (Pré-Modernismo) e Nacib (Modernismo). Criou-se uma relação intertextual e atemporal de diálogo entre os mais variados momentos da Literatura Brasileira. Como o projeto ocorreu com três turmas, os alunos não sabiam quem estava por trás de cada personagem, 189 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 189 18/06/2019, 17:47 o que aguçou ainda mais a curiosidade e a vontade de interagir na rede social. Figura 2: o convite do casamento. Fonte: Facebook Figura 3: convidados. Fonte: Facebook 190 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 190 18/06/2019, 17:47 O livro “Iracema”, de José de Alencar, conta a história de amor entre uma índia e um português. No primeiro encontro do casal, ela acaba dando uma flechada nele. Os alunos não só ironizaram o fato como contextualizaram a atual situação política que o país vive. Martim precisou recorrer ao Sistema Único de Saúde (SUS) para ser atendido e a bela índia o acompanhou. Figura 4: Martim hospitalizado. Fonte: Facebook Os alunos, além de postarem sobre as personagens, fizeram críticas baseadas na realidade brasileira. Lipman (1995, p.83) afirma que a melhoria da educação está diretamente ligada ao pensamento crítico “porque aumenta a quantidade e a qualidade do significado que os alunos retiram daquilo que leem e percebem, e que expressam através daquilo que escrevem e dizem”. O educando, portanto, precisa analisar os diferentes tipos de discurso para refutar sua visão de realidade com distintas opiniões e conceitos como afirmam os Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1998, p.33): No processo de ensino-aprendizagem dos diferentes ciclos do ensino fundamental, espera-se que o aluno 191 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 191 18/06/2019, 17:47 amplie o domínio ativo do discurso nas diversas situações comunicativas, sobretudo nas instâncias públicas de uso da linguagem, de modo a possibilitar sua inserção efetiva no mundo da escrita, ampliando suas possibilidades de participação social no exercício da cidadania. A atividade ganhou uma enorme proporção na escola, incentivando a leitura de inúmeras obras e debates sobre as atitudes das personagens, mesmo com aqueles que não estavam participando diretamente do projeto. Cosson (2014, p.113) aponta que a leitura feita pelo educando é a essência do processo de ensino e aprendizagem e que a avaliação deve preocupar-se em envolver o educando com a leitura e fazer com que compartilhe as impressões e percepções da obra, colaborando para a comunidade de leitores. Muitos alunos envolveram-se demasiadamente com as narrativas e interagiram por mais de um mês. À medida que liam os capítulos, postavam fazendo uso de uma linguagem informal própria para as redes sociais. A repercussão na unidade escolar foi imensa, atingindo professores, alunos, coordenadores e funcionários, ocorrendo o que Antônio Candido (1972, p. 4) afirma: “as camadas profundas da nossa personalidade podem sofrer um bombardeio poderoso das obras que lemos e que atuam de maneira que não podemos avaliar.”. CONSIDERAÇÕES FINAIS Cada vez mais fica evidente que não há um caminho certo para abordar ou tentar melhorar o processo educacional de nossos alunos. Os rios chegam ao mar, mas seus leitos correm em lugares e direções diferentes. No decorrer do projeto, pudemos observar que todos foram agraciados e beneficiados, mas observamos também que alguns souberam tirar um melhor 192 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 192 18/06/2019, 17:47 proveito da atividade. O banquete foi servido a todos, mas nem todos saíram saciados deste. De uma forma geral, o projeto superou expectativas. Não há recompensa no mundo que pague um professor pela satisfação em observar aquele aluno que afirmava não gostar de ler, sentado no recreio escolar apreciando uma obra literária. E, o melhor, ver o celular que antes não saía de suas mãos, agora ao seu lado apenas como um complemento acadêmico e, naquele momento, sendo uma ferramenta pedagógica. O projeto foi desenvolvido a partir de uma necessidade observada, os conceitos básicos foram aqui apresentados passo a passo e cada etapa teve sua devida consideração e preparo. Utilizamos contribuições preciosas de autores e de outras experiências e, a partir daí, criamos, modificamos e aperfeiçoamos as mesmas, levando em consideração todas as necessidades dos educandos. Nessa atividade, foi proporcionada uma nova experiência aos nossos alunos em um mundo já tão conhecido e amado por eles, as redes sociais. E, assim, deixamos que caminhassem, como a mãe que, nos primeiros passos, segura com todo cuidado os pequenos braços de seu bebê no aprendizado; seguramos, apoiamos e ao lado ficamos observando, aplaudindo e torcendo, sempre. Saímos deste projeto não apenas melhores professores e sim melhores pessoas, pelo simples fato de termos visto resultados concretos e possíveis de mudança de perspectiva para cada aluno. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BACICH, L.; MORAN. J. (Org.). Metodologias ativas para uma educação inovadora: uma abordagem téorico-prática. Porto Alegre: Penso, 2018. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998. 193 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 193 18/06/2019, 17:47 CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. São Paulo: Ciência e Cultura, 1972. COSSON, Rildo. Letramento Literário:Teoria e Prática. São Paulo: Contexto, 2014. DIONISIO, Angela Paiva;VASCONCELOS, Leila Janot. Multimodalidade, capacidade de aprendizagem e leitura. In: BUNZEN, Clecio; MENDONÇA, Márcia (Orgs.). Múltiplas linguagens para o Ensino Médio. São Paulo: Parábola Editorial, 2013. LIPMAN, M. O pensar na educação. Petrópolis: Vozes, 1995. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais emergentes no contexto da tecnologia digital. In: MARCUSCHI, L. A.; XAVIER, A. C. (Org.). Hipertextos e gêneros digitais. 2. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. 194 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 194 18/06/2019, 17:47 ESCRITA LITERÁRIA: A DESCOBERTA DO “EU” Ana Cristina Bemfica e Silva (PRD-CPII) INTRODUÇÃO A escola deve ser um espaço de interação entre saberes multidisciplinares e multiculturais, onde devem estar presentes os diversos participantes do processo educacional. Diante desse cenário, identifica-se o aluno como ser pensante, participativo, dinâmico, dotado de sabedorias e habilidades. Seu modelo de vida nos dias de hoje tem sido ficar conectado às redes sociais, compartilhando suas opiniões, dialogando com seus pares, incessantemente, sobre os acontecimentos sociais, culturais, históricos, educacionais e financeiros que viabilizem sua existência como cidadão. Por isso, ao observar a juventude pós-moderna, do agir-falar e do pensar-escrever, percebe-se que o fazer pedagógico necessita ser reinventado em relação à dinamicidade das ações educativas. Assim, tem sido cada vez mais importante oportunizar a busca pela qualidade e eficácia do processo de aprendizagem em consonância com as habilidades inerentes aos jovens e adolescentes em sua “multiculturalidade” (MOREIRA e CANDAU, 2013, p. 20). Nesse ambiente, será possível construir e alicerçar os diferentes conhecimentos em prol da transformação do bem comum. A visão sociointeracionista, defendida e disseminada por 195 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 195 18/06/2019, 17:47 alguns autores aponta que se deve “perceber com maior clareza a língua como fenômeno interativo e dinâmico, voltado para as atividades dialógicas que marcam as características mais salientes da fala, tais como estratégias de formulação em tempo real” (MARCUSCHI, 2010, p. 33). Dessa forma, a aprendizagem pode se tornar mais significativa para o aluno, fazendo-o entender, gradativamente, que a língua, nas suas diferentes variações, transforma-se a cada dia. Diante dessa percepção, presencia-se, nas salas de aula, nos tempos atuais, uma necessidade maior de motivar e incentivar os alunos para o melhor desempenho de suas produções textuais, com a intenção de provocar um olhar diferenciado do professor para “o fazer natural” dos alunos, tornando-se imprescindível sua função humanizada e formadora. Sendo assim, o presente trabalho tem por objetivo motivar e colaborar para a reflexão dos docentes sobre a escrita natural dos discentes, através de leitura de textos multimodais, com ênfase em imagens e letras de músicas. Acredita-se, portanto, que esta proposta de atividade possibilite ao professor a realização de um trabalho reflexivo e, aos alunos, o desenvolvimento de suas habilidades interpretativas por meio do contato com diferentes gêneros textuais tais como: tirinhas, histórias em quadrinhos, charges e textos publicitários. Desse modo, além de ressignificar sua capacidade leitora, o trabalho se propõe a levá-los a uma posterior elaboração de narrativas, com a utilização de múltiplas linguagens. MULTILETRAMENTOS: PROMOVENDO A INCLUSÃO SOCIAL Subestimar e julgar as habilidades e competências discentes são atitudes constantes de alguns profissionais da educação que mantêm contato direto com alunos. Atitudes discriminatórias, descrença e avaliações subjetivas são muito comuns no ambiente 196 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 196 18/06/2019, 17:47 escolar onde, muitas vezes, existe a exclusão social. De encontro a essa postura, Arroyo (2007, p.798-99) afirma que Os dados mostram que as crianças populares foram tratadas como menos capazes, com problemas de aprendizagem. A grande maioria dos milhares de alunos reprovados por suposta incapacidade cognitiva foi e continua sendo de crianças e adolescentes populares, pobres e negros. Os persistentes dados de reprovação e catalogação dessas infâncias como menos capazes, como lentos, desacelerados mentais e com problemas de aprendizagem mostram que não superamos a cultura política e pedagógica que os considerava desiguais e menos capazes. [...] Quando julgamos a infânciaadolescência populares, reproduzimos os julgamentos sobre o povo, tão persistentes em nossa cultura política. A caracterização do “pré”-conceito estabelecido pela camada elitista da sociedade revela discursos cada vez mais descontextualizados, que apontam para a descrença nas possibilidades educativas que podem surgir por meio da interação com nossos alunos. Os termos com os quais lhes fazem referências, tais como “menores delinquentes, infratores”, excluem-nos de qualquer tipo de participação na sociedade, colocando-os à margem de todo o processo educacional. Entende-se, portanto, que a perspectiva de cidadania desenvolvida pela escola atual merece um olhar mais atencioso para os propósitos educacionais, pois, de acordo com Vasconcellos, (1996, p. 247): Se o professor não acredita, se não vê o sentido do que faz, se diante daquela pergunta do aluno: “professor, estudar para quê?”, não consegue dar uma resposta, se o próprio professor não sabe o que está 197 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 197 18/06/2019, 17:47 fazendo ali, todo o resto, toda a elucubração sobre a necessidade de limites fica comprometida. [...] Então, o primeiro ponto é o resgate do sentido da tarefa educativa: compreender o conhecimento como instrumento de transformação. Resgatar o sentido do conhecimento. Conhecer para quê? Para poder compreender o mundo em que vivemos, para poder usufruir dele, mas sobre tudo para poder transformálo! Diante desse enfoque, os novos paradigmas educacionais, legitimados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), acenam para a necessidade de o professor, como mediador do conhecimento, colocar-se em uma posição de reconhecimento da realidade do aluno, dando a ele subsídios necessários para interpretar e, se for o caso, superar essa realidade de forma autônoma e coerente. (COIMBRA e BERALDI, 2017, p.115) Acredita-se, portanto, na relação participativa, para que se desmitifiquem os tabus e paradigmas pré-estabelecidos pela sociedade. A escola, por sua vez, deve ser o lugar de inclusão estabelecido pelo profissionalismo e respeito mútuo. Pois, o professor que desrespeita as palavras do educando, o seu gosto estético, a sua prosódia, a sua linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia; o professor que ironiza o aluno, que o minimiza, que manda que “ele se ponha em seu lugar” ao mais tênue sinal de rebeldia legítima, [...] transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa sociedade. (FREIRE 2014, p. 31-32/58-59) 198 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 198 18/06/2019, 17:47 Nesse sentido, a pedagogia dos multiletramentos e das multilinguagens defendida por Rojo (2013) esclarece paulatinamente que um movimento, iniciado em 1996 nos Estados Unidos, através de um manifesto de pesquisadores e professores, é hoje uma proposta edificante, que pode adentrar nossas escolas, ao tentar integralizar as mídias de massa às mídias digitais. Nesse sentido, os multiletramentos pode desempenhar forte influência sobre a vida dos alunos em que se observa: A cultura local que esse aluno traz para sala de aula que deve ser, não só valorizada, mas incorporada no tratamento dos objetos de ensino. Quer dizer, isso também é uma coisa a refletir, coisas que ele vê na mídia de massa, o que ele faz na internet e tal é para ser trazido para colocar em diálogo. Não é que a escola deva abandonar seu patrimônio também, com aquilo que a escola tem de bom a trazer para enriquecer isso, mas visando o que eles chamam de um projeto de futuro, de design de futuro. Ou seja, pensando na questão da formação para o trabalho, para a cidadania, para a vida pessoal em fim. Então, portanto, funcionar, primeiro colaborativamente, segundo “protagonistamente”, implicaria em uma pedagogia de projetos e não em uma pedagogia de conteúdos. (ROJO, 2013) Tendo em vista a grande expectativa sobre essa nova vertente pedagógica, muitos ainda não acreditam nessa proposta e preferem aderir a modelos tradicionalmente enraizados na cultura escolar como forma de garantir o padrão de qualidade educativa. No entanto, sabemos que os moldes sociais em que a juventude desta geração está inserida requerem uma educação mais dinâmica, formativa e informativa. Dessa forma, é primordial que a ideia central da pedagogia dos Multiletramentos seja “formar os professores para que eles consigam trabalhar de outra maneira, saindo da lógica do século XIX, da educação 199 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 199 18/06/2019, 17:47 transmissiva, do patrimônio que eles têm a transmitir e etc. e pensem um pouco no funcionamento na vida social contemporânea” (ROJO, 2013). MULTICULTURALISMO: PERSPECTIVAS EMANCIPATÓRIAS Nota-se, devido às características da contemporaneidade, que as funções exercidas pelos profissionais das escolas têm exigido novas configurações. Esse novo procedimento implica agregar novos conceitos e assumir novas posturas, mais dialógicas e articuladas, construindo um Projeto Político Pedagógico que contemple princípios e ações compartilhadas na direção de uma educação integrada de responsabilidade tanto da escola como da comunidade. Tal perspectiva pedagógica tem sido chamada por alguns teóricos de “educação intersetorial e intercultural”. Nas palavras de Moreira e Candau (2013, p. 23), “a perspectiva intercultural (...) quer promover uma educação para o reconhecimento do “outro”, para o diálogo entre os grupos sociais e culturais”. Esse pode ser um caminho que fomente a luta contra os processos de exclusão social por meio dos diversos movimentos organizados, que reconheçam o sentido e a identidade cultural de cada grupo. Tal modelo de educação deve ser construído através do diálogo, em que a negociação dos conflitos existentes represente um desafio para a promoção de grandes realizações no espaço escolar. Sob essa ótica, a escola, enquanto instância de formação integral e de exercício da cidadania, deve ser lugar de aprendizagem e enriquecimento cultural. Segundo Sacristán (1999, p. 30), “a educação no seu sentido mais genuíno, é ação de pessoas, entre pessoas e sobre pessoas.” Desse modo, devem ser considerados aspectos de natureza social, político e cultural, em que se encontram envolvidos os profissionais da educação, gestores e, principalmente, os alunos. Esses indivíduos podem 200 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 200 18/06/2019, 17:47 ser considerados os agentes socializadores do conhecimento adquirido. Diante desse conhecimento, “a ação docente é singular, reflexo de simbologias, representações, fundamentos e experiências acumuladas por cada sujeito em seu processo de construção pessoal e profissional” (SOUSA e PINHO, 2017, p. 100). Essa mudança de trabalho docente pode, assim, promover o aparecimento de uma postura crítica, reflexiva, criativa e transformadora nos alunos, tornando-os capazes de contribuir com suas ações, com vistas à reprodução dos saberes. Isso vai permitir, ainda, avançar no planejamento, na execução e avaliação das práticas pedagógicas, fazendo com que estas sejam cada vez mais significativas e relevantes no contexto escolar em que atuamos. Partindo desse pressuposto, pode-se dizer que a ideia de multiculturalismo está embasada na abordagem teórica do currículo escolar. Cunha (2004), por exemplo, fala sobre a concepção e formalização do termo currículo escolar a partir de estudo aprofundado da obra de Michael Apple. De acordo com Cunha, a definição de currículo para Apple pressupõe a seleção do conhecimento assumido e planejado para ser vivenciado pelos alunos, sendo considerado, assim, legítimo pela escola. Nesse caso, a escola cumpre uma função ideológica ao selecionar, organizar e distribuir diferentes conhecimentos, preparando diferentes pessoas para desempenharem papeis sociais e econômicos em uma sociedade heterogênea e explorada ao longo de seu processo histórico-social-cultural. Moreira e Candau (2013, p. 158) sugerem ainda que a complexidade do panorama sociocultural vivido atualmente pelas escolas seja questionada, com vistas à promoção de mudanças em suas práticas pedagógicas e à ruptura da centralização do poder dominante das hierarquizações e dos atos de opressão, preconceito e discriminação. Desse modo, será possível favorecer a construção de um contexto socioeducativo democrático em que “as versões emancipatórias do 201 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 201 18/06/2019, 17:47 multiculturalismo baseiem-se no reconhecimento da diferença e do direito à diferença e da coexistência ou construção de uma vida em comum além de diferenças de vários tipos” (SANTOS, 2003 apud MOREIRA & CANDAU, 2013, p.157). Nesse enfoque, pode-se afirmar que A problemática das relações entre escola e cultura é inerente a todo processo educativo. Não há educação que não esteja imersa na cultura da humanidade e, particularmente, do momento histórico em que se situa. A reflexão sobre esta temática é co-extensiva ao próprio desenvolvimento do pensamento pedagógico. Não se pode conceber uma experiência pedagógica “desculturizada”, em que a referência cultural não esteja presente. (MOREIRA e CANDAU, 2003, p.159) A ênfase feita pelos autores beneficia a aprendizagem e nos esclarece para uma discussão e um posicionamento na interpretação do currículo escolar centrado no multiculturalismo, pois a escola destinada ao espaço de construção coletiva, aberta às críticas culturais, exige que se prevaleçam novas práticas pedagógicas, que requeiram do professor nova postura, novos saberes, novos objetivos, novos conteúdos, novas estratégias, enfim, novas formas de avaliar e conduzir o trabalho educacional. É necessário, também, investir em sua formação continuada para a reformulação do currículo da escola, com base na necessidade do reconhecimento das identidades das classes comunitárias. Outro elemento a ser repensado e valorizado é a participação juvenil na dimensão escolar. Esta é uma forma de minimizar os conflitos existentes e de construir sua integração, encontrando em si mesmos os princípios da motivação e os sentidos atribuídos à sua experiência escolar. Tal postura implica o repensar da estrutura de poder, socializando a busca pela 202 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 202 18/06/2019, 17:47 qualidade do ensino através de uma gestão da sala de aula participativa e democrática, de natureza descentralizadora, como forma de mediação entre o conhecimento e a ação e como intervenção planejada pelos sujeitos envolvidos. A perspectiva de valorização da cultura juvenil, dentro da escola, pode transformar o espaço público em espaços de encontro, de estímulo e de ampliação das potencialidades humanas dos jovens. Além disso, possibilita, de fato, a cidadania juvenil, contribuindo para o acesso e para a permanência do aluno no ambiente escolar com qualidade social. PRODUÇÃO TEXTUAL: A ESCRITA RESSIGNIFICADA O trabalho com o letramento em suas diversas formas, além da adequação da fala e da escrita às diferentes situações de uso, tem sido o foco das discussões a respeito das aulas de Língua Portuguesa. “Estas dicotomias são sobretudo fruto de uma observação fundada na natureza das condições empíricas de uso da língua (envolvendo planejamento e verbalização)” (MARCUSCHI, 2008, p.28), pois, na articulação do ensino da língua materna, deve-se levar em conta a capacidade comunicativa que o aluno já possui para que a prática pedagógica seja significativa. Conforme afirma Marcuschi (2008, p. 55), O que a escola pode oferecer ao aluno? Considerando que a capacidade comunicativa já se acha muito bem desenvolvida no aluno quando ele chega à escola, o tipo de atividade da escola não deve ser ensinar o que ele já sabe. Nem tolher as capacidades já instaladas de interação. Assim, a resposta pode ser dada na medida em que se postula que a escola não ensina língua, mas usos da língua e formas não corriqueiras de comunicação escrita e oral. O núcleo do trabalho será com língua no contexto da compreensão, produção e analise textual. 203 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 203 18/06/2019, 17:47 Na percepção sociointeracionista, a comunicação linguística e a produção discursiva assumem grande relevância no trabalho escolar: Hoje não se fala mais em gramática de texto. [...] Também não é possível dar um conjunto de regras formais que possam gerar textos adequados. [...] Trata-se de um estudo que se privilegia a variada produção e suas contextualizações na vida diária. (MARCUSCHI, 2008, p. 73-76). Nessa perspectiva, a produção textual do aluno ganha destaque a partir da valorização da função social da língua, focando no sentido do que ele quer comunicar ou escrever para o seu interlocutor ou leitor, partindo da infinidade de gêneros textuais desenvolvidos e utilizados em seu dia a dia. Outros aspectos importantes são as formas de uso da língua, que devem estar adequadas à situação, a reestruturação da escrita. Com o objetivo de desenvolver um trabalho que valorize a cultura do aluno, tendo como suporte teórico as ideias de multiletramentos e multiculturalismo citadas anteriormente, optamos por desenvolver um trabalho voltado para a produção de textos literários, que apresentasse outras linguagens além da verbal. O trabalho com textos multimodais agrega valor ao projeto de produção textual, pois dá sentido às múltiplas formas interpretativas que cada discente estabelece, de acordo com a visão de mundo do seu contexto social. Com relação ao texto literário, conforme afirma Cosson (2018, p. 17), na leitura e na escritura de tais textos, “encontramos o senso de nós mesmos e da comunidade a que pertencemos. A literatura nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por nós mesmos. Isso se dá porque a literatura é uma experiência a ser realizada”. A literatura rompe barreiras nos limites do tempo e do espaço; provoca processos formativos de atitudes interpretativas que formulam hipóteses ficcionais ou verídicas; torna-se uma aliança 204 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 204 18/06/2019, 17:47 progressiva para futuras conquistas educativas e expressa o sentido da realidade. Assim, A literatura tem o poder de se metamorfosear em todas as formas discursivas. Ela também tem muitos artifícios e guarda em si o passado, o presente e o futuro da palavra. [...] É mais que um exercício a ser reelaborado, ela é a incorporação do outro em mim sem renuncia da minha própria identidade. A experiência literária não só nos permite saber da vida por da experiência do outro, como também vivenciar essa experiência. Ou seja, a ficção feita da palavra na narrativa e a palavra feita matéria na poesia são processos formativos tanto da linguagem quanto do leitor e do escritor. Uma e outra permitem que se diga o que não sabemos expressar e nos falam de maneira mais precisa o que queremos dizer ao mundo, assim como nos dizer a nós mesmos. (COSSON, 2018, p. 17). Com vistas a uma educação humanizada e formadora, conforme discutido anteriormente, foi elaborado o projeto “a descoberta do “EU”, com alunos do 2º ano do Ensino Médio da escola C.E. Presidente Antônio Carlos, de turno noturno, no Rio de Janeiro. A partir da observação do desempenho dos alunos durante as aulas de Português no início do 3º bimestre, período em que assumi a turma, foi evidenciado que muitos alunos não possuíam gosto pela leitura e principalmente motivação e interesse para a produção textual. Diante dessa situação, percebi que não poderia dar continuidade às exigências curriculares “como manda o figurino” e daí senti grande necessidade de ressignificar minha ação pedagógica. O ensino da gramática normativa, no estilo tradicional, não fazia sentido para aos alunos e muito menos exigir que fizessem resumos, resenhas e debates de textos literários uma vez que não possuíam esse contato. 205 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 205 18/06/2019, 17:47 Mediante a essa visão, foi promovida uma mesa redonda, em que aqueles que se sentissem à vontade poderiam falar sobre suas experiências de vida. Fizemos uma roda de conversa na qual houve troca de vivências pessoais e acadêmicas, uma vez que todos eles apontaram histórias de luta contra preconceito e a discriminação, a dificuldade de dar continuidade aos estudos por fatores sociais e econômicos e, principalmente, o medo e a limitação para a escrita por terem sido reprovados ano após ano por esse fato. Essa atividade levou os discentes a sentirem-se mais confortáveis e terem mais confiança nas aulas e na ação pedagógica do professor porque, além de contribuir para o autoconhecimento, os alunos passaram a acreditar que estudar a disciplina de língua portuguesa não era tão ruim assim como sempre acharam, pois agora havia uma proposta humanizada em que o professor sabia reconhecer e valorizar o que cada um trazia consigo na sua trajetória de vida. Assim, após essa primeira ação, já na aula seguinte, fizemos uma retrospectiva, diante da linha do tempo, em que vimos a trajetória das escolas literárias, seus contextos históricos, políticos e sociais e os principais artistas da cultura brasileira. Cumprindo uma exigência do currículo mínimo, demos ênfase ao Romantismo brasileiro. Vale ressaltar que não fizemos um estudo aprofundado do mesmo pelo fato de os alunos ainda não se sentirem motivados para a leitura e apreciação dos cânones literários e não possuírem prática para trabalhar com livros didáticos e paradidáticos. As atividades realizadas a partir desse contexto foram desenvolvidas pela ação prática com recortes de imagens, em que os alunos escolheriam uma imagem e escrevessem qualquer coisa sobre elas, sem se limitarem em quantidades de linhas e às regras gramaticais e normativas da língua. Houve cantoria de composições musicais estabelecendo um breve debate sobre a interpretação das mesmas nos contextos atuais. Em seguida, eles foram convidados a produzir narrativas poéticas, poemas, 206 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 206 18/06/2019, 17:47 charges e/ou tirinhas, como forma dar representatividade à sua interpretação, como pode ser observado a seguir: Figura 1: Infância. Fonte: Arquivo pessoal Os trabalhos realizados na Figura 1 foram confeccionados de acordo com a proposta verbo-visual, em que a imagem pudesse representar uma reflexão política e histórica sobre sua visão do contexto social. A partir da escolha da imagem, os alunos fizeram uma breve explanação sobre como as infâncias estão se perdendo atualmente. O grupo pontuou que, com o avanço das tecnologias, as crianças não têm contato umas com as outras e não sabem mais brincar com as brincadeiras que as crianças de outrora brincavam, como: passar anel, pular corda, 207 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 207 18/06/2019, 17:47 pular elástico, pique cola, pique pega, queimada entre outras. Com isso, estão precocemente se tornando adultos dependentes e depressivos. Figura 2: Futebol. Fonte: Arquivo pessoal Na figura 2, os alunos teceram comentários sobre a realização de um grande sonho de meninos em relação ao futebol. O grupo por unanimidade expôs que essa é uma realidade atribuída aos meninos da sua comunidade. Por possuírem dificuldades financeiras, estes criam muitas expectativas em melhorar de vida jogando futebol, pois acreditam serem vistos e contratados pelos empresários locais para jogarem nos clubes da 2ª divisão. Inclusive, alguns membros do grupo, passaram a 208 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 208 18/06/2019, 17:47 infância e parte da adolescência mergulhados na realização desse grande sonho e até pouco tempo estavam matriculados na escolinha de futebol e quase não se dedicavam aos estudos. Eles idealizam a futebol como uma porta de entrada para o mundo da fama e reconhecimento profissional. Essa atividade foi realizada após uma breve explanação sobre a relevância do contexto social atribuído à sua pesquisa visual. Após um breve debate, os alunos foram solicitados a transformar a temática visual em narrativa poética, dando sentido ao que foi articulado na proposta preliminar. Assim, surgiram as produções belíssimas vistas nas figuras 1 e 2 confeccionadas, naturalmente, a partir da visão de mundo que cada um absorveu durante sua vida. Outros trabalhos tão representativos como os das figuras 1 e 2 foram realizados. Não foi preciso ditar regras gramaticais, pois os mesmos, ao sentirem dúvidas sobre a escrita na elaboração da frase e período sintático, faziam as pesquisas comigo ou sozinhos na internet através do celular. Figura 3: Produções dos alunos 2. Fonte: Arquivo pessoal Na figura 3, a produção foi realizada a partir da letra da musica “Cachimbo da Paz” (1997) do cantor Gabriel Pensador. 209 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 209 18/06/2019, 17:47 Muitos sabiam o refrão, mas nunca haviam lido a letra e nem tinham noção sobre a representatividade da música como crítica social. Após cantarmos a música, ocorreu a interpretação individual por meio da reflexão a respeito da letra da música, dando ênfase à releitura do contexto social atual e formou-se um breve debate. Posteriormente, foi sugerida a elaboração de uma narrativa literária em prosa ou em versos. Nessa atividade, sugiram também algumas charges. O resultado foi muito satisfatório. A produção dos alunos me comoveu e me deixou enaltecida ao observar a habilidade e desenvoltura deles na confecção dos poemas. Isso só reforça a ideia de que precisamos ressignificar nossas aulas e adequá-las à realidade do nosso aluno, para que ele tenha um verdadeiro desenvolvimento e crescimento pessoal. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante das atividades realizadas com os alunos, foi possível constatar suas diferentes habilidades para criar, recriar, inferir e dialogar. Ao observar as criações, compreende-se que o trabalho realizado sob a perspectiva interacionista oportunizou as diferentes habilidades implícitas destacadas pelo grau de conhecimento de mundo que cada aluno traz em si. O trabalho desenvolvido foi de grande relevância porque, em meados do 4º bimestre, os alunos não questionavam mais quando era solicitada a produção textual e não reclamavam ou reperguntavam pela quantidade de linhas que tinham que escrever. Se deixasse, eles escreveriam por horas e horas me pedindo para agregar à aula o tempo do próximo professor. Eles não faziam mais as feições de descontentamento com relação ao conteúdo ou temática abordada. Pude notar também que muitos se identificaram com a escrita poética e se revelaram pequenos autores poéticos. Buscaram, por si só, livros de gêneros variados para leituras em casa no 210 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 210 18/06/2019, 17:47 momento de lazer e outros decidiram estudar músicas e compositores, por já tocarem algum instrumento musical. Essa espontaneidade mudou minha perspectiva e foi ressignificando a minha prática docente. Enfim, acreditamos que a prática pedagógica, articulada ao diálogo, em seu contexto histórico e social, valoriza a troca de experiências. Esta deve estar aliada ao respeito mútuo como forma de crescimento pessoal e acadêmico, atribuindo sentidos significativos no processo de aprendizagem e promovendo o “fazer natural” dos alunos, de forma lúdica e dinâmica, tornando possível efetivar a função humanizada e formadora da escola. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARROYO, Miguel G. Quando a violência infanto-juvenil Indaga a pedagogia. Educ. Soc., Campinas, vol. 28, n. 100 Especial, p. 787-807, out. 2007. BRASIL. Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei Nº 9.394/96. 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Disciplina: construção da disciplina consciente e interativa em sala de aula e na escola. 7ªed. São Paulo: Libertad, 1996. 212 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 212 18/06/2019, 17:47 REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO DE PROFESSORES E O ENSINO DE PORTUGUÊS COMO LÍNGUA ADICIONAL E/OU ESTRANGEIRA Bruno Humberto da Silva (UFRJ/PROFLETRAS) Celso Albuquerque Lima (UFRJ/PROFLETRAS) INTRODUÇÃO A começar pela perspectiva da heterogeneidade inerente à língua, devemos tomar como premissa nuclear que o Brasil não é um país monolíngue, a despeito de ter instituída a língua portuguesa como idioma oficial. Atualmente são falados cerca de 300 idiomas no Brasil: as 274 línguas indígenas, as línguas faladas pelas comunidades de imigrantes, as línguas faladas em lugares de fronteira e os muitos usuários de Libras (MOITA LOPES, 2013, p. 27). Com isso, o plurilinguismo não é somente observado nos diferentes idiomas (guarani, araweté, munduruku, português, italiano etc), mas se manifesta, sobretudo, no âmbito de uma mesma língua; particularmente, nesta investigação, no âmbito da língua portuguesa como língua adicional, dadas essas informações. De outra parte, no tocante ao processo educacional, reconhecemos que toda metodologia de ensino reflete as concepções construídas ao longo da formação do professor; em outros termos, começa naquilo que acreditamos que seja (no caso da disciplina língua portuguesa) língua, gramática, norma e suas políticas linguísticas. Muitas dessas informações sequer são discutidas e aprofundadas nos cursos de Letras com 213 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 213 18/06/2019, 17:47 a atenção e a problematização necessárias, o que – diretamente – consolida a dificuldade metodológica dos docentes no trato da língua portuguesa como língua adicional e/ou estrangeira nas salas de aula. Em decorrência disso, esta análise propõe breve pesquisa e reflexões sobre a questão do ensino de língua portuguesa como língua adicional (doravante LA) e/ou estrangeira (doravante LE). Outrossim, consiste na observação de dados, com base em critérios relevantes ao tema, como: conceitos sobre língua adicional; experiência e contato do professor com alunos estrangeiros, indígenas e/ou deficientes auditivos e/ou visuais; metodologias e discussões sobre trabalhos interligados à disciplina língua portuguesa como LA e/ou LE. Com base nessa discussão, então, quanto ao aspecto contextual da aplicação e da observação dos dados, foi realizada uma breve investigação entre professores de língua portuguesa de diferentes escolas públicas do município do Rio de Janeiro, dos níveis fundamental II e médio. Cada profissional preencheu o questionário com nove (9) questões, com cinco (5) alternativas, acerca do tema (cf. anexos), em formato do aplicativo Google Docs, as quais compõem, como taxa de amostragem, o repositório para as discussões. Posto isso, finalmente, cabe destacar que os conceitos debatidos aqui não são de simples definição, todavia as discussões deste trabalho, teoricamente fundamentadas, são pertinentes a três eixos de abordagem: (a) à constante necessidade de reformulação metodológica; (b) ao confronto necessário com as crenças infundadas do senso comum acerca dessas terminologias; e (c) aos posicionamentos teóricometodológicos sobre a formação de professores em relação ao ensino de língua portuguesa como estrangeira e/ou adicional, com base no plurilinguismo no Brasil. 214 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 214 18/06/2019, 17:47 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O ENSINO DE PORTUGUÊS COMO LA LE: UMA NECESSIDADE E/OU A área de ensino de português como LA e/ou LE tem crescido exponencialmente nos últimos anos, tendo como justificativa, entre outras, o crescimento econômico que o país vivenciou na década passada. Esse movimento político e econômico levou o Brasil a alcançar reconhecimento internacional, fazendo com que crescesse o interesse da população mundial em nossa língua. Ademais, as políticas públicas voltadas para a internacionalização das nossas universidades e as parcerias firmadas entre instituições de ensino para o intercâmbio de estudantes aumentaram o número de estrangeiros que vêm estudar no Brasil e precisam, portanto, aprender a língua portuguesa. Soma-se a isso, ainda, os recentes fluxos migratórios de países vizinhos, que estão vivenciando um momento de crise política e econômica profunda, para o Brasil. De acordo com os estudos de Nóbrega (2016) e de Oliveira (2013), destacamos, também, a expansão da língua portuguesa para além do imaginado pelo senso comum. Atualmente, há cursos de língua portuguesa em diversas nações, fora do espectro daquelas que compõem a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP): Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Em populações africanas, a título de exemplo, o português dialoga com mais de 300 línguas (NÓBREGA, 2016). Segundo a autora, além desses países, outros dois também instituíram o português como língua oficial: Guiné Equatorial, na África Ocidental, e Macau, na China. Em outros termos, dez países já têm a língua portuguesa reconhecida pelo Estado e, portanto, utilizam-na em documentos oficiais, em escolas e em toda a mídia. Entretanto, o alcance da língua portuguesa não tem se limitado ao espaço territorial desses países. 215 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 215 18/06/2019, 17:47 Há cursos de língua portuguesa em vários locais do mundo, sendo praticamente impossível contabilizálos em sua totalidade, pois eles são realizados em escolas de idioma ou em aulas particulares, presenciais ou a distância. Para efeito de delimitação, venho pesquisando esse universo internacional de cursos de português especificamente em instituições de ensino superior (IES). São cursos regulares oferecidos no programa de várias escolas, por exemplo: nas universidades de Yale, Princeton, Cornell, Brown, Georgetown (EUA), Oxford e Cambridge (Inglaterra), Estocolmo (Suécia), Aarhus (Dinamarca), Oslo (Noruega), Salamanca (Espanha) etc. Na América Latina, o Mercosul, cujo tratado foi assinado em 1991, fortaleceu o ensino de língua portuguesa. (NÓBREGA, 2016, p. 419) Longe de esgotar esse universo, esta pesquisa se interessa por refletir sobre a falta de ações governamentais e institucionais de internacionalização da língua portuguesa do Brasil. Internacionalização da língua portuguesa é um assunto pouco explorado em pesquisas acadêmicas. E o ensino proficiente de PLA e/ou PLE depende justamente do desenvolvimento de políticas públicas educacionais voltadas para o alcance dos fluxos migratórios de saída e entrada em nosso país. Embora o país viva essa crescente busca pelo ensino de PLA e/ou PLE, até o presente momento, o Brasil ainda não possui documentos oficiais que norteiem essa prática de ensino. As abordagens existentes utilizam como parâmetro as orientações definidas como base de fundamentação para o desenvolvimento e aplicação do Celpe-Bras (Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros). Essa inobservância da importância em se elaborar um constructo teórico que balize o ensino de português como LA e/ou LE acaba por não promover a devida notoriedade que o tema merece, dificultando, assim, a criação de políticas públicas de promoção do ensino de PLA e/ 216 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 216 18/06/2019, 17:47 ou PLE. Devido a essa falta de visibilidade, o país sofre com um número reduzido de cursos de formação e especialização na área. Nesse sentido, Schoffen e Martins (2016) corroboram essa discussão, ao afirmarem que o aumento de estrangeiros interessados em aprender português promove o crescimento da demanda por formação de profissionais aptos a trabalhar com o ensino de PLA. Para os autores, o desafio é imenso, uma vez que, no Brasil, ainda que algumas universidades já ofereçam cursos de formação de professores, esse número ainda é muito pequeno. Nesse sentido, cabe ressaltar que, no país, há somente três licenciaturas de formação específica em PLA, na UFBA, na UNICAMP e na UNB (SCHOFFEN e MARTINS, 2016). Postas essas informações firmadas em dados científicos, propomos, inclusive, nesta seção, a problematização da complexidade da prática docente com base nas concepções teóricas do ensino de língua de português como LA e/ou LE. Além disso, o objetivo primordial se revela no diagnóstico e no conhecimento de conceitos sobre língua nacional, língua padrão, dialeto e variedade linguística que os docentes da educação básica, do ensino público do Rio de Janeiro, possuem e praticam na realidade de sala de aula, no tocante aos alunos que recebem, com base no levantamento de dados provenientes do questionário aplicado. Assim, partimos da hipótese de que as dificuldades de lidar com as questões linguísticas, na escola e fora dela, ocorrem em decorrência do desconhecimento da legítima natureza heterogênea e sociointeracional das línguas, incorrendo num falso ideal de uniformidade e estabilidade. Dessa forma, cabe ao professor de língua portuguesa explorar essa matureza, com vistas a promover, nos termos de Antunes (2014, p. 153), “o fascínio e a consciência da importância da linguagem na condução de nosso destino humano de seres sociais, chamados à convivência e à interação”. Na mesma escala de pertinência, também estão: a questão das diretrizes norteadoras dos cursos 217 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 217 18/06/2019, 17:47 de Letras quanto à formação acadêmica para os docentes de língua portuguesa acerca do tema; e a divulgação dessa pesquisa, com base em dados atuais, à comunidade científica e aos professores pesquisadores. No tocante à abordagem do questionário, cabe mencionar que as questões possuíam cinco (5) alternativas com mensurações reflexivas em relação ao construto, com base na proposta da escala de verificação de Likert (1932), buscando interpretar suas manifestações sobre o nosso objeto de estudo. Finalmente, segundo Cavalcante et al. (2015), acolhemos a abordagem qualitativa neste trabalho, a qual se debruça sobre o estudo da história, das relações, das representações, das crenças, das percepções e das opiniões como produto idiossincrático das interpretações dos indivíduos; assim, servindo como instrumento na análise descritiva das informações a serem estudadas, em direção às reformulações metodológicas necessárias, quando se (re)pensa em ensino. ANÁLISE DOS DADOS Com o intuito de apresentar informações mais objetivas, optamos por aplicar um questionário que pudesse servir como fundamentação empírica para a reflexão sobre o ensino de português como LA e/ou LE no contexto das redes municipal e estadual de ensino do Rio de Janeiro. O questionário foi respondido por dezenove (19) docentes e suas respostas constroem a relevância das reflexões realizadas. A primeira questão busca compreender com que frequência o docente de língua portuguesa pensa sua língua materna também como uma língua estrangeira e/ou adicional, em suas práticas de ensino. Tal questionamento visa dimensionar o número de professores que concebem o ensino de Língua Portuguesa (LP) também como LA em determinadas situações. 218 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 218 18/06/2019, 17:47 Gráfico 1 - respostas da primeira questão do questionário aplicado O gráfico acima apresenta informações que vão ao encontro da discussão apresentada na fundamentação teórica do artigo ao apontar que 47,4% dos docentes raramente refletem sobre o ensino de LP como LA, ou seja, quase metade dos professores não tem como hábito considerar e refletir sobre uma metodologia de ensino de português como LA. É importante também frisar que nenhum professor afirmou “sempre” levar em consideração essa questão e apenas 10,5% dos participantes afirmaram “quase sempre” refletir sobre o tema. A questão dois (2) tenta identificar o número de vezes que o professor de LP teve contato com leituras, debates e trabalhos sobre o ensino de português como LA e/ou LE. As respostas estão apresentadas no gráfico abaixo. Gráfico 2 - respostas da segunda questão do questionário aplicado 219 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 219 18/06/2019, 17:47 A análise das respostas comprova o desconhecimento quase total dos professores de língua portuguesa sobre o ensino de LP como LA, uma vez que 42,1% dos docentes afirmam nunca terem lido materiais sobre o tema. Isso significa dizer que, ao se depararem com um discente que não tenha a LP como língua materna, esses professores não terão ideia de como proceder com o processo de ensino de LP a esse alunado. A questão três (3) busca identificar qual é o conceito de língua oficial dos professores participantes da pesquisa. Os resultados, apresentados no gráfico a seguir, comprovam a ideia de que os cursos de Letras do país, de um modo geral, não oferecem reflexões e fundamentações que possam servir como base para o trabalho do docente de LP. Gráfico 3 - respostas da terceira questão do questionário aplicado A pluralidade de respostas a essa questão comprova a não existência de um conceito claro sobre o que é a língua oficial de uma nação. Quase metade dos entrevistados consideram ser “o conjunto heterogêneo de usos e normas sociointeracionais, em diversos níveis e planos, representativos dos diversos grupos sociais que compõem um país”, enquanto 36,8% compreendem “o idioma falado e escrito predominantemente de um país, sem considerar, no caso do Brasil, as línguas indígenas, africanas, estrangeiras e a LIBRAS”. Há ainda 10,5% que acreditam ser “o uso oficial da norma padrão de um país, com base no plano da idealização e pureza linguística”. Em outros 220 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 220 18/06/2019, 17:47 termos, percebemos uma difusão conceitual em torno de concepções extremamente relevantes ao ensino, provenientes (com base nos índices de 36,8% e 10,5%) da cultura e da ideologia normativa vigente no país, a qual pressupõe o purismo linguístico e a valoração social entre as variações linguísticas (FARACO e ZILLES, 2017). A questão quatro (4) visa identificar qual é o nível de compreensão dos docentes de língua portuguesa do conceito de LA. O resultado da pesquisa comprova que a maioria dos professores teve pouco contato com materiais sobre o assunto. Gráfico 4 - respostas da quarta questão do questionário aplicado. Os números acima comprovam que ainda há muito a ser feito para a divulgação e formação dos profissionais acerca do tema em análise. No entanto, constitui uma das frentes de abordagem do nosso texto: criar maior visibilidade acadêmica acerca do tema e revelar alguns problemas que permeiam as políticas públicas de ensino de PLA e/ou PLE. Somando os dados daqueles que “nunca leram materiais” 26,3% - com os que “conhecem bem pouco” - 36,8% - temos um total de 71% de professores que não possuem o mínimo de informação necessária para proceder ao ensino de LP como LA. A pergunta cinco (5) busca identificar o perfil de estudante de LP como LA mais comum nas salas de aula. Vale salientar 221 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 221 18/06/2019, 17:47 que, como há a possibilidade de que o docente tenha tido contato com mais de um dos perfis apresentados, o mesmo podia assinalar mais de uma opção. O gráfico a seguir apresenta o resultado obtido: Gráfico 5 - respostas da quinta questão do questionário aplicado Tendo como base os resultados acima, podemos afirmar que, no Rio de Janeiro, o maior número de estudantes de LP como LA é de surdos. Esses alunos possuem a LIBRAS como língua materna e têm aulas de LP como LA nas escolas regulares. O processo de aquisição da LP de um surdo tem especificidades para quais os professores não foram preparados em sua formação profissional. Ainda que haja a mediação de um intérprete de LIBRAS, este, na maioria das vezes, não é formado em LP, ou nas demais matérias, o que resume o seu papel a traduzir o que foi apresentado pelo professor. É importante destacar que essa é de fato a realidade mais encontrada nas escolas municipais e estaduais do Rio de Janeiro, mas esse contexto pode sofrer alterações em um futuro próximo, já que o fluxo migratório para o Brasil aumentou consideravelmente e uma das medidas adotadas pelo Governo Federal foi a redistribuição desses estrangeiros pelo território nacional. Essa realocação das famílias imigrantes afetará diretamente a realidade das escolas municipais e estaduais do país. 222 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 222 18/06/2019, 17:47 A próxima questão está diretamente ligada à anteriormente analisada. Na sexta pergunta do questionário, buscamos identificar a experiência metodológica que os professores os quais receberam alunos que não possuem a LP como língua materna adotaram no trato da língua portuguesa em sala de aula. Gráfico 6 - respostas da sexta questão do questionário aplicado De acordo com o gráfico em análise, 61,9% dos docentes afirmam que “o processo de aprendizado e a metodologia sofrem algumas alterações, por conta do esforço realizado para, em meio a improvisos, mediar e adaptar o conhecimento à realidade do discente”. Ainda que esse dado seja positivo, representa um esforço individual do profissional para oferecer o mínimo de suporte ao estudante de PLA. Além disso, 14,3% dos profissionais afirmam que “a aula transcorre normalmente, em razão de não ter tido formação acadêmica para mediações pedagógicas como essa”. Uma interpretação possível é a de que esse número é muito maior, uma vez que os 61,9 que afirmam modificar a metodologia fazem isso intuitivamente, ou seja, também não receberam nenhuma formação acadêmica sobre o tema. Isso posto, temos, na verdade, 76,2% de profissionais que não tiverem nenhum contato com o tema na academia. No tocante à questão sete (7), buscamos identificar se os professores conhecem a correta definição de ensino de LP como LA. Os resultados estão apresentados abaixo. 223 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 223 18/06/2019, 17:47 Gráfico 7 - respostas da questão 7 do questionário aplicado. Com base nas informações acima, podemos afirmar que 68,4% dos professores possuem clareza quanto à definição de ensino de LP como LA “propõe refletir e desenvolver a Língua Portuguesa como estrangeira/adicional, tendo como público-alvo alunos estrangeiros, indígenas, deficientes auditivos e deficientes visuais” . Enquanto 10,5% dos participantes alegam que “não conhecem essas terminologias”. Outros 15,8% apresentam uma visão equivocada do tema, pois consideram que o ensino de LP como LA “apresenta a proposta de desenvolver falantes proficientes em português, com base na mesma metodologia utilizada no ensino de português Língua Materna”. A próxima questão tem por objetivo identificar se as redes de ensino oferecem algum tipo de suporte ao profissional que possui estudantes de LP como LA em sua sala de aula. Cabe destacar que os participantes podiam selecionar mais de uma opção de resposta. Gráfico 8 - respostas da oitava questão do questionário aplicado 224 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 224 18/06/2019, 17:47 Ao analisar os dados, percebemos que, a despeito da possibilidade de assinalar mais de uma opção, todos os participantes marcaram apenas uma das opções. Dentre os 19 (dezenove) docentes, apenas 1 (um) afirma que a rede de ensino à qual está vinculado “possui um departamento que trata dos assuntos relacionados ao ensino de Língua Portuguesa como língua estrangeira/ adicional”; 13 (treze) afirmam que a rede “não oferece nenhuma orientação ou suporte didático aos professores sobre o ensino de Língua Portuguesa como língua estrangeira/adicional”; 1 (um) informa que “possui orientações curriculares para o ensino de Língua Portuguesa como língua estrangeira/adicional”; e 4 (quatro) dizem “não ter tais informações”. Dessa forma, dada a realidade das informações, são necessárias intervenções estratégicas de políticas públicas educacionais redirecionadas tanto à formação docente, quanto à disposição de uma infraestrutura adequada ao público, no caso da questão, de PLA e/ou PLE. Por último, solicitamos aos participantes que expressassem o nível de dificuldade que enfrentariam para desempenhar suas funções, ao receberem um estudante de PLA. Gráfico 9 - respostas da nona questão do questionário aplicado De acordo com as respostas dos participantes, 68,4% afirmam que “teriam muita dificuldade para realizar o seu trabalho”; 21,1% “não saberiam como proceder, pois não possui formação em ensino 225 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 225 18/06/2019, 17:47 de Língua Portuguesa como língua estrangeira/adicional”; e 10,5% “teriam pouca dificuldade para realizar o seu trabalho”. Podemos inferir, com base nesses dados, que os professores não se sentem preparados para atuar no ensino de LP como LA. O que poderia ser feito para reverter esse panorama? Como oferecer ensino de qualidade aos estudantes de LP como LA? Atualmente essas questões ainda necessitam de respostas, sobretudo, porque é um tema que excede claramente o plano formal e conceitual, ou seja, não se trata de pensar a língua em si. É indispensável que sejam incorporadas reflexões externas à abordagem linguística. CONSIDERAÇÕES FINAIS No cenário atual, o país tem vivenciado um grande fluxo migratório de venezuelanos que tende a crescer ainda mais, uma vez que a crise econômica enfrentada pela Venezuela parece estar longe de retroceder. Como todas as crianças em idade escolar têm direito à vaga nas redes públicas de ensino, não vai demorar para que as unidades de ensino comecem a receber os filhos desses imigrantes, que chegarão às escolas sem nenhum conhecimento de LP, ou seja, estarão, em tese, abandonados em uma sala de aula sem que possam ter acesso real a uma educação de qualidade. O que ainda precisa ser feito é encorajar as partes envolvidas no sentido de refletir sobre essas questões de um ponto de vista político. Ou seja, o ensino/aprendizagem de línguas não pode ser discutido apenas do ponto de vista linguístico ou da perspectiva das teorias pedagógicas da aprendizagem. Essas questões também dizem respeito à cidadania. Talvez um bom caminho perpasse a conscientização dos futuros profissionais da língua portuguesa acerca da necessidade de manter formação permanente, em meio aos inúmeros desafios geopolíticos que atravessam a questão. 226 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 226 18/06/2019, 17:47 Outra proposição possível pode estar no incentivo de linhas de pesquisa das instituições de graduação e pós-graduação, por exemplo, vinculando conteúdos e problematizações sobre o tema em seus projetos pedagógicos, tendo como ponto de partida o viés sociopolítico das questões linguísticas no processo educacional. Essa estratégia pode expandir as fronteiras e o alcance do tópico PLA e/ou PLE. De qualquer forma, reconhecemos que os desafios são muitos e interceptam diferentes campos de saberes. Do mesmo modo, o nosso texto não responde – tampouco pretende – solucionar os embates acerca do tema. Buscamos aqui repensar o tratamento do ensino de PLA e/ou PLE e de algumas questões que contornam e explicam os obstáculos vivenciados pelos docentes do ensino público do Rio de Janeiro. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES, Irandé. Gramática contextualizada: limpando “o pó das ideias simples”. São Paulo: Parábola, 2014. CAVALCANTE, Carlos E.; SOUZA, Washington J.; MOL, Anderson L. R. Volunteers motivation: proposal of theoretical model. RAM, Rev. Adm. Mackenzie v. 16, n. 1, p. 124-156, 2015. FARACO, C. A.; ZILLES, A. M. Para conhecer: norma linguística. São Paulo. Parábola Editorial, 2017. LIKERT, R. A technique for the measurement of attitudes. In: Archives in Psychology, 140. p. 1-55, 1932. MOITA LOPES, L. P. da (Org.). O português do século XXI: cenário geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola Editorial, 2013. NÓBREGA, M. H. da. Políticas linguísticas e internacionalização da língua portuguesa: desafios para a inovação. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 24, n. 2, p. 417-445, 2016. 227 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 227 18/06/2019, 17:47 SCHOFFEN, J. R.; MARTINS, A. F. Políticas linguísticas e definição de parâmetros para o ensino de português como língua adicional: perspectivas portuguesa e brasileira. ReVEL, v. 14, n. 26. P.271-306, 2016. ANEXOS Questionário 1) Com que frequência você, como professor de Língua Portuguesa, pensa sua língua materna também como uma língua estrangeira e/ou adicional, em suas práticas de ensino? ( ) Sempre. ( ) Quase sempre. ( ) Ocasionalmente. ( ) Raramente. ( ) Nunca. 2) Já iniciou leituras, debates e trabalhos sobre o tema “ensino de Língua Portuguesa como língua estrangeira e/ou adicional”? ( ) Sim - muitas vezes. ( ) Sim - algumas vezes. ( ) Sim - poucas vezes. ( ) Sim - uma vez. ( ) Nunca li materiais acerca do tema. 3) Língua oficial é: ( ) o uso oficial da norma padrão de um país, com base no plano da idealização e pureza linguística. ( ) a manifestação homogênea da linguagem, como expressão representativa e identitária de um país. ( ) o conjunto das diversas línguas de um país, sendo essas regidas pelas normas da gramática tradicional. ( ) o conjunto heterogêneo de usos e normas sociointeracionais, 228 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 228 18/06/2019, 17:47 em diversos níveis e planos, representativos dos diversos grupos sociais que compõem um país. ( ) o idioma falado e escrito predominantemente de um país, sem considerar, no caso do Brasil, as línguas indígenas, africanas, estrangeiras e a LIBRAS. 4) Quanto ao nível de compreensão do conceito de língua adicional, você: ( ) Conhece totalmente. ( ) Conhece parcialmente. ( ) Conhece bem pouco. ( ) Já ouviu falar. ( ) Nunca leu materiais acerca do tema. 5) Dentre as opções, assinale a(s) que representa (m) um perfil de aluno que você já recebeu em uma sala de aula de Língua Portuguesa. ( ) Estrangeiro. ( ) Surdo / deficiente auditivo. ( ) Cego / baixa visão. ( ) Indígenas. ( ) N. R. A. 6) Caso já tenha recebido aluno indígena, estrangeiro ou deficiente (visual ou auditivo), marque a alternativa que mais se aproxima da experiência metodológica no trato com a Língua Portuguesa: ( ) A aula transcorre normalmente, porque a instituição escolar dispõe de profissionais especializados e materiais específicos para o aluno com esse perfil. ( ) A aula transcorre normalmente, porque é uma prática pedagógica para a qual você foi preparado em sua formação acadêmica. ( ) A aula transcorre normalmente, em razão de não ter tido 229 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 229 18/06/2019, 17:47 formação acadêmica para mediações pedagógicas como essa. ( ) O processo de aprendizado e a metodologia sofrem algumas alterações, por conta do esforço realizado para, em meio a improvisos, mediar e adaptar o conhecimento à realidade do discente. ( ) Não passou por essa experiência até o momento. 7) Com base no tratamento do ensino de Língua Portuguesa como língua estrangeira e/ou língua adicional, marque a opção válida. ( ) Propõe refletir e desenvolver a Língua Portuguesa como estrangeira/adicional, tendo como público-alvo alunos estrangeiros, indígenas, deficientes auditivos e deficientes visuais. ( ) Apresenta a proposta de desenvolver falantes proficientes em português, com base na mesma metodologia utilizada no ensino de português Língua Materna. ( ) Ensina a fluência escrita e falada da Língua Portuguesa como L1 ao público-alvo. ( ) Não conheço essas terminologias. ( ) Avalio como irrelevantes essas discussões/reflexões sobre o tema para a minha prática de ensino. 8) A rede pública de ensino a que você é vinculado(a): ( ) possui um departamento que trata dos assuntos relacionados ao ensino de Língua Portuguesa como língua estrangeira/ adicional. ( ) possui material elaborado para o ensino de Língua Portuguesa como língua estrangeira/adicional. ( ) possui orientações curriculares para o ensino de Língua Portuguesa como língua estrangeira/adicional. ( ) não oferece nenhuma orientação ou suporte didático aos professores sobre o ensino de Língua Portuguesa como língua estrangeira/adicional. 230 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 230 18/06/2019, 17:47 ( ) não possuo tais informações. 9) Ao receber um aluno estrangeiro, indígena, deficiente visual ou deficiente auditivo, você: ( ) Não teria nenhuma dificuldade para realizar o seu trabalho. ( ) Teria pouca dificuldade para realizar o seu trabalho. ( ) Teria muita dificuldade para realizar o seu trabalho. ( ) Não mudaria nada em sua rotina de trabalho. ( ) Não saberia como proceder, pois não possui formação em ensino de Língua Portuguesa como língua estrangeira/ adicional. Parte superior do formulário 231 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 231 18/06/2019, 17:47 232 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 232 18/06/2019, 17:47 SOBRE OS AUTORES Ana Cristina Bemfica e Silva - Professora da Educação Básica da rede Estadual-RJ. Estudante do curso de PósGraduação, especialização na Educação Básica, do Programa Residência Docente do Colégio Pedro II. Possui Graduação com dupla licenciatura (Português-Espanhol); Especialização em: Gestão Escolar Empreendedora (UFF- 2014), Coordenação Pedagógica (UFRJ-2013), Orientação Educacional (2012-FJT) e Prevenção às drogas na escola (UFF-2009). Beatriz dos Santos Feres - Professora Associada da Universidade Federal Fluminense. Atua no Instituto de Letras, na graduação, na especialização e no Programa de PósGraduação em Estudos da Linguagem. Filiada à Teoria Semiolinguística de Análise do Discurso, tem vasta experiência em orientação de pesquisa. Temas de interesse: estratégias de leitura; compreensão e interpretação; semiose verbo-visual. Bruno Humberto da Silva - Possui Graduação em Letras (português/inglês), Especialização em Língua Portuguesa e, atualmente, cursa o Mestrado em Letras, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PROFLETRAS/UFRJ), na linha de pesquisa da Teoria e Análise Linguística no ensino de língua portuguesa e Linguagem e Sociedade. É professor de Língua Portuguesa do ensino privado e do município do Rio de Janeiro, há 12 anos. Catia de Luziete Thomazinho Borges - Formada em Letras (Português/Inglês) pela Faculdade Machado de Assis (FAMA). Atualmente é professora de Língua Portuguesa e Redação do Instituto de Educação Pereira Batista (IEPB). 233 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 233 18/06/2019, 17:47 Celso Albuquerque Lima - Possui graduação em Letras (português/inglês) pela Universidade Estácio de Sá (2009), Especialização em Psicopedagogia pela Universidade Cândido Mendes (2011) e em Ensino de Leitura e Produção Textual pela UFRRJ (2014). Atualmente é professor de Inglês da Prefeitura Municipal de Belford Roxo, professor de português do Governo do Estado do Rio de Janeiro e cursa o Mestrado em Letras, pela UFRJ. Daniel Araujo Conceição - Estudante de ensino médiotécnico, em Biotecnologia, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro. Possui experiência prévia de Iniciação Científica em Literatura e, atualmente, atua como bolsista da mesma modalidade em Morfologia e expressividade no grupo Morfologia e uso: por novas perspectivas para o ensino de português. Dennis Castanheira - Graduado em Licenciatura em Letras (Português/Literaturas) com dignidade acadêmica “Magna cum laude”, Mestre em Linguística e Doutorando em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É Professor Temporário de Língua Portuguesa na mesma instituição. Áreas de atuação: Texto/discurso; sintaxe funcional; ensino de português; perspectivas de interface. Felipe da Silva Vital - Graduando em português/literaturas pela UFRJ. Atua em projetos de pesquisa no Museu Nacional/ UFRJ, instituição da qual é bolsista de iniciação científica CNPq, na área de Fonologia. Além disso, participa de projetos de pesquisa, coordenados pelo professor Vítor de Moura Vivas no IFRJ (Campus Rio de Janeiro), na interface morfologia-ensino e, pelo professor Carlos Alexandre Gonçalves, na UFRJ, na interface morfologia-fonologia. Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 234 18/06/2019, 17:47 Luciana Fortuna - Graduanda em Licenciatura em Letras (Português/Literaturas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Áreas de atuação: Texto; ensino de português. Glayci Kelli reis da Silva Xavier - Graduada em Letras pela UFF. Mestre e doutora em Estudos de Linguagem pela mesma instituição. Atualmente, é professora Adjunta de Língua Portuguesa da Universidade Federal Fluminense. Foi professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (EBTT) no Colégio Pedro II (40h DE), ministrando aulas de Língua Portuguesa e Literatura e atuando no Programa de Residência Docente (PRD). É vice-líder do Grupo de Pesquisa LEPELL. Sua pesquisa, sempre voltada para o ensino, tem como principal foco os textos argumentativos e os textos verbo-visuais. Júlia Vieira Correia - Possui graduação em Letras – Português/Literaturas pela UFF, onde também realizou pesquisas de Iniciação Científica em Linguística com livros ilustrados. Atualmente é mestranda em Estudos da Linguagem nessa mesma instituição e participa do programa de residência docente (PRD) do Colégio Pedro II, que consiste em uma pósgraduação lato sensu em Educação Básica. Também atua na rede particular de Niterói, além de ser professora voluntária no prévestibular social do DCE – UFF. Marcelo de Souza Pereira - Graduado em Letras (Português/Inglês) pela UFRJ. Mestre em Literatura Brasileira e Doutor em Literatura Comparada pela UERJ. É professor de Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa do Colégio Pedro II, campus São Cristóvão II. Nessa mesma instituição, é membro da comissão editorial da Revista Deslimites. Sua produção e interesses acadêmicos voltam-se, preferencialmente, para a interface Língua e Literatura, ficção brasileira contemporânea e estudos de mitologia. Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 235 18/06/2019, 17:47 Marcos Luiz Wiedemer - Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), atuando no curso de Letras (Português/Inglês), no Programa de Pósgraduação em Letras e Linguística (PPLIN) e no Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS). É Coordenador Geral do PPLIN (gestão 2018-2020). Membro pesquisador dos Grupos de Pesquisa “Discurso & Gramática (UFF) e “Estudos Sociofuncionalistas” (UFMS). Vice-Coordenador do GT de Sociolinguística da ANPOLL. Milana Novaes - Professora de Língua Portuguesa, Literatura e Produção Textual no Colégio Estadual Caio Francisco de Figueiredo (CECFF/ SEEDUC/RJ). Mestre em Letras pelo PROFLETRAS pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Licenciada em Letras – Português/ Literaturas pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Especialista em Ensino de Leitura e Produção Textual pela UFF e em Docência do Ensino Superior pela Universidade Candido Mendes (UCAM). Sirley Ribeiro Siqueira - Graduada em Letras pela UERJ e especialista em Língua Portuguesa pela mesma instituição. Mestre e doutora em Estudos de Linguagem pela UFF. Atualmente, é professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (EBTT) no Colégio Pedro II (40h DE), ministrando aulas de Língua Portuguesa e Literatura. É líder do Grupo de Pesquisa LEPELL. Interessa-se por temas como leitura, produção textual, mudança linguística, argumentação e oralidade. Vanessa Teixeira Ribeiro - Mestra em Letras/Estudos Linguísticos (2018), na área deMestra em Letras/Estudos Linguísticos (2018), na área de Língua Portuguesa, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde concluiu a graduação. Atualmente leciona em turmas da Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 236 18/06/2019, 17:47 Educação de Jovens e Adultos e do Ensino Médio das redes pública e privada. Tem experiência na área de Educação e de Letras, com ênfase em alfabetização de jovens e adultos, letramentos e no ensino de Língua Portuguesa e Redação. Victor Terra de Freitas - Formado em Letras (Português/ Inglês) pela Universidade Candido Mendes. Atualmente aluno do Programa Residência Docente (PRD) do Colégio Pedro II. É professor de Língua Portuguesa e Literatura do Instituto de Educação Pereira Batista (IEPB). Vítor de Moura Vivas - Doutor em língua portuguesa pela UFRJ e atua como professor efetivo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro. Atualmente, coordena o grupo Morfologia e uso: por novas perspectivas para o ensino de português. Wallace Bezerra de Carvalho - Graduado em Letras – Português/Inglês. Atualmente, faz o curso de Mestrado em Letras Vernáculas – Língua Portuguesa na UFRJ. É integrante do grupo Morfologia e uso: por novas perspectivas para o ensino de português. Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 237 18/06/2019, 17:47 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 238 18/06/2019, 17:47 Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 239 18/06/2019, 17:47 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA CIDADE DE COTIA/SP, EM JUNHO DE 2019, PELA META SOLUTIONS, PARA LITTERIS EDITORA EM SISTEMA DIGITAL DE CAPA E MIOLO. Reflexoes sobre a leitura 6.pmd 240 18/06/2019, 17:47