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Pedagogia da diversidade: contribuições numa perspectiva intercultural

2019, Revista Akeko

O presente texto abarca a discussão sobre educação e diversidade no âmbito da perspectiva intercultural desenvolvido em um dos capítulos da dissertação de mestrado do CEFET/RJ. Conceituação racial com Hall (2014), Munanga (2012, 2014), Guimarães (2012). No quesito currículo: Apple (2011), Arroyo (2011), Silva (2011); e na perspectiva intercultural, Candau (2014). Concluímos que, a pedagogia da diversidade contribui de maneira singular para a construção de uma sociedade democrática no respeito a diferença, a equidade e no empoderamento dos inferiorizados no processo histórico.

REVISTA AKEKO ESTUDOS PÓS-COLONIAIS E DECOLONIAIS V. 2, N. 1 | ISSN: 2595-2757 RIO DE JANEIRO, SETEMBRO DE 2019 FEITA POR ALUNAS E ALUNOS PARA ALUNAS E ALUNOS Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 2019 NÚCLEO DE POLÍTICAS PÚBLICAS EM DIREITOS HUMANOS SUELY SOUZA DE ALMEIDA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO AS AUTORAS E AUTORES SÃO RESPONSÁVEI PELA APRESENTAÇÃO DOS FATOS CONTIDOS E OPINIÕES EXPRESSAS NESTA OBRA. EQUIPE EDITORIAL (Setembro de 2019) Editoras: Ana Claudino, Beatriz Brasil, Carolina Cagetti, Isabel Barbosa, Julia Gutman, Maísa Sampietro e Thaís Castro. Comissão editorial: Beatriz Brasil, Carolina Cagetti, Isabel Barbosa, Maísa Sampietro, Mariana Castro e Roberta Rodrigues Editor de texto: Ana Carolina Caruso, Douglas Ramos, Isabel Barbosa, Julia Gutman, Letícia Vieira, Maísa Sampietro e Roberta Rodrigues. Editor de Layout: Ana Claudino, Carolina Cagetti e Isabel Barbosa Assistente Colaborador: Ana Carolina Caruso e Douglas Ramos. Assessoria de comunicação: Ana Carolina Caruso, Ana Claudino, Beatriz Brasil, Letícia Vieira, Mariana Castro e Thaís Castro. Conselho editorial: Ana Carolina Caruso, Ana Claudino, Beatriz Brasil, Carolina Cagetti, Douglas Ramos, Isabel Barbosa, Leticia Vieira, Julia Gutman, Maísa Sampietro, Mariana Castro, Roberta Rodrigues e Thaís Castro. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 3 SUMÁRIO NOTA DAS EDITORAS Equipe Editorial P. 10 EDITORIAL Equipe Editorial P. 11 HOMENAGEM À ELISABETE AMORIM LEANDRO Monique Cruz, Rosária Sá e Thais Gomes P. 13 AUTORA CONVIDADA Por uma escrita antirracista Gizele Martins P. 16 CORPOS, SUJEITOS COLETIVOS E A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS A subalternidade de sujeitos políticos: A formulação de políticas públicas para mães Juddy Garcez Moron P. 19 Caminhos da mariscagem: Prática, performance e identidade Janaina da Paixão Santos e Larissa Rezende da Hora P. 30 Estereótipos, corporeidade e território: Quem é o criminoso no Brasil? Gleison da Silva Bomfim e Leonardo Lacerda Campos P. 40 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 4 Sistema punitivo brasileiro: Uma breve análise a partir do pensamento de Boaventura de Sousa Santos Lucas Nunes Nora de Souza P. 53 Representatividade Trans nas eleições municipais de 2016 no Brasil Antonio Deusivam de Oliveira P. 60 O Museu de Percurso do Negro de Porto Alegre como política de representatividade e de resgate de memória dos povos de matriz africana Elza Vieira da Rosa P. 71 Breve reflexão sobre a supremacia branca brasileira na era do neoliberalismo necropolítico Marcelo de Jesus Lima P. 86 REESTRUTURANDO AS FRONTEIRAS DOS DIREITOS HUMANOS Psicologia do colonizado: Processos de assujeitamento, desumanização e mercantilização do humano Vanderson Barreto Pereira e Cláudio Almeida Silva Filho P. 101 Cultura de libertação e emancipação latino-americana Rodrigo de Araújo Lima Passos P. 112 Decolonizando a universalidade através da interseccionalidade: Uma análise dos sistemas regionais de direitos humanos Gabriel Coutinho Galil P. 125 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 5 Epistemologias do sul: Caminhos entre o alvo e a seta Valéria Cristina Gomes de Castro P. 140 RAÇA, GÊNERO E SEXUALIDADES: REPENSANDO OPRESSÕES As lutas feministas e a acumulação primitiva em primavera das mulheres Natasha Karenina de Sousa Rego e Priscilla Glitz Mayrink P. 148 Prática de professora pesquisadora e prática de militante: Caminhos que se intercruzam Ayala de Sousa Araújo P. 158 Saúde mental e cinema: A população negra na dinâmica colonial-capitalista brasileira Cláudio Almeida Silva Filho P. 167 Serviço social e a perspectiva interseccional: Amplitudes a partir da interseccionalidade Dayana Christina Ramos de Souza Juliano P. 178 Descolonizando corpos: Apontamentos sobre questões de gênero em perspectivas africanas e muçulmanas Leone Henrique P. 188 Rappers brancos/as, interseccionalidade e privilégios Jorge Hilton de Assis Miranda P. 201 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 6 Guerra do contestado e a mulher no enfrentamento dos estereótipos de gênero Andreza da Silva Jacobsen P. 215 Cabelo Black: Um campo simbólico de identidade e resistência da mulher negra Rafael Conceição dos Santos P. 228 Diferença da diferença: Interseccionalidades e saúde de mulheres lésbicas e bissexuais negras Layla Vitorio Peçanha P. 240 Entre silenciamentos e invisibilidades: Estado, políticas raciais e as mobilizações políticas negras Luane Bento dos Santos P. 254 Escritora e negra: O conceito de Yalodê em Conceição Evaristo Leandro Passos P. 265 Eu, mulher negra, resisto: Estruturalidade do racismo em Portugal e no Brasil Danielle Campos de Moraes P. 277 Matança de jovens homens negros no Recôncavo Sul da Bahia Fred Aganju Santiago Ferreira P. 290 “Meninos vestem azul, meninas vestem rosa”: Patriarcado e capitalismo no Brasil contemporâneo Bruna Távora P. 302 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 7 Resistência queer-sapphire ou por uma política de identificações estratégicas itinerantes Rafael Afonso da Silva P. 309 RENOVANDO OS SABERES: PROPOSTAS DE CONSTRUÇÕES DO SABER\PODER\SER Abrindo caminhos para a pedagogia antirracista Cintia Lima P. 324 A educação popular e a decolonialidade na construção de uma outra sociedade Noelia Rodrigues Pereira Rego P. 333 A função heurística dos novos saberes sobre a questão multicultural Felipe Bellido Quarti Cruz P. 345 Disposições atuais das Nações Unidas para o tratamento das minorias linguísticas Alan Silva das Virgens P. 356 Escritas de si, enunciados para além de uma vida: vestígios sociais Daniele Gomes da Silva P. 363 Justiça restaurativa e pensamento decolonial: Algumas notas introdutórias Júlia Scalon Manzan, Breno Augusto da Costa e Adriano Eurípedes Medeiros Martins P. 373 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 8 Leituras decoloniais sobre o sistema penal e os desafios à crítica criminológica contemporânea Luciana Costa Fernandes P. 387 Mulherismo africano, feminismoS negroS: Diálogos entre identidades político-culturais de resistência ao colonialismo Ravena Pereira Leite P. 401 Pedagogia da diversidade: Contribuições numa perspectiva intercultural João Paulo Carneiro P. 411 A casa de reza (opy) como ‘’lugar de memória’’ dos indígenas guaranis Matheus Santos da Silva P. 425 Autonomia territorial para existir: Vida e territorialidade no marco da decolonialidade Isis Caroline Santana dos Santos P. 436 Descolonizar a palavra: Outros modos de saber/poder/ser junto a uma professora Guarani Daniel Ganzarolli Martins e Ricardo Sant’Ana Felix dos Santos P. 449 R-existencias e luta indígena Nasa e Xucuru no marco da decolonialidade Isis Caroline Santana dos Santos P. 460 Os conhecimentos tradicionais dos povos indígenas no direito brasileiro Jéssica Nascimento de Sousa P. 473 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 9 Pedagogia decolonial e práticas escolares antirracistas – Kanteatro Lucione Santiago Gallindo P. 486 Pretagogia: Nuances pretas na educação institucional Esther Costa Mendonça e Sandra Haydeé Petit P. 500 Álvaro Vieira Pinto e o Pensamento Decolonial Breno Augusto da Costa P. 508 RESENHA As vinte e uma faces de Exu na filosofia afrodescendente da educação Macaulay Pereira Bandeira P. 524 ENTREVISTA Thula Pires – Pelo direito à auto inscrição Equipe Editorial P. 536 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 10 NOTA DAS EDITORAS Queremos neste momento desta edição agradecer imensamente as autoras e autores que aceitaram embarcar nesta conosco. Sabemos que estamos escrevendo sempre imersos em muitas demandas o que torna o processo difícil, mas enriquecedor. Foi uma grande satisfação ler e agora publicar suas contribuições. Um agradecimento muito especial à Gizele Martins que aceitou nosso convite. Pelas suas palavras sempre vividas e pela sua militância, exemplo que arrasta a nossa e as próximas gerações. À Monique Cruz, Rosária Sá, Thais Gomes e Margarete Amorim Leandro por assumirem com muito carinho a missão de homenagear Elisabete Amorim Leandro. Bete Amorim, presente! À Marcelle Decothé, Letícia Vieira e ao prof. Jadir Anunciação de Brito pelas trocas e reflexões compartilhadas em nossa mesa de lançamento desta edição. Á prof. Thula Pires por ter aceito a entrevista e por ter nos recebido com tanto carinho e bom humor em um final de dia chuvoso que nos aqueceu os corações e mentes. Ao prof. Vantuil Pereira por ter nos recebido em sua sala quando mais precisávamos e por todo apoio. À Joana Moscatelli por ter somado conosco no início. E por último, mas não menos importante, à equipe editorial fundadora desta revista, que abriu o caminho e nos possibilita estar dando mais um passo com esta publicação: Diego Lanza, Diego Portela, Hannah de Vasconcellos, Isabella Lucena e Phelipe Ribeiro. Equipe Editorial Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 11 EDITORIAL A Revista Akeko nasce da iniciativa de um grupo discente do Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPDH/UFRJ) que buscou construir um espaço de troca dentro da academia. Um espaço feito por estudantes para estudantes que estivesse atrelado a alguns marcos de encontro. O primeiro vem com o nome. Akeko significa em Yorubá “Aprendiz”. A escolha do nome da revista teve centralidade na reparação histórica da desimportância dada às culturas do continente africano que se tornaram uma das principais bases das sociedades latino-americana e brasileira. Além de que, como estudantes latino-americanos, muitos de nós mulheres e homens negras/os e/ou heterodissidentes, trazemos conosco não apenas a vontade de aprender, mas também todo o aprendizado carregado. E por este aprendizado tomamos o espaço da universidade com e por aquilo que é nosso; Demandando outras formas de construir conhecimento. O segundo marco vem com o desenho representado na logo da revista, que traz, dentro de um debate complexo, a mudança de percepção do mundo. No mapa, desloca-se da Europa e dos países do Norte Global o centro de explicação da sociedade moderna/ocidental, centralizando as experiências dos territórios do Sul Global como fundamentais para compreendermos não apenas as sociedades que aqui se formaram e se estabeleceram, mas para entender a própria formação européia. Esta direção consiste em um posicionamento político e epistemológico da equipe fundadora da revista, e que vem sendo assumida nesta segunda edição por nós da equipe editorial de 2019 com maior satisfação e entusiasmo, nos propondo a pensar em produções acadêmicas não centrais, menos eurocentradas. Assim como sua primeira edição, que trouxe como temática a negritude, a segunda edição desta revista supre estes propósitos com seu tema “Estudos pós-coloniais e decoloniais”. Embora tenham propostas diferentes, ambas as perspectivas buscam criticar a produção hegemônica de conhecimento. Atendendo ao chamado e construindo essa edição junto conosco, as contribuições de autoras e autores foram alinhadas em quatro grandes temas, abarcando uma diversidade de ideias que perpassam inúmeros espaços, promovem novas reflexões e propõem mudanças. As áreas elencadas vieram sempre como forma de repensar o instituído: os sujeitos políticos e a construção de políticas públicas, os direitos humanos, o que compreendemos por opressões e a forma como construímos o saber, poder e ser/estar no mundo. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 12 Este convite a repensar não significa ignorar ou desmerecer o que conquistamos nesta sociedade. Muito pelo contrário, significa que estamos em busca de apontar essas emergências e insurgências para fortalecê-las e reconhecer inúmeras vozes que constroem e erguem nossa sociedade. Os artigos nos inquietam com as múltiplas questões, articulando os pensamentos póscoloniais e decoloniais inseridos em inúmeras áreas de conhecimento e partindo de diversas localidades do país. Questões que nos tiram o fôlego, porque advém de lugares reais e vão em direção ao que está latente em nossa sociedade e profundamente estruturado em nossos cotidianos. Neste ano, além dos artigos que atenderam ao chamado da revista, ainda contamos com as reflexões de Gizele Martins, por meio de seu texto “Por uma escrita antirracista”, e da professora Thula Pires, através de entrevista concedida a nossa equipe relativa ao tema desta edição. Ambas são contribuições de extrema importância, não somente para pensar o tema da pós-colonialidade, da decolonialidade e dos direitos humanos, como também para no ajudar a pensar os nossos lugares de conhecimento, na sociedade, na academia e como podemos construir e reconhecer saberes que partam de nós. Tais reflexões nos permitem trilhar caminhos que promovam a busca por uma justiça social. Dessa forma, desejamos que todas e todos tenham não só uma boa leitura, como também uma leitura que desperte anseios, indagações e que fortaleça lutas que nem sempre são reconhecidas como tais, porém que nos permitem estar aqui. Afinal, “aquí se respira lucha”. Equipe editorial Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 13 HOMENAGEM À ELISABETE AMORIM LEANDRO Fonte: Acervo familiar. Quando as mulheres negras se movem, toda a estrutura política e social se movimenta na sociedade (Angela Davis).1 Este editorial é parte das homenagens póstumas dedicadas a Elisabete Amorim Leandro. Assistente Social, formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), universidade em que participou ativamente do movimento estudantil e onde chegou a ser presidenta do diretório acadêmico (1993-1994). Vinculada ao Programa de Pós-Graduação da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSS/UFRJ) no curso de mestrado na primeira turma de cotas, Bete ingressou pela quarta vez no mestrado, e como nas três vezes anteriores, esteve entre @s primeir@s colocad@s. Como profissional, acadêmica e militante teve uma amplíssima carreira: atuou como diretora do Conselho Regional de Serviço Social 7ª Região – RJ (CRESS-RJ) entre 2002 e 2005, participou da Gestão da ENESSO (1994-1995), trabalhou no sistema prisional do Rio de Janeiro entre os anos de 1998 e 2002; foi docente e coordenadora do curso de Serviço Social da Univale (MG). Durante 18 anos, compôs o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Fundamentos do Serviço Social na Contemporaneidade (NEFSSC) da UFRJ. Sua dedicação, profissionalismo, firmeza e comprometimento político ficaram marcados em cada tarefa 1 DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 14 assumida e foram fundamentais para o sucesso dos projetos como a Comissão de Gênero, Etnia e Diversidade Sexual (GEDS) do CRESS-RJ, que ela ajudou a criar juntamente com nomes históricos do Serviço Social e comprometidos com a luta antirracista como Magali de Almeida. Em 2016 contribui com a construção do 1º Festival da Utopia em Maricá-RJ, sua atuação, especialmente junto ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) naquele município, gerou frutos. No adeus à Bete, um representante do movimento compartilhou com os amigos e familiares que “se hoje crianças em Maricá comem comida limpa [sem agrotóxico] e saudável, é porque Bete se dispôs a ser instrumento para a luta”. Ela deu materialidade aos projetos do MST compartilhando seu conhecimento como forma de luta, e gerando alterações elementares na vida de crianças, trabalhador@s e morador@s daquela cidade. Bete é gigante! “É”, no tempo presente, porque vive em nós. Vive em sua amada irmã Margarete, a mulher com quem, partilhou a maior parte de seus sonhos, dores, medos e lutas e sobretudo tudo, a experiência de uma fraternidade necessária entre as mulheres, principalmente na tarefa diária de ser mãe. Vive no idolatrado sobrinho, Marcelo, de quem foi um pouco [ou muito] mãe na experiência compartilhada com sua irmã – histórias das quais falava com orgulho: se tornou um homem que desde menino conheceu sua origem, e a beleza de seus cabelos crespos. Nossa companheira vive! N@s prim@s, ti@s, mas especialmente nas tias Bete vem de uma família de matriarcas negras, e provavelmente por isso tenha atuado com tanta firmeza em todas as frentes de luta nas quais se dispôs a estar. Aprendeu desde nova, que a vida nunca foi sutil com essas mulheres, e que por isso não também não seria para ela, Bete mostrava isso na sua fala firme, no seu jeito duro de lidar com as adversidades, mas sobretudo, na forma como sabia acolher tod@s a sua volta. A intelectualidade brasileira perdeu muito com a partida precoce de Bete, militante da luta pela liberdade, ela se auto intitulava abolicionista penal, seu tema de pesquisa ‘Os fundamentos do Direito em Marx e o estudo da criminologia crítica: Desafios para os Direitos Humanos na Contemporaneidade’ tinha como principal objetivo discutir o abolicionismo penal, a partir da perspectiva feminista negra, incluindo questionamentos fundamentais que em breve serão publicizados por sua família através de publicações específicas. Bete Leandro foi uma intelectual dedicada a pensar sobre a sociedade brasileira, extremamente racista, machista, sexista e classista sempre com objetivo de pensar as saídas possíveis para esse quadro terrível que exaustivamente tem sido detalhado por intelectuais nas diversas áreas do conhecimento e na vida cotidiana. Nos termos de Lélia Gonzales, Bete era uma mulher amefricanizada, porque suas ideias não só a deslocavam, mas também deslocava outras “mulheres e homens negr@s e indígenas da margem para o centro da investigação, Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 15 fazendo-@s sujeit@s do conhecimento ao resgatar suas experiências no enfrentamento do racismo e do sexismo”.2 Admiração Gratidão, um binômio para lembrar Bete que no trabalho, nas aulas, nos grupos de estudo e pesquisa, nas palestras sempre firme, trazia consigo um imenso arcabouço argumentativo baseado em todo seu conhecimento teórico e prático adquirido ao longo da vida. Exemplo para os mais jovens, dor de cabeça para @s professor@s, com sua enorme capacidade analítica e questionadora, nossa amiga Bete Leandro, nos marcou a cada uma e cada um que teve a honra de poder ouvi-la. Nós que tivemos a honra de tê-la conhecido em toda sua intelectualidade, afetuosidade e fraternidade, só temos a agradecê-la pela generosidade, pelos conhecimentos compartilhados e pelas vidas entrecruzadas. Bete é uma mulher única! Nunca nos aproximaremos, apenas em palavras, da grandiosidade dessa experiência de vida que obtivemos ao seu lado. Elisabete Amorim Leandro jamais será esquecida. Seu legado protagonizado pelas lutas políticas nos movimentos organizados, pelo debate profícuo e eloquente, que ecoava através de suas denuncias à sociedade do valor e suas relações de opressão, dominação e exploração, que atingem de maneira aniquiladora @s negr@s, às mulheres e @s pobres. A denúncia do racismo e da exploração vivenciadas pelas mulheres negras, na sociedade do capital, nos traz, através da leitura de Bete, elementos fundamentais para pensar a contribuição do Serviço Social Brasileiro nas franjas desta luta pela ruptura com as diversas formas de violação de direitos humanos. Elisabete Amorim Leandro, uma intelectual negra, feminista, anticapitalista, pesquisadora, docente, assistente social, irmã, tia e amiga: nos deixa um importante legado de luta política e de amor pela vida e pela liberdade. Sua trajetória nos inspira e continuará referenciando nossas vidas por todo sempre! Elisabete, Presente! Hoje e sempre! Bete, Presente! Hoje e sempre! Monique Cruz, Rosária Sá e Thais Gomes, com afetuosa leitura/revisão de Margarete Amorim Leandro. Rio de Janeiro Inverno, 2019. 2 GONZÁLEZ, Lélia. A categoria político cultural da Amefricanidade. In: Tempo Brasileiro, nº 92 e 93, Rio de Janeiro, 1988. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 16 AUTORA CONVIDADA POR UMA ESCRITA ANTIRRACISTA Gizele Martins1 A academia historicamente trata a favela como um lugar que deve ser apenas pesquisado, diagnosticado, questionado, colocando este espaço, muitas das vezes, como o culpado pelo seu empobrecimento, colocando quem mora ali como criminoso, marginal, dentre diversos outros tipos de estereótipos. E, tudo isso, resulta na ampliação conjunta de tratamentos racistas. Na verdade, há inúmeros setores hegemônicos da sociedade do capital que tratam a favela e os favelados como culpados por existirem, assim como a educação, a mídia, a saúde, a cultura, eles trabalham juntos para fazer com que este lugar e quem mora nele continue se sentindo inferior, como se não tivesse história, achando que não tem cultura, que não tem saber, que não tem lugar, nem mesmo a fala. Por isso, nossas pesquisas necessitam muitas das vezes trabalhar esse lugar como fortaleza, diagnosticar as nossas forças, nossas lutas, nossas histórias, nossa cultura, nossa religião, o que nos falta, o que nos fazem não ter acesso, o que tiraram de nós, o que fizeram para que não nos sentíssemos parte da cidade. Quando questionarmos, precisamos ir além e sabermos o por quê estamos divididos entre asfalto e favela, entre negros e brancos, entre ricos e aqueles que eles mesmos empobrecem, por quê eles tem tanto privilégio ao ponto de serem donos das vidas, até mesmo das nossas vidas… Ou seja, enquanto parte da população que sofre tamanho racismo, apagamento cultural, histórico e de vida, é necessário que não tratemos em nossas pesquisas este lugar favela como algo a ser questionado com o olhar de fora para dentro, temos que ser diferentes, produzir com 1 Gizele Martins, é Mestre em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas (UERJ-Febf). Formada em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Puc-Rio). É Assessora da Comissão de Defesa de Direitos Humanos e Cidadania da Alerj. É jornalista do Sintifrj. Por mais de dez anos foi repórter e jornalista responsável do Jornal O Cidadão, meio comunitário que circula há 21 anos no Conjunto de Favelas da Maré. Atualmente, organiza o curso Histórias Vivas: O histórico de resistência das favelas do Rio de Janeiro, o Maré 0800 e o Julho Negro (integra lutas antirracistas internacionais como Palestina, Black Lives Matter, Movimentos indígenas da América Latina etc). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 17 a favela, questionar, diagnosticar e questionar junto a ela, conhecer as forças e fraquezas junto com a favela. Muitas das políticas públicas que em algum momento chegaram nas favelas foram feitas à partir de pesquisas feitas pelas academias, por organizações sociais e até por recortes de jornais. No entanto, a maioria destas políticas nos tratam, sem dúvida, como tamanhos estereótipos, é só pensar nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), enquanto os movimentos de favelas e familiares de vítimas da violência policial falavam, afirmavam, gritavam na época dizendo que não era polícia dita comunitária que as favelas precisavam, inúmeras organizações e pesquisadores de favelas diziam que era sim de polícia que a favela precisava. Ao passar do tempo, o que vimos nas nossas ruas, no nosso lugar, foi um aprofundamento e aumento de uma militarização da vida. As nossas escolas tiveram policiais substituindo professores, nas nossas ruas tivemos toques de recolher, a nossa cultura (funk, forró, hip hop etc) passou a ser consumida pela classe média enquanto fomos proibidos de produzi-las, de se divertir, de ter o cotidiano normal. À partir disso, movimentos de favelas e de familiares romperam com alguns destes núcleos de pesquisas e organizações, e isto serviu para que nos uníssemos nas produções das nossas pesquisas, necessitamos do nós por nós e de pesquisadores que mesmo morando fora da favela, possam produzir seus trabalhos questionando o por quê para este lugar favela só serve, por exemplo, o lugar de ser pesquisado, o de questionário mesmo, e não de quem fala, que tem opinião, que questiona, que traz um diagnóstico de vida, de cotidiano, com os seus saberes, com as suas dúvidas, com o questionamento de sociedade e mundo. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 18 CORPOS, SUJEITOS COLETIVOS E A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 19 A SUBALTERNIDADE DE SUJEITOS POLÍTICOS: A FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MÃES Juddy Garcez Moron1 RESUMO A descolonização dos conhecimentos latino-americanos é de suma importância para o desenvolvimento socioacadêmico dos povos desse território. Com isso, buscando contribuir para os estudos subalternos brasileiros, o principal objetivo desse texto é o de analisar a subrepresentatividade das mães na formulação de políticas públicas. Para isso, o principal método utilizado foi a análise bibliográfica e a desconstrução de ideias enraizadas no imaginário social. O caminho percorrido pelo texto perpassa os discursos acerca da América Latina e do feminismo e culmina na transferência de voz para o objeto de estudo. PALAVRAS-CHAVE: Estudos Subalternos; Políticas Públicas; Feminismo; Clube de Mães. ABSTRACT The decolonization of Latin American knowledge is of great importance for the socio-academic development of the peoples of that territory. With this aim, the main objective of this text is to analyze the underrepresentation of the mothers in the formulation of public policies. For this, the main method used was the bibliographical analysis and the deconstruction of ideas rooted in the social imaginary. The path covered by the text permeates the discourses about Latin America and feminism and culminates in the transfer of voice to the object of study. KEY-WORDS: Subaltern Studies; Public Policies; Feminism; Clube de Mães. INTRODUÇÃO O surgimento da América Latina se deu após o que os europeus chamaram de “descobrimento”, termo historicamente errôneo e etnocêntrico, uma vez que o tal território já era habitado por povos diversos. Portanto, para que se tenha uma sociedade mais justa, igualitária e equitativa, é preciso compreender que a histórica latino-americana é formada, dentre muitos fatores, por opressões. Um desses abusos é a marginalização da mulher enquanto ser social. A exclusão das mulheres do processo de formação identitária do continente impactou, e repercute até hoje, nas relações sociais, culturais, políticas, econômicas, étnicas e de classe até hoje. O patriarcado ainda é marca evidente das sociedades na América Latina, em especial no Brasil. Estudos feministas e pós-coloniais, principalmente no campo das Relações Internacionais, da História e das Políticas Públicas, almejam, hoje, debater questões de gênero em comunhão com colonialidade e, muitas vezes, com o viés de classe. No entanto, apesar dos 1 Discente do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI) na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). E-mail: juddygarcez@hotmail.com Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 20 recorrentes esforços acadêmicos de abordagem de temáticas diversas, muitas vezes alguns grupos seguem sendo deixados de lado. Para Diniz (2015), na América Latina o movimento feminista teve grande importância. No entanto, ele restringiu-se a grupos particulares e mais instruídos, sendo a maior parte das mulheres melhor representadas por aquelas pertencentes as camadas populares. Isto é, a maioria das mulheres que participavam da luta por melhorias figuravam, também, nos movimentos que exigiam condições básicas de sobrevivência. Assim sendo, o principal objetivo desse trabalho é olhar para as vozes femininas subrepresentadas e, através de um recorte grupal, analisar a luta que as mães travam enquanto sujeitos políticos para serem ou até mesmo se sentirem representadas na formulação de leis e implementação de políticas públicas. Através da análise bibliográfica e da desconstrução de conceitos, alguns deles apregoados no imaginário social, o texto busca dar voz a uma luta de mulheres que foram sistematicamente silenciadas ao longo da construção do Estado-Nação brasileiro. A DESCONSTRUÇÃO DA AMÉRICA LATINA A construção de um ideário latino-americano é externa a esse território. No que se relaciona ao nome em si, e não ao território físico, o conceito de América Latina veio primeiramente dos ibéricos, passando pelos franceses e chegando aos que podem ser considerados norte-americanos. Tal construto marginalizou e solapou qualquer tentativa de valorização dos povos indígenas, negros e/ou nacionais de uma maneira geral (FARRET; PINTO, 2011) A identidade latino-americana, que não é e não possui a pretensão de ser homogênea, é difícil de ser compreendida, dentre muitas as causas, devido a sua amplitude. O famigerado “caldeirão cultural”, que popularmente dizem ser o Brasil, pode ser estendido para a América Latina como um todo: não há uma unidade linguística, cultural, política, étnica ou econômica. Segundo Farret e Pinto (2011), um fator especialmente problemático na abordagem de um vasto território através de uma única conceituação identitária é que não são levados em consideração os povos nativos da região e nem os povos africanos que foram trazidos para esse lugar ao longo dos séculos. Um agravante dessa situação é, ainda, a aceitação de que tais povos participaram da formação identitária do continente, porém através do viés da dominação, dos olhos do opressor, o que não permite a compreensão de como ocorreu, de fato, esse processo. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 21 A discussão acerca da formação da identidade latino-americana é vasta. Contudo, atendo-nos um pouco menos à origem do termo, e um pouco mais a coletividade da área, há de se observar quais são as bases sociais, políticas e econômicas sob as quais boa parte dos Estados foi erguida. De acordo com Ianni (1987), a questão nacional é um ponto-chave na compreensão de algumas lutas e dicotomias existentes nos países latino-americanos. As dualidades estruturais são antigas e representam barreiras intransponíveis. As oposições entre indígenas e americanos, entre africanos e americanos, entre barbárie e civilização são alguns exemplos de dualismos que imergem o continente em um looping, em uma espécie de ciclo vicioso. Ainda para Ianni (1987), a marcante presença de revoluções, tiranias e de uma fraca democracia ocorre, dentre tantos fatores, devido a inabilidade de criar mudanças, rupturas capazes de quebrar essa estrutura cíclica. Para o autor, um dos segredos das revoluções cubana e sandinista foi a capacidade que ambas tiveram de serem revoluções nacionais e sociais. Fundam-se nas desigualdades que a revolução burguesa, em Cuba e na Nicarágua, não foi capaz de resolver, ou encaminhar de modo a articular maiores segmentos da população em termos de povo, de coletividade de cidadãos. Além das contradições de classes, em âmbito interno e externo, entram em causa as contradições culturais, raciais e regionais. Isto é, o operário, camponês, mineiro, empregado e outros ingressam na luta também contra membros de um povo desprezado por suas características culturais e raciais (IANNI, 1987, p.37). Um grande exemplo da necessidade de alinhamento entre mudanças políticas e sociais é o Haiti. Primeira colônia americana a desempenhar uma revolta escrava com sucesso, o país viu-se à margem do sistema internacional devido aos interesses externos na área e a incapacidade de produzir uma mudança societal passível de unir os dois grupos restantes e divergentes no país, a camada negra, mais pobre, e a elite mulata, cada vez mais rica e díspar da grande massa. É pertinente notar, entretanto, que, apesar do longo caminho percorrido pelos latinoamericanos e das inúmeras revoltas no continente, poucos são os grupos representados nessas lutas e libertações. No próprio artigo de Ianni (1987), há a menção somente a homens. O que há de épico nas lutas simbolizadas por Tausaint Louverture, Francisco de Miranda, Simón Bolívar, José Artigas, José Morelos, Miguel Hidalgo, Bartolomé Mitre, Bernardo O’Higgins, Antonio Sucre, José Bonifácio, Frei Caneca, Rámon Betances, José Martí e muitos outros, está enraizado na façanha destinada a emancipar a colônia, criar o Estado, organizar a Nação (IANNI, 1987, p.6). Há de se perguntar, então, como é possível a criação de um ideário de Nação, sem a participação plena de todas as camadas da sociedade civil, em especial as minorias, como as mulheres, os negros, os LGBT, os transexuais e outros grupos subrepresentados. Claramente é necessário observar o período histórico e os momentos social, político, econômico, cultural e Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 22 internacional nos quais essas construções estavam inseridas. Ainda assim, partindo desse ponto, é de extrema importância dar voz àqueles que não puderam tê-la antes. Portanto, para que a construção da América Latina, de seus grupos, sujeitos e políticas sejam compreendidos, é preciso antes, desconstruí-la e dar voz aos oprimidos, aos subalternos e, com isso, trazer a verdadeira mudança necessário para as sociedades inseridas nesse termo. A SUBALTERNIZAÇÃO DA FALA Abandonando o contexto mais amplo da América Latina e adentrando um pouco mais a fundo no cenário brasileiro e em seu entorno, inúmeros questionamentos surgem quando o debato sobre a sociedade é levantado. Nos estudos feministas e pós-coloniais brasileiros muito se fala sobre a participação da mulher enquanto agente político. Poucos textos, porém, abordam a representatividade das mulheres com deficiência, das mulheres negras, das mulheres idosas e das mulheres mães. Há, assim como em inúmeros movimento político-sociais, uma forte divisão dentro do feminismo, o que influencia diretamente no modo como os estudos feministas são conduzidos e aceitos. No âmbito das Relações Internacionais enquanto campo de estudo, quando o feminismo se encontra com o pós-colonialismo, há uma junção, uma complementaridade que culmina na união da desconstrução do patriarcado e da dominação dos saberes, bem como na oposição analítica contra as hierarquias de poder internacionais e regionais. Tais estudos pretendem, ainda que não de forma explícita, responder a pergunta feita por Spivak (1942) no título de seu livro “Pode o subalterno falar?”. A fim de responder tal questionamento e entender qual é um dos grupos subalternizados na formulação de políticas públicas no Brasil é preciso recorrer primeiro a célebre filósofa Djamila Ribeiro. Quando muitas vezes é apresentada a importância de se pensar políticas públicas para mulheres, comumente ouvimos que as políticas devem ser para todos. Mas quem são esses “todos” ou quantos cabem nesses “todos?” Se mulheres, sobretudo negras, estão num lugar de maior vulnerabilidade social justamente porque essa sociedade produz essas desigualdades, se não se olhar atentamente para elas, se impossibilita o avanço de modo mais profundo (RIBEIRO, 2017, p.41). Outro grupo passível de se encaixar no questionamento da autora é aquele formado por mães. Muitas vezes ignora-se o fato de que elas são boa parte da camada social menos favorecida e de que muitas delas precisam, sim, terem suas necessidades específicas atendidas. Há de se reconhecer que existe a formulação de políticas públicas voltadas para grupos minoritários e/ou excluídos. Contudo, é preciso enxergar que mesmo dentro desses grupos há Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 23 subdivisões, nas quais residem pessoas ainda mais marginalizadas e esquecidas pelo poder público. Em seu texto, Ribeiro (2017) levanta uma discussão necessária: se a mulher, de acordo com Simone de Beauvoir (1949) é o outro em comparação ao homem, logo, a mulher negra é o outro do outro, sendo marginalizada mesmo com relação a mulher branca. Indo além, a ideia de “outro do outro” pode significar, também, para além da mulher negra, a mulher lésbica, a mulher transexual, a mulher indígena e a mulher mãe. O sexismo apresenta-se, nesse caso, como uma base comum a todas elas. Contudo, as opressões racista, homofóbica, étnica, geracional e de classe são especificidades, desvios, que demandam atenção especial na formulação de políticas e no atendimento às demandas dessas mulheres. A opressão feita a mulher mãe, que é o principal objeto de estudo do presente trabalho pode perpassar todos os demais abusos. Ou seja, é possível que essa mulher já sofra com outras formas de violência e exploração. Todavia, esse fator, a maternidade, torna-a socialmente vulnerável devido ao tratamento que é oferecido às mães por grande parte do setor público e dos estratos sociais. Para que se desenvolva a proposta do trabalho, antes de tratar das questões contemporâneas concernentes a formulação de políticas públicas para as mulheres mães, é preciso contextualizar, historicamente, a luta das mulheres em um aspecto mais amplo. Traçar esse diálogo entre o passado, que não representava todas as mulheres, mas que determinou a base para os direitos atuais, e o presente, que busca abarcar todas as lutas e superar a falta de representatividade, é de vital importância para o fomento da equidade dentro e fora do movimento feminista. De acordo com Pougy (2017), o movimento pela igualdade de direitos entre homens e mulheres no mundo pós-construção do Estado-Nação é anterior ao do movimento pelo sufrágio universal. Já na França iluminista mulheres questionavam a falta representatividade feminina na Declaração da Assembleia Nacional. Um exemplo de mulher de destaque no século XIX é Jeanne Deroin que questionou, em meio ao conservadorismo, a ideia de que a maternidade é natural e a paternidade é direito. A conquista do direito ao voto pelas mulheres europeias na primeira metade do século XX configurou grandes avanços no campo liberal. Entretanto, esse fato não representou, por si só, mudança ativa na vida de todas as mulheres, em especial as subrepresentadas. A luta das feministas francesas pelo direito ao voto revelou caminhos e agendas distintas, por meio de argumentos e estratégias diversas. O ponto em comum, contudo, é a misoginia dirigida às mulheres na sua ousadia em reclamar igualdade jurídica com os homens. [...] O individualismo liberal indiretamente interpelado pelas feministas francesas, contraditoriamente serviu para consolidar uma perspectiva colonizadora de Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 24 igualdade e liberdade, na qual a referência universal do feminino foi a mulher ocidental branca, rica, europeia e heterossexual (POUGY, 2017, p.5). Esse movimento, que ficou conhecido como a primeira onda do movimento feminista, foi seguido pelo texto já mencionado de Simone de Beauvoir (1949), um dos precursores da segunda onda feminista, marcadamente conhecida por tratar dos aspectos políticos e opressores do feminino e das mulheres e da libertação sexual nos anos 60. Daquele momento em diante, em diferentes conjunturas, o feminismo passou a ocupar a cena pública com suas bandeiras de luta, ações e estratégias que, no geral, se constituem como questionamento às bases da exploração-dominação que demarcam a experiência das mulheres ao longo da história patriarcal. O feminismo, como sujeito político, mobiliza-se na crítica radical dos elementos estruturantes da ordem patriarcal-capitalista, confrontando-se com o papel ideológico-normativo de instituições como Estado, família, e igreja na elaboração e reprodução dos valores, preconceitos e comportamentos baseados na diferença biológicas entre os sexos (CISNE; GURGEL, 2008, p.70). O que se seguiu a esse período foi uma junção de elementos diversos na luta feminista. Não há consenso acerca da definição dos pontos principais da segunda, da terceira ou até mesmo de uma possível quarta onda. No entanto, sabe-se que os estudos pós-coloniais e subalternos adentraram no movimento feminista na década de 70 e representam essa intersecção entre academia e sociedade. Voltando, então, para os debates atuais, é possível perceber que um dos principais desafios dos estudos subalternos é superar o poder heterossexual, macho, branco, rico e europeu. “A tarefa urgente, portanto, é pensar o projeto feminista por meio da crítica à colonização, buscando práticas políticas em vista de outro mundo, sem essencialismos e idealizações dos sujeitos.” (POUGY, 2017, p.1). Desconstruir a historicidade masculinista e dar voz aos oprimidos é preciso. Utilizar espaços acadêmicos para discutir corpos e sujeitos marginalizados é um dos primeiros passos para o desenvolvimento de uma consciência social. Assim sendo, o próximo capítulo, seguindo a linha estipulada para o presente artigo, abordará a necessidade de formulação de políticas públicas para as mulheres mães, que são subrepresentadas política e socialmente. POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MÃES NO BRASIL Antes de tudo é preciso entender o que é uma política pública. Política pública pode ser entendida “como o campo do conhecimento que busca, ao mesmo tempo, ‘colocar o governo em ação’ e/ou analisar essa ação (variável independente) e, quando necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas ações (variável dependente)” (SOUZA, 2006, p.26). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 25 Partindo, então, do pressuposto que política pública pode ser uma ação estatal voltada para a população em geral, ou parte dela, há grande urgência de que os Estados compreendam todos os grupos e sujeitos que configuram sua fonte de poder. No caso específico de políticas públicas voltadas para mulheres no Brasil, pode-se dizer que ele convergiu com o momento histórico da terceira onda feminista. De acordo com Pontos e Damasceno (2017), o feminismo no Brasil teve maior aderência a partir dos anos 70, devido, principalmente, às organizações sindicais, que atuavam sob a defesa da incorporação das mulheres no mercado de trabalho e a liberdade política no país. Foi nesse mesmo período que o viés de gênero foi absorvido por políticas públicas e a temática adentrou na estrutura estatal. Agrupamentos de mães já podiam ser vistos na época. Segundo Diniz (2015), mães formavam pequenas associações na região sul de São Paulo. No começo esses grupos estavam relacionados à convivência e ao ensino de costura, bordados e outros trabalhos similares. Porém, com o tempo, esses encontros tornaram-se locais de luta e movimentação, onde discussões acerca da busca por qualidade de vida e serviços básicos que deveriam ser oferecidos pelo Estado passaram a ocorrer. Os clubes de mães, como eram conhecidas essas associações, cresceram em número e em qualidade. Logo eles articularam-se entre si e as mães passaram a trocar experiências comuns e a cruzarem informações sobre possíveis formas de enfrentamento dos problemas que ocorriam na periferia. Habitação precária, a pobreza da infraestrutura urbana, a qualidade ruim do transporte público e o sucateamento do saneamento básico passaram a ser pautas tratadas cada vez mais (AZEVEDO; BARLETTA, 2011). Outros tópicos também passaram a aparecer com frequência: relacionamentos entre casais e a saúde das crianças, que escalaram, posteriormente, para a percepção de que existia uma relação entre o que elas passavam, ou seja, o privado, e temáticas políticas e sociais, isto é, a esfera pública. Os baixos salários, a precariedade dos aparatos de saúde oferecida nos bairros, a falta de água encanada e escassez de escolas e creches impactavam a vida dessas mulheres (AZEVEDO; BARLETA, 2011). Foi exatamente nesses clubes de mães que surgiram diversos movimentos com caráter reivindicatório. O caráter político que elas haviam ganhado dera margem para solicitações concernentes a educação, transporte, saúde e saneamento básico. O Movimento Custo de Vida, o Movimento pela Anistia e o Movimento da Luta por Creches são apenas alguns exemplos da luta que emergiu através dessas mulheres (DINIZ, 2015). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 26 O Primeiro Congresso da Mulher Paulista, realizado em 1979, marcou o nascimento de uma luta mais organizada e direcionada. Ele possibilitou, também, a propagação e um maior desenvolvimento de muitos movimentos, dentre os quais destaca-se a Luta por Creche. A temática sempre esteve presente nos encontros das mulheres da periferia e algumas sindicalistas. “Em alguns bairros de São Paulo, a luta por creche adquiriu tanta força, que a prefeitura implantou um convênio para fazer creches comunitárias, experiência que se revelou muito significativa para o movimento” (TELES, 1993, p.103). O movimento da Luta por Creche representa uma das primeiras formas de organização político-social das mães enquanto um grupo unitário. Essa luta fez parte, durante anos, do cenário feminista paulistano. Em 1980 essas e outras mães participaram ativamente do Segundo Congresso da Mulher Paulista. É válido notar que nesse momento as entidades declaradamente feministas já atuavam de forma mais forte na organização desses encontros. As mães, muitas vezes não relacionadas diretamente a esses grupos, seguiam fazendo aquilo que se propunham, que eram o de exigir o atendimento as suas demandas. O cenário brasileiro, na época, já não era favorável à organização da sociedade civil, uma vez que a ditadura ainda estava em curso. Ainda assim, em 1981 um Terceiro Congresso da Mulher Paulista foi organizado. Seu desfecho foi negativo: houve uma cisão entre as entidades feministas e os partidos políticos de esquerda que tentaram participar desse encontro. Tal rachadura culminou na dificuldade de prosseguimento com uma agenda ampla, sendo considerado necessário, nesse momento, que cada grupo buscasse sua própria forma de militância (TELES, 1993). A cisma que se deu deve-se, ainda, a necessidade de afirmação que alguns possuíam. Para muitas mulheres não bastava participar dos encontros e atuar socialmente. Era preciso ser feminista. Era necessário ter consciência política. Tal exigência pode ser um dos fatos responsáveis pelo destacamento do grupo de mães das demais associações de mulheres. É preciso entender que muitas dessas mães eram e são marginalizadas e não conseguem, devido a diversos fatores (em especial a dupla ou até mesmo tripla jornada de trabalho) participarem politicamente de forma tão presente. Ainda assim, após a Criação do Conselho Nacional de Direitos da Mulher (CNDM) em 1985, as mães e outros grupos de mulheres conseguiram se ver um pouco mais representadas. O Conselho é criado com autonomia administrativa e financeira, vinculado ao Ministério da Justiça, com status de "Ministério". O CNDM define-se por atuar de forma imediata em três linhas: Creches, Violência e Constituinte. Elabora projetos para intervir também nas áreas da saúde, do trabalho, da educação e da cultura e teve um papel importante no processo de democratização do país, garantindo que grande Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 27 parte das reivindicações do movimento de mulheres fosse incluída na Constituição de 1988 (PONTES; DAMASCENO, 2017, p.3). Ao longo dos anos o cenário oscilou. No final do governo Sarney mudanças ocorreram no Conselho. Em 1990, no governo Collor de Melo, foram extintas as últimas prerrogativas do Conselho. Na era FHC o Conselho seguiu com pouca autonomia política e financeira e sem interesse no diálogo com movimentos de mulheres e feministas. Já no que pode ser chamado de “governo da nova esquerda”, entendido como a época Lula, os movimentos de mulheres floresceram novamente. “O então presidente Lula, criou a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) [...] fundada com a missão de erradicar todas as formas de desigualdade que atingem as mulheres, as quais ainda são partes constitutivas das populações ditas ‘vulneráveis’” (PONTES; DAMASCENO, 2017). Desde a criação da SPM, muitas leis foram redigidas e aprovadas e políticas públicas para as mulheres foram implementadas. Dois grandes exemplos são a Lei Maria da Penha, de 2006 e a lei que define o feminicídio, promulgada em 2015. Outro fato de destaque foi a fundação, em 2012, da Coordenação Geral da Diversidade. Esse órgão reitera o compromisso estatal de promover política públicas para as mulheres indígenas, negras, lésbicas, jovens, idosas e com deficiência. Apesar da grande conquista, entretanto, não é possível observar a menção ao atendimento das mães. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como pôde ser observado no primeiro capítulo desse texto, a América Latina não é una em sua formação identitária, ainda que muitos pensem que sim. Esse território, formado por diferentes povos e culturas e marcado por diferentes formas de opressão pode ser considerado um só em apenas alguns aspectos, dentre os quais destaca-se as dualidades e contradições presentes em sua história. Outro fator de destaque é a falta de participação e a subrepresentatividade da mulher na sociedade civil, em especial a mulher que faz parte de um grupo já excluído dentro do âmbito feminino. Trazendo essas noções para o contexto brasileiro, nota-se que a marginalidade feminina no Brasil vai muito além daquela relacionada ao homem: os próprios grupos de mulheres não são homogêneos e coesos. É preciso, então, ir além do senso comum, que parte do princípio de que mulher só é passível de ter suas demandas atendidas caso seja branca, heterossexual, rica e muitas vezes europeia. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 28 Com isso, ao analisarmos a formulação de políticas públicas voltadas para as mulheres faz-se necessário recorrer ao povo, ouvir as vozes silenciadas. No caso desse estudo, as vozes que falam são as reverberações das demandas das mulheres mães, que possuem participação social e política desde a inserção mais intensa dos movimentos femininos no Brasil junto ao Estado. Logo, através da análise de autores que tratam da temática, conclui-se que, apesar dos avanços ocorridos na representatividade das mães na esfera de formulação e implementação de políticas públicas, há ainda um longo caminho a se percorrer. O diálogo e a abertura de espaço para que elas comuniquem as suas solicitações são de extrema importância para a construção, ou melhor, reformulação, de uma sociedade civil mais equitativa. Para tal, é preciso que se retome novamente o questionamento de Spivak (1942), e modifique-se a sua pergunta, nesse caso, para que ela seja feita de outra forma: pode uma mãe falar? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, J.; BARLETTA, J. O Cedem e os documentos dos Clubes de Mães da Região Sul (SP) Cadernos Cedem, v.2, n.2 2011 Disponível em <http://www2.marilia.unesp. br/revistas/index.php/cedem/article/view/1647> Acesso em 28 mar. 2019. BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1960a. CISNE, M.; GURGEL, T. 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As Políticas Públicas para mulheres no Brasil: avanços, conquistas e desafios contemporâneos. SEMINÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 29 GÊNERO 11 & 13TH WOMEN’S WORLD CONGRESS (Anais Eletrônicos): Florianópolis, 2017. Disponível em <http://www.en.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1498 660593_ARQUIVO_artigomundodasmulheres.pdf> Acesso em 24 abr. 2019 POUGY, L. Acidadania feminina em perspectiva: Políticas públicas, feminismo e desafios atuais. SEMINÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO GÊNERO 11 & 13TH WOMEN’S WORLD CONGRESS (Anais Eletrônicos): Florianópolis, 2017. Disponível em <http://www.en.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1498327951_ARQUIVO_Tra balhoLiliaGPOUGY.pdf> Acesso em 24 abr. 2019 RIBEIRO, D. O que é lugar de fala? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2017. SOUZA, C. Políticas Públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, nº 16, jul/dez 2006, p. 20-45. 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Apresentamos as técnicas da mariscagem enquanto performance com a perspectiva de compreender suas ações e características, e como se dá o processo que produz a identidade cultural e sobrevivência dos marisqueiros. PALAVRAS-CHAVE: Performance; Mariscagem; Cultura; Identidade. ABSTRACT Este artículo presenta una mirada a los marinos de la ciudad de Santo Amaro da Purificação, en Bahía, a través de estudios etnográficos de las escenas performáticas de la obra de mariscos. El clásico de la performance Richard Schechner y la antropología francesa Marcell Mauss fueron utilizados para problematizar las discusiones y nociones que verifican el desempeño de las técnicas corporales en la práctica de los mariscos. Presentamos las técnicas de los mariscos como un espectáculo con la perspectiva de entender sus acciones y características, y cómo se produce el proceso que produce la identidad cultural y la supervivencia de los marinos. PALABRAS CLAVE: Desempeño; Mariscos; Cultura; Identidad. INTRODUÇÃO Recôncavo Baiano é uma área que se localiza em torno da Baía de Todos os Santos, composto por diversos municípios que tem limites entre a cidade de Salvador. Dentro do Recôncavo Baiano está à cidade de Santo Amaro da Purificação, situada a 21 km a norte- oeste de Candeias, tendo São Francisco do Conde, Amélia Rodrigues e Saubara como municípios vizinhos e tem cerca de 61.961 mil habitantes segundo dados do IBGE de 2017. Fundada no ano de 1557 foi construída sobre terraços ao lado do Rio Subaé, tornandose cidade em 13 de março de 1837. A região era habitada pelos índios Caetés, Potiguaras e Carijós, a primeira povoação localizava-se às margens do Rio Traripe, próximo ao mar. O município foi criado com o nome de Vila de Nossa Senhora da Purificação e Santo Amaro, por existir capelas consagradas aos santos de mesmo nome, que depois passa a ser denominada 1 Graduanda do Bacharelado Interdisciplinar em Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Email: janapaixaocultura@gmail.com. 2 Graduanda do Curso de Publicidade e Propaganda da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Email: larissarh71@gmail.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 31 Santo Amaro da Purificação. A região que está localizada a cidade tem sua drenagem pela bacia do Rio Subaé, influenciado pelo clima tropical úmido e subsumido medindo cerca de 24º 7 C na temperatura média. Muito embora a cidade seja construída a partir de seus valores cotidianos, a mesma tem sofrido uma devastação e perda de dinamismo econômico, e devido o desaparecimento de emprego algumas pessoas tiveram que sair da cidade em busca de novos empregos gerados pela região de Salvador. Aqueles que não conseguem emprego seguem a vida no comércio da feira livre, vendendo frutas, verduras etc. Dentro deste universo existe também outro modo de vida cultural que é a venda do marisco catado, espécie de crustáceo e molusco do mar que vive numa concha dura e que depois de pronto é servido pelo nome de mariscada. CARACTERÍSTICAS DA MARISCAGEM E SUA TÉCNICA NO BAIRRO NOVA SANTO AMARO A mariscagem, como é conhecida, é a retirada do marisco da areia do mangue. O nome também é utilizado para chamar o processo de tirar o crustáceo de dentro da concha, à casca dura que o protege. A extração de organismos aquáticos das águas continentais e águas marinhas vêm sendo o sustento de algumas famílias da região do recôncavo baiano, contudo na cidade de Santo Amaro e cidades circo vizinhas. No bairro de Nova Santo Amaro as famílias de origem popular e com renda baixa, que encontram grande dificuldade de emprego, acabaram aderindo à prática da mariscagem para sobreviver no ambiente. A mariscagem é uma tradição marcada por um pouco de dificuldade, como pelo esforço físico caracterizado e pela extensa ação de remar tanto na ida para o mangue quanto na volta. Muitos dos marisqueiros ou cavador de mapé3 como são chamados aprenderam a técnica de mariscar vendo seus pais desde pequenos quando iam tomar banho e brincar no manguezal4 em direção as coroas5 onde se encontra os mariscos. Existem dois tipos de mapé mais catado pelos marisqueiros que são o mapé macho e mapé fêmea que são diferenciados pelo seu tamanho. 3 Espécie de marisco, diferenciado pelo seu tamanho, o grande é o mapé macho e o menor é o mapé fêmea. (JESUS, 2018). 4 Os manguezais são ecossistemas que ocorrem nas zonas de maré; formam-se em regiões de mistura de águas doces e salgadas como estuários, baías e lagoas costeiras. Estes ambientes apresentam ampla distribuição ao longo do planeta, ocorrendo nas zonas tropicais e subtropicais onde as condições topográficas e físicas do substrato são favoráveis ao seu estabelecimento (MANGUEZAIS EDUCAR PARA PROTEGER, 2001, p.6). 5 A coroa é um banco de areia, ou seja, o acumulo de sedimentos (areia e cascalho) depositados no leito de um rio, constituindo obstáculo ao escoamento e à navegação. (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA) Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 32 Em Nova Santo Amaro, as técnicas de trabalho são passadas de pais para filhos que como forma de tradição acaba criando a identidade das famílias do bairro, caracteriza-se por ser uma profissão transmitida de geração a geração mediante o convívio familiar. Os cavadores de mapé saem de casa bem cedo de canoa ou barco, por volta das sete horas da manhã, levando consigo vasos de água gelada, merenda, frutas para o caso de sentirem fome lá. Vestem calça comprida e camisas de mangas longas para se proteger de picadas de mosquitos, usam também bastante protetor solar contra o sol forte que é comum no mangue, leva também uma enxada com cabo pequeno que pode ser vista nas imagens 1 e 2 abaixo, a enxada utilizada para cavar no momento da catação. Essa é a preparação inicial usada para que se tenha uma boa mariscagem durante o tempo que ficam no mangue. Lembrando que com a enxada sega o cavador não consegue ter um bom dia de trabalho, por que isso impossibilita no momento de cavar. Chamo de técnica um ato tradicional eficaz (e vejam que, nisto, não difere do ato mágico, religioso, simbólico). É preciso que seja tradicional e eficaz. Não há técnica e tampouco transmissão se não há tradição. È nisso que o homem se distingue sobre tudodos animais: pela transmissão de suas técnicas e muito provavelmente por sua transmissão oral (MAUSS, 2003, p. 407). MAUSS (2003, p.405) procura enfatizar também que “a noção de educação podia sobrepor-se a de imitação”. As habilidades adquiridas pelos cavadores não foram através da tradição oral, mas sim da imitação dos gestos e da vivência da prática, com poucas modificações em relação ao método praticado durante anos. Uma pessoa que não tem o costume de mariscar tende a ter dificuldades na hora de realizar a técnica de retirada do marisco. Discorre o entrevistado “na verdade o trabalho é agilidade e muita prática, para quem está chegando agora terá que aprender muito” JESUS (2018). Em Nova Santo Amaro existem três maiores cavadores de mapé, um deles com 61 anos, aprendeu a técnica ainda criança aos 11 anos de idade, já chegou a catar 40 litros por dia, enquanto um de seus amigos já tirou até 60 litros por dia. Ressaltando que estas pessoas devido a sua idade não conseguem ter mais as mesmas agilidades do passado, mas ainda realizam a atividade como podem. O tempo de mariscagem depende da maré, chegando ao mangue por volta de oito horas da manhã o cavador precisa ser rápido na catação, sendo que ele cata em torno de 7,5 litros, que é a quantidade média que se catam numa manhã em quanto à maré não sobe de volta. Dentre as espécies esta o mapé macho e a fêmea. A relação do sujeito (marisqueiro) e objeto (marisco) só ocorre devido à ação temporal que precisa ser dinâmica, ou seja, é necessário o tempo em Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 33 que a maré enche e esvazia e a agilidade do marisqueiro de encontrar o marisco. A autora Fernanda Borges (2006) abaixo discorre: O sujeito e o objeto são ou estão compostos, postos simultaneamente. Colocado, portanto, enfatiza a posição, e composto enfatiza a situação, pois “composto é dinâmica, colocado é geometria; uma assinala as forças, outra assinala o espaço, o lugar e a disposição relativa dos dois ou mais objetos em presença (BORGES, 2006, p.30). De fato, como discorre BORGES (2006, p.30) mesmo possuindo sujeito é necessário o objeto o lugar e o espaço para que a dinâmica ocorra, pois sem esta ligação não existirá a presença. A pesca artesanal caracteriza-se por ser um regime produtivo extrativista de subsistência, ou seja, materiais e equipamentos com pouca ou nenhuma sofisticação. O mapé é mais catado pelos marisqueiros do bairro, e depois de catados as suas cascas não servem mais e descartada no lixo. Nesta perspectiva de produção da mariscagem acentua a autora GOMES (2009, p.3). Elas o faziam de cócoras ou debruçadas sobre a areia, cavavam e catavam as pequenas conchas com grande maestria. A quantidade do produto pescado sempre dependia do peso que se aguentava transportar. A denominação que é dada ao marisco (chumbinho), parece fazer sentido, pois eles são pequenos, não tão pequenos quanto à esfera do chumbo industrializado para arma de fogo, mas consideravelmente pequenos e pesados. Antes de serem degustados, os chumbinhos eram retirados das conchas e depois passavam por um processo duplo de fervura; a primeira vez é para poder tirá-los das conchas, e a segunda, faz-se necessária para que seja retirada uma substância, um caldo da cor de chumbo, que pode provocar mal estar nas pessoas. Quanto às conchas do chumbinho, chamadas de cascas, eram lançadas na frente, no lado ou no fundo das casas das marisqueiras que, acumuladas formavam montes, e outras revestiam o solo como se fosse um tapete branco, onde naturalmente as pessoas caminhavam sobre elas. Ao contrário das marisqueiras de Salinas, para descobrir onde está o marisco, os cavadores de mapé observam primeiro em cima da areia, se existir pequenos furinhos é sinal de que ali deve ser cavado. Eles ficam numa posição de rolamento em pécom as pernas afastadas na largura do quadril e com o tronco reto, conforme mostra a imagem a seguir, para eles não existe outra posição, caso contrário não consegue trabalhar. Como discorre o autor MAUSS (2003, p.407) “o corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem. Ou, mais exatamente, sem falar de instrumento: o primeiro e o mais natural objeto técnico, e ao mesmo tempo meio técnico, do homem, é seu corpo”. Vale ressaltar, a forma de como a atitude corporal se diferencia de acordo a cada costume e cada sociedade. O autor procura evidenciar que cada sociedade tem um “redutor de semelhanças do uso do corpo”, de como ele é educado a partir de aspectos culturais e de como a atitude corporal muda de acordo a cada sociedade. A prática das mulheres de Salinas da Margarida é distinta a dos marisqueiros de Nova Santo Amaro, visto que eles usam uma enxada pequena, uma mão é Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 34 usada para cavar e a outra para pegar o marisco, não existe outra maneira, para eles é a melhor forma existente e o corpo já está acostumado com a prática. Quando dão a primeira cavada é preciso ser rápido com a outra mão sem soltar a enxada, pois o mapé se esconde enterrando-se cada vez mais para o fundo da areia. Para recapturar aqueles que fogem é preciso ter cuidado para não cortar as pontas dos dedos com a casca do marisco, para evitar isso alguns marisqueiros usam luvas. RELAÇÃO ENTRE A PERFORMANCE E MARISCAGEM Pensando a performance como toda execução de movimentos e ações que o corpo desenvolve ao longo do dia a dia, ou seja, uma série de repetições, pode-se observar aspectos performáticos em situações da vida cotidiana, como brincar, estudar, cozinhar, na relação sexual, no trabalho. Para SCHECHNER (2006, p.2), realizar performance pode ser entendido como “sendo, fazendo e mostrar fazendo”, e que elas “só existem quando há ações, interações e relação com o outro”. A vida é sempre composta por repetições de comportamentos do dia a dia que o corpo certamente já deve ter experiênciado. Para compreender a mariscagem enquanto performance é necessário entender que toda técnica tem sua forma. Mariscar em Nova Santo Amaro constrói e forma uma identidade para os que mariscam. Em campo observamos os marisqueiros por sua faixa etária de idade foi visto que os mais jovens, conforme mostra a imagem 1 conseguem adaptar as técnicas de trabalho aprendidas ao seu corpo em uma posição confortável, joelhos dobram e coluna envergada como se eles fossem agachar diferentes dos mais antigos. Já os mais antigos fazem a posição rolamento de pé com a coluna e pernas retas sem nenhuma dificuldade e dor, conforme mostra a imagem 2 a seguir. Por tanto as técnicas variam conforme a faixa etária de idade. Imagem 1, jovens catando marisco Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 35 Fonte: Larissa Rezende, 2018. Imagem 2, catando marisco. Fonte: Janaina Paixão, 2018. Performances marcam identidades, cobram o tempo remodulam e adornam o corpo, e contam estórias. Performances- de arte, rituais, ou da vida cotidiana- são “comportamentos restaurados”, “comportamentos duas vezes experienciados”, ações realizadas para quais as pessoas treinam e ensaiam (SHECHENER, 2006, p.2). Performance e mariscagem se relacionam a partir do momento em que podemos entende-la por comportamentos restaurados, ou seja, comportamentos duas vezes já experiênciado, mas de forma diferente como, por exemplo, as pessoas que saem pra mariscar sabem o que vão encontrar no mangue, elas fazem os mesmos movimentos o ambiente é o mesmo o caracteriza a performance da mariscagem porém em lugares diferentes devido a movimentação do marisco. Observar a mariscagem enquanto performance é entender que a técnica dos marisqueiros parece um ritual, onde o comportamento da mariscagem acontece na interação e na relação dos que mariscam, interação com o rio, areia, enxada, canoa, água, inclusive com a natureza. Várias esferas se misturam levando a entendera técnica de mariscar como uma teatralização que elabora a performance. A educação da técnica é eficaz e natural, todos busca Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 36 ficar na mesma posição, porem se posiciona de formas diferentes de acordo com o bem-estar do corpo, vai cavando em forma de zig-zag que nem se dão conta. A PERFORMANCE DA MARISCAGEM E EXPRESSÃO DE IDENTIDADE DO BAIRRO O dia a dia do marisqueiro leva-nos a pensar que a performance realizada a cada caça expressa a identidade e cultura da localidade, os marisqueiros não trabalham em grupo, mas sim individualmente, cada um por sua conta, porém reflete cada identidade como se fosse num grupo. Os marisqueiros daquela região contam que a pesca é cada um por sua conta e que nunca tiveram a idéia de poder trabalhar em grupo, porém eles se identificam com um grupo por que é no meio dos outros amigos de trabalho que eles aproveitam pra jogar conversa fora e conversar sobre coisas da vida. TURNER (2015, p. 96), chama de “grupo-estrela” é aquele com que a pessoa se identifica mais profundamente e no qual encontra mais satisfação de seus principais esforços e desejos sociais e pessoais. Por tanto é no mangue que alguns cavadores de mapé encontram paz mesmo que o mar não produza muito e eles não conseguem levar muito pra casa, mas há a alegria de esta no mangue todos os dias, de desenvolver aquela atividade por que o corpo já esta acostumado é como se fosse também à cultura do corpo, algo automático, o sujeito se sente pertencente, têm benefícios, recompensa tanto no de valor simbólico de pertencer a uma cultura como no valor de trabalho para sustento da família. Como discorre o autor acima, podemos entender que a cultura da mariscagem em Nova Santo Amaro é como um espelho onde nós podemos ver a técnica de quem trabalha e também de como quem desenvolve a técnica é capaz de observar sua própria performance vendo a si mesmo e refletir como ele pode ser visto na sociedade e por se mesmo, por que conseguem ver além de seres humanos o respeito entre si e o trabalho de cada um como pertencimento entre todos. Segundo TURNER (2015, p. 112) “fazer performance então é fazer algo surgir, consumar algo ou “executar” uma peça, uma ordem ou um projeto”. O autor também discorre que: Mas sustento que, nessa “execução”, algo novo pode ser gerado. A performance se transforma. Como já disse, as regras podem dar “forma” à performance, mas o “fluxo” de ação e interação dentro dessa forma pode conduzir a insigbts até então inéditos e mesmo gerar novos símbolos e significados que podem ser incorporados em performances subseqüentes, Formatos tradicionais podem precisar ser reformuladosnovas garrafas para um novo vinho (TURNER. 2015, p.112). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 37 Com isso podemos entender que, a performance da mariscagem é transformada em cultura a partir do momento em que as pessoas que as realizam elas podem refletir sobre elas e entender que aquilo que é gerado na sua execução não é novo mas a cada vez que se faz é remodelada, pois pra mariscar existem regras, não é qualquer pessoa que consegue, porém são as regras que constroem suas maneiras de mariscar e que são construídas e atribuídas de acordo com cada corpo. TURNER (2015, p.79), chama de fluxo, “uma pessoa “em fluxo” encontra-se em controle de suas ações e do ambiente”. Por tanto os cavadores de mapé no momento da ação e da caça ao mapé tem controle de suas ações sabem o quem devem fazer e como devem fazer por conta do tempo de experiência no trabalho, é como se conectassem as ações de cavar na busca do marisco com o ambiente a água a areia é tudo ligado um ao outro como um fio que se liga desde a chegada no mangue até o primeiro marisco catado e seu tempo de experiência. O autor também acrescenta que uma pessoa em fluxo “ela talvez não saiba disso nesse tempo de “fluxo”, mas ao refletir a respeito dele, pode perceber que suas capacidades se combinaram às demandas do ritual, de arte ou esporte”. E que “momento de “fluxo” começa quando a atividade se inicia, e os “deleites” do fluxo têm mais peso que a consciência dos perigos e dos problemas” (TURNER 2015, p. 79). Com isso podemos entender que no momento de fluxo o cavador ele não reflete sobre seu controle nesta ação, mas depois do trabalho já em casa ele pode perceber nas dores nas costas que suas causas vêm do trabalho de ficar na mesma posição que o mesmo domina há anos e ainda assim sente dores. CONSIDERAÇÕES FINAIS Pretendemos neste trabalho analisar a relação da performance na mariscagem e as técnicas do corpo, a partir dos expostos a cima consideramos que o corpo dos cavadores sempre faz e mostra ações reflexivas por meio de comportamentos previamente já experimentados, onde a performatividade dos que mariscam se sobressai na interação e relação com o outro, objetos e com a natureza. As técnicas do corpo exercidas pelos cavadores são associadas ao objeto utilizado, essa ligação entre corpo e objeto resulta na retirada do marisco. A performance do cotidiano dos cavadores de Nova Santo Amaro é como uma peça de teatro ensaiada há muito tempo, o que envolve anos de experiência de saberes adquirido que formular a cultura de mariscar da localidade. Tendo em vista os aspectos observados, o tempo todo o corpo dos cavadores realiza Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 38 performance, estando sujeitos a mudanças de estratégias e movimentos rotineiros que se alteram. Ao observarmos as coroas em que é retirado os mariscos, descobrimos várias técnicas presentes e ao relacioná-las com as teorias pôde-se ver a diferença de uma técnica bem feita (quando os marisqueiros faziam o trabalho, devido sua experiência) e a técnica mal feita (quando uma pessoa que não possuí experiência alguma faz), para realizar a mariscagem é necessário observação, técnica e principalmente prática. Consideramos a técnica de mariscar uma arte, não de forma delicada, exposta ou almejada, ela é pesada, sofrida, cansativa e necessita de muita atenção em cada movimento. Os cavadores têm uma vida exposta ao sol, chuva, remada e mosquitos, mas nada interfere seu maior objetivo que é retirar a boa quantidade de mariscos que seu corpo aguentar. Cada corpo tem sua forma de trabalhar poderíamos distinguir isso através da idade dos cavadores, porém em Nova Santo Amaro a diferença dos corpos permite que cada um realize seu trabalho de uma forma. O exemplo dos mais velhos e os mais jovens, na verdade é o tempo de experiência que faz um bom cavador naquela região é o corpo que aguenta mais ficar na posição de cavar por mais tempo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BORGES, Fernanda Carlos. A filosofia do jeito: um modo brasileiro de pensar com o corpo. Summus Editorial, São Paulo, 2006. CORPO A CORPO. Três movimentos para esticar a coluna. Disponível em: https://corpoacorpo.com.br/fitness/treino-localizado/3-movimentos-para-esticar-acoluna/3908 . 2013. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Glossário Cartográfico do IBGE. Disponível em:https://ww2.ibge.gov.br/home/geociencias/cartografia/glossario/glossario_cartografico.sht m GOMES, Rosana. A vida no vai-e-vem das águas: Mulheres marisqueiras de salinas da margarida trabalho, cultura e meio ambiente (1960-1990).Universidade do Estado da Bahia – UNEB. CAMPUS V. Santo Antonio de Jesus-Bahia, 2009. BIBLIOTECA IBGE. História da cidade em:http://www.jacuipenoticias.com/historia/amaro.htm de Santo Amaro.Disponível JESUS, Antônio. Entrevista concedida a Janaina da Paixão Santos e Larissa Rezende da Hora, 2 fev. 2018. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 39 MANGUEZAIS EDUCAR PARA PROTEGER.Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento sustentável. Projeto PLANÁGUA SEMADS / GTZ de Cooperação Técnica Brasil – Alemanha.Fundação de estudos do mar, 2001. MAUSS, Marcell [1872-1950]. Sociologia e antropologiaTítulo original: Sociologie et anthropologie Tradução: Paulo Neves: Cosac Naify, São Paulo, 2003. SCHECHNER, Richard. O que é performance?, tradução de r. l. almeida, publicada sob licença creativecommons, classe 3. abril de 2011. TURNER, Victor. Do ritual ao teatro a seriedade humana de brincar.Editora UFRJ, edição 1ª, 2015. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 40 ESTEREÓTIPOS, CORPOREIDADE E TERRITÓRIO: QUEM É O CRIMINOSO NO BRASIL? Gleison da Silva Bomfim1 Leonardo Lacerda Campos2 RESUMO O artigo objetiva analisar a maneira pela qual se constituiu a imagem e o lugar do ser negro na sociedade brasileira, a fim de compreender o processo do racismo institucional das corporações militares em suas abordagens, por estas estarem direcionadas, na maioria das vezes, aos negros/as moradores/as da periferia. O estudo é de cunho qualitativo, ancorado na revisão bibliográfica acerca da temática aqui proposta. Vale sublinhar, que diante dos avanços produzidos pela implementação de Políticas Públicas de Ações Afirmativas, constatamos que não foi suficiente para garantir a integração dos/as negros/as em nossa sociedade. PALAVRAS-CHAVE: Corporações Militares; Estereótipos; Racismo Institucional. RESUMEN El, artículo tiene como objetivo analizar la forma em que se constituyó la imagen y el lugar del ser negro em la sociedad brasilenã com el fin de entender el proceso de racismo institucional de lãs corporaciones militares em sus enfoques, porque están dirigidos, em la mayoría los habitantes de la periferia. El estúdio es de naturaleza cualitativa, anclado em la revisión bibliográfica sobre el tema propuesto aqui. Vale la pena señalar que, em vista de los avances producidos por la aplicación de políticas de acciones afirmativas, encontramos que no era suficiente para garantizar la integración de los negros em nuestra sociedad. PALABRAS CLAVE: Corporaciones militares; Estereotipos; Racismo Institucional. INTRODUÇÃO Em 06 de fevereiro de 2015, acompanhamos, na mídia baiana, a notícia da ação envolvendo policiais militares da Rondespe (Rondas Especiais) em Salvador, que atua com os mesmos princípios do BOPE (Polícia Militar Especializada do Rio de janeiro). Na ocasião, os policiais militares baianos adentraram a comunidade da Vila Moisés, localizada no bairro do Cabula, onde 12 jovens negros foram executados. Esse episódio desencadeou uma série de manifestações dos Movimentos Sociais que não credibilizaram a narrativa proferida pelos policiais envolvidos na ação. Diante do episódio, o então governador do Estado da Bahia,Rui Costa, fez um pronunciamento aos jornalistas, expressando a seguinte opinião:“o que aconteceu no Cabula, Bacharel em Administração pela Faculdade Nossa Senhora de Lourdes – FNSL. Graduando em Licenciatura Plena em História pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB. E-mail: gleisonbomfim@bol.com.br. 2 Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Docente da Faculdade Nossa Senhora de Lourdes – FNSL. Docente da Rede Municipal de Ensino de Porto Seguro-BA. E-mail: leo.lacerda.campos@gmail.com. 1 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 41 foi como um artilheiro de frente para o gol”. Nesse sentido, o governador enquanto autoridade máxima do Estado foi infeliz em seu pronunciamento, uma vez que, não existia ainda uma análise aprofundada e nem mesmo um laudo prévio, baseando-se apenas na versão dada pelos policiais envolvidos. Desse modo, o pronunciamento do governador, acabou por legitimar a ação policial, contribuindo para que outras ações desastrosas venham ocorrer de maneira irresponsável, ferindo os princípios básicos do direito à vida. O caso ganhou repercussão nacional e virou ação do Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA). Este, por sua vez, acusou os nove policiais de terem utilizado excesso na ação, ocasionando assim, o entendimento de execução e/ou extermínio na operação. Solidificando a acusação do Ministério Público da Bahia, foi ouvido moradores da região. Segundo um desses moradores: “os policias colocaram em fila os 12 jovens e os executaram, sem nenhuma reação das vítimas”. Em 2015, de acordo com a Senasp (Secretaria Nacional de Segurança Pública), o Estado da Bahia foi eleito o mais violento do Brasil. Desde a ditadura militar, as ações policiais no território nacional têm sido questionadas por parte da sociedade civil. Sabemos que as práticas policiais são exercidas através da ação, e em muitos casos, essas são desastrosas, como por exemplo, o caso envolvendo a garota Eloá Cristina, em São Paulo3. Em 2015, no subúrbio do Rio de Janeiro, conhecido como favela da Palmeirinha, dois jovens, Chauan Jambre Cezário e Alan de Souza, foram alvejados enquanto brincavam com seus amigos. Chauan recebeu um tiro no peito e conseguiu sobreviver, já Alan de Souza Lima, de 15 anos, não resistiu aos ferimentos e veio a óbito. O vídeo permite ouvir a agonia dos feridos 3 O Caso Eloá Cristina se refere ao mais longo sequestro em cárcere privado já registrado pela polícia do estado brasileiro de São Paulo, o qual adquiriu grande repercussão nacional e internacional. Após mais de 100 horas de cárcere privado, policiais do GATE e da Tropa de Choque da Polícia Militar de São Paulo explodiram a porta - alegando, posteriormente, ter ouvido um disparo de arma de fogo no interior do apartamento – e entraram em luta corporal com Lindemberg, que teve tempo de atirar em direção às reféns. A adolescente Nayara deixou o apartamento andando, ferida com um tiro no rosto, enquanto Eloá, carregada nos braços de um policial foi levada inconsciente para o Centro Hospitalar de Santo André. Eloá Pimentel, baleada na cabeça e na virilha, não resistiu e morreu por morte cerebral, confirmada às 23h30min de sábado (18 de outubro). A ação da polícia foi amplamente criticada por diversas pessoas, inclusive por especialistas em segurança pública. Marcos do Val, instrutor de defesa pessoal do Departamento de Polícia de Beaumont, no estado americano do Texas, foi contratado por uma rede de TV brasileira para comentar sobre a ação policial no caso. De acordo com ele, a polícia ter permitido que o sequestro se alastrasse por mais de cem horas foi errado, pois "em uma situação passional como essa, quanto mais tempo leva, mais inconstante a pessoa fica". Ele também criticou o polícia pelo deslize que permitiu que Nayara voltasse ao cativeiro. De acordo com ele, "em nenhum lugar do mundo já existiu uma situação dessas". Além disso, também apontou erros no socorro às vítimas e na invasão. Ariel de Castro Alves, secretário-geral do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa (Condepe), criticou a polícia por não ter contatado a mãe de Lindemberg para participar das negociações. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 42 e as vozes de dois homens, que seriam policiais. Um deles pergunta aos garotos por que eles correram. “A gente estava brincando, senhor”, responde um dos rapazes.4 Diante do exposto, buscamos nesse artigo analisar o surgimento das forças militares e o seu desenvolvimento e atuação ao longo da história. Vale salientar, que a Polícia Militar foi instituída a partir da Primeira República como aparato do Estado. É notório que as práticas policiais, por vezes extrapolaram e extrapolam osseus limites e, no Brasil, sãolegitimadas pelo e a serviço do Estado. Tais ações contam com o apoio dos veículos de comunicação de massa, rádio, televisão e internet, comopropagadores da “ideologia de combate ao crime”, obtendo apoio quase massivo da sociedade civil. Segundo Brunetta: Na vida social e historicamente consolidada, a essência do trabalho policial corresponde à prática da repressão, reduzindo ao mínimo as possibilidades de aliança política com outros grupos de trabalhadores, tornando-os estéreis politicamente. (BRUNETTA, 2002, p. 18). Podemos perceber que, desde o Brasil colônia, essas forças armadas exerciam um papel repressor, sobretudo com a população escravizada. Essas ações, destinadas com mais afinco a essa parcela da sociedade, se estendem e, mesmo depois da abolição, os negros continuaram sendo os alvos preferenciais das abordagens policiais. O que se justifica mediante a abolição malsucedida, na qual o Estado não criou mecanismos suficientes para a inserção e/ou integração dos ex-escravizados no processo de democratização, sendo estes relegados à própria sorte e lançados a marginalização. O próprio Estado brasileiro criou elementos que contribuíram com a marginalização e a elaboração de estereótipos relacionados aos negros, tornando essa parcela que atualmente representa mais de 50% da população, como os principais suspeitos nas operações policiais no Brasil, inclusive, muitos desses jovens acabam tendo a sua vida ceifada nessas ações, em virtude de ser negro, pobre e de periferia. Campos (2018, p. 367), afirmam que, o Estado brasileiro, “suas ações e objetivos, foram lançados por meio de efeitos estigmatizantes, inferiorizantes e estereotipados da cultura e dos traços físicos dos negros”. Quando, os não negros lograram em nossa sociedade um espaço privilegiado. A FORMAÇÃO DAS FORÇAS MILITARES E O SEU PAPEL ENQUANTO APARELHO DO ESTADO 4 Segundo testemunhas, os policiais tentaram justificar o ocorrido, afirmando que eles entraram no meio da troca de tiros entre os PMs e criminosos. Ao tomar conhecimento de um vídeo, o comando da PM determinou o afastamento dos policias envolvidos na ocorrência e também a abertura imediata de um inquérito policial militar. Disponível em: g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/02/celular-filma-ultimos-momentos-de-jovem-mortopor-pm-no-rio-veja.html . Acesso no 30/09/2018. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 43 Em um contexto nacional, as mudanças significativas nas Forças Militares no Brasil, ocorreram no século XIX com a chegada da Corte Portuguesa, quando foram constituídas novas estruturas militares (Companhia de Cavalaria, Brigada Real, Arsenal Real, Intendência, Contadoria, Academia). Desde a criação das forças e/ou serviços militares no Brasil, podemos perceber que havia separação para cada tipo de policiamento, como bem destaca Sodré (1965, p. 68-69) “milícias civis compostas de elementos gratos ao governo e que estavam sobre jurisdição do Ministério da Justiça [...] divididas em esquadras tinha o comando de um Juiz de Paz”. Em 1831, com a criação da Guarda Nacional, desenvolveram-se rivalidades nas Forças Militares do País, pois, ao contrário do Exército brasileiro, que, até os dias atuais, tem como função principal, combater o inimigo externo, a Guarda Nacional Militar destinava-se a conter os inimigos internos, sobretudo as rebeliões direcionadas ao Estado. Ao esboçar algumas características dessas corporações, destacamos a caracterização de Sodré (1965, p.138), quando este aponta que “não houve, pois, nenhuma condição para situar a condição militar como casta; ao contrário, o militar é funcionário de segunda ordem, esquecido e mal pago e sem nenhuma representação social”. Com a Proclamação da República, em 1889, o status do militarismo se altera, especialmente por ser este sistema, inicialmente, conduzido por militares. De acordo com Antonio Brunetta apud Sodré (1965, p. 201), “É durante a Primeira República, em razão do que o militarismo passou a representar na esfera da política nacional, que são produzidas reformas na organização do Exército”. Sendo assim, as Forças Militares continuavam servindo à classe dominante, proprietários de terra, e se submetendo a eles quando solicitados. No contexto baiano, podemos destacar os estudos de João Reis acerca do surgimento das forças policiais na Bahia: Na manhã do dia 17 de 1826, alguns capitães de assalto tentaram sem sucesso tomar o quilombo de Urubu, e três encontraram a morte, tendo seus corpos mutilados. Um deles era um ex-escravo cabra. Agora eles próprios colocados em fuga, os capitães toparam com doze soldados que formavam um piquete da polícia, enviado de Salvador para controlar a situação. A essa patrulha se associaram 25 homens da milícia de Pirajá. Juntos, eles todos atacaram o quilombo (REIS, 2003, p. 101). O quilombo de Urubu contava com cerca de 50 homens e também algumas mulheres5 e todos/as resistiram, utilizando facas, facões, espadas, lanças, navalhas, foices, lazarinas, parnaíba e umas poucas espingardas, conforme destaca João Reis: 5 Em Urubu foi presa, a muito custo, uma extraordinária mulher, Zeferina, que, armada de arco e flecha, enfrentou os soldados. Durante a luta, comportou-se como verdadeira líder, animando os guerreiros, insistindo para que não Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 44 O grito de guerra que cobriu o quilombo naquele dia foi, “morra branco e viva negro”. [...] após intensos enfrentamentos, as forças legais prevaleceram, matando três homens e uma mulher e fazendo outros prisioneiros. A maioria, contudo, conseguiu refugiar-se nas matas. (REIS, 2003, p. 101). Percebe se que a institucionalização da Brigada Militar na Bahia no século XIX, tinha como objetivo atender as demandas oriundas dos escravocratas, tendo em vista que estes estavam tendo prejuízos com as sucessivas fugas e rebeliões, logo havia a necessidade de uma instituição para coibir tais ações. Nesse sentido, a Brigada Militar tinha como premissa a manutenção da ordem e consequentemente, essa ordem estava entrelaçada à manutenção dos privilégios dos senhores de engenho e seus aliados. Segundo Reis (2003, p.19), “os senhores de engenho eram proprietários e controlavam, em seus aspectos essenciais, os principais meios de produção da sociedade”. O autor ainda afirma que, com seu imenso poder, social, político e simbólico, os senhores de engenho representavam a classe dominante por excelência. É importante ressaltar, que a Bahia do século XIX vivenciou uma série de revoltas escravas, tais revoltas poderiam estar sendo inspiradas na Revolução Escravagista, ocorrida em Saint Domingue no Haiti. Nesse sentido, Campos (2018) pontua que as características da Revolta Haitiana tiveram repercussão internacional criando um estado de alerta aos países colonizadores que utilizavam mão de obra escravizada. O Haiti era uma colônia francesa e apresentava uma estrutura econômica e social baseada no latifúndio, na monocultura e no trabalho escravo. Em meio a um violento levante negro, que, em 1791, aboliu a escravidão, a maior parte da população branca foi massacrada, tendo o restante emigrado. Na tentativa de sufocar tal rebelião, o governo francês enviou tropas, em 1793, porém, essas mais uma vez, foram derrotadas. Na Era Napoleônica (1799-1815), ocorreu uma nova tentativa de recolonização. Contudo, na medida em que ficou evidente a intenção francesa de restabelecer a escravatura e as antigas formas de dominação colonial, os negros voltaram a se revoltar e, em novembro de 1803, o Haiti tornou-se a primeira colônia da América Latina a proclamar sua independência (CAMPOS, 2018, p. 65). De acordo com o pesquisador João José Reis, havia evidências de que os negros no Brasil sabiam do Haiti e o considerava um símbolo das resistências negra no Extremo Ocidente. Luiz Moot publicou um documento de 1805 evidenciando que soldados negros no Rio de Janeiro usavam medalhões com a efígie de Dessalines, apenas um ano após ter este declarado à independência de Saint-Domingue (REIS, 2003, p. 84,85). É importante salientar, que no período compreendido entre 1807 e 1818, diversas revoltas escravas aconteceram na Bahia. Neste período, a Província estava sobre a tutela Conde dos se dispersassem. O presidente da província, num elogio involuntário, referiu se a ela como Rainha, título que deve ter ouvido dizer que ela carregava entre os rebeldes. Zeferina mais tarde declarou que seus súditos esperavam a chegada de muitos escravos de Salvador, na véspera de Natal, ocasião em que planejava invadir a capital para matar os brancos e conseguir a liberdade. (REIS, 2003, p. 102). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 45 Arcos, tendo em sua administração desenvolvido elementos que possibilitaram segundo Reis (2003, p.81), “uma ‘prosperidade econômica’ por meio da realização e finalização de diversas obras: Passeio Público, Teatro São João, Casa do comércio”. Além da sua atenção especial aos assuntos envolvendo a segurança pública, cujo objetivo estava vinculado à defesa da Capitania contra inimigos externos, bem como combater diretamente qualquer rebelião nativista, conforme destaca Sodré (1965, p.50) “as forças militares são destinadas a fiscalizar o povo, a vigiar suas ações e reprimir qualquer manifestação de rebeldia - é uma força contra o povo”. DOS ESPAÇOS ÀS RELAÇÕES SOCIAIS: OS DESAFIOS DO SER NEGRO NO BRASIL Em 1854, de acordo com Lilian Schwarcz, “transferia-se para Recife a Faculdade de Direito” (SCHWARCZ, 1993, p. 192), ao analisar o curso de direito no Brasil, a pesquisadora examinou mais de 294 artigos publicados, ao longo de quarenta anos, apontando que: “os estudos de antropologia criminal e direito penal cumprirão um papel capital, como se para eles confluíssem os grandes debates sobre os rumos da nação Brasileira” (SCHWARCZ, 1993, p. 206). Diante dos estudos de criminologia, destacamos o pensamento de dois pesquisadores: Cezare Lombroso e Enrico Ferri. Esses, oriundos da escola de criminologia italiana, entendiam o crime a partir da análise “do indivíduo, de seu tipo físico e da raça a que pertence” (RAFDR, 1891, p.31). Ainda de acordo a Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, tais autores representavam a modernidade no combate ao crime. Com o advento dos estudos da Antropologia Criminal no Brasil, desviavam-se a lente do crime, em si, para se concentrarem nos esforços de análise da figura do criminoso, os quais se dariam a partir de três fazes distintas, de fatores “phisicos, antropológicos e sociais”.6 Nesse sentido, cabem aqui alguns questionamentos: nas abordagens policias, nas ruas, nas periferias, nos centros urbanos de nosso País, quem são os criminosos? Quem são os primeiros suspeitos nas operações policiais? Os fatores físicos, antropológicos, o quesito raça, ainda são preponderantes na formação de estereótipos do criminoso, tais como na proposição de Ferri e Lombroso? Podemos tomar como auxílio às respostas para as questões anteriores as seguintes imagens, as quais abordam a Antropometria criminal, que visam à identificação do criminoso. 6 Para uma ampla visão sobre as questões da antropologia criminal no Brasil a partir da Faculdade de Direito do Recife, Cf. Revista da Faculdade de Direito de Recife. Recife, 1-37, 1893-1930. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 46 Figura 1. Curso de introdução ao estudo dos retratos falados (Paris,1895) 7 Figura 2. Galeria de delinquentes chilenos, reproduzida dePedro N. Barros Ovalle. Manual de antropometria criminal i general de Enrique Blanchard-Chessi, Santiago, 1900. No Brasil se destacou o médico Raimundo Nina Rodrigues como um dos mais importantes adeptos da “nova ciência criminal”, inclusive sendo reconhecido por Lombroso que o caracteriza como o “Apóstolo da antropologia Criminal no Novo-Mundo”. Nina Rodrigues, encontra nas ideias de Lombroso a sua base para inferiorizar os povos africanos. Nesse sentido, Campos (2018) apresenta a seguinte reflexão: Em seu primeiro livro “As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brazil”, Nina Rodrigues trouxe um debate acerca da ética e da filosofia natural, além da reflexão antropológica a respeito do homem e seu meio sociocultural. Nesse contexto, esboça a posição das raças diante do Código Penal, sugerindo que as raças inferiores (negros, índios e mestiços), não deveriam ter o mesmo tratamento no Código Penal, deveria ser levada em consideração a sua inferioridade mental, frente às pessoas provenientes de uma raça superior (CAMPOS, 2018, p.53). 7 Schwarcz ,1993, pag. 210. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 47 No tocante a citação fica evidente que Nina Rodrigues defendia um código penal diferente em virtude dos africanos e os seus descendentes serem inferiores. Um artigo publicado por Laurindo Leão, ao buscar fazer conexão entre as teorias lombrosianas, afirma que “Uma nação mestiça é uma nação invadida por criminosos” (SCHWARCZ, 1993, p. 218). ESPAÇO, CORPOREIDADE E FENOTÍPICO: A QUEM SE DESTINA AS ABORDAGENS POLICIAIS? É importante contextualizarmos as discussões que envolvem a construção e caracterização do criminoso no Brasil, para entendermos a maneira pela qual foi sendo elaborada essa ideia do negro enquanto principal suspeito. Diante disso, Milton Santos caracteriza o espaço como sendo “uma formação social espacial, onde este seja o lugar de todos”. No espaço, há o acontecer horizontal e o acontecer vertical. O acontecer horizontal é caracterizado como as pessoas se relacionam nas comunidades, sua capacidade de superar as dificuldades, a solidariedade entre os pobres e sua dinâmica de sobrevivência. O acontecer vertical normalmente vem de fora. De acordo com Santos (1977, p. 34), “as formas introduzidas deste modo servem ao modo de produção dominante em vez de servir à formação sócio-econômica local e as suas necessidades específicas. Trata-se de uma totalidade doente, perversa e prejudicial”. Tais condutas, podemos assim definir, como verticais carregadas de conteúdos e de intencionalidades. Diante da proposição que Milton Santos argumenta, o espaço é caracterizado pelas pessoas, são elas que dão sentido e vida aos lugares, o espaço sem as pessoas torna-se vazio. Nesse sentido é percebido, no convívio social, que as práticas da Polícia Militar, em um território periférico, têm sido diferentes das ocorridas nas regiões tidas como privilegiadas. Na primeira situação, o corpo policial exerce a força, a coação, a intimidação; na segunda, existe o abrandamento da ação. Entretanto, vale salientar que no espaço dito privilegiado, não podemos perder de vista que as abordagens estão diretamente atreladas ao estereótipo do sujeito. Tendo em vista, por exemplo, que a abordagem realizada, em qualquer região, terá o negro como o principal suspeito, uma vez que, mesmo em áreas privilegiadas, negros/as são suspeitos condicionais, mesmo residindo em tais regiões, tendo em vista a maneira pela qual se constituiu o lugar do negro no imaginário e nas subjetividades dos sujeitos. Daí a importância de percebermos, nas práticas policiais, que os estereótipos e a corporeidade têm sido o parâmetro para determinar o lugar dos sujeitos no Brasil. À construção Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 48 das subjetividades do povo brasileiro se deu sob uma ótica do lugar do negro em uma posição subserviente, marginalizada, inferiorizada, criminosa. Em contrapartida, ocorreu, nessa sociedade, a valorização da cultura branca europeia, como modelo positivo a ser seguido e / ou alcançado. Em entrevista, o tenente-coronel Ricardo Araujo, o novo comandante da Rota da Polícia Militar de São Paulo, destacou que: “a atuação e o tratamento em ronda policial na zona periférica deve ser diferente das ações em bairro nobre no Estado de São Paulo”. Sendo assim, podemos confirmar a tese de que o espaço é determinante para caracterizar quem é o cidadão Brasileiro, a partir das reflexões proposta por Milton Santos. Conforme propõe Callois (1964, p.58), “O espaço impõe a cada coisa um determinado feixe de relações, porque cada coisa ocupa um lugar dado”. Nesta perspectiva, podemos entender que o feixe das relações, no centro periférico entre a polícia e a comunidade, tende a ser conflituosa pelo fato do lugar. Desse modo, a própria construção do espaço no qual o policial irá operar, cria em seu subconsciente o tipo de perigo a ser enfrentado, aumentando o nível de atenção, o que não justifica o excesso, tendo em vista que a maioria da população que compõe as áreas periféricas é composta por trabalhadores e estes acabam sofrendo uma série de abusos, uma vez que não são levadas em consideração as peculiaridades que compõem esses espaços heterogêneos. Cada homem vale pelo lugar onde está: o seu valor como produtor, consumidor, cidadão depende de sua localização no melhor ou para pior, em função das diferenças de acessibilidade (tempo, frequência, preço), independentes de sua própria condição. Pessoas com as mesmas virtualidades, a mesma formação, até mesmo o mesmo salário têm valor diferente segundo o lugar em que vivem: as oportunidades não são as mesmas. Por isso a possibilidade de ser mais, ou menos, cidadão depende, em larga proporção, do ponto do território onde se está (SANTOS, 2014, p. 107). Sabendo que cada homem tem um valor, de acordo com o espaço no qual está inserido, o (a) morador (a) da periferia, pobre, preto/a, seria um quase cidadão brasileiro, parafraseando Milton Santos, um “Cidadão mutilado”, pois este ainda não alcançou a plena cidadania que lhe é garantida em um Estado Democrático de Direito. Os seus direitos são violados constantemente, seja o direito de ir e vir, o direito ao trabalho, a moradia digna, acesso à saúde e à educação de qualidade. Essa negação de direitos à população periférica ajuda ao fortalecimento da criação de subjetividades carregadas de preconceitos e estereótipos, corroborando assim para o racismo estrutural e institucional, que é percebido nas práticas das corporações militares nesses territórios. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 49 Diante das proposições feitas neste trabalho, sobre o espaço, o território, e a corporeidade, apresentamos a seguir o número de homicídios cometidos com arma de fogo no Brasil, classificados por raça e cor, de acordo a pesquisa Mapa da Violência 2016. NÚMEROS DE HOMÍCIDIOS POR HAF SEGUNDO COR NO TERRITÓRIO BRASILEIRO 35 29,813 30 25 20,291 20 15 13,224 9,766 10 5 0 2003 2014 BRANCOS NEGROS Figura 3. Fonte: Mapa da violencia 2016, Homicídios por armas de fogo no Brasil. Julio Jacobo Waiselfiz. De acordo com os dados, percebemos a discrepância entre o número de assassinatos, cometidos por armas de fogo no Brasil, que acomete a população negra e a população branca. Claro que a morte da população branca também nos preocupa. Todavia, em nossa pesquisa, ao apontarmos os estereótipos, verificamos que o aumento do assassinato da população negra se dá por vários processos, sobretudo, por meio de estereótipos, corporeidade e território. Grande parte da sociedade brasileira teve a sua subjetividade constituída a partir da criação do lugar do ser negro, quase sempre de maneira negativada, ocasionando na construção de estereótipos que ainda fazem parte da formação das mentalidades dos sujeitos em nossa sociedade contemporânea, e, as Corporações Militares não estão isentas dessa formação, além da própria formação desses sujeitos para o combate à criminalidade. Podemos destacar uma pesquisa realizada na região metropolitana do Recife, quando, na realização das blitz policiais, os negros são os principais suspeitos. Conforme pesquisa realizada por Barros (2008, p.5), quando este buscou verificar se existia ou não “filtragem racial” de condutores de veículos em blitz na cidade de Recife. Foram elaboradas as seguintes perguntas a serem aplicadas para 469 policias militares: “O que é para você mais suspeito? Tendo que fazer uma triagem dos veículos, qual a sua prioridade de suspeição, para se fazer a triagem para realizar a abordagem? O que Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 50 para você é menos suspeito”? O estudo concluiu que os militares consideravam como principais suspeitos a serem abordados os negros dirigindo um carro de luxo. De acordo com essa pesquisa, foi possível identificar o racismo institucional nas ações e abordagens em blitz policiais no Recife. Conforme algumas narrativas abaixo: “Os negros são mais olhados diferentemente pela polícia.” (Sargento PM). “Com certeza, existe realmente essa discriminação no ato da abordagem. Numa simples abordagem, você vai discriminar, não sei o porquê, mas a preferência da abordagem é, com certeza, a pessoa de cor, o negro.” (Tenente PM) Tenho 10 anos de Corporação e nenhum oficial hoje que tem esse tempo [...] poderia dizer que nunca presenciou, acho que todos poderiam dizer que já presenciaram.” (Tenente PM)8 (BARROS, Jul/agosto, 2008, p. 145). Nesta mesma perspectiva, destaca Alberti (2013, p.28)“hoje em dia ainda se morre de racismo”. Diante da afirmativa, a autora cita uma ação da Polícia Militar em São Paulo, quando o dentista Flávio Ferreira de San’Anna, homem negro de 28 anos, foi morto por policiais em fevereiro de 2004. Flávio de San’Anna voltava do Aeroporto de Guarulhos, onde tinha ido levar a namorada suíça Anita Joos, de 30 anos. Mais ou menos na mesma hora e região, um comerciante de 29 anos havia dado queixa a policiais, que se achavam em uma viatura, de que teria sido assaltado. Flávio guiava seu carro, um Gol, e foi interpelado por cinco policiais militares do 5º Batalhão da Polícia Militar de Jaçanã, e, em seguida, morto com dois tiros. Os policiais colocaram uma arma em sua mão. Ao ver o dentista morto no chão, o comerciante declarou que não se tratava do ladrão que o tinha assaltado (ALBERTI, 2013, p. 28). O que teria levado os policiais a atirarem? Será que a cor foi preponderante para tal ação? São questionamentos que precisam ser fomentados para que possamos buscar elementos que venham calhar com reflexões que possibilitem uma educação das relações raciais em todas as esferas da sociedade brasileira, uma vez que, as ações policiais realizadas nas periferias e com a população negra tem tomando proporções excessivas e por vezes abusivas. Conforme a fala do pai de Flávio cabo aposentado da Polícia Militar do Estado de São Paulo: “Sei como é o sistema. Tenho certeza de que se ele fosse branco não morreria”. (ALBERTI, 2013, p.28). Percebam a gravidade da declaração daquele que esteve a serviço da Corporação e como de fato, o ser negro no Brasil, muitas vezes, é sinônimo de vulnerabilidade diante das ações policiais. É importante destacar que os estereótipos criados acerca das periferias, favelas e/ou comunidades, se dão a partir de uma homogeneização da população, como se todos que ocupam essas regiões façam parte de organizações criminosas. Não há uma aliança política entre a polícia e a sociedade, como se espera, legitimando assim o pensamento e a visão externalizada 8 Disponível: Revista Brasileira de Segurança Pública. Ano 2. Ed. 3. Jul/Ago. (2008 p. 145). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 51 pela sociedade acerca da Polícia Militar, como instituição truculenta, gerando uma incredulidade por parte da sociedade, sobretudo por aqueles que se encontram nas periferias. Percebe-se que a violência, na sociedade brasileira, é um problema de ordem políticosocial-econômico. De acordo com o Mapa da Violência pesquisa9 realizada em 2016, o Brasil consegue superar o Iraque no tocante a morte por arma de fogo. 207 vezes maior que a de países como Polônia, Alemanha, Áustria, Espanha, Dinamarca, dentre outros, que registram 0,1 HAF por 100 mil.103 vezes maior que a de Suécia, Noruega, França, Egito ou Cuba, dentre vários outros países com taxas em torno dos 0,2 HAF por 100 habitantes. (WAISELFISZ, 2016, p.61). Vale realçar que o município de Porto Seguro vem apresentando altos índices de violência, sendo as comunidades carentes as mais afetadas e, nessas localidades, as ações policiais têm sido denunciadas por moradores como excessiva e/ou abusivas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao fazermos o diálogo com a teoria espacial proposta por Milton Santos e a relação entre as ações policiais, sendo esta última representante legítima do Estado, constatou-se que os espaços pobres e periféricos são determinantes e condicionantes para a criminalização de sua população. A pesquisa confirmou que as ações policiais tendem a ser mais truculentas nestes territórios. Para Santos (2014, p.107) “a possibilidade de ser mais ou menos cidadão depende, em larga proposição, do ponto do território onde se está”. Ao realizarmos o diálogo sobre a corporeidade negra, evidenciamos que o corpo do homem e da mulher negro (a), está condicionado a uma posição social desprivilegiada no Brasil. Estes corpos carregam consigo marcas da escravidão, as quais, nas relações sociais, com os processos discriminatórios do colonizador branco, europeu, ainda estão presentes em nossa sociedade, fato este, caracterizado na pesquisa de Barros (2018) quando o negro é o principal suspeito em blitz policiais. Diante do que foi exposto nesse estudo, é preciso maiores investimentos na Segurança Pública, principalmente na formação dos soldados. Estes precisam ir além de uma formação tecnicista, é preciso focar na formação humana dos envolvidos, para que possamos articular uma melhor relação entre a Polícia Militar e a sociedade civil. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 9 Mapa da violência 2016, homicídios por arma de fogo no Brasil, Julio Jacobo Waiselfisz, (p. 61) Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 52 BRUNETTA, Antônio Alberto. Reforma intelectual da polícia militar. 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Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês em 1835. Edição revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 53 SISTEMA PUNITIVO BRASILEIRO: UMA BREVE ANÁLISE A PARTIR DO PENSAMENTO DE BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS Lucas Nunes Nora de Souza1 RESUMO O presente trabalho pretende realizar um estudo acerca da realidade do sistema punitivo brasileiro enquanto mecanismo de controle utilizando como referencial de análise o pensamento decolonial consubstanciado nos conceitos de Fascismo Social e Sociedade Civil: Intima, Estranha e Incivil. O referencial teórico adotado possui viés crítico perpassando, pelas ideias Boaventura, Rosa Del Olmo, Vera Malaguti, Nilo Batista, Wacquant e Baratta. Para dotar o estudo de maior qualidade serão utilizados dados estatísticos oficiais sobre a realidade do sistema punitivo no Brasil. PALAVRAS CHAVE: Fascismo Social. Sociedade Estratificada. Sistema Penal Brasileiro. Encarceramento em massa. Criminalização da Pobreza. ABSTRACT The present work intends to carry out a study about the reality of the Brazilian punitive system as a control mechanism using as an analysis reference the decolonial thought embodied in the concepts of Social Fascism and Civil Society: Intima, Estranha; Uncivil. The theoretical framework adopted has a critical bias in the ideas Boaventura, Rosa Del Olmo, Vera Malaguti, Nilo Batista, Wacquant and Baratta. For the study to be endowed with higher quality will be used official statistical data on the reality of the punitive system in Brazil. KEYWORDS: Social Fascism. Stratified Society. Brazilian Penal System. Mass Encarceration. Criminalization of Poverty. CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE O PENSAMENTO DE BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS APLICADOS À REALIDADE BRASILEIRA Sousa Santos (2003) discorre a cerca de quatro tipos de fascismo social que emergem conjuntamente à crise do contrato social. “A crise da contratualização moderna consiste no predomínio estrutural dos processos de exclusão sobre os processos de inclusão.” (SOUSA SANTOS, 2003 p. 33). É importante destacar que o fascismo apresentado pelo referido autor diverge do fascismo das décadas de 1930 e 1940, uma vez que, o fascismo moderno não possui alicerces no estado, mas sim na própria sociedade. O fascismo social é pluralista e não necessita romper com a democracia liberal como o seu antecessor, coexistindo com a mesma, sem maiores entraves. Para Sousa Santos (2003) são quatro os tipos de fascismo social: 1 Bacharel em Direito, mestrando no PPGD da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: lucasnunesnora@gmail.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 54 Fascismo do apartheid social, que é caracterizado pela divisão dos territórios urbanos em zonas selvagens e zonas civilizadas, ou seja, as cidades são divididas em áreas, onde o contrato social é válido e áreas onde o contrato social não se aplica. Essa organização territorial influi diretamente na forma de interação entre o estado e os habitantes dessas localidades existe uma atuação estatal baseada no Estado Democrático de Direito voltada para as áreas tuteladas pelo contrato social (zonas de classes média e alta) e um agir contrário aos princípios básicos desse mesmo Estado Democrático, para às áreas excluídas do contrato social (zonas de classe média baixa). Em suma, podemos conceituar esse modelo de fascismo como uma segregação territorial dos excluídos. Sempre que o assunto versar sobre território é fundamental destacar as ideias de Milton Santos acerca da geografia das desigualdades. Para o referido autor a definição do território é pautada em relações políticas, portanto, forças políticas influenciadas pelo mercado vão definir o papel de determinado espaço perante a sociedade. Essa relação definirá quais serão os territórios da abundância ou da miséria. Uma representação concreta dessa espécie de fascismo no Brasil são as ocupações militarizadas realizadas pelas Unidades de Policia Pacificadoras (UPPs) nas favelas do Rio de Janeiro. O fato de as UPPs estarem restritas ao espaço de favelas, e destinadas a algumas delas, já seria um indício luminoso para desvendar o que o projeto esconde: a ocupação militar verticalizada das áreas de pobreza que se localizam em regiões estratégicas aos eventos desportivos do capitalismo (BATISTA, 2011, p. 105). Esse modelo de segurança pública pretende amenizar a sensação de insegurança das classes médias e alta, por meio da ocupação permanente das áreas pobres, onde o contrato social não se aplica. Tais ocupações são responsáveis por diversas violações de direitos humanos2. A mídia de massa tem um papel fundamental nesse contexto. Já que, é a responsável por garantir a legitimidade das violações aos direitos humanos perante a sociedade em geral. Para tanto, a mídia apresenta as favelas como territórios de guerra, onde não impera o contrato social, mas, sim o tráfico, a violência, a miséria; a falta de infraestruturas básicas. Ou seja, seus habitantes vivem sujeitos ao estado de natureza hobbesiano, necessitando assim, das intervenções policiais que segundo essa ótica, visam garantir os direitos expressos no contrato social. Rediscutiremos esse tema mais a frente quando tratarmos do terceiro tipo de fascismo que decorre diretamente da ação midiática. 2 Para mais informações sobre tais violações vide: http://www.global.org.br/blog/sobre-violacoes-de-direitos-emfavelas-com-upp/. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 55 O fascismo paraestatal ocorre quando alguns grupos privados apoderam-se de funções do estado. Esse tipo de fascismo se subdivide em fascismo contratual e fascismo territorial. O primeiro se liga aos contratos civis e na disparidade de poder existente entre as partes, isto é, ainda que o contrato civil aparente ser igualitário a parte mais forte sempre se impõe perante a vulnerabilidade da outra. Veremos isso de forma mais aprofundada quando tratarmos sobre a relação entre o trabalho e o sistema penal no neoliberalismo. A outra dimensão desse fascismo ocorre quando grupos portadores de grande capital financeiro entram em embate com o estado pelo controle de determinados espaços territoriais. O terceiro é o fascismo da insegurança e se expressa com a manipulação do medo e do sentimento de insegurança da sociedade. Nesse momento é fulcral explanar o papel da mídia de massa como principal responsável por essa manipulação. O papel da comunicação de massas é fortalecer o discurso criminológico posto, baseado no punitivismo das classes subalternas garantindo assim, que as violações realizadas em determinados áreas contra determinadas pessoas, sejam aceitas pela sociedade em geral. Segundo Batista (2003) a mídia de massa no Brasil tem um papel claro, de legitimar o sistema punitivo. Apresentando a prisão como única forma de resolver os conflitos sociais, por isso, a cadeia é sempre apresentada como a principal solução para os mais diversos conflitos sociais principalmente os ligados às classes subalternas. Observando as ideias de Batista (2003) mencionadas acima, é essencial ressaltar que ao apoiar a política encarceradora, a mídia corrobora para a manutenção das estruturas do poder social dominante, penalizando os mais pobres, uma vez que, a solução para todos os problemas sociais nesse contexto é a implantação de uma política penal no modelo lei e ordem baseada na tolerância zero, logo, qualquer conduta contrária as estruturas de poder devem ser punidas com extremo rigor. De acordo com Wacquant (2009) as políticas de tolerância zero visam gerar uma sensação de segurança para as classes média e alta. O ultimo tipo de fascismo, é o financeiro e segundo Sousa Santos (2003) é o mais danoso, porque, alude ao controle do mercado financeiro. Sendo assim, as organizações que controlam o mercado financeiro detêm poder para gerar o caos por todo o globo em minutos, se assim, desejarem. De acordo com Sousa Santos (2003) uma característica uníssona das sociedades modernas é a estratificação social, por isso, o fascismo social coexiste com uma sociedade civil estratificada em três grandes grupos. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 56 A sociedade civil intima caracterizada pela absoluta inclusão dos seus membros aos direitos e garantias inerentes ao Estado moderno. Seus integrantes estão inseridos nas elites dominantes possuindo relações próximas com o poder estatal e o mercado. A sociedade civil estranha definida numa combinação de inclusão e exclusão. Sendo assim, “seus membros possuem direitos cívicos e políticos, mas tem um acesso escasso aos direitos sociais e econômicos”. (SOUSA SANTOS, 2003, P.48). A sociedade incivil é composta por um conjunto de pessoas que vivem totalmente apartadas do Estado e consequentemente dos direitos garantidos por este, seus membros são tidos como invisíveis. É fundamental ao analisar esse conceito de sociedade baseada na total exclusão citar as ideias de Wacquant (2005) sobre os chamados underclass, uma vez que, esse conceito para referido autor foi utilizado para legitimar o abandono de certos grupos sociais por parte do Estado, no que se refere às políticas sociais e garantindo por outro lado uma presença maciça em âmbito jurídico-policial. Portanto, é necessário realizar uma crítica entre as ideais citadas no paragrafo anterior, por que, a exclusão da sociedade incivil não é total como pensado por Sousa Santos (2003). Já que, Wacquant (2005) demonstra que o estado cria diversas políticas públicas criminais voltadas ao controle dos excluídos sejam estes denominados underclass ou membros da sociedade incivil. O PAPEL DO ENCARCERAMENTO EM MASSA SOB A ÓTICA DA SOCIEDADE ESTRATIFICADA E DO FASCISMO SOCIAL Nesse segundo tópico o texto irá tratar sobre certos elementos do discurso criminológico que conjugados com as ideias de Sousa Santos (2003) apresentadas no tópico anterior servirão de base para uma análise crítica do encarceramento em massa de determinados grupos excluídos socialmente. Para tal análise, é necessário observar criticamente a relação entre o sistema penal e o neoliberalismo. Segundo Wacquant (2009) o neoliberalismo coexiste com um estado penal, que é responsável por controlar os indivíduos desprovidos de capital financeiro ou cultural, isto é, o sistema penal é responsável por gerenciar os consumidores falhos3, ou qualquer outro “Essa subclasse em que homens e mulheres são reunidos e vistos como inúteis, uma verdadeira escória na sociedade consumista. Esta mesma sociedade que avalia e julga as pessoas por serem mercadorias rentáveis. Ela, a subclasse, é formada por pessoas sem valor de mercado, são seres humanos não comodificados, melhor dizendo, são consumidores falhos, consumidores decadentes que deixaram de cumprir seus deveres dentro da sociedade consumista” (RUBENS, 2010 p.278). 3 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 57 indivíduo que não se adeque ao sistema de consumo neoliberal, ou melhor, dizendo, os membros da sociedade estranha e principalmente da incivil. Ainda de acordo Wacquant (2011) o neoliberalismo tem a seguinte lógica: um estado mínimo na economia e na manutenção de programas sociais e um estado máximo no que se refere à criminalização e demais problemas sociais. Problemas estes que em grande parte, são criados justamente pelas políticas de desregulamentação do mercado fomentadas pelo fascismo financeiro. (...) a um estado-centauro, que exibe rostos opostos nos dois extremos da estrutura de classes: ele é edificante e ‘libertador’ no topo, onde atua para alavancar os recursos e expandir as opções de vida dos detentores de capital econômico e cultural; mas é penalizador e restritivo na base (WACQUANT, 2011, p. 512). Ainda com base nas ideias de Wacquant (2011) é mister salientar que, a estrutura do sistema punitivo atual é organizada pelo mercado para garantir que existam indivíduos disponíveis para os empregos precarizados. Destarte, as parcelas pobres da sociedade devem aceitar trabalhar sob quaisquer circunstâncias sob o constante risco de serem alcançadas pelas malhas do sistema penal, caso se revoltem contra a precariedade dos empregos, ou se neguem a ocupar os empregos precarizados, optando pela economia informal ou o crime, isto é, a cadeia funciona em última instância como uma balança, que garante indivíduos disponíveis para os empregos precários. É nítido, que após ser libertado da prisão, o indivíduo dificilmente conseguirá um emprego que não seja precarizado, dado que, ele traz consigo o estigma de ser ex-presidiário. Sendo assim, a cadeia é necessária, nesse sentido, para regular as relações de trabalho, uma vez que, o fascismo contratual, possui apenas o poder de fragilizar os contratos de trabalho para os empregados, mas não de obriga-los a aceitarem. Tal papel é desempenhado pelo Estado que com sua política encarceradora força os membros subalternos da sociedade a se subjugarem aos trabalhos precários. Diante do exposto fica claro a relação entre o não ter acesso a direitos e o encarceramento em massa. Já que a cadeia nesse contexto é utilizada como meio de manutenção e reprodução da sociedade estratificada e dos fascismos sociais. Castro (2010) ao fazer uso das ideias de Barata nos deixa evidente que o cárcere é utilizado como ferramenta de classificação social, reproduzindo a estrutura social posta e modulando o terror. Portanto, ocorre a chamada prisão-pobreza, que segundo Castro (2010) representa o lugar da última exclusão. CONCLUSÃO Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 58 Com base nas ideias dispostas ao longo do texto é possível concluir que a existência de uma sociedade estratifica bem como a exclusão gerada pelo Fascismo Social em todas as suas faces está diretamente relacionada com as políticas penais do Estado. O sistema punitivo brasileiro, assim, como o de todos os países ocidentais é estruturado para manter o controle das parcelas indesejadas da população, consequentemente, os membros da sociedade incivil são a maior parte dos sujeitos encarcerado e perseguidos pelo sistema penal brasileiro. Isso é claramente percebido em uma rápida análise sobre o perfil dos sujeitos encarcerados no Brasil, segundo informações do Ministério da Justiça (2017) 64% dos presos são negros, 55% são jovens de 18 a 29 anos, 57% não concluíram o ensino fundamental; menos de 1% possuem curso superior. Tais dados reforçam a ideia de que o sistema punitivo atua majoritariamente sobre as classes excluídas. Ainda com base nos dados do Ministério da Justiça (2017) 53% dos presos no Brasil estão encarcerados por crimes ligados ao tráfico de drogas ou crimes contra o patrimônio. Ou seja, embora a legislação penal brasileira possua 1688 condutas tipificadas como crime, mais da metade dos encarcerados se encontram presos por condutas ligadas a apenas dois crimes. Logo, é perceptível que as engrenagens punitivas do Estado, só alcançam algumas esferas da criminalidade, no que diz respeito a pena de prisão. O número de pessoas presas por condutas ligadas a crimes financeiros, por exemplo, é tão pequeno que não aparece nas estatísticas oficiais. Nesse momento é crucial destacarmos que em algumas situações excepcionais ocorre a prisão de um criminoso do colarinho branco, para gerar simbolicamente um ar de legitimidade e igualdade ao sistema punitivo. Ao observar os dados do Ministério da Justiça de maneira conjunta, isto é, os tipos de crimes que geram efetivamente o encarceramento em massa e o perfil das pessoas presas no Brasil. Podemos concluir que, o sistema penal brasileiro é fruto de uma opção política apoiada no imperialismo que com o apoio fundamental da mídia de massa faz do encarceramento um mecanismo de controle das populações indesejadas. Garantido assim, os interesses do capital financeiro neoliberal e gerando uma sensação de segurança para as classes médias e ricas. Agindo dessa forma, o estado garante a manutenção e reprodução da sociedade estratificada e das exclusões geradas pelo Fascismo Social. Por último é fulcral expor que as políticas públicas no Brasil garantem um Estado Democrático de Direito para os membros das classes dominantes (sociedade civil) e um Estado Policial para os membros das classes subalternas (sociedade estranha e incivil). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 59 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, 2003. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/batista-nilo-midia-sistema-penal.pdf acesso em 14 ago. 2018 BATISTA, Vera Malaguti. Alemão Muito mais que um complexo. Revista Justiça e Sistema Criminal, v3, n. 5, p: 103-125, jul./dez. 2011; CASTRO, Lola Aniyar de. Matar com a prisão, o paraíso legal e o inferno carcerário: os estabelecimentos “concordes, seguros e capazes”. In: ABRAMOVAY, Pedro Vieira; BATISTA, Vera Malaguti; (Orgs.). 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Foram analisados dois casos de candidaturas trans para cargos de Executivo municipal, bem como as trajetórias políticas e os resultados alcançados pelas candidatas. Os dados foram pesquisados no TSE (Tribunal Superior Eleitoral); em jornais; entrevistas em sites e blogs; páginas pessoais das candidatas em redes sociais e associações. Essas candidaturas tiveram uma grande importância no que se refere à questão da representatividade LGBT na política. PALAVRAS-CHAVE: Representatividade; Eleições 2016; Travestis e Transexuais. ABSTRACT This article objective aims to analyze the applications of transvestites and transsexuals to the executive majority position in the municipal elections of 2016. Two cases of trans applications for municipal executive positions were analyzed, as well as the political trajectories and the results achieved by the candidates. The data were searched in the TSE (Superior Electoral Court); in newspapers; interviews on websites and blogs; candidates' personal pages on social networks and associations. These applications were of great importance with regard to the issue of LGBT representativeness in politics. KEY WORDS: Representativity; Elections 2016; Travestis and Transsexuals. INTRODUÇÃO A participação LGBT na política brasileira ainda é muito pequena. De acordo com o Guia Gay Salvador (2016), 269 LGBTs se candidataram às eleições municipais de 2016, incluindo candidaturas ao executivo e ao legislativo: 102 travestis e transexuais; 101 se consideravam gays; 29 lésbicas; 23 se declararam bissexuais; 1 queer; e 13 não identificaram a orientação sexual ou a identidade de gênero, mas se afirmavam LGBT. É importante esclarecer que estes dados não são oficiais, mas de entidades ligadas à causa, visto que o Tribunal Superior Eleitoral não detalha a orientação sexual dos candidatos e candidatas aos cargos públicos. Recentemente, LGBTs têm se destacados na política brasileira, como é o caso do ExDeputado Federal Jean Wyllys, PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) do Rio de Janeiro, no entanto, ainda são poucos os que conseguem se eleger. No caso de travestis e transexuais, não existe alguém com destaque na política brasileira. Conforme assegura Oliveira (2017, p. 214), 1 Graduado em Ciências Econômicas (UNINOVE) e em Ciência Política (UNINTER). Especialização em Organização e Gestão de Políticas Sociais (UniFMU) e em Formação Docente para o Ensino Superior (UNINOVE). Mestre em Políticas Públicas (UMC). E-mail: deusivam@bol.com.br. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 61 a população trans “[...] sofre preconceito social e falta de oportunidades e acesso a direitos sociais básicos”. Sendo assim, a pergunta que se faz é: existiram candidaturas trans ao cargo executivo nas eleições municipais de 2016 no Brasil? O objetivo geral do presente artigo é fazer uma análise das candidaturas de travestis e transexuais nas eleições brasileiras municipais de 2016, com ênfase nas candidaturas ao Executivo, e discutir sua importância como fator de representatividade das populações LGBTs, muitas vezes marginalizadas pela sociedade e carentes da defesa de seus direitos no âmbito das políticas públicas. Como objetivos específicos discute-se especificamente a questão da representatividade política de grupos sociais minoritários, ao identificarmos duas candidaturas para Executivo municipal e analisarmos as trajetórias políticas e os resultados alcançados pelas candidatas. Para alcançarmos esses objetivos, optamos pela pesquisa bibliográfica e documental, além da abordagem qualitativa e quantitativa (SEVERINO, 2007). Analisamos as candidaturas ao cargo executivo, uma vez que há escassez de dados confiáveis sobre as candidaturas trans, tanto para o cargo executivo como para o legislativo, o que prejudicaria os resultados de nossa análise. A coleta de dados foi realizada no site do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), em jornais, entrevistas publicadas na internet, nas páginas pessoais das candidatas nas redes sociais, e em informações fornecidas por associações. Artigos científicos e livros foram consultados para o respaldo do ponto de vista teórico. A justificativa para esta pesquisa decorre da pouca produção acadêmica atual sobre candidaturas trans no Brasil. Dessa forma, esperamos que ela possa contribuir para futuras pesquisas acadêmicas; que colabore para a reflexão sobre a representatividade dos LGBTs em eleições futuras, no Brasil; assim como, sobre a marginalização e os preconceitos sofridos por essa população no exercício de sua cidadania. A partir das análises desses dados, espera-se que possamos colaborar para a compreensão da importância da representatividade política de grupos sociais minoritários e do porquê do baixo desempenho dessa população nos pleitos eleitorais brasileiros. REPRESENTAÇÃO POLÍTICA Para falar sobre representatividade trans nas eleições de 2016 é preciso primeiro entender as discussões em torno do tema da representação política de forma geral. Pitkin (1967) explica que “[...] a representação é, em síntese, tornar presente o que está ausente” (PITKIN apud PEREIRA, 2017, p. 123), logo, quando estamos falando da representatividade da Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 62 população LGBT nos espaços de poder político, estamos nos referindo à ausência dessa população nesses espaços, e à necessidade de sujeitos que representem esses grupos minoritários nos espaços de poder. Esta representatividade não se limita à defesa dos direitos específicos desses grupos, uma vez que deve respeitar e defender os direitos da sociedade, de acordo com os princípios da Constituição brasileira, cujo artigo 5º define serem todos iguais perante a lei. Mas devido à exclusão vivenciada por essa população, questões relativas a direitos sexuais, podem ser prioritárias nessas candidaturas. Pitkin (2006), ao discutir a ideia de representação, cita Bentham, utilitarista2 que viveu entre o final do século XVIII e início do século XIX. Bentham afirma que as pessoas são motivadas pelo interesse próprio, logo “[...] ninguém sabe o que é do seu interesse tão bem quanto você mesmo” (BENTHAM apud PITKIN, 2006, p. 37). De acordo com esse pensamento utilitarista, as pessoas são muito egoístas para defenderem os interesses dos outros, logo é impossível uma representação. Entretanto, Pitkin afirma que esse pensamento não é uma verdade conclusiva dos utilitaristas, pois “Todos eles reconhecem a existência de um interesse ‘comum’, ‘universal’ ou ‘geral’, o bem de toda a sociedade” (PITKIN, 2006, p. 37). Para John Stuart Mill, um indivíduo prefere “[...] interesses egoístas àqueles que compartilha com os outros, e irá preferir seu interesse imediato e direto àqueles indiretos e remotos” (MILL apud PITKIN, 2006, p. 39). No entanto, Mill defende governos representativos, pois segundo ele, todos os indivíduos precisam ter voz para que não sejam preteridos nas decisões: “É importante que todos os governados tenham voz no governo, porque é difícil esperar que aqueles que não têm voz não sejam injustamente preteridos por aqueles que têm” (MILL apud PITKIN, 2006, p. 39). Santos (2016) afirma que no Brasil, assim como na maioria das democracias representativas, grupos sociais dominantes ocupam majoritariamente as instituições políticas representativas, como é o caso de homens brancos, heterossexuais e pertencentes às classes médias e/ou altas. Outros grupos socialmente marginalizados, como negros, mulheres, LGBTs e pessoas pertencentes às classes baixas, são excluídos do processo de representação política. Esse fato torna as democracias representativas não igualitárias do ponto de vista político. Ainda conforme o autor, a dominação de uma classe social, o fato dela ser majoritária na representação política, faz com que as demandas dos grupos marginalizados não sejam efetuadas no campo das políticas públicas, contribuindo cada vez mais para o processo de exclusão e segregação econômica, política e social. “Doutrina ética segundo à qual o bem se identifica com o útil” – SANDRONI, Paulo. Dicionário de economia do século XXI. Rio de janeiro: Record, 2005. 2 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 63 No caso da representatividade feminina, em 1997, foi sancionada no Brasil a Lei Eleitoral n. 9.504/1997 (BRASIL, 1997), que determina uma proporção mínima de mulheres para que os partidos políticos possam concorrer às eleições. O objetivo das “cotas” é incentivar o aumento da participação de mulheres nas decisões políticas, mas vale salientar que: Reformas no sistema político ou adoção de políticas de presença para LGBT e outros grupos marginalizados (cotas, campanhas, etc.), embora sejam muito bem-vindas, não resolverão completamente a exclusão política se desigualdades fora da política não forem superadas (PEREIRA, 2017, p. 128). Espera-se que esta lei possa ajudar a resolver a questão, mas é preciso conscientização da população de que todos são iguais perante a lei. Conforme Miguel (2014, p. 206), “A ausência de mulheres no corpo de representantes contribui para perpetuar as condições de seu próprio afastamento, reafirmando a esfera pública – e a política, em particular – como território masculino.” Santos (2016), ao analisar a evolução das candidaturas LGBT entre 2002 e 2012, constata um aumento acima de 100% ao longo do período, resultante, segundo o autor, de maior visibilidade das questões LGBT para a opinião pública, e do fato dessa questão ter se tornado ações de governo nas gestões do Partido dos Trabalhadores – PT, no comando do executivo nacional. No próximo tópico apresentaremos números relacionados às eleições de 2016. RAIO X DAS ELEIÇÕES DE 2016 Em 2016, aproximadamente 146 milhões de pessoas estavam aptas a escolherem seus representantes para os cargos de prefeito(a), vice-prefeito(a) e vereadores. Segundo o TSE (Tribunal Superior Eleitoral)3, foram 33.521 candidaturas disputando 11.136 vagas para o executivo municipal (prefeito/a e vice-prefeito/a). Lembrando que foram 496.895 candidaturas, incluindo vereadores. Desse total, 68,1% pertenciam ao gênero masculino e somente 31,9% ao feminino. No tocante à Cor/Raça, 51,46% declararam Branca; 39,12% Parda; 8,64% Preta; 0,44% Amarela; e apenas 0,35% Indígena. Em relação ao Grau de Instrução, 37,4% se declararam possuindo o Ensino Médio completo; 21,01% Ensino Superior completo; 15,5% Ensino Fundamental incompleto; 13,64% Ensino Fundamental completo; 5,16% Ensino Médio 3 Disponível em: <www.tse.jus.br>. Acesso em: 19/8/2018. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 64 incompleto; 4,43% do percentual de candidatos possui Ensino Superior incompleto; 2,88% apenas sabem Ler e escrever; e 0% são Analfabetos. Estes números confirmam a teoria de Santos (2016), que afirma a existência de exclusão política de grupos socialmente marginalizados e uma participação maior de grupos sociais dominantes. As sub-representações também são discutidas por Miguel (2014). Segundo este autor, existe uma desproporção entre homens e mulheres no Congresso Nacional brasileiro no início do século XXI: nove homens para cada mulher, e complementa afirmando que “As minorias étnicas também tendem a estar severamente sub-representadas, assim como as minorias sexuais. E o mesmo ocorre com as classes trabalhadoras” (MIGUEL, 2014, p. 16). CANDIDATURAS TRANS AO EXECUTIVO NAS ELEIÇÕES DE 2016 NO BRASIL Em 2016, o total de candidaturas LGBT foi de 269, sendo que 102 eram travestis e transexuais, segundo o GUIA GAY SALVADOR deste ano. A maior parte dessas candidaturas pleiteava cargos legislativos, sendo que apenas duas delas concorreram ao cargo executivo, representando 0,0059% do total de candidaturas aos cargos de prefeito/a e vice-prefeito/a. As duas candidatas trans concorreram à prefeitas e nenhuma ao cargo de vice-prefeito(a). A seguir analisaremos as duas candidaturas trans para o Executivo municipal, nas eleições brasileiras de 2016: SAMARA BRAGA Samara Braga foi candidata pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) ao cargo de prefeita do município de Alagoinhas, localizado no estado da Bahia, região Nordeste do país, e distante 124 quilômetros da capital Salvador, com população estimada de 155.979 pessoas (IBGE, 2018). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 65 Frente de Esquerda – Transformação Popular foi o nome da chapa composta por Samara Braga e Andemberg Nonato. Percebe-se o destaque para a expressão “trans” em azul, rosa e branco, as cores do movimento Trans, que permite identificar a ligação com a pauta da transexualidade. Em vídeo que circula pela internet4, Samara relata que iniciou na política através da militância no Partido dos Trabalhadores (PT), e que após alguns anos, ao ver a atuação política de Jean Wyllys, se filiou ao PSOL. 2016 foi a primeira vez que ela disputou uma eleição. De acordo com dados oficiais disponibilizados pelo TSE, Samara declara-se com escolaridade superior incompleta, de cor Preta, e Dona de casa. 6 candidaturas pleitearam o cargo Executivo de Alagoinhas, mas apenas duas, incluindo Samara, se declararam do gênero feminino. Ela não 4 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=uzfro_bVllU>. Acesso em: 19/8/2018. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 66 foi eleita, ficou em último lugar, recebendo 269 votos, o que correspondeu a 0,36% dos votos válidos. THÍFANY FÉLIX Foi candidata à prefeita do município de Caraguatatuba, litoral de São Paulo, localizado a 174 quilômetros da capital São Paulo, com população estimada de 116.786 pessoas (IBGE, 2018). Thífany atua politicamente em diversos espaços na área da saúde, em associações de bairro, com jovens e adolescentes, na cultura, em movimentos de defesa de direitos de minorias sexuais, além de ser militante do partido que a lançou como candidata, o PSOL. Seu lema de campanha foi “Justiça e Igualdade para Todos”. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 67 Thífany era a única representante do gênero feminino e, assim como os demais candidatos, se declarou Branca. O cargo/ocupação que a candidata identificou em sua inscrição no TSE foi o de Cabeleireiro e Barbeiro. Ela obteve 390 votos, ficando em sexto e último lugar, representando 0,67% dos votos válidos. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 68 ANÁLISE DAS CANDIDATURAS As duas candidaturas analisadas foram lançadas pelo PSOL, partido oficialmente alinhado com ideologias de esquerda. Santos (2016), ao identificar os partidos das candidaturas de travestis e transexuais no Brasil, observa que muitas delas estão vinculadas a partidos de direita. Segundo o autor, isto se deve ao fato de muitas dessas candidaturas ocorrerem em cidades de pequeno e médio porte, longe dos grandes centros, e por isso não têm um histórico de militância no movimento LGBT, ou seja, as experiências políticas desses candidatos e candidatas se deram em outros espaços, fora do escopo político-partidário. Logo, de acordo com Santos (2016, p. 77) “[...] estas candidaturas se guiaram muito mais por arranjos e conveniências políticas locais do que pela vinculação com pautas e as agendas do movimento LGBT (tradicionalmente ligadas à esquerda)”. No caso de Samara, sabe-se que ela viveu até os 21 anos de idade em Salvador, capital da Bahia, cidade grande e populosa, e que ela é militante do movimento LGBT e transfeminista. Thífany mora e atua em Caraguatatuba, cidade de médio porte do litoral paulista, no entanto, ela sempre participou de movimentos e ações políticas de reivindicação de direitos LGBTs. Ou seja, a vinculação a um partido de esquerda, que luta por causas progressistas, sobretudo por questões sociais, está relacionada também à formação política das duas e não a arranjos políticos. Relativo à questão de gênero, concordamos com Santos (2016), quando este afirma a presença de candidatos majoritariamente (78,2%) do sexo masculino, incluindo travestis e transexuais. Segundo ele No caso das candidaturas de travestis e transexuais, é possível que os processos de socialização primária de gênero tenham impactado nossas candidatas no sentido de nutrirem certas características socialmente atribuídas ao gênero “masculino” e valorizadas no campo político (a exemplo da assertividade), predispondo-as à carreira política (SANTOS, 2016, p. 69). Devemos lembrar, que no caso das duas candidatas analisadas, a Justiça Eleitoral as tratou como homens, pois o cadastro delas foi realizado com o nome de registro. Somente em 01/03/2018 é que o TSE autoriza que transexuais e travestis registrem suas candidaturas em pleitos eleitorais com seus nomes sociais e o gênero que se identificam, sem a necessidade de alteração do registro civil. Com isso, permite também que essas pessoas, que se identificam pelo gênero feminino, possam entrar nas cotas partidárias para mulheres. É uma conquista enorme, pois evita que essas pessoas sofram preconceito ao serem expostos seus nomes de registro.Sabemos que a política brasileira é dominada por homens. Fato também constatado nos concorrentes das candidaturas analisadas. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 69 CONSIDERAÇÕES FINAIS Pode parecer pouco, apenas duas candidaturas trans nas eleições municipais de 2016 ao cargo executivo, entretanto, isso indica conquista de espaço no cenário político eleitoral do país. Cenário, como mencionado, excludente e composto majoritariamente por homens, brancos, heterossexuais e de classes médias e/ou altas. As duas candidatas analisadas não fazem parte desse escopo, pois estão inseridas em um grupo social e politicamente excluído, os LGBTs, além de economicamente pertencerem a uma classe baixa. Esperamos que nas próximas eleições, mais travestis e transexuais se candidatem e que alcancem resultados satisfatórios possibilitando exercerem a política a partir das instituições de poder do nosso país. Representatividade é importante, e no caso dessa população historicamente marginalizada, e com a presença de políticos muito conservadores, é de extrema importância que mais LGBTs se envolvam e almejem cargos públicos, tendo como objetivo a luta por políticas de conquista de direitos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Brasil teve ao menos 269 candidaturas LGBT. Veja lista completa. Guia Gay Salvador, 2016. Disponível em: <http://www.guiagaysalvador.com.br/noticias//brasil-teve-ao-menos-269candidaturas-lgbt.-veja-lista-completa>. Acesso em: 19/8/2018. BRASIL. IBGE. Alagoinhas.Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ba/alagoinhas/panorama>. Acesso em: 19/8/2018. BRASIL. IBGE. Caraguatatuba.Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/caraguatatuba/panorama>. 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Para isto, parte da apresentação dos territórios negros em Porto Alegre e a constituição geopolítica da cidade, a ocupação da cidade por parte do povo negro e o respectivo processo de desterritorialização e branqueamento que se deu ao longo dos séculos. Esse aspecto fez com que migrasse para as periferias da cidade, implicando, por conseguinte, na perda de suas raízes, de sua religiosidade e de seus referenciais, a partir do desenvolvimento da cidade e de suas consequências. Enfim, visa mostrar como o movimento negro articulado com as demais organizações da sociedade civil e esferas administrativas construiu uma importante pauta de reivindicações que desembocou no projeto do Museu fruto da criatividade e inventividade do povo negro gaúcho. PALAVRAS-CHAVE: Memória; Identidade; Territórios Negros; Percurso do Negro. ABSTRACT The present reflection aims to investigate the paths of the Negro in Porto Alegre-RS and the importance of the Black Path Museum in Porto Alegre-RS. Search and analyze the relationship to politics of representation and memory rescue of black people of African array. The presence of black thematizing proposes in the capital, your importance and Rio the legacy of the black population of African array. For this part of the presentation of the black territory in Porto Alegre and the geopolitics of the city Constitution, the occupation of the town by the black people and its deterritorialization and bleaching process that took place over the centuries. This aspect made moving to the outskirts of the city, therefore implying the loss of roots, of your religiousness and its benchmarks, from the development of the city and of its consequences. Anyway, aims to show how the black movement articulated with other civil society organizations and administrative spheres built an important agenda of claims that ended in the Museum project fruit of the creativity and inventiveness of the black people Gaucho. KEYWORDS: memory; identity; Blacks; Black route; Route of the Negro. INTRODUÇÃO O Museu do Percurso do Negro precisa necessariamente ser compreendido como um marco político e inovador, que possibilita a retomada e o resgate da memória e o reconhecimento da cultura do povo negro, em especial da cidade de Porto Alegre. Por meio de sua potencialidade propicia a construção de agendas e pautas mais amplas na direção da garantia dos direitos dos negros e de sua presença e representatividade no espaço cultural, econômico, 1 Mestra em sociologia pela UFRGS. Ativista e militante do movimento Negro/RS. Professora do Estado do Rio Grande do Sul. Atua na secretaria da educação do Estado do Rio Grande do Sul como pesquisadora do Museu de Antropologia do Rio Grande do Sul. E-mail: elzavrosa@hotmail.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 72 político e social na capital do Rio Grande do Sul. O objetivo dessa reflexão é demostrar o papel desempenhado pelo povo negro, seus conhecimentos e saberes no processo de construção de sua cultura e na concepção do Museu. Visa, portanto, abordar como o Museu pode ser considerado como um marco que possibilita o desenho de traços indicativos de uma política de representatividade em vista de perceber de como se deu o processo de desterritorialização do negro e as consequências sofridas. Os percursos dos negros na construção de Porto Alegre e da sociedade riograndense compreende marco histórico-cultural como um dos fatores que se constituem em eixos delineadores da história e da cultura do povo gaúcho, na formação da cultura do povo gaúcho. Desse modo, trazer à tona a história e o legado supõe reconstituir, revisitar a própria história do Rio Grande do Sul em sua formação e em suas especificidades. É nesse sentido que a busca constante de reconstruir a memória e refazer os percursos em forma de um museu com aspectos inovadores (anti-museu), ou seja, um museu a céu aberto e que, por conseguinte, foge dos parâmetros tradicionais. Assim, cabe perceber como se estruturou esse marco artístico-histórico e social na dinâmica da ocupação dos espaços públicos, em sua dimensão de monumento e patrimônio público. Portanto, nesse sentido, podemos afirmar que o projeto do Museu vem ao encontro na implementação da luta do movimento do negro e da vigência acerca das diretrizes da educação em vista de desenvolver trabalhos sobre cultura negra em área da educação: O projeto Territórios Negros se apresenta como grande potencial para construção de novas narrativas acerca do processo histórico na cidade de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul; além de colaborar para a efetivação da lei 10.639/2003 e da conscientização das populações sobre os mecanismos de discriminação ainda vigentes em nosso cotidiano. O trabalho com escolas através da realização de um percurso pela cidade, provoca nos participantes questionamentos acerca da construção historiográfica e da compreensão do território como espaço de poder, fazendo com que a história das populações negras, deslegitimadas ao longo do tempo, seja entendida como formadora da sociedade (MEDEIROS, 2016, p. 64). Em Porto Alegre existem diversas obras de arte públicas que foram erguidas com o intuito de resgatar a memória da comunidade afrobrasileira, bem como sua contribuição na construção dessa cidade. Essas obras foram todas instaladas recentemente, sendo a primeira no ano de 1997. Trata-se de esculturas e painéis que estão situados em locais historicamente ocupados pelos negros e negras na cidade. As obras, a partir da data que foram inauguradas, passaram a sintetizar parte da memória e da história dessa comunidade no Rio Grande do Sul, por meio da representação nas artes visuais, assim difundindo e promovendo a relação dos afrodescendentes com os espaços públicos, e também estimulando ações que oportunizam a colaboração em um contexto participativo. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 73 Entretanto, antes de adentrarmos na exposição sobre os aspectos das manifestações artísticas que integram o Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre, se faz necessário citar as obras que o antecederam, para que se compreenda com nitidez o elo de ligação entre todas elas, bem como a maneira que a intervenção de um artista influenciou a concepção de outro. Dentro dessa perspectiva, o ensaio objetiva apresentar um panorama sobre as artes visuais de referência afrobrasileira no espaço público da cidade de Porto Alegre, estabelecendo as relações entre oito obras de arte públicas, dando continuidade a um estudo que iniciei ainda no ano de 2011, e que no ano de 2014 passou a se constituir como um trabalho de pesquisa em constante atualização. Até o ano de 1996 praticamente inexistiam representações edificadas da estética negra nos espaços públicos de Porto Alegre, o que não contribuiu para uma construção real da memória nessa região do país. Assim, se verificava uma relevante carência no campo das artes visuais, pois praticamente não se viam nos espaços públicos dessa região, imagens edificadas da identidade da comunidade afrobrasileira. Nesse sentido, conforme pontua Harvey, o desafio consiste em que: “Reúno as forças que trabalham para criar e sustentar essas diversidades culturais sob a rubrica de uma teoria geral dos desenvolvimentos geográficos desiguais” (HARVEY, 2000, p.107). A construção dessa identidade tende a exaltar a figura do gaúcho em detrimento dos descendentes dos colonos alemães e italianos nessa região, ela o faz de modo mais excludente ainda em relação ao negro e ao índio. Dessa forma, até o fim do século XX em Porto Alegre, se verificam centenas de bustos, monumentos e outras obras de arte que visibilizavam a tradição do gaúcho, além daquelas que fazem referência à cultura alemã, à italiana e à açoriana, não incluindo os negros nessas representações públicas. Inaugurado em 21 de março de 1997, o Monumento ao Zumbi dos Palmares foi o primeiro monumento negro a ser edificado. Está situado em um local de relevante importância e visibilidade na cidade de Porto Alegre, no Largo dos Açores, local que também abriga outro conhecido monumento do Rio Grande do Sul, o Monumento aos Açorianos, de autoria do escultor Carlos Tenius, inaugurado em 1974, que foi erguido com o objetivo de homenagear os casais açorianos e a sua contribuição na formação da cidade de Porto Alegre. O Monumento ao Zumbi dos Palmares está oficialmente localizado no bairro Cidade Baixa que compreende o limite com o Centro Histórico da cidade, em uma região intimamente ligada aos negros de Porto Alegre, próxima à ponte dos Açores e ao Largo Zumbi dos Palmares. Após o Monumento ao Zumbi, posteriormente, nos anos seguintes foram inauguradas mais sete obras: o Monumento à Mãe Oxum, na praia de Ipanema em 1999; o busto de João Cândido, no Parque Marinha do Brasil em 2001; o Afromosaico na Bom Jesus, em 2012; e as atuais quatro Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 74 obras do Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre2 (Tambor, Pegada Africana, Bará do Mercado e Painel Afrobrasileiro), que começaram a ser projetadas a partir de 2009. Antes do início da implantação do Museu de Percurso do Negro, dificilmente se encontravam referências visuais que remetessem à trajetória e ocupação negra no Centro Histórico da cidade, salvo algumas exceções de referenciais indiretos presentes em edificações históricas, ou ainda em manifestações de arte contemporânea urbana, como o grafitti, por exemplo. Essa carência já citada das obras de arte que homenageiam a comunidade afrobrasileira em toda a cidade é também reflexo da ausência desses exemplares no centro da metrópole. Em função dessa carência, se fez importante evocar os lugares por onde o negro esteve presente no bairro Centro Histórico da Capital dos gaúchos, contribuindo com a sua cultura singular de matriz africana na consolidação da identidade sulina e, também, como sendo um dos principais agentes sociais na construção da riqueza econômica, social e cultural da terra gaúcha. Nesse sentido, a democratização da mobilidade corresponde à construção renovada de cidade. A conquista da mobilidade está sensivelmente associada à ressignificação da cidade como espaço público. Sendo assim a área central de uma cidade, [...] a mais rica em significado histórico-cultural, pois nela estão contidas as imagens de todos os diferentes tempos da cidade, o registro da memória informativa acumulada da própria existência da cidade e os novos estímulos atuais, construindo permanentemente novos fatos e imagens que engendram o presentena memória, aquilo que será a memória do futuro (BARBOSA, 2016, p. 54). Novas obras de arte pública no Centro Histórico da cidade estariam então ligadas ao Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre. O Museu nasceu dos debates entre pesquisadores, representantes do poder público, militantes da sociedade civil organizada e griôs, mestres africanólogos detentores dos conhecimentos da cultura afrobrasileira. Fundamenta-se na ampliação do conceito de Museu, um Museu de Percurso, que se afirma na ideia de um museu a céu aberto, com as obras de arte indo ao encontro da população e configurando um trajeto na área central da cidade, marcando com esculturas e painéis os referidos caminhos dos negros em Porto Alegre. Portanto, frente ao contexto, Apesar de o processo de urbanização da população brasileira ter se dado, praticamente no século XX, ele conserva, como vimos, muitas raízes da sociedade patrimonialista e clientelista próprias do Brasil pré-republicano. As resistências que, durante décadas, buscaram contrariar a abolição do trabalho escravo marcaram o surgimento do 2 O plano de criação do Museu de Percurso do Negro foi contemplado no Programa de Preservação do Patrimônio Histórico Urbano do Programa Monumenta – IPHAN, em parceria com a UNESCO, em projeto que nasceu a partir de demanda das entidades do movimento negro local. Este programa desenvolvia projetos para a requalificação e melhoria das condições de sítios históricos urbanos no país, com ações em vinte e seis municípios no território nacional. No Centro Histórico de Porto Alegre, o Projeto Monumenta viabilizou o investimento de recursos em uma área delimitada por um conjunto de espaços e monumentos tombados pelo patrimônio histórico nacional. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 75 trabalho livre. A cidade é, em grande parte, reprodução da força de trabalho (MARICATO, 2002, p. 45). O projeto de implantação do Museu de Percurso do Negro propõe uma discussão acerca da inclusão de espaços voltados ao segmento negro utilizando o campo da Museologia. Para tanto, está baseado na crescente diversidade do significado da palavra museu, seus conceitos e reformulações de espaços físicos, bem como justificado na dimensão do conceito de bens culturais. Desta forma, a criação deste museu esta claramente vinculada aos ideais da Mesa Redonda de Santiago do Chile, às Declarações de Caracas e Quebec e às motivações na atualidade da Política Nacional de Museus, documentos que buscam a valorização do homem e seus referenciais culturais no tempo e no seu espaço. Os lugares de instalação das obras de arte do Museu de Percurso do Negro foram definidos após a pesquisa histórico-antropológica desenvolvida pelo antropólogo Iosvaldyr Bittencourt Júnior no ano de 2009, somando-se ainda às novas demandas das entidades negras de Porto Alegre, que elencaram os lugares territorializados pela comunidade negra, que receberiam os marcos visuais na área central da cidade. Ao todo, então, foram previstos sete lugares para a instalação das obras de arte públicas no espaço urbano: 1: Praça Brigadeiro Sampaio (antigo Largo da Forca); 2: Praça da Alfândega (antigo Largo da Quitanda); 3: Mercado Público de Porto Alegre; 4: Largo Glênio Peres; 5: Igreja das Dores (antigo Pelourinho); 6: Cais do Porto; 7: Esquina Democrática (antiga Esquina do Zaire). Em suas quatro primeiras etapas, foram inauguradas quatro obras: o Tambor, na praça Brigadeiro Sampaio; a Pegada Africana, na Praça da Alfândega; o Bará do Mercado, na área central do Mercado Público de Porto Alegre; e o Painel Afrobrasileiro, no Largo Glênio Peres. Na primeira etapa, concluída no ano de 2010, o Museu de Percurso do Negro teve a entidade Angola Janga como coordenadora-executiva do projeto, que também incluía no Conselho Gestor mais de vinte outras entidades do movimento negro do Rio Grande do Sul, todas elas reunidas através do Centro de Referência Afro-brasileiro - CRAB. A segunda etapa foi realizada pela Prefeitura, e contou com o apoio do Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes de Quilombos – IACOREQ. Na terceira etapa, concluída em fevereiro de 2013, a entidade organizadora foi a Congregação em Defesa das Religiões Afro-brasileiras – CEDRAB. Nessas três primeiras etapas, o Museu contou com recursos do Programa Monumenta/IPHAN e da Secretaria Municipal de Cultura, além do apoio da UNESCO. A etapa IV, objeto desta publicação, teve novamente a entidade Angola Janga como responsável, após aprovação do projeto no Prêmio Funarte de Arte Negra. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 76 Curiosamente, a cidade de Porto Alegre primeiro inaugurou exemplares de obras públicas fora da área central, para depois erguer as obras em seu Centro Histórico. Essa inversão ocasionou algumas singularidades, pois grandes líderes como Zumbi e João Cândido estão locados em lugares fora das áreas que normalmente guardam a referida memória acumulativa da existência da cidade, como afirma Castello. Contudo, esse inusitado desdobramento possibilitou que as novas obras do Museu de Percurso no centro da cidade tivessem uma liberdade maior na etapa de criação, agregando elementos que as inserem na contemporaneidade, não somente pelos materiais empregados, mas também pela forma adotada nas novas obras, que não necessariamente estaria condicionada a representar Zumbi, João Cândido ou Oxum, pois os mesmos já haviam sido materializados em outras áreas da cidade, periféricas ao centro urbano consolidado. MONUMENTO AO ZUMBI DOS PALMARES O Monumento ao Zumbi dos Palmares, concebido e executado pela artista Cláudia Stern está localizado no Largo dos Açores. A obra é o primeiro exemplar de arte pública relacionada à comunidade negra edificada no município de Porto Alegre. O monumento apresenta elementos que remetem à circularidade africana, representada por uma mureta baixa de concreto, que envolve uma “lança” prismática de aço inox em uma parte de seu perímetro, reforçando a identidade negra e sua relação com o território, pelo fato da mesma estar fincada no chão. Essa “lança” de aço, durante o dia recebe insolação que, por sua vez, projeta à luz refletida sobre a mureta de concreto, que possui a palavra Liberdade gravada em baixo relevo. No decorrer do dia, gradativamente, as letras da palavra “liberdade” vão sendo iluminadas uma a uma. BUSTO DE JOÃO CÂNDIDO Inaugurado em 22 de novembro de 2001, o busto que homenageia o Almirante Negro João Cândido está localizado no Parque Marinha do Brasil, bairro Praia de Belas, assentado sobre um pedestal de alvenaria revestido de granito cinza polido. A obra é de autoria do escultor Vasco Prado. O busto original foi modelado por Vasco Prado ainda na década de 1960, encomendado pela centenária entidade Floresta Aurora, que o guardou por quatro décadas. MONUMENTO À MÃE OXUM Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 77 O Monumento à Mãe Oxum, de autoria do escultor Gilberto Silveira, também conhecido como Beto Babão, foi executada através da união de diversos fragmentos de chapas de aço galvanizado, que unidos compõem a forma da Mãe Oxum. O monumento fica localizado na Avenida Guaíba, no bairro de Ipanema. Situada em um local de intensa circulação de pessoas, o monumento foi instalado sobre um pedestal de concreto, composto de uma haste e um disco para suportar a obra de aço, que pesa aproximadamente 300 kg. AFROMOSAICO NA BOM JESUS O Afromosaico na Bom Jesus foi executado com recursos do Ministério da Cultura, no edital intitulado Territórios de Paz, em um programa nacional interdisciplinar, que previa atividades de artes relacionadas a bairros historicamente distantes de uma “centralidade cultural”. Nesse programa federal, foram selecionados em todo o Brasil centenas de projetos visando incluir jovens de 14 a 29 anos, com realização em bairros urbanos com elevados índices de desigualdade social. O Afromosaico, concebido por Érica Soares (estudante FACEDUFRGS) e Vinicius Vieira, foi construído coletivamente por jovens do bairro Bom Jesus, através da elaboração e execução de um desenho africano em mosaico, configurando uma ferramenta de efeito sobre a percepção de um ambiente já existente. TAMBOR A escultura Tambor, localizada na Praça Brigadeiro Sampaio (antigo Largo da Forca), é a primeira obra de arte do Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre, tendo sido inaugurada em 9 de abril de 2010. Ela é fruto de uma concepção coletiva, de autoria dos artistas Gutê, Leandro Machado, Maria Elaine Rodrigues3, Mattos4, Pelópidas Thebano e Xaplin. 3 Maria Elaine Rodrigues Espíndola. Mestra Griô. Professora, artista visual, militante do movimento negro e presidente da Associação Comunitária Amigos e Moradores da Cidade Baixa e Arredores – MOCAMBO. 4 Marcos Mattos é ilustrador e militante do movimento negro. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 78 Etapa I do Museu do Percurso do Negro – Tambor Fonte: Fonte: site Brechó de Saberes O Tambor foi executado a partir da montagem de uma estrutura metálica, posteriormente recoberta por uma camada de granitina nas cores amarelo, preto e branco. Cores essas necessárias para a diferenciação e consequentes saliências que reforçam o contraste com doze ilustrações. Essas ilustrações contam, através de desenhos bidimensionais, a histórica caminhada do negro em Porto Alegre. Por se tratar de uma concepção coletiva, a definição das formas, das cores e das ilustrações que o Tambor iria conter, passou por uma série de reuniões e oficinas. Pensado e debatido pelo Movimento Negro, pelos integrantes do Comitê Gestor do CRAB, pelos griôse idealizado pelo grupo de artistas, o Tambor surge como um grande agregador das diferentes composições que se formaram durante a etapa de criação do mesmo. As ilustrações nele contidas se referem às negras quitandeiras, aos lanceiros negros, aos estudantes, ao carnaval, aos escravizados marítimos, à capoeira, entre outros. Como bem afirmou o historiador Pedro Rubens Vargas: O Tambor, concebido coletivamente, nasceu dos debates entre artistas e griôs (guardiões da memória), acompanhados com expectativa pelo movimento negro. Essa multiplicidade de saber envolvido na concepção e na execução do Tambor enriqueceu sua composição, e o tornou a obra de arte mais visitada pelos negros em Porto Alegre, por ser fruto de uma série de desdobramentos interdisciplinares, em que diversos atores foram ouvidos durante o processo de concepção da obra. O Tambor, primeiro marco escultural Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 79 do Museu de Percurso do Negro, passou a ocupar um espaço na Praça Brigadeiro Sampaio, no Centro Histórico de Porto Alegre. PEGADA AFRICANA A Pegada Africana, localizada na Praça da Alfândega (antigo Largo da Quitanda), é a segunda obra de arte do Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre, tendo sido inaugurada em 14 de novembro de 2011. O lugar em que a Pegada Africana foi construída, o antigo Largo da Quitanda, se trata de um local em que os negros e as negras antigamente praticavam sua arte tradicional de comércio ambulante e de feira. Etapa II do Museu do Percurso do Negro - Pegada Africana Fonte: Fonte: site Brechó de Saberes A obra apresenta formas que remetem ao natural, ao orgânico, com linhas curvas que buscam reinterpretar as sinuosidades presentes na trajetória negra. A Pegada Africana, assim como outras obras de arte de matriz afro-brasileira localizadas no espaço público de Porto Alegre, evidencia o protagonismo negro mediante a presença de elementos circulares em sua composição, dessa vez distorcida nos dedos e no corpo da obra de arte. Durante a execução da Pegada Africana no ano de 2011, a Praça da Alfândega passava por um restauro de grandes proporções, e por esse motivo não era incomum encontrar diversos montes de antigas e desgastadas pedras vermelhas ou pretas espalhadas pela Rua dos Andradas ou pela Avenida Sete de Setembro. Também se viam pedras portuguesas coloridas novas, que eram assentadas em áreas que passaram por intervenções e projetos recentes, relevante valor da ocupação negra, que estavam envelhecidas pelo tempo e pela abrasão das pisadas de milhares de pessoas que por ali circulam no baricentro da cidade de Porto Alegre. Sobre a obra, no ano Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 80 de 2011, pode ser perceber que a Pegada Africana da Praça da Alfândega consegue atingir a simbiose de arte e meio ambiente numa relação recíproca. As cores do pan-africanismo aparecem na Pegada Africana de maneira diferenciada, buscando se distanciar dos limiares diretos de representações simbólicas presentes com certa regularidade nas artes visuais construídos da Praça da Alfândega. O preto aparece em sua totalidade na obra de arte, o vermelho nas pedras portuguesas da praça, o verde se evidencia na vegetação abundante naquele lugar, e o amarelo nas principais edificações históricas do entorno, envolta pelas cores do entorno, a manifestação visível da Pegada Africana afirma a Praça da Alfândega como um dos lugares de existência do Museu de Percurso do Negro POA. No local, antigo Largo das Quitandeiras, raízes históricas adquirem nova visibilidade na forma de continente africano. BARÁ DO MERCADO O marco visual ao Bará do Mercado, localizado na área central do Mercado Público de Porto Alegre é a terceira obra de arte do Museu de Percurso do Negro em POA. Ela foi inaugurada no dia 7 de fevereiro de 2013 e, assim como o Tambor, é fruto de diversos saberes que, somados, resultaram em uma representação de relevante valor histórico. Etapa III do Museu do Percurso do Negro - Bará do Mercado Fonte: Fonte: site Brechó de Saberes A obra, idealizada pela Mãe Norinha de Oxalá, concebida por Leandro Machado e Pelópidas Thebano, e executada pelos artistas Leonardo Posenato, Vilmar Santos e Vinicius Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 81 Vieira, homenageia o Orixá Bará no centro do Mercado Público, fortalecendo as tradicionais manifestações culturais, étnicas e religiosas ali realizadas, marcando mais um lugar histórico da territorialidade negra na cidade de Porto Alegre. Nesse sentido, a s cores vermelho e amarelo ressurgem e envolvem as 7 chaves do painel de piso, em um desenho novamente curvo, como ocorre com outras obras de arte inauguradas na cidade. O anúncio do Bará como Bem Cultural de Natureza Imaterial foi feito no mesmo dia da inauguração da obra de arte, em um momento de grande celebração ao Orixá, que contou com a presença de centenas de pessoas. A obra de arte foi executada após uma década de desdobramentos institucionais. Em 2013 o lugar do assentamento do Bará foi indicado como Bem Cultural de Natureza Imaterial de Porto Alegre, aprovado pelo Conselho do Patrimônio Histórico e Cultural -COMPAHC, passando a fazer parte do patrimônio cultural da cidade. O pedido de registro do Bará do Mercado como patrimônio imaterial de Porto Alegre foi iniciativa da CEDRAB à Secretaria Municipal da Cultura. Segundo a Lei Municipal que trata do assunto, os bens culturais de natureza imaterial podem ser registrados nas categorias de saberes, celebrações, formas de expressão e lugares. A obra é formada por sete chaves de bronze, colocadas no sentido anti-horário, envoltas por dois círculos desconcêntricos, um amarelo e outro vermelho, formados por pedras de granito provenientes do solo gaúcho. As sete chaves estão conexas a sete correntes, também de bronze, que juntas apontam para sete diferentes coordenadas geográficas, sendo que duas delas estão direcionadas para a Guaíba. Além disso, assim como o Monumento à Oxum, a obra de arte Bará do Mercado está localizada em um ponto estratégico, no centro do mercado, ampliando e promovendo as manifestações religiosas de matriz africana em Porto Alegre. Mãe Norinha de Oxalá, acrescenta expressa o sentimento de pertença em relação ao povo que frequenta: Os religiosos de matriz africana e frequentadores acreditam na força do axé do orixá, que garantiu a sobrevivência e a prosperidade do mercado ao longo de seus 244 anos. Os africanistas e simpatizantes, ao fazerem seus pedidos, de abertura dos caminhos na terra para a fartura de comida na mesa e de prosperidade na vida ao Bará, jogam sete moedas, como certos da sua proteção. Com o passar do tempo, somam-se os testemunhos de pessoas que agradecem pelo pedido alcançado ao Bará do Mercado Público. O Orixá Bará é reverenciado por toda a comunidade de matriz africana no Estado5. Ela apresenta as cores do pan-africanismo que aparecem na Oxum, no Tambor e no Afromosaico; a circularidade, presentes no Zumbi, na Oxum, no Tambor, na Pegada e no Afromosaico; além da semelhança nos materiais empregados, como o bronze do busto de João 5 Entrevista concedida. Mãe Norinha de Oxalá. Fundadora e Presidente da Congregação em Defesa das Religiões Afro- Brasileiras – RS. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 82 Cândido, ou mesmo as pedras graníticas também presentes nas outras obras do Museu de Percurso do Negro. PAINEL AFROBRASILEIRO Assim como as obras de arte Tambor, Pegada Africana e Bará do Mercado, o Painel Afrobrasileiro (sim, com o “afro” escrito junto com o brasileiro, para demonstrar coesão) teve sua concepção iniciada ainda no ano de 2009. No trabalho, o artista Pelópidas Thebano conseguiu sintetizar grande parte de sua produção em uma única obra, pois ela agrega os valores civilizatórios da comunidade negra, somados às cores que caracterizam a trajetória dos afrodescendentes, passando pela íntima relação com o lugar, que tem como cenário o prédio do Chalé da Praça XV, sem falar no contraste contido na composição do artista, necessário para evidenciar as tramas negras de resistência, que poderiam também estar evidenciando as desconexões do tecido urbano do próprio Centro Histórico da cidade. Etapa IV do Museu do Percurso do Negro - Painel Afrobrasileiro Fonte: Fonte: site Brechó de Saberes A obra de Thebano nasceu em um fértil período de composição de projetos para os marcos visuais a serem construídos, em que os artistas do Museu se reuniam no Castelinho Cultural do Alto de Bronze o desenho final por ele apresentado, e neles se percebe nitidamente as influências advindas do período que o artista atuava como desenhista profissionalmente, somados aos saberes da cultura afro-brasileira. A autorização para a execução da obra deu-se somente em 2011, após aprovação do Conselho do Patrimônio Histórico e Cultural – COMPAHC, entretanto os recursos só foram Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 83 disponibilizados no ano de 2014, após o projeto da etapa IV do Museu ter sido contemplada no edital intitulado Prêmio Funarte de Arte Negra. O local de instalação dessa obra se diferencia pela grande circulação diária de pessoas e por estar em um ponto que congrega dezenas de fluxos urbanos de passagens de pedestres, condicionados pela recente concentração de linhas de ônibus na região nas últimas décadas. É um lugar em constante transformação, caracterizado como um espaço democrático e de encontro de diferentes manifestações como, por exemplo, a saída anual da Marcha da Semana da Consciência Negra. No dia da inauguração do Painel no Largo Glênio Peres, em 20 de novembro de 2014, estavam presentes dezenas de membros de entidades do movimento negro, artistas, funcionários da imprensa, conselheiros de cultura do Estado e do Município, integrantes da equipe do Museu de Percurso do Negro, representantes das instituições que compõem o projeto, jovens do Quilombo do Areal, entre diversas outras pessoas representativas da área cultural e das políticas de proteção do patrimônio brasileiro. No cerimonial, destaca-se a presença de Margarete Moraes, do Ministério da Cultura – MinC; do Professor Garcia, presidente da Câmara Municipal de Porto Alegre e Prefeito em exercício na ocasião; de familiares de Pelópidas Thebano, de Luizinho Martins, Secretário da Juventude do Município; de Vinícius Cáurio, Secretário Adjunto da Cultura de Porto Alegre; de Mãe Norinha de Oxalá, presidente da CEDRAB, além de centenas de outros presentes que prestigiaram o evento com grande movimentação e alegria, que ficará “guardado” na memória da cidade. CONCLUSÃO As obras de arte, quando situados em lugares públicos de grande visualização, se tornam bens de natureza material, portadores de referência de identidade e de memória das coletividades, constituindo-se como patrimônio cultural de nossa sociedade. As oito obras de arte erguidas em Porto Alegre em memória à comunidade afro-brasileira nesses últimos anos difundem e preservam parte desse patrimônio, além de estimular a construção de políticas representativas e ações efetivas que garantam o direito à cidade e à cultura para todos, contribuindo para consolidar a apropriação dos espaços públicos pelos cidadãos. Assim como em outras capitais brasileiras, Porto Alegre guarda um volumoso acúmulo dos fatos que vêm marcando de maneira satisfatória sua evolução, fortalecida principalmente pela representação da arte pública em diferentes contextos, marcando a paisagem de determinados lugares da nossa cidade. Projetos como o Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre, o Território de Paz, ou mesmo ações inicialmente isoladas do poder público e do movimento negro, contribuem de Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 84 maneira bastante significativa para que seja segurada aos cidadãos a permanência de seus referenciais básicos de continuidade de sua história, da constância de sua vida e de sua cultura. Com as instalações desses referenciais negros no campo das artes visuais, antigos lugares territorializados por negros estão podendo ser resgatados e, também, novos lugares estão sendo criados a partir dos novos saberes que estão nascendo por consequência. De acordo, Harvey, (2000, p. 244) em Espaços de Esperança Toda luta contemporânea para conceber uma reconstrução do processo social tem de enfrentar o problema de como derrubar as estruturas tanto físicas como institucionais” um cenário físico vivo e integrado, capaz de produzir uma imagem de cidade bem definida, desempenha também um papel social, de cidadania, pois “fornece a matériaprima para os símbolos e as reminiscências coletivas da comunicação de grupo (2000, p. 244). Desse modo, as oito obras de arte públicas resultantes dos anseios da comunidade negra local, invariavelmente irão retroalimentar sua própria contribuição para a construção da paisagem urbana, de maneira geral, e para a construção do lugar, e também de novos lugares. Para Halbwachs (2006) em A Memória Coletiva, o significado de lugar não reside em sua função, nem em sua forma, mas nas memórias a ele associadas. Ou seja, a cidade é um lugar significativo em vista de memorar os fatos e adventos históricos que são fundamentais para que a memória possa trazer à tona a história que foi oprimida e esquecida. Já é fato que as oito obras de arte vêm gradativamente despertando a atenção da sociedade porto-alegrense, pois nelas estão contidas grande parte da memória acumulada da existência da cidade e das diferentes relações que cada cidadão construiu com a cidade ao longo de sua vida. Com a inauguração dessas obras de arte públicas, se fortalece o reconhecimento da cultura afro-brasileira na preservação e continuidade de uma memória da história que está sendo reescrita na capital gaúcha, potencializando assim a autoestima e o sentimento de pertença da comunidade negra, promovendo o desenvolvimento social através da utilização da expressão artística como meio de fruição e como instrumento criativo de reivindicação política, promovendo e dando continuidade a outras ações semelhantes em Porto Alegre, ao concretizar de fato uma estética negra no cenário da arte pública local e regional, recuperaremos nosso processo civilizatório, a invisibilidade da etnia negra na construção de todas as regiões brasileiras, a diáspora africana e a imensa luta de nossos ancestrais, estimulando as novas gerações e também atuando como um pólo irradiador dessa cultura para todo o Brasil. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA, Jorge Luiz. O significado da mobilidade na construção democrática da cidade. In: Cidade e movimento: mobilidades e interações no desenvolvimento urbano / Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 85 organizadores: BALBIM, Renato, KRAUSE, Cleandro, LINKE, Clarisse Cunha. Brasília: Ipea : ITDP, 2016. HARVEY, David. Espaços de Esperança. São Paulo: Edições Loyola, 2000. HALBWACHS Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro Editora 2006. MATTOS, Jane Rocha de. Museus e africanidades. Porto Alegre: Edições Museu Julio de Castilhos, 2013. MARICATO, Ermínia. Brasil, Cidades alternativas para a crise urbana. São Paulo: Vozes 2002 MEDEIROS, Tanise Baptista de. Territórios em disputa: a (in)visibilidade dos territórios negros na cidade de Porto Alegre. EBR – Educação Básica Revista, Sorocaba, vol.2, n.1, p. 65-72, 2016. POSSAMAI, Zita (Org.). Leituras da Cidade. Porto Alegre: Evangraf, 2010. VARGAS, Rubens Nei ferreira. A relação Patrimonial na restauração de bens culturais: O mercado Público de Porro Alegre e os caminhos inversíveis dos Negros. Curitiba: Appris, 2017. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 86 BREVE REFLEXÃO SOBRE A SUPREMACIA BRANCA BRASILEIRA NA ERA DO NEOLIBERALISMO NECROPOLÍTICO Marcelo de Jesus Lima1 RESUMO Este artigo objetiva realizar um diálogo entre os discursos de Carlos Moore e Achille Mbembe para pensar a estrutura racista brasileira na era do neoliberalismo necropolítico, por meio de uma pesquisa bibliográfica que aborda os textos de ambos, além de artigos sobre outras problemáticas raciais, sociais e políticas no Brasil. Inicialmente, será apresentado o conceito de racismo de Carlos Moore, passando para considerações do pensamento de Achille Mbembe sobre democracia, necropolítica e estado de exceção, realizando uma intersecção dos discursos dos autores no desenvolvimento do artigo. PALAVRAS CHAVES: necropolítica; neoliberalismo; racismo; supremacia branca. ABSTRACT This articles aims to conduct a dialogue between the discourse of Carlos Moore and Achille Mbembe in order to think about the brazilian racist framework in the age of necropolitcal neoliberalism, through a bibliographic research that approaches the text of both authors, including articles about another racial, social and political questions in Brazil. Initialy, the racism concept of Carlos Moore will be presented. After that, the considerations of thought of Archille Mbembe about democracy, necropolitics and state of exception will be showed, accomplishing an intersection of speeches of the two authors during the development of the present article. KEYWORDS: necropolitcs; neoliberalism; racism; white supremacy. INTRODUÇÃO Apesar de pensarem as problemáticas do racismo, Carlos Moore e Achille Mbembe são teóricos pouco relacionados nas reflexões brasileiras sobre a experiência da população negra. Contrariando esta lógica, este artigo pretende dialogar com ambos discursos para se pensar o racismo como uma estrutura e forma de consciência, gerando sociedades pigmentocráticas em que prevalece o poder branco, dentro de um contexto de normatização do estado de exceção, saída da democracia e universalização da condição negra, fruto da hegemonia da razão neoliberal. O diálogo entre ambos parte da hipótese que o neoliberalismo maximiza o racismo como forma de consciência e estrutura, levando ao endurecimento das práticas genocidas de controle racial exercido pela supremacia branca. 1 Mestrando em Estudos Culturais PPGCult - UFMS/CPAQ. Formado em Ciências Sociais - Bacharelado - UFMS. Email: marcelox.ciso@gmail.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 87 RACISMO COMO UMA ESTRUTURA EM SI: REFLEXÕES ACERCA DOS PENSAMENTOS DE CARLOS MOORE E ACHILLE MBEMBE Os escritos do etnólogo cubano Carlos Moore sobre o racismo possibilitam repensar tal temática por caminhos inimagináveis até certo tempo atrás. Ao trazer uma reflexão que reporta desde a origem da humanidade, passando pela imigração global africana e pelo processo de raciação2 que teve como consequência conflitos raciais por territórios e recursos na Antiguidade, Moore (2012, 2017) expõe a complexidade do racismo e seu profundo peso histórico, ilustrando como reflexões estritamente quinhentistas tendem para uma superficialidade ahistórica. Ao abordar esse teórico, não busco ponderar sobre a origem do racismo e sua ampla abrangência histórica e geográfica. Objetivo apenas apontar o racismo como um sistema em si mesmo e não como uma ideologia do capitalismo ou um problema subjetivo individual em relação a não aceitação da diversidade. Por outro lado, no que se refere ao funcionamento do racismo na história recente, sobretudo quanto ao avanço da onda neoliberal no globo, o pensamento de Moore apresenta algumas limitações. Para sanar este problema, o filósofo camaronês Achille Mbembe cai como uma luva, levantando questionamentos interessantes e até tenebrosos sobre o racismo, sua relação com o neoliberalismo e com diversas subalternidades para além do negro. A seguir, pretendo unir ambos discursos, até certo ponto contraditórios, mas que podem gerar uma outra direção para se pensar o racismo como estrutura sistêmica e sua particularidade no capitalismo neoliberal. Moore (2012) conceitua o racismo como uma estrutura de origem histórica e como forma de consciência que consolida um poder hegemônico racialmente branco por meio da instrumentalização do racismo institucional. Assim essa estrutura opera para exercer uma exclusão dos grupos raciais não brancos. Sendo o racismo uma estrutura sistêmica, ele constrói uma supremacia total e concreta dos brancos. Tal supremacia total se manifesta no plano material (poder econômico e político) e psicocultural (crença na superioridade) (MOORE, 2007). Longe de ser uma realidade biológica, a raça atua como expressão histórica e social, sendo um marcador social e estrutural. No entanto, para a Europa, a raça serviu como um marcador para produções simbólicas e ressignificações que pintaram o outro fenotípico como 2 Mutação genética por qual o Homo Sapiens Sapiens Grimaldi, humano fenotipicamente negro, passou por meio do processo de seleção natural em um espaço de era glacial, gerando por descendência direta o Homo Sapiens Sapiens Cro-Magnon, fenotipicamente falando, a raça branca. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 88 inimigo ou um ser inferior, criando um outro total que justifique sua exploração, discriminação e extermínio (MOORE, 2012). Achille Mbembe (2018a) compreende a raça como uma forma de estabelecer e afirmar o poder, resultando em uma estrutura imaginária que produz objetos esquizofrênicos. Além disso, a raça opera como uma moeda no comércio de olhares, onde o poder do olhar converte o que se vê em símbolos, dentro de uma economia geral de signos e imagens, atribuindo valores que possibilitem juízos e práticas ao objeto visto e convertido. Citando Fanon (apud MBEMBE, 2018a), o filósofo aponta como a distribuição do olhar pode criar, destruir e desfigurar a vítima do poder ver, resultando em um outro eu (alienação no sentido fanoniano do conceito). Portanto, a raça ilustra a figura da neurose fóbica, levando ao alterocídio (consideração do outro como um objeto ameaçador, que deve morrer para que o eu esteja em paz). Fabulações, narrativas, práticas e discursos sobre pessoas de origem africana por meio de locutores europeus serviram para a dominação da raça negra por meio da criação de um sujeito racial, vítima de uma desqualificação moral e instrumentalização prática. Mbembe denomina tal razão negra como consciência ocidental do negro. O branco em si foi mais uma fantasia da imaginação ocidental, enquanto o negro, mais do que uma autodesignação, foi um mecanismo de atribuição. Nesta razão negra, o negro representa a diferença em seu estado natural, o princípio da exterioridade, que ironicamente alimenta apenas o elo de separação. Figura pré-humana, animalesca e preso em suas sensações, o negro é produzido visando um vínculo social de sujeição, tornando-se um corpo de extração. O tráfico atlântico foi fundamental para a criação destes homens-objetos, homens-mercadorias, homens-moedas, homens-metais. Em suma, o negro é símbolo da menorização, clausura e desumanização objetiva (MBEMBE, 2018a). Como Frantz Fanon (2008) ilustra, temos os negros alienados (mistificados) e brancos igualmente alienados (mistificados e mistificadores), ambos ocupando pólos maniqueístas no imaginário ocidental. Para a Europa, o preto é um objeto fobógeno e ansiógeno, ou seja, estamos diante de uma negro-fobógenese (fobia do negro). Segundo o psicanalista Angelo Hesnard (apud FANON, 2008), a fobia é uma neurose, um temor ansioso de um objeto ou situação dotado de uma força maléfica. Tal fobia está entranhada no inconsciente coletivo (preconceitos, mitos, e atitudes coletivas de determinado grupo cultural) europeu. Focando no racismo como estrutura, é interessante apontar que a raça é a língua privilegiada da guerra social (MBEMBE, 2018a). Como o antropólogo senegalês Cheikh Anta Diop (1991) aponta, as relações históricas e sociais entre diversos povos possuíram o fenótipo como fator principal de intervenção. Diop alerta que a lei da luta de classes do materialismo Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 89 histórico aplica-se apenas para sociedades que anteriormente já passaram por uma homogeneização étnica pela violência. O discurso da luta de classes ignora a fase da luta darwinista que a maioria das atuais nações passaram. Portanto, a exploração do homem pelo homem toma uma modalidade étnica, e questões de classe social traduzem-se em questões étnico-raciais. O racismo possui um caráter fenotipocêntrico (monopólio racial) e fenotipofóbico (fobia racial), que cria uma estrutura pigmentocrática, em que o rank racial orienta a estruturação de classe. Sendo mais direto, podemos dizer que a ordem sociorracial pigmentocrárica cria uma hierarquia racial em que os brancos estão no topo, enquanto os negros e não brancos no geral encontram-se nas camadas intermediárias e inferiores. Entender o racismo como base estruturante do capitalismo torna-se viável se pensarmos no discurso do historiador trinitário-tobagense Eric Williams (apud MOORE, 2007) sobre o papel do escravismo na construção do capitalismo. Segundo Williams a conquista de outros continentes, a exploração da África e do tráfico de escravizados foram fundamentais para o capitalismo industrial europeu (XVII - XVIII) e o processo de acumulação primitiva que culminou na Revolução Industrial, portanto, não existiria o capitalismo se já não houvesse o racismo. Portanto, como uma estrutura e ordem sistêmica em si, o racismo origina-se da luta pela posse e monopólio racial dos recursos. Mas o que são exatamente esses recursos? Vamos nos atentar para o que Carlos Moore nos diz: (...) Na Antiguidade, esses recursos eram território (terra, água, rios e montanhas) e bens (rebanhos, cidades...). Seguidamente, esses recursos foram a própria força de trabalho alheio (escravos), a produção alheia (produtos agrícolas ou manufaturados) e as riquezas do meio ambiente e subsolo alheios (minerais, sal, especiarias, madeiras, marfim...) Nas sociedades atuais, os recursos vitais se definem em grande medida em termos de acesso : à educação, aos serviços públicos, aos serviços sociais, ao poder político, ao capital de financiamento, ás oportunidades de emprego, às estruturas de lazer, e até ao direito de ser tratado equitativamente pelos tribunais de justiça e as forças incumbidas da manutenção da paz. O racismo veda o acesso a tudo isso, limitando para alguns, segundo o seu fenótipo, as vantagens, benefícios e liberdades que a sociedade outorga livremente a outros, também em função de seu fenótipo (MOORE, 2007, p. 103-104). Nesta dramática estrutura negrofóbica, a experiência negra é marcada pela separação de si (alienação), desapropriação (expropriação) e degradação (morte civil) (MBEMBE, 2008a). Agora que passamos pela introdução e conexão aos pensamentos de Moore e Mbembe, podemos passar para o próximo passo e enfim pensar realidades quinhentistas. CORPO NOTURNO DA DEMOCRACIA BRASILEIRA E A NECROPOLÍTICA DOS CORPOS NEGROS Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 90 Para pensar nossa situação atual, é interessante retomar ao nosso passado colonial. Como Mbembe (2018b) afirma, a colônia é um espaço onde a soberania é exercida como um poder à margem da lei (ab legibus solutus). Mas o que significa de fato a soberania? Carl Schmitt (apud MBEMBE, 2018b) a define como o poder de decidir sobre o estado de exceção. Essa soberania schmittiana está latente no imaginário europeu em relação a domesticação da guerra e criação de uma ordem jurídica europeia (Jus publicum europaeum). A domesticação da guerra reconhece a igualdade jurídica de todos os Estados e o direito de fazer guerra. Já o Jus publicum europaeum estabelece a territorialização do Estado soberano. Esta territorialização define fronteiras entre a Europa e as regiões disponíveis para a colonização. Esses espaços coloniais são projetados como a fronteira, o reino da natureza, local de selvageria e desumanidade, onde não existem sujeitos soberanos e o estado de exceção é constantemente necessário. O drama desta territorialização se torna mais visível quando Mbembe (2018a) nos aponta que nesse conjunto discursivo, para além do enclausuramento europeu reinava o estado da natureza, lugar sem fé e sem lei, espaço do não direito. A colônia não faz parte do mundo, ela é o além-mundo, zona fora da humanidade onde o único direito válido é o direito do mais forte. O corpo colonial é igualmente territorializado, forjado como um além-corpo. A empresa colonial nutre constantemente um princípio de separação e impõe diferenças entre seus corpos. O corpo do eu, o corpo do branco é o corpo vivo, o corpo-homem. Enquanto o outro é o corpocoisa, o corpo-carne. Os autóctones são transformados em objetos psíquicos, em imagens-tipo. Estes objetos se tornam essenciais para a construção do eu colonial, em que ironicamente o eu e o outro são unidos pelo princípio da separação (MBEMBE, 2017b). É interessante considerar como o regime da plantocracia ilustra bem a ordem sociorracial pigmentocrática. Como Mbembe (2018a) define, a plantocracia configura-se como uma ordem social, política e econômica hierarquizada, com poucos brancos no topo, alguns negros livres e mestiços nas camadas intermediárias e os escravizados (outros raciais) na base. Na plantation, o vínculo social de exploração não havia se estabelecido de forma definitiva, o que torna necessária sua constante reafirmação através do terror e violência, gerando uma instituição paranóica vivendo sobre o regime do medo. Tal situação adapta-se ao conceito de campo de Giorgio Agambem (apud MBEMBE, 2018b), onde ocupantes não possuem estatuto político, sendo reduzidos aos seus corpos biológicos, em que o estado de exceção (suspensão temporária do estado de direito) torna-se permanente. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 91 Esta é a origem oculta de nossa democracia, onde o seu corpo noturno guarda o passado do império colonial, do Estado escravagista, da plantation e da prisão. O caso do Brasil é muito semelhante ao relatado por W.E.B Du Bois (apud MBEMBE, 2017b) em relação aos Estados Unidos. Segundo Du Bois, este país era uma democracia de escravos, dividida entre a comunidade de semelhantes (brancos, regidos pela lei da igualdade) e a categoria de não semelhantes (negros, os sem lugar). Tal dicotomia alimentava uma lei da desigualdade fomentada pelo racismo. Esta democracia de escravos, assim como a nossa, era uma comunidade de separação. Portanto, as bases das democracias são sustentadas pelo sistema colonial e o sistema escravagista. Não sendo separada das demais realidades, a democracia prende-se a um triangulo vicioso com a colônia e a plantation. Portanto, o terror, o estado de exceção, o racismo e paranóia não são desvios da democracia ou sinais de seu adoecimento, e sim, fatores estruturantes. Para compreender os efeitos da necropolítica no caso brasileiro, devemos inicialmente compreender a crítica feita por Achille Mbembe ao discurso normativo sobre a democracia. Mbembe (2018b) ilustra como a teoria normativa da democracia a percebeu como fruto da expressão máxima da soberania, em um contexto de produção de normas gerais por um povo, dotado de autoconhecimento, autoconsciência e auto-representação. Neste caso, a política atua como um projeto de autonomia e acordo coletivo, em que a razão configura-se como a verdade do sujeito, enquanto a política é o exercício da razão. Mbembe vem nos oferecer uma definição de soberania mais próxima ao nosso passado colonial e de terror. Para Mbembe (2018b), a soberania não define-se pela razão, e sim, pela capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer, através do controle sobre a mortalidade e implementação do poder. No além-mundo em que nos encontramos, a soberania é o direito de matar. O estado de exceção e a relação de inimizade constituem a base normativa deste direito. Este poder assassino (não necessariamente estatal) é alimentado pelo estado de exceção e emergência, além da noção ficcional de um inimigo. Esta soberania sobre a vida e morte é a necropolítica. Michel Foucault (apud MBEMBE, 2018b) considera essa capacidade de classificação sobre as vidas como fundamento do biopoder, atuando no campo biológico por meio da distribuição da espécie humana em grupos e subdivisões da população humana em subgrupos. Para Focault, essa classificação em si é o próprio racismo, que atua como uma tecnologia que permite o exercício do biopoder, visando regulamentar a distribuição da morte e possibilitar Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 92 uma postura assassina do Estado3. Portanto, o direito soberano de matar e os mecanismos de biopoder são elementos constitutivos do Estado. Devemos recordar que o plantation era uma instituição econômica, disciplinar e penal. A partir do século XVII, testemunhamos um trabalho legislativo visando a fabricação de sujeitos raciais destituídos civicamente, ou seja, sujeitos que se tornam não pessoas do ponto de vista jurídico. Essa legislação escravocrata inaugura a estrutura negra do mundo, onde a invenção do negro como um mecanismo de atribuição, transforma estes sujeitos raciais em bem móveis (MBEMBE, 2018a). Guilherme dos Santos (2018) nos oferece uma boa introdução para se pensar a necropolítica e a estrutura negra do Brasil. Santos nos mostra como a Teoria do Direito pode ser útil para compreender o processo de desumanização do negro no Direito Penal, seguida da retirada de seus direitos. O Direito Penal e a estrutura negra brasileira revela o funcionamento racista da máquina jurídica, expondo elementos autoritários que estabelecem divisões entre as pessoas, governando-as de forma heterogênea, o que tem como consequência a desumanização e morte. A construção teórica do direito no Brasil revela-se como um exercício de poder, em que exclusão e matabilidade norteiam a construção de uma sociedade que vitimiza classe, gênero e uma raça específica. Como diz Luciano Góes (2018), a liberdade negra é um perigo para a hegemonia branca, esta última sempre em busca do aprisionamento negro para sua manutenção. Na estrutura negra brasileira, as senzalas eram o espaço por excelência do negro durante o Império escravagista. Hoje, na República este espaço é a prisão. O racismo é importantíssimo para o sistema de controle racial, cujo objetivo consiste na super lotação da cárcere pelos corpos negros e seu extermínio. Embasado pela sociologia do controle racial e sustentado pelo pensamento decolonial e afrocêntrico, Goés (2018) pensa de forma crítica o sistema de controle racial brasileiro, problematizando a "guerra às drogas" como legitimação do genocídio e encarceramento negro. No período da "pós-abolição" da escravatura, a prisão fundamentou sua função de domesticar corpos e excluir o corpo negro do mundo dos brancos. O Brasil utilizou técnicas jurídicas e administrativas para hierarquizar racialmente sua estrutura social, e o genocídio negro foi uma ferramenta necessária para a manutenção desse mundo branco.O punitivismo do sistema de controle brasileiro e a estrutura negra de nosso país, resulta em uma seletividade do Direito 3 Apesar de ser uma ideia interessante, discordo dessa perspectiva reducionista do racismo como uma tecnologia do Estado, tendo em visto que considero o racismo como um sistema pigmentrocrático e forma de consciência, como um universo que rege as leis econômicas, sociais e políticas, possibilitando o monopólio racial e extermínio eugênico. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 93 Penal, gerando o aprisionamento negro, que visa a manutenção da branquidade e sobrevivência da branquitude. A favelização e encarceramento em massa da população negra atuam como uma remontagem do sistema escravagista. O cárcere é projetado como o segundo lugar do negro, como uma modernização das senzalas. O encarceramento em massa da população negra atualmente corre ao lado da privatização do sistema carcerário brasileiro, somado ao populismo penal4, gerando uma equação cujo resultado é o aumento da população carcerária (GOÉS, 2018). Góes também nos chama atenção para o Direito penal paralelo, válido para territórios favelizados (primeiro lugar do negro), onde o genocídio da juventude negra pelo Estado é a lei. Manifestação do sistema de controle racial brasileiro, tal Direito configura a normatização do estado de exceção,que objetiva o encarceramento em massa e a pena de morte paralela dos jovens negros. Um exemplo do Direito penal paralelo, necropolítica e estado de exceção são as chacinas que ocorrem em Belém, relatadas pela Comissão de Direitos Humanos da OAB - PA (2017). A violência contra a juventude negra paraense origina-se no processo histórico de ocupação do Pará. A falência do modelo de ocupação ocasionou uma ocupação desordenada na região metropolitana de Belém, além de uma explosão de violência. As favelas belenenses, esses além-mundo ocupados por além-corpos pretos, sofrem com a prática de extermínio realizada por milícias, em represália a morte de policiais ou apenas para reafirmar o terror no regime do medo, quando não há motivos de represálias. Essas milícias atuam em periferias belenenses, realizando chacinas que executam pessoas de forma aleatória, pretas e de baixa renda, demonstrando sua seletividade racial. Ao fim da matança, ainda ocorre a legitimação dos assassinos e criminalização das vítimas, esses "maconheiros" e "com passagem" na cadeia. Para nos sentirmos mais imerso nessa atuação necropolítica em Belém, vejamos como a OAB-PA relata uma dessas chacinas que matou cinco pessoas e feriu outras quatorze: Na noite do dia 06.06.2017, por volta das 21 horas, no Bairro da Condor - área periférica da cidade de Belém - um grupo de homens encapuzados fecharam as entradas da Rua Nova II, e se deslocaram a um bar onde haviam pessoas assistindo uma partida de futebol televisionada, disparando contra as pessoas que ali estavam, após o ato começaram a efetuar disparos aleatórios em via pública, onde haviam pessoas era efetuado disparos (ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - SEÇÃO PARÁ, 2017, p. 17-18). 4 Populismo penal define-se como um dispositivo discursivo e prática punitivista que atua como um antídoto e veneno na era neoliberal. Baseado em uma criminologia midiática, fomenta e espetaculariza o medo e a insegurança, para que através deles, maximize uma violência policial e endurecimento penal, levando inevitavelmente para um encarceramento massivo (GOMES, 2013). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 94 As favelas de Belém exemplificam o exercício da soberania à margem da lei imposto na colônia, em que a supremacia branca espalha o terror no além-mundo, dilacerando corpos pretos. Tais corpos coloniais são desenhados como inimigos pelos discursos midiáticos, criminalizando as vítimas e justificando suas mortes. Tendo o racismo como motor da necropolítica, o sangue das vidas sacrificadas atuam como combustível para o necropoder belenense e a manutenção de sua supremacia branca. SAÍDA DA DEMOCRACIA BRASILEIRA Antes de fazer alguns apontamentos sobre o momento atual brasileiro, realizo uma breve introdução sobre algumas considerações acerca do neoliberalismo na perspectiva de alguns autores como Pierre Dardot, Focault e Mbembe. A colonização e o tráfico de escravizados negros teve uma grande importância para a formação do pensamento mercantilista ocidental (MBEMBE, 2017b). O plantation e a colônia firmam-se paralelamente com a nova razão governamental do Ocidente. A razão mercantilista, e o comércio de escravizados possibilitou a expansão do liberalismo. Como Foucault (apudMBEMBE, 2018a) afirma, em sua origem o liberalismo se alimenta de uma relação de produção e destruição com a liberdade, nutrindo-se da presença de algum inimigo que atente contra a segurança. No entanto, Mbembe aponta que nesta lógica, a escravidão negra atuou como ponto culminante da destruição da liberdade e o escravizado negro serviu como este inimigo. Neste funcionamento, o liberalismo tem como motor a cultura do medo, sendo o perigo racial o pilar desta cultura na democracia liberal (MBEMBE, 2018a). Ideias como direito natural, liberdade de comércio, propriedade privada e virtude de equilíbrio do mercado eram tidas como dogmas do pensamento liberal do século XIX. Dentro do contexto europeu, elevaram-se algumas críticas que apontavam que a sociedade não se reduz a uma soma de troca contratuais entre indivíduos. Neste momento, entra em cena uma crise do liberalismo, uma crise interna que vai do século XIX até 1930, protagonizado por reformistas sociais e individualistas. Esta crise do liberalismo traduz-se como uma crise da governabilidade liberal, sendo uma questão de intervenção estatal (DARDOT, 2016). O inglês Herbert Spencer se posiciona contra o intervencionismo econômico e social, contribuindo para o estabelecimento da concorrência nas relações sociais dentro do discurso individualista e posteriormente neoliberal. Logo, o spencerismo surge como uma contraofensiva individualista aos reformistas e suas ações na Europa (legislação sobre o trabalho infantil, aposentadoria, redução da jornada de trabalho, direito a grave etc). A lei da evolução Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 95 foi utilizada por Spencer como argumento contra a intervenção estatal, sendo vista como uma forma de coerção do Estado em sua opinião. Influenciado por Darwin e sua publicação de A origem das espécies (1859), Spencer se apropriou do discurso darwinista da seleção natural como princípio da transformação das espécies (DARDOT, 2016). Em 1864, Spencer publica Princípios da biologia (1859), criando a expressão "sobrevivência dos mais aptos". Para Spencer (apud DARDOT, 2016), a teoria darwiana colabora com a teoria do laissez-faire, estabelecendo um paralelo entre a evolução econômica e a evolução das espécies, sendo a primeira uma variedade da "luta pela vida". Portanto, para Herbert Spencer, a teoria da seleção natural traduz-se como luta direta entre as diferentes raças e classes. Além disso, Spencer percebe a competição como princípio do progresso. Podemos notar que a postura naturalista no processo de eliminação seletiva dos menos aptos tem uma forte presença no discurso de Spencer, individualista e base do discurso neoliberal. Nos tempos presentes, o neoliberalismo atua como um sistema normativo, ou seja,uma extensão da lógica do capital a todas as esferas da vida. Produtor de subjetividades, o neoliberalismo impõe a norma da competição generalizada, moldando sujeitos como empresas (criando o homem-empresa, ou o sujeito empresarial) e relações sociais como um mercado. Portanto, o neoliberalismo é uma racionalidade, a razão do capitalismo contemporâneo. Além disso, o neoliberalismo é marcado por um forte antidemocratismo, expondo uma isenção de qualquer controle no direito privado, assinalando a chegada da era da pós-democracia (DARDOT, 2016). Como já anunciado no título de seu breve ensaio A era do humanismo está acabando, Mbembe (2017a) prevê a ascensão de grandes ondas de violências na maré neoliberal. Na era do neoliberalismo, racismo, xenofobia, sexismo e outras opressões serão maximizadas. O capitalismo neoliberal traz consigo uma normalização do estado social de guerra e um cenário neodarwinista onde o apartheid volta a ser uma realidade. Por meio de instintos perigosos, o capitalismo fabricou sujeitos raciais, tornando tudo mercadoria e monopolizou a produção do vivente. O "processo civilizacional" moderou estes instintos para evitar um possível fim da humanidade, contrariando a objetificação do sujeito e universalização da condição de mercadoria. No entanto, o neoliberalismo põe um fim a estas críticas e reanima tais instintos selvagens (MBEMBE, 2017b). Como uma racionalidade, o neoliberalismo resulta na produção de indiferenças e coisificação da vida social, além da racionalização do mundo seguido lógicas empresariais (MBEMBE, 2018a). Lado a lado, neurociência e neuroeconomia criam uma memória artificial e digital, uma forma inédita de vida psíquica, que projeta o "empreendedor de si mesmo". O sujeito Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 96 neuroeconômico é a soma do animal e da coisa, marcando a volta da lógica escravagista do homem-coisa e homem-máquina, agora com as novas versões, homem-fluxo e homem código. Vivemos uma era da coisificação de todos os seres humanos, universalizando a condição negra de objeto, coisa e mercadoria. Este processo Mbembe chama de devir-negro do mundo (2018a). O devir-negro do mundo coisifica todas as categorias subalternas da humanidade, os excedentes e supérfluos ao capital (MBEMBE, 2017b). A nova era é marcada pela saída da democracia, pela consolidação da sociedade de inimizade e do terror e contraterror como veneno e antídoto. A relação de inimizade é reconduzida à escala planetária. A guerra é a palavra ordem do momento. Nutre-se um desejo pela ditadura e pelo estabelecimento do estado de exceção nas democracias. A guerra é vista como fim, necessidade, veneno e antídoto para a democracia. A nossa saída da democracia é um triunfo da sociedade de inimizade projetada pelo neoliberalismo, que causa o restabelecimento das relações coloniais (MBEMBE, 2017b). A relação terror e contraterror são manifestações das relações sem desejo que nutrimos na razão neoliberal. O terror manifesta-se como um colapso da sociedade de direito, enquanto que o contraterror fixa-se como o estado de exceção para garantir estes mesmos direitos. Essa lógica contraditória revela a relaçãodeantídoto e veneno do terror e contraterror. Portanto, o estado de insegurança justifica um Estado securitário que nutre uma guerra permanente contra um inimigo imaginário. Alimentando pelo racismo, esta lógica contextualiza a necropolítica, atuando como uma economia sacrifical e destruição desorganizada, fantasiando o apartheid e extermínio (MBEMBE, 2017b). Mbembe (2017b) ainda nos alerta ao fato que o século XXI configura-se pela volta da lógica da raça e fabricação de sujeitos raciais em um momento de biologização determinante da raça no Ocidente. A lógica da raça ressurge em paralelo com o fortalecimento das ideologias de segurança, tornando a questão da proteção uma problemática biopolítica. Portanto, a democracia têm alimentando Estados securitários que investem na exacerbação das formas de designação racial. Na era da segurança, a raça identifica e define grupos de acordo com perigos que eles supostamente apresentam. Alinhado com as políticas de inimizade e mirando a presidência do Brasil, Bolsonaro (PSL) construiu uma narrativa pautada numa guerra constante contra a criminalidade, apresentando uma plataforma política que sugeria de forma implícita, um regime de exceção e até mesmo a atuação de grupos de extermínio. Banalizando a complexidade social e econômica da criminalidade, projetou uma concepção biológica e moral do delinquente, além de apresentar o policial como um matador profissional, que com sua "carta branca" para matar, combate ao Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 97 crime por meio do aumento do número de mortos pela PM (GAVIÃO; VALADARES, 2018). Como consequência ao discurso do vencedor na corrida presidencial, a necropolítica segue a todo vapor no Rio de Janeiro. Filiado ao discurso bolsonarista em relação ao combate a criminalidade, o governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), conquistou um saldo de 160 mortos pelo aparato policial em Janeiro, sendo a segunda maior taxa de homicídios realizados por agentes do estado para este mês desde 1998. Vale lembrar que Witzel também construiu sua narrativa com base no combate feroz ao inimigo criminoso, apelando para a liberdade de matar dos atiradores de elite, visando recuperar a segurança e a paz do "cidadão de bem" (JANSEN, 2019). (IN)CONCLUSÕES SOBRE A NOVA ERA Ao voltarmos nossos olhos para a origem oculta e sangrenta da democracia brasileira, podemos ver a possibilidade da concatenação dos pensamentos de Moore e Mbembe. A plantation, a colônia e o sistema escravista, corpos noturnos da democracia, sintetizam um sistema pigmentocrático, supremacista e uma consciência negrofóbica. A paranóia e o regime do medo branco presente na plantation clamavam por um estado de exceção que concedesse terror e violência contra o além-mundo favelizado (outrora sensalizado) e além-corpo preto, dando total liberdade ao exercício da soberania necropolítica, visando a destruição da liberdade dos sujeitos raciais negros. Com o passar do tempo, a estrutura negra brasileiro e seu Direito Penal criaram uma máquina mortífera cuja governança se pauta na matabilidadede corpos pretos, exemplificado pela exercício do Direito penal paralelo em Belém, demonstrando o peso do estado de exceção nesse além-mundo negro, as favelas belenenses. No entanto, vemos que o neoliberalismo vem maximizando o necropoder racista brasileiro, por meio do naturalismo eugenista neoliberal e restabelecimento das relações coloniais como consequência das políticas bolsonaristas. Resta uma pergunta. Como nós, negros, ficaremos neste processo de devir-negro do mundo? Apontar o aumento exponencial de nossas mortes acaba sendo uma tarefa fácil, difícil mesmo é prever o que acontecerá com os corpos-objetos iniciais na era da coisificação das subalternidades e devir-negro do mundo. Para além do genocídio, o que será de nós e como nos reorganizaremos para reagir contra a supremacia branca na fase do neoliberalismo necropolítico? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 98 DARDOT, Pierre. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução de Mariana Echalar, 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016. DIOP, Cheikh Anta. Civilization or Barbarism: An Authenthic Anthropology. Chicago: Lawrence Hill Books, 1991. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. GAVIÃO, Leandro; VALADARES, Alexandre. Jair Bolsonaro: o candidato da insegurança pública. Le Monde Diplomatique Brasil [online], 2 mar. 2018. 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Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 100 REESTRUTURANDO AS FRONTEIRAS DOS DIREITOS HUMANOS Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 101 PSICOLOGIA DO COLONIZADO: PROCESSOS DE ASSUJEITAMENTO, DESUMANIZAÇÃO E MERCANTILIZAÇÃO DO HUMANO Vanderson Barreto Pereira1 Cláudio Almeida Silva Filho2 RESUMO O presente artigo busca investigar a produção de subjetividades desenvolvidas pela máquina colonial-capitalista, bem como as suas possíveis reverberações nas formas e modos de sociabilidade do negro no Brasil. Tendo como ponto de partida a compreensão da dinâmica da escravidão no continente africano, as modificações em seu sistema sociocultural e as transformações ocasionadas pela presença europeia. Conclui-se que o processo de desumanização das populações negras e a desterritorialização da sua cultura, ancestralidade e práticas sociais desenvolveu-se não só pelas instituições consagradas do Estado, mas também pelos dispositivos de filtragem social. PALAVRAS – CHAVE: Escravidão; Território; Colonial-capitalista. ABSTRACT This article seeks to investigate the production of subjectivities developed by the colonial-capitalist machine, as well as its possible reverberations in the forms and modes of black sociability in Brazil. Taking as starting point the understanding of the dynamics of slavery on the African continent, the changes in its sociocultural system and the transformations caused by the European presence. It is concluded that the process of dehumanization of black populations and the deterritorialization of their culture, ancestry and social practices developed not only by the consecrated institutions of the State, but also by social filtering devices. KEYWORDS: Slavery; Territory; Colonial-capitalist. INTRODUÇÃO O percurso construído pelo processo de colonização na sociedade brasileira é essencial para entender as estruturas raciais designadas à população negra. Sendo assim, se faz necessário compreender a dinâmica da escravidão no continente africano, as modificações em seu sistema sociocultural e as transformações ocasionadas pela presença europeia. Dessa maneira, será empregado um diálogo inicial com a obra Uma história do negro no Brasil de 2006 de Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga Filho, buscando evidenciar as relações da cultura africana até a Psicólogo, mestrando em gestão da educação pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB. E-mail: vandersonbarreto5@hotmail.com. 2 Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia – PPGCS/UFBA, bolsista CAPES, e graduado em Ciências Sociais pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB. Membro do grupo de pesquisa Representações Sociais: arte, ciência e ideologia, instalado no Núcleo de Estudos em Sociologia da Arte NUCLEARTE, com sede na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – FFCH/UFBA. E-mail: almeidafilho.claudio@gmail.com. 1 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 102 chegada dos europeus no continente. A ideia é demonstrar como as interações se modificaram de acordo com o modo de escravização e de dominação exercidos. Não obstante, utilizaremos os autores Frantz Fanon (1951/2008); (1961/1968) e Achille Mbembe (2014), para investigar os processos de produção de subjetividades agenciados pela máquina colonial-capitalista, bem como, as suas possíveis reverberações nas formas e modos de sociabilidade do negro no Brasil. Em face disto, “a história do negro brasileiro não teve início com o tráfico de escravos” (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006, p. 13), mas possui sua base nas relações sociais desenvolvidas ao longo da presença europeia na África, e da trajetória de escravização construída no continente. Desse modo, conhecer como se organizou a escravidão na sociedade africana é fundamental para discutir a colonização ocorrida no Brasil (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006). AS MUDANÇAS NO SISTEMA DE ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA E OS SEUS PROCESSOS DE PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES A organização econômica e social africana estava ligada sobre “vínculos de parentesco em famílias extensas, da coabitação de vários povos num mesmo território, da exploração tributária de um povo por outro” (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006, p. 13). O Parentesco para um determinado grupo era um dos modos habituais na definição identitária de um indivíduo. Dessa forma, “o lugar social das pessoas era dado pelo seu grau de parentesco em relação ao patriarca ou à matriarca da linhagem familiar” (ibidem, p. 13). Nestas sociedades, em grande medida a conservação do meio social estava ligada à ancestralidade, seja pela reverência aos mais velhos ou na partilha das mesmas atribuições religiosas. (ibidem, p. 13). Aqui os autores dialogam inicialmente a respeito da organização social no intuito de demonstrar como se estruturava o modo de vida, além de evidenciar a constituição cultural da sociedade africana. A complexificação do processo escravista é colocada a partir da ótica de três movimentos destacados pelos autores: a escravidão doméstica, islâmica e cristã. A transformação de uma pessoa de um vilarejo vencido em escravo não era com o intuito de negação da sua cultura tão pouco da afirmação de uma ideologia de supremacia racial, mas com a intenção de crescer a quantidade de sujeitos em determinados povos fortalecendo a sustentação da família ou grupo. Essa dinâmica era estabelecida em ambientes onde a terra possuía grandes extensões, porém faltava mão de obra. Os escravos eram poucos em cada unidade de família, entretanto a sua posse designava poder e prestígio porque representavam o Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 103 modo de auto-sustentação da linhagem. Por isso, a preferência pelas mulheres para ampliar o grupo através da fertilidade, e das crianças pela facilidade de aquisição às regras (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006). Partindo deste princípio, “a incorporação dos escravos na família se dava de modo gradativo: os filhos de cativos, quando nascidos na casa do senhor, não podiam ser vendidos” (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006, p. 14). Dois pontos são importantes para compreender este processo da escravidão doméstica. Primeiro, que a sua forma de organização não é direcionada pelo colonialismo, segundo, a estrutura racial e o lucro não eram a força motriz deste sistema. Ora, essas relações faziam parte do processo sociocultural entre os povos o que difere da ordenação colonial que mais tarde seria operada pelos europeus. Existiam outros sentidos para a atribuição a esse modelo de escravização: Em algumas sociedades, a exemplo do povo Sena de Moçambique, a escravidão também era uma estratégia de sobrevivência quando a fome e a seca se faziam desastrosas. A venda ou troca de um indivíduo da comunidade podia garantir a sobrevivência do grupo, inclusive de quem era escravizado. A troca de alguém por comida era uma forma de evitar a extinção do grupo (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006, p. 15). Em princípio a escravidão doméstica não era um recurso de transformação do corpo como produto mercadológico onde a essência é a obtenção da exploração e do lucro. Não possuía em si a diferenciação e constante opressão como modo de hierarquização e inferioridade através da cor. Já a escravidão islâmica se inicia com a ocupação do Egito e do norte da África pelos árabes entre o final do séc. VII e a metade do séc. VIII. Nesse momento a escravidão doméstica começou a se relacionar intensivamente com o comércio de escravos transformando o desenvolvimento do seu sistema de maneira significativa. Os autores destacam que desde os fins do séc. VIII os árabes saindo do Golfo Pérsico e da Arábia propagaram o islamismo “pela força da palavra, dos acordos comerciais e, principalmente, das armas.” (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006, p. 16). Esse fenômeno eram as guerras santas, as jihad,possuíam a prerrogativa de islamizar populações, líderes políticos e escravizar as pessoas que se opusessem a se converterem. Um dos primeiros povos a se islamizarem foi os berberes na África do Norte, e as cáfilas3 eram constituídas especialmente por berberes islamizados. Dessa maneira, pelo comércio, o islamismo se disseminou pela “região sudanesa, na savana africana ao sul do deserto do Saara” (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006, p. 16). 3 Caravanas que transitavam pelo Saara. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 104 Dois destaques são essenciais para entender o processo de modificação da escravidão na sociedade africana, primeiro, o papel exercido pela religião sendo elementar na transformação do indivíduo em escravo, segundo, o comércio aparecendo como principal fonte de renda para os árabes. Isso contrasta com as relações baseadas na linhagem, no parentesco, fortalecimento e sustentação de um determinado povo exercido no modelo doméstico. O islamismo exerceu um papel central na transformação da sociedade africana, porque reconfigurou o modo de vida das populações através da conversão às práticas religiosas dos árabes. “[...] Se viu a conversão de populações inteiras, fosse para escapar do risco do cativeiro, já que apenas os infiéis podiam ser escravizados, fosse por sincera convicção religiosa” (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006, p.18). Para os seguidores de Maomé a escravidão era um modo de missão religiosa onde o infiel ao ser escravizado obtinha a oportunidade de se converter, e depois adquirido os preceitos islâmicos ganhava o direito da alforria. Entretanto, a conversão não era sinônimo de liberdade porque existiam razões comerciais que justificavam o aumento de escravos na sociedade mulçumana. Primeiramente, devido ao tempo e as condições, a qual não se dispunha o individuo escravizado, segundo, porque ele era essencial para a viabilização do comércio dos mercadores árabes (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006). Dessa maneira, a escravidão doméstica africana foi se redimensionando à escravização em grande escala, e a partir do séc. XV com a presença dos europeus na costa africana o processo ampliou, de forma intercontinental transformando a África em principal polo de exportação de mão de obra ao mundo moderno. É nesta configuração onde os lusitanos chegam ao continente africano na metade do séc. XV, os mesmos já tinham notícias dos recursos presentes na África desde 1415 quando conquistaram Ceuta que era um importante centro comercial (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006). Aqui se inicia a escravidão cristã, isto é, a nova configuração do comércio escravo na sociedade africana desenvolvida pela presença dos portugueses no continente. O que promove novas formas de relação e dominação do espaço sociocultural africano, almejando a conquista do território, assim como, dos recursos presentes na África. Esse movimento dimensiona o comércio de escravos a um patamar transatlântico gerando conflitos para aquisição de poder e domínio sobre o ambiente geográfico. Os chefes políticos das populações africanas dificultaram o acesso ao interior da África, bem como, não os incorporaram nas rotas transaarianas. Entretanto, os portugueses construíram em Arguim a primeira feitoria fortificada em 1445 para onde possuíam o interesse de desviar o comércio transaariano. Os autores destacam que aos poucos os lusitanos conseguiram espaço Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 105 no círculo comercial e cresceram os negócios “com os africanos que viviam nas proximidades do rio Gâmbia, gente do poderoso Império Mali” (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006, p. 22). Nesse processo começou a surgir perspectivas novas de negociação através da cabotagem entre os portos na região da Costa do Ouro: Os portugueses se deram conta do funcionamento dessa rede e do valor do escravo como moeda de troca. Passaram então a comprar africanos para vender a outros africanos, beneficiando-se da velocidade das caravelas no transporte ao longo da costa (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006, p. 24). A escravidão cristã trouxe para o continente africano um elemento que não possuía: a conquista geopolítica do território. Para isso se fazia necessário o fortalecimento bélico, e a disseminação dos conflitos entre os povos com o intuito de subjugar uma comunidade por outra. Essa estratégia foi central para desestabilizar as sociedades africanas proporcionando aos europeus o domínio socioeconômico do comércio redimensionando-o em escala mundial. Os autores apontam que a presença dos portugueses modificou o modo de vida das populações litorâneas que até o momento não possuíam poder econômico e político significativo “e que passaram a ter na captura de cativos uma atividade corriqueira, sistemática. A guerra produzia o cativo e o comércio distribuía o escravo” (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006, p. 24). Logo, com o intuito de estabelecer a consistência e soberania dos negócios os lusitanos construíram mais feitorias, a exemplo, do castelo de São Jorge da Mina erguida em 1482 onde hoje é localizada a República de Gana (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006). A presença portuguesa transformou os negócios que ocorriam no interior da África e da rota transaariana para a costa do continente. Primeiro, modificando a locomoção através das embarcações, o que acontecia pelo uso do camelo nas cáfilas, segundo, dominando o território pela força militar. Esses movimentos promoveram uma nova ótica na forma de relacionamento das populações africanas com o espaço sociocultural, acarretando em uma intensificação dos conflitos e do acirramento político. Desse modo, os europeus iniciaram o processo de colonização desestabilizando o ambiente social das populações africanas, utilizando a força militar, o controle político e econômico, modificando o comércio, promovendo guerras, ou seja, exercendo pela dominação a implementação da ideologia colonial. A escravidão europeia criou uma nova ordem mundial a partir do comércio transatlântico onde o corpo das populações negras foi erigido como mercadoria. Isso implicou na retirada de inúmeros grupos africanos do seu território, o que evidenciava o caráter colonial deste novo modo de produção. Através dessa nova forma de produzir riquezas o africano teve negada suas práticas culturais, bem como a ontologia do seu povo. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 106 Mesmo com diversos estudos e teorias apontando para a África como primeiro continente habitado no planeta, ideologicamente, a Europa foi localizada como velho mundo, sendo considerado, desta forma, um território mais evoluído que todos os outros, tendo os seus habitantes a capacidade e o direito, sustentados em um discurso de suposta benevolência, de impor os seus modos expressivos, organizacionais e relacionais de civilidade, que confeririam aos seres vivos a humanidade, com base em preceitos que estratificam o mundo e os seres que nele habitam. Eis o seu intuito, dominar a natureza para iluminar os seres tirando-os de uma vida errante e animalesca, todos objetos da potência europeia. Diante disso, para Souza a (1983, p. 19). sociedade escravista, ao transformar o africano em escravo, definiu o negro como raça (noção ideológica), demarcou o seu lugar, a maneira de tratar e ser tratado, os padrões de interação com o branco e instituiu o paralelismo entre cor negra e posição social inferior (SOUZA, 1983, p. 19). Nesse sentido, enquanto na Europa existiam reinos que se tornaram nações a partir de povos conquistadores, o continente Africano era visto como um conjunto de tribos, agrupamentos humanos com organização social e práticas culturais primitivas. As diferenças entre esses continentes eram estratificadas e evidenciadas como o padrão evolutivo da sua população, a partir de um modelo civilizatório que tem na Europa e no europeu o auge da evolução humana. Assim, o racismo foi estabelecido como condição estruturante na compreensão do mundo e seus fenômenos, com o objetivo de naturalizar os processos de opressão, dominação e exclusão. Desta forma, a profusão do racismo conserva a Europa e os seus nativos como portadores da cultura tradicional que detém o verdadeiro conhecimento, e por tal posição, tem o dever de propaga-lo ao mundo, em nome de um projeto ideal de emancipação humana (MBEMBE, 2014). Aos povos da África que demonstravam alguma forma de conhecimento ou prática sociocultural que pudesse escapar às representações da subalternidade presente no discurso hegemônico europeu a seu respeito, eram silenciadas e suas histórias quando contadas os seus personagens heroicos eram embranquecidos, sendo separados de qualquer referência a uma ancestralidade viva, transformando-a em meras alegorias supersticiosas de seres que ainda não foram submetidos à iluminação pela razão. De acordo com isso, Fanon (1961/1968) afirma que “Os costumes dos colonizados, suas tradições, seus mitos, sobretudo seus mitos, são a própria marca desta indigência, desta depravação constitucional” (FANON 1961/1968 p. 31). A África foi situada como sombra da Europa, como uma massa amorfa de tribos onde impera a desrazão, a miséria e o conflito, em contraste com os princípios franceses de liberdade, igualdade e fraternidade que se estendem por toda a Europa. Nesse sentido, Dos Santos (2002, Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 107 p.54) aborda: “O tratamento dos europeus para com os africanos diferencia-se do oferecido aos índios da América que, apesar de serem vistos como primitivos, eram dotados de pureza, algo que não se aplicava aos negros”. Contudo, essa pureza era considerada equivalente a um humano infantilizado, que não é dotado de razão, sendo considerado preguiçoso, impulsivo, inconsequente. Desta maneira, a resistência dos povos originários se dá, na perspectiva colonialista, pela incapacidade de compreensão da verdade, e que mediante a isso, poderia ser imposta. O negro para ser reduzido ao lugar de mercadoria precisava não só ter extirpada a sua racionalidade, mas era necessária a construção de um caráter nocivo, ao qual não se pode deixar viver livremente, que precisa ser dominado e controlado a todo custo, não como um processo que aflige dor e sofrimento por maldade, mas para a concessão de uma salvação por meio da purgação dessa essência negra malévola. O negro, portanto, deveria se sentir grato pelo suplício e útil porque mesmo incapaz e inferior contribuiu para o progresso da humanidade, da civilização. Em face disso, Fanon (1961/1968, p. 30) traz que “O Colono faz do colonizado uma espécie de quintessência do mal (...) declarado impermeável à ética, ausente de valores, negação dos valores. É, ousemos confessá-lo, o inimigo dos valores. Nesse sentido, é o mal absoluto.” Fanon (1961/1968) tece uma análise, a partir da dinâmica naturalizada em que os brancos colonizam e os negros são colonizados, de que desses processos relacionais demarcados racialmente surgem uma identidade do colonizador e uma do colonizado. A identidade, a representação do colonizador é posta como aquele que por caridade e direito traz à luz do conhecimento, a paz e o progresso, em suma, a humanidade não só ao escravo como à terra, tomando as medidas que forem necessárias. Já o colonizado é o ser nocivo que precisa ser domesticado, civilizado, expurgado da sua essência ignorante, bruta e animal pelo labor. Todavia, o seu sangue o impede de avançar na escala evolutiva para deixar de ser um subhumano, mesmo que negue a sua cultura, a sua religião, as suas crenças, costumes e hábitos. É no ínterim entre o desejo de sair da condição imposta de colonizado/sub-humano para a de colonizador/humano que se agencia a naturalização dos processos de opressão sob o corpo colonizado, direcionando as formas reativas de resistência à tentativa de migrar para os berços civilizatórios, pois não só os habitantes, mas a África carrega em si o destino das mazelas que lhe acometem. A sua fraqueza e primitividade a faz ser colonizável. Desta forma, a África é destituída do lugar ancestral de mãe e emerge como algoz, do qual o berço europeu reivindica, segundo uma ordem natural das coisas, em que é imprescindível o discernimento e a consciência de pecado para a salvação, o cuidado dos seus filhos malogrados, condenados da Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 108 terra e pela terra que os gerou. Sobre as percepções da cidade do colono e da cidade do colonizado, Fanon (1961/1968) aponta: A cidade do colono é uma cidade sólida, toda de ferro e pedra. É uma cidade iluminada, asfaltada, onde os caixotes de lixo regurgitam de sobras desconhecidas, jamais vistas, nem mesmo sonhadas. (...) A cidade do colono é uma cidade saciada, indolente, cujo ventre está permanentemente repleto de boas coisas. A cidade do colono é uma cidade de brancos, de estrangeiros. (...) A cidade do colonizado, ou pelo menos a cidade indígena, a cidade negra, a médina, a reserva, é um lugar malafamado, povoado de homens mal-afamados. Aí, se nascenão importa onde, não importa como. Morre-se não importa onde, não importa de que.É um mundo sem intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umassobre as outras. A cidade do colonizado é uma cidade faminta, faminta de pão, decarne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade acocorada,uma cidade ajoelhada, uma cidade acuada. É uma cidade de negros, uma cidade deárabes. O olhar que o colonizado lança para a cidade do colono é um olhar de luxúria,um olhar de inveja. Sonhos de posse. (...) O colono sabe disto (...) “Eles querem tomaro nosso lugar” (FANON, 1968, p. 28-29). Não obstante, a representação de colonizado imbrica uma sombra que espreitará a pessoa escravizada nas suas manifestações expressivas, esta passa a conceber o seu corpo como não recomendado à sociedade, fruto de uma mãe que não pode prover-lhe o sustento, e o seu lugar é o de objeto de potência do colonizador. Nesse contexto, operou-se uma estratificação interna entre os colonizados, assim, muitos colonizados foram promovidos a cargos de fiscalização, controle, ajustamento e adequação, em áreas técnicas, acadêmicas e administrativas, sempre subordinados por colonos, que por uma série de títulos, patentes, cargos, atrelados às concessões e benesses sociais e econômicas figuram numa condição social diferente de todos os outros que vivenciam a condição de colonização. Sobre o olhar que constitui humanidade, Fanon (1951/2008) observa: O homem só é humano na medida em que ele quer se impor a um outro homem, a fim de ser reconhecido. Enquanto ele não é efetivamente reconhecido pelo outro, é este outro que permanece o tema de sua ação. É deste outro, do reconhecimento por este outro que dependem seu valor e sua realidade humana. É neste outro que se condensa o sentido de sua vida (FANON, 1951/2008, p.180). Essa dinâmica favoreceu uma conjuntura social em que os conflitos armados entre povos de um mesmo território, de etnias diferentes ou não, eram utilizados como despressurizador das relações de exploração entre o país explorador e a nação explorada, justificando intervenções mais violentas, reacionárias e repressivas, como forma de retomar e garantir a paz, a ordem e o progresso. Outro ponto importante, é que apesar de estar utilizando símbolos que o diferenciam dos outros colonizados, este ainda possui as características físicas que o ligam ao lugar de colonizado, carregando consigo a sombra da identidade de um sub-humano, esta realidade o convoca, a todo momento, mesmo sob os trajes e adotando as práticas culturais do colono, a Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 109 provar que não é um sub-humano inimigo, que não tem as mesmas falhas morais dos loucos que se rebelam, conseguindo ocupar o lugar de subserviente, tendo sido adestrado a respeito dos seus comportamentos nocivos e conduta desviante. Para isso, além de negar tudo que o identifica como sub-humano, ele precisa exterminar as figuras que tornam o mundo ideal do colonizador impossível, em meio a um discurso hegemônico que coloca o colonizado como protagonista de todos os males, não só da colônia, mas da civilização (FANON, 1961/1968). A música Haiti traz a dinâmica entre os grupos repressores que em sua maioria são formados pela população a quem se destina reprimir, tendo para si destinados, muitas vezes, todo ódio e toda angústia desse mal estar social: Quando você for convidado pra subir no adro da fundação casa de Jorge Amado pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos dando porrada na nuca de malandros pretos, de ladrões mulatos e outros quase brancos tratados como pretos. Só pra mostrar aos outros quase pretos (e são quase todos pretos) e aos quase brancos, pobres como pretos, como é que pretos, pobres e mulatos e quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados. E não importa se os olhos do mundo inteiro possam estar por um momento voltados para o largo, onde os escravos eram castigados(...) (“Haiti”, CD Tropicália 2, 1993, Música: Gilberto Gil Letra: Caetano Veloso). Diante disso, o colonizado de patente, aquele que tem a sensação de ser expropriado da condição de colonizado, muitas vezes, tem a certeza que somente a morte do colonizado que não sabe o seu lugar e que reclama das suas condições porque não teve o mérito para alcançar outro nível na organização social, resolveria o mal estar social. Percebendo o contexto social da colônia como uma espécie de Jahiliyyah, uma época da ignorância, conceito proveniente do fundamentalismo islâmico que propõe um movimento, geralmente violento, de retomada dos desígnios, princípios, conduta e organização social, preconizados nas palavras de Deus. Ou seja, nas verdades transcendentes estabelecidas, que tem como única aspiração o bem-estar social e, consequentemente, a salvação. Nesse contexto, o diferente passa a representar uma ameaça que deve ser extirpada a qualquer custo para a salvação da nação. O colonizado vive em um não-lugar a partir de um não-eu, ele deixa de ser quem é para ser lido como sub-humano, ou nos termos de Fanon (1951/2008) homens-máquinas-animais, pois o seu território torna-se uma colônia e os colonos, caracterizados pelos que habitam a colônia, são os colonizadores. Ou seja, opera-se uma espacialização da ocupação colonial, que divide o território colonizado em áreas bem delimitadas, decoradas conforme os seus padrões civilizatórios e controladas, que irão atribuir pertencimento ao colono das suas novas terras e dos seus novos condenados. Porém, as ruínas persistem se não concretizadas no espaço físico continuam nas memórias dos seus cidadãos originários. O termo mordaças sonoras, proposto por Sartre para ilustrar a revelação de Fanon a respeito do silenciamento político, mediante o processo de envio de pessoas de países Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 110 colonizados para o berço colonial, pelo colonizador. Com o intuito de serem formadas segundo a ideologia dominante e reproduzirem esses conhecimentos na colônia, visa a constituição de uma fala amordaçada, forjada num intenso processo de produção de subjetividades atrelado a um contexto de repressão e vigilância em torno do normal, da coesão que desloca a interpretação particular do real para o estabelecimento de um discurso hegemônico. Estabelecido como único e elevado ao status de natural, acima de qualquer determinação histórica, temporal, social, bem como, de vieses opositores (FANON, 1961/1968). CONCLUSÃO A consciência do colonizado não pode ser considerada obscurecida em sua totalidade, já que da multiplicidade do cotidiano irrompe o fora, o intempestivo, o que ainda não se tem medida, na conjunção dessas forças pôde-se desenvolver uma compreensão crítica da colonização que ofereceu espaço para a formulação de linhas de fuga, que produziram estratégias de resistência, organização e enfrentamento. Nessa conjuntura, para fomentar uma compreensão crítica se faz necessário tensionar o estabelecido, a ordem natural das coisas e as suas contradições, fazendo insurgir o que está amordaçado pelas suas frestas. Olhar para as descontinuidades presentes na expressão amordaçada para promover a potência como condição da fala que se liberta dos interstícios do não-dito, mas sabido. Os processos de colonização empregados pela máquina colonial-capitalista, portanto, não se limitam a dominar territórios espaciais, mas investem intensamente na produção de subjetividades, objetivando colonizar territórios existenciais e produzir uma realidade social alicerçada no pensamento hegemônico, que estabelece binarismos onde as representações da expressividade branca, hegemônica, são consideradas saudáveis e ideais, enquanto que os modos expressivos dos não-brancos são situados como nocivos à sociedade, inclusive para a sua própria existência. Na leitura colonial-capitalista, o negro é considerado insolente e o índio indolente. Um indivíduo insolente é aquele que se comporta de forma a transgredir o contrato social e os valores da sua comunidade, já o indolente é o indivíduo que é insensível às normas sociais. Assim, enquanto o índio é resistente às leis por ser incapaz de compreendê-las, por ser insensível moralmente, dada a sua natureza infantil (amoral), o negro transgride as leis devido a sua natureza imoral, a sua perversão o sentencia à transgressão de qualquer moral e bom costume. Portanto, apesar de tanto o negro como o indígena serem incapazes, na visão colonial, Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 111 de responderem por si, e por isso a ausência de direitos e cidadania, é sobre o negro que recai todos os esforços da máquina colonial-capitalista de produção de subjetividades que o coloca como vítima-algoz de si mesmo, sendo a tutela exercida pelo colonizador, por meio da opressão e violência, a única forma de expiar a sua condição inata que o impede de ser humano, naturalizada pelas ciências. Ou seja, a cisão operada pela máquina colonial-capitalista produz uma desumanização do negro que é desterritorializado existencialmente da sua cultura, práticas sócio-culturais, sua ancestralidade viva, para ser territorializado de forma concentrada pelas instituições consagradas pelo Estado e de forma difusa pelos dispositivos de filtragem social, pela supremacia europeia que naturaliza a sua sub-humanidade na escala evolutiva. Assim, o negro olha para o branco e localiza o seu salvador e benfeitor, olha no espelho e descobre primeiro que nunca será branco, merecendo tudo o que lhe acontece, mas que a miscigenação pode poupar os seus descendentes por deixá-los menos negros, e a culpada é a sua terra, a sua origem, a sua mãe. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de, FILHO, Walter Fraga. História da África e escravidão africana. In:____. Uma história do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos AfroOrientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006. cap. 1, p.13-35 MBEMBE, Achille.Critica da razão negra, Lisboa, Antigona, 2014. FANON, Frantz. Os Condenados da terra. 1ª edição 1961. Tradução: José Laurênio Mello, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968. _____________. Pele negra, máscaras brancas, 1ª edição 1951. Tradução: Renato Silveira, Salvador, EDUFBA, 2008. DOS SANTOS, Gislene Aparecida. A invenção do ser negro: um percurso das ideias que naturalizaram a inferioridade dos negros, São Paulo, Educ/FAPESP; Rio de Janeiro, PALLAS, 2002. SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro, ou, as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro. Graal.1983, p.19. VELOSO, Caetano. Letra de “Haiti”. Música: Gilberto Gil. Letra: Caetano Veloso. Encarte de CD Tropicália 2, de Caetano e Gil. (Polygram), 1993. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 112 CULTURA DE LIBERTAÇÃO E EMANCIPAÇÃO LATINOAMERICANA Rodrigo de Araújo Lima Passos1 RESUMO A América Latina foi submetida a dominação eurocentrista no passado e, recentemente, a ideologia do imperialismo estadounidense. Os pilares sociais foram construídos pelo viés dos dominadores, enclausurando o povo em prisões e paradigmas. O objetivo deste artigo é demonstrar o viés libertador da construção intelectual no continente, por meio de uma análise bibliográfica de autores como Eduardo Galeano, Gabriel Garcia Marquez, Enrique Dussel, que motivaram vasta produção intelectual, conhecida por “Filosofia da Libertação”, ideia que expandiu-se na Teologia da Libertação e Pedadogia do Oprimido, revelando a busca incessante pela emancipação. Palavras-chave: América-latina; Libertação; Cultura. RESUME Latin America has been subjected to Eurocentric domination in the past and, recently, to an ideology of US imperialism. The social pillars were built by the rulers, enclosing people in prisons and paradigms. The aim of this article is to demonstrate the liberator of intellectual construction on the continent, through a bibliographical analysis of authors such as Eduardo Galeano, Gabriel Garcia Marquez, Enrique Dussel, who motivated great intellectual production, known as “Philosophy of Liberation”, an idea that expanded in Liberation Theology and Pedagogy of the Oppressed, revealing an incessant pursuit of emancipation. Keywords: Latin America; Release; Culture. INTRODUÇÃO A história da América Latina é, basicamente, um passeio sobre os acontecimentos que se sucederam após a chegada dos europeus no Continente. Primeiro porque muito do que havia sido culturalmente construído pelos povos originários, como os Maias, Astecas, Incas e Guaranis, por exemplo, foi brutalmente destruído pelos colonizadores. O segundo aspecto é que a perspectiva de enxergar o mundo, num entendimento do que se podia considerar como civilização, era construída pela visão europeia. Isso foi determinante para justificar a forma como os colonizadores tratariam a relação com os colonizados. Sem a lógica da alteridade, com olhar de distanciamento e superioridade diante dos povos originários. Na ocasião era preciso catequizar e ensinar seu modo de organização econômica e social para os considerados até então povos bárbaros, mesmo que algumas organizações que habitavam o continente já apresentassem determinados graus de avanço na tecnologia agrária, por exemplo. Em casos mais concretos, o uso da força para sobrepor-se foi adotado quando 1 Bacharel em Jornalismo pela Universidade Maurício de Nassau, Pós-Graduado em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Pernambuco, mestrando em Ciências de Comunicação pela Universidade do Porto. Email: rodrigopasso@gmail.com. 113 necessário. Além disso, tudo aquilo que era considerado como avanço, foi tomado para si e introduzido nas suas respectivas culturas, sem o devido reconhecimento. Partindo desse pressuposto, é mais fácil entender como se construiu a perspectiva histórica que foi contada desde então, e explicar a forma como o mundo ainda hoje enxerga os povos latino-americanos e o seu continente. De acordo com Lahr (1997), três ondas migratórias discretas podem ter dado origem a ocupação das Américas. O primeiro momento foi o grupo sinodonte, que pode ter sido o ancestral a todas as tribos americanas, que hoje fazem parte da família linguística “Amerind”, incluindo populações indígenas da América do Sul, Central e grande parte na América do Norte. A diversidade entre esses grupos teria sido adquirida já no continente. A segunda migração teria sido realizada pelo grupo ancestral das tribos que pertenciam à família linguística na-dene. E, por último, a última onda migratória teria sido das populações com uma adaptação peri-ártica, os aleutas-esquimós. “O modelo proposto por Greenberg, Turner e Zegura concorda com os dados arqueológicos que sugerem que a primeira entrada nas Américas se deu por uma população caracterizada pela cultura lítica conhecida como ‘Clóvis’” (LAHR, 1997). A própria denominação “índio” dada pelos europeus, é resultado do contato inicial realizado no século XV. Ao primeiro momento, os colonizadores identificaram que os povos viviam, basicamente, do trabalho agrário, com sua base sendo o cultivo da mandioca, milho, cacau, feijão e pimenta. Essas sociedades tinham uma estrutura hierárquica, com cada um dos postos responsável por determinadas funções e responsabilidades. Algumas, mais desenvolvidas que outras. Havia uma certa proximidade da estrutura social conhecida, até então, na África e mesmo nas Índias. E, por isso, a convicção de ter aportado em territórios indianos se sustentou por algum tempo. A partir da chegada dos povos europeus no continente, a relação de exploração foi sendo construída, em maior ou menor grau no que diz respeito ao uso da força física e da escravidão. E mesmo que houvesse alguma complacência de alguns personagens dessa história, é inegável que tanto os portugueses, quanto os espanhóis, e, após a abertura do mercado para outros países, como os ingleses, holandeses e franceses, por exemplo, tinham na América Latina o grande continente de possibilidades de extração de riquezas naturais, exploração mineral e relações comerciais extremamente desfavoráveis para os povos nativos. E a relação de dominado e dominador se estendeu por todos os anos, chegando à contemporaneidade. A exploração se reveste de sistema financeiro e se esconde por trás do Capitalismo, mas a disparidade econômica entre os países do norte em relação aos do Sul ainda é alarmante. Direitos humanos são ignorados e, muitas vezes, a própria condição humana é 114 relegada ao segundo plano por meio do interesse de uma pequena burguesia que reluta em aceitar que a América Latina se emancipou, mesmo que apenas (mas não menos importante) na questão identitária. Foram diversos os movimentos de revoluções que aconteceram no Continente, como os liderados por Simón Bolívar, na Venezuela; José San Martín, na Argentina; José Artigas, no Uruguai; e Tupac Amaru, no Peru. Muitos foram pontos de partida para a construção da ideia de libertação e emancipação das repúblicas que se constituíram no período pós-colonial. Outros foram, de fato, as lutas libertárias daqueles que já haviam entendido a ideia de nação. Além das lutas de força, outras formas de disseminação dessa cultura de libertação eclodiram (e ainda eclodem) pelos quatro cantos, do Norte do México, ao Sul da Argentina. Dentro desse cenário favorável, a literatura se destacou como um dos caminhos mais marcantes que surgiu ao longo do amadurecimento do pensamento de libertação da América Latina. Tanto pela maturidade com que os seus expoentes trataram da temática, quanto pela repercussão que os trabalhos tiveram para além das terras tratadas como objeto de estudo. Este artigo estudou o pensamento de nomes expoentes da produção literária latinoamericana, com o foco naqueles que representaram proposições com temáticas variadas, como questões sociais, religiosas, econômicas, desde que todas estivessem correlacionadas com a concepção da ideia libertadora, por meio de trabalhos e produções textuais dos mais diversos campos de escrita, desde romances, até produção acadêmica. O objetivo é justificar a existência de uma força de pensamento existente nos pensadores latino-americanos, que naturalmente buscam a ideia da libertação por toda a construção histórica vivida no continente. Mesmo que se tratem de países autônomos há muito tempo, é nítida a força com que o sentimento de emancipação reverbera na produção literária de grandes escritores da AméricaLatina. Essa busca é possível por meio de um diálogo entre obras de autores, em momentos históricos distintos, onde é possível identificar uma essência que preza, majoritariamente, por igualdade, liberdade e a busca por corrigir um legado histórico que fere aos próprios direitos humanos por parte dos colonizadores. AS INTENÇÕES DASVIAGENS Sintetizando, foram duas motivações que levaram os povos ibéricos a se aventurarem à viagem por meio do oceano Atlântico até a chegada ao solo americano. Primeiro, a questão econômica. A relação de comércio com as Índias estava estabelecida, principalmente pela 115 pimenta, iguarias, tecido, entre outros materiais. Havia o imaginário da terra prometida, com abundância de metais preciosos e alimentação nesta região do mundo. O problema de Portugal e da Espanha era que até a chegada, essa mercadoria passava por diversos caminhos e pessoas, o que gerava aumento no preço. O encurtamento dessa distância comercial representaria a redução desses valores e a possibilidade de aumentar oslucros. A questão religiosa também é fator predominante nessas viagens, já que havia a necessidade da igreja católica realizar expansão territorial, por conta da pressão demográfica desde o século XII. Havia também o desafio de lidar com os muçulmanos, aspecto que ainda reverberava questões das guerras das Cruzadas. Tanto Portugal quando Castela, a Espanha, que tinham costas marítimas, financiaram mecanismos para viabilizar as navegações para alémmar, por instrumentos como a bússola, caravelas e os primeiros sinais do que se tornaria a navegação astronômica (CHAUNU, 1979). Essas viagens se iniciaram pelo continente africano, que também resultou na colonização da região costeira deste continente. Na ocasião, se deu início a prática do escambo, relação comercial em que são proporcionadas trocas materiais. É nesse cenário favorável para a busca de metais monetários, como ouro, e a própria busca pelas especiarias, que as investidas para acesso às Índias foram forjadas. Não é equivocado afirmar que a chegada dos Europeus na América Latina possui um viés capitalista, mesmo que ainda não houvesse se consolidado como sistema econômico, mas que já apresentava seus primeiros sintomas na relação entre colonizados e colonizadores. Essa relação entre o continente latino-americano e o restante do mundo nunca mudou. É América Latina, a região das veias abertas. Do descobrimento aos nossos dias, tudo sempre se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte- americano, e como tal se acumulou e se acumula nos distantes centros do poder. Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas ricas em minerais, os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos. O modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar foram sucessivamente determinados, do exterior, por sua incorporação à engrenagem universal do capitalismo (GALEANO, 1940). A ECONOMIADESTRUTIVA Por mais que houvessem diferenças entre as gestões da parte que compreendia o reino espanhol, bem como as terras destinadas pelo papado ao reino de Portugal, em essência, tudo que era produzido e retirado era levado para a Europa. Um exemplo pode ser considerado o ciclo da prata, em Potosí, na Bolívia. A fama da cidade se espalhou com uma velocidade que surpreendia para os padrões da época. Em um censo realizado em 1573, a cidade, que havia sido surgido há 28 anos antes, já contava com a mesma população de cidades como Sevilha, 116 Madri, Roma ou Paris. Já em 1650, uma nova pesquisa demográfica apontava que a cidade tinha 160 mil habitantes (GALEANO,1940). A explosão demográfica não se deu por acaso. Foram entre os anos de 1545 e 1558 que as minas de prata de Potosí, como também de cidades como Zacatecas e Guanajuato, essas duas no México, foram descobertas. Tão rapidamente, a exportação mineral da prata na América hispânica já havia alcançado 99% do total de materiais enviados para constituir a riqueza da coroa espanhola. Dados obtidos na Casa de Contratação dão conta de que entre 1503 e 1660, o porto de Sevilha recebeu 185 mil quilos de ouro. Em contrapartida, foram 16 milhões de quilos de prata. “A prata levada para a Espanha [...] excedia três vezes o total das reservas europeias. E essas cifras não incluem o contrabando” (GALEANO, 1940). E assim se sucedeu ao longo de todo o período de Colonização, tanto na relação com a Espanha, quanto com a coroa portuguesa. E mesmo após os processos de independência dos países latino-americanos, momento em que o Brasil optou um modelo de império, enquanto o território que mantinham relação com a Espanha se subdividiu, adotando modelos de república para esses novos países, a dependência se manteve. Para piorar, a falta de uma ligação direta e estabelecida com as respectivas coroas acabou facilitando ainda mais a relação com outros países europeus, como a França, Inglaterra, e Holanda, porexemplo. Essa relação pode ser justificada e entendida através da corrente teórica que acredita na Teoria da Dependência, que se reforça na discussão sobre desenvolvimento e subdesenvolvimento. A explicação elucida o processo que acontece com os países deste continente, principalmente quando passam a ter uma relação de dependência e subserviência econômica mais forte com os Estados Unidos, neste período, com o sistema capitalista já consolidado como modelo econômico nas relações internacionais. A dependência consiste numa situação em que determinados países têm a sua economia condicionada pelo desenvolvimento e expansão de outra economia à qual a mesma está submetida. Quando os países dominantes podem se expandir e impulsionar, enquanto os dependentes só conseguem avanços quando se mantém à sombra dos países a qual são dependentes. Os países dominantes dispõem de um predomínio tecnológico, comercial, de capital e sociopolítico sobre os países dependentes que lhes permite impor- lhes condições de exploração e extrair parte dos excedentes produzidos anteriormente. [...] A América Latina não estava nestes centros de capital, e posteriormente não pode estar no centro da produção. Teve de esperar que essas mudanças nos centros dominantes se erradicassem pelo mundo com seus violentos e dramáticos movimentos de expansão, para incorporá-lo em parte. Até poder se transformar em uma economia autossustentável ou independente, continuará na posição de simples complemento necessário de um sistema internacional que ela não pode determinar (SANTOS,1970). 117 Após o período em que passaram a se consolidar as identidades dos sistemas de governo dos países, já no período pós-colonial, o braço forte do capital financeiro colocou a suas mãos em cima do continente. Desta vez, representado mais fortemente pelos Estados Unidos, que trouxe ao território latino-americano uma nova forma de colonização/exploração. Ainda no fervor da Guerra Fria, os EUA investiram fortemente no combate ao que se chamou de caça aos comunistas na América Latina. Para isso, financiaram por vias econômicas e de armamentos diversos golpes de Estado que se sucederam continente afora. O envolvimento pode ser conhecido nos documentos levantados pela Comissão Nacional da Verdade (2013), colegiado instituído pelo Governo do Brasil para investigar as violações dos direitos humanos no período da Ditadura Militar. De acordo com a comissão, a Operação Condor foi concretizada em Santiago do Chile, em 1975, em uma reunião secreta. Trata-se da aliança entre as ditaduras instaladas na Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. O grupo realizaria atividades coordenadas, de forma clandestina, para vigiar, sequestrar, torturar e assassinar os militantes políticos que faziam oposição aos regimes militares. Mas o interesse real dos americanos estava para além do combate aos comunistas. Havia também o fortalecimento dessa relação de dependência, de exportação do modelo econômico e social, sempre travestido do discurso utilizado desde a época da Colonização, de que o interesse principal é o crescimento econômico e social dos povos do Sul. O problema é que essa relação apenas beneficia os investidores, uma minoria do empresariado e políticos que se conchavam com o sistema financeiro para garantir o seu acúmulo de posses, enquanto a maioria da população é mantida como a força de trabalho, vendo suas riquezas sendo cooptadas poroutrem. [...] uma legião de piratas, mercadores, banqueiros, marines, embaixadores e capitães de empresas norte-americanos, ao longo de uma história negra, apossaram-se da vida e do destino da maioria dos povos do Sul, e que atualmente também a indústria da América Latina jaz no fundo do aparelho digestivo do Império. “Nossa” união faz a sua força, na medida em que os países, ao não romper previamente com os moldes do subdesenvolvimento e da dependência, integram suas respectivas servidões. (GALEANO, 1940). A discussão sobre a identidade da América Latina revela o quanto ainda falta de conhecimento do seu próprio povo sobre as suas origens. E sobre como, ainda que historicamente sempre houvesse resistência para tal, o eurocentrismo ainda paira sobre a sociedade. É fácil cair no deslize de acreditar que o distanciamento que o Brasil, por exemplo, tem em relação aos seus vizinhos se dá pela diferença linguística. Há o ditado popular que afirma que o Brasil está de frente para a Europa e de costas para a América Latina. A questão também passa pelo entendimento do por que mesmo dentro do continente existe a relação entre países com viés de colonizadores e colonizados. 118 Efetivamente, a unidade geográfica jamais funcionou aqui como fator de unificação porque as distintas implantações coloniais das quais nasceram às sociedades latinoamericanas coexistiram sem conviver, ao longo dos séculos. Cada uma delas se relacionava somente com a metrópole colonial. Ainda hoje, nós, latino-americanos, vivemos como se fossemos um arquipélago de ilhas que se comunicam por mar e pelo ar e que, com mais frequência, voltam-se para fora, para os grandes centros econômicos mundiais, do que para dentro (RIBEIRO,2010). Para discutir a essência do povo latino-americano e, principalmente, entender a força da ideia de resistência que borbulha nas obras dos pensadores, é preciso levar em consideração a sua construção histórica. Tal condição não se limita apenas aos fatos que ocorreram no passado, construídos com a lógica da exploração, desde o processo de chegada do europeu no continente, ao desenvolvimento histórico das relações econômicas - e de poder. São construções que reverberam até os tempos atuais. Que continuarão sendo assimiladas e vivenciadas na essência do povo latino-americano por vários e vários anos, principalmente,se levado em consideração o papel social, econômico e cultural a qual o continente está condicionado. CONSTRUÇÃO DAEMANCIPAÇÃO O ser humano é e foi capaz de criar ferramentas para que pudessem ultrapassar as adversidades impostas pela natureza ao longo do tempo. Foi assim desde o início da História, com todos os avanços tecnológicos conquistados em meio ao desenrolar da própria narrativa da História. A principal discussão, no entanto, se revela na utilização desta pré-disposição ao desenvolvimento para a garantia da Libertação. Nesse sentido, a liberdade não se constitui apenas como o direito de ser livre, que foi uma conquista fundamental para os escravizados, ou o livre arbítrio, propagado pela religião. A essência da liberdade, nesse sentido, passa a ser a humanização dos seus povos e até mesmo na relação entre eles. Quando todos dentro da sociedade possuem direitos e deveres, quando existem garantias de dignidade para todos, como saúde, educação, alimentação, moradia, entre outros tantos. São garantias, inclusive, que permeiam as discussões acerca dos Direitos Humanos, que estão inseridos na Declaração Universal dos DireitosHumanos. Se o ser humano busca por instinto uma melhora nas condições da sua própria existência, é natural que os povos latino-americanos carreguem consigo, além da necessidade de emancipação, a afirmação da liberdade como uma militância. O princípio da libertação, trabalhado por Enrique Dussel (1999), é o dever de intervir de forma qualitativa na história. É a ideia de que é possível a todo ser humano se transformar, a partir dos instrumentos do próprio colonizador. Nesse contexto, a afirmativa pode ser encaixada no que se refere propriamente a um pensamento filosófico. Mas em um espectro mais amplo, a lógica do princípio pode – e 119 deve – ser utilizada para a emancipação do povo, tanto em detrimento do colonizador, quanto da busca por uma igualdade dentro dos seus ambientes internos. Nesse sentido, a libertação não passaria apenas por uma questão de identidade cultural ou desconstrução do pensamento hegemônico do colonizador. Quando se trata de liberdade, nessa discussão, fala-se também de questões econômicas. Essa condição de uma busca por mais humanização foi tratada em Paulo Freire em sua obra Pedagogia do Oprimido (1970) como a vocação do ser mais, o que poderia ser o processo infindável, cada vez mais, em busca de humanização. Esse seria um dos alicerces para a construção de uma educação libertadora, que vai ao encontro da lógica da construção de pensamentos com viés libertadores que se espalharam e ecoam ainda pelo continente latino-americano. Existiu a necessidade da construção de um pensamento crítico que conduziu o movimento de dentro para fora, ou seja, que percorre as “veias abertas” e reverbera na emancipação do pensamento do povo deste continente. Esta seria uma libertação nacional, construída por meio da libertação popular, que podemos tratar como operários, camponeses e os marginalizados. Só é possível construir uma emancipação do pensamento, a partir do momento em que o povo se enxergar representado pelos seus governantes, quando houver, de fato, uma representatividade popular no Estado. Um conceito prático dado pelo escritor brasileiro Nelson Rodrigues foi o complexo de vira-lata. De forma resumida, podemos afirmar que o “vira-latismo” é a posição de inferioridade que o brasileiro se coloca diante do resto do mundo. No entanto, o que pode colocar em questão é que o mesmo pensamento se aplica apenas ao que se conhece como países de primeiro mundo, leia-se, Europa e Estados Unidos. A visão brasileira dos seus países vizinhos é extremamente enviesada pela ideia dasobreposição. O pensamento do “vira-latismo” está enraizado no pensamento do povo latinoamericano. A condição não se dá por acaso. A práxis da dominação é construída como um projeto que coloca o povo questionando sua própria capacidade de tomar as rédeas da sua condição de vida. Aliena-se o ser do seu próprio ser. É um processo de dominação inconsciente para quem é vítima, mas que é calculado pelos detentores do poder, seja o poder econômico, seja o poder de tomada de decisões, tendo em vista que o Estado tem historicamente agido em consonância com os interesses da minoria privilegiada. Por isso, Enrique Dussel acredita num processo de libertação articulado. O povo sozinho não pode libertar-se. O sistema lhe introjetou a cultura de massas, o pior do sistema. É por isso que a consciência crítica do intelectual orgânico, dos grupos críticos das comunidades ou dos partidos críticos, é indispensável para que um povo assuma tal consciência crítica e possa discernir o pior que tem em si (a cultura imperial vulgarizada), e o melhor que já existe desde tempos passados (a 120 exterioridades cultural: máximo de crítica possível sem consciência atual). A filosofia tem neste campo muita coisa a fazer (DUSSEL,1977). UMA QUESTÃO DE IDENTIDADE O próprio conceito de América Latina é controverso na sua concepção, no que diz respeito à autoria. O tema foi discutido de forma didática e elucidativa no livro “História da América Latina”, pelas historiadoras Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino. Basicamente, existem duas correntes de pensamento que justificam a criação do termo América Latina. De um lado está uma corrente que acredita que o intelectual, político e viajante francês, Michael Chevalier, tenha adotado o termo de forma que pudesse justificar o embate entre aquela que seria a parte latina da América, cujo espaço geográfico compreende o lado dominado por espanhóis e portugueses, em contraponto à América anglo-saxã, que compreenderiaapartedominadaporingleses,geograficamente,oqueseriaaAméricado Norte. Esta proposição justificaria já uma disputa de interesses entre a Inglaterra e a França, que tinha por objetivo se aproximar dos povos do Sul. No entanto, como afirmam as historiadoras Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino, o uruguaio Arturo Ardal identificou que o termo foi utilizado pelo ensaísta colombiano José María Torres Caicedo, já em 1857, em um poema cuja finalidade seria a unificação entre os países latino-americanos. Essa mesma corrente é defendida pela argentina Monica Quijada (1998), que afirma que “não é uma denominação imposta aos latino-americanos em função de interesses alheios, e sim um nome cunhado e adotado por eles mesmos e a partir de suas próprias reinvindicações”. Nem mesmo a alcunha que caracteriza a região, a América Latina, carrega consigo a unanimidade na criação do próprio termo. Ou seja, é natural que os pensadores e pensadoras que se propõem a discutir, hoje em dia, e desde tempos atrás, uma corrente de pensamento voltado para o povo latino-americano, tratem de forma frequente de questões que se referem à libertação e resistência. De fato, sempre houve resistência dos povos originários desde os tempos de colonização. No entanto, a História já mostra que a cultura eurocêntrica conseguiu se sobrepor por intermédio da força ao que já existia de cultura e identidade dos povos originários. Ao longo da história, diversos cenários de guerra foram vivenciados. Antes, por uso da força. Atualmente, a guerra se conota mais no campo ideológico. Não é por acaso que a práxis libertadora da contemporaneidade caminhe de mãos dadas com campos progressistas, socialistas, por exemplo. 121 Também não é de se espantar que o aparato do Estado atue em consonância com o mercado financeiro para a manutenção do poder na mão daqueles que foram contemplados com tal benesse. O movimento de resposta das veias reacionárias que se vê atualmente não é novidade, principalmente depois de cerca de uma década em que um pensamento mais libertador, menos subserviente conseguiu ditar a linha de reflexão no continente, mudando um pouco da postura diante do mundo. Talvez, tenha sido o momento em que a América Latina conseguiu chegar mais longe no que se refere à sua descolonização. Tirar das suas entranhas o pensamento do colonizador, a lógica da cabeça baixa, desconstruir o vira-lata. Trabajo bruto, pero con orgullo. Aquí se comparte, lo mío es tuyo. Este Pueblo no se ahoga con marullo y se derrumba yo lo reconstruyo. Tampoco pestañeo cuando te miro, para que te recuerde de mi apellido. La operación Condor invediendo mi nido, perdono pero nunca olvido (CALLE13, 2010). Não há como pensar no povo latino-americano se houver uma dissociação de todas as lutas que aconteceram por este povo no sentindo de se libertar das amarras que foram submetidos desde os tempos de colonização. Nenhuma conquista, nenhum avanço, é casual. A construção da identidade ainda é latente e vem sendo construída cotidianamente, apesar dos golpes sofridos no movimento que defende a manutenção da exploração desse povo em nome de privilégio de alguns poucos. EDUCAÇÃO, RELIGIÃO EFILOSOFIA A Pedagogia do Oprimido entra na fileira dos trabalhos construídos e motivados pela inquietação causada dentro do ambiente da libertação. O educador e filósofo brasileiro Paulo Freire (1987) fundamenta que os educadores devem adotar posturas revolucionárias no ato de educar. Para ele, a partir da conscientização das pessoas acerca de ideologia opressora é possível alcançar a libertação da classe oprimida. O trabalho não se limita apenas ao campo da educação no âmbito escolar, mas também em ações populares. O diálogo também deve existir entre os líderes populares, por exemplo, e aqueles que estão sendo coordenados pelo mesmo. A construção da liberdade passa pelo processo de aprendizado de todos os envolvidos na ação. A partir deste pensamento, Paulo Freire revolucionou e ainda hoje é referência mundo afora quando o assunto éeducação. Se a base dessa revolução libertadora se iniciaria pela educação, nos pilares da sociedade, a partir da formação de adultos pensantes críticos, é um caminho natural que diversas camadas de atores sociais também sofram a influência dessa corrente de pensamento. Partindo do pressuposto que o que está posto como modelo é a desigualdade, exploração, e a 122 desumanização do humano, a busca do ser mais também chegou à religião, mais especificamente, à igreja Católica. A primeira ressalva a ser feita é que não se pode ignorar a dívida histórica, tendo em vista que a instituição teve participação direta, tanto na chegada dos europeus ao continente latino-americano, quanto na forma de catequização forçada dos povos que aqui habitavam. Essa doutrinação se sobrepunha, principalmente, à cultura e religião que já existia nas populações indígenas, que na ocasião, eram politeístas. Feita à ressalva, não se pode ignorar também o papel de articulação social que a igreja conseguiu, principalmente pela inserção nas camadas populares por meio dos trabalhos realizados pelas pastorais, por exemplo. Esse modelo de ação, inclusive, tem repercussão na aproximação dos Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MTST), as associações de moradores, o Partido dos Trabalhadores (PT), por exemplo. Em essência, as pessoas que compunham esses grupos organizados eram cristãos. Essa mudança da perspectiva da igreja se deve muito ao então arcebispo de Olinda e do Recife, Dom Helder Câmara, um dos nomes mais progressistas da sua época, que se incomodava bastante com o cenário de pobreza que acometia o Nordeste. Então a proximidade de campos progressistas da igreja com movimentos de esquerda, que tem em sua essência essa desconstrução do status quo, culminou no que hoje nos referimos como a Teologia da Libertação, que conta com nomes como Leonardo Boff e Frei Betto, nomes de referência no combate à ditadura militar no Brasil, porexemplo. Obituários da Teologia da Libertação existem em quantidade... Mas tais obituários são prematuros. Eles fazem uma leitura errônea da situação atual, e refletem uma falta de compreensão do que significou e ainda significa a Teologia da Libertação. A própria Teologia da Libertação é retratada em termos estáticos, e seu “sucesso ou fracasso” é associado intimamente com o destino, a curto prazo, de movimentos ou regimes. Mas a Teologia da Libertação é qualquer coisa, menos estática: tanto suas ideias como a expressão delas em grupos e movimentos evoluíram substancialmente com o passar dos anos. De qualquer forma, é um erro confundir a Teologia da Libertação com a própria libertação. Isso distorce o verdadeiro significado da mudança religiosa e política na América Latina e dificulta o entendimento do legado que essas mudanças provavelmente deixarão. (LEVINE, 1995, apud LOWY, 2016). A ideia de emancipação se reforça em diversos campos de atuação na América Latina. Na educação, na religião, mas também no campo filosófico e literário. E como já citados neste artigo, são nomes que configuraram de forma magistral a essência libertadora que inquieta a alma daqueles que buscam em campos progressistas uma resposta. Porque a atuação dos Direitos Humanos na América Latina tem um viés libertador. A busca por igualdade social tem um viés libertador. Uma educação que forma adultos críticos têm um viés libertador. E a busca da liberdade, essa no sentido da busca pelo ser mais, é a principal peça de engrenagem que 123 busca reposicionar o continente no seu papel internacional, não mais de subserviência, mas de protagonismo por simesmo. CONSIDERAÇÕESFINAIS Existe um movimento que busca a emancipação da América Latina, não apenas no aspecto econômico. O papel financeiro que o continente ocupa diante do mundo ainda é o segundo plano, com alguns lampejos de países que conseguiram em determinados momentos, explosões econômicas que o alavancaram para posições mais favoráveis. Um exemplo desse caso, é o Brasil, na época do governo Lula, entre os anos de 2002 e 2010. Países vizinhos também conseguiram uma certa condução das suas políticas econômicas para caminhos progressistas. No entanto, vivemos um período que podemos afirmar como uma reposta dos setores privilegiados aos caminhos adotados recentemente. Esse movimento de onda é o que traduz de forma metafórica a América Latina. Um continente cujo seu povo vive ao longo de tantos anos em luta. Luta por afirmação, emancipação e libertação. E não é por acaso que depois de alguns anos com pautas positivas, a resposta tenha sido tão forte e tão articulada em diversos países vizinhos. No entanto, como no passado, setores progressistas, que tomam para si o protagonismo da ideia da libertação, já se articulam para os passos que serão dados nos próximos anos. A luta no continente não parou nas pequenas conquistas obtidas no passado, tampouco parará com mais alguns reveses vividos na atualidade. A essência latino-americana é de luta. E é na luta que será forjado, cada vez mais intensamente, a construção de uma identidade latinoamericana, abraçada por todos os seus países componentes. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS A CNV: Comissão Nacional da Verdade. Comissão Nacional da Verdade. Disponível em: <http://www.cnv.gov.br/institucional-acesso-informacao/a-cnv.html>. Acesso em: 18 jun. 2019. BETTO, FREI., Fidel e a religião: conversas com Frei Betto. São Paulo: Fontanar, 2016. CALLE 13. Latinoamerica. Interpretes: René Pérez, Eduardo Cabra, Ileana Cabra Joglar, Totó la Momposina, Susana Baca, Maria Rita. Porto Rico: Sony Music, 2010. DUSSEL, ENRIQUE., Filosofía de la liberación. México: Editora Edicol, 1977. FREIRE, PAULO., Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, 1987. 124 GALEANO,EDUARDOH.,AsveiasabertasdaAméricaLatina.PortoAlegre,RS:L&M, 2014. LAHR, Marta MirazÓn. A ORIGEM DOS AMERÍNDIOS NO CONTEXTO DA EVOLUÇÃO DOS POVOS MONGOLÓIDES. Revista USP, [s.l.], n. 34, p.70-81, 30 ago. 1997. 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Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2009. SANTOS, BOAVENTUARA DE SOUSA. As vozes do mundo / Boa Ventura de Sousa Santos, org. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2009. 125 DECOLONIZANDO A UNIVERSALIDADE ATRAVÉS DA INTERSECCIONALIDADE: UMA ANÁLISE DOS SISTEMAS REGIONAIS DE DIREITOS HUMANOS Gabriel Coutinho Galil1 RESUMO O presente trabalho visa levantar reflexões sobre a seguinte questão: a interseccionalidade pode nos ajudar a desconstruir a ideia de um sujeito “universal” dos direitos humanos que é, na verdade, intrinsecamente europeu, branco, masculino e heterossexual e, portanto, central à lógica da exclusão perpetrada aos sujeitos subalternos? Para fundamentar tais reflexões a primeira parte deste artigo emprega a técnica de revisão bibliográfica para entender como a centralidade da "universalidade" foi moldada para a estrutura dos direitos humanos e como ela funciona para excluir aqueles que são excluídos pelas matrizes de dominação. A segunda parte do ensaio é dedicada a uma análise empírica de como a ideia de interseccionalidade opera dentro do campo do direito internacional dos direitos humanos. O recorte adotado restringe a análise à jurisprudência das Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos. PALAVRAS-CHAVE: Interseccionalidade; Direitos humanos; Sistemas Regionais de Direitos Humanos. ABSTRACT The present work aims to rise reflections on the following question: can intersectionality help us to deconstruct the idea of an “universal” subject of human rights that is, in fact,intrinsically european, white, male and heterosexist and, therefore, central to the logic of exclusionperpetrated among subaltern subjects? In order to underliesuch reflections, the first part of this paper employs the technique of literature review to understand how the centrality of "universality" was shaped to the human rights framework and how it functions to exclude those who are on the bottom of matrices of domination. The second part of the essay is dedicated to an empirical analysis of how the idea of intersectionality operates inside the international human rights law field. Due to the limitations of the present work, the samples examined were narrowed to the express mention of the word “intersectional” on the European and the Inter-American Courts of Human Rights. Keywords: Intersectionality; Human Rights; Regional Human Rights Systems. INTRODUCTION The hierarchy of subjects and knowledge is a constitutive characteristic of Modernity. This practice, however, does not, as a rule, occur expressly. On the contrary, Modernity is marked by the production of theories that are professedly universal, but which are thought from a specific perspective, that is, of the male, white, European, heterosexual and Christian. In this way, the epistemic production of Modernity not only perpetuates the oppressions of subaltern subjects, but also tries to dismantle its tools of resistance, excluding them from the scope of a valid knowledge. 1 Mestrando em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: gcgalil@gmail.com. 126 The oppressions caused by colonialism have consequences for the legal theory, since it excludes various bodies of the condition of subjects of law, making the sophisticated protective framework of human rights inaccessible to these subaltern experiences. Theoretical framework of this work, decolonial thinking seeks to highlight what Modernity conceals: the fallacy of the universal subject and the abstract rationality as the only possibilities to ground the knowledge and the self. Resulting from the thought and activism of black feminists, intersectionality is constructed as an analytical tool that enables dissect the various power relations that shape the subject, abandoning a monofocal perspective that only saw the man from a race or class or gender perspective. Departing from this construction, the question on which the work is concerned is whether, from a decolonial perspective, intersectionality can contribute to the deconstitution of the "universal" subject of human rights and to highlight the uniqueness and the diversity of different experiences of oppressions. Considering the potential of intersectional thinking to reveal the multiplicity of factors that affect the social position of each individual, as well as the gradual incorporation of their framework in the instances of human rights application, the hypothesis raised is a positive response to the problem. From a legal-comprehensive approach, the problem is addressed on different levels. First, using the method of bibliographical revision, it is sought to point out how this "universality" was constituted in Western thought and how it was incorporated into the International human rights framework. Secondly, it uses an empirical analysis of the use of intersectionality in the decisions of the regional courts of human rights. From a non-random sample, decisions are analyzed to identify how these courts are using intersectionality in their case-law. Finally, from the results found, it critically reflects on the possibility of using intersectionality as a tool for a decolonial thinking project. HUMAN RIGHTS AND THE UNIVERSAL SUBJECT The occidental philosophy is strongly attached to the idea of the universal, a tradition that can be traced back to the work of Descartes. The transition from a theological to a secular thought locates the “I” or the “subject” at the place previously occupied by “God” (GROSFOGUEL, 2007, p. 63 - 64). However, it kept the ambition of producing a knowledge that aimed to go beyond the present time and space. In order to validate the idea of the subject as the foundation of the knowledge, the occidental philosophy places it on a “non-space” and a “non-time”, isolating the subject from the external world. The production of knowledge, then, 127 is driven by an epistemic subject that has no gender, race or class and isn’t located in any other power relation and therefore is able to reveal the universal truth. That is what Castro-Gomez (2007, p. 83) names the “hybris del punto cero”. Nonetheless, in spite of the emergence of this theoretical construction of the abstract universality that was preserved throughout the work of the most influential occidental thinkers, (namely Kant, Hegel and Marx), it must be noted that those theories were produced from a european-male-white-heterosexist perspective (GROSFOGUEL, 2007, p. 63 – 71). Therefore, what is named universal is in fact epistemologically constructed on a logic that excludes those on the bottom of these systems of power (capitalism, racism, sexism, heterosexism and colonialism) hidden in the supposed neutrality of the subject. This abstraction about the subject is central to the declarations of rights written during the Enlightenment and to the construction of a “subject of rights” that despite being framed as universal wouldn’t include women, people of color and poor people (BRAGATO, 2009, p. 96). The historical facts itself, i.e. the coexistence of these declarations with the colonialism perpetrated by the same people who declared the freedom of the “man”, puts in evidence how narrowed was (and still is) their concept of “human”. The idea of universality is carried to the contemporary foundations of the human rights as it is stamped on the title of the celebrated document that inaugurates the development of international human rights law on the post-World War II – The Universal Declaration of Human Rights. This framework triggered the development of a protection for a certain type of human experience that was not able to access the multiple possibilities of being, neither inside nor beyond the European borders (PIRES, 2017, p. 3). However, it is important to notice that the expansion of the international human rights law framework since the 1960’s comprehended the creation of special regimes of protection directed to those who had been historically excluded from the concept of human, such as women and racial minorities. Douzinas (2000, p. 253 - 256) explains this process of extension of rights underpinned in the fact that the word “human” is a floating signifier and has been central to political, ideological and institutional struggles. To promote the extension of rights, those who have been excluded from its scope of protection must assert both its similarities and differences from those who are within it. Firstly, using the undetermined universal human nature in their favor those who have been excluded from the grammatic of rights must show the affinity between them and those who are already understood as subject of rights. In second place, they must also evidence the distance between that abstract human nature and the concrete characteristics of the claimants that justifies their differential treatment. It is important to 128 highlight that Douzinas’ explanation exposes the historical and political character of human rights, deconstructing the idea of it as something timeless and neutral. And those struggles uncover the fallacy of universality, once that such new rights are regarded as “special” or “specific”. This process of expansion and specification included, for instance, the enactment of the following conventions: International Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination (ICERD - 1965); International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights (ICESCR -1966); Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women (CEDAW - 1979); International Convention on the Protection of the Rights of All Migrant Workers and Members of Their Families (ICMW - 1990); and Convention on the Rights of Persons with Disabilities (CPED - 2006). This process of creation of specific rights, however, is not restricted to the international legislative action, but also relies on the gradual enlargement of universal rights through the interpretation of human rights courts (RAMOS, 2016, p. 35-38) as it is the case of sexual orientation and gender identity rights (LELIS; AUTOR, 2018; O’FLAHERTY, 2014). It is possible to notice that these mentioned conventions, along with the evolutionary interpretation of the generic treaties, establish new frameworks directed to, at least in theory, remedy the violations of rights generated by the abovementioned systems of power, like racism (ICERD), sexism (CEDAW), capitalism (IECSCR) and nationalism (ICMW). Despite the importance of recognizing the effects of these matrices of domination, it is possible to notice that this movement instead of eradicating the idea of an abstract and universal subject create new categories of universality. By analyzing the CEDAW, for instance, it is evident that an universal category of “woman” is now created. This new subject that is now gendered won’t take into account that sexism doesn’t act in the same way across cultures nor that it does not act alone, without intersecting with categories as class, race and sexuality (BUTLER, 2015, p. 21). However, these intersections were already frequently noticed by the social movements that promoted many of the struggles which would turn in to these specific legislations. For instance, the Conference of 1995 in Beijing directed to the women’s rights was marked by intense debates regarding sexual orientation rights (BUTLER, 2004; ZEIDAN, 2005) which were also present at the Durban Conference against Racial discrimination (COLLINS; BILGE, 2016, p. 89). Nonetheless, the absence of consensus on these topics generally resulted in bracketing those intersecting categories (BUTLER, 2004; ZEIDAN, 2005). The process towards the specification of human rights as a response to social inequalities, therefore, does not grasp the complexities of the oppressions faced by individuals across the 129 world. And is at that point where intersectionality may give a considerable contribution to the human rights field: by showing that major axes of social divisions in a given society at a given time operate not as discrete and mutually excludent entities but build on each other and work together (COLLINS; BILGE, 2016, p. 4). By electing relationality as a main way of thinking social inequality, intersectionality confronts one the main epistemological tool used in Modernity to maintain exclusion, i.e., the idea of an abstract and universal subject. A relational approach demonstrates that each individual is located at different points of convergence of diverse relations of power, even though we are not dealing with oppressed individuals. That is because racism, capitalism, gender and sexuality, for instance, exercises power on each one of us, constructing privileges and oppressions simultaneously. Despite the fact that Collins and Bilge (2016) did not necessarily elect colonialism as a system of power, thinking intersectionality from the South demand us to consider it as an inherent element that produces social inequality[1]. By highlighting the complexity of relations that traverses each individual the production and reproduction of an universal subject seems to find its limits on intersectionality. At the field of legislation it is possible to note some punctual improvements, as the mention to multiple discriminations at the CPED and at the Inter-American Convention Against Racism, Racial Discrimination and Related Forms of Intolerance. An important progress was made with the Inter-American Convention Against all Forms of Discrimination and Intolerance which not only brings the broader number of grounds for discrimination (being the only international treaty to expressly mention sexual orientation and gender identity) but dedicating itself to the possibilities of multiple discrimination. To the present date, however, only one country (Uruguay) has ratified the mentioned treaty. As noticed above, interpretation plays an important role on international human rights law once it helps to specify the range of application of treaties and it may use an evolutionary approach to advance on the protection of individuals discriminated by specific kinds of oppression that weren’t previously mentioned on each treaty. In this sense, there is already relevant case law of some United Nations' (UN) treaty bodies on the topic of multiple and intersectional discrimination (CHOW, 2016), particularly at the Committee on the Elimination of Discrimination against Women (CAMPBELL, 2015). However, the systems of regional protection of human rights remains unexplored, which is the objective of the following topic. INTERSECTIONALITY IN THE DECISIONS OF THE REGIONAL HUMAN RIGHTS SYSTEMS 130 Despite the fact that a juridical analysis is extremely restricted to address the problems of social inequality and discrimination, it cannot be ignored, once such systems of power traverses the legal field. In this regard, regional systems of human rights protection have been playing an important role in the improvement of national legislation about important topics, such as indigenous people rights, combat of violence against women and protection of discrimination based on sexual orientation and gender identity (PIOVENSAN, 2014). The present topic is dedicated to the analysis of the use of intersectionality in the decisions issued by the regional human rights courts. This study is based on an empirical observation of nonrandom samples upon which descriptive inferences will be drawn (EPISTEN; KING, 2002). The research restricted itself to the decisions of the two courts that disposed of an online database with search engine, hence the decisions of the African Court of Human’s and People’s Rights could not be analyzed. At the BJDH Base, the official repository of jurisprudence provided by the website of the InterAmerican Court of Human Rights (IACHR), it was searched for the term "interseccionalidad", from which no results were obtained. Next, the term "interseccional" was used, from which two results were obtained: Case Gonzales Lluy v. Ecuador; and Case I.V. v. Bolivia. At the HUDOC database, the official repository of jurisprudence indicated by the website of the European Court of Human Rights (ECHR), the term "intersectionality" was used to conduct a search, from which resulted one case: Garib v. Netherlands. Then, it was used the term "intersectional", from which four results were obtained: Garib v. Netherlands; Case S.A.S v. France; Case of Konstantin Markin v. Russia; and Case B.S. v. Spain. The jurisprudence of the European Court of Human Rights The first case founded at the ECHR database is the Case B.S. v. Spain in which a Nigerian woman lawfully resident in Spain and who worked as a prostitute was physically and verbally harassed by two police officers (the record states that they said: “get out of here you black whore”). The case was first dismissed and after an appeal was heard. However, the officers were acquitted. A second episode happened, causing serious injuries to the applicant and at this time the case reached the Spanish Constitutional Court, which dismissed it. During the proceeding at the European Court of Human Rights a third-party intervener asked the court to recognize the harm as a case of intersectional discrimination, based on the different grounds that affected it, such as race, gender and social origin. Although the court did not expressly 131 accept the third-party argument, it recognized that “the decisions made by domestic courts failed to take account of the applicant’s particular vulnerability inherent in her position as an African woman working as a prostitute”. The court held that there was a violation of article 14 (prohibition of discrimination) in conjunction with article 3 (prohibition of torture) (ECHR, 2012). In the Case Konstantin Markin v. Russia the applicant was part of the military service, father of two children and by the time that the third child was born his wife filed for divorce. They agreed that the three children would live with the applicant, who asked for a three years parental leave which was denied, once the military unity alleged that it could only be granted for women. The case was taken to the constitutional court which rejected his application. A third-party intervener petitioned asking the court to consider the case as an intersectional discrimination, once that the grounds for discrimination was both gender stereotypes and his military status. The court didn’t take that into account (ECHR, 2012a). In the third case found, S.A.S. v. France, the claimant was a French national and a devout muslim, therefore she wore the burqa and niqab. Although since 2011 the French Law prohibited anyone to conceal their face in public spaces. Once more the third-party interveners asked the court to recognize the act as an intersectional discrimination and this time the petition included a submission from Amnesty International, showing how the law affect Muslim women disproportionately. The court didn't accept these arguments and held that there had been no violation of the prohibition of discrimination (ECHR, 2014). The fourth and most recent case is Garib v. The Netherlands. The applicant lived in Rotterdam with her two children in a rented house since 2005. In 2007 the owner of the property asked them to vacate the place for his personal use and offered them another property of his at the same street. On the meantime, however, the city of Rotterdam enacted a regulation establishing that area as restricted to people who had been granted a housing permit. Ms. Garib applied for a house permit, which was denied on the basis that she didn’t satisfy the statutory requirement of living in the city for 6 years or the exception requirement based on income, once she was dependent on social-security benefits. The court concluded that there was no violation of the right to freely choose a residence. At the dissenting opinion of Judge Albuquerque, he does not only criticize that a discrimination was not recognized, but also that the European Court has been ignoring the existence of intersectionality and of intersectional discriminations. He also stated that intersectionality is an analytic tool that allows acknowledging the composite nature of the sources of discrimination and the synergy of their effects, which does not 132 necessarily result in an accumulation of forms of unitary discrimination, but in a new form of multidimensional discrimination (ECHR, 2017, p. 76). This presented landscape of the European Court allows us to conclude that intersectionality hasn't been truly incorporated at its jurisprudence. This inference is drawn from the fact that in none of the four cases founded the Court accepted the third-party interveners petition to recognize the occurrence of an intersectional discrimination, whether it was explicitly (As at B.S v. Spain and S.A.S v. France) or not. The critic of Judge Albuquerque (Garib v. The Netherlands) is of great importance once it demonstrates a solid knowledge about the technical aspects of intersectionality and denounces the neglection of the European Court about its existence. However, one aspect of its opinion must be pointed out: by stating that intersectionality was coined by Kimberlé Crenshaw, it overrides an important political aspect of intersectionality that is its conception through the struggles of social movements. It discreetly reinforces the international law’s perspective of social movements as invalid site of social resistance and production of knowledge (RAJAGOPAL, 2004, p. 199). The jurisprudence of the Inter-American Court of Human Rights The first case to be analyzed is the Gonzalez Lluy and others v. Ecuador. The main applicant is Tália Gonzales Lluy, a girl that had been infected with the HIV virus when she was 3 years old while receiving a blood transfusion from the Red Cross blood bank at a private clinic. Beyond the damages caused by the virus to Talia’s health and physical integrity she was expelled from school on the grounds that she offered risk of contamination to the other students. The school’s decision was sustained at the judiciary. Both the civil and the criminal cases brought by her family didn’t result in her favor, having the criminal case taken so long that it was extinct by the statute of limitation. Adjacent to that, her family suffered discrimination at workplaces and was demanded to move several times because of Talia’s condition. At the judgment, the court recognized that: “in Talía’s case, numerous factors of vulnerability and risk of discrimination intersected that were associated with her condition as a minor, a female, a person living in poverty, and a person living with HIV.” (IACHR, 2015, p. 82)”. Going beyond the specifics of the case, the court made important statements that demonstrates its comprehension about how power relations variate in accordance to each individual: “The Court notes that certain groups of women suffer discrimination throughout their life based on more than one factor combined with their gender, which increases their risk of enduring acts of violence and other violations of their human rights” (IACHR, 2015, p. 81)” and “[…]Talía’s 133 case illustrates that HIV-related stigmatization does not affect everyone in the same way and that the impact is more severe on members of vulnerable groups” (IACHR, 2015, p. 82). It is worth to mention that Judge Poisot issued a concurring opinion in order to highlight the importance of the use of intersectionality in the judgment. He asserts that it is impossible to analyze the discrimination through each axis of social oppression separately, once that those interact with each other creating oppressions that are qualitatively different (IACHR, 2015, p. 140). In the Case I.V v. Bolivia, Ms. I.V. suffered a forced sterilization immediately after giving birth to her third child. The Inter-American Commission sustained that the violation of her reproductive rights was due to the intersection of several forms of oppression: she was a woman, living in poverty and a refugee. Once more, the court recognized that the oppression suffered by women may assume diverse shapes once it can intersect with racism and socio-economic condition. However, the Court sustained that the violation of her reproductive rights was not a case of intersectionality once that, in the court’s view, the fact that Ms. I.V was living in poverty and a refugee didn’t had any influence on the forced sterilization, only at the difficulties faced by her on the access to justice. An important point of the judgement was a requirement made by the commission that the State should enact public policies and legislation that take the intersectionality of different grounds of vulnerability under consideration. The request was not accepted by the Court. The analysis of the two cases leads to the conclusion that the Inter-American Court used intersectionality in a positive manner that exhibit its understanding of how different kinds of oppressions may affect the same individual and that the combination of these different oppressions generates individual oppressions that are qualitatively different. Another interesting point is that in both judgements the Court demonstrated a comprehension that the oppressions suffered by the individuals are not present only on the specific time when they suffer an act of discrimination, but in many different moments. However, the fact that the Court didn't recognized the influence of many characteristics of Ms. I.V. at the moment of her forced sterilization raises the question whether the Court fails to grasp other aspects of intersectionality, for instance: the comprehension that these social axes influences other domains of power that may be subtler, as the interpersonal or the disciplinary domain (COLLINS; BILGE, 2016, p. 7-9) but, still exercises substantial effects on oppressions. Another valuable aspect of the cases is the suggestion made by the Commission at I.V. v. Bolivia that the country should enact new legislation and public policies that take intersectionality under consideration. Even though it was not accepted by the Court, it exhibits a possibility of merging 134 the above mentioned transformative impact of the regional systems of human rights with the lenses of intersectionality. TRANSLATIONS AND TENSIONS: INTERSECTIONALITY AND DECOLONIALITY An issue that arises from the theoretical perspective adopted is about the compatibility or not of the use of intersectionality with projects that seek the decoloniality of knowledge, of being and of power. In this sense, some thinkers adept to a decolonial thinking point to a supposed incompatibility of intersectionality with this project, since it would be a tool conceived and designed by and for the Global North (KURTIS, 2016, p. 46-59; HIRA, 2016). The first fact that deserves attention is the alert brought by Bilge and Collins (2016)of the current pulverization of intersectionality in several fields of knowledge and its incorporation into different institutional practices, which link the term intersectionality to projects that may lack critical thinking, articulation with social movements and commitment to social justice. The authors point out that these three elements are constitutive of intersectional thinking, which they attribute to the origin of the struggles of black and Latina women since the 1970s. It is important to note, then, that the critiques analyzed in the sense of the supposed incompatibility of intersectionality with a decolonial thought depart from a conception of intersectionaly as having its beginning in the theoretical construction of Kimberlé Crenshaw in the late 1990s (KURTIS, 2016, p. 5; HIRA, 2016, p.1). . In contrast, Collins and attribute the genesis of intersectional thinking to social movements that thought of the intersection of race and gender as early as the 1960s . The authors even mention nominally Brazilian thinkers, such as Lélia Gonzales as constituents of intersectional thought Bilge (2016, p. 65-71). In fact, the work of Gonzales already conveyed, since the 1980s, patent, the effects of the intersection of race and gender (GONZALES, 1984). In this way, there does not seem to be an immanent incompatibility between decolonial thinking and the tool of intersectionality. On the contrary, by placing intersectionality under decolonial lenses and highlighting that this has long been present in the thinking and action of women in the Global South, the appropriation of this framework by authors of the Global North is avoided. In addition, as demonstrated by the incipient use of intersectionality by human rights courts, the tool contributes to the decolonial project insofar as it shows the power matrices hidden behind the ideas of neutrality and universality. However, in order to avoid the 135 assimilation of the use of intersectionality and therefore turning it into a vehicle of coloniality/Modernity, it is imperative that its approach is, in fact, relational. That is, intersectionality must be attentive to the peculiarities of the context in which it is used as a form of analysis. From this perspective, the matrices and domains of power analyzed could not be plastered. For example, when using intersectionality in a Latin American context, it is indispensable that the analysis consider the influence of colonial power as one of the factors that intersects with the other axes of domination, significantly altering the analysis. For example, when using intersectionality in a Latin American context, it is indispensable that the analysis consider the influence of colonial power as one of the factors that intersects with the other axes of domination, significantly altering the analysis (MIGNOLO; WALSH, 2018). For compatibility to occur, then, it is necessary to start from the understanding of intersectionality not as an academic construction coined by Crenshaw, but as a tool developed in a transnational way by the symbiosis between social movements and academia. In addition, it is important that it is not considered as a "universal" tool, otherwise it reinforces an idea that, from the perspective adopted here, it intends to deconstitute. In this sense, it seems important to use the methodology adopted by Pereira in relation to queer theory (PEREIRA, 2014, p. 151-153). The author is confronted with the question of the theory losing its potentiality by being exported to the tropics as a universalist theory of the Global North, dissociated from the contexts southern from the equator. The very use of the term queer and not of a possible equivalent, as queue or misplaced would indicate the loss of the subversive potentiality of the theory. In this sense, the author argues that the practice of translating a theory entails transforming it substantively, shifting it in a way that shapes the local context. In the same sense, the author proposes to twist the theories, imbricating them in the diverse realities in order to redirect them, to change their senses. The author exemplifies with the provocation: Thinking about what would provoke such twists, we might ask, even if in order to encourage our poetic imagination, by reversing for a moment the North-South sense of the affections of the theories: What would Butler's thinking be if he experienced the religions of African matrix in Brazil? Imagine if she had, alongside Foucault and Levinas, Iansan and Pomba-gira. [...] Certainly, it would speak differently and otherwise of embodiments and corporeities, for it would be other bodies that matter and other materialities (PEREIRA, 2018). This plasticity of theories is also present in Bento's (2018) work in elaborating the concept of necrobiopolitics because it understands that neither of the two theories (biopower and necropolitics) would be able to provide an appropriate reading of the Brazilian reality. In this way, intersectionality must also be adapted, translated or twisted so that it incorporates the 136 local realities that it intends to analyze, maintaining its critical and transformative potential (PEREIRA, 2014). Once this translation has been made into the context in which the intersectional lens will be applied, it can be consolidated as an important tool for decolonial analysis. This is because, its framework allows to put in evidence the social classifications that, according to Mignolo and Walsh (2018, p. 175). would be the epistemic foundations on which the colonial matrix of power is sustained. Once exposed the social classifications that cross the subject, revealing the fallacy of universality, intersectionality collaborates for another decolonial project, which is the shift from an idea of false universalism to a truly inclusive pluriversalism. CONCLUSION The article sought to answer the initial problem about the possibility of intersectionality contributing to a universal conception of the subject, incorporated into the discourse of human rights, that hides a framework of protection aimed only at the white, European, Christian and heterosexual individual. Firstly, we used contributions from decolonial thinking to show how the logic of universality is built on the passage from theological thinking to secular thinking , creating the fiction of a subject isolated in time and space capable of producing scientific knowledge and revealing the truth. From these contributions, it was understood that this abstraction is indispensable to conceal the matrices of domination that mark Modernity, such as capitalism, racism, sexism and heterosexism. That is, by concealing the existence of oppressions from these systems of power, a structure of "universal", but excluding Human Rights was created. Then, it was analyzed how the process of specifying rights and the consequent expansion of Human Rights for certain socially vulnerable groups was not sufficient for the rupture with the logic of abstraction/universality. What happened was the creation of new categories, such as "the woman" or "the migrant". In this way, it was exposed how the intersectionality allows to see the myriad axes of power that intersect in the social positioning of each subject, emphasizing the importance of the tool. Thirdly, an empirical analysis of the use of intersectionality in regional human rights systems was made, using the term "intersectional" in the European and Inter-American Courts (those with a jurisprudence search tool). Four cases were found in the first and two cases in the second. The descriptive inferences drawn were that in the European Court there is no substantial incorporation of the tool into its judgments, since references to intersectionality were due either 137 to third party interventions or to dissenting votes. On the other hand, the Inter-American Court presented a substantial incorporation of the intersectional approach in the two cases in which it was cited. It was also pointed out, the suggestion of the Inter-American Commission to demand of the State the elaboration of legislation and public policies that considered the intersections of vulnerabilities of the subjects. In the third topic, we sought to reflect critically on the compatibility between the use of intersectionality and decolonial thinking. In spite of the criticisms found to be incompatible projects, the article presents examples of the possibility of translating theories in a substantial way. That is, to propose a change that is not restricted to the field of language, but incorporates into the theory the peculiarities of the context in which it will be introduced. Thus, it is concluded that the opening of intersectional thinking allows its use by a decolonial project. Finally, we have as a result that intersectionality has the capacity to revisit the epistemological foundations of human rights that take as a "universal" subject a restricted experience, perpetuating and fading oppressions such as class, race and gender. However, it was observed that their incorporation into regional systems occurs in an incipient way, and there is a need to enhance the use of intersectionality both qualitatively and quantitatively in these judicial instances. BIBLIOGRAPHIC REFERENCES BENTO, Berenice. Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação?. Cadernos Pagu, Campinas , n. 53, e185305, 2018 . 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Busca-se relacionar o tema com a realidade brasileira a partir de diálogos com pesquisadores de outros países, especialmente Portugal, com vista a realizar estudos comparativos entre a experiência brasileira e internacional. PALAVRAS-CHAVE: Epistemologia do Sul; Direitos Humanos; Comunicação em Saúde. ABSTRACT This article brings some themes related to Southern Epistemologies and different forms of health communication, with the objective of bringing this theoretical approach closer to other perspectives, contributing to the acquisition of new knowledge and contributing to analyzes about social mobilization and popular resistance that approach decolonial perspectives. We seek to relate the theme to the Brazilian reality through dialogues with researchers from other countries, especially Portugal, with a intention to make comparative studies between the Brazilian and international experience. KEYWORDS: Southern Epistemology; Human rights; Communication in Health. De costas voltadas não se vê o futuro Nem o rumo da bala/ Nem a falha no muro. E alguém me gritava/ Com voz de profeta Que o caminho se faz/ Entre o alvo e a seta. Pedro Abrunhosa INTRODUÇÃO A aproximação com as teorias e conceitos aqui discutidos ocorreu a partir da realização de cursos de pós-graduação, inclusive de abrangência internacional, na área de Comunicação e Informação em Saúde, Diplomacia em Saúde e Serviço Social. Essas experiências possibilitaram o conhecimento e a percepção de linguagem de pesquisadores de países que, em outros tempos, exerceram uma relação de colonizadores em diversas regiões do mundo, inclusive o Brasil, e as formas de pensamento que possibilitaram as condições sociais e históricas para o desenvolvimento de “linhas abissais” entre países, com diferentes sistemas de categorização e sistematização científicas, bem como, análises que mais recentemente buscam alterar essa lógica. Os conceitos principais discutidos se referem à conceituação dessas relações, 1 Pós-graduanda em Serviço Social pela UFRJ. E-mail: vavacgcastro@gmail.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 141 com enfoque nos conceitos de Epistemologias do Sul; Linha abissal, Ecologia dos Saberes e Sociologia das Ausências. A epistemologia do Sul se refere a um conjunto de ideias não hegemônicas que metaforicamente, segundo Boaventura de Sousa Santos (2014), diz respeito a um “campo de desafios epistêmicos, que procuram reparar os danos e impactos historicamente causados pelo capitalismo na sua relação colonial com o mundo”. Esta sobreposição estaria colocada diante das desigualdades que assolam a maior parte dos países colonizados e que formam o sul global, acrescidos das desigualdades que se sobrepõe aos grupos e populações que sofrem dominação também nos países do hemisfério norte. Além da dominação conhecida, há também uma dominação epistemológica, que impõe valores e saberes como verdadeiros e/ou sem reconhecimento. A dominação impetrada pelos colonizadores sempre se sustentou nas ideias de que o saber ao qual era portador, se constituía em uma forma superior de explicação e de organização do mundo, desqualificando outros saberes e formas de vida. A ciência moderna se baseia nesse mesmo pressuposto, que sobre a égide de um conhecimento portador da verdade mantém a subordinação e o domínio capitalista, em que as regras de distribuição das riquezas e de cuidado com o meio ambiente encontram-se extremamente diversificada entre os países. O pensamento abissal seria a forma unilateral pelo qual a dominação colonial opera, em linhas que dividem as experiências, os saberes e os atores sociais, esse pensamento, existente ainda hoje, deve ser superado pela ecologia de saberes e a interculturalidade. A forma de pensamento que invisibiliza e elimina outras formas de conhecimento, aprofunda a linha imaginária de distinção e separação entre dois mundos, mantendo a distância entre ricos e pobres, desenvolvidos e subdesenvolvidos e racionais e instintivos ou místicos, ou seja, o mundo humano e o subumano, criando condições reais e imaginárias para perpetuação da dominação, da pobreza e do controle de meios de comunicação, que apesar dos avanços das redes sociais na atualidade, se mantém a posição central dos grandes detentores de capital. Conforme Araújo (2014): Assim, se concentra poder como em qualquer outro meio e a tendência é aquela que o ditado popular afirma: o rio corre pro mar. Estudos de redes de fluxos da informação que circulam nesses espaços mostram a formação de hubs concentradores e dispersores dessa informação, com frequência as mesmas vozes dominantes nos espaços não virtuais, como órgãos da grande imprensa (2014, p.121). Assistimos na sociedade atual a ascensão de vários tipos de fascismo, em que o retorno a uma forma de dominação social, que poderia se considerar ultrapassada pode fortalecer novas formas de dominação. Não é diferente na área de saúde, que como uma área estratégica de Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 142 cooperação internacional, tem em suas regras a formulação de parâmetros e protocolos que reproduzem fortemente a lógica predominante dos países do norte. Reproduz-se hegemonicamente certa “cegueira” da saúde coletiva em relação aos sofrimentos impostos a população, tanto relacionado ao adoecimento humano, como a sobrevivência a diferentes dimensões de desastres ambientais em todo o mundo, em que se conferem distintos estatutos de humanidade, em que alguns indivíduos são considerados subumanos, ou mesmo, desconsiderados e invisibilizados diante do respeito à vida. Uma condição que promove o silenciamento e a naturalização das situações de sofrimento e o esvaziamento ao longo do tempo de consequências dos riscos a que são expostos grupos populacionais inteiros a longo de muito tempo. Este sofrimento, expresso nos corpos, se transforma em linguagem própria que no universo de possibilidades busca elaborar conteúdos e formas de continuar a vida em situações adversas. Em um artigo que discute um grande desastre ambiental ocorrido em uma indústria de fertilizantes em Bhopal na Índia na década de 60, Martins (2016) discute, entre outros aspectos, a Sociologia das Ausências e Sociologia das Emergências criada por Boaventura de Sousa Santos. Deste modo, aproximo-me do que Boaventura de Sousa Santos designa por “sociologia das ausências”, cujo objetivo é “transformar objetos impossíveis em objectos possíveis e com base neles transformar as ausências em presenças” (Santos, 2002, p. 246). Por outro lado, cabe perceber como da luta contra a tribulação emergem “novas linguagens”, narrativas de resistência que, entre a subjetividade ferida e uma insurgência partilhada, elaboram propostas de justiça e transformação social. Nesta perspectiva, inscrevo-me numa “sociologia das emergências”, cujo objetivo é “conhecer melhor as condições de possibilidade da esperança definindo princípios de ação que promovam a realização dessas condições” (Santos, 2002, p. 256). (Martins, 2016, p. 122). Os conceitos aqui discutidos trouxeram reflexões sobre situações práticas vivenciadas nas grandes cidades brasileiras. Consideramos que o enfoque da epistemologia do sul fornece subsídios, que no ângulo a que se propõe, constrói análises explicativas para compreendermos diferenças entre as ciências sociais dos países do norte e do sul global, também, contribui para análises referentes às formas de comunicação que atuam como poderosos reprodutores da ideologia dominante e de manutenção dos poderes colonialistas e do patriarcado, este último como a expressão mais arcaicas de dominação que se reproduz de forma contundente na vida das mulheres, especialmente, as indígenas e negras. COMUNICAÇÃO, DIREITO A INFORMAÇÃO E REALIDADE DOS PAÍSES LATINO AMERICANOS Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 143 A comunicação é fundamental no sentido de ampliar e garantir direitos sociais e de cidadania em prol da vida. Diferentes formas de comunicação, principalmente entre os jovens vêm reconfigurando à luta por democracia, inclusive reorganização de setores estatais, em que a informação assume características ainda mais dinâmicas e intensas em diferentes meios de comunicação. Estes movimentos contribuem para transformações na dinâmica e organização das lutas sociais, tanto em nível prático como subjetivos. Conforme discute Falero (2014) ao analisar algumas chaves cognitivas para a análise de movimentos sociais na América Latina: Em suma, a América latina oferece numerosos casos de movimentos e redes de organizações sociais que permitem amarar práticas coletivas a mudanças políticas e transformações simbólicas. Examinar esse papel exige não ficar preso a tempos e espaços imediatos. Também implica criatividade intelectual para colocar em diálogo, em conexão micro experiências com elaborações de mais vasto alcance. Isto nos leva a assumir riscos teóricos e metodológicos (FALERO, 2014, p. 52). Ações de ciberativistas como as empreendidas pelos Anonymus e WikiLeaks, entre outros, se inserem em sistemas informacionais de governos e empresas, alterando sites, postagens, documentos, fotos e informações confidenciais, promovendo mudanças no cenário internacional e na correlação de forças políticas ao redor do mundo. As opiniões sobre essas ações expressam dualidade entre a exposição de informações consideradas sigilosas, que comprometem inclusive a disputa no mercado internacional, mas que por outro lado, contribuem para a transparência das ações estatais e reorganização de formas e meios de comunicação hegemônicos. Cabe ressaltar, que a criminalização de movimentos sociais atinge historicamente diferentes formas. Conforme podemos observar em relação ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), em uma pesquisa ‘Vozes Silenciadas’ em que se analisa a cobertura da mídia sobre o movimento e o ângulo das análises: A maioria dos textos do universo pesquisado cita atos violentos, o que significa que a mídia faz uma ligação direta entre o Movimento e a violência. Não bastasse essa evidência, dentre as inserções que citam violência, quase a totalidade coloca o MST apenas como autor. Dentre as matérias em que o Movimento aparece como vítima, em sua maioria ele é também autor. Esse grande número se deve tanto aos casos em que são citados atos violentos de forma direta, com termos como “destruir” ou “quebrar”, mas também aqueles em que é usada a palavra “invadir” e suas variações. (INTERVOZES, 2011, p.44). A ampliação de diferentes ferramentas de comunicação traz muitos desafios e práticas, nas quais os movimentos sociais necessitam constantemente reafirmar e atualizar suas práticas e modos de interação. As indagações e reflexões sobre estes mecanismos exigem criatividade e ressignificações simbólicas que permitam construções coletivas de formas de participação cidadã e de desalienação de modos de vida. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 144 As linhas abissais existentes entre a região de favelas e periferias das grandes cidades em diferentes países da América Latina e também outras regiões, se projeta de modo explícito na precariedade das habitações e dos baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) da população. A convivência desses “dois mundos” parece se estreitar em projetos sociais que buscam diminuir e enfrentar essas desigualdades, mais que são rompidos pela “violência lenta”, que ultrapassa os anos e desafia a todos que aqui ali residem ou trabalham. Porto (2014) ao discutir o enfoque socioambiental em saúde coletiva para atuação em territórios nos traz importantes considerações sobre o tema da vulnerabilidade da população mais pobre. Tal discussão permite pensar a complexidade e conceitos como vulnerabilidade numa perspectiva crítica e emancipatória. Mais que atributos que definem pessoas e grupos mais ameaçados ou predispostos a problemas de saúde, em função de sua incapacidade de se defenderem, é importante analisar e intervir nos processos que vulnerabilizam os sujeitos. Isto significa superar a tendência a considerar tais populações como passivas e abstratas para situá-las como sujeitos políticos e históricos, culturalmente situados, detentores de direitos (PORTO, 2014, p. 4074). Porém, o silenciamento imposto a quem enfrenta cotidianamente as desigualdades sociais atravessa gestões e governos no Brasil, que tem nesses territórios uma forte expressão dos desafios de se efetivar por meio de políticas sociais e valorização de espaços culturais e de educação, a necessidade de superar as seculares desigualdades sociais. A linguagem de adultos, jovens e crianças das favelas da região, trazem em seu modo de agir, de ver a vida e de diálogo, os limites impostos às contradições de uma “cidade partida”, com territórios de extrema pobreza e outros de ampla oferta de atividades culturais, artísticas e de recursos urbanos, que elevam cidades como o Rio de Janeiro, a um dos principias pólos turísticos do mundo. As favelas e periferia resistem, porém, em condições que nem mesmo a circulação entre os diferentes espaços da cidade garante o direito humano de que “todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. De forma mais ampla, parece que a modernidade ocidental só poderá expandir-se globalmente na medida em que viole todos os princípios sobre os quais fez assentar a legitimidade histórica do paradigma da regulação/ emancipação deste lado da linha. Direitos humanos são desta forma violados para poderem ser defendidos, a democracia é destruída para garantir a sua salvaguarda, a vida é eliminada em nome da sua preservação. Linhas abissais são traçadas tanto no sentido literal como metafórico. No sentido literal, estas são as linhas que definem as fronteiras como vedações e campos de morte, dividindo as cidades em zonas civilizadas (gated communities, em número sempre crescente) e zonas selvagens, e prisões entre locais de detenção legal e locais de destruição brutal e sem lei da vida (SANTOS, 2014, p. 36). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 145 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conhecer diferentes concepções teóricas como a Epistemologia do Sul, pode contribuir para a compreensão de diferentes modos de pensar e de articular conhecimentos, com outros modos de comunicação que possibilitem a construção de uma epistemologia, que a partir da leitura dos dominados, favoreçam a liberdade e a emancipação humana. Porém, estes caminhos não são simples. O recente assassinato da vereadora Marielle Franco2 e do motorista Anderson Gomes, e de tantas outras pessoas que lutam por direitos humanos, demonstra o silenciamento das vozes que se expressam nos impedimentos e nas situações de adversidade, onde a vida vale muito pouco e que na velocidade de uma flecha um minuto se torna pequeno. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO, I. S. Comunicação, Saúde e Cidadania no Brasil. In: Gisela Gonçalves; Angela Felippi. (Org.). 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Marielle Francisco da Silva, (27 de julho de 1979 – 14 de março de 2018), foi uma socióloga, feminista, militante dos direitos humanos e originária da Favela da Maré (RJ). Filiada ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), elegeu-se vereadora do Rio de Janeiro na eleição municipal de 2016, com a quinta maior votação. Denunciava constantemente abusos de autoridade por parte de policiais contra moradores de comunidades carentes. Em 14 de março de 2018, foi assassinada a tiros no centro da cidade. 2 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 146 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf. Acesso em 22/03/2018 PORTO, M. F., Rocha, D. F. & Finamore, R. Saúde coletiva, território e conflitos ambientais: bases para um enfoque socioambiental crítico. Revista Ciência & Saúde Coletiva, 2014. 19(10), 4071- 4080. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 147 RAÇA, GÊNERO E SEXUALIDADES: REPENSANDO OPRESSÕES Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 148 AS LUTAS FEMINISTAS E A ACUMULAÇÃO PRIMITIVA EM PRIMAVERA DAS MULHERES Natasha Karenina de Sousa Rego1 Priscilla Glitz Mayrink2 RESUMO O presente artigo apresenta a luta das mulheres perante o silenciamento e violências sexuais e a acumulação primitiva no documentário Primavera das Mulheres (2017), produzido por feministas brasileiras que entrevistam mulheres jovens e mais velhas, estudantes e trabalhadoras, brancas e negras, cis e trans sobre lutas feministas. Parte-se da leitura de Mulher, raça e classe de Angela Davis (2016), intelectual e ativista feminista contemporânea. Conclui-se que o documentário apresenta questões contemporâneas centrais às lutas feministas do século passado e de agora estudadas e vivenciadas pelas intelectuais ativistas feministas. PALAVRAS-CHAVE: lutas feministas; silenciamento; violências sexuais; acumulação primitiva; Primavera das mulheres. ABSTRACT This article presents a struggle for women regarding silence and violence on the primitive accumulation in Women's spring (2017), produced by Brazilian feminists that interviews young and older women, students and female workers, black and white women, cis and transgender women about feminist struggles. Women, race and class, of Angela Davis (2016), intellectual and contemporary feminist activist, is the center of analysis. It is concluded that the documentary presents contemporary issues feminist struggles of the last century and now studied and experienced by feminist activist intellectuals. KEY- WORDS: feminist struggles; silencing; sexual violence; primitive accumulation; Women's spring. INTRODUÇÃO O documentário Primavera das Mulheres, produzido pela jornalista e roteirista Antonia Pellegrino e pela diretora Isabel Nascimento Silva, ambas feministas, foi lançado em 19 de outubro de 2017, uma quinta-feira de barbárie, no Rio de Janeiro. O filme apresenta as lutas feministas no Brasil nos últimos anos a partir do que chama de “espaço público ampliado” com a “rua virtual” e traz mulheres escritoras, militantes populares, jovens influenciadoras virtuais, feministas radicais, atrizes, vereadoras, mulheres trans, ativistas do movimento negro e jovens secundaristas que ocuparam as escolas. São todas protagonistas de amplos perfis que apostam em novas formas de fazer política. 1 Professora de Direito da Universidade Estadual do Piauí, campus Dra Josefina Demes. Bacharela em Direito (UFPI), mestre em Direito (UFSC) e estudante de Especialização em Movimentos Sociais (UFRJ). E-mail: nkarenina@gmail.com. 2 Professora de Arquitetura e Urbanismo na Faculdade Paraíso Ceará. Pós-graduanda em Movimentos Sociais pelo NEPP-DH/UFRJ. Mestre em Urbanismo pelo PROURB/UFRJ. Arquiteta e Urbanista formada pela UFRJ. E-mail: priscillagmayrink@gmail.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 149 Campanhas como #meuprimeiroassedio, #nenhumaamenos e #meuamigosecreto possibilitaram que, a partir das hashtags, mulheres diversas escrevessem sobre experiências de comportamentos machistas naturalizados e provocassem em outras mulheres e homens questionamentos sobre o caráter político do que é tido como natural. Essas campanhas mostram o quanto o real e o virtual se articulam na experiência política. #mulherescontracunha e a Marcha das Mulheres Negras exemplificam a continuidade das mulheres em marcha nas ruas. As mobilizações nas redes e ruas, em atuações locais e internacionais, têm possibilitado a troca de experiências entre gerações e territórios, identificação de vivências e formulações políticas. Contemporâneo, produzido e dirigido no Rio de Janeiro, cidade de onde escrevemos, instigador de perspectivas diversas das lutas feministas, de mulheres jovens e mais velhas, estudantes e trabalhadoras, brancas e negras, cis e trans, Primavera das Mulheres (2017) apresenta vivências, teorias e cruzamento que nos mobiliza a escrita deste artigo, enquanto pesquisadoras, ativistas e feministas. Escolhemos dois eixos para apresentar a partir de revisão bibliográfica de Angela Davis (2016), intelectual e ativista contemporânea que entrecruza raça, classe e gênero para estudar as permanências coloniais, patriarcais, escravocratas, modernas e outras nas relações de poder entre homens e mulheres. O primeiro tópico apresenta a luta das mulheres perante o silenciamento e violências sexuais. O segundo relaciona o debate de ser mulher central na vivência de mulheres negras e trans com o trabalho e a acumulação primitiva a partir de Silvia Federici (2017) e Angela Davis (2016) . Conclui-se que o documentário apresenta questões contemporâneas centrais às lutas feministas do século passado e de agora estudadas e vivenciadas pelas intelectuais feministas trazidas nas referências bibliográficas, mostrando continuidades das opressões relacionadas às mulheres ao longo do processo histórico. LUTAS DAS MULHERES PERANTE SILENCIAMENTO E VIOLÊNCIAS SEXUAIS Em Primavera das mulheres (2017), as participantes do documentário apresentam discussões diversas sobre como o machismo é exercido no dia a dia, em supostas sutilezas tais como o corte da fala; explicação de argumentos para as mulheres como se elas não pudessem entender por si; silenciamento de suas falas e opiniões; repetição, em outras palavras, do que é dito por mulher; romantização da cultura ao estupro. O ativismo feminista virtual (THINK OLGA, 2015; FERRERO, 2017) popularizou um léxico de expressões que nomeiam violências físicas, psicológicas, sexuais, patrimoniais, Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 150 morais e outras sofridas por mulheres em virtude de seu gênero. A escritora feminista estadunidense Rebecca Solnit (2017) apresenta uma situação curiosa que lhe aconteceu. Ao ser apresentada a um homem, numa conversa que tinha como ensejo livro mais novo dela, ele passou a festa inteira dizendo que ela deveria ler o livro sem deixar que pudesse se apresentar como a escritora. “A capacidade de contar sua própria história, em palavras ou imagens, já é uma vitória, já é uma revolta” (2017, p. 97), pontua. O silenciamento histórico de mulheres brancas e negras, por motivos diferentes, e a construção de um senso comum de que as mulheres não sabem se expressar ou são burras continua imperando e sendo tratado como falta de educação, o que se mostra como manifestações das estruturas racistas e patriarcais de controle de nossos corpos. A escrita e a fala - mesmo que atravessadas por tentativas de silenciamento dos homens ou de ideologias contrárias às mulheres - estilhaçam a máscara do silêncio. Como mencionou a escritora e feminista negra Conceição Evaristo em entrevista a escritora, filósofa e feminista negra Djamila Ribeiro (2017), a imagem da escrava Anastácia, tem “dito muito que a gente sabe falar pelos orifícios da máscara e às vezes a gente fala com tanta potência que a máscara é estilhaçada. E eu acho que o estilhaçamento é o símbolo nosso, porque a nossa fala força a máscara”. Os homens ainda não estão conscientes e acostumados com o estilhaçar da máscara do silêncio, especialmente quando vocalizado por mulheres negras e indígenas, que vivenciam violências e silenciamentos racializados. É da Conceição Evaristo (2006) a categoria teórica e política “escrevivência”: a escrita nascida do cotidiano, da experiência de vida da autora, da família e do povo negro que sente, as dores, as alegrias, os gritos e os sussurros de uma multidão de pessoas – de homens e, sobretudo, mulheres cujas vozes são insistentemente caladas”. A escrita tem sido uma ferramenta chave, especialmente para as mulheres negras, de romper o silêncio e o silenciamento e contribuir para a resistência feminista e antirracistas. O documentário também expõe a limitação das mulheres quanto aos seus comportamentos, formas de agir, de ser e de existir no mundo como forma de proteção pessoal e, ao mesmo tempo, como forma de controle social dos corpos femininos. A escritora e ativista dos direitos civis negra Maya Angelou (2018) relata que emudeceu-se aos oito anos após ser estuprada e temer que ter contado sobre isso teria levado a sua morte. A garota só voltaria a falar anos depois. O silenciamento a qual somos submetidas pelos homens nos momentos de violência sexual impõe às mulheres e às crianças a culpa sobre as violências sofridas. Campanhas como Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 151 #meuprimeiroassedio, #nenhumaamenos, #meuamigosecreto, #eutambém, #metoo no campo virtual mobilizam a opinião pública a lidar com assédios, estupros e outros casos de violência sexual majoritariamente contra mulheres e crianças cometidos por homens do convívio das mulheres e famosos. A professora, escritora e ativista estadunidense negra Angela Davis (2016) conta a história das mulheres a partir das negras em perspectiva de gênero, raça, classe. Quando escravizadas, as mulheres negras eram vistas como força de trabalho tanto quanto os homens e, nesse caso, desprovidas de gênero. Em relação às violências sofridas, as mulheres negras recebiam as mesmas punições que os homens, no entanto ainda passavam por abusos sexuais, maus-tratos e estupros, direcionados ao gênero feminino. O estupro representava uma dupla dominação: tanto a partir de uma relação de propriedade quanto de machismo. Além disso, o estupro garantia um maior poder de dominação por parte do proprietário, aumentando a capacidade de exploração econômica do seu trabalho. Portanto, o estupro e os abusos sexuais eram atos terroristas recorrentes que visavam manter as mulheres negras em posição de submissão (DAVIS, 2016). Mesmo em momento pós-abolição o estupro se manteve fortemente presente na vida das mulheres negras, que continuavam sendo estupradas em seus locais de trabalho. O assédio e o estupro eram praticados pelos donos da casa onde realizam trabalho doméstico, atos que serviam também como ameaça dessas mulheres perderem o emprego. Por isso, se tornavam prisioneiras caso resistissem às tentativas de estupro uma vez que dependiam desse trabalho para sua sobrevivência, o que, por outro lado, possibilitava uma maior exploração da força de trabalho da mulher negra. Esse contexto de vulnerabilidade em relação aos homens brancos em seus locais de serviço colaborou para a construção do mito da imoralidade da mulher negra (DAVIS, 2016). O que Angela Davis (2016) mostra é que existiu uma articulação entre a criação do mito da imoralidade da mulher negra e o mito do estuprador negro relacionados aos atos de estupro. A criação desses dois estereótipos surgiu como forma de conter qualquer possível levante da população negra contra as injustiças, desigualdades e explorações históricas a que continuavam a ser submetidos mesmo após a Guerra Civil. Nesse sentido, a análise do estupro precisa passar por um filtro não apenas de gênero, mas também de raça. O estupro sempre existiu e sempre foi algo presente na vida das mulheres negras escravizadas, que tinham que lidar com os abusos dos homens brancos proprietários de escravos. No entanto, o estereótipo do estuprador que se constrói é justamente do homem negro Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 152 enquanto potencial estuprador (DAVIS, 2016), permanecendo até os dias atuais e sendo característico não apenas dos EUA, mas também do Brasil. Nesse sentido, a autora mostra como o racismo, que fazia com que homens brancos se sentissem no poder de fazer o que bem quisessem com os corpos das mulheres negras, foi um estímulo ao estupro que culminou nos casos para com mulheres brancas como efeito (DAVIS, 2016). No entanto, as leis foram historicamente formadas para proteger as classes mais altas, portanto, apesar de homens brancos sempre terem estuprado mulheres, estes estão mais protegidos pela lei e pela estrutura social, recaindo sobre os homens negros a culpa. Angela Davis (2016) dá o exemplo de mulheres negras estupradas por policiais que não podem contar com nenhum suporte institucional e que, portanto, se tornam casos não contabilizados e evidenciados. Além disso, muitas vezes esses abusos eram mais discretos e apoiados por políticos, jornalistas, intelectuais, a partir do mito da imoralidade da mulher negra. MULHERES, TRABALHO E ACUMULAÇÃO PRIMITIVA A intelectual, travesti e prostituta Amora Moira, atriz e performer trans não-binária Wallace Ruy, youtuber transsexual Mandy Candy, consultora de gênero e sexualidade Bárbara Aires e outras ativistas trans entrevistadas em Primavera das Mulheres (2017) desafiam a pensar a categoria “mulher” para além da dimensão biológica do gênero, do que é aceitável enquanto um “corpo feminino” e da dimensão política da “mulheridade”. “E não sou uma mulher?” (1851) de Sojouner Truth, abolicionista estadunidense pioneira, e “Se não sou uma mulher” (2009) de Laverne Cox, atriz estadunidense contemporânea, provocam a ideia de “mulher” ao enxergá-la a partir da perspectiva racial e transsexual, respectivamente. Ao questionar o que cabe, à época, de fato e na linguagem, no conceito de mulher e provocar a reflexão a partir de experiências não universais, Sojouner e Cox, nela inspirada, deslocam a categoria de mulher a partir da raça, da condição de trabalhadora e de pessoa transsexual – que desafia o binarismo biologicizante. Mulher, assim, se constrói enquanto categoria sócio-histórica e política que nomeia a partir da base experiências silenciadas e resistentes, que estão ali latentes cutucando o que hegemonicamente se considera mulher. Este deslocamento permite que pensemos quais lugares são ocupados – e negados – “pelas mulheres que não existem”. Quando sua força de trabalho e seu corpo precisam ser explorada a preço mais baixo sua cor serve como justificativa para abusos e discriminação racial Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 153 e sexual, é quando são consideradas mulheres. No entanto, ao disputar a linguagem e a política, engajar-se publicamente, pleitear a vida em termos de direito não são consideradas mulheres. Em razão das questões levadas no documentário, é necessário compreender a construção da mulher na sociedade capitalista para que possamos compreender as bases que fundam as lutas feministas. Nesse caso, o debate da divisão sexual do trabalho dá luz à violência direcionada às mulheres em relação ao processo de acumulação de capital. A professora e feminista italiana Silvia Federici (2017) expõe a relação entre sexismo e acumulação a partir da qual podemos compreender a construção da subordinação das mulheres à lógica do patriarcado como forma de garantir o desenvolvimento do capitalismo. Quando se olha para o capitalismo a partir da perspectiva das mulheres, percebe-se que as mulheres sempre foram consideradas seres inferiores, sempre foram muito exploradas, mesmo quando os homens conquistavam certo grau de liberdade. Por isso, o desenvolvimento capitalista, visto dessa perspectiva, não poderia criar as condições para a libertação humana, como indicaria Marx. Sempre existiu uma forma particular de exploração violenta das mulheres, e é a partir dessa perspectiva que a autora analisa a história das relações capitalistas (FEDERICI, 2017). Ao analisar a acumulação primitiva a partir da ótica das mulheres, a autora percebe que a construção de uma ordem patriarcal que as exclui do trabalho assalariado e as coloca como subordinadas aos homens está ligada à mecanização do corpo da mulher enquanto máquina de produção de novos trabalhadores, que destrói o controle que tinham sobre sua função reprodutora (FEDERICI, 2017). Angela Davis (2016) trata do assunto a partir da perspectiva da mulher negra escravizada, que passou a ter a sua capacidade reprodutora valorizada diante da Abolição do tráfico internacional de escravos, uma vez que elas representavam uma alternativa para repor essa população escravizada. Isso acabou por valorizar a capacidade de reprodução das mulheres negras escravizadas, fazendo com que elas passassem a ser avaliadas a partir de sua fertilidade: as que apresentavam maior fertilidade eram as mais “valiosas”, o que não significa que adquirissem uma condição mais respeitável na sociedade do que enquanto trabalhadoras escravizadas. Isso porque, para os proprietários, elas não eram vistas enquanto mães, mas enquanto instrumentos capazes de ampliar a força de trabalho escravizada para eles, eram vistas como meramente reprodutoras (DAVIS, 2016). Com isso, se constrói tanto a base para o desenvolvimento do capitalismo quanto de um regime patriarcal mais opressor que confina as mulheres ao trabalho reprodutivo, onde a vida das mulheres se subordina à produção do lucro. Portanto, podemos compreender Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 154 que o capitalismo só se desenvolve graças às enormes desigualdades socialmente construídas (FEDERICI, 2017). Este debate pode ser complementado pela leitura de Angela Davis (2016), sobre o contexto norte-americano, onde a autora expõe o quanto a mulher negra significou uma capacidade maior de acumulação pela intensificação da opressão. No momento inicial do processo de industrialização parte da força de trabalho era exercida com trabalho escravo e parte com trabalho livre. Apesar de mulheres, homens e crianças terem sido solicitados de forma igual para compor a força de trabalho nas indústrias, por vezes as mulheres e crianças eram as pessoas que faziam o trabalho mais pesado, como mostra Davis (2016) a partir de Robert S. Starobin em Industrial Slavery in the Old South. Esse mesmo autor mostra como as mulheres escravizadas eram mais lucrativas do que os homens já que mulheres e crianças demandavam menor custo de manutenção e exploração. Ou seja, as mulheres e crianças reduziam os custos de mão de obra, portanto eram as pessoas mais visadas para a exploração. Para além de representar a intensificação da exploração das mulheres como forma de garantir e expandir a acumulação, a industrialização atuou conjuntamente com a ideologia da feminilidade. O processo de industrialização também representou uma nova etapa da divisão racial do trabalho para além da divisão sexual: se por um lado as mulheres brancas eram vistas na sociedade enquanto mães e donas de casa, retiradas do trabalho produtivo e inseridas na ideologia da feminilidade, essa mesma construção social não servia para a mulher negra, que trabalhava nas indústrias, no campo e no trabalho doméstico para famílias brancas, em condições similares ao de escravidão (DAVIS, 2016). Essa diferenciação racial do papel social desempenhado pelas mulheres e esse padrão de forte presença do trabalho na vida das mulheres negras tem suas origens na escravidão, pois “como escravas, essas mulheres tinham todos os outros aspectos de sua existência ofuscados pelo trabalho compulsório”(DAVIS, 2016, p. 17). A população negra escravizada era vista como propriedade, e isso servia também para o caso das mulheres negras, pois, para os proprietários, elas eram antes de tudo uma propriedade desprovida de gênero. Por outro lado, a ideologia da feminilidade “enfatizava o papel das mulheres como mães protetoras, parceiras e donas de casa amáveis para seus maridos” (DAVIS, 2016, p. 18) no caso das mulheres brancas, representando uma forte diferença em relação à mulher negra. O trabalho doméstico que absorve grande parte da força de trabalho feminina e negra quando esta passa a ser uma força de trabalho “livre” se mostra, na verdade, enquanto extensão do modelo de escravidão e perpetuação da reprodução de desigualdades sociais e opressão com Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 155 as mulheres negras. Enquanto as mulheres brancas se recusaram a fazer trabalhos domésticos, por quase um século as mulheres negras não conseguiram escapar desses serviços domésticos que representavam a única forma de sustento, apesar das péssimas condições de trabalho viviam nas casas onde trabalhavam e tinham turnos diários de 14 horas de trabalho (DAVIS, 2016). Nesse contexto, percebe-se uma grande diferença entre a luta feminista branca e negra: o feminismo branco era opressor em relação às mulheres negras, suas lutas não eram contempladas pelo feminismo branco pois elas não eram vistas por suas patroas brancas enquanto mulheres ou sequer seres humanos, mas como serviçais desprovidas de direitos. Nesse sentido, o feminismo branco corroborava para as opressões direcionadas às mulheres negras e não enfrentava a instituição da escravidão (DAVIS, 2016). Esse olhar histórico da diferenciação das lutas feministas em relação às mulheres negras e brancas nos permite dialogar com o tema do “direito à cidade” levantado no documentário Primavera das Mulheres (2017), onde as participantes discutem as condições sociais que permitem ou inibem o direito à cidade feminino. Nesse sentido, é levantada a questão de vagas em creches e escolas em turnos que permitam com que as mulheres, majoritariamente responsáveis pelos filhos (infelizmente), possam ter o seu direito à cidade garantido. No documentário, Djamila Ribeiro comenta sobre a necessidade desse suporte do Estado em fornecer esses espaços para que as mulheres possam seguir com seus estudos e trabalho, uma vez que o papel da mulher na sociedade é naturalizado enquanto um lugar de cuidado para com seus familiares (não apenas de seus filhos, mas de seus parentes de modo geral, cuidados que sempre recaem sobre as mulheres) “porque quando a gente não tem onde deixar os nossos filhos, quando não tem vagas suficientes nas creches, isso significa que a mulher tem o seu direito à cidade impedido. Porque como que ela vai sair de casa pra trabalhar, como que ela vai sair pra estudar se ela não tem com quem deixar a criança?”, questiona. Djamila Ribeiro reforça que quando não existe esse suporte, as mulheres acabam ocupando esse lugar do cuidado por uma falta de escolha, por uma imposição da sociedade machista que coloca como dever e obrigação da mulher se responsabilizar pelo cuidado do outro, perpetuando as disparidades entre mulheres e homens uma vez que isso permite com que os homens não tenham que lidar com parte de suas obrigações e possam dedicar mais tempo para si, para seu trabalho e para seus afazeres pessoais. Como diz Djamila, isso representa o caso de “mulheres que se emancipam, mas que se emancipam as custas da opressão de outras mulheres”, evidenciando as disparidades raciais dentro da luta feminista. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 156 CONCLUSÃO O documentário Primavera das Mulheres foi produzido por duas mulheres feministas, ativistas virtuais atentas às demandas, vivências e reivindicações das mulheres de que estão ocupando as redes e as ruas, por direitos, necessidades, disputas e possibilidades de ser mulher, dentro e para além dos locais de trabalhos, territórios de moradia, amar e existir. Os debates apresentados pelas mulheres entrevistadas e a produção feminista suscitaram as reflexões apresentadas sobre contar a própria história perante os silenciamentos, especialmente para as mulheres negras. Também sobre os atravessamentos da acumulação primitiva para mulheres negras e mulheres brancas. As disparidades entre as mulheres brancas e negras , reforça o lugar da mulher negra na base da pirâmide da hierarquia social. Quando mulheres brancas conseguem sair desse lugar do cuidado, elas o fazem às custas de outras mulheres negras que passam a se encarregar desse trabalho. Continuação da lógica escravocrata, a mulher branca com poder aquisitivo contrata uma mulher negra para cuidar de filhos e filhas, animais de estimação, familiares, casa, corpo, unha, cabelos, depilação, alimentação e tantos outros trabalhos domésticos e de cuidado para que possa trabalhar ou estudar. Enquanto isso, a mulher negra resiste e cuidar dos próprios filhos, da própria família, da família e dos filhos de outras pessoas, trabalha dentro e fora de casa, estuda, faz doutorado, mantém diário, publica livro e conta a própria história. Portanto, é preciso pensar os feminismos diversos e suas pautas específicas, desconstruindo suas devidas naturalizações e problematizando os privilégios e perpetuação de hierarquias sociais nestas pautas. O feminismo branco, quando deslocado e não integrado ao feminismo negro, não contribui para a eliminação das diversas opressões operantes, e se torna um feminismo elitista e também opressor. O que o estudo nos mostra é, portanto, a importância da interseccionalidade no feminismo, pois ele não é apenas gênero, mas também raça e classe. Isso porque o machismo impacta de formas diversas e em intensidades diversas mulheres negras e brancas, mulheres pobres e ricas, refletindo a complexidade na nossa hierarquia social. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANGELOU, Maya. Eu sei porque o pássaro canta na gaiola. São Paulo: Astral Cultural, Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 157 2018 DAVIS, Angela. Mulher, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016. EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2006. FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017 FERRERO, Clara. 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THINK OLGA. O machismo também mora nos detalhes. THINK OLGA, 2015. Disponível em: <https://thinkolga.com/2015/04/09/o-machismo-tambem-mora-nos-detalhes/>. Acesso em 03 mar 2019. THUTH, Sojouner. E não sou uma mulher?Discurso proferido como uma intervenção na Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, Estados Unidos. 1851Disponível em: <https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/>. Acesso em 3 mar 2019 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 158 PRÁTICA DE PROFESSORA PESQUISADORA E PRÁTICA DE MILITANTE: CAMINHOS QUE SE INTERCRUZAM Ayala de Sousa Araújo1 RESUMO Este artigo realiza uma breve reflexão sobre a interseccionalidade entre os eixos raça/etnia, gênero, sexualidades e classe a partir do lugar de professoras pesquisadoras da Educação Básica e Ensino Superior. Nossa atualidade mais que nunca nos conclama para a defesa radical da democracia, da luta antirracista, da ação-reflexão crítica e da participação ativa em processos de mudanças estruturais em nossas relações, espaços e na sociedade. E isso perpassa pela ação-formação política, prática militante-pedagógica, de nossas professoras pesquisadoras no processo revolucionário. PALAVRAS-CHAVE: Pesquisadora Acadêmica; Militância; Feminismo Negro; Estudos Decoloniais. O CONTEXTO EDUCACIONAL NA ATUALIDADE: URGÊNCIA POR UMA ESCOLA DE CULTURA CIDADà ANTIRRACISTA Presenciamos no meio escolar/acadêmico uma forte presença das leis de mercado e a ainda forte presença do discurso colonial nas práticas de ensino e pesquisa nos cursos superiores e nas práticas curriculares dos demais níveis da educação como um todo. Isso tem repercutido na desconsideração por trabalhos e tentativas de desconstrução e reconstrução de um ambiente efetivamente engajador, democrático, com práticas efetivas de cidadania. Este trabalho portanto, tem como objetivo apresentar uma breve reflexão sobre a importância da luta urgente por uma escola cidadã antirracista na perspectiva freiriana e a importância da mulher, especificamente da mulher negra professora acadêmica e militante na construção de um espaço de conquistas e reconhecimento de lugar de fala, produção e solidariedade, cultura antirracista, nesta escola cidadã. De acordo com o ideário freiriano podemos dizer que a luta por uma escola, por um espaço acadêmico cidadão e antirracista, é a luta por uma escola de natureza democrática: inclusiva, aberta e que respeita a diversidade, que promove a liberdade e a responsabilidade. Mais precisamente, “é aquela que se assume como centro de direitos e deveres. É uma escola coerente com a liberdade. É uma escola de comunidade, de companheirismo, que vive a experiência tensa da Democracia”. (Entrevista de Paulo Freire no Instituto Paulo Freire, 1997). 1 Instituto Federal do Paraná. Pedagogia (UESC). Mestre em Educação (UFS). Especialização em Educação e Relações Ético-Raciais (UESC). Mestre em Educação (UESC). E-mail: sousayala@gmail.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 159 Portanto, uma escola que problematiza as questões sociais, raciais, ambientais, entre outras, presentes na sociedade. Defendemos que como foco principal na construção de uma escola que viva a experiência tensa da democracia, na construção da cultura cidadã antirracista é preciso a problematização e (des)construção de alguns conceitos como raça, colonialidade, machismo e feminismo, feminismo interseccional (negro, LGBTQIA+2, indígena), homofobia, fascismo, etc. Realizamos um recorte de breve reflexão e desconstrução sobre os conceitos de raça, colonialidade e feminismos na construção desta escola cidadã antirracista. Umas das especificidades dada ao conceito de raça no Brasil foi e ainda é a ausência de relação entre racialidade e cidadania. Presenciamos na sociedade brasileira uma longa experiência histórica de uma sociedade caracterizada por uma intensa mistura racial, mas acompanhada da manutenção da hierarquia social justificada pela ideologia do branqueamento e da democracia racial. O mito da democracia racial se justifica na crença difundida por alguns estudiosos de que no Brasil não temos racismo, não temos discriminação racial. Afirmam que os brasileiros não são afetados em nada por causa da raça (conceito apresentado inicialmente pelo sociólogo Gilberto Freyre, na sua obra Casa Grande e Senzala, publicado em 1933). A Ideologia do branqueamento se caracteriza pela internalização, por negros, de modos dos brancos e perda dos modos da cultura da matriz ou um clareamento visível no fenótipo da cor da pele da população. Branqueamento como lugar de privilégios de status. Para se ser aceito, para higienizar a sociedade. É a defesa da ideia de que somos miscigenados. É falso afirmar que o Brasil não é um país racista. Não é necessário nem citar dados para concluir que o racismo está estampado no nosso dia a dia: basta ver a situação dos negros o que revela que o racismo é institucional e estruturante da nossa sociedade. Negros são maioria no país e, em disparada, a maior população carcerária. São vítimas de um genocídio grande, aberto, banalizado. Vivem em favelas e periferias em condições subumanas. O acesso aos serviços públicos é ruim. Diariamente, são agredidos pelo Estado de farda e por uma mídia fascista. Sofrem ataques racistas há gerações. De acordo com Lélia Gonzalés, o racismo no Brasil se manifesta por ‘denegação’, conceito psicanalítico caracterizado pela rejeição de algo que o constitui. E esta denegação se manifesta em nosso dia a dia na ausência da relação, na ausência da coerência entre racialidade e cidadania. 2 A sigla LGBTQIA+ aqui empregada compreende: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais ou Transgêneros, Queers, Intersexuais ou Hermafroditas, Assexuados, entre outras/as. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 160 Portanto, é preciso pensar radicalmente a partir do lugar onde estamos. Precisamos, portanto pensar o Brasil, a partir de um projeto nacional. Pensar a educação a partir de pedagogos e não de economistas. Verba é necessária, mas verbo também. Por isso, a necessidade de nesse processo problematizar e descontruir outros dois conceitos: o de colonialidade e de feminismos, nas práticas educacionais. Consideramos que educar significa socializar e capacitar individualmente o sujeito para a prática de seus direitos e deveres. Considerando a cultura da escola cidadã antirracista que defendemos é preciso deslocar a forte presença e efeitos do pensamento pedagógico colonial. A colononização é um projeto ocidental. O pensamento e práticas colonial se caracterizam por conferir à Europa como centro privilegiado de enunciação de referência epistemológicas, modos de vida, padrão de raça, que se estabelece como hegemonia. No sistema colonial dois processos se interconectam: genocídio e feminicídio em relação ao que se foi estabelecido como padrão branco, europeu. Percebemos isso bem presente no processo de colonização da América Latina e no Brasil. Cabe portanto a escola cidadã questionar a narrativa ocidental da modernidade e, a partir disso, revelar o subalterno como parte constitutiva dessa experiência histórica. Contribuir com processos de visibilidade, participação e emancipação do subalterno, subalterno utilizado aqui de acordo com o conceito de Gramsci. Defendemos nesse sentido o estudo, apreensão e inserção do pensamento epistemológico pós-colonial e decolonial como fundamentação teórico-prática. Sobre pensamento pós-colonial entendemos ser uma produção descentralizada, a partir das vozes subalternas e de povos diaspóricos. E o pensamento decolonial como um projeto epistemológico que busca produzir conhecimento a partir da experiência e da realidade da América Latina. Tais pensamentos são importantes no deslocamento da hegemonia colonial etnocêntrica (Europa como centro, como etnia superior) que ainda permeia os espaços acadêmicos/escolares e institucionais na sociedade brasileira. Nessa direção lutar pelo lugar de fala, construção de conhecimentos e a prática militante de professoras pesquisadoras negras como lócus de enunciação. O foco aqui na professora pesquisadora militante negra se deve por duas justificativas. Primeiro porque de acordo com os dados da educação do Brasil, a Educação Básica brasileira tem maior número de mulheres professoras, notadamente mulheres negras. Segundo porque, na contramão no Ensino Superior púbico há poucas mulheres negras professoras. Das que conseguem estar neste espaço, pouquíssimas conseguem reconhecimento e visibilidade de seus conhecimentos de suas práticas, trajetórias e engajamento político em movimentos de luta pelas pautas das mulheres Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 161 negras, indígenas, LGBTQIA+. Portanto, problematizar e desconstruir o conceito de feminismo. Precisamos compreender e trabalhar o feminismo na perspectiva interseccional (Ângela Davis, Mara Viveros Vigoya), a ideia de que é preciso entender tanto a teoria como a prática do feminismo a partir da intersecção entre os eixos: raça, classe, gênero, em conjunto. A interseccionalidade consiste em apreender as relações sociais como construções marcadas pelas diferenças de classe, gênero e raça. Tais diferenças são criação e estruturantes do modelo capitalista que permeia nossa sociedade. A interseccionalidade coloca como premissa questionar quem é o sujeito político do movimento feminista, da causa antirracista. Pois, a vivência cotidiana da mulher negra é marcada por uma matriz de dominação (Patricia Hill Collins, 1990). Esta matriz de dominação é um movimento sensível a todos os tipos de exclusão, opressão e marginalização de classe, sexismo, racismo, homofóbico, idade, orientação sexual, religião, origem étnica. Nesse contexto as pessoas vivenciam e resistem às opressões em três níveis: no nível da biografia pessoal (experiências concretas, valores, motivações, emoções); no nível do grupo, da comunidade e contexto cultural marcado pela raça, classe e gênero; e no nível sistêmico das instituições sociais. Portanto um posicionamento feminista antirracista envolve questionar o patriarcado de dominação étnica e de classe que sustenta o sistema capitalista e neste sentido lutar para transformar deste sistema que excluí, discrimina, aumenta a cada dia as desigualdades sociais, étnicas, de gênero, sexistas, de classe, etc. Pois, si entendemos el feminismo como toda lucha de mujeres que se oponen al patriarcado, tendríamos que construir su genealogía considerando la historia de muchas mujeres en muchos lugares-tiempos. Este es para mí uno de los principales gestos éticos y políticos de descolonización en el feminismo: retomar distintas historias, poco o casi nunca contadas (CURIEL, 2009). Enfim, é preciso estimular as produções antirracistas. Ouvir as mulheres negras em relação às nossas urgências, demandas, contribuir com nosso empoderamento para conquistas de espaços de poder na luta contra as violências contra as mulheres, recorte racial (feminicídio), aborto, desigualdades no campo da raça, políticas públicas, discussão sobre a necessidade de garantias trabalhistas, saberes comunitários (indígenas, afrobrasileiros, populares, urbanos), profissionais do sexo, mulheres negras transexuais, empregadas domésticas, entre outras. E sobre as estratégias de resistências concretas de cada uma das mulheres negras, entre outras pautas na luta antirracista. As políticas de ação afirmativas implantadas no Brasil criou a demanda por novas publicações teóricas por pesquisadores negros e negras. E estas publicações precisam ser Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 162 socializadas, dialogadas, refletidas nas escolas, academias, estimulando novas produções. O ENGAJAMENTO POLÍTICO DE PROFESSORAS PESQUISADORAS MILITANTES NO ESPAÇO ACADÊMICO/ESCOLAR O conhecimento é vital para a emancipação, libertação das pessoas. A apropriação do conhecimento nos permite nos conhecer, conhecer a realidade, transformar a realidade e nos transformar dialeticamente. Atualmente quando somos a cada dia invadidos por inúmeras informações, nem sempre “verdadeiras” ou comprometidas com a verdade, com a formação, mais que nunca precisamos de escolas e professores comprometidos com a teoria e prática da educação cidadã antirracista. É preciso que as professoras tenham consciência da importância do seu trabalho na construção e desenvolvimento de um projeto nacional. Um projeto nacional de uma sociedade mais justa, democrática, cidadã, solidária, sustentável para todos e todas. E da escola pública como parte importante neste processo, por ser uma instituição laica, diversa. Um caminho é o de desconstrução da forte presença do etnocentrismo nos currículos escolares. Por isso descolonizar o pensamento que molda seu fazer e ajudar na descolonização do pensamento dos/as estudantes. Abrir o pensamento para diversidade cultural, de sua visibilidade, reconhecimento e produções. Lutar pela reorientação do currículo escolar a partir do diálogo, debates pela proposição de uma alternativa ao currículo presente hegemônico nas escolas e academias. A importância da luta, resistência e desenvolvimento político das professoras se justifica quando somos maioria na Educação Básica e minoria na Educação Superior. Em pesquisa no site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), de acordo com o Censo Escolar 2018, divulgado em janeiro de 2019 pelo Ministério da Educação, cerca de 80% dos 2,2 milhões de docentes da educação básica brasileira são do sexo feminino. Já de acordo com o Censo da Educação Superior 2016, tanto na rede privada quanto na rede pública, entre os 397 mil docentes, as mulheres representam cerca de 45%. Ainda nesta linha de reflexão dados do Censo da Educação Superior de 2016, revelam que as mulheres representam 57,2% dos estudantes matriculados em cursos de graduação. Já na docência, os Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 163 homens são maioria. Dos 384.094 docentes da Educação Superior em exercício, 45,5% são mulheres. Se há grande percentual de professoras negras na educação Básica, na Educação Superior sua presença é muito baixa. Além de poucas professoras negras no Ensino Superior ainda há o desprestígio à sua história, mobilidade social e acadêmica e de suas produções. Precisamos reverter este quadro. É preciso que as professoras possam protagonizar o discurso no âmbito acadêmico/escolar dando lugar aos estudos pós-coloniais, decoloniais, transculturais e de subalternidade no centro na construção dos sujeitos e seus contextos de vivência, lutas, necessidades, potencialidades, pautas de reinvindicações, etc. Isso não é fácil porque o ideário colonial presente nas políticas educacionais e o forte processo de mercantilização da educação evocam ao imediatismo aos aligeiramentos, à pressão pelo treinamento de estudantes para garantir bons índices educacionais e não a formação cidadã, a prática pedagógica que articula os conhecimentos das ciências à realidade. Porém, como nos diz Celso Vasconcellos, precisamos urgentemente agir em nossa zona de autonomia relativa. Contribuir na formação de estudantes críticos, reflexivos a partir das condições de trabalho que temos e em paralelo nos engajarmos via sindicatos, partidos políticos, movimentos sociais, por melhores condições de trabalho, melhorias salariais, resgate do verdadeiro papel da escola na atualidade. Alguns caminhos possíveis seria a crítica e a desobediência epistêmica no sentido de deslocar o pensamento colonial por meio dos estudos voltados a instersecconalidade, transculturalidade, trasndisciplinaridade, a defesa do lócus de enunciação por meio da socialização, diálogo das produções, conhecimento de mundo, político de homens e mulheres negros/as, indígenas, LGBTQIA+. Nesta direção e paralelo a isso, contribuir para a efetivação nas práticas escolares da Lei 10.639/03 e da Lei 11.645/08 para que estas possam ganhar mais força nas questões curriculares. Superar o binarismo teoria e prática, produção acadêmica e ativismo social produzindo teorizações particulares de nossas lutas experiências históricas e políticas. Estabelecer a crítica ao discurso linear da história de construção do colonialismo, dos feminismos. Contribuir na construção e desenvolvimento de uma proposta de feminismo que articule as questões de raça, etnia, classe, sexualidade e lugar de origem como pilares centrais da luta política em um território em particular como o da América Latina e África, algumas principais áreas da Ásia, Pacífico e Caribe. Politizar a causa do feminismo interseccional: mulheres negras, indígenas, prostitutas, lésbicas, heterossexuais, ateias e católicas, dos movimentos sociais, trabalhadoras rurais, da Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 164 universidade e do poder público etc. PROFESSORA PESQUISADORA– PROFESSORA MILITANTE: PRÁTICAS QUE SE INTERCRUZAM Acreditar e lutar por uma educação cidadã antirracista implica na defesa da inseparabilidade entre educação e política. A política é vida porque implica na tomada de posicionamentos na vida. A educação não é, nunca foi neutra. Não há como educar separado de um projeto de sociedade e um projeto de formação de pessoas que queremos para esta sociedade. Uma sociedade mais justa, democrática, antirracista e sustentável para todos e todas. A escola é lugar de diálogos, de tensões, das diversidades. Portanto, educar para a cidadania antirracista implica na responsabilidade ética da defesa dos direitos humanos o que quer dizer que a prática pedagógica desenvolvida precisa fazer dialogar os conhecimentos populares e conhecimentos formais. Se abrir aos movimentos sociais que lutam em defesa de um mundo melhor. Além disso, como professoras comprometidas com a mudança e construção desta sociedade para todos e todas é necessário o engajamento político para além da escola. O engajamento em sindicatos, movimentos sociais, partidos políticos e/ou o comprometimento na luta antirracista a partir do seu planejamento, dos estudos e socializações das produções antirracistas. Tentar em meio a uma carga horária extensa também produzir e incentivar a produção de conhecimentos comprometidos com a luta antirracista. Reinvindicar e atuar em espaços de decisão coletivos em nossa sociedade. Nas tomadas de decisões relativos aos direitos humanos. Considerando que a prática de militante é apreender por meio de seu fazer as bases concretas para (re)organizar a luta política contra a dominação do poder colonial. CONSIDERAÇÕES FINAIS Falar da importância da luta urgente por uma escola cidadã antirracista implica falar da importância da mulher, especificamente da mulher negra professora acadêmica e militante na construção de um espaço de conquistas e reconhecimento de lugar de fala como lócus de enunciação, produção e solidariedade na construção de cultura antirracista. Implica pensar o lugar das mulheres negras no espaço escolar, educacional como farol por meio de suas práticas, experiências de mulheres negras em seu caminho pessoal, social, acadêmico, militante, ação Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 165 política, o que estão denunciando, entre outras pautas de luta. Como professoras, pensar nosso lugar de mulheres implica pensar continuamente nosso lugar no trabalho pedagógico. O nosso lugar na definição da teoria e prática da construção curricular, das políticas educacionais. Estabelecer a crítica sobre como a educação pública antes inacessível a maioria e, atualmente precarizada, mercantilizada e na construção de uma proposta alternativa, radical, voltada a formação cidadã antirracista. Implica em resistências e ação política dentro e fora do espaço escolar, acadêmico. Sair do anonimato das produções acadêmico-científicas. Tornar nossa prática como orientação, como caminho na luta contra o epistemicídio dos nossos saberes e produções expandindo isso para outros espaços de poder. Assumir o desafio de sermos intelectuais negras na participação e na produção de saberes, conhecimentos, em meio a uma jornada dupla, tripla de trabalho por conta dos diversos papeis sociais que assumimos, pois não dá para esperar por condições ideais. Reconhecer nosso lugar de professoras, notadamente professora negras em uma sociedade reconhecidamente racista, patriarcalista, machista, homofóbica. Para isso se colocar criticamente frente aos golpes que a educação pública vem sofrendo: mercantilização, apropriação neoliberal nas políticas educacionais, desvalorizações salariais, contra as perseguições e desonestidades intelectuais, aos cortes no ensino, pesquisa e extensão, contra o neotecnicismo pedagógico pois faz parte da essência do nosso trabalho a autonomia, ser contra ao projeto escola sem partido, pois a escola é lugar do debate, do diálogo da formação do pensamento crítico. Defesa radical da democracia, da descolonização educacional e da formação cidadã antirracista. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROSO, J.M. Feminismo decolonial: una ruptura con la visión hegemónica eurocéntrica, racista y burguesa. (2014). Entrevista con Yuderkys Espinosa Miñoso. Iberoamérica Social: revista-red de estudios sociales (III), pp. 22-33. COLLINS, Patricia Hill. Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the Politics of Empowerment. Boston: Unwin Hyman, 1990. CURIEL, Ochy. Descolonizando el feminismo: una perspectiva desde America Latina y el Caribe. In: Primer Coloquio Latinoamericano sobre Praxis y Pensamiento Feminista. Buenos Aires, Junio, 2009. DAVIS, Ângela. Mulheres, raça e classe. Tradução: Heci Regina Candiani. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016. GONZALÉS, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. IV Encontro Anual da Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 166 Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais. Rio de Janeiro: 29 a 31 de Out de 1980. INEP. Mulheres são maioria na Educação Superior Brasileira. Censo. (08 Março 2018). Disponível em: http://portal.inep.gov.br/artigo//asset_publisher/B4AQV9zFY7Bv/content/mulheres-sao-maioria-na-educacao-superiorbrasileira/21206. Acesso em: 09 Março 2018. VIGOYA, Mara Viveros. La interseccionalidad: perspectivas sociológicas y políticas. Ponencia presentada en el Seminario Internacional "Direitos Sexuais, Feminismos e Lesbianidades - Olhares diversos". Cedefes, Brasil. 2010. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 167 SAÚDE MENTAL E CINEMA: A POPULAÇÃO NEGRA NA DINÂMICA COLONIAL-CAPITALISTA BRASILEIRA Cláudio Almeida Silva Filho1 RESUMO O negro é reconhecido socialmente quando ocupa o lugar destinado a ele na dinâmica colonial-capitalista, mas sempre será lido como um violador em potencial. Mediante a isso, na contemporaneidade, o negro encontra-se reconhecido como humano, mas vivencia múltiplos processos de exclusão e opressão na tentativa de exercer e garantir a sua cidadania. Dessa maneira, o artigo dialoga acerca da imagem do negro no cinema e da problemática em volta da saúde mental. PALAVRAS-CHAVE: Colonial-capitalista; Cinema; Saúde Mental. ABSTRACT The Negro is socially recognized when he occupies the place destined to him in the colonial-capitalist dynamics, but will always be read as a potential violator. Through this, in the contemporaneity, the Negro is recognized as human, but experiences multiple processes of exclusion and oppression in the attempt to exercise and guarantee their citizenship. In this way, the article talks about the image of the black in the cinema and the problematic around the mental health. KEY-WORDS: Colonial-capitalist; Movie theater; Mental Health. INTRODUÇÃO Serão analisados a partir de A chegada de Arthur Bernardes a Belo Horizonte2(1921), O Segredo do Corcunda3(1925) e Barravento4 (1962) a representação do negro realizada pelo cinema ao longo dos anos. Cada obra apresenta uma expressão diferente da população negra em seus múltiplos aspectos apontando para a leitura social de uma determinada época. No final do século XIX em quase todos os países europeus e nos Estados Unidos se acentuou as pesquisas para a elaboração de imagens em movimento. A burguesia desenvolveu muitas maquinarias e técnicas que facilitaram o processo de dominação cultural, criando um universo que expressaria ideologicamente e esteticamente o seu triunfo. Nesse movimento a burguesia praticava a literatura, música, teatro, “mas essas artes já existiam antes dela. A arte que ela cria é o cinema” (BERNARDET, 2006, p. 15). A concepção de ideologia adotada nesse estudo é, segundo Chauí, “um ideário histórico, social e político que oculta à realidade, e esse 1 Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (PPGCS/UFBA) e graduado em Ciências Sociais pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). E-mail: almeidafilho.claudio@gmail.com. 2 Dirigido por Igino Bonfioli 3 Dirigido por Alberto Traversa 4 Dirigido por Glauber Rocha Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 168 ocultamento é uma forma de assegurar e manter a exploração econômica, a desigualdade social e a dominação política.” (CHAUÍ, 2001, p. 7). A violência sistêmica, estimulada massivamente pelas mídias hegemônicas e pelas políticas governamentais, produzem processos de desumanização, violação de direitos, exclusão, com conteúdos de gênero, raça/etnia, sexualidade, classe e geográfico. A fala massiva superficial, estabelece relações monocausais que funcionam numa dinâmica tautológica, onde a pessoa e o seu território são as causas dos múltiplos processos de violência e exclusão que lhe acometem, desta forma, escamoteia-se os mecanismos agenciados pelos dispositivos de filtragem social que articulam a violência social. Promovendo-se, nesse contexto, uma seletividade à aversão ou tolerância sobre as formas expressivas dos habitantes da cidade, segundo as suas diferenças nos modos de ser, estar e conviver (MBEMBE, 2014; BRASIL, 2011). Diante disso, os casos de desigualdades e iniquidades em saúde atingem, majoritariamente, os negros, bem como, os casos de violência homicida estão centrados num grupo com perfil específico: Jovens do sexo masculino, negros, moradores de territórios subalternizados, que são vitimados pela ausência assistencial e pelas intervenções jurídicopoliciais do Estado, que busca assujeitar pela negação da cidadania (direitos) e desumanizar pelo controle, criminalização e estigmatização das expressividades e formas de convivência oriundas das populações não-brancas, que coabitam as cidades (MBEMBE, 2014; BRASIL, 2011). Desta forma, o presente artigo busca investigar a inserção do negro na dinâmica colonial-capitalista brasileira, bem como analisar a imagem da população negra em três obras cinematográficas desenvolvidas em épocas distintas. As duas primeiras elaboradas em um período onde as discussões acerca da construção da identidade nacional estavam sendo debatidas, a segunda, produzida na década de 1960 momento de profundas rupturas no modo de criação artística, a exemplo, do cinema novo. O intuito da análise fílmica é evidenciar as diferenças na representação da população negra pelo cinema, buscando demonstrar como a arte pode possuir um papel importante no desenvolvimento de determinados imaginários sociais, a exemplo, das produções de Igino Bonfioli e Alberto Traversa, assim como, de crítica no caso da produção de Glauber Rocha. A IMAGEM DA POPULAÇÃO NEGRA EM TRÊS OBRAS CINEMATOGRÁFICASE SUAS REPERCUSSÕES NA SAÚDE MENTAL Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 169 O curta-metragem5 produzido por Igino Bonfioli destaca a recepção feita para a chegada de Arthur Bernardes em Belo Horizonte. Na obra, os negros aparecem no enquadramento da câmera à margem da tela, nas laterais, ao fundo ou como soldados. Os documentários no início do século possuíam a função de exibir eventos desenvolvidos por autoridades políticas e pela burguesia, a exemplo, de desfiles, festas comemorativas, inaugurações, etc (CARVALHO, 2003, p. 162). Essa expressão é singular, porque representa a sociedade brasileira pós-abolição em um ambiente socialmente marcado por uma divisão racial. Ao registrar as imagens da celebração de um membro da elite política, ao mesmo tempo em que apresenta o negro em posições secundárias, o documentário realiza uma leitura social dos antagonismos do país. A obra viabiliza algumas poucas imagens da população negra, e quando aparecem na tela são em momentos rápidos quase imperceptíveis. O que mais é focalizado pela câmera gira em dois eixos: a representação da elite na figura de Arthur Bernardes e a força policial dimensionada pelos soldados. Aqui o espaço social brasileiro da década de 1920 é exibido através das posições exercidas pelos sujeitos, isto é, os negros como agentes de contenção e a burguesia como elemento central. Esse cenário representa a imagem do colonialismo brasileiro, onde apresenta o negro socialmente a serviço da elite ou sub-representado. Já O Segredo do Corcunda (1926) é um filme que narra a história de Marcos e João, respectivamente pai e filho. O enredo se desenvolve através da expulsão dos dois por Pedro, capataz da fazenda, devido a uma discussão. Entretanto, o único personagem negro na trama com função dramática é Benedicto, o qual trabalha para o dono da fazenda. Ele aparece em algumas cenas sempre exercendo um papel cômico, ou seja, o componente de ruptura com a narrativa fílmica. Benedicto é colocado inicialmente como “destemido bolieiro, que sente um fraco pelas moças e um fraco pela pinguinha” (00:02:31). Nessa cena o personagem é apresentado em uma venda bebendo, e inicia um diálogo com Carolina por quem está apaixonado, em seguida é expulso do local por outra pessoa incomodada com a sua presença no estabelecimento. Outras sequências em que Benedicto aparece é levando a charrete do dono da fazenda e sua filha, e tendo delírios devido à bebida. Na primeira, um touro avança sobre a filha do fazendeiro, e Benedicto corre até a porteira da fazenda para abri-la. A corrida do personagem é representada de maneira cômica, ele cai, levanta, pula a cancela para depois conseguir abrir. A outra 5 Será empregado uma breve análise a respeito da posição do negro neste documentário porque consta apenas 14 minutos de imagens, sendo que, a população negra aparece muito pouco. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 170 sequência acontece depois de beber na venda, a imagem transmite o personagem embriagado tendo delírios com um macaco se movimentando em cima do seu corpo. As poucas cenas em que Benedicto aparece revela o imaginário social construído em torno da população negra, onde cor e classe exercia um papel intrínseco. O personagem é representado com uma posição inferior ao de João, Marcos e de Pedro, os quais trabalham para o dono da fazenda. A diferença entre Benedicto e os outros três estão na cor, enquanto todos são apresentados inferiores economicamente ao fazendeiro. A construção do personagem está fundada pela estereotipia que destacava a população negra através de símbolos, discursos e linguagens depreciativas. Benedicto é representado no filme em uma posição subalterna sendo serviçal do fazendeiro, alcoólatra e delirando. Desse modo, a sua imagem transmite ideologicamente a ideia do negro como indivíduo socialmente inferior, incapaz de permanecer sóbrio ou ocupar lugares de destaque na sociedade. O filme representa o contexto social de uma época onde as discussões em torno da identidade nacional estavam mobilizando o cenário do país, a exemplo, do diálogo em torno da mestiçagem. A ideologia desenvolvida pelo pensamento brasileiro no fim do século XIX e meados do século XX tanto em sua forma biológica (miscigenação) e cultural (sincretismo cultural) “desembocaria numa sociedade unirracial e unicultural. [...] Construída segundo o modelo hegemônico racial e cultural branco ao qual deveriam ser assimiladas todas as outras raças e suas respectivas produções culturais” (MUNANGA, 1999, p. 90). O autor aponta para o caráter universal da identidade nacional brasileira, o qual ao erigir um modelo racial e cultural único negaria a pluralidade étnica e sociocultural do país. Para realizar esse movimento de consolidação pelo ideal de miscigenação a elite intelectual, política e econômica necessitaria de um processo de marginalização dos sujeitos socialmente considerados negros, que em sua maioria eram descendentes de ex-escravos. Sobretudo, a representação de Benedicto no filme dialoga com a ideia construída pela identidade nacional, porque ao ser representado como elemento cômico, ébrio e subalterno carrega em sua imagem a estereotipação criada pelo processo de colonização brasileiro. Ao mediatizar a imagética do personagem como um corpo depreciativo, o filme, representava as ideias da sociedade brasileira da década de 1920: [...] o processo de construção dessa identidade brasileira, na cabeça da elite pensante e política, deveria obedecer a uma ideologia hegemônica baseada no ideal do branqueamento. Ideal esse perseguido individualmente pelos negros e seus descendentes mestiços para escapar aos efeitos da discriminação racial. O que teve como consequência a falta de unidade, de solidariedade e de tomada de uma consciência coletiva, enquanto segmentos politicamente excluídos da participação política e da distribuição equitativa do produto social (MUNANGA, 1999, p. 101). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 171 Um filme que surge distinto em sua forma e conteúdo na representação da imagem do negro é Barravento (1962). A narrativa da obra é passada em uma comunidade de pescadores, onde são apresentados dois personagens que se contrapõem: Firmino e Aruã. O primeiro quer a libertação da aldeia da exploração e alienação, o segundo, é o sucessor da linhagem do chefe do grupo, é o guerreiro, e se guia através da mística da sua religiosidade. Aqui a imagem da população negra é representada de maneira diferente do documentário de Igino Bonfioli e do filme de Alberto Traversa. Em ambos o negro é elemento secundário, em Barravento (1962), são protagonistas, apresentados com consciência política e expressando a cultura negra em suas variadas formas, seja pela religião, pelo místico ou através da ancestralidade. A obra demarca uma ruptura com a estética eurocêntrica6, redimensionando o modo de produção cinematográfico, e ampliando a reflexão em torno do ambiente social brasileiro e das suas contradições. O enredo do filme é construído na relação de Firmino com a comunidade. O personagem volta da cidade com concepções políticas de esquerda e começa a dialogar com os membros da aldeia sobre a opressão que sofriam. Esse pensamento entra em contraste com o de Aruã e o conflito entre os dois é elaborado relacionando elementos da cultura negra, a exemplo, do candomblé, roda de samba, capoeira com as perspectivas revolucionárias da década de 1960. A estética do filme desconstrói a imagem do negro subalterno, colocando-o como central na narrativa fílmica. Esse movimento é visto ao longo de todo o filme, por meio, da expressão política de Firmino, da ancestralidade de Aruã e dos rituais religiosos. O conteúdo e a forma se diferem das outras duas obras porque a estrutura imagética é representada através de uma ontologia negra, diferindo da reprodução burguesa. Nesse sentido, o cinema negro que possui suas bases no movimento cinemanovista, principalmente, em Barravento (1962), reconfigurou a imagem da população negra proporcionando um papel positivo no imaginário social. Logo, a desconstrução de uma noção eurocêntrica e a afirmação da identidade negra como vetor de libertação seria essencial para a emancipação (PRUDENTE, 2005, p. 49). O autor destaca que “nas relações de poder a força dominante usa a ideologia no propósito de impor sua feição como referência para o mundo” (PRUDENTE, 2005, p. 49). Logo, a ruptura exercida pelo filme ao representar a cultura negra confronta o status que 6 Emprego o termo no sentido de uma ruptura no modo de representação da população negra pelo cinema, nesse casso, em relação às duas obras anteriores analisadas. Em Barravento (1962) a posição social dos homens e mulheres negras não são construídas a partir de uma lógica subalternizada, mas desenvolvidas de acordo com as práticas vivenciadas em torno da comunidade. Nesse sentido, não há uma estereotipia elaborada para destinar o lugar social da população negra na obra, e sim, um desenvolvimento narrativo que protagoniza as experiências, saberes, costumes e consciência política dos negros e negras. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 172 reconstrói a imagem do negro de maneira complexa em sua afirmação política e étnica. Sobretudo, as três obras trabalhadas se diferenciam de acordo com sua época de produção cada uma destacando de algum modo o pensamento social de um período e do seu realizador. Diante do exposto, as seguintes inquietações surgiram: qual a importância de considerar o racismo como um Determinante Social da Saúde (DSS)? E como as ações interseccionais e interinstitucionais podem auxiliar no desvelamento e intervenção nas relações de opressão e exclusão, produzidas não só pelos dispositivos de filtragem social, mas pelas pessoas e profissionais no cotidiano? Mesmo com o fim molar da escravidão, persiste de forma molecular na microfísica das relações de poder cotidianas, a manutenção de estados de dominação na atual conjuntura capitalista (MBEMBE, 2012; MBEMBE, 2014). O racismo estrutural para estabelecer-se enquanto discurso ideológico precisa ter a sua gênese ocultada, ao preço de se produzir uma fissura, uma descontinuidade na tecitura de discursos que compõem a realidade ideológica. Essa realidade que oculta as suas imbricações microfísicas, estabelece relações monocausais (seentão) para mantê-las, formando vários ciclos tautológicos equidistantes e não relacionados. Para Bento (2002, p. 48) o discurso ideológico que sustenta a existência da democracia racial brasileira: postula que a distância social entre dominantes e dominados é modificada pelo cruzamento inter-racial que apaga as contradições e harmoniza as diferenças levando a uma diluição de conflitos. Ao postular a conciliação entre as raças e suavizar o conflito, ele nega o preconceito racial e a discriminação, possibilitando a compreensão de que o “insucesso dos mestiços e negros” deve-se a eles próprios. Desta forma, ele fornece à elite branca os argumentos para se defender e continuar a usufruir dos seus privilégios raciais. Estes postulados constituem a essência do famigerado Mito (ou ideologia) da Democracia Racial Brasileira. O negro é reconhecido socialmente quando ocupa o lugar destinado a ele na dinâmica colonial-capitalista, mas sempre será lido como um violador em potencial. Mediante a isso, na contemporaneidade, o negro encontra-se reconhecido como humano, mas vivencia múltiplos processos de exclusão e opressão na tentativa de exercer e garantir a sua cidadania. As suas formas de ser, estar, conviver e se relacionar no mundo continuam em suspeição, com o fim da escravidão o negro deixa de ser responsabilidade do senhor de engenho, no que tange ao seu controle e domesticação, e passa a ser responsabilidade do aparato jurídico-policial que paulatinamente, recuperando as representações de sub-humano que os caracterizava como objetos passíveis de escravização, torna-o modelo padrão do ser criminoso. Assim, as suas possíveis diferentes formas expressivas e relacionais, que para se tornarem abismais e absortas são expropriadas de contexto, justificam a perseguição, a repressão, a necessidade de sujeição Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 173 e por fim o insucesso em integrar-se na sociedade e tornar-se cidadão. Em consonância com Bento (2002), Costa (2006) versa sobre o mito da democracia racial brasileira e a sua necessidade para escamotear a manutenção do sistema social de opressão do negro: para fazer face às revoltas e para poder continuar explorando economicamente os negros, os brancos – através de suas elites intelectuais – forjaram uma explicação que lhes permitiu guardar a supremacia social de que se beneficiaram. Uma vez que havia desaparecido a hierarquia de sangue da nobreza, eles inventaram uma hierarquia biológica das raças. Os intelectuais, ao mesmo tempo que afirmavam a inferioridade biológica dos negros, preconizavam a miscigenação racial como meio de absorção das etnias inferiores(COSTA, 2006, p.107). Desta forma, o racismo persiste, ideologicamente, na manutenção dos privilégios dos racialmente considerados superiores, aliados a disposição de mecanismos de filtragem social que buscam inviabilizar os não-brancos de acessarem os lugares de poder e deliberação. Essa manutenção permite ao grupo hegemônico resguardar-se por meio do controle e manipulação da máquina pública, da indústria cultural, assim como, monopolizando o acesso à informação e aos bens e serviços. Ditando dessa forma, os rumos do progresso, os padrões expressivos de normalidade e conferindo humanidade e cidadania aos que a este padrão correspondem. Adsorvendo-se aos mecanismos de sociabilidade e grupalização, que estabelecem as formas de ser, estar e conviver ideais, mediante o grau de temperatura (humanidade) e pressão (cidadania) (FANON, 1951/2008). Nesse sentido, torna-se importante denunciar a centralidade do racismo, na construção da realidade ideológica que repercute em todos os níveis de sociabilidade na passagem de condenados da terra ao status humano, para a realização de uma análise crítica do mundo atual e a partir disso, compreender as diversas formas de iniquidade e as várias vulnerabilidades que a atravessam (FANON, 1951/2008). Podem-se elencar diversos fatores que interferem na constituição das desigualdades em saúde, dentre eles estão: o acesso aos bens e serviços e à informação, o contexto de nascimento e gestação, o percurso e hábitos familiares e individuais, a ação dos mecanismos de filtragem social que operam exclusões, violações de direitos e violências com recortes de raça, classe, gênero, etnia, sexualidade, idade e geográfico, as condições relacionadas a emprego e renda, bem como, de vida, trabalho, moradia, saneamento básico. Quando essas desigualdades são evitáveis, seja por ações de promoção proteção e recuperação da saúde, de controle e fiscalização, sendo oriundas de uma distribuição desigual de assistência, incorrendo em injustiças, configura-se a iniquidade em saúde. Mediante a subalternização das populações nãobrancas, a questão racial no Brasil está diretamente liga às iniquidades no seu sistema de assistência como um todo , não só o de saúde, repercutindo nas condições de vida dessa Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 174 população (MBEMBE, 2014). O racismo naturalizado ideologicamente e pulverizado nas instituições, principalmente as estatais, dificulta o seu reconhecimento no estabelecimento das relações de cuidado e na prestação de serviços, ocultando-o como determinante na formação das iniquidades que atravessam não somente o binômio saúde-doença, mas sobre tudo o entendimento desse fenômeno vivido, o planejamento, a formulação de estratégias e o percurso do cuidado (MBEMBE, 2014). É justamente nas áreas clínicas, nas quais a pessoa está sujeita à avaliação subjetiva do profissional de saúde, que se verificam as mais elevadas taxas de mortalidade para a população negra como um todo e, em especial, para as mulheres negras, que além das condições desfavoráveis de vida ainda sofrem com as intersecções entre sexismo e racismo. (...) O racismo regula as relações entre usuários e usuárias, profissionais e gestores de serviços públicos governamentais e não governamentais, assim como impõe fatores de risco extra-biológico às pessoas sobreviventes do processo de exclusão (BRASIL, 2011, p. 11). O processo de naturalização deste estado de coisas que constitui o cenário capitalista brasileiro impõe aos não-brancos a individualização e a sua culpabilização total pelas suas precárias condições de vida. Paralelamente, os não-brancos tem a presença mais efetiva do Estado na forma do aparato jurídico-policial que cerceia a sua mobilidade e expressividade no espaço urbano. “No plano individual, as ideologias discriminatórias, tais como o racismo e o sexismo, geram estratégias psicológicas de defesa construídas culturalmente, tais como a somatização, a negação, a racionalização e a invisibilidade para o seu enfrentamento” (BRASIL, 2011, p. 11). De acordo com isso, a ideia de inclusão em si é perversa, pois localiza no sujeito a inabilidade de corresponder à dinâmica de normalidade que traz no seu seio, ou seja, existe uma ordem natural das coisas que é neutra e superior às relações politicas, históricas, éticas, estéticas e sociais, na qual ela aceita o outro mediante a taxação deste como diferente, assim os infortúnios e insucessos são de sua responsabilidade, pois mesmo com a inclusão a pessoa não teve mérito para alcançar o ajustamento necessário, sendo percebido socialmente como uma oportunidade que foi concedida, mas que o indivíduo marcado em sua diferença não teve a capacidade de corresponde-la. Assim, um problema fruto de uma dinâmica social própria é individualizado e generalizado para todos os seres que partilham da mesma diferença (MBEMBE, 2012). Tecnologias coloniais são produzidas para a manutenção dos povos escravizados que deixaram, em parte, de ter a sua mão-de-obra explorada gratuitamente para terem essa exploração mediada e estimulada pelo consumo. Destas destacamos três: o sistema jurídicoRevista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 175 policial com as suas políticas de exclusão e silenciamento, seja por meio do encarceramento ou do genocídio dos não-brancos; o conglomerado médico-farmacológico instância que cuida da normalização dos corpos não-brancos, podando as suas formas expressivas de ser, estar, conviver e se relacionar, bem como, suas práticas sócio-culturais e religiosas, criando rótulos que aprisionam essas formas expressivas estigmatizando-os e condicionando-as a uma escala de correspondência com as formas ideais, exercidas pelo grupo hegemônico; e o sucateamento do ensino público, maior via de acesso à educação da população não-branca. Esses processos tornam os corpos não-brancos corpos matáveis, corpos que deram errado por conta própria e que precisam ser extirpados para não contaminar toda a sociedade (MBEMBE, 2012). CONSIDERAÇÕES FINAIS A imagem do negro ao longo da história do cinema brasileiro ficou subordinada aos modos de dominação, em princípio, coloniais, tendo em vista o surgimento do cinema no fim do séc. XIX, em seguida, das representações imagéticas da sociedade capitalista que privilegiava a vida da elite. Desse modo, a posição exercida pela população negra no espaço cinematográfico do país estava restrita a papéis subalternos, onde a sua função dramática era caracterizada para enaltecer a estereotipia e o discurso depreciativo. Portanto, a representação do negro através da filmografia nascente no país estava ligada aos diversos modos de manifestação do racismo e das variadas formas de opressão, a exemplo, do racismo científico desenvolvido no final da década de 1890, além do processo de identidade nacional realizado no início do século passado. Logo, a viabilização da imagem da população negra no espaço fílmico evidenciou as contradições sociorraciais do Brasil. Assim, os negros e os territórios em que habitam não têm humanidade e cidadania conferidas e reconhecidas pelo Estado, sendo eleitos como corpos-lixo, corpos matáveis na manutenção e gestão da vida social dos verdadeiros cidadãos. O corpo-lixo é produto dos processos de produção de subjetividades da máquina colonial-capitalista que engendra corposúteis para o estabelecimento das suas engrenagens, transformando-os em corpos-lixo no vencimento da sua utilidade, tornando-se apenas um entrave para o progresso. Esse corpo-lixo não é purgado diretamente, o Estado pulveriza no campo social linhas de captura, dispositivos que catalisam estratégias de manutenção da vida qualificada, conferindo humanidade/cidadania para alguns e desumanizando/criminalizando outros, transformando esse corpo-lixo em corpomatável pela sua própria incapacidade de corresponder aos modos de ser hegemônicos. Ou seja, Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 176 linhas de morte são naturalizadas ideologicamente na efetivação da passagem do corpo-lixo, peso para o progresso social, para o corpo-matável. A subtração de direitos é uma dessas estratégias, bem como, a culpabilização dos grupos subalternizados pela sua ausência. Assim, o Estado se preserva e oculta a produção de morte inerente ao estabelecimento de uma sociedade democrática de direitos, que funciona numa dinâmica colonial-capitalista. Todos são iguais perante a lei, mas alguns já nascem à margem desta, e para estes insolentes a ausência de direitos é um destino, reconhecido socialmente, como cavado com as próprias mãos. Mediante a isso, o seu território é produto do caos e da desordem, paisagem em que o Estado afirma cotidianamente a sua soberania no fazer morrer. Partindo dessa concepção, o sistema colonial-capitalista em seus variados mecanismos de dominação, a exemplo, do processo de miscigenação onde a ideia de erigir uma etnia nacional como símbolo da nação representava a legitimação de um sistema racial, porque nega a pluralidade étnica brasileira, assim como, não leva em conta as diferentes manifestações culturais presentes sobre cada povo. Nesse sentido, a identidade nacional do país reconfigurou a noção sobre o racismo estrutural, o que gerou idealizações e uma ideologização a respeito da população negra. O modelo assimilacionista da elite brasileira redimensionou o espaço sociocultural na sociedade, ocasionando em uma mistificação das relações raciais. “O modelo sincrético, não democrático, construído pela pressão política e psicológica exercida pela elite dirigente foi assimilacionista.” Tentou assimilar as varias identidades que se apresentavam na identidade nacional em construção, “hegemonicamente pensada numa visão eurocêntrica” (MUNANGA, 1999, p. 101). Esse movimento construiu no espaço social brasileiro um profundo enraizamento racial, porque obteve através da “democracia racial” a estrutura para legitimar as opressões. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 2006. CARVALHO, Noel dos Santos. O Negro no cinema brasileiro: O período silencioso.Rev. Plural, v.10, p.155-179, 2003. CHAUI, Marilena de Souza. O que é ideologia. 2ª ed. São Paulo: brasiliense, 2001. MUNAGA, Kabengele. Mestiçagem contra pluralismo. In:____. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: Identidade nacional versus identidade negra. Rio de Janeiro : Vozes, 1999. cap. IV, p. 90-98. ___________________. Mestiçagem como símbolo da identidade brasileira. In:____. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 177 Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: Identidade nacional versus identidade negra. Rio de Janeiro : Vozes, 1999. cap. V, p. 99-109. PRUDENTE, Celso. Cinema Negro: Pontos reflexivos para a compreensão da importância da II Conferencia de Intelectuais da África e da Diáspora. Revista Palmares, 2005. MBEMBE, Achille.A universalidade de Frantz Fanon, ArtAfrica (Lisboa), 2012. MBEMBE, Achille. Critica da razão negra, Lisboa, Antigona, 2014. BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e Branquitude no Brasil. In I. Carone; Maria Aparecida Silva Bento (Orgs.) Psicologia Social do Racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. BRASIL. Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Racismo como Determinante Social de Saúde. Brasília, DF: Seppir, 2011. COSTA, Jurandir Freire. História da psiquiatria no Brasil: um corte ideológico. – 5ª ed. rev. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas, 1ª edição 1951. Tradução: Renato Silveira, Salvador, EDUFBA, 2008. Filmografia O Segredo do Corcunda (Alberto Traversa, 1925) A chegada de Arthur Bernardes a Belho Horizonte (Igino Bonfioli, 1921) Barravento (Glauber Rocha, 1962). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 178 SERVIÇO SOCIAL E A PERSPECTIVA INTERSECCIONAL: AMPLITUDES A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE Dayana Christina Ramos de Souza Juliano1 RESUMO Este artigo se propõe a elencar reflexões teóricas sobre a inserção das questões que envolvem as seguintes categorias sociais: Classe; Gênero e Raça, na perspectiva da interseccionalidade. Resgatamos o conteúdo e debates da Disciplina: Teoria e prática em Serviço Social do Programa de pós graduação da UFRJ, proporcionando um diálogo sobre os parâmetros metodológicos, teóricos e práticos dos âmbitos do Serviço Social perante as opressões causadas pela articulação de Racismo, Capitalismo e Patriarcado. Demarcamos que este ensaio é o registro de diversas imbricações dos elementos apresentados. PALAVRAS-CHAVE: Serviço Social; Teoria x Prática; Interseccionalidade. SUMMARY This article proposes to list theoretical reflections on the insertion of questions that involve the following social categories: Class; Gender and Race, from the perspective of intersectionality. We retrieve the contents and debates of the Discipline: Theory and practice in Social Work of the Graduate Program of UFRJ, providing a dialogue about the methodological, theoretical and practical parameters of the Social Service spheres in the face of oppressions caused by the articulation of Racism, Capitalism and Patriarchy. We note that this essay is the recording of several imbrications of the presented elements. KEYWORDS: Social work; Theory x Practice; Intersectionality. INTERSECCIONALIDADE: CONCEITUAÇÃO E TRAMAS A interseccionalidade é um conceito forjado nos EUA pelos movimentos sociais, em especial pelo feminismo negro, e se propõe a imprimir na atuação política e na produção doconhecimento acadêmico,as complexidades envolvidas no processos de construção das relações sociais, que estruturam o que podemos chamar de “hierarquia social”.KimberléCrenshaw, estudiosas da teoria crítica da raça, nos informa que: A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos de discriminação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcado, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades que estruturam as posições relativas de mulheres, grupos raciais, classes e outras (CRENSHHAW, 2002, pág. 177). Recentemente no Brasil tivemos traduzida a obra da intelectual e ativista americana Angela Davis “Mulheres, Raça e Classe”, 2016, este livro traz artigos com relatos e pesquisas 1 Assistente Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Especialista em Políticas Sociais e Intersetorialidade pelo Instituto Fernandes Figueira (IFF/FIOCRUZ), Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: dayana.seso@gmail.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 179 da autora sobre o legado da escravidão, do patriarcado e da luta de classes na sociedade dos EUA, bem como as interlocuções dos ativismos frente a essas formas de discriminação. Todo esse resgate e reflexões trazem novas luzes sobre essa articulação em outras sociedades forjadas nesses parâmetros, e a consequente elaboração das desigualdades e injustiças sociais. Este livro é anunciado comouma possibilidade de tradução do conceito de Interseccionalidade. Angela Davis se apresenta como uma intelectual marxista, porém a autora apresenta algumas questões quanto ao chamado marxismo ortodoxo, aquele que ao analisar as relações sociais opta pela primazia da classe, em face a subordinação ou invisibilização das demais opressões como Patriarcado e Racismo: As organizações de esquerda têm argumentado dentro de uma visão marxista e ortodoxa que a classe é a coisa mais importante. Claro que classe é importante. É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é a maneira como a raça é vivida. Da mesma forma que gênero é a maneira como a raça é vivida. A gente precisa refletir bastante para perceber as intersecções entre raça, classe e gênero, de formaperceber que entre essas categorias existem relações que são mútuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre a outra (DAVIS, 2016, p.13). Chamando a atenção para o processo histórico de articulação entre gênero e raça, e ainda sim levantando a importância de termos a noção das especificidades de cada um desses elementos para a organização e enfrentamento de seus reflexos negativos na sociedade, como Machismo e Racismo, Sueli Carneiro, 2003 problematiza o seguinte: Nós mulheres negras, fazemos parte de um contigente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca(...) fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contigente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, como quituteiras, prostitutas... Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar... (CARNEIRO, 2003, p. 52). Sobre o racismo estrutural é importante destacar que os povos africanos escravizados nas Américas imprimiram de forma peculiar características, símbolos e movimentos de resistência, estes investimentos se deram antes de tudo em prol da existência e sobrevivência negra diante das determinações racistas.Sobre as possibilidades de organização social através das atividades de coletividade negra, incidindo sobre associativismo negro,Domingues (2018) aponta para o fato que “Os negros desenvolveram desde o período colonial uma intensa vida associativa... tinham o objetivo de satisfazer necessidades sociais, econômicas, culturais, religiosas e humanas”(DOMINGUES, 2018, p.78). No que remonta à época da escravidão, oque aqui chamamos de associativismo negro, retroalimentou osentimento de grupo, construindo e reconstruindo os laços de solidariedade e apoio mútuo a partir da pertença racial, reivindicando humanidade e dignidade. As mulheres Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 180 negras sempre tiveram papel ativo e determinante nesse associativismo. Nos movimentos sociais negros e suas reivindicações atuais, a atuação das mulheres negras se dáde forma destacadadevido, assobreposições e articulações conjunturais das discriminações e opressões da colonização, envolvendo a escravidão, do patriarcado e do capitalismo, sendo pungente e vital necessidade de resistir e denunciar as consequências dessas violações em suas vidas. Registra-se aqui como forma de exemplificar o que estamos descrevendo: as condições de violência contra a mulher; a violência obstétrica; a hipersexualização e objetificação do corpo; o feminicídio; desigualdades no acesso a educação mercado de trabalho e etc. Observando esses fenômenos sociais com as devidas ênfases em raça, classe e gênero, temos os apontamentos de quemulheres negras e pobres são particularmente atingidas por essas violências, que por sua vez são decorrentes dessa tripla opressão, dado que essas condições sociais as deixam socialmente mais vulneráveis. No Brasil, um dos entraves que ainda precisamos transpor no campo teórico, ideológico e prático para as investidas de enfrentamento ao racismo, discriminação, desigualdade e preconceito racial é o Mito da Democracia Racial, que como consta em Lopes (2004) trata-se da: Expressão sob a qual se aninha a falsa ideia da inexistência de racismo na sociedade brasileira. Construída a partir da ideologia do luso -tropicalismo, procura fazer crer que, graças a um escravismo brando que teria sido praticado pelos portugueses, as relações entre brancos e negros, no Brasil, seriam, em regra, cordiais (LOPES, 2004, p.214). Contrariando as investidas da dita “democracia racial”, os indicadores sociais não deixam lacunas para análises e avaliações que descartem o racismo como elemento determinante nas condições de vida social da população negra, expondo que o racismo é um elemento fundamental para compreender a questão social no Brasil e suas relações sociais, estruturalmente assimétricas e desiguais. No que tange a questão social e suas expressões, Iamamoto (2007), registra a importância do devido destaque as particularidades e especificidades que se apresentam no concreto da sociedade, ou seja, no conjunto das relações sociais, no tecido do cotidiano, a autora nos remete a seguinte reflexão: A gênese da questão social encontra-se enraizada na contradição fundamentalque demarca esta sociedade, assumindo roupagens distintas em cada época [...] uma sociedade em que a igualdade jurídica dos cidadãos convive contraditoriamente, com a realização da desigualdade. Assim dar conta da questão social hoje é decifrar as desigualdades sociais – de classe – em seus recortes de gênero, raça e etnia, religião, nacionalidade, meio ambiente e etc. Mas decifrar também as formas de resistência e rebeldia com que são vivenciadas pelos sujeitos sociais (IAMAMOTO, 2007, p.114). A luta de classes não pode prescindir das lutas contra as opressões, que lhes dão vida Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 181 como opressão de gênero e opressão de raça. Nesse sentido, o comprometimento com a emancipação humana deve, sobretudo, tratar o racismo e o patriarcado na perspectiva de totalidade social, considerando na convocatória ético-político, e teórico prática do Serviço Social, o combate as discriminações e injustiças sociais. Helena Hirata contribui para nossa reflexão sobre o conceito da Intersecionalidade, ao apoiar-se em Kergoat, e tecer a seguinte crítica: Ao meu ver, o ponto essencial da crítica de Kergoat ao conceito de interseccionalidade é que tal categoria não parte das relações sociais fundamentais (sexo, classe, raça) em toda sua complexidade e dinâmica. Entretanto, há outra crítica que nem sempre fica explícita: a de que a análise interseccional coloca em jogo, em geral, mais o par gênero-raça, deixando a dimensão classe social em um plano menos visível...De uma maneira mais global, creio que a controvérsia central quanto às categorias de interseccionalidade e consubstancialidade se refere ao que chamo “interseccionalidade de geometria variável”. Assim, se para DanièleKergoat existem três relações sociais fundamentais que se imbricam, e são Transversais... a intersecção é de geometria variável, podendo incluir, além das relações sociais de gênero, de classe e de raça, outras relações sociais, como a de sexualidade, de idade, de religião etc. (HIRATA, 2014, p. 65-66). No entanto, tomamos aqui a opção pela interseccionalidade, entendendo que o uso da mesma é aplicável, validado e importante para análises e proposições de novas sociabilidades, sendo tomada a partir da não hierarquização, ou priorização desses elementos estruturais – raça, classe e gênero. Carla Akotirene defende que “A interseccionalidade é a autoridade intelectualde todas as mulheres que um dia foram interrompidas... é sofisticada fonte de água, metodológica...”(AKOTIRENE, 2018, p.109). SERVIÇO SOCIAL E AS POSSIBILIDADES DE INTERVENÇÃO NO COMBATE AS OPRESSÕES Reivindicamos aqui o método dialético de análise como mediação fundamental da funcionalidade do racismo, patriarcado e relação/luta de classes na sociabilidade burguesa, a partir de uma práxis que não separa teoria e prática na busca de rever os abusos e violações sofridas pelas mulheres negras no Brasil. Para o Serviço Social, é importante destacar a importância de uma teoriaque interrogue, de forma sistemática, as naturalizadas subordinações de classe, gênero e raça. Esse destaque é especialmente importante, pois baseia análises que trazem no seu escopo mediações e contradições, que possibilitam uma prática capaz de enfrentar os imperativos dessas opressões. Para a reflexão que esboçamos aqui, é válido contar com a contribuição de Kosik, na Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 182 obra “Dialética do concreto”, 1986, o autor apresenta a teoria e produção do conhecimento, bem como suapossibilidades de projetar ações que vão além dos efeitos, ou seja, referenciando a necessidade de tomar as causas de determinadas circunstâncias. A teoria não é nem a verdade nem a eficácia de um ou outro modo não teórico de apropriação da realidade; ela representa a sua compreensão explicitamente reproduzida, a qual, de retorno, exerce a sua influência sobre a intensidade, a veracidade e análogas qualidades do modo de apropriação correspondente... A consciência humana é “reflexo” ao mesmo tempo “projeção”; registra e constrói, toma nota e planeja, reflete e antecipa; é ao mesmo tempo receptiva e ativa...A teoria do conhecimento como reprodução espiritual da realidade pões em evidencia o caráter ativo do conhecimento em todos os seus níveis (KOSIK, 1986, p. 26-27). Sendo assim, no sentido da compreensão das determinações e dos movimentos da realidade, o materialismo histórico nos fornece instrumentais para o processo contínuo de desvelar essa realidade, onde as violências de classe, raça e gênero não se menosprezam, não se subestimam, e não se enfraquecem, pelo contrario, estabelecem alianças estruturais, se coadunam, se cruzamento e entrecruzam, demarcando com classismo, machismo e racismo as dinâmicas das relações sociais brasileiras. Entendemos que as desigualdades e violências sociais oriundas das relações raciais, de gênero e de classe no Brasil estão presentes no cotidiano e na realidade brasileira, então o profissional de Serviço Social, independente do espaço sócio ocupacional que estiver inserido, terá os reflexos dessas assimetrias colocadas no seu cotidiano profissional, Carvalho e Netto (2007), registram que: A vida cotidiana não tem sido objeto de estudos e investigações por parte destes profissionais e, no entanto, ela é questão fundamental. É nela que se consolidam, se perpetuam ou se transformam, no mundo moderno, as condições de vida mais amplas. E é nela e sobre ela que realizamos nossa prática (CARVALHO; NETTO, 2007, p. 51). É importante ressaltar que o Serviço Social é uma profissão inserida na divisão social e técnica do trabalho, que lida através de políticas, programas, projetos públicos e sociais com as múltiplas expressões da questão social. Essa profissão tem compromisso ético e político com a defesa intransigente dos direitos humanos e nos mais diversos espaços sócio-ocupacionais, indivíduos e famílias estão no cerne de sua atuação profissional como público alvo, e por isso essa categoria se configura como um campo privilegiado para atuar frente as demandas de uma sociabilidade desigual e estruturada de forma sexista, classista e racializada. Sobre o Serviço Social e a perspectiva da efetivação de uma prática combativa frente as opressões de raça, classe e gênero, sob a égide do código de ética vigente (1993), tomamos a confirmação de Vázquez através da noção de práxis política, sendo que o mesmo trata de um contexto de antagonismo de interesses entre classes, o filósofo explicita que: Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 183 A práxis política enquanto atividade prática transformadora, alcança sua forma mais alta na práxis revolucionária como etapa superior da transformação prática da sociedade. Na sociedade dividida em classes antagônicas, a atividade revolucionária permite mudar radicalmente as bases econômicas e sociais em que se baseia o poder material e espiritual da classe dominante, e instaurar assim uma nova sociedade (VÁZQUEZ, 1990, p. 201). É pertinente que o Serviço Social enquanto categoria profissional compreenda que as relações sociais são demarcadas pelas opressões deraça, gênero e classe,segundo Pinto (2003): ...o assistente social que tem como principal função trabalhar as relações através de uma ação educativa, visando a consciência e a participação, um profissional indispensável para a eliminação das situações de discriminação que vivemos (PINTO, 2003, p.28). O Código de Ética profissional do Serviço Social de 1993, traz entre seus os princípios fundamentais elementos que indicam que a profissão se orienta para intervenções pautadas no enfrentamento as discriminações sociais, isso pode ser observado nos seguintes grifos: Defesa Intransigente dos Direitos Humanos; Posicionamento em favor da equidade e da justiça social; Empenho na eliminação de todas as formas de preconceito; Opção por um projeto profissional vinculado ao processo deconstrução de uma nova ordem societária, sem dominação-exploração de classe, etnia e gênero (CRESS 7ªR, 2005, p.16). Rocha (2016) ao abordar o Racismo na série “Assistente Social no combate ao preconceito” publicação do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS, 2016)chama atenção para a diversidade de atuações do racismo, que influi nas relações sociais através de discriminação e desigualdade racial, Rocha sinaliza que “o racismo é gerador de múltiplas violências, guerras, perseguições religiosas e extermínio, e pode estar subjacente a idéias preconceituosas e a práticas de segregação, isolamento social e aniquilamentos” (ROCHA, 2016, p. 11). Para Moura, 1994: O racismo, o mito de superioridade racial de um povo sobre o outro, encobre os interesses de povos que se julgam ‘eleitos’ e desejam conseguir hegemonia econômica, social e cultural sobre os povos considerados mais fracos. Esta racionalização do preconceito através do racismo exerce papel e função de importância em diversos blocos de poder de nações que disputam a hegemonia no mundo capitalista (MOURA, 1994, p.23). Os efeitos do racismo na sociabilidade brasileira devem ser investigados sem perderse de vista o Estado com as políticas sociais estabelecidas a partir da doutrina neoliberal e a lógica do Capital, pois como aponta Florestan Fernandes (1978) em seus estudos, a luta de classes no Brasil sempre foi sinônimo de luta de raças. Este sociólogo, aponta que o passado – nem tão remoto – de escravidão/colonização deixou marcas profundas na formação social brasileira, e que essas marcas se apresentam, configurando e reconfigurando o capitalismo tardio brasileiro, expressando-se em uma realidade e dinâmica social extremante racializadas. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 184 Quanto a formação social brasileira e as marcas estruturais deixadas como herança da aliança entrecapitalismo e racismo, o sociólogo de grande relevância intelectual, Octavio Ianni, encampa em seus estudos a tentativa de desvelara sociedade de classes brasileira, não só pelas demarcações da contradição do capital x trabalho, mas também levando em consideração em suas mediações as relações étnico raciais, como forma de compreender as opressões e explorações atingem expressivamente a população negra no Brasil. Ele afirma que: A questão racial sempre foi, tem sido e continuará a ser um dilema fundamental da formação, conformação e transformação da sociedade brasileira. Está na base das diversas formas de organização social do trabalho e dos jogos das forças sociais, bem como das criações culturais. Praticamente tudo o que constitui a economia e a sociedade, a política e a cultura, compreende sempre algo ou muito da questão racial. Os longos períodos de tirania realizam-se com ampla ou total exclusão do negro e outras etnias, assim como os episódicos períodos de democracia realizam-se com alguma participação do negro e de outras etnias (IANNI, 2005, p. 9). Investindo na Interseccionalidade, podemos chegar a autores e perspectivas descoloniais, que trazem a tona as existências, resistências e narrativas dos chamados oprimidos nas relações estruturalmente desiguais, o que consideramos importante para o Serviço social. A produção deMaria Lugones, em especial: “Rumo a um feminismo descolonial”, contribui bastante nesse sentido, a autora aponta que: A subjetividade que resiste com frequência expressasse infrapoliticamente, em vez de em uma política do público, a qual se situa facilmente na contestação pública. Legitimidade, autoridade, voz, sentido e visibilidade são negadas à subjetividade oposicionista. A infrapolítica marca a volta para o dentro, em uma política de resistência, rumo à libertação. Ela mostra o potencial que as comunidades dos/as oprimidos/ as têm, entre si, de constituir significados que recusam os significados e a organização social, estruturados pelo poder. Em nossas existências colonizadas, racialmente gendradas e oprimidas, somos também diferentes daquilo que o hegemônico nos torna. Esta é uma vitória infrapolítica. Se estamos exaustos/as, completamente tomados/as pelos mecanismos micro e macro e pelas circulações do poder, a “libertação” perde muito de seu significado ou deixa de ser uma questão intersubjetiva (LUGONES, 2014, p.940). Mais uma vez ressaltando a pertinência do investimento do Serviço Social nas frentes antirracistas,anticlassista e antipatriarcado nas suas projeções teórico e práticas, em um processo de engajamento político, aliadoaos movimentos sociais e na defesa intransigente dos direitos humanos, trazemos a baila a seguinte ponderação: ...um desafio posto ao nosso projeto, na dimensão interventiva da política, é articular forças e construir alianças estratégicas com os que sofrem opressões econômicas e de classe, no campo racial, de orientação sexual, gênero, e outras, que têm como projeto uma sociedade justa, fraterna, igual e capaz de autodeterminar seu futuro (BEHRING; BOSCHETTI, 2007, p.199). CONSIDERAÇÕES Avaliamos importante destacar que os conceitos e elementos aqui explicitados – Raça, Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 185 Classe e Gênero –foram tratados no seu escopo de categorias que possibilitam análises sociais, bem distante das concepções biológicas ou naturalizadas, nem mesmo no processo de pautas identitárias e isoladas, tomamos essas categorias a partir das consequências estruturais que brotam de tais relações. Assim como Antônio Sérgio Guimarães (1999),sinaliza sobre o emprego de raça enquanto categoria política e social que se faz necessária, pois evidencia as desigualdades produzidas pelo racismo em nossa sociedade que extrapolam as relações de classe. Ainda sobre a pertinência do investimento do Serviço Social na perspectiva de combate as opressões de classe, gênero e raça, tanto nos campos de produção teórica e de intervenção prática, ou seja, nos âmbitos teóricos e operativos, as autoras Guerra, Ortiz, Santana e Nascimento, endossam que: Para o Serviço Social, cujo lócus de atuação reside histórica e majoritariamente no campo das políticas sociais, é imprescindível que a análise crítica sobre os fundamentos da ‘questão social’, bem como das particularidades que suas expressões assumem, nos diversos contextos nacionais... (GUERRA; ORTIZ; SANTANA; NASCIMENTO, 2007, p.252). É importante destacar que a compreensão sobre a realidade social na contemporaneidade precisa passar pelo reconhecimento estrutural do racismo e patriarcado, bem como darelação antagônica de classes, quadro que é agravado com a égide da doutrina Neoliberal, instaurada no Brasil a partir da década de 1990, trazendono seu bojo a retração e desmonte dos direitos sociais conquistados. É mister registrar que as abordagens contidas neste trabalho dialogam com o projeto de pesquisa intitulado: “Insurgências negras e a negação do direito à vida: trajetórias políticas de mulheres frente ao genocídio da juventude negra – o luto a luta!”. Este estudo está sendo desenvolvido no Programa de Pós graduação em Serviço Social da UFRJ, mais especificamente na linha de pesquisa: Lutas sociais, Estado, Política social e Serviço Social. Temos assim, o registro da relevância e emergência das encruzilhadas e caminhos abertos a partir da Interseccionalidade, pontuando os aprofundamentos teóricos que abordem a estrutura social forjada na aliança entre patriarcado, racismo e capitalismo, contrariando que desta maneira estaríamos presos a pautas identitárias, e sim na perspectiva das ênfases possíveis e necessárias para desvelar as tramas do tecido social, onde se dá a atuação profissional do Serviço Social. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Magali da S.Desumanização da População Negra: genocídio como princípio Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 186 tácito do capitalismo. In: Revista em Pauta, Rio de Janeiro, 2014. ALMEIDA, Silvio de. O que é racismo estrutural? Belo Jorizonte. Letramento, 2018. BEHRING Elaine Rossetti e BOSCHETTI, Ivanete. Política Social: fundamentos e história. São Paulo. Editora Cortez, 2007. CARNEIRO,Sueli. 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Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 188 DESCOLONIZANDO CORPOS: APONTAMENTOS SOBRE QUESTÕES DE GÊNERO EM PERSPECTIVAS AFRICANAS E MUÇULMANAS Leone Henrique1 RESUMO Ao trabalhar com binarismos (homem/mulher) exclusivamente como categorias únicas e socialmente hierarquizadas, ou com perspectivas locais limitadas, ignoramos uma grande diversidade que acomete corpos e sujeitos. Tratando do caso de mulheres africanas e muçulmanas, este trabalho surge como um esforço de apontar perspectivas diversas sobre gênero. Para isso, foi realizada uma breve análise de textos escritos por autores concernentes ao tema, objetivando expandir o olhar sobre estas concepções e abrir desdobramentos para a importância de se reconhecer a influência da cultura, gênero e território sobre a construção do sujeito. PALAVRAS -CHAVE: gênero; pós-colonialismo; África; mulheres muçulmanas. ABSTRACT When working with binarisms (male/female) exclusively as unique and socially hierarchical categories, we tend to ignore a great diversity that affects bodies and subjects. In the case of African and Muslim women, this work emerges as an effort to point out different perspectives on gender. We made an analysis of texts written by authors concerning the theme, aiming to expand the view on these conceptions and to open up for the importance of recognizing the influence of culture, gender and territory on the construction of the subject. KEYWORDS: gender; post-colonialism; Africa; muslim women. INTRODUÇÃO Uma das grandes dificuldades enfrentadas no campo das teorias políticas talvez esteja em práticas colonialistas que não se materializam somente no controle de territórios, mas também do pensamento; em uma subjugação e subalternização de práticas e ideologias dissidentes do mainstream. Não são raras hoje em dia teorias que visam universalizar determinados conceitos e generalizar sua aplicabilidade para qualquer indivíduo, tornando assim mais fácil uma compreensão sobre o outro; entretanto, esta pode ser uma compreensão que não passa necessariamente pelo outro, mas talvez sobre si mesmo. Ao se falar sobre gênero e construção dos corpos, torna-se ainda mais complicado estabelecer uma universalização de conceitos ou teorias que podem ser aplicadas de forma absoluta e indistinta sobre qualquer corpo ou território, do ocidente ao oriente, do Oiapoque ao 1 Graduação em Relações Internacionais pela PUC-Rio. Seus interesses em pesquisa envolvem processos de construção de identidades, fronteiras e mobilidade (migrações e refugiados). E-mail para contato: leonehenrique@gmail.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 189 Chuí. É possível falar sobre diversidade a partir de binarismos, sem levar em consideração as hierarquizações sociais existentes e importantes questões como raça e classe? No presente artigo foi buscado mostrar alguns dos diferentes modos de viver e de analisar estas vivências, seja de mulheres euro-ocidentais, mulheres muçulmanas ou africanas. Corpos e realidades díspares, presentes em uma mesma fronteira, ou para além delas; corpos ignorados por preconceitos historicamente construídos, por teorias que visam universalizar modos de agir e viver que em nada representam o todo e análises que desconhecem as diferenças de um mundo em constante crescimento, comentários que não ultrapassam o digital, quiçá alcançam um caráter universal. Enfim, foi buscado, de alguma forma, trazer um pouco de voz a pessoas que, infelizmente, não são ouvidas por grande parte da sociedade, com o intuito de mostrar a grande diversidade existente entre indivíduos em diferentes partes do mundo e como as teorias às quais estamos acostumados muitas das vezes podem excluí-los. SUBJETIVIDADE E CORPO A princípio, torna-se importante introduzir uma discussão referente aos corpos e todas as construções singulares que os compõem. Não há, entretanto, alguma pretensão de se chegar a uma conclusão absoluta e incontestável, visto que estudos sobre o corpo existem desde a antiguidade e configuraria assim notável prepotência a obtenção de um ultimato objetivo em um campo de tamanha subjetividade. Seguindo em direção contrária ao fechamento de um caminho, Bock (2004, p. 6) já havia discutido sobre o individual e todas as subjetividades que o compõe em um meio social ao dizer que “o fenômeno deve ser visto como subjetividade, concebida como algo que se constituiu na relação com o mundo material e social, mundo este que só existe pela atividade humana” Segundo Paula Sibilia (2016), as experiências subjetivas em constante construção pela atividade humana podem ser estudadas a princípio em um nível singular, focando-se em uma trajetória de cada indivíduo como sendo um sujeito único. Em outro nível de análise, pode-se falar sobre a dimensão universal da subjetividade, com características comuns ao gênero humano. Por fim, a autora cita um terceiro nível que seria intermediário e se localizaria entre o plano singular e o universal da experiência subjetiva, onde se detectam alguns elementos comuns a alguns sujeitos, mas não necessariamente inerentes a todos os seres humanos; aqui estariam contemplados elementos que são culturais, frutos de forças históricas, sociais, Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 190 econômicas ou políticas. Para a discussão que aqui se pretende iniciar, torna-se importante a princípio um entendimento acerca das subjetividades que compõem o sujeito e como elas o afetam; seja em um nível de análise individual, universal ou em um nível intermediário onde o indivíduo se vê inserido no meio social que tanto o modifica, quanto é por ele modificado. Possuindo o indivíduo suas próprias crenças, conjunto de saberes e construtos que o move tanto em um nível físico quanto em seu imo, pode-se identificar nestes, algumas características que são universais, ao mesmo tempo que se evidencia particularidades e traços singulares que não são universais. Toda a complexidade que se observa na construção do sistema internacional e como este se comporta, pode ser observada também na construção dos sujeitos. Observa-se indivíduos parte de Estados marcados por práticas coloniais que se introjetam em seu íntimo, ou aqueles que vivem em territórios não reconhecidos e que, portanto, se torna ainda mais difícil a construção de uma identidade e do sentimento de pertencimento. Observa-se diferenças de gênero, sexualidade ou raça que costumam ser discutidas de forma mais objetivas por serem notáveis e se fazerem presentes, mas que na verdade são de tremenda complexidade e subjetividade. Os corpos são diversos porque têm pele. E têm uma pele que é diversa – cada pele tem suas dobraduras, suas rugas, seus corpúsculos de Pacini, seus estratos, suas endemias, suas endermias, sua biografia de suscetibilidade a miasmas (BENSUSAN, 2015, p. 54). No meio de toda a diversidade de corpos, observa-se tentativas de colonização que buscam uma espécie de homogeneização de práticas e pensamentos, uma objetividade no meio de sujeitos diversos compostos por suas próprias singularidades. Podem ser identificadas diferenças relacionadas a gênero, raça, sexualidade, culturas, religiões, entre outras, que se inserem em um meio de tamanhas complexidades, onde embora algumas teorias busquem um avanço em direção às liberdades individuais e à liberação de certos corpos que, há muito, são vítimas de subjugação e repressão, deve-se atentar para que estas não se tornem também, em certo ponto, alguma forma de dominação, ou que não seja uma proposta de ultimato que busque homogeneizar tamanhas diferenças culturais e vivenciais ao redor do mundo. DEVIR MULHER(ES) O que é ser uma mulher feminista? O que é ser uma mulher? De acordo com Simone de Beauvoir, a complexidade se encontra não somente na resposta, mas já se faz presente na formulação da pergunta. Em “O Segundo Sexo”, obra de 1949, a autora propõe levantar um Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 191 debate em cima desta questão; desde sua conceptualização, até a formulação de uma determinação do que é ser uma mulher. “O próprio enunciado do problema sugere-me uma primeira resposta. É significativo que eu coloque esse problema. Um homem não teria a ideia de escrever um livro sobre a situação singular que ocupam os machos na humanidade” (BEAUVOIR, 1970, p. 9). Beauvoir, ao contrário do que sugere alguns críticos, não tem a pretensão de zombar dos homens, ou afirmar que eles não precisam se definir em momento algum. Nas próprias notas de rodapé de sua obra ela cita um relatório que define as características sexuais do homem norte-americano, mostrando que também pode se buscar uma definição para o ser homem e para a existência de certas características tidas como comuns Sua discussão, porém, vai muito além disso; diz respeito à problemática da definição do que é ser mulher e, como esta constituição dificilmente se dá por si só. As mulheres, muitas das vezes, não são definidas unilateralmente, mas sempre em relação aos homens, sujeitos estes que, por sua vez, já possuem uma definição em sua gênese; desde Gênesis. Desde a constituição da mulher como saindo da costela do homem, sendo assim parte dele, passando pela definição de renomados autores, como Aristóteles, “‘a fêmea é fêmea em virtude de certa carência de qualidades’. E Sto. Tomás de Aquino, depois dele, decreta que a mulher é um homem incompleto, um ser ‘ocasional’. Benda afirma ‘O homem é pensável sem a mulher. Ela não sem o homem’. (BEAUVOIR, 1970, p. 10). Os homens não têm necessidade de produzir uma longa definição sobre quem são e qual seu papel na sociedade, visto que isso já seria dado. As mulheres, por sua vez, parecem ter uma longa história de representação que nunca aparece por si só, mas sempre em relação ao outro. Por isso, ao expor a ideia do devir mulher, iniciando o segundo volume de sua obra “O Segundo Sexo” dizendo que “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher” (BEAUVOIR, 1967, p. 9), a autora propõe uma crítica não somente ao que constitui o ser mulher, mas como esta se dá sempre em relação ao outro. “É o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino”. A ideia da autora, ao contrário de qualquer simplificação que possa ser feita, vai muito além, em uma constituição complexa que busca definir o que é ser mulher e apresentar este sempre como o “outro”; “o segundo sexo”. Quem endossa esta ideia é Judith Butler que alguns anos mais tarde, em sua obra “Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade” produz uma crítica ao caráter presunçoso da teoria feminista. Segundo Butler, a teoria trabalha como se existisse uma Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 192 identidade definida compreendida pelo termo “mulheres”, como se estas representassem um grupo homogêneo, com interesses em comuns e com lutas que pudessem ser compreendidas em suas mais diversas nuances e complexidades dentro de um mesmo espectro. A insistência prematura num sujeito estável do feminismo, compreendido como uma categoria uma das mulheres, gera, inevitavelmente, múltiplas recusas a aceitar essa categoria. Esses domínios de exclusão revelam as consequências coercitivas e reguladoras dessa construção, mesmo quando a construção é elaborada com propósitos emancipatórios (BUTLER, 2003, p. 20). Faz-se importante a percepção de que “mulheres” não constituem uma identidade única, que possa ser aplicada e entendida de modo universal em qualquer região e cultura. Não se pode ignorar toda a diversidade existente trabalhando com um binarismo de homem/mulher como categorias únicas e necessariamente hierarquizadas sem levar em consideração importantes questões como raça e classe, por exemplo. O risco, como endossado por Butler, é que ignorar tais questões e trabalhar somente com um binarismo hierarquizado, por mais que busque a liberdade e a emancipação, possa acabar sendo contraproducente e reincidindo consequências nocivas aos sujeitos. EPISTEMOLOGIAS AFRICANAS E MUÇULMANAS POR NOVAS FORMAS DE VER O MUNDO A falha na representação das mulheres e o tratamento do termo como formador de identidade única, gera, por consequência, teorias que visam não somente explicar as diversidades existentes na categoria “mulher”, mas visibilizar as particularidades e buscar uma representatividade maior, demonstrando os interesses e demandas que não se limitam somente às teorias ocidentais. Há uma grande polêmica, por exemplo, em relação às mulheres muçulmanas e a utilização do véu. Não se pode tratar mulheres ocidentais da mesma maneira que mulheres orientais2, assumindo que todas possuem os mesmos interesses e são afetadas da mesma maneira, muito menos buscar impor uma crítica em relação a seus modos de viver de acordo com perspectivas ocidentais, já que estas mulheres sofrem opressões que exigem uma análise além de uma mera universalização conceitual. Katherine Bullock, pesquisadora australiana que se foca nas políticas muçulmanas em perspectivas globais, conta na obra “Rethinking Muslim Women and the Veil” sua própria Embora os termos “orientais” e “ocidentais” já pressuponham uma dicotomia e homogeneização dos sujeitos inclusos nestes grupos, sua utilização aqui não é desproposital. 2 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 193 história onde passou por uma longa jornada que foi desde aversão ao Islã, passando para o respeito, interesse e finalmente a aceitação. Entretanto, de acordo com a própria autora, o caminho enfrentado para se tornar muçulmana foi repleto de preconceitos tanto por parte de si própria, quanto daqueles ao seu redor, que não a viam mais como a mesma pessoa de antes. Me encontrei sujeita a tratamentos hostis. Como eu poderia ter abraçado uma prática opressiva, especialmente quando eu era conhecida como sendo uma feminista comprometida? [...] eu não estava sendo tratada como quando uma mulher branca de classe média (BULLOCK, 2012, pág. XIV). Certamente há aqui um longo entrecho de preconceito religioso ao qual poderia gerar extenso debate, mas se analisarmos as diferentes formas as quais Katherine Bullock foi tratada em sua trajetória para o Islã, perceberemos que a questão pode (e deve) ir além disso. Há muito a ser discutido também na forma como parte do feminismo ocidental analisa e retrata a questão de mulheres muçulmanas, o que também foi alvo de questionamento por parte de Bullock em sua obra. Em “Rethinking Muslim Women and the Veil”, Bullock apresenta uma visão mainstream, que coloca as mulheres muçulmanas como sendo completamente subjugadas aos homens e o véu como um símbolo dessa opressão. Em seguida, apresenta também a visão de uma das escolas feministas que argumentam que o Islã, assim como qualquer religião patriarcal, subordina as mulheres e não permite a liberação das mulheres (BULLOCK, 2012). “Estas feministas muitas das vezes possuem um grande conhecimento sobre o Islã, sua história e práticas. Entretanto, algumas delas não ouvem atentamente as vozes das mulheres cobertas” (ibidem, pág. XVI). De acordo com a autora, tanto a visão mainstream, quanto a visão de determinadas escolas feministas possuem algumas premissas inteiramente embasadas no liberalismo, onde os conceitos são baseados na visão liberal de individualismo, igualdade, liberdade e opressão. Entretanto, encontrar liberdade e igualdade a partir do silenciamento de determinadas mulheres seria, no mínimo, contraditório. Dado que todos os sujeitos são construídos de maneira diferente e, consequentemente, possuem interesses diferentes, não se pode julgar todo um universo baseando-se apenas nos ideais de parte desta composição. Ouvir também as mulheres muçulmanas, seus interesses e ideais, ao invés de inserir todas em uma mesma seção, homogeneizando assim suas realidades, pode ser mais engrandecedor do que um julgamento generalizador. Dana Albalkhi, uma síria que se mudou para o Brasil em 2013, defende que o véu também é uma forma de liberdade (ALBALKHI apud FAGUNDEZ, 2016). A professora que Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 194 se identifica como feminista abraça uma maneira diferente de se olhar a questão do hijab na sociedade. Em entrevista à BBC Brasil, Dana diz que “as pessoas parecem não entender isso, mas lá a gente sofre num mundo machista. Para me proteger, o hijab é uma parte importante da minha vida. E, quando a gente sai para o mundo ocidental, também existe machismo” Albalkhi que, por ora, rejeita a ideia do casamento e qualquer imposição que pode ser feita a partir desta instituição, faz parte de um grupo de feministas árabes que reúne mulheres feministas no geral, muçulmanas ou não. Ela relata a grande diferença na interpretação presente na visão destas mulheres sobre questão do véu; de acordo com ela, as mulheres nãomuçulmanas enxergam o hijab como forma de repressão, entretanto as muçulmanas, como ela, veem nele uma forma de liberdade. Tais diferenças de análise acerca do feminismo e mulheres muçulmanas pode ser encontrada também através de matérias como a do The Australian, com uma manchete que defende a ideia de “Either you are a Muslim, or you are a feminist – but you can’t be both”3, onde o autor, Stephen Chavura, rejeita qualquer hipótese de uma mulher muçulmana se considerar feminista e grande parte dos comentários vão ao encontro do que Chavura oferece. Pessoas que se sentem contempladas com o que foi apresentado, pessoas que dizem achar engraçado mulheres muçulmanas que se dizem feministas, ou mesmo aqueles destilando ódio contra estas mulheres; extenso infenso não só às ideias aqui apresentadas, mas também ao ideal de uma suposta democracia, visto que mulheres são impedidas de se identificarem e se sentirem contempladas com determinada teoria, além de serem inferiorizadas por tal. As diversas formas de interpretar importantes temas que acometem mulheres ao redor do mundo leva não só à dissidência de algumas em relação a determinadas teorias feministas, mas também à criação e ao apoio a novas teorias e novas formas de analisar questões essenciais da vida destas mulheres e também da sociedade no geral. Dana Albalkhi e Katherine Bullock são algumas das que analisam a questão do véu, por exemplo, de maneira diferente do mainstream ao qual nós, ocidentais, estamos acostumados a ver; teorias que suspeitamos serem de caráter universal, mas que muitas das vezes não ultrapassam diversas fronteiras. Dentre as teorias que surgem com concepções díspares às quais estamos acostumados, teorias que buscam compreender as diversas realidades existentes em um mundo igualmente diverso, podem ser citadas as epistemologias africanas, assim como o Africana Womanism. Tais teorias buscam depreender e alçar realidades que por vezes são incompatíveis às nossas e, 3 Disponível em: http://www.theaustralian.com.au/opinion/either-you-are-a-muslim-or-you-are-a-feminist-butyou-cant-be-both/news-story/9b4f055def73abdb72ea6127f000bbd8 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 195 por isso, podem passar despercebidas, inauditas em um mundo tão vasto. Entretanto, a visibilização das diferenças e de novas formas de pensar são de extrema importância neste caso, visto que se trata de indivíduos construídos de maneiras diferentes, com subjetividades diferentes e, consequentemente, afetados e oprimidos de formas distintas. Oyèrónké Oyewùmí é uma feminista nigeriana, autora de importantes obras como “The Invention of Women” e “What Gender is Motherhood?”. Em “Conceituando o gênero: os fundamentos eurocêntricos dos conceitos feministas e os desafios das epistemologias africanas” (OYĚWÙMÍ, 2004) a autora fala sobre expansão da Europa e o estabelecimento de uma hegemonia cultural euro-americana em todo o mundo, principalmente em relação à produção de conhecimento sobre o comportamento humano, história, sociedades e culturas. Entretanto, Oyewùmí se questiona a situação de quais mulheres são bem teorizadas pelos estudos feministas, quais grupos de mulheres estão tendo suas demandas atendidas nos estudos e quais estão sendo deixadas de lado em teorias que buscam uma análise de caráter universal, mas que muitas das vezes são limitadas e limitadoras. Para exemplificar, Oyewùmí traz em evidência algumas epistemologias africanas, histórias e ideais desconhecidas e ignoradas pela produção de conhecimento europeia e ocidental que invisibiliza em suas obras a vida de diferentes mulheres ao redor do mundo não-ocidental. De acordo com a autora, o fato de que categorias de que as categorias gênero são apresentadas nas teorias ocidentais como sendo inerentes à natureza dos corpos operando assim numa dualidade dicotômica entre masculino/feminino, homem/mulher, em que o macho é presumido como superior e, portanto, sendo assim categorias definidoras, é particularmente alienígena a muitas culturas africanas. “Quando realidades africanas são interpretadas como base nessas alegações ocidentais, o que encontramos são distorções, mistificações linguísticas e muitas vezes uma total falta de compreensão, devido à incomensurabilidade das categorias e instituições sociais” (OYĚWÙMÍ, 2004) Como exemplo, Oyewùmí cita a família Iorubá não-generificada, uma sociedade que se localiza no sudoeste nigeriano e que apresenta uma distinta forma de organização familiar a que estamos acostumadas a ver, aprender ou teorizar. Um tipo de construção que se opõe ao binarismo homem/mulher e as consequentes idealizações que surgem a partir daí. A família Iorubá se apresenta como uma das formas de ser e estar excluídas das realidades e construções euro-ocidentais, uma sociedade distinta (como muitas outras) invisibilizadas dentro de análises, teorizações do meio mainstream e de discussões que por vezes não ultrapassam as fronteiras digitais, quiçá as geopolíticas que serpenteiam o mundo. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 196 A família Iorubá tradicional pode ser descrita como uma família não-generificada. É não-generificada porque papeis de parentesco e categorias não são diferenciados por gênero. Então, significativamente, os centros de poder dentro da família são difusos e não são especificados pelo gênero. Porque o princípio organizador fundamental no seio da família é a antiguidade baseada na idade relativa, e não de gênero. As categorias de parentesco codificam antiguidade, e não gênero. Antiguidade é a classificação das pessoas com base em suas idades cronológicas (OYĚWÙMÍ, 2004). Nas famílias Iorubás, por exemplo, não há nomenclaturas que definam crianças entre meninos e meninas, estas são definidas como omo, nomenclatura que melhor pode ser traduzida como prole, sem uma especificação de gênero (OYĚWÙMÍ, 2004). Esta família é somente um dos diversos exemplos que podem ser citados de sociedades distintas, construídas dentro de um modelo que busca homogeneizar as diferenças a partir de um não reconhecimento, ou a partir de uma falta de representatividade que exclui estas multiplicidades resistentes. Dentre as diversas epistemologias africanas, quem também busca uma análise distinta das usuais é Cleonora Hudsom-Weems, autora afro-americana que muito trabalha com a Africana Womanism. Em sua obra “Africana Womanism – O outro lado da moeda”, HudsonWeems reflete as divergências existentes na análise de teorias feministas euro-ocidentais e da Africana Womanism. Esta se coloca com uma agenda diferente, com um conjunto de prioridades das mulheres africanas que não são as mesmas prioridades em demanda por mulheres de outras regiões e contextos. Nem uma consequência, nem um suplemento ao feminismo, Africana Womanism não é feminismo preto, feminismo africano, ou womanism de Alice Walker que algumas Mulheres Africanas vieram a abraçar. Africana Womanism é uma ideologia criada e projetada para todas as mulheres da ascendência africana. Baseia-se na cultura Africana, e, portanto, necessariamente incide sobre as experiências únicas, lutas, necessidades e desejos das Mulheres Africanas. (HUDSOM-WEEMS, 2012). Através da “Africana Womanism”, Hudsom-Weems chama a atenção para considerações e demandas que muitas das vezes são inconcebíveis em análises presentes no contexto em que estamos inseridos. A autora acredita, por exemplo, em uma necessidade de troca entre homens e mulheres para a erradicação da opressão compartilhada; o outro lado da moeda, que dá título à sua obra, é a reflexão do sofrimento do homem africano e como este está diretamente entrelaçado com os destinos e opressões das mulheres africanas, chamando assim por uma espécie de “ajuda mútua” nos enfrentamentos de violências diárias. A recorrente enfatização da autora ao longo de sua obra sobre o quanto este modo de análise presente na Africana Womanism se difere de outras teorias, advém de um incômodo gerado da invisibilização de uma realidade que acomete diariamente milhares de mulheres. Mulheres estas que não tem suas realidades diárias reconhecidas por teorias do mainstream que Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 197 visam homogeneizar e universalizar conceitos e modos de viver que, por vezes, não se aplicam à diversidade de corpos e subjetividades presentes ao redor do globo. Como o feminismo é uma agenda política projetada para atender às necessidades e demandas das mulheres brancas, é plausível para esse grupo de mulheres, vítimas da opressão de gênero principalmente, adaptar-se a uma construção teórica com a finalidade de abordar as necessidades de erradicar a subjugação feminina em primeiro lugar. No entanto, colocar a história de todas as mulheres sob a história das mulheres brancas, atribuindo assim a posição definitiva a estas últimas, é um pouco presunçoso (HUDSOM-WEEMS, 2012). Hudsom-Weems (2012) ainda fala sobre os primórdios corrosivos que o feminismo teve para os Negros em meados do século XIX para enfatizar o quanto a teoria não a satisfaz. A autora contextualiza quando a XV Emenda da Constituição dos Estados Unidos foi ratificada em 1870. Esta emenda concedia aos homens americanos-Africanos (?) o direito ao voto, mas ainda não estendia esse privilégio para as mulheres. As mulheres brancas, então, ao contrário das mulheres negras, que estavam exultantes com essa vitória para a raça negra e com a possibilidade que este voto poderia melhorar as condições da comunidade negra, ficaram desapontadas. Iniciou-se assim, um movimento organizado entre as mulheres brancas da década de 1880, o que a autora diz que foi responsável por modificar o pêndulo de uma postura liberal para uma conservadora radical. De acordo com a internacionalmente aclamada escritora nigeriana Buchi Emecheta, autora de The Joys of Motherhood, as mulheres são frequentemente autoras e ainda estão sendo ignoradas por críticos do sexo masculino ou separadas em categorias como “feminista”. Eu não me relaciono muito bem com feministas ocidentais e sempre discordo delas. Elas só estão preocupadas com questões relacionadas a elas, transpondo-as para a África. Feministas ocidentais estão muitas vezes preocupadas com temas periféricos e não focam sua atenção em grandes preocupações. Elas pensam que, centrando-se sobre questões exóticas do “terceiro mundo”, internacionalizam seu feminismo. (EMECHETA apud HUDSOM-WEEMS, 2012). Todos os esforços de Hudsom-Weems, Emecheta e uma série de autoras africanas ao longo de suas obras não foram feitos para criar um conflito entre mulheres, não se deve analisar como um interesse de colocar uma mulher contra a outra, mas para mostrar como as demandas, por vezes, podem não ser as mesmas. A autora busca mostrar assim como que os discursos e crenças de uma teoria, por mais famosa e renomada que seja, pode estar ignorando a realidade de muitos indivíduos. Como ratificado pela autora, os povos da África têm sido impedidos de se autodefinir, estando sempre em posição de definidos. No presente trabalho pretendi, brevemente, estender tal ideia para povos da África, muçulmanos e todos aqueles que não se encaixam nas produções eurocêntricas de conhecimento que visam homogeneizar corpos diversos, construídos de Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 198 maneira diversa e com suas singularidades ignoradas em uma tentativa de colonizar não somente território, mas em uma das formas mais cruéis de se exercer poder: sobre corpo, sentimento e pertencimento. CONCLUSÃO Indivíduos são construídos de maneiras diferentes, cada um com suas subjetividades, conceitos e singularidades que os acometem de maneiras diferentes; religião, raça ou território são algumas das diversas particularidades responsáveis por exercer grande influência nos seres. Entretanto, mesmo com tamanha diversidade reconhecida, ainda falhamos em fazer algo para além deste reconhecimento: insistimos em uma busca, mesmo que inconsciente, por homogeneizar seres tão dessemelhantes entre si. Nas sociedades multiculturais contemporâneas, a dificuldade na interpretação e aplicação de determinadas teorias e conceitos torna-se parte da história de qualquer indivíduo. Entretanto, alguns destes indivíduos, dotados de capacidade, privilégios e meios, podem modificar esta história que ignora diversas realidades e vidas ao redor do mundo. Talvez seja mais positivo buscar conhecer algumas das diferentes realidades e enfrentamentos que acometem corpos e indivíduos, ao invés de falar sobre aquilo que pouco se sabe, em uma tentativa de uma universalização homogeneizante, ou como se as demandas de um fossem as demandas de todos. Buscamos tapar qualquer fenda; a uniformidade por vezes nos soa mais harmoniosa e fácil de lidar, a infinita diversidade presente no finito espaço, entretanto, é complexa e incompreensível. Ora, como poderíamos abraçar aquilo que não entendemos? É menos dispendioso estabelecer julgamentos a partir daquilo que temos bem a nossa frente: nossa cultura, nossos conceitos, nosso modo de viver e enxergar o mundo; por que não os universalizar? O grande desafio que enfrentamos em um mundo de diversidades é reconhecer as diferenças de modo a respeita-las, não num nível que hierarquize indivíduos a partir de suas singularidades. Para reconhece-las, entretanto, é fundamental que se ouça as diferenças para que com elas possamos aprender; se, ao longo da história, povos colonizadores foram responsáveis por criar sua própria narrativa, por que não deixar com que povos colonizados também se definam? Rejeitamos qualquer julgamento precipitado feito acerca de nós mesmos, mas não nos incomodamos em fazê-los sobre outras culturas e modos de vida, sobre outros seres que em Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 199 nada se encaixam com o contexto ao qual estamos inseridos. De fato, há opressões diversas que as acometem, mas buscar homogeneizar as diferenças e definir estas pessoas a partir de nós mesmos e nossas próprias crenças não se configuraria uma nova forma de opressão? Para saber mais sobre a vida de mulheres africanas ou muçulmanas, por exemplo, por que não perguntar a estas pessoas? Por que não ouvir o que elas têm a dizer? Destes questionamentos, outro surge ainda mais veemente: pode o subalterno falar? No fim, ainda pouco se sabe; muito se teoriza, discute, mas as realidades são distintas, acometendo e sendo acometidas por corpos e culturas igualmente distintos. Talvez alguma transformação seja alcançada caso busquemos dar voz a indivíduos que, por vezes, são silenciados, indivíduos estes que sofrem com uma variedade de violências que em nosso contexto não se faz dimensão. Dentre todas as violências, porém, uma das que infelizmente passa despercebida, são os atravessamentos de práticas coloniais que buscam homogeneizar e tomar poder não somente sobre territórios, mas também sobre corpos e diferentes modos de viver que, por vezes, são ignorados, produzindo gritos silenciosos e silenciados. REFERÊNCIAS BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: I. Fatos e Mitos. 4. ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970. 309 p. BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: II. A Experiência Vivida. 2. ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967. 500 p. BENSUSAN, Hilan et al. Corpos Diversos. Rio de Janeiro: Eduerj, 2015. 328 p. BOCK, A. M. B. (2004). A perspectiva histórica da subjetividade: uma exigência para a psicologia atual. 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Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 201 RAPPERS BRANCOS/AS, INTERSECCIONALIDADE E PRIVILÉGIOS Jorge Hilton de Assis Miranda1 RESUMO Com base nas discussões sobre branquitude e interseccionalidade, abordo as categorias de gênero, classe e estética articuladas com a de raça, para refletir sobre artistas brancos/as e privilégios. Analiso letras e respostas a um questionário na discussão de aspectos que fazem alguns/mas rappers se apoiarem no senso comum acionando tais categorias na tentativa de demonstrar que as pessoas brancas não possuem privilégios em relação às não brancas, alegando que ambas são tratadas e expostas a discriminações e demais violências da mesma forma. PALAVRAS-CHAVE: branquitude; interseccionalidade; racismo; rappers brancos/as. ABSTRACT Based on discussions of whiteness and intersectionality, I approach the categories of gender, class and aesthetics articulated with that of race, to reflect on white artists and privileges. I analyze letters and answers to a questionnaire in the discussion of aspects that make some rappersrely on common sense by triggering such categories in an attempt to demonstrate that white people do not have privilegesin relation to non-whitesclaiming that both are treated and exposed to discriminations and other violence in the same way. KEYWORDS: whiteness; intersectionality; racism; white rappers. Identidade é uma representação constituída a partir da diferença. É uma identificação atribuída e que se atribui caracterizando indivíduos e coletividades, com base em fatores culturais, biológicos, sociais, históricos etc. (CIAMPA, 1989; HALL, 2006). Se estabelece na interação social do indivíduo que "articula o conjunto de referenciais que orientam sua forma de agir e de mediar seu relacionamento com os outros, com o mundo e consigo mesmo." (NASCIMENTO, 2003, p. 31). Cada pessoa possui múltiplas identidades - maleáveis, nãofixas, imbricadas - que podem se alterar, se ajustar conforme os diferentes contextos. Assim, a partir de alguns/algumas artistas e das identidades de rapper, gênero, estética e raça, analisarei diferentes quesitos e contextos relacionados a imbricamentos, envolvendo tais categorias. No livro "HIP-HOP - A Cultura Marginal" (2006), de Anita Motta2 e Jéssica Balbino3, a rapper Rubia é descrita como uma das "precursoras" do H24, sendo enfatizado que "mesmo sendo branca, (...) é uma grande defensora do Hip-Hop e das mulheres no Movimento" 1 Doutorando em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Educação e Contemporaneidade pela Universidade Estadual da Bahia (UNEB). Especialista em história das culturas afrobrasileiras pela Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC) e cientista social pela UFBA. E-mail: zulu.hilton@gmail.com. 2 Em memória. 3 Jornalista feminista, escritora, produtora e assessora de imprensa ligada ao Hip-Hop. 4 Sigla para Hip-Hop. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 202 (BALBINO; MOTTA, 2006, p. 112). Em nosso questionário, a artista não se declara branca, mas sim "humana", justificando que sua "árvore genealógica é constituída de pessoas de descendência africana, indígena e europeia". Quando indagada sobre sua trajetória de vida e convivência com pessoas negras, ela considera: Nasci, cresci e vivo até hoje na Periferia. É inevitável que minha identificação fosse com a música negra, sempre presente na quebrada, do Samba de Partido Alto ao Funk de hoje. Meus relacionamentos afetivos foram em quase sua totalidade com homens negros. Tenho dois filhos negros. A música que trabalho e me identifico é negra. Meu sustento é como cabeleireira de cabelo Afro. Estudo em uma Universidade Federal que o contingente de pessoas negras está aumentando a cada ano. Meus melhores amigos são negros. Resumidamente, minha vida toda está permeada pela cultura e vida afrodescendente. Acho que até responde um pouco a questão de me ver “branca”. Não me sinto “branca”. (RUBIA, 2014). Aqui me deparo com uma questão interessante. Tanto a rapper Rubia quanto a escritora Jéssica Balbino são, em aparência física, brancas e gordas. Mas, curiosamente, embora Jéssica, em seu livro, classifique não só Rubia, mas também a rapper Dina Di, como "brancas", como base em seus fenótipos, quando se refere à própria definição racial, parece não demonstrar a mesma disposição. Na busca que fiz na internet, nas mais diferentes matérias, sua fala restringese a se apresentar como "gorda, mulher e feminista", omitindo sua identidade étnico-racial. Para Ruth Frankenberg: (...) qualquer sistema baseado na diferença molda aqueles a quem outorga privilégio tanto quanto os que oprime. As pessoas brancas são investidas de "raça", da mesma forma que os homens são dotados de "gênero". E num contexto social onde pessoas brancas veem-se com demasiada frequência como não-raciais ou racialmente neutras, torna-se crucial observar a "racialidade" da experiência de ser branco. (FRANKENBERG, 1993, p.1 citada por NASCIMENTO, 2003, p. 210). O conceito de interseccionalidade busca dar conta da análise em torno dos diferentes imbricamentos em contextos opressivos. Para a intelectual e ativista negra Kimberl Crenshaw: É uma conceituação das duplas ou triplas formas de discriminação que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. (CRENSHAW, 2002, p. 7). Assim, com a mesma coerência que defende o fim do machismo e do que chama de "gordofobia5", seria interessante que Jéssica Balbino, diante do seu quadro interseccional, se posicionasse afirmando-se racialmente e de modo autocrítico, questionando os privilégios ainda que involuntários - ofertados pelo seu fenótipo branco. Essa empatia possibilita se solidarizar com o "problema do outro", que também é seu, estimulando um ciclo compreensivo 5 Discriminação sistemática contra pessoas gordas. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 203 e colaborativo entre os que se encontram em diferentes posições de desigualdades. Para mim, é um compromisso ético-pedagógico, enquanto homem, agir na mesma perspectiva em relação às questões de estética e de gênero, o que inclui não somente as convenções sociais de masculino e feminino, mas acima de tudo os incompreendidos estados sociobiológicos, envolvendo orientação afetivo-sexual de gays e lésbicas, por exemplo, bem como a identidade de transexuais, intersexuais, travestis, dentre outras. Em relação a seu ativismo contra a gordofobia, Balbino (2013)6 levanta uma série de questionamentos importantes em uma entrevista: Se eu sou gorda, trabalho, vivo, existo e pago meus impostos, por que não ter acesso a tudo? Por que não posso me sentar confortavelmente em uma cadeira de cinema? Por que devo me adequar a um padrão? Aí, vem o famigerado discurso sobre saúde para defender um preconceito, uma imposição. Ando com cópia de exames feitos recentemente, provando que sou saudável. E então? Sou eu que devo mudar ou a sociedade que deve parar de me escravizar? (...). A imposição da mídia, de seus amigos, do mundo, é extremamente complicado. NÃO EXISTE DOR MAIOR DO QUE OUVIR: “VOCÊ TEM UM ROSTO LINDO!”. Como assim?! E meu corpo? E meus quilos “extras”, e minhas curvas, e minha barriga – que sim, é saliente, mas é minha parte – , então, somos violentadas o tempo todo, quando nos impõe padrões. (BALBINO, 2013). Em seu livro (ibidem), cita um episódio envolvendo a rapper Rubia, que entrelaça discriminação com base na cor e na condição de gorda. Segundo a escritora, ela encontrou no banheiro um escrito que dizia: "Rubia, branca vaca". Apesar da ofensa, Rubia afirma não ter se intimidado, sendo mais um motivo a continuar fazendo do Rap um meio de luta. Defende que "as mulheres têm de se unir e lutar sozinhas, porque os homens não farão isso por elas". Penso de modo diferente, acredito na educação enquanto processo de transformação positiva dos indivíduos capaz de sensibilizar homens para desenvolverem autocrítica e ações pelo fim do machismo e demais formas de violência contra a mulher. Nessa luta, bradou Paulo Freire: Não me venha com justificativas genéticas, sociológicas ou históricas ou filosóficas para explicar a superioridade da branquitude sobre a negritude, dos homens sobre as mulheres, dos patrões sobre os empregados. Qualquer discriminação é imoral e lutar contra ela é um dever por mais que se reconheça a força dos condicionamentos a enfrentar. A boniteza de ser gente se acha, entre outras coisas, nessa possibilidade e nesse dever de brigar. (FREIRE, 1996, p. 25) A opressão é nossa e nos privilegia a todo instante, portanto a responsabilidade maior diante do problema deveria ser dos homens. O rapper Gaspar defende "quem fez a merda que limpe". Em outras palavras, que o praticante ou somente beneficiário da violência deve ser 6 Cf. http://www.revistaforum.com.br/questaodegenero/2013/10/09/jessica-balbino-fala-sobre-ser-mulher-gordae-feminista/ Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 204 responsabilizado a repará-la. Nesse sentido, Elisa Larkin Nascimento (2003), fala da postura do sociólogo negro estadunidense, W.E.B Du Bois7, enquanto aliado das mulheres, já em um período extremamente crítico de subjugação e negação de direitos. Du Bois dedicava-se ativamente à causa do voto para a mulher, o que naquela sociedade segregada significava, na prática, o voto para a mulher branca. Entre 1911 e 1920, Du Bois escreveu mais de vinte artigos, organizou simpósios, participou em atos públicos e advogou, em geral, o sufrágio feminino. (NASCIMENTO, 2003, p. 70) Em nosso questionário, quando perguntada sobre letras de sua autoria que tratem da temática étnico-racial, Rubia informa que suas composições abordam mais a questão de gênero. Na música "Vergonha na cara8" (1997), ela manda um recado para os homens: Se ao invés de tentar passar uma falsa imagem De quem nada teme e se julga dono da situação Ser forte e valente é sua obrigação? Se for assim ainda prefiro aquela frase tão usada Antes só do que mal acompanhada (...) Falam tão fácil da prostituição feminina Cara de mau não adianta, não intimida Vocês vão aguentar o que vou falar nesse momento Sabe o que é fechar os olhos para o sofrimento? Fingir prazer para ganhar o seu sustento Arriscando a pele numa esquina qualquer da vida E ter que agüentar seu falso moralismo Sua fantasia é possuir uma delas no íntimo Pior que vender o corpo é vender a moral Se corromper pelo poder e o vil metal - Na política tá assim de prostitutos, Rubia – tô ligada! Rubia fala de machismo, que, dentre os vários efeitos, enclausura os homens numa autoobrigação de sempre se mostrar inconsequentemente "forte" e "valente". Critica o "falso moralismo" dos mesmos e aponta a necessidade do respeito às profissionais do sexo. No questionário, indagada se considera haver na sociedade privilégio aos brancos/as em função do fenótipo, ela alega: Ter pele clara não me deu privilégios perante a sociedade, visto que sou gorda e possuo inúmeras tatuagens. Não ter um corpo pelo padrão imposto pela mídia e ostentar desenhos na pele que, ainda hoje é visto como coisa de marginal, não me permitiu ver os privilégios desse “branco” ao qual estamos dissertando. A fala de Rubia se assemelha à do homem que nega ser privilegiado socialmente enquanto tal, por ser negro, gordo, cheio de tatuagem. Sem dúvida que os estereótipos e estigmas em torno do sobrepeso e dos "desenhos na pele" interseccionalmente se somam 7 Pensador pan-africanista que, dentre outras questões, estudava e combatia a relação entre racismo e patriarcalismo. 8 Canção do repertório do grupo de Rap RPW, o qual Rubia faz parte. Cf. http://letras.mus.br/rpw/321870/ Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 205 convertendo-se em barreiras. Porém, essa realidade não deveria "invisibilizar" os efeitos da identidade de poder enquanto aparência branca. Ainda que não intencional, a "invisibilidade" branca, também entendida como ausência de vigilância e autocrítica, colabora para a manutenção dos privilégios raciais em prol do branco/a (CARDOSO, 2014). A pesquisadora Lia Schucman (2012), em seu estudo sobre a branquitude paulistana, apresenta a visão de uma mulher loira e gorda, que descreve, convencidamente, como sua condição racial lhe privilegia nas relações conjugais, mesmo estando "acima do peso". Diz ela: "Quando saio à noite, se vejo um branco muito bonito, tenho certeza de que não tenho chances com ele. Mas sei, e tenho quase certeza, de que tenho chances com um cara negro muito bonito... (Vanessa)." (idem, p. 68). Um dia após redigir a reflexão acima, assistindo ao noticiário da TV local, me deparei com uma matéria sobre um concurso na Bahia, o "Miss Bariátrica 2015" voltado para mulheres que passaram pela cirurgia de redução de estômago. Sem entrar no mérito do tema, ao ver as candidatas em desfile, chamou-me atenção a desproporcionalidade quantitativa das mulheres brancas em relação às não-brancas. No estado onde as pessoas brancas representam apenas 20,8% da população9, as mesmas são "hegemônicas" quando o contexto é de destaque. O privilégio branco se mantém intocado em sua "normalidade". Procurei um possível vídeo da matéria, sem sucesso. Porém, em sentido semelhante, me deparei com outras notícias Brasil afora. O site do jornal Folha de São Paulo exibe fotos10 de 30 (trinta) mulheres relacionadas ao concurso Miss Plus Size (2015). Dessas, 29 (vinte e nove) possuem fenótipo branco especificamente com pele clara e cabelos lisos - com predomínio do tipo "branca branquíssima" (loira natural ou artificial) e "branca morena" (SCHUCMAN, 2012). Apenas uma preta, que, talvez, para ter conseguido "furar o bloqueio" e estar nesse espaço segregado, precisou estar de cabelo alisado e com os olhos claros, levando a crer estar de lentes. O assunto me motivou a buscar mais informações na internet. Ao acessar o site Miss Brasil Plus Size11, uma janela foi exibida com a seguinte imagem informativa: Segundo a SEI – Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia-, com base nos dados do IBGE (2013). Cf. http://www.sei.ba.gov.br/images/bahia_sintese/xls/pnad_2013/Tabela_615.xls 10 Cf. http://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/6202-miss-plus-size#foto-117165 11 Cf. http://missbrasilplussize.com.br/ 9 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 206 Fonte: http://missbrasilplussize.com.br/ Com a informação, ponderei: se "mudou", se tem "novo formato", "mais oportunidade" e está "mais moderno", logo deve estar mais justo racialmente. Ao clicar no link indicado sobre o novo site12, constatei que o predomínio das mulheres brancas nas fotos se manteve, quase absoluto, se não fosse a cota13 de uma ou duas negras. O quadro se apresentou semelhante nas edições posteriores do concurso, que incluem a do ano 201814. Analisemos agora o imbricamento envolvendo as dimensões artística, racial, de classe e de gênero, através da história de vida da rapper Dina Di. Sobre ela, na obra citada de Jéssica Balbino e Anita Motta (2006, p.144) é descrito: Ela é branca, da cor dos opressores. É mulher. Não tem RG, endereço ou namorado. Não tem pai, nem mãe. Perdeu o celular, o marido e a guarda do filho, Lucas. Não tem dinheiro, tampouco religião. Ela tem estilo, rima na ponta da língua. É guerreira, considerada uma “mina de fato”. Ela é paulistana, cria do Hip Hop. Líder do primeiro grupo de Rap feminino a chegar até a mídia. Tem três CDs gravados. Seu nome? Ela é conhecida como Dina Dee, e tem fãs em todo o país. O pai de Dina Dee era mestre de obras e morreu engasgado com um pedaço de carne num boteco, na periferia. A mãe dela era camelô e foi assassinada dentro de casa, uma morte lenta e dolorosa, ela foi asfixiada com um pedaço de pano que lhe enfiaram na garganta, enquanto estava amarrada com os fios do varal de roupas. Seu companheiro, ao querer vingar a sogra, acabou baleado e preso. Dina Dee ficou só, e da dor, cria versos, que são transformados em músicas de Rap, sob a visão da rua 15, literalmente. (...) A rapper vive de favores, como lugar para morar, dinheiro para comer e se vestir. Fugiu de casa aos 13 anos porque estava cansada de trabalhar para mãe. Dina Deevendia rosas e cachos de uva. Passou várias vezes pela Febem. Cursou até a terceira série e apresenta um vocabulário precário, engolindo e trocando algumas letras nas palavras, entretanto, isso não a impede de rimar o que lhe aflige. Ela conheceu o Hip Hop aos 16 anos. 12 Cf. http://miss.tv.br/ Adotada, mas não oficializada, uma vez que, em discurso, se colocam quase sempre contra as cotas. 14 Cf. http://www.missbrasilplussize.com.br/ 15 Visão de Rua é o nome do grupo que a citada rapper criou e fez história. 13 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 207 Confesso que fiquei muito impressionado com o relato, pois desconhecia toda essa situação de infortúnios e violência na vida da rapper, "vítima do próprio sistema que tenta combater", como bem pontuado pelas autoras. Porém, o livro não acompanhou outro fato lamentável e ainda mais triste. Em 2010, aos 34 anos, a artista veio a falecer vítima de uma infecção hospitalar generalizada, que contraiu e se agravou após dar à luz a sua filha Aline. Diante de qualquer quadro semelhante, é inevitável não se sensibilizar. Essa tragédia, banalizada principalmente no cotidiano da população negra, é reflexo da transformação na forma como os governos exercem o poder (Foucault, 1999 [1976]). Conforme Raquel Silveira (2013, p. 49): "Se antigamente o soberano tinha o direito de “fazer morrer” e de “deixar viver’, na lógica contemporânea do biopoder há uma inversão, em que os Estados vão “fazer viver” e “deixar morrer". Porém, o episódio em questão poderia servir para alguns reforçarem suas ideias de que brancos e não-brancos são tratados da mesma forma, de que "não existe essa coisa de privilégios da brancura". É prudente que qualquer análise que se pretende aprofundada não seja feita sob apelo emotivo. Dito isso, pergunto: pode se dizer que, nessa estrutura machista, nem sempre nós homens somos privilegiados? Sim. Segundo a revista Exame16 (2014), com base em dados do IBGE (2014), enquanto vítimas de ato violento, os homens morrem em um número aproximadamente cinco vezes maior do que as mulheres. Do mesmo modo que representamos mais de 80% da população de rua17, além dos nossos índices de escolaridade18serem inferiores aos delas. Mas, por conta disso, posso dizer como Gabriel O Pensador, na música Lôraburra, "Não, eu não sou machista, exigente talvez"? Ou mesmo que "somos iguais" porque não reconheço machismo em mim (talvez só na sociedade), e que não faz sentido um dia das mulheres, cotas para as mesmas em diferentes setores, se aposentar mais cedo, uma lei como a Maria da Penha etc? Não. A exceção não é a regra. A sociedade é estruturada institucionalmente para privilegiar nós homens, todos os dias do ano, inclusive no 8 de março19. Resumindo: somos machistas, no mínimo, por omissão. Para se ter dimensão dessa realidade que beneficia os homens, segue trecho de um Rap intitulado "Privilégio de Macho". Ela não pode nem mesmo vestir o que quer "Quer ser abusada!" Quem nunca ouviu isso de um mané? A Amélia, de saia curta, se atrapalha Com a identidade feminina resumida à genitália 16 Cf. http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/homens-sao-as-principais-vitimas-da-violencia-no-brasil Cf. http://www.brasilescola.com/brasil/populacao-situacao-rua.htm 18 Cf. http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2014/11/escolaridade-das-mulheres-aumenta-em-relacao-ados-homens 19 Estipulado como Dia Internacional da Mulher. 17 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 208 Quem de nós suportaria? Já pensou ser agredida e ainda ouvir deboche na delegacia? (...) Quando o assunto é concepção Seu corpo não é seu, é da religião Se não tem grana arrisca a vida em cada aberração Até a ciência tá do nosso lado, irmão! Descobrem a cura da AIDS, câncer, imagina! Mas não criam uma pílula masculina (...) Estudou duas vezes mais, ganha duas vezes menos Se ela é alta, qual macho pisa nesse terreno? Vá entender, é mais prudente no volante Mas a fama que leva é preocupante Longe quero tá desse julgamento cruel Continuar com o meu privilegiado papel Vendo a gramática privilegiando nós Elas são muito melhores, mas respeito tá em nossa voz De autoridade masculina, a começar por Deus Mas se Deus é homem ou mulher, a vida não respondeu Elas precisam de bolsa, nós apenas de bolso Cadê a banda feminina famosa, seu moço? Se tô na festa, pego dez, eu sou o miserê! Se ela fica com o segundo, a fama vai correr A maioria, com intelecto de invejar Conhece Freud, mas não o caminho de gozar (SIMPLES RAP'ORTAGEM, 2014) O sufixo "ismo", dentre outras coisas, se refere à "sistema político" e "ideologia". Capitalismo, racismo e machismo são sistemas de poder que, além de outros aspectos, têm em comum a reprodução de desigualdades. No caso do racismo, mesmo no Sistema Único de Saúde - SUS -, diferentes estudos constatam que mulheres brancas possuem vantagens quando comparadas às pardas, pretas e indígenas. Em 2009, o Ministério da Saúde publicou o documento Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, Princípios e Diretrizes20. Para as pessoas que insistem em acreditar simploriamente que as desigualdades se justificam pelo fato de a população mais prejudicada ser a numericamente maior, o "Gráfico 2" faz cair por terra tal pensamento. 20 Cf. http://desafios.ipea.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2688:catid=28&Itemid=23 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 209 Gráfico 2 Imagem extraída do site: http://desafios.ipea.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2688:catid=28&Itemid=23 Pelos dados desdobrados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística- IBGE(2009), a população branca brasileira (48,4%) é superior em números à da parda (43,8%), preta (6,8%) e indígena ou amarela21 (0,9%). Esses últimos, que representam a menor população brasileira, se encontram, conforme o "Gráfico 2", em realidades opostas, com os indígenas que estão na pior posição em mortalidade infantil. Justificar a violência e desigualdades que um grupo sofre, em função de estar em maior número populacional, não se sustenta, é um pensamento falho, superficial e perigoso. Por essa lógica, os brancos apareceriam entre os piores índices relacionados à violência e ausência de direitos. Mas, o que se verifica é justamente o contrário. Desde o nascimento, as pessoas de cor branca são privilegiadas em relação a outras, se mantendo assim ao longo da vida em todas as classes sociais. Ao que se refere à taxa de mortalidade infantil, os brancos são o segundo mais protegido, só sendo superados pelos amarelos, os mesmos que frequentemente são equiparados a negros e indígenas quando, a esses últimos, é sugerida atenção diferenciada em função das discriminações e racismo dos quais são vítimas. Em todas as situações, as mulheres brancas se encontram privilegiadas em relação às negras22. Ainda com base no documento do Ministério da Saúde (idem): 21 Podem representar os asiáticos do Extremo Oriente e seus descendentes (os mongóis, chineses, coreanos e japoneses). Segundo Nota Técnica do IBGE, a cor amarela entrou como critério censitário a partir de 1940, para dar conta da imigração japonesa ocorrida fundamentalmente entre 1908 e 1930. Cf. http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/caracteristicas_raciais/notas_tecnicas.pdf. 22 Pardas e pretas somadas segundo classificação do IBGE. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 210 Situação Não receberam anestesia no parto normal23. Receberam orientação para a importância do aleitamento materno. Tiveram acompanhantes no parto. Mortes maternas Brancas 5,1% 77,7% Negras 11,1% 62,5% 46,2% 34% 27,0% 60% Diante do contraste, o então ministro, Arthur Chioro, reconheceu24 que "Dados importantes mostram como a desigualdade e o preconceito produzem mais doença, mais morte, mais sofrimento (...). O que mais pode justificar essa diferença [no atendimento a brancos e negros no SUS] que não seja o preconceito e o racismo institucional?”. Ainda que na mesma faixa de renda e instrução, as desigualdades se mostraram marcantes. Com base na avaliação das mães, completar o segundo grau de ensino (ou mais) pode reduzir os riscos de atendimento de má qualidade no SUS, fato que poderia conferir outro destino à rapper Dina Di, uma vez que só possuía a 3ª série do antigo 1° grau escolar. Porém, os dados revelam que, entre essas mães com escolaridade maior, a redução dos riscos de atendimento de má qualidade é favorável às brancas, contemplando uma taxa aproximada de 70% delas. No caso das pardas, a redução dos riscos cai para 50% e nas negras 25, por volta de 30%. Ou seja, a educação protege mais as mulheres brancas. "LÔRABURRA", GÊNERO E PRIVILÉGIOS Na música Lôraburra26 (1993), de Gabriel O Pensador, acontece um fenômeno curioso. Ele, branco, critica um tipo pertencente ao seu grupo racial, loiras (ou louras), que representa o topo da hierarquia estética e de raça (CARDOSO, 2014), o mais alto grau de padrão de beleza. Embora seja difícil mensurar, seria interessante um estudo que buscasse verificar em que medida a branquitude delas foi "arranhada" por essa música. Milhões de pessoas transitam pelas ruas Mas conhecemos facilmente esse tipo de perua Bundinha empinada pra mostrar que é bonita E a cabeça parafinada pra ficar igual paquita A crítica é direcionada a um padrão de comportamento associado às mulheres loiras, 23 O SUS paga esse procedimento, com o objetivo de diminuir o medo da dor do parto, para tentar reduzir a frequência de cesarianas. 24 Cf. http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-11/saude-lanca-campanha-contra-racismo-no-sus. 25 A referência não informa os motivos para não se usar a classificação do IBGE, de pardos e pretos ao invés de negros. 26 Cf. http://www.vagalume.com.br/gabriel-pensador/loraburra.html. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 211 principalmente àquelas não naturais que se fizeram tal através de produtos como "parafina". As principais características relacionadas ao "desvio" de conduta em questão seguem em trechos como: À procura de carros, à procura de dinheiro O lugar dessas cadelas era mesmo no puteiro (...) Não pensam em nada só querem badalar Estar na moda, tirar onda, beber e fumar (...) Escravas da moda, vocês são todas iguais Cabelos, sorrisos e gestos artificiais Ideias banais e como dizem Os Racionais: (Mulheres vulgares: uma noite e nada mais) Lôraburra, você e vulgar sim! Seus valores são deturpados, você é leviana Pensa que está com tudo, mas se engana Em sua frágil cabecinha de porcelana A sua filosofia é ser bonita e gostosa Fora disso é uma sebosa, tapada e preconceituosa (...) Pode se dizer que, no contexto de privilégios que tal condição estética lhe confere, a Lôraburra não é tão "burra" assim. Pelo que a música indica, ela tem um propósito firme, que é buscar conforto, facilidades e ostentação de poder. Seja "À procura de carros" ou "de dinheiro" se fará "preconceituosa" na escolha dos homens que possam lhe garantir o status desejado. No final do Rap, Gabriel procura deixar explícito que sua crítica abrange os mais diferentes protótipos de loirice27. É, o problema não tá no cabelo, tá na cabeça, não se esqueça Nem todas são sócias da farmácia (Lorácia) Tem muita Lôraburra de cabelo preto e castanho por aí Lôraburra morena, ruiva, preta... Lôraburra careca... E tem a Lôraburra natural também (Loraçabelzeburra) Cada Lôraburra é de um jeito, mas todas são iguais O hit Lôraburra fez um estrondoso sucesso nos anos de 1990. Porém, esse estereótipo associado às loiras tem origem e autoria anteriores localizadas entre as décadas de 1930 e 1940, no cinema hollywoodiano. Segundo Denise Silva e Martha Mendonça em uma matéria28, nos filmes desse período, os gângster sempre exibiam suas loiras oxigenadas 29. A partir daí, essa indústria cinematográfica soube explorar bem "o filão". Na comédia clássica “Os Homens Preferem as Louras”, de 1953, Marilyn Monroe (a diva oxigenada) e Jane Russell (uma morena legítima) disputam um bom partido. Dois anos depois, os estúdios americanos lançaram o longa “Eles se Casam com as Morenas”, dando continuidade à pendenga. "Ali ficou clara a divisão de papéis", comenta [o crítico de cinema] Rubens Ewald. "O símbolo estava criado." (SILVA; 27 Qualidade de quem ou do que é ou está loiro. Cf. http://www.aulete.com.br/loirice#ixzz3hCgDQxip. Em artigo para o site da revista Época. Cf. http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI13748815228,00-A+VINGANCA+ESPERTA.html. 29 Que utilizou produto químico para tingir o cabelo. 28 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 212 MENDONÇA, 2010) As autoras concluem que, independente do preconceito e das maledicências, o fascínio pela aparência loira se mantém dentro e fora do Brasil. Na referida matéria, elas trazem outras vozes: "Elas realmente chamam mais a atenção", reconhece o publicitário Alexandre Gama. Segundo ele, a escalada de modelos altas e magras de origem europeia foi decisiva para firmar o tipo. Já o feminismo interpreta o fenômeno de maneira mais contundente. "Ser loura é adotar o estereótipo de Primeiro Mundo", diz a escritora Rose Marie Muraro, representante histórica do movimento. "Só os homens têm a ganhar com mais essa desqualificação da mulher". (SILVA; MENDONÇA, 2010). No que tange aos privilégios conferidos pelo racismo brasileiro, como ele é de base melanodérmica, cromática (GUIMARÃES, 1999; MOORE, 2012; LOPES, 2014) e não genética, tanto faz ser loira natural ou tingida. Não possuo elementos que me permitam concordar completamente com a escritora Rose Marie quando diz que só os homens ganham com o estereótipo negativo associado às loiras. Gostaria de ver um estudo que buscasse dimensionar se as bases de poder que sustentam a superbranquitude das loiras, em alguma medida, foram afetadas; o que poderia sugerir algum ganho para outros grupos de mulheres não-loiras. Me pergunto: se ao invés de mulher o alvo da música de Gabriel fosse homem, um "lôroburro", a repercussão seria a mesma? Acredito que não. Uma pista que reforça minha posição está na fala de Nathália, uma das participantes da pesquisa de Cardoso (2014, p. 167): A mulher é muito mais cobrada, uma consequência de um pensamento extremamente machista pelo qual a nossa sociedade foi erigida. A mulher sempre é colocada como um objeto. No caso, a beleza é fundamental, ela tem que ser bonita para ser bem vista, para ser aceita. Uma necessidade que não é tão imposta ao homem. Evidentemente que também existe uma cobrança de que o homem esteja bem-apessoado. Mas, não é uma cobrança tão grande quanto em relação à mulher. Ela tem a obrigação de estar constantemente bonita porque é um objeto de consumo. Então ela tem que estar sempre pronta ao consumo, é como se ela sempre estivesse numa vitrine. Em uma autoavaliação, Gabriel tem declarado30 que a música Lôraburra traz alguns aspectos moralistas que ele tem discordado. "O mundo evoluiu, assim como a liberdade sexual. Se a garota quer usar roupa curta, beber e fumar, deixa ela. Se eu tivesse uma filha mulher, não seria o pai caretaço”, afirma. Em 2003, após dez anos de lançada, a canção foi regravada para o CD MTV ao vivo, ganhando novos versos31, dentre os quais um que chamou bastante atenção na época: "Escravas 30 Cf. http://odia.ig.com.br/portal/diversaoetv/rapper-gabriel-o-pensador-lan%C3%A7a-novo-cd-depois-de-seteanos-e-fala-da-separa%C3%A7%C3%A3o-1.527472 31 Cf. http://www.padrebeto.com.br/padrebeto/Portugues/detPost.php?codpost=1483. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 213 da moda, você é capaz de matar seus próprios pais!". A frase fazia alusão à assassina loira Suzane Von Richtofen. Sobre a referida criminosa, uma matéria32 traz o curioso título "Suzane Richthofen, que matou os pais, vira pastora evangélica e choca o País". Embora tornar-se líder religiosa/o seja algo incomum no caso de bandidas/os como Suzane, o mesmo não se pode dizer sobre esses converterem-se na religião evangélica. Mas por que não a católica, espírita, candomblé ou qualquer outra? Talvez pela base teológica protestante, historicamente voltada para a realização material e prosperidade em vida, e não após a morte (WEBER, 2004). O fato é que tornou-se recorrente assassinos com certo prestígio social, por serem brancos, e/ou artistas, e/ou ricos, tornarem-se evangélicos, vide o caso do ex-ator Guilherme de Pádua (assassino da atriz Daniella Perez) e outros33. O apelo religioso, junto aos privilégios da brancura, estética e classe social compõem uma poderosa corrente amenizadora da imagem de assassinas/os como esses/as. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BALBINO, Jessica; MOTTA, Anita. HIP HOP A Cultura Marginal: Do povo para o povo. São Paulo: independente, 2006. CARDOSO, Lourenço. O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Letras (Campus de Araraquara). 2014. CIAMPA, Antonio da Costa. Identidade. in Psicologia Social: o homem em movimento. LANE, S. & CODO, W. (Org.). São Paulo: Ed Brasiliense. 1989. CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 171188, 2002. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal; 1999[1976]. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 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Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 215 GUERRA DO CONTESTADO E A MULHER NO ENFRENTAMENTO DOS ESTEREÓTIPOS DE GÊNERO Andreza da Silva Jacobsen1 RESUMO O objetivo deste artigo é expor o estereótipo criado a partir do gênero feminino na Guerra do Contestado. A metodologia conta com abordagem qualitativa através da pesquisa bibliográfica e investigação exploratória descritiva que demonstra a discriminação contra o sexo feminino. O conteúdo será apresentado de forma cronológica expondo desde aspectos históricos como a memória do povo caboclo até a crítica ao estereótipo de gênero. Logo, o aspecto relevante vem a ser a importância do papel feminino no conflito e suas constantes lutas travadas em busca da igualdade. PALAVRAS-CHAVE: Mulheres; Contestado; Representatividade; Igualdade, Estereótipos. ABSTRACT The objective of this article is to expose the stereotype in the world of work in the War of the Contestado. The methodology relies on the qualitative approach through bibliographic research and exploratory descriptive research that demonstrates discrimination against the female sex. The document consider revising chronologically exposing from contextualized as a critique of the people until a critic to the gender stereotype. Therefore, the relevant context comes from the importance of the feminine role without conflicts and their constant struggles in search of equality. KEYWORDS: Women; Answered; Representativeness; Equality, Stereotypes. INTRODUÇÃO Embora sejam poucos os registros da Guerra do Contestado que contemplam a participação das mulheres, elas tiveram um papel fundamental no conflito, cada qual com a sua importante atuação. A presente pesquisa se inicia com um questionamento geral sobre o papel das mulheres na sociedade sertaneja. Posteriormente se faz uma análise da figura feminina em meio a Guerra no Contestado. E por fim se verifica a origem dos estereótipos de gênero que levaram a mulher como papel secundário dentro do contexto da guerra. Nesse sentido cabe ressaltar que as mulheres guerreiras no Contestado, sendo elas as “virgens” ou as demais caboclas desempenharam papéis fundamentais durante o conflito. Portanto merecem destaque, pois há muito que se investigar sobre cada uma delas. O estudo aqui apresentado tem como propósito principal fazer uma análise da importância da atuação das mulheres no decorrer da guerra e a construção da imagem distorcida em relação à mulher 1 Estudante em Turma Especial no Mestrado de Direito e Justiça Social da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Bacharela em Direito pelo Instituto Federal do Paraná (IFPR). E-mail: andreza.jacobsen@outlook.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 216 lançando um desafio a elas, a busca pela igualdade. Nessa perspectiva, as mulheres, embora tivesse papéis importantíssimos, sendo elas guerreiras, benzedeiras, videntes ou até mesmos representantes de seus lares, eram vistas como apenas como sexo frágil. Embora contribuíssem para o andamento do conflito com as lideranças femininas, essas mulheres caboclas lutaram contra os fatores estigmatizantes em relação ao gênero. UMA BREVE HISTÓRIA DA GUERRA A história do sul do Brasil foi marcada por alguns conflitos, entre eles a Revolução Farroupilha em 1835, a Revolução Federalista que perdurou de 1893 a 1895, o Cerco da Lapa em 1894, e o conflito do Contestado de 1912 a 1916. A guerra no Contestado iniciou-se no século XX, sob o governo do Marechal Hermes da Fonseca, sendo que a região do conflito se tratava de uma área de quarenta mil quilômetros quadrados disputada pelos estados de Santa Catarina e Paraná. O termo “Guerra no Contestado” advém da origem de que tais terras eram contestadas pelos estados de Paraná e Santa Catarina. Vale destacar que o conflito não se desenvolveu em função da disputa territorial travada por ambos os estados em disputa, mas, sim pela própria diferença social entre classes o que fomentou o início do conflito. (TRENTO; LUDKA; FRAGA, 2014, p. 274). A Guerra no Contestado foi um conflito social que teve por participantes tanto das elites brasileiras representadas pelos coronéis aliados a forças militares contra os caboclos, a pobre gente miserável que vivia nos sertões catarinenses. (MONTEIRO, 1974, p.23). O povo caboclo ou também chamado sertanejo vivia no território contestado sob posse das terras e mantinha relações de compadrio com os coronéis, que até a entrada da República eram considerados laços amigáveis. Este sertanejo resultado da miscigenação de algumas décadas já vinha ocupando os lotes de terra desde as primeiras civilizações indígenas que também já haviam habitado aquele território. (THOMÉ, 1981, p. 60). O caboclo habitante na região contestada teve proximidade direta com os descendentes do tronco Gê. Os denominados mamelucos foram originados da mescla de castelhanos e lusitanos com indígenas, esta junção de etnias aconteceu devido à figura da mulher índia atrair o homem branco. (THOMÉ, 1992, p.24). Os bandeirantes, tropeiros que passaram pelo planalto catarinense, eram mestiços euroRevista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 217 ameríndios, com intensa fisionomia Tupi-Guarani, que se juntaram a outros povos do grupo Gê. No Contestado, a mistura proporcionou a formação de diversos tipos de caboclos, desde aqueles que tem sua origem da mescla de índios paulistas com portugueses, até os mamelucos puros de fato, da geração dos caboclos originais com índios regionais, especificamente dos agrupamentos Gê. (THOMÉ, 1981, p. 54). O homem do Contestado recebeu influência de tradições de proveniência ibérica, de bandeiras paulistas, de gaúchos e, principalmente, de indígenas, que, por força de seus hábitos, auxiliou o caboclo a encarar a vida árdua nas matas selvagens. Todavia, a chegada de um grande contingente populacional de imigrantes causou um impacto tanto no índio quanto no caboclo original, que teve afastado seu aspecto semelhante ao homem primitivo. (THOMÉ, 1981, p. 60). A imigração foi a principal alternativa do regime Republicano como forma de acelerar o processo de desenvolvimento nacional, principalmente na região Sul do Brasil, o que causou um impacto nos povos que já habitavam na linha contestada. (ABE-RAMIA, 2016, s/p). Para a política nacional não interessava a produção de subsistência que os caboclos obtinham, ou seja, estas terras de caboclos posseiros eram consideradas vazias pelos governos federal e estadual. Oficialmente, aqueles habitantes sertanejos não eram reconhecidos como agentes proprietários das terras e a existência destes povos na região entre Paraná e Santa Catarina era desconsiderada. Consequentemente sem as terras e sem o apoio dos coronéis a população cabocla se viu abandonada tanto pelo governo e pelos chefes locais. (ABI-RAMIA, 2016, s/p). A desvalorização cultural do sertanejo pelo governo combinada com a situação de miséria levou este povo a debruçar-se na esperança de que a fé os salvaria de tantas calamidades. Com a exclusão social o homem pobre no Contestado a religiosidade exercida pelos monges uniu o povo em torno de uma causa comum, que era a melhoria social. (ABI-RAMIA, 2016, s/p). Os monges que foram citados na história da guerra foram três: o primeiro João Maria de Agostini, João Maria de Jesus e José Maria. Este último homem santo tinha como principais auxiliares as “virgens”, eram meninas que tinham visões acerca do futuro dos caboclos diante do conflito. É com o messianismo que a mulher começa a ter um papel de destaque, pois ela tem um papel significativo, porque se torna uma guerreira e luta dos homens, porém a posição das virgens no Contestado criava uma hierarquia sob as demais mulheres que auxiliavam na guerra de forma indireta. Então diante da participação do sexo feminino neste contexto mais Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 218 adiante se expõe quem eram estas meninas videntes que tudo viam para o auxílio do fortalecimento daquele grupo social. (MONTEIRO, 1974, p. 269-271). AS VIRGENS NO CONTESTADO A mulher ao longo da história, em diferentes contextos, sempre esteve em desvantagem quanto a conquista de direitos e consequentemente submissa ao homem. Com séculos de duração a figura feminina sempre foi descrita com inferioridade em relação a masculina. No Brasil e na América Latina não foi diferente do restante do mundo, pois o papel da mulher foi negado na cultura nacional. (CARNEIRO, 2003, p. 01-02). Na guerra no Contestado não foi diferente a visão quanto ao gênero, pois em uma época em que o sistema era conservador a mulher tinha o papel de dona do lar e raramente vista como independente. Diante de um conflito iniciado por motivos sociais o sexo feminino desempenhou várias funções e dentre as figuras de maior destaque estão as virgens: Maria da Rosa e Teodora e as demais mulheres Chica Pelega e Nega Jacinta entre outras que lutaram pela igualdade neste contexto de guerra. (TRENTO; LUDKA; FRAGA, 2014, p. 276). A atuação feminina no Contestado foi responsável pela representação do sexo feminino e acima de tudo foi símbolo da contracultura, pois estava do lado do povo massacrado, daqueles que estavam insatisfeitos com o governo e que não representavam as instituições brasileiras. (CALONGA, 2008, p. 01). A mulher cabocla durante o conflito lutou contra os inimigos de sua gente, ajudou a enfrentar as forças opressoras do governo e combateu a violência exacerbada dos coronéis, mas acima de tudo lutou pela igualdade. O sexo feminino combateu acima de tudo estereótipo de gênero levantado sobre a figura da mulher, pois é com a guerra que ela começa a desempenhar novas funções fora do lar. O conflito no Contestado insere a mãe de família num cenário de guerra, neste ponto ela passa a ser um agente de representatividade, porém, lembrando que ela luta para seja possa ser reconhecida. (TRENTO; LUDKA; FRAGA, 2014, p. 277). A autonomia destas mulheres não é somente em relação ao sexo masculino, e sim pela própria desigualdade entre as mulheres dentro dos redutos. Segundo Tonon (2012, apud TRENTO; LUDKA; FRAGA, 2014, p. 276): Mesmo vivendo sob acentuado domínio patriarcal, muitas mulheres desempenharam papéis importantes no movimento do Contestado. A começar pelas “virgens”. O monge José Maria se fazia acompanhar de um séquito delas para auxiliá-lo nas rezas, nas pregações e no preparo de chás homeopáticos. As “virgens” eram escolhidas por ele e pelas lideranças dos Redutos – ou Cidades Santas – entre aquelas que manifestavam piedade e pureza de alma. Não precisavam ser virgens no sentido biológico, pois havia entre elas mulheres Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 219 casadas. Mas as que mais se destacaram eram adolescentes. A proximidade com o monge lhes dava respeitabilidade e poder junto à comunidade. Na ausência do líder religioso, assumiam o papel de videntes [...] Mulheres, guerreiras, virgens, cada uma com seu papel foram de destacando pelas características de liderança e pela persistência em vencer o preconceito estabelecido em relação a elas. Conforme Silva (2010, apud TRENTO; LUDKA; FRAGA, 2014, p. 276): As “Virgens” eram possuidoras de poder e influência sob os sertanejos e o mundo mítico, uma vez que se tornaram representantes do poder e da inspiração divina e estabeleciam um elo entre o “mundo encantado” e o mundo dos sertanejos. O Messianismo existente no Movimento nos permite avaliar a participação delas no Movimento. Uma das mulheres descritas que se destaca na guerra é Maria da Rosa conhecida como virgem do monge. De acordo com Queirós (1977, apud TRENTO; LUDKA; FRAGA, 2014, p. 278) era uma adolescente de 15 anos, “loura, cabelos crespos, pálida, alegre de extraordinária vivacidade”, era analfabeta, mas, “falava sem desembaraço”. Maria da Rosa foi a mulher que mais se destacou dentre os redutos, pois exercia as funções de guerrilheira e de vidente. Esta adolescente embora analfabeta tinha um poder autônomo diante das demais mulheres além da voz de comando que o povo obedecia cegamente às suas ordens. Era uma mulher com disciplina que conhecia das técnicas militares e que trabalhava para auxiliar a todos no que precisavam. A voz de comando desta mulher era exercida com intuito de prevenir os caboclos dos inimigos. Morreu em 1914 em combate com as tropas do General Setembrino de Carvalho e ficou conhecida por ser guerreira, líder, humilde e religiosa. (TRENTO; LUDKA; FRAGA, 2014, p. 278). Outra mulher em destaque no conflito foi Francisca Roberta, mais conhecida como Chica Pelega tinha o dom do curandeirismo e auxilia na cura de doentes e crianças. Esta mulher vivia com sua mãe, pai e seu tio, e era trabalhadora na lavoura da família. Segundo Savoldi; Geroldi e Renk (2010, apud TRENTO; LUDKA; FRAGA, 2014, p. 281) Francisca Roberta como conhecia das ervas medicinais logo ganhou popularidade ao dar assistência aos doentes e fazia rezas que acompanhava o tratamento dos enfermos. A figura desta segunda virgem servia de modelo às demais mulheres caboclas no Contestado visto que ela era vista como símbolo de coragem e luta por justiça. (VALENTINI, 2000, apud TRENTO; LUDKA; FRAGA, 2014, p. 282). [...] Era livre, inteligente e emotiva. Sonhava com o outro mundo, diferente daquele doméstico: um que tivesse muita gente onde pudesse festejar, falar, ouvir; um mundo onde as mulheres participassem das reuniões, das decisões, junto com os homens. (PRADI, 2010, apud TRENTO; LUDKA; FRAGA, 2014, p.282). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 220 Por sua honestidade e simplicidade se dedicava as tarefas a favor de defender o direito à terra pleiteado pelos caboclos diante do governo militar que favorecia apenas uma minoria. O plano de fundo da revolta de Chica foi justamente a chacina de sua família pelos jagunços também conhecidos por aliados ao governo. Como Francisca se apoiava na crença religiosa da proteção pelo monge José Maria de Agostinho ela sempre ia à luta sem temor como símbolo de garra de seu povo. Houve também uma terceira mulher de destaque no conflito a virgem Teodora que assim como Maria da Rosa tinha a capacidade adivinhatória para alertar sobre as possíveis ameaças na guerra. Essa virgem dava ordens aos demais caboclos conforme tinha suas visões transmitidas pelo santo monge. Segundo Feldman (2005, apud TRENTO; LUDKA; FRAGA, 2014, p. 284-285): Theodora, uma das virgens, talvez a mais importante, seguida de Maria Rosa, dentre outras, costumava ter visões e a partir delas impor aos sertanejos o cumprimento de tais ordens, pois assim era a vontade do Monge. O poder e a inspiração divina de Theodora eram encarados por seu avô, Euzébio Ferreira dos Santos, como um dom merecido, pois só as meninas novas e virgens deveriam ter a graça de ver e de falar com o monge . Teodora, neta de Eusébio Ferreira dos Santos e Querubina, aos 11 anos começou a relatar as visões que tinha sobre José Maria de Agostinho um ano após sua morte, no combate de Irani. As adivinhações eram de mandados aos caboclos, estes, que deveriam montar um quadro santo em Taquaruçu. Com a voz desse comando e juntando-se em terras de Chico Ventura, formou-se o primeiro “Quadro Santo” ou “Cidade Santa”, comunidade esta que seguiria as ordens do monge, transmitidas por Teodora. (SILVA, 2010, apud TRENTO; LUDKA; FRAGA, 2014, p. 285). Teodora era discípula de Chica Pelega, e sua colaboração durante a guerra foi levar esperança e mensagens do monge aos demais caboclos. Dentre todas as mulheres que se destacaram na Guerra do Contestado a única que se teve contato foi a virgem Teodora. Em depoimento a Maurício Vinhas de Queiroz, Teodora afirmou que as “visões” que tinha com José Maria não passavam de invenções de seu avô Eusébio e de outras lideranças, como forma de dirigir o grupo e legitimar suas decisões. Independentemente disso, as “visões” de Teodora, traziam uma ligação com o sagrado, estas “visões”, juntamente com as relações de compadrio e amizade, foram responsáveis pelo aumento do reduto de Taquaruçu, suas “visões” foram importantes para aglutinar pessoas em torno de uma mesma esperança. [...] (SILVA, 2010, apud TRENTO; LUDKA; FRAGA, 2014, p. 286). Teodora manteve-se pouco tempo como vidente e comandante de Taquaruçu, devido à essas dúvidas criadas em relação as suas visões, tal fato desestimulou a população neste reduto. Sendo assim ela permaneceu a operar nos demais redutos, curando doentes o que foi crucial Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 221 para manter essas pessoas em torno de uma esperança na fé que liderados por esta mulher, tinham por objetivos um novo mundo. (TRENTO; LUDKA; FRAGA, 2014, p. 286). Segundo Silva (2010, apud TRENTO; LUDKA; FRAGA, 2014, p. 287) terminada a Guerra “Teodora passou a viver em Perdizes Grandes com o tio Antônio Ferreira dos Santos e família, casou duas vezes e teve oito filhos. E no ano de 1979 veio a falecer na cidade de Curitiba, aos 78 anos.” Teodora foi à única que se tem notícias, que constituiu família após a Guerra. Outra figura feminina com representatividades foi Nhá Emídia conhecida como Nega Jacinta, considerada “Santa” pelos caboclos, pois, tinha o dom do curandeirismo realizava benzimentos, rezas e partos na população dos redutos. Nega Jacinta, segundo a história morava em uma gruta hoje denominada Santa Emídia que fica na localidade do Rio do Tigre, na cidade de Três Barras em Santa Catarina. Neste local segundo relatos da população cabocla a Jacinta teria abrigado São João Maria de Agostinho o segundo monge que perambulou no Contestado. Esta mulher também como as três anteriores teve um papel de destaque perante as demais pois, deu manutenção a guerra. (TRENTO; LUDKA; FRAGA, 2014, p.287). DO ESTEREÓTIPO DE GÊNERO A imagem da mulher na história do Brasil sempre veio acompanhada de estereótipos, dependente economicamente e subordinada sexualmente; porém, há diferença entre mulheres elitizadas e as de classes inferiores. A mulher branca e mais elitizada, por exemplo, no século XIX, exercia o papel puramente de mãe e de dona do lar, mas, não participava da política. (DEL PRIORE, 1994, p.11-12). Na época colonial, o gênero feminino foi dividido entre mulheres casadas brancas e mulheres prostitutas, na maioria negra, proveniente das classes subalternas que deram origem a miscigenação no Brasil. Estas últimas serviam como mercadoria e vendiam-se a fim de livrar as verdadeiras esposas da violência sexual cometida pelo marido; a primeira era considerada boa, a segunda a disseminação do pecado. (DEL PRIORE, 1994, p.24). O estereótipo construído em torno do gênero na questão do Contestado reconhece a diferença entre as mulheres e os homens, em virtude da ocultação da participação feminina na guerra. A figura da mulher aparece atuando nas rezas, e as virgens Teodora, Maria da Rosa, Francisca Roberta e Nega Jacinta assumiam funções de guerrilheiras com uma posição diferenciada daquelas que assistiam o conflito dentro de seus lares. O papel das conhecidas Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 222 “virgens” era ter as visões sobre a volta do Messias, pois atuavam ao lado dos monges, mesmo antes de seu falecimento e após ele. (FELDMAN, 2005, p. 02). No conflito do Contestado, o estereótipo criado é misto, pois mescla a intersecionalidade entre gênero e a raça, sendo criado um pensamento a respeito das características específicas da mulher cabocla, pela miscigenação, por ser pobre e acima de tudo ser mulher. (CARNEIRO, 2003a, p. 04-05). Ao falar da discriminação de gênero, vale lembrar que, no período do conflito, não existia a política direcionada aos direitos humanos, nem a proteção da mulher; em decorrência disso, havia frequentes violações dos direitos femininos. (CARNEIRO, 2003a, p. 04-05). O estupro de mulheres foi considerado normal é aquilo que Sueli Carneiro (2003) chama de violência sexual erotizada, romantizada. (CARNEIRO, 2003b, p. 04-05). Segundo Crenshaw, (2004, p.09), aplicando a Declaração dos Direitos Humanos de 1948 ao conflito de 1912: Se uma mulher fosse torturada por suas crenças políticas da mesma maneira que um homem, esse fato podia ser reconhecido como uma violação dos direitos humanos. Se ela fosse estuprada ou forçada a engravidar ou a se casar, as instituições de defesa dos direitos humanos não sabiam como lidar com esses fatos, porque eram especificamente relacionados a questões de gênero. O problema da questão é que as políticas públicas de direitos humanos eram inexistentes na guerra, não se considerando as garantias pessoais. Com um papel secundário, a mulher sofria a violência doméstica e sexual em campo privado, longe da discussão sobre políticas de proteção na esfera pública. As Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher e criação dos Conselhos da Condição Feminina, órgãos voltados à promoção da igualdade de gênero, combate à violência e discriminação as mulheres somente surgiram após a Constituição Federal de 1988; ou seja, em clima de guerra o papel da mulher era de auxiliar na luta pela defesa de todos, sem mecanismos de proteção própria. (CARNEIRO, 2003a, p. 02). No chão contestado, não havia denuncia de maus tratos ao gênero feminino, de forma que o acesso à justiça era restrito, a mulher não tinha a liberdade sobre o corpo, era cabocla pobre sendo tratado como objeto. A diferença criada entre mulheres e homens serviu como justificativa para marginalização dos direitos das mulheres. (CRENSHAW, 2002, p. 172). Nas palavras da ilustre Sueli Carneiro (2003) aplicando aqui sua discussão sobre a mulher negra o que se extrai é que se repete na história da guerra a frequente violação dos direitos das mulheres, ontem escravas vítimas de sinhazinhas, hoje caboclas abusadas por militares e coronéis sedentos. (CARNEIRO, 2003b, p. 02). As mulheres mais conhecidas na guerra Maria da Rosa, Etelvina e Teodora moravam na Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 223 “Casa das Virgens”, e como eram consideradas “santas”, eram alvo da cobiça do sexo masculino. Lá, elas viveram momentos de violência, tortura e abuso sexual por parte dos jagunços, ou como conhecemos vaqueanos. Entretanto, diante de tantos abusos Etelvina se revoltou e decidiu fugir rumo à liberdade, servindo de exemplo para as demais o poder de lutar. (MENDES; FERREIRA, 2012, s/p). A experiência das mulheres na luta pela proteção de seu povo na guerra, sendo que, mesmo debaixo do chicote dos coronéis, trabalharam, defenderam seus familiares, e enfrentaram muitas vezes em silencio a dor da violência, porém, não deixaram ser esquecidas. (DAVIS, 2013, p.03). A mulher cabocla passou o legado às suas sucessoras, a vontade de combater as violações contra o sexo feminino, insistir na igualdade de gênero e serem resistentes ao preconceito. (FELDMAN, 2005, p.04). No conflito, o destaque foi a luta do gênero feminino por representatividade, apesar de reconhecer que havia a submissão de inúmeras caboclas vítimas do poder opressor dos militares, dos vaqueanos e coronéis. (ABI-RAMIA, 2016, s/p). O estereótipo de gênero é criado em torno de uma discriminação mista, combinado com o de raça: a intersecionalidade, ou seja, as mulheres que se encontram no centro da interseção por se tratarem da combinação de elementos de raça, gênero, questão sócio econômica, e local onde vivem, sofrem demasiadamente com a exclusão (CRENSHAW, 2004, p.10). Trata-se de um conjunto de elementos que etiquetam, categorizam o sexo feminino. Não há de se negar que, no combate de Irani, havia a presença de mulheres, mas, afinal elas não constam no Auto de Inquérito (1913) lavrado em Palmas no Paraná. Para entender esse estereótipo, é necessário esclarecer que a cabocla estava no meio de uma interseção; ou seja, essa combinação de fatores discriminatórios fez com que sobre ela viessem as colisões. A mulher recebeu as etiquetas por ser caracterizada em alguns aspectos específicos, e esse choque recebido pelo gênero foi em relação um grupo, o das mulheres caboclas, cujos rótulos não estão inseridos na mulher imigrante, que é branca, europeia e também pobre. (CRENSHAW, 2004, p. 12). Ao aplicar as ideias da nossa ilustre escritora Lélia Gonzalez ao caso concreto, a figura feminina cabocla em meio ao conflito era tratada como instrumento de uso pela violência sexual, pela domesticação e por receber o título de lata do lixo da sociedade. (GONZALEZ, 1984, p. 225-226). A mulher cabocla é vitimada pela ideologia do branqueamento que nega a própria raça e consequentemente a própria cultura. (GONZALEZ, 1988a, apud CARDOSO, 2014, p. 969). Há que reconhecer que as virgens messiânicas tinham um destaque maior diante das Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 224 inúmeras figuras femininas que sequer foram citadas na guerra. Por exemplo, Maria da Rosa era uma virgem característica que já lhe dava um diferencial perante as demais. Além da pureza ela foi relatada pela história como uma mulher branca, loura com vestido branco e fitas no cabelo, sinônimo de mulher bem cuidada, pois o modelo estético era o da raça branca. (CARNEIRO, 2003a, p. 01-02). É justamente o ponto de intersecionalidade que vem a se discutir porque as demais sofreram com a discriminação por não serem virgens, e não serem mulheres brancas. E outro ponto é em relação a todas as mulheres no Contestado que sofreram com a imposição do sexo masculino trata-se aqui do estereótipo de gênero, porém também se encontram especificidades entre as próprias mulheres que permitia a existência de hierarquia entre elas que é o caso da raça. (CRENSHAW, 2004, p.12). Conforme o artigo 268 do Código Penal de 1890, vigente no período do conflito, se expõe a descrição do estupro realizado contra mulheres, sejam elas virgens ou não por emprego de força física e impondo resistência. É obvio que a legislação do período não foi utilizada como mecanismo de proteção ao sexo feminino, um dos motivos para explicar esta situação é que diante da conquista de redutos na guerra e pela dominação do grupo derrotado havia a apropriação das mulheres. (CARNEIRO, 2003b, p. 04). Segundo Kimberle Crenshaw (2004, p. 12) as violações aos direitos das caboclas foram camufladas diante da descrição dos fatos da guerra pois a justiça não levou a sério a violência contra a mulher porque ela foi cometida contra pessoas que estavam classificadas dentre um determinado grupo específico, considerado um risco a sociedade porque se tratavam de mulheres caboclas, esposas de guerrilheiros perturbadores de ordem. (CRENSHAW, 2004, p.12). Por fim ao aplicar os estudos de Gonzalez (1988, apud Cardoso, 2014, p. 969-970), o papel da mulher principalmente num conflito de proporções significativas como o do Contestado visou resgatar a resistência e a luta dos povos colonizados e marginalizados diante da violência sofrida pelas raízes advindas do poder colonial. Foi lutando contra o estereótipo de gênero que a mulher cabocla demonstrou a relação problema existente que é o racismo e a presença colonialismo na guerra. CONSIDERAÇOES FINAIS A posição atribuída à cabocla é de desvantagem a respeito do que fazia e de onde vivia, Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 225 e o importante da identificação da discriminação intersecional foi apresentar as dificuldades encontradas pelas mulheres no contestado que tiveram que lutar contra um complexo de elementos que só colocava a cabocla em posição secundária embora ela enfrentasse o conflito na mesma situação que o gênero masculino. (CRENSHAW, 2004, p. 09). Dentre as mulheres que tiveram destaque estão: Virgem Teodora que por meio de suas visões deu esperança a população cabocla, Maria Rosa que liderou bravamente milhares homens e mulheres e também propiciou fé e esperança ao povo, Chica Pelega, a guerreira que apesar de sua trágica história de vida espalhou bondade e coragem por onde passou e Nega Jacinta conhecida pelos benzimentos ao povo. Cada qual teve sua contribuição evidenciada e merecem destaque pela bravura em tal momento histórico, pois tem-se perdido muitos resquícios destas importantes participações. (TRENTO; LUDKA; FRAGA, 2014, p. 276). Todavia, o que vem se expor é que, mesmo diante de tantas violações ao gênero feminino, as mulheres no contestado lutaram por uma posição diferente das mulheres descritas na história, pois, em meio à floresta, reclamaram por seus direitos, lutaram pela sua liberdade, identidade e sua história. Suas vozes devem ser lembradas e revividas no imaginário caboclo como forma de resistênciaà discriminação de gênero, ainda mais se levarmos em conta que ele não surge de “maneira pura”, mas em relação com outros recortes, como o de raça e classe social (TRENTO, LUDKA, FRAGA, 2014, p. 277). Por fim, as inúmeras mulheres que participaram da na Guerra do Contestado, no meio das matas, reclamando por seus direitos, lutando por sua liberdade, identidade e sua história, continuam vivas no imaginário. Suas vozes, na busca por igualdade, ainda podem ser ouvidas. Outras Marias, Etelvinas, Chicas surgiram quebrando o silêncio em vários lugares do mundo na luta com o patriarcado e a opressão. (MENDES; FERREIRA, 2012, s/p). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABI-RAMIA, J. A Guerra do Contestado. Rio de Janeiro, 19 set. 2016. Disponível em: http://multirio.rio.rj.gov.br/index.php/leia/reportagens-artigos/artigos/11064-a-guerra-docontestado. Acesso em: 14 jul. 2018. AURAS, M. Guerra do Contestado. 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Ao termino da pesquisa, chegou-se a hipótese que o crescimento do cabelo black pelas alunas, está ligada a afirmação da identidade negra, como instrumento simbólico e afirmativo da negritude. PALAVRAS-CHAVE: Cabelo; Processos afirmativos; identidade negra. ABSTRACT This work is part of the study of monoggraphs, based on study to understand in wich forms the back hair is configured as a symbolic space os resistance and affirmation of the identity of the black woman. The research was developed with six black of public school presenting a qualitative nature being the methodological approach, research-participant. At the conclusion of the research, is that a hypothesis that black hair growth by the students is linked to the affirmation of black identity as a symbolic and affirmative tool of blackness. KEYWORDS: Hair, affirmative proceses, black identity. INTRODUÇÃO A identidade é o sistema de valores que define o homem, sua cultura, costumes, atitudes, religiosidade, padrão estético, político e etc. Analisar a identidade enquanto sistema de representação, remete pensar o seu processo histórico, de formação das regras e condutas éticas e morais, como parâmetros sociais de referência à serem internalizados pelos sujeitos sociais, resultando no processo de apropriação e formação da sua identidade. Lima (2015) e Gomes (2016) afirmam que a identidade é resultado da interação do sujeito, com os códigos socioculturais. Nesse sentido, as autoras concebem a identidade como um processo de formação mutua, onde o sujeito cotidianamente perpassa pelo aprimoramento e conhecimento da sua identidade/identidades. Este tema de pesquisa é fruto de observações e inquietações levantadas, sobre a questão da afirmação da identidade negra, tendo como foco o empoderamento do cabelo black. A investigação ocorreu numa escola pública de ensino fundamental II no município de Taperoá- Possui graduação em Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia UNEB – Campus/XV. E-mail: rafael7_discipulo@hotmail.com. 1 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 229 BA. As colaboradoras da pesquisa, foram seis meninas negras com idade entre 13 a 16 anos, todas com o cabelo black. Destarte, o objetivo central fundamentou-se em analisar os fatores que contribuíram para as estudantes assumirem o cabelo black. Nesse sentido esta pesquisa trabalha com a abordagem qualitativa, sendo os fios metodológicos, a observação-participante, utilizando como instrumento de coleta de dados, entrevistas semiestruturada, rodas de conversas, entre outros. Pensar a estética, é antes analisar as bases que sustentam os padrões que a define. É compreender as influências e demarcações que esta exerce e imprime no corpo, enquanto veículo de comunicação, afirmação e negação histórico-sócio-cultural. Desta forma, as bases que regem os padrões estéticos dominantes na sociedade, é analisado e expresso nos usos e sentidos da beleza e dos padrões estéticos do corpo branco e negro, impondo-se sobre diferentes formas e significados, enquanto fenômeno social, cultural e temporal. BELEZA EM FOCO: SÍMBOLOS, SENTIDOS E NEGAÇÕES POR UM “IDEAL DE BELEZA” Falar em beleza, é mergulhar na história para compreendermos o presente. A beleza, desde a antiguidade estava relacionada ao desejo, culto, definição das posições sociais e políticas, como sentido de pureza e espiritualidade, para determinados povos, principalmente para os gregos antigos, fundadores das bases filosóficas, morais, éticas, políticas e estéticas, que influenciam desde a antiguidade até os dias atuais as civilizações e povos do ocidente. Para Menezes (2007) na história humana, por séculos, a beleza ou o “belo”, esteve associado a algo puro, sublime, admirável e bom. Nas artes o conceito de beleza recebeu diversas significações ao longo das civilizações, mas é no universo grego, que o conceito de beleza adquire uma função social importante para compreender o pensamento filosófico, como a construção social e política. A beleza num sentido genérico, pode ser definida, como conjunto de regras estéticosocial, de valores comportamentais, que define os padrões sociais, categorizando as camadas civis, regulando as funcionalidades e papeis, na complexidade organizacional humana. Neste sentido, é preciso esclarecer, que o padrão de beleza não é um sistema de valores imutável e atemporal. Para Wolf (1992) o sentido de “beleza” ou padrão imposto como modelo “ideal”, não é uma estrutura universal, se limita ao tempo e espaço, sendo constituída de acordo com os padrões, sociais, culturais, econômicos, religiosos, de uma determinada sociedade. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 230 Em análise sobre os padrões e como se apresenta o sentido de beleza e sua gama de valores complexos, Wolf (1992) apresenta uma abordagem crítica dos padrões de beleza, pensado e organizado sobre a ótica europeia, onde a autora define a beleza como; uma construção social de bases econômicas e políticas, que tem por finalidade impor um conjunto de regras e crenças a manter intacto o domínio masculino. Nessa perspectiva “numa hierarquia vertical, de acordo com o padrão físico imposto culturalmente, este expressa relações de poder segundo as quais as mulheres precisam competir de forma antinatural por recursos dos quais os homens se apropriam” (WOLF, 1992, p. 15). A esses valores e simbolismos, a autora vai denominar de o mito da beleza. A beleza organizada e orquestrada, enquanto sistema de valores, é dirigida e pensada sob um modelo e padrão de corpo social; uma vez que o corpo é resultado da construção dos processos culturais. Para Santos (2008), esse referencial de beleza é constituído e concebido de fora para dentro, fundamentado num discurso de “ideal” de mulher de caráter universal, que coloca numa instancia e zona de conflito, na preocupação e disposição a se assemelhar ao padrão de beleza instituído na sociedade. O mito da beleza foi aperfeiçoado de forma a frustrar o poder em todos os níveis na vida individual da mulher. As neuroses modernas da vida num corpo feminino se espalham de mulher para mulher em um ritmo especifico (WOLF, 1992, p. 23). No Brasil nas últimas décadas, os produtores do mercado da beleza, voltaram-se suas atenções a população negra e afrodescendente. Um mercado ainda pouco explorado, lançaramse a criação de produtos que resultem no “embelezamento” do negro. A publicidade tornou-se o norte na difusão desse mercado estético, segundo Fry (2007), a médio e longo prazo, a publicidade brasileira, tornar-se-á um poderoso instrumento nas tomadas de decisões e definições nas relações raciais no país. O investimento do mercado brasileiro, no mundo dos cosméticos voltados a estética negra, apresenta-se além do capital, mas tenta demostrar a “existência de uma diversidade de beleza”, frutos da miscigenação e do multiculturalismo. Para Fry (2007), o mercado tem-se voltado a uma proposta de embelezamento, no sentido de “iguala-lo”, e “naturaliza-lo”, como cidadãos comuns, definindo o caráter da identidade negra ao fator da beleza, negando em muitas instâncias, os fatores políticos de direito, e a historicidade negra. Assim (WOLF, 1992, p. 17) determina que “o mito da beleza na realidade sempre determina o comportamento, não a aparência” Fry (2007), referindo-se aos padrões raciais que define o racismo, o primeiro ponto a ser analisado é o fator da beleza e aparência física. A aparência vai definir à condição do sujeito, Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 231 sua classe racial, para posteriormente, ser levedados em conta os atributos econômicos e sociais de comportamento. Nessa premissa, na visão do autor, assumisse uma relação associada entre a beleza e moral, nessa perspectiva, a moral será julgada pela aparência estética. “Sabe-se que há muito tempo “boa aparência” é eufemismo para brancos no Brasil. E como poderia ser diferente, numa sociedade em que a “raça” é atribuída pela aparência e não pela origem familiar” (FRY, 2007, p. 322-323). Fry (2007) acredita que o fator estético na construção da identidade negra, é um dos caminhos para chegar a valorização da negritude, mas tendo em vista que a beleza negra, não define unicamente o processo da formação identitária em si mesma, ou que a identidade está unicamente limitada ao campo da aparecia estética. Destarte a formação da identidade e beleza negra se constitui como um campo complexo de relações e significações. Como define (MUNANGA, 2009, p. 19) “a identidade começa pela aceitação dos atributos físicos de sua negritude antes de atingir os atributos culturais, mentais, intelectuais, morais e psicológicos, pois o corpo constitui a sede material de todos os aspectos da identidade”. O corpo, no complexo da gênese social, forma e constrói a identidade do sujeito, não somente a categoria tempo e espaço, no sentido de pertencer a uma nacionalidade, mas, os caracteres subjetivos e secundários; como fator da beleza, estética, educação, intelecto, emoções e economia, principalmente as questões raciais, onde a raça é colocada como principal base de definição e categorização da identidade individual e coletiva. No Brasil a cor é algo que se define a partir da avaliação de fatores corporais — cabelo, nariz, boca, e também a partir "do contexto de elementos não raciais: maneiras, educação sistemática, formação profissional, estilo e padrão de vida" (FARIAS, 2007, p. 295). Para Rodrigues (2012) o corpo se destaca como manifestação e expressão de sentimentos e sentidos de afirmação, negação, sofrimentos, dores, alegria e felicidade. Nessa premissa o corpo é fruto das relações e interações sociais de domínio, de campos afirmativos, negações de padrões e identidades físico-corporais e culturais, construído sob o sistema de valores e classificações de cor e padrões estéticos, onde o corpo branco europeu utilizado como parâmetro e patrão comparativo e normativo, definindo como se configura a estruturação da beleza. No jogo do simbolismo da corporeidade, as mudanças estéticas através das cirurgias plásticas, tornou-se objeto de conquista da maioria das mulheres brasileiras, que na busca pelo “embelezamento” recorrem as clinicas e procedimentos médicos, com vista a “corrigir” certas “imperfeições” físico-corporais, gerando por consequência uma alta crescente ano após ano no mercado dos cosméticos, sendo as cirurgias de correções como a afilamento do nariz, redução Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 232 das medidas através da lipoaspiração, através de outras dezenas de procedimentos estéticos, que resultem na construção de um corpo perfeito, ditado pelos padrões sociais de beleza vigente. Para Wolf (1992) a crescente onda no aumento das cirurgias plásticas, como a produção de cosméticos e materiais que realizem e produzam nas mulheres uma satisfação de beleza, é imposta para o gênero feminino não como uma opção, mas, uma ditadura do ser bela. Desta forma, “encarnar a beleza é uma obrigação para as mulheres” (WOLF, 1992, p. 15). Para a autora a beleza é configurada como condição prática da manifestação da feminilidade da mulher, o que leva as mulheres a modificarem seus corpos naturais, em busca de feminilidade fruto da busca incessante pela beleza, que definirá de forma simbólica e prática o seu espaço social. Para Edmunds (2007) as mudanças na aparência fazendo uso dos instrumentos das cirurgias estéticas, criou a ideia que qualquer pessoa pode ser bela. O CORPO COMO CAMPO SIMBÓLICO DA IDENTIDADE A identidade é o sistema de valores, códigos e linguagens, que define culturas e sociedades ao longo da história. Esta se insere em todas as esferas sociais, nas relações econômicas, religiosas, de gênero, culturas, valores morais e éticos. A identidade perpassa para muito além de um sentido de pertencimento a um espaço e tempo. Neste sentido à identidade pode ser vista do âmbito prático: ações do sujeito e suas linguagens corporais e condutas de comportamento; e psíquica: a construções de pensamentos e pertencimento ético, moral, relações de poder, filosófico, de crenças e valorização da historicidade, de si ou do grupo social ao que está inserido, e essa definição de identidade/identidades vai refletir na sua relação com seu semelhante e a sociedade. Para (LIMA, 2015, p. 83) “As identidades se revelam em suas multiplicidades, diversidade, facetas e diferenças, lembrando que ninguém assume a mesma identidade o tempo todo, ninguém possui uma identidade única”. Para Lima (2015), a abordagem da identidade, não pode ser encarada como algo absoluto e imutável na vida humana. Desta forma o sujeito é fruto das relações sociais, convive com múltiplas formas de manifestações de identidades, que se expressam de diversas formas e contextos no âmbito da diversidade de raça, gênero, religiosidade, entre outros aspectos. Assim essas concepções de identidades coexistem numa só pessoa, que é mediada e regida pelas relações socioculturais. Lima (2015), define a presença da identidade como resultado das relações culturais entre os povos. Nessa premissa nenhuma sociedade é totalmente original em si mesma, no sentido primário a identidade. O que nos leva a perceber a existência de um jogo de identidades, que se Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 233 manifesta nas variadas formas, discursos e ideologias. Nesta análise, remeto-me a exemplo do Brasil, enquanto conceito de identidade nacional, concebida pelas influências culturais dos indígenas, negros e portugueses, o que ocasionou numa diversidade e pluralidade de crenças e manifestações de culturas, exercendo influência diretamente nas definições de identidade dos sujeitos, mesmo que estas se manifestem de forma passageira e temporal. Nessa concepção definida pela a autora, os processos identitários sofrem influências diretas e determinantes da cultura. Para Schwarcz (2012) esses entrelaçamentos culturais ao longo da história brasileira, de cores e concepções de identidades, colocam-nos numa difícil tarefa, de compreender, o quanto se torna difícil definir quem é o negro e o branco, e como se configura os usos e sentidos das identidades, não somente pelo fator da cor, o que leva a concepção histórica de definir o Brasil como um país mestiço. Pensar a identidade do negro, é pensar a relação do corpo negro como condição primaria para se chegar a afirmação da sua identidade. É impossível falar em identidade negra sem levar em conta todo o processo de negação histórica do corpo, pois este é comunicação, linguagem, é representação. Uma vez que a identidade negra tem sua base fundamentada no corpo, este foi o espaço simbólico que sofreu repressão e negação da sua existência enquanto espaço e padrão estético e identitário. O corpo negro ao longo da história brasileira, foi condicionado a adotar um padrão de beleza baseado nos padrões estéticos europeus, imposto como sinônimo de beleza e perfeição, como padrão e modelo incorporado e impresso no corpo negro. Desta forma o corpo é o primeiro espaço de manifestação de aceitação e negação da identidade. Fanon (2008) define o corpo como veículo de expressão da linguagem. “Um homem que possui a linguagem possui, em contrapartida, o mundo que essa linguagem expressa e que lhe é implícito” (FANON, 2008, p. 34). Segundo o autor, a linguagem exerce um ponto de suma importância nas instâncias das comunicações sociais das relações humanas, desta forma o homem se torna fruto da linguagem. A linguagem traduz os desejos e códigos sociais de comportamento a ser utilizado pelo sujeito, essa apropriação ou imposição da linguagem se dá de diversas formas, mas nesse ponto aqui abordado, a linguagem do corpo, expressa os sentidos ideológicos ao longo das décadas, como plano político de extinção da presença negra da sociedade braseira. A linguagem do universo branco foi imposta das mais variadas formas sobre o negro, refletindo, principalmente nos aspectos físicos, onde o corpo negro, foi condicionado a encarnar a expressão de civilidade branca, nos aspectos, da língua, formas de comportamento, padrões estéticos entre outros. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 234 Assim a linguagem é vista como meio de redimir o negro da sua condição de inferioridade ante o branco. “Falar uma língua é assumir um mundo, uma cultura” (FANON, 2008, p. 50). CABELO BLACK COMO SÍMBOLO DE AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA É impossível pensar a identidade do negro e não levar em conta o seu cabelo. A relação do negro com o cabelo vai além da estética, é antes de tudo, sua raiz sua história, representada através do cabelo que é manuseado de diversas formas e conjunturas simbólicas. Nos dias que se seguiram as entrevistas com as estudantes, buscou-se traçar uma sequência de questões que pudessem ao longo dos encontros, responder aos questionamentos levantados ao longo das observações. Pensado na finalidade de facilitar a compreensão dos leitores sobres os resultados encontrados na pesquisa, ressaltarei aqui alguns trechos de algumas respostas apresentadas pelas estudantes. Quando questionadas sobre quais foram as influências que contribuíram para que elas assumissem o cabelo black, segues as respostas abaixo: Tate Souza: Eu via as meninas usando cabelo black e achava bonito, eu não sabia como ficava em mim aí eu fui lá pedir para minha tia cortar meu cabelo aí ela foi lá e cortou. Aí eu gostei! As influências primeiro veio do colégio e fora também, minha mãe também cotou o cabelo dela aí eu fui achando bonito assim! Valente: Eu vi também as meninas usando black demais e também vi passar na televisão, ai eu gostei, mas tinha passado um produto no meu cabelo e tinha alisado. Ai eu aproveitei logo e cortei para fazer esse processo porque eu achei muito bom. Gostei! Zelly Campos: Eu não tive assim a influência de ninguém. Eu decidir cortar porque eu dei química ai eu disse a minha mãe que eu não queria meu cabelo assim, minha prima foi lá e cortou ai com o tempo fui me descobrindo! Como ressalta as estudantes. A escola foi um espaço de relevância na afirmação do cabelo, onde através de outras estudantes que estavam empoderadas nessa conjunta, levaramna também a aderir ao estilo de cabelo, que elas nutriam uma certa admiração. É notável perceber nas falas das duas primeiras estudantes, para que ocorresse a afirmação do cabelo, houve primeiramente um ponto de referência, onde elas admiravam o estilo do cabelo, e o segundo ponto o desprendimento do processo químico do alisamento. Para Lima (2015) a escola é concebida enquanto espaço de disseminação das culturas, refletindo em seu interior os pensamentos e propósitos da sociedade, “neste espaço elas constroem suas concepções sobre si mesmas, sobre os outros, sobre as relações sociais, sobre o mundo a sua volta”, (LIMA, 2015, p. 58). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 235 A família dento do processo afirmativo da identidade, assume um papel muito importante nesse ato de forma positiva e/ou negativa, principalmente no período de transição capilar. As estudantes relataram nos momentos das entrevistas, que as suas famílias, se colocavam em muitos momentos, contrárias ao uso do cabelo black, muitas vezes ridicularizando, com piadas e adjetivos negativos, referente ao cabelo das entrevistadas. Tate Souza: Quando eu chego em casa com o meu cabelo assim black minha vó reta. (Fala da vó: você não desembaraça esse cabelo por que?) Esse cabelo seu tá uma coisa triste! Faz um coque nesse cabelo seu, faz, faz, faz, faz logo menina. Aí eu entro dentro de casa que fica no fundo da casa dela, entro bato a porta. Ai ela fica lá falando, fica, fica fica. Ai só saio de casa quando ela termina de falar. Zelly Campos: Seu cabelo é peruca? Ai pergunta para minha mãe: ai ela fica no meu cabelo, né peruca não; aqui oh. Eu sair nervosa. Eu falei mainha não faça mais isso não! (Fala da mãe: se não é peruca eu só mostrei, ah não posso fazer nada você deixa seu cabelo assim porque você quer) Mas eu não tiro peço que Deus me dê mais cabelo! Valente: Meu pai mesmo reta comigo todo dia. (Fala do pai: seu cabelo é feio que cabelo duro. Vai no salão que eu dou o dinheiro para você alisar seu cabelo). Aí eu respondo, eu não quero faça o que quiser com o dinheiro. Eu não vou para salão alisar meu cabelo eu gosto dele assim! Eu quero mais cabelo. Mais e mais para estressar o povo. Como explicitado na fala das meninas, é bastante perceptível como parte da família se colocam contrários ao cabelo, apresentando um aspecto negativo, o que contribui, para um processo afirmativo conflituoso. Neste sentido é notável nas falas dos familiares a concepção de um padrão idealizado de beleza, onde o cabelo alisado vai se configurar como sentido de cuidado, beleza e feminilidade da mulher que zela pelo seu corpo. Nesse sentido assumisse um olhar totalmente negativo sobre o cabelo e sua expressão estética. Para Calasans (2016), as intervenções no corpo, modifica a percepção de negritude, nesse sentido o ideal de “boa aparência”, é concebida através, das mudanças e alterações na aparência capilar. Sobre essa análise, para Figueiredo; Cruz (2016) à manifestação do preconceito é de marca e não de origem, referente a posição de uma pessoa na sociedade brasileira, deste modo o racimo, está associado à um caráter de fenótipo de usos e atributos físicos do corpo, como neste caso aqui abordado o cabelo. Na abordagem realizada por Queiroz; Otta (2000) o corpo é pensado pela cultura, perpassando pelos adestramentos culturais, sendo pensado e modelado de acordo aos ideias e crenças estabelecidos na sociedade. Nesse sentido o ideal de cultura estabelecida na sociedade como parâmetro social, tem por finalidade à modelagens de corpos, resultante do dualismo entre corpo e cultura. “Nessa medida, o corpo é, a um só tempo, fonte e expressão de símbolos”. (QUEIROZ; OTTA, 2000, p. 31). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 236 O corpo como ato simbólico se compõe como um espaço significativo e plural, na localização e pertencimento social, como espaço de significado e comunicação das identidades. Tomando como exemplo para melhor percebermos esse dualismo de corpo e cultura como materialização da identidade, temos as relações religiosas, onde a expressão da fé, toma forma na corporeidade do sujeito. Ao olharmos para uma mulher negra vestida com roupas brancas, com contas e guias no pescoço e usando o turbante, logo a vista já associamos esta pessoa como pertencente a religião de matriz africana, ou uma mulher que passa vestida com uma burca, logo associamos a cultura muçulmana. Esses dois exemplos citados, nos ajuda a compreender a linguagem simbólica do corpo como caráter idenititário. Para Gomes (2016) o corpo é expressão é movimento é uma relação cultural. “O estado dos cabelos pode ser revelador da trajetória de vida de uma pessoa, da sua condição de existência e do movimento que vivencia no interior de um determinado grupo social”. (QUEIROZ; OTTA, 2000, p. 27). Segundo Figueiredo; Cruz (2016) o cabelo black tem se configurado como principal instrumento de intervenção, nos diversos meios sociais, com vista a afirmação dos discursos voltados a identidade negra. Desta forma o cabelo tornou-se um símbolo nacional pelo movimento negro, no que rege a ancestralidade, e fortalecimento do resgate e reforço a negritude. O cabelo não é encarado unicamente como um ponto estético de modismo, mas de uma ação afirmação política de resistência. Para Gomes (2016), o cabelo é visto como um sinal de posicionamento crítico, que imprime em seus corpos as marcas da negritude. Assim o cabelo é mais um dos elementos que reforçam a busca da identidade, no combate e denúncia contra o racismo e também pode ser denominado como uma expressão de estilo de vida e comportamento. A sua representação se constrói no âmago das relações sociais e raciais. Pegar no cabelo é tocar no corpo. O cabelo crespo e corpo negro, locados nessa ordem, são expressões de negritude. Por isso não podem ser pensados separadamente (GOMES, 2016, p. 48). Silva; Santos (2014), afirma que muitas mulheres negras passam diariamente por ações de discriminação e preconceito de variadas formas, muitas vezes são olhadas com abordagens negativas, sobre suas mudanças estéticas e capilares, que influência diretamente na sua autoestima, mas, o que por outro lado reforça sua luta e as encorajam cada vez mais se auto afirmar, concebendo o processo identitário com uma visão positiva. “A ênfase na negritude visa, ante de tudo, o resgate as identidades perdidas aqui definida como, conhecimento de pertença aos grupos e ao ignificado emocional e avaliativo dessa pertença.” (SILVA; SANTOS, 2014, p. 61). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 237 O cabelo como o próprio corpo é resultado de uma formação cultural, é a representação de significados e ideologias de negação como de afirmação de determinada identidade. Desta forma se outrora o padrão de beleza branco e europeu era idealizado como modelo social simbólico de beleza e padrão, nas últimas décadas os movimentos de luta das comunidades negras, visa combater e descontruir do seio da sociedade esse modelo de referência de corpo europeizado, valorizando assim o corpo negro que resultando no processo identitário. Assim quando um negro ou uma negra assume o cabelo black como sua referência, logo acontece um rompimento do padrão de beleza branco, quando um negro manipula o seu cabelo ali está sendo impresso atitudes que se opõem aos padrões impostos. Para Gomes (2016, p. 46): “Para o negro e a negra o cabelo crespo carrega significados culturais, políticos e sociais importantes e específicos que classificam e os localizam dentro de grupo étnico-racial”. O black é, assim um exemplo não apenas do caráter político das novas identidades, isto é, do seu caráter posicional e conjuntural (sua formação em e para tempos e lugares específicos) mas também de modo como a identidade e a diferença estão inextrincavelmente articuladas ou entrelaçadas em identidades diferentes, uma nunca anulando completamente a outra. (HALL, 2011, p. 87). Para Gomes (2016), a busca pela afirmação da identidade é representação de beleza, da sua história e de seu povo, é resistência, é quebra de paradigmas e preconceitos instalados na sociedade contra o negro. Nesse contexto das simbologias de apropriação e aceitação dessa identidade negra está o cabelo black, como o simbolismo mais forte e marcante pela luta e defesa da identidade negra, ou seja, o cabelo black é antes de tudo um ato político. CONSIDERAÇÕES FINAIS O desenvolvimento do presente estudo, buscou compreender como o corpo e cabelo black enquanto símbolo de expressão e linguagem, contribuem para o processo de afirmação da identidade negra. Neste sentido essa pesquisa trabalha numa perspectiva de realizar uma análise sobre os processos afirmativos do negro ao longo da história brasileira, buscando compreender como se concebe o transcurso formativo da identidade, seus símbolos, corporais e estéticos, como se compõe o ser negro, com toda a sua completude, resultando num processo idenititário transformador e emancipatório. Neste sentido esta pesquisa, assume uma relevância, para as reflexões e debates, que buscam compreender a formação histórica e idenitária dos povos africanos e afrodescendentes, tomado como base os processos afirmativos da negritude o cabelo como símbolo mais expressivo da construção da identidade negra. Assim este trabalho contribui e possibilita uma Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 238 reflexão, aflorando novos questionamentos, referente aos processos educativos, que perpassam pela construção de identidade negra e como a escola na atualidade tem desenvolvido esse diálogo com a diversidade étnico-racial e as múltiplas identidades, invisibilizadas nos processos educativos inseridos no espaço escolar. Pensado desta forma o cabelo, é um ato de revolução de rebeldia contra sistema branco opressor que dita as regras e os padrões da beleza. Assumir o cabelo black é antes de tudo, conhecer a sua história e todo o processo que envolve o seu entorno. É se colocar como instrumento e modelo de transformação social na luta contra o preconceito racial. É a busca pela valorização da beleza, da história e todo o universo que envolve o ser negro. Para (GOMES, 2016, p. 51) “A questão racial, em um país racista, sempre será política e ideológica, quer queiramos ou não, pois se contrapor ao racismo é se contrapor a práticas, posturas e ideologias. Exige posicionamento e mudança de comportamento”. Desta forma como defende a autora para que o racismo seja enfrentado e combatido, é necessária uma mudança de atitude que venha intervir na sociedade, com vista a combater as formas e posturas discriminatórias. Sendo assim o cabelo black é adquirido como símbolo de luta e resistência negra, assumindo um caráter político e ideológico, de combate as formas opressoras de discriminação do povo negro. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CALASANS, Fábia. Semeando a identidade negra do fio a raiz. In: FIGUEIREDO; Angela, CRUZ, Cintia (Orgs.). Beleza Negra: representações sobre o cabelo, o corpo e a identidade das mulheres negras. Cruz das Almas: EDUFRB; Belo Horizonte: Fino Traço, 2016. Coleção UNIAFRO; v. 16. p. 93-114. EDMONDS, Alexander. 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Estética e política: relações entre “raça”, publicidade e produção da beleza no Brasil. In: GOLDENBERG, Mirian. Nu e vestido dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. 2ª. ed. Rio de Janeiro, São Paulo: RECORD, 2007. p. 303-326. GOMES, Nilma Lino. Corpo cabelo como símbolos da identidade negra. In: FIGUEIREDO, Angela; CRUZ, Cintia (Orgs.). Beleza Negra: representações sobre o cabelo, o corpo e a identidade das mulheres negras. Cruz das Almas: EDUFRB; Belo Horizonte: Fino Traço, 2016. Coleção UNIAFRO; v. 16. p. 41-52. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2011. LIMA, Maria Nazaré Mota de. Relações étnico-raciais na escola o papel das linguagens. Salvador: EDUNEB, 2015. MENEZES, Juliana Costa, Moda e mito a moda na construção do mito da beleza. Brasília, 2007. Trabalho de conclusão de curso (Monografia) – Graduação em Comunicação social. Centro Universitário de Brasília – UniCEUB, Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas – FASA. 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Os alicerces de subalternidades atravessados pelas discriminações tornam-se aspectos dinâmicos e/ou ativos de desempoderamento, por isso se faz necessário ações e políticas específicas a fim de que se combatam tais opressões. PALAVRAS-CHAVE: Homossexualidade Feminina; Interseccionalidade; Saúde da Mulher Negra; Racismo; Racismo Institucional ABSTRACT The present study aims to analyze the patterns that can clarify the invisibility of lesbian and bisexual women, especially lesbians and black bisexual women, in the area of integral health care for women. And also reflect on the intersectional identities of these bodies elaborated in discourses of racist, male chauvinist and lesbophobic representations. The foundations of subalternities crossed by discrimination become dynamic aspects and / or assets of disempowerment, so specific actions and policies are necessary in order to combat such oppressions. KEYWORDS: Women's Homosexuality; Intersectionality; Black Woman Health; Racism; Institutional Racism INTRODUÇÃO De acordo com os parâmetros e diretrizes da Constituição Federal e do Sistema Único de Saúde (SUS), é atribuição do Estado afiançar nas suas atuações e obrigações, a saúde plena de seus cidadãos e cidadãs de modo integral, universal, igualitário e equânime. No entanto, quando se aborda a integralidade e equidade na saúde de lésbicas, bissexuais e mulheres que tem suas práticas sexuais perpassadas pelo homoerotismo, podemos aferir que tais normas não vêm sendo cumpridas. Trazendo o descumprimento de alguns dos direitos humanos básicos: o acesso, a promoção, o restabelecimento e proteção à saúde. Principalmente quando analisamos os possíveis padrões que podem esclarecer a invisibilidade na área da assistência integral da saúde da mulher, quando partimos de raça enquanto categoria que dialoga com a perspectiva intersecional. Em que lésbicas e bissexuais negras tem seu corpo e subjetividades, atravessados por três grandes eixos de opressão que operam com grande 1 Graduada em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Cursando Especialização em Relações Étnico-Raciais na Educação Básica no Colégio Pedro II. Professora de Sociologia da rede estadual do Rio de Janeiro (SEEDUC/RJ) e tutora do curso de Turismo do Cecierj. E-mail: vitoriolayla@gmail.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 241 potência sobre o corpo e suas subjetividades: raça, sexualidade e gênero. Eixos esses que ao serem coadunados com outros marcadores como classe econômica, o status familiar, o lugar/país de residência, a etnia, religião, etc, agravam os processos de exclusão e invisibilidade. Já que nem todas as lésbicas se veem afetadas pela opressão e/ou pela discriminação da mesma maneira e num mesmo grau. Com o objetivo de dar conta de tal problemática, busco compreender como a lesbianidade e as homossexualidades têm sido invisibilizadas e organizam-se num conteúdo atravessado por incontáveis preconceitos e discriminações. Adiante, ocupo-me desta invisibilidade na área de saúde. Além disso, associo esta invisibilização e suas consequências a categoria raça “enquanto ficção materializada em corpos e processos de subjetivação, e principalmente, de sua intersecção com as categorias de gênero e sexualidade” (LIMA, 2018). A partir dessas concepções, compõem-se como objetivo analisar padrões/modelos que tenham a capacidade de nos explicar não somente a lesbianidade e a bissexualidade de mulheres nas discussões com relação a saúde integral da mulher, mas promover a reflexão de modo crítico sobre os enfrentamentos que pairam sobre, especialmente os corpos-subjetividades de lésbicas e bissexuais negras, o que intensifica os processos de invisibilidade e violência nessa área. PERCURSO METODOLÓGICO Como metodologia, utilizou-se o modelo de ensaio, por entender que esta modalidade atua como um exercício de crítica, procura, pesquisa, caráter exploratório, procurando uma nova forma de observar o assunto. Partindo desse escopo metodológico, empregou-se dois grupos de fontes. O primeiro grupo versa sobre as poucas produções científicas do conhecimento em relação ao assunto, representado na publicação de artigos e periódicos na área da saúde. Utilizou-se a Biblioteca Virtual SciELO (Scientific Electronic Library Online), o portal da Biblioteca Virtual de Saúde (BVS), as bases de dados da Lilacs (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde), bem como, a biblioteca digital brasileira do Banco de Teses e Dissertações (BDTD). Nos referidos portais foram encontrados artigos nacionais relacionados ao tema, homossexualidade feminina na área de saúde, nenhum versando especificamente sobre a invisibilidade de lésbicas e bissexuais negras, na área da assistência integral da saúde da mulher. O que expõe ausência ou insuficiência de materiais sobre a temática. (Quadro I) Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 242 O segundo grupo de fontes, tem relação com documentos, que de modo direto ou não, possibilitam o atendimento as necessidades das mulheres que se assumem como lésbicas e bissexuais femininas ou que experienciam relações homoafetivas e/ou homoeróticas, mas a variável cor ou está ausente ou subaproveitada, dificultando uma análise mais consistente sobre a invisibilidade na área de saúde das mulheres lésbicas e bissexuais negras. (Quadro 2) Com base nesses critérios, foram consultados os seguintes documentos: Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher- Princípios e Diretrizes (BRASIL, 2004); Brasil Sem Homofobia- Programa de Combate à Violência e Discriminação contra GLTB e de Promoção da Cidadania Homossexual (BRASIL, 2004a); Programa Nacional de Direitos Humanos (BRASIL, 2001); Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais- LGBTT (BRASIL, 2013); Carta dos Direitos do Usuário da Saúde (BRASIL, 2007); Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (BRASIL, 2013; 2017); Saúde da População Negra no Brasil: Contribuições para a Promoção da Equidade (BRASIL, 2005); Livreto “Atenção Integral à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais” (BRASIL, 2014); Dossiê Saúde das Mulheres Lésbicas (Rede Feminista de Saúde, 2006). No que concerne aos artigos publicados nos periódicos científicos receberam a abordagem de análise de conteúdo. A partir desse padrão de análise foram explorados os seguintes pontos: (i) Leitura dos artigos; (ii) Reconhecimento dos eixos de significado do conteúdo dos artigos; (iii) Composição de temáticas que foram utilizadas como ponto de debate sobre o assunto. Fundamentado nos tópicos que condensavam os artigos, estabeleceu-se um diálogo entre os documentos do segundo grupo de fontes, considerando o marco conceitual. Quadro I - Descrição dos Artigos Estudados (continua) Autoria Ano Eixo da Publicação Método Facchini 2006 Análise dos caminhos percorridos por mulheres lésbicas a procura de atenção a saúde, o recorte da pesquisa abrange diversos países. Há pouca reflexão crítica partindo da raça, enquanto um importante eixo de opressão no corpo lésbico e bissexual. Relatório partindo de observações e Explanação da proporção de mulheres que fazem Investigação populacional &Barbosa Barbosa & Koyama 2006 análise quantitativa. sexo com mulheres, utilizando como análise três Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 243 recortes temporais. Observou-se ausência do eixo de opressão raça na análise. Almeida 2009 Percepção acerca da transformação do “corpo Pesquisa lésbico”, do início da epidemia da Aids até a observação atualidade, uma reflexão crítica sobre a relação de documental e entrevistas Qualitativa junto participante, com análise ausência de informação, saúde e vulnerabilidade, onde, “nestes casos a desinformação é claramente associada à origem de classe e algumas vezes a identidade racial das lésbicas: lésbicas negras e pardas moradoras das regiões periféricas da cidade deteriam menos informações sobre seus corpos, em especial sobre os cuidados necessários a preservação da saúde sexual” (pg. 324-325). Barbosa & 2009 Facchini Reflexão acerca dos cuidados referentes à saúde Pesquisa Qualitativa junto de mulheres que fazem sexo com mulheres e as análise etnográfica e entrevistas com representações referentes a gênero, sexualidade e ao corpo em diversas partes do mundo. Há pouca reflexão crítica partindo da raça, enquanto um importante eixo de opressão no corpo lésbico e bissexual. Valadão & 2011 Gomes Análise de modelos que podem explicar a Ensaio partindo invisibilidade destinada a mulheres lésbicas e científicos bissexuais na área de assistência integral a saúde governamentais que “asseguram o da mulher. Ausência de reflexão acerca do eixo atendimento às demandas de saúde de de opressão raça. mulheres que se assumam lésbicas ou bissexuais vivenciam de e femininas relações periódicos documentos ou que homoafetivas e/ou homoeróticas.” (pg. 1454). Lionço 2008 Pertinência de uma política de saúde para a Ensaio população de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais. Há pouca reflexão crítica partindo da raça, enquanto um importante eixo de opressão no corpo lésbico e bissexual. Quadro II - Descrição dos documentos (continua) Título referente ao trabalho Destaque Programa de Atenção Integral a “A Política de Atenção à Saúde da Mulher deverá atingir as mulheres em Saúde da Mulher-Princípios e todos os ciclos de vida... (mulheres negras, indígenas, residentes em áreas Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 244 Diretrizes- Ministério da Saúde. urbanas e rurais, residentes em locais de difícil acesso, em situação de (BRASIL, 2004) risco, presidiárias, de orientação homossexual, com deficiência, dentre outras) ” (p. 63). Brasil Sem Homofobia- Programa Tem como objetivo, a articulação e implementação de políticas públicas de Combate à Violência e a unificadas em favor da população GLBT. Discriminação contra GLBT e de Promoção da Cidadania Homossexual. (BRASIL, 2004a). Programa Nacional de Direitos “tem como marca o reconhecimento e dos efeitos da discriminação e da Humanos (BRASIL, 2001). exclusão no processo de saúde-doença da população LGBT.” (pg. 08) “Requer também o reconhecimento de que todas as formas de discriminação, como no caso das homofobias que compreendem lesbofobia, gayfobia, bifobia, travestifobia e transfobia, devem ser consideradas na determinação social de sofrimento e de doença. É preciso compreender, por outro lado, que essas formas de preconceito não ocorrem de maneira isolada das outras formas de discriminação social. Ao contrário, elas caminham ao lado e se reforçam pelos preconceitos do machismo, o racismo e a misoginia.” (pg.13) Carta dos Direitos do Usuário da “O TERCEIRO PRINCÍPIO assegura ao cidadão o atendimento Saúde (BRASIL, 2007) acolhedor e livre de discriminação, visando à igualdade de tratamento e a uma relação mais pessoal e saudável. É direito dos cidadãos atendimento acolhedor na rede de serviços de saúde de forma humanizada, livre de qualquer discriminação, restrição ou negação em função de idade, raça, cor, etnia, orientação sexual, identidade de gênero, características genéticas, condições econômicas ou sociais, estado de saúde, ser portador de patologia ou pessoa vivendo com deficiência” (pg. 04) Política Nacional de Saúde Integral “A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra define os da População Negra- Uma Política princípios, a marca, os objetivos, as diretrizes, as estratégias e as do SUS (BRASIL, 2013; 2017) responsabilidades de gestão voltados para a melhoria das condições de saúde desse segmento da população. inclui ações de cuidado, atenção, promoção à saúde e prevenção de doenças, bem como de gestão participativa, participação popular e controle social, produção de conhecimento, formação e educação permanente para trabalhadores de saúde, visando à promoção da equidade em saúde da população negra.” (pg. 07). Saúde da População Negra no “... a implementação de uma política de promoção à saúde voltada para Brasil: as diferenças e diversidades étnico-raciais” (pg. 03). Contribuições para a Promoção da Equidade (BRASIL, 2005) Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 245 Relatório “Atenção Integral à Saúde de Mulheres Lésbicas e “... formulação de orientações para profissionais de saúde a respeito da atenção à saúde de mulheres lésbicas e bissexuais...” (pg. 06). Bissexuais” (BRASIL, 2014) Mulheres “representa uma definição política da Rede Feminista de Saúde de Lésbicas: Promoção da Equidade e contribuir para retirar da invisibilidade as necessidades e dificuldades das da Integralidade (BRASIL, 2008) lésbicas diante dos serviços e profissionais de saúde, evidenciando a Dossiê Saúde das vulnerabilidade” (pg. 4-5). DUPLA INVISIBILIDADE: A HOMOSSEXUALIDADE FEMININA E A VARIÁVEL COR NA ÁREA DE SAÚDE A partir de 2004, no Brasil, surgem com regularidade, artigos, publicações, materiais, inclusive programas e políticas públicas direcionadas à temática lésbica. No escopo dessas produções, podemos ressaltar algumas pesquisas de importância significativa (Pinto, 2004; Almeida, 2005; Barbosa; Koyama, 2006; Mora, 2009; Carvalho et al, 2013). A partir do estudo e leitura das referidas pesquisas, seleciono documentos elaborados pelos coletivos organizados, bem como, documentos governamentais ali citados, elegendo aqueles que abordavam a questão da saúde da lésbica e bissexuais e da mulher negra. Este artigo, consequentemente, foi estruturado a partir da análise destes documentos. Tal investigação realizou-se no sentido de produzir uma observação crítica com relação as informações inseridas e a disseminação prática de suas proposições. Com base nos dois conjuntos de eixos analisados, podemos visualizar a invisibilidade no que diz respeito a homossexualidade feminina na área de saúde, sobretudo, quando refletimos acerca dos enfrentamentos vivenciados por lésbicas e bissexuais negras no contexto brasileiro na área de assistência integral a saúde da mulher. Dois campos são importantes para analisarmos a questão: o das políticas públicas (tendo os documentos legais como ponto importante) e o científico (produção de artigos). No campo das políticas públicas, observa-se uma maior abordagem da temática em questão. Ao focalizar os direitos das diversas orientações sexuais. Entre esses documentos podemos enfatizar o “Programa Nacional de Direitos Humanos” (BRASIL, 2001), que de maneira direta ou não, serve de arcabouço para que outros documentos legais estabeleçam territórios a fim de que se engendre discussão das orientações sexuais não hegemônicas. Especialmente na área de saúde, esse programa se traduz na “Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais- LGBTT” (BRASIL, 2013), “Dossiê Saúde das Mulheres Lésbicas: Promoção da Equidade e da Integralidade (BRASIL, Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 246 2008), “A cartilha Chegou a hora de cuidar da saúde”, lançada em 2006 pelo Programa Nacional de DST/Aids (PN DST/Aids). Estes documentos apresentam diversos pontos que versam sobre uma perspectiva interseccional (CREENSHAW, 2002) onde as sexualidades e identidades, serão atravessadas por questões de gênero e raça, bem como, outros marcadores sociais, reconhecendo assim, os efeitos que potencializam a discriminação, a invisibilidade e a exclusão no processo tanto de saúde, como de doença da população LGBTT. Se por um lado, os argumentos e discursos engendrados pelo campo político intencionam trazer a homossexualidade feminina em particular, bem como, suas intersecções, com importantes eixos de opressão como a raça entre outros marcadores sociais que potencializam a invisibilidade dessas mulheres e a homossexualidade de modo geral, por outro, a produção científica destaca certo apagamento desse tema das práticas de saúde. Sobretudo quando pensamos raça como um fator relevante para essa discussão, devido a se constituir como “agravante” em uma orientação sexual já vista como desviante2. Devido a invisibilidade a que as mulheres são levadas, podendo ela ocorrer nas mais diversas instâncias sociais e fases da vida, como a escola e a adolescência. Entre os autores analisados podemos notar um apontamento para as seguintes implicações: incomodo por conta do não acolhimento das especificidades de suas demandas, elevado estresse e baixa eficácia nos tratamentos. Almeida (2009), entre suas conclusões, enfatiza que a falta de um ambiente favorável à especificidade lésbica na assistência pode fazer com que o atendimento seja negligenciado, de ambas as partes (paciente e profissional de saúde), uma vez que as usuárias não se sentiam à vontade para revelar sua sexualidade e falar sobre suas vivências. Estes fatos podem propiciar vulnerabilidade no âmbito da saúde mental, como fazer com que profissionais de saúde não prestem a essas usuárias o cuidado adequado. Lionço (2008) alude que a orientação sexual e a identidade de gênero, configuram-se mais do que importantes demandas para políticas públicas específicas, carecem de ser consideradas determinantes associadas a saúde. Destaca, ainda, que os profissionais devem ter em seus currículos conteúdos que informam a respeito do enfrentamento do preconceito referente à orientação sexual e a identidade de gênero, com o intuito de que não caiam em 2 Embora o desvio da norma heterossexual compulsória seja considerado uma conduta acintosa para mulheres de diferentes grupos raciais, as expectativas de um desejo sexual dirigido (e mais disponível) para os homens recai de modo mais acentuados para sobre as mulheres negras. Erigidas na imaginação nacional como um produto típico de consumo interno e de exportação das delícias (hetero) sexuais brasileiras, a lésbica negra parece ainda mais “estranha” e anormal do que a branca. (SANTOS, 2007) Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 247 naturalizações ou preconceitos. Mas e quando levamos em consideração a cor da homossexual ou bissexual feminina no acesso a área de assistência à saúde integral da mulher? Os textos analisados, tanto no âmbito das políticas públicas, como no campo científico, fazem alusão, mas não aprofundam, a importância de discutirmos a relevância da variável raça, interseccionalizada com outros marcadores como gênero, orientação sexual, origem, idade, escolaridade, entre outros. Como nos lembra a ativista e pesquisadora Grada Kilomba, “no racismo a recusa é usada para manter e legitimar estruturas violentas de exclusão social” (2013, p. 16). Portanto, enfatizo a importância de tomarmos o marcador raça como espinha dorsal por qual à práxis discursiva racista atravessa esses corpos-subjetividades, salientando o gendramento e sexualização da raça (LIMA, 2018). Sobretudo quando abordamos a vulnerabilidade experienciada por mulheres lésbicas e bissexuais negras no acesso a área de assistência integral a saúde da mulher. Manuel Castells (1999) evidencia que as identidades múltiplas são fonte de tensionamento e contradição e os pontos simbólicos fundamentais dessas identidades estabelecidas por normas estruturadas por instituições e entidades dominantes na sociedade. Portanto, a interrogação de por quem, como, a partir de quem, para que, acontece esse processo de identificação é de suma importância afim de que possamos entender o contexto em que se dá. A estruturação da identidade é um processo social que acontece num contexto de relação de poder, conforme mencionado anteriormente. Tais definições desvelam possibilidades no âmbito de dominações e opressões pelo qual os territórios das identidades podem fornecer também a resistência, isto é, as posições tanto de um lado quanto do outro não são só excludentes ou únicas, são móveis do mesmo modo que as identidades. Continuando nessa linha de raciocínio, acerca das identidades e posições mutáveis exibida por Castells, convém pensarmos como as identidades atravessam as relações de gênero e sexualidade numa sociedade onde segundo Regina Coeli Benedito dos Santos e João Bosco Hora Góis (2007), Devemos ter em conta que as relações sociais estão marcadas por desigualdades e por hierarquizações legitimadas pela pretensa superioridade do homem sobre a mulher, do masculino sobre o feminino, do heterossexual sobre o homossexual e do branco sobre o negro. Essa hierarquização contribui para a instituição e manutenção de diferentes formas de preconceitos (p. 92). Nesse sentido, escrever sobre a vulnerabilidade e violência experienciada por lésbicas e bissexuais negras nos reitera que é impossível enfrentar o debate acerca de um sistema universal de saúde balizado na equidade, integralidade e participação social sem pensarmos na superação Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 248 de uma série de barreiras que a população negra tem de enfrentar no acesso a saúde, particularmente as evidenciadas pelo racismo (WERNECK, 2016, p. 536). Para as mulheres negras, o corpo sempre foi lugar de poder. Um corpo que gera e permanentemente foi apropriado por outros ou outras de forma desrespeitosa com a corporalidade negra. É a resistência diária a um “lugar no não lugar”, a um “não ser”. Lugar dos sofrimentos que muitas vezes não compreendem esse corpo como constituidor de subjetividades. É necessário trazer o racismo para o centro do debate, já que falar sobre humanização e não abordar o racismo configura-se em um problema. Uma lésbica ou bissexual negra, não é igual a uma lésbica ou bissexual branca. O racismo produz processos singulares a essas mulheres. Werneck aborda em seu artigo, que a saúde da mulher negra é um “assunto vago, que na maior parte dos casos, é ignorado pela maioria de pesquisadoras e pesquisadores, estudantes e profissionais de saúde no Brasil” (2016, p. 535). A autora denuncia um descaso frente a compreensão dos vários aspectos envolvidos na saúde da população negra. Esse documento propôs uma definição do campo abarcado pela saúde da população negra, que incluiria “as doenças, agravos e condições mais frequentes na população negra”, classificando-os como: (i) Geneticamente determinadas – anemia falciforme e deficiência de glicose 6fosfato desidrogenase; ou dependentes de elevada frequência de genes responsáveis pela doença ou a ela associadas – hipertensão arterial e diabete melito. (ii) […] Adquiridas, derivadas de condições socioeconômicas desfavoráveis – desnutrição, mortes violentas, mortalidade infantil elevada, abortos sépticos, anemia ferropriva, DST/AIDS, doenças do trabalho, transtornos mentais resultantes da exposição ao racismo e ainda transtornos derivados do abuso de substâncias psicoativas, como o alcoolismo e a toxicomania. (iii) […] De evolução agravada ou de tratamento dificultado – hipertensão arterial, diabete melito, coronariopatias, câncer e mioma. […] (Sistema das Nações Unidas, 2001, p. 5-6, grifos no original). Portanto, a raça se torna um fator relevante, nessa discussão uma vez que constitui um “agravante” em uma orientação sexual já vista como desviante (SANTOS; GÓIS, 2007). Onde outros eixos de subordinação atuam para a produção de quadros de destituição e vulnerabilidades. Num sistema de saúde onde, modelo de mulher para o qual as ações desse serviço são direcionadas é aquela mulher adulta, mãe e heterossexual. Quando a mulher não se enquadra nesse perfil é invisibilizada no serviço ou passa por ações e serviços inapropriados para as suas demandas específicas. Mulheres lésbicas, muitas vezes, passam despercebidas nos serviços de saúde. A identificação da orientação sexual lésbica e bissexual nos serviços não ocorre através de abordagem direta às mulheres nas consultas e sim pela identificação de características atribuídas ao gênero masculino, por exemplo, “cabelo curto, jeito masculino de andar, tipo de roupa”. As mulheres que não correspondem a essa identidade de gênero atribuída ao masculino não são percebidas como lésbicas e, sendo invisibilizadas, suas demandas específicas não são identificadas. Isso corrobora ideias de que mulheres lésbicas não estão sujeitas a transmissão de DST/AIDS e não é preciso realizar orientações específicas como o uso de métodos de barreira ou outras. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 249 Essa crença na proteção às DST/AIDS parece estar ancorada na ideia que o sexo entre mulheres não é sexo por supostamente não ter penetração e em decorrência disso não teria o risco de contaminação (BRASIL, 2014, p. 21-22). É preciso construir uma política de integralidade em saúde desde que o racismo seja colocado no lugar de violência silenciosa que machuca e que mata. Mbembe (2014, p. 6) em seu potente “Crítica da Razão Negra” nos chama a atenção, “a crítica da modernidade estará inacabada enquanto não compreendermos que o seu advento coincide com o princípio da definição de raça e da lenta transformação deste princípio em matriz privilegiada de dominação ontem como hoje”. CONSIDERAÇÕES FINAIS: TRAJETÓRIAS INICIAIS Através deste trabalho, objetivou-se realizar uma análise de artigos apresentados em periódicos científicos, documentos governamentais relativos à saúde de mulheres lésbicas e bissexuais, bem como, referentes a saúde das mulheres negras. Nos documentos examinados, observou-se no tocante a saúde das mulheres lésbicas e bissexuais, pontos importantes a serem considerados, como expectativas relativas ao gênero, intensificando vulnerabilidades. Outro ponto analisado, diz respeito a inquietação com a possibilidade de mulheres lésbicas e bissexuais se contaminarem por infecções sexualmente transmissíveis. A análise desses documentos sinaliza que, se por um lado há grande foco nos tópicos relacionados às IST´s, por outro, há carência de diferentes questões que sejam capazes de assegurar a saúde de mulheres lésbicas em sua integralidade. Já no âmbito da saúde das mulheres negras, aspecto fundamental identificado é a perspectiva de analisar o racismo e suas consequências na saúde, além de evidenciar modos, momentos e oportunidades de ação. Conforme dito aqui, com o racismo, outras estruturas de subalternidades operam para a produção de contextos de destituição e vulnerabilidades. Essa codeterminação provavelmente está relacionada aos graves indicadores sociais e de saúde das mulheres negras que muito possivelmente cooperam nas altas taxas de morbidade e de mortalidade prematura ou por causas evitáveis. Em face dessas discussões provocar uma reflexão de modo crítico acerca das vicissitudes, bem como dos desafios e enfrentamentos vivenciados por mulheres lésbicas e Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 250 bissexuais negras se faz necessário. Uma vez que, lésbicas e bissexuais negras3 tem seu corpo e subjetividades, perpassados por uma série complexa de fatores que atuam com grande intensidade, configurando-se em tripla opressão, que somadas a outros marcadores sociais como classe, a capacidade física e mental, idade, entre outros, agrava a exclusão. A importância da constituição de processos de monitoramento e avaliação que priorize indicadores sensíveis, preparados para serem utilizados pelos diferentes atores envolvidos e pertinentes à aferição das disparidades raciais na saúde e seus processos de eliminação não deve ser negligenciado. Pois em grande medida, os documentos analisados apontaram para uma dupla invisibilidade dessas mulheres, onde as mesmas não são apoiadas por parcela dos profissionais de saúde, no campo referente a atenção integral a saúde da mulher, a exprimir suas orientações sexuais no momento em que buscam assistência. No âmbito da saúde da mulher negra, entraves referentes ao diagnóstico das características da população segundo raça/cor e sexo/identidade de gênero; treinamento de equipes para abordagem singularizada e para enfrentamento do racismo; ampliação do investimento público dirigido à eliminação do racismo e à iniquidade de gênero. Tais fatos escamoteiam um atendimento seguro, resultando em exclusão e violência simbólica, a despeito dos programas governamentais transmitirem o contrário. Em contrapartida, utilizando a base teórica de Bourdieu (1992) verifica-se a possibilidade de modificação desse habitus através da união entre os agentes dos campos da política, da ciência e dos movimentos sociais. Empenhados em trazer as questões relacionadas a um melhor acesso ao sistema de saúde a mulher negra afim de superar barreiras enfrentadas no acesso à saúde. Particularmente aquelas interpostas pelo racismo, assim como, da homossexualidade feminina, não só para o campo dos discursos mas, principalmente, para as práticas da atenção à saúde da mulher. Essa iniciativa depende de investimentos na formação de profissionais de saúde a fim de que esses consigam, além da competência na área técnica para lidar com as diversidades, sejam capazes de ser agentes sociais que envolvem na transformação de habitus sexistas e de segregação em boas práticas de saúde direcionadas a diversidade racial e da sexualidade. As reflexões, longe de serem finais, são apenas caminhos iniciais de um percurso, posto que, não só atentam para uma deficiente produção acerca do assunto, como também, de maneira Sob a designação de “mulher negra” estão incluídas as mulheres autodeclaradas e/ou classificadas como negras e pardas e que se encontram em lugares atravessados por diferentes eixos de opressão, entre estes o racismo e o sexismo. (LIMA, 2017) 3 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 251 ensaística se dispõe a formular hipóteses a serem pesquisadas em trabalhos futuros, que levem em conta não só o que já foi produzido, afim de que, possamos caminhar na direção de entender o que se passa no cotidiano de lésbicas e mulheres bissexuais negras e assim como, no de profissionais de saúde que a elas propiciam ou deveriam propiciar assistência. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, G. Da invisibilidade à vulnerabilidade: percurso do corpo lésbico na cena brasileira face à possibilidade da infecção por DST e Aids. Rio de Janeiro, 2005. 342 f. tese (doutorado em saúde Coletiva) - Instituto de Medicina social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. ______. Argumentos em torno da possibilidade de infecção por DST e AIDS entre mulheres que se autodefinem como lésbicas. Physis - Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 2, p. 301-311, 2009. 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Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 254 ENTRE SILENCIAMENTOS E INVISIBILIDADES: ESTADO, POLÍTICAS RACIAIS E AS MOBILIZAÇÕES POLÍTICAS NEGRAS Luane Bento dos Santos1 RESUMO Neste trabalho, temos por objetivo dissertar a respeito das ações políticas dos movimentos negros, como eles desconstruíram parte do panorama intelectual colonialista que retratava o Estado e sociedade brasileira como lugares de inexistência de políticas e práticas racistas. Apresentamos o pensamento de ativistas e intelectuais comprometidos com a luta antirracista e anticolonialista. Relacionamos a obra desses intelectuais ao movimento decolonial que tem adentrado o espaço acadêmico como espaço alternativo para pensar o Sul-Global. Enfatizamos a importância desses estudos para a construção de uma Ciência Social mais crítica. PALAVRAS-CHAVES: Estado; Políticas Racistas; Colonialidade; Movimentos Negros; Intelectualidade. ABSTRACT In this work, we have the objective of discussing the political actions of the black movements, as they deconstructed part of the colonialist intellectual panorama that portrayed the Brazilian state and society as places of non-existence of racist policies and practices. We present the thought of activists and intellectuals committed to the anti-racist and anticolonialist struggle. We relate the work of these intellectuals to the decolonial movement that has penetrated the academic space as an alternative space to think the South-Global. We emphasize the importance of these studies for the construction of a more critical Social Science. KEYWORDS: State; Racist Policies; Coloniality; Black Movements; Intellectuality. INTRODUÇÃO No artigo de Carlos Vainer “Estado e raça no Brasil: Notas exploratórias”(1990) percebemos o silenciamento e invisibilidade dos conflitos oriundos das questões étnico-raciais que marcaram a história do Brasil, especificamente, o período do pós-abolição. Vainer realiza um interessante debate com Mariza Corrêa (1982). A autora defende que o Estado brasileiro não pode ser caracterizado como instituição que atuou com políticas de cunho racista após o fim do regime escravista e ao longo do século XX com as políticas imigracionistas. Em um pequeno esboço teórico o autor demonstra uma série de iniciativas tomadas pelo Estado brasileiro com intentos marcadamente racistas nas políticas imigratórias ao longo do século XX. Vainer inicia sua reflexão com o seguinte questionamento: Se o desvendamento do mito da democracia racial revela uma sociedade racista, poderá o questionamento da suposta neutralidade do Estado brasileiro vir a revelar um Estado também racista? Eis uma pergunta para a qual não se poderá oferecer uma resposta rigorosa antes que se desenvolva uma ampla e profunda pesquisa. As poucas referências alinhadas neste artigo parecem, porém, justificar a formulação da pergunta e a proposição de um programa de investigações. Nesse programa, por sinal, se 1 Doutoranda em Ciências Sociais/ PUC-Rio. Professora Assistente de Relações Étnico-raciais na Faculdade de Educação da UFF. E-mail: luanebentosantos@gmail.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 255 haveria de incluir uma segunda pergunta e não menos instigante indagação: por que tema tão relevante tem-se mantido sob tão absoluto silêncio, escapando à atenção de historiadores e estudiosos de relações raciais? (VAINER, 1990, p. 104). Neste sentido, pensamos que a postura de Corrêa (1982) ao camuflar ou ver como questões menores a atuação do Estado brasileiro, no que se refere às relações étnico-raciais, caracterizam parte de uma intelectualidade brasileira que durante muito tempo atenuou os conflitos originados do legado escravocrata e dos interesses das classes dominantes para que os grupos negros e indígenas se mantivessem nas piores condições socioeconômicas. Sobre esse fenômeno Carlos Moore (2005, p.325) faz uma severa crítica sobre a postura de nossa intelectualidade brasileira e também a estende para a intelectualidade da América Latina: Ora, na América Latina costuma-se discutir a pobreza e as desigualdades sociais sem aludir à estrutura racial das sociedades. É impressionante constatar a invisibilidade do racismo aos olhos de economistas, sociólogos, antropólogos, etnólogos, cientistas políticos, filósofos, psicólogos e demógrafos. O mundo acadêmico latino-americano é a incubadora de idéias que racionalizam e mantém em vigência o modelo de relações raciais ibero-árabes ((MOORE, 1995; 1988, Capítulo 5). Afinal, na academia foram elaboradas no século XIX, em toda América Latina, teses e propostas eugenistas que logo depois se converteram nas mito-ideologias sucessoras da democracia miscigenada, como raça cósmica (México), sociedade café-com-leite (Venezuela) e democracia racial (Brasil). Moore ainda chama atenção para a forma em como as análises históricas e sociais têm sido realizadas: A análise histórica da pobreza e das desigualdades, fenômenos que em muitos casos correspondem à maioria da população nacional, torna-se totalmente opaca sem uma referência sistemática ao modelo de relações raciais que impera na região. Incorporar a dimensão racial à análise da sociedade em seu conjunto é condição para que se logre uma leitura social, cultural ou política capaz de revelar as realidades factuais das sociedades latino-americanas. Nelas, a pobreza e as desigualdades nascem de um sistema de dominação política e de hegemonia social, historicamente baseado no esmagamento e na marginalização das sociedades indígenas, por um lado, e por outro, na imposição da escravidão racial às populações africanas e na sua subseqüente marginalização no período pós-abolição (p. 325). Desse modo, deduzimos que o desinteresse por parte de nossa intelectualidade brasileira em estudar a atuação do Estado como promotor de políticas raciais e racistas apontados por Vainer (1990) condiz com uma postura intelectual tomada em toda a América Latina como argumenta Moore (2005). Certamente, podemos considerar que as mudanças de atitudes acerca das questões étnico-raciais por parte do Estado e por parte da elite intelectual brasileira são frutos de diversas negociações e reivindicações das organizações negras ao longo de nossa história e não apenas como resultado de transformações globais e exigências econômicas liberais (como ouvimos, costumeiramente, pelos corredores e debates do espaço acadêmico). Entretanto, apesar de atualmente temos ações afirmativas nas universidades federais (Lei federal 12.711/2012), Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 256 inserção gradativa da lei federal de n. 10.639/2003 de História e Cultura Africana e Afrobrasileira na Educação Básica e o Estado brasileiro ter se comprometido desde a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata em Durban, África do Sul, no ano de 2001, a realizar medidas compensatórias para grupos historicamente discriminados (dentre eles negros, negros quilombolas e indígenas), percebemos que as lutas históricas, proposições políticas e teóricas dos movimentos sociais negros ainda sofrem uma certa marginalização nos espaços acadêmicos. No que diz respeito, a literatura produzida por uma intelectualidade negra e não negra comprometida com a luta antirracista e com a construção de sociedade democrática, tivemos a chance de estudar e refletir sobre essas produções em poucos momentos da vida acadêmica e sempre em disciplinas eletivas, optativas e nunca em currículo obrigatório de curso de graduação. Portanto, as reflexões apresentadas neste trabalho consubstanciam parte dos debates realizados na disciplina “Questão racial e colonialidade no pensamento social latino-americano”, realizada no IPPUR, no segundo semestre de 2018, em conjunto com cursos de pós-graduação de outras instituições e cursada para o doutoramento em Ciências Sociais na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro/PUC-Rio. Ademais soma-se aos interesses de pesquisa nas relações étnico-raciais que temos tomado desde a primeira graduação em Ciências Sociais. Neste trabalho, pretendemos abordar as contribuições teóricas de autores negros e nãonegros que colaboraram/colaboram para a desconstrução de paradigmas consolidados acerca do mito da democracia racial e da suposta neutralidade do Estado brasileiro em relação a persistência das desigualdades raciais. Como dissemos, autores que estão à margem da academia por serem vistos e descritos por muitos como militantes “radicais” e não intelectuais orgânicos comprometidos com uma agenda política de mudança da realidade e preocupados na elaboração de paradigmas que problematizam o mundo social. Pensadores que também podem ser caracterizados como decoloniais por romperem com marcos colonialistas em momentos tão emblemáticos na sociedade. Para esclarecimentos dos estudos decoloniais trazemos as ponderações de Ballestrin (2013, p. 90) ao citar Mignoli sobre a origem dos escritos decoloniais: Para Mignolo, “a conceitualização mesma da colonialidade como constitutiva da modernidade e já o pensamento de-colonial em marcha” (Mignolo, 2008, p. 249). Mas, para ele, a origem do pensamento decolonial e mais remota, emergindo como contrapartida desde a fundação da modernidade/colonialidade. Seria possível, portanto, considerar Wama Pomam de Ayala – do vice-reinado peruano que enviou ao rei Felipe III em 1616 sua Nueva crónica y buen gobierno – e Otabbah Cugoano – um escravo liberto que publicou em Londres, em 1787, Thoughts and sentiments on the evil of slavery – como os primeiros autores de tratados políticos decoloniais, que não usufruem o mesmo prestígio daqueles escritos por Hobbes, Locke ou Rousseau. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 257 Ballestrin (2013) ainda nos esclarece que “A genealogia do pensamento decolonial e planetária e não se limita a indivíduos, mas incorpora nos movimentos sociais (o qual nos remete aos movimentos sociais indígenas e afros)”. Por essas razões, defendemos que os autores aqui utilizados fazem parte de um contexto de escritos decoloniais. Por serem estudos que combatem às afirmativas de grupos dominantes endereçados em defender seus pequenos interesses, nos territórios do Sul-Global, bem como agir em comum acordo com o capital econômico que vem extirpando outras formas de agir e se comportar no mundo que não correspondam a representação branca, masculina, cristã, heterossexual e burguesa. Desse modo, trabalhamos aqui com os estudos de Abdias do Nascimento em “O Genocídio do Negro Brasileiro (1978) e O Quilombismo (1980)”, Amilcar Pereira em “O mundo negro; as relações raciais e a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil (2010)”, Carlos Moore (2005) em “Do marco histórico das políticas públicas de ações afirmativas – perspectivas e considerações”, Carlos Vainer em “Estado e raça no Brasil: notas exploratórias (1990)”, Elisa Larkin em “Panafricanismo na América do Sul” (1981). Precisamos dizer que temos como objetivo apresentar as críticas desses autores à visão harmônica das relações raciais brasileiras consolidadas pela elite intelectual, assim como suas contribuições para as transformações sociais que ocorreram na sociedade brasileira. O trabalho está estruturado da seguinte forma: na primeira parte apresentamos as críticas e denúncias de Abdias do Nascimento (1978; 1980) em relação a sociedade brasileira e como elas construíram caminhos significativos para a criação de políticas públicas compensatórias para a população negra. Na segunda parte, mostramos a atuação política dos movimentos negros e como elas desvelaram o panorama mítico das relações étnico-raciais brasileiras, assim como pressionaram o Estado a ter outra postura sobre as desigualdades raciais. Por fim, as considerações finais. A CORTINA DE FUMAÇA QUE ENCOBRE AS RELAÇÕES RACIAIS BRASILEIRAS Em frase célebre Abdias do Nascimento observou “É preciso uma ingenuidade perfeitamente obtusa ou uma má-fé cínica para se negar a existência do preconceito racial”. Essa argumentação junta-se a uma série de críticas para a dura realidade social vivenciada pela população negra no Brasil. Críticas e denúncias que o ativista e intelectual negro teve no decorrer de toda a sua vida e Abdias do Nascimento viveu até os 93 anos de idade. De certo Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 258 modo, muitas das reflexões de Nascimento são traduções de reivindicações das organizações negras para o espaço acadêmico. No Livro “Quilombismo”, especificamente, no Documento n. 7 Quilombismo: Um conceito científico emergente do processo histórico-cultural da população afro-brasileira encontramos uma série de proposições que resultaram em políticas públicas afirmativas para a população negra. Podemos citar aqui como exemplo a Lei federal de n. 10.639/2003 de História e Cultura Africana e Afro-brasileira na Educação Básica. Nunca em nosso sistema educativo se ensinou qualquer disciplina que revelasse algum apreço ou respeito às culturas, artes, línguas e religiões de origem africana. E o contato físico do afro-brasileiro com os seus irmãos no continente e na diáspora sempre foi impedido ou dificultado, entre outros obstáculos, pela carência de meios econômicos que permitissem ao negro se locomover e viajar fora do país (NASCIMENTO, 1980, p. 328). Ainda elenca a História e Cultura Africana e Afro-brasileira como um dos princípios do Quilombismo: 7. A educação e o ensino em todos os graus – elementar, médio e superior – serão completamente gratuitos e abertos sem distinção a todos os membros da sociedade quilombista. A história da África, das culturas, das civilizações e das artes africanas terão um lugar eminente nos currículos escolares. Criar uma Universidade AfroBrasileira é uma necessidade dentro do programa quilombista (NASCIMENTO, 1980, p. 369-370). Neste princípio observamos também as ideias que levaram posteriormente a criação da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab)2 no interior do nordeste brasileiro, nos governos do Partido dos Trabalhadores/PT. Como dissemos Abdias do Nascimento fomentou reflexões que se traduziram em políticas públicas para a população negra brasileira, mas além disso, sua escrita e seu papel político junto a de outros teóricos, tais como Guerreiro Ramos, foi fundamental para denunciar a cortina de fumaça que havia sobre as relações sociais entre negros e brancos, brancos e índios no Brasil. Dito de outro modo, a atuação de Abdias junto a outros intelectuais e ativistas dos movimentos negros brasileiros foi elementar para desmascarar o mito da democracia racial. Na obra “O Genocídio do Negro Brasileiro” (1978), primordialmente, no capítulo III Exploração sexual da mulher africana, o autor evidencia a perversidade das relações sexuais em que foram submetidas as mulheres negras desde o período colonial até os tempos atuais. Segundo Nascimento: A norma consistia na exploração africana pelo senhor escravocrata, e este fato ilustra um dos aspectos mais repugnantes do lascivo, indolente e ganancioso caráter da classe dirigente portuguesa. O costume de manter prostitutas negro-africanas como meio de 2 A Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) nasce baseada nos princípios de cooperação solidária. Em parceria com outros países, principalmente africanos, a Unilab desenvolve formas de crescimento econômico, político e social entre os estudantes, formando cidadãos capazes de multiplicar o aprendizado. Informações disponíveis em: http://www.unilab.edu.br/como-surgiu/ Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 259 renda, comum entre os escravocratas, revela que além de licenciosos, alguns se tornaram também proxenetas. O Brasil herdou de Portugal a estrutura patriarcal familiar e o preço dessa herança foi pago pela mulher negra, não só durante a escravidão. Ainda nos dias de hoje, a mulher negra, por causa da sua condição de pobreza, ausência de status social, e total desamparo contínua a vítima fácil, vulnerável a qualquer agressão sexual do branco (NASCIMENTO, 1978, p.61). Por essas razões como demonstra o autor fica difícil acreditar em relações étnico-raciais sempre pacíficas como escreveram muitos teóricos brasileiros. Outro capítulo que nos interessa abordar neste trabalho é o capítulo V O branqueamento da raça: uma estratégia de genocídio. Neste capítulo, Nascimento, distintamente a Carlos Vainer (1990), nos diz que a política de embranquecimento aconteceu no Brasil desde o período da escravidão. O autor expõe “Durante a os tempos de escravidão, esta política de embranquecer a popular estruturava-se de forma a limitar de qualquer maneira o crescimento da população negra” (p.70). Além do capítulo V, notamos a importância do capítulo VI Discussão sobre raça: proibida para compreendermos parte dos alardes ocorridos na sociedade brasileira quando ocorreu a efetivação da primeira turma de ações afirmativas para negros no ensino superior, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, no ano de 2002. Neste capítulo, Nascimento (1978, p.80) denuncia como o governo brasileiro, na época tomava medidas para silenciar os debates étnico-raciais: O governo brasileiro do Brasil tem tomado medidas para proibir completamente a discussão racial fato que implicitamente nega toda a possível credibilidade á “democracia racial [...] (p.79). A proposta da Comissão Geral de Inquérito PolicialMilitar evidencia o já mencionado propósito de intimidar e silenciar a discussão pública de racismo e discriminação racial. Uma estranha “democracia racial” que não permite reivindicações de direitos pelas vítimas racial; o atual governo tenta censurar, intimidar e calar instituições de pesquisa e scholars estrangeiros que se preocupam com a situação do negro no Brasil. Vemos aqui o papel do Estado brasileiro em negar o problema racial mais ainda em perseguir os ativistas políticos como destaca Pereira (2010): Vale ressaltar que no contexto sócio-histórico no qual se constituiu o movimento negro contemporâneo, além de ser proibido qualquer evento ou publicação relacionado à questão racial – que poderia ser visto pelo regime como algo que pudesse “incitar ao ódio ou à discriminação racial” e, segundo o Decreto Lei n. 510, de 20 de março de 1969 em seu artigo 33, poderia levar a pena de 1 a 3 anos […] havia também o acompanhamento de perto realizado pelos órgãos de informação do regime militar, então vigente no Brasil (PEREIRA, 2010, p. 166). Os constantes silenciamentos dos conflitos originados pelas questões raciais brasileiras demonstram o quanto no Brasil tem uma cultura política de negação dos problemas raciais. Na voz de Nascimento: Fugir das realidades étnicas é recurso totalmente inútil. Pois enquanto os brasileiros tentam enganar a si mesmos com a invenção da “democracia racial”, os povos de outros países manifestam um conhecimento perfeito de fatos e ocorrências Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 260 supostamente não existem na sociedade brasileira, segundo a teoria oficial em vigor” (NASCIMENTO, 1978, p. 80). Sendo assim, gostaríamos de refletir aqui como a negação constante desses conflitos corroboraram com um imaginário perverso em torno das pessoas negras, principalmente de seus direitos. Por esses motivos quando medidas de ações afirmativas foram implementadas no sistema de avaliação de vestibular da UERJ, no ano de 2002, ocorreu inúmeros alardes e polêmicas em torno do sistema de cotas raciais. Imagina, um Estado que alimentou durante um período significativo o “mito da democracia racial” e anteriormente participou efetivamente de políticas racistas como argumenta Vainer (1990), passar a atuar com medidas compensatórias. Como uma sociedade arraigada em uma cultura racista comportar-se-ia com os primeiros passos para a promoção de grupos historicamente marginalizados. Uma sociedade que somente agora tem como obrigatoriedade o ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira (Lei 10.639/2003) e que ainda acontece de forma fragmentada e sem continuidade quando implementada (GOMES, 2013). MOBILIZAÇÕES POLÍTICAS NEGRAS E A REIVINDICAÇÃO POR MEDIDAS COMPENSATÓRIAS Pereira (2010) apresenta em seu estudo os principais marcos históricos para a compreensão dos movimentos negros contemporâneos. No capítulo IV intitulado “O mundo negro; as relações raciais e a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil”, discorrer também sobre os elementos centrais para o surgimento dos movimentos negros na contemporaneidade. O processo de criação das organizações negras no período ditatorial se deu, segundo Pereira com o alargamento das vagas em instituições de nível superior. O regime militar no Brasil também teve um outro lado além da dura repressão política, principalmente durante os chamados “anos de chumbo”, que segundo alguns autores, de uma maneira um tanto contraditória, também teria contribuído para a constituição do movimento negro contemporâneo: o chamado “milagre”, o crescimento econômico que ocorreu durante os “anos de chumbo”, principalmente entre os anos de 1968 e 1973, acabou proporcionando um número relativamente grande de negros nas universidades – se comparando com os anos anteriores – e, consequentemente, disputando postos de trabalho e maior remuneração (PEREIRA, 2010, p. 175). O aumento crescente de jovens negros, os primeiros da família, em espaço historicamente destinado aos filhos da elite branca brasileira possibilitou a criação dos grupos negros estudados por Pereira (2010). Para além, do momento político onde havia a efervescência dos direitos civis e os Panteras Negras nos EUA, o movimento negritude e a Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 261 questão do apartheid, a entrada de um grupo negro no espaço universitário reverberou no que hoje conhecemos e estudamos como movimentos negros contemporâneos. A presença desses grupos conciliadas a uma participação política e cultural contestatória trouxe avanços significativos para a ampliação teórica das relações raciais brasileiras, o reconhecimento legal dos territórios quilombolas (Art. 68 da C. F), a criminalização da prática de racismo e discriminação racial e o comprometimento do Estado brasileiro em Durban 2001 na realização de políticas afirmativas e compensatória para as populações negras. Na realidade, o que percebemos são inúmeras conquista, neste trabalho descrevemos somente algumas. Sobre a emergência dos movimentos negros na América Latina Carlos Moore menciona: A ocorrência, no mesmo momento histórico, das lutas contra as ditaduras militares na América Latina, das lutas dos afro-norte-americanos pelos Direitos Civis, as lutas pela libertação nacional no continente africano, particularmente na África do Sul e nas colônias portuguesas e, também, pela descolonização dos países do Caribe e do Pacífico Sul, propiciou, pela primeira vez, um clima geral favorável para um exame especificamente sócio-racial da realidade latino-americana. Através dessa brecha histórica é que se organizaram as lutas concretas de afro-descendentes e de indígenas na América Latina. Deste contexto surgiram, tanto do lado indígena como do lado afro-descendente, as propostas em prol da aplicação de políticas públicas de ações afirmativas na América Latina como estratégia capaz de reverter o quadro sócio-racial de marginalização e discriminações seculares exercidas contra esses dois segmentos populacionais. Larkin (1981, p.16) também comenta que “A nova militância negra afro-brasileira […] constitui, sem dúvidas, um dos mais importantes acontecimentos da história negra contemporânea de todas as Américas”. Assim, percebemos como o aparecimento contemporâneo das organizações negras possibilitou uma série de processos de reconhecimentos e assunção de direitos para as populações negras, principalmente as ações afirmativas como destaca Moore (2005): Existe no continente uma opinião pública favorável ao mecanismo das cotas baseadas no gênero. Contudo, encontramos uma resistência orgânica às políticas de mesma natureza em favor dos 150 milhões de afro-descendentes, e não menos de 130 milhões de indígenas, na América Latina. A mera menção de cotas em favor desses dois grupos provoca uma verdadeira cruzada contrária, vinda dos mais diversos setores da sociedade (p. 317). Conforme vimos em Nascimento (1978), a negação da raça e dos conflitos oriundos da pertença racial são características da sociedade brasileira e como reforça Moore (2005) das sociedades na América Latina. Essas constantes negativas atropelam e cerceiam direitos mínimos para a grande maioria da população negra e indígena. Larkin (1981) ainda enfatiza que as formas de racismos praticadas aqui e pelo mundo não são problemas que podem ser vistos apenas como uma repulsa ideológica a diferença epidérmica, mas como um movimento de extirpação do modelo cultural e existencial negro e indígena. De acordo com Larkin (1981): Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 262 Antes de chegar à recusa do elemento físico o “fenótipo”, houve obrigatoriamente o repúdio de um povo na íntegra, com sua civilização, sua religião, história e sociedade. O rechaço do fenótipo é meramente um sintoma, desenvolvido como expressão social externa de uma ideologia racista muito mais abrangente. Discriminamos o fenótipo negro ou indígena não porque o “preconceito” nos leve gratuitamente a isso, mas porque ele simboliza todo um ser cultural, espiritual, ontológico que consideramos inferior (p.12). A chave utilizada por Larkin (1981) é interessante para pensarmos os ataques violentos na atualidade aos elementos culturais de matriz africana, principalmente as religiões de matrizes africanas que tem sido frequentemente vilipendiadas em seus espaços sagrados. Precisamos dizer que trazemos as reflexões de Larkin (1981) sobre o fenômeno do racismo juntamente a teóricos que discutem o aparecimento dos movimentos negros contemporâneos e as ações afirmativas, por entendemos que o espaço deste tipo de narrativa se inscrevem num movimento e momento de quebra de tradições teóricas sobre as relações raciais, um movimento/momento decolonial na academia. A perspectiva de Larkin (1981) sobre o fenômeno do racismo baseada em autores africanos e afro-americanos é ainda polêmica nas Ciências Sociais brasileiras e pouco conhecida. Mas, sem dúvidas, desestabiliza interpretações cânones como a de Oracy Nogueira (1974) e suas argumentações de preconceito de marca e preconceito de origem. Segundo a autora, “não há nenhuma distinção entre preconceito de marca e de origem”. É nesse contexto de emergência de construção de novas perspectivas sobre as relações étnico-raciais brasileiras que os movimentos negros adentram o espaço acadêmico, contestando como Larkin (1981) teorias canonizadas e abrindo espaço para pensar a partir da perspectiva intelectual dos secularmente oprimidos. Causando assim fissuras e desestabilizados estruturas de privilégios até então não contestadas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho, tivemos como objetivo apresentar um pouco da produção teórica de ativistas e intelectuais dos movimentos negros acerca das relações étnico-raciais brasileiras. Também privilegiamos descrever as atuações dos movimentos negros contemporâneos para a construção de medidas compensatórias para a população negra. Além disso, buscamos destacar a relevância dessas produções para a descolonização dos currículos e ambiente acadêmico. Com intenções decoloniais escolhemos utilizar autores à margem e com escritos que contestam a lógica colonizante e racista presentes na sociedade. No entanto, sabemos que esse exercício é Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 263 meramente reflexivo e que o Giro Decolonial precisa tornar-se algo real nas práticas e espaços vividos pelos grupos historicamente dominados. Acreditamos que a onda decolonial não seja apenas um movimento de modismo acadêmico, pensamos que levada às últimas consequências podem transformar as instituições e suas práticas institucionais. Talvez as ações afirmativas sejam um elemento que possibilite uma maior adesão corpórea as perspectivas decoloniais. Certamente, a presença desses excluídos, causam fissuras e colocam questões invisibilizadas e silenciadas novamente para os espaços que sempre as negaram. Basta observarmos os levantes de estudantes negros contra o racismo dentro das universidades e as reivindicações desses para a inserção de autores negros nos currículos acadêmicos e a de docentes negros nos corpos dos departamentos. Consideramos esses movimentos como reflexo de uma série de ações tomadas no passado, bem como um movimento de transformação das instituições que passam a experimentar a fala e preocupação dos que sempre foram vistos e pensados como os “outros”, como objeto de estudo e quase nunca como sujeitos produtores de conhecimento. Por fim, afirmamos que o exercício analítico realizado aqui ainda é incipiente, tendo em vista, a magnitude e as vastas produções que contestam a escrita e marco colonial e racista na sociedade em que nos situamos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Rev. Bras. Ciênc. Polít., Brasília , n. 11, p. 89-117, aug. 2013. 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Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 265 ESCRITORA E NEGRA: O CONCEITO DE YALODÊ EM CONCEIÇÃO EVARISTO Leandro Passos1 RESUMO Ciente da importância da ancestralidade africana, Conceição Evaristo de Brito é modelo para o debate do feminismo negro no Brasil e, também, no exterior. Por isso, este artigo propõe-se a refletir sobre o conceito de matriz africana iorubá Yalodê, a partir da escrevivência da autora e de seus textos: o conto “Olhos d’água” e o poema “Meu rosário”. Para tanto, serão levados em consideração os estudos da própria autora, bem como os de Machado (2014), Fanon (2008) e os do Grupo de Estudos Subalternos latino-americanos. PALAVRAS-CHAVE: Conceição Evaristo; Escrevivência; Gênero; Poética; Raça. ABSTRACT Aware of the importance of African ancestry, Conceição Evaristo de Brito is a model for the debate of black feminism in Brazil and, also, abroad. Therefore, this article proposes to reflect on the concept of Yorubá African matrix Yalodê, from the writer's writings and her texts: the story "Olhos d’água" and the poem "Meu rosário". For that, the author's own studies, as well as those of Machado (2014), Fanon (2008) and those of the Latin American Subaltern Studies Group, will be taken into account. KEY-WORDS: Conceição Evaristo; Escrevivência; Gender; Poetic; Race. INTRODUÇÃO Mulher, negra, ex-empregada doméstica e babá, nascida na hoje extinta favela do Pendura a Saia em Belo Horizonte no estado de Minas Gerais, Conceição Evaristo de Brito estreou na literatura em 1990, com obras publicadas na série Cadernos Negros. Contudo, como diz a própria escritora2, “Foi preciso o prêmio Jabuti para comprovar que esta mulher negra aqui não está no espaço literário por intromissão”. Vale destacar que Evaristo ganhou o prêmio em 2015 na categoria contos e crônicas por sua obra de contos Olhos d’àgua. Conceição Evaristo é versátil, escreve ensaios e artigos literários, cujo campo de pesquisa no Brasil é tomado pela supremacia de vozes masculinas (como tantos outros). Por outro lado, esse espaço é ocupado também por mulheres, professoras-pesquisadoras que são referências pela qualidade de seus estudos. 1 Pós-doutorando em Letras pela UNESP Rio Preto (Proc. 990 - 2018-2019). Professor EBTT de Língua Portuguesa do IFMS Campus Três Lagoas. Faz parte dos Grupos de Pesquisa "Gênero e raça" (UNESP Rio Preto), "Vertentes do Fantástico na Literatura" (UNESP Araraquara) e "Criminologia diálogos críticos" (UEMS Unidade Paranaíba). Possui contos e poemas publicados pela Quilombhoje - Cadernos Negros e Editora Trevo. E-mail: leandro.passos@ifms.edu.br. 2 Entrevista para Lara Sarem em 06 de junho de 2017. Disponível em https://www.lamparinascope.com/singlepost/2017/06/06/. Acesso em abril de 2019. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 266 Baseando-se nestes aspectos da vida da autora, este artigo propõe-se a refletir sobre a trajetória de Conceição, tomando-se por base o conceito de Yalodê, termo pertencente ao idioma africano iorubá que faz menção à mulher como um ser guerreiro, detentor de poder de ação e de liderança. Tendo em vista que o título em questão, conforme os itans (histórias ou poemas sagrados do culto do candomblé), foi conferido ao orixá Oxum, a qual é citação constante na escrita de Evaristo, o conto “Olhos d’água”, presente na obra de mesmo nome (2014, primeira publicação), e o poema “Meu rosário”, inserido em Poemas da recordação e outros movimentos (2008, primeira publicação), serão analisados a fim de apontar de que modo o título africano configura-se no universo literário da escritora. Para cumprir com o objetivo proposto neste artigo, serão necessárias as reflexões sobre: (i) o mito do orixá Oxum, detentora do título Yalodê, (ii) a face de Oxum no conto e no poema; e (iii) o percurso vida/obra de Conceição Evaristo, atrelados aos estudos do Grupo dos Subalternos. Nas Considerações finais, o artigo será finalizado com os apontamentos presentes no texto. OXUM: MULHER, NEGRA, DIVINA, E O ESPAÇO DE DECISÃO Conforme a cosmovisão africana iorubá, no princípio do mundo, Olodumaré mandou todos os orixás para organizarem a terra. Os homens faziam reuniões, mas as mulheres não eram convidadas e, além disso, foram proibidas de participar da organização do mundo e, consequentemente, das deliberações. Assim, nos dias e nas horas marcadas, os homens deixavam em casa as mulheres e saiam para tomar as providências indicadas pelo deus supremo. Inconformadas com a proibição, as mulheres recorreram à Oxum, pois o título de Yalodê já lhe havia sido atribuído: pessoa mais importante entre as mulheres. A divindade, então, a fim de reverter a situação foi até ao local em que os homens se reuniam, mas foi impedida de entrar e, portanto, de participar das atividades. Os homens haviam se esquecido de que ela era detentora do poder das águas dos rios, da força dos raios solares e da fertilidade feminina. Diante desta situação, Oxum tornou os rios inférteis e sem vida, as mulheres tornaramse estéreis e a força dos raios solares sobre a terra foram aumentados. Não demorou muito tempo para que o povo notasse a mudança que estava ocorrendo e, por isso, os homens consultaram Olodumaré. Ao saber que a orixá não participava das reuniões e das deliberações, o deus supremo exigiu que os homens a convidassem para fazer parte do grupo e os relembrou da importância dos poderes da senhora das águas dos rios para a humanidade. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 267 Vários foram os convites e tentativas dos homens para que Oxum voltasse atrás e participasse da grande reunião. A Yalodê, desta forma, derramou, novamente, as águas pelo mundo; a terra molhada reviveu; as mulheres voltaram a engravidar, e tudo refloresceu. A partir de então, cada vez que terminavam uma assembleia, homens e mulheres cantavam e dançavam com muita alegria, comemorando o reencontro e suas possíveis realizações. Nota-se, por meio da linguagem simbólico do mito, a importância não apenas da mulher na sociedade, mas também da união entre homens e mulheres, em que se valoriza a tomada de decisões por todos. Oxum comporta-se como Yalodê e faz jus ao título, porque é consciente do poder da natureza. Como será visto, Conceição Evaristo também reverencia a agência histórica de mulheres negras em sua escrita. Fonseca (2003), aos estudar os orixás femininos a partir da perspectiva de Pierre Verger, explica que Oxum representa uma mulher muito bela e sensual, cobre-se de ouro e exala desejo. Entretanto muitas podem ser as faces desta divindade: mãe, guerreira, feiticeira, dócil e vingativa, porém todas enfeixadas em um arquétipo feminino que se alterna entre ser esposa amorosa e que exalta beleza, riqueza e fecundidade. Os mitos de Oxum ressaltam a força e a intensidade da formosura e de determinação para atingir suas metas, seja no amor, na riqueza, na fama ou no prestígio. Basta lembrar que os segredos do oráculo de ifá – jogo de búzios – foram conquistados pela divindade após grande esforço, estudos e obediência ao deus supremo Olodumaré e ao mensageiro Bará-Exu. Assim como Oxum, Conceição também lança mão de meios para sair da invisibilidade e entrar no espaço que, até então, não lhe é/era conferido. O conto e o poema de Evaristo aqui analisados, associam-se à face de Grande Mãe protetora da divindade iorubá. OXUM: ÁGUAS DO CANTO-ORAÇÃO DE MÃE-SENHORA-RAINHA O conto “Olhos d’água” narra, nas entrelinhas, uma profunda indagação da narradora: de que cor eram os olhos de minha mãe? Uma noite, há anos, acordei bruscamente e uma estranha pergunta explodiu de minha boca. De que cor eram os olhos de minha mãe? Atordoada, custei reconhecer o quarto da nova casa em que eu estava morando e não conseguia me lembrar de como havia chegado até ali. E a insistente pergunta martelando, martelando. De que cor eram os olhos de minha mãe? (EVARISTO, 2016, p. 15). A partir dessa introspecção, o leitor é inserido na infância da narradora, primeira de sete filhas, e de suas irmãs, atrelada às ações de sua mãe no cotidiano simples de suas vidas. Por Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 268 meio das lembranças narradas, ocorre o deslocamento para a busca íntima e pessoal, na qual o texto relata os detalhes da pobreza das personagens. [...] Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desespero de alimento. As labaredas, sob água solitária que fervia da panela cheia de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de comida. E era justamente nesses dias de parco ou nenhum alimento que ela mais brincava com as filhas. [grifos nossos]. (EVARISTO, 2016, p. 16-17). Neste fragmento do conto, nota-se a estratégia da progenitora: disfarçar a ausência de alimento por meio do acréscimo do brincar em relação aos outros dias. A falta de comida também é marcada por meio do brutalismo poético (DUARTE, 2006): “cozinhar o desespero de alimento”; “panela cheia de fome”; “debochar do vazio do estômago” e “línguas brincavam a salivar sonho de comida”. A própria escritora destaca este procedimento de brutalidade poética muito grande em seus textos. Ao dizer que trabalha com a arte da palavra, Conceição Evaristo3 explica que pode relatar, por exemplo, a morte de uma criança e fazer isso de tal maneira tendo tanto cuidado com “arrumação das palavras” na frase para dar ritmo e, assim, contribuir para dar beleza ao texto. Num contexto em que mãe e filhas passam fome, percebe-se arranjo linguístico no conto que, de certa forma, não mascara a pobreza das personagens, mas ameniza a dureza da situação. O leitor, desta forma, é inserido na miséria destas mulheres por meio da poética da brutalidade. É possível perceber o “brutalismo poético” também na ocasião em que, brincando, a mãe [...] espichava o braço, que ia até o céu, colhia aquela nuvem, repartia em pedacinhos e enfiava rápido na boca de cada uma de nós. Tudo tinha de ser muito rápido, antes que a nuvem derretesse e com ela os nossos sonhos se esvaecessem também. (EVARISTO, 2016, p. 17). Como as aves que nutrem seus filhotes no ninho, a mãe, dribla a fome das filhas, colocando em suas bocas o algodão doce semelhante às nuvens tiradas do céu, mas que deveria ser degustado com rapidez a fim de que o doce não se derretesse juntamente com os sonhos. Cruz (2015, p. 5) observa nos contos de Evaristo “[...] a maneira como a escritora tece e costura cenas de profundo impacto, no que diz respeito à violência urbana, imprimindo a quase inexplicável leveza no trato do tema”. A narradora relata que, nessas ocasiões, brincavam ela, suas irmãs e a mãe, que se tornava a boneca, a Senhora, a Rainha, cujos cabelos crespos tornam-se coroa, e um pequeno banquinho de madeira transforma-se em trono. 3 Em entrevista para a Revista Bravo. Publicada em 6 de novembro de 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=J3eUi1ffrQI. Acesso em 10 de abril de 2019. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 269 Um dia, brincando de pentear boneca, alegria que a mãe nos dava quando, deixando por uns momentos os lava-lava, o passa-passa das roupagens alheias e se tornava uma grande boneca negra para as filhas, descobrimos uma bolinha escondida bem no couro cabeludo dela. (EVARISTO, 2016, p. 16). Elas, filhas-Princesas, batiam cabeça para a Rainha, aos moldes do cumprimento iká feito por adeptos do candomblé regidos por orixás femininos, em que se deita de bruços no chão, toca-se o solo com a cabeça. Trata-se, colocar a cabeça no chão, de sinal de respeito e obediência aos orixás, porque simboliza a cabeça (ori em iorubá) comandando a vida. O adepto do candomblé está, assim, respeitando o poder das divindades, reverenciadas pelo toque do organizador do corpo – ori – no chão. Desta forma, as meninas pobres, agora Princesas, reverenciam a mãe, poetizada em Rainha. Como dito, durante o relato lembranças, a personagem pergunta-se, insistentemente, “Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?”, olhos que se confundiam com a natureza: “Chovia, chorava, chovia! Por que eu não conseguia lembrar a cor dos olhos dela?” (EVARISTO, 2016, p. 18). Por fim, a narradora deixa tudo e, no dia seguinte, retorna à cidade em que nasceu para não mais se esquecer da cor dos olhos da mãe dela. Ao reencontrá-la, a filha contempla-lhe os olhos e pergunta ao leitor, “[...] sabem o que vi? Sabem o que vi?” (EVARISTO, 2016, p. 18); e responde que viu só lágrimas e lágrimas: [...] Mas eram tantas lágrimas, que eu perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudelosos sobre a face. [...] Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d´água. Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum [...]. [grifos nossos] (EVARISTO, 2016, p. 18-19). As lágrimas prantos da mãe-boneca-Rainha são associadas às águas poderosas de Oxum, tornando a mãe da protagonista Yalodê neste microcosmo narrativo. São, pois, metonimicamente, pelos olhos-rios-caudelosos que a protagonista reconhece a importância das mulheres em sua vida, mas não apenas dela, mas das tias e de todas as mulheres da família: “E também, já naquela época, eu entoava cantos de louvor a todas as nossas ancestrais, que desde a África vinham arando a terra da vida com suas próprias mãos, palavras e sangue.” (EVARISTO, 2016, p. 18). As mulheres negras desta família são Senhoras, são Yabás (termo que na África é apenas atribuído aos orixás Yemanjá e Oxum, mas que no Brasil se estendeu a todos as demais orixás femininos, muitas vezes ligadas às águas e à fecundidade), donas de tantas sabedorias. Neste retorno, por fim, a narradora protagonista abraça a mãe, encosta o rosto no dela e lhe pede proteção: “Senti que as lágrimas delas se misturam às minhas” (EVARISTO, 2016, p. 19). Mãe, filha e neta simbolizam a geração de mulheres negras que unidas tentam não somente Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 270 minimizar a invisibilidade, a voz que se quer calar, mas a possibilidade de mudar a situação em que se encontram: “Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos olhos de minha filha. [...] Eu escutei quando, sussurrando, minha filha falou: - Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos” (EVARISTO, 2016, p. 19). A ancestralidade a partir de Oxum é vista, também, no poema “Meu rosário” da obra Poemas da recordação e outros movimentos, na qual o próprio título é um elemento sinalizador da ancestralidade evaristiana. Assim como no conto “Olhos d’água” (De que cor eram os olhos de minha mãe?), há uma repetição que percorre os versos do poema, “Nas contas do meu rosário”, que, embora seja particular do gênero poema, aproxima-se da oralidade dos itans iorubás e da própria recitação das orações da religião católica, quais sejam, credo, Pai-Nosso, Ave-Maria e Glória ao Pai. A propagação das “palavras arrumadas” no texto, assim, revisita o passado do povo negro por meio das contas do rosário que adquirem outra condição, a saber, a condição do povo negro não apenas na diáspora, mas também na escravização. Tratam-se de contas negras e mágicas. Simbolicamente, o rosário católico, composto por pequenas contas dispostas de maneira sucessiva, representando cada uma delas uma oração, é o conjunto completo de todos os mistérios da vida de Jesus Cristo. O “rosário-afro-brasileiro” de Evaristo, por sua vez, traz outras histórias: o “canto de Mamãe Oxum”, “os longínquos batuques/do meu povo”, a “memória mal adormecida”, a “infância”, a contenção de meninas negras que desejavam coroar a Rainha e tinham de “ficar ao pé do altar lançando/flores”, os “calos de minhas mãos”, as “vidas-blasfemas”, os “intumescidos/sonhos de esperança”, os “rostos escondidos/por visíveis e invisíveis grades”, “o borbulhar da fome” (EVARISTO, 2017, p. 43-44). O conceito de negritice, dada a escrita de Evaristo, é o estabelecimento do apreço a valores tanto internos quanto externos à própria cultura (negra-africana) e, por isso, assume-se a identidade catalista, híbrida. O termo é a união da negrice e da negritude, fundindo-as. Assim, conjugam-se os aspectos positivos da negritude e as configurações negativas da negrice, pontua Martins (2003). Na negritice, ocorre a superação das polaridades em que o “pai ocidental” (negrice) e o “pai africano” (negritude) se veem encurralados; nela, isolamentos culturais, raciais e nacionais podem – e devem – ser superados e desafiados, pontua Martins (2010). Por meio da declamação, da recitação do poema-itan-oração afro-brasileiro (negritice), Evaristo faz emergir o sofrimento do povo negro, a história que se quer esconder e ocultar, mas que se eleva por meio da literatura, da “brutalidade poética” e, portanto, da escrevivência. A eu lírico faz-se Senhora, Oxum, Rainha, Maria, Mulher, cujos predicados aproximam-se do Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 271 conceito de Yalodê. É, pois, por meio destas yabás presentes nos versos de Conceição que o empoderamento se dá por trazer a história do negro e o processo de reconhecimento das lutas a partir da palavra literária: “E neste andar de contas-pedras,/ o meu rosário se transmuta em tinta,/ me guia o dedo,/ me insinua a poesia.” (EVARISTO, 2017, p. 44). Como pontua a escritora4, “A nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da casa-grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos”. Ora, os textos de Conceição Evaristo, conto e poema, partem do microcosmo, da vida particular das personagens e das sensações da eu lírico, para avançar para o macrocosmo, o geral, a situação de negras (e negros), a subalternidade, o enfrentamento diário deste grupo que, ainda, sofre com o racismo, com o preconceito e com a discriminação étnico-racial e de gênero. Ainda conforme a autora: Quando mulheres do povo como Carolina, como minha mãe, como eu também, nos dispomos a escrever, eu acho que a gente está rompendo com o lugar que normalmente nos é reservado. A mulher negra, ela pode cantar, ela pode dançar, ela pode cozinhar, ela pode se prostituir, mas escrever, não, escrever é alguma coisa... é um exercício que a elite julga que só ela tem esse direito. Escrever e ser reconhecido como um escritor ou como escritora, aí é um privilégio da elite5. Conceição Evaristo, desta forma, atreve-se, consciente de sua historicidade, a exercer este direito de escrever, mesmo a branquitude, julgando que as mulheres negras (e negros) não possam. Assim como as mulheres no mito iorubá, representadas pela Yalodê, a escritora reivindica este direito e quer este lugar; quer, sim, fazer parte deste grupo, os quais acreditam que este espaço não lhe cabe. Cabem nestas considerações os estudos de Dalcastagnè (2008) que, a partir de pesquisa quali-quantitativa, esclarece que a literatura brasileira contemporânea brasileira salienta, nas ausências, mais do que expressa – presenças – algumas das particularidades centrais da sociedade. Conforme a pesquisadora e crítica, são poucos os autores e as personagens negras e negros. Na próxima seção, será apontado o modo como a escritora em estudo dribla as barreiras sociais, históricas e editorais no que diz respeito ao grupo a que pertence. EU QUERO ESTE LUGAR, EU TENHO ESTE DIREITO: YALODÊ CONCEIÇÃO EVARISTO 4 Texto disponível em: http://www.itaucultural.org.br/ocupacao/conceicao-evaristo/escrevivencia/. Acesso em 12 de abril de 2019. 5 EVARISTO, Conceição. Depoimento. Entrevista concedida a Bárbara Araújo Machado. Rio de Janeiro, 30 de setembro de 2010. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 272 Conceição Evaristo possui significativa produção, dentre as quais antologias nos Cadernos Negros, além de obras traduzidas para o inglês e francês. A escritora, nesta trajetória, destaca o perceber-se mulher-negra-pobre: Foi em uma ambiência escolar marcada por práticas pedagógicas excelentes para uns, e nefastas para outros, que descobri com mais intensidade a nossa condição de negros e pobres. Geograficamente, no curso primário experimentei um ‘apartheid’ escolar. O prédio era uma construção de dois andares. No andar superior, ficavam as classes dos mais adiantados, dos que recebiam medalhas, dos que não repetiam a série, dos que cantavam e dançavam nas festas e das meninas que coroavam Nossa Senhora. O ensino religioso era obrigatório e ali como na igreja os anjos eram loiros, sempre. Passei o curso primário, quase todo, desejando ser aluna de umas das salas do andar superior. Minhas irmãs, irmãos, todos os alunos pobres e eu sempre ficávamos alocados nas classes do porão do prédio. Porões da escola, porões dos navios. [grifos nossos] (EVARISTO, 2009, p. 1-2). Neste relato evaristiano, nota-se a escrita denúncia, “meninas que coroavam Nossa Senhora”, que aparece nos versos “Meu rosário” de Poemas de recordação e outros movimentos, “As coroações da Senhora, em que as meninas negras,/ apesar do desejo de coroar a Rainha,/ tinham de se contentar em ficar ao pé do altar lançando /flores.”. Assim como o verso isolado “flores”, a então estudante sente-se isolada não apenas no que diz respeito ao espaço escolar, mas também no poder coroar Nossa Senhora. Evaristo, assim, em sua escrevivência, transforma a partir da negritice, Oxum em Sua Senhora, na Senhora dos Negros e, por isso, comporta-se como Yalodê de seu povo brasileiro e afro-brasileiro. Machado (2014), em seus estudos, destaca o saber-se negra ao invés de parda de Conceição de seu “documento oficial”: Afirmar-se negra ante a denominação parda, presente em um documento oficial, configura um ato contestatório realizado já na tenra infância. Mais do que saber desde pequena que era negra, Conceição diz perceber-se como negra desde sempre, atemporalmente [grifos nossos] (MACHADO, 2014, p. 246). A partir de Machado (2014), nota-se a consciência de Evaristo sobre o seu estado e sobre o seu ser negra. Assim como Oxum, a pedido das mulheres no mito iorubá, a escritora sabe quem é e o que pode fazer pelas suas (e seus), mesmo trabalhando como doméstica desde os oito anos, alternando essa atividade com a de levar crianças vizinhas para a escola e auxiliá-las nos deveres de casa, o que “rendia também uns trocadinhos” (Evaristo, 2009, p. 1). Conceição também participava com a mãe e a tia “da lavagem, do apanhar e do entregar trouxas de roupas nas casas das patroas” (Evaristo, 2009, p. 1). Na década de 1980, destaca-se uma primeira fase da militância de Evaristo, pois a autora estava presente fisicamente em saraus, leituras de poesia e debates em espaços populares, em diálogo direto com seu público-alvo: a população negra, observa Machado (2014). Já, num Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 273 segundo momento, a década de 1990, que coincide com o fim do grupo Negrícia, com a publicação de seu primeiro texto nos Cadernos Negros e com seu ingresso no mestrado na PUC do Rio de Janeiro, a escritora passa a ter uma atuação mais significativa dentro da academia. Em entrevista em março de 2015 concedida a Nicolas Quirion6, Evaristo, ao ser questionada sobre a possibilidade do pobre negro conseguir vencer desde que trabalhe duro, responde que se trata de uma falsa e também perigosa. Para a escritora, “As pessoas que conheço trabalham muito duro, perdem horas no trem, tentam estudar a noite… E não chegam a melhorar muito de condição. Eu acho que nós que conseguimos, somos exceções.” Conceição aponta ainda que “O sistema abre brechas, ele precisa de exemplos, de casos excepcionais para camuflar o resto. Nós que estamos conseguindo estatuto social, não podemos esquecer o coletivo.” Segundo Evaristo, são se deve dizer, “olha, eu consegui, por que você não faz o que eu fiz? Por que fica no subsolo?”, uma vez que se trata de um discurso perigoso. O que a escritora deseja não é uma visibilidade “para Conceição Evaristo”, quer uma visibilidade “para as mulheres negras”, e isso é muito mais difícil de conseguir, finaliza. Além disso, a escritora em seus entrevistas sempre destaca a sua anterior Carolina Maria de Jesus, numa postura de valorização de suas ancestrais escritoras. Ao ler pela primeira vez a obra Quarto do despejo nos anos 60, Evaristo diz que é preciso olhar pessoas negras como sujeitos. Quando Carolina lança seu segundo diário, Casa de Alvenaria, não é bem recebida pela elite literária, tendo em vista que faz uma crítica ao sucesso passageiro e outros pontos que cercam esses grupos. “Por que todo mundo lê Clarice Lispector e percebe que ela está falando da solidão humana, das crises existenciais que Clarice tinha como pessoa? Por que não ler Carolina percebendo isso? Evaristo assinala que: Fica difícil essa percepção, que é uma mulher trazendo seu drama existencial? Pra mim é mais ou menos isso, é retirar do sujeito negro a nossa condição humana. É como se nós sofrêssemos apenas pela água que falta na bica, só pelo arroz que falta na panela. As mulheres pobres têm todas essas carências materiais, e temos nossas outras carências. A escritora não cria um embate entre as duas, mas sim pontua Carolina produzindo literatura com o uso diferenciado da escrita. [grifos nossos] (EVARISTO, 2017)7. Ao trazer outras mulheres, outras negras, outras condições de classe social, Evaristo lhes dá voz e permite que se pense na possibilidade de ocupação de espaços outrora negados, bem 6 Entrevista disponível em https://carnetsbresil.wordpress.com/2017/07/25/conceicao-evaristo-quero-umavisibilidade-para-as-mulheres-negras/. Acesso em abril de 2019. 7 Entrevista disponível no site: https://catracalivre.com.br/cidadania/conceicao-elisa-e-vera-linha-de-frentepor-carolina-m-de-jesus/. Acesso em abril de 2019. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 274 como de fazeres não permitidos. Por isso, ao lançar a candidatura para a cadeira de número 7 da Academia Brasileira de Letras, antes ocupada por Nelson Pereira dos Santos, Conceição Evaristo não encarou a perda como uma simples derrota ao receber, apenas 1 voto. Para a escritora, o primeiro efeito da candidatura foi o de divulgar a própria existência da ABL, já que pouca gente tinha escutado falar dela. A candidatura movimentou o Movimento Negro e a internet que resultou em duas petições on-line, cada uma com mais de 20 mil assinaturas. Além disso, Conceição optou por “outro tipo de campanha”, não oferecendo festas e jantares aos membros. Na concepção da escritora8, “Os negros não estão presentes nos espações representativos desta nação”. Conforme o Grupo de Estudos Subalternos, a partir de Spivak (1988, p. 3) 9, a proposta é: [...] revisar a definição geral e a teorização, ao propor pelo menos duas coisas: em primeiro lugar, que o momento de mudança deve ser multiplicado e organizado como confrontos, ao invés de transição [...] e, em segundo lugar, as mudanças devem ser marcadas por uma mudança funcional no sistema. A mais importante é deixar de ser religiosa para ser militante. Neste sentido, Evaristo encara as mudanças como militância, no caso literária, contra poderes hegemônicos, ressaltando a existência do subalterno merecedor do devido destaque pelo papel histórico-cultural realizado. A escritora desestabiliza por meio da escrevivência a historiografia tradicional dominada pela classe social de elite, em que o subalterno é descrito pela perspectiva que privilegia os anseios e as demandas da sociedade hegemônica. Ora, a eu lírico de “Meu rosário”, por exemplo mostra, ao leitor, “o encontro da memória mal adormecida”, “o desejo de coroar a Rainha”, com as contas do rosário, é possível cantar, gritar e calar (EVARISTO, 2017, p. 43-44). O Grupo de Estudos Subalternos Latino inserem, no contexto latino-americano, conceitos como “decolonialidade” (GROSSFOGUEL, 2008), “colonialidade do poder” (QUIJANO, 2005), “giro decolonial” (MIGNOLO, 2007). Segundo os autores, a colonialidade não apresenta resquícios das estruturas coloniais nos países latinos e, portanto, não está extinta com o fim da colonização. Para Fanon (2008, p. 33), em “O negro e a linguagem”, é fundamental o estudo da linguagem, pois falar é existir absolutamente para o outro, em que o falar é entendido como 8 Entrevista concedida a Juremir Machado no Correio do Povo, 26.08/18. Disponível em: https://www.geledes.org.br/conceicao-evaristo-os-negros-nao-estao-presentes-nos-espacos-representativosdesta-nacao/. Acesso em abril de 2019. 9 Tradução feita por SOUZA, Davi Silistino de.; NIGRO, Cláudia Maria Ceneviva. In: A subalternidade em Cloud Atlas, de David Mitchell. Dissertação de Mestrado. UNESP-SJRP, 2018. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 275 “estar em condições de empregar certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização”. Ao imbricar a cultura afrobrasileira àquela já consagrada pela hegemonia, Conceição Evaristo emprega uma morfossintaxe literária em que negras (e negros) são autores da própria história e, desta forma, contribui para minimizar e extinguir os resquícios coloniais e discursos racistas. A escritora quebra com o hegemônico ao trazer a ancestralidade iorubá em sua escrevivência, uma vez que, de acordo com Fanon (2008, p. 34): Todo povo colonizado – isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural – tomo posição diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana. Tal empoderamento linguístico-literário é visto não somente com a inserção de termos que remetem aos mitos e ritos africanos e afro-brasileiros, mas também com a própria postura de Evaristo ao falar, ao dar voz sobre o grupo a que pertence. Ao comportar-se desta forma, a escritora afirma-se como Yalodê de mulheres negras (e homens negros) e não negros, pois, como assinala Grosfoguel (2008, p. 117), a decolonialidade não se manifesta como “[...] uma crítica anti-europeia fundamentalista e essencialista. Trata-se de uma perspectiva crítica em relação ao nacionalismo, ao colonialismo e aos fundamentalismos, quer eurocêntricos, quer do Terceiro Mundo”. CONSIDERAÇÕES FINAIS Conceição Evaristo não cai em extremismos e, tampouco, não atesta a exclusão dos europeus, mas vai ao encontro de uma proposta crítica de inclusão de mais autores não europeus e, principalmente, não apenas masculinos, de linhas de pensamentos amplos na rede epistemológica, contemplando não apenas o cânone. Este é, pois, o modo como o conceito de Yalodê configura-se em sua trajetória e em seus textos. Fazer a leitura da escritora afro-brasileira requer o pensamento descolonizado que possa voltar-se para o grupo ao qual pertence desprovido de preconceito, valorizando a ancestralidade do povo negro. Este olhar contribui para a extinção de práticas e de discursos racistas dentro e fora da Universidade, seja pública ou privada, dos muros escolares e, também, propõe a revisitação de questões atreladas ao currículo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 276 CRUZ, A. de S. Revelações de Olhos d’água. Literafro. UFMG, 2015. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/ficcao/70-conceicao-evaristo-revelacoes-deolhos-d-agua. Acesso em 18 de abril de 2019. DALCASTAGNÈ, R. Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea. Estudos de literatura brasileira contemporânea. UNB, n. 31, 2008. DUARTE, E. de A. O negro na literatura brasileira. Navegações Ensaios v. 6, n. 2, p. 146153, jul./dez. 2013. EVARISTO, C. Conceição Evaristo por Conceição Evaristo. In: Colóquio de escritoras mineiras (Cópia cedida pela autora), Belo Horizonte, 2009. _____. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2016. _____. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2017. FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. 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Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 277 EU, MULHER NEGRA, RESISTO: ESTRUTURALIDADE DO RACISMO EM PORTUGAL E NO BRASIL Danielle Campos de Moraes1 RESUMO A partir da análise qualitativa do discurso de cinco entrevistadas, observamos a estruturalidade do racismo nas relações pós-coloniais Brasil x Portugal. Através da escolha epistemológica por utilizar apenas autores negros na bibliografia, sob a ótica da autoreferência, que possui profunda importância na epistemologia do racismo e no processo de silenciamento diário que se coloca em todas as esferas. Mulheres negras falando por si e ampliando as vozes umas das outras, onde a invisibilização destas mulheres cria o vácuo do silenciamento sobre tais opressões. PALAVRAS-CHAVE: mulheres negras; racismo; racismo estrutural; resistência. ABSTRACT From the qualitative analysis of the discourse of five interviewees, we observed the structuralism of racism in postcolonial relations Brazil x Portugal. Through the epistemological choice to use only black authors in the bibliography, under the optics of self-referencing, which has deep importance in the epistemology of racism and in the process of daily silencing that occurs in all spheres. Black women speak for themselves and amplify each other's voices, where the invisibility of these women creates the void of silencing over such oppressions. KEY-WORDS: black women; racism; structural racism; resistance. “Esse racismo sutil, implícito e difuso é o mais comum. Afinal, pode ser uma simples confusão de quem o sentiu! Ou um protocolo de segurança, mero procedimento. Mas ele acontece todos os dias. Fere. Machuca. E reafirma, com crueldade, que nem todo lugar é lugar de preto. Principalmente se a aparência não for “aceitável”. Com meu cabelo crespo e as roupas de que gosto, todos os dias sou lembrada de que bairro central, casa grande, cafés e restaurantes de classe média e ser professora universitária não são pra mim”. Bianca Santana INTRODUÇÃO Escrever este artigo foi, antes de qualquer coisa, um processo de reconhecimento, de afetividade, de catarse. Reviver as amarras do racismo diário através das palavras de outrem, bem como da escrita, foi doloroso e ao mesmo tempo acolhedor. Pensar racismo na atualidade é tarefa árdua, dadas as suas diversas expressões e suas consequências na vida de seres humanos. No entanto, autores negros que contribuíram para o acúmulo teórico acerca das questões étnico-raciais abriram caminho para que hoje nossas 1 Bacharel em Serviço Social (UNIRIO), mestranda em Migrações, Inter-etnicidade e transnacionalismo na Universidade Nova de Lisboa. E-mail: danielle_cmoraes@hotmail.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 278 teorias fossem racializadas a partir de vivências enegrecidas. Leituras que vão além do olhar do Outro2, onde falamos por nós e para nós, primordialmente, criaram a representatividade necessária para que pudéssemos nos sentir compelidos a produzir conhecimento sobre as nossas realidades. A escolha epistemológica de utilizar apenas autores negros neste artigo, parte do próprio racismo estrutural3 e estruturante que, por muitas vezes, nega o local de visibilidade ao autor negro e mantém os privilégios concentrados em quem sempre deteve o poder. É o pensamento decolonizado que apresenta a possibilidade da humanização da população negra, como aponta Mbembe: Nessas circunstâncias tal como acontecia antes, sob a escravatura - o conceito do humano e a noção de humanidade, que uma parte do pensamento racial torna por adquiridos, não eram evidentes. Com efeito, face ao escravo negro ou ao colonizado, a Europa interrogava-se incessantemente: «Será outro homem? Será outro que não o homem? Será outro exemplar do homem? Ou será antes outro além do mesmo?» No pensamento da descolonização, a humanidade não existe a priori. Deve fazer-se surgir pelo processo através do qual o colonizado desperta para a consciência de si, apropriando-se subjetivamente do seu eu, desmonta a sua cerca e permite-se falar na primeira pessoa (2014, p. 59). Para construirmos teoricamente as expressões do racismo português, faz-se necessário voltar às memórias históricas do colonialismo, da escravidão e da opressão que se abateu – não por acaso ou sem resistência – aos corpos negros. E, não obstante, por se tratar de uma engenharia racial construída com maestria para desumanizar, se mantém até os dias atuais travestindo-se de questão social. A necessidade premente de falarmos de mulheres negras se dá por estas se encontrarem, historicamente, na base da pirâmide social, alimentando o capitalismo com sua força de trabalho e sofrendo com a opressão racial e de gênero. Ao mesmo tempo, a invisibilização destas mulheres cria o vácuo do silenciamento sobre tais opressões, perpetuando o ciclo devastador da animalização e objetificação dos corpos negros, em especial, femininos (COLLINS, 2002). Sendo a autoreferência um ponto importante deste artigo, usaremos exclusivamente autores negros, em sua maioria mulheres, que muito contribuíram e continuam produzindo para “ (...) uma identidade relacional construída por brancos(as), definindo eles(as) mesmos(as) como racialmente diferentes dos ‘Outros’. Isto é, a Negritude serve como forma primária de alteridade, pela qual a branquitude é construída. O ‘Outro’ não é outro per se; ele/ela torna-se tal através de um processo de absoluta negação. “- KILOMBA, Grada. “The Mask” In: Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism. Münster: Unrast Verlag, 2. Edição, 2010. 3 “Por sermos vistos como diferentes e por esta diferença ser considerada problemática, ficamos de fora das estruturas de poder. Esse é o racismo estrutural, institucional, acadêmico, do dia a dia, etc. (...) Quando um sistema está acostumado a definir tudo, bloquear os espaços e as narrativas, e nós, a partir de um processo de descolonização, começamos a adentrar esses espaços, começamos a narrar e trazer conhecimentos que nunca estiveram presentes nesses lugares, claro que isso é vivenciado como algo ameaçador.” (Ribeiro, 2018, p. 112) 2 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 279 o entendimento da estrutura racial: Angela Davis, Djamila Ribeiro, Franz Fanon, Kesha Fikes, Lélia Gonzalez, Grada Kilomba, Achille Mbembe e Patrícia Hill Collins. E, para exemplificar as expressões do racismo em Portugal, foram realizadas cinco entrevistas semiestruturadas que demonstram os caminhos do racismo no cotidiano dessas mulheres. As entrevistas foram necessárias para a comparação Brasil x Portugal, uma vez que o país não permite a coleta de dados étnico-raciais por parte da população. É proibido por lei e, apesar das intensas discussões que vem ocorrendo nos últimos anos sobre a inclusão ou não da pergunta no Censo, muitos ainda se colocam contrários. Essa é uma crítica pertinente ao passo que o discurso do cosmopolitismo e de igualdade é frequente. A prática é bastante diferente. Como podemos pensar políticas públicas ignorando as especificidades de determinada parte da população? A metodologia utilizada foi a qualitativa, as entrevistas transcritas para assegurar a cientificidade do processo e análise posterior dos discursos. A narrativa tem um peso significativo nesse contexto, uma vez que as entrevistadas relatam não ser ouvidas e enxergadas no contexto de migração ao país. As entrevistadas possuem entre 22 e 30 anos, encontram-se em Portugal entre sete meses e aproximadamente 4 anos. Três das arguidas são angolanas e duas brasileiras e todas relataram vivenciar o racismo em seu cotidiano. Neste ponto, a nacionalidade não se coloca como ponto determinante, uma vez que o recorte racial aproxima as realidades vividas por essas mulheres. A relação entre Brasil e Portugal parte da estruturalidade do racismo e do processo histórico de colonização. Não seria de se estranhar que as situações fossem correlatas, uma vez que a racialização da sociedade se coloca de forma material, histórica e mundial. NÓS, RACISTAS? – O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL NÃO APENAS NO BRASIL “Racismo é uma realidade violenta” aponta Grada Kilomba em seu livro Plantation Memories. E como não seria em se tratando da opressão e subjugação de um povo por séculos? A realidade das mulheres negras em Portugal está muito distante do idealizado pelo discurso cosmopolita. A idealização do deslocamento, da migração, na prática, se mostra dilaceradora e desumanizante. De início, cabe reforçar que Portugal não possui dados sobre sua população negra através de questionamento censitário, o que torna ainda mais difícil a construção de estudos Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 280 relativos à essa população, bem como a construção de políticas públicas que atendam às suas especificidades. Voltaremos a esse ponto mais à frente. Fikes4 já apontava, em 1998 as disparidades no tratamento a mulheres negras em Portugal. A racialização imputou às mulheres negras o lugar da subalternidade no campo do trabalho, ora sendo forçadas a realizar trabalhos domésticos, independente de suas qualificações, ora sendo caracterizadas e reduzidas ao papel das “mulatas”, hipersexualizadas e objetificadas. Além disso, uma vez que uma das poucas "legítimas" opções de emprego abertas a imigrantes negras em Portugal é limpeza - serviço de limpeza em casas particulares ou estabelecimentos públicos - independentemente de sua educação, formação profissional, estatuto de residência legalizado ou nacional português cidadania. (1998, p. 6). A racialização do trabalho tem um papel fundamental na manutenção da subalternidade de determinada população. Uma vez que determinados postos de trabalho possuem menor valor social, ao alocar mulheres negras na posição de limpeza, assegura-se o caráter da servidão, a subalternidade já reforçada racialmente. E tal servidão traz consigo o valor atribuído à mulher negra nos tempos coloniais que remetem, segundo Gonzales5 ao valor das mulheres negras em seu papel de existência “mulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta” e se mantém até os dias atuais. Fikes relata ter sofrido esta discriminação baseada em sua raça/etnia quando de sua viagem a Portugal para a tese de doutorado e, apesar de sua alta qualificação, ter sido automaticamente colocada no lugar de servidão. Como uma mulher de classe média de ascendência africana que residia em Cascais, uma comunidade de elite fora de Lisboa, entre 1989 e 1990, pude confirmar ser repetidamente apontada como a faxineira do corredor ao entrar no meu apartamento, ou gentilmente questionada se eu tinha hora extra para babá de emergência quando terminasse de limpar a casa de Dona Claudia. Claudia era uma das minhas colegas de quarto; ela é branca (1998, p. 7). Esta realidade foi abordada por quatro das cinco mulheres entrevistadas – sendo quatro em Lisboa e uma em Coimbra, corroborando com a ideia invisibilidade, do não-lugar social, decorrente de ocupar o lugar mais subalterno socialmente. “Eu tive um desentendimento com meu chefe porque ele não quis me pagar por um trabalho que eu fiz, pegou e começou a me dizer umas coisas que eu não gostei nada. Eu não fiz nada, eu simplesmente conversei com ele sobre o quanto é que ele me devia, ele não quis me pagar e dali, e aí ele pegou e começou a me dizer “vocês africanos são uns incompetentes, simplesmente vieste aqui pra ganhar nacionalidade, 4 FIKES, Kesha. Domesticity in black and white: assessing badiacape verdean challenges to portuguese ideals of black womanhood.” Tradução livre da autora. 5 GONZÁLES, Lélia. Racismo e Sexismo na cultura brasileira In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 281 o teu namorado também é um infantil porque ele sabe disso e não sei o que, “tás” aqui só como um peso pra tua família, pra tua irmã mais velha, não fazes nada da tua vida, “tás” aqui e assim, mas tá quase pra universidade só a estudar com a barriga grande e não sei o que, isso também. (...) que eu posso “tá” a estudar e não sei o que, mas nunca vou ser nada da minha vida (pausa, emotividade, choro e sofrimento represado) e que se calhar devia tirar até o bebê porque eu não ia fazer nada por ela (pausa, choro constante). Disse que também eu não tenho capacidade pra fazer nada da minha vida, não tenho competência pra ter um futuro, nem nada disso porque eu vim de África e que os africanos são uns incompetentes, não sabem fazer nada.” (B., 22 anos, informação verbal) “As oportunidades de trabalho para nós aqui são ou empregada doméstica ou mais nada. Empregada doméstica ou isso empregada de andar. Ou só vais trabalhar com limpeza, ou vais trabalhar como (...) eu já fui em várias entrevistas para ir como recepcionista, [eles dizem] não, só tenho vaga de limpeza. Eu tenho 30 anos, tenho experiência como técnica de recursos humanos, tenho experiência em contabilidade, curso técnico de contabilidade e não consigo arrumar emprego assim aqui. Estou há um ano a trabalhar com as limpezas. É complicado. (...) Eu espero terminar minhas formações de estética se conseguir valores pra isso nos empregos de limpeza e voltar pro meu país porque viver aqui não dá. Não pra mim. Não me vejo tendo uma carreira de sucesso financeiro e uma basta vida. ” (A., 30 anos, informação verbal) “Eu digo isso porque uma mulher negra tem extrema dificuldade em encontrar um, um trabalho digníssimo, digníssimo de em estar num país desenvolvido como Portugal você dizer dando exemplos e não tem o direito ou privilégio de trabalhar um banco digo isso porque? Porque nós em Portugal, nós vamos para Centros Comerciais, vamos para bancos e outra o que nós vemos primeiro em centros comerciais? Nós vemos negras a limpar o chão, nós vemos negras a trabalharem como balconista, balconistas em restaurantes, servir mesas. Nós vamos para um banco, para uma empresa de verdade mesmo, que tenha nome, e nós não vemos uma negra, um negro nesse sector de emprego” (C., 22 anos, informação verbal) Se por um lado mulheres negras buscam em Portugal a possibilidade de ascensão social, melhores condições de reprodução material e acesso a direitos que, muitas vezes não possuem em seus países, pela própria lógica racista que estrutura a riqueza e desenvolvimento dos Estados, por outro, a noção de realização desse sonho se desfaz quando confrontadas com a realidade. Desde a dificuldade em garantir cidadania legalizada, até a impossibilidade de acessar serviços de saúde privados, mesmo com dinheiro em mãos para efetuar o pagamento de consultas. Uma das entrevistas, B., 22 anos, negra de origem angolana, relata que em sua primeira consulta de pré-natal em um hospital particular da rede de Lisboa, sentiu o racismo na pele em seu momento mais frágil: “Quando eu entrei na sala da doutora para ser atendida e tudo mais, assim que eu entrei eu notei logo um olhar dela de desdém. Não sei o que, ela mandou para mim eu fui a consulta ela simplesmente me disse (suspiro) “eu não posso atender aqui porque acho que não tem condições de pessoas da tua raça, (vocês) não fazem consultas em hospitais privados, fazem em centros médicos, (...) (choro) por isso eu vou te mandar para casa e só vou te “transcrever” uma vitamina para você tomar e é só e mesmo assim tive que pagar a consulta toda. “Foram”, acho que foram 85 euros e não fez nenhum tipo de exame porque ela não quis me atender. (B., Lisboa, informação verbal). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 282 O relato, por mais doloroso que seja, mostra a verdade nua e crua: mulheres negras, mesmo quando possuem condições de acessar serviços, são discriminadas. E ainda, em se tratando de um serviço de saúde de uma mulher grávida, a profissional não honrou o juramento de Hipócrates6 professado em sua formação. O princípio da inviolabilidade do direito do assistido independente de “religião, nacionalidade, raça, partido político ou posição social” foi violado de forma solene: aqui não é lugar para você. No Brasil a realidade não é tão diferente. Segundo dados do Ministério da Saúde (2014), mulheres negras são atendidas em menor tempo e ocupam 60% da porcentagem de mortalidade materna no país. No caso de Portugal, de toda sorte de conflitos e ausências sofrem estas mulheres que encontram na “domesticidade” a possibilidade de sobrevivência. Ou seja, o retorno da figura da servidão colonial da mulher negra, para além de contar com a ajuda de familiares. Segundo dados do Observatório das Migrações, países africanos enviaram, em 2013, mais de 100 milhões de euros para Portugal, como mostra o mapa abaixo. Mapa 1 Origem das remessas recebidas em Portugal, 2013 Fonte Mapa elaborado pelo Observatório da Emigração, valores do Banco de Portugal. O envio financeiro é uma das formas de garantir a sobrevivência, mas demonstram que não é por falta de poder aquisitivo diretamente que estas mulheres se encontram à margem da sociedade. Existe algo de mais profundo que se encontra fundido no imaginário social português. 6 Juramento efetuado pela classe médica de compromisso com a vida e não discriminação. HIPOCRATIS OPERA VERA ET ADSCRIPTA, Tomus Quartus, pág: 197-198-199, Lausanne MDCCLXXI. FÓRMULA DE GENEBRA Adoptado pela Associação Médica Mundial, em 1983. http://ordemdosmedicos.pt/wpcontent/uploads/2017/08/Juramento_de_Hip%C3%B3crates.pdf Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 283 Segundo Isabel Ferin da Cunha, professora no Instituto de Estudos Jornalísticos da Universidade de Coimbra, em entrevista ao jornal Observador, um processo de mudança intrínseca na identidade do povo português [uma reconstrução] impõe os desafios vividos pelas imigrantes negras e o acesso a direitos. “Essa construção veio fazer uma separação entre quem somos nós e quem são os outros, não só aqueles que entraram como imigrantes, como aqueles que já cá estavam. A barreira da cor foi só um dos primeiros elementos que surgiram”. Não seria de se estranhar que a barreira de cor fosse uma das primeiras instituídas socialmente. Portugal foi, historicamente, um dos países mais ativos no tráfico de negros escravizados e mais de 12,5 milhões7 de negros escravizados embarcaram em navios forçosamente para as colônias. As raízes da construção étnico-racial hierarquizada são profundas e se mantém vivas até a atualidade. Retomando o assunto já comentado anteriormente, um ponto chave na construção do pensamento e investigação acerca da realidade dos negros em Portugal é a dificuldade da consulta de dados. Este foi o fator principal na necessidade de condução das entrevistas para exemplificar as expressões do racismo, uma vez que artigo 35º da Constituição Portuguesa de 2 de abril de 1976 e a Lei de Proteção dos Dados Pessoais (Lei 103/2015) proíbem o questionamento à população sobre seu caráter étnico-racial. Tal impedimento gera um desconhecimento sobre as raízes e identidades da população que ocupa o território e, por conseguinte, escassas políticas públicas para esses grupos, bem como mecanismos de proteção de populações vulneráveis. Mas como podemos combater aquilo que não conhecemos? O Relatório Anual sobre a situação da Igualdade e Não Discriminação Racial e Étnica aponta um aumento de 50% comparado ao ano anterior em relação a denúncias de discriminação étnico-racial. No total foram recebidas 71,5% das queixas dizem respeito a situações dirigidas a pessoas singulares, não existindo diferenças significativas em razão do sexo (...) verifica-se que a origem racial e étnica foi a característica protegida mais comum (38%), seguindo-se a nacionalidade (22,3%) e a cor da pele (21,8%), de onde resulta que a expressão que mais se destacou enquanto fundamento na origem da discriminação foi a pertença à “etnia cigana” (32,4%), seguida da “cor da pele negra” (19,6%) e da “nacionalidade brasileira” (10,1%) (2017, p. 4). Dois pontos chamam a atenção nos dados do formulário que precisam ser articulados. O primeiro trata da não diferenciação “significativa em razão do sexo”. Entendendo a articulação necessária entre raça, classe e gênero, e, visto que o racismo se expressa com especificidades de acordo com estes três indicativos, faz-se necessário questionar quais os critérios que estão sendo utilizados para 1- delimitar quando a “ofensa” se enquadra na 7 Banco de Dados Voyages. < slavevoyages.org> Acedido em: 02/01/2019. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 284 tipificação da Lei e 2- quais os critérios estão sendo utilizados para a categorização ou não do crime de preconceito/racismo8 em suas expressões. Este último, sendo analisadas todas as expressões do racismo em sua totalidade, desde o racismo sutil, velado, a hipersexualização da mulher negra. Sobre este assunto, Davis9 brilhantemente traz a percepção As mulheres da classe trabalhadora, em particular as de minorias étnicas, enfrentam a opressão sexista de um modo que reflete a realidade e a complexidade das interconexões propositais entre opressão econômica, racial e sexual. Enquanto a experiência da mulher branca de classe média com o sexismo incorpora uma forma relativamente isolada dessa opressão, a experiência de mulheres da classe trabalhadora obrigatoriamente situa o sexismo no contexto da exploração de classe – e as experiências das mulheres negras, por sua vez, contextualizam a opressão de gênero nas conjunturas do racismo (2017, p. 37). O segundo, trata da diferenciação entre “característica racial e étnica” e “cor da pele negra”, uma vez que ambas se misturam e confundem quando tratamos de populações negras. Não seria a pele negra uma característica racial e étnica? Sobre as intercorrências entre etnia e gênero, a hipersexualização da mulher negra tem caráter fundamental na percepção das expressões do racismo. Este fenômeno tem relação profunda com o passado escravista, uma vez que o corpo negro era tratado como propriedade a fim de satisfazer todo e qualquer desejo do senhor de escravos, inclusive sexuais. Davis em Mulheres, Raça e Classe (2017) aponta este fator através do trecho abaixo A coerção sexual, em vez disso, era uma dimensão essencial das relações sociais entre o senhor e escrava. Em outras palavras, o direito alegado pelos proprietários e seus agentes sobre o corpo das escravas era uma expressão direta de seu suposto direito de propriedade sobre as pessoas negras como um todo. A licença para estuprar emanava da cruel dominação econômica e era por ela facilitada, como marca grotesca da escravidão (2017, p. 180). E continua O abuso sexual de mulheres negras, é óbvio, nem sempre se manifesta na forma de uma violência tão aberta e pública. Há o drama diário do racismo representado pelos incontáveis e anônimos enfrentamentos entre as mulheres negras e seus abusadores brancos – homens convencidos de que seus atos são naturais. Essas agressões têm sido ideologicamente sancionadas por políticos, intelectuais e jornalistas, bem como por literatos que com frequência retratam as mulheres negras como promíscuas e imorais (2017, p. 181). A hipersexualização da mulher negra não se dissolve com os laços escravistas, mas se mantém até os dias atuais, na retratação de mulheres negras como mais quentes, fogosas e sob a justificativa que as mulheres negras imigrantes viriam a Portugal para se prostituir, no 8 Cabe ressaltar que no caso europeu, ciganos ocupam as populações marginalizadas socialmente e a lei os enquadra na medida judicial. Apesar do entendimento da autora que não se trata de algo estrutural a nível mundial e que pode variar por se tratar de identidade étnica e não racial, os casos de preconceito presenciados são evidentes. Por este motivo foram utilizadas as categorias preconceito/racismo. 9 Davis, Angela. Mulheres, cultura e política. 2017. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 285 tratamento a mulheres negras exclusivamente pelo viés sexual, como aponta o relato da informante abaixo. Nunca consegui manter uma relação com um português. Já de princípio já pensam que você é só sexo, já oferecem isso para você, só sexo. (...) Da ultima vez que eu tentei deixar alguém, português, vir falar comigo, tentar uma relação comigo, ele foi muito simpático de princípio. Trocamos os números e tudo mais. Quando começamos a falar ele deixou claro que só queria provar uma africana, que nunca tinha provado uma africana. (...) Ainda que fosse só virar sexo também não sou nada contra o relacionamento estritamente sexual. Tenho. Mas começar a conversa com como se tivesse interessada na pessoa, para depois deixar claro que só quer sexo... Outro (risos) e esse foi um dos casos mais absurdos que já me aconteceu aqui com os homens. Conversava comigo normalmente, queria me conhecer já faz tempo e eu sempre a enrolar conversa porque também não estava, assim, muito interessada. E depois quando eu fiz anos, (...) ele me disse “já sei teu presente especial para ti” e eu “Qual?” Entusiasmada, né. Lá um amigo e tudo mais, me mandou uma foto de uma lingerie de renda e supostamente eu devia usar para comemorar o aniversário com ele, quando eu não tenho nenhum relacionamento com ele. Tipo, é taxativo é negra é sexo garantido aqui. Acho que na cabeça deles está assim e não é. Nós mulheres não somos objetos sexuais, eu por ser negra não sou muito menos ainda uma escrava sexual de qualquer pessoa (A., 30 anos, informação verbal). No entanto, percebemos que o pano de fundo do discurso conservador racista generaliza e inclui todas as mulheres na migração sexual. Uma vez eu tive um debate, um pequeno debate, um pequeno assunto com uma portuguesa que porventura tem um filho negro, mas que ela ainda assim é racista para com outras pessoas fora do meio dela, e ela disse que as pessoas, os portugueses, tem um mau conceito de negras, de mulheres negras, pelo facto de que chegou uma altura em que as negras vinham se prostituir aqui (C., 22 anos, 2019, informação verbal). Mulheres negras brasileiras são alvo de hipersexualização. No entanto, isso não significa que mulheres não negras estejam salvas da sexualização ou ainda de estupros. Pelo contrário. A partir do momento em que se torna socialmente aceitável para um homem violar uma mulher negra, o sexismo encontra as bases para perpetuar esta forma de violência contra a mulher recorrentemente. Ainda, numa perspectiva etnia, classe, gênero, estes três por vezes se complementarão, seja na forma da violência de gênero ou na forma de expressão do racismo, propriamente dito. A principal diferença da sexualização da mulher branca e a hipersexualização da mulher negra está no fato da mulher branca ser remetida à maternidade, ao recato, em ter sua virtude num invólucro de proteção europeia-cristã (COLLINS, 1989) enquanto a mulher negra não recebe o estigma do caráter apenas sexual, mas do sexual-servil, do sexual em estado puro de servidão para o prazer alheio. A mulher negra em sociedade serve apenas para duas coisas: servir com sua força de trabalho e servir ofertando prazer sexual. Esta será recorrentemente hipersexualizada ou de-sexualizada, na figura das matriarcas e das “sinhás”, que buscavam se aproximar do estereótipo de comportamento embranquecido (COLLINS, 2002). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 286 No tocante às relações afetivas e sexuais, outra expressão do racismo faz-se presente: a procriação. Evidencia-se a tentativa de distanciamento de tudo aquilo que desprezamos, principalmente, no seio da família tradicional cristã, que precisa ser protegida. A informante D., 29 anos, moradora de Coimbra, relata, alternando entre momentos de força e amargura, o racismo perpetrado pela família de seu companheiro quando avançam no nível de compromisso da relação. “Nós [D e seu companheiro português] temos muita vontade de adotar uma criança e um dos familiares se colocou totalmente contra, e criticou atitude e ainda fez o comentário de que o pior de adotar uma criança,seria ainda adotar uma criança negra. E aí eu imediatamente me coloquei, falei assim “olha, adotando ou não uma criança, se o meu companheiro tiver um filho comigo 100% de chance, 80% de chance dessa criança vir negra. Então não sei qual é o problema. A criança vai vir negra de qualquer jeito, adotada ou saindo de mim, acho que a negritude é tão forte que ela vai vir bem negra, bem bem, “moreninha”, bem com os traços afrodescendentes que é, pronto, o que tem (...) Então qual é o problema da família estar preocupada se vai ter um novo o novo integrante familiar que é negro. É, então é complicado é uma coisa que me toca bastante, mas que eu não nego.” Em uma sociedade de racismo estrutural, enquanto por um lado o “embranquecimento” familiar e cultural confere um nível de ascensão (Munanga, 2006), o enegrecimento, faz o movimento oposto. Não apenas a nível fenotípico, mas também cultural. O enegrecimento é visto como uma mancha na índole e no papel social que o/a indivíduo ocupa, tanto em famílias brancas, quanto em negros que assumem sua identidade ancestral e pré-colonial. Em comparação ao Brasil, a situação não se coloca de forma tão diferente. Referindose à pesquisa de Elza Bérquó, Pacheco (2008), aponta que mulheres negras são as menos preferidas quando se trata de manter relações afetivas duradouras. As mulheres negras (pardas + pretas) são as menos preferidas para uma união afetiva estável pelos homens negros e brancos, e, por isso, perdem na disputa matrimonial afetiva para as mulheres brancas; iii) como resultante desta disputa, haveria um excedente de mulheres negras solitárias, sem parceiros para contraírem uma união. CONCLUSÃO – NÓS POR NÓS PARA ALÉM DO DISCURSO Apesar das expressões do racismo no cotidiano de mulheres negras em Portugal ou no Brasil, essas continuam resistindo às diversas formas de opressão que sofrem. Se de alguma forma o caminho apresenta percalços, seja pela necessidade ou por força de vontade, estas mantém seus propósitos e recorrem a ajuda dos que fazem parte de sua rede de apoio. A que custo, é assunto para outro trabalho. Porém, COLLINS (2002) evidencia a necessidade de pensarmos a negritude feminina como meio existir com base no afeto, que é exatamente a forma que as mulheres negras imigrantes em Portugal se apoiam para não sucumbir às violências do racismo colonialista diário. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 287 No conforto das conversas cotidianas, por meio de conversas sérias e do humor e na condição de irmãs e amigas, as mulheres afro-americanas afirmam a humanidade umas das outras, afirmam sua excepcionalidade e seu direito de existir. Levando-se em conta os dispositivos legais que visam garantir a promoção do tratamento igualitário, tais como: (1) Constituição Federal Portuguesa de 1976, (2) Lei n.º 134/99, de 28 de agosto que cria a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), (3) Decreto-Lei n.º 251/2002, de 22 de novembro – onde a CICDR passou a integrar a estrutura do Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas (ACIME), dentre outras normativas específicas, as manifestações diárias do racismo não estão superadas. Dentre as informantes entrevistadas, nenhuma delas possui conhecimento sobre casos julgados onde réus por racismo tenham sido condenados, ou ainda de políticas públicas efetivas para a proteção da população imigrante e da mulher negra. Salvo uma das entrevistadas que reconheceu saber de um grupo independente que visa fornecer apoio a casos de xenofobia com mulheres brasileiras, não estando ligado diretamente à questão étnico-racial. A resistência dessas mulheres se coloca como um norte de força para outras que também tentam realizar seus sonhos e ascender socialmente, com dignidade, acesso a direitos e cidadania. Concluímos a triste perspectiva de que diversas expressões do racismo se manifestam sobre o cotidiano de mulheres negras em Portugal (casos de Lisboa e Coimbra) e de forma semelhante no Brasil, o que evidencia a estruturalidade do racismo de forma mundial. Apesar dos dispositivos e formas de resistência organizada, os esforços concentrados até o momento não são suficientes para dar contra da racialização da estrutura social. Ainda, as informações não estão atingindo os interessados diretamente por tais políticas públicas. Para além da vontade individual, a solução para a superação das questões impostas às mulheres negras está longe de ter um caráter individual. Angela Davis nos propõe um caminho possível e necessário para que estas mulheres alcancem seus objetivos, resgatando sua humanidade e exercendo suas subjetividades para além de si, mas no contexto familiar e social de forma ampla, na participação política, acesso a bens e serviços. Nossas famílias não podem ser salvas, a menos que consigamos preservar nosso direito de ganhar a vida de forma digna em condições de igualdade e a menos que possamos exercer nosso direito de tomar decisões políticas na esfera eleitoral. Portanto, é necessário um programa de empregos em contexto de paz e ação afirmativa, a nacionalização democrática da indústria de base e do complexo industrial-militar e o fim de agressões racistas contra os direitos políticos da população negra. Esse é o único quadro no qual os programas práticos voltados a problemas específicos das famílias negras terão alguma esperança de sucesso (2017, p. 81). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 288 A falta de informações mostra também o outro lado: o processo de conscientização dos “algozes” que manifestam o racismo também está falha. É preciso mais, é preciso que esta seja uma luta de toda a sociedade, não apenas de setores organizados ou que se identifiquem por sofrer na pele. Faz-se necessário que a branquitude consiga sair da universalidade que impõe a mulheres negras o lugar do Outro, abrindo mão de seus privilégios e entendendo que existem diversas outras narrativas e vivências válidas no cotidiano, para além do lugar de objeto. Ainda, é preciso que mulheres negras retomem seu estatuto de centralidade das sociedades africanas pré-coloniais e saiam do idealismo competitivo imposto pelo capitalismo, se apoiando na afetividade e no acolhimento. Ao longo de 500 anos, cremos já estar provado que se não for o “nós por nós”, eles também não serão. 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(2014, Jun 09) A vítima perfeita. Portugal, Observador: edição especial. Disponível em: https://observador.pt/especiais/alcindo-monteiro/. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 290 MATANÇA DE JOVENS HOMENS NEGROS NO RECÔNCAVO SUL DA BAHIA Fred Aganju Santiago Ferreira1 RESUMO Partindo de uma metodologia multifocalizada que articula dados qualitativos e quantitativos , o presente artigo busca revelar aspectos políticos-comunitários do processo de interiorização do Genocídio do Povo Negro nas cidades do interior baiano – notadamente na cidade de Cachoeira-BA - demonstrando como o padrão operacional bélico-militar das Policiais Especiais tem colaborado para os altos índices de homicídios de jovens homens negros no interior da Bahia. PALAVRAS-CHAVE: Genocídio; terrorismo racial; brutalidade policial ABSTRACT Starting from a multifocalized methodology that articulates qualitative and quantitative data the present article seeks to reveal politica-Community aspects of the process of internatization of the black people's genocide in the cities of the interior of Bahia,notably in the city of Cachoeira-BA Demonstrating how the operacional patthern warlike-military of the special polices has collaborated for the high rates of homicide of young black mem in the interior of Bahia. KEYWORDS: genocide; racial terrorism; police brutality. INTRODUÇÃO O conceito contemporâneo de Genocídio é fruto de inúmeros debates internos da Organização das Nações Unidas (ONU) e apenas no ano de 1948 há um consenso conceitual entre os países que coordenam a instituição. De tal modo que apenas no dia 9 de dezembro de 1948 a ONU aprova a resolução 260 A (III) que normatiza uma definição internacional do termo Genocídio. Norma essa, que passa a ser seguida pelos países signatários da convenção sobre a Prevenção e a Repressão do crime de Genocídio2. De acordo com esse documento, os atos abaixo indicados, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso se caracteriza como uma situação de Genocídio, 1- Assassinato de membros do grupo; 2- Atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo; Universidade Federal da Bahia – Doutorado em estudos étnicos africanos. E-mail: fredigorsantiago@yahoo.com.br. 2 Cabe retomarmos que moderna definição de Genocídio foi publicada em 1944 no Axis Rule in Occupied Europe, pelo polonês radicado nos Estados unidos Rafhael Lemkin .Sua definição foi baseada em sua observação e experiência como judeu na Alemanha Nazista e partia do principio que quaisquer ações por parte de um Estado que afligissem a liberdade, a dignidade humana e a segurança física de um grupo, seriam fenômenos sociais caracterizados como Genocídio . 1 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 291 3- Submissão deliberada do grupo a condições de existência degradantes que acarretarão em sua aniquilação total ou parcial; 4- Medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; Anos mais tarde, em audiência temática na comissão interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA)3 – entidade signatária das resoluções da ONU - O Estado brasileiro, tendo como representante um homem negro, funcionário da Secretaria de Políticas de Ações Afirmativas da Presidência da República, acolheu a denúncia dos peticionários que denunciavam o caráter essencialmente genocida da Estratégia Nacional de Segurança Pública no Brasil. Nas palavras do Secretário ; “o Governo Federal avalia que parte da elevada taxa de homicídio dos jovens negros deve ser atribuída ao racismo”. A audiência que tinha como tema “o assassinato de jovens negros no Brasil” foi provocada pela Organização Política - Reaja ou será Morta\o, que desde o ano de 2005 tem denunciado a brutalidade policial, a seletividade racial no sistema de justiça criminal e politizado os altos índices de mortes violentas de jovens homens negros na Bahia. Mortes essas, que são uma constatação do Genocídio Negro na Bahia. A Organização é articulada nacional e internacionalmente com organizações que lutam contra a brutalidade policial, o encarceramento em massa de negros/as e pela justiça, verdade e reparação de familiares vítimas do Estado que tiveram parentes e amigos/as assassinados por policiais em serviço, milícias, esquadrões da morte ou grupos de extermínio.4 Diante desse cenário; de uma guerra racial de alta intensidade, cabe assumirmos com urgência os fins e objetivos do presente artigo . Nosso objetivo é revelar aspectos políticoscomunitários do processo de interiorização do Genocídio do Povo Negro, nas cidades do interior baiano, ressaltando como o padrão operacional bélico-militar das Policiais Especiais tem colaborado para os altos índices de homicídios de jovens homens negros no interior da Bahia. GUERRA RACIAL DE ALTA INTENSIDADE NAS RUAS DO RECÔNCAVO SUL 3 Audiência em questão tinha como tema o assassinato em larga escala de jovens negros no Brasil e foi provocada por uma articulação comunitária transnacional encabeçada pela Campanha Reaja ou será morta\o. A organização peticionária defendeu a tese que as altas taxas de violência letal contra comunidade negra no Brasil era uma das manifestações de um processo de Genocídio mais amplo. Ver mais em: http://www.global.org.br/blog/brasil-reconhece-exterminio-da-juventude-negra-em-audiencia-naoea/. 4 Para saber mais sobre a Campanha Reaja ou será Morta\o, acompanhe o Blog: http://reajanasruas.blogspot.com.br/. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 292 Os dados oficiais apontam que entre os anos de 1980 a 2011, aproximadamente um milhão de pessoas foram assassinadas no Brasil, sendo 880 mil por disparos de arma de fogo (MAPA VIOLÊNCIA, 2012; 2013 ). Nos últimos dez anos os homicídios têm sido a principal causa de morte de jovens entre 15 e 29 anos, sobretudo de homens negros moradores de periferias de grandes centros urbanos e regiões metropolitanas. Os dados do Mapa da Violência (2014; 2015) apontam que dos 56 mil mortos por homicídios em 2012 no país, 77% eram jovens negros e 93% do sexo masculino. Ainda segundo este Mapa, entre os anos de 2002 e 2012 há queda de 32,3% no número de homicídios de jovens brancos, enquanto o percentual de homicídios de jovens negros cresceu na mesma proporção, com um aumento de 32,4%. Diante dessa conjuntura, a Bahia alçou o quarto lugar no ranking nacional de homicídios por arma de fogo, registrando cerca de cinco mil no ano de 2012, sendo 1.499 apenas na capital baiana, dos quais, 1.020 eram jovens (MAPA DA VIOLÊNCIA, 2015). De acordo outro documento oficial do Estado, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública5 todos os dias nove pessoas são assassinadas no Brasil em decorrência de intervenções policiais, sendo que entre os anos de 2004 a 2014, 20.420 pessoas foram assassinadas em ações policiais no Brasil. Para termos uma noção do trauma em curso, apenas entre os anos de 2011 e 2015, foram registradas cerca de 278.839 mortes violentas intencionais6 no Brasil, sendo que no mesmo período de tempo a Síria – em guerra civil declarada - registrou cerca de 256.124 mortes violentas. Esse conflito alcançou proporções apocalípticas na Bahia, ao ponto que atualmente 12 pessoas são assassinadas todos os dias por disparos de armas de fogo. O país ocupa atualmente o número 1 no ranking de letalidade na ação policial, superando inclusive, países como Honduras que é considerado por agências internacionais como o país mais violento do mundo em termos proporcionais. Ainda segundo esse mesmo relatório, o aparato policial brasileiro é reconhecido internacionalmente por seu padrão operacional racialmente seletivo, que tem levado a óbito, quase que invariavelmente, jovens homens negros. Há uma guerra racial de alta intensidade em curso no subterrâneo das cidades baianas, um conflito de alta intensidade do ponto de vista do arsenal empregado e racialmente estruturado, no tocante a quem está morrendo e quem está matando. Os números estatísticos 5 Ver em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/10/1827079-nove-pessoas-sao-mortas-por-policiais-acada-dia-no-pais.shtml . Acessado em 09/06/2017, às 00:40 min. 6 Por mortes violentas intencionais estamos tratando de: homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenção policial. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 293 mesmo subnotificados nos dão uma pequena radiografia do terror racial nas ruas. Esses dados quando focalizados na realidade da Bahia, tornam-se mais alarmantes. O estado tem o maior número de homicídios do país e apenas em 2014 cerca de 5.450 baianos foram assassinados. Como apontam as compilações dos anais documentais da SSP-BA7 (2014) , os índices espantosos de mortes violentas na Bahia indicam o cenário de uma verdadeira guerra racial de alta intensidade8 . Segundo a SSP-BA (2014), apenas em Salvador 1.320 pessoas foram assassinadas no ano de 2014, número esse que não inclui as 450 pessoas assassinadas por arma de fogo em regiões metropolitanas como Lauro de Freitas e Simões Filho (MAPA DA VIOLÊNCIA, 2014). Mais adentro no sertão a governabilidade da morte negra se recrudesce; como no caso de cidades como Feira de Santana (430 assassinatos), Itaberaba (35) e Vitória da Conquista (161). No lado Recôncavo Sul do interior a baiano, o padrão mórbido das estatísticas criminais alcançam proporções de uma verdadeira tragédia racial anunciada. No município de Santo Antônio de Jesus – com aproximadamente 100 mil habitantes – em 2016 foram registradas cerca de 55 homicídios por arma de fogo9. Já em 2017 a cidade alcança a cifra de 37 homicídios até o mês de setembro. Na outra ponta do lado sul recôncavo baiano, na cidade de CachoeiraBA – 30 mil habitantes – No ano de 2016 foi registrado pelo boletim anual da SSP-BA10, 22 homicídios, enquanto que o mesmo boletim sinaliza que de janeiro a agosto de 2017, a intitulada “cidade heroica” registrou 23 homicídios dolosos11. TERRORISMO RACIAL E MATANÇA DE JOVENS HOMENS NEGROS NO RECÔNCAVO SUL O interior da Bahia é uma região quente e encharcada de sangue negro; uma terra hostil onde os negros são caçados, capturados e abatidos como cães. Entretanto, o que poucos sabem, 7 Para acessar as informações ver em : http://www.ssp.ba.gov.br/arquivos/File/Estatistica2014/01ESTADOMUNICIPIO2014.pdf . Acessado em 09/06/2017, às 19h e 40 min 8 Sobre a noção de Guerra racial de alta intensidade discorreremos no Capítulo II. 9 Ver mais informações em: http://blogdovalente.com.br/noticias/saj/2017/10/santo-antonio-de-jesus-registrou55-homicidios-em-2016-e-37-em-nove-meses-de-2017/ 10 Ver o boletim aqui : http://www.ssp.ba.gov.br/arquivos/File/Estatistica2016/01ESTADOMUNICIPIO2016.pdf 11 Ver boletim aqui: http://www.ssp.ba.gov.br/arquivos/File/Estatistica2017/2017/01_ESTADO_MUNICIPIO_2017_JANEIRO_A_ AGOSTO.pdf Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 294 ou fingem não saber, é da guerra racial subterrânea que acontece nas ruas e vielas das cidades do interior baiano, deflagrada pela polícia militar contra os moradores da periferia, sobretudo, jovens negros de idade entre 15 e 29 anos. Como na conjuntura nacional, a justificativa é o combate ao tráfico de drogas. Nos últimos cinco anos os índices de homicídios tem aumentado de maneira exponencial no interior da Bahia e atingido de sobremaneira os jovens homens negros. Essas mortes acompanham a escalada de corpos negros amontoados em todo o Estado, como por exemplo, no ano de 2016, que de acordo o 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a Bahia registrou 7.110 mortes violentas, a grande maioria por arma de fogo – uma pessoa assassinada a cada 75 minutos12. Como aponta 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, na Bahia, no ano de 2015 cerca de 350 pessoas foram assassinadas em decorrência de intervenção policial letal. O banho de sangue continua nos anos subsequentes, de maneira que, no ano de 2016, 457 pessoas foram vitimadas em operações policiais letais13. A Bahia ocupa atualmente o terceiro lugar no ranking das corporações policiais mais letais do Brasil, ficando atrás apenas das polícias do Rio de janeiro e São Paulo. Entretanto, como temos denunciado constantemente, esses dados são subnotificados - não por uma ineficiência da SSP-BA em tabular corpos – mas sim por uma vontade política do Governo em esconder a todo custo a realidade de genocídio que negros/as estão submetidos na Bahia, como aponta parecer do 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, A organização do Anuário classificou, ainda, os estados de acordo com a qualidade estimada dos registros estatísticos oficiais. As unidades da federação foram divididas, inicialmente, em três grupos: aqueles com maior qualidade de informação, os com qualidade ‘intermediária’ e os com menor qualidade. A Bahia foi o único estado categorizado no chamado ‘grupo 4’: que, segundo o estudo, significa que optou por não responder o questionário enviado pela pesquisa; assim, os organizadores não classificam a qualidade dos dados informado. Apesar da SSP-BA disponibilizar de maneira subnotificada os dados sobre letalidade na ação policial, temos monitorado os altos índices de mortalidade juvenil por arma de fogo no interior e capital baiana, que tem uma ligação umbilical com o fortalecimento institucional das Companhias Independentes de Policiamento Tático; notadamente, ao que diz respeito o interior baiano, os batalhões especiais da Caatinga, Litoral Norte, Cerrado, Peto, dentre outros. Temos monitorado a exponencial ramificação e interiorização de uma polícia historicamente 12 Ver fonte em: http://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/uma-a-cada-75-minutos-bahia-teve-mais-de-7mil-mortes-violentas-em-2016/ 13 Ver o anuário de segurança publica aqui: http://www.forumseguranca.org.br/publicacoes/11o-anuariobrasileiro-de-seguranca-publica/ Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 295 conhecida por invadir casas sem mandado de busca, torturar jovens negros em viaturas, arremessar bombas e gás lacrimogênio dentro de casas, agredir. Uma polícia que tem sido a mola mestra na manutenção do status quo racial dos governos democráticos populares nos últimos 13 anos. As chamadas Companhias Independentes/Policiais Especiais tem ocupado um papel estratégico na estruturação e ramificação de um padrão operacional de Segurança Pública Genocida, que tem nas chacinas e massacres seu modus operandi primordial. Em cachoeiraBA, por exemplo, a corporação policial recebeu no início do ano de 2017, reforços no efetivo, novas viaturas, embarcações de patrulhamento fluvial, além de ser o primeiro município da região a ter um grupamento da RONDESP – Rondas especiais, além de já ter o reforço de outra policia especial; a Companhia Independente de Policiamento Especializado-CIPE Litoral Norte, como relata a matéria de jornalismo online. Duas Agências Bancárias tiveram suas estruturas danificadas após explosões aos caixas eletrônicos na madrugada da última terça feira (30), além de sete homicídios registrados na cidade em menos de um mês. Com esse clima insustentável na Segurança Pública os vereadores se reuniram na manhã da última quarta-feira (31) com o comandante geral da Polícia Militar na Bahia, Coronel Anselmo Brandão. A audiência aconteceu no gabinete do oficial em Salvador. Durante a assembleia ficou definido que a cidade histórica e monumento nacional ganharão reforços na segurança pública com a chegada de mais policiais militares e viaturas. O município também será o primeiro da região do Recôncavo a receber a presença da Companhia do Policiamento Tático - Rondesp -, sendo que ainda este ano o comando geral da PM irá liberar uma embarcação para o patrulhamento fluvial no Rio Paraguaçu que banha a cidade e cidades do Recôncavo. (Disponível em: http://www.midiareconcavo.com.br/noticia/7385/apos-ataque-a-bancos-cachoeiraganha). Há uma atmosfera de medo e violência racial nas periferias e zona rural do interior Baiano, onde os jovens homens negros são considerados pela corporação policial como inimigos internos a serem capturados, torturados e abatidos. De fato, os dados são apenas números, tabulações e curvas de nível, não dão conta de dimensionar o terror racial nas ruas, muito menos o assombro que causam os miolos espalhados no asfalto, a dor dos ossos quebrados em torturas e da carne lacerada por disparos de arma de fogo. Os dados não mensuram a neurose. Mas é preciso contar os corpos. E na Bahia, se você é um homem negro, ter um corpo pra contar já é muito, em um dos estados com maior porcentagem de desaparecimentos forçados do Brasil. Se tomarmos como base de análise os índices de letalidade na ação policial da cidade de Cachoeira-BA no ano de 2017, podemos ter uma noção do trauma racial em curso. No mês de julho dois homens negros foram mortos em ação policial na comunidade da Ladeira da Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 296 Cadeia após uma operação do 2 Pel, PETO14. Um mês depois, mais três homens negros foram alvejados a tiros e mortos 15 em uma operação policial realizada na comunidade do Morumbi. Três meses depois – no mês de novembro - dois homens negros foram mortos a tiros, decorrente de uma operação policial, também no bairro do Morumbi16. Ainda no mês de novembro, mais dois homens negros foram mortos em uma ação policial que tentava resgatar uma refém – que foi morta17. No último mês do ano o sangue continua a escorrer. Um homem negro foi alvejado a tiros durante uma incursão policial logo na segunda semana do mês18. Dias depois, ainda no mês de dezembro, mais dois homens negros foram mortos durante uma operação policial na cidade de São Félix19. A conta é simples, mas não menos macabra por isso; são 12 mortos em operações policiais em uma cidade de pequeno porte, com aproximadamente 30 mil habitantes. É um corpo negro tombado a cada mês. Não há tempo para luto. Corpos negros tombados em comunidades negras racialmente segregadas, em uma cidade “heroica” que mantém incólumes práticas coloniais, como por exemplo, a prática secular do Estado brasileiro de caçar, capturar e abater pessoas pretas. E como de costume o argumento é a criminalidade, “o tráfico de drogas”, a “índole perversa” das vítimas, que são transformadas pela mídia em algozes. O banho de sangue nas ruas do Recôncavo Sul está além das mortes de pessoas pretas em contextos de operações policiais. Há uma cultura da naturalização da morte violenta, especialmente, por arma de fogo, que tem deixado uma pilha de cadáveres pretos, que surgem boiando no rio Paraguaçu ou simplesmente “aparecem” perfurados nas ruas das cidades do Recôncavo Sul. Nesses termos, a execução sumária, tem sido uma das práticas utilizadas no assassinato de jovens homens negros no interior baiano, de maneira que, os grupos de extermínio e esquadrões da morte agem livremente, sem nenhum tipo de constrangimento ou sanção por parte do Estado. Em Cachoeira-BA, durante o ano de 2016/2017, pelo menos cinco jovens foram assassinados em um contexto que aponta fortes indícios de ação de grupo de extermínio. Ainda 14 Ver fonte em: http://www.midiareconcavo.com.br/noticia/8049/cachoeira-rambo-e-comparsa-sao-mortosdurante-operacao-policial 15 Ver fonte em: http://www.fortenoreconcavo.com.br/2017/08/cachoeira-trio-acusado-de-trafico-de.html 16 Ver fonte: http://midiabahia.com.br/cotidiano/2017/11/21/cachoeira-quadrilha-trocam-tiros-com-policia-edois-morrem-durante-confronto/ 17 Ver fonte : http://www.fortenanoticia.com.br/noticias/17222/cachoeira-dois-homens-e-uma-mulher-saomortos-durante-troca-de-tiros;-veja-.html 18 Ver fonte: http://www.fortenoreconcavo.com.br/2017/12/cachoeira-suspeito-de-cometer-assaltos.html 19 Ver fonte: http://www.midiareconcavo.com.br/noticia/10053/sao-felix-suspeitos-morrem-durante-troca-detiros-com-a-policia-milita Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 297 no início do ano de 2017 um jovem negro foi assassinado a tiros concentrados na cabeça, na comunidade de Capoeiruçu20. De acordo com a população local, homens encapuzados em um Gol prateado realizaram o crime. No ano anterior, dois jovens da comunidade do Rosarinho, também na cidade “heroica”, foram alvejados e mortos a tiros, por homens encapuzados em um Gol prata21. Em agosto de 2017 a travesti e militante LGBT do município de Cachoeira, conhecida como Lili, foi morta a tiros, surpreendida por três homens armados que chegaram ao local em um carro prateado22. Em ambos os casos o modus operandi utilizado por grupos de extermínio e esquadrões da morte está evidenciado em cada morte; tiros concentrados no crânio, precisão em cada assassinato, tocas ninjas, pistolas automáticas e nenhum tipo de chance para as vítimas revidarem; execução sumária, Nos anos 80, o modus operandi dos matadores de aluguel tomou outra forma. O cavalo foi trocado pelo carro e, logo em seguida, a incidência de crimes cometidos por homens guiando motos ficou mais frequente. A moto atribui uma maior vantagem e rapidez na fuga dos pistoleiros e, em lugares urbanos, ela é preferida por matadores na atualidade. As máscaras na cor preta eram usadas com mais frequência em décadas anteriores. Hoje, utiliza-se menos, quase sempre substituída pelo capacete do motoqueiro, que envolve os traços do rosto, dificultando a identificação do criminoso. As espingardas estão sendo substituídas por revólveres, pistolas semiautomáticas de calibres 380 e até fuzis. O grupo, geralmente, atua em número de três, indo ao encontro da vítima e chegando a ela, muitas vezes, sem nada dizer, outras vezes, falando um tipo de “sentença de morte”: Você vai pro inferno! Matam somente aquela vítima que lhe foi encomendada e que é abatida com disparo em regiões fatais. Outra vez, ‘sequestram’ a vítima e a assassinam com um ou dois tiros na cabeça, levando o corpo para lugares de desova de cadáveres. (Relatório da CPI do extermínio no Nordeste, 2005, págs. 29-30). Esses números assombrosos sobre mortes violentas nas ruas do Recôncavo Sul são fragmentos de uma realidade nacional, ou seja, o processo de Genocídio contra o Povo Negro no Brasil, especialmente em sua forma mais direta: a execução sistemática de jovens homens negros. Como podemos observar no interior da Bahia a ramificação operacional das Polícias Especiais tem servido como o principal dispositivo do Estado para interiorização de uma das formas diretas do Genocídio do Povo Negro no Brasil; as execuções sumárias e extrajudiciais de jovens homens negros cometidas por agentes do Estado em serviço. Ramificação essa alicerçada em uma centralidade estratégica no terrorismo de Estado a partir da ação letal de uma corporação policial treinada, armada e formada ideologicamente para guerra. UMA TERRA BANHADA EM SANGUE 20 21 22 Fonte em: http://www.fortenoreconcavo.com.br/2017/01/cachoeira-violencia-desabida-ceifa-vida.html Ver fonte: http://www.vozdabahia.com.br/index/blog/id-245600/dois_jovens_sao_assassinados_em_cachoeira Ver fonte: https://folhadecondeuba.com.br/travesti-e-morta-a-tiros-no-reconcavo-baiano/ Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 298 Não há mais como esconder o caráter genocida das políticas de segurança pública no Brasil. O próprio Estado tem admito o genocídio de negros/as, seja na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos ( OEA)23, ou no relatório final da CPI do assassinatos de jovens negros24, o Estado brasileiro já admitiu publicamente que as forças de segurança são dispositivos agenciadores da morte preta. Há uma guerra racial de alta intensidade no território brasileiro, uma guerra que tem destruído famílias negras; homens, mulheres, crianças e idosos, são atingidos diretamente ou indiretamente, por essa atmosfera de morte que paira sobre as comunidades negras. Não existe uma “guerra às drogas”, esse termo é um engodo, utilizado por nosso algozes diretos e também por um conjunto de intelectuais (negros e brancos), programas de pesquisa, agências internacionais de financiamento de segurança privada e por movimentos sociais que têm feito linha auxiliar para a matança em curso25. Esse termo “guerra às drogas “ tão caro e emplumado”, tem sido largamente utilizado, em diferenciados fóruns de debates sobre segurança pública e violência letal no Brasil – e América Latina -, entretanto, é um conceito que não dá conta da realidade que negros/as tem experienciado, especialmente, no contexto dos últimos 12 anos, de militarização das forças de segurança pública no Brasil. É como disse um amigo recentemente, ao presenciar a Polícia Militar da Bahia atirando granadas do alto de um helicóptero, em uma comunidade racialmente segregada em feira de Santana “é a guerra de um exército contra um Povo desarmado”. Nesses termos, falar de uma “guerra às drogas” é no mínimo enviesar ou desviar o olhar do banho de sangue em curso. Há uma agenda em andamento, que busca “por todos os meios necessários” escamotear a tragédia racial que é o genocídio de negros/as no Brasil; uma agenda essencialmente linha Auxiliar, que tem pagado passagens aéreas internacionais, coquetéis em hotéis de luxo, seminários de pesquisas, digitais influencer e uma infinidade de pesquisas acadêmicas, que tem consolidado um campo argumentativo, que torna a experiência do genocídio de negro/as como marginal na violência estrutural contra nosso povo. 23 Audiência em questão tinha como tema o assassinato em larga escala de jovens negros no Brasil e foi provocada por uma articulação comunitária transnacional encabeçada pela Campanha Reaja ou será morta\o. A organização peticionária defendeu a tese que as altas taxas de violência letal contra comunidade negra no Brasil era uma das manifestações de um processo de Genocídio mais amplo. Ver mais em: http://www.global.org.br/blog/brasilreconhece-exterminio-da-juventude-negra-em-audiencia-na-oea/ . 24 Ver fonte em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/06/08/em-relatorio-cpi-apresentasugestoes-para-acabar-com-genocidio-da-juventude-negra 25 Sobre a noção de Linhas Auxiliares ver : https://daslutas.wordpress.com/2016/01/16/o-papel-das-linhasauxiliares-na-manutencao-da-supremacia-branca/ Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 299 A negação político-ideológica do genocídio negro em curso – através da anedota “ guerra às drogas”- pode até render debates “ calorosos” nos frios corredores da universidades. Ou mesmo, render possibilidades promissoras de carreiras nas ONGS – pretas e brancas - , nas secretarias esquecidas pelos partidos de esquerda ou mesmo uma promessa de algumas diárias naquele hotel da hora. Contudo, todo esse malabarismo teórico agenciado pelos dispositivos que fazem linha auxiliar à matança realizada pelo Governo da Bahia, não podem esconder a realidade. A violência policial está mergulhada em um contexto muito amplo de opressões que afligem nosso povo. A violência racial praticada pelas forças de repressão do Estado não está dissociada das desigualdades estruturais e históricas que nossa comunidade está sujeitada. A polícia executa nossa juventude, brutaliza nossos corpos, militariza nossas comunidades, destrói nossos focos de resistência, nos expulsa de nossas casas, encarceram-nos em presídios, aterrorizam nossos bairros e farão de tudo para nos destruir ou nos manter no torpor do medo. Há uma atmosfera de medo nas ruas da Bahia. O medo da morte prematura; de deitar na cova rasa. O medo de ser impedido de criar seu rebento; ou de nunca ter. O medo de não brincar com seus netos. O medo de nunca mais ver a pessoa que ama, de nunca mais sentir o cheiro dela ou de não sentir o peso de suas coxas sobre seu corpo. O medo de burlar a ordem natural das coisas e ser enterrado por sua mãe. O terror racial recrudesce ano após ano. Ano após ano enterramos amigos, familiares, alunos. Vemos as tias adoecerem após terem suas maternidades negras destruídas pelas intervenções letais do Estado. Mas estamos de pé, vivos, orgulhosos e organizando alternativas de resistência, nos rincões esquecidos das cidades banhadas em sangue negro26. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DOS SANTOS, Andreia Beatriz & DOS SANTOS WALÊ, Hamilton Borges. Genocídio e Epistemicídio: as mortes indignas do Povo Negro. Caros Amigos Especial – Violência Policial. Ano XVII, n.66. 2013 WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2015: Mortes matadas por arma de fogo. Brasília: SEPPIR, 2015. Relatório final CPI do assassinato de jovens: https://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2016/06/08/veja-a-integra-do-relatorio-da-cpido-assassinato-de-jovens 26 Sobre alternativas a violência estrutural no interior baiano ver: http://oganpazan.com.br/dos-bueiros-doreconcavo-para-o-mundo/ e também https://www3.ufrb.edu.br/reverso/cultura-hiphop-como-ferramenta-deafirmacao-e-resistencia/ Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 300 CÂMARA DOS DEPUTADOS RELATÓRIO FINAL DA COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO DO EXTERMÍNIO NO NORDESTE, novembro de 2005 (http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoestemporarias/parlamentar-de-inquerito/52legislatura/cpiexterminio/relatoriofinalaprovado.html) Matérias de jornalismo online consultadas: AÇÃO conjunta da polícia termina com três suspeitos mortos em Santo Antônio de Jesus. Mídia Recôncavo, 2017. Disponível em: <http://www.midiareconcavo.com.br/ noticia/8531 /acao-conjunta-da-policia-termina-com-tres-suspeitos-mortos-em-santo-antonio-de-jesus> APÓS ataque a bancos, Cachoeira ganha unidade da Rondesp, novas viaturas e embarcação. Mídia Recôncavo, 2017. Disponível em: < http://www.midiareconcavo.com.br/ noticia/ 7385/apos-ataque-a-bancos-cachoeira-ganha-unidade-da-rondesp-novas-viaturas-eembarcacao> DOIS jovens são assassinados em Cachoeira. Voz da Bahia, 2017. Disponível em: < http://www.vozdabahia.com.br/index/blog/id245600/dois_jovens_sao_assassinados_em_cach oeira> CACHOEIRA: Dois homens e uma mulher são mortos durante troca de tiros. Forte na Notícia, 2017. Disponível em: < http://www.fortenanoticia.com.br/noticias/17222/cachoeiradois-homens-e-uma-mulher-sao-mortos-durante-troca-de-tiros;-veja-.html > CACHOEIRA: Rambo e comparsa são mortos durante operação policial. Mídia Recôncavo, 2017. Disponível em: < http://www.midiareconcavo.com.br /noticia/8049/cachoeira-rambo-ecomparsa-sao-mortos-durante-operacao-policial > CACHOEIRA: Quadrilha trocam tiros [sic] com polícia e dois morrem durante confronto. Mídia Bahia, 2017. Disponível em: < http://midiabahia.com.br/cotidiano /2017/11/21/cachoeira-quadrilha-trocam-tiros-com-policia-e-dois-morrem-duranteconfronto/> CACHOEIRA: Suspeito de cometer assaltos. Forte no Recôncavo, 2017. Disponível em: <http://www.fortenoreconcavo.com.br/2017/12/cachoeira-suspeito-de-cometer-assaltos.html> CACHOEIRA: Trio acusado de tráfico. Forte no Recôncavo, 2017. Disponível em: < http://www.fortenoreconcavo.com.br/2017/08/cachoeira-trio-acusado-de-trafico-de.html > CACHOEIRA: Corpo encontrado no rio Paraguassu continua sem identificação. Mídia Recôncavo, 2017. Disponível em: <http://www.midiareconcavo.com.br /noticia/9200/cachoeira-corpo-encontrado-em-no-rio-paraguassu-continua-sem-identificacao> CACHOEIRA: Violência descabida ceifa vida. Forte no Recôncavo, 2017. Disponível em: < http://www.fortenoreconcavo.com.br/2017/01/cachoeira-violencia-desabida-ceifa-vida.html> GENOCÍDIO da população negra e periférica. Reverso Online, 2017. Disponível em: < https://www3.ufrb.edu.br/reverso/genocidio-da-populacao-negra-e-periferica-2/> Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 301 SANTO Antônio de Jesus registrou 55 homicídios em 2016 e 37 em nove meses de 2017. Blog do Valente, 2017. Disponível em : < http://blogdovalente.com.br/ noticias/saj/2017/10 /santo-antonio-de-jesus-registrou-55-homicidios-em-2016-e-37-em-nove-meses-de-2017/ > SÃO Felix: Suspeitos morrem durante troca de tiros com a polícia. Mídia Recôncavo, 2017. Disponível em: < http://www.midiareconcavo.com.br/noticia/10053/sao-felix-suspeitosmorrem-durante-troca-de-tiros-com-a-policia-militar > TRAVESTI é morta à tiros no recôncavo baiano. Folha de Condeúba, 2017. Disponível em:< https://folhadecondeuba.com.br/travesti-e-morta-a-tiros-no-reconcavo-baiano/> Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 302 “MENINOS VESTEM AZUL, MENINAS VESTEM ROSA”: PATRIARCADO E CAPITALISMO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO Bruna Távora1 RESUMO Nesse ensaio, investigamos a hipótese de Silvia Federicci, que afirma que a degradação da mulher é condição para a manutenção do capitalismo. A análise demonstra que tal estratégia aprofunda-se em momentos de crise, quando instaura-se a barbárie e o Estado de Exceção. Para compreender o fenômeno, articulamos revisão de literatura com uma análise textual de um discurso da Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Os resultados apontam que o estímulo ao patriarcado é uma estratégia que visa construir um tipo subjetividade adequado ao período da crise brasileira. PALAVRAS-CHAVE: Degradação; Patriarcado; Mulher; Barbárie. RESÚMEN En este ensayo, investigamos la hipótesis de Silvia Federicci, que afirma que la degradación de la mujer es condición para el mantenimiento del capitalismo. El análisis demuestra que tal estrategia se profundiza en momentos de crisis, cuando se instaura la barbarie y el Estado de Excepción. Para comprender el fenómeno, articulamos la revisión de literatura con un análisis textual de un discurso de la Ministra de la Mujer, de la Familia y de los Derechos Humanos. Los resultados apuntan que el estímulo al patriarcado es una estrategia que pretende construir un tipo subjetividad adecuado al período de la crisis brasileña. PALABRAS CLAVE: Degradación; patriarcado; mujeres; Barbarie. INTRODUÇÃO Desde que o governo Jair Bolsonaro assumiu a presidência, em janeiro de 2019, a questão do pronunciamento “oficial” em tom estapafúrdio tem sido uma estratégia de ordem comunicacional posta em prática por essa gestão. Gerar confusões, criar mecanismos de distração ou apenas fazer “cortina de fumaça” são algumas das explicações para o feito. Neste breve ensaio, tratamos de elaborar uma explicação em torno desses pronunciamentos, que dê conta de articular algumas determinações de ordem econômica e social àquela de caráter mais puramente comunicacional e cultural. Nesse sentido, analisamos o pronunciamento oficial2 da ministra Damares Alves, a frente do Ministério da Família, das Mulheres e dos Direitos Humanos, de modo que seja possível identificar e relacionar os 1 Doutoranda em Comunicação e Cultura na Escola de Comunicação da UFRJ. E-mail: tavora.bruna@gmail.com. Disponível em Canal Folha do Brasil. Link de acesso https://www.youtube.com/watch?v=_3PnpeqadFQ. Acesso em 10/01/2019 2 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 303 depoimentos da ministra e sua funcionalidade às estratégias de ordem social e econômica do capitalismo contemporâneo. Essa hipótese parte da afirmação da intelectual feminista Siliva Federici (2017), que destaca que a degradação e subordinação das mulheres ao sistema dominante, expressa pela lógica do patriarcado, foi e continua sendo condição necessária para a existência do capitalismo. Essa operação se dá de diversas formas, e corresponde a uma estratégia de mistificação e justificação das atrocidades e barbaridades que a lógica do capitalismo demanda executar para manter-se de pé. A partir das reflexões de Silvia Federicci (2017), afirma-se que a “refabricação” – do ponto de vista institucional - do senso comum em torno da mulher subordinada ao homem tem como objetivo provocar mistificações e reforço de ideologias, com o objetivo de radicalizar e justificar a perda de direitos das populações, em especial, das mulheres Refletiremos ainda sobre as modificações institucionais realizadas no governo de Jair Bolsonaro, articulando-as à fase atual do capitalismo, como caracterizado por MENEGAT (2018). “A POSIÇÃO SEXUAL TEM DISFARCE DE DESTINO BIOLÓGICO” Em suas reflexões acerca da transição do feudalismo para o capitalismo, Silvia Federicci (2017) nos oferece uma visão feminista do fenômeno da chamada acumulação primitiva, afirmando que a posição sexual é marca originária que constituiu o capitalismo desde seu início. Através do disfarce de destino biológico, a posição sexual constitui uma das formas de subordinação da mulher ao Estado, uma vez que define uma forma específica de divisão do trabalho que constitui naturalizações funcionais às exigências da classe dominante. A divisão sexual do trabalho, constituída pelo capitalismo, lega à mulher o papel de reprodutora da força de trabalho, convertendo-a em um dispositivo de produção de novos trabalhadores. Deste modo, transforma seu corpo em máquina, instaurando uma ordem patriarcal baseada – incialmente - na exclusão das mulheres do trabalho assalariado, o que constituiu materialmente sua subordinação ao homem, uma vez que se constituía um sistema baseado na utilização do dinheiro e da venda da força de trabalho. Diante disso, Federici enfatiza que o patriarcado representa uma forma particular de exploração do capitalismo e acrescenta ainda que o racionalismo científico –matriz intelectual própria do surgimento desse sistema – colaborou com essa transformação. Isto porque operou Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 304 um deslocamento cultural de um paradigma orgânico para outro mecânico, naturalizando a utilização do corpo da mulher como máquina de reprodução. Foi nesse momento que foram redefinidas – com máxima violência e intervenção estatal - as tarefas produtivas e reprodutivas da sociedade, bem como, a relação entre homem e mulher. Deste modo, no contexto das crises entre os séculos 16 e 18, quando eclode a questão democráfica e econômica, e se reordenam as políticas de trabalho e de terra da fase mercantilista, a “chamada acumulação primitiva” articula o plano material (expulsão de camponeses de suas terras, a guerra e o saque em escala global, dentre tantas outras que expropriavam as camadas populares europeias de suas formas anteriores de vida) com estratégias de ordem cultural para garantir sua atroz consolidação. Especificamente no tocante às mulheres, Federici (2017) analisa o fenômeno da caça às bruxas, explicando o extermínio de centenas de milhares de mulheres que, por haver desenvolvido formas de controle reprodutivo, apresentavam resistência à subordinação de seus corpos enquanto máquinas de reproduzir trabalhadores. Ela também destaca como fatores essenciais à constituição da economia capitalista: a formação da família nuclear europeia, centrada na dependência econômica das mulheres aos homens, e a expulsão de mulheres de postos de trabalho remunerados. Nota-se que esse sistema exigiu um ataque genocida às mulheres, combinado com uma feminização da pobreza, que veio a ser o primeiro efeito do desenvolvimento do capitalismo sobre a vida das mulheres. Nesse contexto, a mulher, seu corpo e sua subjetividade assumem a posição social de reprodutoras e subordinadas. Assim, “o corpo feminino foi apropriado pelo Estado e pelos homens, forçado a funcionar como um meio para reprodução e acumulação da força de trabalho” (FEDERICI, 2017, p. 27). O objetivo é sedimentar o tipo de trabalho legado à mulher no capitalismo. O disfarce de destino biológico constitui o objetivação dessa estratégia. Essa divisão social do trabalho tem como expressão uma forma degradada de constituição da mulher; a subordinação é parte da estratégia de difamar a natureza daqueles que precisa explorar. Deste modo, subsume-se a cultura à economia, constituindo uma forma de organizar a vida e a subjetividade, de modo que sejam funcionais ao sistema econômico. “Não é por acaso que seu exemplo histórico originário tenha sedimentado estratégias que, diante de cada grande crise capitalista foram relançadas de diferentes maneiras, com a finalidade de baratear o custo do trabalho e esconder a exploração das mulheres e dos sujeitos coloniais” (FEDERICI, 2017 , p. 36) Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 305 Ao analisar essas determinações da fase dita “acumulação primitiva”, Federici (2017) elabora uma crítica ao clássico estudo marxiano em torno do tema. Ela demonstra que a perspectiva um tanto “etapista” demonstrada por Marx - de que o capitalismo prepararia o caminho para a libertação humana, ou que a violência decresceria em razão da institucionalidade - não se efetiva. Antes, o contrário, ela afirma que cada nova fase do sistema capitalista vem acompanhada de um retorno aos aspectos mais violentos daquela fase inicial. São eles: contínua expulsão dos camponeses das terras ainda não gerenciáveis pelo capital monopolista, promoção de guerras e, a degradação das mulheres. A autora afirma que essas são condições necessárias para a existência do capitalismo em qualquer época, e que a acumulação primitiva é um processo universal em cada fase do desenvolvimento capitalista. Trata-se de um exemplo histórico originário, que constitui e é consituinte da forma capitalista. Para compreender a análise da autora, articulamos o momento de crise e estado de exceção vivenciada no Brasil com a forma degradante que o novo governo de Jair Bolsonaro lega às mulheres. Partindo deste aspecto, no próximo item, analisaremos as características dessa fase do desenvolvimento capitalista mediados pela abordagem que MENEGAT (2018) apresenta em torno do tema. Em seguida, articulamos esse aspecto de ordem mais abstrata com a determinação de um caso concreto – a degradação das mulheres enquanto estratégia cultural e comunicacional no interior da crise no Brasil. ESTADO DE EXCESSÃO E CRISE DO VALOR MENEGAT (2018) afirma que o Estado de Excessão corresponde a uma necessidade histórica da era do capital fictício, que é marcada pela crise do valor (KURZ, 2004). Trata-se da forma que a classe dirigente mundial encontra para “manter-se de pé” diante das modificações e consequências sociais da lógica do capitalismo financeiro: aumento da crise econômica, do desemprego e diminuição das concessões sociais, legando um grande contingente de pessoas em situação de miserabilidade. Kurz (2004) explica que, com os processos de automação industrial derivados das inovações da microeletrônica, e com a mudança da lógica de produção de riqueza do capitalismo financeiro, que é mais lucrativa via transferência de valor (especulação fundiária, capital fictício, renda de terras, títulos da dívida pública, etc) , do que via produção de valor (exploração da força de trabalho em processos produtivos), a classe dirigente passa a dispensar Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 306 a força de trabalho humana, preocupando-se, cada vez menos, com a reprodução social da camada dos explorados. Deste modo, a exploração da força de trabalho/consumo fica menos lucrativa do que a operação especular do capitalismo financeiro. Nesse contexto, a força de trabalho, ou seja, as pessoas que constituem o grupo de trabalhadores livres para serem explorados, passa a ser dispensável. Isso gera um contingente de desemprego e de população sobrante, que será “atendida” pelo Estado via políticas de repressão, e através de distintas técnicas políticas, como, por exemplo a proliferação dos discursos de ódio. As consequências são a instauração da barbárie como uma técnica política, realizando uma assimilação implícita entre guerra e economia (MENEGAT, 2018). No plano constitucional, se expressa no abandono de noções de direitos humanos e sociais. Nesse contexto, as formas de legitimação por consenso – particulares da sociedade do trabalho fordista já não resolvem as contradições que emergem no mundo financerizado marcado pelo desemprego e pelo declínio econômico e social das populações. Muitos serão os operadores que provocarão o extermínio dessa população sobrante: a forme, a precarização das condições de vida, a morte por arma de fogo (da polícia, dos assaltos), por falta de assistência médica, etc. No plano subjetivo e simbólico, no plano da cultura, do aspecto cognitivo e da consciência, surgirão tantas outras que, enquanto dispositivos de sociabilidade tentaram reacomodar as condições para esta fase financeira, ativando um tipo particular de interação, baseada , por exemplo, na degradação moral das mulheres. Nessa argumentação, trata-se do fato de que essa degradação naturaliza a barbárie do capitalismo contemporâneo, e, no caso da mulher, gera feminicídios e feminilização da pobreza. De maneira metafórica, poderíamos compreender essa degradação moral das mulheres (expressa pela subordinação da mulher ao homem, afirmação da posição sexual como destino biológico, etc) como um “mecanismo de compensação” para o capitalismo financeiro. Estratégia que ajuda a implantar as lógicas do capitalismo especular, uma vez que justifica simbolicamente as formas de relacionamento com as mulheres que serão desenvolvidas pela barbárie própria do Estado de Exceção. Assim, torna-se funcional ao extermínio da população sobrante, que, na atual fase, importa pouco para a exploração do trabalho e para o consumo. Afinal, a forma como uma sociedade organiza sua economia e suas trocas possui grande influência na sua forma de consciência, subjetividade e cognição. Nesse sentido, a modificação da forma valor levou ao “retorno” de formas originárias do capitalismo, formas que constituem e são constitutivas Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 307 desses sistema, que funcionam como dispositivos de mediação de vinculação social. Que, por sua vez, são funcionais à lógica capitalista. “MENINOS VESTEM AZUL, MENINAS VESTEM ROSA” O exemplo da ministra aqui citada permite afirmar a hipótese de Silvia Federici (2017) de que a degradação da mulher e a subordinação dela ao homem e ao Estado são estratégias originárias do capitalismo. Deste modo, fazem parte do conjunto de estratégias (em que a violência prevalesce em um Estado de Exceção e barbárie) que, a cada nova crise desse sistema, são postas em prática no esforço de ampliar e aprofundar suas formas de exploração. A polêmica frase dita pela ministra não consta no discurso oficial, aquele que foi proferido na cerimônia de transmissão de cargo, quando recebeu o título de Ministra da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, no dia 02 de janeiro. A frase é dita ao final do evento, nos bastidores da posse, quando faz uma fala para um vídeo que estava sendo feito por um apoiador – ministro da casa Civil. A frase completa dizia: “Atenção, Brasil, é uma nova era: meninos vestem azul e meninas vestem rosa”, repetida duas vezes. No discurso oficial, que teve mais o tom de “mandar recados”, Damares Alves proferiu uma série de jargões religiosos como “restauração”, “o estado é laico, mas eu sou terrivelmente cristã”, “defenderemos a vida desde a sua concepção”, além de frases de incentivo ao voluntariado e o reforço ao biologismo sexual como “menina será princesa e menino será príncipe”. Durante todo o discurso, lamentou o título dado ao ministério, que segundo ela, deveria chamar-se “Ministério da Vida e da Alegria”. Para fins de análise deste ensaio, destacaremos dois aspectos de seu discurso: a) o controle sobre a reprodução da vida e, portanto, sobre o corpo da mulher – expresso na síntese “defenderemos a vida desde a sua concepção”, posição que expressa uma política antiaborto, e a b) afirmação da posição sexual como um destino biológico, disfarçando seu aspecto cultural, oriundo de uma contrução social, institucional, etc. Não surpreende que a tônica do governo que gere o estado de exceção não seja a de elaborar consensos e concessões -, pois nada mais tem a barganhar com a classe que subalterniza. Mas sim, pôr em marcha uma política de extermínio, que é implementada pela política de segurança pública e por um empobrecimento geral da população (acarretando na falta de condições mínimas para estarmos vivos). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 308 No plano cultural e do simbólico é justificado pela construção de uma forma de relação social em que vige a degradação moral das mulheres, que, pode-se dizer, constitui uma crença de que seus corpos, sua vida e sua subjetividade podem ser geridos pelos homens e pelo Estado. CONCLUSÕES PRELIMINARES Nesse ensaio, articulamos as reflexões em torno da degradação da mulher com as relações político-econômicas do Estado de Exceção. Destacou-se que a fase financerizada, que é marcada pelo desemprego causado pela automação das indústrias combinada à forma especular e imaginária do lastro do valor, provocou a diminuição da demanda da força de trabalho humana e alterou as formas políticas, aumentando as relações de degradação das camadas subalternizadas. No caso da subordinação das mulheres, trata-se da construção de um dispositivo social e relacional que cria uma espécie de conteúdo ético com os quais os homens e as mulheres se relacionam; Este conteúdo orienta éticas e condutas e constroi as relações sócio-econômicas, ativando formas de poder e exploração que são funcionais ao capitalismo, permitindo e justificando menores salários, demissões por gravidez (função social de reprodução da vida exercida pela mulher), feminicídios, dentre outros. Enfim, formando um tipo de cultura que funciona como mediação da realidade, justificando-a. Isso tem como correspondente a produção de uma posição subalternizada e degradante da mulher, que, ao mesmo tempo, expressa e constitui a sociabilidade adequada ao capitalismo financeiro. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAMBEN, G. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: coletivo Sycorax São Paulo : Elefante, 2017. KURZ, Robert. O colapso da modernização – 15 anos depois. Entrevista à Revista Reportagem, São Paulo, Outubro de 2004. MENEGAT, Marildo. A nova guerra total. Apresentação de Trabalho/Conferência ou palestra. NEPP-DH, UFRJ, 2017. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 309 RESISTÊNCIA QUEER-SAPPHIRE OU POR UMA POLÍTICA DE IDENTIFICAÇÕES ESTRATÉGICAS ITINERANTES Rafael Afonso da Silva1 RESUMO Partindo de questões emergentes do campo da interseccionalidade, assumidas em uma perspectiva políticoecológica de recorte deleuze-guattariano por via do conceito ingoldiano de “itineração”, o artigo discute o enredamento de raciopolítica e sexopolítica na produção do que é designado aqui como “políticas do straight hair”. Sob inspiração da aposta de Paul Beatriz Preciado em uma “desontologização das políticas de identidades”, o artigo discute ainda uma alternativa política ao “essencialismo estratégico” a partir do mote de uma possível estratégia queer-sapphire, desembocando na proposição de uma política de identificações estratégicas itinerantes. PALAVRAS-CHAVE: raciopolítica; sexopolítica; interseccionalidade; identificações estratégicas; itineração ABSTRACT Starting from questions emerging from the field of intersectionality studies, assumed in a political-ecological perspective – with a Deleuzian-Guattarian inspiration – by means of the Ingoldian concept of “itineration”, the article discusses the entanglement of racepolitics and sexopolitics in the production of what is here termed “politics of straight hair”. Under the inspiration of the Paul Beatriz Preciado's wager on a "deontologization of identity politics", the article also discusses a political alternative to "strategic essentialism" from the motif of a possible queer-sapphire strategy, concluding with the proposition of a politics of itinerant strategic identifications. KEYWORDS: racepolitics; sexopolitics; intersectionality; strategic identifications; itineration ANTES DE COMEÇAR Ensaio aqui uma estratégia de escrita heteronímica, escrevendo como outro autor, com biografia e trajetória intelectual e política diferentes do ortônimo. Escrevo na pele de Abidemi da Silva, x altaneirx filósofx e ativistx queer-sapphire, uma legenda ficcional emergente de questões não-ficcionais, que exercitei pensar, arrostando os limites das minhas clausuras conceituais, políticas e estilísticas. Abidemi é um nome ioruba, que pode ser aproximativamente traduzido como “nascido/a na ausência do pai”. O nome traduz a “sina” da personagem, corpo nascido à margem da normalidade e, portanto, da violência própria das “estruturas” da família moderno-patriarcal, na “ausência do pai”. Mas exprime igualmente a assunção dessa “sina” como oportunidade, como tarefa, como “destino” (BAUMAN, 1999). Socialmente recortada como um corpo feminino negro, a personagem não se deixou circunscrever pelas regulações sociais inscritas 1 Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e especialista em Espistemologias do Sul pelo Consejo Latinoamericano de Ciências Sociais (CLACSO). E-mail: rafonso@fcm.unicamp.br. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 310 nesse molde pelo “Império dos Normais” (PRECIADO, 2011). Abidemi é uma existência que só consegue proliferar à deriva. Desenhado fora da pele do seu estilo acadêmico convencional, na forma de uma entrevista realizada pela semi-personagem Alexandre Marques, que apenas serve para deflagrar as respostas de Abidemi, o artigo aborda questões relacionadas às “opressões entrelaçadas” e às alternativas políticas ao “essencialismo estratégico” na produção de estratégias de resistência e de relações emancipatórias. STRAIGHT HAIR OU AS “DOBRAS” RACIOPOLÍTICAS E SEXOPOLÍTICAS DA FABRICAÇÃO DA NORMALIDADE Alexandre Marques: A noção de “políticas do straight hair” reaparece frequentemente em suas intervenções e textos. Você poderia falar do significado dessa noção em seu pensamento? Abidemi da Silva: A expressão “políticas do straight hair” insere-se em uma estratégia de ressonância intertextual. Em primeiro lugar, remete, evidentemente, a Wittig (1990). Em relação a ela, no entanto, reivindico a reposição do conceito de straight em seu território semântico-político transversal, quer dizer, não atado apenas à concepção da heterossexualidade como regime político. Com efeito, Wittig se refere à produção do “diferente/outro” em “todos os níveis” como uma necessidade da straight society (Ibid., p. 55), denunciando uma rede de dispositivos político-discursivos que constitui binaridades ontologizadas como fundamento de regimes de distribuição assimétrica de poder. O conceito traduz um curto-circuito do pensamento que produz, de um lado, homens, brancos e senhores como “não-diferentes” e, de outro, mulheres, negros e escravos como ontologicamente “diferentes”. A necessidade de produção e ontologização do “diferente/outro” e a violência epistemológica que apenas nos autoriza a falar nos termos dos discursos que reiteram o caráter obrigatório dessas “essências eternas” binárias são as características do que Wittig designa como “pensamento straight”. Em segundo lugar, retoma a história posterior do conceito de straight. Refiro-me, por exemplo, ao uso que Preciado (2010, 2011) faz do termo, quando analisa as tecnologias de produção do “corpo straight”, “normal”. O straight traduz aqui o mecanismo pelo qual o corpo é enredado em uma malha biotecnopolítica que o “territorializa”, recortando-o e dividindo-o em zonas corporais precisas e controlando seus fluxos, segundo uma lógica que institui centros (anatômico-políticos) e funções para governar o relacionamento dessas zonas entre si, com Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 311 outros corpos e com o espaço (ecopolítico) majoritário e seus fluxos. O “Império dos Normais” se institui e reinstitui em uma dinâmica que entrelaça o controle do espaço corporal e de seus fluxos e o controle do espaço ecopolítico e de seus fluxos (discursivo-imagéticos, performativos e ciborguianos). A crítica das políticas do straight hair ativa, contra o pano de fundo dessas referências, o conceito de straight na boderland em que a sexopolítica e a raciopolítica formam uma malha de dispositivos discursivos, epistemológicos, perfomativos, corporais, estéticos e políticos imbricados na produção da “anormalidade normal” e da “normalidade anormal” de sujeitos de “pele negra” e das formas de apropriação de seus produtos no capitalismo contemporâneo. O straight é mobilizado aqui com toda a polissemia que a palavra carrega. Straigth não é apenas “reto”, “linear” e “sem mistura” – expressão da obsessão de “expurgar a ambivalência” (BAUMAN, 1999), a “mistura”, no estabelecimento de uma lógica “linear” de classificação social fundada na naturalização da diferença –, mas também “perfeito”. Essa última acepção refere-se justamente ao efeito de “sedução” próprio do que se tem chamado de “colonialidade do poder”, efeito que converte a imagem mistificada de quem é classificado como superior, straight, seus códigos performativos e corpos, em uma “aspiração internalizada” (CASTROGOMEZ, 2005) de quem é classificado como inelutavelmente (naturalmente) inferior. Em termos diretos, a crítica das políticas do straight hair chama a atenção para a produção de “identidades negras dobradas à branquidade” (SANTOS, 1997, p. 98) e à normalidade heterossocial. Um duplo “dobramento” para escapar da política de produção da “anormalidade normal” das “identidades negras” por um tornar-se “normal”, straight, que nunca consegue, de fato, superar o estigma das “zonas inabitáveis da vida social”, “povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito” (BUTLER, 1993, p. 3). O primeiro “dobramento” era já reconhecido por Fanon (2008, p. 94), que descrevia, em 1952, uma “carreira moral” do “homem negro” que começava com o sofrimento de “não ser branco” – portanto, sem-valor e não-humano, em uma economia ontológica dominada pela branquidade – e que culminava com a tentativa assimilacionista de “fazer-me branco”, para obrigar “o branco a reconhecer minha humanidade”. Essa tentativa está enredada em um pathos sisífico de repetição do fracasso, uma vez que o assimilacionista só pode aceder a uma “normalidade anormal”, “imperfeita” (não inteiramente straight), como “um preto mais clarinho”, título do artigo de Santos (1997). O “esquema epidérmico” (FANON, 2008) volta a investir o corpo do assimilacionista, independentemente do sucesso na importação de marcadores sociais, inclusive, corporais Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 312 (straight hair), da branquidade. E, pelo mesmo “esquema epidérmico”, ele é contaminado pelo fracasso geral da coletividade racializada como “negra”. Como diz Bauman (1999, p. 143) em relação à assimilação dos membros da “casta judaica” na Alemanha, “o sucesso da assimilação devia ser avaliado e considerado individualmente, mas o estigma de que deveria livrar a assimilação bem-sucedida era coletivo”. Além disso, como observa Bhabha (1998, p. 120), a estereotipização, em sua relação “agonística” com a ameaça do hibridismo, da heterogeneidade e da ambivalência, responde com “uma cadeia contínua e repetitiva de outros estereótipos”. A pedra rola novamente morro abaixo e a ascese sisífica do assimilacionista deve recomeçar, carregando o peso da percepção da cisão entre “máscaras brancas” e “pele negra” como uma síndrome psicopolítica que mistura orgulho, vergonha, embaraço, desconfiança, medo e ódio. O fracasso do assimilacionista é o sucesso do mecanismo de assimilação. Não somente em razão da despotência que acompanha o embaraço e o isolamento do assimilacionista. Mas porque o assimilacionista começa a participar dos mecanismos de majoração da branquidade. É esse o efeito do “paradoxo de sujeitos de cor destacados” que se produzem como agentes “enquanto reproduzem um centro eurocêntrico branco” (ALEXANDER, MOHANTY, 2010 p. 34). A branquidade não é apenas internalizada como aspiração pelo assimilacionista, mas produzida (criativamente) e reproduzida (mimeticamente) como modelos de sujeito, corpo, conhecimento, democracia e igualdade etc. exportáveis, assimiláveis ou consumíveis por outros sujeitos de “pele negra”, recriminados ou desautorizados como minorias multitudinais, isto é, não straight hair. Não se trata, contudo, apenas da branquidade, mas também de suas “dobras” sexopolíticas, bem como das “dobras” raciopolíticas da normalidade heterossocial. O corpo desviante da multidão queer, não “dobrado” à normalidade heterossocial, não pode ser straight hair, “dobrado à branquidade”, que é heterossocial. Analogamente, o corpo desviante da multidão sapphire é avesso à política assimilacionista da “boa imagem” ou da “representação respeitável” por meio da qual pessoas LGBT podem tentar se tornar “normais” (COLLING, 2015). Compreendendo essa malha complexa, a crítica das políticas do straight hair, pelo jogo de ressonância com o straight da crítica da sexopolítica heterossocial, se volta para as dinâmicas glocais (globais-locais) de normalização das políticas brancas, heterossociais, capitalistas, coloniais, enquanto o queer-sapphire se projeta como espaço de proliferação de diferentes estratégias anti-straight, na perspectiva de uma política de experimentação (não de representação). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 313 QUEER-SAPPHIRE: UMA POLÍTICA DE RESISTÊNCIA MULTITUDINAL DAS MARGENS “ABJETAS” Alexandre Marques: O termo queer já tem uma história como autodenominação de certos movimentos. De onde veio a ideia do sapphire? Abidemi da Silva: Sapphire é a caricata personagem negra do show de rádio Amos ‘n’ Andy da década de 1930, retratada como uma mulher negra agressiva e de trato difícil. Eu a descobri lendo Patricia Hill Collins. Essa figura aparece quando Collins (2016, p. 102, 103) discute a necessidade de desafiar, por meio das “autodefinições das mulheres negras”, as “imagens estereotipadas externamente definidas da condição feminina afro-americana” e “a dinâmica de poder que fundamenta o próprio processo de definição em si”. Nesse ínterim, ela alude ao ato de ridicularizar as mulheres afro-americanas assertivas ao denominá-las de Sapphire. Ela sugere, então, duas possíveis atitudes em face desse estereótipo: uma que convida as mulheres negras a recusarem o estereótipo, alterando seu comportamento para se tornarem tão “esterotipadamente femininas” (mansas e dóceis) como devem ser; outra que as aconselha a valorizarem sua assertividade e ousadia e a manejarem essas qualidades “não femininas” como atributos úteis ou funcionais do ponto de vista da “condição feminina afro-americana”, desafiando, assim, por tabela, pela direção de sua autoavaliação, o conteúdo do próprio estereótipo. Associei logo a segunda atitude à estratégia queer da “apropriação imprópria”, subversiva, da injúria. Imaginei, então, que, se os movimentos queer representavam “o transbordamento da própria identidade homossexual por suas margens” (PRECIADO, 2010, p. 51), sapphire poderia ser uma legenda da subversão das políticas do straight hair e do transbordamento das “identidades negras” assimilacionistas, “dobradas à branquidade”, o que exige evidentemente um transbordamento polissêmico do insulto para abranger toda uma gama de “imagens estereotipadas” que funcionam como “imagens controladoras” das subjetivações e incorporações das pessoas de “pele negra”. Queer-saphire emerge, assim, como o nome de uma política multitudinal resistente ao duplo “dobramento” straight hair. Alexandre Marques: Sapphire, como você sugere, remete a uma “imagem estereotipada” que incide sobre mulheres negras. Queer, por outro lado, é um insulto que incide sobre uma multidão de identidades deslocadas, que já não podem ser circunscritas por qualquer gramática straight, não interpeláveis, digamos, por qualquer nomeação diferente do próprio Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 314 insulto. Nesse sentido, parece-me que há uma assimetria entre as identidades acionadas pelos dois polos do queer-sapphire, a qual torna essa unidade política difícil de ser concebida em termos conceituais e práticos. Abidemi da Silva: Penso que essa unidade política, na sua abertura multitudinal, molecular, é possível justamente por sua ambivalência constitutiva. Queer-sapphire abre um espaço relacional para múltiplas intensidades (subjetividades, corpos, estéticas, eróticas, estratégias de sobrevivência, interfaces ciborguianas etc.) entre duas margens “abjetas” (BUTLER, 1993), que expõem falhas nas tecnologias de normalização. O que o queer-sapphire propõe é um jogo instável e ambivalente de desidentificações e identificações estratégicas, em que o queer interpela o sapphire e o sapphire interpela o queer e em que a avaliação de sua utilidade e as definições estratégicas concretas de seu uso, na resistência às formas de subjetivação e incorporação do straight hair, dependem dos diferentes contextos situados. A pergunta relevante não é, portanto, sobre a possível assimetria de posições de sujeitos queer e sapphire, mas sobre como o jogo político pluriestilos queer-sapphire – que não meramente repõe o espaço semântico-político de cada polo, mas, no jogo desse duplo espelho, produz um “in between” desterritorializado, multitudinal – pode contribuir, em cada contexto, para a luta contra o straight hair, pelo uso de posições de sujeitos “abjetos”. E há boas razões para convocar precisamente o insulto sapphire para essa composição bimarginal. O corpo racializado e sexualizado das mulheres negras continua a funcionar como tropo orgânico da “mulher como colônia” (DU PLESSIS, 1985, p. 46) e do “negro como colônia”, como “corpo de extração” (MBEMBE, 2018, p. 81) – uma metáfora transversal corporificada do sistema da colonialidade, da branquidade e da heterossocialidade conectadas. Achille Mbembe (2018, p. 19-20) fala da generalização global do “substantivo negro”, para além das fronteiras dos povos de origem africana – em uma racialização mais “fungível e solúvel”, que estende sempre mais as margens dos sujeitos suscetíveis à predação e à expropriação de seus possíveis –, como um “devir-negro do mundo”. Penso que talvez devêssemos falar de um “devir-negra do mundo”. No contexto do capitalismo contemporâneo, as mulheres negras e as mulheres de cor em geral, sobretudo, imigrantes, são a força de trabalho preferida do mercado de trabalho precarizado da empresa neoliberal ou do trabalho doméstico “externalizado” (HIRATA, KERGOAT, 2007) e um produto estratégico no mercado “globeleza” das “utopias sexuais imperiais” (ALEXANDER, 2005). Se “feminizado” se torna, nesse contexto, sinônimo de Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 315 “marginal” e “vulnerável”, do que pode ser “desmontado, remontado, explorado como uma força de trabalho de reserva”, de pessoas “vistas menos como trabalhadores/as do que como servos/as” (HARAWAY, 2009, p. 69), em um processo que implica também corpos identificados como masculinos, isso se deve a uma dinâmica que articula raça, classe e sexualidade. Nos Estados Unidos, escreve Haraway (Ibid., p. 71), “a pressão sobre as mulheres negras que conseguiram escapar ao serviço doméstico (mal) remunerado e que agora são, em grande número, empregadas em escritório ou similar tem grandes implicações para a pobreza persistente das pessoas negras com emprego”. As mulheres negras são identidades estratégicas na multiplicação dos contextos de concorrência que participa da expansão do neoliberalismo como lógica normativa, embora não sejam mencionadas na crítica “branca” da “nova razão do mundo” (DARDOT, LAVAL, 2016). As mulheres negras continuam a ser a sister outsider sobre a qual Audre Lorde (2009), a grande “poeta lésbica feminista negra”, dizia, em 1980, ocupar a margem da margem, convertida em demasiado “outra” até mesmo para ser considerada como inteligível. Por outro lado, como lembra Haraway (2009, p. 88), “a sister outsider sugere a possibilidade da sobrevivência no mundo, não por causa de sua inocência, mas de sua habilidade de viver nas fronteiras”. “Para sobreviver na boca desse dragão que chamamos de américa”, registra Audre Lorde (2009, p. 41), “nós tivemos de aprender esta primeira e mais vital lição – nós não fomos feitas para sobreviver”. A segunda, talvez, seja aquela que Lorde sintetiza no final do texto de que foi extraída a citação anterior: “não é a diferença que nos imobiliza, mas o silêncio” (Ibid., p. 43). A sister outsider precisa falar, mas para fazê-lo ativa uma linguagem fronteiriça, entre diferentes zonas forasteiras (outsider), produzindo inversões, deslocamentos, distorções e significações novas que afetam os mitos fundadores da cultura colonial-moderna, capitalista, racista, heteronormativa, straight. Como os movimentos queer (COLLING, 2015; PRECIADO, 2010), a sister outsider que fala a partir da burst of light de “seu conhecimento inescapável”, “metabolizado e integrado” na fábrica de sua experiência cotidiana (LORDE, 2009, p. 140), parece ter uma inclinação política transversal. Talvez seja essa uma virtude das margens ou das zonas de fronteira “abjetas”. Sapphire é um dos insultos por meio dos quais se busca esconjurar essa potência da sister outsider, reinscrevê-la no silêncio e na impotência do medo de tornar-se visível para além da “despersonalização racista”, que a torna “altamente visível”, nos termos dos marcadores raciopolíticos sexualizados, e completamente invisível, em seus próprios termos (LORDE, 2009). A sapphirização é um dispositivo da raciopolítica sexualizada. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 316 Foucault (2014) inclui a histerização do corpo da mulher entre os quatro grandes dispositivos estratégicos de poder-saber no campo da sexualidade. Pela histerização, o corpo da mulher é qualificado e desqualificado (analisado) como saturado de sexualidade, integrado, como corpo patologizado, ao campo da medicalização (com suas disciplinas), posto a funcionar como corpo disciplinado da fecundidade regulada e da responsabilidade biológico-moral com os filhos e o espaço familiar. A “mãe nervosa” é a figura clássica da “mulher histérica”. Mas o que Foucault não compreende é que a produção da “mulher histérica” é um dispositivo de estereotipagem e controle da mulher branca. A sapphirização do corpo da mulher negra não participa da história da sexualidade de Foucault, que apenas reintroduz o racismo no contexto da biopolítica como dispositivo de acionamento do velho poder de soberania, do direito de vida e morte, uma condição para a sustentação coerente do poder de “fazer morrer” depois que a virada biopolítica orientou as tecnologias de poder-saber para o campo do “fazer viver e deixar morrer”, para a administração dos corpos e a gestão calculada da vida (Foucault, 1999). A sapphirização do corpo da mulher negra não participa da história da sexualidade de Foucault, porque ele considera o racismo e a sexualidade como cumprindo funções diferentes como dispositivos do biopoder, porque ignora os lugares produzidos por sua interação, lugares em que se acionam outros dispositivos de poder-saber-ser. A sapphirização é diferente da histerização. Sua figura clássica não é a “mãe nervosa”, mas a “mãe negra brava” ou “barraqueira”, que, segundo a mitologia representacional básica da sapphirização, é uma mulher falhada, destituída de qualidades maternais e femininas, que emascula os homens negros, usurpando seu papel de chefe da família, e, assim, impede a ascensão socioeconômica da família ou a desmembra, produzindo pessoas como eu, virtualmente também falhadas, porque criadas na “ausência do pai”. Pela sapphirização, o corpo da mulher negra é posto a funcionar como corpo disciplinado pela internalização da injúria racial generizada (o que a silencia no espaço público) e pela (auto)culpabilização pela subalternização social dos negros (o que a silencia no espaço doméstico e comunitário), enquanto é induzida a reinscrever-se nas visões do patriarcado branco das configurações straight (“perfeitas”) de família apenas para que a frustração a reconduza, mais uma vez, a reconhecer a própria inferioridade. A emergência de uma redefinição do trabalho como “feminizado”, em uma dinâmica em que se cruzam vetores capitalistas, raciopolíticos e sexopolíticos, tem como contrapartida uma reconfiguração do espaço doméstico caracterizada, dentre outras coisas, por “lares chefiados por mulheres”, pela “fuga dos homens”, pela “família nuclear reforçada (de forma Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 317 simulada)” e pela “violência doméstica intensificada” (às vezes até o extremo do feminicídio) (HARAWAY, 2009, p. 77). Se levarmos tal diagnóstico a sério, devemos considerar que a questão da sapphirização pode se tornar crucial para a economia simbólica, psicodinâmica e política, quando o próprio racismo se torna mais “fungível e solúvel”, segundo os termos de Mbembe, e a “feminização” subsume outros corpos-sujeitos além de mulheres, de acordo com Haraway. O “devir-negra” do mundo tende a transformar a sapphirização em uma relação estratégica transversal. A “apropriação imprópria” da injúria sapphire pelos sujeitos a que se dirige o insulto visa a erodir as próprias margens em que os sujeitos sapphire aparecem como “abjetos”. Essa “apropriação imprópria” articula-se não como “mímica colonial” (BHABHA, 1984), porque não é o “normal” que é mimetizado, mas o “anormal”, o “abjeto”. No entanto, como a “mímica colonial”, ela produz distorções no mecanismo de representação e significação dominantes e mobiliza uma economia do excesso. Como a “mímica colonial”, ao contrário do que sugere sua pergunta, ela não autoriza mais a reconhecer nenhuma identidade por trás da máscara. Na estratégia de “apropriação imprópria” da injúria sapphire, como acontece nos movimentos queer, não são sujeitos sexualizados-racializados impróprios que emergem em uma mimese falhada do straight, mas o straight hair é que é denunciado como impróprio como estratégia de sobrevivência para aqueles alocados nas margens “abjetas”. Trata-se, assim, de uma estratégia complexa em que o que se opõe ao straight hair não é o curly hair, uma identidade positiva que supostamente apareceria ao ser tirada a “máscara branca” sexualizada, mas o que Preciado (2010, 2011) apreende como uma identificação negativa, algo compreendido na ambivalência do jogo que se estabelece entre estratégias hiperidentitárias e pós-identitárias. Essa me parece uma das possíveis soluções para a dificuldade de enfrentar os limites do discurso da inversão manejado por parcela importante dos movimentos negros e pan-africanistas, através do uso da noção positivada (invertida) de “raça negra” como conceito norteador (APPIAH, 1997; MBEMBE, 2018). Se, como diz Bhabha (1984, p. 129), “apenas o homem branco pode representar sua autoestima”, o que nós, sujeitos das margens “abjetas”, podemos manejar para sobreviver, em um mundo em que não fomos feitos para sobreviver, são os recursos do próprio desvio que nos transforma em sujeitos sexualizados-racializados impróprios (até mesmo nos termos da “anormalidade normal”) e seu uso para marcar como impróprio e colapsar o mundo que nos marcou como impróprios. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 318 POR UMA POLÍTICA MULTITUDINAL DE IDENTIFICAÇÕES ESTRATÉGICAS ITINERANTES Alexandre Marques: Você disse recentemente que o conceito de “interseccionalidade” deveria ser expandido para compreender também a questão das “diferenças e variações intraindividuais”. Como essa perspectiva se relaciona com o que você tem chamado de política de “identificações estratégicas itinerantes”? Abidemi da Silva: Crenshaw (1991), quando elabora o conceito de “interseccionalidade”, está muito preocupada com a marginalização da identidade das mulheres de cor dentro dos discursos e estratégias de resistência do antirracismo e do feminismo. Crenshaw critica aquele gênero de discurso e prática política que pretende dar conta da identidade das mulheres de cor em uma gramática do tipo ou-ou, como se se tratasse ou de racismo ou de sexismo, ou ainda da possibilidade de tematizar isoladamente cada um deles e depois supor que a experiência das mulheres de cor corresponde a um lugar produzido por uma espécie de somatória entre ambos. Embora considere essa discussão fundamental, acredito que seria um ganho (teórico e prático) se deixássemos de observar apenas as diferenças intragrupais silenciadas pelas políticas dominantes de identidade do antirracismo e do feminismo e orientássemos nossa atenção igualmente para as diferenças e variações intraindividuais silenciadas pelo que Preciado (2010, 2011) tem criticado como uma “ontologização” das políticas de identidades. Essa perspectiva dialoga com a discussão de Bernard Lahire (2008) das variações e dissonâncias intraindividuais, relacionadas à pluralidade e à variação das influências socializadoras e dos contextos de prática, mas sem o lastro de determinismo estrutural de uma concepção que apenas é capaz de pensar o “singular plural” dos indivíduos como resultado de “dobramentos” do próprio exterior social heterogêneo. Penso, como Lahire (2008), em “relações de força interna e externa”. No entanto, concebo as variações intraindividuais não como sedimentos de disposições constituídas por socializações passadas, as quais são ativadas ou desativadas em contextos específicos de prática, mas como emergindo em “itinerações” (INGOLD, 2012, p. 38), que compreendem a produção de novas formas, improvisação, por sujeitos que se produzem sempre de novo como agentes ao “seguir os modos do mundo à medida que eles se desenrolam”. Considero a questão da dinâmica de produção de estratégias de resistência no contexto dessa discussão. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 319 Em uma entrevista de 1982, Foucault (2004, p. 267) enfatiza que sua colocação acerca da impossibilidade de exterioridade em relação ao poder quer dizer apenas que sempre “estamos, uns em relação aos outros, em uma situação estratégica”. Mas o que é uma situação estratégica senão um “modo do mundo” que se produz no cruzamento entre possíveis daqueles que se produzem de novo ao colocar-se em relação? Coisas, objetos, discursos, imagens, gestos, afetos, corpos, técnicas etc. são assumidos, fabricados de novo ou improvisados, produzindo as posições dos sujeitos “uns em relação aos outros”, potências e despotências, sujeições e liberdades, simetrias e assimetrias, maiorias e minorias. E situações estratégicas também se relacionam entre si, em diversas escalas e relações interescalares, no emaranhado de seus efeitos, de suas formas, de seus efeitos-sujeitos e suas linhas de devir. Relações de poder se produzem, se estendem, se alteram e se enredam, assim, ao longo de múltiplas linhas. Isso não quer dizer que não existam “lógicas”, tecnologias e dispositivos de poder transversais (molares). Mas estes estão também enredados em dinâmicas diferenciais, isto é, se ramificam de acordo com diferentes contextos situados, se sustentam e se modificam pelos fluxos que se produzem através das situações estratégicas e de seus “emaranhados criativos” (INGOLD, 2012). Quando falo em identificações estratégicas itinerantes, quero dizer que a resistência pode ser mais potente, se se puser de acordo com a situação, isto é, se imitar a aranha de Ingold (2012, p. 40), a qual deixa as linhas ao longo das quais vive conduzir “sua percepção e ação no mundo”. Um exemplo literário talvez nos ajude a compreender o significado disso e sua conexão com o problema das variações intraindividuais. Em Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie (2014), a protagonista do romance, Ifemelu, diz que se descobriu “negra” ao emigrar para os EUA. Depois, ela experimenta a grande mobilidade desse “lugar”, descrito pela palavra “negra”, que varia quando ela está entre estas ou aquelas pessoas, neste ou naquele lugar ou instituição, neste ou naquele momento ecocorpo-biográfico. Ifemelu não era “negra” antes de pisar em solo estadunidense e “ser negra”, ainda que não pudesse simplesmente descartar isso como um papel de bala, não era uma carteira de identidade que adquiriu junto com seu visto estadunidense. Era, antes, um “centro” móvel, instável e reversível, deslocado de acordo com as situações estratégicas. Por isso, para sobreviver, para resistir, para se posicionar, para ser, ela não podia se valer sempre das mesmas estratégias, da mesma “identidade” e das mesmas identificações (aproximações e afastamentos) com indivíduos e grupos. Ela precisava, frequentemente, improvisar, ao longo dos “emaranhados criativos” de sua itineração. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 320 O problema do “essencialismo estratégico” é tratar a molaridade (sexual, racial, classista, interseccional) sem considerar os resultados criados e criativos da pluralidade de situações estratégicas situadas, em que as relações de poder e as possibilidades de relações emancipatórias ou resistentes “se constelam de diferentes maneiras” (SANTOS, 2011). Independentemente de a “identidade essencializada” ser ou não mobilizada coletivamente como uma ficção, em uma estratégia “desconstrucionista” (spivakiana), o problema é a operação estratégica de categorias identitárias estáveis e unificadas, enquanto as situações não o são. O que Foucault (2004) diz a respeito das práticas de si baseadas na identidade serve também para os movimentos baseados em identidades: há sempre o risco de a identidade funcionar como uma matriz regulatória, deixando de ser um jogo útil, na sua relação com as dinâmicas de diferenciação e criação, e se tornar uma modalidade de governo de si e dos outros que gira em torno da pergunta “isso está de acordo com minha identidade?”. Ativada por movimentos sociais, essa pergunta se torna um dispositivo de controle das identificações de seus membros e uma matriz de exclusão, a partir de recortes normativos de seu sujeito político. É na esteira dessas reflexões que comecei a construir a noção de identificações estratégicas itinerantes. Esta é projetada no sentido de uma política do “antinarcismo das variações contínuas” ou de uma política da “proliferação de multiplicidades”, que age não por meio da fixação de fronteiras, nem de sua abolição imaginária, mas de sua imprecisão, contorção e fractalização (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 27-28), respondendo, como a aranha ingoldiana, aos fluxos produzidos nos fios das situações estratégicas. Essa política não é contrária à produção de “comuns” assumidos transversalmente por um ou vários movimentos. Essa dinâmica de “comunização” é necessária. No entanto, esses “comuns”, fundados na coprodução horizontalizada de regras para as atividades colocadas em comum ou para as relações entre sujeitos individuais ou coletivos em espaços compartilhados (DARDOT, LAVAL, 2017), devem ser suficientemente abertos, móveis e reversíveis para permitir a proliferação das identificações estratégicas, tanto individuais como coletivas. É uma política que deliberadamente deixa “pontas soltas” nas periferias dos movimentos e permite que Ifemelus se movam como “pontas soltas”, itinerantes, que fazem rizoma com mais de um movimento, arriscando outras identificações estratégicas. É uma aposta na fluidez, na permeabilidade e na solidariedade como formas de ser e resistir mais fortes do que as clausuras identitárias. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 321 ADICHIE, C. N. Americanah. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. ALEXANDER, M. J. Pedagogies of crossing: meditations on feminism, sexual politics, memory, and the sacred. Durham: Duke University, 2005. ALEXANDER, M. J., MOHANTY, C. T. Cartographies of knowledge and power: transnational feminism as radical praxis. In: SWARR, A. L., NAGAR, R. Critical transnational feminist práxis. Nova York: SUNY, 2010. p. 23-45 APPIAH, K. A. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. 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Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 323 RENOVANDO OS SABERES: PROPOSTAS DE CONSTRUÇÕES DO SABER/PODER/SER Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 324 ABRINDO CAMINHOS PARA A PEDAGOGIA ANTIRRACISTA Cíntia Lima1 RESUMO O presente artigo situa-se no campo dos estudos decoloniais, buscando compreender como a descolonização dos saberes pode contribuir para a pedagogia antirracista e consequentemente a formação docente. A valorização de uma cultura hegemônica no espaço escolar em detrimento dos povos não-europeus, contribuiu para a naturalização de estereótipos raciais e de sistemas de opressão. Nesse sentido, a função social do professor, isto é, seu compromisso com a sociedade requer uma formação pautada na multiculturalidade e em outras metodologias não convencionais. PALAVRAS-CHAVE: Educação Antirracista; Consciência Histórica; Decolonialidade. RESUMEM El presente artículo se sitúa en el campo de los estudios descoloniales, buscando comprender cómo la descolonización de los saberes puede contribuir a la pedagogía antirracista y consecuentemente la formación docente. La valorización de una cultura hegemónica en el espacio escolar en detrimento de los pueblos no europeos, contribuyó a la naturalización de estereotipos raciales y de sistemas de opresión. En este sentido, la función social del profesor, es decir, su compromiso con la sociedad requiere una formación pautada en la multiculturalidad y en otras metodologías no convencionales. PALAVRAS-CHAVE: Educación Antirracista; Consciencia Histórica; Descolonialidad. A CARNE MAIS BARATA DA ESCOLA... ...é a carne negra, não cantou diretamente Elza Soares, mas deixou implícito ao compor sobre as desigualdades historicamente construídas entre brancos e povos não-brancos. Decerto que sua e tantas outras composições nos levam a refletir sobre a problemática do racismo no Brasil, e este trabalho tem a pretensão de ser uma entre tantas contribuições para a equidade social e racial. O ensino das questões étnico-raciais tem provocado, nos últimos anos, diversas produções e reflexões. A emergência dessa temática tem direcionado diversas políticas públicas que visam redimensionar a forma como as pessoas vivenciam suas identidades dentro e fora do ambiente escolar. É na sala de aula onde as principais identidades são construídas, desconstruídas e reconstruídas, sendo a relação ensino/aprendizagem de fundamental importância nesse processo dialógico. Apesar da implementação da Lei 10.639/2003 que inclui no currículo básico a História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, os desafios para uma educação antirracista ainda estão postos. Faz se necessário, a partir disso, refletir sobre a relação dos professores com a educação 1 Discente do curso de História na UNEB – Campus I. Email: cintialeema@gmail.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 325 antirracista. Esta problematização nos leva a compreender que não basta apenas a implementação da política pública, mas uma série de outros investimentos etnometodológicos e de conteúdo na busca por uma pedagogia que proporcione a equidade racial. Pensando no perfil étnico da sociedade brasileira, onde a população é majoritariamente negra e, consequentemente, esse fator se reflete na educação básica, a temática do pertencimento racial deveria estar presente na formação inicial e continuada dos professores. Contudo, conforme aponta Maria Nazaré Mota de Lima (2007, p. 15) “A formação de educadores/as na dimensão étnico-racial é recente no Brasil. Se, atualmente, as iniciativas, de modo geral, são descontínuas e pontuais, eram ainda mais nos anos 1990 e, em anos anteriores, quase ou totalmente ausentes”. Ainda que os contatos entre índios, negros, brancos e diversos outros grupos étnicos faça parte da construção do Brasil, a multiculturalidade pouco está presente nos processos de formação inicial e continuada dos professores, se constituindo, assim, um dilema da função docente na sociedade atual. Conforme aponta Lima as instituições escolares possuem uma responsabilidade social: A escola, forjada enquanto instituição social encarregada da produção e difusão de conhecimentos, precisaria incorporar essas discussões que já se travam na sociedade, para engendrar relações sociais mais justas, pautadas no respeito às diferenças, de raça e outros. Entendida enquanto espaço, por excelência, de disseminação de cultural, a instituição escolar tem uma responsabilidade social, em relação ao que pensa a sociedade a respeito de questões cruciais […] (LIMA, 2007, p. 78). Numa sociedade em que os problemas de equidade social, de raça e de gênero estão associados ao desenvolvimento da ciência, faz-se necessário pensar no docente enquanto um agente social, e portanto, refletir sobre sua importância na construção das culturas e identidades. José Luís Sanfelice escreve que “não é por outra razão, segundo meu entendimento, que se afirma que a ação pedagógica é sempre uma ação política e, para mim, uma ação política desenvolvida também em sala de aula” (SANFELICE, 2009, p. 90-91). Os estudos decoloniais revelam a ausência do conhecimento sobre a cultura africana e a valorização do eurocentrismo no contexto escolar. Portanto, os adventos do imperialismo sobrevivem até o tempo presente e estão enraizados nas instituições sociais, e isso inclui a escola, sobretudo sendo um espaço de disseminação de valores éticos e morais. Segundo Torres (2007, p. 131) a colonialidade “[...] se mantém viva em textos didáticos, nos critérios para o bom trabalho acadêmico, na cultura, no sentido comum, na auto-imagem dos povos, nas aspirações dos sujeitos e em muitos outros aspectos de nossa experiência moderna. Neste sentido, respiramos a colonialidade na modernidade cotidianamente”. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 326 De acordo com a problemática apresentada, procuramos repensar a função do professor no contexto atual, problematizando sua formação humano-social tendo como conceito norteador os estudos decoloniais (MIGNOLO, 2005). Para isso, iniciaremos o presente trabalho apontando de que forma a colonialidade persiste nos espaços do saber, para ressaltar as contribuições desse campo para a pedagogia antirracista, discorrendo sobre o impacto do imperialismo nas relações indetitárias e de que forma a escola tem contribuído para “vergonha de si”. Em seguida, apontaremos a importância do conceito de consciência histórica (RUSEN, 2010) no processo de práxis pedagógica na relação dialética de ensino/aprendizagem, tal qual postulou Marx ao dizer que quando o humano trabalha e transforma o objeto, também está transformando a si mesmo. Por fim, concluiremos abrindo caminhos para as mudanças na direção do trabalho docente a partir da vivencia em múltiplos saberes pedagógicos. COLONIALIDADE E GEOPOLÍTICA DO CONHECIMENTO Ao propor uma análise da inserção de negros e negras nas instituições de ensino, observamos que desde o século XVIII esse direito tem sido negado. Portanto, o ambiente escolar, reflexo de uma sociedade que se modernizava, tradicionalmente reservou aos descendentes de africanos um lugar minorizado nos ambientes de conhecimento. Maria Nazaré Mota Lima nos esclarece que a escola, sendo um espaço que difunde valores e ideias, desde sua raiz tem contribuído para lógica de uma cultura dominante, naturalizando a imagem do nãobranco como seres incapazes de pensar, ler, escrever e, sobretudo, incapazes de produzir saber (LIMA, 2007). Nesse sentido, Luís Fernandes de Oliveira Candau nos apresenta o conceito de geopolítica do conhecimento como uma forma de afirmação do mito da superioridade europeia: [...] entende-se geopolítica do conhecimento como a estratégia da modernidade europeia que afirmou suas teorias, seus conhecimentos e seus paradigmas como verdades universais e invisibilizou e silenciou os sujeitos que produzem conhecimentos “outros” (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 23). Esse conceito está inserido no campo dos estudos decoloniais, onde compreende-se que centenas de anos de colonização e imperialismo na periferia do capital produziram relações que sobrevivem até hoje, e estão refletidas no campo do saber, do ser e do poder. Ainda que tenha ocorrido a emancipação política, militar e administrativa desses povos, a colonialidade sobrevive subjetivamente nas relações identitárias. A colonialidade nos aponta que o legado da imposição colono/subalterno está presente no campo epistemológico, fato este que impossibilita compreender outras formas de conhecimento que fogem a lógica eurocêntrica. Para essa relação, Candau e Oliveira sinalizam Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 327 o conceito de racismo epistêmico, que seria “[...] a operação teórica que privilegiou a afirmação dos conhecimentos produzidos pelo ocidente como os únicos legítimos e com capacidade de acesso à universalidade e à verdade” (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 237). Assim, os discursos presentes na construção do conhecimento escolar estão pautados na lógica da colonialidade, portanto, ainda que a sociedade vivencie diferentes práticas culturais e outras formas de conceber o saber, é a cultura do colonizador que está presente na escola. As culturas minoritárias, conforma aponta Lima (2007) são transformadas em suplementos escolares, somente emergindo em períodos pontuais no currículo pedagógico. É necessário pensar na formação de professores pautada em novos etnometodos, ou seja, a práxis docente como instrumentos para mudança nesses currículos e, consequentemente mudança nessas abordagens. EDUCAÇÃO E AFRICANIDADES: A ALIENAÇÃO DO NEGRO Para refletir sobre os impactos da colonialidade na construção identitária, no que tange a subjetividade, é necessário pensar sobre a alienação do negro a partir da imposição de uma cultura dominante, isto é, a partir da hegemonização do eurocentrismo e consequentemente subalternização de outros povos. Francis Fanon (2008) escreve sobre a alienação do negro dentro da hierarquia racial, a partir da interiorização do racismo. Esses fatores estão presentes sobretudo na forma como o colonizado se relaciona com a própria cultura: Todo povo colonizado — isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural — toma posição diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana. Quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será. (FANON, 2008, p. 34). Para Fanon (2008), o caminho para desconstruir o complexo de inferioridade causado pelo racismo é a consciência de si, que se dá através da compreensão de si mesmo frente a história: “implica uma súbita tomada de consciência das realidades econômicas e sociais” (FANON, 2008, p. 28). A desalienação e emancipação do negro pode ser relacionada com o conceito de consciência histórica formulado por Jon Rusen (2010, p. 44): Somente quando a história deixa de ser aprendida como mera absorção de um bloco de conhecimentos positivos, e surgir diretamente da elaboração de respostas a perguntas que se façam ao acervo de conhecimentos acumulados, é que poderá ela ser apropriada produtivamente pelo aprendizado e se tornar fator de determinação cultural da vida prática humana. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 328 Portanto, a tomada de consciência é um instrumento para romper com a colonialidade, na medida em que é um elemento determinante na construção da identidade do indivíduo. A função do professor está inserida nessa dinâmica, a partir do momento em que rompe com o casulo hermético, conforme escreveu Sanfelice (2009, p. 93): “Como todo e qualquer docente sou também um agente social e minha maneira imediata de intervir no real é construindo o pedagógico concreto da Sala de Aula onde atuo”. Ao utilizar seu lugar de docente para o rompimento do “mascaramento desejado” (SANFELICE, 2009, p. 93) e “contribuir com desmascaramento mascaramento possível” (SANFELICE, 2009, p. 93), Sanfelice (2009) aproxima-se de Fanon (2008) quando este disserta sobre a necessidade de derrubar as máscaras brancas que desumanizam o negro, impondo uma relação de expropriação de valores e cultura ao consolidar o homem branco como humano e, os não-brancos como não-humanos. Assim, a pedagogia antirracista possui sua importância social na medida em que contribui para a desnatuzalização de estereótipos e a criticidade ao eurocentrismo presentes no ambiente escolar. O PROBLEMA NÃO É MAIS CONHECER O MUNDO, MAS TRANSFORMÁ-LO Antonio Gramsci apresenta uma importante concepção acerca da função da escola na formação de hábitos morais e disciplinares. Assim, a concepção gramsciana acreditava que o instrumento para transformação do mundo seriam a educação e cultura. Gramsci acreditava que a educação seria um caminho para o homem adquirir conhecimento e transformar sua realidade: Gramsci instituiu a educação e a escola como instrumento para superar as diferenças sociais e transformar a sociedade, sendo destinada a atender a toda população, sem distinção de classes; a manter um “vínculo estreito entre a escola e o trabalho, assim como entre a educação técnica e a educação humanista”; e formar cidadãos capazes de ser tornarem dirigentes independentemente do grupo social ao qual pertenciam e para atuarem de forma autônoma e crítica (MONASTA, 2010, p. 22). A partir da compreensão de que o poder e o conhecimento estão estabelecidos no ambiente escolar de forma desigual, é preciso pensar a prática docente como um instrumento para a reconstrução pedagógica pautando uma educação antirracista e descolonizadora. Reconhecendo a importância do papel de outros grupos na construção da nossa identidade, utilizando outros métodos que fogem ao padrão da história oficial, como a valorização da oralidade e da tradição. Rompendo, assim, com um discurso que foi construído ao longo da história para inferiorizar e criar categorias inferiores de seres humanos. Carlos Moore (2005) defende que o docente, ao trazer para a sala de aula os estudos sobre a Cultura Africana e AfroBrasileira, contribui para o deslocamento dessa estrutura geopolítica de poder. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 329 Conforme aponta Rusen (2010, p. 43) “o aprendizado histórico pode, portanto, ser compreendido como um processo mental de construção de sentido sobre a experiência do tempo através da narrativa histórica, na qual as competências para tal narrativa surgem e se desenvolvem.” Significa amadurecer e descentralizar o ponto de vista individual, aprendendo que o modo de pensar não é um único modo, mas um dentre muitos. Nesse sentido, o processo de ensino/aprendizagem pode ser feito de forma dialógica e potencialmente construtiva, com grandes indagações, problematizações e contribuições enriquecedoras. Para além de sua competência técnico-cientifica, é preciso que o professor quebre o isolamento do ensino tradicional e incorpore em sua formação novos saberes e novas metodologias. Deve ser uma prática de constante pesquisa: não somente a pesquisa dos bancos de dados e métodos historiográficos, mas sim portar-se na sala de aula sempre como um sujeito em busca de conhecimento. Ensinar é duvidar de si próprio, é questionar a si mesmo. A curiosidade precisa ser enxergada como método de ensino, pois ensinar requer os desafios do que é novo. NAVEGAR É PRECISO Ainda que a Lei Federal 10.639/03 seja um grande avanço para a equidade racial, o ensino da História e Cultura Africana e Afro-brasileira necessita articular outros fatores para a desnaturalização do racismo. Os estudos decoloniais apontam para necessidade das disputas epistêmicas no campo educacional, mas, acima disto, Candau e Oliveira afirmam que a questão “[...]educacional além de apresentarem caráter epistemológico e político, também se caracterizam como um “projeto de existência e de vida”. (CANDAU; OLIVEIRA, 2010, p. 37). Pois, conforme é possível perceber nos escritos de Fanon (2008), a colonialidade que se perpetua nos ambientes escolares produzem relações de subordinação do negro, e isto se estrutura em diversas esferas, desde a institucionalidade até a questão subjetiva, como o campo da psicologia. Assim, a consciência e valorização das contribuições dos grupos minorizados para a formação da nação é um dos mecanismos para a consciência histórica, conceito proposto por Rusen (2010) e que sinaliza para a tomada de consciência como ferramenta para emancipação. A função social do professor está justamente relacionada com seu compromisso social com a pedagogia antirracista, fato que este que requer não somente a assimilação de conteúdos tecnico-cientificos, mas justamente o rompimento do casulo apontado por Sanfelice (2009): a Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 330 ação docente é uma ação política. Cabe ao docente uma postura reflexiva e crítica, tal qual escreveu Gramsci (1985, p.8) que “[...] criação de uma nova camada intelectual consiste em elaborar criticamente a atividade intelectual que existe em cada um em determinado grau de desenvolvimento.” Ainda que exista grande resistência por parte dos docentes, os saberes "não formais", considerados pela colonialidade como não saberes, precisam ser incluídos no cotidiano do espaço escolar. Pois só assim a educação caminhará por uma perspectiva mais inclusiva, não no sentido de hegemonizar uma cultura, mas de compreender que as culturas são diversas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985. LIMA, Maria Nazaré Mota de. Identidades e Cultura Afro-Brasileira: a formação de professoras na escola e na universidade. 2007. 221 f. Tese (Doutorado em Letras e Línguistica) – Universidade Federal da Bahia, UFBA, Bahia, 2007. MONASTA, Attilio. Antonio Gramsci. Recife, PE: Massangana, 2010. MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de um concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (Orgs.) El giro decolonial. Reflexiones para uma diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Siglo del Hombre Editores, 2007. MOORE, Carlos Wedderburn. Novas bases para o ensino da história da África no Brasil. Brasília. In: BRASIL MEC/SECAD Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal n. 10.639/03. Brasília: MEC/SECAD, 2005. p. 133-166. MIGNOLO, Walter. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no horizonte conceitual da modernidade. In: LANDER, E. (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. 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Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 332 A EDUCAÇÃO POPULAR E A DECOLONIALIDADE NA CONSTRUÇÃO DE UMA OUTRA SOCIEDADE Noelia Rodrigues Pereira Rego1 RESUMO A Educação Popular se inventa, reinventa, e, assim, rompe com as práticas tradicionais-conservadoras por meio de uma insurgência epistemológica contra os modelos pré-fabricados de construção do conhecimento. Deste modo, não se trata de ‘produzir’, mas construir e reconstruir conhecimentos, bem como questionar saberes canonizados. Não seria negar estes últimos, mas sim a pressuposição à transformação, questionando as bases ideológicas de um saber construído e legitimado. É procurando decolonizar essas bases que este debate se insere na perspectiva de emancipação de epistemes subalternizadas e silenciadas historicamente. PALAVRAS-CHAVE: Educação Popular; Decolonialidade; Emancipação; Epistemes. RESUMEN La Educación Popular se inventa, reinventa, y, así, rompe con las prácticas tradicionales-conservadoras por medio de una insurgencia epistemológica contra los modelos prefabricados de construcción del conocimiento. De este modo, no se trata de 'producir', sino de construir y reconstruir conocimientos, así como cuestionar los saberes canonizados. No sería negar estos últimos, sino la presuposición a la transformación, cuestionando las bases ideológicas de un saber construido y legitimado. Es buscando decolonizar esas bases que este debate se inserta en la perspectiva de emancipación de epistemes subalternizadas y silenciadas históricamente. PALABRAS CLAVE: Educación Popular; Decolonialidad; La emancipación; Epistemas. INTRODUÇÃO Tudo começa com uma afirmação. A negação da negação é o segundo momento. Como se poderá negar o desprezo de si mesmo, senão iniciando pelo caminho para o autodescobrimento do próprio valor? A afirmação de uma “identidade” processual e reativa diante da própria Modernidade. As culturas pós-coloniais devem efetivamente se decolonizar, mas devem começar pela autovaloração(DUSSEL, 2016, p. 64). A Educação Popular se insere num debate que se estreita sobremaneira à agência da decolonialidade. É este tipo de pedagogia que chamamos de crítica, que contextualiza e problematiza processos de construção do conhecimento legitimados universalmente, e que aqui chamamos “mais do mesmo”. Padronizados que são, contribuíram e ainda contribuem enormemente para a involução de processos e projetos emancipatórios de sociedade. “Trata-se, em síntese, de uma construção alternativa à modernidade eurocêntrica, tanto no seu projeto de civilização quanto em suas propostas epistêmicas” (OLIVEIRA E CANDAU, 2010, p. 17). A elaboração intelectual do processo de modernidade produziu uma perspectiva de conhecimento e um modo de produzir conhecimento que demonstram o caráter do padrão mundial de poder: colonial/moderno, capitalista e eurocentrado. Essa perspectiva e modo concreto de produzir conhecimento se reconhecem como 1 Educadora Popular, membro do Coletivo de Educação Popular e Libertária - CEPL, doutora em Educação UNIRIO e membro do Núcleo de Educação de Jovens e Adultos - NEAd PUC-Rio. E-mail: noeliarpr@gmail.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 333 eurocentrismo. Eurocentrismo é, aqui, o nome de uma perspectiva de conhecimento cuja elaboração sistemática começou na Europa Ocidental antes de mediados do século XVII, ainda que algumas de suas raízes são sem dúvida mais velhas, ou mesmo antigas, e que nos séculos seguintes se tornou mundialmente hegemônica percorrendo o mesmo fluxo do domínio da Europa burguesa. Sua constituição ocorreu associada à específica secularização burguesa do pensamento europeu e à experiência e às necessidades do padrão mundial de poder capitalista, colonial/moderno, eurocentrado, estabelecido a partir da América (QUIJANO, 2005, p. 9). É partir do século XVI que o conceito de ocidentalismo entra em voga e com ele toda a legitimação para se dominar e explorar os ‘sem-alma’, ‘sem religião’, ‘sem cultura’, ‘sem língua’, e, portanto, ‘sem história’. É com base neste mundo moderno/colonial que irão se configurar as teorias evolucionistas de homem e a obrigação de seguir este modelo único de ‘humano’. Esse primeiro grande discurso que inventa, classifica e subalterniza o outro é também a primeira fronteira do nascente sistema mundo moderno/colonial. Do ponto de vista político-filosófico essa fronteira é estabelecida pelo princípio da "pureza de sangue" na península ibérica - que estabeleceu classificações e hierarquizações entre cristãos, mouros e judeus - e pelos debates teológicos da Escola de Salamanca em torno dos "direitos dos povos", que definiu a posição de indígenas e africanos na escala humana (Dussel, 1994). Esse primeiro grande discurso que impôs as primeiras diferenças coloniais no sistema mundo moderno/colonial passa, posteriormente, por sucessivas transformações, tais como o racismo científico do século XIX, a invenção do oriental, a atual islamofobia etc. (GROSFOGUEL; COSTA, 2016, p. 18). Dentro desta perspectiva, não há que se ir muito longe para reconhecermos em linhas gerais o epistemicídio2(SANTOS, 2010) e (CARNEIRO, 2005) e o racismo epistêmico3, como um projeto de sociedade. O século XX nos mostra dentro de centros de produção e elaboração do conhecimento, formas de subalternização positivistas e eugenistas bem firmadas: “com efeito, foi neste contexto demográfico que se desenvolveu um padrão de estética social, em cuja escala de valores a cor escura ocupa, por assim dizer, o pólo negativo. Quando, se prevalecessem aí critérios sociais não heteronômicos, o contrário é que deveria ter acontecido” (RAMOS, 1995, p. 226). 2 Boaventura de Souza Santos desenvolveu o conceito de Epistemicídio, que é um movimento que trata de aniquilar qualquer sabedoria de povos considerados aquém de demais civilizações, no caso os europeus, frente aos povos indígenas e africanos, por exemplo. Seria assim um genocídio de suas epistemes, de suas práticas, de suas místicas, de seus costumes, visando à imposição da história única, de um saber não-plural, mas ancorado em bases europeias de sustentação e difusão. Essencialmente racista e classista, por assim dizer. No Brasil, a maior referência no assunto é a filósofa Sueli Carneiro, que em sua tese de doutoramento pela Universidade de São Paulo, em 2005, afirma que o epistemicídio é um “fenômeno que ocorre pelo rebaixamento da auto-estima que o racismo e a discriminação provocam no cotidiano escolar; pela negação aos negros da condição de sujeitos de conhecimento, por meio da desvalorização, negação ou ocultamento das contribuições do Continente Africano e da diáspora africana ao patrimônio cultural da humanidade; pela imposição do embranquecimento cultural e pela produção do fracasso e evasão escolar. A esses processos denominamos epistemicídio”. 3 Para o aprofundamento deste conceito, ver mais em: GROSFOGUEL, Ramón. Racismo Epistêmico, Islamofobia Epistêmica e Ciências Sociais Coloniais. Tabula Rasa [online]. 2011, n.14, pp.341-355. ISSN 1794-2489. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 334 A noção de progresso em diferentes áreas das ciências, que alguns autores nos mostram, vai nos levar a entender quão grande era a dominação europeia em seus vários quadros de atuação, em que a perspectiva evolucionista de sociedade previa que os “povos selvagens” poderiam (alguns somente) chegar um dia a patamares de evolução tal qual a Europa já havia atingido. Como exemplos, temos Hegel que afirmava que a África não possuía história, e o inglês Herbert Spencer, apontado como o fundador do racismo científico, quando classificou os povos entre superiores e inferiores, estando indianos e indígenas na segunda posição e europeus na primeira. Já no Brasil, tiveram ressonância as ideias do médico Raimundo Nina Rodrigues, com sua interpretação do evolucionismo social, que por meio de seu racismo científico, inferiorizava e negava a cultura indígena e africana. Essa hegemonia da episteme moderna irá adentrar em todos os acessos possíveis da sociedade, sobretudo na política, na economia, nas relações e, principalmente, na educação. Como nos reforça Muryatan Barbosa, Nestas perspectivas francamente eurocêntricas, as sociedades e os povos “prémodernos” ou “arcaicos” deveriam ser estudados como estágios de um caminho civilizacional único, cujo ápice seria a Europa Ocidental. Assim, pois, o passado destas sociedades deveria ser um exemplo inicial deste processo evolutivo. Em todos os casos citados, se reproduz, portanto, a crença na excepcionalidade européia, definida de diversas formas. Desde uma compreensão econômico–social (o capitalismo); culturalista (modernidade, cultura greco-romana); religiosa (judaicocristã); racial (“branca”), etc. (2008, p. 48). Mas quem eram esses ditos “selvagens, primitivos”? A resposta a esta pergunta não pode ser feita somente no passado, isto porque este tipo de ideologia ainda está muito presente nas relações sociais e nas instituições. Assim: “quem são esses ditos ‘selvagens, primitivos’?” Seria este o ponto de partida para as nossas análises neste artigo, quando estaria mais correto e honesto o esmiuçar do termo em conjunto com sua atualidade. A começar porque a “epistemologia eurocêntrica ocidental dominante, não admite nenhuma outra epistemologia como espaço de produção de pensamento crítico nem científico” (GROSFOGUEL, 2007, p. 35), o que resulta como uma das formas de manutenção de históricos privilégios de determinadas classes e raças sobre outras. DISCUSSÃO Sob a égide do progresso, a caminhada da “civilização” desde as cruzadas até a Guerra Fria e, sim, até os dias atuais, tem nos mostrado que é por outro viés que se opera esta ideia de ‘progresso’. Pautadas na exploração e apropriação de terras e seus povos, de sua biodiversidade Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 335 e de sua propriedade intelectual, por meio da escravidão, matanças e genocídios, o que vemos nestas construções ideológicas de progresso são verdadeiras barbáries pouco midiatizadas pelos grandes equipamentos de comunicação e organismos internacionais e muito contadas pelos viéses de uma minoria, sobretudo hegemônica e branca, de forma a descartar assim a “perspectiva da maioria das pessoas do planeta cujas vidas foram declaradas dispensáveis, cuja dignidade foi humilhada, cujos corpos foram usados como força de trabalho”(MIGNOLO, 2003, p. 296) como meio de alimentar a economia do capital e manter privilégios. Como Guerreiro Ramos (1995) bem observa, Para garantir a espoliação, a minoria dominante de origem européia recorria não somente à força, à violência, mas a um sistema de pseudojustificações, de estereótipos, ou a processos de domesticação psicológica. A afirmação dogmática da excelência da brancura ou a degradação estética da cor negra era um dos suportes psicológicos da espoliação (p. 220). Pensar enquanto povo subalternizado, sobretudo as populações latino-americanas e africanas, que foram e são historicamente silenciadas em toda a sua estrutura social é romper e desafiar discursos e estratégias que desqualificam e apontam carências no lugar de possibilidades e potências. É perceber ainda que os saberes da rua e dos povos tradicionais podem e devem sim ser levados em consideração neste processo, de forma a entrar no currículo das escolas. Por sua vez, a academia deve tornar-se definitivamente um amplo espaço e palco para esse debate, concatenando, diria eu, epistemes-outras, de forma a desvelar pouco a pouco o histórico de preconceitos e estereótipos e demais violências físicas e simbólicas que nossa ancestralidade oprimida experimentou. Dentro desta conjuntura – que constata a escola como ferramenta de dominação por excelência, mesmo sendo concebida para ser uma esfera pública democrática, na qual x professor deveria atuar como agente transformador – um modelo decolonial de pensamento se apresenta. De forma a construir uma nova base epistemológica apresentando alternativas à colonização ocidental e desafiando as bases de uma estrutura de poder consolidada, nasce no final da década de 1990 o grupo de estudos Modernidade/Colonialidade (M/C). Formado e constituído por intelectuais latino-americanos de diferentes áreas do saber, uma das principais contribuições do grupo é sem dúvida a tentativa de desmantelamento dos discursos hegemônicos coloniais europeus até então uníssonos, com o objetivo de de/descolonizar pensamentos e práticas de subalternidade. Dito de outra forma: “o postulado principal do grupo é o seguinte: "a colonialidade é constitutiva da modernidade, e não derivada" (MIGNOLO, 2005, p. 75). Ou seja, modernidade e colonialidade são duas faces da mesma moeda. Assim, “graças à colonialidade, a Europa pode produzir as ciências humanas como modelo único, Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 336 universal e objetivo na produção de conhecimentos, além de deserdar todas as epistemologias da periferia do ocidente (OLIVEIRA E CANDAU, 2010, p. 17). A trajetória do Grupo de Pesquisa vem marcada por rupturas com tantos outros teóricos e grupos de semelhante base teórica, mas que não tinham a América Latina como elemento principal, que é o mote que suleia a configuração do Grupo. É precisamente em 1998 que saem do Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos alguns descontentes com os rumos que vinham tomando. Essas divergências teóricas foram comentadas por Grosfoguel, um dos que romperam com este grupo e que mais tarde constituíram o M/C como o entendemos hoje. [o]s latino-americanistas deram preferência epistemológica ao que chamaram os “quatro cavaleiros do Apocalipse”, ou seja, a Foucault, Derrida, Gramsci e Guha. Entre estes quatro, contam-se três pensadores eurocêntricos, fazendo dois deles (Derrida e Foucault) parte do cânone pós-estruturalista/pós-moderno ocidental. Apenas um, Rinajit Guha, é um pensador que pensa a partir do Sul. Ao preferirem pensadores ocidentais como principal instrumento teórico traíram o seu objetivo de produzir estudos subalternos. (...). Entre as muitas razões que conduziram à desagregação do Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos, uma delas foi a que veio opor os que consideravam a subalternidade uma crítica pós-moderna (o que representa uma crítica eurocêntrica ao eurocentrismo) àqueles que a viam como uma crítica descolonial (o que representa uma crítica do eurocentrismo por parte dos saberes silenciados e subalternizados). Para todos nós que tomamos o partido da crítica descolonial, o diálogo com o Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos tornou evidente a necessidade de transcender epistemologicamente – ou seja, de descolonizar – a epistemologia e o cânone ocidentais (GROSFOGUEL, 2008, p. 116). Assim, é dentro do programa de investigação Modernidade/Colonialidade Latinoamericano que se questiona, de forma radical, desde as mais veladas e sutis formas de silenciamentos e opressão, até a construção de epistemes próprias. Um dos principais objetivos é justamente buscar a superação destas desqualificações e invisibilidades historicamente destinadas a grupos subalternizados e periferizados destes territórios. O colonialismo denota uma relação política e econômica, na qual a soberania de um povo está no poder de outro povo ou nação, o que constitui a referida nação em um império. Diferente desta idéia, a colonialidade se refere a um padrão de poder que emergiu como resultado do colonialismo moderno, mas em vez de estar limitado a uma relação formal de poder entre dois povos ou nações, se relaciona à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado capitalista mundial e da ideia de raça. (MALDONADOTORRES, 2007, p. 131). É inspiradora para esta caminhada a articulação dos referenciais da Educação Popular com os da Decolonialidade, cruzando por meio dessas experiências pedagógicas as heranças da colonialidade nos ‘territórios do sul’4. A EP assim se insere na genealogia do pensamento 4 Entendemos por “territórios do sul”, povos oprimidos de latinoamerica, do sul global, não deixando de fora, contudo, povos de África e Ásia, que também sofrem opressões dos povos “do norte”. Em outras palavras, o que se entende por sul, são povos fora da Europa e Estados Unidos que sofreram (e até hoje sofrem) as consequências das expansões capitalistas, que expropriou as riquezas materiais e aniquilou muitas das culturas dos povos do sul. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 337 crítico decolonial, enquanto prática e pesquisa social, ação e movimento, ligada a projetos de emancipação no fortalecimento de uma pedagogia decolonial em nosso continente, que é aquela que coloca em xeque a episteme europeia com seu ideal de branquitude, historicamente hegemônicos. Isto posto, pensamos que a Decolonialidade e a EP por si se referem a “transgredir, deslocar e incidir na negação ontológica, epistêmica e cosmogônico-espiritual que foi – e é – estratégia, fim e resultado do poder da colonialidade” (WALSH, 2009, p. 27). A colonialidade, portanto, é apenas um dos muitos efeitos da colonização e da modernidade. Assim, Colonialidade e Modernidade são pares pensados e não derivados um do outro, que apontam para um discurso de base hegemônica servil à ideia de dominação e progresso, legitimando formas de opressão (colonialidade), da negação de direitos e modos de ser, que tem nas instituições e na burocracia seu braço acordal. O racismo, o machismo, a fome são premissas deste modo de viver nesta sociedade (MIGNOLO, 2007), são suas consequências mais perversas, que tem na decolonialidade uma grande rival, que denuncia frequentemente e ferozmente estas formas permanentes de colonialidade, insurgindo-se contra elas. Por outro lado, lutar pela e com a decolonialidade não significa repelir os saberes europeus ou romantizar o passado ameríndio e africano, mas ter como ponto de partida a problematização da realidade opressora que historicamente vem se consolidando em paradigmas a serem seguidos. Neste sentido, insurgir-se, portanto, estaria atrelado ao desafio sutil de não apenas incluir, mas de intercambiar, transformar as estruturas epistêmicas até então consolidadas por meio de uma emancipação epistêmica. Portanto, não se trata de ‘sincretismo’ ou ‘hibridismo’, a questão é mais profunda do que parece, pois está na lógica de um “sangrento campo de batalha na longa história da subalternização colonial do conhecimento e da legitimação da diferença colonial” (MIGNOLO, 2003, p. 35). Assim, para o M/C não se trata apenas de substituir paradigmas, mas trazer “paradigmas outros”, que sim, têm muito envolvimento com os movimentos sociais. Trata-se de um trabalho de reflexão-ação coletiva em que seus membros, em sua totalidade, possuem alguma relação com movimentos sociais e militância política: A genealogia global do pensamento decolonial (realmente outra em relacão com a genealogia da teoria pós-colonial) até Mahatma Gandhi, W. E. B. Dubois, Juan Carlos Mariátegui, Amílcar Cabral, Aimé Césaire, Frantz Fanon, Fausto Reinaga, Vine Deloria Jr., Rigoberta Menchú, Gloria Anzaldúa, o movimento Sem Terras no Brasil, os zapatistas em Chiapas, os movimentos indígenas e afros na Bolívia, Equador e Colômbia, o Fórum Social Mundial e o Fórum Social das Américas. A genealogia do pensamento decolonial é planetária e não se limita a indivíduos, mas incorpora nos movimentos sociais (o qual nos remete aos movimentos sociais indígenas e afros) (MIGNOLO, 2008, p. 258). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 338 O projeto de decolonização requer o rompimento, pois não interessa neste caso somente a restituição ou reparação de conhecimentos, mas, sobretudo o desafio de se pensar a partir das margens, das periferias do saber, do poder e do ser (QUIJANO, 2005). Seria valorizar nossas epistemologias e recriá-las para que se legitimem também conhecimentos que estão localizados em seus interiores, nas margens, nas periferias, onde silenciados e desqualificados foram historicamente seus saberes e práticas. É dentro de uma aposta de superação e transposição à colonialidade nas pedagogias, que a Educação Popular se configura como um processo aberto e contínuo, não involuntário, tampouco finito e com apenas uma frente de atuação. Diferente disto a EP se contrapõe de maneira frontal aos processos de educação que tradicionalmente serviram para a formação de uma não-cidadania, num contexto de subalternização das classes, elegendo uns em detrimento de outrxs. Escolhendo quem serviria e quem seria servido à mesa. A Modernidade nasce realmente em 1492: essa é a nossa tese. Sua real superação (como subsuntion e não meramente como Aufhebung hegeliana) é a subsunção de seu caráter emancipador racional europeu transcendido como projeto mundial de libertação de sua Alteridade negada: a Trans-Modernidade (como novo projeto de libertação político, econômico, ecológico, erótico, pedagógico, religioso, etecetera) (DUSSEL, 2000, p. 50-51). Na esteira do processo de colonialidade, o que se trata, portanto é de um projeto epistêmico bem alinhavado e articulado em várias teias, que sobrevive bem até os nossos dias, e se torna a cada dia mais imperceptível do ponto de vista tangível, mas que cumpre seu papel perversamente velado. Eram assim o espanhol e o português na América dos séculos XVI ao XX, passando à França do início até meados deste mesmo século e deslocando o bastão para os “cuidados” dos EUA para continuar o legado epistêmico colonial em nossas terras, chegando ao que temos hoje. Enfrentando a colonialidade e contribuindo para a construção e ampliação de vias abertas de emancipação, o Grupo Modernidade/Colonialidade (Catherine Walsh, Ramón Grosfoguel, Santiago Castro-Gómez, Edgardo Lander, Arturo Escobar, Nelson MaldonadoTorres, Enrique Dussel, Walter Mignolo, Aníbal Quijano, dentre tantos outros) em suas trajetórias político-intelectuais,assim como também Paulo Freire e Fals Borda, são, como diz este último: sentipensantes, pois por meio de uma pedagogia radical crítica, denunciam a natureza colonialista das Américas em suas epistemologias. Por sentipensante, termo que Fals Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 339 Borda nos presenteia, entende-se “aquella persona que trata de combinar la mente con el corazón, para guiar la vida por el buen sendero y aguantar sus muchos tropiezos”5 (2003, p. 09). Estes intelectuais orgânicos sempre colocaram a importância de uma educação popular se firmar atuante no processo de resistência e tomada de poder, por exemplo. A des/decolonialidade se fundamenta neste processo quando se dá a tomada de atitude e visão de mundo e começa a se perceber o opressor não mais como caritativo-solidário, mas como usurpador de direitos, de vidas. O pensamento basilar de tais intelectuais é a própria libertação destas estruturas de dominação que promovem as intensas desigualdades sócio-culturaleconomico-geográficas. Pensamos assim que, apesar de não vivermos mais num regime colonial formalmente – o que não se quer dizer que não se viva e conviva com ele em sua forma ideológica, por meio de imposições e embargos políticos, econômicos e judiciários– a colonialidade está plenamente vivificada quando ela sobrevive nessas formas sutis de arranjo e rearranjo na sociedade, fabricando e moldando seres, por meio de uma falsa cidadania, por meio de uma falsa inclusão. É ainda, quando o que se chama aqui de colonizador começa por meio de seus privilégios a invisibilizar e destruir a imagem e o imaginário do outro, bem como seus sonhos e esperança, afirmando assim hegemonicamente sua visão de mundo e o que considera como passível de se tornar legítimo, prestigioso e abrangente. Assim, temos a escrita, a forma como se fala, os gestos, a “etiqueta”, o “certo” e o “errado”, o CEP, a cor, a sexualidade, e, por fim a estética para dar a tonalidade final a estes exemplos vivos de uma colonialidade cotidiana de “sucesso”. Por este meio, desencobrir o leito ideológico que produz uma cidadania abstrata se dá através de uma cultura de divergência e questionamento, que em nosso entender seria aquela que nos levaria a uma democracia de fato cidadã ou a uma cidadania de fato democrática. Enquanto isso, “por servir aos interesses tanto da dominação social como da exploração do trabalho baixo a hegemonia do capital, “a ‘racialização’ e a ‘capitalização’ das relações sociais do tal novo padrão do poder, e o ‘eurocentrismo’ do seu controle, são a mesma base de nossos atuais problemas de identidade, como ‘país’, ‘nação’e ‘Estado’” (WALSH, 2012, p. 07). Em suma, a decolonização enquanto processo “pode ser lido como contraponto e resposta à tendência histórica da divisão de trabalho no âmbito das ciências sociais (ALATAS, 2003), na qual o Sul Global fornece experiências, enquanto o Norte Global as teoriza e as aplica (CONNELL, 2012). Nesse sentido, é revelador que ao esforço de teorização no Brasil e na 5 Tradução minha: aquela pessoa que trata de combinar a mente com o coração, para guiar a vida pelo bom caminho e aguentar seus muitos tropeços. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 340 América Latina caibam os rótulos de “pensamento” e não “teoria” social e política” (BALLESTRIN, 2013, p. 108). Não parte, assim, tão somente das ideias, mas da prática, sobretudo. É decolonizar as teorias, as pedagogias, as epistemes, e desmascará-las enquanto racistas, sexistas, exploratórias. E a Educação Popular tem muito que contribuir neste cenário. Acreditamos que ela precisa estar presente não só nos espaços não-formais de educação, mas, em grande medida, nos territórios formais, onde o projeto histórico de uma educação tecnicista se perpetua com afinco em suas práticas e teorias, sobretudo por meio do currículo. A academia é prova cabal disso... Diante das reflexões fica evidente que a EP e a Decolonialidade estão muito próximas e atuam em bases comuns ao fazerem enfrentamentos e oferecerem resistência com conhecimentos dissidentes aos já consolidados, denunciando em seu bojo a exploração do capital, e ainda anunciando paradigmas, palavras e valores outros como: empatia, alteridade, autogestão, participação, coletividade, provocando desta forma a emersão de conhecimentos produzidos nas bases dos movimentos de povos e grupos subalternizados. Dentro desta esfera, é por meio da decolonização que se parte para o que chamo aqui de “pelejas pedagógicas” em prol de afirmação de existência, cultura e identidade, na busca e na luta por direitos junto a movimentos sociais, povos tradicionais e originários, LGBTQI’s, negrxs, mulheres, periféricxs e faveladxs. Seria assim o ‘pensamento crítico de fronteira’ que nos colocam Gloria Andalzúa e Cherrie Moraga (1981) para problematizarmos, questionarmos, perguntamos os porquês, estes que nos são tão negados nos processos pedagógicos formais de educação, por exemplo. Nesse viés, a escola e a academia estariam em consonância o tempo todo com outras instâncias da sociedade, para além de seus muros e de seus enclaves fortificados: físicos e pedagógicos. Cuando vives en la frontera la gente camina a través tuyo, el viento roba tu voz, (…) debes vivir sin fronteras, ser un cruce de camino. (Vivir en La Frontera - Gloria Alzandúa – 1987)6 ANTICONCLUINDO Conforme defende Mota Neto (2015), por exemplo, as “obras de Paulo Freire e Orlando Fals Borda são um antecedente ao debate da decolonialidade na América Latina e que a 6 Tradução minha: Quando você mora na fronteira as pessoas andam através de você, o vento rouba sua voz(...) você deve viver sem fronteiras sendo uma encruzilhada. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 341 constituição de uma pedagogia decolonial em nosso continente se fortalece com as contribuições pedagógicas, políticas, epistemológicas e sociológicas que estes autores forneceram para a educação popular” (p. 03). Ao lado de Paulo Freire, no Brasil, Lélia Gonzalez, com seu conceito de Amefricanidade e Guerreiro Ramos falando sobre a Patologia Social do “Branco” Brasileiro, já falavam desta temática, também. Entre todos estes, que antecederam aos estudos formais da decolonialidade, há estreitas ligações, quando ao nos debruçarmos sobre seus escritos encontramos insatisfações e anseios em comum, salientando demandas concretas, num próprio diálogo de saberes (Fals Borda) de Améfrica Ladina (Lélia Gonzalez); numa completa síntese cultural (Freire),num contexto endogenético de recuperação coletiva da história (Fals Borda), denunciando as históricas e contemporâneas espoliações (Guerreiro Ramos) que sofremos os povos de América e afrodiaspóricos. Cada qual em seu espaço-tempo-local, com suas demandas, questões e peculiaridades. Temos neste contexto ainda, Frantz Fanon (1979) e Aimé Césaire (2000), que embora não tivessem mencionado o termo decolonial, ou mesmo de/descolonização ou algo parecido, tampouco colocado a América Latina como centro de seus estudos, as obras de ambos os autores estão permeadas e intimamente imbricadas com as bases do pensamento crítico decolonial e suas lutas por emancipação, conforme nos coloca Ochy Curiel: Estos dos autores concibieron la descolonización no solo como una no dependencia entre metrópolis y colonias o entre países del norte y países del sur, sino como un desmontaje de las relaciones de poder y de concepciones del conocimiento que fomentan la reproducción de jerarquías raciales, geopolíticas y de imaginarios que fueron creadas en el mundo moderno/colonial7(2012, p. 4). Por fim, penso que nossa anticonclusão se dá sobretudo entendendo que estamos sempre em processo; inacabadxs, portanto, mas com braços fortes para as intensas disputas, de forma a colocar em xeque a geopolítica do conhecimento. É com essa ‘produção do conhecimento’, é com esse ‘padrão de poder’ institucionalizados e, portanto, legitimados pelo Estado, que precisamos nos confrontar. A DEcolonolialidade, em conjunto com as experiências pedagógicas de Educação Popular, estariam assim ressignificando as formas de existir de povos silenciados em inúmeros aspectos de sua condição humana. Restituindo sua condição de fala, portanto sua oralidade e história, seus corpos e culturas, enfim, sua subjetividade que lhes foi retirada ‘à fórceps’, estariam assim os dimensionando a novos horizontes e frentes, de forma a 7 Tradução minha: estes dois autores conceberam a descolonização não só como uma não dependência entre metrópoles e colônias ou entre países do norte e países do sul, senão como um desmonte das relações de poder e de concepções do conhecimento que fomentam a reprodução de hierarquias raciais, geopolíticas e de imaginários que foram criadas no mundo moderno/colonial. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 342 enfrentarem a colonialidade e a contribuírem para a construção e a ampliação de veias abertas de emancipação. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANZALDÚA, Gloria; MORAGA, Cherrie. This Bridge Called My Back: Writings by Radical Women of Color. Persephone Press, 1981. BALLESTRIN, Luciana. 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INTRODUÇÃO Este trabalho tem o intuito de estruturar uma abordagem teórica sobre o fenômeno dos Estados Multiculturais e seus desdobramentos dentro da teoria política do pós-guerra – 1945. Faço esta análise no sentido epistemológico, pois acredito que a teoria liberal universalista ocidental não deu conta dessas pluralidades, mas apenas aumentou as desigualdades frente à manutenção de uma elite econômica e hegemônica. Assim como as soluções advindas do Multiculturalismo, estudado pela academia no hemisfério Norte, não solucionam a questão. Portanto, este artigo apresenta a perspectiva teórica pós-colonial e decolonial como novos saberes capazes de lidar com a questão multicultural. No primeiro momento deste artigo buscamos diferenciar os conceitos de Multiculturalismo e Multicultural. Para tanto, apresentamos a descrição feita por Stuart Hall (2003, p.52), onde o autor define o Multicultural como termo qualificativo que descreve os traços sociais e os problemas de governabilidade encontrados em qualquer sociedade onde uma diversidade de comunidades tenta construir uma vida em comum ao mesmo tempo em que mantem algo de sua identidade original. Enquanto o termo Multiculturalismo se refere aos meios políticos e estratégicos usados para governar ou administrar os problemas ocasionados pela diversidade e multiplicidade características da sociedade Multicultural. No segundo 1 Doutorando do PPGCIS/PUC-Rio e Coordenador do pré-vestibular Educafro (Rocinha e Ilha do Governador). E-mail: felipebqc@gmail.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 346 momento deste trabalho, buscamos apresentar como as correntes do multiculturalismo, do pensamento pós e decolonial se articulam para dar conta das realidades multiculturais. Os estudos de Stuart McPhail Hall são de grande relevância quando abordamos este tema. Em seu capítulo “A Questão Multicultural”, do livro “Da Diáspora”, Stuart Hall, aponta que as sociedades multiculturais – Estados Unidos, Grã-Bretanha, Sri Lanka, África do Sul, etc. – são muitas, mas tem um ponto em comum: elas são heterogêneas. Neste sentido, elas se distinguem do Estado nação moderno, que se afirma sobre o pressuposto de valores universais que organizam uma sociedade cultural homogeneizada. É importante ressaltar que as sociedades Multiculturais não são uma novidade. Até mesmo antes da expansão europeia – século XV – a migração e os deslocamentos de pessoas têm constituído mais a regra do que a exceção, de modo que constroem sociedades culturalmente mistas. No entanto, é no período pós II Guerra Mundial, essa questão tem se intensificado e tomado novas formas (HALL, 2003). Na perspectiva de Céli Pinto (1997), a realidade multicultural representada a nós é resultado de implosões sucessivas de discursos que exigiam ter visibilidade – identidades dominadas, como: mulheres, negros, índios, etc. Essa realidade ocorre a partir de dois movimentos inseridos no pós-guerra. O primeiro se trata da implosão da tradição marxista essencialista – divisão e conflito de classes – através do surgimento de novos movimentos socais. O segundo está relacionado ao grande movimento populacional por sobrevivência – diásporas -, ao hemisfério norte. Em busca de uma alternativa que dialogue com essas novas sociedades - multiculturais - foram formuladas algumas correntes. No segundo momento deste artigo, buscamos apresentar uma breve revisão bibliográfica sobre os estudos do Multiculturalismo. Em seguida serão mobilizadas teorias de autores pós-coloniais, tais como o hibridismo de Homi Bhabha e Stuart Hall e por fim o pensamento decolonial da teoria de interculturalidad epistemica apresentada por Catherine Walsh. MULTICULTURALISMO Em uma perspectiva da ciência política, Thamy Pogrebinschi e João Feres (2010) assinalam que o Multiculturalismo vem como alternativa as correntes do liberalismo comunitarista, igualitário e libertário. Para os autores a palavra Multiculturalismo pode em um primeiro momento ser percebida como a coexistência em sociedades complexas com diversas Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 347 culturas que não se reduzem a uma unidade. No entanto, no que tange o pensamento político o conceito vai além porque diz respeito ao modus operandi das instituições politicas frente às diversidades do Estado Multicultural. Os autores apontam que nos regimes liberais democráticos este problema não é raro, e é frequentemente levado para linguagem dos direitos. De modo que se trata da questão do direito à diferença cultural e também de direitos específicos para um delimitado grupo (FERES e POGREBINSCHI, 2010, p. 91). O que a visão destes cientistas políticos demonstrou até agora é que a teoria política busca apontar como as instituições têm feito para estruturar e legitimar as demandas multiculturais. Dessa forma, muitas vezes os grupos minoritários procuram na linguagem jurídica lutar por seus direitos que até então eram suprimidos pelo Estado e pela elite dominante. Em relação a estes grupos minoritários que procuram a igualdade, Pogrebinschi e Feres (2010, p.92) sugerem que esta demanda é fruto do desenvolvimento da cidadania moderna. O teórico do multiculturalismo, Will Kymlicka, denomina como grupos minoritários aqueles que rejeitam a ideia de uma cultura nacional comum, ou que estão integrados, mas procuram por direitos diferenciados. Como exemplo desses grupos que têm o intuito de se manter como sociedades distintas observam-se os catalães, bascos, quebequenses e grupos indígenas que querem manter seu modo de vida a partir de garantias territoriais e autogoverno. Além desses há também o grupo dos que aceitam a integração nacional, porém para que isto ocorra eles têm que ter direitos especiais, como a comunidade LGBT; e as minorias religiosas. Contudo, esta agenda primária da rejeição à integração na sociedade mais ampla perdeu lugar e “aos poucos a agenda dos grupos que aceitam a integração na sociedade mais ampla, ou mesmo almejam, foi se tornando dominante” (FERES e POGREBINSCHI, 2010, p.94). A ponto de gerar uma aproximação entre o Multiculturalismo e o Liberalismo, em que o primeiro reforma o segundo conceito. Esta agenda se torna dominante porque os grupos minoritários – LGBT, negros, imigrantes – não buscam criar uma nova sociedade, mas ter acesso aos direitos dentro da democracia liberal. E mesmo no caso das minorias nacionais, a teoria do multiculturalismo de Will Kymlicka defende o autogoverno desde que este seja fundamentado em um constitucionalismo liberal de proteção aos direitos e autonomia individual. Os cientistas políticos lembram que a teoria política defendida pelo filosofo Kymlicka se encaixa melhor no contexto em que ele está inserido, nesse caso, na análise dos movimentos sociais e políticas públicas canadenses. E questionam o leitor se esta análise seria plausível no Brasil ou em outras partes do mundo. A resposta oferecida por João Feres e Thamy Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 348 Pogrebinschi, é de que sim e não, tendo em vista que o país também é formado por diversos grupos étnicos e que diante deste fato a consolidação de uma democracia liberal traz questões parecidas com as apresentadas no hemisfério norte. Por outro lado, marcar como cultural essas diferenças é uma base conceitual imprecisa. Um exemplo dado pelos autores é o dos negros no Brasil. Apesar de alguns terem identidade etnicizada, a maior parte não é, mas nem por isso deixam de sofrer discriminação racial. Para os autores o problema do multiculturalismo não deve ser reduzido aos conflitos de teor cultural. De modo que este conceito não parece ser o melhor meio de lidar com os problemas da sociedade. Em outra perspectiva, antropóloga Paula Montero, em sua obra “Multiculturalismo, Identidades Discursivas e Espaço Público”, sugere que o Multiculturalismo tem o objetivo de contrapor o relativismo cultural e também este depende de algumas singularidades dos Estadosnação e suas delimitações na esfera pública. De acordo com a autora a questão da diferença irá reivindicar novas interpretações de gerenciamento e de distribuição do espaço público. Para ilustrar a questão das identidades, Monteiro utiliza o trabalho de José Maurício Arruti (2005), o qual descreve a divisão de uma mesma comunidade rural em dois grupos identitários: índios Xocós e os quilombolas Mocambo. De acordo com esse estudo essas identidades foram criadas em uma conjuntura de luta pela terra entre camponeses pobres do nordeste e fazendeiros poderosos. Neste exemplo há uma usurpação dos direitos étnicos, que deveriam ser direitos econômicos gerados pela desigualdade já que ambos construíram identidades que não eram herdadas. Ou seja, uma forma destas pessoas acessarem o Estado. Na perspectiva de Montero (2012), os casos elucidados são exemplo da etnicidade como conceito construído no intuito da obtenção de direitos específicos – direito à terra. A autora nomeou esta construção como “juridificação” das identidades. De modo que o fenômeno das identidades sai do plano da cultura e entra no campo da política. No entanto, a autora aponta para duas dificuldades: a primeira é que os grupos não estão sempre dispostos a se comportar de acordo com o figurino identitário; e a segunda, a falta de sentimento de pertencimento a um determinado grupo. Céli Pinto, em sua obra “Para além da tolerância” também fala sobre as novas identidades que surgem frente ao conceito iluminista de universalidade, e aponta os cuidados que os cientistas sociais devem ter ao analisar estes processos de fragmentação. De acordo com a autora, a multiplicação de identidades possibilita que a ideia do particular ganhe voz diante ao Universal. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 349 Céli Pinto menciona que alguns discursos indicam que essa ameaça ao Universal pode afetar os direitos universais alcançados pela humanidade, já que não haveria mais uma máxima a ser respeitada. No entanto, a autora sugere que a ideia do Universal não aceita o outro, pelo contrário, este conceito é excludente. Para tanto, Pinto cita Laclau (PINTO, 1997 apud LACLAU, 1996, p.69) “valores universalista de Occidente son el coto privilegiado de sus grupos dominantes tradicionais”. Esses pontos na obra da autora demonstram o debate entre o Universal e o Particular. Para Céli Pinto, a questão da universalidade dos diretos tem importância central no que tange a discussão da multiplicidade de identidades e a luta pelo direito destas pluralidades se expressarem plenamente (PINTO, 1997, pp.10-11). Entretanto, Céli Pinto, não deixa de alertar para os problemas advindos dessa fragmentação, por exemplo, a hiper-representação de alguns grupos, que nada contribui para aumentar a democracia. O que tanto Pinto como Ernesto Laclau tentam mostrar é que os termos universal e particular são relacionais e vazios. Ao defender que o universal em um momento pode ter sido uma reivindicação de uma minoria. Tornar a demanda das minorias como demandas de outros grupos é apontado como um caminho para combater a exclusão Portanto, ao levar adiante esta questão a autora menciona alguns cuidados que ela considera pertinentes aos cientistas sociais que queiram abordar o tema. Para Pinto, quem for estudar o tema deve ter cuidado para não cair em dois tipos de interpretação muito comuns. A primeira é que o fato desse aumento de identidades não é um indicador de que esse movimento tenda a se aprofundar, só uma análise minuciosa poderia dar conta disso. E o segundo é que a autora acredita que devemos nos livrar de uma euforia ingênua quanto a proliferação das diferenças, e que devemos estuda-las ao invés de festeja-las. Até aqui foi apresentada uma breve revisão bibliográfica quanto ao tema do Multiculturalismo. Nesta seção foram levantados alguns autores que abordam por perspectivas diferentes como surgiu este conceito e como vem se desenvolvendo. Acredito que a solução do Multiculturalismo não é suficiente para dar conta do fenômeno Multicultural, tendo em vista que ainda se aproxima muito do liberalismo que manteve essas identidades excluídas por trás da máscara dos preceitos da universalidade. Portanto, na próxima seção busco alguns autores que tratam dessa questão pós-colonial. PÓS-COLONIALISMO E DECOLONIALISMO Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 350 O período da descolonização iniciado pelo pós Segunda Guerra Mundial e o momento de derrocada dos imperialismos europeus marcaram a descolonização deu início as realidades pós-coloniais (FERES e POGREBINSCHI, 2010, p.104). A consolidação dos estudos póscoloniais se deu por volta dos anos 1980 – o livro, “Orientalismo”, de Edward Said, publicado em 1978, foi considerado a obra inaugural desses estudos. A escola pós-colonial diverge da teoria mainstream, pelo fato da segunda apresentar como universal um ponto de vista ocidental. A crítica pós-colonial também se diferencia do Multiculturalismo, pois, este apresenta tendência liberal e mesmo que aborde a diferença cultural, está ainda se limita a paradigmas ocidentais (FERES. POGREBINSCHI, 2010, p.105). Portanto, os estudos pós-coloniais trazem uma nova perspectiva para trabalhar com a questão Multicultural. Para tanto, abordo nesta seção o conceito de hibridismo criado pelo indiano Homi Bhabha, e em seguida farei uma abordagem do giro decolonial a partir do pensamento de Catherine Walsh sobre interculturalidad. Homi Bhabha é crítico da escola de pensamento multiculturalista e também se posiciona contra a noção de diversidade cultural por considera-la essencialista. Tendo em vista que toma como preexistentes os costumes e as práticas culturais demonstrados como “variantes exóticas da existência humana em um espaço anódino, destituído de relações de poder” (BHABHA, 1988). Para Bhabha, é importante analisar a ambivalência encontrada em toda situação de interpretação cultural, e que a produção de um significado entre dois sistemas culturais se dá através de um terceiro espaço – fuga do binarismo Black vs British. Sobre este espaço se dá o nome de “hibridismo” haveria uma contaminação entre identidades e significados diferentes – por exemplo, a relação entre colonizador e colonizado, nesta há uma mistura de atração e rejeição em que o colonizado que mescla atitudes de resistência e cumplicidade o que coloca em cheque a dominação colonial. E, portanto, não é possível chegar a uma pureza cultural. Stuart Hall seguindo as observações do indiano Bhabha escreve o ensaio “A questão Multicultural”, que posteriormente se tornou um capítulo do livro “Da Diáspora”. Para o autor jamaicano, a questão multicultural causa alguns efeitos transruptivos à noção de cultura, onde a oposição binária entre particularismo e universalismo derivada do Iluminismo tem uma forma específica de entendimento da cultura. Esses efeitos transruptivos ocorrem desde o fim do século XV com o início do projeto global do Ocidente. (HALL, 2003, p.73) De acordo com Hall, o processo da globalização traz as formações híbridas. Stuart Hall não define o hibridismo como uma população composta por uma mistura racial, mas como outra Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 351 expressão para lógica cultural da tradução. Para exemplificar as formas hibridizadas, o autor usa a Grã-Bretanha, ao mencionar o adolescente negro que é Dj, toca jungle music, mas torce para o Manchester United, ou o aluno muçulmano que usa calça jeans larga, como formas hibridizadas (HALL, 2003, p.76). Outro ponto importante analisado pelo autor sobre o fenômeno Multicultural é o terceiro efeito transruptivo, onde há o questionamento dos discursos dominantes da teoria política ocidental. De modo que o universalismo liberal, pós-iluminista, se torna menos universal a cada momento. O liberalismo apesar de não ser mais a cultura além das culturas, ainda é o particularismo que se universalizou com êxito, e se mantêm hegemônico – cidadania universal e neutralidade cultural nunca foram universalmente aplicados. E é neste sentido, que a questão multicultural foi a que conseguiu desmascarar seu disfarce contemporâneo (HALL, 2003, pp.76-77). A questão principal apresentada por Stuart Hall é o dilema entre as pretensões da diferença e da igualdade, ou mesmo o como serão reconhecidos o particular e o universal. O impacto reconfigurador causado pelos efeitos transruptivos do fenômeno Multicultural nos leva a fugir dos discursos e soluções prontas, para que busquemos algo novo. Para Hall (2003), a questão Multicultural aponta que a “diferença é essencial para definir a democracia como espaço heterogêneo”. Entretanto, não pode haver uma particularidade radical. De maneira que se construa uma “diversidade de novas esferas públicas nas quais todos os particulares serão transformados ao serem obrigados a negociar dentro de um horizonte mais amplo” (HALL, 2003, p.87). Em outras palavras, para o autor, é necessário que haja um espaço heterogêneo pluralístico no intuito que esta negociação retenha sua différance2. A perspectiva pós-colonial e seus desdobramentos se referem à independência, e emancipação de sociedades exploradas pelo imperialismo no contexto africano e asiático, no entanto, a inserção dos pensadores latino-americanos aconteceu incialmente pelo grupo LatinoAmericano dos Estudos Subalternos, este grupo foi desagregado em 1998 devido a divergências internas – entre elas Walter Mignolo, por exemplo, não acreditava que as teses dos estudos subalternos vindos da Ásia e da África não deveriam ser simplesmente assumidas no contexto latino americano, mas que era preciso uma crítica ao ocidentalismo que tivesse seu foco na América latina. Portanto, a ruptura por divergências teóricas deu lugar a outro, o Grupo Modernidade/Colonialidade (doravante grupo M/C) que teve como um de seus fundadores Walter Mignolo. O então novo grupo foi ganhando estrutura a partir de seminários e 2 Termo alcunhado por Jacques Derrida. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 352 publicações, tendo inclusive apoio CLACSO na realização de eventos. A partir do crescimento do M/C, nos anos 2000 o grupo ganhou adesão de novos componentes, como Catherine Walsh (BALLESTRIN, 2013). A contribuição da autora é importante para debatermos a questão multicultural no contexto da América Latina. Para tanto, faço uso da obra “El giro decolonial”, com ênfase no capítulo escrito por Walsh “Interculturalidad y colonidad del poder”. Neste trabalho a autora escreve sobre o conceito de “Interculturalidad” (doravante interculturalidade). Este conceito está ligado à geopolítica de espaço e lugar, desde a resistência dos negros e indígenas até a construção de projeto social, político, epistémico orientado para descolonização e a transformação. (WALSH, 2007, p.47). Segundo Walsh (2007, p.47), o conceito abordado significa mais do que uma simples inter-relação, busca construir um tipo de conhecimento; sociedade, diferente do paradigma criado pela colonização e pela modernidade, pensado através da práxis política. A interculturalidade apresentada pela autora se diferencia de outras teorias criadas pela academia que são apenas utilizadas para alguns objetos de estudo, pois aparece como um princípio ideológico advindo do movimento indígena equatoriano desde os anos 1990 – o objetivo da autora neste trabalho é integrar o pensamento indígena ao projeto participativo do pensamento crítico social do grupo M/C. Esta diferença também se dá porque o conceito é criado no Sul global e não segue o legado eurocêntrico nem mesmo as perspectivas da modernidade. Na década de 1990, os movimentos indígenas andinos – Equador e Bolívia – construíram uma política diferente que foi capaz de mudar a noção de Estado-nação. Tendo em vista que a hegemonia branca perdeu espaço ao mesmo tempo em que ganharam destaque como atores sociais e políticos, os povos indígenas. E nestes casos o conceito de interculturalidade foi questão principal do projeto político indígena, no intuito de mudar o poder colonial e imperialista. O principio da interculturalidade busca respeitar a diversidade dos povos indígenas e ao mesmo tempo procurar transformar as estruturas presentes em nível econômico, político e social. Para a Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador (CONAIE), A interculturalidade é o principio chave de uma nova democracia que se desenvolve como anticapitalista e anticolonizadora (CONAIE, 1997, pp.11-12). A CONAIE aponta a interculturalidade como prática central do Estado Plurinacional equatoriano – organização que “reconhece, respeita e promove a equidade e solidariedade entre todos os povos e nacionalidades existentes no Equador, à margem de suas diferenças históricas, Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 353 políticas e culturais” (CONAIE, 2003, p.2, tradução minha). De modo que este processo – interculturalidade – é ferramenta transformadora e contra hegemônica que representa uma ruptura epistémica com a realidade de dominação e exploração(WALSH, 2007, p.50). Walsh (2007, p.51) usa como exemplo deste projeto transformador a Universidad Intercultural de las nacionalidades y pueblos indígenas (UINPI). A UINPI parte em busca da construção intercultural de teoria, reflexão e prática com o intuito de compreender as diferentes realidades globais, nacionais e locais. De modo a trazer um conhecimento diferente da suposta universalidade do conhecimento defendida no ocidente. Segundo Chaterine Walsh é importante diferenciar o conceito de interculturaldiade do formulado pelo Multiculturalismo. Neste sentido, a autora defende que o primeiro oferece alternativas ao capitalismo, que traz em seu discurso o pensamento indígena e também de outros grupos subalternizados, enquanto o segundo tende a sustentar os interesses hegemônicos. Portanto, a interculturalidade “desde la perspectiva de la diferencia colonial, se introduce de entrada la dimension del poder, que generalmente es olvidada em las discusiones relativistas de la diferencia cultural” (ESCOBAR, 2003), o que a diferencia da orientação liberal da diversidade étnica apresentada pelo Multiculturalismo. O intuito do trabalho de Walsh e dos demais pensadores decoloniais e pós-coloniais apresentados até aqui foi de apresentar uma outra perspectiva, que alcance o espaço social político e epistémico. Estes espaços que antes eram negados ou cerceados pelas estruturas dominantes e colonizadoras. Deste modo, o que procurei abordar nesta seção foi trazer alternativas diferentes das apresentadas pela teoria mainstream que busquem dialogar com a questão Multicultural. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo teve como objetivo questionar e desenvolver uma concepção epistémica do fenômeno Multicultural que vem mudando sua forma convencional descrita pelo Estado-nação moderno. A implosão dos discursos identitários se intensificou no período pós Segunda Guerra Mundial. Essa mudança no status quo das sociedades edos Estados, não cabia mais na forma moderna liberal ocidental destas, e, portanto buscaram-se novas alternativas. Tendo em vista que o modelo liberal se tornava cada vez mais excludente, outras teorias tentaram superá-la. Para tanto, foi feita uma revisão bibliográfica de duas escolas que procuram ser uma alternativa – Multiculturalismo; Pós-colonialismo; e o giro decolonial. Dentre estas, Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 354 acredito que os autores pós-coloniais e decoloniais se aproximam mais de um diálogo, tendo em vista que o Multiculturalismo se aproximou da teoria liberal e não se esforçou em produzir uma política contra hegemônica. O multiculturalismo adotou estratégias no campo da noção da diversidade, no entanto, como foi debatido e desenvolvido por alguns autores mencionados anteriormente, ele não criou uma possibilidade fora do status quo. Pelo contrário muitas vezes utilizou da linguagem jurídica para que os novos grupos se adequassem ao Estado constitucional liberal e ao modo de vida capitalista. Os estudos pós-coloniais e decoloniais avançam nesta questão porque tentam quebrar esse paradigma liberal do Estado. Os estudos apresentados – conceito de hibridismo, efeitos transruptivos, e interculturalidade epistémica – mostram formas alternativas de sociedade, Estado e conhecimento que possam dialogar com a diversidade cultural em uma possibilidade contra hegemônica para além do capitalismo e dos princípios liberais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BALLESTRINS, Luciana. América Latina e o giro decolonial.Revista Brasileira de Ciência Política, n. 11. Brasília, mai-ago 2013, p. 89-117. BHABHA, Homi K. The Commitment to Theory.New Formations (5):5-23, 1988. CONAIE (2003). Políticas para el Plan de Gobierno Nacional. El mandato de la CONAIE. Quito: CONAIE. _______. (1997). Proyecto Político, Quito: CONAIE. _______. (1994). Proyecto Político, Quito: CONAIE. CONAIE-ICCI. (2003). Amawtay wasi. Casa de la sabiduría. Universidad intercultural de las nacionalidades y pueblos del Ecuador. Propuesta de camino sin camino. Quito: CONAIE-ICCI. Escobar, Arturo. (2003). Worlds and Knowledges Otherwise: The Latin America Modernity/Coloniality Research Program, Paper presented at the Third International Congress of Latinoamericanists in Europe, Amsterdam, July 3-6 FERES JÚNIOR, João; POGREBINSCHI, Thamy. Teoria Política Contemporânea: uma Introdução. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. HALL, Stuart. A Questão Multicultural. In: Hall, Stuart. Da Diáspora.Belo Horizonte: UFMG, 2003. MONTERO, Paula. Multiculturalismo, Identidades Discursivas e Espaço Público. Revista de Sociologia e Antropologia,v.2, n.4, p.81-101, 2012. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 355 PINTO, Céli. A democracia desafiada: presença dos direitos multiculturais.Porto Alegre: UFRGS, 1999. WALSH, Catherine. Interculturalidad y colonialidad del poder. Un pensamiento y posicionamiento “otro” desde la diferencia colônia. In: GOMEZ, Santiago Castro; GROSFOGUEL, Ramón (Orgs.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontifi cia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 356 DISPOSIÇÕES ATUAIS DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O TRATAMENTO DAS MINORIAS LINGUÍSTICAS Alan Silva das Virgens1 RESUMO Esta pesquisa concentra-se nos Direitos Linguísticos, campo de estudos que tem seu marco histórico pós II Guerra Mundial, e se fortalece com a criação da Organização das Nações Unidas abrangendo a defesa e promoção das línguas minoritárias, buscando materializar as ações de incentivo a estes grupos. Tratar-se-á das minorias linguísticas na ONU com base nos estudos de Edwards (2004), May (2005), Abreu (2016), Kangas e Philipson (2017) dentre outros. Comparando entre os principais documentos de defesa das minorias linguísticas da ONU e algumas normas contidas na Constituição Brasileira de 1988. PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos. Direitos Linguísticos. Minorias Linguísticas. ONU. Constituição. ABSTRACT This research focuses on Linguistic Rights, a field of study that has its historical framework after World War II, and is strengthened with the creation of the United Nations, covering the defense and promotion of minority languages, seeking to materialize the actions of incentive to these groups.The linguistic minorities in the UN will be treated based on studies of Edwards (2004), May (2005), Abreu (2016), Kangas & Philipson (2017), among others. Comparing between the main documents of defense of the linguistic minorities of the UN and some norms contained in the Constitution of Brazil 1988. KEY WORDS: Human rights. Linguistic Rights. Minority Languages. UN. Constitution. INTRODUÇÃO Esta pesquisa tem por intuito despertar o interesse em se fazer Políticas Linguísticas pelo viés dos Direitos Humanos. O fundamento base deste artigo se manifesta no período pós Segunda Guerra Mundial (1945 - 1970), quando a Organização das Nações Unidas – ONU passa a abraçar os direitos das Minorias Linguísticas como parte dos ordenados dos Direitos Humanos. O objeto desta pesquisa gira em torno das minorias linguísticas. Vale ressaltar que os direitos humanos garantidos pela ONU, que não possui valor legal, mas tem um papel inspirador, tratam de minorias igualitariamente, porém nesta pesquisa se faz um recorte metodológico por parte de seu objeto e se debruça nas minorias linguísticas. O conceito base de senso comum de minora que trazemos aqui é o mesmo de toda e qualquer minoria; uma abordagem qualitativa que não possui tanta proteção pelo Estado2. 1 Graduado em Letras Inglês, Mestrando em Letras pela (Universidade Federal de Sergipe - UFS), Alagoinhas/Ba, Brasil. E-mail: alan.alunoenfase@gmail.com; Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4276885883444740 2 Ao Estado, em meios jurídicos, se entende a República Federativa. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 357 Alguns teóricos e a própria ONU, remetem uma aproximação no que tange à definição do nosso instrumento de análise e estudo: as minorias linguísticas. Assim, trazemos algumas tentativas para nos aproximar fielmente ao objetivo desta escrita bibliográfica: “A escola tem sido e ainda é o maior instrumento chave, em todos os continentes, para impor a assimilação (inclusão forçada) tanto na língua dominante quanto na cultura dominante.” (SKUTNABBKANGAS; PHILLIPSON, 2017, p. 1). Com a leitura da citação acima percebemos a fala implícita, pois, se há uma língua dominante, existe a língua dominada/minoritária. Assim, apresentamos outra definição, ou tentativa de se fazer entender, visto que, como dito anteriormente, não existe concretude dentro desta área de pesquisa, e ainda se procura um definição fiel a ponto de demonstrar todos os aspectos inerentes a uma língua minoritária: “Fica claro que a falta de conhecimento de uma língua dominante limitará as opções para aqueles que não falam essa variedade.” (STEPHEN MAY, 2005, p. 335). Temos aqui como línguas minoritárias, primordialmente as línguas indígenas, as línguas de imigração e as línguas de descendência Africana, uma vez que Spolsky (2004) afirma que muitos países que tiveram sua independência no Séc. XIX, como era comum, assumiram o reconhecimento da língua de colonização, no nosso caso o Português, porém menciona que 10% da população Latino-Americana é indígena devido as suas línguas, posição geográfica e auto reconhecimento. Diz ainda que, não é este um dado preciso, e considera o que ele denomina de ‘outras línguas’, o que nos remete ao processo escravocrata do Séc XVI no Brasil os processos migratórios em geral. Para fechar o ciclo classificatório, apresentamos como a ONU se posiciona: “Grupo não dominante de indivíduos que partilham certas características nacionais, étnicas, religiosas ou linguísticas, diferentes das características da maioria da população” (BRASIL, 1973, p. 18). É a partir desta premissa que entraremos em discussões mais profundas, partindo de bases sociais até chegar aos meios legais e/ou constitucionais, para que possamos posicionar o Brasil e analisar suas práticas perante as demais línguas existentes. REALIDADE LINGUÍSTICA DO ESTADO BRASILEIRO: UMA APROXIMAÇÃO CONTEXTUAL COM A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 De acordo com a UNESCO, “no Brasil, estima-se que a população indígena seja de cerca de 897 mil (IBGE, 2010). Sendo 305 etnias e 274 línguas. Dos indígenas com 5 anos ou Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 358 mais de idade, 37,4% falavam uma língua indígena e 76,9% falavam português.” (Informações retiradas do site: http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/education/inclusive- education/indigenous-peoples/). Spolsky (2004) se apropria de Lambert para ressaltar a ideia de que um país monolíngue se preocupa com a forma e com o status de sua língua, criando-se desta forma o mito do monolinguísmo, afirmando haver apenas uma única língua na federação, excluindo qualquer diversidade e pregando uma homogeneidade linguística. Para Vitorelli (2015), “após a descoberta do país pelos portugueses, os colonizadores não tiveram pudores de assassinar os nativos, tanto de modo direto, quanto pelo fomento aos conflitos intertribais já existentes.” Da mesma forma, Abreu (2016) afirma que impor o monolinguísmo manipula o imaginário e causa o desaparecimento de línguas. Assim, podemos ver de quais formas uma língua, principalmente indígena, pode ser silencia pelo poderio imposto desde a época de colonização. Logo, a Constituição de um país, no nosso caso o Brasil, é muito importante para se entender os processos históricos, visto que, é este documento que rege a administração pública e o cumprimento das leis, para que possamos idealizar de que forma se deu a concentração e aceitação da língua portuguesa. A atual Constituição brasileira foi reelaborada no ano de 1988, e é por esta que tentaremos desvendar o porquê do nosso país se declarar monolíngue. No Artigo 13 da nossa constituição temos a seguinte afirmação: “A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil”. Este artigo está posicionado no Capítulo III que trata das questões da Nacionalidade. Muitas vezes a nacionalidade está ligada ao idioma falado, como fonte para que se possa fortalecer a identidade do indivíduo pertencente a determinada comunidade. Como é o caso da França, que segundo Spolsky (2004), é um país monolíngue em suas práticas e a boa parte da sociedade se enxerga como tal, fato que faz parte da identidade “legítima” de ser francês. Da mesma forma, uma tribo indígena tenta manter a sua identidade, a sua língua, a sua cultura, seus hábitos, e etc. As poucas centenas de tribos indígenas que restaram em nosso território precisaram e ainda precisam manter as suas identidades firmes, para que mesmo no mundo ‘forçadamente’ globalizado, eles consigam manter vivas3 as suas línguas. Tratamos aqui de línguas indígenas como minorias linguísticas primordialmente, porém, não devemos esquecer que há também as línguas de matriz Africana, que foram por parte, se não totalmente, banidas. E, a presença de línguas de imigração. Os demais grupos 3 O conceito de língua viva que aqui se adota, é a língua em uso dentro da comunidade. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 359 linguísticos não fazem parte deste recorte de estudo, mas vale salientar o respeito histórico que todas em geral merecem e deviam receber. No entanto, neste momento, passamos a considerar certo direcionamento teórico-metodológico visando as línguas indígenas no território brasileiro. Quando lidamos com minorias, nos apoiamos na ONU, e tomamos como base aqui os seus princípios. Para isso, nos valemos mais uma vez dos escritos de Skutnabb-Kangas e Phillipson (2017) que relataram historicamente 5 (cinco) fases dos processos relacionados aos direitos linguísticos. Primeiramente os direitos linguísticos não eram cobertos em tratados internacionais, a não ser em acordos bilaterais. Os únicos acordos que tratavam destes assuntos, nesta época, pré 1815, eram sob aspectos das minorias religiosas. Uma língua dominante era vista como um modo de garantir a conformidade internacionalmente e a expansão externamente. O segundo momento traçado pelos direitos linguísticos começa no Ato Final do Congresso de Viena – 1815, que foi o primeiro instrumento nacional que contém cláusulas considerando as minorias nacionais, não somente as minorias religiosas. As minorias são também minorias linguísticas. O terceiro período se deu entre as I e II guerras mundiais, onde vemos que: “os tratados de paz e as principais convenções multilaterais e internacionais elaboradas sob os auspícios da Liga das Nações continham cláusulas que protegiam as minorias, e muitas constituições nacionais estipulavam os direitos das minorias linguísticas.” (p. 4). Cabe-nos salientar como fator importante, a ideia de que os documentos da ONU não possuem valor legal ou constitucional, sendo apenas um documento de ideologia inspiracional, todavia, os países que assinaram esse tratado do terceiro momento, decidiram não restringir o uso de uma língua minoritária em relações privadas, no comércio, na imprensa, na religião ou em reuniões públicas. O penúltimo período, entre 1945 e 1970, pós Segunda Guerra Mundial foi de suma importância, pois neste momento a ONU passou a considerar os direitos linguísticos como pertencente aos direitos humanos. A partir disto, houve o surgimento de declarações nacionais ou internacionais para proteger o indivíduo contra tratamentos injustos ou arbitrários. O quinto e último período demonstra renovado interesse nos direitos das minorias – incluindo os direitos linguísticos. Destacamos daqui o Relatório Capotorti: Comissionado pelas Nações Unidas em 1971 e publicado em 1979. Assim sendo, segundo os mesmos autores, Skutnabb-Kangas e Phillipson, “Capotorti propôs, entre outros assuntos, a elaboração de uma declaração sobre os direitos dos membros de grupos minoritários.” (2017, p. 5). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 360 MEDIDAS IMPORTANTES NO BRASIL Constitucionalmente falando, o Brasil teve alguns momentos importantes para a proteção das minorias linguísticas. De tal forma, mesmo tomando algumas medidas, ainda que pequenas, há algumas falhas em certas leituras que deixam por um lado ambiguidades e por outras suposições. Começamos com o Título VIII da Ordem Social, Capítulo III da Educação, da Cultura e do Desporto, Seção I da Educação, que em seu Art. 210, nos diz que ‘serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.’ De modo implícito, deduz-se que há também o respeito as línguas indígenas, e para reforçar, o parágrafo segundo deste mesmo artigo revela a seguinte obrigatoriedade: ‘O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.’ Esta medida de garantir que os índios sejam alfabetizados em sua língua materna, não apenas indica o respeito e tolerância, mas também certa proteção indireta, pois significa o mantimento da cultura que é aprendida e passada. Porém, o Título VIII da Ordem Social, Capítulo III da Educação, da Cultura e do Desporto, Seção II da Cultura, mesmo falando sobre direitos culturais e proteção de suas manifestações, nada é dito sobre proteção às línguas minoritárias. Assim, vemos uma falha proposital ou ‘esquecida’. Ainda não se sabe muito, e deixamos aqui a reflexão. Título VIII da Ordem Social, Capítulo VIII dos Índios, Art. 231, como o próprio nome diz, fala dos grupos indígenas e de proteção (à que, não se explica), menciona línguas, entretanto faz-se de forma a parecer que não se quis assumir uma responsabilidade a mais, deixando livre uma/ou qualquer interpretação. Logo, temo que: ‘São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.’ Vemos aqui, mais uma vez a omissão linguística. Entretanto o que devemos aqui ressaltar é que, mesmo não estando explícito em sua constituição, o Estado não proíbe que outras instâncias (Estatais e Municipais) promovam suas práticas considerando seus territórios. A exemplo da a edição da lei n. 145/2002, do Município Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 361 de São Gabriel da Cachoeira, no Estado do Amazonas, tornando, para o Município, co-oficiais as línguas Nheengatu, Tukano e Baniwa (SANTOS, 2009, p. 254). CONSIDERAÇÕES FINAIS Como já foi visto em toda discussão, esta foi uma tentativa de se aproximar aos ensinamentos da Organização das Nações Unidas, como documento inspiratório. Trouxemos aqui algumas proposições para o tratamento das línguas minoritárias. Visto em causa o Brasil como nossa realidade multilíngue, vimos como nossa constituição atual aborda tais questões, às vezes direta, como a garantia de se ‘alfabetizar’ os índios em sua língua materna, e às vezes indireta, como vimos a obrigação de proteção e tolerância cultural, porém não mencionando medidas protetivas para as línguas indígenas. O que se pretendeu foi discutir a nossa realidade, trazer teóricos que discutem os Direitos Linguísticos dentro das Políticas Linguísticas atuais e tentar atribuir à nossa constituição o dever, ou imaginar de que forma os índios possam manter a sua cultura. E, da mesma forma que Skutnabb-Kangas e Phillipson (2017) dizem que todas as declarações são vagas em suas afirmações, fica a abertura em se discutir muito mais as políticas linguísticas pelo viés dos Direitos Humanos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, Ricardo Nascimento. 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Para tal, partimos e cotejamos o contexto de escrita de Virginia Woolf e de Carolina Maria de Jesus, mostrando como emerge a intelectualidade da mulher negra, frente a uma existência precarizada. Abordamos como, paulatinamente, há ocupação e propagação de enunciados que valorizam os múltiplos lugares de fala a partir da “escrevivência”. PALAVRAS-CHAVE: Escrita; Mulheres; Negritude; intelectualidade. Mil nações moldaram minha cara. Minha voz uso pra dizer o que se cala Elza Soares, (2018) Em uma série de conferências que versavam sobre o romance e a mulher, realizadas em duas instituições for ladies, no outono de 1928, Virgínia Woolf, ao ser indagada sobre o porquê de, até naquele momento, poucas mulheres terem escrito romances considerados de qualidade, ela responde que essa ausência devia-se ao fato de que as mulheres não possuíam um quarto próprio (1993) ou seja, um espaço privado, sem interferências sonoras, em que pudessem ficar a sós, mergulhar em sua intimidade e interioridade e exercitar a escrita.Um local onde a mulher não tivesse que se preocupar com afazeres domésticos ou com outrem.Desse modo, para que as mulheres conseguissem escrever, elas deveriam afastar-se do espaço privado de suas residências e deslocar-se para outro espaço privado, um quarto, que poderia ser alugado, emulando o escritório dos homens, para que pudessem externalizar suas elaborações por meio de leituras e produções textuais. Para a britânica, apenas nesse cubículo apartado de certas demandas mundanas, como interrupções, perigos e tentações das ruas, cobranças e tiranias familiares, a concentração emergiria e seria possível voltar-se para o “eu” em sua intimidade. Assim, o sujeito que produzia escritas sobre si, se inscrevia naquele momento histórico e na cultura burguesa. Em um quarto fechado, a subjetividade feminina poderia ser explorada, exercida sem reservas e como um modo de autoafirmação de si, diferentemente do que ocorria no espaço 1 Professora de Filosofia da Rede Estadual do Rio de Janeiro e doutoranda em Educação pelo Programa de PósGraduação da UFRJ. E-mail: danielegomess@live.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 364 público, em que as damas sofriam diversas solicitações comportamentais, como por exemplo a forma contida que deveriam sentar e gesticular, a não elevação do tom de voz ou mesmo a criteriosa seleção dos termos que fossem proferir. Assim, nesse local protegido por sólidos muros, portas e fechaduras a mulher poderia vir a ser uma escritora. Deste modo, simbolicamente, a mulher que assim procedesse poderia “ser alguém”, isto é, ser um sujeito que produz sua própria subjetividade, dentro de determinado contexto histórico, que cria e profere enunciados. Pois, conforme Foucault (2000), o sujeito não é apenas o autor da formulação, mas uma posição ocupada sob certas condições e que mobiliza, desejos, sentidos, afetos, visões de mundo. As obras da autora britânica apresentam recursos estilísticos que exploram os fluxos de consciência e psicologias íntimas e têm como tema, questões de damas brancas, heterossexuais, inseridas em famílias nucleares, que não trabalham, que são consideradas inocentes e possuem disponibilidade para ter dilemas quanto à sua vida afetiva e questões existenciais. O narrado é um modo de vida asséptico e homogêneo, sem a presença radical de alteridades, ou seja, não aparece significativamente corpos ou vivências diferentes das experiências de mundo da autora. As colocações de Woolf (1993) são relevantes e perpassadas por diversas questões como a construção das ideias de público e de privado e dos processos de subjetivação, mas se direcionam para um sujeito alfabetizado, com tempo e recurso financeiro disponíveis para conseguir escrever. Ademais, ela não menciona questões como as interferências editoriais, que dentro de uma perspectiva falocêntrica, opta por publicar apenas determinado tipo de obra, produzida por e voltada para um determinado público, e também não problematiza a qual mulher se direciona, quando apresenta a possibilidade desta vir a escrever. Quando Woolf reporta-se a questão abordando o termo “mulher” de forma singularizada, esta é tratada como se fosse uma categoria universal e homogênea. À vista disso, seus apontamentos voltam-se para mulheres burguesas, alfabetizadas e brancas. Afinal, por conta dos processos de escravização, as mulheres negras extraídas de sua terra, seu povo e sua família foram obrigadas a executar os serviços domésticos e demais trabalhos braçais e, por vezes, por estarem em um país alheio ao seu e excluídas dos processos de escolarização, tinham maiores impedimentos para dedicar-se a exploração da linguagem escrita. Assim, a possibilidade delas terem tempo e instrumentos para elaborações textuais são dificultados. Ademais, seguindo o argumento de Woolf (1993), com parcos recursos materiais, essas mulheres não conseguiriam alugar quartos para dedicar-se à escrita e a constituição e elaboração de seu “eu”. Até porque, seus corpos e processos de simbolização e significação mundana foram Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 365 forçosamente sofrendo espoliações, levando à desumanização, haja vista que, por estarem em uma posição diametralmente oposta à masculinidade e à branquitude, dentro de uma perspectiva colonizadora foram consideradas como “o outro do outro” (KILOMBA, 2012). Destarte, por mais que a autora britânica seja apontada como um ícone do feminismo e da vanguarda literária cabe ressaltar que sua perspectiva direciona-se para um pequeno grupo e suas produções dirigem-se a um público específico, a saber, mulheres burguesas. Seus marcadores identitários não alcançam a pluridimensionalidade abarcada pela categoria “mulheres” e estão em consonância com uma perspectiva restrita do que possa ser a intelectualidade e quem podem ser as intelectuais. No entanto, bell hooks (1995) amplia a conceituação branca ocidental de intelectualidade, ao propor que a intelectual é aquela que para compreender a realidade e abrir margem para a transformação desta, entrelaça pensamento e prática de forma dialética em uma relação entre política do cotidiano e trabalho intelectual. Isto porque, dentro de um contexto racista e sexista, a construção do imaginário que se refere às mulheres negras, liga-se ao corpo e não ao pensamento, seja por meio de sua erotização ou da vinculação aos trabalhos domésticos e braçais. Em diálogo com hooks (1995) e em contrapartida às colocação de Woolf (1993) a respeito do processo de escrita feminino, Carolina Maria de Jesus em sua obra Quarto de Despejo (1960) expõe seu relato crítico-reflexivo escrito a partir de sua experiência de mundo. Ora, se para a britânica era necessário um espaço privado, apartado de incômodos para produzir “boa” literatura, Carolina de Jesus em meio aos tensionamentos da sobrevivência relata a si e partilha seu cotidiano. Sua obra, que possui como subtítulo “diário de uma favelada”, expõe a realidade da catadora de lixo mineira, que vive na favela do Canindé, em São Paulo, em um contexto sócio, histórico, econômico bastante diferente do registrado pela britânica. A escrita de Carolina Maria de Jesus ressignifica as ações de seu cotidiano desde a busca da água pela manhã, as idas ao açougue para buscar os restos de ossos que lhe davam, seus dias em busca de papel para reciclar, à sua observação das estrelas e como emergia seu processo de escrita, em meio a reflexões sobre as desigualdades, críticas sociais e a condição humana. Se a mulher branca, burguesa e europeia do século XIX precisa de um quarto a parte para que seu processo de escrita emerja, é da vivência da mulher negra nos anos 60, envolvida com sua sobrevivência e a de seus três filhos em um contexto de precarização e pauperização da vida, a escrita se inscreve como um modo de existência. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 366 Carolina Maria de Jesus despeja sobre seus leitores a verborragia de um silenciamento de muitos anos, ao passo que,com a escrita (re)elabora e mergulha na realidade. A autora brasileira mantêm-se sozinha por escolha, recusando a instituição burguesa do casamento, mas solitária por falta de opção, talvez, dando indícios de como se (com)forma a solidão das mulheres negras, corpos estes, rechaçados, e que na maioria das vezes dentro da divisão social do trabalho, são as que cuidam, mas que não são cuidadas. A não identificação com os seus vizinhos, apresenta certo deslocamento do sujeito no mundo, que, ao mesmo tempo possibilita uma percepção mais ampla dos acontecimentos. Sua postura altiva e de independência em relação aos homens é uma entre tantas outras maneiras de mostrar sua autonomia e dessa forma, ela torna-se sujeita de si. Suas palavras abrem-se para a realidade ao passo que a autora revela-se despida de qualquer pudor ao tomar seu lugar de fala (RIBEIRO, 2017) e proferir seus enunciados próprios. O “quarto de despejo” que intitula a obra é uma metáfora utilizada pela autora para abordar a exclusão e a desigualdade. Dentro dos territórios sociais, o cento da cidade é comparado com a sala de visitas, espaço de recepção e acolhimento, rodeado por objetos opulentos, já a favela é o lugar onde está o indesejado, aquilo que se quer esconder (JESUS, 1960) em que se encontra o que é abjeto. Assim, os temas abordados pela autora perpassam desde a sutileza de uma metáfora tão potente quanto à exposição de relações brutais, seja entre os sujeitos ou mesmo destes com o espaço no qual habitam, na medida em que torna patente as misérias da alma humana. Com um estilo peculiar e marcante de escrita, que desvia da norma “culta” e transgride as normatizações, desloca-se da condição social imposta a tantas como ela, a saber, os serviços domésticos, e ocupa o espaço de intelectualidade, deixando luzir como a literatura e a escrita podem ser processos que contribuem para a humanização. O contexto em que a autora vive e escreve, bem como seu gênero, raça e classe estão em dissidência em relação à normalização masculina, branca e possuidora de recursos financeiros, haja vista que sujeitos como ela têm sua existência precarizada por uma lógica hegemônica e homogenizadora. A precariedade tem de ser compreendida não apenas como um aspecto desta ou daquela vida, mas como uma condição generalizada cuja generalidade só pode ser negada negando-se a precariedade enquanto tal. E a obrigação de pensar a precariedade em termos de igualdade surge precisamente da irrefutável capacidade de generalização dessa condição. (...) Além disso, a própria ideia de precariedade implica uma dependência de redes e condições sociais, o que sugere que aqui não se trate de vida como tal, mas sempre e apenas das condições de vida, da vida como algo que exige determinadas condições para se tornar uma vida vivível e, sobretudo, para tornase uma vida passível de luto (BUTLER, 2015, p. 42 - 43). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 367 São esses corpos, não dignos de luto (BUTLER, 2015) que resistem diariamente às violências, sejam elas físicas, simbólicas, epistemológicas, e que, quando ousam escrever, profanam lógicas de subalternização (SPIVAK, 2010) e silenciamentos, na medida em que ocupam os espaços narrativos, desestruturam imposições discursivas dominantes, deslocam e propagam outros enunciados, na medida em que asseguram seu lugar de fala (RIBEIRO, 2017). Nesse sentido, são des e re construídas noções de identidade, território e conhecimento. Pois, [...] a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade (FOUCAULT, 2012, p.8-9). Deste modo, percebe-se como a linguagem e seus usos estruturam o imaginário social de poder e controle, na medida em que ela é um instrumento político e ontológico. Político porque advém de um sujeito que é reconhecido socialmente (na pólis) e ontológico, pois, traz a tona a existência daquele que enuncia e seu escopo existencial, haja vista que “o falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir” (RIBEIRO, 2017, p. 64). Portanto, [...] a linguagem dominante pode ser utilizada como forma de manutenção de poder, uma vez que exclui indivíduos que foram apartados das oportunidades de um sistema educacional justo. A linguagem, a depender da forma como ela é utilizada, pode ser uma barreira ao entendimento e criar mais espaços de poder em vez de compartilhamento, além de ser um – entre tantos outros – impeditivo para uma educação transgressora (RIBEIRO, 2017, p. 23). Assim, a produção intelectual de mulheres negras se apresenta não como uma escrita descorporificada, mas sim, é uma “escrevivência” (EVARISTO, 2008), ou seja, é um processo enunciativo que faz com que elas ocupem outro estatuto ontológico, encontrando formas (po)éticas de existir. Seus corpos deslocam-se da condição de abjetos para sujeitas produtoras de saberes e, as vidas que outrora sofriam constante precarização adquirem um potente status existencial. Assim, “mais do que compartilhar experiências baseadas na escravidão racismo e colonialismo, essas mulheres partilham processos de resistências” (RIBEIRO, 2017, p.26) no sentido de potencializar suas narrativas, memórias, histórias e experiências. Sobretudo, escrever é um gesto de afirmação de vidas, pois dentro da lógica da precarização, permanecer deixando-se silenciar significa render-se a morte. Em consonância com essa compreensão, um dos primeiros movimentos para a potencialização existencial é a escrita de si, ou seja, a narração em primeira pessoa. Essa modalidade narrativa, para além do relato é uma maneira de tecer uma trama vigorosa de experiências, ao mesmo tempo individuais e coletivas, que entrelaça gerações como possibilidade de reconciliação como afirmou Freire (2014) e postulou Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 368 [...] para resistis às amarras culturais hegemônicas, mas também para transcendê-las, criando possibilidades de escrita que vinculem a dinâmica da fala com a dinâmica da ação, compor um texto que se movimenta, ora como dança através do espaço, ora como uma canção ritmada pelo tempo, pois criar e dançar uma coreografia é uma forma de fazer história (FREIRE, 2014, p. 569). Fazer história e tornar-se protagonista são atos imbricados e para tal, é importante que a enunciação seja localizada cultural e socialmente, para que a identidade não seja silenciada e desautorizadas epistemicamente. Afinal, o conhecimento e as experiências que o possibilita precisam ser localizados, considerando-se que ele não é neutro. Isto porque, a ótica colonial construiu uma versão essencializante e dominadora dos acontecimentos, que apaga a memória dos outros povos, minando as possibilidades de alteridade. Narrar em primeira pessoa, além da exposição solicita uma investida arqueológica, que ao escavar os vestígios constituintes encontra marcas da unicidade e individualidade que cada corpo carrega, em uma amálgama que envolve sua história, memória, sentimentos e emoções, deixando entrever a fabulação, a rememoração, o maravilhamento e o espanto, elementos fundamentais para o afastamento do embrutecimento. Ao imergir nesse entendimento existencial e vasculhar as lembranças, na memória corporal, decifram-se dores, encontra-se a raiz de violências, observam-se medos, destilam-se alegrias, enfeita-se a doçura, mergulha-se na paz e conhece-se a liberdade (FREIRE, 2014). Nesse processo de encontro consigo, elaboração e externalização de desejos, sentidos, afetos, dores e delícias deve-se estar atenta à escuta de si. Com essa autocompreensão possibilitada pela rememoração, na medida me que envolve ficção e fabulação se inscrevem um espaço ético, estético e político, haja vista que acolhe outras histórias e cria fissuras dentro de certa historiografia que descorporifica, apaga a multiplicidade e normatiza a forma de narrar. Assim, a autoria é corporificada e a identidade (in)surge como ruptura da ideia de impessoalidade e neutralidade, reconstruindo e fortalecendo a categoria de humanidade e as epistemologias negadas, ultrapassando a norma instituída e corroborando para a ampliação dos sentidos de intelectualidade. A afirmação identitária é significativa por ser uma forma de revelar como as instituições fazem uso das identidades para oprimir ou privilegiar. A insistência de mulheres negras auto definirem-se, auto avaliarem-se e a necessidade de uma análise centrada na mulher negra é significativo por duas razões: em primeiro lugar, definir e valorizar a consciência do próprio ponto de vista autodefinido frente a imagens que promovem uma autodefinição sob a forma de “outro” objetificado é uma forma importante de se resistir à desumanização essencial aos sistemas de dominação. O status de ser o “outro” implica ser o outro em relação a algo ou ser diferente da norma pressuposta de comportamento masculino branco (COLLINS, 2016, p.105). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 369 Destarte, o deslocamento de ser nomeada para se auto nomear e principalmente, de ser sujeito em si e não em relação a um outro, que foi imposto como superior e parâmetro de referencialidade, posiciona em primeiro plano a autoria e o protagonismo das mulheres negras, os enunciados que desejam proferir, sua constituição identitária e as novas formas de sociabilidade que ela propõem. Se outrora as mulheres negras tinham como lugar o não lugar e eram tidas como o outro do outro, ao relatarem sobre si, elas se inscrevem enquanto sujeitos autorizados a enunciar sua fala. Recriam imaginários e histórias, na medida em que não são narradas por outrem. Não há umx intelectual que fale por elas, mas elas mesmas expõem suas histórias, suas experiências, suas pesquisas, seus saberes, suas vidas e as linhas de força e de fuga que as perpassa. Podendo assim disputar no âmbito das narrativas autorizadas e para que consigam, nesses espaços, criar novas epistemologias e provocar deformações e transformações. Sendo assim um caminho para nomeação e recriação de uma realidade. Essa ação é importante, pois, “se não se nomeia uma realidade, sequer serão pensadas melhorias para uma realidade que continua invisível” (RIBEIRO, 2017, p.41). Nesse contexto, as práticas de escrita de si, a contação e a narração solicita a mudança de postura do outro, que, se está disposto a acolher, bem como colaborar para a transformação deve reconhecer seus privilégios, em certo ponto, abrir mão deles, e está aberto a ver, ouvir, aprender e cultivar a afetividade à alteridade. Isto porque afetividade tem relação direta com o influenciar e ser influenciado, potencializar, possibilitar. Porque afetividade está relacionada ao gostar de gente, propiciar encontros, contatos, afetos e afetações. Porque afetividade nos reporta ao corpo e porque os corpos são potências, possibilidades, amorosidade. A afetividade é uma manifestação corporal, uma expressão corporal fundamental para os encontros, contatos, para as expressões de desejos, pensamentos individuais e coletivos, de emoções as mais diversas, de sentimentos como amor, ódio, cuidado. Em síntese, a forma, a maneira como estou/sou no mundo afeta o mundo, as pessoas. A nossa afetividade (os afetos, sentimentos, emoções) se manifesta via nosso corpo, que circunscreve nossos sentimentos, nossas percepções: um toque, uma carícia, um aperto de mão, um afago, uma música, uma grosseria, a leitura de um poema, uma brincadeirinha, um xingamento, um encontro, um desencontro, uma agressão... (TRINDADE, 2006, p.102–103). Posto que, em meio a debates, tensionamentos e embates é que vem se criando rupturas dos processos políticos e simbólicos de dominação que precarizam as vidas e as formas de semiocídio, que extermina paulatinamente o sentido de outro e de suas diferenças.Após muitas lutas e aquisição de alguns direitos sociais, em diálogo com práticas de inclusão cognitiva e simbólica, atualmente, é possível ter acesso a algumas poucas produções intelectuais de mulheres negras ou mesmo encontrá-las ocupando posições de prestígio intelectual socialmente reconhecido. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 370 No entanto, ainda há muitos obstáculos, como o sexismo e o racismo estruturais que “[...] faz com que as produções intelectuais, saberes e vozes sejam tratados de modo igualmente subalternizado, além das condições sociais os manterem em um lugar silenciado estruturalmente” (RIBEIRO, 2017, p. 63), dificultando a visibilidade e a legitimidade destas. Assim, os processos enunciativos amplificados são além de modos de constituição existencial, instrumentos de luta e resistência frente aos meios de comunicação de massa e outros modos de domínios epistemológicos que (re)produzem esteriótipos e banalizam outras formas de ser, estar, viver, sentir e pensar, suprimindo assim, a fala das mulheres negras. É nesse sentido que as disputas discursivas mostram-se mais acirradas e vivificam a importância da escrita e da teorização conceitual. Muitas vezes, o trabalho intelectual leva ao confronto com duras realidades. Pode nos lembrar que a dominação e a opressão continuam a moldar as vidas de todos, sobretudo das pessoas negras e mestiças. Esse trabalho não apenas nos arrasta para mais perto do sofrimento, como nos faz sofrer. Andar em meio a esse sofrimento para trabalhar com ideias que possam servir de catalisadores para a transformação de nossa consciência e nossas vidas, e de outras, é um processo prazeroso e extático. Quando o trabalho intelectual surge de uma preocupação com a mudança social e a política racial, quando esse trabalho é dirigido para as necessidades das pessoas, nos põe numa solidariedade e comunidade maiores. Enaltece fundamentalmente a vida (HOOKS, 1995, p. 477-478). Vitalizar e oxigenar a academia, seus sujeitos e modos de pesquisar colabora para “pensar outras possibilidade de existências para além das impostas pelo regime discursivo dominante” (RIBEIRO, 2017, p.90) e experienciar investigações que acolham narrativas e memórias, que caibam vidas inteiras em sua multidimensionalidade, consonâncias, dissonâncias e ruídos fomenta outras epistemologias. Um modo de enfrentar e perfurar as barreiras colonizadoras é ocupar os espaços e entrelaçar cada vez mais as teorias com as práticas, fortalecer as identidades não hegemônicas. Afinal, pensar a decolonialidade envolve se inscrever em outros e novos processos de escrita, por meio de uma linguagem fecunda, e não meramente reprodutiva. Se há o processo de desumanização das mulheres, especialmente as mulheres negras, criar uma outra iconografia, que viabilize a reconstituição identitária por meio da reapropriação e ressignificação linguística é uma estratégia elaborada para a manutenção da vida. Contar nossas histórias individuais e coletivas (nos) importa! Pois cria uma tessitura de conexões que fortifica, e contribui para abolir os isolamentos que segrega e enfraquece. Para tal deve-se ter uma postura ética, que pensa o mundo a partir dos sujeitos e de seus lugares. Nesse sentido, o relato das mulheres negras possuiu um caráter pedagógico, na medida em que nos desloca, produz (re)conhecimentos e “ensina” a ver e a escutar, um ver que não se Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 371 restringe as habilidades do olho e uma escuta que não se vincula apenas as orelhas, mas que transcende, e se engaja num processo subjetivo de deslocamento e afetividade. Sendo modos de ver e ouvir, constrói o que vivemos, a partir da invenção e de uma nova experiência do real, construindo novos territórios, comunidades e relações, enfim, compartilhando mundos. A educação também é compartilhamento de mundos, e por isso, devemos criar situações em que os aprendizados e as diversas experiências sejam compartilhadas. Afinal, o não isolamento do outro é o que permite criar junto, inventar um mundo partilhável, uma outra dinâmica dos sentidos, uma disponibilidade ao encontro, a descoberta, a produção de conhecimentos e a (re)invenção de si. Esses processos criativos de manutenção e (re)invenção das vidas garantem que uma vida, que não apenas a minha, tenha condições de ser vivida. Na medida em que se tem uma compreensão ética da precariedade, faz com que sujeitos diversos possam partilhar o que lhes é comum e possam, criar juntos outros mundos, que acolham a todxs, e que haja a luta pela sustentabilidade da vida, produzindo políticas que extrapolem a potência de uma vida e suas contaminações, garantindo todxs xs vivíveis. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é possível e o luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. In: Sociedade e Estado, v.31, n.1, p. 99 – 127, 2016. Disponível em: https://goo.gl/RmjB7R. Acesso em: 21 jul. 2018 EVARISTO, Conceição. Escrevivências da afro-brasilidade: história e memória. Belo Horizonte: Releitura, Belo Horizonte, n. 23, 2008 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. Luiz F. Baeta Neves. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. FOUCAULT, Michel. 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Concluímos assinalando as aproximações entre o modelo restaurativo e o projeto epistemológico de vozes subalternas, em uma proposta confluente com o giro decolonial. PALAVRAS-CHAVE: Justiça Restaurativa; Pensamento Decolonial; Colonialidade. ABSTRACT This paper, following a bibliographical methodology of research, aims to present reflexions on an alternative proposal of justice, called Restorative Justice, and its interlocution with the Decolonial Thought. Analysing the actual juridical scenario, its origins, problems and limitations, we discuss how Restorative Justice can be articulated with decolonial thought, specially according to the reflexions of the Brazilian philosopher Álvaro Vieira Pinto. We conclude pointing the approximations between the restorative model and the epistemological project of subaltern voices in a proposal confluent to the decolonial turn. KEYWORDS: Restorative Justice; Decolonial Thought; Coloniality. INTRODUÇÃO O objetivo deste trabalho é discutir a Justiça Restaurativa no horizonte do pensamento decolonial. Fruto da constatação da ineficácia do sistema prisional atual, da prática de tratamentos segregacionistas aos infratores e da atitude de negligência em relação às vítimas, as reflexões sobre a Justiça Restaurativa emergem como uma proposta alternativa à Justiça Tradicional. O desvio do propósito do sistema corrente, essencialmente baseado na ressocialização e ajustamento, leva o transgressor a se tornar cada vez mais reincidente, afetando e ferindo não só o indivíduo, mas a sociedade como um todo. As condições dos infratores dentro desse sistema beiram o limite da sobrevivência, em um contínuo de desassistências e violações físicas, psicológicas, sexuais 1 Bacharela em Psicologia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Email: julia.smanzan@hotmail.com. 2 Bacharel em Psicologia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Mestrando em Educação Profissional e Tecnológica pelo Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM). E-mail: brenobac@gmail.com. 3 Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Mestre e Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: adrianomartins@iftm.edu.br. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 374 e morais, incitando primariamente o "não ajustamento", a indignação e revolta como consequências naturais (FERREIRA, 2011). A Justiça Restaurativa, portanto, surge da busca por reflexões mais profundas acerca daquilo que é afetado pelo crime, problematizando a questão da responsabilidade social e propondo novos modelos de ação jurídica. Busca assim um caminho para que a sociedade possa, efetivamente, amenizar mazelas e alterar concepções ultrapassadas e reducionistas tanto no tratamento dos infratores, como no cuidado às vítimas. Dessa forma, esse modelo alternativo pode ser conceituado como uma concepção de prática em que um processo mediado é estabelecido tendo como finalidade a restauração do vínculo rompido entre a vítima e o infrator, ou, de maneira geral, a reedificação, considerada holisticamente. Essa, por sua vez, vislumbra atingir e agir sobre as consequências do crime no campo subjetivo e coletivo (JACCOULD, 2005), operando a partir do entendimento de que tanto vítima quanto infrator são compartilhadores e construtores do sistema-mundo em que estão inseridos. De forma prática, esses ciclos restaurativos são diálogos confidenciais mediados por agentes especializados, como psicólogos, e se constituem com etapas definidas. São espaços de compreensão, onde sentimentos subjetivos são expressos; de responsabilização, onde os acontecimentos são explicados e as consequências são visualizadas; e por fim, o momento de acordo final, onde se constroem propostas responsabilizantes (SCHUCH, 2012). Entretanto, ao se considerar a produção acadêmica sobre a Justiça Restaurativa, conforme a explicita um relatório do Conselho Nacional de Justiça intitulado “Pilotando a Justiça Restaurativa: o Papel do Poder Judiciário” (CNJ, 2017), há que se considerar a ausência da Latinoamérica nas narrativas hegemônicas, pois os países do Norte global agem a partir de um verdadeiro silenciamento sobre aquilo que se passa na América nãosaxã. Até mesmo países como o Brasil, Argentina e Chile tendem a negligenciar a latinidade na produção sobre o tema e desenvolvem um debate restaurativo marcado pela importação cultural anglo-saxã. Há que se considerar, salienta o relatório, a produção de César Barros Leal, por exemplo, que age na contramão desta subalternização, e o fato de que alguns países da Hispanoamérica têm desenvolvido um profícuo debate sobre a Justiça Comunitária, concepção de caráter autóctone e que reafirma “os valores da identidade e da reconexão, da participação e do empoderamento comunitário, do pluralismo e da interculturalidade” (CNJ, p. 79), não sendo, entretanto, considerada como uma matriz da Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 375 Justiça Restaurativa. Entendemos que esse panorama carrega em si tanto a colonialidade, quanto a decolonização, tema a que passaremos a nos dedicar agora. JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM OLHAR DECOLONIAL Recuperando formas tradicionais e indígenas,podemos dizer que práticas restaurativas estavam presentes em códigos que datam desde as épocas anteriores a Cristo. O código de Hammurabi (1700 a.C.), de Lipit-Ishtar (1875 a.C.), assim como o código sumeriano (2050 a.C.) e o de Eshunna (1700 a.C.) são exemplos da composição históricos dessa prática (JACCOULD, 2005). Sobre essas origens, Jaccould afirma: Elas podem ser observadas também entre os povos colonizados da África, da Nova Zelândia, da Áustria, da América do Norte e do Sul, bem como entre as sociedades pré-estatais da Europa. O movimento de centralização dos poderes (principalmente pelo advento das monarquias de direito divino) e o nascimento das nações estado modernas vão reduzir consideravelmente estas formas de justiça negociada (2005, p. 2). A Nova Zelândia teria sido o primeiro país a implantar as práticas restaurativas, em procedimentos inspirados diretamente nas comunidades dos aborígines Maori. Na década de 1970, o movimento restaurativo se consolidaria com pilares reflexivos importantes acerca do monopólio da justiça, do poder hierarquizado e centralizado, da visão dogmática, simplista, violenta e ineficaz no combate a violência (SOUSA & ZÜGE, 2011). Portanto vemos que, apesar do silenciamento perpetrado pelo Norte global, é possível vislumbrar práticas de Justiça Restaurativa exercidas historicamente pelas nações do Sul. Tal silenciamento carrega em si as marcas da colonialidade, termo que “se refere aos padrões duradouros de poder que emergiram como resultado do colonialismo, mas que definem cultura, trabalho, relações intersubjetivas e produção de conhecimento muito além dos limites estritos das administrações coloniais” (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 243, tradução nossa); a colonialidade, portanto, se exprime de distintas formas: “ a colonialidade do poder se refere à interrelação entre as formas modernas de exploração e dominação (poder), a colonialidade do saber tem a ver com o impacto da colonização nas diferentes áreas da produção do saber, e a colonialidade do ser faria referência primordial à experiência vivida da colonização e seu impacto na linguagem” (MALDONADOTORRES, 2007, p. 242, grifos e tradução nossa). Entendemos que o silenciamento da produção latinoamericana em Justiça Restaurativa se vincula principalmente à colonialidade do saber, podendo tal fato ser Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 376 compreendido através das reflexões do filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto (2005, vol. I, p. 46), quando denuncia que os filósofos dos países subdesenvolvidos, e aqui estendemos esta reflexão aos pensadores em geral, tendem a adotar a posição de tabeliões de ideias. Ao invés de dedicarem-se à produção de ideias novas, tais pensadores se prestam apenas a lavrar as reflexões que os sábios estrangeiros legaram. A cultura é vista como sendo o registro dos bens intelectuais fielmente reproduzidos, mesmo que alienados da r ealidade nacional, fazendo com que a consciência que possuem desta realidade se torne cada vez mais opaca. Este quadro é resultado direto do eurocentrismo, processo instaurado a partir da modernidade e que fez com que a cultura europeia, o modelo de sociedade europeu e a filosofia europeia se tornassem a cultura, o modelo de sociedade e a filosofia simplesmente (DUSSEL, 2017). Na verdade, a modernidade é indissociável da colonialidade (BALLESTRIN, 2013), pois todo poderio, desenvolvimento e supremacia europeia foram conquistados pela exploração, espoliação e rapinagem do mundo subdesenvolvido. Quando vemos, portanto, a subalternização das produções em Justiça Restaurativa, assim como em outros campos do saber, exercida pelo Norte global em relação ao Sul, ou pelas nações do Sul em relação a si mesmas, reificando o cânone europeu-estadunidense, estamos em face à colonialidade que precisa ser não apenas denunciada, mas também superada, superação esta que é feita tanto através da própria denúncia, que embasa u ma visão crítica e o vislumbre de possibilidades outras de compreensão, quanto através do giro decolonial, enquanto atitude epistêmica que rompe com a situação engendrada pela modernidade colonial (BALLESTRIN, 2013). Um dos autores que pode nos auxiliar nesta tarefa é o já citado filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto. Em outro trabalho discutimos como ele é um pioneiro para o movimento decolonial assinalando a maneira como seu pensar aborda questões fundamentais para este movimento e desenvolve reflexões convergentes com os estudos decoloniais. Naquela ocasião enfatizamos a questão da denúncia da colonialidade do saber realizada pelo filósofo que, além disso, expressava a necessidade de países subdesenvolvidos, como é o Brasil, desenvolverem reflexões autóctones, além de combater e superar as produções ideológicas provenientes das nações dominadoras (COSTA & MARTINS, 2018). Vislumbramos que temas como educação, demografia, técnica e sociedade, tecnologia e adjacências, desenvolvimento nacional, Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 políticas de 377 desenvolvimento, ensino de filosofia e ciências humanas, sociologia e pesquisa científica são alguns dos que podem ser enriquecidos pelas reflexões do filósofo. Para os propósitos deste trabalho recorreremos à obra “Consciência e Realidade Nacional” (1960, vol. II), em que o autor realiza algumas reflexões sobre ética que, acreditamos, podem nos auxiliar a pensar a questão da Justiça Restaurativa no horizonte do pensamento decolonial. Partindo de um exame etimológico do termo, o autor afirma que “ético” inicialmente se refere ao uso, o habitual, os costumes, o consuetudinário que determinada sociedade sancionou como comportamento admitido. Posteriormente o termo expressa um critério de valor e julgamento, pois a sanção social às ações humanas é coercitiva, existindo um nexo entre a atividade individual e o mérito ou demérito que ela recebe. De acordo com o pensador, a noção de costume só é autenticamente compreendida quando são restabelecidos os fundamentos concretos da ideia de hábito social, pois, afirma, “só existem usos e costumes que tenham, ou tenham tido, origem em interesses reais da vida da comunidade” (1960, vol. II, p. 231). O filósofo, então, passa a examinar aquilo que entendemos ser a dialética da transformação dos usos: movimento objetivo de alteração dos comportamentos, interações, costumes e hábitos, em suma, da atividade humana, considerando que ela é exercida no âmbito da interação com outros humanos, que decorre da própria transformação do mundo: o processo histórico objetivo compõe-se do curso físico de fenômenos, espontâneos uns, provocados pelo engenho humano outros, a que se vincula o curso político e cultural, onde as ocorrências são produto da atividade da sociedade, como resposta a desafios e defesa de interesses (1960, p. 232). Nossa tarefa agora será mostrar como a Justiça Restaurativa, operando através da retomada do protagonismo do sujeito, vítima e infrator, em diversas formas de responsabilização e restaurações coletivas e individuais, é decolonial. O BRASIL E A REPARAÇÃO DA TEIA SOCIAL E CULTURAL Nascida em países que sofreram a pecha da colonização, o ideário da Justiça Restaurativa carrega por si só uma proposta decolonial. Na África do Sul, um dos grandes exemplos práticos de aplicação sistematizada, a Justiça Restaurativa fez sua entrada em um cenário nacional marcado pelo apartheid. A história da colonização africana, feita especialmente pelos holandeses, franceses, britânicos, belgas, italianos, espanhóis, portugueses e alemães, encontrou no ano de 1885 um grande marco. Até então os empreendimentos colonialistas eram difusos e desorganizados, mas a partir do acordo Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 378 chamado “Conferência de Berlim” as nações exploradoras sistematizaram o processo de espoliação dos povos africanos e realizaram a partilha dos territórios de acordo com suas conveniências exploratórias, criando e estabelecendo mais linhas abissais de que fala Boaventura Sousa Santos (2010). Especificamente na África do Sul, podemos falar de, inicialmente, uma dispersa colonização portuguesa, depois, com mais vigor, a colonização neerlandesa e, por fim, bastante vigorosa e destrutiva, a colonização britânica. Um dos traços mais marcantes do processo colonial desse país foi a instalação e manutenção de um regime segregacionista, institucionalizado em 1948, que se baseava na crença da superioridade racial 4 e intolerância, valores que, tendo sido legitimados, transformaram a realidade social dos africanos e machucaram profundamente a unidade e relações da sociedade (RODRIGUES PINTO, 2007). O sistema-mundo sul-africano, portanto, demandava uma emancipação mental de conceitos e práticas construídos e reafirmados por décadas e que foram criados para a manutenção da sua exploração. Assim, segundo Simone Rodrigues Pinto (2007), após debates, conferências e discussões, o parlamento da África do Sul aprovou o estabelecimento, em 1995, da Comissão de Verdade e Reconciliação, buscando um novo começo para o conjunto social daquela nação. Desvencilhando-se da ótica da Justiça Retributiva, a Comissão da Verdade, de caráter restaurativo, operava na definição do conceito indígena de ubuntu, definido pelo arcebispo Desmond Tutu, um dos grandes incentivadores do processo, como: "um ser humano só é um ser humano por meio de outros e, se um deles é humilhado ou diminuído, o outro o será igualmente" (TUTU, 2000, citado por RODRIGUES PINTO, 2007). As iniciativas empreendidas pela África do Sul, como a criação das Comissões da Verdade, trazem o entendimento de que as sociedades devem se prevenir da recorrência das atrocidades passadas afastando-se do efeito corrosivo da mágoa e da vingança, ou das formas institucionalizadas pelo Direito como sendo a Justiça Punitiva e a Retributiva tradicionais. A percepção de que a sociedade como um todo foi afetada pela história violenta de exploração de colonizadores é pedra fundamental para uma restauração e construção verdadeira (RODRIGUES PINTO, 2007). Ainda de acordo com Simone Pinto: 4 Para a discussão decolonial do embuste ideológico concretizado pela questão racial conferir Quijano (2010) e Vieira Pinto (2008, p. 87 e segs.). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 379 As Comissões de Verdade surgem como uma tentativa de revelar os fatos e de tratar, em um nível mais profundo, a ferida social em sociedades que emergem de governos totalitários ou de guerras que deixam um rastro de opressão e mentira (2007, p. 415). Nesse sentido, rumo a um entendimento aprofundado sobre esse novo paradigma de Justiça, cumpre destacar a diferenciação entre ele e o modelo hegemônico vigente, chamado de Justiça Retributiva. Trabalhando com a ideia de violação da lei, com a atribuição de culpabilidade individual, simplista e direcionada para o passado, essa formatação deixa de fora o contexto, as condições psicossociais e emocionais da vítima, do infrator e da comunidade afetada. Essa justiça tem como palco para sua execução, segundo Sousa e Züge (2011), rituais e batalhas argumentativas, que buscam chegar a uma verdade única e conquistada pela articulação lógica. Tais modelos, entendemos, tendem a reificar o maniqueísmo que é próprio do mundo colonizado (FANON, 2005; MALDONADO-TORRES, 2018). No âmbito histórico, acostumados com a visão quase atemporal o qual a justiça criminal se impõe, é curioso se deparar com princípios restaurativos enraizados em tempos muito antigos. O paradigma punitivo (retributivo) só preponderou nos três últimos séculos e somente a assunção da Igreja Católica se deu início a transição das práticas restaurativas para o sistema de Justiça Retributiva (FERREIRA, 2006). As práticas punitivas, portanto, reforçariam a tendência de responsabilização unidirecional, além de discursos que estigmatizam a visão de criminalidade e seus atuantes(AGUINSKY & CAPITÃO, 2008). Essa tendência de valores tem relações intrínsecas com processos políticos de protagonismo social, de forma que a negação de conquistas democráticas para alguns segmentos sociais se relaciona com a imaturidade política e com a produtividade da manutenção de classes submissas.Essa postura simplista e punitiva insere na sociedade o sentimento de isenção de responsabilidade e consequente apatia no processo de criação de ações não-violentas, conscientizadoras e preventivas, omitindo o fato de que é justamente essa realidade que alonga as filas da violência (AGUINSKY & CAPITÃO, 2008) e que perpetua modos colonizados de saber e ser. Pensando no panorama de consequências e justificando a relevância de um modo decolonial de se pensar a justiça, podemos olhar para nossas próprias raízes. O Brasil, país sem históricos de disputas territoriais de grande magnitude, sem movimentos emancipatórios, sem guerras religiosas, civis ou atos terroristas, reúne uma estatística Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 380 contrastante. Segundo o “Atlas da Violência 2018”, que analisa a evolução da t axa de homicídios no mundo, no período compreendido entre os anos de 2000 a 2013, os países do continente americano predominam na liderança. América Central, América do Sul e Caribe encontram-se entre as regiões que apresentam os países com as maiores taxas de assassinatos do mundo. Entre 2008 e 2011, o número de vítimas de homicídios no Brasil superava os 12 maiores conflitos armados acontecidos no mundo entre 2004 e 2007 (MAPA DA VIOLÊNCIA, 2013). Eliminando a hipótese dimensional, dado possível visto o tamanho continental do nosso país, nações semelhantes em número de habitantes, porém, como o Paquistão, com 197 milhões, têm números e taxas significativamente menores. Pensar, portanto, em exercer justiça em um país colonizado é intrinsicamente ligado às consequências da própria colonização. Eis-nos novamente em face à temática da violência no mundo colonial. Nelson Maldonado-Torres entende que “a ‘revolução’ que foi a ‘descoberta’ das Américas envolveu um colapso do edifício da intersubjetividade e da alteridade e uma distorção do significado da humanidade” (2018, p. 37), fundando-se aí a relação de interdependência entre Modernidade e colonialidade e, consequentemente, os abusos cometidos contra as populações ameríndias. Até então, explica Maldonado-Torres, havia várias formas de distinções possíveis, mas eram diferenciações marcadas pelo entendimento de um Deus que criou todos e que tudo se relacionava entre si; a partir desse descobrimento, que deve ser melhor entendido como sendo um encobrimento (DUSSEL, 1992), houve um “reordenamento de todas as relações humanas existentes e formas de dominação” (MALDONADO-TORRES, 2018, p. 37), processo denominado pelo autor de catástrofe metafísica e que inaugurou a diferença subontológica, ou seja, a diferença entre os seres e os que estão abaixo dos seres. Esta catástrofe permitiu que as mais hediondas ações fossem tomadas contra as pessoas não cristãs, ou seja, contra os nativos americanos ou africanos, levando ao mundo colonial a naturalização do combate. Frantz Fanon, por sua vez, enfatiza a violência como um traço do mundo colonial e sua colocação no horizonte das lutas pela libertação nacional. O filósofo latinoamericano assinala que o processo colonial gera uma agressividade retida nos músculos, ou seja, cristalizada em formas de tensão, que se manifesta primeiro entre os seus (2005), naquilo que Paulo Freire explicita como sendo uma forma de violência horizontal. O patrono da educação brasileira afirma que “ao agredirem seus companheiros oprimidos estarão agredindo neles, indiretamente, o opressor também ‘hospedado’ neles e nos outros. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 381 Agridem, como opressores, o opressor nos oprimidos” (2016, p. 91). Devemos reconhecer que Freire explicita aqui a assimilação, a introjeção que o oprimido faz do opressor. Opressão deve ser entendida como o “ato proibitivo do ser mais” (2016, p. 83) dos seres humanos, ou seja, de cumprir sua vocação histórica e ontológica de ser mais, de buscar sua humanização. Ainda de acordo com Frantz Fanon, a violência no contexto colonial é canalizada pelas descargas emocionais da dança ou da possessão, além de esgotar-se nas lutas fraticidas que já aludimos. O pensador chega a estabelecer que “um estudo do mundo colonial deve, obrigatoriamente, dedicar-se à compreensão do fenômeno da dança e da possessão” (2005, p. 74). Tais reflexões são corroboradas por Gustavo Santos (2016), quando examina as terapêuticas populares espontâneas, como as rodas de samba e práticas religiosas conforme desenvolvidas nas igrejas neopentecostais e terreiros de umba nda, a partir do referencial fenomenológico em psicologia. Apesar de não lançarem mão de construtos psicológicos, tais práticas, assinala o autor, são interessantes porque são formas populares de exercer o cuidado terapêutico que contempla tanto o âmbito noético, quanto o hilético, com ênfase no segundo dada a vazão da afetividade que tais práticas permitem e promovem. Pensar a violência em um sistema-mundo cravado pela colonialidade, portanto, deve partir do reconhecimento da desumanização, tanto do oprimido quanto do opressor, que marcam as relações de poder neste contexto e que determinam uma subjetividade que tende à opressão, e dentro dela à violência, como formas de expressão. Por isso o oprimido, para libertar-se, não pode fazê-lo oprimindo o opressor em um deslocamento do fluxo de opressão, mas devem libertar-se em comunhão, restaurando a humanidade em ambos (FREIRE, 2016). Uma das características da Justiça Restaurativa que a fazem ser uma proposta superadora deste quadro de desumanização rumo à libertação é sua busca pela reedificação holística dos danos provocados pelo infrator. Ao visar atingir e agir sobre as consequências do crime no campo subjetivo e coletivo tal prática se coloca também como decolonial. Claro está que todo um esclarecimento sobre a violência em um sentido horizontal, de luta fratricida, e outro sentido, de libertação nacional, deve ser feito; entretanto nosso foco será especificamente o primeiro. Álvaro Vieira Pinto afirma que toda transformação da realidade objetiva reflete -se na alteração do ser humano, pois sua representação da realidade também se transforma Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 382 (1960, vol. II). Tal transformação, porém, não deve ser entendida apenas em termos “sólidos”; a ação humana que incide sobre a realidade transformando-a pode ser exercida tanto sobre o plano do ser inorgânico, orgânico, quanto no plano do ser social. Portanto as interações humanas também refletem-se na transformação daqueles envolvidos naquilo que poderíamos chamar de dialética da sociabilidade. Todo indivíduo nasce em determinado sistema-mundo, ou seja, insere-se em um contorno social, histórico e cultural, previamente construído, a partir do qual começa a produzir sua existência. O nascimento do indivíduo pode ser entendido como uma posição social, isto é, um traço básico de sua condição é estar em um contexto para desenvolver sua existência neste contexto; o indivíduo encontra-se, então, em determinada situação, à qual reporta-se inevitavelmente e constantemente ao longo de sua existência. Quando utilizamos anteriormente o verbo “reportar”, nosso intuito foi exprimir o significado primordial do termo de portar-se, portar-se novamente e manter-se continuamente em processo de portar-se à situação que lhe apresenta. A posição do indivíduo, porém, é um processo cravado pela educação que, enquanto processo existencial (VIEIRA PINTO, 1982), faz com que o indivíduo assimile os interesses da sociedade e tenha estabelecido o seu horizonte de possibilidades existenciais. Entretanto, conforme afirma Vieira Pinto, o ser humano, ao “chegar ao uso da razão, mostra-se capaz de compreender e pela ação, generalizadamente chamada revolucionária, contribuir para modificar [a sociedade]” (2008, p. 272). A atividade deliberada ou consciente, que o filósofo expressa como o “uso da razão”, é uma disposição, termo que também deve ser compreendido em seu sentido primordial como sendo uma “dis”, ou seja, negação ou oposição, daquela “posição” prévia. Temos, desta forma, a mudança da situação, ato de composição existencial que se repete infinitamente ao longo da socialização e história humana. Nosso intuito ao expor a dialética da sociabilidade é apenas o de contemplar o processo através do qual o ser humano, por si mesmo e pelas ações e interações exteriores que sofre, se faz ser humano, ou seja, deslindar o fato existencial da educação enquanto um dos seus traços histórico-antropológicos. Segundo Vieira Pinto, “a educação configura o homem em toda sua totalidade [, pois] é o processo pelo qual o homem adquire sua essência (real, social, não metafísica)” (1982, p. 30), sendo, por isso mesmo, um processo constitutivo do ser humano. A violência no contexto colonial é herança sempre atualizada do expediente ideológico denominado por Maldonado-Torres (2018) de catástrofe metafísica. Dizendo de Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 383 forma geral, a violência nessas terras é concretizada de pronto e no mais das vezes trespassada pela opressão colonial. A atualização da catástrofe metafísica desenvolve -se através da dialética da sociabilidade, ou seja, das formas interacionais que marcam a formação e a com-formação da personalidade humana em determinado sistema-mundo, que acaba por perpetuar a situação de violência. É necessário, portanto, com vias a um processo de libertação humanizadora algo diferente da Justiça Tradicional. Podemos lançar mão de uma citação de Álvaro Vieira Pinto para entender a relevância da Justiça Restaurativa como um processo decolonial. O filósofo brasileiro afirma que “o homem livre não é o solitário, mas o solidário” (1962, p. 51), referindo -se ao contexto das reflexões sobre a greve como um ato libertador e à importância das conjugações de esforços dos trabalhadores. Entretanto, ao apontar tal princípio como sendo noção primordial da ética e da filosofia, ele destaca sua importância geral. Apoiados nele, podemos dizer que a Justiça Restaurativa oferece as bases para superar as bases maniqueístas da modalidade tradicional, rompendo com o processo de negação do outro enquanto outro; também permite ao “eu infrator” se reconhecer como sendo um eu “como um dos representantes de nós” (LISPECTOR, 2016, p. 386), instaurando, assim, as bases para a restauração dos laços de solidariedade humana quem devem ser assumidos como ligando uns aos outros. CONSIDERAÇÕES FINAIS Cumprindo com o objetivo desse trabalho, entendemos a relação ess encial entre os preceitos da Justiça Restaurativa e a proposta Decolonial. Reconhecemos ao longo desse percurso os impactos da colonialidade do saber nas práticas jurídicas, e como os esforços intelectuais permitem novos vislumbres de governos de condutas. Os potenciais dessa interlocução guardam horizontes de grande importância, uma vez que sistematizam alternativas possíveis a práticas já enraizadas que não só manifestam, mas também perpetuam a subalternização. Dessa forma, ressaltamos que a Justiça Restaurativa é uma alternativa que pode ser superadora daquilo que Achille Mbembe (2018) chamou de necropolítica e que marca a realidade dos povos oprimidos pela dominação colonial. Pensar nessa determinação da vida, onde quem vive e quem morre está engendrado em uma lógica sistêmica de exploração e extermínio, é abrir caminho para entender a urgência de novas práticas. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 384 Entendemos as limitações desse estudo no que tange ao aprofundamento de práticas nacionais e a exposição de críticas a esse modelo, também passível de ponderações, apesar de seu cunho transformador. Ainda assim, reafirmamos a aproximação decolonial ao campo da justiça como uma das mais relevantes e fundamentais reflexões se desejarmos mobilizar uma autêntica libertação nacional. Ademais, salientamos a importância da Justiça Restaurativa ser construída junto à vítima e infrator, em um processo de reconhecimento da alteridade de ambos, da consideração da intersubjetividade ali processada, da responsabilidade no processo de restauração dos agravos com etidos e a partir de uma prática que se proponha superadora das limitações dos modelos tradicionais eurocêntricos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUINSKY, B., & CAPITÃO, L. 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Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 387 LEITURAS DECOLONIAIS SOBRE O SISTEMA PENAL E OS DESAFIOS À CRÍTICA CRIMINOLÓGICA CONTEMPORÂNEA Luciana Costa Fernandes1 RESUMO O artigo se propõe, através de revisão bibliográfica, a revisitar a crítica criminológica, discutindo racismo enquanto engrenagem do poder de punir. Estabelecendo pontes entre países latinoamericanos, através da história compartilhada das expropriações de base colonial-escravista, discute a possibilidade das leituras decoloniais renovarem as agendas na área. Toma como exemplo dados relativos ao sistema prisional brasileiro, analisando o super-encarceramento de pessoas negras como parte das operações da colonialidade do ser e poder; bem como a super-representação de pessoas brancas na magistratura como indiciária da branquitude. PALAVRAS-CHAVE: Racismo; branquitude; seletividade do sistema penal; estudos decoloniais; crítica criminológica. RESUMEN El artículo se propone, a través de revisión bibliográfica, a revisar la crítica criminológica, discutiendo racismo como engranaje del poder punitivo. Estableciendo puentes entre países latinoamericanos, a través de la historia compartida de las expropiaciones de base colonial-esclavista, discute la posibilidad de que las lecturas de colonialidad renovar las agendas en el área. Toma como ejemplo datos relativos al sistema penitenciario brasileño para proponer el super-encarcelamiento de personas negras como parte de las operaciones de la colonialidad del ser y poder; y también la super-representación de personas blancas en la magistratura como indiciaria de la branquitud. PALABRAS CLAVE: Racismo, branquitud, selectividad del sistema penal, estudios de colonias, crítica criminológica. INTRODUÇÃO A proposta de discussão, na América Latina, de atividades que envolvem dinâmicas de força e poder, como é o de punir, coloca em destaque um lugar marginal de enunciação2. A região compartilha a história de relações que foram estabelecidas nos interesses das elites e que pautaram o desenho dos lugares de algumas, necessárias, em um primeiro momento, ao sistema colonial-escravagista. Assim o projeto artificial de construção do sistema/mundo/moderno se 1 Professora substituta de direito penal, processo penal e criminologia (UFRRJ); graduada em direito (2014) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); mestra (2018) pelo do Programa de Pós Graduação em Direito da mesma universidade (PPGD-UERJ) e doutoranda em direito pelo PPGD - Puc/Rio (2018). É membra da associação "Elas Existem - mulheres encarceradas". E-mail: lucianafernandesppa@gmail.com. 2 Este artigo é escrito e pensado desde as escrevivências de militância e academia da autora, no Brasil, país de seu domicílio e nacionalidade. Mas resulta também de um esforço de aproximação das críticas formuladas ao sistema penal em termos continentais, tomando como ponto de encontro a história de despossessões produzida pelo sistema colonial, entendida enquanto complexo de longa duração produtor do reforço sistêmico de um sistema de opressões racializado manifestado no poder punitivo. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 388 realizou e tem se realizado: através de sistemas de diferenciação que hierarquizam e dividem a sociedade. E que tomam a raça3como principal marcador. Embora essas contingências sejam importantes para se pensar em relações de poder, em território marginal, ainda há pouco debatido nesses termos, sobretudo no que se refere às produções no âmbito da crítica ao sistema penal. Quer dizer, as construções que se reivindicam situadas na chamada “criminologia crítica” ainda tem assumido, hegemonicamente, a centralidade da marcação da classe enquanto condutora da realização seletiva da atividade de punir, silenciando as singularidades produzidas pela nossa história marginal (DUARTE, 2018, pp.94-114) Se a chamada “criminologia radical” (SANTOS, 2006) atentou balizada, de um lado, pelo rotulacionismo, e de outro, pelo materialismo dialético4 para a criminalização da classe proletária, ainda são incipientes as leituras que deem conta da centralidade do racismo enquanto lógica de funcionamento do sistema (FREITAS, 2016). E, ainda, que sejam atravessadas pelo arcabouço teórico das colonialidades5, que neste trabalho aderem como modo de interpretação das vicissitudes assumidas em nossa região para a construção de um poder punitivo historicamente direcionado a pessoas negras e marcado pelo reforço dos interesses da branquitude6. Para além das dificuldades de diagnóstico resultantes pelo esgotamento da crítica sob viés da classe apresenta - inclusive porque é possível propor que as dinâmicas de classe se realizam por aqui enquanto parte dos constructos preenchidos pelo racismo e sexismo - o aporte tende a ser sintomático dos epistemicidios produzidos pelo Norte Global (SANTOS, 2010). Quem são os pobres e como o racismo informa a miséria punida no Brasil e na América Latina?7. Até quando permitiremos que o mito da democracia racial (NASCIMENTO, 1978) também informe as análises dialéticomaterialistas dos processos de criminalização? Imbuído pela motivação de dar centralidade à historização do racismo enquanto condutor de práticas do sistema penal, este artigo se construirá em duas fases. A primeira será 3 Não se percebe, neste trabalho, raça como um atributo biológico ou uma mera categoria analítica, discurso que tem o potencial de minimizar o seu caráter de construção política, cultural e social. Antes, como forma de classificação imanente ao sistema de dominação, constructo do modelo colonial moderno e eurocentrado de interpretações dos sinais inscritos nos corpos, e que reverbera em diversos campos. 4 Dialogamos com a leitura de CARVALHO (2013) e BARATTA (2014, pp. 159-164). 5 O plural marca que pretendemos partir da análise das colonialidades do poder (QUIJANO, 2000), saber (LANDER, 2005), ser (MALDONADO-TORRES, 2007) e gênero (LUGONES, 2014). 6 Tomamos emprestado a definição “lugar de vantagem estrutural nas sociedades estruturadas na dominação racial” (FRANKENBERG, 2004, p. 312). 7 Aqui faz-se referência ao clássico da criminologia “Punir os pobres” (WACQUANT, 2007) Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 389 destinada a situar as relações de poder ladinas8enquanto parte daquilo que se tem produzido a partir das investigações sobre as colonialidades. Nessa fase, além de debatidas as propostas da colonialidade do poder (QUIJANO, 2000; 2010) e ser (MALDONADO-TORRES, 2007; 2010) que podem informar a condição racializada da atividade de punir ou a “orden de cosas que coloca a la gente de color bajo la observación asesina y violadora de un ego vigilante” (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 138). Além disso, será o colonialismo jurídico (BIDASECA, 2011) será situado enquanto lugar de produção e legitimação das dinâmicas de opressão tratadas, através do campo de poder-saber que é o direito. Assim, os corpos encarnados e racializados que ocupam, hegemonicamente, o banco daquelas pessoas que julgam e daquelas que são criminalizadassão tomados como indiciários dos processos narrados, sendo as disputas de classe apenas parte dos interesses transversais em jogo, que se aprofundam a partir do diagnóstico da imbricação de outros sistemas de hierarquização. A segunda será destinada a reivindicar uma postura mais atenta aos aspectos conjunturais do sistema penal nas nossas margens, entendendo a necessidade da ampliação de estudos que marquem o racismo como engrenagem da punição - para além da investigação que se reduza ao negro-tema (RAMOS, 1995) ou à fotografia enegrecida das celas prisionais. Ou seja, que possibilite uma agenda para além do diagnóstico crítico de que o controle social responde a padrões racializados - porque remetido ao escravismo e às permanências do sistema colonial. A busca, aqui, passa também por debater alguns privilégios da supremacia branca encarnados na magistratura e implicados no poder de punir, que são conjunturais às primeiras análises. São as inquietações de Thula Pires: fazemos um convite à que a criminologia crítica, mesmo àquela que só vislumbra como caminho possível de crítica aquele trilhado através da Teoria Social, passe a lidar com as tensões raciais a partir do que Guerreiro Ramos (1995) chama de negrovida. Um convite a que repensem seus marcos teóricos sobre relações raciais no Brasil, levando em conta o que eles permitem desvelar e em que medida, mantém sobre nós leituras hierarquizadas e eurocêntricas, reduzindo nossas experiências, saberes e agencias a objeto, a um problema que não diz respeito a sujeitos que nos racializam, mas que naturalizam e normalizam a racialidade não nomeada de sua branquitude. Tomar consciência dos silêncios reproduzidos e códigos pelos quais a branquitude operou nesse campo de estudos é fundamental para que possamos produzir alternativas potentes ao brutal e perverso modelo de desumanização de corpos que ancora a criminologia e sua crítica contemporânea (PIRES, 2018, p. 544). Aderimos, assim, a um conjunto de produções interpeladas pelas insurgências produzidas pela quebra do pacto da branquitude na produção de conhecimento (DE 8 Partindo do termo Améfrica Ladina, de Lélia Gonzalez (1988), reivindicando pelas apropriações e reinvenções próprias das formas de ação política étnico-raciais de nosso continente, de ressignificação das expropriações originárias em potências e resistências. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 390 CALAZANS et. al. 2016) na área criminal – que quando não se basta nas abstrações dogmáticas, não dá conta de promover um debate sério sobre as permanências da base escravocrata do sistema penal. E que reconhece, na chave da crítica dos debates sobre o racismo trincheiras a serem perfilhadas nos atuais influxos criminológicos. COLONIALIDADE DO PODER PUNITIVO COMO APORTE TEÓRICO- METODOLÓGICO PARA SE PENSAR O SISTEMA PENAL A proposta de debate sobre a “colonialidade do poder” é interpelada pela percepção de que, em terras latino-americanas, as relações de poder se estabelecem em malhas de exploração, dominação e conflito articuladas (QUIJANO, 2010, p. 95). Isto é, em processos que articulam “os lugares periféricos da divisão internacional do trabalho com a hierarquia étnico-racial global e com a inscrição de migrantes do Terceiro Mundo na hierarquia étnico-racial das cidades metropolitanasglobais”(GROSFOGUEL,2008,p.395).Nocentrodessas construções, estiveram e estão os signos historicamente formulados em torno de dinâmicas de alteridade que tomaram forma, sobretudo, através da racialização.Assim ascende a ideia da raçaenquanto legitimadora de expropriações originárias, materiais e simbólicas e que se manifestam ainda hoje como constructos de longa duração. É possível dizer que a realização das colonialidades, que construíram e reforçam a Europa como epísteme, esteve e está ligada às diversas distribuições de valores associados a toda uma história outrificadora. A marca da raça, do indígena e do africano, definiu parte de uma experiência comum latino-americana, a da discriminação e subalternização. E assim se desenhou o trajeto dos interesses das elites e das hegemonias: a história da consolidação dos interesses dominantes está relacionada a uma linguagem política e relacional muito particular, que atribuiu um capital racial positivo para o branco e negativo para o não branco9. Essa é, provavelmente, a principal abertura de campo trazida pelas epistemologias do sul (SANTOS, 2011), que trabalham na linha dos estudos das colonialidades: pensar em como o racismo se realiza como princípio organizador das mais variadas hierarquias na Améfrica Ladina (GONZÁLES, 1988). Em outras palavras, como nossa periferia é marcada por uma rede 9 Para Rita Segato, ínsito a este processo, está a formação de massas despossuídas: “Son estos no-blancos quienes constituyen las grandes masas de población desposeída. Si algún patrimonio en común tienen estas multitudes es justamente la herencia de su desposesión, en el sentido preciso de una expropiación tanto material -de territorios, de saberes que permitían la manipulación de los cuerpos y de la naturaleza, y de formas de resolución de conflictos adecuadas a su idea del mundo y del cosmos –como simbólica– de etnicidad e historia propias.” (SEGATO, 2007, p. 23). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 391 de subjugações que se materializa em todo um pensamento social racializado, cujos impactos nas experiências de sujeitas/os nos é, em termos de marcos teóricos, especialmente importantes de explorar. As patologias do poder imperial e as novas conformações assumidas pelas colonialidades estão alinhadas com processos de discriminação de pessoas contra pessoas, também conhecidos como colonialidade do ser. E que são materializadas nos sentidos atribuídos às significantes marcadas na pele que se introjetam no campo das subjetivações, nas citadas experiências do ser (MALDONADO-TORRES, 2010, p.423). A racialização, esse mecanismo de expurgo que é indispensável para a construção da supremacia branca, é condutora dos limitados espaços do existir relegados a pessoas não brancas latino-americanas, projetadas como Outro. Sueli Carneiro aponta que: a essência do racismo, enquanto pseudo-ciência, foi buscar legitimar, no plano das idéias, uma prática, e uma política, sobre os povos não-brancos e de produção de privilégios simbólicos e/ou materiais para a supremacia branca que o engendrou. São esses privilégios que determinam a permanência e reprodução do racismo enquanto instrumento de dominação, exploração e mais contemporaneamente, de exclusão social em detrimento de toda evidência científica que invalida qualquer sustentabilidade para o conceito de raça. A sustentabilidade do ideário racista depende de sua capacidade de naturalizar a sua concepção sobre o Outro (CARNEIRO, 2005, p. 29). Reflexos e dinamizadores das dicotomias hierárquicas e lógicas categoriais, os lugares e não lugares que se formulam através dos significados atribuídos aos corpos podem ser também teorizados como imersos na lógica opressiva da modernidade colonial. Isso quer dizer que as teias que constroem o sistema formulam os estados de dominação complexos e particularizados pela nossa situação abissal (MENDONZA,2014). Ou que, dentro de uma perspectiva crítica às agências do sistema, o papel do direito e a situação de pessoas que ocupam o banco de magistrados/as ou de acusados/as carrega a mais que uma herança colonial. São indiciários das relações contingentes entre o sistema jurídico, penal e o sistema mundo explorado. COLONIALIDADE JURÍDICA E IMPLICAÇÕES EM CORPOS ENCARNADOS, RACIALIZADOS, DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL A sequência iniciada pelas expropriações fundadoras das colonialidades, que se realizam em tão variados campos da experiência e das relações, é parte integrante da própria organização histórica das institucionalidades latinoamericanas. Assim, é possível dizer que o Estado e seus mais diferentes órgãos, concentradores dos interesses das elites, instalaram a conquista e continuam a dar projeção às estratégias políticas e ideológicas que preenchem as Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 392 despossessõese que continuam a se realizar no extermínio, material e simbólico, de povos não brancos. Em meio a tais interesses pulsantes, se realiza a atividade de punir, onde também se localiza o direito, o sistema penal e as políticas criminais. Territórios dominados pelasfaláciasdaigualdadeepelalisuradeumdiscursojurídicotravestidopela imparcialidade, mas que compõem o interior desse conjunto complexo de dinâmicas de poder, aqui percebidos, sobretudo, enquanto ambientes de realização da branquitude10. Como instrumentos de força imbuídos nessas relações, as respostas oferecidas pelo poder punitivo às demandas por ordem (BATISTA, 2016) podem ser interpretadas como sintonizadas com as históricas hierarquizações de que falamos. E que ganham todo um tom legitimado pelo discurso “do direito”, que tem como promessa principal ser igualmente aplicado e democraticamente realizado, embora seja sua componente sistêmica11 – há muito trabalhada na criminologia - a seletividade (RUSCHE; KIRCHHIMER, 1999; MELOSSI; PAVARINI, 2006). Esse é, justamente, todo um campo de pesquisa criminológica: o estudo dos discursos sobre a questão criminal, que nos revela quanto as histórias dos pensamentos12 que lhe formulam podem ser entendidas como narrativas de atribuições de sentidos não só a certas ações, mas principalmente a certas pessoas. Ou seja, a partir da perspectiva de que é possível um caminho de interpretações criminológicas que rompam com a plataforma de um exame causal-explicativo ou um conceito ontológico do crime e/ou da(o) criminosa(o)13. Mas que, por 10 Também informa neste artigo o conceito como trabalhado por Ana Amélia Laborne “entendida aqui como um modo de comportamento social, a partir de uma situação estruturada de poder, baseada numa racialidade neutra, não nomeada, mas sustentada pelos privilégios sociais continuamente experimentados. Assim, observa-se que a branquitude enquanto esse lugar de poder articula-se nas instituições (universidades, empresas, organismos governamentais, etc.) que são por excelência, conservadoras, reprodutoras, resistentes e cria um contexto propício à manutenção do quadro das desigualdades. Ao mesmo tempo, concordando com as análises de Piza (2005), entendemos que esse conceito nos possibilita incorporar um questionamento do lugar de privilégio associado à identidade branca.” (LABORNE, 2015, p. 152) 11 Zaffaroni revela o que há de sistêmico na atuação seletiva do sistema penal, em seu clássico: “Hoje, temos consciência de que a realidade operacional de nossos sistemas penais jamais poderá adequar-se à planificação do discurso jurídico-penal, e de que todos os sistemas penais apresentam características estruturais próprias de seu exercício de poder que cancelam o discurso jurídico-penal e que, por constituírem marcas de sua essência, não podem ser eliminadas, sem a supressão dos próprios sistemas penais. A seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são características conjunturais, mas estruturais do exercíciodepoderdetodosossistemaspenais”(ZAFFARONI,2001,p.15). 12 Para fazer referência explícita ao título de Gabriel Anitua, que introduz o livro justificando: “É importante esclarecer nesse ponto que, ao referir-me a discursos ou pensamentos, faço-o em relação a práticas discursivas propriamente ditas, como ideias, escritos políticos e científicos, leis, sentenças etc., mas também em relação a práticas não discursivas mas igualmente visíveis, como desenhos ar- quitetônicos, posturas, tarefas, atitudes, modas etc.” (ANITUA, 2015, pp. 16-17) 13A perspectiva ontológica e a metodologia causal explicativa estão relacionadas ao paradigma etiológico, sobretudo aos estudos ancorados nos positivismos criminológicos. Ao propor a sua superação, o enfoque é Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 393 ser tradicionalmente europeia, também construiu seu marco crítico distante, em regra, das tessituras das relações de poder desde as nossas margens, ou desde as nossas veias abertas (GALEANO, 1999) coloniais. A dimensão desses processos pode ser observada a partir das prisões no Brasil, que comunicam os sentidos dos extermínios na sua histórica relação com as pessoas que, em regra, a elas podem (ou devem) se assujeitar. A estimativa de que, na população brasileira, pessoas negras representem 53%, enquanto 72% no total da população aprisionada (INFOPEN, 2017) e de 62% de mulheres negras presas no Brasil em 2017 (INFOPEN, 2018) é indicadora da “cor dos cárceres”, ilustrativa das particularidades da colonialidade do poder punitivo. Para Segato: la acción policial y la sentencia refuerzan y reproduzen el etiquetamiento preexistente de la raza. La racialización, o lo que defino como formación de un capital racial positico para el blanco y un capital negativo para el no blanco es lo que permite guetificar y encarcelar diferencialmente y desalojar del espacio hegemónico, del territorio usurpado donde habita el grupo que controla los recursos de la Nación y tiene acceso a los sellos y membretes estatales (SEGATO, 2006, p. 150-151). Isto quer dizer que, sendo o racismo âncora da seletividade penal, as prisões podem ser entendidas como instituições que concretizam a ordem racial14, sendo o cárcere sistêmico ao conjunto articulado de redes que atualizam a colonialidade do poder. Ou, como diz Ana Flauzina, “o racismo é o fundamento que justifica a existência de sistemas penais de caráter genocida em nossa região” (FLAUZINA, 2008, p.30). Mas esse diagnóstico, por si, já não basta. Se há muito os cárceres são ditos como lixos definitivos15, podem ser historicizados na compartilhada realidade abissal a partir da expropriação originária de que falamos. A rede carcerária conclui um sistema complexo de marginalizações, em fluxo com as colonialidades. E que é possível dizer, se utilizando da lógica das alteridades, replica e redistribui as zonas do não-ser (FANON, 2008) e dos sentidos da necropolítica (MBEMBE,2011). São metáforas daquilo que Fanon pontua como clausuras do próprio corpo, produzidas pela “culpa em relação ao passado de minha raça” (FANON, 2008, p. 189). deslocado para a reação social – de onde emerge o que neste projeto se reivindicará como “criminologia crítica”, precedida pelo labelling approach. 14 Em outra ocasião, reforça Rita Segato: “Esto se debe a que el “color” de las cárceles al que me refería en aquel texto es un dato evanescente, que no puede ser definido de ninguna otra forma que como la marca en el cuerpo de la posición que se ocupó en la historia. Esta marca tiene la capacidad de revelar y comunicar, al ojo entrenado por esa misma historia, un origen familiar indígena o africano, y constituye una realidad que permanece sin respuesta estadística precisa pero que ha generado algunas respuestas testimoniales” (SEGATO, 2010, p. 19). 15 Angela Davis, em sua recente vinda à Bahia, pontuou que “(...) a rede carcerária mundial constitui um vasto depósito onde pessoas consideradas desimportantes são descartadas como lixo. Aquelas tidas como as menos importantes são as pessoas negras (…). Angela Davis, na conferência “Atravessando o tempo e construindo o futuro da luta contra o racismo”, ocorrida em 25 de julho de 2017, na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 394 MUDANDO AS LENTES E REVISITANDO PRIVILÉGIOS: JUDICIÁRIO, DIREITO E BRANQUITUDE A discussão dos signos do aprisionamento também não está deslocada da possibilidade de interpretação das práticas reais que lhe encorpam e, sobretudo, das pessoas que dão vida à estratificação das gentes. A escolha é a de trabalhar, nesse artigo, com integrantes da magistratura. Isso porque se, em relação ao sistema prisional, é apresentada a situação da superrepresentação de pessoas negras; naquela instituição, o que se verifica é uma desproporção ainda mais expressiva. No Brasil, a excessiva sub-representação16em cargos de poder integra também as estratégias de dominação de quetratamos. Este recorte ambivalente conduz à possibilidade de se pensar nos espaços e sentidos da ocupação, por um lado, de cargos que remetem à cúpula do poder; e, por outro lado - embora não necessariamente em absoluta oposição – daquelas pessoas na condição de subumanidade a ser vivida. Não há um gabarito do que se produz nessas relações, também contingentes e atravessadas pelas condições próprias de cada um de seus/suas atores/as. Mas há um indício de programação, aqui trabalhado em comunicação com as dinâmicas das relações de poder matizadas pelas colonialidades, que pode ser problematizado através da denúncia das posições de privilégio e subalternidades racialmente construídas, e que são imanentes ao sistema penal. Partindo dessas considerações, a violência sistêmica nos espaços do sistema penal pode ser proposta como produto e também como produtora da objetificação de certos corpos na América Latina. E que se realiza em processos que dependem da aceitação desproblematizada dessa condição inferiorizada e a reproduzem, tudo isso aparelhado pela assepsia do direito. O discurso jurídico, nesse caso, justifica a atuação das agências e de seus/suas atores/as, legitimando um aparato de exceção e reforçando hegemonias. Ainda há todo um caminho de investigações a se perfilhar, no âmbito da crítica criminológica, sobre a medida em que as agências do sistema podem integrar os efeitos do branqueamento17 e cuja potência se situa, justamente, em perceber a materialização das críticas trazidas pelas lentes decoloniais. 16 No Brasil, o CNJ (2013) traçou uma única vez o perfil da magistratura conforme a raça, utilizando a metodologia da autodeclaração. Segundo o relatório, 17,1% teria cor de pele parda; 2% negra e 0% indígena. Segundo o mesmo relatório, na justiça estadual 15,6% seriam negros(as) e, nos Tribunais Superiores, 8,9%. Apenas em 2014, o TJRJ elegeu a primeira desembargadora negra, Dra. Ivone Ferreira Caetano. 17 Segundo Bento: “foi um processo inventado e mantido pela elite branca brasileira, embora apontado por essa mesma elite como um problema do negro brasileiro. Considerando (ou quiça inventando) seu grupo como padrão de referência de toda uma espécie, a elite fez uma apropriação simbólica crucial que vem fortalecendo a autoestima e o autoconceito do grupo branco em detrimento dos demais, e essa apropriação acaba legitimando sua supremacia Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 395 A possibilidade de pesquisa sobre os desdobramentos da supremacia racial branca, através da punição e do encarceramento, se torna urgente, sobretudo se tomado em conta que a branquitude só existe em relação18. Aparelhado pela colonialidade, o sistema penal pode ser entendido como maneira de hierarquizar sujeitos em virtude de atributos de cor de pele e seus significados, distribuindo as despossessões, mas também conferindo uma série de privilégios simbólicos e materiais (SCHUCMAN, 2012, p. 25-29) às elites que historicamente ocupam os lugares de formulação e aplicação da lei. Propor o sistema de justiça criminal como lugar habitado pela branquitude é debater como pessoas reais, que moldam e que aplicam o direito penal, podem reforçar o “lugar de vantagem estrutural nas sociedades estruturadas na dominação racial” (FRANKENBERG, 2004, p. 312). A inscrição da marca “criminosa” em certos corpos, assim, mais do que a realização do direito em prática, opera diferencialmente em função dos sentidos atribuídos às existências racialmente interpeladas. O deslocamento de lentes proposto torna possível a análise de como instituições conservadoras criam um contexto de manutenção ideológica do quadro de castas raciais em território marginal, principalmente quando formuladas a partir da ideia da neutralidade e universalidade, desse preceito desconhecido pela juventude negra exterminada, o de que “todos são iguais perante a lei”. A sofisticação do racismo latino-americano se alimenta de frases formalistas como esta, agenciadas pelo direito, que ofuscam o mito da superioridade branca que enviesa a atividade prática e que precisa ser ainda mais ocupado pela crítica criminológica. Segundo Lélia Gonzalez: Desse modo, a afirmação de que somos todos iguais perante a lei assume um caráter nitidamente formalista em nossas sociedades. O racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para manter negros e indígenas na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças a sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento, tão bem analisada por cientistas brasileiros. Transmitida pelos meios de comunicação de massa e pelos sistemas ideológicos tradicionais, ela reproduz e perpetua a crença de que as classificações e os valores da cultura ocidental branca são os os únicos verdadeiros e universais. Uma vez estabelecido, o mito da superioridade branca comprova a sua eficácia e os efeitos de desintegração violenta, de fragmentação da identidade étnica por ele produzidos, o desejo de embranquecer (de “limpar o sangue” como se diz no Brasil), é internalizado com a consequente negação da própria raça e da própria cultura (GONZALEZ, 1988). econômica, política e social. O outro lado dessa moeda é o investimento na construção de um imaginário extremamente negativo sobre o negro, que solapa sua identidade racial, danifica sua autoestima, culpa-o pela discriminação que sofre e, por fim, justifica as desigualdades raciais” (BENTO, 2002, p. 1). 18 Segundo Maria Aparecida Bento, para “vários estudiosos, branquitude é sinônimo de opressão e dominação e não é identidade racial. É o reconhecimento de que raça, como um jogo de valores, experiências vividas e identificações afetivas, define a sociedade. Raça é uma condição de indivíduo e é a identidade que faz aparecer mais do que qualquer outra, a desigualdade humana” (BENTO, 2005). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 396 Manter a atenção para as formasúnicas como a dominação pode se expressar no exercício do poder punitivo, nas práticas reais de agentes, e portanto nos lugares conflitivos em que se situam, é pautar a discussão sobre privilégios que expandem o debate sobre a questão racial e o sistema penal. Sob este foco, os estudos decoloniais ajudam a compreender esse processo como um trajeto de longa duração, porque a colonização em si demanda que o racismo enviese as relações, justamente nessa composição negativa binária dos superiores (colonizadores) e inferiores (colonizados). CONCLUSÃO Diante do estado necessário de redistribuição dos marcos teóricos colocados para discutir questão racial e poder punitivo, a proposta de debate aqui trazida é a de conjecturar a revisão dos marcos teóricos que têm bastado às produções no campo da crítica criminológica. Nesses termos, já não basta diagnosticar a “cor dos cárceres”– guardada a pertinência do debate no seu tempo. É pauta urgente e emergente pensar sobre “os ciclos de privilégios e vantagens históricas que usufruem corpos brancos em sociedades de base colonial-escravista” (PIRES, 2018, p. 543) Nesses termos, a possibilidade de interpelações das chaves decoloniais para a criminologia se apresenta como aporte potente para situar o poder punitivo enquanto integrante de um sistema-mundo que opera trazendo os constructos de raça como centrais para se entender como estão capilarizadas as estratégias de dominação e opressão latinoamericanas. Ainda, é apresentada como possível caminho de desconstrução das confabulações próprias ao direito, cujas abstrações dogmáticas demandam urgente revisão a partir das disciplinas de método empírico crítico. A manutenção de um sistema jurídico que não só não se compromete a discutir suas próprias abstrações igualitárias falaciosas, reforça os silêncios próprios à branquitude que essa agenda produz. E se materializa em instituições, como é o judiciário, que se constroem como ambientes em que as abstrações jurídicas tornam sofisticados os programas de desumanização ínsitos ao poder de punir e encarcerar. A proposta de deslocamento de lentes da crítica criminológica prevê a articulação das chaves ladinas (GONZALEZ, 1988) de análise das relações de poder, que não se bastam em apontar o racismo enquanto condutor da seletividade, mas ainda revisitem as agências do sistema penal enquanto realizadoras dos privilégios que consolidam a supremacia branca em território latino-americano. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 397 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANITUA Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução de Sérgio Lamarão. 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Os debates sobre gênero e questões feministas no continente africano se desenrolam, principalmente, em torno dos estudos sobre as mulheres africanas relacionadas ao desenvolvimento, porém, nesse texto abordaremos as diferentes nomenclaturas que tem sido utilizadas para designar as lutas dessas mulheres, entendendo a auto-definição enquanto identidade cultural e política relevante para contextos colonizados que anseiam por estratégias decoloniais, ao tempo, que será exposto um saber endógeno, partindo de teóricas africanas, seus distintos posicionamentos sobre gênero e feminismos em África. PALAVRAS-CHAVE: Mulherismo africano; Feminismos negros; Identidades político-culturais. RESUMEN Este artículo tiene por finalidad discutir dos conceptos distintos: mujerismo africano y feminismo negro. Los debates sobre género y cuestiones feministas en el continente africano se desarrollan principalmente en torno a los estudios sobre las mujeres africanas relacionadas con el desarrollo, pero en ese texto abordaremos las diferentes nomenclaturas que se han utilizado para designar las luchas de esas mujeres, entendiendo la auto- la definición como identidad cultural y política relevante para contextos colonizados que anhelan por estrategias de colonias, al tiempo, que se expondrá un saber endógeno, partiendo de teóricas africanas, sus distintos posicionamientos sobre género y feminismos en África. PALABRAS CLAVE: Mujerismo africano; Feminismos negros; Identidades político-culturales. INTRODUÇÃO Este trabalho surge como exigência para aproveitamento da disciplina “Gênero na África Negra” ministrada pela professora Dra Patrícia Godinho Gomes no programa de pósgraduação em Estudos Étnicos e Africanos da UFBA, donde tivemos a oportunidade de por em debate os conceitos de gênero e feminismos segundo teóricas africanas, ou seja, partindo de perspectivas endógenas. Buscando situar o âmbito de alcance desse trabalho, para fins de análise, utilizaremos algumas estudiosas africanas que trabalham sobre as questões de gênero, mulher e feminismos, intentando dialogar os conceitos de feminismo e mulherismo em África, dentre elas: Bibi Bakare-Yusuf (2003); Ifi Amadiume (2005); Mary Modupe Kolawole (2004); Nah Dove (1998); Pala Achola (2005); Patrícia Godinho Gomes (2015; 2016). Além dessas teóricas 1 Discente e bolsista Capes do Programa de Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia. CV: http://lattes.cnpq.br/6508724881953246. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 402 procuraremos mostrar o posicionamento de algumas mulheres africanas teóricas e estudiosas de gênero sobre a auto-definição enquanto feministas e/ou mulheristas e as problematizações entre as duas nomenclaturas para elas. Essa inclusão se dá para entendermos os variados prismas que podem assumir a identidade política, levando em consideração, aspectos sócio-geográficos, políticos e étnicoculturais diversificados. Para tanto, optamos por incluir a perspectiva dos estudos culturais, segundo, Stuart Hall, teórico da diáspora africana, que vem empenhando esforços para demonstrar a centralidade da cultura no mundo globalizado. POSICIONAMENTOS SOBRE GÊNERO E FEMINISMOS EM ÁFRICA: SABERES ENDÓGENOS A discussão que pretendemos aqui partiu da reflexão feita por Sônia Beatriz dos Santos (2007) em seu artigo “Feminismo Negro Diaspórico”. A autora aponta para cinco distintas correntes representativas desta forma de feminismo e dentre elas aparece o elaborado por mulheres negras africanas, ou melhor dizendo, feminismos africanos. Ainda assim, a autora apenas, cita a existência dessas correntes feministas negras sem tantos aprofundamentos. Por isso, buscamos os saberes endógenos elaborados por teóricas africanas e diaspóricas. Nessa chave se encontra a posição de Bibi Bakare a qual afirma que os feminismos africanos exigem uma descrição teórica incorporada nas diferenças de gênero que são fundamentadas nas complexas realidades das experiências cotidianas das mulheres africanas e que tal teoria deve especificar e analisar como nossas vidas se cruzam com uma pluradidade de formações de poder, encontros históricos e bloqueios que moldam nossas experiências através do tempo e do espaço (YUSUF, 2003). Já Pala Achola destaca a necessidade da agenda de desenvolvimento ser protagonizada pelas pessoas nas comunidades locais a despeito de instituições européias de pesquisa. O artigo traz problemas do paradigma de "desenvolvimento", ao tempo que mostra uma perspectiva de "desenvolvimento" que critica a dependência pós-colonial, a opressão e anti-desenvolvimento produzido na África por estruturas e centros de pesquisa internacionais. Em toda instância, se observará que pesquisa ou protesto social iniciado para ou pelas próprias mulheres invariavelmente se motiva por considerações econômicas e políticas e não pelo feminismo per se (ACHOLA, 2005, p.299) Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 403 Nessa mesma direção, a autora Patrícia Godinho (2015; 2016) explicará como procedeu a situação das mulheres bissau-guineenses e sua participação nos processos emancipatórios na Guiné-Bissau. Tanto no artigo “As outras vozes”, quanto no “O estado da arte dos estudos de gênero na Guiné-Bissau, o esforço da estudiosa é mostrar que [...] embora a maioria das mulheres nesse contexto, pratique o feminismo de várias formas – primeiramente através dos movimentos sociais de luta pelos direitos femininos, empreendedorismo e das lutas pela participação política –, elas não vislumbram um debate interno, no sentido de uma consciência feminista [...], ou seja, as mulheres guineenses são feministas e praticam o feminismo sem saberem que o são (GOMES, 2016, p. 916). Em seu artigo "“Reconceptualizing African Gender Theory: feminism, womanism and the Arere metaphor”," Mary Kolawole busca uma definição dinâmica de "cultura", que precisa ser criticamente desconstruído e está profundamente ligado ao conceito de "gênero". Ela afirma que há polaridades na aproximação entre mulheres africanas e o conceito de feminismo - desde aceitação até questionamentos e rejeição e que há pesquisadoras africanas em busca de conceitos de gênero alternativos parar escapar das controvérsias e resistências ao chamado "feminismo". Embora enfatize as questões sobre o uso do conceito de "feminismo" em contextos africanos, Kolawole afirma que as acadêmicas precisam transcender a questão de auo-definição, pois não se trata de uma preocupação primordial para a maioria das mulheres comuns e não-letradas de África. Por isso, a autora defende uma conceitualização não como o objetivo último do debate, mas com o fim de ser pragmática para a transformação dos espaços de mulheres em África. Em "Conceitualizando o gênero: os fundamentos eurocêntricos dos conceitos feministas e a epistemologia africana”, Oyewùmí define família nuclear como uma família "generificada", centrada em uma mulher subordinada, com filhos e um marido patriarcal, sem lugar para outros adultos. O homem chefe é concebido como ganhador do pão, e o feminino está associado ao doméstico e ao cuidado, o que faz das distinções de gênero a fonte primária de hierarquia e opressão dentro da família nuclear. Nesta configuração, a identidade esposa é uma "definição" e outros relacionamentos são "secundários". A teórica critica a falta de outras categorias transversais no conceito de "família nuclear" - que, segundo ela, é uma "forma alienígena" em África. Para Oyewùmí, essa família nuclear como unidade de análise reduz a mulher ao papel de esposa, o que é intensificado pela falta de outras variáveis nessa concepção de "família nuclear", como raça e classe. Ela também critica o fato do feminismo branco não conceber a categoria "mãe" independente de seus "laços sexuais com um pai" - o que explicaria a popularidade da expressão "mãe solteira". Na literatura feminista tradicional, a maternidade Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 404 está submetida ao ser esposa, o que faz a procriação e a lactação serem apresentadas como parte da divisão sexual do trabalho, constituída fundamentalmente pelo casamento. Já para estudiosas e pequisadoras africanas a maternidade traz outras conotações que empoderam o ser feminino, como enfoque das pensadoras abaixo: Na mesma linha de Acholonu, Amadiume e Oyěwùmí que enfatizam os poderes das mulheres Africanas sob a rubrica da maternidade como uma alternativa às ideias sobre a agência das mulheres associada com as feministas Ocidentais. Amadiume exige um foco sobre “o paradigma da maternidade” que permita “uma mudança no foco do homem no centro e no controle, para a primazia do papel de mãe / irmã nas instituições econômicas, sociais, políticas e religiosas” (1997: 152). Oyěwùmí afirma que “o modelo de maternidade é absolutamente natural... porque [ele] se liga as mulheres juntas na experiência coletiva, ele é fértil, o nascimento das crianças, e consequentemente, o cultivo da comunidade” (2000: 5). Para essas teóricas, a maternidade é vista para constituir o núcleo simbólico de uma poderosa posição de sujeito do sexo feminino, que contesta o que elas veem como a visão feminista Ocidental da perda e falta de poder social e simbólico das mulheres (BAKAREYUSUF, 2003, p. 6) Percebemos, dessa forma, como diferentes teóricas interpretam e elaboram suas teorias sobre gênero e feminismos partindo de suas realidades históricas particulares e diferentes nuanças ocasionadas por aspectos culturais, econômicos, geográficos e políticos próprios de cada sociedade analisada. Enfatizando, portanto, que os conceitos não podem operar igualmente em contextos díspares e que os mesmos tomam forma somente no tratamento dado a eles em consonância com tais realidades e particularidades diversas. Vejamos mais um exemplo do perigo de transferir conceitos ocidentais para realidades africanas, na acepção de Bibi BakareYusuf: Aquelas que exploram as identidades dos homens e das mulheres Africanas em termos de sistema de sexo dual argumentam que a identificação de diferenças hierárquicas em tais sistemas, envolve imposições das categorias sociais europeias sobre contextos Africanos. Ela se concentra especialmente sobre a inaplicabilidade para a África da dicotomia público/privado como base da desigualdade entre os sexos. Em contextos Ocidentais, a mobilidade e autoridade dos homens na esfera pública e a subordinação das mulheres no privado, levaram as feministas a identificar essa dicotomia como base fundamental para a organização hierárquica (YUSUF, 2003, p. 5) Oyèrònké Oyewùmí defende uma conceituação de gênero endógena em África, pois é comum que a percepção de muitas mulheres africanas sobre sua realidade seja fruto da imposição de cânones ocidentes para as análises de gênero. Ela critica a adoção universal nas pesquisas de gênero de conceitos específicos de contextos euro-americanos, como por a ideia de "família nuclear" - que, para ela, é a base de conceitos da teoria feminista como "Mulher", "gênero" e "sororidade". Para Oyewùmí, há vários exemplos africanos que desafiam universalismos presentes nos discursos de gênero feministas ao terem categorias fluidas, situacionais e não baseadas em tipos de corpo. Um se refere à dualidade dicotômica "masculino/feminino, homem/mulher", Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 405 que presume o homem como superior como categoria definidora e é "particularmente alienígena" a muitas culturas africanas. Outro exemplo citado pela autora é o trabalho da antropóloga social Niara Sudarkasa, segundo quem é a linhagem que se considera como a família, um sistema familiar baseado consanguineamente, construído em torno de um núcleo de irmãos e irmãs por relações de sangue. Concordamos com a autora quando esta afirma a necessidade de análises e interpretações de África começaram "a partir de África", derivadas da organização e relações sociais, atentas a contextos locais e culturais específicos. MULHERISMO AFRICANO: UMA ALTERNATIVA CONCEITUAL, ABORDAGENS CULTURAIS EM DEBATE Em um debate polarizado entre acadêmicas que aceitam o conceito global de feminismo(s) como um motivador das lutas de mulheres em África e outras que rejeitam a política de apropriação implicada no feminismo, Kolawole se diz adepta da estratégia de desconstruir o feminismo, ideologias tradicionais e intervenções hegemônicas, além de se opor a teorias de "gênero" essencialistas, que tratam mulheres africanas ou as categorias de gênero como monolíticos. Para a autora, é preciso romper a imagem das mulheres africanas como vítimas passivas e marginalizadas, como costumam ser mostradas em algumas críticas feministas. Para isso, Kolawole afirma a necessidade de reconhecer a importância de outros conceitos- como classe, cultura, etnicidade, religião e política para um progresso na consciência de gênero em África. Para Kolawole, o conceito de "cultura" deve ser dinâmico e versátil, não estático. Falar da relevância cultural nos debates de gênero tem origem do desejo das mulheres africanas em manifestar sua feminilidade e africanidade simultaneamente à busca de mudanças em suas condições de vida. Para Kolawole, não desejar adotar conceitos de gênero que interceptam sua alto-definição cultural é central para entender a reação de mulheres africanas ao feminismo. A teórica defende que estrangeiros não podem nomear uma luta apropriadamente e que é constante busca de mulheres africanas por uma nova terminologia de gênero. Entre os conceitos que se destacam está o "Mulherismo", criado em 1982 por Alice Walker e Chikwenye Okonjo Ogunyemi. Já Bibi Bakare-Yusuf pontua essa diferenciação no conceito como resposta ao feminismo dizendo: De acordo com a antropóloga nigeriana, Ifi Amadiume, o poder feminino Africano é “derivado da importância sagrada e quase divina concedida à maternidade”, como a Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 406 veneração da maternidade constitui a principal diferença entre as experiências históricas das mulheres Africanas e as das mulheres Europeias” (1997: 146). Para Oyěwùmí, “Mãe” é a auto-identidade preferida e estimada por muitas mulheres Africanas” (2000: 1096), enquanto Catherine Acholonu, em seu livro, Motherism: The Afrocentric Alternative to Feminism (1995), propõe o conceito de "motherism" como uma estrutura conceitual para investigar as experiências únicas das mulheres Africanas. “Motherism”, portanto, fornece uma resposta ao “feminismo”, que Acholonu vê como sendo fundamentado na experiência cultural Euro-Estadunidense (YUSUF, 2003, p. 6). Ifi Amadiume no texto “Teorizando matriarcado na África: ideologias e sistemas de parentesco na África e na Europa”, baseada na teoria de Cheikh Anta Diop, nos apresenta acepções teóricas sobre matriarcado como ‘domínio fêmeo’. De acordo com a autora, Diop apresentou um leque de imperatrizes e rainhas desde o séc XV a.C até a história recente, que segundo a teoria de Diop na África pré-colonial não houve transição de matriarcado para o patriarcado, pois a estrutura social era essencialmente matriarcal, donde havia transmissão entre mulheres de propriedade e descendência, e o homem aparece como um elemento móvel no casamento e/ou união sexual. Para contrapor esse aspecto matriarcal das sociedades africanas, Amadiume se referencia em Diop que caracteriza as culturas arianas gregas e romanas da Europa como idealizadores de família patriarcal, guerra, violência, crime e conquistas, donde a culpa, pecado original, pessimismo e individualismo permeavam seus valores éticos morais. Suas mulheres estavam confinadas à casa e negadas um papel público e poder, regidas sob a autoridade dos pais e maridos. Percebemos então as diferenças entre os dois berços da humanidade. Endossando essa crítica a sociedades européias Nah Dove (1998) argumenta que a capacidade de conquistar o mundo e aniquilar milhões de seres humanos justificando essa conquista com a noção de que alguns membros da humanidade são inferiores, requer uma orientação cultural particular, que se localiza fora da experiência e prática da África Matriarcal (p.13). Para Dove o conceito de unidade cultural é o alicerce do movimento acadêmico mais recente do desenvolvimento do pensamento afrocêntrico. A autora defende o conceito de matriarcado destacando a complementariedade na relação masculino e feminino, entendida com não-hierárquica, donde a mulher é exaltada em seu papel de mãe, sendo esta, portadora da cultura, da vida, condutora para regeneração espiritual dos antepassados e centro da organização social. Nessa mesma direção escrevendo sobre as mulheres bissau-guineenses e sua participação nos processos emancipatórios da nação como uma nova cultura política. Patrícia Gomes faz alusão também à necessidade de ser abordar novos pressupostos teóricos e Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 407 metodológicos de análise em que os conceitos de ‘matrifocalidade’ e de ‘matricentrismo’ (GOMES, 2016, p.133). Em outro texto, este explanando sobre o estado dos estudos de gênero na Guiné-Bissau, a mesma autora chama atenção para os trabalhos de Odete Semedo sobre a matrifocalidade das realidades socioculturais guineenses e a centralidade das mulheres na transmissão do conhecimento por via oral (GOMES, 2015, p.186-7) Parece explicito que o conceito de matriarcado, matrifocalidade opera de maneira singular no que concernem as realidades africanas em diferentes países. Corroborando a perspectiva de Diop que afirma o princípio de unidade cultural africana. De forma que, “necessitamos certamente repensar alguns aspectos culturais da desigualdade, assim como recorrer ao conhecimento e aprendizados das mulheres enraizados na cultura, como apontam os mais recentes enfoques sobre as mulheres, gênero, cultura e desenvolvimento” (VIEITEZCERDEÑO, 2017, p.152 apud BHAVNANI; FORAN; PRIYA, 2003). Voltemos para o ponto da auto-definição expondo alguns posicionamentos de pensadoras africanas no debate de gênero e feminismo em África. Primeiro, explicitemos as razões para rejeição do feminismo por parte de algumas teóricas e pensadoras africanas: Existe uma necessidade inquestionável de recuperar as mulheres africanas, depois há certa perplexidade entre as africanas em relação às origens racistas do movimento feminista, também as africanas não encontram grande consolação nas doutrinas e missão do movimento feminista e finalmente, as realidades, lutas, e expectativas dos dois grupos permanecem a níveis diferenciados (KOLAWOLE, 2004, p. 9). Buchi Emecheta prefere dissociar-se da categoria ‘feminismo’ e de ser chamada de ‘feminista’: ‘escrevo sobre pequenas coisas da vida cotidiana, sobre ser mulher, africana, ver as coisas através dos olhos das mulheres. [...]. Não sabia que fazendo isso seria chamada feminista. Mas agora sou feminista e sou com ‘f’ minúsculo (KOLAWOLE, 2004, p. 7). Essa mesma escritora citada por Kolawole diz acreditar numa forma de feminismo africano chamado mulherismo. Emecheta entende o gênero como meio para obter resultados pragmáticos, capaz de abordar as questões cotidianas especificas das mulheres africanas: educação, herança, bem estar econômico (2004, p.7). A escritora zimbabweana, Tsiti Dangarembga também rejeitou feminismo como rótulo identitário: ‘ a experiência branca ocidental não conhece as minhas experiências, as minhas questões como mulher negra (Ibid, p.8) ‘O mulherismo negro é uma filosofia que celebra as raízes negras, os ideais da vida negra, apresentando uma irmandade negra. Preocupa-se com o ataque ao poder dos negros e de como as estruturas de poder substimam os negros’ (KOLAWOLE, 2004 apud OGUNYEMI, 1985/86, p.24). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 408 Como Hall afirma a ênfase na representação e o papel-chave da cultura na produção dos significados que permeiam todas as relações sociais levam, assim, a uma preocupação com a identificação (HALL, 2014, p. 18 apud NIXON, 1997). Diversas sociedades africanas acreditam que os nomes condicionam as identidades, e por essa razão a atribuição de nomes (auto-denominação) é, não raras vezes, sujeita a rituais de acompanhamento profundamente enraizadas na compreensão histórica e cultural da família ou grupo étnico (KOLAWOLE, 2004, p.8). Endossando essa perspectiva Stuart Hall afirma que os movimentos étnicos ou religiosos ou nacionalistas frequentemente reivindicam uma cultura ou uma história comum como o fundamento de sua identidade (SILVA, 2014, p.15). Concluindo sobre a adesão entre os dois termos: feminismo e mulherismo, este parece ser uma válida alternativa àquele por ser mais conciliatório e por considerar a relevância cultural, a família, a maternidade, a interseção entre as várias formas de opressão, a estratificação social e a marginalização baseadas na raça, etnicidade, classe e gênero. A abordagem inclusiva do mulherismo é considerada mais ‘atraente’ para a realidade africana. As mulheres africanas exaltam feminilidade e reconhecem a necessidade de separar o espaço de gênero, quando necessário (KOLAWOLE, 2004, p. 9). Mais uma vez é possível traçarmos um dialogo com as formulações de Stuart Hall e a relevância que o autor confere a cultura como formadora das nossas identidades, a esse respeito, ele detalha nessa assertiva: A identidade emerge, não tanto de um centro interior, de um ‘eu verdadeiro e único’, mas do diálogo entre os conceitos e definições que são representados para nós pelos discursos de uma cultura e pelo nosso desejo (consciente ou inconsciente) de responder aos apelos feitos por estes significados, de sermos interpelados por eles, de assumirmos as posições de sujeito construídas para nós (HALL, 1997, p.6). COMENTÁRIOS FINAIS Este artigo se esforçou no sentido de mostrar a relevância da identidade cultural e política das mulheres africanas no debate de gênero, acreditando ser uma forma de agenciamento dessas mulheres, estudiosas e teóricas, se colocarem perante as discussões que envolvam mulheres e os variados contornos das questões femininas, porém, partindo de saberes que se localizam em suas próprias culturas, países/nações e grupos étnicos. Entendemos e compartilhamos as proposições de Stuart Hall que problematiza as identidades e debates a favor da auto-denominação como propulsor de alternativas no nível do discurso contra aspectos colonizadores e neo-coloniais, apontando as mulheres africanas como portadoras de saberes milenares e de ricas e diversificadas culturas. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 409 Por isso, nos empenhamos em delinear o debate, demonstrando as assertivas das estudiosas africanas sobre os conceitos que permeiam o debate sobre gênero e mulher no continente. Vimos a questão do matriarcado, matrifocalidade e/ou matricentrismo, como conceitos operantes em distintas realidades africanas e não ser possível apenas excluir, admitindo eurocentricamente a preponderância exclusiva de modelos patriarcais de dominação e poder, que relegam as mulheres de forma geral a meros objetos. Foi possível também percebermos, que estas pensadoras e estudiosas, tem um trato próprio acerca da questão de gênero e a nosso ver, agem politicamente se posicionando no debate a começar pela maneira como desejam ser identificadas e nomenclaturas suas lutas e reivindicações. Expomos saberes derivados dessas mulheres, enfatizando como elas interpretam suas sociedades e o que tem a dizer e propor para as mesmas. Acreditamos ser uma estratégia decolonial importante, na medida em que, partem das africanas e de seus variados contextos alternativas e modos de leitura de suas realidades, sem necessidade de teorizar buscando aportes em teorias euro/androcêntricos e em alguma medida tornando horizontal o debate, dialogando em pé de igualdade com teorias elaboradas em outros contextos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMADIUME, Ifi. Theorizing matriarchy in África: kinship ideologies and systems in Africa and Europe. In: OYEWÙMÍ, Oyèrónké (Ed) African gender studies: a reader. Hampshire (England): Palgrave Macmillan, 2005, p. 83-98. BAKARE, Bibi. Beyond feminism: the phenomenology of African female existence, Feminist Africa, Issue 2-Changing cultures, 2003, - http://agi.ac.za/feminist-africa-issue-2-2003changing-cultures) (versão traduzida em português disponível) DOVE, Nah. Mulherismo Africana: uma teoria afrocêntrica. Jornal de Estudos Negros, vol. 28, n.5, 1998. HALL, Stuart. 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Encontros de lá e de cá do Atlântico: mulheres africanas e afrobrasileira em perspectivas de gênero. Salvador: EDUFBA, 2017. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 411 PEDAGOGIA DA DIVERSIDADE: CONTRIBUIÇÕES NUMA PERSPECTIVA INTERCULTURAL João Paulo Carneiro1 RESUMO O presente texto abarca a discussão sobre educação e diversidade no âmbito da perspectiva intercultural desenvolvido em um dos capítulos da dissertação de mestrado do CEFET/RJ. Conceituação racial com Hall (2014), Munanga (2012, 2014), Guimarães (2012). No quesito currículo: Apple (2011), Arroyo (2011), Silva (2011); e na perspectiva intercultural, Candau (2014). Concluímos que, a pedagogia da diversidade contribui de maneira singular para a construção de uma sociedade democrática no respeito a diferença, a equidade e no empoderamento dos inferiorizados no processo histórico. PALAVRAS-CHAVE: Educação; Currículo; Pedagogia; Diversidade; Interculturalidade. RESUMEN El presente texto abarca la discusión sobre educación y diversidad en el ámbito de la perspectiva intercultural desarrollado en uno de los capítulos de la disertación de maestría del CEFET / RJ. Concepción racial con Hall (2014), Munanga (2012, 2014), Guimarães (2012). En el caso del currículum: Apple (2011), Arroyo (2011), Silva (2011); en la perspectiva intercultural, Candau (2014). Concluimos que la pedagogía de la diversidad contribuye de manera singular a la construcción de una sociedad democrática en el respeto a la diferencia, la equidad y el empoderamiento de los inferiores en el proceso histórico. PALABRAS-CLAVE: Educación; Currículo; Pedagogía; Diversidad; Interculturalidad. INTRODUÇÃO É de suma importância pontuar a respeito do movimento negro em sua trajetória de luta e resistência no processo histórico, possibilitando a construção do que fora consolidado como política pública educacional a Lei 10.639/032 relevante instrumento legal, pois a educação se torna um dos caminhos para amenizar as desigualdades, sobretudo as instituições de ensino públicas e privadas, o poder público, os agentes públicos, docentes e discentes, possui na forma da lei, a instrumentalidade necessária para o combate ao racismo (PEREIRA, 2013; LIMA; 2006; MUNANGA, 2012; GOMES, 2010). Assim sendo, este artigo objetiva discutir silenciamentos e possibilidades no âmbito de uma pedagogia da diversidade como contribuição antirracista numa perspectiva intercultural. É importante destacar que, um pouco mais de uma década, a lei supracitada está sendo implementada em nosso país, constituindo alguns avanços no consenso de inúmeros especialistas, no entanto, ainda temos diversos desafios, especialmente na ruptura de currículos 1 Mestre em Relações Étnico-Raciais, CEFET/RJ. E-mail: professorjp@folha.com.br. Art. 26-A. Nos estabelecimentos de Ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. 2 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 412 eurocentrados. Eurocentrismo neste texto é compreendido na dimensão de (MUNANGA, 2014; BITTENCOURT, 2009; NADAI, 1993; HALL, 2014; SANTOS, 2012; GOMES, 2010; OLIVEIRA, 2012; LANDER, 2005; DUSSEL, 2005; QUIJANO, 2005) que denunciam uma matriz curricular que privilegia uma corrente em detrimento de outra, ou seja, monocultural, isto é, uma matriz de cunho hegemônica branca, europeia, ocidental, capitalista e cristã. Portanto, diante de tais constatações pelos autores supracitados, necessitamos desconstruir tais processos hegemônicos na busca de uma pedagogia da diversidade. Tratamos aqui o debate a respeito da educação na concepção de Brandão (2007), “raça” e racismo de acordo com (APPIAH, 1997; GUIMARÃES, 2012; MUNANGA, 2012; HALL, 2012; SKIDMORE, 2012; DOMINGUES, 2004; SANTOS, 1997), pedagogia da diversidade proposta por Gomes (2010), referente à perspectiva da interculturalidade as inferências de Candau (2014), articulando com as contribuições de um grupo de intelectuais Latinoamericanos cunhado Modernidade-Colonialidade, na dimensão da construção do conhecimento histórico na América Latina. (LANDER; DUSSEL; MIGNOLO; CORONIL; ESCOBAR; CASTROGÓMEZ; MORENO; SEGRERA; QUIJANO; 2005; WALSH, 2002). Dito isto, convido o(a) leitor(a) a refletir sobre uma pedagogia da diversidade e suas possíveis contribuições numa perspectiva intercultural. ESTRATÉGIA DISCURSIVA MONOCULTURAL: A NEGAÇÃO O silenciamento ou a negação das relações étnico-raciais no currículo demarcam as relações de poder que privilegiou “uma cultura branca, europeia, cristã, ocidental, capitalista. As demais culturas não eram consideradas significativas na formação da identidade nacional” (SILVA, 2013, p.53,54). Na perspectiva conceitual de Foucault (2002) saberes sujeitados que o filósofo aponta em duas dimensões, ou seja, a primeira no sentido dos conteúdos históricos que foram sepultados e a segunda, no que tange aos saberes desqualificados, saberes inferiorizados, sobretudo pela lógica eurocêntrica que classificou os saberes orais, saberes locais, como insuficiente a demanda cientificista. A imagem do negro ficará marcada pela “sujeição pacífica em relação ao trabalho compulsório”, e os “silêncios sobre a escravização da etnia indígena”, em síntese, a literatura escolar atravessou um longo período na construção, reprodução e redução desses saberes e sujeitos. Marcando assim, a imagem do negro como “pacífico” e a do indígena resistente a colonização (NADAI, 1993, p.149). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 413 A construção imagética trouxe uma série de consequências de baixa autoimagem, sentimentos de inferioridade e percepções distorcidas. No que abarca a questão da inferiorização, o psiquiatra e filósofo Franz Fanon (1925-1961) desenvolveu através das análises e pesquisas com os seus pacientes um complexo de inferioridade que flagelava o negro. Esse complexo consistia no desejo inconsciente do negro de se tornar branco. Aponta como origem do conflito as estruturas sociais. Descrevendo e analisando a questão do inconsciente através da narrativa de seus pacientes diagnostica a dimensão psicológica flagelante. Se ele se encontra a tal ponto submerso pelo desejo de ser branco, é que vive em uma sociedade que torna possível seu complexo de inferioridade, em uma sociedade cuja consistência depende da manutenção desse complexo, em uma sociedade que afirma a superioridade de uma raça; é na medida exata em que esta sociedade lhe causa dificuldades que ele é colocado em uma situação neurótica. Surge, então, a necessidade de uma ação conjunta sobre o indivíduo e sobre o grupo. Enquanto psicanalista, devo ajudar meu cliente a conscientizarseu inconsciente, a não mais tentar um embranquecimentoalucinatório, mas sim a agir no sentido de uma mudança das estruturas sociais (FANON, 2008, p. 95). Para o autor, tais processos iniciam na infância. Torna-se necessário evidenciar que o psiquiatra escreve analisando o contexto da colonização, ou seja, o colonizador como aquele que deturpa a imagem do indivíduo (colonizado), através de uma “nova” imagem imposta por simbologias coletivas nacionais. A desestruturação psicológica é descrita da seguinte maneira. O branco, chegando a Madagascar, tumultuou os horizontes e os mecanismos psicológicos. Todo o mundo já o disse, para o negro a alteridade não é outro negro, é o branco. Uma ilha como Madagascar, invadida de um dia para o outro pelos “pioneiros da civilização”, mesmo que esses pioneiros tenham se comportado da melhor maneira possível, sofreu uma desestruturação (FANON, 2008 p. 93). Esses mecanismos psíquicos encontram reverberações nas pesquisas do antropólogo Kabengele Munanga concernentes ao negro no contexto brasileiro. “O sonho de realizar um dia o ‘passing’ que neles habita enfraquece o sentimento de solidariedade com os negros indisfarçáveis” (MUNANGA, 2008 p.83). Essa passagem ou transição a que o pesquisador faz referência se estabelece na condição de sujeitos com traços negróides disfarçáveis 3, que se apropriaram de um processo de branqueamento4 negando a sua identidade negra, ou seja, a distorção ideológica e psicológica fazendo com que haja uma autonegação identitária no contexto brasileiro. O processo da ideologia do branqueamento no pós-abolição e o movimento de imigração oriundo da Europa para o Brasil, tornava a situação do negro caótica. Sem Para o autor o termo “disfarçável” se constitui no sujeito que não tem a cor da pele tão escura, diferentemente do “indisfarçável”, possuidor da cor da pele escura. 4 Processo de construção ideológica que surge no Brasil entre o final do século XIX e início do século XX. Para maiores aprofundamentos consultar na referência bibliográfica a obra “Relações raciais e desigualdades no Brasil de Gevanilda Santos”. 3 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 414 oportunidades para ascender economicamente “[...] confirma a concepção que dele fazia a elite: um obstáculo ao desenvolvimento nacional” (SKIDMORE, 2012, p.90). Nesse contexto de produção e construção de inferiorização, negação, silenciamento e distorção, proporcionou discursos hegemônicos e imagéticos a respeito do negro, sobretudo no caso do imaginário paulista no fim do século XVIII e início do século XX: o negro simbolizava o “atraso”, a “barbárie”, o “Passado”, a “devassidão”, o “primitivismo”, a “selvageria”, por outro lado o branco representava o “progresso”, o “desenvolvimento”, o “futuro”, a “civilização”, o aperfeiçoamento da raça (DOMINGUES, 2004). Nesse sentido a importância de reescrever a história africana, especialmente pelo prisma dos africanos que tiveram a sua história “[...] mascarada, camuflada, desfigurada, mutilada” (KI-ZERBO, 2011, p.XXXII). Diante das constatações históricas no processo de negação dos saberes locais, da invisibilidade de outras narrativas, de outras histórias possíveis é que constatamos a urgência pedagógica da diversidade, preferencialmente por meio do dispositivo legal e de política pública na dimensão da Lei 10.639/03. EDUCAÇÃO: CURRÍCULO, DIVERSIDADE E IDENTIDADE Tanto para Brandão (2007), quanto para Illich (1985), a educação existe onde não há escola, para o primeiro autor, a educação acontece nas redes de trocas de saberes, para o segundo nas teias educacionais. Ou seja, independente das nomeclaturas, o sentido para ambos os pensadores se constitui em um processo de humanização que se dá ao longo de toda a vida, ocorrendo no trabalho, na rua, na igreja, em casa, na escola e de modos diferentes. Tal processo acontece precedente a escola e ao sistema escolar. Também para ambos os autores, o processo de institucionalização da educação, a hierarquização, a sistematização, produziu exclusões e desigualdades, entretanto Illich (1985) se opõe a escola como espaço de mudanças e defende sua desinstalação. Contrariamente, Brandão (2007) defende e acredita no espaço escolar com possibilidades de libertação, autonomia e emancipação. Na constituição do currículo privilegiamos as teorias críticas e pós-críticas. Não existe neutralidade no currículo, assim como, não há neutralidade em nenhum campo científico. E para especificar e justificar essa não neutralidade convidamos Apple (2011) para ser o nosso mestre de cerimônia: A educação está intimamente ligada à política da cultura. O currículo nunca é apenas um conjunto neutro de conhecimentos, que de algum modo aparece nos textos e nas salas de aula de uma nação. Ele é sempre parte de uma tradição seletiva, resultado da seleção de alguém, da visão de algum grupo acerca do que seja conhecimento Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 415 legítimo. É produto das tensões, conflitos e concessões culturais, políticas e econômicas que organizam e desorganizam um povo (APPLE, 2011, p. 71). Muitas são as ponderações do autor e de vital importância para a nossa discussão. Pois, tratamos a questão do currículo como território em disputa (ARROYO, 2011), como documento de identidade (SILVA, 2011) e como campo de tensões, conflitos, concessões culturais, políticas e econômicas (APPLE, 2011). Diante da consciência das tensões e conflitos, temos a inclusão de um conteúdo que outrora fora negligenciado e invisibilizado, isto é, a Cultura AfroBrasileira, a Indígena e a História da África. Portanto, a construção identitária da população negra no Brasil “é elaborada de forma individual e socialmente diversa. No caso brasileiro, essa tarefa torna-se ainda mais complexa, pois se realiza na articulação entre classe, gênero e raça no contexto da ambiguidade do racismo brasileiro e da crescente desigualdade social” (GOMES, 2010, p.98). Nesse território em disputa é de suma importância que no âmbito das políticas públicas, sobretudo currículo, é necessário o debate da desconstrução eurocêntrica. Analogamente, podemos apresentar como o sociólogo venezuelano Edgardo Lander que aponta a respeito da força do pensamento hegemônico neoliberal que se constitui em “sua capacidade de apresentar sua própria narrativa histórica como conhecimento objetivo, científico e universal e sua visão da sociedade moderna como forma mais avançada – e, no entanto, a mais normal da experiência humana [...]” (LANDER, 2005, p.22). Neste trabalho estamos compreendendo diversidade “[...] por uma gama de questões como diferença de classe, território, cor/raça, etnias, gênero, deficiência física e mentais” (GONÇALVES, 2009, p.90). E se tratando da diversidade, nosso objetivo trava-se no diálogo conceitual na perspectiva da interculturalidade que será discutido adiante. Para o nosso entendimento a respeito do sujeito na dimensão identitária vislumbra-se a questão pós-moderna, ou seja, de “identidade instável”, “inacabada”, “fragmentada” (HALL, 2014, p.28), não de maneira essencialista. Laclau (2011) também comunga desta análise. Portanto, o sujeito pós-moderno se constitui de novas identidades, isto é, híbridas. Na frente de uma série de disputas pela terminologia “hibridismo”, evocamos o antropólogo argentino, Néstor García Canclini que aborda conceitualmente da seguinte maneira: “entendo por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI, 2013, p.XIX). O que o autor chama de estruturas ou práticas discretas não são puras, pois já sofreram processos de hibridações. Assim, elementos culturais distintos que se atenuam formam um terceiro elemento que carrega parte dos elementos anteriores. O culturalista Stuart Hall é categórico quando afirma: “A Europa Ocidental não tem qualquer nação que seja Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 416 composta de apenas um único povo, uma única cultura ou etnia. As nações modernas são, todas, híbridos culturais” (HALL, 2014, p 36). Perante tal afirmativa, na construção de uma pedagogia da diversidade, refletimos e propomos debates no âmbito da formação de professores, da prática em sala de aula, na instrumentalização da Lei 10.639/03, que possibilita desmistificar e desconstruir de maneira contra-hegemônica as produções discursivas eurocêntricas. Assim, a porta está entreaberta por intermédio da referida lei que potencializa, viabiliza, proporciona a valorização das vozes silenciadas, negadas, como fora visto no desfile e no samba enredo da escola de samba Estação Primeira de Mangueira de 2019, campeã do desfile do Rio de Janeiro, “História pra Ninar Gente Grande”5. UMA CATEGORIA ANALÍTICA: “RAÇA” E RACISMO De acordo com Silva (2010) através da perspectiva pós-estruturalista não há uma teoria do currículo, mas um discurso que traz uma análise representacional. Sendo assim, não há segundo essa perspectiva um sentido engessado e essencializada sobre a definição de currículo. Ainda segundo o autor no âmbito pós-estruturalista “podemos dizer que o currículo é também uma questão de poder e que as teorias do currículo, na medida em que buscam dizer o que o currículo deve ser não pode deixar de estar envolvidas em questões de poder” (SILVA, 2010, p 16). De maneira sintética podemos destacar as características pela perspectiva pós-crítica “identidade, alteridade, diferença, subjetividade, significação e discurso, saber-poder, representação, cultura, gênero, raça, etnia, sexualidade, multiculturalismo” (Ibid., p.17). Características que nos são caras na discussão deste texto, sobretudo, na questão das relações étnico-raciais. O debate teórico e conceitual de “raça” e racismo está imbricado e intrínseco. O conceito de “raça” como qualquer outro conceito não está imune de críticas. Nesse sentido Guimarães (2012) ressalta as críticas apontadas por Paul Gilroy referente o conceito, entretanto, o sociólogo destaca seu posicionamento: Repito aqui a posição que tenho adotado: “raça” é não apenas uma categoria analítica necessária para organizar a resistência ao racismo no Brasil, mas é também categoria analítica indispensável: a única que revela que as discriminações e desigualdades que a noção brasileira de “cor” enseja são efetivamente raciais e não apenas de classe (GUIMARÃES, 2012, p. 50). Tomamos o mesmo entendimento aqui tratado e na mesma linha teórica os demais autores elencados neste debate. Para Hall (2013) raça é uma construção discursiva, um 5 Disponível em: https://www.letras.mus.br/sambas/mangueira-2019/. Acesso em: 10 de abril de 2019. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 417 significado flutuante. Raça é um sistema cultural e como sistema cultural é fruto de uma construção e como construção, poder-se-á sofrer processos de desconstrução. Portanto, tratamos o conceito de “raça” não no sentido biológico, pois fica entendido de acordo com Munanga (2012), Hall (2013), Appiah (1997), Ianni (2004), Guimarães (2012), Domingues (2004), Skidmore (2012), Schwarcz (1993), que cientificamente estamos diante de uma caducidade do conceito biológico, porém não invalida na perspectiva sociológica, política e social. E no âmbito desta demanda intrínseca de racismo e “raça”, “raça” e racismo, o antropólogo assim corrobora: O racismo é um fato que confere à “raça” sua realidade política e social. Ou seja, se cientificamente a realidade da raça é contestada, política e ideologicamente esse conceito é muito significativo, pois funciona como uma categoria de dominação e exclusão nas sociedades multirraciais contemporâneas observáveis. Em outros termos, poder-se-ia como traço fundamental próprio a todos os negros (pouco importa a classe social) a situação de excluídos em que se encontram em nível nacional (MUNANGA, 2012, p. 15-16). Dito isto, compreende-se que para Munanga (2012), Hall (2013), Guimarães (2012), o conceito de “raça” é uma garantia política para combater o racismo, dito de outra forma, uma categoria analítica antirracista. Não podemos avançar na reflexão sobre o racismo sem antes pensar o que é ser negro. Referindo-se a Hall (2014) que compreende a identidade como “deslizante e flutuante”, ou seja, de maneira não essencialista, apresenta o seguinte resumo: “[...] de acordo com alguns teóricos, o “sujeito” do Iluminismo, visto como tendo uma identidade fixa e estável, foi descentrado, resultando nas identidades abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas, do sujeito pósmoderno” (HALL, 2014, p.28). O culturalista ainda afirma que “[...] são pensamentos que me impulsionaram a falar [...] do fim da inocência do sujeito negro ou do fim da noção ingênua de um sujeito negro essencial” (HALL, 2013, p.386). Para exemplificar as cadeias de significantes do significado de ser negro, o autor narra às experiências de sua juventude na Jamaica, onde mesmo tendo a pele escura como o da sua classe de pertença figurava nas camadas médias da sociedade jamaicana e não era identificado como negro, entretanto, na Inglaterra sua identidade desliza, ou seja, passa a ser reconhecido como negro. Essa relação sem fixidez se torna mais evidente na seguinte explanação do autor. O sistema caribenho era organizado pelas finas estruturas de classificação dos discursos coloniais de raça, organizadas em uma escala ascendente até o termo máximo “branco” – este último sempre fora do alcance, o termo impossível, “ausente”, cuja presença-ausência estruturava toda a cadeia. Na luta ferrenha por um lugar e uma posição, que caracteriza as sociedades dependentes, cada grau da escola possui profunda importância. Em contrapartida, o sistema inglês era organizado em torno da dicotomia mais simples, mais apropriada à ordem colonizadora: “branco/não branco”. O significado não é um reflexo transparente do mundo da linguagem, mas surge das diferenças entre os termos e categorias, os sistemas de referência, que Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 418 classificam o mundo e fazem com que ela seja apropriado desta forma pelo pensamento social e o senso comum (HALL, 2013, p. 207). Essas representações, sobretudo mentais são reproduzidas ou compartilhadas pelas coletividades sociais. Assim, as ideologias representam “[...] quem somos o que fazemos, por que o fazemos como (deveríamos ou não deveríamos) fazê-lo, e para quem o fazemos, ou seja, nossa identidade, ações, objetivos, normas e valores, recursos e interesses sociais”6. Portanto, não nos interessa traçar uma história das teorias racistas no mundo e no Brasil, mas apontar a sua urgência no sentido de suas interferências nas políticas públicas, sobretudo educacionais no processo histórico. INTERCULTURALIDADE: POR UMA PEDAGOGIA DA DIVERSIDADE Antes de enveredar na exposição a respeito da especificidade da interculturalidade, torna-se relevante uma breve discussão no que tange o debate sobre as disputas e os embates sobre o multiculturalismo e sua complexidade. Mesmo mediante de uma série de críticas tecidas sobre o multiculturalismo no sentido de doutrina política e suas reduções, Stuart Hall levanta as seguintes indagações: “Pode um conceito que significa tantas coisas diferentes e que tão efetivamente acirra os ânimos de inimigos tão diversos e contraditórios ter realmente algo a dizer? Por outro lado, sua condição contestada não constitui precisamente seu valor?” (HALL, 2013 p 59). Nesse furacão de disputas conceituais Hall (2013) assevera: “Por bem ou por mal, estamos inevitavelmente implicados em suas práticas, que caracterizam e definem as ‘sociedades da modernidade tardia” (Ibid., p.60). Para o nosso entendimento da extensão complexa que cerca a dimensão do multiculturalismo, o teórico cultural descreve seis tipos de multiculturalismo. • Multiculturalismo conservador – insiste na assimilação da diferença às tradições e costumes da maioria; • Multiculturalismo liberal – busca integrar os diferentes grupos culturais o mais rápido possível ao mainstream, ou sociedade majoritária, baseada em uma cidadania individual e universal, tolerando certas práticas culturais particularistas apenas no domínio privado; • Multiculturalismo pluralista – avaliza as diferenças grupais em terrenos culturais e concede direitos de grupo distinto a diferentes comunidades de uma ordem política comunitária ou mais comunal; 6 VAN DIJK, T. A. Ideologia. Disponível em: www.discursos.org. Acesso em: 10 de abril de 2019. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 419 • Multiculturalismo comercial – pressupõe que, se a diversidade dos indivíduos de distintas comunidades for publicamente reconhecida, então os problemas de diferença cultural serão resolvidos (e dissolvidos) no consumo privado, sem qualquer necessidade de redistribuição de poder e dos recursos; • Multiculturalismo corporativo – (público ou privado) busca “administrar” as diferenças culturais da minoria, visando os interesses do centro; • Multiculturalismo crítico ou revolucionário – enfoca o poder, o privilégio, a hierarquia das agressões e os movimentos de resistência (HALL, 2013 p. 58). Perante tantas adjetivações o filósofo Marcelo Andrade traz uma simples definição: “é a constatação de um fenômeno que envolve a convivência e a coexistência de diversas culturas num mesmo território e num mesmo tempo histórico” (ANDRADE, 2009, p.17). Entretanto, o esforço do autor na tentativa de simplificação não retira do debate a complexidade e disputa política a respeito do conceito. A especialista em educação Vera Candau diferente de Stuart Hall resume para três tipos de multiculturalismo: assimilacionista, diferencialista ou monocultural aberto e interativo ou intercultural (CANDAU, 2011). Portanto, dentre as características apontadas por Silva (2011) anteriormente, referente o currículo no foco pós-estruturalista, a diferença, é elementar nesse momento para a discussão intercultural. Estamos diante de uma cultura escolar hegemônica construída na dimensão política, cultural, social e epistemológica da modernidade no sentido priorizante, a relação com o homogêneo, o uniforme, o universal, o comum. Então, a diferença se transforma num “mal” a ser resolvido. Trabalhar as diferenças é o foco central do multiculturalismo (CANDAU, 2011). Portanto, pensando na construção de uma sociedade democrática, inclusiva, que articule políticas de igualdade com políticas de identidade, abraçamos o multiculturalismo interativo ou também conhecido como interculturalidade. Vera Candau recorre as classificações da Professora da Universidade Andina Simon Bolívar, Catherine Walsh, no que se refere as três principais concepções de uma educação intercultural: relacional, funcional e crítica e opta por trabalhar com a última. Diante das lutas dos movimentos sociais que, reivindicam igualdade de acesso a bens e serviços, e no âmbito político e cultural os seus reconhecimentos, propomos de acordo com Walsh (2002) e Candau (2012) a incorporação da perspectiva intercultural no âmbito educativo. A construção de uma pedagogia da diversidade numa perspectiva da interculturalidade se constitui no caminho da desconstrução de padronizações, resistir e lutar contra as práticas que reforçam as desigualdades que atuam em nossa sociedade. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 420 Uma pedagogia da diversidade no viés intercultural está comprometida para a construção de uma sociedade democrática, que busca a equidade, que trabalha em prol do reconhecimento dos diferentes grupos socioculturais. Integra o comprometimento e prática pedagógica que reconhece a diferença, não como um problema, mas como potencial para novas relações e que tais relações seja igualitárias entre a diversidade, sobretudo focando no empoderamento dos sujeitos que foram invisibilizados, negados, calados, subalternizados no processo histórico. Uma pedagogia da diversidade em tais dimensões proporciona o diálogo entre os diversos saberes, estabelecendo uma posição anti-hegemônica, resistindo e desconstruindo as narrativas monoculturais. Trabalha a tensão epistemológica constituída entre universal versus relativismo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Procuramos neste texto o apoio teórico indispensável para o debate da diversidade, sobretudo nos desdobramentos para o processo educativo no que abarca raça/cor, etnia, diferença, gênero, desigualdades. E para tanto tomamos como necessário a compreensão de educação como um processo amplo, ou seja, para toda a vida como aponta Brandão (2007). As teorias de currículo articuladas com as posturas críticas, pós-críticas e pós-estruturalistas como aporte na compreensão política e cultural das relações de poder, possibilitando o debate das construções anti-hegemônicas dos discursos padronizados e universalizantes. O conceito sobre raça e racismo entendido como categoria política e social na construção do viés antirracista. A interculturalidade no bojo político no sentido de promover interrelações entre os diferentes sujeitos e grupos socioculturais, afinada com a visão híbrida. Culturas não são puras e estão em constantes mudanças (HALL, 2013; CANDAU, 2011; CANCLINI, 2013). Na dimensão curricular, proporcionando o diálogo entre os diversos saberes e conhecimentos. No sentido da identidade plural, o Brasil se apresenta com um excelente exemplo, pois o país surge do encontro das diversidades. Porém, o grande desafio é fazer que oficialmente e publicamente a construção da diversidade seja tratada no sistema educacional brasileiro (MUNANGA, 2014). “Na perspectiva de Paulo Freire somos desafiados a construir uma pedagogia do oprimido. No entanto, a questão racial nos ajuda a radicalizar ainda mais essa proposta. Somos levados a construir uma pedagogia da diversidade (GOMES, 2010, p.109). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 421 Sendo assim, uma pedagogia da diversidade na perspectiva intercultural contribui para os educadores para a conscientização de práticas que permitam desconstruir e desnaturalizar preconceitos e discriminações, indagar nos discursos educativos os sentidos de igualdade e diferença. Como o currículo não é neutro, mas se constitui como um território de disputa, possibilita e contribui para os educadores refletir e questionar, sobretudo desconstruir a questão eurocêntrica e monocultural nos espaços educativos e no currículo. Refletir e ponderar sobre os critérios e seleções dos conteúdos escolares, pois a seleção de conteúdos está intimamente ligada com viés ideológico (APPLE, 2011). Por uma pedagogia da diversidade que possibilite e contribua para a construção de múltiplas linguagens, no empoderamento dos inferiorizados tanto no coletivo, quanto no individual, desestabilizar, desconstruir, a pretensa “universalidade”, contribuir para os diversos saberes e que também favoreça dinâmicas participativas dos diferentes grupos socioculturais. Dito isto, a diversidade no caminho da contribuição como ganho pedagógico. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Marcelo. A diferença que desafia a escola: Apontamentos iniciais sobre a prática pedagógica e a perspectiva intercultural. In: ANDRADE, Marcelo (org). A diferença que desafia a escola: a prática pedagógica e a perspectiva intercultural. Rio de Janeiro: Quartet, 2009. P.13-48. APPLE, Michael W. Repensando a ideologia e currículo. In: MOREIRA, Antônio Flávio, TADEU, Tomaz (Orgs). Currículo, Cultura e sociedade. São Paulo: Cortez, 2011. ARROYO, Miguel G. Currículo, território em disputa. 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Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 425 A CASA DE REZA (OPY) COMO ‘’LUGAR DE MEMÓRIA’’ DOS INDÍGENAS GUARANIS Matheus Santos da Silva1 RESUMO A fim de evidenciar novas narrativas do Sul Global que rompem com epistemes eurocentradas, o objetivo do artigo é apresentar a casa de reza (opy) dos povos indígenas guaranis como sendo um ‘’Lugar de Memória’’, conceito historiográfico apresentado por Nora. Para isso, foi adotado o trabalho etnográfico nas aldeias e fez-se uso das fontes orais para gravações, transcrições e transcriações de relato dos indígenas. Como resultado, a pesquisa discute memória-história, e a importância de se pensar os limites da colonialidade do saber. PALAVRAS-CHAVE: Lugar de Memória; Opy; Aldeias Indígenas. ABSTRACT In order to make evident the Global South’s narratives that breaks eurocentric epistemes, the article’s purpose is to present an analysis about indigenous people’s prayer space as ‘’Realms of Memory’’, historiography concept studied through Nora. Thus, the ethnography on indigenous communities is used as methodology using oral sources for recordings, transcriptions and transcripts of indigenous narratives. The results, the research discusses is about memory-history and reflection on coloniality of knowledge. KEY-WORDS: Realms of memory; Opy; indigenous communities. INTRODUÇÃO A presente proposta de pesquisa tem como objetivo articular o conceito de ‘’Lugar de Memória’, do historiador francês Pierre Nora, com a Casa de Reza (Opy) dos povos indígenas guaranis. De acordo com Nora (1993), são ”Lugares de Memória’’ os espaços onde a memória se concretiza e se ritualiza, tornando o passado como algo próximo - diferente da história que o reconstrói. Os arquivos, bibliotecas, museus, monumentos, e outros, via de regra são legitimados como sendo os lugares de memória pois, esse conceito é, majoritariamente, associado a espaços edificados, cuja os elementos que remetem ao passado-memória é perceptível. A partir da experiência de campo junto às aldeias indígenas guaranis Tekoa Paranapuã (São Vicente-SP), Tekoa Aguapeu (Mongaguá-SP), Tekoa Pyau (Jaraguá-SP) e a Tekoa Tenondé Porã (Barragem-SP), a pesquisa traz como premissa a hipótese que a Opy dos povos indígenas corresponde aos pressupostos dos ‘’Lugares de Memórias’’, apesar de não adequarse com a perspectiva que comumente é tida para refere-se ao conceito. 1 Graduando em História na Universidade Católica de Santos. Extensionista da Frente Indígena no Programa de Educação Tutorial da Universidade Federal de São Paulo Campus Baixada Santista. E-mail: sansilvamatheus@gmail.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 426 Assim, como metodologia foi adotada a pesquisa de campo etnográfica nas aldeias referidas. Além disso, para o desenvolvimento do estudo utilizou-se de elementos orais com relatos dos indígenas sobre a importância da casa de reza para o espaço da aldeia, que foram aliados ao levantamento bibliográfico de contribuições das epistemologias do Sul. COLONIALIDADE DO SABER: MEMÓRIA E ESQUECIMENTO Considerar a colonialidade do ser, do saber e do poder, conceito cunhado por Quijano (1992), para pensar as representações e as narrativas que se utilizam para buscar elementos do passado é bastante relevância para compreender como se estrutura e como se consolidam fragmentos de ‘’memória’’ no imaginário. Os autores que se utilizam do Pós-colonialismo como instrumento metodológico entendem a colonialidade como uma ‘’estrutura complexa de níveis entrelaçados’’, sendo os níveis políticos, econômicos e sociais. Esse conceito se propaga por um tripé - poder, saber e ser- o que influi em fragmentos para a construção da memória. Contudo, o intento do conceito de colonialidade é evidenciar que apesar do fim formal do colonialismo, a estrutura de dominação colonial se mantém agora pela construção do imaginário (BALLESTRIN, 2013). A perspectiva Pós-colonial é desenvolvida por acadêmicos de países em desenvolvimento a partir de estudos voltados para o âmbito da história e da literatura, é fundamentada no pós-estruturalismo de Michel Foucault, além de recuperar pensadores e ativistas como Franz Fanon, Aimée Cesaire e Albert Memmi. O Pós-colonialismo é um movimento que vem consolidam espaços entre os debates das ciências sociais, o objetivo central dessa corrente não é fracionar o tempo entre o período colonial e o período pós-colonial. A principal finalidade é propor novas maneiras de elucidar a história e para romper com as narrativas que dão legitimidade aos princípios de exploração e de dominação (PEZZODIPARE, 2013). Os fundamentos Pós-coloniais trazem para o centro da discussão, de forma criteriosa, os povos e culturas que ao longo da história foram dominados pelas potências hegemônicas do sistema mundo moderno e que, consequentemente permanecem relegado nas produções acadêmicas das Ciências Sociais (CASTRO, 2016). Para essa pesquisa, a contribuição do Pós-colonialismo gira em torno de apresentar uma nova perspectiva no que se refere ‘’Lugar de Memória’’. Por outro lado, apesar das ressalvas, é importante ponderar que o conceito de Pierre Nora foi pensado a partir da visão de mundo do autor francês no tempo histórico em que viveu. A partir de epistemologias do Sul, é possível Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 427 revisitar esse conceito e trazer contribuição que reconhecem outros saberes para além do olhar do prisma eurocêntrico. De acordo com Quijano (2005, p. 129-130) ‘’a perspectiva eurocêntrica de conhecimento opera como um espelho que distorce o que reflete [...] daí que quando olhamos nosso espelho eurocêntrico, a imagem que vemos seja necessariamente parcial e distorcida. Dessa forma, é pertinente elucidar as epistemologias do Sul, tendo em vista que essas cosmovisões vão além do pensamento abissal, da verdade única e do discurso que sobressai no âmbito político e cultural da produção e reprodução do conhecimento, conforme destaca Boaventura de Souza Santos (2010). Sendo assim, considerando que existem elementos que condicionam o imaginário, é pertinente refletir a construção da memória como fenômeno que produz e reproduz o passado a partir da colonialidade do ser, saber e do poder. De acordo com Le Goff (1990, p. 423) ‘’a memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas’’. De antemão, para tratar sobre o passado é oportuno diferenciar o que é ‘’História’’ e o que é ‘’Memória’’ pois, segundo Barros (2011) apesar de interações entre esses panoramas, as discussões conceituais historiográficas delimitam e distanciam um do outro. Sucintamente, a distinção entre ambas refere-se no aspecto teórico e metodológico que a História, como Ciência, faz para reconstruir o passado. Enquanto a memória é uma leitura do passado sem o respaldo técnico. Em outras palavras, Memória e História são formas distintas de representação do passado, sem que se possa considerar uma superior à outra. A distinção está no fato da História operar com procedimentos científicos, um método, a crítica das fontes e a busca de evidências as mais amplas e diversificadas [...] Não obstante a Memória configure uma das matrizes da História, está procurou se autonomizar e mesmo submeter a Memória, ao transformá-la em uma de suas fontes (MOTTA, 2013, p. 61). Para Villas-Boas (2013), a História e a Memória, em certa medida, são complementares. No entanto, ‘’enquanto a história era caracterizada como crítica, conceitual e problemática, a memória era vista como flutuante, concreta, vivida e múltipla’’ (VILLAS-BOAS, 2013, p. 05). Desse modo, atribui a ‘’memória’’ como sendo o processo de lembrar de acontecimentos passados de forma limitada, parcial, imprecisa e com distorções. Assim, as memórias são como leituras de determinadas lembranças de algo do passado, mas ancorado à interesses sobre o que e como deve ser lembrado e/ou esquecido. Assim, ‘’a memória surge então como mera atualização mecânica de vestígio’’ (BARROS, 2011, p. 39). De acordo com Barros (2011), ainda existem obstáculos na utilização da memória como uma fonte histórica, pois essa seria uma construção de uma interpretação histórica. Apesar Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 428 disso, a memória tornou-se instrumento para a historiografia em meados da década de 1970, com historiadores da Nova História que expandem os moldes Positivistas de analisar a história e utilizavam de relatos, por meio da oralidade, como objeto de estudo (SILVA; SILVA, 2018). A História Oral, como metodologia contemporânea do século XX, tem como funcionalidade permitir o acesso da História dentro da história, isso porque, a fonte oral é um instrumento que possibilita outras maneiras de interpretações e construção de narrativas. Porém, é preciso considerar que houve bastante resistência por parte da academia para considerar a oralidade como fonte. Primeiro que, os relatos orais eram tidos como uma verdade absoluta. Isso é, as entrevistas eram colocadas como fins e não como meios. As informações advindas de uma entrevista devem ser analisadas, interpretadas e investigadas e não posta como verdade. O segundo problema foi a polarização entre ‘’história de baixo’’ e ‘’história de cima’’ que era levanta. Essa dicotomia evidencia um conflito e um distanciamento entre o entrevistador e o entrevistado (ALBERTI, 2008) Para utilizar das fontes orais como metodologia é válido considerar que a memória individual e a memória coletiva estão interligadas. Maurice Halbwachs foi pioneiro em carrear a memória individual para um aspecto coletivo. Para esse autor, o indivíduo pode constituir as noções de passado à partir de lembranças individuais, porém, o compartilhamento de memória individuais estabelecem uma memória coletiva, visto que “um homem para evocar o seu próprio passado, tem freqüentemente necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros” (HALBWACHS, 1990, p. 54). Em outras palavras, ‘’há sempre uma troca entre memórias individuais e memórias coletivas: a construção das memórias se constitui tanto do que se apreende das lembranças individuais e se transferiu para a esfera social quanto do que se ensaiou na esfera social e se reexportou para a memória individual’’ (CASTRO; COSTA, 2008, p. 129) Dito isso, é importante retomar a ideia da colonialidade e das perspectivas Pós-coloniais que desdobram de estudos culturais. De acordo com Hall (2016), as reflexões e debates culturais permitem considerar subjetividades e linguagens que questionam a naturalização da visão eurocêntrica. Nesse sentido, o artigo versa na ecologia de saberes para pensar a construção da memória que, não reconhece outras memórias pois não reconhece o ‘’Outro’’. Por fim, é importante frisar que refletir sobre memória no debate historiográfico é de extrema importância para trazer ao centro das discussões os ‘’excluídos da história’’ (SANTIAGO-JÚNIOR, 2015). Assim como o Pós-colonialismo tenciona romper com uma Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 429 matriz moderna/colonial para renovar saberes, o direito à memória aproxima os relegados pela colonialidade do poder, ser e saber. Os lugares de memória não podem parecer como algo preso ao passado e distante do presente. Dessa forma, reforçando a ideia de que é preciso romper com a matriz eurocêntrica, pretende-se discutir a ‘’problemática dos lugares’’e a importância de repensar o conceito ‘’Lugar de Memória’’. O QUE SÃO ‘’LUGARES DE MEMÓRIA’’? É habitual o entendimento que os patrimônios e os bens culturais, sejam eles materiais ou imateriais, exercem o papel de preservar memória. De acordo com Ferreira (2006), o patrimônio vigora da necessidade de resguardar algo do passado que é significativo no presente, pois ainda representa sentido para a identidade de determinado grupo de pessoas, país ou etnia. Os ‘’Lugares de Memória’’, conceito cunhado pelo historiador francês Pierre Nora na década de 70, incorpora as duas categorias pois se atenta aos aspectos materiais, ou seja, o espaço físico, e aos imateriais alicerçado à memória coletiva. Nora discute a ‘’aceleração da história’’ que resulta em ruptura com o passado e o esquecimento da memória. Para o autor, a memória trata o passado como algo próximo, estabelecendo um elo de aproximação com o presente. Enquanto a história trata como algo distante, propondo uma reconstrução de determinada ação do passado e que nem sempre se relaciona com o momento atual de quem o rememora. Dessa forma, segundo Nora, a sociedade moderna está transformando a memória em história. Esse fenômeno provoca uma ‘’problemática dos lugares’’ e que diz respeito a eclosão da epistemologia patrimonial (SANTIAGO-JÚNIOR, 2015). Todavia, existe a necessidade de se manter as memórias para que exista a possibilidade de reconstrução da história. E nesse contexto surgem os Lugares de Memória, sendo um misto de história e memória. Acerca de história e memória, Nora faz traz algumas contribuições. Segundo o historiador, esses panoramas não são sinônimos e se opõem. A memória revisita o passado de maneira pessoal, íntima e dinâmica pois ‘’a memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações’’ (NORA, 1993, p. 09). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 430 Por outro lado, enquanto a memória unifica o passado com o tempo presente, a história é a reconstrução de forma problemática do passado que não existe mais. A história cria uma identidade universal, uma narrativa que dissocia a memória por tratar de forma longínqua. Então, para Nora (1993), as sociedades passam a viver da história e não mais da memória, sendo necessário os lugares que combinem a história e a memória haja visto a necessidade que preservar memórias é uma necessidade para reconstruir a história pois ‘’apesar da “memória” nos permitir remeter para um tempo passado, é sempre uma realidade viva que subsiste no tempo presente. E, enquanto processo vivo, dá o seu contributo para a “história”, principalmente a “história” enquanto processo de narração de acontecimentos’’ (MARTINS, 2014, p. 21). Sendo assim, os Lugares de Memória surgem da ideia de que não existem mais memórias espontâneas e verdadeira, dessa forma, faz-se necessário catalogá las em arquivos, bibliotecas, museus, monumentos, cerimônias públicas, e outros (NORA, 1993). Atualmente, para a historiografia o patrimônio é o elemento principal no que tange os debates sobre a memória, o que propende à se associar meramente os lugares de memória aos patrimônios. A intenção da pesquisa é apresentar que existem outras perspectivas para além do patrimônio habitual, pois acreditamos que existe uma relação de poder e intencionalidade em definir e silenciar esses lugares. Desse modo, é importante apresentar quais foram os elementos que Nora (1993) considerou para identificar um lugar de memória. Além das questões já apresentadas da concordância entre memória e história, o historiador francês indica que um lugar de memória é material, simbólico e funcional. Esses três aspectos decorrem de forma simultânea, mas em diferentes graus, aponta o autor. Os três fatores sempre se relacionam nos lugares de memória. Não basta apenas ser material, como uma biblioteca ou um repositório de arquivo antigos, é necessário que exista uma aura simbólica naquele espaço. Não basta apenas ser funcional como um testamento ou material utilitário. Não basta ser simbólico, é crucial que haja uma interação recíproca com a memória (NORA, 1993). A respeito disso, Martins (2014, p. 25) sintetiza que: da mesma forma que na esfera do religioso, os santuários e os altares representam lugares que asseguram ao indivíduo o contacto entre uma realidade factual que é a terrena e uma realidade divina que é intangível, também os lugares de memória têm esse poder, o de permitir o encontro de dois tempos diferenciados. Esses tempos diferenciados são o presente, que é factual, e o passado, que passará a ser também factual ao ser (re)construído. Há semelhança do que acontece na esfera do religioso, em que os santuários estão imbuídos de uma aura simbólica, também os lugares de memória possuem uma aura com as mesmas características. Tanto num caso como noutro é a dimensão sagrada que lhes está imputada que determina a importância que estes lugares assumem. E a sobrevivência destes lugares de memória passa pela sua Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 431 capacidade de alimentarem o caráter sagrado que possuem, ou seja, a sua dimensão simbólica. Sendo assim, os lugares de memória simbolizam a ritualização da memória-história que resgata lembranças e intui a percepção de pertencimento já que constitui uma relação do passado com o presente. A ideia de rito ou ritualização de algo que tratamos concerne na ideia de reprodução de uma essência, representação de modos característicos que dão sentido e unifica determinado grupo (ARÉVALO, 2005). A CASA DE REZA (OPY) COMO ‘’LUGAR DE MEMÓRIA’’ DOS POVOS INDÍGENAS GUARANIS A experiência nas aldeias ou tekoás (terra sagrada onde vivem os povos indígenas), permitiu o vínculo com grupos da etnia guarani e que resultou em muitas inquietações. O contato com as comunidades antecedeu qualquer interesse de pesquisa, as vivências juntos aos indígenas estabeleceu alguns estranhamentos que ressignificam diversas visões e que permitiram reflexões de diversidades epistemológicas. No litoral de São Paulo existem 14 aldeias, sendo a maioria da etnia Guarani Mbya e Tupi-guarani. A presença nas Tekoás não foi de mero observador, mas, de participante daquela realidade. Assim, envolvido diariamente nesses espaços, a ideia da pesquisa principiou pois, em uma das comunidades guaranis não possuía uma casa de reza por conta da estrutura danificada que cedeu em razão das fortes chuvas. A casa de reza, ou a Opy como chamam os indígenas, é um espaço edificado, na maioria das vezes redondo, que é localizado no centro da aldeia. Em algumas comunidades, existem mais de uma casa, mas com o mesmo propósito. É nesse espaço onde se realizam as rezas, os cantos, as danças, os batismos de ervas, as celebrações, o contato com a ancestralidade, etc. Apesar das inúmeras discussões sobre religiosidade indígena, na historiografia existe uma escassez sobre a casa de reza e sua importância para o espaço da aldeia. Assim, buscamos discutir e relacionar o conceito de ‘’Lugar de Memória’’ com opy, a partir da experiência nas Tekoas guaranis e identificar quais elementos concebem a casa de reza como um ‘’Lugar de Memória’. Iniciamos a discussão com a análise na declaração de um ancião da aldeia que não dispunha da casa de reza: A gente precisa da casa reza para conectar nossas crianças com a nossa cultura. As nossas crianças, hoje em dia, mudaram no comportamento e no estudo. Nós preservamos muito o estudo e a educação da escola fora da aldeia. E está sendo difícil passar a palavra dos nossos conhecimentos e sabedoria sem ter a opy. E é por isso é importante a casa de reza para preservar nossos valores culturais indígenas e a nossa Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 432 forma de conhecimento pelo instinto e conhecimento da natureza para transmitir saber’’ O Xeramoi, que quer dizer pajé em Guarani, testemunha que a ausência da casa de reza dificulta a transmissão de conhecimento da cultura autóctone, o que reflete na preservação dos valores para toda aquela comunidade indígena. A educação e a Opy possuem laços estreitos, pois é válido destacar que as noções de ensino e aprendizagem para os indígenas possuem um sentido diferente da lógica mercadológica, conhecimento para o mercado de trabalho, que os juruá (não indígenas) estão inseridos. O relato do professor da aldeia destaca essa questão: É diferente conversar dentro e conversar fora da casa de reza. É outro sentimento, tem outro sentido. A partir do momento que entramos na casa de reza a gente está em conexão igual. A Opy é muito importante na parte da educação. A educação participa da casa de reza porque quando a gente sai da sala de aula vamos para a Opy renovar nossas forças com nossos ancestrais [...] o professor Juruá ensina que se o aluno estudar ele vai trabalho e ter dinheiro, na Tekoa a escola ensina nossa cultura e a nossa força. Nessa mesma aldeia, o cacique Werá também retrata a importância da construção da Opy para o contato espiritual com Nhanderu (Deus em Guarani), conforme elucida o trecho abaixo: O que falta para gente é a opy. Atrapalha bastante quando não tem a casa de reza onde a gente entra e fica focado no que é preciso ser feito para a aldeia, o que tem que fazer e organizar. Sem a casa de reza a gente fica sem preparo espiritual para organizar as ideias e expressar tudo que sentimos. Tem uma coisa que eu aprendi com o meu pai que sempre dizia: nhanderu pode estar em todos os lugares, você pode estar na cidade ou na mata, mas o fortalecimento que recebemos para ter continuidade e renovação é na casa de reza. A casa de reza é tudo, se eu fosse morar na cidade ia precisar de algum espaço na minha casa, nem que fosse pequenininho para ser a minha casa de reza. É a nossa resistência, o que nos mantém forte, em contato com Nhanderu no pensamento, no canto e nas danças’’. Os relatos possibilitam identificar alguns pontos cruciais para pensar na ideia de Lugar de Memória. Apesar da casa de reza estabelecer um contato com ancestralidade que reforça a resistência e a identidade, concomitantemente, impacta na educação dos jovens indígenas, por exemplo. Dessa forma, é possível perceber que existe a preservação de uma memória, que estabelece o simbolismo da relação do passado com presente, e como funcionalidade de reconstruir e fortalecer suas práticas culturais e de resistência. A representação da casa de reza resgata o passado dos indígenas guaranis, estabelecendo a ligação entre história e memória desses povos. Assim, a Opy é um ‘’Lugar de Memória’’ pois cumpre seu papel e fortalece a identidade desses grupos. CONSIDERAÇÕES Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 433 As abordagens Pós-coloniais e as epistemologias do Sul são demasiadamente importantes para validar conhecimentos e cosmovisões de grupos que são relegados. Considerar a casa de reza como sendo um Lugar de Memória segue essa perspectiva para além dos modelos tradicionais. Todavia, muitas histórias, populações e culturas são desmemoriada por conta do elemento da colonialidade, que estabelece, pela perspectiva hegemônica eurocêntrica, o que deve e o que não deve ser rememorado e assim, a fim de delinear o que são Lugares de Memória acabam por desconsiderar outras formas de ser em relação ao mundo. Dessa forma, não é improvável identificar em edificações como museus, casarões antigos, e praças públicas como sendo espaços onde a memória se cristaliza. Contudo, muitas vezes esses lugares são considerados patrimônios simplesmente pelo seu carácter estético que remete à algum período histórico, mas não puramente por vincular uma relação com passadopresente. Assim, a casa de reza, apesar de não seguir dispor de uma estrutura com beleza cênica e harmônica aos padrões do mundo colonial moderno, é um espaço onde a memória-história é ritualizada. A casa de reza, a Opy, é um lugar de memória tendo em vista que ritualiza a memória coletiva dos guaranis. É um espaço com aura simbólica que estabelece ligação do passado com o presente. Além disso, é funcional porque reaviva modos culturais tradicionais e dessa forma fortalece a identidade. REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS ALBERTÍ, V. Histórias dentro da História. In: PÍNSKY, Carla Bassanezí. Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008. Cap. 5. p. 155-202. Disponível em: <http://gephisnop.weebly.com/uploads/2/3/9/6/23969914/fontes_historicas_carla_bassanezi_p insky.pdf> ARÉVALO, M. C. M. Lugares de memória ou a prática de preservar o invisível através do concreto. In: ENCONTRO MEMORIAL DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS, 2004, Mariana. Anais. BALLESTRIN, L. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, p.89-117, maio 2013. BARROS, J. D. Memória e História: uma discussão conceitual. Tempos Históricos, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p.317-343, jan. 2011. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 434 CASTRO, R. 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Para isso, apresenta-se as teorias da (M/C) segundo a concepção objetificante do meio ambiente e o território como resultado da imposição colonializante da ideia do poder, do ser, do saber e da natureza. PALAVRAS- CHAVE: colonialidade; modernidade; decolonialidade; autonomia; território. RESUMEN A partir del análisis de la bibliografía decolonial se busca presentar la construcción de la territorialidad y conflictos socioambientales relacionados con la modernidad / colonialidad (M / C). El objetivo es analizar de qué modo podemos construir alternativas otras de protección y respeto a las minorías indenitarias y a la naturaleza, yendo en contra de la concepción de territorio hegemónico y eurocentrada. Para eso, se presentan las teorías de la (M / C) según la concepción objetificada del medio ambiente y el territorio como resultado de la imposición colonizadora de la idea del poder, del ser, del saber y de la naturaleza. PALABRAS-CLAVE: colonialidad; modernidad; decolonialidad; autonomía; territorio. INTRODUÇÃO Os estudos acerca de colonialidade e decolonialidade nascem nos países do sul-global historicamente colonizados, na busca por uma construção crítica e emancipadora da realidade social que se constituiu a partir do colonialismo histórico. Para autores como Quijano (1997) o conceito de colonialidade está além do que se apresenta com o colonialismo histórico ou colonização, e não deixa de existir com a independência das colônias, e se reforça na modernidade, onde às continuas práticas coloniais de dominação seguem presentes mesmo após as independências, e se estruturaram por meio da dominação dos sujeitos colonizados para construção da ideia de mundo e da vida fundamentadas por realidades hegemônicas e eurocêntricas. Seguindo esse raciocínio, esta pesquisa busca investigar de que forma a colonialidade se mostra presente nas dinâmicas territoriais que constituem o continente Abya Yala, ou denominado latino-americano. 1 Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). E-mail: isistcc8@gmail.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 437 As teorias da ecologia política e da decolonialidade apresentadas a partir de autores como Quijano, Escobar e Alimonda, possibilitam o aprofundamento na análise político econômica, e de como estas se apresentam a partir da integração das dinâmicas locais à dinâmicas globais e coloniais. Nesse sentido, as intervenções estruturadas segundo um modelo histórico colonializante restringem uma relação com o território de local a ser conquistado e dominado, que afeta negativamente a natureza e que além de aumentar as desigualdades socioambientais, exclui outras dinâmicas territoriais que estão relacionadas com o tradicional ou ancestral. Ao largo da pesquisa serão trabalhadas definições acerca da teoria colonial, tratando a partir de Quijano, as categorias colonialidade do poder e do saber e a categoria raça como determinante sociológica, econômica e política contemporânea. Isto posto, a finalidade aqui é elucidar como as dinâmicas territoriais, políticas e econômicas funcionam segundo padrões coloniais contínuos, de modo a possibilitar a exploração da natureza a partir da inferiorização das populações tradicionais. MODERNIDADE/COLONIALIDADE Segundo o recém falecido Aníbal Quijano (1997), o conceito de colonialidade diz respeito ao colonialismo histórico que, mesmo após a independência dos países colonizados, permanece presente por meio do padrão de modos de vida euro e antropocêntricos. O autor também discute a Modernidade e a forma com que a Colonialidade está expressa historicamente nos fenômenos de exploração da natureza na realidade latino-americana. Para o autor, o colonialismo se instaura com a consolidação do poder do colonizador que impõe um padrão de raça branco e eurocentrico que exclui socialmente aqueles que estão fora desse padrão, é essa padronização que possibilita e justifica de que modo colonialidade segue presente na modernidade. Para Quijano (2000) esse padrão se mantém por meio do controle do trabalho e da categorização da ideia de raça para manutenção do capitalismo. Como afirma Dussel: “Graças a renda do intercambio e acumulação do dinheiro produzido nas colônias, Europa viu nascer um novo sistema prático-produtivo: o capitalismo” (DUSSEL, 2011, p. 169). Esse capitalismo estrutura a modernidade por meio da inferiorização do outro – natureza e ser- colonizado como objeto de uma concepção progresso imposta historicamente de forma violenta. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 438 A partir do resgate histórico, temos nas “grandes navegações” a estruturação de um eurocentrismo globalizante e hegemonizante que constrói um quadro social de sistema mundo centralizado nas nações consideradas potências econômicas (ESCOBAR, 2012). São essas nações que definem quem ocupa a posição de subdesenvolvimento no resto do mundo, construindo-se assim um quadro social baseado no desenvolvimento e progresso, com espaço apenas para conhecimentos e experiências eurocentradas que determinam a construção ideológica da sociedade (ESCOBAR, 2012). Nesse sentido, cabe apresentar que os seres colonizados, antes de serem colonizados, possuíam diferentes noções culturais e ideológicas de como conceber o desenvolvimento, noções tão diversas quanto as suas concepções de natureza, e de como essa se constitui dentro do seu quadro social. Isso posto para enfatizar que a nossa história não é homogenia e nem linear, ela foi construída através de diferentes interações entre os seres humanos e o ambiente que o rodeia, não sendo, portanto, uma categoria restrita a uma visão colonizadora, moderna, hegemônica e eurocêntrica. Tal qual apresenta Alimonda sobre o projeto Modernidade/Colonialidade (M/C). “É o que os teóricos do programa (M/C) denominam o “eurocentrismo”, uma interpretação da história que atribuía a certos povos europeus uma capacidade autónoma de avaliação e construção de uma história do conjunto da humanidade. ” (ALIMONDA in PALÁCIO, GERMÁN, 2009 P. 67) Na América Latina, as experiências dos povos indígenas, campesinos, quilombolas, nas suas diferentes denominações, evidenciam que a colonialidade segue presente na realidade latino-americana. São populações que vivem à margem, e que, além de serem historicamente invisibilizadas, seguem sendo vítimas de violências epistêmicas e sociais resultantes de uma estrutura de dominação territorial e ideológica que nega suas lutas históricas de manter viva suas raízes, identidades e existência. A vida dessas pessoas representa parcelas excluídas e silenciadas do nosso continente, que devem ser ouvidas e interpretadas não apenas como uma forma de “resgate’’, mas também como ferramenta urgente para proteção de seus territórios e vidas. A concepção de terra e território na realidade latino-americana segue o projeto moderno de colonização que se caracteriza sobretudo pela invisibilização de saberes tradicionais em detrimento do desenvolvimento mercadológico, essa configuração se impulsiona pela exclusão e/ou subalternização dos sujeitos colonizados. Alimonda (2009) afirma que a territorialidade na América Latina é uma matriz de relações de poder social, que teve como fator constitutivo Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 439 central o acesso à terra e seu controle. Esse controle é parte do projeto de modernidade que interpreta sujeitos colonizados como objetos de dominação. A dominação apresentada por Alimonda se dá pela inferiorização dos chamados “sujeitos colonizados”, que podemos entender tanto como os indivíduos e populações que residem no local colonizado, quanto a própria natureza, ou território. Quando o território e a natureza são mercantilizados, viram objeto para o agronegócio, e quando isso se efetiva remotamente se questiona o que acontece com as populações que ali residiam, onde vão habitar, ou especialmente porque são silenciadas se a discussão é sobre suas vidas e seus territórios. Diante desse modelo social de mercantilização e exploração massiva do território (natureza) e da vida, é essencial considerar que o esquema social de desenvolvimento concebido na modernidade está associado a existência de um conhecimento tido como único, e que guia ideologicamente a sociedade. Com base no conceito de epistemicídios de Boaventura (2010), podemos analisar a influência da colonização europeia e do liberalismo sobre os processos de produção e reprodução da vida para pensar de que modo a exclusão das experiências dos povos originários é resultado da existência de um padrão dominante de desenvolvimento eurocentrado, que os excluí. Esse padrão de desenvolvimento como modelo de socialização é fomentado pela exploração para geração de lucro, onde não existe a preocupação com a natureza e muito menos com as necessidades dos indivíduos que vivem da relação direta com esta. A dominação epistêmica e cultural como parte desse projeto é essencial para manutenção das relações de poder coloniais, e se sustenta com a exploração da natureza e de populações tradicionais. Hector Alimonda afirma que os elementos da natureza são conduzidos pela lógica de conquista e submissão. Assim, elementos da natureza, conduzidos inconscientemente por humanos em uma empresa de conquistas e sujeição, atuaram sobre as sociedades originárias e provocaram sua destruição ou quase aniquilamento. Por tanto, não se trata apenas de uma interação da sociedade/natureza, senão relações complexas entre humanos, que incluem a violência e o poder mediado por elementos naturais (ALIMONDA, 2009, p. 73 in PALÁCIO). A exploração vivida no continente Abya Yala tem como base a exploração desordenada da natureza - que gera crises socioambientais-, exclusão social e é parte constitutiva para instauração de um modelo de consumo capitalista no continente, que, vale destacar, vai de encontro com o que as populações tradicionais habitualmente exercem. Como Porto-Gonçalves afirma, (…) Não é o extrativismo simples que gera por si só a crise ambiental e humana que vive o mundo atual, porque os povos originários do mundo sempre souberam extrair Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 440 meios de vida da natureza, mas com outra mentalidade territorial. Ao contrário, é o produtivismo capitalista, com o permanente aumento de produção, e suas técnicas que buscam cada vez mais eficiência e o aceleramento da produção e consumo, que levam a exploração e extração da natureza adquirirem outras escalas, cada vez mais intensiva, e convertida em uma “extração destrutiva”. Não se trata somente de uma técnica de produção, senão também e sobretudo, uma técnica de poder, que institui relações sociais e de poder coloniais, que se impõem sobre territórios e populações de maneira vertical e com o objetivo de acumulação incessante de capital (PORTOGONÇALVEZ, 2009, p. 181). As populações indígenas e outras raças invisibilizadas pela colonização, sofrem de diferentes formas a imposição desses padrões. Esses e outros fatores, como as mudanças climáticas, as diversas espécies extintas e desastres naturais, por exemplo, evidenciam que o modelo de produção e desenvolvimento não é sustentável nem para a sociedade nem para o planeta. A relação estabelecida pelo colonialismo e pelo neoliberalismo com a exploração natural e social na América Latina está diretamente relacionada com toda biodiversidade e disponibilidade de mão de obra barata presente no continente, realidade que difere do que existe nos países industrializados. Segundo Leff, a destruição do sistema de recursos e da degradação do potencial produtivo dos ecossistemas que constituem a base de sustento das forças produtivas. Seu efeito mais duradouro se produz pela destruição do potencial produtivo dos países do terceiro mundo e pela introdução de padrões tecnológicos inapropriados, pela indução de ritmos de extração e pela difusão de modelos sociais de consumo que geram um processo de degradação de seus ecossistemas, erosão de seus solos e esgotamento de seus recursos (LEFF, 1986, p. 155). Isso se dá a partir de um ideal de modernidade que não dá voz para cosmovisões distintas, onde só há espaço para a busca de uma padronização da raça e dos modos de vida a práticas que têm como base a lógica de consumo descontrolado. Na realidade do sul global, a ideia de raça está associada à definição de espaço social desumanizado, como modo de auxiliar a dominação territorial por meio da desqualificação epistêmica das minorias sociais (que na verdade são maioria) que habitam o território como forma de garantir a escravização e exploração, onde o outro invisibilizado ou escravizado é apresentado como um ser sem alma facilitando assim a normatização da inferiorização das raças colonizadas. Essa desumanização histórica é questionada desde o período colonial, como podemos averiguar no debate histórico de Valladolid (século XVI) sobre a escravização dos índios, enquanto Bartolomeu de Las Casas defendia os índios americanos, Sepúlveda comparava os índios a figuras não humanas, visando legitimar a escravização e colonização espanhola que se efetivavam cruelmente no continente e comprovam que essa inferiorização é estratégica e Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 441 fundamental para a submissão dos indígenas, interpretados assim como seres irracionais e destinados a servir aos colonizadores, tidos como superiores e racionais. Segundo Rodrigo Gutierrez: Podería-se dizer que o que aconteceu em Valladolid foi a culminação de um processo intelectual mediante o qual pretendeu-se classificar os índios como bárbaros, carentes de razão e com um tipo inferior de humanidade. Tudo isto com a finalidade de aplicar-lhes a doutrina da barbárie, que muitos séculos antes tinham sido anunciados por Aristóteles, e que tinha como conclusão que os bárbaros eram naturalmente escravos. Então, só restava mostrar que os índios eram bárbaros. Com isso, pretendia-se justificar ideologicamente a escravidão dos índios (GUTIERRÉZ, 1990, p. 9). A justificação que Gutierrez apresenta se reinventa ao longo do tempo e toma outras dimensões, a exploração da mão de obra se dá segundo a coisificação do outro desumanizado. Por isso, a crítica histórica feita pelo programa modernidad/colonialidad é também a crítica da desumanização do outro e de seus conhecimentos, na qual a dominação se dá segundo a desvalorização dos modos de vida que não seguem o padrão eurocêntrico de estruturação política, social e econômica, ou seja, o que está fora da lógica colonial é excluído e inferiorizado por não seguir uma lógica civilizatória que preze por um modelo de sociedade moderna. Em razão disso, é necessário trazer as dimensões do outro, invisibilizado e historicamente excluído, na tentativa de compreender a natureza e a sociedade de maneira interligada social e epistemologicamente, e tentar sair do caminho colonialista moderno do ser e da natureza, que tem como base a exploração (SANTOS, 2007). Os conflitos resultantes da exploração e domínio da natureza são parte da trajetória de colonização. Muitos dos conflitos ecológicos vividos na atualidade estão localizados em países com natureza abundante e habitado com minorias sociais tradicionais, indígenas e afrodescendentes. O acesso à terra e aos seus bens é um dos principais fatores dos conflitos da atualidade, que envolve problemáticas específicas que podem ser relacionadas ao ambiental e ao territorial. A colonização, ao passo que conectou diversas estratégias de apropriação da natureza em favor de reduzidos setores de poder político e económico- do países colonizados e colonizadores-, gerou discursos e práticas de subordinação dos povos aos quais se submeteu e do espaço – lugar em que vivam estes povos (ALIMONDA, 2011, p. 47). Para Alimonda (2011), pensar a colonização desde a perspectiva capitalista permite entender a subjugação da identidade colonizada como parte constitutiva da dominação para mercantilização da terra. Isso se dá em função da desconexão entre o ser e a natureza. Essa desconexão é causada pelo uso da violência afim de afastar os indivíduos de suas identidades por meio da perda do conhecimento ancestral, que gera a falta de pertencimento com o território e favorece a implantação de sistemas produtivos voltados para grande produção, que afetam a biodiversidade e os agrossistemas. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 442 A ecologia política diz respeito ao campo de estudos das ciências sociais que critica a busca pelo desenvolvimento industrial nos anos 70, e possibilita uma abordagem política da história ambiental, trazendo consigo a cosmovisão da crítica da terra como propriedade privada e consequentemente a visão de direito romano e de teóricos clássicos como Hegel, que apresentam o território como a base de regência do Estado. É bastante recorrente a utilização de teóricos alemães e franceses para explicar a realidade do mundo e da América Latina, fato que demonstra como a colonização epistêmica se naturalizou e institucionalizou modos de pensar e viver que fazem com que todos sigam na tentativa de ser o estado ideal segundo os preceitos Hegeliano ou até mesmo Marxistas, por isso é necessário pensar até que ponto essas perspectivas podem ser aproveitadas e até que ponto podem ser universalizadas. Grosfoguel, acerca do universalismo epistêmico, afirma: “No universalismo epistêmico marxista, o sujeito de enunciação fica ocultado, camuflado, escondido sob o conceito que não é o de “homem”, “sujeito transcendental”, senão o proletariado”. (GROSFOGUEL, 2008 p. 7). A acepção da categoria proletariado hoje é evidente no cenário moderno liberal em diversas esferas, contudo, na época da colonização, não dizia respeito a realidade colonial, especialmente por essa se caracterizar pela imposição de práticas e costumes que buscam a garantia de uma dominação que se instaurou e se edifica com base na universalização do outro oprimido. Essa universalização anula determinadas especificidades, como por exemplo, o fato da opressão a qual está sujeitado o sujeito oprimido da América Latina estar relacionada com categorias como escravidão, violência e desumanização, sendo, portanto, categorias distintas ao que o outro oprimido europeu sofria. Grosfoguel afirma ainda: Marx reproduz um racismo epistémico muito parecido com o de Hegel que não permite afirmar que os povos e sociedades não-europeias são semelhantes nem que têm a capacidade de produzir pensamento digno de ser considerado parte do legado filosófico da humanidade ou da história mundial. Para Marx, os povos e sociedades não-europeias são primitivos, atrasados, é dizer, o passado da Europa. Não haviam alcançado o desenvolvimento das novas forças de produção nem os níveis e evolução social da civilização europeia. Partindo disso a necessidade de civiliza-los e de tiralos do atraso aahistórico dos modos de produção pré-capitalistas, Marx apoiava a invasão britânica da índia no século XVIII e a invasão estadunidense do norte do México no século XIX. (...) A teoria de Marx partia do evolucionismo, onde o capitalismo era então o sistema mais avançado e, portanto, mais próximo da retórica da salvação da modernidade eurocentrada (Mignolo, 2000), era melhor para os povos não-europeus acelerar por meio das invasões imperiais seu processo evolutivo até o capitalismo do que continuar estancado em formas antigas de produção social (...) (GROSFOGUEL, 2008 p. 4). Isso posto, não se buscará aqui estabelecer críticas, mas sim considerações complementares acerca do fato de que para nosso real desenvolvimento como continente precisamos pensar desde a nossa real constituição. Por exemplo, foi a teoria hegeliana de Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 443 Estado acerca da territorialidade e das formações societárias que possibilitou a compreensão dos colonizadores europeus como sujeitos históricos, e que garantiu constituição dos povos colonizados segundo a padronização eurocentrada. (ESCOBAR, 1991, p. 26). Contudo, é essencial integrar esses pensadores a crítica decolonial à medida que é necessário entender como nasce a noção desenvolvimentista do capitalismo para criticá-lo, e proporcionar uma narrativa social que diga respeito às epistemologias que estão para além na visão hegemônica capitalista globalizante, abordando de que modo este estabelece uma modernidade sustentada pela exploração do trabalho e da natureza na América Latina, essenciais também para a consolidação do capitalismo na Europa. Nesse contexto, uma das principais bases do pensamento decolonial diz respeito a forma com que a colonização determina o sul global como a periferia e sustenta isso como padrão para dominação social nas dinâmicas que dizem respeito a exploração da terra e dos indivíduos. É essa exploração que mercantiliza e categoriza o ser e a terra como objetos monetários e estrutura uma visão social linear e eurocêntrica, baseada na relação de dominação. A ECOLOGIA POLÍTICA E TERRITORIALIDADE Segundo Germán Palácio, a ecologia política diz respeito forma com que a sociedade se constitui a partir da relação com a natureza. A ecologia política discute os aspectos de fabricação, construção e sistematização social da natureza não apenas quanto aos assuntos materiais, senão a sua construção imaginária e simbólica. Isso, inclui a forma em que a sociedade, por um lado, e a ciência por outro, se imaginam o inventam as noções de natureza e o que consideram problemas ambientais (...). Essa ECOPOL reconhece os aportes da economia política de modo que analisa os processos de apropriação da natureza, pela qual revisa sua circulação, distribuição e consumo. De aí, se derivam as modalidades e disputas em torno da apropriação, usufruto e controle da natureza; em consequência, também analisa as disputas, lutas e negociações desses agentes, do que deriva os problemas econômicos-políticos de justiça ambiental (PALACIO, 2006, p. 11). Para Martinez Alier (2008), os problemas ambientais são fruto de uma sociedade baseada na exploração da natureza. Para o autor, vivemos o resultado de um modelo conflitivo de má distribuição e má utilização dos ecossistemas. Compreender esses conflitos é parte essencial para identificação da ecologia política como categoria de análise das relações entre sociedades e meio ambiente. Existem populações que convivem mais diretamente com os impactos desse modelo de exploração por estarem mais próximos de zonas ricas em biodiversidade, mas que, por serem mais vulneráveis socialmente, estão mais suscetíveis a imposições do grande mercado. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 444 Essas populações são, em razão disso, vítimas não apenas de um modelo de exploração da natureza que segue os mesmos padrões coloniais presentes há 500 anos atrás, mas também das contaminações resultante do uso de técnicas que colocam vidas em risco por meio da subjugação de seus territórios –colonizados- para a exploração econômica. Essa lógica começa com a perda da tradição e da identidade relacionadas ao território como forma de exercer o domínio e garantir e exploração para acumulação do capital. Conflitos socioambientais são a consequência previsível da má distribuição de recursos, que está relacionada com a estrutura política e econômica desigual. Para Arturo Escobar (2005), estes conflitos são essenciais para compreender de que maneira nossa formação econômica é parte estruturante do desenvolvimento baseado na exploração ecológica que nega a conexão das pessoas e seu entorno e que desconstrói as noções epistemológicas que relacionam a identidade e tradição com a natureza. Tal como Porto-Gonçalves afirma: “ (...) o genocídio das comunidades étnicas e campesinas são parte da tradição eurocêntrica do conhecimento que com a ideia de “dominação da natureza” colonizou o mundo de forma antropocêntrica” (PORTO-GONÇALVES, 2017, p. 54) E a evolução destes padrões eurocêntricos antropocêntricos culminam na socialização neoliberal. A lógica neoliberal se baseia na flexibilização econômica, os governos e instituições financeiras ganham a centralidade na dinâmica social, buscando assim uma produção internacionalizada, e não uma autonomia e soberania dos Estados ou a integração da natureza e sociedade. No caso latino-americano, a formação agrária está concentrada pela riqueza e poder marcados pelo conflito, violência e exploração. Populações e comunidades tradicionais são parte de um determinismo histórico fruto da mercantilização e apropriação da terra legitimada pelo Estado. Ainda segundo Martinez Alier (2008), ecologia política tem como principal motor os conflitos ecológicos distributivos. Segundo o autor, os conflitos que dizem respeito a má distribuição dos recursos, entre eles territoriais, afetam o âmbito material e simbólico das populações vitimadas pela invisibilização de seus valores para dar lugar a um padrão que, mesmo com a premissa sustentável e bandeira verde, encontra formas de compensação que afetam populações e não respeitam a relação estabelecida ali historicamente. Para melhor tratar do que diz respeito ao campo simbólico da ecologia política, Enrique Leff discute epistemologicamente que o discurso dominante atua como modo a manter os saberes e conhecimentos tradicionais apartado daquilo que compreendemos por construção social, esse tipo de fenômeno faz com que não se construa um pertencimento efetivo daquilo Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 445 que entendemos como sociedade, e buscamos assim sempre atender e estar inseridos no padrão eurocêntrico apresentado como ideal. É importante trazer a perspectiva de Leff pois esta apresenta a ecologia política como parte de uma construção de nova alternativa epistemológica, que diz respeito não apenas a demandas do mundo moderno e a defesa ambiental como parte disso, mas sim como estabelecer o respeito com as outras dinâmicas societárias ao passo que se constrói uma relação de respeito com a diversidade e com a natureza. No mesmo certame, Arturo Escobar apresenta a antropologia política como parte essencial para o estudo dos conflitos culturais ecológicos distributivos, uma vez que estes estão intimamente relacionados com o modo que as comunidades interpretam sua realidade segundo deus processos culturais e sociais específicos, e de que modo estes se estabelecem ecologicamente (ESCOBAR, 2005). A imposição conflitiva de normas e valores sobre a natureza, reforça uma determinação de práticas culturais e dinâmicas territoriais que de forma violenta deliberam a vida social. A ecologia política na perspectiva de autores com Enrique Leff, Arturo Escobar, Martinez Alier e outros, estabelece um debate para além da análise crítica económica, evidenciando a existência de alternativas que digam respeito às diversas representações simbólicas e pensar práticas decoloniais nas quais população e natureza convivam de modo verdadeiramente complementar e inter-relacionando. Segundo Germán Palácio, “A ecologia política se centra na reflexão e discussão das relações de poder em torno da natureza nos termos de apropriação e controle tanto no âmbito material, quanto na sua construção imaginária e simbólica” (PALÁCIO, 2005, p. 13). É segundo a definição do autor que se resume aqui tudo que se tentará apresentar no trabalho. Partindo de uma da perspectiva e construção analítica que insira o ambiental ao social, é possível uma concepção complementaria das percepções sociais acerca da natureza e de que modo se pode estabelecer, a partir da perspectiva decolonial, alternativas para os conflitos socioambientais, que também são territoriais. O pensamento decolonial permite compreender as bases da desigualdade e da centralidade presentes na configuração das sociedades, especialmente a noção de natureza como objeto de dominação e da raça como padrão hierárquico nas populações culturas subalternas. COLONIALIDADE E RAÇA: RACISMO AMBIENTAL E OS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 446 A perspectiva da colonialidade do saber e poder são parte da consolidação histórica de uma realidade moderna baseada na colonização do outro e construção de identidades instauradas e fundamentada na superioridade do colonizador e invisibilização da raça do outro colonizado. Segundo Quijano: (...) “raça” é uma construção mental moderna, que não tem nada a ver com a realidade gerada para naturalizar as relações sociais de dominação produzidas pela conquista, se constitui na pedra basal de um novo sistema de dominação, já que as formas de dominação precedentes, como entre sexos e idade, são redefinidos em torno da hegemonia de raça. Os termos originários desse novo sistema de dominação são, de um lado, os índios, termo colonial que aglomera várias identidades históricas que habitam este continente antes da conquista ibérica e do outro os colonizadores que desde do século XVIII se auto identificaram e criaram os termos índios, negros, mestiços, brancos e europeus (2005, p. 32). Desse modo, a construção das identidades dos negros e indígenas no contexto hegemônico, os determina à condição subalterna de seres inferiores e alheios aos processos de construção histórica que consolidou uma divisão territorial restrita a uma elite que busca o fortalecimento do modelo desenvolvimentista e industrializado de conceber o território. Segundo Martinez Alier, o conceito de racismo ambiental nasce nos EUA nos anos 70`, no mesmo contexto que a ecologia política, numa luta que evidenciava o fato de atividades de exploração territorial altamente contaminantes estarem localizadas justamente em áreas povoadas por comunidades afrodescendentes, de origem latina, ou povos tradicionais norteamericanos. E mesmo sendo este um fato recorrente, são muitos os trabalhos que tratam de questões territoriais e ambientais, mas são poucos que tratam do racismo ambiental como causa e efeito dos conflitos vividos na América latina e em várias outras partes do sul global, sendo, portanto, interessante aborda-lo como uma temática central do estudo decolonial e da ecologia política. A análise possibilitada pela ecologia política é a de que conflitos são resultado da lógica capitalista hegemônica. Ao inserir o racismo ambiental como parte dos conflitos ecológicos de distribuição, pode-se observar que para a consolidação de uma democracia baseada na descolonização das sociedades, temos que considerar o racismo ambiental como categoria estruturante de solidificação de realidade subalterna das identidades do nosso continente. Como Afirma Quijano: O processo de independência dos Estados na América Latina sem a decolonização da sociedade não pode ser um processo de desenvolvimento dos Estados-nação modernos. (...) A democratização teria implicado, e ainda deve implicar, no processo de decolonização das relações sociais, políticas e culturais entre as raças. (2000 :2223) Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 447 Para Quijano a raça funciona como égide da colonização e o racismo como produto da colonialidade. (Quijano, 2000). A relacionalidade do decolonialismo e do racismo ambiental se evidencia quando forças políticas estão atreladas às econômicas para propiciar uma invisibilização e atribuição desigual de capital social. Isto é, o sistema moderno submete raças historicamente invisibilizadas à uma constante vulnerabilização e menor poder de tomada de decisão sobre seu território, favorecendo assim a implantação de atividades sócio e ambientalmente impactantes. Essas atividades prejudicam a natureza e laçam toda uma carga de contaminantes que são um risco a saúde e vida das populações locais. É dizer, os danos socioambientais trazem consigo a exclusão das populações tradicionais para dar lugar à grandes projetos desenvolvimentistas que são instaurados pelo capital multinacional. Portanto, para pensar autonomia é preciso observar que os projetos modernos ou desenvolvimentistas se mantem sob os mesmos alicerces desde a colonização, a subjugação para dominação e exploração. Chamamos de desenvolvimento, progresso ou modernidade o empobrecimento e degradação de populações que já são pobres visando a concentração da renda por meio da concentração dos bens ambientais nas mãos de setores econômicos historicamente detentores de capital, mantendo assim a mesma lógica de socioeconômica hegemônica. CONSIDERAÇÕES FINAIS As teorias apresentadas permitem compreender de que modo a configuração epistêmica e social do continente Abya Yala está edificada segundo padrões e estruturas coloniais, que interpretam o ser, a natureza e a territorialidade a partir da perspectiva mercantilizada, instaurada pela subalternização e invisibilização do outro colonizado. Tal analise nos permite compreender a urgência de se pensar as categorias da decolonialidade, da ecologia política e do racismo ambiental para a instauração de ferramentas outras de reprodução da vida, que funcionem a partir de práticas epistemológicas, sociais e políticas de enfrentamento dos mecanismos de subalternização e inferiorização do outro a partir das categorias coloniais de pensar o território. Nesse sentido, apresenta-se aqui uma breve analise acerca da instauração de territorialidade mercantilizada no continente, e suas causas e consequências. Isso para abordar a urgência de se pensar alternativas outras de interpretação da territorialidade, alternativas que estejam relacionadas com o respeito e exercício de práticas de produção e sustento pautadas na valorização da natureza e do ser. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 448 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALIMONDA, Héctor. La colonialidad de la naturaleza. 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Através das relações que foram tecidas entre cultura, ambiente, corpo, infância e espiritualidade, delineia-se como tal curso cria aberturas para a descolonização da educação e do pensamento. PALAVRAS-CHAVE: educação intercultural, linguagem, decolonialidade, povos indígenas. ABSTRACT This article reflects about the importance of a guarani language course that occurred in a university located in Niterói, Brazil, which provided meetings and dialogues between indigenous people and the jurua kuery (nonindigenous). In addition to the grammatical learning of the language, this course presented the teko (way of being and living) of the Guarani people. Through relationships that have been woven between culture, environment, body, childhood and spirituality, it is outlined how such a course opens possibilities of decolonizing the education and the thought. KEYWORDS: intercultural education, language, decoloniality, indigenous people. DJAWY DJU! MBA’E PA PEMOMBE’U? Com as frases acima, nossa professora Sandra Benites (de nome Ara Rete, “força do dia/céu” na sua língua guarani3) inicia sua aula numa manhã de sábado. Numa tradução ao português, ela nos diz um simpático “Bom dia! O que vocês me contam?”. No decorrer da aula, a professora dialoga ativamente conosco. Aprendemos sobre os verbos mombe’u (contar), ko’e 1 Licenciado e Bacharel em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Santa Catarina, além de Mestre e atualmente doutorando em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Atua como pesquisador nos campos da educação ambiental e do ensino de Ciências e Biologia. É professor da educação básica na rede municipal de ensino de Maricá (RJ). E-mail: danielgmk9@gmail.com. 2 Bacharel em Direito e Bacharel em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina, Mestre em Sociologia Política pela mesma universidade e atualmente doutorando em Sociologia e Direito na Universidade Federal Fluminense. Tem experiência nas áreas de pensamento latino-americano e teoria crítica da cidadania, dos direitos humanos e da democracia, com ênfase nos marcadores sociais de diferença. Possui especial interesse nas teorias decoloniais, políticas de memória histórica e educação para/em direitos humanos. E-mail: ricardosfelix@gmail.com. É comum para os Guarani adotarem um nome “aportuguesado” para utilizarem junto à comunidade dos não indígenas, sendo o outro, em guarani, utilizado em sua comunidade. 3 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 450 (amanhecer), mohesakã (esclarecer) e porandu (perguntar), e suas conjugações. A professora explica também as diferenças de nomeação que ocorrem de acordo com o gênero do falante, dando o exemplo de que uma mãe ao falar “minha filha chegou”, diria na língua guarani⁚ “Xe memby kunhãi oguãhe”. Já um pai, dado o seu gênero masculino, modificaria sua fala sobre a filha para⁚ “Xe radjy oguãhe”.4 Num entremeio dessas explicações, Sandra nos apresenta um possível diálogo entre o feminismo ocidental e a vivência da mulher indígena. Todavia, ela explica que ao dialogar com as mulheres guaranis ela não se utiliza do termo feminismo, palavra de origem jurua5, mas de outras categorias da sua própria língua e cultura. Como, por exemplo, as narrativas ancestrais que envolvem o sagrado da Nhandesy (nossa mãe). Em suas aulas há espaço para trocas de experiências, para a política que se vive nos cotidianos dos diferentes alunos da turma, assim como momentos para a indignação e o desabafo, dadas as dificuldades do contexto político e social que é vivenciado coletivamente. Um saber-fazer dialógico que é permeado de uma escuta atenta, tal como Sandra nos explicou que a cultura guarani é atravessada. Sandra foi nossa primeira professora indígena em mais de duas décadas de trajetória por espaços formais de ensino, seja em escolas ou universidades. No segundo semestre do ano de 2017 – tendo prosseguimento em 2018 e 2019 – foi oferecido pelo Programa de Línguas Estrangeiras Modernas (PROLEM) da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói (RJ), o curso de língua Guarani, no qual a professora Sandra Benites ficou encarregada de lecionar as aulas no período de dois semestres. O curso surgiu como parte do projeto “Encontro de Saberes” no espaço da UFF. Este tem sua origem em 2009, no contexto da elaboração e implementação de políticas de inclusão e ações afirmativas por diferentes universidades brasileiras desde o começo dos anos 2000. Foi assim que se consolidou o Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI, um dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq), sediado na Universidade de Brasília (UnB), com financiamento do Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação (MCTI). A partir de então, foram planejadas ações de inclusão de saberes afro-brasileiros e indígenas em diversas Tecnicamente, no caso da mãe ser a enunciadora, tanto faz se é “filha” ou “filho”, a palavra utilizada é a mesma, tendo um significado literal de “algo colado em mim”. Já sendo o pai o enunciador, a flexão de gênero é realizada (radjy, para “filha”, e ra’y, para “filho”), significando, literalmente, “minha carne”, “meu nervo”, no primeiro caso, e “meu pedacinho”, para o segundo. Percebe-se como todos os termos indicam uma relacionalidade corporal específica neste sistema que envolve a filiação e sua nominação; remetem à relação do enunciado (e, por consequência, do referente “filho/filha”) com o corpo do falante. 5 Palavra em guarani que literalmente significa “boca com cabelo”, em referência à barba dos homens, porém é utilizada de forma geral para designar os que não são indígenas. 4 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 451 universidades públicas brasileiras nos níveis de graduação e pós-graduação. O projeto Encontro de Saberes possibilitou, por exemplo, trazer lideranças indígenas, quilombolas, de povos de terreiro e de comunidades tradicionais para compartilharem seus saberes e vivências no espaço universitário. De forma a atender a legislação que obriga o Estado a implementar as políticas de ações afirmativas e garantir a inclusão de conteúdos curriculares específicos até então não fomentados, os cursos de língua Guarani e Yorubá começaram a ser oferecidos pelo PROLEM. A professora Sandra Benites tem sua origem na aldeia Porto Lindo, no estado do Mato Grosso do Sul. Todavia, ao longo de sua vida ela viveu em distintas localidades do Brasil, sendo que por sete anos lecionou para crianças e adolescentes guaranis numa escola da aldeia Três Palmeiras, no município de Aracruz, no Espírito Santo. No ano de 2015, ela se formou na Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e, em 2018, obteve o título de mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional, sendo que atualmente é doutoranda do mesmo programa de pós-graduação. A turma de língua guarani que se constituiu na UFF é diversa em termos de perfis de estudantes, configurando trajetórias e interesses bem variados. Desde pessoas que trabalham social e academicamente com indígenas, porém não necessariamente com os da etnia Guarani, como, por exemplo, os Mebêngôkre/Kayapó da região amazônica, até as que não haviam tido contato com a temática até então. Alguns indivíduos da turma demonstraram seu interesse pelas aulas por terem antepassados indígenas. É importante também destacar uma redução de 75% do custo do curso em comparação com outras línguas oferecidas pelo PROLEM, assim como a total gratuidade do mesmo para estudantes cotistas, de forma a estimular a inscrição dos beneficiários de políticas de ações afirmativas. Ao demonstrarmos um entusiasmo com as aulas de língua guarani com amigos, familiares e conhecidos, apesar de muitos demonstrarem interesse e curiosidade, houve aqueles que demonstraram perplexidade e, num caso específico, desprezo. Questionavam o porquê de se estudar a língua guarani. Qual seria sua importância na contemporaneidade, em um mundo globalizado? Não seria melhor dedicar tempo de estudo para línguas mais “úteis” como inglês, francês, espanhol ou alemão? Ou seja, línguas oriundas do continente europeu e que tradicionalmente têm seu lugar naturalizado numa instituição universitária, tendo em vista as perspectivas colonizadoras que nos permeiam. SOBRE AS (DE)COLONIALIDADES QUE NOS HABITAM Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 452 Boaventura de Souza Santos (2010) narra a existência de um pensamento colonizador que nos estrutura e que precisa ser exposto e problematizado. Os saberes posicionados ao Sul Global foram vistos como destoantes da racionalidade moderna e por isso vistos como inferiores. Tal como apresentado no “Subpoema” de José Luis Mendonça (1997), o sul é categorizado pelo prefixo “sub”: subdesenvolvido, subnutrido, subserviente e pertencente a um submundo. Uma diversidade de pensadores decoloniais e pós-coloniais buscam aprofundar essa crítica quanto à colonialidade do saber, em especial acerca do que é ensinado e pesquisado nas universidades. Matta (2014) discute isso e coloca como ainda somos colonizados em termos epistemológicos, onde a Europa é vista como a origem de um “sujeito universal” e sua hegemonia se impõe nas diversas produções culturais e no próprio pensar acadêmico. A universidade se fundamentou historicamente nos pressupostos de que possui um conhecimento privilegiado e separado dos saberes ditos “populares” e “tradicionais”, incluindo nestes os pertencentes aos povos indígenas. É importante destacar como o latim, a língua que era falada na época dos antigos romanos, tem seu ensino nas universidades brasileiras mais disseminado e consolidado que o de língua guarani. Certamente a língua latina trouxe contribuições inegáveis para a ciência e a cultura, porém a língua guarani igualmente o fez e há uma dificuldade em ser reconhecida por isso pelas instituições acadêmicas. Ademais, não há sentido em considerá-la como uma língua “estrangeira” no Brasil, justamente por ser nativa destas terras e falada cotidianamente pelos povos desta etnia. Cabe ressaltar que a língua guarani, além de ser falada no Brasil, também está presente em países como o Paraguai, a Argentina, a Bolívia e o Uruguai. Por um longo período da história do Brasil, uma variação do tupi-guarani era a língua majoritariamente falada, inclusive pelos colonizadores e jesuítas portugueses (BESSAFREIRE, 2008). Até a primeira metade do século XVIII a língua geral setentrional - ou amazônica - e a língua geral meridional - ou paulista - eram as línguas francas, respectivamente, no Norte e na região Centro-Sul. Somente com a imposição autoritária da coroa portuguesa, representada pela figura do Marquês de Pombal na segunda metade do século XVIII, é que nos tornamos forçosamente, e de forma não-homogênea, uma nação predominantemente lusófona. Entretanto, uma infinidade de palavras e articulações linguísticas presentes em nossos cotidianos são advindos de línguas indígenas, em especial do tupi-guarani. Palavras como pitanga, caju, carioca ou expressões como o “nhenhenhém”. Uma enorme quantidade de topônimos, tais como Ipanema, Guanabara, Icaraí ou Niterói. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 453 Contudo, compreendemos como o contato com a língua guarani pode se tornar muito mais do que o aprendizado da origem de determinadas palavras. Este artigo articula a ideia de que aprender a língua guarani também envolve o rompimento de estereótipos colonizadores acerca dos povos indígenas e desestabiliza nossas certezas sobre um único modo de falar, viver, ser e pensar. Possibilita, dessa forma, que outras éticas, políticas, epistemologias e ontologias também habitem os espaços educativos, destacando-se a universidade e a escola. O PODER DA PALAVRA PARA OS GUARANI A língua guarani está situada na família linguística Tupi-Guarani e esta, por sua vez, localizada dentro do tronco linguístico Tupi. Dentro da língua guarani há variações na fala e escrita de acordo com os diferentes subgrupos da etnia Guarani, dentre eles os Mbyá, Nhandewa e Kaiowá. Pela fala de nossa professora Sandra, não há única forma de se escrever as palavras em guarani, e provavelmente o ideal não seria padronizá-la, apesar das supostas vantagens da criação de uma língua uniformizada para a criação e distribuição de materiais didáticos. Sandra colocava como a imposição forçada de uma única forma de se falar e de se escrever poderia se constituir numa violência a essas diferenças regionais e locais, que também necessitam ser contempladas. Pela Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº 9394/96) houve avanços legais com relação ao reconhecimento constitucional dado aos povos indígenas ao direito culturalmente diferenciado à educação bilíngue, à recuperação de suas memórias históricas e à reafirmação de suas identidades étnicas. Com a complementação prescrita pela Lei nº 11.645/08, a história e cultura indígenas devem ser ensinadas tanto para povos indígenas quanto não indígenas. Entretanto, diferentemente de países latino-americanos como a Bolívia ou o Paraguai, as línguas indígenas do Brasil não são consideradas oficiais em âmbito nacional. No Paraguai, o guarani é também uma língua institucionalizada e ensinada nas escolas do país, sendo que a maior parte da população fala o jopara, uma mescla das línguas castelhana e guarani. A palavra e a fala têm um significado espiritual para os povos indígenas Guarani (BENITES, 2015). Benites coloca que a palavra Nhe’ẽ tem um significado aproximado a “um fundamento da pessoa Guarani” ou um “espírito-nome”. Como ela acrescenta, ao falar sobre o Nhe’ẽ: Estranhamos não apenas algumas traduções feitas pelos jurua kuery, mas também a frieza do registro escrito. Quando os xamõi kuery6 nos falam sobre o nhe’ẽ eles se 6 Nome em guarani para os homens mais velhos, os sábios. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 454 emocionam. Porque nhe’ẽ está ligado ao sentimento, ao nosso py’a. Xamõi kuery oendu opy’are - eles sentem com o coração. Não há palavras que exprimem e que traduzem esse sentimento, essa emoção. Não se trata apenas de traduzir, para o português, o espanhol ou qualquer outra língua, nhe’ẽ como “palavra-alma”. Isso seria, além de um equívoco, simplificar demasiado o conhecimento, o fundamento da vida, da pessoa Guarani. Quando escrevemos, colocamos no papel nhe’ẽ, parece que é uma simples palavra, mas não é. Quando pronunciamos nhe’ẽ, estamos nos referindo a todo o nosso pensamento, conhecimento, nos conectamos com o nosso mundo espiritual (BENITES, 2015, p. 12). O modo de ser dos Guarani traz uma relação muito atenta com a fala e a escuta. Como Sandra Benites nos explicou durante as aulas, o verbo hendu, escutar, não é somente ouvir um determinado som. É um sentir, uma escuta profundamente consciente e presente. O ato de gritar ou interromper o outro não são bem vistos, sendo que o ideal de masculinidade dos homens guaranis diz respeito ao exercício de uma escuta atenta e em saber o momento certo de se pronunciar. Trata-se de uma expectativa social em que o homem é paciente e tolerante. Da mesma forma, há uma relação cultural diferente das mulheres com a fala, onde a chamada “fofoca” tem um outro significado, mais positivo do que na cultura jurua, de forma que é ela que fortalece os laços sociais e afetivos entre as mulheres indígenas guaranis. Algo que nos provocou impacto no decorrer das aulas de língua guarani foi o confronto com o que é intraduzível e indecifrável. O que até certo ponto podemos nos aproximar de uma percepção ocidentalizada acionada pelo português brasileiro, mas que não se acomoda e escapa. Há também palavras que são sagradas e não poderiam nunca ser compartilhadas com os jurua kuery, tal como Sandra nos explicou. De fato, a convivência com o mistério é algo que a sociedade jurua tem muita dificuldade de reconhecer e se relacionar. OUTROS MODOS DE SER NO MUNDO: O TEKO No decorrer das suas aulas de língua guarani, Sandra também nos narra muito acerca da cultura e dos hábitos de seu povo, incluindo um conceito fundamental para os Guarani: o teko. O teko teria uma tradução aproximada ao modo de ser ou de viver, que é múltiplo. Sandra nos colocou inclusive como cada indivíduo tem o seu teko, de forma que não há como homogeneizar os indígenas. Por isso, classificações muitas vezes utilizadas em museus ou exposições, como “arte guarani”, são vistas como imprecisas por ela, porque cada indivíduo indígena terá sua própria forma de criar sua arte. Se o teko representa o modo plural de ser, o tekoha ou tekoa é o lugar coletivo onde se constrói esse modo de ser, que incluiria a “mata, animais, cachoeiras e fontes de água, mel, terra para fazermos nossas roças” (BENITES, 2015, p.9). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 455 No que se compõe a cultura e as epistemes do povo indígena Guarani? Ambas não são categorias paradas no tempo, mas sim dinâmicas e produzidas a partir de circunstâncias temporais e espaciais. Apesar da imagem clichê de que o indígena vive em áreas rurais e isoladas, atualmente uma percentagem considerável de 36,2% da população indígena vive em áreas urbanas, segundo dados do IBGE (2010). Usar celular, televisão ou computador não torna alguém menos indígena, em especial ao considerarmos a cultura na sua historicidade, como um fenômeno em permanente processo de transmutação. Os saberes e tecnologias da cultura dita “branca” são na realidade provenientes das mais distintas e plurais culturas, muitas delas não europeias. Como educadores que somos, as aulas de Sandra nos deram um repertório valioso para se pensar a educação de outras formas, tendo em vista a apreciação destes outros tekos ou modos de ser (BENITES, 2015). Coloca, ainda, que a educação guarani está muito próxima da sensibilidade e afetividade. Há também uma relação íntima da educação com o corpo, o movimento e o ambiente. Os rios, matas e seus habitantes não humanos também são participantes ativos na educação do jovem guarani (BENITES, 2015). Bastos Lopes (2017) sinaliza uma forte presença do sagrado na educação guarani, de forma que estes aspectos que não são físicos ou visíveis têm uma centralidade nas suas cosmologias, porém costumam ser ignorados nas políticas interculturais. Como a autora acrescenta, após trazer a narrativa de um dos seus interlocutores Guarani: “Esses exemplos de segredo e mundos invisíveis mostram que podemos estender nosso território epistemológico a mais perspectivas, em oposição, a qualquer consistência que se fixe originária ou inflexível” (p. 114, 2017). Sandra nos afirmou que a educação dos Guarani atua fortemente através da oralidade, do exemplo e do convívio no meio social, e busca não se pautar em violências físicas, recompensas e punições, em consoante com o afirmado por Meliá (2010). Consiste numa forma diferente de se pensar a educação, que não busca ser tão disciplinadora e controladora como comumente encontramos entre os jurua kuery (MELIÁ, 2010; BENITES, 2016). Entretanto, isso não significa que conselhos não sejam dados, pelo contrário, há um esforço coletivo para que regras sociais vigorem e sejam respeitadas. Durante as aulas de língua guarani, não houve a realização de provas como “teste” a nossos conhecimentos “acumulados”. Como a professora nos explicou, por que impor a homogeneização de aprendizagens se somos diversos e aprendemos de formas diversas? Não há como avaliar o outro que eu não conheço. Poderíamos, no máximo, avaliar um contexto ou Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 456 situação que levaria a um determinado resultado. Desta forma, a escrita de um texto de autoavaliação pelos estudantes foi priorizada pela professora. O ensino dos Guarani para com suas crianças também foi algo que nos impressionou no decorrer das narrativas de Sandra. Os cuidados e ritos que são seguidos pelos pais no período da gravidez são considerados importantíssimos para o desenvolvimento da personalidade da futura criança (MELIÁ, 2010; BENITES, 2015). Há um enorme cuidado com as palavras que são dirigidas aos jovens. A relação com o corpo também é um aspecto fundamental da cultura guarani. Sandra nos explica que há um estranhamento seu ao se deparar, por exemplo, com um corpo separado em partes num livro didático. O corpo é uma totalidade e também possuidor de um sagrado, de forma que esse seu comentário aponta o quanto a cultura e a sociedade dos jurua vê o corpo de maneira fragmentada e dissecada, ao invés de compreender ele como um todo integrado. A dança do Xondaro (Guerreiro), realizada por “meninos, meninas e jovens” (MENDES, 2006, p.75) guaranis, é um exemplo dessa relação entre corpo e sagrado. Como Sandra nos contou, os Guarani são capazes de dançar por horas com ânimo e entusiasmo. Durante uma das aulas foi transmitido um vídeo-documentário sobre a dança do Xondaro7, salientando como a linguagem audiovisual e as ferramentas tecnológicas são importantes para a divulgação da sua cultura, de forma a termos acesso a algumas dimensões de suas práticas, organização social, língua, etc. Sandra também nos apresentou um grande desafio enfrentado pelas mulheres guaranis em espaços que afirmam prezar a pluralidade, como, por exemplo, o ambiente acadêmico. No período menstrual, as mulheres normalmente devem ter um momento de reclusão, de forma a viver este período com repouso e respeito ao seu corpo. Entretanto, as exigências da cultura jurua apregoam que as mulheres devem estar sempre disponíveis e presentes, em especial nos seus compromissos sociais, no mundo do trabalho e na educação formal, mesmo neste período que demanda cuidados especiais à mulher guarani. Esta sua narrativa demonstrou alguns dos desafios e limites das políticas interculturais. Algo particularmente instigante que foi aprendido com Sandra Benites é a perspectiva guarani acerca dos sentimentos. Como a professora colocou, a palavra py’a teria um sentido aproximado ao significado de sentimento. Tal como ela afirmou, o py’a seria equivalente ao coração numa perspectiva jurua, mas que, para os Guarani remete mais diretamente ao Link do documentário “Xondaro Mbaraete - A força do Xondaro” no site do Youtube, acessado no dia 09/04/2019: https://www.youtube.com/watch?v=4FbUVwDwp9U&pbjreload=10 7 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 457 estômago e à região abdominal. Existem, desta forma, diferentes tipos de py’a. Um deles é o py’a rasy ou raxy, que é próximo ao sentimento de amor, apesar da tradução literal estar mais próxima a uma dor na barriga. Há também o py’a kangy (sentimento frágil), py’a mbaraete (sentimento forte), py’a tarowa (sentimento perdido, confuso), dentre muitos outros. A profundidade e pluralidade de formas para se nomear os sentimentos, os quais muitos tinham difícil tradução ao português, demonstrou-nos a complexa relação que há da língua guarani com aspectos relacionados à emoção. O VOO DA POPO YJU EM SUA INFINITA BELEZA Poema da Popo yju8 em língua guarani Popo yju Ara Rowy Opawerá hey Porã Ejapo Waieme Nandekwerupe Tradução em português: Borboleta amarela No céu azul Infinita Beleza Não fazer mal a ninguém Infinita beleza Uma das atividades que Sandra fez conosco no curso de língua guarani foi semelhante à que havia feito com suas kyringue kuery (crianças pequenas) no seu período como professora de uma escola indígena guarani. Esta envolveu a leitura do poema da Popo yju, a borboleta amarela, com o posterior desenho de nossa própria borboleta e a construção de frases relacionadas em língua guarani. Com essa dinâmica, ela nos trouxe uma metáfora sobre as pluralidades de pessoas (ou de borboletas) e a importância de um bom conviver com esses Poema escrito por Avaju Poty Guarani, presente no livro Maino’i Rapé – O caminho da sabedoria (TELLES, 2009). 8 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 458 diferentes modos de ser. Através de ações pedagógicas com ela pudemos experimentar um exercício de alteridade, provocando-nos um aprendizado com a diferença. Quando uma língua indígena não é ensinada e tampouco falada, com ela se perde um universo de representações e significados muitas vezes intransponíveis para outro tipo de linguagem. A Organização das Nações Unidas declarou o ano de 2019 como o Ano Internacional das Línguas Indígenas, destacando a importância da manutenção destas línguas para a humanidade, assim como dos seus conhecimentos e práticas culturais associados. Segundo o Atlas das Línguas em Perigo da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, 2010), o Brasil tem um elevado número de línguas indígenas, num valor que oscila de 150 a 180 línguas de acordo com distintos estudos, sendo que pelo menos um quinto destas está severamente ou criticamente ameaçado. É importante a presença na universidade de uma educação que combata os epistemicídios, tão trágicos quanto o genocídio e o etnocídio perpetrados historicamente contra as populações indígenas. Esta educação se constrói cotidianamente no diálogo, num encontro que se abre autenticamente ao outro. Talvez assim poderemos nos desfazer de muitas prerrogativas que a colonialidade nos inculcou. Reforçamos a necessidade de que os saberes indígenas, africanos e afro-brasileiros se intensifiquem e se disseminem nas universidades e escolas, acompanhando a entrada crescente destes sujeitos sistematicamente excluídos dos espaços acadêmicos e da produção científica. Individualidades que possam estar na condição de sujeitos do conhecimento, como intelectuais e pesquisadores, e não meramente objetos de conhecimento ou de pesquisa. Suas presenças desestabilizam as estruturas racistas e colonizadoras com as quais foram originalmente assentadas as universidades no Brasil. Agradecemos imensamente à generosa professora Sandra Benites pelas indagações e aprendizagens, que permitiu a utilização para esse artigo de suas colocações durante as aulas de língua guarani, assim como às contribuições da professora Viviana Gelado, coordenadora pedagógica dos cursos de Guarani e Yorubá do PROLEM. Consideramos fundamental que tais cursos de línguas se mantenham na UFF, expandindo-se também propostas semelhantes em outras universidades e instituições educativas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BASTOS LOPES, D. A presença do invisível em escolas indígenas: escolarização, diferença e cosmologia entre os povos Mbyá (Guarani) do Rio de Janeiro. Cadernos CIMEAC. Minas Gerais, v. 7, n. 2, 2017, p. 1-17. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 459 BENITES, S. Trabalho de Conclusão de Curso pelo curso de Licenciaturas Indígenas da Universidade Federal de Santa Catarina. Nhe’ẽ, reko porã rã: nhemboea oexakarẽ Fundamento da pessoa guarani, nosso bem-estar futuro (educação tradicional): o olhar distorcido da escola. 2015. BESSA-FREIRE, J. R. Nheengatu: a outra língua brasileira. In: LIMA, Ivana Stolze; CARMO, Laura do. História social da língua nacional. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2008. IBGE. Os indígenas no Censo Demográfico 2010: primeiras considerações com base no quesito cor ou raça. Disponível em: < https://ww2.ibge.gov.br/indigenas/indigena_censo2010.pdf>. Acesso em: jun.2018. MATTA, I. Estudo pós-coloniais: desconstruindo genealogias eurocêntricas. Civitas, Porto Alegre, v. 14, n. 1, p. 27-42, jan.-abr. 2014. MELIÁ, J. B. Educação guarani segundo os guarani. In: STRECK, D. R. (org.) 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Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 460 R-EXISTÊNCIAS E LUTA INDÍGENA NASA E XUCURU NO MARCO DA DECOLONIALIDADE Isis Caroline Santana dos Santos1 RESUMO No marco teórico da decolonialidade e da autonomia territorial, tenta-se abordar alternativas outras de pensar o viver que estejam correlacionadas a proteção da natureza. Trazendo a luta territorial indígena na ótica decolonial e ambiental, apresenta-se como esta significa a luta pela proteção à natureza e emancipação da imposição colonial como modelo de exploração do território. Para isso, analisa-se etnograficamente duas distintas experiências de enfrentamento Liberación de la madre tierra, da população indígena Nasa ocorrida no território colombiano e o Encontro Urubá Terra do povo Xukuru situado no nordeste brasileiro. PALAVRAS-CHAVE: território; natureza; nasa; xukuru; decolonialidade. RESUMEN En el marco teórico de la decolonialidad y de la protección territorial, se intenta abordar alternativas otras de pensar el vivir que estén correlacionadas a la protección de la naturaleza. Trayendo la lucha territorial indígena en la óptica decolonial y ambiental, se presenta como ésta significa la lucha por la protección a la naturaleza y emancipación de la imposición colonial como modelo de explotación del territorio. Para eso, se analiza etnográficamente dos distintas experiencias de enfrentamiento Liberación de la madre tierra, de la población indígena Nasa ocurrida en el territorio colombiano y el Encontro Urubá Terra del pueblo Xukuru situado en el nordeste brasileño. PALABRAS CLAVE: territorio; naturaleza; nasa; xukuru; decolonailidad. INTRODUÇÃO A partir da análise da realidade e práticas de enfrentamento das populações indígenas Nasa da Colombia e Xukuru do Brasil, o presente artigo busca investigar de que forma a colonialidade segue presente nas dinâmicas territoriais do continente latino-americano, e como estas estão associadas com modelos de extração e agroexportação presentes desde a invasão do continente e que continuamente violenta, invisibilizam e subjugam essas populações. Mesmo com dinâmicas políticas e sociais distintas, as duas realidades se relacionam por constituírem dois principais países latino-americanos em diversidade natural, e também onde se concentram grandes investimentos de capital estrangeiro nas áreas petroleiras e agricultáveis, além de possuírem elevados índices de perseguição e violência a ativistas e populações tradicionais indígenas, afrodescendentes e campesinas. A finalidade aqui é elucidar como as dinâmicas territoriais funcionam segundo padrões coloniais contínuos, de modo a possibilitar a exploração da natureza a partir da inferiorização 1 Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). E-mail: isistcc8@gmail.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 461 das populações tradicionais e de suas dinâmicas. O procedimento metodológico utilizado foi a abordagem etnográfica, guiada pela bibliografia, observações e entrevistas, assim como o regate da perspectiva dos agentes e movimentos de resistência indígenas aqui apresentados, isso na tentativa de apresentar uma compreensão guiada não apenas por analise teórica e estudo dos casos, mas também pela incorporação das práticas e visões desses agentes como parte central da análise e entendendo essas como alternativas outras de conceber a realidade epistêmica e social. Tal qual afirma Magnani: A etnografia é uma forma especial de operar em que o pesquisador entra em contato com o universo dos pesquisados e compartilha seu horizonte, não para permanecer lá ou mesmo para atestar a lógica de sua visão de mundo, mas para, seguindo-os até onde seja possível, numa verdadeira relação de troca, comparar suas próprias teorias com as deles e assim tentar sair com um modelo novo de entendimento ou, ao menos, com uma pista nova, não prevista anteriormente. (MAGNANI, 2009, p. 130). Na pesquisa bibliográfica, buscou-se leituras de autores contemporâneos que abordassem a colonialidade segundo a perspectiva decolonial, juntamente com a questão indígena como problemática socioambiental e territorial. Nas pesquisas de campo, realizou-se observações participantes a partir da vivencia e participação nos eventos Liberación de la madre tierra e VI encontro Urubá Terra. Evidenciando a compreensão da lutas e enfrentamentos a partir da decolonialidade e valorização das práticas dessas populações para reconstituição social e proteção destes e da natureza. Desse modo, conceber a proteção e autonomia dos povos historicamente violentados e também ao passo que estabelece a proteção e compressão da compreensão não objetificante da natureza. TERRITORIALIDADE E COLONIALIDADE A exploração da terra é fator constitutivo da América latina no patamar de subordinação, e essencial para entender tanto o estabelecimento de sociedade e governos que segregam e excluem socialmente minorias sociais quanto as dinâmicas que envolvem formas de reexistência dos indígenas Nasa e Xucuru. Para Mariátegui, “A questão indígena arrancada de nossa economia tem suas raízes no regime de propriedade da terra” (MARIÁTEGUI, 2009, p. 61); Mariátegui apresenta a problemática da terra como crucial para entender a crise orgânica da América Latina no cenário atual, constituída a partir da marginalização e submissão dos povos indígenas e culmina na exclusão e invisibilização de suas práticas e vivencias. Partindo disso, para que se estabeleça alternativas sem as marcas da colonialidade, é essencial a integração política, econômica e social, constituída e orientada pela consolidação Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 462 do modelo Estado-Nação que respeite as especificidades das diferentes formas de pensar plurinacionalismo no âmbito da política, do direito e da territorialidade. Para Porto-Gonçalves, território é o espaço instituído por sujeitos e grupos sociais que se constituem por meio dele. Desse modo, há processos sociais de territorialização constantes e, num dado território, diversas territorialidades. No entanto, a territorialidade está relacionada com a defesa e relações sociais de poder. A tensão que se vive hoje no continente, parte de uma interpretação hegemônica do território que busca uma configuração de espaço econômico que não visa oferecer abrigo ou sustento, mas sim explorar e excluir os que estão fora dessa configuração. (Porto-Gonçalves, 2009) Para Pablo Gonzalez Casanova (2006), a relação de exploração sobre as populações indígenas é resultado da colonização e práticas implementadas para dominação dos territórios indígenas. Esse fenômeno é responsável pela perda da autonomia e pertencimento territorial dessas comunidades. Os conceitos de territorialidade para as comunidades invisibilizadas na América Latina não dizem respeito apenas ao acesso a modos de vida ou manutenção de suas tradições, mas também a relação que se estabelece com a terra a partir disso. Essa relação se determina à medida que se configura a luta pela terra na América Latina, uma luta associada ao reconhecimento da territorialidade como parte substancial para os povos indígenas, campesinos e comunidades afrodescendentes. Povos que concebem esta não somente como meio de produção, mas também como lugar de vida e de constituição e construção de suas culturas dentro das relações sociais e ancestrais. Nessa perspectiva, a terra não é apenas território, e a luta para sua recuperação é a luta pelo direito de existir, existência que foi invisibilizada pela instauração de um modelo político social que negou espaço para essas populações na realidade latino-americana. Sobre o Estado, compreendido na lógica de Estado-Nação, ou seja, aquele que representa todos os indivíduos e cidadãos, Rivero afirma que a hegemonia está diretamente relacionada com o territorial. Esta concepção de território, estritamente ligada a concepção hegemônica de organização política da sociedade, condiciona uma compreensão dominante do acesso à terra enquanto propriedade privada, apenas terra para trabalhar, onde o problema se reduz a fazer mais eficiente a redistribuição da mesma entre os cidadãos, e claro, o que se discute a propriedade individual da terra, não a terra, não o território, porque isso estaria solucionado incontestavelmente no nível do Estado-Nação. Esta condição explica, à princípio, o manejo do conceito de ‘terra” apenas como parcela de trabalho ou propriedade agrícola (RIVERO, 2009, p. 5). Numa realidade em que o território vira espaço de disputa de poder político e econômico, há a exclusão dos mais vulneráveis da formulação e estruturação territorial e do acesso à terra. Nessa linha de argumentação, a luta por autonomia territorial é uma das Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 463 principais bandeiras dos movimentos sociais no continente, que se estabelecem também como luta contra a hegemonia. Para Porto-Gonçalves (2005), o fato histórico de desconsiderar as diferentes realidades como parte integrante da formação do Estado, reforça a necessidade de reconhecer essa diversidade frente às forças empresariais que estão dominando os territórios historicamente colonizados. E este fenômeno não está relacionado apenas com o território, segundo DiázPolanco, a sobrevivência dos povos tradicionais depende da autonomia territorial, uma vez que é a parte essencial para estabelecimento dos seus sistemas de vida, e que, segundo o autor, se daria via a ampliação da territorialidade, e que, em condições novas, permitiria inclusive a atualização de antigas territorialidades regionais, mesmos que não nos territórios anteriores. (DIAZ-POLANCO, 1997). O pensamento decolonial nos permite compreender as bases da desigualdade e da centralidade presentes na configuração das sociedades, especialmente do território como objeto de dominação e da raça como padrão hierárquico nas populações culturas subalternas. Nesse sentido, os estudos relacionados à decolonialidade e dos estudos ecológicos, relativamente recentes na América Latina, contraditoriamente um dos continentes com mais problemas organizacionais e de explorações de ordem ambiental, possibilitam pensar de que modo o ecológico e o político não podem estar desvinculados do decolonial. É possível observar, a partir da abordagem dos casos que serão expostos, que a construção de novas alternativas só é possível a partir de um reconhecimento e autonomia territorial que possibilitem o exercício de práticas de vida próprios e que contribui no que diz respeito a formas de viver que gerem menos impactos ambientais e sociais. Para isso, é necessária a união organizativa e força para pressionar os diferentes setores sociais com diferentes interesses para que se efetue uma reconstrução da compreensão social acerca da territorialidade atrelada ao sentimento de pertencimento, autonomia e proteção da terra. NASAS E LIBERACIÓN DE LA MADRE TIERRA O povo indígena Nasa exerce papel protagonista no exercício da luta para poder plantar, se autogestionar e se defender da imposição hegemônica de mercado e sistema de monocultivo na região do Cauca território colombiano. A comunidade é uma das mais perseguidas historicamente por forças militares e paramilitares, e, além de ser violentamente atacada pelo conflito interno no país, é também perseguida pelos grandes latifundiários que ocuparam a região. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 464 Para melhor compressão do caso colombiano é essencial trazer que em 1991 a constituição do pais garantiu a autonomia e autodeterminação dos povos indígenas, que até então se vinculavam a ações armadas para se defender e defender seus territórios. Isso se deu a partir da luta e organização indígena, que, como movimento social, é marcada por uma trajetória de violências e resistência para a reconstrução da realidade da comunidade. Com a formação política e organizativa própria e recuperação territorial via processos de Liberación, edifica-se uma estruturação autônoma e fortalecedora de proteção da vida e da natureza, caracterizada pela valorização e reconhecimento dos saberes próprios, do conhecimento das leis indígenas, e do fortalecimento da econômico interno essencial para a organização e proteção da comunidade. O processo de Liberación de la Madre Tierra surgiu em 2014 quando grupos indígenas da comunidade localizados na região de Corinto e outras aldeias do norte do Cauca, cruzaram a região andina em direção a área de monocultivo da cana-de-açúcar destinada a fabricação de agrocombustível e alvo do uso intenso de fumigação de agrotóxicos. A finalidade disso era recuperar terras e ampliação do território indígena como parte da sua ancestralidade e como algo essencial para a produção de alimentos da comunidade. É dizer, o processo não está restrito a recuperação ou demarcação da terra, o processo envolve, de maneira intrínseca, uma cosmovisão que concebe a terra como parte da vida e que, como tal, deve ser libertada da lógica de extração e cultivo da cana que aliadas ao uso de químicos e agrotóxicos prejudicam a população e a natureza. Para ilustrar, traz-se a citação a seguir que demonstra como está configurado o país, em especial a região do Cauca: O estado é basicamente formado por índios, camponeses e afrocolombianos [...]. Passei umas duas horas ouvindo depoimentos de camponeses pobres sobre o terrorismo. Mas a pior forma de terrorismo que eles sofreram, pelo menos nos depoimentos que ouvi, veio do terrorismo direto norte-americano – a saber, a fumigação. A fumigação destrói completamente a vida deles. Destrói suas lavouras e mata seus animais. (...). Uma vez destruídos os cafezais e fumigada e envenenada a terra, acabou-se. Não só as vidas e as lavouras são destruídas, como também se destroem a biodiversidade e, de forma crucial, a tradição da agricultura camponesa. A fumigação é oficialmente justificada como “guerra às drogas”. É difícil levar isso a sério, a não ser como um disfarce para um programa de contra-insurgência e mais uma etapa da longa história de expulsar camponeses da terra, em benefício das elites ricas e da extração de recursos minerais por investidores estrangeiros (CHOMSKY, 2005, p. 90). Isso posto para evidenciar como a luta territorial - contra o modelo econômico de exploração da natureza e suas imposições modernas e hierárquicas - integra o processo de reestruturação política baseada nas dinâmicas coloniais e o uso de ferramentas históricas de Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 465 padronização dos modos de vida imposição neocolonial para garantia deste, sujeitando e violentando povos e territórios para implantação de modelos extrativistas no país. O processo de liberación constituiu um evento de autoproteção que reúne iniciativas nacionais e internacionais que buscam alternativas para os problemas territoriais e ameaças geradas pela capitalização da terra. Trata-se de um encontro para integrar realidades de resistências em prol da construção de projeto e ações que visem proteger identidades e a mãe natureza. São elaboradas atividades culturais e artísticas, assim como apresentação dos líderes das organizações sociais. Após as apresentações, são tomadas decisões estratégicas sobre como fortalecer de forma integradas as distintas resistências a partir das trocas de experiências. O evento é um exemplo de como se pode construir práticas que busquem restabelecer uma territorialidade que está relacionada com a natureza, e com o respeito no contexto moderno. Para Porto-Gonçalves, práticas como essas são um exemplo de como podemos entender territorialidade como resgate da identidade a partir da resistência. Catherine Walsh nos fala daqueles que se movem entre lógicas distintas, entre códigos, como é característico dos povos originários da América que há 500 anos convivem com a moderno-colonialidade. Mas essa moderno-colonialidade não se inscreveu num espaço vazio de significação, mas sim em territórios (natureza+cultura) onde foram conformados padrões cognitivos próprios (Mignolo, 2004: 215). Por isso, mais do que resistência, o que se tem é R-Existência posto que não se reage, simplesmente a ação alheia, mas, sim, que algo pré-existe e é a partir dessa existência que se R-Existe. Existo, logo resisto. R-Existo (PORTO GONÇALVEZ, 2009 p. 47). Foram dois eventos vivenciados, dos dias 23 a 30 de outubro de 2017 e de 1 a 5 de julho de 2018, sendo o último um evento internacional. A diferença entre os dois eventos diz respeito aos dois primeiros dias, no caso do primeiro evento -não internacional- não havia o dia para organização dos participantes e cadastramento, assim como momento de fala dos coletivos internacionais que estavam presentes e alocação Não se trata apenas de uma reunião de grupos e minorias oprimidas e vítimas do sistema econômico e do racismo ambiental. Vemos a dor de um povo que busca a reconexão com suas raízes, representado por homens, mulheres e crianças. Ocorre a recuperação para a sembra ou plantio na área recuperada, tendo em vista a prévia realização dos respectivos rituais de limpeza e purificação da terra recuperada, após isso, se planta la yuca y el maiz (a macaxeira a o milho) que são a base da alimentação tradicional Nasa. A realização de algumas entrevistas formais e informais foram essenciais tanto para compreensão da realidade local como para fortalecer ou contestar algumas hipóteses construídas ao largo da pesquisa bibliográfica. Através da análise das entrevistas e da vivencia de campo, se pôde verificar a importância da autonomia territorial indígena presente na Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 466 realidade Nasa, e ao mesmo tempo a heterogeneidade existente em um mesmo povo com modos distintos de lidar com a terra. A experiência com os Nasa permitiu perceber como a luta territorial é a luta pela existência, e que só a partir do acesso e autonomia territorial é possível pensar o auto sustento para manutenção e proteção da comunidade. Mesmo diante dos riscos da violência Estatal, as experiências seguem, pois, assim como é dito repetidamente nos discursos “hay mucha tierra para vivir y liberar”, e seguem avançando, avançando a uma autogestão em que busca a inserção no mercado possibilita a realização de projetos locais de impulsionamento e consolidação de práticas organizativas próprias de projetos comunitários, empresas associativas, escolas agropecuárias, etc. As estratégias de proteção, autodefesa e fortalecimento se caracterizam por representarem alternativas outras de ser e conceber a territorialidade a partir do respeito e cuidado com a terra. Algumas estão presentes de forma unanime nos movimentos territoriais da América Latina, e no caso da seguinte abordagem do povo Xukuru se dão pelo forte apelo do resgate, pertencimento da inserção da tradição e proteção via mecanismos de educação e pequena produção agroecológica. XUCURUS E VI ENCONTRO URUBÁ TERRA: AGRICULTURA XUKURU E CIÊNCIA DOS INVISÍVEIS, GUARDIà DA CULTURA DO ENCANTAMENTO A comunidade indígena Xukuru está localizada em Pesqueira, região da mata norte do Estado de Pernambuco- Brasil. A estrutura organizativa administrativa da comunidade Xukuru se dá segundo a perspectiva que relaciona saberes ancestrais e respeito a natureza. Essa estrutura se configura a partir da atuação das lideranças nas aldeias, e da transmissão dos saberes por meio de um sistema educacional inclusivo e pluridimensional, que primam a importância da luta e o respeito a natureza, e valorização dos ensinamentos de tal forma que as crianças e jovens se sintam integrados e mantenham-se no território indígena. O evento Urubá Terra aconteceu nos dias 15 e 16 de novembro, se tratou do espaço para compartilhamento de saberes da realidade Xukuru. O encontro foi cercado pela reafirmação, resgate e urgência de uma relação respeitosa com a mãe natureza a partir da cosmologia do Bem Viver Xukuru, que diz respeito a visão de agricultura e ecologia associadas a espiritualidade, e se encerrou com a busca por diretrizes de luta no contexto atual. No evento era possível conhecer a história do povo Xukuru e de como essa é marcada por conflitos, que, desde a colonização, os privaram do direito de permanecer em seus territórios por um largo tempo. No contexto mais recente, a falta de proteção e delimitação de terras Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 467 possibilitava a invasão de fazendeiros, políticos locais, e pecuaristas que, por meio do uso de violência, exploravam a terra e a mão de obra indígena na região. A violência e os processos de perseguição aos Xukurus acarretaram em consequências que se expressavam de diferentes maneiras no período, desde a negação e invisibilização da identidade indígena, até assassinatos, como foi o caso do cacique Xicão, aos 48 anos assassinado por fazendeiros, e que foi importante agente para garantia de demarcação constitucional do território Xukuru de Oroubá em 1995 e no processo de luta por direitos e demarcação do território. A importância de Xicão se mostra presente sobretudo na conscientização da comunidade quanto ao direito à terra e a ocupa-la, e ao pertencimento e valorização das raízes indígenas, como se afirmou em entrevista realizada com a companheira de Xicão sobre o processo de luta pela demarcação: Se a gente não ocupasse, o governo não ia demarcar (...) foi um trabalho de formiguinha, íamos de aldeia em aldeia para conscientizar o povo e para ter mais gente para lutar (...) a terra estava nas mãos de posseiros, nossa língua foi massacrada, os índios eram escravizados, violentaram as mulheres indígenas e os caciques tinham medo de defender, só iam na FUNAI que não defendia nossos direitos. (Entrevistada 8, VI encontro Urubá Terra, 15 de novembro de 2016). Foi a recuperação do território tradicional possibilitou o fortalecimento de atividades para manutenção da agricultura Xukuru e da economia local. A agricultura de subsistência é uma das principais atividades da comunidade, os principais cultivos são banana fava, milho, feijão e mandioca, e o mais consumido é a fava, e também a pequena criação de gado e cabras e já participam de forma efetiva da economia local com destaque da produção orgânica e essencial para o fortalecimento da comunidade. Como se afirmou na entrevista: “A terra é nossa mãe, dá alimentos e dá frutos (...) a conexão entre a autonomia territorial e a agricultura é espiritual e está ligada com a sustentação da vida” (entrevistada 8, VI encontro Urubá Terra, 15 de novembro de 2016). No evento foi possível entender que hoje a luta é pela proteção e manutenção dos direitos e a continua busca pela demarcação do território dos outros povos, frente aos avanços do Estado. É importante considerar que a luta da comunidade parte de uma longa trajetória que envolveu processos de criminalização de lideranças, e que mesmo com as atuais garantias da demarcação, persiste o medo em relação as atuais dinâmicas políticas do país e continua luta pela conscientização. Segundo entrevista: Foram 6 líderes indígenas assassinados em decorrência da luta pela terra. Houve um processo de criminalização das lideranças e uma batalha judicial para garantir a liberdade de luta da comunidade, sofremos violência e intimidação direta. Hoje está mais tranquilo, tanto pela demarcação quanto pela defesa da anistia internacional e influência da ONU quando condenaram o Brasil pela violação dos direitos Xukuru. (...). Mas seguimos lutando pela proteção e enfrentamento ideológico e dos Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 468 retrocessos cometidos pelo Estado (...) (Entrevistado 9, 15 de novembro de 2018, pesqueira VI encontro Urubá Terra). É recorrente nos discursos que o inimigo hoje é a força política e a corrupção, junto com o medo da retirada de direitos conquistados, visto que a falta de delimitação de terras e irregularidade das ações de atores fundiários, são causas dos conflitos e impossibilidade do grupo se estabelecer. A demarcação possibilitou o processo de defesa da identidade e tradições com base num caráter formador político e ideológico, fortalecido pela educação indígena Xukuru que valoriza a construção do conhecimento intercultural, com respeito e valorização da ancestralidade e ao modo de vida ancestral e sua manutenção é essência para vida da comunidade. A demarcação territorial da comunidade se mostra como um importante fator de autonomia alimentaria, econômica e educacional indígena. A delimitação do território garante que a agricultura, considerada parte essencial da socialização Xukuru e tida como fortalecedora da luta, dos valores e tradições, seja garantida e possibilite a desconstrução da perspectiva colonizadora de lidar com a terra a partir do exercício da agricultura sustentável e voltada para a comunidade. No encontro Urubá Terra permitiu conhecer a perspectiva da importância educacional para garantia da autonomia na comunidade Xukuru. A agricultura é trabalhada nos espaços de saberes da comunidade, e nas escolas, abordada de forma correlacionada com as disciplinas da grade de ensino, possibilitando, segundo os educadores Xukuru, uma quebra com um sistema formador tradicional baseado na perspectiva hegemônica e que tem como base a formação mercantilizada. Os educadores Xukurus são enfáticos na urgência da educação que valorize a agricultura e a aplicabilidade no cotidiano, a importância e função de cada planta e das ervas medicinais, a partir da abordagem cercada de crítica política e crítica ao sistema, e de espiritualidade e respeito com a natureza atrelados a espaço de aprendizagem para a vida. A experiência com o povo Xukuru é parte essencial para entender como os problemas que afetam as populações indígenas são determinados por uma lógica de exclusão histórica colonial que persiste no território brasileiro desde a colonização e sobretudo para estabelecer um elo de análise entre as resistências da Colômbia com a realidade brasileira, e que não está restrita aos dois países e sim presente na configuração de todo território Abya Yala. A perspectiva da agricultura Xukuru se mostrou não apenas um elemento de identidade étnica, mas também como princípio organizador da comunidade. O objetivo principal do encontro é demonstrar e integrar o conjunto de experiências que vêm sendo desenvolvidas no Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 469 território, promovendo e potencializando processos coletivos de construção e consolidação do Bem Viver Xukuru. Assim como se mostra na comunidade Nasa, a comunidade Xukuru luta para plantar e se defender da imposição hegemônica mercadológica, com intenso enfrentamento. Buscando o respeito da terra e a não utilização de químicos e agrotóxicos na produção, se instaurando assim como importantes agentes no que diz respeito a autodeterminação, autoprodução e soberania alimentar garantidas pela autonomia territorial. O principal eixo de organização da comunidade é a conscientização sobre a importância da agricultura indígena e de como o agronegócio representa a violência que, desde a colonização, maltrata a terra e assassina os povos indígenas. A partir do discurso, se incentiva a valorização de práticas como as feiras agroecológicas e orgânicas Xukuru, atrelada a abordagem de que é a partir da educação e da valorização e cuidado com a mãe terra que se pode garantir o Bem Viver e o enfrentamento ideológico aos retrocessos que vem sendo cometidos pelo Estado. O cerne é que o resgate e valorização da relação tradicional com a terra, garantem a saúde do povo e da natureza, à medida que se acerca de segurança e soberania alimentar. Destacou-se no encontro os problemas característicos de uma prática agrícola hegemônica, com diretrizes para transição e para o estabelecimento total de uma agricultura livre do uso de agrotóxicos e fertilizantes químicos. No cerne das entrevistas foram abordados os conflitos territoriais presentes nas práticas herdadas da época na qual os fazendeiros empregavam e exploravam índios Xukurus. Foi evidenciado que a urgência continua de buscar novas práticas agroecológicas é uma forma de evidenciar os conflitos presentes desde o colonialismo e como a agroecologia representa a autonomia e autodeterminação. A autovalorização e autodeterminação se dão por fatores estruturais que partem desde a dinâmica pedagógica Xukuru, quanto por meio de projetos específicos como Prorural, projeto de fortalecimento da cultura indígena por meio do empoderamento de mulheres agricultoras. O projeto atrela discussões sobre segurança e segurança alimentar e Bem Viver Xukuru, que diz respeito a perspectiva cíclica de tratar a saúde e a qualidade de vida com partes indissociáveis da agricultura e do contato com a terra, uma vez que para medicina Xukuru o uso de plantas e do autocuidado está relacionado com o contato e respeito com a terra. Através da vivencia com o evento e das entrevistas realizadas no campo, foi possível entender melhor como as dinâmicas na América Latina se configuram de modo complementar. No caso da agricultura do reencantamento, perspectiva trazida pelo povo Xukuru e parte Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 470 essencial para o Bem Viver, o respeito e luta, assim como no caso Nasa, se mostram por meio do encantamento do plantar e colher para comer e curar. A importância da comida para se estabelecer a relação de Bem Viver com a comunidade e com o meio ambiente é clara nos discursos da comunidade e a construção agroecológica que fortalece o conhecimento indígena de manejo e cuidado com a terra. A partir do contato, se pode perceber como o resgate presente na realidade Xukuru se mostrou essencial para valorização e uma importante ferramenta para se perceber como a luta indígena é a luta pela terra, pela saúde, pela existência e continuidade dos saberes e da tradição, essencial no estabelecimento dos modos de vida próprios que possibilitem uma mudança de paradigma que, para além de acesso a recursos materiais, se dá pelo fomento de uma educação que diz respeito a realidade própria e autodeterminada pelo respeito aos modos de vida próprios. CONSIDERAÇÕES FINAIS Povos indígenas, ao exercer formas próprias de existir e se reproduzir econômica e socialmente, promovem uma crítica contundente à lógica dos mecanismos econômicos de poder na nossa sociedade. A decolonialidade nos abre a porta para entender esses processos de forma ampla. Não apenas como estratégias econômicas que entram em conflito, mas sim como formas de construção de conhecimento diferenciadas e emancipadoras a partir de resistências historicamente invisibilizadas. O fundamento desse estudo foi a viabilidade de tratar, de forma embrionária, de que modo as dinâmicas territoriais latino-americanas estão relacionadas com os massacres à natureza e ao mesmo tempo com a violência colonial que vitima populações indígenas e outras minorias no continente. Buscou-se construir uma reflexão integrada dos casos dos dois países, para assim ir além do contexto de análise e pensar a decolonialidade na luta territorial e defesa da terra no continente de uma maneira mais ampla. As diversidades e semelhanças dos casos estudados demonstraram como é complexo pensar as diferentes lutas - e enfatiza-se aqui que não se tratou de uma abordagem comparativa ou generalizante, tampouco romantizada, mas sim uma apresentação do modo com que distintas experiências e práticas- seguem tendo a mesma base de defesa a partir da resistência e luta pelo território que é também a luta pela vida. A luta territorial se dá a partir de um viés contra hegemônico de valorização dos saberes locais que dialogam com a teoria decolonial no que tange ao questionamento da imposição e ocupação de empresas estrangeiras nos territórios de forma violenta, e que desconsidera as populações locais. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 471 No caso Colombiano, a compreensão dos conflitos e da territorialidade diz respeito a um contexto de guerra civil presente a cerca de cinquenta e três anos no país. Por meio da análise, foi possível compreender como os elementos econômicos e o apoio do governo à inserção das multinacionais ligadas ao modelo extrativista de agronegócio são reflexo dos contínuos avanços da modernidade colonial, avanços esses que determinam e impõem dinâmicas territoriais violentas que invisibilizam e desconsideram minorias locais. Desse modo, a luta pela defesa de povos indígenas está atrelada a luta contra um sistema econômico estruturado, e que a busca por autonomia e por autodefesa se faz com as ferramentas que possuem, inclusive a inserção nesse mesmo mercado, fator contraditório especialmente quando se torna também um agravante da perseguição que já sofrem. São muitas questões para se pensar, mas iniciativas como as que as comunidades indígenas estabelecem são essenciais para entender como a autonomia pode representar a emancipação, à medida que se estabelece localmente a auto-gestão e a produção própria de alimentos, atrelada a conscientização que aquilo que se produz tem um impacto na natureza, pode-se repensar o consumo e estabelecer novos hábitos que valorizem tanto a natureza quanto a vida e identidades subalternizadas. Reafirma-se que a luta territorial é parte estrutural para a autonomia e proteção dos povos invisibilizados e indígenas. Permanecem algumas dúvidas, que provavelmente farão parte de futuros estudos no que dizem respeito a decolonialidade e estudos ecosocialistas na América Latina. Um questionamento possível é pensar de que forma podemos garantir o respeito aos direitos historicamente negados de povos invisibilizados no continente Abya Yala. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHOMSKY, Noam. Poder e terrorismo. Rio de Janeiro: Record, 2005. DÍAZ-POLANCO, Héctor. La rebelión zapatista y la autonomía. México: Siglo XXI. México, 1997. MAGNANI, José Guilherme Cantor. Etnografia como prática e experiência. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 15, n. 32, p. 129-156, jul. /dez. 2009. Disponível em: Acesso em: 24 abr.2019. MARIÁTEGUI, José Carlos. El problema de la tierra, in Siete Ensayos de interpretación de la realidad peruana. Red Ediciones. Barcelona, 2009 PORTO-GONÇALVES, C. W. A globalização da natureza e a natureza da globalização. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 2006. RIVERO, Carlos Vacaflores. “La lucha por la tierra es la lucha por el territorio”. Boletim DATALUTA. NERA – Núcleo de Estudos Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária. Presidente Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 472 Prudente. 2009. Disponível em http://www2.fct.unesp.br/nera/boletim.php. Acesso em: 22.10.2018 ROBLES, A Gabriel A. et al. Luchas, experiencias y resistencias en la diversidad y multiplicidad, Bogotá: Mundo Berriak. Bogotá, 2013. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 473 OS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS DOS POVOS INDÍGENAS NO DIREITO BRASILEIRO Jéssica Nascimento de Sousa1 RESUMO O presente trabalho promove uma análise sobre os povos indígenas no Direito Brasileiro por uma perspectiva decolonial. A reflexão a paritr da decolonização da natureza mostrará outras possibilidades de se organizar e de se relacionar em sociedade. Tratará das garantias jurídicas aos povos indígenas e aos seus conhecimentos tradicionais e como está se dando sua aplicação na prática. PALAVRAS CHAVE: Povos Indígenas, Conhecimentos Tradicionais, Teoria Decolonial RESUMEN El presente trabajo promueve un análisis sobre los pueblos indígenas en el Derecho Brasileño por una perspectiva decolonial. La reflexión a paritr de la decolonización de la naturaleza mostrará otras posibilidades de organizarse y de relacionarse en sociedad. Tratará de las garantías jurídicas a los pueblos indígenas, a sus conocimientos tradicionales y cómo se passa su aplicación en la práctica PALABRAS CLAVE: Pueblos Indígenas, Conocimientos Tradicionales, Teoría Decolonial METODOLOGIA Este estudo utilizou como base a teoria decolonial nos trabalhos de Catherine Walsh e Aníbal Quijano, sendo da primeira o título Interculturalidad, Estado, Sociedad. Luchas (de) colonialies de nuestra época e do segundo El “movimiento indígena”, la democracia y las cuestiones pendientes em américa latina. Para que pudesse analisar os conhecimentos tradicionais dos povos indígenas no Direito Brasileiro, observando a interpretação socioambiental da Contituição Federal de 1988, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e a Lei 13.123/15 – o novo marco regulatório da biodiversidade. INTRODUÇÃO É desafiador para o homem médio, branco e urbano, compreender a relação que os povos tradicionais têm com a natureza, isto porque suas visoes de mundo são distintas. Assim acontece porque o que recebemos de informação sobre os povos indígenas decorre da visão eurocentrista sob a qual fomos formados, ou seja, de forma eficiente foi colocado nas nossas concepções de mundo que só existe uma forma e um meio de se viver de forma “civilizada” (Cavedon, 2013, p. 245), e o que não é estabelecido pelo Estado – nação de cara e cor europeia – é o não civilizado. No presente artigo, a partir de uma visão decolonial, serão abordados os saberes tradicionais dos povos indígenas no Brasil e suas relações com a natureza. 1 Graduada em Direito, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). E-mail: email.jessicasousa@gmail.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 474 Após, veremos algumas de suas questões existentes na formulação e aplicação do Direito, inclusive como este foi e é utilizado para organizar essa realidade brasileira e para lidar com a autoria e regularização do que se éfeito economicamente a partir desses saberes e pesquisas dos indígenas. Desse modo, a lente decolonial terá o objetivo de olhar para os povos indígenas sob a perspectiva não eurocêntrica, percebendo esses sujeitos como portadores de uma cultura, de relações intersubjetivas, crenças e com organizações sociais próprias, percebendo que esses modos de vida foram subjugados pelo modelo ocidental europeu e analisando os mecanismos jurídicos atuais. AS PERSPECTIVAS DECOLONIAIS E OS POVOS INDÍGENAS O pensamento decolonial objetiva uma análise das relações de poder nas Américas, a partir do questionamento da colonização do ponto de vista da colonialidade do poder, do saber e do ser, fazendo esse estudo a partir da construção das identidades originadas das raças. (Quijano, 2005, p. 117) Toma como marco o fato de que a partir da colonização, tem-se a produção de uma cosmovisão eurocentrista da produção de uma série de relaçoes hierárquicas, que estruturam suas práticas. Seguindo o pensamento de Quijano, a raça é o critério que dá toda a estrutura da relação de poder, onde a identidade europeia é construída a partir da identidade da não Europa, e onde o estado de natureza está na localização regional da América Latina, bem como a civilização e modernidade estariam na Europa, tendo esta o domínio dos aparatos do que é bom para todos, incluindo a construção das características do que se considera o correto, o civilizado. Em outras palavras, é a construção da ideia de que existe uma hierarquia entre as raças, resultando as formas de exploração e dominação social. Neste sentido, a colonização então coloca a raça como critério estrutural da dinâmica do poder. Quijano tratou do tema indígena no artigo intitulado de “El movimento indígena”, la democracia y las cuestiones pendientes en América Latina, (2005) onde o autor leciona sobre a ideia de raça e como esta deve ser entendida junto com o novo poder de padrão mundial. (Quijano, 2005, p. 117). E é esse padrão de poder mundial que produz a construção da ideia de raça e a partir dessa “racialização” todas as relações são definidas. Com isso o que se tem é uma nova forma Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 475 de dominação social. Se antes era por gênero ou sexo, os colonizadores reestabelecem uma dominação social se colocando superiores aos colonizados, em uma relação que se perpetua até os dias de hoje. Sendo os habitantes das Américas, os índios foram os primeiros a serem submetidos ao novo sistema de dominação. Quijano nos apresenta a ideia da assimilação cultural, entendida também como um plano “selvagem e violento” contra esses povos, na tentativa de dizimar e explorar esses povos, extinguindo suas culturas, educação, crença e tradição, além dos territórios. Sobre a visão dos povos indígenas com a natureza, a decolonização da natureza, sob o olhar de Catherine Walsh, evidencia a divergência de olhar para este aspecto dos povos tradicionais com os colonizadores, discorrendo sob o ponto de vista dos indígenas do Equador e da Bolivia para se pensar na relação humano/natureza a partir da ideia de buen vivir ou Sumak Kawsay (WALSH, 2009). Em seu texto, a Walsh apresenta a Constituição do Equador com os príncipios norteadores a partir da filosifia do buen vivir e sumak kawsay e como esses estão distribuídos entre os capítulos dessa Constituição. A autora ressalta que o objetivo não é o de romantizar todo esse entendimento e modo de ver o coletivo. Não se pretende criar uma utopia e, muito menos, imagina-se que com a adoção do Bem Viver se obterá o mundo perfeito. O Estado e suas instituições ainda serão administrados por seres humanos e os conflitos serão inerentes, o que se pretende com essa lente, é enxergar e interpretar os elementos que formam o Estado e pertencem à sociedade de uma maneira diferente da que se interpreta desde a colonização. Nas palavras da autora: Dejando en claro que la intención no es la de apelar a un “romanticismo étnicocultural” que presume la no existencia de conflictos, pugnas de poder, corrupción o cooptación, o realidades de miseria y pobreza, sino más bien la de trazar la diferencia entre los dos y, a la par, con los principios que rigen la vida moderno-occidental (WALSH, 2009, p. 216). A relação dos índios com a natureza é a ideia de que fazemos parte da natureza, vivemos em integração com ela. Ideia diferente da hegemônica que segue nossos hábitos interrelacionais. A decolonização da natureza segue então o entendimento desses povos, e desconstrói a separação criada pelo colonialismo buscando “reestabelecer y reconstruir la comunión entre la natureza y las personas” para se se ter uma sociedade mais integrada (WALSH, 2009, p. 215). OS POVOS INDÍGENAS SOB O OLHAR DO DIREITO BRASILEIRO Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 476 A Constituição da República de 1988 é considerada a mais inclusiva comparando-a com as que a antecederam, sobretudo no que se refere aos direitos dos povos indígenas, pois vai ao encontro das demandas sociais dessa população e caminha em harmonia com os direitos e garantias estabelecidos em convenções e outros documentos internacionais. Uma das principais razões para a Constituição vigente ser vista desse modo é o reconhecimento do “direito humano ao meio ambiente ecologicamente equilibrado” a partir do caráter e da abordagem dos direitos coletivos. (Santilli, 2006, p. 177) Na seara ambiental, a CRFB orientou seu olhar para o legado do meio ambiente equilibrado e sadio para as futuras gerações, estabelecendo os princípios norteadores para as políticas estatais e para empreendimentos privados baseados nesse interesse fundamental. Com a adoção dessa postura, o meio ambiente equilibrado passou a ser um direito fundamental dessa geração e das próximas, podendo-se entender que os bens ambientais ultrapassam a ideia de público/privado da propriedade e alcançam a classificação de bens de interesse público. (Santilli, 2006, p. 178) Partindo da compreensão socioambiental, o autor Luiz Henrique Eloy, no artigo intitulado “A dupla afetação em terras indígenas: perfeita compatibilidade entre terra indígena e meio ambiente” (2011), propõe traçar um paralelo entre o direito ambiental e o direito indigenista “visto que ambos possuem institutos de proteção muito próximos e, que aparentemente se confunde.” (Eloy, 2011, p. 1), e isto ocorre, pois ambos defendem direitos similares em alguns aspectos. No que diz respeito a questão territorial, sabe-se que os povos tradicionais, dentre estes os indígenas, são os que têm uma maior preservação das florestas que estão localizadas nos seus territórios. Por esta razão, tem se analisado o fenômeno da dupla afetação que os territórios indígenas causam ao meio ambiente, ou seja, falar dos direitos indígenas implica em construir uma articulação com o direito ambiental. É como interpreta Eloy no seu artigo ao se debruçar sobre um dos capítulos da sentença do caso da Raposa Serra do Sol (PET. 3888), no qual o Supremo Tribunal Federal reconheceu a dupla afetação das terras indígenas, tendo em vista que os territórios indígenas visam “à proteção dos usos, costumes e tradições dos povos indígenas e ao mesmo tempo protege o meio ambiente.” (Eloy, 2011, p. 1) Ademais, se pela compreensão socioambiental, o meio ambiente engloba os bens naturais, culturais e sociais, Eloy explicita mais um ponto em comum entre os direitos dos povos Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 477 indígenas e o direito ambiental uma vez que “quem defende o meio ambiente, não defende apenas a natureza e seus elementos, mas também os modos tradicionais que vivem as pessoas, principalmente os povos indígenas.” (Eloy, 2011, online). Tradicionalidade nesse caso, tem a ver com a forma sustentável na qual os povos indígenas têm em suas relações de convivência e com o uso dos recursos naturais das suas terras. (Eloy, 2011, p. 3). Tanto é assim que território indígena se insere em área de preservação, restando comprovado que o modo sustentável no qual os povos indígenas utilizam seus recursos naturais condiz com a preservação do meio ambiente. (Eloy, 2011, p. 4). A CONVENÇÃO 169 DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre povos indígenas e tribais2 é uma das principais ferramentas do direito internacional público para a garantia dos direitos dos povos indígenas. Os representantes da OIT no Brasil3, pontuam que esses povos “não tem condições de gozar de seus direitos humanos fundamentais na mesma medida que o restante da população dos Estados nos quais vivem” e que tem ocorrido com frequência “um processo de erosão de suas leis, valores, costumes e perspectivas”. Por isso se faz necessário um instrumento internacional que assegure a esses povos seus direitos territoriais, de auto-organização, e de serem consultados a respeito de temas que causará grandes impactos em seus meios e modos de vida, dentre outras garantias que a referida Convenção assegura. Sendo o Brasil signatário do documento desde 2004, o país assume o compromisso de tornar efetivo o que está estabelecido nos artigos da Convenção. Nesse sentido, Eliane Moreira apresenta uma análise do caso que discutiu a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, abordando como o Supremo Tribunal Federal se manifestou acerca do caso, relacionando com o que estipula a Convenção. (Moreira, 2015, p. 113-130). No referido artigo, a autora destaca os seguintes pontos na decisão da PET. 3388: i) a autodeterminação e auto identificação (arts. 1º - 2 e 7º - 1); ii) consulta livre, prévia e informada (art. 6º); iii) e a territorialidade (art. 2º). A seguir será esboçado os pontos anteriormente citados: 2 Sítio eletrônico: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Convencao_169_OIT.pdf http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Convencao_169_OIT.pdf 3 Sítio eletrônico: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Convencao_169_OIT.pdf 4 Internalizada pelo Decreto de nº. 5051, de 19 de abril de 2004. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm> Acesso em 03 de junho de 2018. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 478 I. Autodeterminação e Auto identificação: A autora coloca que autodeterminação é o direito das comunidades e povos tradicionais de deliberarem acerca das decisões que terão impactos em suas vidas. Sobre a auto identificação, este é o direito da comunidade de se autodefinir e de dizer como se organizam. No STF este direito foi tratado, em um primeiro momento de forma satisfatória e num segundo momento de forma prejudicial. (Moreira, 2015, p. 116). De forma satisfatória entendemos que foi quando o STF considerou o direito à auto identificação como parte do direito à autodeterminação, e isso permite a identificação étnica do grupo pelos próprios índios, mas também reflete no direito de disporem sobre seus modos de se organizarem. O segundo momento ocorreu quando a Corte lançou mão de “construções textuais, que se mostram paradoxais diante das disposições da Convenção 169 e ratificadores da visão assimilacionista que a Convenção busca extirpar.” (Moreira, 2015, p. 117). Ou seja, o STF firmou seu entendimento a partir de textos anteriores a Convenção, com teorias ultrapassadas acerca dos povos indígenas. II. Consulta livre, prévia e informada: A convenção prevê o direito à consulta aos povos interessados, por meio dos procedimentos adequados, sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas que possam afeta-los diretamente. Moreira nos explica que, a convenção, além de estabelecer que esses procedimentos devem ser cumpridos de boa-fé, estabelece também que ocorra encontros para que sejam sanadas as dúvidas da população no que tange aos motivos, finalidades e impactos que o projeto pode causar. Contudo, no referido caso, a Corte foi de encontro ao artigo 6º e impôs condicionantes opostas ao critério identitário. Segundo Moreira, o STF negou o direito de consulta à população interessada e abriu um espaço para a discricionariedade do Estado. III. Territorialidade: A partir do que está disposto nos artigos da Convenção, Moreira cita Paul E. Little para definir territorialidade como “o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar como uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-se assim Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 479 em seu ‘território’ ou homeland. (Moreira, 2015 p. 119, apud Little, 2002, p. 03-04). Utilizando o conceito de cosmografia para tratar do território, entende-se este além da questão fundiária e se alcança a compreensão de que território, nas palavras da autora: Engloba os saberes, ideologias e identidade utilizadas no estabelecimento e manutenção do território. Torna-se evidente, em face disto-, que o conceito de território ultrapassa a concepção limitada da seara fundiária, a qual vê a terra como um mero espaço abstrato (MOREIRA; 2015, p. 119). No STF se entendeu pelo reconhecimento do território das etnias indígenas que habitam na Raposa Serra do Sol, pois este reconhecimento representaria uma via de afirmação para compensar as desvantagens historicamente acumulada por esses povos. (Moreira, 2015 p. 119) Todavia, mesmo com o reconhecimento da necessidade de vias de afirmação para compensar desvantagens históricas sofridas pelos povos indígenas, o STF se posicionou pela afirmação de marcos para caracterizar a ocupação de terras indígenas, a autora nos diz que esses marcos criaram uma limitação aos direitos existentes e já afirmados na Convenção 169. (Moreira, 2015 p. 120) Desse modo, se observa uma desarmonia na decisão que de um lado reconhece o direito indígena à territorialidade integrada e unificada, a partir do critério da identidade e por outro lado, se posiciona a favor de marcos que descaracterizam o direito originário do território e a auto identificação dos povos indígenas. Dentre todos os aspectos garantidores que a Convenção 169 traz, tais como saúde e seguridade social, educação, emprego, autodeterminação e consulta livre, o mais relevante e até mesmo o essencial para que os outros tenham algum significado em existir, é o território. Ou seja, é o espaço físico – geográfico onde nele, as etnias vivem seu cotidiano, se organizam e se relacionam. OS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS E A LEI 13.123/15 – O NOVO MARCO REGULATÓRIO DA BIODIVERSIDADE Como já afirmado no presente artigo, os povos indígenas detêm seus próprios conhecimentos e saberes. Estes são frutos de pesquisas dos indígenas com suas vidas experenciadas em comunhão com a natureza e a observância de seus processos. A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, dedicou-se a estudar o que ela chama de direito intelectual dos povos indígenas, onde ela explica que cada sociedade indígena tem um universo de riqueza de saberes e tradições que não se encontra em outras nações. A autora comenta uma pesquisa realizada em equipe com quatro comunidades tradicionais diferentes, e Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 480 ela observa que foi percebido como essas quatro comunidades diferentes usam de formas variadas seus territórios no que se refere aos seus conhecimentos sobre espécies de animais, plantas e paisagens ecológicas, por exemplo. (Cunha, 2015, Intérpretes do Brasil) Na busca por uma regulamentação dos acessos a esses conhecimentos tradicionais, foi criada a Lei 13.123/155 para regulamentar os artigos da Constituição Federal (art. 225, inciso II, §1º e o § 4º ) e da Convenção sobre a Biodiversidade Biológica (artigo 1, a alínea j do artigo 8º, a alínea c do Artigo 10, o artigo 15 e os §§ 3º e 4º do artigo 16) Essa lei é o novo marco regulatório da biodiversidade e dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e acesso ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético e dispõe também sobre a repartição de benefícios aos povos e populações tradicionais. A autora Eliane Moreira apresenta a Lei (2017) mostrando que esta traz procedimentos e regras de proteção do conhecimento associado ao patrimônio genético, assegura o direito de participação nas tomadas de decisões sobre assuntos envolvendo à conservação e o uso sustentável dos conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético. Esse conhecimento passa a ser reconhecido como patrimônio cultural brasileiro, dentre outros assuntos. Sendo assim, aos povos indígenas e as comunidades tradicionais ficam garantidos: a) o reconhecimento da contribuição para o desenvolvimento e conservação de patrimônio genético; b) a indicação da origem do acesso ao conhecimento tradicional associado em todos os meios de divulgações; c) o recebimento de benefícios pela exploração econômica de terceiros; d) participação do processo de tomada de decisão sobre os assuntos relacionados ao acesso deste conhecimento; e) usar ou vender livremente produtos que contenham patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado; f) conservar, manejar, guardar, produzir, trocar, desenvolver, melhorar material reprodutivo que contenha patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado. Sobre as atividades que são submetidas à Lei, Moreira coloca no texto que estas são indicadas como:  5 acesso ao patrimônio genético e/ou conhecimento tradicional associado; Sítio eletrônico: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13123.htm Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 481  remessa para o exterior de amostras de patrimônio genético; e;  exploração econômica de produto acabado ou material reprodutivo que venha de conhecimento tradicional (Moreira, 2017, p. 70). A lei dispõe também sobre a repartição de benefícios, como e nos casos que ela ocorre: Art. 17. Os benefícios resultantes da exploração econômica de produto acabado ou de material reprodutivo oriundo de acesso ao patrimônio genético de espécies encontradas em condições in situ ou ao conhecimento tradicional associado, ainda que produzido fora do País, serão repartidos, de forma justa e equitativa, sendo que no caso do produto acabado o componente do patrimônio genético ou do conhecimento tradicional associado deve ser um dos elementos principais de agregação de valor, em conformidade ao que estabelece esta Lei. § 1º Estará sujeito à repartição de benefícios exclusivamente o fabricante do produto acabado ou o produtor do material reprodutivo, independentemente de quem tenha realizado o acesso anteriormente. § 2º Os fabricantes de produtos intermediários e desenvolvedores de processos oriundos de acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado ao longo da cadeia produtiva estarão isentos da obrigação de repartição de benefícios. § 3º Quando um único produto acabado ou material reprodutivo for o resultado de acessos distintos, estes não serão considerados cumulativamente para o cálculo da repartição de benefícios. § 4º As operações de licenciamento, transferência ou permissão de utilização de qualquer forma de direito de propriedade intelectual sobre produto acabado, processo ou material reprodutivo oriundo do acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado por terceiros são caracterizadas como exploração econômica isenta da obrigação de repartição de benefícios. § 5º Ficam isentos da obrigação de repartição de benefícios, nos termos do regulamento: I - as microempresas, as empresas de pequeno porte, os microempreendedores individuais, conforme disposto na Lei Complementar no 123, de 14 de dezembro de 2006; e II - os agricultores tradicionais e suas cooperativas, com receita bruta anual igual ou inferior ao limite máximo estabelecido no inciso II do art. 3º da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006. § 6º No caso de acesso ao conhecimento tradicional associado pelas pessoas previstas no § 5º, os detentores desse conhecimento serão beneficiados nos termos do art. 33. § 7º Caso o produto acabado ou o material reprodutivo não tenha sido produzido no Brasil, o importador, subsidiária, controlada, coligada, vinculada ou representante comercial do produtor estrangeiro em território nacional ou em território de países com os quais o Brasil mantiver acordo com este fim responde solidariamente com o fabricante do produto acabado ou do material reprodutivo pela repartição de benefícios. § 8º Na ausência de acesso a informações essenciais à determinação da base de cálculo de repartição de benefícios em tempo adequado, nos casos a que se refere o § 7o, a União arbitrará o valor da base de cálculo de acordo com a melhor informação disponível, considerando o percentual previsto nesta Lei ou em acordo setorial, garantido o contraditório. § 9º A União estabelecerá por decreto a Lista de Classificação de Repartição de Benefícios, com base na Nomenclatura Comum do Mercosul - NCM. Moreira explica que diante desse artigo, a repartição de benefícios foi reduzida, e com essa manobra, ocorre o contrário do que a Lei pretende, e causa uma distorção ao que prevê a Convenção sobre diversidade biológica e aos demais instrumentos jurídicos internacionais. (Moreira, 2017, p. 71) Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 482 Para a Lei, só estará sujeito à repartição de benefícios o fabricante do produto acabado ou o produtor do material reprodutivo, independentemente de quem tenha realizado o acesso anteriormente. Os fabricantes de produtos intermediários e aqueles que desenvolverem processos oriundos de acesso ao patrimônio genético e/ou ao conhecimento tradicional associado, ao longo da cadeia produtiva, estarão isentos da obrigação de repartição de benefícios. Quando um produto acabado ou material reprodutivo for resultado de vários acessos distintos, estes não serão considerados cumulativamente para o cálculo da repartição de benefícios. Outro ponto que merece ser observado é a anistia que a Lei deu para os que cometeram atos infratores antes da sua vigência, seguindo a mesma lógica do Código Florestal de 2012 (Moreira, 2017, p.72). Discorrendo sobre a Lei, Marés nos explica seu funcionamento (Marés, 2017, p. 94). No seu artigo 9ª a Lei dispõe que: Art. 9º O acesso ao conhecimento tradicional associado de origem identificável está condicionado à obtenção do consentimento prévio informado. § 1º A comprovação do consentimento prévio informado poderá ocorrer, a critério da população indígena, da comunidade tradicional ou do agricultor tradicional, pelos seguintes instrumentos, na forma do regulamento: I - assinatura de termo de consentimento prévio; II - registro audiovisual do consentimento; III - parecer do órgão oficial competente; ou IV - adesão na forma prevista em protocolo comunitário. § 2º O acesso a conhecimento tradicional associado de origem não identificável independe de consentimento prévio informado. § 3º O acesso ao patrimônio genético de variedade tradicional local ou crioula ou à raça localmente adaptada ou crioula para atividades agrícolas compreende o acesso ao conhecimento tradicional associado não identificável que deu origem à variedade ou à raça e não depende do consentimento prévio da população indígena, da comunidade tradicional ou do agricultor tradicional que cria, desenvolve, detém ou conserva a variedade ou a raça. É neste artigo que a Lei estabelece as condições de acesso ao conhecimento tradicional, os critérios para comprovação do consentimento prévio dos detentores do conhecimento. E nos parágrafos 2º e 3º coloca a exceção para quando a origem do patrimônio genético não for identificável. No entanto o que ocorre é que essa exceção pode se tornar regra de forma fácil e simplificada, na compreensão do presente autor: Está claro que a exceção pode ser a regra, tendo em vista que a maior parte do conhecimento das populações tradicionais sempre esteve aberta a outros povos e identificar a origem é uma tarefa árdua e dispendiosa, que, certamente, não estará no horizonte das empresas interessadas no conhecimento e desinteressadas na consulta. A Convenção 169 da OIT, se refere à questão do direito a consulta e estabelece o seguinte no seu artigo 6º: Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 483 1º Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão: a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente; b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes; c)estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim. 2º As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas. Desse modo, os povos indígenas e comunidades tradicionais deveriam ter sido consultados na elaboração desta Lei, já que trata diretamente de assunto de seus interesses. Nesse sentido, no que concerne ao direito à consulta, Dourado considera que este é o “o principal vício da lei”, pois não atende a direito coletivo dos povos indígenas de participar de decisões que impliquem mudanças “que afetem diretamente as suas vidas” (Dourado, 2017, p 78). CONCLUSÃO Mesmo com séculos de violações aos direitos dos povos indígenas, estes resistem no país e buscam com as ferramentas jurídicas à sua disposição a efetivação dos seus direitos, fazendo de suas vidas uma jornada de resistência para que possam continuar existindo. Se percebe o movimento do Direito Socioambiental em prol de um desenvolvimento social a partir de um equilíbrio possível entre os diversos grupos sociais e seus variados modos de vida, os quais se fazem presentes na sociedade. Reconhecendo a relevância do tema para o país, esse trabalho lançou luz, de um modo geral, às questões que envolvem os povos indígenas e a relevância de seus saberes para toda a sociedade, tendo em vista que trazem benefícios ambientais e culturais. As questões acerca da efetivação da interpretação socioambiental da Constituição e dos acordos internacionais assinalados pelo Brasil têm fundamentos históricos e econômicos, profundamente ligados à desigualdade social, e dizem respeito aos velhos jogos de conflitos de interesses. De um lado se requer o acesso à terra como um direito de todos, a autodeterminação, a manutenção de um meio ambiente saudável e duradouro para garantir uma vida para as próximas gerações como determina Constituição da República de 1988. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 484 Do lado oposto estão os detentores dos interesses econômicos hegemônicos, na pessoa do próprio Estado ou de pessoas jurídicas de direito privado, que ainda encontram alguma legitimidade na legislação antiquada e respaldo institucional, para obterem êxito em seus interesses privados, fundamentados em princípios individualistas que se sobrepõem aos coletivos, de cunho marcadamente liberal. Para este artigo foi pontuada a teoria decolonial pois esta busca desconstruir os próprios fundamentos do projeto civilizatório colonialista eurocêntrico, denunciando inclusive a falência deste modelo de sociedade. Aponta-se o contraponto entre a divergência da lógica linear deste sistema econômico exploratório de acumulação de capital, em detrimento da lógica circular, inerente à natureza e seus sistemas ecológicos, onde todos os elementos circulam, determinado pelas culturas dos povos tradicionais. 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O objetivo geral foi compreender se as práticas desenvolvidas pelo Kanteatro podem ser consideradas como Pedagogia Decolonial na efetivação da Lei 10.639/2003. Também verificamos o processo de afirmação da identidade negra dos estudantes/atores deste grupo a partir de suas falas. A metodologia utilizada foi a pesquisa qualitativa. Os resultados apontaram que o Kanteatro constrói uma Pedagogia Decolonial e uma educação antirracista. PALAVRAS-CHAVE: Pedagogia Decolonial. Educação Antirracista. Identidade Afro-Brasileira. INTRODUÇÃO Este artigo tem como tema o grupo de teatro experimental estudantil – Kanteatro, que atua na escola Isaac Pereira da rede municipal de Olinda, analisado a partir das categorias da Pedagogia Decolonial. Este grupo é composto por crianças e adolescentes negros e negras. A justificativa que embasa este trabalho é de que o estudo do Kanteatro nos possibilita conhecer práticas pedagógicas afirmativas não-formais que promovendo o diálogo entre a Educação e a Arte. Nosso objetivo geral buscou compreender se as práticas desenvolvidas pelo grupo de teatro experimental estudantil Kanteatro podem ser categorizadas como uma Pedagogia Decolonial que efetiva a lei 10.639/2003 no combate ao racismo. Em relação aos objetivos específicos, pontuamos os seguintes elementos: verificar se as práticas desenvolvidas pelo Kanteatro que abordam a história e a cultura africana através de seus mitos podem ser caracterizadas como Pedagogia Decolonial; identificar quais aspectos da Lei 10.639/2003 apresentados na Resolução001/2004 estão sendo aplicados pelo Kanteatro; analisar o processo de afirmação da identidade afrodescendente dos estudantes/atores do Kanteatro a partir do registro de suas narrativas e das falas de docentes da escola Isaac Pereira. REFERENCIAIS TEÓRICOS 1 Graduanda de Licenciatura em Pedagogia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: lucymedeia@bol.com.br. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 487 Pensamento Decolonial O Pensamento Decolonial surgiu a partir das lutas históricas dos povos indígenas e afrodescendentes que foram colonizados e não se viam representados na História e na Ciência produzidas na Europa como um modelo universal. Desta forma um grupo de intelectuais militantes latino-americanos sentiu a necessidade identitária de se contraporem epistemologicamente a hegemonia eurocêntrica do conhecimento, defendendo o protagonismo de outros modos de Saber, de Ser e do Poder. Críticos da História Única, esses pensadores elaboraram, a partir de meados da década passada, um conjunto de categorias que constituem o Pensamento Decolonial. O Pensamento Decolonial parte do princípio de que a Colonialidade é constitutiva da Modernidade e não sua derivada, (MIGNOLO, 2005, P. 75) isto é, com a criação do que se convencionou chamar de Modernidade no século XIX na Europa (a Segunda Revolução Industrial, o Imperialismo e o Pensamento Socialista entre outros processos históricos) simultaneamente ocorreram diversos movimentos de descolonização que libertaram a maioria dos países latino-americanos da dominação europeia. Apesar da independência política permaneceram as mentalidades que reproduziam os valores culturais eurocêntricos nas populações então recém independentes. A este processo de dominação das mentalidades os teóricos decoloniais chamaram de Colonialidade, que também pode ser compreendida uma permanência das estruturas subjetivas, dos imaginários e da colonização epistemológica (OLIVEIRA E CANDAU, 2010. p. 19). A Colonialidade se desdobra em três tipos. A primeira forma é a Colonialidade do Poder (QUIJANO, 2005) herdeira de uma estrutura de dominação que submeteu a América Latina, a África e a Ásia e que a partir da conquista produziu a invasão do imaginário do outro promovendo sua ocidentalização tornando invisível ou mesmo destruindo sua identidade. O imaginário do invasor europeu é naturalizado e os modos de produção de conhecimento, os saberes e o mundo simbólico dos ex-colonizados são reprimidos (OLIVEIRA E CANDAU, 2005, p. 19). Pedagogia Decolonial Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 488 Esta preocupação com o papel da Ciência na transformação do real será um desdobramento direto do Pensamento Decolonial, pois este trabalha com a perspectiva da subjetividade e dessa forma sua proposta passa pela desconstrução de antigos valores culturais eurocêntricos e a construção de novas identidades. Neste sentido a Educação é o eixo central de sua práxis epistemológica e a categoria da Pedagogia Decolonial, criada pela intelectual norte-americana naturalizada equatoriana, Catherine Walsh, é a sua expressão central. Podemos entender a Pedagogia Decolonial segundo as palavras de sua criadora (WALSH, 2013, p. 28) como sendo um conjunto de: Pedagogias que animam o pensar desde e com genealogias, racionalidades, conhecimentos, práticas e sistemas civilizatórios e de vida distintos. Pedagogias que incitam possibilidades de estar, ser, sentir, existir, fazer, pensar, olhar escutar e saber de ‘outro modo’, pedagogias que encaminham para projetos, processos de caráter horizontal e com intenção decolonial. Esta proposta de uma Pedagogia Decolonial procura então elaborar um processo de construção identitária que abrange diversas dimensões da existência humana na promoção de uma ruptura com o que Catherine Walsh chama de “razão única”, isto é, o pensamento hegemônico eurocêntrico. Dessa forma, ainda segundo esta autora a Pedagogia Decolonial não é pensada em um sentido instrumental do ensino e da transmissão do conhecimento. Também não está limitada ao campo da Educação em espaços escolarizados. Mas “como disse uma vez Paulo Freire, a Pedagogia se entende como metodologia imprescindível dentro de e para as lutas sociais, políticas, ontológicas e epistêmicas de libertação” (WALSH, 2013, p. 29). A Pedagogia Decolonial define-se então como um conjunto de Pedagogias que trabalham a ancestralidade, a identidade, os conhecimentos, as práticas e as civilizações excluídas do pensamento único europeu. Ela está também inserida numa perspectiva mais das lutas sociais. A aplicação da Pedagogia Decolonial é concretizada através de suas práticas que, segundo as palavras de sua criadora, Catherine Walsh, podem ser entendidas como: Práticas que abrem caminhos e condições radicalmente ‘outras’ de pensamento, re e in-surgimento, levantamento e edificação, práticas entendidas pedagogicamente – práticas como pedagogias – que por sua vez fazem questionar e desafiar a razão única da modernidade ocidental e o poder colonial ainda presente, desligando-se deles. (WALSH, 2013, p. 28) As práticas pedagógicas decoloniais tem por objetivos promoverem uma reflexão crítica da realidade e possibilitar caminhos para sua transformação e isso na área da Pedagogia se desdobra de múltiplas formas. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 489 EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA O conceito de Educação Antirracista, segundo (FERREIRA, 2012, p. 276) surgiu primeiro na Grã-Bretanha, passando depois pelo Canada, Austrália e Estados Unidos. No Brasil ainda é recente o uso desta categoria em estudos acadêmicos. Citando outros autores (TROYNA E CARRINGTON, 1990, p. 1) FERREIRA traz a seguinte conceituação: Educação antirracista refere-se a uma vasta variedade de estratégias organizacionais, curriculares e pedagógicas com o objetivo de promover a igualdade racial e para eliminar formas de discriminação e opressão, tanto individual como institucional. Essas reformas envolvem uma avaliação tanto do currículo oculto como do currículo formal (FERREIRA, 2012, p. 276). Vemos então como a Educação Antirracista se desdobra em várias dimensões como a redefinição de estratégias organizacionais, mudanças nos currículos e nas práticas pedagógicas a fim de promoverem profundas transformações no combate ao racismo individual e institucional. Contribuindo com a discussão da educação antirracista, que é uma consequência direta das práticas pedagógicas decoloniais, conheceremos alguns aportes de intelectuais e militantes brasileiros e africanos do Movimento Negro em nosso país. Começamos com o antropólogo congolês Kabengele Munanga, professor titular da USP e diretor do Centro de Estudos Africanos da mesma instituição. Dessa forma estabelecemos mais uma conexão direta entre a Educação Antirracista e a Pedagogia Decolonial. Em 1999 Munanga organizou um livro intitulado Superando o racismo na escola, no qual diversos autores e autoras, ligados historicamente ao Movimento Negro brasileiro e a construção de uma episteme afro-brasileira, contribuíram com artigos abordando várias dimensões da temática afrodescendente. Destaco um ponto abordado na introdução deste livro, escrita por Kabengele Munanga trata das consequências do racismo na vida de milhões de estudantes negros no Brasil. Munanga nos fala que o apagamento da memória coletiva, da história e da identidade das crianças e adolescentes negras do sistema de ensino baseado no modelo eurocêntrico nos ajuda a compreender os elevados índices de evasão e repetência escolar dos estudantes negros (MUNANGA, 2005, 16). Munanga cita Joseph Ki-Zerbo (1922-2006), um dos mais importantes historiadores africanos do século XX, nascido em Burkina Fasso, quando este afirmava que “um povo sem história, é como um indivíduo sem memória, um eterno errante” (MUNANGA, 2005, 16). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 490 Essa construção teórica é muito importante pois nos leva diretamente ao estudo das práticas pedagógicas afirmativas que pesquisaremos na escola Isaac Pereira. Outra fala importante a ser destacada é a da histórica militante do Movimento Negro brasileiro e pernambucano, Inaldete Pinheiro Andrade. Em seu artigo: Recuperando a autoestima da criança negra, a autora destaca o papel central da infância na formação humana e as consequências de uma educação racista: É a ausência de referência positiva na vida da criança que esgarça os fragmentos de identidade da criança negra que muitas vezes chega a idade adulta com total rejeição a sua origem racial, trazendo-lhe prejuízo à sua vida (ANDRADE, 2005, p. 120). Arte e Educação As relações entre Arte e Educação são antigas nas mais diversas culturas. Trabalhando com um conceito antropológico-social de Cultura sendo esta um campo organizado da atividade humana coletiva que possui características específicas que operam dentro de certos limites e que estão em constante modificação, temos que a Arte é o coração do corpo cultural (BARBOSA, 2006, p. 22). Essa dimensão da Arte é trabalhada pelo Kanteatro nas Artes Cênicas. No campo das relações entre o Teatro e a Educação trazemos a contribuição de (KOUDELA, 1992, p. 21) para quem na articulação entre Teatro e Educação o mais importante é o processo do que o produto final. Esse sentido estaria presente no significado original da palavra grega Drama – “eu faço” / “eu luto”, dessa forma no FAZER e no LUTAR a criança descobre avida e a si mesma. Para Cassirer, citado pela autora (KOUDELA, 1992, p. 32); A Arte é um meio para a liberdade, o processo de liberação da mente humana que é o objetivo real e último de toda educação; deve cumprir uma tarefa que lhe é própria, uma tarefa que não pode ser substituída por qualquer outra função. Percebemos então a Arte na Educação como uma fundamental articulação no despertar de novas sensibilidades que não conseguem surgir só na educação formal. Trazendo essa discussão para a questão étnica-racial trabalhada pelo Kanteatro temos um precedente histórico muito importante para compreendermos a relação direta entre Arte e Educação para combater o racismo e despertar a construção da identidade negra. Essa experiencia foi o Teatro Experimental do Negro (TEN) criado por Abdias Nascimento em 1944 no Rio de Janeiro para a valorização do negro no Brasil através da Educação, da Cultura e da Arte. O TEN denunciava a alienação dos estudos chamados afro-brasileiros e defendia que o negro tomasse consciência de sua situação objetiva na realidade brasileira, apesar da escravidão espiritual, cultural, socioeconômica e política na qual vivia então. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 491 METODOLOGIA Realizamos uma pesquisa qualitativa pois seguimos as cinco características propostas por Bogdan e Biklen (1985, pp. 11-13). Segundo estes autores as premissas de tal modalidade de pesquisa são as seguintes: 1. A pesquisa qualitativa tem o ambiente natural como sua fonte direta de dados e o pesquisador como seu principal instrumento; 2. Os dados coletados são predominantemente descritivos; 3. A preocupação com o processo é muito maior do que com o produto; 4. O ‘significado que as pessoas dão as coisas e a sua vida são focos de atenção especial; e 5. A análise de dados tende a seguir um processo indutivo. (BOGDAN E HELEN, 1985, p. 11). Temos então que na pesquisa qualitativa o pesquisador tem um contato direto e demorado com o ambiente e a situação que está sendo estudada. Também teremos que o material obtido com estas pesquisas trará o relato de situações pedagógicas e transcrições de entrevistas. O maior interesse do pesquisador será o de verificar como determinado problema se manifesta na realidade estudada a partir de suas observações. Neste modelo de pesquisa existe um interesse do pesquisador em capturar a perspectiva dos participantes, ou seja, conhecer as maneiras como as questões levantadas pelo pesquisador estão sendo encaradas pelos sujeitos pesquisados. E por fim, o pesquisador tem um ponto de partida orientado por um conjunto de referenciais teóricos, mas à medida que a pesquisa vai sendo realizada novas questões podem surgir e o trabalho vai evoluindo em possíveis desdobramentos (LUDKE & ANDRE, 1986, 11-13). Neste sentido utilizamos os recursos metodológicos da História Oral. Essa metodologia possui uma identificação com a história de pessoas e grupos sociais invisibilizados pelas diversas formas de dominação, ou seja, recupera e registra uma “outra história” (REIS, 2013, p. 81). Tal recurso metodológico tem uma conexão direta com o Pensamento e a Pedagogia Decolonial que propõe a valorização de outras identidades e outros modos de ser e de pensar diferentes da visão eurocêntrica. Também é importante destacar que o registro da oralidade dos entrevistados (sujeitos da pesquisa: gestora e docentes da escola Isaac Pereira) dialoga com a versão pessoal das vivencias, pois, “a história oral privilegia a recuperação do vivido conforme concebido por quem viveu” (ALBERTI, 2005, p. 23). Mas esse vivido não está encerrado no presente eternizado na memória. Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é em limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois (BENJAMIN, 1996, p. 23). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 492 As entrevistas do tipo narrativas que foram realizadas na pesquisa constituem as fontes primárias na coleta de dados a fim de responder aos objetivos propostos neste trabalho. Serão articuladas com as fontes secundárias (fontes escritas e impressas) no sentido de complementarem a análise sobre seus conteúdos. (REIS, 2013, pp. 81-82). Realizamos entrevistas narrativas, sendo que estas constituirão nossas fontes primárias de coleta de dados. Depois estas serão articuladas com as fontes secundárias, escritas e impressas, construindo um diálogo que aprofunde os temas abordados na pesquisa. O presente trabalho é definido como um estudo de caso, pois o seu objeto de estudo é bem delimitado. Pode possuir semelhanças com outros, mas se torna diferente porque possui um interesse particular e único. E também se destaca por se caracterizar como uma unidade dentro de um sistema mais abrangente (LUDKE & ANDRE, 1986, 17). É uma pesquisa de campo porque vai além da simples coleta de dados, pois contará com mecanismos de controle e objetivos pré-estabelecidos que especificam as informações a serem coletadas. Realizamos entrevistas semiestruturadas, com a idealizadora do Kanteatro e os estudantes/atores, pois esta modalidade constitui uma entrevista mais espontânea com questões pré-definidas, mas com liberdade para adicionar outras perguntas no decorrer da entrevista e/ou mudar a ordem das perguntas. Possibilita focar nas questões de maior interesse combinando perguntas abertas e fechadas. Recorri também a uma análise documental, pois os resultados da pesquisa de campo foram relacionados a Lei 10.639/2003 e a Resolução 001/2004. A técnica usada para a interpretação dos dados foi a análise de conteúdo, que, segundo Bardin (2007) esta trabalha priorizando a análise temática das narrativas, buscando nas fontes as temáticas mais presentes nas histórias de vida individuais e nas coletivas, cujos eixos serão contextualizados a partir das teorias e dos assuntos que surgem nas narrativas. O passo a passo dos procedimentos de análise também foi referendado por Bardin (2007) neste roteiro a préanalise, a exploração do material, seleção das categorias temáticas, tratamento dos resultados obtidos e interpretação. Os sujeitos da pesquisa são os estudantes/atores do Kanteatro, a idealizada e a criadora do Kanteatro. RESULTADOS Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 493 A partir da pesquisa de campo, com as observações e as entrevistas semiestruturadas podemos então apresentar e analisar os resultados obtidos relacionando-os aos objetivos propostos inicialmente. KANTEATRO E SUA IDEALIZADORA Para conhecermos a concepção que originou o Kanteatro temos a fala de sua idealizadora a professora e coordenadora pedagógica da Escola Isaac Pereira, M. R. (licenciada em Pedagogia, 53 anos): O Kanteatro surgiu a 3 anos atrás, em 2015, e ele nasceu com esse objetivo de contribuir para a superação do racismo na escola através de práticas pedagógicas e resgates de memória para a afirmação e construção e reconstrução da identidade negra, respaldados que estamos pela Lei 10.639 de 2003, que altera a LDB que obriga a Educação Básica a estudar a história da África, do povo africano e da cultura afrobrasileira, assim como institui o dia 20 de novembro como dia Nacional da Consciência Negra. Vemos então como desde seu início o Kanteatro esteve articulado com a legislação referente a temática afrodescendente (Lei 10.639/2003) e a construção da identidade negra nos estudantes participantes. É importante salientar o destaque que é dado a construção da identidade negra pois temos aqui uma articulação direta com a Pedagogia Decolonial que busca desconstruir a interiorização da subjetividade das antigas elites coloniais nas mentes dos povos das ex-colônias. Esse objetivo da construção identitária está presente neste outro trecho da entrevista: Um dos objetivos do Kanteatro é o protagonismo das crianças negras. Eles iriam interpretar as lendas e os mitos africanos onde seus personagens seriam reis e rainhas, príncipes e princesas. O Kanteatro seria também um facilitador de aprendizagem, de letramentos, de leituras e releituras do mundo, porque quando uma criança negra se vê representada positivamente não acontece a evasão escolar nem o desinteresse pois é construída a autoestima na construção identitária. Ecoam nesta fala as afirmações anteriormente citadas de Kabenguele Munanga sobre a evasão escolar de estudantes negros devido ao racismo e a defesa da construção da autoestima das crianças negras de Inaldete Pinheiro. Tudo isso possível graças ao protagonismo dos personagens negros interpretados pelos estudantes. Ainda podemos relacionar ao Teatro Experimental do Negro criado por Abdias Nascimento quando estes tiveram que encomendar textos teatrais escritos por autores negros que tivessem os seus personagens protagonistas negros. Temos mais uma fala da idealizadora do Kanteatro na qual ela se refere a questão do coletivo e da aprendizagem nas suas práticas: Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 494 O Kanteatro tem conseguido isso [facilitar a aprendizagem] até porque as artes cênicas funcionam como um facilitador e nos ajudam a desenvolver a consciência crítica acerca da nossa realidade, estimula a criatividade e a participação... a questão do improviso e estimula também o trabalho em equipe. Sem contar o estímulo a leitura. Então essa prática da arte cênica dentro da escola tem ajudado muito a aproximar a comunidade da escola. O projeto conseguiu transpor, ir além, passar os muros da escola conseguiu parceiros e parceiras que vem de outros bairros e de outras escolas. Tem também a participação tímida de pais que aos poucos vem chegando, mas tem até uma mãe atriz. Encontramos neste trecho da entrevista conexões diretas com o pensamento de Ana Mae Barbosa quando esta fala da importância da Arte para o desenvolvimento da percepção, da criatividade e do pensamento crítico. Nesta linha de pensamento mais uma vez encontramos pontos de contato com a Pedagogia Decolonial pois a prática educacional através da expressão artística possibilita o surgimento de novas sensibilidades que permitem a afirmação da identidade negra. A FALA DOS ESTUDANTES/ATORES Neste ponto do artigo chegamos ao principal sujeito da pesquisa, ou seja, os estudantes que participam do Kanteatro. Vai ser justamente através da análise de suas falas que poderemos verificar se os objetivos do Kanteatro foram atingidos no combate ao racismo, no conhecimento da história e cultura africana e na construção da identidade afro-brasileira. Dessa forma poderemos também observar as dinâmicas da Pedagogia Teatral e se os resultados desta apontam para o Kanteatro como uma Pedagogia Decolonial. Também a partir da análise de suas falas poderemos estabelecer a existência de categorias particulares deste processo pedagógico. Foram ao todo entrevistados sete estudantes, sendo quatro do sexo feminino e três do sexo masculino. Todas as entrevistas foram realizadas na escola Isaac Pereira nos dias de ensaio do Kanteatro. Por razões de ética acadêmica não citamos os verdadeiros nomes dos adolescentes substituindo-os por nomes africanos utilizados nas peças do Kanteatro. Vejamos agora os dados de identificação dos estudantes no seguinte quadro. Nome Cor Jaineba / Negra Taú Amina Kizua Abdul Kaila Kadidja “Moreno” Negra Negro Negro Negra Negra Masc. Masc. Masc. Fem. Fem. Raça Gênero Fem. Fem. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 495 Idade 13 14 11 14 10 14 12 Ano 8ª - 6ª 6ª - 6ª 6ª A primeira entrevistada foi Jaineba que se aproximou do Kanteatro da seguinte forma segundo suas próprias palavras: ... conheci pelo Programa Mais Educação que era oferecido na Escola Isaac Pereira. Sobre as motivações que a levaram a participar explicou: Eu fui porque sempre gostei muito, muito, muito de interpretar e sempre gostei muito de teatro! Comentando sobre a importância de conhecer a história e a cultura africana disse: Antes de entrar para o Kanteatro, eu sempre, sempre, sempre pensei que a África era um país. Descobri que não era um pais, era um continente, que era composto por vários países, em torno de 55 ou 56, por aí O que eu pensava que era um lugar onde só tinha fome, bichos mortos, falta de d’água e de amor. Soube que era um lugar completamente diferente com pessoas lindas, importantes e maravilhosas. Será que o Kanteatro mudou a vida de Janeiba? Vejamos então seu relato: Sentia tristeza porque as pessoas diziam que o meu cabelo era feio. Mas agora se chegar e falar isso para mim não me atinge em nada. Eu sou capaz de olhar para a pessoa e dizer: - É? Pena que é só para você – Bebê! Para mim faz parte da minha descendência. Minha vida mudou muito, muito, muito com o Kanteatro. Indagada sobre a função do Kanteatro a entrevistada Janeiba assim respondeu: Para mim a função do teatro é ensinar e motivar outras pessoas, não só do Kanteatro, a enfrentarem o racismo. Ensinar como a África é de verdade. Não a África como eles conhecem, mas a África de verdade. É interessante observar como Janeiba relaciona o enfrentamento do racismo ao conhecimento sobre a África. E para a entrevistada o que é o Kanteatro? É tudo! É a minha vida! Todas as pessoas que fazem o Kanteatro são a minha segunda família! O Kanteatro é a minha segunda casa! Então eu tenho uma segunda mãe, uma segunda tias e tios, e segundos irmãos... kkk...! O próximo estudante entrevistado -Taú – conheceu o Kanteatro através de uma amiga que conhecia sua luta contra o racismo. E o que o levou a participar do Kanteatro? O que me levou a ficar foi combater o racismo. A desenvoltura dos meninos, a força que o teatro tem eu sento em mim e a cada dia me fortalece mais. Ainda para ele a importância de conhecer a África está em vencer o racismo. E o que mudou na vida de Luan depois de participar do Kanteatro? Eu não ligo mais para o que falam de mim. Porque eu sou moreno e tenho muito orgulho de ser moreno. E isso a cada dia me fortalece. Quando eu cheguei nesta escola eu era muito xingado e muito falado por causa da minha cor... Eu sentia muito isso. Uma amiga minha chegou até a se cortar por isso mesmo, pelo racismo. Quando eu entrei no Kanteatro eu me fortaleci e fortaleci ela. Estamos no Kanteatro a dois anos. Nós combatemos o racismo e ajudamos um ao outro. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 496 Para ele o Kanteatro é a coisa mais linda que aconteceu em sua vida. Amina foi a outra estudante entrevistada e conheceu o Kanteatro quando foi convidada pela gestora para participar dele. Destaca que o conhecimento da África é muito importante porque pensava que este continente era um país. Sobre o que o Kanteatro mudou em sua vida disse: Mudou o meu modo de pensar sobre África. Antes não me definia como negra. Hoje me defino como negra com muito orgulho. Para ela o Kanteatro é um lugar onde se aprende as coisas. A entrevistada foi a mais jovem de todas. Durante a entrevista ficou visivelmente emocionada e fez longas pausas permanecendo em silencio. O próximo entrevistado foi Abdul que conheceu o Kanteatro numa apresentação na escola. Dançando e sambando muito na quadra da escola. Neste evento foi convidado pela coordenadora do Kanteatro a participar do grupo. Acha muito importante conhecer a história da África para combater o racismo. Sobre o que mudou em sua vida a participação no Kanteatro ele disse: Não estou mais sofrendo bulliyng. Antes eu sofria essas coisas na escola. Eu fui chamado de macaco. O menino que me chamou de macaco era negro. Entrar no Kanteatro me ajudou muito, muito e muito! Vemos que Abdul ainda confunde bulliyng com racismo. Para ele a função do Kanteatro é a de juntar as pessoas e é tudo em sua vida. A próxima entrevistada foi Kaila que conheceu o Kanteatro na escola Isaac Pereira. Se integrou ao Kanteatro como uma forma de enfrentar o racismo que sofria: “O teatro mudou a minha vida. Eu deixei de ser aquela pessoa que acreditava nos outros. Uma pessoa chegava e dizia: - Tu é feia e teu cabelo é horrível. Isso doía em mim. Eu sentia um aperto no coração. Perguntada sobre a importância de conhecer a África continuou relatando o racismo que sofria por seu cabelo afro. Definiu o Kanteatro dessa forma: O Kanteatro é minha segunda família. Me abro quando estou me apresentando. Eu tenho uma família que me ajuda nas horas boas e nas horas ruins. O Kanteatro sempre está do meu lado. Por fim temos a fala de Kadidja que também conheceu o Kanteatro na escola Isaac Pereira e se interessou em participar para conhecer mais histórias sobre a África e conhecer suas origens. Essa participação a fez melhorar nos estudos. Para ela a função do Kanteatro é a de ensinar nossas origens e a lutarmos por nossos espaços e sua definição é O Kanteatro são histórias e lendas que não estão nos livros. Podemos observar algumas expressões que se repetem nas falas dos entrevistados tais como “combater/enfrentar o racismo”, o Kanteatro promoveu uma “mudança de vida”, e se constitui em uma “segunda casa/segunda família”. Percebemos então como para os estudantes Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 497 a participação no Kanteatro é importante para a luta contra o racismo sofrido e como esse processo transforma suas vidas a ponto da maioria deles considerar o Kanteatro como uma segunda casa/família tal o grau de pertencimento. Podemos melhor visualizar essas constatações no gráfico abaixo das categorias do Kanteatro coletadas. Categorias do Kanteatro 5 5 3 COMBATER/ENFRENTAR O RACISMO MUDANÇA DE VIDA/PENSAR SEGUNDA CASA/FAMÍLIA Total de alunos entrevistados: 7 CONCLUSÃO Através da pesquisa de campo no constante diálogo com as categorias utilizadas podemos afirmar que as práticas desenvolvidas pelo Kanteatro correspondem a uma Pedagogia Decolonial, pois ao promoverem o reconhecimento identitário dos jovens estudantes e atores desconstroem a herança da Colonialidade eurocêntrica. Tal processo efetiva a Lei 10.639/2003 e constrói uma Educação Antirracista. Também o conhecimento da História e Cultura africana está completamente inserido neste processo de descoberta da identidade negra. Percebemos isso através do registro das falas dos estudantes e dos docentes entrevistados. E todo esse processo foi permeado pela articulação entre a Educação e o Teatro fora dos espaços tradicionais caracterizando o Kanteatro como uma Pedagogia Decolonial. Essa pesquisa foi uma caminhada muito positiva do ponto de vista acadêmico e muito importante do ponto de vista pessoal pois conheci pessoas, jovens, crianças e adultos que lutam Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 498 por uma sociedade mais justa e sem preconceitos aliando a sensibilidade da Arte e a ideologia de uma Educação Transformadora e Humanista. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBERTI, Verena. Manual de história oral. 3. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2005. ANDRADE, Inaldete Pinheiro. Recuperando a autoestima da criança negra. In: MUNANGA, Kabengele. 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Através do estímulo da sensação de pertencimento negro, entre outros, a Pretagogia intenciona desenvolver abordagens vivenciais corroborativas com ações afirmativas do ser negro e a partir daí colaborar com a potencialização das cosmovisões, cultura e história africana, brasileira e diaspóricas. Para tal, realizou-se uma pesquisa bibliográfica nas obras de Petit (2015) apresentando a Pretagogia, Gomes (2017) ressaltando a importância da criação de pedagogias pós-abissais, entre outros. Concluiu-se que ações pedagógicas focadas em práticas de valorização da história e cultura negra são fundamentais para a constituição de cidadãos negros afirmativos. PALAVRAS-CHAVE: Educação. Cidadania. Práticas Educacionais. INTRODUÇÃO Em 2001 o Brasil participou na cidade de Durban, África do Sul, da Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU). Essa Conferência deu continuidade a um processo de conferências sociais em que se procurou discutir soluções e formas de enfrentamento dos problemas relacionados à discriminação em todas as suas formas, bem como a não efetivação dos direitos humanos, civis, políticos e sociais, e intolerâncias de variadas ordens. (SANTOS, 2005) a conferência gerou um documento adotado pelos países participantes, o “Plano de Ação de Durban” que estabeleceu as diretrizes e possíveis estratégias que deveriam ser adotadas pelos países signatários na implementação de medidas que viessem a combater o racismo e suas consequências. (DECLARAÇÃO DE DURBAN E PLANO DE AÇÃO, 2001). No Brasil, além da adesão ao plano, existe a lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio. 1 Professora da rede municipal de Fortaleza - CE, pedagoga, especialista em História e Cultura Africana e Afrobrasileira e mestranda em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: est.costa@yahoo.com.br. 2 Doutora em Ciências da Educação pela Université Paris 8 - Vincennes-Saint-Denis e professora FACED/ Universidade Federal do Ceará. E-mail: negapetit@gmail.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 501 A expectativa em relação à essas iniciativas governamentais, é a de que o combate ao racismo através da instituição escolar seja efetiva e intermitente. Segundo Luckesi (2003, p. 69) “A difusão de conteúdos é primordial, não conteúdos abstratos, mas vivos, concretos e, portanto, indissociáveis das realidades sociais”. No entanto, apesar de os debates estarem em profusão por todo o ambiente acadêmico, questionando e refletindo sobre os impactos dessa nova proposta educacional, há um hiato que incomoda e urge atenção e abordagens. Há muito tempo a população negra é denegada da história do país, como clarifica Júnior (2006) “[...]a “democracia racial” é constituída por um ato de exclusão (denegação) que se inscreve, ele mesmo, nas relações raciais” , percebemos que sua contribuição na cultura, tecnologia, educação, religião, entre outros, é tratada com irrelevância ou desqualificada. A própria história da presença negra no país é minimizada e aspectos como dívida histórica, cotas raciais e identidade racial são simplificados e a reflexão sobre esses fatores é desprezada. Em decorrência disso, a pessoa negra é excluída e coisificada socialmente, e enquanto coisa, é tratada com desdém e tem seus direitos civis feridos e negados diariamente. Daí existe uma tendência a produzir concomitantemente, sentimentos de inferioridade que consternam e agridem as pessoas negras, e de modo reverso, passar uma postura de supremacia nas pessoas brancas. Consequentemente, percebemos uma necessidade do sistema social e político impor, de forma naturalizada, o embranquecimento, se não da pele, do pensamento e das atitudes. A fim de combater essa nova forma de colonialismo, apresenta-se de modo impreterível e inegável o fortalecimento de uma educação que desperte e estimule o reconhecimento e orgulho de ser negro. Isto posto, o presente trabalho tem como objetivo apresentar um referencial teóricometodológico denominado Pretagogia, que oferece suporte à formação de professores. Para tanto, definiu-se a pesquisa bibliográfica composta pela obra de Petit (2015) que apresenta e define a Pretagogia, como também Fanon (2008), Gomes (2017), Gauthier (2015) e Freire (1997) que corroboram com as ideias da obra de Petit. PRETAGOGIA, O DESPERTAR DO PERTENCIMENTO E DO SER NEGRO Segundo Petit (2005), a Pretagogia é um referencial teórico-metodológico visando a formação de professores, tanto inicial como continuada. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 502 Surgida diante das dificuldades que os professores encontram para implementar as temáticas proposta pela lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afrobrasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino básico, a Pretagogia propõe o estímulo ao conhecer-se e reconhecer-se negro, para além da dimensão apenas do fenótipo, particularmente reforçando a apropriação do pertencimento afro. Espera que resulte, desse processo, o empoderamento negro3, que oferece mecanismos e suportes que atuarão diretamente na luta antirracista. Gomes (2017, p. 54) explana que “a relação Movimento Negro, educação e saberes nos convoca a trilhar um caminho epistemológico e político desafiador: a construção de um pensamento e de uma pedagogia pós-abissais.”, ou seja, que rompa com a ciência moderna ocidental hegemônica que, “despreza, desqualifica e separa os saberes e conhecimentos produzidos fora do eixo Norte do mundo”. Corroborando com essa explanação, a Pretagogia traz a reflexão e ação do pensamento negro a fim de mostrar as contribuições civilizatórias dos povos negros na sociedade brasileira e a partir disso, fortalecer a luta pela efetiva ação dos direitos sociais e civis dessa pessoa. Mais do que uma nova tendência educacional, a Pretagogia reúne diversas fontes e práticas afrorreferenciadas já existentes, articulando-as dentro de uma abordagem original, que possa atingir, principalmente o ambiente escolar, mas também toda a experiência educacional, através de intervenções interdisciplinares e múltiplas linguagens que valorizam o corpo e a oralidade que são aspectos da cosmovisão africana: modo de conhecer, perceber e interagir com o mundo. A cosmovisão africana compreende o corpo como instrumento de comunicação com a natureza e com a ancestralidade, Segundo Rehbein (1985, apud Santos, 2012) Trata-se, antes, de uma concepção mais profunda, mais ampla e universal, segundo a qual todos os seres e a própria natureza visível acham-se ligados ao mundo do invisível e do espírito. O homem, em particular, nunca é concebido como apenas matéria, limitado à vida terrena, mas reconhecemse nele a presença e a eficácia de outro elemento espiritual que faz a vida humana ser sempre posta em relação com a vida do além. Assim, o corpo carrega em si a incumbência de comunicar-se e expressar-se em ações que superam a fala, transmite energia, cria e reproduz cultura. Essa visão resulta em uma relação harmoniosa com o próprio corpo, a natureza e com o outro, pois o a natureza e o outro sou eu. 3 Empoderamento é a ação social coletiva de participar de debates que visam potencializar a conscientização civil sobre os direitos sociais e civis. Ao que se refere à população negra, consiste em ofertar-lhe e desenvolver consciência e atos que viabilizem posicionamento e ascensão social. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 503 Nessa perspectiva, também a fala é valorizada, a oralidade é cultivada como tradição para que nunca se perca, pois é uma expressão do corpo e do espírito. Segundo Ba (2010): A tradição oral é a grande escala da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que não lhes descortinam o segredo e desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. Dentro da tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão dissociados. Ao passar do esotérico para o exotérico, a tradição oral consegue colocar-se ao alcance dos homens, falar-lhes de acordo com o entendimento humano, revelar-se de acordo com as condições humanas. Ela é ao mesmo tempo conhecimento, religião, ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e recreação [...] (p.196) Destarte, estabelecer ligações com a cosmovisão africana através do corpo e da oralidade viabiliza o conhecimento de uma cultura não ocidental, permitindo, como Gomes (2017) esclarece: “superar o pensamento abissal, pensamento esse presente na ciência moderna ocidental, que despreza, desqualifica e separa os saberes e conhecimentos produzidos fora do eixo Norte do mundo. (p.54)” A tabela abaixo contém os 30 marcadores de africanidades, listados a partir dos aspectos de cosmovisão africana, que a Pretagogia sugere para iniciar ou inspirar um trabalho de implementação de conteúdos afro, a partir da inserção de cada um na cultura brasileira: Tabela 1 – Marcadores de Africanidades trabalhados na Pretagogia História do meu nome Danças afro História da minha linhagem, inclusive Cabelo afro (encaracolado/cacheado/crespo) – agregados práticas corporais de afirmação e de negação dos traços negros diacríticos Mitos/lendas/o ato de contar/valorização Representação da África/Relações com a África da contação Histórias do meu lugar de Negritude – Força e resistência pertencimento/comunidade/territorialida des e Desterritorialidades negras (movimentos de deslocamento geográficos, corporais e simbólicos) Sabores da minha infância – pratos, Artesanato modos de comer e o valor da comida Pessoas negras referências da minha Outras tecnologias família e da minha comunidade e pessoas negras referência do mundo, significativas para mim Simbologias da circularidade/Tempos Valores de família/Filosofia cíclicos e da natureza Mestras e Mestres negras/negros (da Racismos (perpetrados e sofridos) cultura negra) Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 504 Escrituras negras Formas de conviver/Laços de solidariedade/Relações comunitárias Curas/Práticas de saúde Relação com a natureza Cheiros “negros” significativos Religiosidades pretas Festas afro da minha infância e festas de Relação com as mais velhas e os mais hoje velhos/Senhoridade (respeito aos mais experientes) Lugares míticos e territórios afro Vocabulário afro/Formas de falar marcadores (investidos pela negritude) Músicas/Cantos/Toques/Ritmos/Estilo Relação com o chão (Vivências e simbologias) afro Práticas e valores de iniciação/Ritos de Outras práticas corporais (brincadeiras tradicionais, jogos e outros) transmissão e ensino O educador é estimulado a despertar nos educandos o reconhecimento desses marcadores e a partir deles, perceber sua conexão com as africanidades. A Pretagogia, juntamente com Cosmovisão Africana e Tradição Oral Africana são componentes curriculares dos cursos de mestrado e doutorado em educação da Universidade Federal do Ceará (UFC), dentro da linha de pesquisa de Movimentos Sociais, Educação Popular e Escola (MOSEP) no eixo Sociopoética, Cultura e Relações Étnico-raciais, como disciplinas optativas. Nela, os mestrandos e doutorandos são convidados a refletir, e principalmente, repensar suas práticas pedagógicas a partir dos marcadores, a fim de trabalhar conceitos como pertencimento negro, ancestralidade, religiosidade, tradição oral, circularidade, territorialidade, lugar social historicamente atribuído ao negro, mediante vivências e estudos que aliam conhecimentos instrutivos com dispositivos de formação sensitiva da história e culturas africanas, afro-brasileiras e afrodiaspóricas. Espera que educadores e educadoras sejam levados a se perceberem como sujeitos ativos e engajados do processo que pretendem construir, firmando conhecimentos e métodos que potencializarão sua prática educacional na abordagem da lei 10.639/03. Segundo Freire “a práxis é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformálo. Sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimido”. (1997, p. 38), daí a percepção de que a vivência permite a apreensão mais profunda do que é apresentado e, por conseguinte, através dessa compreensão o despertar do entendimento da necessidade de luta e afirmação ininterruptas, a fim de desvencilhar-se dos tentáculos lançados pelo opressor social. Importante ressaltar que a Pretagogia não pretende atuar somente em pessoas negras aparentes, uma vez boa parte da população brasileira tem maior ou menor grau de ascendência africana. Sabemos que muitos considerados não-negros, por não possuírem o tom de pele escuro, se desagregam mais facilmente dessa origem. Daí é que surge mais uma vez a relevância Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 505 do papel pretagógico de despertar o pertencimento na escola e, dessa maneira, desestabilizar o pensamento eugênico racista é um dos objetivos da Pretagogia. Fanon (2008) afirma que “é na medida em que ultrapasso meu ser imediato que apreendo o ser do outro como realidade natural e mais do que natural. (p.180)” É necessário desencadear o processo de reconhecimento dos marcadores de africanidades através de vivências elaboradas, organizadas para tal objetivo. A Pretagogia frequentemente utiliza, como uma de suas ferramentas, a Sociopética, um método de pesquisa fundado pelo filósofo e pedagogo Jacques Gauthier e pela enfermeira e filósofa Iraci dos Santos (2015), que se fundamenta na construção coletiva de saberes a partir da coleta de dados que consideram A valorização das culturas populares e de resistência, mobilização do corpo inteiro como fonte de conhecimentos, utilização de técnicas artísticas de pesquisa e dialogicidade na interação entre a academia e as comunidades anfitriões da pesquisa.(p.1) Assim, a Pretagogia colhe no próprio educando as declarações que ratificam suas afirmações. CONSIDERAÇÕES FINAIS As abordagens educacionais são fundamentais na construção do cidadão. O currículo escolar é forçosamente obrigado a se adaptar às realidades sociais, uma vez que, segundo Mendonça (2017) O currículo é vivo e imortal. Ele se adapta às necessidades sociais de qualquer época, a fim de (de acordo com a época): reproduzir padrões/formar mão de obra/ incutir valores (o que são valores?) / desenvolver o senso crítico/ inserir o educando nas questões pertinentes em vigor. Ele se atualiza e se apropria de ferramentas intelectuais e tecnológicas em busca do seu objetivo final que é, em qualquer currículo, a construção do educando idealizado por aquele momento político e social (p. 1810). Dessa maneira, intervenções no currículo e abordagens práticas fazem parte da própria construção do contexto escolar. A implementação de políticas negras afirmativas justifica-se enquanto houverem ações sociais excludentes, denegadoras e violentas contra a população negra. Sendo a escola um dos maiores pilares de formação do cidadão, é principalmente nela que essas políticas devem atuar, Saviani (2008) apresenta a escola como o local que deve servir aos interesses populares garantindo a todos um bom ensino e saberes básicos que se reflitam na vida dos alunos preparando-os para a vida adulta. A preparação para a vida social perpassa Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 506 principalmente pela instituição escolar, pois é nela que a criança elabora, vive e compreende sua cidadania. As práticas pretagógicas apenas consolidam a realidade da presença da população negra e estimulam no educando a elevação da sua autoestima, que se reflete na personificação de um cidadão consciente e honroso da sua etnia. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS BRASIL. Lei nº. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. 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Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 508 ÁLVARO VIEIRA PINTO E O PENSAMENTO DECOLONIAL Breno Augusto da Costa1 RESUMO Neste trabalho demonstramos a pertinência das reflexões do filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto para o pensamento decolonial. Nosso itinerário reflexivo contemplou uma breve conceituação de movimento decolonial, vida e obra do filósofo e as articulações possíveis entre seu pensar e a obr a de pensadores como Aníbal Quijano, Enrique Dussel e Nelson Maldonado-Torres. Encerramos assinalando a relevância da retomada do pensar de Vieira Pinto, especialmente por suas contribuições para o desenvolvimento de políticas públicas de humanização das condições de existência das massas dos países subdesenvolvidos. PALAVRAS-CHAVE: Álvaro Vieira Pinto; Pensamento Decolonial; Enrique Dussel; Desenvolvimento Nacional. RESUMEN En este trabajo desmonstramos la pertinencia de las reflexiones del filosofo bras ileño Álvaro Vieira Pinto para el pensamiento decolonial. Nuestro caminho reflexivo contempló una breve conceptuación de movimiento decolonial, vida y obra del filosofo e las articulaciones possibles entre su pensar e la obra de pensadores como Aníbal Quijano, Enrique Dussel y Nelson Maldonado-Torres. Encerramos puntando la relevancia de la retomada del pensar de Vieira Pinto, especialmente por sus contribuciones para el desarollo de politicas publicas de humanización de las condiciones de existencia de las massas de los países subdesarollados. PALABRAS-CLAVE: Álvaro Vieira Pinto; Pensamiento Decolonial; Enrique Dussel; Desenvolvimiento Nacional. ABSTRACT In this work we demonstrate the relevance of the reflections of the Brazilian philosopher Álvaro Viei ra Pinto to the decolonial thought. Our reflexive path contemplated a brief conceptualization of decolonial movement, life and work of the philosopher and the possible articulations between his thought and the work of thinkers such as Aníbal Quijano, Enrique Dussel and Nelson Maldonado-Torres. We conclude pointing the importance of the resumption of Vieira Pinto’s thought, especially for his contributions to the development of public policies of humanization of the condition of existence of the masses of th e underdeveloped countries. KEYWORDS: Álvaro Vieira Pinto; Decolonial Thought; Enrique Dussel; National Development. INTRODUÇÃO A desgraça da exploração deve acabar para todos os homens Álvaro Vieira Pinto O objetivo deste trabalho é demonstrar a pertinência das reflexões do filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto (1909-1987) para o pensamento decolonial. Iniciaremos 1 Bacharel em Psicologia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Mestrando em Educação Profissional e Tecnológica pelo Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM). E-mail: brenobac@gmail.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 509 tratando da sua vida e obra, apresentando ao leitor aquele que entendemos ser um dos principais pensadores para o Brasil atual. Em seguida, elaboraremos nossa compreensão de movimento e pensamento decolonial para, finalmente, realizarmos a efetiva demonstração de como esse autor é pertinente e contribui para este pensamento. VIDA E OBRA DE ÁLVARO VIEIRA PINTO Nascido em Campos dos Goytacazes, estado do Rio de Janeiro, em 11 de novembro de 1909, Álvaro Borges Vieira Pinto teve formação inicial marcada por um forte humanismo clássico, tendo aprendido na escola latim, grego e francês. Posteriormente, ao finalizar seus estudos escolares, viajou com a família para São Paulo, onde manteve contato com ícones da Semana da Arte Moderna. Na segunda metade da década de 1920 inicia seus estudos acadêmicos em medicina na Faculdade Nacional de Medicina. Depois de formado, tenta, sem sucesso, atuar como clínico, passando então à atuação na investigação científica sobre o câncer. Paralelamente forma-se em Física e Matemática na antiga Universidade do Distrito Federal. Posteriormente passa a lecionar lógica, primeiro na Universidade do Distrito Federal e depois na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (atual UFRJ). Com o advento da Segunda Grande Guerra Europeia (1939 -1945) esta instituição sofre alterações no seu quadro docente e então Vieira Pinto assume a cadeira de História da Filosofia. Em 1949 realiza um ano de estudos na Universidade de Sorbonne, França. Ao retornar ao Brasil, defende uma tese sobre a dinâmica na cosmologia de Platão, obtendo o título de catedrático de História da Filosofia (CÔRTES, 2003; VIEIRA PINTO, 1982). Até então, o filósofo era reconhecido como um grande helenista, mas em 1955 aceita o convite de Roland Corbisier para chefiar o departamento de filosofia do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), instituição cujo objetivo era o estudo, ensino e divulgação das ciências sociais com o fim de aplicar as categorias e dados dessas ciências na análise e compreensão crítica da realidade brasileira, visando também promover o desenvolvimento nacional. Em 1956 profere conferências sobre filosofia contemporânea na Universidade Colombiana e na Universidade Nacional do Paraguai, recebendo desta última o título de doutor honoris causa. Mais tarde, ainda em 1956, em 14 de maio, profere no auditório do Ministério da Educação a conferência intitulada “Ideologia e Desenvolvimento Nacional”, posteriormente publicada como opúsculo. A partir deste Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 510 período a produção do filósofo se volta cada vez mais à realidade nacional. Do período isebiano da vida do filósofo vem à luz também a publicação de “Consciência e Realidade Nacional” (1960), em dois volumes, que pode ser considerada sua obra magna, “A Questão da Universidade” (1962a) e “Por que os Ricos não Fazem Greve?” (1962b) (CÔRTES, 2003; FAVERI, 2014; VIEIRA PINTO, 1982). Com o golpe parlamentar-militar de 1964 o ISEB foi fechado de imediato. A ditadura imperialista-militar que se sucedeu forçou o filósofo a amargar o exílio, inicialmente na Iugoslávia, durante um ano, e posteriormente no Chile, onde trabalhou junto ao CELADE, Centro Latinoamericano de Demografia. Neste mesmo período conviveu com Paulo Freire, que o chamou de mestre brasileiro em “Pedagogia do Oprimido” (2016, p. 101). O filósofo retornou ao Brasil em 1968, com severas restrições de atuação profissional, vindo a ser, posteriormente, aposentado compulsoriamen te. Então o filósofo fecha-se em seu apartamento e passa a dedicar-se à tradução 2 e escrita de algumas obras, na sua maioria inéditas, até morrer em 11 de junho de 1987. Deste período podemos citar a publicação de “Ciência e Existência” (1969); “El Pensamiento Critico en Demografia” (1973), publicado em espanhol e com pouca entrada no Brasil; e “Sete Lições Sobre a Educação de Adultos”, livro de maior divulgação do filósofo, a julgar pelo número de edições que alcançou, e que contém uma entrevista em que ele menciona que havia escrito ainda “A Educação Para um País Oprimido”, “Considerações Éticas Para um Povo Oprimido”, “A Crítica da Existência”, “Filosofia Primeira” e, por fim, “O Conceito de Tecnologia” (2005) e “A Sociologia dos Países Subdesenvolvidos” (2008), estes dois publicados postumamente e que, certamente, tiveram papel decisivo na retomada do pensamento do filósofo (CÔRTES, 2003; VIEIRA PINTO, 1982). Eis uma rápida tematização da vida e obra de Álvaro Vieira Pinto. Remetemos o leitor ao trabalho de Rodrigo Gonzatto e Luiz Merkle (2016) para um estudo biobibliográfico pormenorizado. Ademais ressaltamos o papel da Rede de Estudos Sobre Álvaro Vieira Pinto, que hospeda uma página na internet com diferentes conteúdos sobre o filósofo 3, um grupo no Facebook 4, além de outros recursos. Agora explicaremos o porquê de Álvaro Vieira Pinto ser um dos principais pensadores para o Brasil atual. Em primeiro lugar cumpre assinalar que Vieira Pinto não é 2 Sobre a atuação de Álvaro Vieira Pinto como tradutor, remetemos o leitor à página da Rede de Estudos Sobre Álvaro Vieira Pinto dedicada ao tópico: http://www.alvarovieirapinto.org/traducoes/ 3 Link para a página: http://www.alvarovieirapinto.org/. 4 Link para o grupo: https://www.facebook.com/groups/alvarovieirapinto/. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 511 um pensador do Brasil atual, pois ele não pode pensar mais nossa realidade. Mas, apesar de já ter morrido há mais de 30 anos, entendemos que Vieira Pinto desenvolveu diversas reflexões atualíssimas para o Brasil atual, das quais realçaremos especificamente suas reflexões sobre educação, tecnologia, desenvolvimento nacional e, justamente o tema principal deste trabalho; pensamento decolonial. Sobre a educação, há que se considerar especialmente a já citada difusão de “Sete Lições Sobre a Educação de Adultos” (1982). De nossa parte, expressamos que temos utilizado seu pensar como base para nossa atuação como educadores de educadores no âmbito da educação especial inclusiva (COSTA, 2017), o que se justifica pela abordagem crítica que o autor realiza do tema. Sobre a tecnologia, ressaltamos que “O Conceito de Tecnologia” (2005) é um tratado sobre o tema, que aborda tópicos como técnica, cibernética, automação, inteligência artificial, dentre outros, que tornam a obra relevante para diferentes campos, não apenas das ciências exatas, ligadas à chamada inovação tecnológica, mas também às ciências humanas e sociais, pois o autor se propõe a examinar a questão da técnica no horizonte da produção da existência humana, que é sempre desenvolvida a partir de determinados suportes sociais. Acerca do desenvolvimento nacional, entendemos que, rechaçando a falácia desenvolvimentista (DUSSEL, 2012, p. 82; VIEIRA PINTO, 2008, p. 174), o filósofo foi capaz de assinalar em duas obras (1956; 1960) como o desenvolvimento deve ser entendido como a busca por melhores condições de existência para as massas dos países subdesenvolvidos, como é o caso brasileiro. Ressaltamos que para tal melhoria é imprescindível atentar para a necessidade da garantia dos direitos humanos básicos, pois desenvolvimento nacional não equivale a crescimento econômico. É preciso um projeto de determinada comunidade para este fim e este projeto deve considerar as melhorias nas condições de existência das massas. Finalmente, sobre o pensamento decolonial, entendemos que o filósofo brasileiro deve ocupar lugar de destaque neste campo, entretanto devemos, antes de mais nada, realizar a própria conceituação de movimento decolonial. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 512 O CONCEITO DE MOVIMENTO DECOLONIAL A extensão deste trabalho não comporta uma discussão mais ampla acerca do movimento decolonial, por isso nos contentaremos em oferecer uma visão geral e bastante condensada. Entendemos o movimento decolonial como sendo um processo social, cultural, político e filosófico que luta pela melhoria das condições de existência dos povos dos países subdesenvolvidos, tanto os nativos quanto os diaspóricos (COSTA & MARTINS, 2018). Uma constatação básica é a de que, apesar do fim do colonialismo enquanto sistema sócio-político, ainda persistem diversas estruturações de poder gestados na modernidade colonial e que se manifestam tanto nas relações sociais, econômicas e políticas, quanto na produção e assimilação do conhecimento ou na experiência básica individual de cada pessoa em escala global. Estamos, portanto, em face à colonialidade, que “se refere aos padrões duradouros de poder que emergiram como resultado do colonialismo, mas que definem cultura, trabalho, relações intersubjetivas e produção de conhecimento muito além dos limites estritos das administrações coloniais” (MALDONADO-TORRES 2007, p. 243). A descolonização indica, embora em termos francamente metropolitanos, o processo de reversão da dominação colonial; já a decolonização se refere ao processo de denúncia e superação da colonialidade que ainda persiste apesar do fim do colonialismo. Diferentes grupos, a partir de variadas situações de fala e matrizes conceituais, têm realizado críticas que entendemos ser decoloniais, como o grupo de estudos pós -coloniais, de origem britânica; as epistemologias do sul, bastante vinculadas à produção de Boaventura Sousa Santos e Maria Paula Meneses; os estudos subalternos, mais ligados ao contexto indiano; e o grupo modernidade/colonialidade, que é o mais próximo ao contexto latinoamericano (BALLESTRIN, 2013). Todos eles, portanto, são englobados pelo conceito de movimento decolonial, sendo que o último grupo foi o que levou mais adiante o processo de denúncia, crítica e superação da colonialidade, oferecendo a alternativa mais ousada de superação do cânone eurocêntrico. Entendemos que, especialmente no âmbito intelectual, o movimento decolonial permite aos condenados da terra (FANON, 2005), aos esfarrapados do mundo (FREIRE, 2016), aos habitantes do vale de lágrimas (VIEIRA PINTO, 2008), aos parasitados socialmente (BOMFIM, 2008) “aprenderem a dizer a própria palavra”, conforme o título do prefácio de “Pedagogia do Oprimido” (FREIRE, 2016), o que significa re-conhecer que, Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 513 muito embora o eurocentrismo surgido a partir da modernidade tenha feito com que a filosofia europeia, a cultura europeia e o modelo de sociedade europeu foram amplificados e hipostatizados à própria noção de filosofia, de cultura e ao próprio modelo de sociedade (DUSSEL, 2017, p. 87), outros modos são tão autênticos quanto. O PENSAMENTO DECOLONIAL DE ÁLVARO VIEIRA PINTO Para efetivamente tratarmos do objetivo principal deste trabalho, ou seja, realizarmos a demonstração da pertinência das reflexões de Álvaro Vieira Pinto para o pensamento decolonial, poderíamos partir de diferentes pontos reflexivos. Entretanto, escolhemos uma citação bastante significativa do próprio filósofo brasileiro para iniciar tal empreendimento, pois, entendemos, sintetiza tanto o seu modo de pensar, as constatações reflexivas a que chegou, quanto duas linhas importantíssimas de investigação a que deve se debruçar o movimento decolonial. Vieira Pinto afirma que “o dever dos pensadores críticos está em arremeter contra essa inércia mental que, na verdade protege uma clamorosa falsidade histórica. Tão importante quanto elaborar a teoria do atraso do povo pobre é elaborar a da superioridade das nações metropolitanas” (2005, vol. I, p. 328). Para entendermos plenamente esta citação, e explicitar o modo de pensar do filósofo, deveremos contextualizá-la em meio à totalidade da obra de que foi retirada. Oriunda do capítulo IV de “O Conceito de Tecnologia”, em que o autor se propõe a deslindar quatro acepções possíveis do termo “tecnologia”, ou seja, tecnologia enquanto a ciência da técnica; tecnologia como equivalente pura e simplesmente à técnica; tecnologia enquanto o conjunto de todas as técnicas de que dispõe determinada sociedade em qualquer fase de seu desenrolar histórico; e tecnologia enquanto ideologização da técnica, tal citação se insere na discussão específica do último significado. Nele o autor vinha discutindo as formas como as nações dominantes, e isso é feito também através de grupos empresariais lá sediados, diga-se de passagem, ao passo em que exportam tecnologia para os países subdesenvolvidos, exportam também a ideologia que lhes convém, como a ideia de que só as nações desenvolvidas podem produzir tecnologia, conceituá-la, e de quebra oferecer aos países subdesenvolvidos os modelos políticos que, se seguidos, garantirão seu desenvolvimento. Vieira Pinto advoga a necessidade dos povos habitantes das nações exploradas desenvolverem a consciência de si, ao invés de simplesmente assimilar o pensamento alheio. Aqui temos uma antecipação extremamente lúcida do giro decolonial, Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 514 tópico caro ao movimento decolonial (BALLESTRIN, 2013); o filósofo reconhece que, mesmo nas condições deploráveis de existência do povo de um país como o Brasil, é possível exprimir daí sua compreensão de mundo. Desta forma o autor manifesta, tal como em outras obras, a importância daquilo que entendemos como o “situar -se decolonial”. O modo de pensar de Vieira Pinto amiúde lança mão deste situar-se que não apenas dá voz aos povos oprimidos, mas também suscita o processo de tomada da consciência de si e o protagonismo para o desenvolvimento nacional. O situar-se decolonial é um processo que se inicia pela atitude de conscientização da realidade nacional oprimida, o que implica na denúncia dos diferentes traços de colonialidade que podem aí manifestar-se, como nos âmbitos do saber, do poder, do ser etc., e, ao mesmo tempo, aponta para a sua superação crítica. Vemos isso, por exemplo, em “Consciência e Realidade Nacional” (1960, vol. II, p. 201 e segs.), quando o autor assinala que o trabalho alienado tem sido objeto de investigação filosófica, entretanto, os pensadores que se debruçaram sobre esse tema de capital importância originalmente o fizeram a partir de uma perspectiva metropolitana. No caso dos países subdesenvolvidos: o trabalhador é sobretudo despojado da oportunidade de modificar o estado econômico do seu país, de contribuir para a alteração qualitativa deste. Há aqui a alienação coletiva do trabalho, é o país todo que se priva do que é seu em proveito de outrem, de quem o financia. Este segundo tipo de alienação, quase totalmente ignorado pelos sociólogos dos centros dominantes, é primordial para a nação periférica, supera o primeiro em importância, pois é causa de espoliação geral, de alienação para todos (1960, vol. II, p. 203). Assim, a alienação internacional do trabalho assume relevância primordial no caso do trabalhador brasileiro, o que é diferente nos casos metropolitanos, como na Alemanha, França ou Inglaterra, por exemplo. Tal constatação é bastante próxima à sexta interpelação da filosofia da libertação proposta por Enrique Dussel, que considera a crescente distância entre “a riqueza do capitalismo central do Norte e a crescente miséria do capitalismo periférico do Sul” (2017, p. 69, grifos no original). Na mesma obra o filósofo argentino cita outras cinco interpelações: a luta contra o racismo; contra a opressão da mulher; em prol do trabalhador que se vê expropriado de forma injusta dos frutos do seu trabalho; em prol das futuras gerações, através do empreendimento ecológico; contra o eurocentrismo acadêmico, filosófico e cultural e seu sucedâneo estadunidense, todas elas, diga -se de passagem, são abordadas pelos autores vinculados ao movimento decolonial e podem receber contribuições do pensar de Álvaro Vieira Pinto. Por outro lado, ainda a partir do situar-se decolonial, Vieira Pinto foi capaz de deslindar diferentes falsidades históricas, como aquela, trabalhada também por Aníbal Quijano (2005), que denuncia a ideologia da Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 515 existência de raças humanas e que concebe que algumas são propensas à direção e outras à subalternidade, algumas à conquista e outras à submissão. Vieira Pinto aborda est e tópico especialmente em “A Sociologia dos Países Subdesenvolvidos”, mostrando como, a partir de uma transladação embusteira da biologia para a sociologia, é feita a escamoteação do quadro de espoliação econômica que amarga os contornos existenciais das nações rapinadas. Ao invés de ser reconhecido o fato de que os europeus espoliam economicamente os “povos de cor” e que isto é responsável pela sua miséria, são utilizados outros expedientes ideológicos, como a justificativa da raça, que no caso dos países pobres é inferior, ou propensa à preguiça, suscetível, ao clima, que dificulta o progresso, à posição geográfica etc. (2008, p. 87 e segs.). Portanto temos aqui a constatação reflexiva de que a explicação oferecida pelos pensadores metropolitanos para o estado de subdesenvolvimento e, concomitantemente para a sua superioridade, é fruto de uma ideologia escamoteadora da dinâmica real de espoliação econômica dos países subdesenvolvidos. Já acerca da expropriação vivida pelo trabalhador dos frutos de sua labuta, podemos recorrer ao ensaio de Vieira Pinto intitulado “Por que os ricos não fazem greve?” (1962b). Nele o autor demonstra que a ação grevista é específica dos grupos trabalhadores, pois sociologicamente os ricos não trabalham, capitalizando ao invés dis so, o que é feito pela exploração do labor daqueles que permanecerão pobres. A partir disso, vemos surgir a relevância de duas linhas de investigação a que deve se dedicar o movimento decolonial; o porquê do atraso dos países subdesenvolvidos e o porquê da superioridade das nações metropolitanas. Neste ponto temos algumas considerações a fazer para não cairmos em reducionismos. Entendemos que o atraso deve ser visto em perspectiva das conquistas mais adiantadas pela Humanidade, aquilo que pode ser facultado à totalidade humana de uma maneira geral, e não como sendo um caminho linear e já preestabelecido, quase sempre pelos exploradores metropolitanos, a ser seguido pelas nações atrasadas. Já rechaçamos a falácia desenvolvimentista, cremos ser desnecessário retomar o tema. O atraso significa a falta ou impossibilidade de acesso aos bens, e aqui entendemos este termo de acordo com as elucidações de Álvaro Vieira Pinto (2008, p. 304 e segs.), mais adiantados que a comunidade humana produziu até então, o que envolve as condições políticas de perda de soberania ou a privação do exercício do trabalho para si por que passam as nações espoliadas. Além disso, a categoria dialética de totalidade, ou seja, aquela que “considera qualquer problema particular da realidade sob o ângulo de percepção do todo de que participa e que o engendra” (VIEIRA PINTO, 1969, Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 516 p. 327), torna necessário considerar que as duas linhas tem como aspecto essencial sua interatuação. É preciso considerar, para abordar o relacionamento entre atraso dos países subdesenvolvidos e a superioridade dos metropolitanos, a correlação entre os diversos processos nacionais, evitando comparações qualitativas ineptas e mal-ajambradas; as formas de aproveitamento dos recursos disponíveis em cada contorno nacional ; a consciência política que move cada projeto nacional e a congregação de esforços sólida ou dispersa que caracteriza tal consciência. Essas considerações permitem-nos concluir que motivos objetivos levaram algumas comunidades nacionais em que se fragmenta a comunidade humana a apresentarem graus de desenvolvimento desiguais. Álvaro Vieira Pinto, neste contexto, afirma que “a ascendência dos países mais ricos se deve a um processo de espoliação das áreas que irão permanecer atrasadas” (1969, p. 328), indicando explicitamente o passado colonial, marcado pelo esmagamento de culturas autóctones e exploração econômica por forças não nacionais, como sendo o fator responsável pela superioridade econômica e cultural de uns e a subalternidade de outros (1969, p. 253). Eis-nos em face ao desnudamento da indissociabilidade entre modernidade e colonialidade, quando “a experiência humana de 4500 anos de relações políticas, econômicas, tecnológicas, culturais do ‘sistema inter regional’ será agora hegemonizada pela Europa – que nunca tinha sido ‘centro’ e que, nos melhores tempos, só chegou a ser ‘periferia’” (DUSSEL, 2012, p. 53). As aproximações entre Dussel e Vieira Pinto são numerosas, por exemplo a crítica que ambos fazem ao academicismo ocioso e estéril, descomprometido com a realidade nacional e seus problemas (DUSSEL, 2012, p. 66; VIEIRA PINTO, 1962a, p. 40 e segs.); a denúncia e rechaço ao eurocentrismo fundado em uma universalidade abstrata humana em geral, mas que se trata, na verdade, de uma universalização meramente social, europeia especificamente, e não lógica, forjando-se assim, um padrão europeu (DUSSEL, 2012, p. 69; 2017, p. 87; VIEIRA PINTO, 2005, vol. I, p. 229, 418); a já citada crítica à falácia desenvolvimentista; a crítica à adoração mística ao proletariado (DUSSEL, 2012, p. 336; VIEIRA PINTO, 1960, vol. I, p. 144); e tantos outros pontos. Ressaltamos que até mesmo em relação à ética é possível vislumbrar aproximações entre os dois autores; tema que estamos trabalhando e em breve publicaremos. Por fim, mas longe de pretender exaurir esta aproximação, há que se considerar a produção de Constâncio (1984), que discute a proximidade entre as concepções de filosofia e libertação segundo Dussel e Vieira Pinto. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 517 A produção de Álvaro Vieira Pinto também pode contribuir para a discussão de alternativas para a re-existência dos povos oprimidos. Catherine Walsh, discutindo este conceito, afirma que, enquanto a resistência foi responsável pela sobrevivência dos valores e cultura dos povos subjugados, é necessário que a práxis da decolonialidade atente para a produção de novas configurações existenciais capazes de propor projetos outros de sociedade e de vida apesar das condições adversas, como a desumanização, racialização e discriminação (MIGNOLO & WALSH, 2018). O filósofo brasileiro amiúde pontua a necessidade de alternativas locais de resistência às imposições e chantagens imperialistas, assinalando alternativas libertadoras das condições de existência das massas oprimidas (VIEIRA PINTO, 1960; 1969; 2005; 2008). Outra linha reflexiva de Álvaro Vieira Pinto que converge com as produções de autores do movimento decolonial é o papel desempenhado pelo escol da nação subdesenvolvida que, quase invariavelmente, pode ser caracterizado como sabotador. O filósofo afirma que: a drenagem econômica do país subjugado não se consumaria com facilidade, se não fossem previamente estabelecidas as condições políticas para a obtenção desse resultado. Tais condições resumem-se na entrega do poder na área saqueada a um grupo que se mancomuna com os extorquidores, em geral por eles instalados na posição de mando que ainda ocupa, e opera sob as ordens da potência exterior (2008, p. 265). Os donos do poder dos países subdesenvolvidos são corrompidos pelas forças interessadas na manutenção da colonialidade, agindo como verdadeiros solapadores do projeto de libertação nacional. Poderíamos citar outras tantas passagens em que Vieira Pinto mostra como agem os grupos dirigentes que intervém em favor de conveniências estrangeiras (1960, vol. II, p. 236, 321; 2008, p. 98, 182, 237, 275, 319,). O autor denuncia também como os grupos dominadores possuem sob sua influência e comando um séquito de pensadores devotados a repetir as cantilenas ideológicas para a manutenção do quadro de dominação, os quais, pelo menos no caso da sociologia, o filósofo emprega o termo de “sociologetas”, pois são sociólogos e apologetas da dominação (FAVERI & NOSELLA, 2007; VIEIRA PINTO; 2008, p. 113 e seg.). Tais reflexões são bastante próximas às do pensador latinoamericano Frantz Fanon, um dos grandes nomes do pensamento decolonial, quando assinala a proximidade entre a burguesia do país subjugado e os colonizadores (2005). Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 518 Nesta mesma linha de raciocínio, outro ponto de convergência entre Fanon e Vieira Pinto se refere ainda à intelectualidade do país oprimido, pois, Fanon denuncia que em seu monólogo narcisista a burguesia colonialista acaba por cristalizar a ideia de que: as essências permanecem eternas, a despeito de todos os erros imputáveis aos homens. As essências ocidentais, é claro. O colonizado aceitava a justeza dessas ideias e podia-se descobrir, num recanto do seu cérebro, uma sentinela vigilante encarregada de defender o pedestal greco-latino. Ora, ocorre que, durante a luta de libertação, no momento em que o colonizado retoma contato com seu povo, essa sentinela falsa se pulveriza (FANON, 2005, p. 63). Desta forma o autor expressa imperiosidade da tomada de consciência do povo colonizado do valor da criação autóctone, pois esse aparato cultural cheio de p ó helênico não contribui em nada com a luta de libertação nacional. Vieira Pinto, por sua vez, discute o modo como as universidades, instituição não raro a serviço das classes dominantes e alheias ao povo, tendem a divulgar a falsa ideia dos valores eternos. Além do mais vale ressaltar que, considerada a média dos expoentes universitários, é justo dizer que eles “só sabem o que realmente não importa saber, porque o que entendem que importa saber é o saber que importam do estrangeiro” (1962a, p. 43, grifos no original). Tal como é possível perceber, na produção de Álvaro Vieira Pinto há um comprometimento crítico com a questão da nacionalidade. Longe de cair em um nativismo ou fascismo xenófobo, seu pensamento é sensível à constatação de que o ser humano é um ser que está no mundo, e é no mundo que o ser humano deve ser, ou seja, produzir sua existência. Eis uma assunção bastante óbvia derivada das reflexões da filosofia da existência. Entretanto, corrigindo este conceito de procedência germânica a partir dos recursos que são desvelados pela nossa própria língua, o filósofo demonstra como é possível entender a diferença entre estar e ser no mundo, o que é vedado às línguas alemã, inglesa e francesa, as hegemônicas do “ocidente”. Mostrando que o ser humano está no mundo, isto é, localiza-se junto a entes animados e inanimados, que manifestam-se a partir do ser inorgânico, orgânico e social, para ser no mundo, ou seja, constituir-se enquanto existente no âmbito onde lhe é dado estar, o filósofo enriquece nosso ent endimento acerca da condição humana, deslindando o aspecto estático, estar no mundo e o aspecto dinâmico, ser no mundo, da existência humana. Mais do que isso. Vieira Pinto mostra que o “mundo” em que se situa o ser humano apenas abstratamente pode ser considerado nessa estéril e abrangente generalidade; dito de maneira concreta, o mundo se apresenta ao ser humano enquanto nação, pelo menos no presente período histórico, pois a abertura que permite o desvelamento apreensivo da realidade depende justamente da categoria nacionalidade; a Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 519 nação exerce a mediação entre eu e o mundo, eu e a compreensão do mundo, eu e a ação que incide sobre o mundo. A questão da temporalidade também permite o desvelamento da nacionalidade, pois a transformação da nação no decorrer do tempo histórico faculta ao ser humano o apreender temporal, que é aspecto essencial da experiência humana. Segundo Vieira Pinto: “não há uma verdade com respeito ao mundo como totalidade politica final, porque ninguém vive diretamente nele, ninguém o tem por moldura referencial, mas todo homem existe sempre em círculos mais estreitos, do qual aquele é apenas o envolvente extremo” (1960, vol. II, p. 144). Todas essas condensadíssimas reflexões foram retiradas de “Consciência e Realidade Nacional” (vol. II) com o propósito de mostrar outro ponto de convergência entre o pensamento de Álvaro Vieira Pinto e o movimento decolonial. Joaze Bernardino Costa, Nelson Maldonado-Torres e Ramón Grosfoguel, ao prefaciarem recente obra, assinalam que diferentemente do “conhecimento desincorporado e sem localização geopolítica, o projeto decolonial assume a necessidade de afirmação corpo-geopolítica para a produção do conhecimento” (2018, p. 13), considerando o epistemicídio que foi empreendido ao longo da dominação colonial, pois, assinala Vieira Pinto, “a batalha econômica dos exploradores e poderosos nunca esteve separada de outra, a batalha pela submissão cultural do mundo pobre” (2008, p. 63), processo este que foi deslindado também por Dussel (2017, p. 30 e segs.), devemos rechaçar a universalidade corrompida e ideológica que seria mais bem expressa pelo termo “europeidade”. Catherine Walsh também pode ser assinalada como autora que traz reflexões convergentes a esta discussão quando afirma que o fazer decolonial requer a consideração dos locais explícitos em que a decolonialidade é trabalhada; de onde, com quem, e como as ações que abrem fissuras e rachaduras no edifício moderno-colonial são empreendidas (MIGNOLO & WALSH, 2018). Consideramos a busca por ser cosmopolita um grave equívoco com proporções inimagináveis, pois sua influência danosa espalha-se por diferentes campos. No âmbito intelectual se manifesta em um universalismo estúpido e descompromissado com os problemas e particularidades da realidade nacional, daí então surge uma compreensão completamente tapada da realidade circunstante, ou seja, ao invés de examinar -se o contexto em que o pensador vive e está inserido, parte-se da produção alheia, das ideias alheias, isto é, do pensamento estrangeiro, quase sempre europeu ou estadunidense, para então tentar fazer caber a realidade brasileira nesta formulação bizarra. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 520 Provoca bastante raiva, a raiva digna de que fala Paulo Freire (2017), o fato de que o ISEB propunha discussões já no final da década de 1950 sobre colonialismo e alienação cultural, ideologia do colonialismo, colonialismo e nacionalismo, aspectos sociológicos do imperialismo 5, dentre outros temas que demonstram ser bastante próximos às discussões decoloniais, mas foi uma instituição vilipendiada ao longo do processo que culminou no Golpe de 1964, e partir daí sufocada com um véu do esquecimento. Por isso advogamos a necessidade de re-pensar os fundamentos das críticas progressistas que o Brasil precisa. Há toda uma geração de pensadores isebianos que foram silenciados pela ditadura e deliberadamente negligenciados por pensadores interessados em escamotear toda a produção nacionalista e fazer aceder no lugar uma visão cosmopolita, “pauliuspiana”, que nega qualquer originalidade aos brasileiros e qualquer possibilidade de pensar os graves problemas brasileiros na perspectiva dos interesses nacionais, resguardando, ao invés disso, como consequência inevitável, interesses estrangeiros. Fernando Henrique Cardoso (2016), por exemplo, justificou tal negligência explicitando sua crença de que no ISEB fazia-se ideologia, enquanto na USP fazia-se ciência. Tal afirmação só pode vir de alguém tão inepto quanto os que acreditam em neutralidade ideológica. Para encerrar esta breve enumeração de aproximações entre Álvaro Vieira Pinto e o pensamento decolonial, citemos novamente Fanon, quando diz que “o intelectual colonizado que quer fazer uma obra autêntica deve saber que a verdade nacional é, primeiramente, a realidade nacional. Ele deve ir até o lugar em ebulição onde se prefigura o saber” (2005, p. 259). CONSIDERAÇÕES FINAIS A extensão deste texto não nos permite ir mais adiante na tarefa de aproximação das reflexões de Álvaro Vieira Pinto ao pensamento decolonial. Entretanto, cremos ser clara a necessidade da reconsideração do filósofo brasileiro como uma figura de destaque para esse empreendimento. Acima de tudo, não apenas a crítica ao já estabelecido, é preciso ir à sua superação, a proposição do novo, e neste ponto Vieira Pinto tem muito a dizer. 5 Cf. projeto de lei em que são citadas algumas das atividades do ISEB. Texto resgatado por Ariel Herbert e postado no Grupo da Rede de Estudos Sobre Álvaro Vieira Pinto no Facebook. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=5B2B3D5BBEA4EF7E0F646F4BA 2DF93AC.proposicoesWebExterno1?codteor=1203098&filename=Dossie+-PL+2714/1961. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 521 Enfatizamos a necessidade de uma nova política de desenvolvimento nacional. Já salientamos que, de acordo com as reflexões de Vieira Pinto, o desenvolvimento nacional deve ser entendido como a busca por melhores condições de existência para as massas dos países subdesenvolvidos, o que deve ser alcançado através da modificação das relações sociais em vista da sua humanização. É preciso considerar também que o subdesenvolvimento não é primordialmente uma questão semântica ou conceitual, trata -se na realidade, da situação vivida de milhões de brasileiros que veem a produção da sua própria vida como uma luta constante, de forma que o filósofo pôde dizer que o projeto de desenvolvimento nacional se trata de luta de vida ou morte para as massas que se encontram em deploráveis condições de existência (VIEIRA PINTO, 1960, vol. II, p. 215). Diante destas condições de existência, vislumbramos outro tópico que enfatiza a pertinência do pensar do filósofo brasileiro ao pensamento decolonial. Ao passo em que se debruça sobre o contexto vital das massas dos países subdesenvolvidos, considerando a imperiosidade de cuidar para que o vital seja valorizado em sua condição material cheia de necessidades básicas (DUSSEL, 2012), Vieira Pinto contribui diretamente (1960, 1969, 2005, 2008) para o enfrentamento à necropolítica imposta pelos poderes imperialistas (MBEMBE, 2018). Precisamos, por isso mesmo, de uma política outra. Segundo Álvaro Vieira Pinto, política é “a capacidade que o homem adquire de exercer conscientemente a direção do curso histórico da existência, levando-o a formas mais perfeitas de convivência entre todos os indivíduos no ato da produção coletiva” (2005, vol. I, p. 208), o que contempla, naturalmente, a estruturação das relações sociais; portanto eis-nos em face à necessária luta pela transformação nacional rumo à libertação também nacional, o que será garantido quando for atingido aquilo que Vieira Pinto entende como sendo o princípio supremo de toda ética humanista: o de que o ser humano deve trabalhar para si, não sendo espoliado dos frutos de seu trabalho e fazendo a si mesmo cada vez mais rumo à verdadeira humanização, ou seja, realizando suas capacidades de bem -estar, plenitude moral, fruição da felicidade e a criação cultural (1969, p. 343). Deixemos de lado as máscaras brancas; nossas peles negras não precisam de nenhum fingimento. Nossa identidade é legítima, nosso originário modo de ser é autêntico; é preciso abandonar qualquer tentativa de ser europeu, de se comparar aos europeus ou procurar a tutela de seus ídolos decadentes. É preciso buscar uma nova humanidade, porque a Europa que fala constantemente de humanização, espezinha e humilha os seres humanos em todos os cantos do globo, até mesmo em suas esquinas. Eis o que nos exorta Fanon em Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 522 convergência com Álvaro Vieira Pinto, quando propõe a necessidade de um pensar autóctone, da busca por criações conceituais capazes de suprimir diferentes embustes ideológicos, inclusive os que querem nos fazer esquecer que “a desgraça da exploração deve acabar para todos os homens” (VIEIRA PINTO, 2008, p. 94). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BALLESTRIN, L. América Latina e o Giro Decolonial. 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O autor realiza um estudo histórico, fenomenológico e pedagógico sobre a entidade de religiões de matriz africana conhecida como Exu. Soares propõe, a partir das propriedades de Exu apresentada ao longo da obra, uma maneira afro-brasileira e descolonizada de lidar com os processos ontológicos e educacionais. PALAVRAS-CHAVE: Exu; Filosofia Afro-brasileira; Educação; Saberes descolonizados. ABSTRACT The present work is a review of “As Vinte e Uma Faces de Exu na Filosofia Afrodescendente da Educação” (Twenty one faces of Exu on Afrodescendent Philosophy of Education) . This book written by philosopher Emanoel Luís Roque Soares, professor at Federal University of Recôncavo da Bahia (UFRB). The author achieves a pedagogical, phenomenological, historical study about a god of afro-brazilian religions known as Exu. Soares proposes, through the properties of Exu presented over the book, a decolonized and afro-brazilian manner to deal with educational and ontological processes. KEYWORDS: Exu; Afro-brazilian philosophy; Education; Decolonized wisdom. SOARES, Emanoel Luís Roque. As vinte e uma faces de Exu na filosofia afrodescendente da educação - Cruz das Almas: EDUFRB; Belo Horizonte: Fino Traço, 2016. As Vinte E Uma Faces de Exu na Filosofia Afrodescendente da Educação é uma obra de 2016, cuja autoria é do Profº Dr. Emanoel Luís Roque Soares na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Este, atualmente é professor da UFRB, no campus de AmargosaBA. Graduado no bacharelado em Filosofia pela Universidade Católica de Salvador, mestre em educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), doutor em educação pela mesma universidade e pós-doutor em educação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). O livro se trata de uma pesquisa do autor adaptada em um livro que se divide em seis partes, basicamente, consistem em, respectivamente: Introdução, Abertura, Método, Motivações, Conceitos e a Conclusão. 1 Bacharel em Humanidades pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. Graduando em Relações Internacionais pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia AfroBrasileira. E-mail: macaulaypereirabandeira@gmail.com. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 525 Na Introdução, o autor apresenta um breve resumo sobre cada parte da pesquisa, apresentando os capítulos e suas subdivisões. O objetivo principal do trabalho é analisar os múltiplos sentidos e conceitos que são atribuídos a Exu. O autor busca entender quais são as características que são atribuídas a seu objeto e quais são os elementos que seu próprio objeto apresenta enquanto fenômeno. Toda discussão conceitual que Soares empreende objetiva convencer o leitor que Exu é um fundamento estruturante da cultura, da identidade e da história afrodescendente, portanto, Soares argumenta que este orixá conserva um princípio pedagógico gerador de conceitos filosóficos. Além disso, ainda na introdução, o autor apresenta a metodologia usada na pesquisa. É importante destacar que o método empregado na pesquisa consiste numa apropriação de outras metodologias conhecidas nas ciências sociais, tal como a fenomenologia, a genealogia, entrevistas e interpretação dos mitos de Exu das religiões de matrizes africanas, principalmente do candomblé, passados através de gerações a gerações na tradição afro-brasileira através da oralidade. As motivações que levam Roque Soares a realizar o trabalho são, brevemente, apresentadas na Introdução. A boçalidade desenvolvida conceitualmente no capítulo Conceitos, é o ímpeto prevalecente que leva o autor a produzir um trabalho de filosofia africana. A análise epistemológica do que seria o preconceito, a explicação dos fundamentos históricos do racismo e a crítica ao eurocentrismo vigente nas universidades brasileiras também configuram motivações deste trabalho. Na abertura, o autor apresenta três inquietações, duas de ordem técnica e uma de ordem teleológica. A primeira inquietação é de natureza técnica pois se refere a ortografia das palavras em iorubá usadas no escopo do texto. Soares discorre sobre a perspectiva de diferentes autores que estudam a cultura afro-brasileira e se utilizam das palavras de idiomas africanos presentes em várias dimensões da cultura afrodescendente. Alguns autores optam por escrever as palavras em iorubá, outros preferem usar palavras em iorubá “aportuguesadas”, outros optam por usar a descrição fonética das palavras. Neste caso, como o objeto do autor é o orixá Exu, presente nas religiões de matrizes africanas de origem iorubá, Soares, igualmente, instrumentaliza-se de palavras em iorubá para explicar os fundamentos do objeto de sua pesquisa. Entretanto, o autor se apropria das três diferentes abordagens sobre o uso de verbetes em iorubá, e apresenta a justificativa de que ao longo da construção do trabalho, esteve influenciado por diferentes autores, e por isso, no decorrer do texto, por exemplo, Soares emprega as palavras: “Exú”, “Esù” e “Exu” para designar o nome do seu objeto. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 526 A segunda inquietação, também de ordem técnica, trata-se do conteúdo da letra do cântico de saudação a Exu que está inserido na Abertura, este canto a Exu já apresenta em suma o conteúdo trabalhado na tese a partir da poesia e do mito. Soares afirma que não há nada mais significativo para entender a filosofia e a educação do que a poesia e o mito, e por isso, há muitas passagens da obra nas quais a poesia e o mito são fundamentais, contudo, o conteúdo não se finda na poesia e no mito, são partes dele. A terceira inquietação é de ordem teleológica e tem relação com a segunda inquietação. O cântico de ode a Exu se localiza na abertura do trabalho pois como ensina a tradição ketu de candomblé, este orixá é o responsável pela abertura dos caminhos, encarregado de abrir todos os ritos, de passagem de vida a morte, de oferenda às divindades e até mesmo é o primeiro orixá a ser saudado nos preceitos da religião. Neste sentido, os cânticos de ode à Ogum e Oxalá também são colocados no corpo do texto por justificativas de ordem teleológicas. As inquietações apresentadas pelo autor são plausíveis. A opção de Soares em se instrumentalizar de perspectivas variadas sobre o uso dos verbetes em iorubá se justifica no princípio da polissemia e polifonia presente na análise do autor sobre Exu. Contudo, sua posição pode vir a confundir o leitura do leitor leigo na cultura afrodescendente sobre suas conclusões. A segunda inquietação resulta na discussão aprofundada, posteriormente, pelo autor no capítulo Conceitos. O mito e a poesia são primordiais na compreensão da filosofia em geral, e em particular, da filosofia africana ou afro-diaspórica2. O mito é o meio pelo qual se pode encontrar os fundamentos da cultura de um povo, consequentemente, de sua filosofia. Por isso, Soares argumenta: Falar de uma mitologia africana, geradora de uma filosofia africana, é dialogar com os mitos e os pensadores africanos perscrutando o que eles querem dizer através dos seus textos, pois a filosofia é a abertura para um diálogo, é a abertura para um diálogo, é a mais pura oralidade mítica que um dia virou escrita (SOARES, 2016, p. 59). A posição de Soares sobre o mito é coerente pois legitima outras formas de conhecimento para construção da análise de objetos os quais a compreensão extrapola as ferramentas teóricas e metodológicas da tradição filosófica ocidental que desde de Platão, passando por Kant, Descartes e Hegel, se recusa a entender o mito como possibilidade de conhecimento filosófico. No capítulo Metodologia, Soares subdivide em três partes: "A fenomenologia e genealogia como métodos de pesquisa", "Exu e a encruzilhada de conceitos: Esútósin" e a "Cronologia". A fenomenologia consiste no método que busca entender a essência das coisas 2 Afro-diaspórica se refere às culturas das comunidades afrodescendentes nas Américas, Europa, Ásia. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 527 em geral e a explicação ontológica dos seres e das coisas. A apropriação desta metodologia às especificidades de sua pesquisa tenciona o autor a refutar a contradição regimental da tradição filosófica de autores ocidentais. A dicotomia entre essência e aparência, o real e irreal, o objetivo e o subjetivo são descartadas enquanto primordiais para a compreensão do objeto. Deste modo, Soares adverte que é preciso repensar radicalmente o pensamento e o comportamento para a aplicabilidade coerente desta modalidade de redução fenomenológica. Ele propõe uma práxis metodológica que se fundamenta em despojar-se das concepções previamente estabelecidas sobre o objeto, aproximação do sujeito e objeto a tal ponto que se tornem um só, interrogar-se constantemente acerca de sua consciência empírica, existencial e psicológica sobre o objeto, comparar o conhecimento sobre o objeto, a priori e a posteriori à pesquisa e por fim, eliminar qualquer ideia de neutralidade do sujeito pesquisador. A genealogia é o método que se constitui a partir da busca pela percepção do não-visto, não-dito, não-documentado. Trata-se do método no qual o investigador aspira encontrar as contingências sobre o objeto estudado. Isto é, aspira apreender aquilo que não foi percebido, o entorno de determinado objeto e não sua essência em si. O autor aplica a genealogia da moral de Nietzsche adequada a seu objeto, Exu. Soares defende esta metodologia, tendo em vista que os sentidos da moral analisada por Nietzsche tal como os significados de Exu percebidos por ele, tiveram seus significados manipulados pelos interesses das classes dominantes no contexto das sociedades que se inserem. O significado e a importância de Exu para o povo afrodescendente, historicamente, tem sido escamoteado e deturpado pelas instituições dominantes na sociedade brasileira. A genealogia enquanto metodologia foi absorvida pelo autor porque sua aplicação exige que a oralidade seja considerada como meio de transmissão de informações, o que implica, no caso desta investigação, que toda explicações sobre Exu sejam extraídas dos mitos das religiões de matrizes africanas. Ademais, a genealogia também objetiva entender às aparências de determinado fenômeno, o que para Soares é pertinente, pois seus esforços se concentram em compreender os significados de Exu da maneira que eles se apresentam. Em “Exu e a encruzilhada de conceitos: Esútósin”, trata-se das diferentes concepções de Exu de acordo com cada tradição do candomblé. Na tradição Nagô, Exu representa o movimento, a energia vital que habita em todos os seres e coisas. Os nagôs, foram os africanos trazidos majoritariamente da região ocidental do continente africano, eram falantes de Iorubá e vieram, em sua maioria, para o estado da Bahia, inclusive foram os maiores responsáveis pela construção cultural deste estado. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 528 Na tradição Bantu, mais ao sul do país, Exu é conhecido como Bombogir, Mavambo e Ungiga, e é cultuado nas casas de candomblé Angola-Congo, sendo reconhecido como um Ekic, equivalente a orixás para os Nagô. Já os Fons, também da parte ocidental do continente africano, falante do idioma mahi, Exu é equivalente a Legbá. Soares discute sobre a questão da opressão cultural que atribui sentidos pejorativos a Exu, ao longo da história do povo afro-brasileiro, portanto se Exu era entendido como um rei em alguns contextos africanos por outro lado foi reduzido a “demônio”, “satanás”, “coisa ruim” na sociedade colonial até os dias atuais. Em “Cronograma”, Soares realiza um cronograma conceitual sobre os significados que Exu apresenta como crença em trabalhos acadêmicos. Este cronograma é o resultado da aplicação da fenomenologia e genealogia enquanto metodologia. Vale lembrar que o cronograma parte do ano de 1500 até 1986. No ano de 1600, Soares aponta que já haviam pelo menos 7 mil negros em terras brasileiras, portanto, Exu já era cultuado enquanto divindade nesta época. Em 1764, a Irmandade de Nossa Senhora dos Rosários das Portas do Carmo é deslocada para a Igreja da Barroquinha (fundada em 1726), esta mudança possibilitou o surgimento do primeiro candomblé, estima-se por volta de 1790. Em 1835, acontece a Revolta do Malês, neste período, as religiões de matrizes africanas já estavam sendo perseguidas sistematicamente, e como fora uma revolta de escravizados nos quais, segundo João Reis, a maioria eram adeptos ao culto aos orixás, Exu passa a ser demonizado devido a representar uma força poderosa de mobilização dos negros. Em 1900, Nina Rodrigues em “Os Africanos no Brasil”, identifica Exu como mal e Obatalá como bom. Em 1910, Mãe Aninha, oriunda da Casa Branca, consolida o terreiro Ilê Axé Apô Afonjá em São Gonçalo do Retiro. Em 1916, Manuel Querino é o primeiro afrodescendente a tratar da cultura negra cientificamente e atribui sentidos negativos a Exu. Em 1976, legaliza-se os terreiros de religiões de matrizes africanas no Estado da Bahia. Após a demonstração do cronograma, o autor reafirma a importância da genealogia como metodologia pois esta revela as tensões e convergências sobre os significados do objeto enquanto fenômeno e produz o que Deleuze chama de encruzilhada de problemas, essencial à reflexão filosófica. A metodologia proposta por Soares se adequa às necessidades de sua pesquisa pois o autor está investigando um fenômeno que carrega diferentes sentidos, e é de ordem metafísica, portanto, a genealogia como ferramenta se torna eficiente para revelar os significados não vistos. Por exemplo, no contexto do Brasil Colonial e Imperial, a Igreja Católica atribui sentidos pejorativos e até satânicos sobre as crenças dos africanos escravizados, o autor em Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 529 “Cronologia”, demonstra que a sua aplicação da sua metodologia possibilita compreender o objeto para além das deturpações que, historicamente, são apresentadas sobre Exu. No capítulo “Motivações’, o autor subdivide em duas partes: “A boçalidade como busca do conhecimento ancestral”, e “O porquê da UFC ser racista”.3Soares argumenta que a boçalidade se refere ao estado permanente de resistência à hegemonia cultural do Ocidente. Ele se afirma enquanto boçal, ressignificando o sentido pejorativo atribuído a esse conceito nos dias atuais. A palavra boçal, em sua origem, era a forma pejorativa de nomear as pessoas negras que não estavam imersas na cultura ocidental, em que Soares redefine seu conteúdo e argumenta que ser boçal não é apenas não ser integrado pela cultura ocidental por ignorância, pelo ao contrário, é recusar a se incorporar a cultura dominante, é se negar a aceitar a ordem dominante e vigente que tem em sua base o racismo, a xenofobia e o preconceito. O autor ainda discorre sobre suas escolhas teóricas que o auxiliaram a consolidar sua posição enquanto boçal, tal como a tese de Heráclito de Éfeso, e de Nietzsche. Em “O porquê da UFC ser racista”, o autor objetiva compreender alguns conceitos fundamentais para entender o funcionamento do racismo arraigado nas instituições universitárias brasileiras. O preconceito é entendido por Soares de duas formas, a primeira se refere ao preconceito pelo pré-julgamento de algo sem conhecer de fato e a segunda consiste na autorização da autoridade, que é quando algo é tomado como irrefutável e insólito. Soares argumenta que o Iluminismo buscou desconstruir ambos tipos de preconceito, no entanto, os autores iluministas, segundo Soares, caem em um dogmatismo racionalista que deslegitima todo conhecimento que não carrega a razão científica como fundamento. Portanto, os autores iluministas desconsideram o mito como possibilidade de conhecimento filosófico, o que, por sua vez, está em desacordo com sua proposta. A discriminação, afirma Soares, é a divisão entre as pessoas que necessariamente se pressupõe uma hierarquia entre quem discrimina e quem é discriminado. O autor argumenta, a partir de Foucault, que a discriminação é um dispositivo da cultura dominante em manter o status quo daqueles que são qualificados em detrimento da depreciação de outros. Por isso, numa sociedade racista, a discriminação racial é o dispositivo pelo qual o poder dominante perpetua seu próprio poder simbólico sobre os discriminados negativamente. Contudo, o autor traz exemplos de discriminação positiva tal como a política de ação afirmativa. Para entender a lógica do racismo moderno, o autor encontra sua base na Grécia Antiga, onde pessoas eram diferenciadas a partir do critério de ser ou não civilizado. Soares entende 3 Universidade Federal do Ceará (UFC) Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 530 que esta lógica discriminativa grega somada ao conceito de raça forjado a partir do expansionismo colonial europeu do século XV, resultaria no padrão de funcionamento do racismo moderno. O autor critica o racismo presente nas estruturas institucionais das universidades no Brasil, nas quais, o conhecimento de autores ocidentais são privilegiados em detrimento de teorias e formas de conhecer que não são europeias. Neste sentido, o autor reitera que a Universidade Federal do Ceará (UFC) é racista porque é xenofóbica com tudo que não é europeu, ao passo que é xenofílica a tudo que advém da Europa, consequentemente, a universidade reproduz o racismo epistêmico em relação a conhecimentos africanos e indígenas. A crítica do autor ao racismo vigente nas universidades no Brasil é pertinente, tanto no âmbito administrativos quanto epistemológicos. Sobre este segundo, Soares argumenta que há um enclausuramento conceitual eurocêntrico nas ciências sociais brasileiras, isto é, há um racismo de ordem epistêmica que enviesa a promoção de perspectivas teóricas não ocidentais. O conceito de racismo epistêmico de Soares está em consonância com o sentido que Nogueira defende: “Racismo epistêmico remete a um conjunto de dispositivos, práticas e estratégias que recusam a validade das justificativas feitas a partir de referenciais filosóficos, históricos, científicos e culturais que não sejam ocidentais” (NOGUEIRA, Renato. 2014, p. 27). No capítulo 3, “Conceitos”, Soares pretende explicar quais seriam as faces de Exu, isto é, quais seriam os elementos essenciais do objeto analisado no trabalho. O autor apresenta algumas características como a polifonia presente em Exu que corresponde com a face da comunicação. Exu carrega o princípio da comunicação, na tradição do candomblé, em que este orixá é responsável por ser o interlocutor entre o mundo dos homens (Aiê) e o mundo espiritual (Orum). Outra face é a polilógica, nas religiões de matrizes africanas, Exu possui múltiplas funções, portanto sua logicidade é múltipla, de acordo com o contexto de cada função que exerce. O oportunismo também pode ser considerado uma face de Exu, o orixá é reconhecido por se apropriar das oportunidades inteligentemente para ensinar lições aos seres humanos, em outras palavras, a malandragem e a ludicidade são elementos na maneira de pedagogia de Exu. Outras duas faces que o autor destaca é a embriaguez e o poder das ervas. O autor busca compreender o impacto do fenômeno sobre a identidade afro-brasileira. Soares admite que a identidade afro-brasileira é uma identidade multicultural pois se constitui a partir da influência das culturas africanas, indígenas e européias. Deste modo, a questão da adaptabilidade da identidade afro-brasileira aos diferentes contextos hostis em que o povo afrobrasileiro é submetido, para Soares, é decorrente do movimento e da comunicabilidade em Exu. Soares afirma que a identidade afro-brasileira se mantém pois Exu é imcubido ao diálogo e a Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 531 transformação. Um exemplo da transformação que o autor apresenta se trata da identidade ancestral que está presente como princípio para o povo de santo4. A inversão, argumenta Roque Soares,é um arquétipo do orixá Exu. Arquétipo consiste na representação do meio pelo qual Exu transcende o que seria a naturalidade, reproduzindo sua essência nas diversas situações e contextos ao passo que se perpetua como entidade individual através do simbólico. A inversão consiste na característica de tornar o acerto em erro e o erro em acerto. O autor reitera que este arquétipo está incrustado e assimilado na identidade afro-brasileira, pois através do valor simbólico da crença em Exu, historicamente, foi absorvido pelo imaginário coletivo do povo afro-brasileiro. Portanto, para Soares, as características de Exu podem ser averiguadas na história do povo afro-brasileiro. Se o autor afirma que Exu está no centro da cultura africana, portanto, as estratégias de resistência do povo afro-brasileiro foram, por vezes, fundamentada na própria inversão ou contradição. Por exemplo, o fato de que a alforria de muitos escravizados foram obtidos através da articulação entre os escravizados nas irmandades religiosas configura uma contradição, pois se por um lado a Igreja Católica é a instituição que ideologicamente sempre buscou neutralizar a mobilização política dos escravizados, foi através deste espaço que muitos escravizados puderam conquistar suas alforrias. A inversão também consiste na habilidade em se transformar em algo mas sem perder sua própria essência. O desfecho do capítulo “Conceitos”, explicita-se as perspectivas femininas acerca do fenômeno. Soares se baseia em tipos de fontes para abordar a questão. A primeira é o trabalho da antropóloga americana Ruth Landes5, “A cidade das mulheres”, onde a autora busca entender a matrifocalidade presente nos terreiros de candomblé, ela constata o fato de que mulheres negras são preeminentes e líderes destas instituições religiosas de matrizes africanas, apesar de serem o grupo mais prejudicado pelas relações de gênero e raça na sociedade brasileira. A segunda fonte usado por Soares são entrevistas de mulheres candomblecistas que são solicitadas a comentarem sobre seus conhecimentos acerca do orixá Exu. As entrevistas estão descritas no final da obra. Esta obra possui um quadro conceitual denso, porém o autor expõe com clareza todos os conceitos ao longo desta parte. E principalmente, todas as características (faces) de Exu. No entanto, a questão da identidade afro-brasileira é inconsistente, por dois fatores: 1) A identidade 4 Refere-se às pessoas que são adeptas do candomblé, da umbanda, entre outras religiões de matriz africana. 5 Antropóloga americana radicada no Brasil, conhecida por estudar relações raciais e de gênero, além de pesquisar sobre o candomblé no Brasil. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 532 afro-brasileira não é constituída e nem concebida da mesma forma para todo o povo afrobrasileiro. Pelo contrário, cada contexto sociocultural resulta na apropriação da identidade negra ou afro-brasileira de forma diferente. Parece que Soares se limita a pensar a identidade afro-brasileira sobre as lentes das religiões de matrizes africanas, o que é pertinente pois grande parcela da população afro-brasileira ou é adepta ou tem contatos direto com as religiões de matrizes africanas, porém nem toda a gente afro-brasileira adquire sua identidade negra a partir de espaços tradicionais. Deve-se considerar que quando Soares aborda as estratégias de resistências do povo afrodescendente no passado, e especialmente no estado da Bahia, é razoável que se pense o candomblé como primordial no sentimento de pertença cultural, porém se trata de um tempo e lugar específicos. A identidade afro-brasileira como argumenta Munanga: Se o processo de construção da identidade nasce a partir da tomada de consciência das diferenças entre “nós” e “outros”, não creio que o grau dessa consciência seja idêntico entre todos os negros, considerando que todos vivem em contextos socioculturais diferenciados. Partindo desse pressuposto, não podemos confirmar a existência de uma comunidade identitária cultural entre grupos de negros que vivem em comunidades religiosas diferentes, por exemplo, os que vivem em comunidades de terreiros de candomblé, de evangélicos ou de católicos (MUNANGA, 2012, p. 11). Ou seja, segundo o argumento de Munanga, pode-se dizer que nem todos afrobrasileiros carregam o arquétipo de Exu em suas identidades. 2) A identidade afro-brasileira, certamente, é uma identidade multiétnica, pois além de ter havido o sincretismo inter-africano entre diferentes povos africanos na promoção desta identidade, também há o contato com outras origens étnicas como indígenas e europeus. No entanto, admitir que a identidade afro-brasileira possui três origens étnicas sem discorrer sobre o processo histórico da interação entre esses povos resulta em escamotear um processo perverso de violência física e simbólica, tendo em vista, que a cultura européia sempre foi dominante e imposta aos povos africanos e indígenas. O capítulo “Conclusão”, Soares retoma a discussão, trabalhada ao longo de toda obra, sobre a relevância do mito para o conhecimento filosófico. Para o autor, o mito é o meio pelo qual se pode verificar as fundamentações da cultura e da identidade de um povo, por conseguinte, as bases dos conhecimentos filosóficos de cada povo podem ser percebidos e apreendidos através da literatura ou oralitura, no caso da cultura afro-brasileira mitológica. Soares argumenta que o mito é o sustentáculo da filosofia, e é no mito que se procura responder os primeiros questionamentos humanos acerca de si e das coisas que nos rodeiam. Os deuses e as explicações míticas que se encontram no mito, são representações do comportamento humano, e principalmente ensinamentos para as pessoas que o cultivam. Portanto, o mito, em As Vinte E Uma Face de Exu e a Filosofia Afrodescendente da Educação, Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 533 é necessariamente pedagógico. Neste sentido, Soares busca comparar o método pedagógico de Exu e da teoria de Paulo Freire. Por fim, O autor retoma algumas partes principais dos capítulos anteriores, relembrando os elementos capitais de Exu como matrifocalidade, comunicabilidade, inversão, movimento, etc. Além de reafirmar Exu enquanto Arché fundante da cultura afrodescendente. A questão do mito é fundamental. Soares, ao conceber, conhecimento filosófico no mito se distingue da maioria dos filósofos brasileiros que reduzem a Filosofia aos textos escritos por europeus de pouco mais de sete países diferentes. Estes mesmos filósofos costumam argumentar que não há conhecimento filosófico no mito pois se trata de um conhecimento transmitido pela oralidade e não pela literatura. Este argumento tem caráter epistemológico pois descarta toda possibilidade de conhecimento filosófico na oralitura passada através de gerações em formas de mitos, aforismos, histórias, etc. Portanto, a posição de Soares, é anti-hegemônica e converge com o posicionamento do filósofo africano Joseph Omoregbe, que afirma: De fato as reflexões filosóficas de pensadores africanos não foram preservadas ou transmitidas através de relatos escritos; a verdade é que esses filósofos permanecem desconhecidos para nós. Porém, isso não significa que eles não tenham existido; nós temos fragmentos de suas reflexões filosóficas e suas perspectivas foram preservadas e transmitidas por meio de outros registros escritos como mitos, aforismos, máximas de sabedoria, provérbios tradicionais, contos e, especialmente, através da religião (OMOREGBE, 1998). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos e sentidos. - 3. ed - Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. (Coleção Cultura Negra e Identidades) NOGUEIRA, Renato. O ensino de filosofia e a lei 10.639 - 1. ed - Rio de Janeiro, Pallas: Biblioteca Nacional 2014. OMOREGBE, Joseph I. African Philosophy: Yesterday and Today in African Philosophy: an Anthology by Emmanuel Chukwudi Eze, Massachusetts/Oxford, Blacwell Publishers,1998. (Tradução de Renato Nogueira) SOARES, Emanoel Luís Roque. As vinte e uma faces de Exu na filosofia afrodescendente da educação - Cruz das Almas: EDUFRB; Belo Horizonte: Fino Traço, 2016. GLOSSÁRIO6 AIÊ - Mundo terreno vida, também conhecido como Ayê. ARKHÉ - Palavra grega que significa princípio ontológico, o que vem em primeiro, onde tudo se inicia. 6 Este glossário faz parte da obra, no entanto, não está na íntegra, só os verbetes usados na resenha. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 534 AXÉ OU ASHÉ - Força individual e espiritual contida em todos os rituais e objetos do candomblé, torna-se poder coletivo e mágico através da ancestralidade, é fixado e revitalizado através das folhas e do sangue dos rituais. BANTOS - Todos os afrodescendentes que foram trazidos como escravos para o Brasil, provenientes do grupo linguístico que se estende por Nigéria, Angola, Camarão e Congo com, aproximadamente, dois terços da África negra de mesmo nome. Sua influência cultural se estende por todo o país, principalmente, na Bahia, em Pernambuco, no Maranhão e no Rio de Janeiro. BOÇAL - Aquele que é o guardador da tradição. BOÇALIDADE - Ato de não aculturar-se, ação daquele que é o guardião da tradição, não substitui sua cultura por outra, resistência cultural, ancestralidade BOMBOGIR - Um dos nomes dado a Exu para bantos da nação Angola. EKIC - o mesmo que inkice, divindade santo, do culto na nação Angola, o mesmo que Orixá. ENCRUZILHADA - ponto de encontro, desencontro, intersecção e mudança, local onde se faz oferendas para Exu. EXU - Orixá iorubano, mensageiro, elemento dinâmico individual e coletivo, portador e protetor do axé, Orixá da comunicação, redondo. Cor: Vermelha e preta; dia da semana: segunda-feira, comida: farofa de dendê, mel e cachaça. Tem várias funções, desde senhor dos caminhos a detentor do ebó, tem a incumbência de levar o feitiço, ele é o eixo de transição do axé. O que difere Exu dos outros orixás é o fato dele ser múltiplo, uma vez todas as coisas e todos os homens, inclusive os Orixás, têm seu os seus Exus. Ferramenta: porrete fálico (ogó). Provedor do diálogo Exu é centro. FONS - Povos do sul do Benim e da Nigéria. ILÊ - Casa; casa de candomblé IORUBÁ - Sudaneses, povos que habitam a região da África Ocidental, predominante no território da Nigéria. Região que se estende de Lagos para o norte, até o rio Níger, de Daomei para leste de Benim, tem como capital religiosa Ifé e política Oyó; espaço mitológico de criação da humanidade; língua maneira de falar de um povo da África Ocidental. IRMANDADES - Instituições assistencialistas da Igreja Católica que visavam difundir a fé entre leigos de onde veio surgir o candomblé da Bahia. LEGBA - Exu no candomblés Jêje, não cultuado, também conhecido como Elegba o protetor. MALÊS - Povos africanos de origem islâmica. MAVAMBO- um dos vários nomes dado a Exu para bantos da nação Angola. Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 535 NAGÔS- Nomes brasileiro dado a escravos sudaneses vindos da nação Iorubana; nome da língua, em geral, falada pelos escravos, nome dado pelos daomeanos aos povos que falavam ioruba. OBATALÁ - O mesmo que Oxála na África. OLODUMARÉ - O deus supremo dos iorubas, também conhecido como Olórun. ORIXÁS - Divindades iorubanas, forças da natureza, intermediários entre o deus supremo Olórun e os homens ORUM- Mundo espiritual onde vive Olodumaré, o deus supremo dos iorubás juntamente com os Orixás e Ancestrais. OXALÁ- Orixá responsável pela criação da humanidade, aquele que fez as cabeças dos homens e, por isso, se tornou o patrono da inteligência e da fecundidade. Cor: branca; dia da semana: sexta-feira; ferramentas: cajado (apaxorô), quando velho chamado de Oxálufã, representando a paz e a sabedoria; usa espada e escudo quando novo, aí, é chamado Oxaguiã, o guerreiro. POMBAJIRA- Corruptela de Bombogire, Exu bantu feminino. POVO DE SANTO- Termo cunhado pelo antropólogo Vivaldo da Costa Lima para designar os seguidores do culto afrodescendente. UMBANDA- Religião brasileira na qual existe a prática do catolicismo, islamismo, espiritismo, ocultismo, kardecismo, além candomblé e dos caboclos. No Rio de Janeiro é chamado de macumba ou Quimbanda Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 536 ENTREVISTA THULA PIRES: PELO DIREITO À AUTO INSCRIÇÃO Pensando no debate fomentado pelas estudos pós-coloniais e decoloniais nesta nossa revista que surge no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos, trazemos para fechar esta edição as reflexões trazidas em uma entrevista acolhedora e estimulante que tivemos a oportunidade de vivenciar com Thula Pires. Thula Rafaela de Oliveira Pires é atualmente professora nos cursos de graduação - na qual também é coordenadora de curso - e pós-graduação de direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), universidade em que cursou sua graduação, mestrado e doutorado em direito. É bailarina, mãe, cria e moradora de São Gonçalo, experiências que ela traz consigo na forma de ser e estar no mundo. Apontando sempre como referência a autora Lélia Gonzalez, Thula é uma intelectual negra que tem pensado e trazido como contribuições em sua produção acadêmica, e em sua militância, a teoria crítica da raça, a decolonialidade e a teoria do reconhecimento para analisar o direito, os direitos humanos e a realidade social racial brasileira. Assim como ocorreu conosco no momento da entrevista, esperamos que essa conversa abaixo descrita possa fortalecer movimentos internos e externos em nossas/os leitoras/es. A pedidos da autora, até o momento a entrevista não poderá ser socializada. Em breve publicaremos uma nova versão da revista completa, com esta entrevista. Deixamos a apresentação da entrevista como um estímulo de retorno das/os nossas/os leitoras/es para conferir esse momento de nossa edição. Equipe Editorial Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757 537 Revista Akeko | Rio de Janeiro, v.2, n.1, Set. 2019 | ISSN 2595-2757