A SOBERANIA PATRIARCAL:
O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
NO TRATAMENTO DA VIOLÊNCIA
SEXUAL CONTRA A MULHER *
Vera Regina Pereira de Andrade **
Sumário: Introdução: O lugar da fala: uma palavra sobre a dor, o saber e o(s) sujeito(s).
O continuum criminológico e o argumento. 1. O que sabemos sobre a identidade do
sistema de justiça criminal: quem é o sistema e o que promete; 1.1. Dimensão normativa
e institucional -instrumental: o sistema é o Outro; 1.2. Dimensão integrativa do controle social informal: O Outro não está Só; 1.3. Dimensão ideológica – simbólica: o sistema
somos todos Nós; 2. O que sabemos sobre a funcionalidade do sistema de justiça
criminal; 2.1. Das funções declaradas às funções reais e à eficácia invertida; 2.2. A
seletividade estigmatizante: a seleção de criminosos e vítimas dentre todos nós; 3. O
patriarcado e o capitalismo como matrizes históricas do sistema de justiça criminal: o
sentido das seleções; 4. O que sabemos sobre a funcionalidade de gênero: o androcentrismo do sistema de justiça criminal; 4.1. A construção social do gênero no patriarcado:
espaços, papéis e estereótipos; 4.2. O masculino ativo e o feminino passivo: o cara e a
coisa, o criminoso e a vítima; 4.3. O sistema de justiça criminal co-constituindo a construção social de gênero na construção social da criminalidade e da vitimação: integrando o controle social informal; 5. O que sabemos sobre o sistema de justiça criminal no
tratamento da violência (sexual) contra a mulher: como a mulher aparece no sistema;
5.1. A mulher como vítima da violência sexual e o estupro: da lógica da seletividade à
sublógica da honestidade e a seleção das vítimas; 5.2. Impunidade, imunidade e seleção
de estupradores: da violência sexual à violência doméstica; Conclusão; Referências.
Resumo: O texto aborda, sob o marco teórico da Criminologia desenvolvida com base
no paradigma do controle social, particularmente a Criminologia crítica e feminista, o
*
Abstract: This paper points out, under a
theoretical important moment of
Criminology, developed based on social
control paradigm, mainly the critical and
Texto originariamente apresentado no painel “O Sistema de Justiça criminal no tratamento da
violência contra a mulher “, no 9º Seminário Internacional do IBCCrim e publicado na Revista
alusiva ao Seminário (Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 48, p. 260-90, maio/jun. 2004).
** Mestre e Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pós-Doutora em
Direito Penal e Criminologia pela Universidade de Buenos Aires. Professora nos Cursos de
Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFSC. Pesquisadora do CNPq e da Fundação
Cassamarca (Treviso – Itália).
Revista Seqüência, nº 50, p. 71-102, jul. 2005
funcionamento do sistema de justiça criminal relativamente à violência sexual contra a
mulher (particularmente o estupro) apontando para a soberania do patriarcado e a duplicação da violência que ele arrasta consigo, e
para a necessidade de inclusão e co-responsabilização de todos nós, como co-partícipes
institucionais ou simbólicos do controle social e penal, na ultrapassagem da mecânica
da violência, concebida em sua dimensão
estrutural, institucional e intersubjetiva.
feminist Criminology, the operation of criminal justice system regarding sexual
violence against woman (especially rape),
observing patriarchate sovereignty and an
increase of violence that it has inside itself,
as well as to the inclusion need and coresponsibility of everyone, as institutional
or symbolic partner from social and penal
control, on overcoming the violence
mechanics, created in your structural,
institutional and intersubjective dimension.
Palavras-chave: Sistema de justiça criminal. Keywords: System of Criminal Justice; SoControle social. Criminologia. Violência cial Control; Criminology; Violence against
woman; Genre-victim.
contra a mulher. Gênero-vítima.
Temos direito a reivindicar a igualdade quando a desigualdade nos inferioriza;
temos direito a reivindicar a diferença quando a igualdade nos descaracteriza.
(Boaventura de Sousa Santos)
Introdução
O
lugar da fala: uma palavra sobre a dor, o saber e o (s) sujeito(s). O
continuum criminológico e o argumento
Despindo-me das pseudo assepsias do cientificismo secular, devo iniciar
dizendo que o universo da violência é, antes de mais nada, um universo de
dor, e que enfrentá-lo como objeto teórico e de reflexão implica necessariamente um esforço de suspensão da dor, colocá-la em suspenso não significa,
em momento algum, perdê-la de vista ou divorciar-se dela, porque é a solidariedade para com a dor e o propósito de contribuir para superá-la que motiva
a tentativa de resgatar, para o problema, a voz dos saberes emancipatórios.1
E um campo do saber (teórico e empírico) no qual identifico esta potencialidade emancipatória e embaso minha argumentação é o proveniente
da Criminologia desenvolvida com base no paradigma do controle ou reação social (desde a década de 1960) e, mais especificamente, a Criminologia
1
72
Eis que assumo esta como uma discussão paradigmática, cujo enfoque depende dos paradigmas
eleitos, ou seja, do lugar de onde (e do que) se fala.
crítica e a Criminologia feminista, pois, através deste continuum o sistema
de justiça criminal2 – este sujeito monumental – não apenas veio a constituir-se no objeto criminológico central do nosso tempo, mas veio a sê-lo inclusive, sob o influxo do feminismo, no tratamento que imprime à mulher.
Podemos demarcar, pois, neste continuum, três grandes momentos
históricos e epistemológicos:
1) na década de 1960, consolida-se a passagem de uma Criminologia
do crime e do criminoso, ou seja, da violência individual (de corte
positivista e clínico) para uma Criminologia do sistema de justiça
criminal e da violência institucional (de corte construtivista-interacionista), amadurecida através de dois saltos qualitativos, a saber:
2) a partir da década de 1970, o desenvolvimento materialista desta
Criminologia marca a passagem para as chamadas Criminologia
radical, Nova Criminologia e Criminologia crítica, no âmbito das
quais o sistema de justiça criminal receberá uma interpretação
macrossociológica no marco das categorias capitalismo e classes
sociais(Criminologia da violência estrutural);
3) e a partir da década de 1980, o desenvolvimento feminista da Criminologia crítica marca a passagem para a Criminologia de correspondente nomenclatura, no âmbito da qual o sistema de justiça
criminal receberá também uma interpretação macrossociológica no
marco das categorias patriarcado e gênero,3 e a indagação sobre
como o sistema de justiça criminal trata a mulher (a mulher como
vítima e uma Vitimologia crítica) assume aqui um lugar central.
Fundamental, portanto, invocar a importância do feminismo como
outro sujeito coletivo monumental que, fazendo a mediação entre a história de um saber masculino onipresente e a história de um sujeito ausente –
2
3
Doravante também designado por SJC.
Para além do dado biológico que define o sexo (cada nascimento requer um registro sexual,
homem-mulher), o gênero será concebido como o sexo socialmente construído (a dicotomia
feminino-masculino).
73
o feminino e sua dor – e ressignificando a relação entre ambas, aparece
como fonte de um novo poder e de um novo saber de gênero, cujo impacto
(científico e político) foi profundo no campo da Criminologia, com seu
universo até então completamente prisioneiro do androcentrismo: seja pelo
objeto do saber (o crime e os criminosos), seja pelos sujeitos produtores do
saber (os criminólogos) ou pelo próprio saber. “O Homem criminoso” (18711876), título da histórica obra do médico italiano César Lombroso, é
emblemática a respeito, muito embora o próprio Lombroso, na continuidade, já abordasse a criminalidade das fêmeas.
A Criminologia, portanto, nascida oficialmente no século XIX como
a ciência da criminalidade, do crime e do criminoso, transformou-se e está
a se transformar, cada vez mais, numa teoria crítica e sociológica do sistema de justiça criminal (ciência social) se ocupando, fundamentalmente,
da análise de sua complexa fenomenologia e funcionalidade nas sociedades capitalistas e patriarcais.
Não estamos, todavia, perante edifícios acabados, mas construções
abertas, processuais. Penso, inclusive, que uma das mais fortes interpelações criminológicas do presente é precisamente o desenvolvimento unificado das perspectivas “crítica” e “feminista”, na era da globalização, uma
vez que uma tal bipartição epistemológica não pode ser senão provisória.
Da solidez dos seus alicerces já emergiram, contudo, resultados
criminológicos irreversíveis, de que vou me ocupar, exercitando precisamente o aludido esforço unificador.
Foi com base neste saber que desenvolvi, sob o patrocínio do CNPQ,
uma pesquisa intitulada “ Sistema da Justiça Penal e violência sexual contra as mulheres: análise de julgamento de crimes sexuais em Florianópolis,
na década de oitenta”.4
Esta pesquisa parte da análise teórica e empírica do funcionamento
do SJC relativamente à violência sexual contra a mulher para sustentar e
concluir o seguinte:
4
74
A pesquisa foi desenvolvida no período de agosto de 1996 a agosto de 1997. A respeito ver
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003a. p. 81-124.
l) num sentido fraco, o SJC é ineficaz para a proteção das mulheres contra a violência porque, entre outros argumentos, não previne novas violências, não escuta os distintos interesses das vítimas, não contribui para a compreensão da própria violência
sexual e a gestão do conflito e, muito menos, para a transformação das relações de gênero.
O sistema não apenas é estruturalmente incapaz de oferecer alguma proteção à mulher, como a única resposta que está capacitado
a acionar – o castigo – é desigualmente distribuído e não cumpre
as funções preventivas (intimidatória e reabilitadora) que se lhe
atribui. Nesta crítica se sintetizam o que denomino de incapacidades protetora, preventiva e resolutória do SJC.
2) num sentido forte, o SJC (salvo situações contingentes e excepcionais) não apenas é um meio ineficaz para a proteção das mulheres contra a violência (particularmente da violência sexual, que é
o tema da pesquisa) como também duplica a violência exercida
contra elas e as divide, sendo uma estratégia excludente que afeta
a própria unidade (já complexa) do movimento feminista.
Isto porque se trata de um subsistema de controle social, seletivo e
desigual, tanto de homens como de mulheres e porque é, ele próprio, um
sistema de violência institucional, que exerce seu poder e seu impacto
também sobre as vítimas.
E, ao incidir sobre a vítima mulher a sua complexa fenomenologia
de controle social, que representa, por sua vez, a culminação de um processo de controle que certamente inicia na família, o SJC duplica, em vez
de proteger, a vitimação feminina, pois além da violência sexual representada por diversas condutas masculinas (estupro, atentado violento
ao pudor etc.), a mulher torna-se vítima da violência institucional
plurifacetada do sistema, que expressa e reproduz, por sua vez, dois grandes tipos de violência estrutural da sociedade: a violência das relações
sociais capitalistas (a desigualdade de classes) e a violência das relações
sociais patriarcais (traduzidas na desigualdade de gênero), recriando os
75
estereótipos inerentes a estas duas formas de desigualdade, o que é particularmente visível no campo da violência sexual.
A passagem da vítima mulher ao longo do controle social formal acionado pelo sistema de justiça criminal implica, nesta perspectiva, vivenciar
toda uma cultura da discriminação, da humilhação e da estereotipia. Pois,
e este aspecto é fundamental, não há uma ruptura entre relações familiares (pai, padrasto, marido), trabalhistas ou profissionais (chefe) e relações
sociais em geral (vizinhos, amigos, estranhos, processos de comunicação
social) que violentam e discriminam a mulher, e o sistema penal que a
protegeria contra este domínio e opressão, mas um continuum e uma
interação entre o controle social informal exercido pelos primeiros (particularmente a família) e o controle formal exercido pelo segundo.
1 O que sabemos sobre a identidade do sistema de justiça
criminal: quem é o sistema e o que promete?
Para desenvolver o argumento, inicio por indagar: quem é o sistema
de justiça criminal? E indago quem, precisamente porque se trata de um
sujeito, e de um sujeito monumental (em abrangência e poder).
1.1 Dimensão normativa e institucional - instrumental:
o sistema é o Outro
A primeira dimensão e imagem do SJC é a da Lei5 e das instituições
formais de controle, ou seja, a sua dimensão stricto sensu, sem dúvida a
mais visível: polícia, Ministério Público, justiça, sistema penitenciário,
com sua constelação prisional e manicomial: decisões policiais, ministeriais, judiciais, penitenciárias.6 Aqui o Estado se faz onipresente em nível Legislativo, Executivo e Judiciário, e o sistema é monumentalmente
percebido como sendo o Outro.
5
6
76
Lei(s), penais, processuais penais, penitenciárias, constituição, declarações internacionais.
E ainda, ministérios e/ou secretarias da justiça, da segurança pública, do Interior, e outros:
decisões governamentais.
1.2 Dimensão integrativa do controle social informal:
O Outro não está Só
Como mecanismo de controle,7 o SJC, entretanto, não está só, mas inserido na mecânica global de controle social, de tal modo que não se reduz ao
complexo estático da normatividade nem da institucionalidade, mas é concebido como um processo articulado e dinâmico de criminalização ao qual concorrem não apenas as instituições do controle formal, mas o conjunto dos
mecanismos do controle social informal, a saber, família, escola (desde a préescola até a pós-graduação, especialmente as escolas formadoras dos operadores do SJC), mídia falada (TV) escrita (jornais, literatura, romances, histórias em quadrinho) e informática, moral, religião, mercado de trabalho.
Existe, portanto, um macrossistema penal formal, composto pelas instituições oficiais de controle, circundado pelas instituições informais de controle, e nós integramos e participamos da mecânica de controle, seja como operadores formais ou equivalentes, seja como senso comum ou opinião pública.
Chega-se, por esta via, à dimensão ideológica do SJC.
1.3 Dimensão ideológica-simbólica: o sistema somos todos Nós
Com efeito, uma dimensão muito mais invisível e difusa (lato sensu)
do sistema é a dimensão ideológica ou simbólica, representada tanto pelo
saber oficial (as Ciências criminais) quanto pelos operadores do sistema e
pelo público, como senso comum punitivo (ideologia penal dominante).
Esta capilaridade não deve obscurecer, entretanto, a sua onipresença, tanto
ou mais expressiva que a do Estado, e que obriga à percepção de que o
sistema somos, informalmente, todos nós: em cada sujeito se desenha e
7
Por controle social designa-se, em sentido lato, as formas com que a sociedade responde, informal ou formalmente, difusa ou institucionalmente, a comportamentos e a pessoas que contempla como desviantes, problemáticos, ameaçantes ou indesejáveis, de uma forma ou de outra e,
nesta reação, demarca (seleciona, classifica, estigmatiza) o próprio desvio e a criminalidade
como uma forma específica dele. Daí a distinção entre controle social informal ou difuso e
controle social formal ou institucionalizado.
A unidade funcional do controle é dada por um princípio binário e maniqueísta de seleção: a função
do controle social, informal e formal, é selecionar entre os bons e os maus os incluídos e os excluídos;
quem fica dentro, quem fica fora do universo em questão, e sobre os quais recai o peso da estigmatização.
77
opera, desde a infância, um microsistema de controle e um microsistema
criminal (simbólico) que o reproduz, cotidianamente.
Referir a dimensão simbólica do sistema implica referir os discursos (as
representações e as imagens) das Ciências criminais que, conjuntamente
com o discurso da lei, tecem o fio de sua (auto)legitimação oficial, pois é do
processo de reprodução ideológica do sistema do que aqui se trata.
Com efeito, é precisamente a Lei e o saber (Ciências Criminais), dotados
da ideologia capitalista e patriarcal, que dotam o sistema de uma discursividade
que justifica e legitima sua existência (ideologias legitimadoras), co-constituindo o senso comum punitivo reproduzido, por sua vez, pelo conjunto dos mecanismos de controle social, com ênfase, contemporaneamente, para a mídia.
É notável o esforço histórico das Ciências Criminais na tentativa de
fazer a assepsia entre o sistema de justiça criminal e o sistema social e o
convencimento jurídico-penal e público de um “como se”: como se o SJC
funcionasse como se declara.
São, assim, funções oficialmente declaradas ou promessas
legitimadoras do SJC: proteção de bens jurídicos que interessam igualmente
a todos os cidadãos (o bem) por intermédio do combate eficaz à
criminalidade (o mal), a ser instrumentalizado por meio das funções da
pena: uma combinatória de retribuição ou castigo com prevenção geral
(intimidação erga omnes pela ameaça da pena cominada em abstrato na
lei penal) e especial (reabilitação in persona mediante execução penal) a ser
aplicada dentro dos mais rigorosos princípios penais e processuais penais
liberais (legalidade, igualdade jurídica, devido processo etc.)
Estamos perante uma ideologia extremamente sedutora, também para
as mulheres, e com um fortíssimo apelo legitimador (da proteção, da
evitação, da solução) como se à edição de cada lei penal, sentença, ou
cumprimento de pena, fosse mecanicamente sendo cumprido o pacto mudo
que opera o traslado da barbárie ao paraíso. Por isto mesmo esta ideologia
legitimadora se mantém constante até nossos dias e consubstancia o que
Alessandro Baratta denomina o “mito do Direito Penal igualitário”.8
8
78
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e política penal alternativa. Tradução por J. Sérgio
Fragoso. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, n. 23, p. 7-21, jul./dez. 1978. p. 9-10.
2 O que sabemos sobre a funcionalidade do sistema de
justiça criminal?
2.1 Das funções declaradas às funções reais e à eficácia invertida
Passando à análise da funcionalidade do SJC, o ponto de inflexão
fundamental a demarcar é a contradição entre funções declaradas e funções latentes, pois sabemos, criminologicamente, que há não apenas um
profundo déficit histórico de cumprimento das promessas oficialmente
declaradas pelo seu discurso oficial (do qual resulta sua grave crise de
legitimidade) como o cumprimento de funções latentes inversas às declaradas. Razão pela qual afirmei em outro lugar que o SJC caracteriza-se
por uma eficácia instrumental invertida à qual uma eficácia simbólica
(legitimadora) confere sustentação;9 ou seja, enquanto suas funções declaradas ou promessas apresentam uma eficácia meramente simbólica (reprodução ideológica do sistema) porque não são e não podem ser cumpridas, ele cumpre, latentemente, outras funções reais, não apenas diversas,
mas inversas às socialmente úteis declaradas por seu discurso oficial, que
incidem negativamente na existência dos sujeitos e da sociedade.
Mas é precisamente o funcionamento ideológico do sistema – a circulação da ideologia penal dominante entre os operadores do sistema e no
senso comum ou opinião pública – que perpetua o ilusionismo, justificando socialmente a importância de sua existência e ocultando suas reais e
invertidas funções. Daí apresentar uma eficácia simbólica sustentadora
da eficácia instrumental invertida
A eficácia invertida significa, então, que a função latente e real do
sistema não é combater (reduzir e eliminar) a criminalidade protegendo
bens jurídicos universais e gerando segurança pública e jurídica, mas, ao
contrário, construí-la seletiva e estigmatizantemente e neste processo reproduzir, material e ideologicamente, as desigualdades e assimetrias sociais (de classe, gênero, raça).
9
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Ilusão de Segurança Jurídica. 2. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2003b.
79
Nesse sentido não reage contra uma criminalidade que existe ontologicamente na sociedade independentemente da sua intervenção, mas é a própria intervenção do sistema (autêntico exercício de poder, controle e domínio) que, ao reagir, constrói, co-constitui o universo da criminalidade (daí
processo de criminalização) mediante: a) a definição legal de crimes pelo
Legislativo, que atribui à conduta o caráter criminal, definindo-a (e, com
ela, o bem jurídico a ser protegido) e apenando-a qualitativa e quantitativamente (criminalização primária); b) a seleção das pessoas que serão etiquetadas, num continuum pela Polícia-Ministério Público e Justiça (criminalização
secundária); e c) estigmatizadas, especialmente na prisão, como criminosos,
entre todos aqueles que praticam tais condutas (criminalização terciária).10
Mas, precisamente porque o sistema não está só, para compreender
sua funcionalidade, é necessário apreendê-lo como um subsistema dentro
de um sistema de controle e seleção de maior amplitude, pois o SJC penal
não realiza o processo de criminalização/vitimização e estigmatização à
margem ou inclusive contra os processos gerais de etiquetamento que tem
lugar no seio do controle social informal, como a família e a escola (por exemplo, a filha estigmatizada como “ ovelha negra” ou “ menina fácil”, o aluno
como “ difícil” pelo professor etc.) e o mercado de trabalho, entre outros.
Toda a mecânica de controle (enraizada nas estruturas sociais) é
constitutiva/reprodutora das profundas assimetrias de que, afinal, engendram-se e alimentam os estereótipos,11 os preconceitos e as discriminações, sacralizando hierarquias. E nós interagimos cotidianamente na mecânica (inseridos que estamos em relações de poder nem sempre percebidas, sendo sujeitos constituídos e constituintes, controlados e controladores),
particularmente na dimensão simbólica da construção social da
10 Desenvolvidamente, cf. ANDRADE, 2003a; e, ANDRADE, 2003b.
11 Os estereótipos, designados por Karl-Dieter Opp e A. Peukert por “Handlungsleitenden Theorien”
(teorias diretivas da ação) e por W. Lippman (considerado o primeiro a refletir de forma sistemática sobre eles) por pictures in our minds (imagens em nossa mente) são construções mentais,
parcialmente inconscientes que, nas representações coletivas ou individuais ligam determinados
fenômenos entre si e orientam as pessoas na sua atividade quotidiana, influenciando também a
conduta dos juízes. A respeito ver DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa.
Criminologia: o homem delinqüente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra, 1984. p.
347-8 (e nota 181), p. 388-9 e 553; SCHUR, Edwin M. Labeling deviant behavior. Its sociological
implications. New York: Harper & Row, 1971. p. 40.
80
criminalidade/vitimação, representada por nosso microssistema ideológico que procede a microsseleções cotidianas, ao associar, estereotipadamente, criminosos com homens pobres, desempregados de rua com perigosos, estupradores com homens de lascívia desenfreada, vítimas com
mulheres frágeis etc, e reproduz o SJC.
2.2 A seletividade estigmatizante: a seleção de criminosos e vítimas
dentre todos nós
A seletividade é, portanto, a função real e a lógica estrutural de funcionamento do SJC, comum às sociedades capitalistas patriarcais. E nada
simboliza melhor a seletividade do que a clientela da prisão ao nos revelar
que a construção (instrumental e simbólica) da criminalidade – a criminalização – incide seletiva e estigmatizantemente sobre a pobreza e a exclusão social, majoritariamente masculina, e apenas residualmente (embora
de forma crescente) feminina.12
A seletividade pode então ser formulada nos seguintes termos: todas
as pessoas, de todos os estratos sociais, faixas etárias, etnias e gênero, ou
seja, todos nós (e não uma minoria perigosa da sociedade) praticamos,
freqüentemente, fatos definidos como crimes, contravenções ou infrações
administrativas e somos, por outro lado, vítimas destas práticas (o que
muda é a especificidade das condutas). Assim, tanto a criminalidade quanto
a vitimação são majoritárias e ubíquas (todos nós somos criminosos e vítimas)13 percepção heurística para um senso comum acostumado a olhar a
criminalidade como um problema externo (do Outro, Outsiders), a manter
com ela uma relação de exterioridade, e, portanto, a seu auto-imunizar.
12 Tomando-se por referente os Censos Penitenciários Brasileiros realizados pelo Conselho Naci-
onal de Política Criminal e Penitenciária do Ministério de Justiça a partir de 1995, podemos
constatar que no Brasil há uma aproximação entre os dados da criminalização da pobreza (em
torno de 95%) e os dados da criminalização masculina (em torno de 96%, contra aproximadamente 4% de criminalização feminina).
13 Uma das conseqüências fundamentais dos paradigmas criminológicos aqui utilizados é a de nos
conduzir a uma percepção diferenciada da criminalidade, da vitimação e do sistema de justiça
criminal que, suplantando a relação de exterioridade com que nos colocamos perante ambos,
reenvie a uma relação de inclusão e, conseqüentemente, de responsabilização. Todos nós somos
criminosos, vítimas, sistemas criminais e, portanto, o problema também é nosso.
81
Ora, se a conduta criminal é majoritária e ubíqua e a clientela do
sistema penal é composta, regularmente, em todos os lugares do mundo,
por homens adultos jovens pertencentes aos mais baixos estratos sociais e,
em grande medida, não brancos, isto significa que impunidade e criminalização (e também a vitimação) são orientados pela seleção desigual de
pessoas de acordo com uma fortíssima estereotipia presente no senso comum e dos operadores do controle penal, e não pela incriminação igualitária de condutas, como programa o discurso jurídico-penal.
Para além, contudo, da ênfase criminológica crítica na construção
seletiva da criminalidade, na criminalização seletiva, ou seja, na distribuição desigual do status negativo de criminoso, é necessário enfatizar, na
esteira da Criminologia feminista, a construção seletiva da vitimação (que
não aparece nas estatísticas), uma vez que o sistema também distribui desigualmente a vitimação e o status de vítima; até porque autor-vítima é um
par que mantém, na lógica adversarial do sistema de justiça, uma relação
visceral: reconhecer autoria implica, tácita ou expressamente, reconhecer
vitimação. A impunidade é a contra-face do processo.
A vitimação, assim como a criminalidade, também é uma possibilidade majoritária mas desigualmente distribuída de acordo com estereótipos de vítimas que operam no senso comum e jurídico Pois, com efeito, “a
intervenção estereotipada do sistema penal age tanto sobre a ‘vítima’, como
sobre o ‘delinqüente’. Todos são tratados da mesma maneira.”14
Nesta esteira, deve-se apreender tanto a vulnerabilidade à criminalização quanto a vulnerabilidade à vitimação, como veremos a seguir.
Considerando, enfim, que o SJC está estruturalmente dedicado “a
administrar uma reduzidíssima porcentagem das infrações, seguramente
inferior a 10%”,15 conclui-se não apenas que “ os processos de imunizacão
constituem a interface negativa dos processos de criminalizacao”,16 mas
14 HULSMAN, Louk; BERNAT DE CELIS, Jacqueline. Penas Perdidas: o sistema penal em ques-
tão. Tradução por Maria Lúcia Karam. Rio de Janeiro: Luam, 1993. p. 83.
15 BARATTA, Alessandro. Direitos Humanos: entre a violência e a violência penal. Fascículos de
Ciências Penais, Porto Alegre, n. 2, abr./maio/jun. 1993, p. 49.
16 BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In
CAMPOS, Carmen Hein de. (Org.). Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. p. 48.
82
que imunidade17 e impunidade constituem a regra de funcionamento do
sistema de justiça criminal e não sua disfunção.18
3 O patriarcado e o capitalismo como matrizes históricas
do sistema de justiça criminal: o sentido das seleções
Evidentemente que um tal funcionamento interno do SJC e do controle social somente adquire sua significação plena quando reconduzido
ao sistema social (à dimensão macrossociológica) e inserido nas estruturas
profundas em ação que o condicionam, a saber, o capitalismo e o patriarcado, que ele expressa e contribui a reproduzir e relegitimar, aparecendo,
desde sua gênese, como um controle seletivo classista e sexista19 (ademais
de racista), no qual a estrutura e o simbolismo de gênero operam desde as
entranhas de sua estrutura conceitual, de seu saber legitimador, de suas
instituições, a começar pela linguagem:20 eis o sentido da seletividade.
Ora, nisto o SJC replica a lógica e a função real de todo mecanismo de controle social que se, em nível micro, implica ser um exercício
de poder e de produção de subjetividades (a seleção binária, entre o
bem e o mal, o masculino e o feminino), em nível macro, implica ser um
exercício de poder (de homens e mulheres); reprodutor de estruturas,
instituições, simbolismos e o SJC ocupa um importantíssimo lugar na
manutenção do status quo social.
17 Imune diz-se da conduta criminal que fica completamente na cifra oculta, ou seja, ignorada de
qualquer agência do sistema. Impune é a conduta criminal que chega ao conhecimento do
sistema, mas, em alguma das agências, é interrompido o processo de criminalização, não
sendo objeto de punição.
18 HULSMAN; BERNAT DE CELIS, 1993, p. 65.
19 Ou, em outras palavras, sendo as nossas sociedades, contemporaneamente, capitalistas e patriarcais, a funcionalidade do sistema penal guarda com estas matrizes históricas uma conexão
funcional, ao tempo que as desvela, operando “como um calidoscópio no âmbito do qual o
funcionamento de certos mecanismos é esclarecido.” BERGALLI, Roberto y BODELÓN. Encarna.
La cuestión de las mujeres y el derecho penal simbólico. Anuário de Filosofia del derecho IX.
Madrid: Ministério da Justiça, 1992. p. 54.
20 O universalismo (abstrato e generalizante) e a objetividade, sendo atributos fundantes do modelo androcêntrico de sociedade, serão também do modelo androcêntrico de ciência e de sistema de
justiça criminal, cuja contradição básica pode ser flagrada desde a linguagem, estruturalmente
masculina e estigmatizante, com que afirma seus ideais protetores igualitários.
83
Nesta esteira, a constatação fundamental de Alessandro Baratta,21 segundo a qual:
Para compreender o mecanismo geral de reprodução do status quo da nossa
sociedade, contemporaneamente patriarcal e capitalista, faz-se necessário ter
presente não apenas a importância estrutural da separacão entre esfera pública
e privada, mas também, da complementariedade dos mecanismos de controle
próprios dos dois círculos. Em um corpo social como o nosso, a divisão entre
público e privado, formal informal, constitui um instrumento material e ideológico fundamental para o funcionamento de uma economia geral do poder, na
qual todas as várias relações de domínio encontram o seu alimento específico e,
ao mesmo tempo, se entrelaçam e sustentam.
4 O que sabemos sobre a funcionalidade de gênero:
o androcentrismo do sistema de justiça criminal
4.1 A construção social do gênero no patriarcado: espaços, papéis
e estereótipos
Necessário, portanto, olhar doravante para o androcentrismo do SJC
e sua funcionalidade de gênero, e para tanto é necessário uma breve incursão sobre a construção social do gênero (a dicotomia masculino-feminino) no patriarcado; construção que, como é sabido, encontra-se em
desconstrução, mas, como parece ser menos evidente, continua operando,
sobretudo no SJC. Isto implica falar em espaços (divisão entre público e
privado com correspondente divisão social do trabalho) papéis (atribuição de papéis diferenciados aos sexos, sobre ou subordinado, nas esferas
da produção, da reprodução e da política) e estereótipos.
A esfera pública, configurada como a esfera da produção material, centralizando as relações de propriedade e trabalhistas (o trabalho
produtivo e a moral do trabalho), tem seu protagonismo reservado ao
Homem como sujeito produtivo, mas não qualquer Homem. A estereotipia correspondente para o desempenho deste papel (trabalhador
de rua) é simbolizada no homem racional/ativo/forte/potente/guerreiro/viril/público/possuidor.
21 BARATTA, 1999, p. 48.
84
A esfera privada, configurada, a sua vez, como a esfera da reprodução natural, e aparecendo como o lugar das relações familiares (casamento, sexualidade reprodutora, filiação e trabalho doméstico) tem seu protagonismo reservado à mulher, por meio do aprisionamento de sua sexualidade na função reprodutora e de seu trabalho no cuidado do lar e dos
filhos. É precisamente este, como veremos, o eixo da dominação patriarcal.
Os atributos necessários ao desempenho deste papel subordinado ou
inferiorizado de esposa, mãe e trabalhadora do lar (doméstico)22 são exatamente bipolares em relação ao seu outro. A mulher é então construída
femininamente como uma criatura emocional/subjetiva/passiva/frágil/
impotente/pacífica/recatada/doméstica/possuída.
Em síntese, espaço público – papéis patrimoniais –, estereótipos do
pólo da atividade: ao patrimônio, o cuidado dos bens.
Espaço privado – papéis matrimoniais –, estereótipos do pólo da passividade: ao matrimônio o cuidado do lar.
Estamos perante o simbolismo de gênero com sua poderosa estereotipia e carga estigmatizante. Este simbolismo (enraizado nas estruturas)
que homens e mulheres, no entanto, reproduzem apresenta a polaridade de valores culturais e históricos como se fossem diferenças naturais
(biologicamente determinadas) e as pessoas do sexo feminino como membros de um gênero subordinado, na medida em que determinadas qualidades, bem como o acesso a certos papéis e esferas (da Política, da Economia e da Justiça, por exemplo) são percebidos como naturalmente ligados a um sexo biológico e não ao outro.23
De tal maneira que a mulher é construída como (não) sujeito do gênero feminino.
22 Merece observação e reparos a desqualificação, que o feminismo de primeira geração procedeu,
aos papéis femininos na esfera privada, sejam de esposa, mãe ou trabalhadora do lar. Sem
dúvida que todos estes papéis, fora da condição de subalternidade do domínio patriarcal e no
seu exercício com autonomia, são majestosos e importantes para o crescimento existencial da
mulher, particularmente o de Mãe, experiência fecunda para a ressignificação da vida. Esta visão
positiva tem vindo a ser, inclusive, a assumida pelos feminismos subseqüentes.
23 ALVES, José Eustáquio Diniz; CAVENAGUI, Suzana. Dominação masculina e discurso sexista.
Informe ANDES, ano XI, n. 97, fev. 2000, p. 11.
85
4.2 O masculino ativo e o feminino passivo: o cara e a coisa, o
criminoso e a vítima
Existe uma expressão (absolutamente cara) na nossa cultura que é
cotidianamente reproduzida e que emblematiza, magistralmente, a
hiperatividade do sujeito masculino ou, como se queira, o machismo.
O cara é aquele sujeito onipresente e onisciente do nosso imaginário, plantonista de 24 horas, a quem recorremos para todas as demandas. Se eu vou contar uma história ativa, ela começa com um cara. O
que estraga em casa, da telha ao vaso sanitário, tem que chamar um
cara para consertar; o que estraga ou se necessita na rua, do pneu furado às compras para carregar, tem que chamar um cara, e esse não é
apenas um pedido masculino feito por mulheres, mas por mulheres e
homens. Agora, o cara é também o vilão temido no mesmo plantão: se
alguém tiver que entrar em nossa casa para roubar, se alguém tiver que
colocar uma escada para subir na janela ou no telhado, será um cara. Se
alguém houver que nos assaltar na rua, será um cara. O cara é, a um só
tempo, exaltado e temido, ação e reação.
Qual é o contraponto do cara?
O contraponto do cara é precisamente a coisa: aquilo que não age ou
aquilo do que não nos lembramos: me diz uma coisa? como é mesmo o
nome daquela coisa? será que a dona coisa não vem? Ah, que coisa!
O SJC existe sobretudo para controlar a hiperatividade do cara e
manter a coisa no seu lugar (passivo).
Na bipolaridade de gênero, não é difícil visualizar, no estereótipo do
homem ativo e público acima referenciado, as potencialidades do seu próprio outro, a saber, o anti-herói socialmente construído como o criminoso,
tanto mais perverso quanto temida a biografia de seu desvio; como não
será difícil visualizar na mulher encerrada em seu espaço privado, o recato e os requisitos correspondentes à estereotipia da vítima.
Aos homens poderosos e (im)produtivos, o ônus da periculosidade
e da criminalização; às mulheres fragilizadas (como as crianças, os
velhos, os homossexuais e outros excluídos do pacto da virilidade), o
bônus? da vitimação.
86
O estereótipo de homem ativo no espaço público é o correspondente
exato do estereótipo de criminoso perigoso no sistema penal. Mas não qualquer homem, o homem ativo-improdutivo. O poder colossal de que o patriarcado dota o homem e o gênero masculino, o capitalismo culmina por solapar.
O estereótipo da mulher passiva (objeto-coisificada-reificada) na construção social do gênero, divisão que a mantém no espaço privado (doméstico), é o correspondente exato do estereótipo da vítima no sistema penal.
Mas não, como veremos, qualquer mulher.
As mulheres não correspondem, em absoluto, ao estereótipo de criminoso (as), mas ao de vítima (s).
4.3 O sistema de justiça criminal co-constituindo a construção social
de gênero na construção social da criminalidade e da vitimação:
integrando o controle social informal
O SJC vai expressar e reproduzir a estrutura e o simbolismo de gênero,
expressando e contribuindo a reproduzir o patriarcado – assim como o capitalismo. Dizer que é um sistema integrativo do controle social informal significa então que ele atua residualmente, no âmbito deste, mas neste funcionamento residual reforça o controle informal masculino e feminino, e os respectivos espaços, papéis e estereótipos a que devem se manter confinados.
Em realidade, o SJC é duplamente subsidiário ou residual24 relativamente ao controle social informal. Em primeiro lugar, funciona como um
mecanismo público (masculino) de controle dirigido primordialmente aos
homens como operadores de papéis masculinos na esfera pública da produção material e a pena publica é o instrumento deste controle.
Neste sentido, é integrativo do controle informal de mercado, reforçando o controle capitalista de classe. Com efeito, intervém de modo subsidiário para controlar o normal desenvolvimento das relações de produção – seleciona dentre os possuidores que não tiveram suficiente disciplina
para o trabalho ou que tenham ficado à margem da economia formal e do
mercado oficial de trabalho, como o demonstra a população carcerária
24 BARATTA, 1999, p. 18-80.
87
(déficit de instrução, posição precária no mercado de trabalho, tóxicodependentes) ou, na era da globalização, excluídos de qualquer integração
no mercado e, portanto, do reino do consumo.
Empiricamente, como vimos, são os homens que lotam as prisões, ao
lado da incômoda presença de algumas mulheres (lembremos do adágio
popular dos 3 “pés”), que nos Códigos sempre têm a seu favor a mesma
exculpante de um estado especial (puerperal, menstrual, hormonal, emocional) e a sua espera os manicômios (controle terapêutico) antes que as
prisões. A loucura, os estados especiais são os álibis de sua fragilidade:
mulher só é perigosa e só corresponde ao estereótipo de perigo no trânsito!
Do lado do sistema de justiça, nesse poderoso espaço publico, são novamente os homens que historicamente vamos encontrar, como na masculina comunidade de criminólogos.
Neste sentido podemos dizer que o SJC é androcêntrico porque
constitui um mecanismo masculino de controle para o controle de condutas masculinas, em regra geral, praticadas pelos homens, e só residualmente feminino.
Em segundo lugar, o mecanismo de controle dirigido às mulheres,
como operadoras de papéis femininos na esfera privada, tem sido, nuclearmente, o controle informal materializado na Família (pais, padrastos,
maridos), dele também co-participando a escola, a religião e a moral e,
paradoxalmente, a violência contra a mulher (crianças, jovens e adultas),
dos maus-tratos à violação e o homicídio, reveste-se muitas vezes aqui de
pena privada equivalente à pena pública.
É por esta dupla razão acima enunciada que indo em busca do sujeito feminino no catálogo masculino só residualmente vamos encontrá-lo.
Tanto lendo o Código penal (criminalização primária) quanto olhando
para as prisões (criminalização terciária) constatamos que o sistema só
criminaliza a mulher residualmente25 e que, de fato, a trata como vítima.
25 Seja como for, na medida em que as mulheres passam a exercer papeis masculinos na esfera
publica, sobretudo no mercado, legais ou ilegais, elas tornam-se mais vulneráveis às malhas do
controle penal, e é precisamente isto que esta a acontecer no mundo globalizado, elevando-se as
taxas de criminalizacão feminina, pelas mesmas condutas que os homens são criminalizados, a
saber, furto, roubo, estelionato e, nuclearmente, ao que tudo indica, tráfico de drogas.
88
O SJC funciona26 então como um mecanismo público integrativo do
controle informal feminino, reforçando o controle patriarcal (a estrutura e
o simbolismo de gênero), ao criminalizar a mulher em algumas situações
específicas27 e, soberanamente, ao reconduzi-la ao lugar da vítima, ou
seja, mantendo a coisa em seu lugar passivo.
5 O que sabemos sobre o sistema de justiça criminal no
tratamento da violência (sexual) contra a mulher: como a
mulher aparece no sistema?
5.1 A mulher como vítima da violência sexual e o estupro: da lógica da
seletividade à sublógica da honestidade e a seleção das vítimas
E precisamente porque o núcleo do controle feminino no patriarcado
é o controle da sexualidade28 (implica preservação da virgindade e zelo
26 Em realidade, o tratamento que o SJC é co-constitutivo da construção social de gênero ajudando
a criar e perpetuar uma estereotipia que a sua vez se relaciona e reforça outros projetos
hegemônicos do século XIX, como o da criação de um modelo social e econômico (o papel
feminino é, ademais, importantíssimo economicamente, por quanto dele depende o trabalho
assalariado de outros membros da família) (B&B-58).
O direito penal, em sua relação com o sujeito feminino, tem desenvolvido e reproduzida algumas
imagens que enlaçam esse sujeito feminino com algumas idéias que todavia se encontram presentes no sistema penal moderno; por exemplo, a preeminênica do discurso terapêutico e moral.
27 a) Criminalizando (primariamente) condutas femininas (a mulher como autor de crimes) contra
a pessoa (aborto, infanticídio, abandono de recém-nascido), crimes contra a família-casamento
(bigamia, adultério), crimes contra a família-filiação (parto suposto, abandono de incapazes).
b) Criminalizando (secundariamente) as mulheres quando exercitam papéis socialmente masculinos ; ou seja, quando se comportam como homens, são violentas, usam armas.
c) Criminalizando (secundariamente) as mulheres quando praticam infrações em contextos de
vida diferentes dos impostos aos papéis femininos (não vivem em família ou as abandonam.).
Aqui não apenas violam os tipos penais, mas a construção dos papéis de gênero como tal e o
próprio “desvio socialmente esperado”.
Seja como for, crimes próprios de mulheres ainda encontram acolhimento privilegiado no SJC:
quando criminaliza, exculpa-as, de modo que a criminalização é simbólica, para reforçar os
papéis de gênero, porque lugar de esposa e mãe é em casa. (BARATTA, p. 50-1).
Por outro lado, à medida que as mulheres passam a exercer papéis masculinos na esfera publica,
tornam-se mais vulneráveis ao controle penal e é precisamente isto que está a acontecer no
mundo inteiro, elevando-se as taxas de criminalização feminina, pelas mesmas condutas que os
homens são criminalizados, a saber, crimes patrimoniais e, nuclearmente, tráfico de drogas.
28 Ora, ”o controle da sexualidade feminina, através de seu aprisionamento na função reprodutora,
historicamente constitui, ao lado da centralidade do trabalho doméstico, um dos dois grandes
89
pela reputação sexual), a violência contra a mulher será recortada pelo
SJC como violência sexual e a mulher aparece explicitamente como vítima
da violência sexual (no capítulo dos crimes contra os costumes), nuclearmente do estupro29 (cuja análise priorizarei aqui) e sua constelação (atentados violento e fraudulento ao pudor, sedução, rapto etc.).
Aqui o sistema criminal segue, talvez com mais contundência que
em qualquer outra, a lógica da seletividade, acendendo seus holofotes sobre as pessoas (autor e vítima) envolvidas, antes que sobre o fato-crime
cometido, de acordo com estereótipos de violentadores e vítimas.30
O diferencial é que há uma outra lógica específica acionada para a
criminalização das condutas sexuais – a que denomino “lógica da honestidade” – que pode ser vista como uma sublógica da seletividade31 na medieixos pelos quais se concretizam as relações específicas de dominação, estabelecidas no plano
individual pela estruturação do patriarcado. Tal controle encontra na lei penal vigente largo
campo de atuação, fazendo-se presente de forma visível na criminalização de condutas como as
definidas nos tipos de sedução, do rapto consensual, do adultério ou do aborto consentido (...).
Mas a presença da ideologia patriarcal vai mais além, estendendo-se por todo o tratamento dado
às questões ligadas à sexualidade e às relações familiares, do que talvez seja exemplo mais
eloqüente, ou, ainda, seja a diferenciação de pena entre o estupro e o AVP (3 a 8 e 2 a 7) vigente
até o advento da Lei 8.072/90. (KARAM, Maria Lúcia. Sistema penal e direitos da mulher.
Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, n. 9, p. 147-63, jan./mar. 1995, p. 147). No mesmo sentido, MURARO, Rose Marie. Textos
da fogueira. Brasília: Letraviva, 2000. p. 74: “A mulher jovem hoje liberta-se porque o controle
da sexualidade e a reclusão do domínio privado formam os dois pilares da opressão feminina.”
29 O estupro é definido no art. 213 do Código Penal brasileiro:
“Art. 213. Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça.
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.”
O artigo 1º da Lei nº 8.072 de 25.07.1990 incluiu o estupro no rol de crimes hediondos aumentando as penas, anteriormente cominadas, de 3 a 8 anos, para 6 a 10 anos de reclusão (artigo 6º). O
artigo 9º determinou, por sua vez, que para as hipóteses de estupro na forma simples (artigo
213) e qualificada (artigo 213 c/c artigo 223 caput) “as penas serão acrescidas de metade,
respeitado o limite superior de trinta anos de reclusão, estando a vítima em qualquer das
hipóteses referidas no art. 224 também do Código Penal”.
30 Também aqui o sistema faz suas seleções binárias, existindo vítimas honestas e prostitutas (expressão na clientela prisional), as quais, junto com o estuprador, simbolizam aquele ponto nevrálgico
de junção entre o capitalismo e o patriarcado que a família patriarcal não pode suportar. Prostitutas e estupradores, ao profanarem a monogamia sobre o interdito dos vários leitos, violam a um só
tempo a regularidade do espaco privado e público – a unidade familiar e sucessória.
31 Esta lógica pode ser claramente apreendida, entre outros, no filme de ficção Os Acusados, (OS
ACUSADOS. Direção: Jonathan Kaplan. Produção: Paramount Pictures. Intérpretes: Kelly
McGillis, Jodie Foster, Bernie Coulson, Leo Rossi (II), Carmen Argenziano, Ann Hearn, Steve
Antin, Tom O’Brien (II), Peter Van Norden, Woody Brown (I), Terry David Mulligan, Scott
Paulin, Kim Kondrashoff, Stephen E. Miller, Tom Heatone outros. [s.l.]: Paramount Pictures,
90
da em que se estabelece uma grande linha divisória entre as mulheres consideradas honestas (do ponto de vista da moral sexual dominante), que podem ser consideradas vítimas pelo sistema, e as mulheres desonestas (das
quais a prostituta é o modelo radicalizado), que o sistema abandona na
medida em que não se adequam aos padrões de moralidade sexual impostos pelo patriarcado à mulher, lógica que não se reduz, por outro lado, à
criminalização secundária. Pois pode ser empiricamente comprovada ao
longo do processo de criminalização desde a criminalização primária (definições legais dos tipos penais ou discurso da Lei) até os diferentes níveis da
criminalização secundária (inquérito policial, processo penal ou discurso
das sentenças e acórdãos) e a mediação do discurso dogmático entre ambas.
Assim, no título “Dos crimes contra os costumes” do Código Penal brasileiro (cujo bem jurídico declarado penalmente protegido é a liberdade sexual) inteiramente atravessado pela ideologia patriarcal, diversos tipos penais
requerem que a vítima seja “mulher honesta”, como posse sexual mediante
fraude (art. 214) atentado ao pudor mediante fraude (art. 215) sedução (art.
216) rapto consensual (art. 220) pré-selecionando a vitimação, já que estão
excluídas, a priori, as mulheres desonestas, e, em especial, as prostitutas.
E muito embora a definição legal do estupro (art. 213) prescinda desta exigência, a lógica da honestidade é tão sedimentada que “os julgamentos de estupro, na prática, operam, sub-repticiamente, uma separação entre
mulheres ‘honestas’ e mulheres ‘não honestas’. Somente as primeiras podem ser consideradas vítimas de estupro, apesar do texto legal.”32
Desta forma, o julgamento de um crime sexual – inclusive e especialmente o estupro – não é uma arena onde se procede ao reconhecimento de
uma violência e violação contra a liberdade sexual feminina nem tampouco
onde se julga um homem pelo seu ato. Trata-se de uma arena onde se
julgam simultaneamente, confrontados numa fortíssima correlação de for1988. 1 bobina cinematográfica (106 min.), son., color., 35mm.) que trata de um caso de estupro
múltiplo, no qual uma jovem é vitima de três estupros numa só noite. A respeito ver também
FELIPE, Sônia; PHILIPI, Jeanine Nicolazi. O corpo violentado: estupro e atentado violento ao
pudor. Florianópolis: Gráfica/UFSC, 1996.
32 ARDAILLON, Danielle; DEBERT, Guita Grin. Quando a vítima é mulher. Análise de julgamentos de crimes de estupro, espancamento e homicídio. Brasília: Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher/ Ministério da Justiça, 1987. p. 35.
91
ças, a pessoa do autor e da vítima: o seu comportamento, a sua vida
pregressa. E onde está em jogo, para a mulher, a sua inteira “reputação
sexual” que é – ao lado do status familiar – uma variável tão decisiva para
o reconhecimento da vitimação sexual feminina quanto a variável status
social o é para a criminalização masculina.
Regra geral, o conjunto probatório nos processos de estupro é extremamente frágil, limitando-se à prova pericial e testemunhal ou esgotando-se,
muitas vezes, no depoimento da vítima. Isto é facilmente compreensível pelas
circunstâncias em que ocorrem. São crimes geralmente praticados em lugares
ermos ou na intimidade dos lares, distante do público e de testemunhas, sendo as partes envolvidas, muitas vezes, as únicas presentes. Esta é a razão,
justifica-se, pela qual, nos crimes sexuais, a palavra da vítima e o laudo de
exame de conjunção carnal assumem especial relevância, o que, aliás, parece
unanimidade em matéria judicial (além de doutrinária e jurisprudencial).33
Mas se exige, contudo, que sua palavra seja corroborada pelos demais elementos probatórios constantes dos autos, conforme os ilustram
fragmentos do discurso decisório pesquisado:34
O que se pode perceber, pelos discursos analisados, é que estes “outros
elementos probatórios” nada mais são do que a vida pregressa da própria
33 Debilidade da prova – o conjunto probatório frágil (palavra+laudo) não explica, mas justifica.
34 Decisões reiteradas dos tribunais brasileiros neste sentido (como RT 327/100, 387/301, 419/88,
498/292 e 533/376) podem ser ilustradas pelas ementas que seguem:
“Nos crimes contra os costumes, via de regra, a prova não é coletânea dos fatos, quase sempre
sendo mais circunstancial que direta. Assim, a palavra da vítima é do maior valor probante,
especialmente quando se trata de mulher recatada, sem aparente interesse em prejudicar o
indigitado autor do delito.”
“Diante de um passado tão comprometedor, conclui-se que as declarações da vítima não merecem fé, pois não estão corroboradas por outros elementos de prova...Por isso é que se afirma que
a veracidade da negativa do denunciado quanto à prática do crime de estupro, sustentada desde
a lavratura do auto de prisão em flagrante, tem que prevalecer porque a palavra da vítima está
despida do menor prestígio. “
“Tratando-se de mulher leviana, cumpre apreciar com redobrados cuidados a prova da violência
moral. Tratando-se de vítima honesta, e de bons costumes, suas declarações têm relevante valor.” “Se
a vítima é leviana, a prova deve ser apreciada com redobrado cuidado.” “A palavra da moça
seduzida constitui prova de autoria do crime quando ela é honesta e de bons costumes e procedimento.” “Se a mulher alega, sem qualquer lesão, ter sido estuprada por um só homem, que se utilizou da
força física, suas declarações devem ser recebidas com reservas ou desconfiança”. A respeito, ver:
MIRABETTE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial. São Paulo: Atlas. 1986. v. 3,
p. 408 e 420; e, DELMANTO, Celso. Código Penal comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 1988. p. 390.
92
vítima. Ora, se o conjunto probatório se reduz, muitas vezes, à própria palavra da vítima então está a se exigir que sua palavra seja corroborada.....
por sua vida pregressa, por sua moral sexual ilibada, por seu recato e pudor. Existindo ou não laudo pericial, ou ainda prova testemunhal, mesmo
em situações de flagrante delito, a palavra da vítima perde credibilidade se
não for ela considerada “mulher honesta”, de acordo com a moral sexual
patriarcal ainda vigente no SJC. O que vale, igualmente, para as vítimas
mulheres que não são maiores de 14 anos, que tem a seu favor a presunção
de violência (violência ficta) prevista do artigo 224, “a”, do CPB, mas que é
sempre relativizada, pois somente vale (lembre-se o célebre julgado do Ministro do STF, Marco Aurélio da Silveira) se a vítima for considerada honesta.
Ao tempo em que a vítima é julgada pela sua reputação sexual, é o
resultado deste julgamento que determina a importância de suas afirmações.
Tais são as motivações latentes e reais da sentença que, integrando o senso comum judicial, decisivamente as condicionam, funcionando como mecanismos de seleção que, todavia, não se revelam como tais
na sua fundamentação formal (onde aparece a técnica jurídica com
seus conceitos dogmáticos).
E não é diferente em relação às vítimas crianças, cuja palavra goza
da mesma falta de credibilidade, embora por outro motivo: não são escutadas, não tem voz, porque a tendência é não se acreditar no que dizem
ou se desqualificar a sua versão dos fatos como fantasias infantis.
O que ocorre, pois, é que no campo da moral sexual o sistema penal
promove, talvez mais do que em qualquer outro, uma inversão de papéis
e do ônus da prova.
A vítima que acessa o sistema requerendo o julgamento de uma conduta definida como crime – a ação, regra geral é de iniciativa privada – acaba
por ver-se ela própria “julgada” (pela visão masculina da lei, da polícia e da
Justiça), incumbindo-lhe provar que é uma vítima real e não simulada.
Tem sido reiteradamente posto em relevo a maneira como as demandas femininas são submetidas a um intensa “hermenêutica da suspeita”,
do constrangimento e da humilhação ao longo do inquérito policial e do
processo penal que vasculha a moralidade da vítima (para ver se é ou não
uma vítima apropriada), sua resistência (para ver se é ou não uma vítima
93
inocente), reticente a condenar somente pelo exclusivo testemunho da
mulher (dúvidas acerca da sua credibilidade)
Em suma, as mulheres estereotipadas como “desonestas” do ponto
de vista da moral sexual, inclusive as menores e, em especial as prostitutas, não apenas não são consideradas vítimas, mas podem ser convertidas, com o auxílio das teses vitimológicas mais conservadoras, de vítima
em acusadas ou rés num nível crescente de argumentação que inclui ela
ter “consentido”, “gostado” ou “tido prazer”, “provocado”, forjado o estupro ou “estuprado” o pretenso estuprador, especialmente se o autor não
corresponder ao estereótipo de estuprador, pois, correspondê-lo, é condição fundamental para a condenação.
Por isso mesmo a referência à Vitimologia e à pessoa da vítima
relacionadamente à pessoa do autor, que não se dá com a mesma intensidade
em todos os processos de criminalização, encontra nos crimes sexuais o lugar
por excelência de sua utilização. É o que vimos, explicitamente declarado, na
Exposição de Motivos do Código Penal Brasileiro de 1940, ao justificar a expressão “comportamento da vítima” introduzida no artigo 59 do Código Penal Brasileiro pela reforma penal de 1984: “Fez-se referência expressa ao comportamento da vítima erigida, muitas vezes, em fator criminógeno, por constituir-se em provocação ou estímulo à conduta criminosa, como, entre outras
modalidades, o pouco recato da vítima nos crimes contra os costumes.”
Nesta perspectiva, o senso comum policial e judicial não difere, uma
vez mais, do senso comum social. O SJC distribui a vitimação sexual feminina com o mesmo critério que a sociedade distribui a honra e a reputação
feminina: a conduta sexual.35
5.2 Impunidade, imunidade e seleção de estupradores:
da violência sexual à violência doméstica
Isto nos conduz ao problema, tão caro ao feminismo, da impunidade:
é que ser considerada vítima, nos labirintos da honestidade, não implica
35 LARRAURI, Elena (Comp.). Mujeres, derecho penal y Criminologia. In: Control formal y el
derecho penal de las mujeres. Contexto. Madrid: Siglo Veintiuno, 1994b. p. 102.
94
diretamente em punibilidade do autor. O SJC, que promete proteger as vítimas de crimes sexuais, absolve, ao que tudo indica, com muito maior freqüência do que condena. A regra, na conduta de estupro – seguindo a lógica do
sistema – é a impunidade, e a condenação em casos limites, permanecendo,
contudo, aquém da imunidade, pois, seguindo também a lógica de funcionamento do sistema, subsiste uma enorme cifra oculta da violência sexual,
especialmente a doméstica, mesmo após toda a publicização e politização do
problema pelo feminismo, e a criação das Casas e Delegacias de Mulheres.36
Mas, quem pratica estupro e permanece no campo da imunidade/
impunidade? E quem é efetivamente selecionado, rotulado ou etiquetado
com o status negativo de estuprador?
A indagação remete, por sua vez, à questão da autoria e etiologia do
estupro, espaços e relações em que ocorre. Quanto à autoria, sabe-se hoje
que os crimes sexuais são condutas majoritárias e ubíquas e não de uma
minoria anormal, conforme preconiza o discurso jurídico-penal e
criminológico oficial e o senso comum. Paulatinamente foi descobrindo-se
que o estupro ocorre com muito mais freqüência do que se imaginava, que
cada homem pode ser o autor, que cada mulher pode ser a vítima e que a
vítima e o autor muito freqüentemente se conhecem. Tratam-se de violências praticadas por estranhos, na rua, sim. Mas sobretudo, e majoritariamente, nas relações de parentesco (por pais, padrastos, maridos, primos),
profissionais (pelos chefes) e de conhecimento em geral (amigos). Ocorrem, portanto, na rua, no lar e no trabalho, contra crianças, adolescentes,
adultas e velhas, tendo sido denunciado contra vítimas desde poucos meses de idade até sexa ou octosagenárias e praticadas por homens que nada
têm de tarados, desviados sexuais ou “anormais”, mas um vínculo forte
com a vítima. Violência sexual é, em grande medida, violência doméstica:
paradoxalmente a família, que deveria ser um espaço de proteção, é também – como o SJC – um espaço de violência e violação.
Quanto à etiologia do estupro, sabe-se, hoje, na esteira da primeira
argumentação, que não se trata de conduta voltada, prioritariamente, para
a satisfação do prazer sexual (lascívia desenfreada), como também preco-
36
95
niza o discurso criminológico e jurídico-penal oficial e o senso comum. A
pesquisa de Kolodny, Masters e Johnson37 conclui, neste sentido, que a
maioria dos estupros ocorrem dentro de um contexto de violência física
em vez de paixão sexual ou como meio para a satisfação sexual. Pois,
prosseguem, “constatamos que ou a força ou a ira dominam, e que o estupro, em vez de ser principalmente uma expressão de desejo sexual, constitui, de fato, o uso da sexualidade para expressar questões de poder e ira. O
estupro, então, é um ato pseudo-sexual, um padrão de comportamento
sexual que se ocupa muito mais com o status, agressão, controle e domínio
do que com o prazer sexual ou a satisfação sexual. Ele é comportamento
sexual a serviços de necessidades não sexuais.”
As mulheres começaram a dar-se conta de que o estupro (assim como
os maus-tratos, o incesto, a prostituição, o assédio sexual no trabalho etc.)
são fenômenos de uma estrutura de poder, a existente entre homens e
mulheres, e o argumento da violência individual foi cedendo lugar ao argumento da violência estrutural.38
O conjunto das conclusões criminológicas críticas e feministas é por
demais significativa: se o espaço privado-familiar é um locus de incidência
majoritária da violência sexual (e seus integrantes os sujeitos centrais envolvidos), pode-se interpretar que isto sucede – para além dos elementos
intersubjetivos implicados nas relações de violência – porque, historicamente, na sociedade patriarcal, a família tem sido um dos lugares nobres,
embora não exclusivo (porque acompanhada da Escola, da Igreja, da vizinhança, etc), precisamente do controle social informal sobre a mulher. E a
violência contra a fêmea no lar, do pai ao padrasto, chegando aos maridos
ou companheiros, pode ser vista, portanto, (contrariamente à ideologia do
agressor como expressão de uma aberração sexual e da busca do gozo)
como uma expressão de poder e domínio; como uma violência controladora.
E, num sentido último, como pena privada.
37 KOLODNY, Robert. C.; MASTERS, William H.; JOHNSON, Virginia E. Manual de medicina
sexual. Tradução por Nelson Gomes de Oliveira. São Paulo: Manole, 1982. p. 430-31
38 BEIJERSE, Jolande Uit, KOOL, Renée. ¿La tentación del sistema penal: apariencias engañosas?
El movimiento de mujeres holandés, la violencia contra las mujeres y el sistema penal. In:
LARRAURI, 1994, p. 143.
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A violência aparece como o elemento masculino comum, presente no
poder punitivo do Estado sob a forma de pena pública e no poder punitivo
da família (pais, padrastos, maridos, companheiros) sob a forma de pena
privada, e age nas duas esferas como a última garantia de controle, embora o estilo dos dois sistemas seja diferente.
Embora, contudo, já cientificamente desfeita a mitologia que circunda o estupro, tanto na autoria, relações e espaços quanto na etiologia,
continua-se reproduzindo o estereótipo do estuprador como um ser anormal, de lascívia desenfreada, estranho à vítima, e, numa preconceituação
masculina, continua-se acentuando o encontro sexual e o coito vaginal
antes que a violência. E este estereótipo continua agindo no SJC, condicionando tanto a seleção quanto a impunidade, pois embora domine a violência familiar e entre conhecidos, a seleção se dá fora dela: os etiquetados
como estupradores, ao que tudo indica, são estranhos à vítima e, naturalmente, pertencentes aos baixos estratos sociais.
O estupro é, pois, uma conduta majoritária e ubíqua, mas desigualmente distribuída, de acordo, sobretudo, com estereótipos de estupradores
que operam em nível do controle social formal (Lei, saber, Polícia, Justiça,
Ministério Público) e informal (opinião pública).
É mais fácil etiquetar como estupro a conduta cometida por um estranho na rua que a realizada pelo chefe ou pelo marido, cuja possibilidade está, em algumas legislações ou jurisprudências, explicitamente excluída.39 Ora, os familiares (maridos, padrastos, primos), colegas e amigos,
não correspondem, em absoluto, ao estereótipo de estupradores. Por outro lado, nada é tão forte dentro do estereótipo de criminoso quanto o
subestereótipo de estuprador.
Texto originariamente apresentado no painel “O Sistema de Justiça
criminal no tratamento da violência contra a mulher”, no 9º Seminário
Internacional do IBCCrim e publicado na Revista alusiva ao Seminário
39 O referido artigo 213 do Código Penal Brasileiro não proíbe, com efeito, que o marido possa ser
sujeito ativo de estupro contra a esposa. Mas na doutrina e jurisprudência goza de forte tradição
e hegemonia a tese que sustenta a impossibilidade, sob o argumento de que um dos deveres do
casamento civil é a prestação carnal, e a mulher não pode, portanto, recusá-la.
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(Revista Brasileira de Ciências Criminais, n.48, p. 260-290, maio/jun.
2004). Num plano mais profundo, pois, chega-se a uma importante conclusão sobre o objeto jurídico latentemente protegido por meio da sublógica
da honestidade (a qual, como a seletividade, revela-se como marca estrutural do exercício de poder do sistema penal).
O SJC não protege, em absoluto, a liberdade sexual feminina, que, por
isso mesmo, é pervertida (a mulher que diz “não quer dizer talvez; a que diz
talvez quer dizer “sim”...e a que diz não, não é, em absoluto, uma mulher ).
O SJC é ineficaz para proteger o livre exercício da sexualidade feminina e o
domínio do próprio corpo. Se assim o fosse, todas as vítimas seriam consideradas iguais perante a lei e o assento seria antes no fato crime e na violência
do que na conjunção carnal. E teriam do sistema o reconhecimento e a solidariedade para com a sua dor. Não é casual que ocorra o inverso.
A sexualidade feminina referida ao coito vaginal diz respeito à reprodução. E a função reprodutora (dentro do casamento) se encontra protegida sob a forma da sexualidade honesta, que é precisamente a sexualidade monogâmica (da mulher comprometida com o casamento, a constituição da família e a reprodução legítima), de modo que protegendo-a,
mediante a proteção seletiva da mulher honesta, protege-se, latente e diretamente a unidade familiar e, indiretamente, a unidade sucessória (o direito de família e sucessões), que, em última instância, mantém a unidade
da própria classe burguesa no capitalismo.
A proteção é, em nível micro, da moral sexual dominante e da família (unidade familiar e sucessória segundo o modelo da família patriarcal/
capitalista monogâmica, heterossexual, destinada à procriação legítima,
etc); ainda que este modelo esteja passando hoje por profundas transformações culturais e jurídicas.
Em nível macro, a função real do sistema é manter estruturas, instituições e simbolismos, razão pela qual, repita-se, não pode ser um aliado
no fortalecimento da autonomia feminina. Nesta esteira, “também fica
claro o papel da família como mediadora entre o sistema patriarcal e a
sociedade de classes”; e tomando em consideração que o sistema patriarcal é mais antigo do que o sistema de classes, pode-se afirmar que está por
baixo do sistema capitalista. Assim, a família tem importante função du-
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pla: ser a mediadora entre o indivíduo e a classe social, e entre o sistema
capitalista e a cultura patriarcal (que lhe dá um valor muito mais alto do
que se pensava numa ciência social centrada no homem).40
Chegado a este ponto, pode-se melhor compreender e ressignificar o
problema da impunidade. Traduzido nos termos criminológicos aqui desenvolvidos, o tratamento que o sistema de justiça criminal confere à violência sexual, particularmente ao estupro, pode ser formulado na promessa de
punir com pena pública o autor da pena privada, o que implica o deslocamento do controle dos homens (pai, padrasto, marido) para o Estado.
Mas, em definitivo, não há esta punição, e na forma de impunidadeimunidade reafirma-se o continuum e a solidariedade masculina destes
controles. A impunidade é a cumplicidade ou solidariedade masculina do
SJC para com a família patriarcal:41 a pena, que deveria não só simbolizar, mas materializar a proteção, não incide: seletividade de gênero.
Ora, se a violência é em grande medida doméstica, o sistema, protegendo a unidade familiar e não a violentada, reforça a cumplicidade punitiva e o controle patriarcal.
Há, portanto, um profundo continuum ente o controle familiar e o penal: não existe uma instância que faça a assepsia, todas se contaminam. A
tentativa histórica – todavia frustrada – foi, como vimos, da Ciência penal.
Conclusão
Se ao longo de minha fala enfatizei que o sistema (assim como os
criminosos e as vítimas) somos todos nós e que o tratamento que o SJC
confere à mulher é o mesmo tratamento que o público-senso comum lhe
40 MURARO, 2000, p. 142.
41 A respeito, ver também FELIPE; PHILIPI, 1996, p. 18: “No estudo da violência sexual, cuidamos
de tornar explícitas a responsabilidade e a cumplicidade da sociedade com relação ao modo
como normalmente a vitima da violência e tratada. Nesse sentido, reconhecemos que uma das
funções mais relevantes no tratamento das vitimas da violência é a dos profissionais institucionais,
pois eles, a partir do ato de denuncia, passam a exercer papel decisivo no encaminhamento do
caso e no modo como o resto da sociedade encara a vitima e o violentador. Nosso trabalho critica
explicitamente uma espécie de solidariedade para como o violentador e de culpabilização da
vitima de atentados sexuais, típica de nossa cultura.”
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confere (e agora acrescento, as famílias, os maridos, os chefes, os homens
e, inclusive, as mulheres), somente posso concluir que o limite do sistema
é, em nível macro, o limite da própria sociedade e, em nível micro, o limite
das instituições e dos sujeitos: é o nosso próprio limite. Não existem modelos, oficiais ou outros, que não arrastem consigo as marcas destes limites.
Sob pena de continuarmos reproduzindo o maniqueísmo e a culpabilização exteriorizada e exteriorizante do sistema, parece haver um duplo
caminho a indicar e duas palavras-chave: inclusão e co-responsabilização;
ou melhor, uma dupla inclusão do que parece ser o Outro (alter-outsiders):
a) a nossa inclusão e co-responsabilização na mecânica da violência (e na
sua superação) e b) a inclusão de homens e mulheres, como sujeitos, nas
relações de violência e sua percepção, para além de estrutural e institucional,
como relacional (intersubjetiva), o que implica conceder voz a todos os
sujeitos, individuais (homens e mulheres) e coletivos (feminismos e sistemas de justiça criminal) implicados, iniciando por problematizar a grande
rubrica do feminismo: “violência contra a mulher”. A ultrapassagem das
lógicas da seletividade e da honestidade (violência institucional que expressa violência estrutural), bem como da violência sexual, é, portanto,
um desafio de todos nós. Precisamos, pois, a um só tempo, lutar por macro
e microtransformações, num tempo de crise profunda nas relações sexuais e de gênero, e no qual não mais se legitimam, nem “desigualdades
inferiorizadoras”, nem “igualdades descaracterizadoras”.
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