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Academia de Marinha XV SIMPÓSIO DE HISTÓRIA MARÍTIMA 14 a 16 de Novembro de 2017 O MAR COMO FUTURO DE PORTUGAL (c. 1223 – c. 1448) A propósito da contratação de Manuel Pessanha como Almirante por D. Dinis Academia de Marinha ACTAS XV SIMPÓSIO DE HISTÓRIA MARÍTIMA 14 a 16 de Novembro de 2017 O MAR COMO FUTURO DE PORTUGAL (c. 1223 – c. 1448) A propósito da contratação de Manuel Pessanha como Almirante por D. Dinis PATROCÍNIO Ficha técnica Título: O Mar como Futuro de Portugal (c. 1223 – c. 1448) A propósito da contratação de Manuel Pessanha como Almirante por D. Dinis Edição: Academia de Marinha, Lisboa Coordenação: José dos Santos Maia Data: Março 2019 Tiragem: 250 exemplares Impressão e acabamento: ACD PRINT, S.A. Depósito legal: 450709/19 ISBN: 978-972-781-145-8 ÍNDICE Organização do Simpósio ix Programa xi Comunicações Palavras do Presidente da Academia de Marinha Francisco Vidal Abreu 17 Palavras de Abertura pela Presidente da Comissão Científica Maria Helena da Cruz Coelho 21 Conferência de Abertura D. Dinis e o Mar José Augusto Sottomayor-Pizarro 25 Porquê os Pessagno? Novos dados para o conhecimento desta família genovesa Nunziatella Alessandrini e Luís Miguel Duarte 35 O Mar dionisino antes de Pessanha Pedro Gomes Barbosa 49 O Rei D. Dinis, Manuel Pessanha e o Regimento do Almirante Giulia Rossi Vairo 57 O almirantado português nos séculos XIII a XV Contextos e linhas de força Mário Viana 69 «Navios grossos, fortes e bem armados». A Marinha Portuguesa na Primeira Dinastia. Suporte de uma independência? José Varandas 83 Portugal e Aragão no tempo de D. Dinis: entre o Mediterrâneo e o Atlântico Jorge Semedo de Matos 99 D. Fernando e o mar em tempo de guerra Hermínia Vasconcelos Vilar 107 V Navegadores italianos e as ilhas atlânticas no De Canaria de Boccaccio Francesco Guidi-Bruscoli 117 As Ordens Militares e o Mar: problemas e perspectivas Luís Filipe Oliveira 127 O Mediterrâneo: uma área estratégica para as Ordens Militares Paula Pinto Costa 147 A regência de D. Pedro e a irreversibilidade da expansão atlântica portuguesa Alexandre António da Costa Luís O Infante D. Pedro de Avis e o Mar António de Andrade Moniz e Maria Celeste Moniz Póvoas Marítimas do Norte de Portugal: primórdios e repercussões político-administrativas, económicas e sociais José Marques A Póvoa de Paredes fundada pelo Rei D. Dinis Fernando Gomes Pedrosa 183 195 213 D. Dinis e o mar. Recursos portuários do Reino de Portugal nos séculos XIII e XIV. Notas de investigação Amândio Morais Barros 233 Mercadores, sociedades e redes comerciais, em Portugal, na Baixa Idade Média. Uma inesperada variedade e complexidade Filipe Themudo Barata 251 As Tercenas Régias de Lisboa: D. Dinis a D. Fernando Manuel Fialho Silva e Nuno Fonseca VI 161 257 Álvaro de Brito e Gil de Brito: vedores-mores da artilharia (1441 e 1450) Tiago Machado de Castro 275 D. Dinis e a Profissionalização das Instituições Militares. Definição da Matriz Euro-Atlântica Portuguesa Abílio Pires Lousada 291 De D. Afonso III a D. João I. As ‘bulas do mar’ na construção da primeira ‘plataforma continental’ portuguesa? Armando Martins 301 Entre o Direito Canônico e o Régio: a política diplomática de D. Dinis com os judeus e a participação dos sefarditas nas navegações portuguesas e na tercena náutica Cleusa Teixeira de Sousa 313 A vocação marítima dos Portugueses na obra do Cardeal Saraiva António Costa Canas 323 O mar na mitologia celta Angélica Varandas 345 Subsídios para um Cancioneiro Medieval dos Trovadores Galego-Portugueses do Mar João Abel da Fonseca 355 Conferência de encerramento O Mar como abertura do Mundo João Paulo Oliveira e Costa 385 Palavras da Presidente da Comissão Científica Maria Helena da Cruz Coelho 393 Palavras do Presidente da Academia de Marinha Francisco Vidal Abreu 397 VII AS TERCENAS RÉGIAS DE LISBOA: D. DINIS A D. FERNANDO Manuel Fialho Silva Nuno Fonseca (Ilustrações) “...E, como os castelhanos souberam que o rei juntava as suas gentes, como dissemos, armaram logo galés em Sevilha e vieram à costa de Portugal e entraram logo pelo rio de Lisboa e chegaram até o Restelo e tomaram naus que ali estavam carregadas de mercadorias e levaram-nas. E o almirante de Portugal, que era então em Lisboa, quando o viu, armou muito à pressa outras galés e foi atrás deles e alcançou-os dentro no mar e ali pelejaram com ele e venceu-os e tomou-lhe as galés e assim mesmo as naus, e trouxe tudo ao porto de Lisboa.” Crónica de Portugal de 1419, Universidade de Aveiro, 1998, p. 171 Segundo a denominada Crónica de Portugal de 1419, no Verão de 1296, durante a guerra com Castela, D. Fernando IV ordenou que a armada castelhana, composta por um número indeterminado de galés, atacasse a costa portuguesa. Esta armada subiu a foz do Tejo e tomou de assalto algumas naus portuguesas que se encontravam “no porto de Restelo”, carregadas de mercadorias, numa típica operação de corso sobre navios mercantes portugueses. Tudo corria bem aos castelhanos, no entanto, o Almirante português, sobre o qual não conhecemos o nome, estava em Lisboa. Rapidamente, mandou armar as galés portuguesas e partiu em perseguição da armada castelhana. Provavelmente porque as naus portuguesas apresadas atrasavam a velocidade dos castelhanos, as velozes galés portuguesas conseguiram alcançar a armada invasora e ocorreu um combate naval, cuja vitória sorriu aos portugueses. O anónimo Almirante regressou, vitorioso, a Lisboa, apresando por sua vez as galés que tinham partido de Sevilha. A narrativa da Crónica de 1419 deste interessante episódio dá a entender que o sucesso do Almirante de Portugal residiu sobretudo na sua capacidade em reagir à operação corso castelhana, mas não nos oferece detalhes sobre o que possibilitou esta prontidão da marinha portuguesa. O factor preponderante, não referido pelo cronista, que permitiu esta impressionante celeridade do Almirante é a existência, no porto da cidade de Lisboa, de uma muito bem preparada estrutura de apoio à marinha – as tercenas régias. Esta comunicação tentará dar a conhecer esta estrutura, que é ainda pouco conhecida pela historiografia portuguesa, e tentaremos sobretudo assinalar o seu relevante papel na história da marinha. Dois anos antes de os castelhanos terem entrado na foz do Tejo, no episódio aqui referido, D. Dinis tinha reestruturado de forma indelével toda a Ribeira de Lisboa, construindo uma nova muralha, duas ruas adjacentes a essa estrutura defensiva, a Judiaria 257 MANUEL FIALHO SILVA | NUNO FONSECA Pequena, e muito provavelmente, terá, também na mesma altura, restruturado as tercenas régias da cidade1. Antes de penetrarmos no cerne das questões relativas às tercenas de Lisboa, atentemos a algumas questões fundamentais. Qual a funcionalidade das tercenas medievais? Onde estavam e a quem serviam as principais tercenas na Europa Ocidental? As tercenas medievais eram locais onde se guardavam as galés, embarcações que foram, por excelência, o navio de combate mais relevante desde a antiguidade até ao século XVI, mantendo-se em algumas marinhas europeias até ao início do século XIX, nomeadamente na marinha russa2. A palavra tercenas, provém do árabe dar al-sina, “oficina”, que significava o local, pertencente ao estado, dedicado à construção naval. Do árabe, o étimo penetrou nas línguas romances, como no português taracenas, no castelhano atarazanas, no italiano darsena e arsenale, e no francês arsenal. Em todas estas línguas manteve-se uma ligação às actividades navais, mas nem sempre o significado se associou à manutenção de galés. Em Portugal e em Espanha a palavra tercenas ganhou, durante o século XVI, o sentido de armazém, perdendo-se gradualmente o vínculo com a construção naval3. Este facto deve-se às alterações sofridas nas prioridades da construção naval ocorridas, no século XVI, sobretudo devido à navegação atlântica que beneficiou naus e caravelas, em detrimento das galés, embarcações que se adaptavam melhor à navegação e ao combate naval no Mar Mediterrâneo. Na época medieval, as galés eram embarcações da maior importância quer a nível militar quer a nível comercial e até social, pois não se limitavam ao combate naval, sendo também utilizadas para transportar mercadorias e pessoas, destacando-se o transporte de peregrinos para a Terra Santa. Sobre a restruturação urbana da Ribeira de Lisboa, realizada por D. Dinis ver: Manuel Fialho Silva, Mutação urbana na Lisboa Medieval: Das Taifas a D. Dinis, tese de doutoramento apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2017, pp. 291-357. 2 Sobre a longa história das galés ver: Lionel Casson, Ilustrated History of Ships and Boats, New York, Doubleday, 1964, pp. 117-132; Fernando Gomes Pedrosa, Navios, Marinheiros e Arte de Navegar: 1139-1499, Lisboa, Academia de Marinha, 1997, pp. 9-51. 3 A descrição da funcionalidade das tercenas por Amândio de Barros referente ao início do século XVI não refere sequer as galés, indicando como principais funções, o “estaleiro naval”, o “«depósito de géneros», local onde se armazenavam todos os produtos necessários ao abastecimento da frota” e, finalmente, como os “ verdadeiros arsenais da marinha” (cf. Amândio de Barros, “A Preparação das Armadas no Portugal de Finais da Idade Média”, Revista da Faculdade de Letras: História, nº 7, Porto, Universidade do Porto, 1990, p. 110). 1 258 AS TERCENAS RÉGIAS DE LISBOA: D. DINIS A D. FERNANDO Imagem 1. Galé destinada ao transporte de mercadorias e peregrinos para a Terra Santa. Final do século XV. Lionel Casson, Ilustrated History of Ships and Boats, 1968, p. 78. As características específicas das galés tornavam-nas em embarcações de grande valor e por isso era importante mantê-las protegidas em terra durante a época de Inverno em que não podiam entrar no mar. Esta necessidade levou à criação de uma estrutura arquitectónica própria: as tercenas. A forma das tercenas revela imediatamente a sua função: guardar galés. A estabilidade formal dos edifícios que cumpriam a função de guardar as galés foi já arqueologicamente confirmada em vários locais da Europa Oriental, desde a antiguidade até à idade média: Naxos, na actual Sicília, que terá funcionado entre os séculos V a IV a.C.4; Portus, um sítio arqueológico a norte de Óstia em Itália, que operou entre os séculos I a IV d.C5; Alanya, na costa mediterrânica da Turquia que foi erguida no século XIII, em plena época medieval6 (ver ilustração 6). A análise das reconstituições destes edifícios revela uma continuidade formal, que se caracterizava, no geral, por uma estrutura arquitectónica coesa, com várias naves longas e estreitas, dispostas de forma paralela entre si. Deste modo, é natural que surgissem, durante toda a época medieval, estruturas semelhantes nas cidades costeiras mediterrânicas, onde existiam frotas de galés. Na Península Itálica sobressaem três locais de excepcional interesse: Amalfi, Veneza e Génova. As tercenas de Amalfi terão funcionado entre o século XI e a primeira metade do XIV, erguidas em duas naves, com cerca de 90m cada uma, onde se guardavam 4 galés, o que indicia que cada nave teria capacidade para duas galés, visto que o tamanho atribuído a 4 Cf. Lentini, Maria Costanza, David Blackman, and Jari Pakkanen. “The Shipsheds of Sicilian Naxos: a Second Preliminary Report (2003–6).” The Annual of the British School at Athens, nº 103, 2008, 299–366. 5 Cf. Keay, S., Building 5, 2018, Portus Project. [online] Portus Project. Disponível em: http://www. portusproject.org/fieldwork/buildings/building5/ [Acedido em 25 Abril de 2018]. 6 Cf. Leopoldo Torres Balbás, “Atarazanas Hispanomusulmanas”, Al-Andalus, vol. XI, Madrid, 1946. 259 MANUEL FIALHO SILVA | NUNO FONSECA estas embarcações nesta época oscila entre os quarenta e os quarenta e cinco metros7 (ver ilustração 8). Não é certo o momento em que o Arsenale Vecchio de Veneza terá sido originalmente erguido, no entanto é a partir das primeiras décadas do século XIII que surgem informações sobre a sua configuração. Esta estrutura era rodeada por uma cerca defensiva que a protegia de qualquer ataque exterior e teria 155m de comprimento e 207m de largura (ver imagem 2). Ainda assim este arsenal não era suficiente para as necessidades da grande frota de galés da Sereníssima, pois no século XIV foi construído o Arsenale Nuovo, adjacente ao antigo arsenal, com cerca de 142m de comprimento e 177m de largura. Segundo a documentação da época e o número de naves desta impressionante estrutura, a frota de galés produzida e mantida nos arsenais da Sereníssima seria de cerca de uma centena. Estes números são de facto impressionantes, considerando a época e o facto de serem produzidos num mesmo local8. Imagem 2. Vista panorâmica do Arsenal (Vecchio à esquerda, Nuovo em baixo à direita, Novissimo em cima à direita) na Vista de Veneza atribuída a Jacopo de’Barbari, 1500. (Musée Correr, Veneza). Génova também teve um arsenal importante, mas não se conhece ainda com segurança as suas dimensões nem a sua capacidade. Sabe-se ainda que a frota de Génova, ao 7 Giuseppe Gargano, L’Arsenale di Amalfi: Il Cantiere Navale Della Repubblica Marinara, Amalfi, Comune di Amalfi, 2010. Sobre as dimensões das galés neste período ver: Fernando Gomes Pedrosa, Navios, Marinheiros e Arte de Navegar: 1139-1499, Lisboa, Academia de Marinha, 1997, pp. 13-21; Luís Miguel Duarte, “A Marinha de Guerra Portuguesa” in Nova História Militar de Portugal, vol I., Lisboa, Círculo de Leitores, 2003, p. 305. 8 Sobre a evolução dos arsenais medievais de Veneza ver: Philippe Ménard, “L’arsenal de Venise” in La Corse, La Méditerranée et les Grands Arsenaux Européens du Moyen Âge au XVIII ͤ Siècle, Ajaccio, Éditions Alain Piazzola, 2007, pp. 61-96. 260 AS TERCENAS RÉGIAS DE LISBOA: D. DINIS A D. FERNANDO contrário da de Veneza, não era construída num mesmo local, pois as galés genovesas eram construídas e mantidas em várias cidades aliadas disseminadas pela costa da Ligúria9. Na Península Ibérica destacavam-se, na época medieval, três cidades com importantes tercenas: Sevilha, Barcelona e Lisboa (ver ilustração 10). As Atarazanas de Sevilha foram erguidas por Afonso X, em 1252, momento em que o avô de D. Dinis compreende a importância estratégica que uma ampla frota de galés poderia conceder a Castela. Estas tercenas foram as maiores da Península Ibérica, sendo compostas por dezassete naves, com comprimento máximo de 100m, e com uma largura total de 180m. Em cada uma destas 17 naves é muito provável que fossem mantidas duas galés, totalizando assim uma capacidade de armazenamento de 34 galés10. Barcelona, cidade cabeça do reino de Aragão, é dotada das suas Drassanes Reials entre 1282 e 1285, no reinado de Pedro III de Aragão, pai da esposa de D. Dinis. As tercenas de Barcelona estão intimamente ligadas ao processo de expansão mediterrânica A estrutura erguida nessa época consistia num recinto rectangular, fortificado em três lados. As dimensões totais teriam cerca de 102m de comprimento, no eixo mar-terra e 81m de amplitude no eixo paralelo ao mar. A estrutura original teria nove naves, as quais teriam capacidade para 18 galés11. Imagem 3. As Drassanes Reials de Barcelona (século XX)12 9 Michel Balard, “Les arsenaux génois au Moyen Âge” in La Corse, La Méditerranée et les Grands Arsenaux Européens du Moyen Âge au XVIII ͤ Siècle, Ajaccio, Éditions Alain Piazzola, 2007, pp. 51-60. 10 Julia Barrero, Aspectos Arquitectónicos de las Atarazanas de Sevilla: Permanencia y transformación, tese de doutoramento em arquitectura apresentada na Universidade de Sevilha, Escuela Técnica Superior de Arquitectura, 2015; Juan Manuel León e Alejandro Martín Perera, Las Atarazanas de Sevilla a Finales de La Edad Media, Madrid, Sociedad Española de Estudios Medievales, 2012; Leopoldo Torres Balbás, “Atarazanas Hispanomusulmanas”, Al-Andalus, vol. XI, Madrid, 1946, pp. 153-164. 11 Estrada-Rius, Albert, “Les Drassanes Reials de Barcelona a la Baixa Edat Mitjana”, Drassana: revista del Museu Marítim nº 11, Barcelona, Museu Marítim de Barcelona, 2003, pp. 36-49. 12 Fotografia publicada em: Estrada-Rius, Albert, “Les Drassanes Reials de Barcelona a la Baixa Edat Mitjana”, Drassana: revista del Museu Marítim nº 11, Barcelona, Museu Marítim de Barcelona, 2003, p. 44; Robert Terradas I Munntañola, Les Drassanes de Barcelona, tese de doutoramento apresentada na Universidade Ramin Llull, Barcelona, 2008; Iñaki Moreno, Esteve Nadal, “La Reial Drassana de Barcelona: De L’Apogeu Medieval al Fals Declivi en Època Moderna”, in Actes V Congrés d’Arqueologia medieval i moderna a Catalunya, Barcelona, Ajuntament de Barcelona, 2015, pp. 575-588. 261 MANUEL FIALHO SILVA | NUNO FONSECA No caso de Lisboa, as primeiras referências documentais a um “palatium navigorium regis”, ou seja a um Paço das naus do rei, situado na Freguesia de Santa Maria da Madalena, surge ainda no reinado de Sancho II13. No entanto nada mais se pode acrescentar a esta breve informação sobre estas estruturas de apoio às actividades navais. As escavações arqueológicas conduzidas por Artur Rocha no local do actual Museu do Dinheiro, ou seja, no extremo ocidental da margem ribeirinha do arrabalde ocidental da Lisboa medieval, revelaram que esta zona da cidade estaria ainda sob a influência das marés, antes da construção do muro Norte das Tercenas14. Deste modo é possível afirmar que esta zona, não estaria ainda urbanizada em meados do século XIII (ver ilustração 1). A primeira referência documental à existência de tercenas régias, apenas surge no reinado de D. Dinis, em 1294, quando são referidas umas Casas das Galés pertencentes à Coroa, no contrato para a construção da muralha da Ribeira celebrado entre D. Dinis e o concelho15. Poucos anos depois, no Livro dos Bens Próprios, um inventário da propriedade régia composto entre 1299 e 1300, é afirmado que o rei possuía, na Ribeira, 13 taracenas onde estavam, nesse momento, 12 galés16. Pelas confrontações que surgem em vários documentos da época é possível reconstituir parcialmente as tercenas originais de D. Dinis (ver ilustração 2)17. Assim sendo, as 13 taracenas, referidas no Livro dos Bens Próprios, parecem corresponder a um edifício organizado em 13 naves. As reconstituições que aqui apresentamos alicerçaram-se em três áreas distintas. A primeira foi um estudo comparativo com tercenas medievais de várias cidades marítimas, o que nos possibilitou a compreensão da forma arquitectónica destas estruturas. A segunda foi a consulta à documentação medieval referente a Lisboa, com especial enfoque na documentação notarial, o que nos revelou os limites aproximados das tercenas régias de Lisboa e a evolução desta estrutura ao longo da idade média. O terceiro e último componente, fundamental para a nossa reconstituição, consistiu na confrontação dos dados provenientes de escavações ANTT, Mosteiro de Chelas, maço 9, doc. 175, de Outubro de 1237. Sobre a escavação no quarteirão do Banco de Portugal ver: Artur ROCHA et alii, “Edifício sede do Banco de Portugal em Lisboa. Um primeiro balanço dos trabalhos arqueológicos” in Arqueologia em Portugal: 150 anos, Lisboa, Associação dos Arqueólogos Portugueses, 2013; Artur ROCHA, “Uma muralha, vários percursos”, Rossio: Estudos de Lisboa, nº 3, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 2014, pp. 80-87; Artur ROCHA, Manuel Fialho SILVA, “A Génese da Judiaria Pequena no século XIV”, in Lisboa Medieval: Gentes, Espaços e Poderes, Lisboa, IEM, 2016, pp. 223-240. 15 AML, Livro dos Pregos, doc. 20; ANTT, Chancelaria de D. Dinis, Livro 2, fl. 81v.; transcrito parcialmente em: Augusto Vieira da SILVA, As Muralhas da Ribeira de Lisboa, 3ª ed., vol. I, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1987, pp. 27-29. 16 Livro dos bens Próprios de Reis e Rainhas, ANTT, Núcleo Antigo, cód. 314, fl. 18v. publicado em: Cabido da Sé. Sumários de Lousada. Apontamentos dos Brandões. Livro dos bens próprios dos Reis e Rainhas. Documentos para a história da Cidade de Lisboa, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1954, p. 352. 17 Ver: Manuel Silva, Mutação Urbana na Lisboa Medieval: das Taifas a D. Dinis, tese de doutoramento apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2017, pp. 367-382. 13 14 262 AS TERCENAS RÉGIAS DE LISBOA: D. DINIS A D. FERNANDO arqueológicas com todas as outras informações recolhidas18. Além destes três campos de investigação foi também imprescindível a consulta aos vários estudos publicados sobre as tercenas de Lisboa, destacando-se alguns autores: Augusto Vieira da Silva19, José de Vasconcelos e Menezes20, e Fernando Gomes Pedrosa21. Não é conhecido com exactidão o momento da construção das tercenas régias de Lisboa, pois apenas está documentada a existência de “Casas das Galés” pertencentes à Coroa, em 1294, durante o reinado de D. Dinis. No entanto, não se deve ignorar a possibilidade de que esta estrutura já existisse anteriormente a este reinado e que tenha sido amplamente restruturada na última década do século XIII, pois ocorreu nesse momento uma ampla reconfiguração urbana na Ribeira através de uma acção concertada entre o monarca e o concelho da cidade. Nessa reconfiguração sobressaiam a construção da muralha da Ribeira e a urbanização erguida em simultâneo com estrutura defensiva, mais precisamente, a fachada sul da Rua Nova e a fachada norte da Rua da Ferraria22. Entre 2010 e 2011 foi encontrado, em escavações arqueológicas realizadas no Banco de Portugal, o muro norte das Tercenas medievais, o qual é publicamente conhecido como “Muralha de D. Dinis”, facto que não colabora para a divulgação da história destas importantes estruturas de apoio às actividades da marinha medieval portuguesa. Na realidade ambas as estruturas, tercenas e muralha da Ribeira, estavam intimamente ligadas no que respeita à morfologia urbana, pois a orientação da muralha coincidia com a orientação do muro Norte das terecenas, causa maior da referida ambiguidade. Ainda para mais, a própria estrutura das tercenas pode ter sido totalmente remodelada no mesmo momento em que a muralha foi erguida durante a última década do século XIII. Seja como for, não podemos deixar de sublinhar que o muro encontrado no quarteirão do Banco de Portugal, já no século XXI surge inúmeras vezes em documentos medievais denominado como “muro das tercenas”, ou 18 Entre a última década do século XX e meados da década actual foram efectuadas, de que tenhamos conhecimento, três escavações arqueológicas que incidiram sobre a área das tercenas medievais. Em 1997, por uma equipa de arqueólogos da Câmara Municipal de Lisboa, na Praça do Município; entre 2010 e 2011 pela empresa Arqueohoje, no quarteirão do Banco de Portugal; em 2014 pela empresa Neoépica, na Pousada de Lisboa, Praça do Comércio. Os relatórios destas escavações podem ser consultados no Arquivo de Arqueologia Portuguesa, no Palácio da Ajuda, sob a alçada da Direcção Geral do Património Cultural. 19 Augusto Vieira da Silva, As Muralhas da Ribeira de Lisboa, vol. II, 3ª ed, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1987, pp.5-35. 20 José de Vasconcellos e Menezes, “Tercenas de Lisboa I”, Revista Municipal, 2ª série, nº 16, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1986, pp. 3-17; Tercenas de Lisboa II, Revista Municipal, 2ª série, nº 17, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1986, pp. 3-14; “Tercenas de Lisboa III, Revista Municipal, 2ª série, nº 19, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1987, pp. 3-14. 21 Fernando Gomes Pedrosa, “As Tercenas Medievais e a Terçanabal do Infante D. Henrique” in Memórias 2013, vol. XLIII, Academia da Marinha, Lisboa, 2015, pp.95-120. 22 Cf. Manuel Silva, Mutação Urbana na Lisboa Medieval: das Taifas a D. Dinis, tese de doutoramento apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2017, pp. 310-354. 263 MANUEL FIALHO SILVA | NUNO FONSECA seja, este muro era no século XIV conhecido como “muro das tercenas” e não como uma muralha23. Nos meados do século XIV as tercenas régias de Lisboa foram alvo de uma expansão na direcção da Oura, ou seja, na direcção ocidental em relação ao edifício original (ver ilustração 3). Esta expansão é conhecida devido a uma confirmação de 1352 de um escambo anterior realizado entre o concelho e a Coroa onde se refere que o concelho deu um campo à Coroa para aí serem erguidas tercenas para quatro galés, ou seja, uma estrutura com quatro naves24. Escavações arqueológicas de emergência realizadas pelos arqueólogos da Câmara Municipal de Lisboa, em 1997, no momento da construção de um parque de estacionamento na Praça do Município revelaram um muro que consideramos estar relacionado com esta expansão das tercenas de Afonso IV, e não com a muralha fernandina, tal como foi considerado pelos arqueólogos responsáveis. Além disso, na mesma escavação foi também encontrado um conjunto de estruturas de madeira preparadas para a construção naval25, algo que não nos deve surpreender, pois a referida confirmação de 1352 refere que existiam exactamente nesse local “casas em que el Rei tem a madeira junto com o muro das tercenas”26. Esta expansão das tercenas de Lisboa, as maiores e mais relevantes do reino, permitiria a Afonso IV possuir uma frota de galés mais numerosa, facto preponderante para o prosseguimento de uma política de desenvolvimento da marinha que pode ser reconhecida na bula de Inocêncio VI, Romana mater ecclesia, de 12 de Fevereiro de 1355, Um aforamento de Afonso IV, em 1327, de um sótão e sobrado localizado na Judiaria Nova surge nas confrontações a sul o “muro da mha taracena” (cf. ANTT, Chancelaria Afonso IV, livro 3, fl. 11; publicado em Chancelaria de Afonso IV, vol I, INIC, p. 114); Um outro aforamento de Afonso IV, em 1327, de um sobrado na Judiaria Nova, é referido nas confrontações a sul uma via “pulvega e o Muro da taracena” (cf. ANTT, Chancelaria Afonso IV, livro 3, fl. 11; publicado em Chancelaria de Afonso IV, vol I, INIC, p. 116); Um outro aforamento de Afonso IV de um sótão localizado na Judiaria Nova refere nas confrontações a sul “o muro da dicta taracena” (cf. ANTT, Chancelaria Afonso IV, livro 3, fl. 11; publicado em: Chancelaria de Afonso IV, vol I, INIC, p. 116). 24 Cf. ANTT, Direitos Reais, Livro 2, fl. 272 v., de 1352: “um campo que o dito concelho há na dita cidade, no logar que chamam a Oyra, em o qual campo nosso senhor elRei D. Afonso o 4º soe de ter suas galés, pelas divisões que ahi são postas, de guisa que possam ai fazer taracena para estarem quatro galés”, transcrição por Augusto Vieira da SILVA, As muralhas da Ribeira de Lisboa, vol. II, 3ª ed. Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1987, pp. 66-67. 25 A datação destas estruturas de madeira parece ser ainda discutível, pois, apesar de as análises em C14 terem apresentado uma datação entre os século XIII e XIV, a dimensão das referidas peças parece apontar, segundo alguns autores, para o início da época moderna (Carlos Caetano, Rodrigo Banha da Silva e José Bettencourt, “O Comércio e vida marítima de Lisboa nos séculos XV e XVI” in Lisboa 1415 Ceuta: história de duas cidades, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 2015, p.155). No entanto outros autores parecem considerar as análises do C14 como fiáveis (Francisco Alves e Paulo Rodrigues, “Une approche archéologique des origines méditerranéennes de la tradition ibéro-atlantique en architecture navale” in Rotte e porti del Mediterraneo dopo la caduta dell’Impero romano, Genova, Rubbettino Editore, 2004, p. 137). Outro autor aponta ainda outras hipóteses relacionadas com o tipo de construção das embarcações a que estas madeiras estariam destinadas, como explicação para a datação medieval apontada pelas análises de C14 (João Alves, Approche archéologique d’un chantier naval medieval. La découverte des vestiges d’architecture navale de la Praça do Município, Lisbonne, Portugal, dissertação de mestrado apresentada na Universidade de Paris, Sorbonne I, 2002). 26 Cf. ANTT, Direitos Reais, Livro 2, fl. 272 v., de 1352. 23 264 AS TERCENAS RÉGIAS DE LISBOA: D. DINIS A D. FERNANDO dirigida ao arcebispo de Braga e aos bispos de Évora e Viseu, onde se afirma, que Afonso IV havia pedido ao papa a concessão de um subsídio de dízima para combater os muçulmanos armando as suas galés e construindo outras27. Através da referida expansão, as tercenas régias de Lisboa puderam, desde meados do século XIV, alojar, na sua capacidade máxima, 17 galés, números que, a nível Ibérico só teriam paralelo em Barcelona, onde em nove naves se podiam manter dezoito galés, e em Sevilha onde em dezassete naves se podiam manter trinta e quatro. Todavia, estes números não devem ser considerados de forma rígida, pois muitas vezes as naves das tercenas eram ocupadas por materiais de apoio à construção e à manutenção das galés. No caso da frota portuguesa medieval, Saturnino Monteiro propôs que o seu número ascendesse, nos reinado de Afonso IV e de D. Fernando, às três dezenas de galés, número que incluiria todas as galés mantidas no reino, e não apenas as que eram mantidas nas tercenas de Lisboa28. Durante os dez anos do reinado de D. Pedro não temos notícia de alterações na estrutura arquitectónica das tercenas. Podemos apenas confirmar que estas continuam em funcionamento através da manutenção do interesse da Coroa no prosseguimento das políticas dos anteriores monarcas. Logo no primeiro ano do reinado, D. Pedro confirma as anteriores cartas de privilégios que o seu pai tinha concedido aos mercadores genoveses, milaneses e prazentins29, o que revela que o rei tinha noção da importância do comércio internacional o qual era feito, obviamente, por via marítima, o que obrigava à manutenção de uma costa segura, o que por sua vez só seria possível com a manutenção de uma armada de galés em prontidão. A relação com os Pessanhas, a família genovesa que D. Dinis trouxe para Lisboa para comandar a marinha portuguesa manteve-se, aparentemente, sem sobressaltos, pois no primeiro ano do seu reinado, o rei confirma os termos da carta de mercê do cargo de Almirante do reino30, realizada por D. Dinis em 1317, e posteriormente confirmada por Afonso IV, e em 1361, D. Pedro concede uma carta de mercê a Lançarote Pessanha, Almirante do reino, sobre os direitos de ancoragem dos navios que aportarem nos vários portos e lugares do reino31. Além destas informações é conhecido que, pelo menos em dois momentos, galés portuguesas participaram em acções militares nas costas de Castela e Aragão, nomeadamente em 1359, quando dez galés e uma galeota, comandadas por Lançarote Pessanha participam por três meses na guerra entre Castela e Aragão32, e em 1364 quando uma dezena de galés portuguesas são enviadas em apoio de Castela no bloqueio do porto de Valencia33. Parece-nos provável Bula de Inocêncio VI, Romana mater ecclesia de 21 de Fevereiro de 1355. Publicada em João Silva Marques (ed.), Descobrimentos Portugueses, vol. I, Lisboa, INIC, 1988, pp. 98-103. 28 Cf. Armando Saturnino Monteiro, Batalhas e Combates da Marinha Portuguesa: 1139-1521, 3ª ed., Oeiras, A. S. S. Monteiro, 2013, p. 40. 29 ANTT, Chancelaria de D. Pedro I, Livro I, fl. 3, de 22 de Junho de 1357. 30 ANTT, Chancelaria de D. Pedro I, Livro I, fl. 2, de 26 de Junho de 1357. 31 ANTT, Chancelaria de D. Pedro I, Livro I, fl. 50, de 11 de Março de 1361. 32 Cf. Pedro López de Ayala, Cronica de D. Pedro I de Castela, Barcelona, edição planeta, 1991, cap. XI, p. 218 e cap. XVIII, p. 227. 33 Conde D. Pedro, Cronica geral de Espanha de 1344, ed. Critica Lindley Cintra, vol. IV, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa 1990. cap. 2, p. 538; ANTT, Mosteiro de Alcobaça, 1ª Incorporação, docs. régios, maço 4, doc. 21, de 1365 Maio 25. 27 265 MANUEL FIALHO SILVA | NUNO FONSECA que estas frotas de galés portuguesas tivessem a sua base naval, pelo menos na sua maior parte, nas tercenas régias de Lisboa. O reinado de D. Fernando (1367-1383) foi prolífero em batalhas navais, onde as tercenas de Lisboa tiveram papel de destaque em vários desses momentos. A grande armada enviada, em 1369, para o bloqueio marítimo feito a Sevilha, constituída por vinte e oito galés régias, quatro galés de um genovês, Mice Reinel de Guirimaldo e ainda três dezenas de naus, terá sido em boa parte construída nas tercenas de Lisboa34. Do mesmo modo, é possível supor que muitas das vinte e uma galés portuguesas que participaram no desastre de Saltes, em 1381, seriam originárias das tercenas lisboetas35. Os capítulos apresentados nas cortes do Porto de 18 de Julho de 1372 comprovam que as tercenas e as actividades que eram realizadas na sua esfera, como a construção das galés, dos remos para as galés, das armas, do biscoito, da calafetagem das galés eram actividades muito dispendiosas e relevantes na economia urbana, ao ponto de o concelho pedir a D. Fernando que se contivesse nos gastos relativos a estas actividades e que não construísse mais tercenas36. No cerco de 1373, é junto às tercenas de Lisboa que a frota castelhana se vai posicionar, no estranho episódio em que Lançarote Pessanha se recusou a enfrentar a armada castelhana, o que lhe valeu a destituição do cargo de Almirante por ter permitido que as galés castelhanas tenham entrado no Tejo sem oposição37. Poucos meses após este cerco de 1373, D. Fernando ordenou a construção da cerca nova que protegeria finalmente os já muito desenvolvidos arrabaldes da cidade que se encontravam à mercê de ataques quer por mar ou por terra38. A construção desta nova cintura de muralhas e a relação desta estrutura com as tercenas régias não foi até agora analisada com suficiente rigor. Tentaremos aprofundar esta questão fazendo recurso tanto à análise da documentação medieval como à análise aos resultados das escavações arqueológicas. Entre 2014 e 2015, ocorreram sondagens arqueológicas na Praça do Comércio, no antigo edifício do Ministério da Administração Interna, a actual Pousada de Portugal, onde se encontraram vestígios de estruturas medievais que os arqueólogos responsáveis, pertencentes à empresa Neoépica, consideraram pertencer à Cerca Fernandina39. Contudo, estes vestígios não apresentaram a continuidade que se esperaria numa muralha, pelo contrário, foi verificada uma descontinuidade que os arqueólogos responsáveis supuseram estar relacionada com afectações de obras posteriores. Na nossa interpretação, afiguram-se dois cenários possíveis. Num primeiro cenário, a Cerca Fernandina coincidiria com a fachada sul das tercenas originais (ver ilustração 4 – hipótese A). Assim sendo, as tercenas originais teriam Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, cap. XLII. Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, cap. CXXIV. 36 Cf. Biblioteca Nacional de Lisboa, Mss. 2638; publicado em Descobrimentos Portugueses, supl. ao vol. I, Lisboa, INIC, 1988, p. 297 e segs. 37 Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, cap. LXXIV. 38 Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, cap. LXXXVIII. 39 Cf. Relatório Final da Intervenção Arqueológica na Pousada de Lisboa – Praça do Comércio, Neoépica, Abril 2015, Mem-Martins. Consultado no Arquivo de Arqueologia de Portugal, DGPC (Processo CNS 35358). 34 35 266 AS TERCENAS RÉGIAS DE LISBOA: D. DINIS A D. FERNANDO cerca de quarenta metros de comprimento, o que explicaria o número de doze galés em treze tercenas das tercenas no início do século XIV, referido no Livro dos Bens Próprios40, ou seja, uma galé para cada nave, ao invés das tercenas de Barcelona ou de Sevilha que poderiam albergar duas galés em cada nave e que tinham cerca de 100 metros de comprimento. As tercenas de Lisboa poderiam, neste primeiro cenário, ter uma capacidade de apenas uma galé por cada nave, tal como acontecia nas tercenas de Málaga41 e de Valência42. Esta primeira proposta também explicaria a descontinuidade da estrutura classificada como muralha fernandina pelos arqueólogos da empresa Neoépica. Além disso, permitiria também esclarecer como as tercenas puderam continuar a laborar inseridas na estrutura defensiva fernandina, numa posição topográfica que encontra paralelos óbvios na segunda cintura de muralhas medievais de Barcelona que, tal como Lisboa, aproveitava o edifício das tercenas no extremo sudoeste da muralha. Num segundo cenário, a Cerca Fernandina teria atravessado as Tercenas erguidas no reinado de D. Dinis, inutilizando-as em boa parte, visto que entre os vestígios da suposta cerca fernandina do quarteirão da Pousada e o muro norte das tercenas encontrado no quarteirão do Banco de Portugal se mede mais de quarenta metros. Se assim foi, devemos admitir que terão sido erguidas novas tercenas à frente da Cerca Fernandina, pois a documentação continua, após a data de construção da muralha, a referir a existência de tercenas em pleno funcionamento exactamente no mesmo local (ver ilustração 5 – hipótese B)43. Importa também sublinhar a relevância que o edifício das tercenas régias tinha na cidade de Lisboa, pois era, sem qualquer comparação o maior edifício da cidade, e agregava em si centenas de pessoas que trabalhavam na construção e na manutenção das galés, função para a qual foi este edifício construído44. Note-se também que quando Manuel Pessanha toma posse do cargo de Almirante do reino, Lisboa já possuía uma estrutura de apoio à construção e manutenção de galés que inseria o reino no seio das potências marítimas mediterrânicas (ver tabela 1). 40 Livro dos Bens Próprios de Reis e Rainhas, A.N.T.T., Núcleo Antigo, cód. 314, fl. 18v. publicado em: Cabido da Sé. Sumários de Lousada. Apontamentos dos Brandões. Livro dos bens próprios dos Reis e Rainhas. Documentos para a história da Cidade de Lisboa, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1954, p. 352. 41 As medidas das tercenas de Málaga foram alvo de um erro de escala por parte de Leopoldo Torres Balbás, que lhes considerou apenas 24m de comprimento, no entanto a análise ao edifício existente do mercado permite compreender que o comprimento real das tercenas medievais seria aproximadamente o dobro do referido pelo historiador espanhol. Aguilar Garcia, M.ª Dolores, “El Mercado de Atarazanas” in Baetica. Estudios de Arte, Geografía e Historia, nº 6, Málaga, Universidad de Málaga, 1983, pp. 7-23; Leopoldo Torres Balbás, “Atarazanas Hispanomusulmanas”, Al-Andalus, vol. XI, Madrid, 1946. 42 Cf. Contreras Zamorano, Gemma Mª. “Las atarazanas del Grao de la mar”, Valencia, Ajuntament de València, 2002. 43 Cf. Livro dos Pregos, Doc. 103, de 1395; ANTT, Chancelaria D. João I, L. 5, fl. 42v. de 16 de Maio de 1403; Livro das Postura antigas, Lisboa, Câmara Municipal Lisboa, 1974, pp. 9-10, de 28 de Julho de 1435. 44 As tercenas régias de Lisboa possuíam oficiais régios que compunham uma hierarquia que demonstra a relevância que a estrutura detinha na vida social e económica da cidade. O estudo desta instituição está ainda por fazer, apesar de a documentação ser prolífera no registo destes homens que trabalhavam nas tercenas régias tal como se pode observar na documentação já publicada em: João Silva Marques (ed.), Descobrimentos Portugueses, vol. I, Lisboa, INIC, 1988. 267 MANUEL FIALHO SILVA | NUNO FONSECA Sintetizando, o apoio da Coroa ao desenvolvimento da marinha nos reinados de D. Dinis e de Afonso IV revela uma indubitável intenção por parte destes monarcas em aproveitar o potencial marítimo possibilitado pela ampla costa portuguesa e pela posição estratégica que esta ocupava. A construção e ampliação das tercenas régias de Lisboa por parte destes monarcas é um indício claro dessa vontade. O reinado de D. Fernando pode ser visto como um momento de auge das tercenas de Lisboa, pois foi o momento mais alto no que respeita à produção de galés no reino de Portugal. Nos reinados seguintes, Portugal virou definitivamente a sua atenção para o Atlântico, iniciando-se o extraordinário processo dos descobrimentos, que só pôde acontecer devido aos antecedentes aqui referidos, onde, como vimos, ocorreu um incentivo claro por parte da Coroa ao desenvolvimento das actividades navais, onde as tercenas régias de Lisboa tiveram um papel de protagonista. Tabela 1 Data Comprimento Largura Número de naves / galés Lisboa 1375 45m? 170m? 17 / 17 Valencia 1400 45m 63m 5/5 Málaga 1391 50m 80m 7/5 Barcelona 1290 102m 81m 9 / 18 Sevilha 1253 100m 180m 17 / 34 Amalfi Séc. XIV 90m 15m ? 4 Veneza (Darsena Vecchia) 1325 155m 207m >20 / >40 ? Veneza (Arsenale Nuovo) 1325 142m 177m >20 / >40 ? 268 AS TERCENAS RÉGIAS DE LISBOA: D. DINIS A D. FERNANDO 269 MANUEL FIALHO SILVA | NUNO FONSECA 270 AS TERCENAS RÉGIAS DE LISBOA: D. DINIS A D. FERNANDO 271 MANUEL FIALHO SILVA | NUNO FONSECA Bibliografia Fontes Publicadas: Crónica de Portugal de 1419, Universidade de Aveiro, 1998. Chancelaria de Afonso IV, vol I, Lisboa, INIC, 1990. Descobrimentos Portugueses, vol. I, Lisboa, INIC, 1988. Descobrimentos Portugueses, supl. ao vol. I, Lisboa, INIC, 1988. Pedro López de Ayala, Cronica de D. Pedro I de Castela, Barcelona, edição planeta, 1991. Conde D. Pedro, Cronica geral de Espanha de 1344, ed. cr. Lindley Cintra, vol. IV, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1990. Livro dos Pregos, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 2017. Livro das Postura antigas, Lisboa, Câmara Municipal Lisboa, 1974. Manuscritas: Arquivo Nacional da Torre do Tombo: Mosteiro de Chelas, maço 9, doc. 175. Chancelaria de D. Dinis, Livro 2, fl. 81v. 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