Volume 1 | Número 16 | janeiro a junho de 2016
Universidade Estadual da Paraíba
Profº Antonio Guedes Rangel Junior
Reitor
Prof. Ethan Pereira Lucena
Vice-Reitor
Editora da Universidade
Estadual da Paraíba
Diretor
Cidoval Morais de Sousa
Diagramação
Carlos Alberto de Araujo Nacre
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura e
Interculturalidade do Departamento de Letras
Direção Geral e Editorial
Luciano Barbosa Justino
Editor deste número
Luciano Barbosa Justino
Conselho Editorial
Alain Vuillemin, UNIVERSITÉ D´ARTOIS
Alfredo Adolfo Cordiviola, UFPE
Antonio Carlos de Melo Magalhães, UEPB
Arnaldo Saraiva, UNIVERSÍDADE DE PORTO
Ermelinda Ferreira Araujo, UFPE
Goiandira F. Ortiz Camargo, UFG
Jean Fisette, UNIVERSITÉ DU QUÉBEC À MONTRÉAL ( UQAM)
Max Dorsinville, MC GILL UNIVERSITY, MONTRÉAL
Maximilien Laroche, UNIVERSITÉ LAVAL, QUÉBEC
Regina Zilberman, PUC-RS
Rita Olivieri Godet, UNIVERSITÉ DE RENNES II
Roland Walter, UFPE
Sandra Nitrini, USP
Saulo Neiva, UNIVERSITÉ BLAISE PASCAL
Sudha Swarnakar, UEPB
Coordenadores do Mestrado em Literatura e Interculturalidade
Antonio Carlos de Melo Magalhães e Luciano Barbosa Justino
Revisores
Eli Brandão da Silva, Luciano B. Justino,
Sébastien Joachim, Antonio Magalhães
Sociopoética
Volume 1 | Número 16 | janeiro a junho de 2016
VAGÃO ROSA
Campina Grande - PB
SocioPoética - Volume 1 | Número 16
janeiro a junho de 2016
VAGÃO ROSA1
Namrata Poddar2
Tradução de Roland Walter
e Tiago Silva
Enquanto o trem rosa, exclusivo para mulheres, se
aproxima de Churchgate, a multidão se move em direção
à beirada da plataforma. Nós também nos movemos
mais para perto. Alinhamos nossos corpos no sentido do
movimento do trem, arrancamos e caímos no interior do
vagão antes da besta metálica empoeirada se arrastar
até parar.
Essa é uma das primeiras coisas que você aprende
sobre o trem rosa das 6h da manhã. Escalar um trem em
movimento - seu único meio de assegurar um assento.
Nós somos profissionais, nenhum arranhão ou fratura
sequer nos últimos quinze anos, nem mesmo nas chuvas
e ventos das monções.
Lá dentro, eu pego o assento da janela; Carol
segue e se encaixa ao meu lado. Em segundos, todos os
assentos são ocupados.
Carol trabalha no Deutsche Bank e vai caminhando
para a estação de Churchgate todos os dias. Eu sou
agente de viagens na Globetrotter em Marine Lines, a
parada que vem depois de Churchgate. É por isso que
faço primeiro o caminho inverso. Pego um trem lento
para Churchgate e só depois pego o Virar Fast que passa
por Marine Lines, apesar de não parar lá. Desse jeito,
é quase certo conseguir um assento e a companhia de
Carol durante o caminho - nosso único tempo livre para
compartilhar uma boa conversa.
Essa viagem extra todos os dias às vezes me dá
1 Este conto, cujo título original é “Ladies special”, foi publicado pela primeira
vez em Lowestoft Chronicle, n.23, outono de 2015. Disponível em: www.
lowestoftchronicle.com/issues/issue23/namratapoddar.html
2 Escritora, professora e pesquisadora, Namrata Poddar é doutora em Estudos
Franceses pela Universidade da Pensilvânia (Penn) e leciona na Universidade
da California (UCLA).
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nos nervos. Especialmente nos meses de verão quando
trabalho duas vezes mais, emitindo passagens no
trabalho, enviando adolescentes ricos para mochilarem
na Europa, todos ansiosos para viver suas aventuras de
Bollywood, para chapar, para ter relações sexuais. Mas
então, eu lembro de Fátima, nossa outra colega do trem.
“Mataria para ter um assento só meu. Inclinar minha
cabeça contra a janela e cochilar durante a viagem. Eu
seria tão mais produtiva desse jeito”, ela sempre fala.
Produtiva é sua palavra favorita desde que começou a
trabalhar na Runway Shoes em Dadar, poucas paradas
ao norte de Churchgate.
Uma loira sobe no trem. Ela olha ao redor e ocupa
o canto que divide as filas de cadeiras a nossa frente.
Sua cabeça quase toca o compartimento de metal onde
os passageiros colocam sacolas, bolsas, sombrinhas,
compras. A loira traz as mãos tatuadas com henna para
perto do peito e começa a ler um livro. A capa mostra
uma colagem de imagens - Queen’s Necklace bem perto
de um Arabian Sea exageradamente azul, um horizonte
sem fim com Ambani Residence destacado em dourado,
os call centers do complexo de Bandra-Kurla, e um grupo
de mulheres seminuas dançando num palco. Eu me
inclino para frente, mas não vejo nenhum nome de guia
de viagem conhecido. Nem mesmo o logotipo do Lonely
Planet. A partir do título escondido no canto, suponho
ser um guia turístico em uma língua estrangeira. Mumbai
escrito em vermelho sangue acima das imagens.
Quando o trem chega em Dadar, o vagão está tão
cheio que nos perguntamos se Fátima conseguirá entrar.
Viramos nossos pescoços em direção à saída. Nenhum
sinal dela. O trem se move de novo. O barulho das rodas
metálicas se mistura com o zumbido dos ventiladores de
teto do nosso compartimento. Um ranço no ar se soma
ao bafo do vagão.
As mulheres próximas à porta se contorcem; duas
ou três delas gritam com a pescadora que se colocou,
como um sanduíche, entre duas passageiras. Ela força
seu caminho enquanto tenta equilibrar um enorme cesto
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de peixes sobre sua cabeça. Pequenas gotas d’água
pingam.
“Você vai para o vagão de carga na próxima parada
ou eu vou chamar a polícia!” Uma das mulheres fala,
enquanto aperta os olhos e cobre o nariz com um lenço.
“O trem, por caso, pertence a seu pai?” A pescadora
grita. Algumas mulheres resmungam. Vozes por todos
os cantos.
“O vagão de carga está cheio, não dá para ver?”
“O próximo trem passa em cinco minutos, não dá
para esperar?”
“Por que eu tenho que esperar quando nenhuma de
vocês espera?”
“O fedor dessa água no meu sari! Aiiyoh, sabão
nenhum pode limpar isso.”
“A realeza deve pegar a
primeira classe, então.” A pescadora dá uma balançada
na cesta. As mulheres em volta gritam e escondem as
cabeças.
Eu tiro uma tábua de cortar da minha bolsa e coloco-a
sobre meu colo. “O mesmo drama todo dia.” Balanço a
cabeça e começo a cortar cenouras. Um trabalhinho de
cozinha no trajeto de volta ajuda bastante. Termino o
jantar e a limpeza da cozinha mais cedo e posso ajudar
meus filhos com a tarefa de casa antes de irem para a
cama. Produtiva, Fátima diria.
Carol devolve cinquenta rúpias de troco para a
tiazinha sentada do outro lado. “Eu trago as vermelhas
para você amanhã,” ela diz enquanto entrega duas
garrafas d’água amarela e verde para a tiazinha. A
tiazinha é uma cliente regular de Carol - num negócio
paralelo de Tupperware que ela mantém nas viagens de
trem.
“Com licença,” uma voz distante repete, soando
mais como cunlicença. Carol olha pra mim com um
brilho nos olhos. Amamos o sotaque de Fátima, da sua
cidade, desde que ela começou a trabalhar na Runway.
Fátima atravessa a multidão se arrastando até nós,
ofegante. Nós também adoramos a rasteirinha que ela
está usando esses dias, com pedras falsas de jade nas
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correias. Elegante e funcional, e a melhor parte, os
funcionários da Runway ganham 75% de desconto. Ai,
se nós calçássemos o mesmo tamanho de sapato que
ela.
Carol enfia sua mala com produtos Tupperware no
compartimento de bagagens, junto com sua bolsa. Fátima
senta no colo dela. Nos cumprimentamos, reclamamos
do calor, botamos o papo em dia, desabafamos sobre a
quarta, domingo está a uma eternidade. Nos abanamos
- Fátima com a barra de sua túnica, Carol com um jornal
e eu com as mãos, nos poucos segundos em que paro de
cortar verduras.
“Alguma novidade sobre o prédio, querida?” Diz
Fátima, exibindo seu vocabulário novo outra vez.
Ontem, vocês sabem, eu fui na reunião do condomínio.
Meu prédio está para ser reformado como muitos outros
lá no bairro. Os três andares serão demolidos e uma
torre de doze andares será construída no lugar. Se todos
concordarem com os termos do acordo de construção,
minha família, assim como outros residentes, vai ganhar
um quarto extra.
“Na mesma. A bruxa se recusa a ceder.” Retiro
as cenouras cortadas da tábua e coloco tudo em um
Tupperware para ter espaço para o rabanete. “Sempre
tem uma desgarrada no rebanho.” A bruxa é a moradora
mais antiga do prédio, uma viúva indisposta a se mudar
e alugar outro lugar por dois anos como o resto de nós,
enquanto o contratante constrói uma torre nova.
Carol acaricia meu braço. As meninas sabem o
quanto eu quero mais espaço, especialmente com os
gêmeos do meu irmão. “Uma família de oito vivendo em
um apartamento de um quarto. É como ficar preso na
porra desse vagão para sempre,” eu resmungo, evitando
olhar nos olhos das meninas. A verdade é - cinco anos se
passaram com essas reuniões e eu não quero mais fingir,
mexo a cabeça todas as vezes que divido meu drama
residencial com elas. Dê tempo ao tempo, querida. O que
mais vão dizer?
Nossas cabeças seguem o ritmo do
movimento do trem. Outro trem cruza o nosso, o rangido
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das rodas inunda nosso vagão com barulho. Quando o
trem desaparece, arranha-céus pairam sobre edifícios de
três a quatro andares como o meu, onde cobras negras
de tinta de alcatrão de hulha cobrem as paredes externas
para prevenir que a água das monções se infiltre. Uma
vala longa e larga conecta Bombaim a Mumbai.
“Ei.” Carol cutuca meu joelho com seu dedo indicador.
As mulheres no nosso lado do vagão começaram a brincar
de “Antakshari”. É a vez de Carol cantar uma música de
filme começando pela letra A. Ae dil hain mushkil jeena
yahan, ela começa, fazendo seu ombro bater no meu
de um jeito divertido. Fátima e a tiazinha se juntam a
cantoria, batendo as mãos em minha direção. Eu forço
um sorriso e me junto às outras. Nesse esforço musical
coletivo, o calor se dissipa no vagão.
O trem se aproxima de Andheri. Muitas mulheres
descem. Poucas sobem. Ar, enfim.
Duas mulheres entram. Uma delas está usando
uma saia grafite, uma camisa cinza, e um lenço de seda
vermelho enrolado no pescoço; a outra está usando um
camisão azul marinho e cabelo escuro com gel puxado
para trás, formando um elegante rabo-de-cavalo. Elas
sentam na fileira próxima a nossa. A loira está sentada
em frente a elas, com o guia de Mumbai ainda nas mãos.
O sol se põe lá fora. Raios de sol iluminam os
cartazes colados nas paredes do vagão – anúncios de
abortos, anúncios de contracepção, anúncios de escolas
de formação e preparação em inglês, anúncios de
empréstimos residenciais, e anúncios de números 999,
escoltas policiais que você pode ligar tarde da noite e de
manhã cedo durante as viagens. Esse último foi colocado
depois do incidente do estupro em Deli. Entretanto, um
anúncio se sobressai, cobrindo as laterais das paredes,
incluindo os cantos abaixo do compartimento que
guarda a bagagem dos passageiros. Próximo a um Shiva
meditando, o número do celular de um guru de primeira
que garante 100% de realização de todos os desejos salários mais altos, questões de fertilidade, procura da
alma gêmea, moléstias mentais e físicas. Seu perfil no
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facebook e contato do WhatsApp listados logo ali.
Eu estou cantando com as meninas, yeh hain
Bombay meri jaan, enquanto corto vagem no meu colo.
Abaixo do anúncio do guru, a loira e as duas mulheres que
acabaram de entrar se inclinam umas sobre as outras,
fofocando, rindo. A mulher com o lenço de seda aponta
seu dedo para alguma coisa no guia turístico da loira. A
mulher de camisão digita alguma coisa no seu iPhone
e acena para elas. Uma bolsa Louis Vuitton pendurada
no ombro da mulher, da que está usando o camisão. Os
dedos tocando o iPhone dela exibem unhas vermelhas
perfeitamente feitas.
Eu observo o Shiva meditando, controlando as
paredes de nosso trem, seu terceiro olho fechado acima
de um sorriso satisfeito, e dou um grito muito alto. O
coro em frente para. Num reflexo, coloco o dedo na
boca. A tiazinha dá um suspiro e vira a cabeça. Eu olho
para minha tábua de cortar e noto um mar de sangue
onde pedaços de vagem formaram um lindo arquipélago.
As ilhas se espalharam nos cantos deixando um oco
retangular no centro. O mapa me lembra a contracapa
amassada de um guia da minha cidade que vi na
Globetrotter. Somente funcionários mais antigos têm
acesso à estante em que está a edição de colecionador,
trancafiada fora de alcance, virando as costas para
nós. Enquanto experimento o amargo do meu sangue,
imagino que histórias preencheriam as páginas do velho
guia. Que cor teria sido usada na capa para nomear o
antigo arquipélago? E qual seria seu nome?