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Vagão Rosa - Tradução do Conto Ladies Special

2016, SocioPoética

Este conto, cujo título original é “Ladies special”, foi publicado pela primeira vez em Lowestoft Chronicle, n.23, outono de 2015. Disponível em: www. lowestoftchronicle.com/issues/issue23/namratapoddar.html

Volume 1 | Número 16 | janeiro a junho de 2016 Universidade Estadual da Paraíba Profº Antonio Guedes Rangel Junior Reitor Prof. Ethan Pereira Lucena Vice-Reitor Editora da Universidade Estadual da Paraíba Diretor Cidoval Morais de Sousa Diagramação Carlos Alberto de Araujo Nacre Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade do Departamento de Letras Direção Geral e Editorial Luciano Barbosa Justino Editor deste número Luciano Barbosa Justino Conselho Editorial Alain Vuillemin, UNIVERSITÉ D´ARTOIS Alfredo Adolfo Cordiviola, UFPE Antonio Carlos de Melo Magalhães, UEPB Arnaldo Saraiva, UNIVERSÍDADE DE PORTO Ermelinda Ferreira Araujo, UFPE Goiandira F. Ortiz Camargo, UFG Jean Fisette, UNIVERSITÉ DU QUÉBEC À MONTRÉAL ( UQAM) Max Dorsinville, MC GILL UNIVERSITY, MONTRÉAL Maximilien Laroche, UNIVERSITÉ LAVAL, QUÉBEC Regina Zilberman, PUC-RS Rita Olivieri Godet, UNIVERSITÉ DE RENNES II Roland Walter, UFPE Sandra Nitrini, USP Saulo Neiva, UNIVERSITÉ BLAISE PASCAL Sudha Swarnakar, UEPB Coordenadores do Mestrado em Literatura e Interculturalidade Antonio Carlos de Melo Magalhães e Luciano Barbosa Justino Revisores Eli Brandão da Silva, Luciano B. Justino, Sébastien Joachim, Antonio Magalhães Sociopoética Volume 1 | Número 16 | janeiro a junho de 2016 VAGÃO ROSA Campina Grande - PB SocioPoética - Volume 1 | Número 16 janeiro a junho de 2016 VAGÃO ROSA1 Namrata Poddar2 Tradução de Roland Walter e Tiago Silva Enquanto o trem rosa, exclusivo para mulheres, se aproxima de Churchgate, a multidão se move em direção à beirada da plataforma. Nós também nos movemos mais para perto. Alinhamos nossos corpos no sentido do movimento do trem, arrancamos e caímos no interior do vagão antes da besta metálica empoeirada se arrastar até parar. Essa é uma das primeiras coisas que você aprende sobre o trem rosa das 6h da manhã. Escalar um trem em movimento - seu único meio de assegurar um assento. Nós somos profissionais, nenhum arranhão ou fratura sequer nos últimos quinze anos, nem mesmo nas chuvas e ventos das monções. Lá dentro, eu pego o assento da janela; Carol segue e se encaixa ao meu lado. Em segundos, todos os assentos são ocupados. Carol trabalha no Deutsche Bank e vai caminhando para a estação de Churchgate todos os dias. Eu sou agente de viagens na Globetrotter em Marine Lines, a parada que vem depois de Churchgate. É por isso que faço primeiro o caminho inverso. Pego um trem lento para Churchgate e só depois pego o Virar Fast que passa por Marine Lines, apesar de não parar lá. Desse jeito, é quase certo conseguir um assento e a companhia de Carol durante o caminho - nosso único tempo livre para compartilhar uma boa conversa. Essa viagem extra todos os dias às vezes me dá 1 Este conto, cujo título original é “Ladies special”, foi publicado pela primeira vez em Lowestoft Chronicle, n.23, outono de 2015. Disponível em: www. lowestoftchronicle.com/issues/issue23/namratapoddar.html 2 Escritora, professora e pesquisadora, Namrata Poddar é doutora em Estudos Franceses pela Universidade da Pensilvânia (Penn) e leciona na Universidade da California (UCLA). 161 162 SocioPoética - Volume 1 | Número 16 janeiro a junho de 2016 nos nervos. Especialmente nos meses de verão quando trabalho duas vezes mais, emitindo passagens no trabalho, enviando adolescentes ricos para mochilarem na Europa, todos ansiosos para viver suas aventuras de Bollywood, para chapar, para ter relações sexuais. Mas então, eu lembro de Fátima, nossa outra colega do trem. “Mataria para ter um assento só meu. Inclinar minha cabeça contra a janela e cochilar durante a viagem. Eu seria tão mais produtiva desse jeito”, ela sempre fala. Produtiva é sua palavra favorita desde que começou a trabalhar na Runway Shoes em Dadar, poucas paradas ao norte de Churchgate. Uma loira sobe no trem. Ela olha ao redor e ocupa o canto que divide as filas de cadeiras a nossa frente. Sua cabeça quase toca o compartimento de metal onde os passageiros colocam sacolas, bolsas, sombrinhas, compras. A loira traz as mãos tatuadas com henna para perto do peito e começa a ler um livro. A capa mostra uma colagem de imagens - Queen’s Necklace bem perto de um Arabian Sea exageradamente azul, um horizonte sem fim com Ambani Residence destacado em dourado, os call centers do complexo de Bandra-Kurla, e um grupo de mulheres seminuas dançando num palco. Eu me inclino para frente, mas não vejo nenhum nome de guia de viagem conhecido. Nem mesmo o logotipo do Lonely Planet. A partir do título escondido no canto, suponho ser um guia turístico em uma língua estrangeira. Mumbai escrito em vermelho sangue acima das imagens. Quando o trem chega em Dadar, o vagão está tão cheio que nos perguntamos se Fátima conseguirá entrar. Viramos nossos pescoços em direção à saída. Nenhum sinal dela. O trem se move de novo. O barulho das rodas metálicas se mistura com o zumbido dos ventiladores de teto do nosso compartimento. Um ranço no ar se soma ao bafo do vagão. As mulheres próximas à porta se contorcem; duas ou três delas gritam com a pescadora que se colocou, como um sanduíche, entre duas passageiras. Ela força seu caminho enquanto tenta equilibrar um enorme cesto SocioPoética - Volume 1 | Número 16 janeiro a junho de 2016 de peixes sobre sua cabeça. Pequenas gotas d’água pingam. “Você vai para o vagão de carga na próxima parada ou eu vou chamar a polícia!” Uma das mulheres fala, enquanto aperta os olhos e cobre o nariz com um lenço. “O trem, por caso, pertence a seu pai?” A pescadora grita. Algumas mulheres resmungam. Vozes por todos os cantos. “O vagão de carga está cheio, não dá para ver?” “O próximo trem passa em cinco minutos, não dá para esperar?” “Por que eu tenho que esperar quando nenhuma de vocês espera?” “O fedor dessa água no meu sari! Aiiyoh, sabão nenhum pode limpar isso.” “A realeza deve pegar a primeira classe, então.” A pescadora dá uma balançada na cesta. As mulheres em volta gritam e escondem as cabeças. Eu tiro uma tábua de cortar da minha bolsa e coloco-a sobre meu colo. “O mesmo drama todo dia.” Balanço a cabeça e começo a cortar cenouras. Um trabalhinho de cozinha no trajeto de volta ajuda bastante. Termino o jantar e a limpeza da cozinha mais cedo e posso ajudar meus filhos com a tarefa de casa antes de irem para a cama. Produtiva, Fátima diria. Carol devolve cinquenta rúpias de troco para a tiazinha sentada do outro lado. “Eu trago as vermelhas para você amanhã,” ela diz enquanto entrega duas garrafas d’água amarela e verde para a tiazinha. A tiazinha é uma cliente regular de Carol - num negócio paralelo de Tupperware que ela mantém nas viagens de trem. “Com licença,” uma voz distante repete, soando mais como cunlicença. Carol olha pra mim com um brilho nos olhos. Amamos o sotaque de Fátima, da sua cidade, desde que ela começou a trabalhar na Runway. Fátima atravessa a multidão se arrastando até nós, ofegante. Nós também adoramos a rasteirinha que ela está usando esses dias, com pedras falsas de jade nas 163 164 SocioPoética - Volume 1 | Número 16 janeiro a junho de 2016 correias. Elegante e funcional, e a melhor parte, os funcionários da Runway ganham 75% de desconto. Ai, se nós calçássemos o mesmo tamanho de sapato que ela. Carol enfia sua mala com produtos Tupperware no compartimento de bagagens, junto com sua bolsa. Fátima senta no colo dela. Nos cumprimentamos, reclamamos do calor, botamos o papo em dia, desabafamos sobre a quarta, domingo está a uma eternidade. Nos abanamos - Fátima com a barra de sua túnica, Carol com um jornal e eu com as mãos, nos poucos segundos em que paro de cortar verduras. “Alguma novidade sobre o prédio, querida?” Diz Fátima, exibindo seu vocabulário novo outra vez. Ontem, vocês sabem, eu fui na reunião do condomínio. Meu prédio está para ser reformado como muitos outros lá no bairro. Os três andares serão demolidos e uma torre de doze andares será construída no lugar. Se todos concordarem com os termos do acordo de construção, minha família, assim como outros residentes, vai ganhar um quarto extra. “Na mesma. A bruxa se recusa a ceder.” Retiro as cenouras cortadas da tábua e coloco tudo em um Tupperware para ter espaço para o rabanete. “Sempre tem uma desgarrada no rebanho.” A bruxa é a moradora mais antiga do prédio, uma viúva indisposta a se mudar e alugar outro lugar por dois anos como o resto de nós, enquanto o contratante constrói uma torre nova. Carol acaricia meu braço. As meninas sabem o quanto eu quero mais espaço, especialmente com os gêmeos do meu irmão. “Uma família de oito vivendo em um apartamento de um quarto. É como ficar preso na porra desse vagão para sempre,” eu resmungo, evitando olhar nos olhos das meninas. A verdade é - cinco anos se passaram com essas reuniões e eu não quero mais fingir, mexo a cabeça todas as vezes que divido meu drama residencial com elas. Dê tempo ao tempo, querida. O que mais vão dizer? Nossas cabeças seguem o ritmo do movimento do trem. Outro trem cruza o nosso, o rangido SocioPoética - Volume 1 | Número 16 janeiro a junho de 2016 das rodas inunda nosso vagão com barulho. Quando o trem desaparece, arranha-céus pairam sobre edifícios de três a quatro andares como o meu, onde cobras negras de tinta de alcatrão de hulha cobrem as paredes externas para prevenir que a água das monções se infiltre. Uma vala longa e larga conecta Bombaim a Mumbai. “Ei.” Carol cutuca meu joelho com seu dedo indicador. As mulheres no nosso lado do vagão começaram a brincar de “Antakshari”. É a vez de Carol cantar uma música de filme começando pela letra A. Ae dil hain mushkil jeena yahan, ela começa, fazendo seu ombro bater no meu de um jeito divertido. Fátima e a tiazinha se juntam a cantoria, batendo as mãos em minha direção. Eu forço um sorriso e me junto às outras. Nesse esforço musical coletivo, o calor se dissipa no vagão. O trem se aproxima de Andheri. Muitas mulheres descem. Poucas sobem. Ar, enfim. Duas mulheres entram. Uma delas está usando uma saia grafite, uma camisa cinza, e um lenço de seda vermelho enrolado no pescoço; a outra está usando um camisão azul marinho e cabelo escuro com gel puxado para trás, formando um elegante rabo-de-cavalo. Elas sentam na fileira próxima a nossa. A loira está sentada em frente a elas, com o guia de Mumbai ainda nas mãos. O sol se põe lá fora. Raios de sol iluminam os cartazes colados nas paredes do vagão – anúncios de abortos, anúncios de contracepção, anúncios de escolas de formação e preparação em inglês, anúncios de empréstimos residenciais, e anúncios de números 999, escoltas policiais que você pode ligar tarde da noite e de manhã cedo durante as viagens. Esse último foi colocado depois do incidente do estupro em Deli. Entretanto, um anúncio se sobressai, cobrindo as laterais das paredes, incluindo os cantos abaixo do compartimento que guarda a bagagem dos passageiros. Próximo a um Shiva meditando, o número do celular de um guru de primeira que garante 100% de realização de todos os desejos salários mais altos, questões de fertilidade, procura da alma gêmea, moléstias mentais e físicas. Seu perfil no 165 166 SocioPoética - Volume 1 | Número 16 janeiro a junho de 2016 facebook e contato do WhatsApp listados logo ali. Eu estou cantando com as meninas, yeh hain Bombay meri jaan, enquanto corto vagem no meu colo. Abaixo do anúncio do guru, a loira e as duas mulheres que acabaram de entrar se inclinam umas sobre as outras, fofocando, rindo. A mulher com o lenço de seda aponta seu dedo para alguma coisa no guia turístico da loira. A mulher de camisão digita alguma coisa no seu iPhone e acena para elas. Uma bolsa Louis Vuitton pendurada no ombro da mulher, da que está usando o camisão. Os dedos tocando o iPhone dela exibem unhas vermelhas perfeitamente feitas. Eu observo o Shiva meditando, controlando as paredes de nosso trem, seu terceiro olho fechado acima de um sorriso satisfeito, e dou um grito muito alto. O coro em frente para. Num reflexo, coloco o dedo na boca. A tiazinha dá um suspiro e vira a cabeça. Eu olho para minha tábua de cortar e noto um mar de sangue onde pedaços de vagem formaram um lindo arquipélago. As ilhas se espalharam nos cantos deixando um oco retangular no centro. O mapa me lembra a contracapa amassada de um guia da minha cidade que vi na Globetrotter. Somente funcionários mais antigos têm acesso à estante em que está a edição de colecionador, trancafiada fora de alcance, virando as costas para nós. Enquanto experimento o amargo do meu sangue, imagino que histórias preencheriam as páginas do velho guia. Que cor teria sido usada na capa para nomear o antigo arquipélago? E qual seria seu nome?