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Media Effects Universidade Federal de Roraima - UFRR Editora da UFRR Diretor da EDUFRR Cezário Paulino B. de Queiroz Reitor Jefferson Fernandes do Nascimento Vice-Reitor Américo Alves de Lyra Júnior Conselho Editorial Alexander Sibajev Cássio Sanguini Sérgio Edlauva Oliveira dos Santos Guido Nunes Lopes Gustavo Vargas Cohen Lourival Novais Néto Luis Felipe Paes de Almeida Madalena V. M. do C. Borges Marisa Barbosa Araújo Rileuda de Sena Rebouças Silvana Túlio Fortes Teresa Cristina E. dos Anjos Wagner da Silva Dias Editora da Universidade Federal de Roraima Campus Paricarana – Av. Cap. Ene Garcez, 2413 Aeroporto – CEP 69310-000. Boa Vista – RR – Brasil e-mail: editora@ufrr.br / editoraufrr@gmail.com Fone: +55 95 3621 3111 A Editora da UFRR é filiada à: Associação Brasileira de Editoras Universitárias Asociación de Editoriales Universitarias de América Latina y el Caribe Vol. 5 Newsmaking, gatekeeping e teoria social Organizadores: Gilson Pôrto Jr. Nelson Russo de Moraes Daniela Barbosa de Oliveira Vilso Junior Santi Leila Adriana Baptaglin φ Diagramação: Marcelo A. S. Alves Capa: Lucas Margoni Arte de capa: Penguin Kao - www.behance.net/penguinkao O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas de cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva responsabilidade de seu respectivo autor. Todos os livros publicados pela Editora Fi estão sob os direitos da Creative Commons 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR http://www.abecbrasil.org.br Série Comunicação, Jornalismo e Educação – 28 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) PÔRTO JR., Gilson et al (Orgs.) Media effects: ensaios sobre teorias da Comunicação e do Jornalismo, Vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social [recurso eletrônico] / Gilson Pôrto Jr. et al (Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, Boa Vista: EdUFRR, 2018. 191 p. ISBN - 978-85-5696-459-5 Disponível em: http://www.editorafi.org 1. Ensaios. 2. Jornalismo. 3. Ética. 4. Comunicação. 5. Cultura. I. Título. II. Série. CDD: 177 Índices para catálogo sistemático: 1. Ética e sociedade 177 Diretor da série: Prof. Dr. Francisco Gilson Rebouças Porto Junior Universidade Federal do Tocantins (UFT), Brasil Comitê Editorial e Científico: Profa. Dra. Cynthia Mara Miranda Universidade Federal do Tocantins (UFT), Brasil Prof. Dr. João Nunes da Silva Universidade Federal do Tocantins (UFT), Brasil Prof. Dr. Luis Carlos Martins de Almeida Mota Instituto Politécnico de Coimbra, Portugal Prof. Dr. Nelson Russo de Moraes UNESP - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil Prof. Dr. Rodrigo Barbosa e Silva Universidade do Tocantins (UNITINS), Brasil Prof. Dr. Rogério Christofoletti Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil Prof. Dra. Maria Luiza Cardinale Baptista Universidade de Caxias do Sul:Universidade Federal do Amazonas, Brasil Profa. Dra. Thais de Mendonça Jorge Universidade de Brasília (UnB), Brasil Profa. Dra. Verônica Dantas Menezes Universidade Federal do Tocantins (UFT), Brasil Prof. Dr. Fagno da Silva Soares CLIO & MNEMÓSINE Centro de Estudos e Pesq. em História Oral e Memória Instituto Federal do Maranhão (IFMA) Dr. Luís Francisco Munaro Universidade Federal de Roraima (UFRR) Dr. José Manuel Peláez Universidade do Minho, Portugal Prof. Dr. Geraldo da Silva Gomes Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público do Tocantins, CESAF/MPTO A notícia revela como determinados fatos se passaram, identifica personagens, localiza geograficamente onde ocorreram ou ainda estão acontecendo, descreve as suas circunstâncias, e os situa, num contexto histórico para dar-lhes perspectiva e noção da sua amplitude e dos seus significados. (CURADO, Olga. A notícia na TV: o dia-a-dia de quem faz Telejornalismo. São Paulo: Alegro, 2002, p. 16.) Sumário Prefácio ........................................................................................................ 13 Os organizadores Capítulo 1 ..................................................................................................... 17 Os valores-notícia atualizados: os novos, originais e contemporâneos fatores de Harcup e O’Neill Marina Medleg Simon; Thaïs de Mendonça Jorge Capítulo 2..................................................................................................... 41 Gatekeeping: do desenvolvimento da teoria às aplicações na pesquisa Alberto Marques Capítulo 3.................................................................................................... 63 A importância da compreensão do processo de produção para o estudo do jornalismo audiovisual em dispositivos móveis: reflexões com base na teoria do Newsmaking Juliana Fernandes Teixeira; Denise Freitas de Deus Soares Capítulo 4.................................................................................................... 83 Jornalismo de capa e as teorias do newsmaking e do agendamento na Folha de São Paulo Gleisy N. de Alencar; Francisco Gilson R. P. Junior; Verônica Dantas Menezes Capítulo 5 .................................................................................................... 95 Os movimentos sociais e o papel ativo dos sujeitos: ponderações a partir dos estudos culturais e da teoria das mediações Vilso Junior Santi; Adrián José Padilla Fernandez Capítulo 6................................................................................................... 115 Pensamento comunicacional: contribuições da teoria social de Niklas Luhmann Maria Ogécia Drigo Capítulo 7 ................................................................................................... 141 A lei de responsabilidade fiscal, a aplicação da teoria da comunicação e o desafio do fortalecimento da democracia no Brasil Nelson Russo de Moraes Capítulo 8 .................................................................................................. 159 As imagens dos povos indígenas representadas em charges: preconceitos velados através do “efeito de terceira pessoa” Adriano Alves da Silva; André Demarchi Prefácio Gilson Pôrto Jr. Nelson Russo de Moraes Daniela Barbosa de Oliveira Vilso Junior Santi Leila Adriana Baptaglin Chegamos ao vol. 5 de MEDIA EFFECTS: ensaios sobre teorias da Comunicação e do Jornalismo focando em Newsmaking, gatekeeping e teoria social. Uma vitória para a construção coletiva na região norte e suas redes pelo Brasil e Exterior. Articulando pesquisas de campo e investigações mais teóricas, os oito capítulos presentes no vol. 5 dedicam-se a aprofundar conceitos que problematizam situações evidenciadas na contemporaneidade e que passam a fazer parte da agenda permanente das Teorias da Comunicação e do Jornalismo. Sendo assim, iniciamos o livro com o capítulo 1, voltado para os estudos em Newsmaking: Os valores-notícia atualizados: os novos, originais e contemporâneos fatores de Harcup e O’Neill das autoras Marina Medleg Simon e Thaïs de Mendonça Jorge discute os principais focos dos estudos em newsmaking que são os critérios de noticiabilidade, o conjunto de fatores que determinam se um evento tem potencial para se tornar uma notícia. Os resultados apontados pelas autoras são um rol de temas contemporâneos, que confirmam a ideia de que os critérios de noticiabilidade representam mesmo um mapa cultural da sociedade. 14 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social No capítulo 2 Gatekeeping: do desenvolvimento da teoria às aplicações na pesquisa, Alberto Marques apresenta a teoria do gatekeeping e elencar algumas abordagens. Para isso, utiliza como método de pesquisa a revisão de literatura. Apesar de o paper focar nos estudos direcionados ao jornalismo, é importante frisar que trabalhos como os de Cantor (1980) e de Hirsch (1977) se debruçam em outras perspectivas. Os caminhos abordados pelo texto podem contribuir para que novas investigações sejam desenvolvidas. No capítulo 3 A importância da compreensão do processo de produção para o estudo do jornalismo audiovisual em dispositivos móveis: reflexões com base na teoria do Newsmaking das autoras Juliana Fernandes Teixeira e Denise Freitas de Deus Soares explicitam a importância da compreensão do processo produtivo para a investigação das práticas jornalísticas contemporâneas. O foco da pesquisa apresentada voltou-se para o jornalismo audiovisual praticado em dispositivos móveis, sendo consideradas organizações jornalísticas de âmbito internacional, nacional e local (Piauí) buscando destacar a relevância dos posicionamentos dos jornalistas (nas entrevistas empreendidas). O capítulo 4 Jornalismo de capa e as teorias do Newsmaking e do agendamento na Folha de São Paulo de Gleisy Alencar, Francisco Gilson Rebouças Pôrto Junior e Verônica Dantas Meneses traz os resultados da análise descritiva, analítica e de conteúdo das páginas de capa do Jornal Folha de São Paulo. As análises identificaram que o jornal Folha de São Paulo agenda prioritariamente em suas capas as notícias internacionais. Dentre as notícias nacionais, destacam-se os temas: atualidades, economia, corrupção e decisões do judiciário, quase que empatadas quantitativamente, seguidas depois pelas notícias de esporte e cultura. Já no capítulo 5 Os Movimentos Sociais e o papel ativo dos sujeitos: ponderações a partir dos Estudos Culturais e da Teoria das Mediações de Vilso Junior Santi e Adrián José Padilla Fernandez, os autores discutem a relação entre os Estudos Culturais, Os organizadores | 15 os Estudos de Recepção, a Teoria das Mediações e a Teoria dos Movimentos Sociais, através da tomada de consciência da importância do papel ativo dos sujeitos nesses processos. No capítulo 6 Pensamento Comunicacional: contribuições da teoria social de Nicklas Luhmann, de Maria Ogécia Drigo, temos um trabalho atento acerca da teoria de Nicklas Luhmann que por possibilitar o redimensionamento da relação entre comunicação e sociedade, bem como a noção de representação e da produção de sentidos, vem na contramão de teorias da comunicação bem assentadas no meio comunicacional. No capítulo 7 A lei de responsabilidade fiscal, a aplicação da teoria da comunicação e o desafio do fortalecimento da democracia no Brasil, Nelson Russo de Moraes trabalha com o resgate da importância da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000) para a administração pública no Brasil e ao dialogar sobre a lacuna da instrumentalização dos meios de comunicação sobre os quais se dariam a publicidade das contas públicas chega à Lei de Transparência Pública (Lei Complementar 131/2009). Neste interim, destaca como o surgimento e o fortalecimento do ambiente web, que embora tenha trazido polêmica à comunicação, concretiza meios de promover a participação e instrumentalizar o controle social sobre o Estado. Assim, o texto aproxima a teoria da comunicação e a teoria da democracia, quando apresenta como a primeira serve ao fortalecimento da democracia. E, por último, o capítulo 8: As imagens dos povos indígenas representadas em charges: preconceitos velados através do “efeito de terceira pessoa” de Adriano Alves da Silva e André Demarchi busca discutir as imagens dos povos indígenas representadas através de charges. O material coletado, evidencia a presença de preconceitos sobre os povos indígenas através da hipótese do “efeito de terceira pessoa” por meio de pesquisa qualiquantitativa. Concluem que as charges, mesmo trabalhando suas causas com uma linguagem crítica de protesto, causam polissemias, 16 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social carregam estereótipos e “ideias equivocadas” sobre os povos indígenas que são partilhadas com o senso comum, trazendo à tona preconceitos silenciadores evidenciados através do efeito de terceira pessoa. Entendemos que os capítulos do livro são olhares múltiplos para as teorias do jornalismo adentrando em propostas diferenciadas, mas essenciais para o despertar do conhecimento na área comunicacional. Desejamos que os que lerem essas produções aproveitem, reflitam, discutam e, se desejarem, contestem as proposições apresentadas e construa suas reflexões mediadas pelas teorias e pelas inquietações aqui presentes. Capítulo 1 Os valores-notícia atualizados: os novos, originais e contemporâneos fatores de Harcup e O’Neill Marina Medleg Simon1 Thaïs de Mendonça Jorge2 Introdução “As notícias são o que os jornalistas definem como tais. Essa tese raramente é explicitada, visto que parte do modus operandi dos jornalistas é que os eventos ocorrem ‘fora’, e os primeiros limitamse, simplesmente, a relatá-los”. A afirmativa de Altheide (1976 apud WOLF, 2003, p. 196) advém realmente da largueza da definição de notícia. O fato é que todas as notícias que podemos ler, ouvir ou ver nos sites, jornais, nas emissoras de rádios e na televisão surgiram como resultado de uma seleção prévia feita, normalmente, por jornalistas. Mas como essas notícias chegaram lá? 1 Jornalista formada pela Universidade de Brasília (UnB), é Doutora em Comunicação pela mesma Universidade. É mestre em Comunicação pela Universidade Stendhal-Grenoble 3 (França), e Universidade de Florença (Itália). Foi professora, no Centro Universitário Iesb no curso de Jornalismo e na modalidade EAD. Como jornalista, teve passagens pela CNT, Unesco, jornais Hoje em Dia e Correio Braziliense e a rádio RFI. 2 Jornalista formada pela Universidade Federal de Minas Gerais, com mestrado em Ciência Política e doutorado em Comunicação pela Universidade de Brasília. É professora da Faculdade de Comunicação da UnB e secretária de Comunicação da instituição. 18 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social Descobrir o que a notícia foi e ainda é constitui uma das principais investigações a guiar os estudos em Comunicação. Dentre esses estudos, está a abordagem do newsmaking, que recai sobre a organização do trabalho e dos processos produtivos nas redações e a cultura profissional. Juntos, esses componentes determinam os conceitos do produto-notícia e as condições de sua confecção. Um dos principais focos dos estudos em newsmaking são os critérios de noticiabilidade, o conjunto de fatores que determinam se um evento tem potencial para se tornar uma notícia, no conceito de Traquina (2008): Podemos definir o conceito de noticiabilidade como o conjunto de critérios e operações que fornecem a aptidão de merecer um tratamento jornalístico, isto é, possuir valor como notícia. Assim, os critérios de noticiabilidade são o conjunto de valores-notícia que determinam que um acontecimento, ou assunto, é susceptível de se tornar notícia, isto é, de ser julgado como merecedor de ser transformado em matéria noticiável e, por isso, possuindo “valornotícia” (“newsworthiness”) (TRAQUINA, 2008, p. 63). Os valores-notícia são portanto um componente da noticiabilidade. A definição e a escolha do que é noticiável encontrase dirigida para a “condição factível” do produto informativo, a ser realizado em tempos e com recursos limitados, introduzindo "práticas de produção estáveis numa matéria-prima (os acontecimentos do mundo), por sua natureza variável e imprevisível" (WOLF, 2003, p. 196-197). Analisar os valores-notícia contribui para que a seleção seja mais transparente e talvez um pouco mais compreensível. É uma possibilidade de entender a dimensão operacional, mesmo que sucinta, de como é feito o trabalho diário dos jornalistas e como são os critérios compartilhados entre eles. Afinal, isso tudo resulta no trato com os fatos, abrangendo toda a cultura profissional, como explicam Harcup e O’Neill (2016): Marina Medleg Simon; Thaïs de Mendonça Jorge | 19 Vale a pena estudar os valores-notícia porque eles informam ao mundo as notícias que são apresentadas ao público, fornecendo uma compreensão operacional resumida do que é compartilhado entre jornalistas em atividade, que trabalham dentro de prazos bem definidos. É a maneira como os valores noticiosos atuam na prática e que resulta em como eles são articulados e transmitidos aos novos jornalistas e aos estudantes de Jornalismo, e também como são utilizados por profissionais de relações públicas e outros com o objetivo de obter o máximo aproveitamento da cobertura de eventos (ou pseudoeventos) (HARCUP; O’NEILL, 2016, p. 1). O estudo dos valores-notícia esteve entre as preocupações de diversos autores, como Galtung e Ruge (1965), Hartley (1982), Ericson, Baranek, Chan (1987), Wolf (2003), Herbert Gans (2005) e Traquina (2008), para citar alguns dos principais que elaboraram conjuntos de valores-notícia. Dentre as listas apresentadas, podemos perceber diferentes tipos de abordagem no que diz respeito à teorização dos valores-notícia, ora com foco no evento em si, como foi o caso de Galtung e Ruge, ora incluindo fatores culturais, organizacionais e econômicos que também podem influenciar a filtragem. Há ainda autores que, numa perspectiva marxista (HALL, 1973; HERMAN; CHOMSKY, 1988 apud HARCUP; O’NEILL, 2016), relacionam os valores-notícia a uma estrutura ideológica construída para favorecer e naturalizar os discursos e perspectivas da elite dominante. Ou seja, os valores noticiosos podem ser vistos menos como um reflexo do tipo de informação que os cidadãos querem ou precisam, e mais como a representação das normas organizacionais, sociológicas, culturais e econômicas que regem o trabalho jornalístico (WEAVER et al., 2007 apud HARCUP; O’NEILL, 2016). Como diz Tuchman (1973 apud WOLF, 2003, p. 196), “sem uma certa rotina de que se possa valer para fazer frente aos acontecimentos imprevistos, as organizações jornalísticas, como empreendimentos racionais, faliriam”. As variáveis a respeito de um fato são tantas que, se cada jornalista tivesse que decidir, em particular, sobre cada aspecto, não haveria como cumprir os prazos 20 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social e encaminhar o material aos processos avançados da produção, a fim de chegar finalizado às ruas. Além dos aspectos de cada fato, ainda há uma “superabundância de acontecimentos”, como observa Wolf, os quais é necessário dosar e selecionar. Os critérios para configurar a noticiabilidade dos eventos – ou a “aptidão” para serem transformados em notícia – foram organizados para orientar o trabalho dos gatekeepers e partiram das pesquisas de White (1950) sobre seu modo de operar. Se fossem se guiar por Tobias Peucer (2004), os órgãos de imprensa jamais teriam problemas de pauta ou de falta de assunto. Ele discutia já no século 17 – numa perspectiva de comparação entre o discurso da história e o discurso jornalístico no que respeita à verdade documental – questões de noticiabilidade, credibilidade, forma e estilo dos periódicos. Peucer acreditava que os fatos são praticamente “infinitos” e talvez antecipando a “superabundância de acontecimentos” de Wolf e Tuchman, recomendava “estabelecer uma seleção” para dar preferência “àqueles que merecem ser recordados ou conhecidos”. Com a visão a um só tempo no interesse do leitor e no que seria adequado [aos governantes] divulgar, Peucer elaborou, muito antes que as linhas de pesquisa em comunicação e em jornalismo pudessem se esboçar, uma lista de acontecimentos noticiáveis. Em 1942, Stanley Johnson e Julian Harriss (1966), da Universidade do Tennessee (EUA), já falavam em “valores noticiosos”, “características intrínsecas” e “qualidades desejáveis” dos acontecimentos. Preocupavam-se, ademais, em estabelecer medidores da importância das notícias: “Existe uma balança para determinar a gravidade específica ou a importância das notícias, ou para pesá-las de maneira a que se saiba a atração que podem exercer sobre o leitor? Há alguns princípios para guiar o repórter e o editor na seleção, entre milhares de notícias, das mais importantes?” (JOHNSON, HARRIS; 1966, p. 33-37). As recomendações de Johnson e Harriss eram taxativas: Marina Medleg Simon; Thaïs de Mendonça Jorge | 21 As notícias têm características intrínsecas, conhecidas como valores noticiosos [grifo dos autores]. A presença ou ausência desses valores determina sua importância, e assim garante a atenção do leitor. Estes valores noticiosos são, portanto, medidas úteis da importância dos acontecimentos. Devidamente aplicados, determinarão se uma ocorrência é notícia ou não (JOHNSON; HARRIS, 1966, p. 33-37). Já nessa época, os autores viam a notícia como um produto da ruptura do status quo. Sendo assim, encaravam na notícia, essencialmente, a mudança: sem mudança não há notícia. [...] O câmbio, ou câmbio potencial, é elemento fundamental nas notícias. São mudanças que têm vital importância para os leitores, que os afetam de alguma forma, como o temor de perder o emprego pelo fechamento da fábrica; ou os alentam, como a eleição do novo prefeito da cidade, o novo gerente, os recémcasados ou a criança que nasceu (JOHNSON; HARRIS, 1966, p. 39). Na impossibilidade de uma balança ou termômetro para avaliar a noticiabilidade, propunham “fatores de magnitude”: 1) grau de variação do status quo (intensidade); 2) número de pessoas afetadas (extensão); 3) distância do evento (proximidade); 4) tempo do fato (oportunidade); 5) grau dos resultados que derivam do fato (consequência); diversidade de valores noticiosos (variedade). Em momentos sucessivos do processo produtivo, os valoresnotícia entram em atuação: na pauta; no trabalho de apuração; na edição das matérias; na paginação; e, mais importante ainda, na capa dos veículos impressos e na homepage dos websites. Os sentidos do repórter se aguçam quando ele descobre um detalhe interessante, na coleta de dados. O valor da matéria aumenta: ele sabe que o assunto pode ser manchete. As notícias com maior potencial informativo e atrativo conjugam maior número de valores-notícia. Quanto mais fatores agrupados, maior será o resultado em termos de impacto sobre o público. E podemos avaliar 22 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social esse impacto com os “medidores” – proximidade, intensidade, extensão, consequência – de Johnson e Harriss (1966). Em um trabalho mais recente que a obra Teorias das comunicações de massa, cujo original é de 1985, Mauro Wolf (1997) lembrou que os estudos de newsmaking evidenciaram a natureza complexa do trabalho no jornalismo e seus condicionamentos. Manifestava-se preocupado em enfocar as inovações tecnológicas nas redações jornalísticas e as consequências sobre o ofício do jornalista. “Para o estudo do newsmaking, trata-se de entender como pode ocorrer que instrumentos muito potentes do ponto de vista da quantidade dos fluxos informativos, com frequência determinam um empobrecimento da qualidade da informação, uma depreciação da função jornalística” (WOLF, 1997), criticou. No artigo intitulado “Os emissores de notícias na pesquisa em comunicação” , o autor italiano observou que nos encontramos frente a novos processos: 1) des-profissionalização da função do jornalista nas redações, por causa da tecnologia digital; 2) burocratização das redações, pois “a renovação não se dirigiu ao produto informativo, mas ao processo produtivo”; 3) “confecção e embalagem do produto, não à sua ideação”. Para Wolf, “agora se tornou normal dizer e pensar que não são os jornalistas que devem buscar as notícias mas, sim, são as notícias que buscam os jornalistas” (1997). O incremento na quantidade de informações e de trabalho não se traduz, ainda de acordo com Wolf, “num projeto mais esmerado dos jornais, em seleções mais pensadas e profundas. As redações são cada vez mais dependentes das agências, das fontes, cada vez mais constrangidas a se adequar a critérios de relevância estabelecidos pela rede de agências”. Nesse artigo escrito pouco antes de sua morte, em 1996 – porém, que parece ter sido divulgado na rede em 1997 –, o autor afirma que “os atuais estudos de newsmaking têm que enfrentar o dever de analisar as razões organizativas e estruturais pelas quais o aumento dos fluxos de informação não vem produzindo uma Marina Medleg Simon; Thaïs de Mendonça Jorge | 23 sociedade mais transparente”, ao contrário: a velocidade da informação só está produzindo uma sociedade “mais opaca”. Feita essa introdução inicial sobre valores noticiosos e algumas discussões a esse respeito, iremos apresentar, a seguir, o novo, original e contemporâneo conjunto de valores-notícia propostos pelos professores, pesquisadores e jornalistas britânicos Harcup e O’Neill (2016), que, por sua vez, fizeram uma revisão dos fatores propostos por Galtung e Ruge (1965). Veremos primeiramente os fatores de Galtung e Ruge para, depois, adentrar a lista de Harcup e O’Neill. Os fatores de Galtung e Ruge Johan Galtung e Mari Holmboe Ruge (1965) foram um dos primeiros estudiosos a questionar (e investigar) “como os eventos se tornam notícias?”. Os autores noruegueses elaboraram de forma pioneira, sistemática e exaustiva uma lista de fatores que pareciam particularmente importantes na eleição dos eventos a ser noticiados. O resultado preliminar de seu estudo foi apresentado em Oslo, na Noruega, em 1963, na Primeira Conferência Nórdica sobre a Pesquisa pela Paz, e publicado dois anos depois, em 1965. A análise de conteúdo – que resultou numa lista de 12 valores-notícia – foi feita em quatro jornais noruegueses, mais especificamente em 1.262 textos, entre notícias, editoriais e cartas de leitores, que tinham como foco crises políticas em três países estrangeiros: Congo, no ano de 1960, Cuba, no mesmo ano, e Chipre, no ano de 1964 (HARCUP; O’NEILL, 2001). Com base nesse estudo, Galtung e Ruge (1965) sugeriram uma lista de 12 fatores e algumas hipóteses, que resumimos a seguir com a ajuda de Harcup e O’Neill (2001) e Traquina (2008): 1) Frequência: evento que aconteça na mesma frequência de tempo do jornal é mais provável que seja selecionado como notícia do que um fato que ocorra durante um período de tempo maior ou fora da periodicidade do veículo; 24 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social 2) Amplitude: quanto maiores a dimensão, intensidade e impacto, maior é sua probabilidade de se tornar notícia. Por exemplo, quanto mais trágico for um acidente, maior é a sua chance de ser noticiado; 3) Ausência de ambiguidade: quanto mais facilmente puder ser compreendido ou quanto mais claramente um fato puder ser interpretado sem apresentar múltiplos significados, maior a chance de ser selecionado; 4) Significância: um fato culturalmente próximo ao país de origem do jornal tem mais chance de se tornar notícia, pois se molda às referências dos jornalistas que o selecionam; 5) Consonância: um evento que vai ao encontro de uma “préimagem” mental do jornalista que seleciona a notícia tem mais probabilidade de se tornar notícia. É quando o jornalista se depara com uma nova informação, mas que se assemelha a um relato que ele já viu antes, um evento que lhe é familiar; 6) Inesperado: dentro do conjunto de eventos com significância e consonância, aqueles inesperados ou raros são os mais factíveis de se tornar notícia. 7) Continuidade: após ganhar as manchetes, um evento tende a permanecer no centro das atenções por algum tempo, mesmo que sua amplitude tenha sido reduzida. A cobertura contínua acontece como forma de justificar a atenção que um evento atraiu inicialmente; 8) Composição: este fator diz respeito à necessidade de se manter um equilíbrio temático das notícias, com vistas à diversidade dos assuntos abordados; 9) Referência a nações de elite: eventos envolvendo nações de elite seriam mais noticiáveis do que os que envolvem outras nações. O conceito de nações de elite varia por conta de fatores culturais, políticos e econômicos, embora alguns países (Estados Unidos, por exemplo) possam ser unanimidade nesse sentido; Marina Medleg Simon; Thaïs de Mendonça Jorge | 25 10) Referência a pessoas da elite: eventos com pessoas da elite, normalmente personalidades famosas, costumam ser vistos pelos jornais como tendo mais consequências do que os que envolvem anônimos; 11) Personalização: notícias tendem a apresentar eventos como ações de uma determinada pessoa ou de uma coletividade de pessoas e não como resultado de forças sociais; 12) Negatividade: a preferência dos jornais por notícias que se referem a algo negativo acontece por alguns motivos, segundo os autores: as notícias negativas podem ser vistas como pouco ambíguas e consensuais, geralmente são inesperadas e satisfazem melhor ao critério da frequência e da consonância. Após elencar estes 12 valores-notícia, Galtung e Ruge formularam algumas hipóteses: quanto maior o número de fatores tiver um evento, maior a sua probabilidade de se tornar uma notícia, confirmando o que disse Wolf (2003, p. 202), quando revelou que "os critérios de relevância funcionam conjuntamente, em 'maços'". Além disso, uma vez que um evento é selecionado, aquele valornotícia que o tornou digno de seleção será mais destacado na notícia, fenômeno que os autores chamaram de “distorção”. Indiscutivelmente, a pesquisa dos autores noruegueses tornou-se uma das mais influentes no mundo sobre valores-notícia, considerada o estudo fundamental sobre a temática (BELL, 1991 apud HARCUP; O’NEILL, 2001), um verdadeiro “divisor de águas” (WATSON, 1998 apud HARCUP; O’NEILL, 2001). Entretanto, o estudo apresenta algumas limitações. Apesar de os resultados da pesquisa se estenderem a valores-notícia de forma geral, o estudo se concentrou somente na cobertura de três grandes crises internacionais, envolvendo três países estrangeiros, e ignorou a cobertura diária de eventos menores. Em suma, “a taxonomia dos valores-notícia de Galtung e Ruge pareceu ignorar a maioria das notícias” (HARCUP; O’NEILL, 2001, p. 276, tradução nossa). Os 26 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social autores noruegueses tampouco levaram em consideração elementos visuais dos eventos que poderiam ter incidido sobre a seleção das notícias, como fotografias impactantes (TUNSTALL, 1971 apud HARCUP; O’NEILL, 2001). Galtung e Ruge revisados por Harcup e O’Neill Apesar da popularidade dos estudos sobre critérios de noticiabilidade, foram poucos os acadêmicos que se propuseram a realizar uma análise de conteúdo similar à de Galtung e Ruge para avaliar, na prática, a utilidade dos valores-notícia propostos e verificar qual a relação entre as notícias que aparecem na imprensa e os critérios propostos pelos noruegueses. Tony Harcup e Deirdre O'Neill foram pioneiros em fazê-lo. Os resultados foram publicados em 2001, sob o título “What is news? Galtung and Ruge revisited”, tornando-se um dos artigos mais lidos e citados na história da conceituada revista Journalism Studies (HARCUP; O’NEILL, 2016). Harcup e O'Neill queriam tentar identificar quais dos fatores de Galtung e Ruge pareciam estar presentes, de fato, nas notícias. Para tanto, realizaram uma análise de conteúdo similar a de Galtung e Ruge: examinaram 1.276 notícias (número, inclusive, semelhante à amostragem de Galtung e Ruge, 1.262), publicadas nas principais manchetes dos três mais importantes jornais do Reino Unido – Daily Telegraph, The Sun e Daily Mail – durante todo o mês de março de 1999. Diferentemente da análise realizada por Galtung e Ruge, editoriais e cartas de leitores ficaram de fora do estudo de Harcup e O’Neill. Além disso, os pesquisadores britânicos abordaram todas as editorias e não somente a internacional. Ambos os estudos pretendiam chegar às mesmas conclusões, apesar dos focos ligeiramente diferentes: Galtung e Ruge se concentraram em levantar hipóteses sobre os eventos em si, para entender como eles se tornam notícias, enquanto Harcup e O'Neill se concentraram nas notícias já redigidas e publicadas, para compreender quais foram os critérios que levaram à sua seleção, como explicam os autores: Marina Medleg Simon; Thaïs de Mendonça Jorge | 27 Enquanto Galtung e Ruge começaram sugerindo uma lista de fatores e, em seguida, apresentavam hipóteses – em vez de começar com um estudo empírico do que realmente aparecia nos jornais –, nossa análise foi feita por um ângulo totalmente diferente. A preocupação deles era com eventos e como eles se tornavam notícias ou não. Nossa preocupação tem sido com notícias publicadas e o que pode ou não ter levado à sua seleção (HARCUP; O’NEILL, 2001, p. 267, tradução nossa). Por meio de análise de conteúdo, Harcup e O'Neill identificaram que, quando aplicados na prática, os 12 valoresnotícias de Galtung e Ruge apresentaram problemas. Os pesquisadores britânicos elaboraram então questionamentos para cada um dos fatores, que iremos ver a seguir, em ordem decrescente em relação à frequência em que aparecem na análise realizada (HARCUP; O’NEILL, 2001). A ausência de ambiguidade - terceiro fator na lista de Galtung e Ruge - foi o valor-notícia mais identificado na análise de Harcup e O’Neill (589 notícias). Segundo os britânicos, a explicação para isso está no fato de serem matérias jornalísticas analisadas e não eventos; portanto, a clareza é muito importante: “A maioria dos jornalistas é treinada para escrever sem ambiguidades, mesmo sobre histórias que parecem ambíguas, complexas ou obscuras” (HARCUP; O’NEILL, 2001, p. 277). Além disso, eles notaram grande número de notícias não-ambíguas, mesmo sobre assuntos que davam margem a múltiplas interpretações, como um bombardeio da Otan na Sérvia ou o orçamento do Reino Unido. A principal dúvida de Harcup e O’Neill sobre esse valor-notícia foi: trata-se da ambiguidade do assunto em si ou em relação à interpretação que o jornalista fez do assunto? A referência a pessoas da elite ficou em segundo lugar em termos de frequência (588 matérias). Harcup e O’Neill identificaram, dentro desse fator, notícias envolvendo celebridades do mundo da televisão, esportistas, atores de cinema e membros da 28 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social família real britânica. São figuras da elite, mas que, muito provavelmente não estavam na mente de Galtung e Ruge ao elaborar esse valor-notícia, pois se acredita que eles tivessem como foco figuras do mundo da política. O principal questionamento de Harcup e O’Neill era, portanto, a abrangência deste fator: quão útil é uma categoria que não faz distinção entre celebridades e figuras políticas? Além disso, notícias envolvendo instituições importantes, tais como ONU, Otan, Vaticano, as universidades de Oxford e Cambridge não se encaixavam nessa categoria e em nenhuma outra. A frequência ficou em terceiro lugar (472 matérias), o que surpreendeu os autores, pois eles esperavam que o fator fosse registrado em todas as notícias e que ficaria em primeiro lugar em termos de recorrência. Entretanto, eles constataram que muitos eventos tornaram-se notícia mesmo quando não se desenrolavam em uma frequência similar às rotinas dos jornais. Eles apontaram também histórias que não apresentavam de forma clara o período de tempo em que aconteceram. Segundo Harcup e O’Neill, isso pode ter acontecido pelo fato de os jornais estamparem notícias que já tinham sido publicadas antes em outros jornais, principalmente assuntos de entretenimento. Além disso, observaram que os jornais costumam fornecer abordar eventos que já foram dados em primeira mão por outros meios como televisão, rádio e internet, cabendo à imprensa a tarefa de realizar uma análise mais aprofundada. Falar em frequência hoje soa artificial, pois ignora uma maior flexibilidade no processo de produção de notícias. O fator novidade parece mais adequado do que frequência. O questionamento de Harcup e O’Neill para este fator foi: como a frequência se aplica a histórias que não são sobre eventos, mas sobre tendências, especulações ou até mesmo quando não há um evento específico envolvido? Mais de um terço das notícias analisadas foram sinalizadas com o valor-notícia negatividade (454 matérias). Ele ficou em quarto lugar como o mais frequente. Porém, ao lado de notícias com viés negativo, chamou a atenção dos autores uma quantidade Marina Medleg Simon; Thaïs de Mendonça Jorge | 29 surpreendente de notícias com viés particularmente positivo nos três jornais analisados, atos de heroísmo, crianças-prodígio, recuperações milagrosas, resgates, comemorações de aniversário, premiações e histórias de superação. Harcup e O’Neill observaram que a quantidade de notícias positivas muitas vezes se igualava à quantidade de notícias negativas. Além disso, observaram que muitas notícias podiam ser classificadas por algumas pessoas como negativa, enquanto que por outros como positiva, dependendo dos interesses envolvidos. Ou seja, “uma história pode ser apresentada como uma má notícia simplesmente porque esse ângulo reflete a posição política do jornal ou as visões percebidas de seus leitores” (HARCUP; O’NEILL, 2001, p. 273). Aqui, o questionamento dos autores foi: uma notícia é negativa para quem exatamente? A personalização ficou em quinto lugar como o mais frequente (417 matérias) e gerou muitas dúvidas nos autores. Eles consideraram que fazer referência a pessoas nas notícias é, na verdade, uma técnica jornalística para aumentar o interesse na história. “Pode ser precipitado destacar esse fator como um dos mais proeminentes, pois a técnica jornalística e a prática profissional exigem que o repórter procure sempre pessoas envolvidas nos eventos” (HARCUP; O’NEILL, 2001, p. 273). A pergunta dos autores foi: a personalização postulada por Galtung e Ruge é intrínseca ao assunto ou à técnica jornalística ao escrever a notícia? A continuidade ficou em sexto lugar (354 notícias) e foi considerado o mais difícil de ser identificado, pelo fato de a análise ter ocorrido em um período de tempo curto (um mês), segundo os autores, o que não lhes deu a oportunidade de verificar uma sequência grande de publicações. O questionamento de Harcup e O’Neill para este valor-notícia foi: algo pode estar nos noticiários hoje porque foi notícia ontem, mas o que isso realmente revela sobre o porquê de o primeiro evento ter sido selecionado inicialmente? O fator inesperado ficou em sétimo lugar em termos de frequência (276 matérias) e surpreendeu os autores, pois eles não esperavam encontrar uma quantidade baixa de eventos 30 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social considerados raros ou inesperados dentro da amostragem. Segundo eles, isso se deveu por conta da rígida organização das rotinas das redações, feita justamente para evitar imprevisibilidades: “O evento raro é mais raro do que o esperado, possivelmente refletindo o fato de que muitas coberturas jornalísticas já estão inseridas dentro de uma rotina, dominada pelas notícias diárias e por eventos préprogramados” (HARCUP; O’NEILL, 2001, p. 273). O questionamento para esse valor-notícia foi: como podemos saber se o jornalista não está simplesmente adotando um ângulo inesperado para um evento previsível? A significância (220 matérias) e a referência a nações de elite (213 matérias) ficaram em oitavo e nono lugares, respectivamente, e não tiveram tanto destaque nos jornais analisados quanto os demais fatores, segundo Harcup e O’Neill, pelo fato de não haver uma abrangência da cobertura internacional nesses periódicos. Assim, a significância seria um conceito “escorregadio”, que muda com o tempo, e depende de interpretações subjetivas. Já quanto às nações de elite, o questionamento dos pesquisadores foi: a escassez de notícias estrangeiras nos jornais britânicos torna esse fator relativamente pouco saliente, mas isso significa que ele não se aplica? Foi surpresa para os autores britânicos o fato de a amplitude ter ficado em décimo lugar em termos de frequência (173 notícias). Na verdade, eles identificaram um grande número de notícias aparentemente sem significância, impacto ou importância. “Sem dúvida, todos os três jornais trouxeram muitas histórias com pouca significância aparente ou amplitude, presumivelmente porque tais histórias eram vistas como divertidas ou relacionadas ao estilo de vida dos leitores” (HARCUP; O’NEILL, 2001, p. 273). Emergiu o questionamento se este fator estaria também aberto a interpretações subjetivas: “Qual é maior: 20 mortes em dez acidentes na estrada ou cinco mortos em um único acidente ferroviário?”, eles questionaram (HARCUP; O’NEILL, 2001, p. 268). A consonância (109 matérias) e a composição (106 matérias) ficaram em décimo-primeiro e décimo-segundo lugares, ocupando as Marina Medleg Simon; Thaïs de Mendonça Jorge | 31 últimas posições. O número pouco expressivo de notícias em que esses fatores apareceram se deveriam ao fato de que os dois valores-notícia de Galtung e Ruge se relacionariam menos com as notícias em si e mais com o processo de produção da notícia. E mais: dão margem a interpretações subjetivas, em que seria preciso tentar adivinhar o que estava na mente do jornalista ao tomar uma decisão específica na seleção da notícia: “(...) fomos obrigados a especular as razões por trás da decisão do jornalista” (HARCUP; O’NEILL, 2001, p. 273). Como vimos aqui, os autores apontaram, quase quatro décadas depois do trabalho de Galtung e Ruge, limitações nos 12 fatores. Também mostraram notícias que não se enquadravam em nenhum deles. Um dos principais motivos foi o fato de que muitas notícias não tinham relação com algum evento específico (que foi a base da pesquisa de Galtung e Ruge), tornando mais restrita a aplicação do conjunto de valores-notícia para aquelas já publicadas. Apesar de reconhecer e exaltar o legado de Galtung e Ruge, a análise dos pesquisadores britânicos abriu a discussão sobre a necessidade de se comprovar a eficácia da lista proposta pelos autores nórdicos, a fim de tornar a seleção das notícias um processo mais transparente, como afirmam Harcup e O’Neill: Mas essas limitações não sugerem que o estudo de Galtung e Ruge não tenha valor hoje. Em vez disso, as questões conceituais e metodológicas que identificamos sinalizam que a pesquisa empírica sobre a seleção de notícias inspira tanto perguntas quanto respostas. Essas são questões válidas e precisam ser abordadas – juntamente com as nossas descobertas e as de outros – em vez de acreditarmos somente na crença de que Galtung e Ruge conceberam um conjunto abrangente de valores noticiosos (HARCUP; O’NEILL, 2001, p. 269). Com base nesse estudo, em revisões de literatura e na prática profissional de ambos como jornalistas, Harcup e O’Neill propuseram, nesse artigo de 2001, um novo conjunto de 10 valoresnotícia – alguns deles baseados nos valores de Galtung e Ruge –, a que eles chamaram de “contemporâneos”. O objetivo dos autores foi 32 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social criar uma ferramenta capaz de auxiliar na análise, discussão e compreensão do processo jornalístico de seleção da notícia. Qualquer notícia, para ser selecionada, poderia ser identificada em pelo menos um desses 10 fatores. São eles: 1. ELITE: notícia sobre indivíduos, organizações, instituições ou corporações poderosos; 2. CELEBRIDADE: notícia sobre pessoas famosas; 3. ENTRETENIMENTO: notícia sobre sexo, showbusiness, interesse humano, animais, drama leve ou com a possibilidade de receber um tratamento humorístico, fotografias divertidas ou manchetes espirituosas; 4. SURPRESA: notícia que tem um elemento de surpresa e/ou contraste; 5. NOTÍCIA RUIM: notícia com viés particularmente negativo, como um conflito ou uma tragédia; 6. BOA NOTÍCIA: notícia com viés particularmente positivo, como resgastes e curas; 7. MAGNITUDE: notícia suficientemente significativa para um grande número de pessoas envolvidas ou com um potencial impacto; 8. RELEVÂNCIA: notícia sobre grupos ou nações percebidos como relevantes para o público; 9. SUÍTE (follow-up): notícia sobre um assunto já noticiado; 10. AGENDA DO VEÍCULO NOTICIOSO: notícia que se encaixa na própria agenda do veículo noticioso (HARCUP; O’NEILL, 2001, p. 279).. Nesta tábua de valores, os autores ingleses juntaram no item "Elite" as referências a "nações de elite e pessoas da elite" da tabela de Galtung e Ruge; deram novo nome a "negatividade", que batizaram como "notícia ruim" (bad news), enquanto acrescentaram o contraponto "boa notícia" (good news); o valornotícia "amplitude" virou "magnitude"; consonância foi Marina Medleg Simon; Thaïs de Mendonça Jorge | 33 desmembrado em "relevância" e "agenda do veículo"; e "continuidade" se transformou em "suíte" ou follow-up, correspondendo à notícia do dia seguinte. Eles também adicionaram novos tópicos: "celebridade", "entretenimento" e "surpresa". O novo, original e contemporâneo conjunto de valores-notícia de Harcup e O’Neill Quinze anos depois do pioneiro estudo, Harcup e O’Neill se propuseram a realizar uma nova pesquisa para atualizar os 10 valores-notícia propostos por eles em 2001. O objetivo era verificar como esses fatores interagem e observar se poderia haver alguma alteração na lista. Os resultados do trabalho foram apresentados em um novo artigo: “What is news? News values revisited (again)”, publicado em 2016 na revista Journalism Studies. Para testar a lista, os autores realizaram outra análise de conteúdo com os 10 fatores. Isso foi feito ao longo do mês de novembro de 2014, desta vez abrangendo um número maior de jornais. Foram selecionados os 10 principais do Reino Unido: The Sun, Daily Mail, Daily Telegraph, Daily Mirror, Daily Express, The Times, The Guardian, The Independent, Metro e London’s Evening Standard. A amostragem era composta unicamente pelas notícias que estampavam as capas desses jornais e a primeira página, excluindo textos de Esporte, Economia e de Opinião, o que totalizou um corpus de 711 notícias. Para essa nova análise, os autores levaram em consideração um elemento que não tinha sido considerado no estudo de 2001: o papel das mídias sociais no processo de seleção da notícia. Qualquer estudo contemporâneo sobre valores-notícia deve agora considerar também o impacto das mídias sociais na alteração dos tradicionais papéis dos jornalistas como atores ativos (produtores, selecionadores, gatekeepers), e do público como ator passivo (receptores, consumidores) (HARCUP; O’NEILL, 2016, p. 10). 34 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social Como resultado preliminar, eles identificaram que notícia ruim foi o fator que apareceu com mais frequência nos jornais, seguido de surpresa e entretenimento, como podemos ver na Tabela 1, organizada em ordem decrescente em termos de frequência. Tabela 1 – Resultado da análise de Harcup e O’Neill (2016) Valor-notícia Total de notícias Notícia ruim 442 Surpresa 345 Entretenimento 332 Suíte 221 Elite 216 Relevância 209 Magnitude 165 Celebridade 145 Notícia boa 137 Agenda do veículo 51 Fonte: (HARCUP; O’NEILL, 2016) Porém, apesar dos resultados iniciais encontrados, quando submetidos a testes empíricos, os autores constataram que alguns dos valores-notícia foram definidos de forma ampla demais ou restritiva demais e que algumas categorias precisavam ser revistas, ao passo que outras precisavam ser incluídas na lista. O fator entretenimento, por exemplo, foi considerado abrangente demais, pois compreendia tanto notícias positivas quanto negativas dentro da temática interesse humano. Sendo assim, os autores decidiram incluir um novo fator, "drama", para identificar mais especificamente notícias de interesse humano, porém com aspectos mais negativos, como notícias sobre acidentes, fugas, buscas, resgates e casos judiciais, que não se encaixavam na categoria notícia ruim, esta última identificada com um viés particularmente negativo, incluindo principalmente mortes e lesões de seres humanos. Também o fator "notícia ruim" estava amplo em demasia, abarcando tragédias e conflitos de forma geral. Então eles criaram um novo valor-notícia - "conflito"-, para incluir notícias que Marina Medleg Simon; Thaïs de Mendonça Jorge | 35 versavam principalmente sobre controvérsias, argumentos, divisões, greves, lutas, insurreições e guerras. O valor-notícia "magnitude" também passou por uma revisão e a definição passou a incluir, além de fatos significativos para grande número de pessoas ou com potencial impacto sobre elas, notícias envolvendo um grau de comportamento extremo ou ocorrência extrema - crimes hediondos e grandes tragédias. Após se deparar com uma quantidade significativa de conteúdos produzidos exclusivamente pelos jornais analisados, que traziam frequentemente manchetes como “Uma pesquisa do Times indica...” ou “Segue-se uma investigação do Independent...”, Harcup e O’Neill incluíram o valor-notícia "exclusividade" para abranger as notícias produzidas ou disponibilizadas primeiro pelo veículo noticioso, como resultado de entrevistas, cartas, investigações, pesquisas, enquetes, etc. Os autores consideraram ainda pela análise que elementos visuais têm peso suficiente no processo de seleção da notícia, mais ainda quando se tem em mente divulgar determinado conteúdo nas mídias sociais. Desta maneira, incluíram o valornotícia "audiovisual" na lista, para incluir notícias que possivelmente foram selecionadas devido à existência de fotografias, vídeos, áudios e/ou que poderiam ser ilustradas com infografia. Como afirmamos, nessa nova análise, os autores levaram em consideração a atuação da audiência nas mídias sociais, no processo de seleção da notícia. Com base em sua análise e também em trabalhos de outros autores (OLMSTEAD et al., 2011; HERMIDA et al., 2012; PHILLIPS, 2012; TIEN VU, 2014; WELBERS et al., 2015 apud HARCUP; O’NEILL, 2016), Harcup e O’Neill (2016, p. 12-13) cunharam o valor-notícia chamado “compartilhável” (shareability), que “(...) parece ser um critério cada vez mais importante na seleção da notícia”. O valor-notícia "compartilhável" se refere às notícias que foram selecionadas pelos jornalistas em função de seu potencial de compartilhamento pelos usuários nas mídias sociais, principalmente no Facebook e no Twitter. 36 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social Contemporâneo e inovador, esse fator é também o mais difícil de definir e identificar nas notícias, como os próprios autores reconhecem: Precisamente que qualidades tem uma história que possa ser mais compartilhada do que outras é difícil de definir, mas Janine Gibson (uma ex-editora do site do jornal The Guardian e que, em 2015, tornou-se editora-chefe do BuzzFeed UK) observou que as histórias mais compartilhadas tendem a ser “coisas que te fazem rir e coisas que te deixam com raiva” (HARCUP; O’NEILL, 2016, p. 11). Sendo assim, Harcup e O’Neill (2016) propuseram um novo conjunto de valores-notícia, atualizando a própria lista de 15 anos antes que, por sua, vez revisava o rol de Galtung e Ruge (1965). Os autores britânicos concluíram então que fatos com potencial para se tornar notícia devem satisfazer a um ou preferencialmente vários de 15 fatores que eles especificaram e que reproduzimos a seguir. 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. Exclusividade: notícia produzida ou disponibilizada primeiro pelo veículo noticioso como resultado de entrevistas, cartas, investigações, pesquisas, enquetes, etc.; Notícia ruim: notícia com viés particularmente negativo, como mortes, lesões, derrotas e perdas (de emprego, por exemplo); Conflito: relativa a controvérsias, argumentos, divisões, greves, lutas, insurreições e guerras; Surpresa: que tem um elemento de surpresa, contraste e/ou se refere a um fato incomum; Audiovisual: traz em destaque fotografias, vídeos, áudios e/ou pode ser ilustrada com infografia; Compartilhável: susceptível de gerar compartilhamentos e comentários via Facebook, Twitter e outras formas de mídia social; Entretenimento: soft news sobre sexo, showbusiness, esporte, interesse humano mais leve, animais ou que Marina Medleg Simon; Thaïs de Mendonça Jorge | 37 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. oferece oportunidade para um tratamento humorístico, manchetes espirituosas ou listas; Drama: notícia sobre um drama, como fugas, acidentes, buscas, cercos, resgates, batalhas ou casos judiciais; Suíte (follow-up): notícia sobre um assunto já noticiado. Elite: sobre indivíduos, organizações, instituições ou corporações poderosos; Relevância: acontecimentos envolvendo grupos ou nações percebidos como influentes, cultural ou historicamente familiares ao público; Magnitude: notícia significativa para grande número de pessoas envolvidas ou com potencial impacto para a população, ou aquela que envolve grau de comportamento extremo ou ocorrência extrema; Celebridade: aborda pessoas que já são famosas. Boa notícia: texto com viés particularmente positivo, como recuperações, superações, avanços, curas, ganhos e celebrações; Agenda do veículo noticioso: notícia que se encaixa na própria agenda do veículo noticioso, seja ideológica, comercial ou como parte de campanha específica (HARCUP; O’NEILL, 2016, p. 13). Conclusão Como vimos aqui, Harcup e O’Neill (2016) oferecem um novo, original e contemporâneo conjunto de 15 valores-notícia, levando em consideração fatores que estariam influenciando atualmente a seleção da notícia, como elementos audiovisuais e as mídias sociais, a exemplo de Facebook e Twitter. O fato é que podemos ainda observar o mapa cultural traçado pelos valores-notícia, por exemplo, na exploração do pitoresco, do singular ou do exótico, que se encontra embutido no conceito clássico de notícia. “Homem mordendo cachorro” será sempre 38 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social notícia, porque faz parte do nosso código ideológico saber que homens não mordem cachorros. Para os jornalistas, o “singular acesso de hidrofobia (...), ofereceria a oportunidade de uma manchete uivante” (CARTA, in MESERANI, COSTA e DE GIORGI, 1995, p. 33) e seria notícia em qualquer lugar do mundo. Assim, a notícia – que ao longo de sua trajetória manteve intacta a essência, o dever de informar – chega ao século XXI preservando valoresnotícia que atraem as pessoas. A sistematização deles atende ao propósito de análise. Se o próprio meio influi no que é comunicado, estamos já convivendo com um novo tipo de civilização, cujo poder afeta os produtos da comunicação e os produtores. Referências ALTHEIDE, D. Creating Reality. How TV News Distorts Events. Beverly Hills: Sage, 1976. CARTA, M. Estímulo para escrever. In: MESERANI, S.C.; COSTA, F.C.; DE GIORGI, F.V. Redação escolar; criatividade. São Paulo, Saraiva, 1995. ERICSON, R,; BARANEK, P.; CHAN, J. Visualizing deviance: a study of news organizations. Toronto: University of Toronto Press, 1987. GALTUNG, J.; RUGE, M. The structure of foreign news: the presentation of the Congo, Cuba and Cyprus crises in four Norwegian newspapers. Journal of International Peace Research 1, p. 64–91, 1965. GANS, H. Deciding what’s news. 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Capítulo 2 Gatekeeping: do desenvolvimento da teoria às aplicações na pesquisa Alberto Marques1 No campo das pesquisas de comunicação de massa (Mass Communicatin Research) a teoria do gatekeeping é frequentemente mencionada (MCQUAIL, WINDAHL, 1993) como uma das mais antigas a ter como objeto de pesquisa o jornalismo (ALSINA, 2009) e a comunicação. “Gatekeeping é o processo de seleção e transformação de vários pequenos pedaços de informação na quantidade limitada de mensagens que chegam às pessoas diariamente [...]” (SHOEMAKER, VOS, 2011, p. 11). O fenômeno observado pela teoria busca investigar não somente qual informação será́ escolhida, mas também qual será́ o conteúdo (fontes, angulação e hierarquização) e a natureza (gênero e formato) das mensagens. [...] A entrada nos canais de notícias é controlada pelos gatekeepers, que determinam quais eventos têm acesso e passam por muitos gates pelo caminho. As forças na frente e por trás dos gates constrangem ou facilitam o movimento das informações sobre um evento por diversas seções nos canais. Há muitas forças que influenciam nas notícias, como foi mostrado no modelo 1 Doutor em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB). Pesquisador e professor do Programa de Pós-graduação em Inovação em Comunicação e Economia Criativa. E-mail: alberto.marques@gmail.com 42 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social hierárquico desenvolvido por Shoemaker e Reese (1996). (SHOEMAKER et al, 2010, p. 60) As investigações sobre os processos de seleção das informações que circulariam na imprensa possuíam um determinado enfoque teórico até Kurt Lewin (1947) fornecer aos estudos da comunicação a metáfora do gatekeeper no manuscrito Frontiers in group dynamics II. Channels of group life; social planning and action reseach. Embora sua pesquisa não tenha sido originalmente aplicada ao estudo da comunicação, Lewin mostra como “itens” são selecionados ou rejeitados através de “canais” e afirma que essa fórmula poderia ser aplicada ao fluxo de notícias (SHOEMAKER et al, 2001). Na comunicação, David Manning White (1950) foi um investigador pioneiro a aplicar a ideia de Kurt. “A metáfora do gatekeeper ofereceu aos primeiros pesquisadores de comunicação um modelo para avaliar a maneira como ocorre a seleção e a razão pela qual alguns itens são escolhidos e outros são rejeitados” (SHOEMAKER, VOS, 2011, p. 23). A teoria também forneceu possibilidade de investigações sobre a forma como o conteúdo é modelado, estruturado, posicionado e cronometrado. White (1950) fez seu estudo num jornal de uma pequena cidade (nonmetropolitan). Ele convenceu um editor, a quem chamou de Mr. Gates, a armazenar todos os textos que recebia das agências Associated Press, United Press e International News Service durante uma semana, em fevereiro de 1949. Em sequência, Mr. Gates também forneceu suas razões para escolher ou rejeitar cada um dos itens das agências. Esses motivos complementaram a análise do pesquisador, que pôde verificar o material utilizado e rejeitado. É apenas quando estudamos as razões dadas por Mr. Gates para ter rejeitado quase 90% da conteúdo recebido (em sua busca pelos 10% para os quais ele tinha espaço) que começamos a entender o quanto as atitudes e a comunicação das notícias são subjetivas e dependentes dos julgamentos de valor baseados no próprio Alberto Marques | 43 conjunto de experiências do gatekeeper [...] (WHITE, 1950, p. 386, tradução nossa)2. A figura 1 abaixo é uma proposta de visualização (MCQUAIL, WINDAHL, 1993, p. 166) da teoria do gatekeeper. No modelo conceitual de White, as fontes de notícias (N) enviam itens noticiáveis para os gatekeepers, os quais podem rejeitar algumas informações – N1 e N4 são exemplos de rejeição – e outras são transformados em notícias a serem enviadas ao público (M). Vemos nesse caso que as diversas fontes, como ministérios, universidades, autarquias e empresas privadas, por exemplo, mandam informações para os jornalistas, que podem aceitar ou não publicar. As que passam no processo de seleção recebem tratamento jornalístico e são enviadas aos receptores. GRÁFICO 1: Modelo de White sobre gatekeeper (MCQUAIL, WINDAHL, 1993, p. 166) O modelo de White foi ampliado e criticado em trabalhos posteriores (MCQUAIL, WINDAHL, 2011). Ele serviu de base para diversas pesquisas futuras (GIBER, 1956; WESTLEY, MACLEAN, 1957; MCNELLY, 1959; BASS, 1969; SHOEMAKER, 1991) que indicaram novos caminhos e descobertas sobre por que determinados acontecimentos viram notícia e outros são ignorados. Mostraram também que a escolha tem sido apenas uma parte do processo de gatekeeping. 2 It is only when we study reasons given Mr. Gates for rejecting almost nine-tenths of the wire copy (in his search for the one-tenth for which he has space) that we begin to understand how highly subjective how reliant upon value-judgments based on the “gate keeper's” own set of experiences, attitudes and the communication of “news” really is [...] 44 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social Gieber (1956) foi um dos primeiros pesquisadores que apresentaram conclusões antagônicas às de White. O estudioso pesquisou como era feita a seleção de notícias de agências por 16 editores de jornais impressos. Diferentemente de White (1950), que identificou que os valores pessoais de Mr. Gates influenciavam nas escolhas. Gieber (1956, p. 432, tradução nossa)3 diz que “o editor do periódico descrito nesse estudo está preso em uma camisa de força de detalhes mecânicos”. O pesquisador destaca ainda que “seus valores de notícia são elementares e amplamente estruturados”. Entre as características das escolhas relatada no artigo, a mais citada foi a proximidade com a comunidade. Contudo, outros elementos se mostraram fundamentais: disponibilidade de verba, número de informações disponíveis, pressão do tempo e adequabilidade do conteúdo à política editorial da empresa também influenciaram na hora da escolha da informação. Gieber (1956) afirma que o processo de seleção é mecânico e que os editores são passivos. Ele conclui que a organização e suas rotinas são mais importantes que as características individuais do selecionador. Nesse modelo, o que importam são as restrições impostas pela indústria ao gatekeeper. O modelo de Westley e Maclean (1957), bem como o de Gieber (1956), compreendem a organização midiática como algo homogêneo, com regras rígidas. Nesses estudos, os trabalhadores da mídia atuam como gatekeepers de forma idêntica. Diferentemente do primeiro estudo de White (1950), que estava direcionado a decisões de uma pessoa e suas escolhas pessoais, aqui as organizações e suas regras possuem um peso grande na seleção dos trabalhadores midiáticos. Ao combinar a ideia de gatekeeper como uma atividade organizacional com o modelo psicológico de comunicação interpessoal de Newcomb (1953), Westley e Maclean (1957) inovam. Trata-se do padrão mais popular de comunicação de massa 3 “the telegraph editor described in this study is caught in a strait jacket of mechanical details”. [...] “his news values are elementary and broadly structured”. Alberto Marques | 45 (SHOEMAKER, VOS, 2011, p. 30), que, no seu modelo mais simples, “[...] envolve a pessoa A que envia a informação sobre um objeto X para uma pessoa B”. Os autores perceberam que o modelo ABX poderia ser modificado para estudar a comunicação de massa e incluiram um C e um F. Com isso, propuseram que a mensagem X pode sair de emissores A ou B, passando ou não pelo canal de mídia (C)4. O retorno (f) pode ser enviado da audiência para os emissores, assim como da mídia para os emissores. O modelo aponta também que algumas mensagens podem ser rejeitas ou simplesmente modificadas pelos meios de comunicação. “Claramente, em uma situação de comunicação de massa, um grande número de Cs recebe de um grande número de As e transmite para um número bem maior de Bs, que simultaneamente recebe de outros Cs” (WESTLEY, MACLEAN, 1957, p. 35, tradução nossa)5. GRÁFICO 2: Modelo organizacional proposto por Westley e Maclean para a comunicação de massa (1957, p. 35). A pesquisa de McNelly (1959), em seguida, voltou a aproveitar a ideia de indivíduos atuando como gatekeepers. O pesquisador 4 Nesse caso a organização é o gatekeerper. “Clearly, in the mass communication situation, a large number of Cs receive from a very large number of As and transmit to a vastly larger number of Bs, who simultaneously receive from other Cs” 5 46 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social estava preocupado com o fluxo de produção de notícias internacionais e acabou desenvolvendo uma representação esquemática (FIGURA 3) que mostra o passo-a-passo do fluxo no qual as informações passam por uma série de porteiros, comunicadores e intermediários. Um evento (E) chama a atenção de um correspondente estrangeiro (C1), que escreve uma história sobre ele (S). Ele envia a história a uma agência regional, na qual um editor ou um repórter do escritório (rewriteman) (C2) pode editar a história (S') para enviá-la ao escritório central da agência de notícias. Lá um editor de texto (deskman) (C3) pode combiná-la com uma história relacionada (SII) de outro país. A história resultante (S’’) vai para um escritório estadual ou nacional onde outro deskman (C4) pode alterar a versão (S’’’) e transmiti-la para o editor de um jornal ou para um editor de notícias de rádio ou televisão (C5), que também podem alterar o conteúdo (SIII) e passá-lo para o leitor ou ouvinte (R). GRÁFICO 3: O modelo de fluxo de informações internacionais indica que a informação deve passar por múltiplos gatekeerps (MCNELLY, 1959, p. 25). Alberto Marques | 47 Explicando a figura acima, Shoemaker e Vos (2014, p. 32) relatam que se trata de “uma história (H) [que] é escrita sobre um evento (E). A história passa de um gatekeeper (C) para outro, cada um dos quais pode cortar, reorganizar ou fundir a história com uma outra antes que ela chegue ao receptor (R) final”. Por fim, no modelo proposto, as setas representam o retorno (feedback), que pode chegar em diferentes gatekeepers. Vale notar que, nesse estudo, há diversos selecionadores, como correspondentes, editores de agências de notícias e dos meios de comunicação e revisores. Eles são peças centrais no processo de seleção e construção das versões noticiosas que chegarão ao público. A análise de McNelly (1959) já apresentava a complexidade e o caráter circular na produção noticiosa. Pela primeira vez um estudo vai detalhar com mais clareza o percurso que uma informação percorre para que seja publicada no jornal, passando da fonte de notícias até chegar à audiência. A novidade na proposta está justamente em mostrar os múltiplos portões que a informação cruza para alcançar o p, não focando apenas no editor, como Gieber (1956) fez. McNelly (1959) deixa claro também que, apesar do peso do editor no processo de seleção, outros profissionais também são responsáveis pelo procedimento de triagem e pelo formato em que os conteúdos chegarão ao consumidor final. Seguindo a evolução dos estudos sobre gatekeeper, interessanos também o trabalho proposto por Bass (1969), que observou os indivíduos dentro da organização midiática. Para o autor, “o processo de fluxo de notícias deve ser dividido por suas funções em segmentos de coleta e processamento de notícias. A atenção das pesquisas deve cair sobre o coletor de notícias, pois é ele que toma as decisões importantes. ” (BASS, 1969, p. 62, tradução nossa)6. “the news flow process should be divided by functions into news gathering and news processing segments. Research attention should be focused on the news gatherer, for it is he who makes the significant decisions” 6 48 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social GRÁFICO 4: Coletores e processadores de noíticias são os dois indivíduos mais importantes no processo de gatekeeping (BASS, 1969, p. 62). O modelo de Bass (1969) apresenta o fluxo de notícias de dupla ação em o que interessa é o indivíduo inserido no contexto da organização. As informações chegam cruas (raw news) por vários canais aos coletores de notícias (News Gatherers) que as transformam em notícias (news copy). Como exemplo de coletores, o autor cita redatores, repórteres, chefe de redação e editor de cidade. Este seria o primeiro tipo de gatekeeper. O segundo tipo de gatekeeper (processadores de notícias – news processors) modifica e prepara o material para ser distribuído ao público. São citados como exemplos editores, tradutores e revisores. Essa segunda espécie é quem dá a palavra final no processo de produção. Bass (1969) aplica o olhar de McNelly (1959) no seu estudo, ampliando a noção de White (1950), ou seja, buscou compreender o papel dos selecionadores individuais, chegando até a ideia dos múltiplos selecionadores. O que diferencia as duas visões é a classificação de Bass, que propõe os dois tipos distintos de selecionadores. A partir desses trabalhos, outros pesquisadores (CHIBNALL, 1977; GANDY, 1982) progrediram e acrescentaram alguns elementos à teoria. Contudo, interessa-nos o trabalho ampliado por Pamela Shoemaker (1991) e Shoemaker e Reese (1996), que propõem uma visão abrangente do gatekeeping, mostrando que, por trás do processo, existe também um sistema social, um controle ideológico e cultural, o que nos aproxima mais do debate teóricometodológico proposto no primeiro capítulo de Bourdieu. Dentro dessa perspectiva, Mcquail e Windahl (1993, p. 126) explicam que: Alberto Marques | 49 Ela chama atenção para os fatores sociais e institucionais no ofício (incluindo fontes, mercados anunciantes, grupos de interesse e governo). Para ela, gatekeeping frequentemente envolve mais de uma organização comunicacional [...] e múltiplos atos de gatekeeping que acontecem em uma organização de mídia. (MCQUAIL, WINDAHL, 1993, p. 126, tradução nossa)7. Segundo Shoemaker (1991), o fenômeno de seleção das informações pode ser verificado em outros níveis que vão além do individual, como, por exemplo, nas rotinas organizacionais. A pesquisadora diz que se um evento requer muita despesa e/ou tecnologia para produzir a história, isso pode surtir um efeito contrário na escolha da notícia. Se o acontecimento vira notícia, depende da intensidade relativa destas duas forças, juntamente com outras forças que ainda serão identificadas. (SHOEMAKER, 2001, p.234, tradução nossa) Tais forças vão influenciar a escolha das notícias. Aquela autora, em parceria com Voz (2011), propõe cinco níveis para o estudo do gatekeeping em contextos contemporâneos, a saber: 1) o dos profissionais da comunicação individuais (suas atitudes políticas, por exemplo); 2) o das rotinas ou práticas do trabalho em comunicação (a pirâmide invertida, por exemplo); 3) o nível organizacional (a análise de variáveis como parâmetros de participação de propriedade na mídia, por exemplo); 4) o nível de análise sócio-institucional, incluindo as influências do governo e grupos de interesse; e, 5) o nível do sistema social, com a análise de variáveis (ideologia e cultura, por exemplo) (SHOEMAKER; REESE, 1996). She also draws attention to the social and institutional factors at work (including sources, advertisers’ markets, interest groups and government). In her account, gatekeeping often involves more than one communication organization [...] and multiple acts of gatekeeping take place within a media organization. 7 50 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social Nível de análise individual O primeiro envolve o background, bem como os antecedentes pessoais, do profissional. Trata-se do nível individual. A individualidade do agente, que trabalha com a racionalidade no campo jornalístico, é apresentada como algo importante na sua atuação. Antes do lado profissional, os processos comportamentais do indivíduo são observados. As questões pessoais também são fundamentais na escolha. Para explicar o processo de tomada de decisões, têm-se teorias da Psicologia utilizadas por Shoemaker e Vos (2011), quais sejam: 1) Associacionismo; 2) Gestaltismo; e, 3) Processo de informação. Os pesquisadores procuram elementos que expliquem os modos de raciocínio de um gatekeeper. A teoria do Associacionismo aponta que é através das relações lineares e diretas que o indivíduo faz racionalmente suas escolhas. As ideias evocam outras ideias ou se conectam a diferentes imagens, concebidas ou lembradas. Esta encontra-se associada essencialmente à Psicologia Behaviorista, que defende o estímuloresposta. A partir daí, é possível inferir que a memória, a atualização e a capacidade de correlacionar fatos são aspectos fundamentais no processo de atuação. É possível afirmar que quando existe uma reforço em uma associação positiva, com base nas relações estímulo-resposta, ela ganha mais força. Efeito igual acontecerá aos negativos; ou seja, quanto maior são as associações de eventos pretéritos, mais força terá e é provável tal informação se torne notícia; cruze o portão. Os gatekeepers têm a disposição de categorizar os acontecimentos e, quando da existência de muitos eventos, eles tendem a fazer uso do processo em questão para a execução de seu trabalho. Neste sentido, tem-se como ponto fraco da teoria em questão – um tanto mecânica (SHOEMAKER; VOS, 2011). O Gestaltismo é a segunda teoria. Ela trata do método de raciocínio de modo holístico, uma vez que defende que os Alberto Marques | 51 pensamentos não são somente a soma de juízos individuais. Aqui, os artifícios psicológicos podem ser mais bem compreendidos quando analisados como diversos, elaborados e estruturados. Logo, o raciocínio é visto de modo amplo. Tem-se a identificação de dois tipos de estruturas, a saber: 1) o raciocínio produtivo – que explora as informações antigas, aplicando-as; e, 2) o raciocínio produtivo – que insere a imaginação e o uso de novas informações, configurando-se em algo contínuo, não focado em cadeias e associações de ideias. A terceira teoria – o processo de informação – gesta a resolução de dificuldades a partir de uma cadeia de caminhos lógicos, com rasgos lineares do Associacionismo, mas sem a suposição de que as associações ou as relações entre os estímulos reforçadas de modo positivo ou negativo. Tal processamento de informação, sem dúvida, reduzirá as tarefas do juízo. Nível de análise das rotinas O nível das práticas padronizadas e das rotinas de produção está acima do nível pessoal do jornalista. Neste sentido, Shoemaker e Vos (2011) observam que a informação que passa pelo gatekeeper é transformada em diferentes pontos no processo de produção. Nas redações, Ericson, Baranek e Chan (1987, p. 125)8 observaram que o repórter deve aprender a se organizar de tal modo que suas atividades se tornem hábitos: “A habitualização diminui as escolhas e torna a ação rotineira possível. A própria instituição jornalística, evidentemente, é estruturada para produzir habitualização, canalizando a curiosidade do repórter para as trilhas da ocupação." Roshco (1975, p. 105), por sua vez, apontou que o consenso no processo de seleção de notícias (news judgement) minimiza a “Habitualization narrows choices and makes routine action possible. Of course the news organization itself is structured to produce habitualization, canalizing the reporter’s curiosity into the grooves of the occupation”. 8 52 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social necessidade de discussão e acelera o papel-desempenho rotineiro: “As rotinas diárias, pressionadas pelo tempo, de coleta e produção de notícias podem ser conduzidas somente porque a maioria dos julgamentos de notícias, se revisados, seria concordado por pares e superiores”9. Nos estudos de Shoemaker e Vos (2011), dentro da construção analítica dos modelos de rotina, considera-se, primeiramente, o campo da audiência e sua influência, pois, embora se tenha apenas uma ideia abstrata da mídia sobre o que o público aprecia ou despreza, os receptores possuem seu papel no processo de seleção de notícias. Na contemporaneidade, com a internet e as métricas de acesso, tal cenário começa a se ampliar. Considerar o público como uma grande massa foi se tornando retrógrado na medida em que evoluíram os meios. Assim, o surgimento de estudos que procuraram dividir a audiência em contextos e grupos específicos contribuiu significativamente para o avanço das ideias de seleção. “A era organizacional demandou dois princípios: primeiro, que a principal preocupação de uma organização era a sua sobrevivência; e segundo, que as organizações existem para agradar seus constituintes” (ALLEN, 2005, p. 379, tradução nossa).10 Com as novas especificidades, o selecionador das informações tem como aliado, junto aos seus métodos, as reflexões acerca dos desejos do público, que sabia, depois de pesquisas de mercado, por exemplo, alguns dos assuntos mais aptos a passarem pelo portão, conforme os interesses midiáticos de atração de receptores. O uso das fontes jornalísticas também constitui grande parte do conteúdo que passa pelos portões – o que serviu para a “The essence of news judgement is that it is consensual. Consensus minimizes the need for discussion and speeds routine role-performance. The daily, time-pressured routines of news-gathering and production can be conducted only because most news judgements, if reviewed, would be concurred in by peers and superiors”. 9 “The organizational era had commanded two principles: first, that an organization’s first concern is survival; and second, that organizations exist at the pleasure of their constituents.” 10 Alberto Marques | 53 descoberta da intensidade de aparições de fontes oficiais, moldando os pensamentos de modo contundente. A dependência rotineira de fontes oficiais por parte da mídia pode modelar o noticiário de diversas formas – ela privilegia aqueles que estão no poder (Bennett, 1996), reduz a diversidade de pontos de vista (Hallin, 1989; Liebler, 1993; Schiffer, 2006) e reforça estereótipos de gênero (Armstrong e Nelson, 2005). Por exemplo, Zoch e Turk (1998) mostraram que as fontes de notícias ainda são predominantemente masculinas, construindo, assim, um mundo no qual os homens têm mais autoridade do que as mulheres. Dito de um modo simples, o conteúdo é desenvolvido de maneira previsível porque os gatekeepers compartilham rotinas de coleta e processamento de informações. (SHOEMAKER e VOS, 2011, p. 82). Outras técnicas estão atreladas ao uso de fontes/personagens, como, por exemplo, a construção e angulação das temáticas na notícia e ao formato e linguagem noticiosas em termos de precisão e factualidade. Historicamente, as noções de objetividade, equilíbrio e equidade incorporam a suposição de que os jornalistas são agentes neutros e imparciais, onde suas decisões se dão de modo técnico e uniforme. Tuchman (1978) denomina tal ação de ritual estratégico, que inclui a negativa da influência do viés pessoal, separando o fato da opinião, bem como a inserção de diferentes visões. “As fontes são pessoas, são grupos, são instituições sociais ou são vestígios – falas, documentos, dados – por aqueles preparados, construídos, deixados” (PINTO, 2000, p. 278). Pinto (2000) observa que as fontes direcionam suas falas para posições e relações sociais, para interesses e pontos de vista, para quadros espaçotemporalmente situados. As fontes utilizadas pelos jornalistas, espontâneas ou não, estarão sempre interessadas, desenvolvendo sua atividade a partir de estratégias e com tácticas bem delimitadas. As noções supramencionadas são construídas com o intuito de melhorar a qualidade dos processos das organizações. As rotinas estratégicas visam proteger os jornalistas de acusações e buscam cumprir os papéis esperados pelos comunicadores. Sobre a questão, 54 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social Tuchman (1978) quantificou quatro estratégias, a saber: 1) oferecer ao público dois lados dos eventos de opiniões conflitantes; 2) inserir fatos tidos como verdadeiros por todos; 3) usar aspas de um entrevistado para dar uma posição do jornalista, sem assumir a responsabilidade pela citação; e, 4) organizar hierarquicamente as informações mais importantes do texto, no formato da pirâmide invertida. Ainda foi possível encontrar e destacar os estudos de nível rotineiro que “especificam nove características de um evento de notícias que determinam as chances deste atravessar vários portões midiáticos” (SHOEMAKER; VOS, 2011, p. 85). Galtung e Ruge (1965), ao debater o gatekeeping, apontam que vários valoresnotícia se sobrepõem à individualidade dos jornalistas no processo de seleção de informações que cruzarão o portão. Tal análise pressupõe que o evento deve dialogar com o cronograma do veículo, possuir grande magnitude ou intensidade, contar com clareza, relevância cultural, ser consoante com as expectativas ou inesperados, ter continuidade com eventos passados, além de encaixar-se na composição do dia a dia do veículo, observando o fato de que “os valores do gatekeeper e de sua sociedade influenciam a seleção, muito mais do que os outros oito fatores” (SHOEMAKER; VOS, 2011, p. 85). Os encaminhamentos transmitidos dos jornalistas mais experientes para os mais novos, bem como os manuais de estilo, deixam o processo de escolha mais padronizado e tradicional. Em geral, os jornalistas zombavam da impraticabilidade dos manuais referentes à coleta de informações ou ao estilo no qual elas devem ser apresentadas. O aprendizado do ofício não envolve a consulta de tais textos de autoridade. Ele vem da consulta de notícias, do escrutínio dos editores, conversas com colegas mais experientes, e de fazer o trabalho (ERICSON; BARANEK; CHAN, 1987, p. 132).11 11 “In general, journalists scoffed at the impracticality of rule books pertaining to the search for information or the style in which it is presented. Learning the craft does not involve consultation of Alberto Marques | 55 A exploração das rotinas, de modo comercial, evidencia a relevância desse nível para melhorias em diversos setores dos veículos, barateando alguns custos e diminuindo erros. Mas, ainda existem forças atuando no processo de gatekeeping, que deixam o sistema mais complexo, forçando o portão, de forma positiva e negativa. Nível de análise organizacional O nível de análise organizacional explora o sistema social delimitado dos locais que servem como objeto do presente estudo. Cada um desses locais, em suas rotinas, possuem características próprias. Existem nesses espaços códigos de escolha e pré-seleção. Há nesses espaços um tipo de orientação coletiva, de grupo. Essas orientações são decisivas quando se observa o que aquele meio busca lograr. Aquelas que visam o lucro apontaram a existência de uma redução de itens sobre questões públicas e governamentais, e um aumento de itens sobre as questões concernentes à vida privada, à autoajuda, aos esportes e ao entretenimento. Esse processos pode não ser identificados em pesquisas, alerta Shoemaker e Vos (2011). Principalmente por não estarem documentados. Os autores alertam que eles são de relevância fundamental para o compreensão dos níveis de análises. Nível de análise das instituições sociais Para identificar as influencias que gatekeepers recebem não basta uma completa análise dos indivíduos e de suas organizações. such authoritative texts. It comes from consulting news texts, being scrutinized by editors, talking to more experienced colleagues, and doing the work”. 56 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social Assim, é preciso observar a questão de modo institucional, que é orientada via mercado, governo, audiência e outros aspectos. A capacidade da audiência de alterar as decisões do gatekeeping possui influências contestadas e diversificadas. Na contemporaneidade, com as métricas oferecidas pelos acessos via web, há uma maior influencia da audiência. É preciso destacar os efeitos gerados pelos anunciantes é citado por Shoemaker e Vos (2011) como determinantes no ritmo que a imprensa estabelece no processo de publicação de conteúdos. Demissão de profissionais e retiradas de conteúdos são citados como possíveis ações deflagradas pelos anunciantes quando seus interesses não são seguidos. Dessa forma, a ideia de público acaba misturando-se com os interesses dos anunciantes. Isso pode confundir alguns gatekeepers, que podem ignorar as aspirações da audiência em detrimento do interesse dos anunciantes. Em geral, a visão transmitida pelos jornalistas não vem de suas próprias experiências, já que as versões são extraídas das fontes. Um outro grupo que tende a influenciar o processo de escolha são os relações públicas. Esses profissionais defende os interesses dos seus assessorados. Sobre os tipos de fonte, que envolvem os diversos pontos elencados nesse tópico, Sigal (1973) assim classifica tais canais de informação: 1) canais de rotina; 2) canais informais; e, 3) canais empreendedores. O eventos que não são espontâneos geralmente são produzidos pelos canais de rotina. São ocorrências criadas para chamar atenção midiática. Setores específicos para tratar com a impressa em empresas públicas ou privadas são criadas. Geralmente esse tipo de serviço, ou setor, são criados ou contratados por pessoas físicas e públicas. É comum assessores de comunicação, políticos e pessoas que acupam espaços de poder, manter relações com jornalistas e acabam por abastecê-los de dados de bastidor. São a partir dessas relações Alberto Marques | 57 que informações de bastidores são circuladas de forma extraoficial e, em geral, atende ao interesse de quem a repassa. Tal postura da fonte é denominada por Molotch e Lester (1974) de promotores de notícias (news promoters) – classificação que visa demonstrar a intencionalidade de transformar fatos em notícias, fazendo uso de processos jornalísticos, a fim de facilitar que os acontecimentos atravessem os portões midiáticos. Os canais empreendedores se referem a eventos espontâneos e estão relacionados àquilo que nasce da conversa do jornalista com outrem. Um elemento destacado por aqueles autores é a reflexão neste processo. Aqui, a atitude deixa de ser da fonte e parte do profissional da informação. O jornalista necessita se portar criticamente perante a sua fonte, a fim de alcançar a informação, extraindo-a a partir do diálogo estabelecido. Nível de análise do sistema social Este ponto vai defender que é impossível compreender a publicação de conteúdos da mídia sem antes compreender diversos elementos da estrutura social que ela está inserida. São exemplos disso o sistema politico partidário e as características do Estado, o jogo de relações entre a sociedade civil e os interesses políticos e econômicos dominantes, entre outros. O gatekeepers agem, segundo este ponto, de acordo com os seus ambientes culturais, ofertando uma ampla perspectiva dentro de tal abordagem, mas restringindo o conhecimento de fora dos ambientes parecidos. Assim, são perceptíveis as alterações contextuais na passagem pelo portão, como preconizam Shoemaker e Vos (2011), quando colocam que as mudanças podem alterar variados setores produtivos das organizações. 58 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social Considerações finais Os estudos predominantes no início das pesquisas da Mass Communication Research abordavam o chamado selecionador (gatekeeper) (ALSINA, 2009) e foram os primeiros trabalhos de newsmaking (ZELIZER, 2004). É justamente por isso que a década de 50 é considera o marco inicial dos estudos sociológicos sobre o jornalismo nos Estados Unidos e na Inglaterra. Essas pesquisas buscavam detalhar o processo de produção da notícia, especificamente sobre as rotinas do trabalho dos jornalistas (ZELIZER, 2004). A consolidação dos estudos está amplamente relacionada à concepção e delineamento social e industrial do jornalismo dentro do que seria o processo de produção da notícia. O momento é conhecido como “metáfora industrial, pois “estaríamos então diante do que vem sendo conhecido como a produção da notícia (news making)” (ALSINA, 2009, p. 213). É importante enfatizar que os estudos do gatekeeper, em nossa compreensão, são percursores da consolidação de uma corrente mais ampla de pesquisa: o newsmaking. É possível propor e olhar para o newsmaking como uma teoria que abrigaria as investigações realizadas com auxílio do gatekeeping. Ambas estariam inclusas na corrente teórica chamada de sociologia dos emissores ou sociologia da produção de notícias (ROSCHO, 1975). Os exames desta perspectiva buscam identificar processos e práticas sociais relacionados à produção das mensagens informativas feitas pelos jornalistas no contexto dos meios noticiosos. O sociólogo de notícias tem a preocupação com a gênese da notícia e não com suas consequências. O resultado disso é que surgiram críticas mal direcionadas em fazer essa distinção. “Ao chamar atenção para eles, se estabelece uma fundação para a moldura conceitual com a qual o conteúdo de notícias pela imprensa Alberto Marques | 59 diária pode ser estudado como um fenômeno social” (ROSCHO, 1975, p. 6, tradução nossa)12. Por fim, gostaríamos de destacar também que nem todos os estudos sobre gatekeeper têm o jornalismo como objeto. Alguns trabalhos (CANTOR, 1980; HIRSCH, 1977) utilizam a teoria do gatekeeper para investigar a seleção de conteúdos para entretenimento, por exemplo. Trata-se de uma teoria pulsante que continua dando contribuições importantes ao campo de pesquisa e que, ao ser aplicada aos fenômenos contemporâneos, continua tento bastante vitalidade. Referências ALSINA, Miquel Rodrigo. A Construção da Notícia. Petrópolis: Editora Vozes, 2009. ALLEN, C. 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Isso é apontado por Gosciola (2003, p.90) como uma tendência inovadora já que, tradicionalmente, os meios de comunicação tornavam opacos seus procedimentos de produção e, quando evoluíam, almejavam a ocultação ou a transparência desse processo. A compreensão do 1 Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (Salvador/Brasil) e em Ciências da Comunicação pela Universidade da Beira Interior (Covilhã/Portugal), por meio do regime de co-tutela entre as duas instituições. Atualmente, é professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Piauí e integrante do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Economia Política e Diversidade - COMUM. E-mail: teixeira.juliana.rj@gmail.com. 2 Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal do Piauí. Especialista em Tendências e Perspectivas do Jornalismo e em Telejornalismo pela UFPI. Graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela UFPI. É membro do Grupo de Pesquisas em Comunicação, Economia Política e Diversidades - COMUM/UFPI. E-mail: denisefreitass@hotmail.com. 64 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social processo de produção do jornalismo, entretanto, não é uma preocupação nova no âmbito acadêmico. Afinal, as teorias construtivistas, as quais concebem o papel do jornalista dentro de um processo de produção da notícia (newsmaking), emergiram na década de 1970, construindo um paradigma diferenciado para a investigação acadêmica sobre o jornalismo. A partir de então, o jornalista passou a ser considerado um profissional construtor da realidade com a institucionalização da sua própria função e de determinados mecanismos de produção (ALSINA, 2009; TRAQUINA, 2008; TUCHMANN, 1978; SCHUDSON, 1978; ROSHCO, 1975). Esta linha de pesquisa retoma a tradição fundada por Robert Ezra Park nos anos 1920, e hoje, segundo Peralta (2005, pp.22-23) se constitui enquanto uma das vertentes de investigação científica mais adequadas para abordar a realidade prática e teórica das organizações jornalísticas. Partir dessa perspectiva, entretanto, não torna o jornalismo uma produção ficcional. Bird e Dardenne (1993, p. 264) ressaltam que classificar as notícias enquanto narrativas, produto de uma construção cultural, não retira delas o seu valor de correspondentes da realidade exterior, afetando ou sendo afetadas pela sociedade. Embora não seja ficção, em acordo com as teorias construtivistas, o jornalismo também não é um “reflexo da realidade” por três principais razões: 1) é impossível estabelecer uma distinção radical entre a realidade e as organizações jornalísticas porque as notícias ajudam a construir a própria realidade; 2) a própria linguagem não pode funcionar como transmissora direta da realidade, porque a linguagem sem interpretação é impossível; e 3) a organização jornalística estrutura inevitavelmente a sua representação dos acontecimentos (TRAQUINA, 2005). Sodré (2009, p.25, pp.70-71) ressalta que, hoje, já se tem uma consciência mais ampla de que a notícia não apenas representa ou transmite aspectos da realidade, mas também é capaz de constituir uma realidade específica e de produzir efeitos de real segundo os parâmetros jornalísticos de tratamento do fato, tais como a Juliana Fernandes Teixeira; Denise Freitas de Deus Soares | 65 apuração, as entrevistas, a redação e a edição. Em consonância com Alsina (2009, p.10), existe atualmente uma compreensão de que, como todo discurso social, o discurso jornalístico está inserido em um sistema produtivo, dotado de características próprias, as quais devem ser consideradas. É, portanto, dos processos produtivos, paralelamente à cultura profissional dos jornalistas e à organização do trabalho, que emergem os conteúdos jornalísticos. Toda essa estrutura faz com que o jornalista seja parcialmente autônomo, na medida em que tem a obrigação de seguir um padrão de produção e uma concepção coletiva de que assuntos merecem ser noticiados (SODRÉ, 2009, p. 25-26). Trata-se da institucionalização de um processo objetivo para dar conta de um trabalho de natureza subjetiva (PICCININ, 2007, p. 18-19). Nos conteúdos audiovisuais, as características do jornalismo enquanto uma produção processual talvez sejam ainda mais explícitas. É verdade que as imagens transmitem uma maior sensação de “reflexo da realidade”, mas, em função das próprias condições técnicas de produção, o jornalismo audiovisual é uma reconstrução da realidade a partir das perspectivas de diferentes profissionais: do repórter, do cinegrafista, do editor, entre outros, cujas ações se consolidam em um processo de edição (TEMER, 2010, p.111, p. 117-118). Em outras palavras: as interferências diversas na atividade de construção coletiva do jornalismo audiovisual, ainda que variem em função de diferentes graus de competência profissional, níveis de poder e possibilidades de utilização do tempo, evidenciam que o jornalismo é, de fato, um complexo processo de produção. As considerações realizadas até aqui reforçam a ideia de que o jornalismo é um processo de construção negociado (TUCHMANN, 1978, p.6), cujas especificidades precisam ser compreendidas não apenas por quem o pratica, mas também por quem pretende estudálo, sobretudo, quando nos referimos a áreas mais específicas como o audiovisual e o digital. É nesse sentido que o objetivo do presente 66 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social artigo é explicitar a importância do processo produtivo para a investigação das práticas jornalísticas contemporâneas, até porque não podemos considerar o processo produtivo como uniforme, estático ou imutável, na medida em que ocorre através da interação dos jornalistas com outras categorias de atores mobilizadas para a determinação dos fatos e sua posterior transformação em acontecimento midiático (SODRÉ, 2009; TRAQUINA, 2005). Diante dessas pretensões, iniciamos com um breve panorama acerca da teoria do newsmaking e suas principais diretrizes. Em seguida, buscamos ressaltar que, apesar da sua relevância, a pesquisa de campo tem enfrentado dificuldades e limitações, principalmente no que se refere às autorizações para que pesquisadores ingressem nas redações jornalísticas. É discutida, em decorrência disso, a realização das entrevistas com profissionais como alternativas mais viáveis para a compreensão do processo de produção jornalístico na atualidade. O foco das observações do artigo é no jornalismo audiovisual praticado em dispositivos móveis, sendo consideradas organizações jornalísticas de âmbito internacional, nacional e local (com enfoque na cidade de Teresina, tendo em vista o vínculo das autoras à Universidade Federal do Piauí). Um panorama da teoria do newsmaking Os estudos relativos ao newsmaking (produção da notícia), que abrangem um campo amplo e uma extensa bibliografia do jornalismo, têm como principal objetivo revelar as articulações, conexões e relações entre a profissão dos jornalistas e a organização do trabalho e dos processos produtivos neste meio profissional. Baseando-se na ideia de que o jornalismo é um campo fundamental na construção da realidade social, ou melhor, na representação da construção da realidade, Vizeu (2007, p. 223) aborda a “notícia como um bem público, produzido institucionalmente, que Juliana Fernandes Teixeira; Denise Freitas de Deus Soares | 67 submetida às práticas jornalísticas possibilita o acesso das pessoas ao mundo dos fatos (dia a dia)”. Segundo Tuchmann (1978, p.5), ainda que alguns jornalistas proclamem que as notícias representam o real, as narrativas jornalísticas são histórias contadas e comentadas, que possuem um caráter público – pois estão disponíveis a todos – e que constituem nosso equipamento cultural. A autora (TUCHMANN, 1978, p.2, p.12) afirma também que o ato de fazer notícia é o ato de construir socialmente a própria realidade através de ocorrências do mundo cotidiano que ocupam tempo e espaço, em vez de um retrato da realidade. Ou seja, o trabalho jornalístico transforma acontecimentos em eventos noticiosos e inspira-se em aspectos da vida cotidiana para narrar histórias e apresentá-las a nós mesmos. No mesmo sentido, mas nas palavras de Curado (2002, p.15), a “notícia é a informação que tem relevância para o público. A importância de um acontecimento é avaliada pelo jornalista, que julga se o fato é notícia e deve ser divulgado”. A sociedade toma conhecimento da notícia através dos meios de comunicação e a mediação se dá pelo profissional, o jornalista. O processo de valoração da notícia é determinado a partir da escolha das fontes e esse acesso ao campo jornalístico que o profissional de redação tem de lidar diariamente está ligado a um método não científico de atribuição de valores. Escolher uma fonte ao invés de outra é assegurada na experiência do profissional com a produção da notícia, ou seja, é resultado da cultura profissional. Cultura esta em que o jornalista engloba no seu “saber profissional” um “vocabulário de precedentes” para desempenhar suas atividades e é “baseado na experiência e nas transações diárias com colegas, fontes, superiores hierárquicos e textos jornalísticos” (TRAQUINA, 2000, p.27). O jornalismo também oferece às empresas de comunicação e seus profissionais o desafio de apresentar um produto completamente finalizado todos os dias. Este fator é agravado pelo fato desta ser uma atividade condicionada pelo momento do 68 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social fechamento. Diante desta realidade, as organizações jornalísticas adotam estratégias que permitam a adequação a este desafio, derivado, principalmente, por duas características intrínsecas à notícia: podem acontecer em qualquer lugar e a qualquer momento. O que existe, portanto, é um conjunto de procedimentos de organização, disciplina, distribuição, especificação e coordenação de tarefas para cada jornalista e para toda a equipe com o objetivo de produzir conteúdos jornalísticos diante da imprevisibilidade, da tensão e do pouco tempo para tomada de decisões intrínsecos à elaboração informativa. Isso significa que a produção jornalística engloba não somente aspectos quantitativos, mecânicos, repetitivos e padronizados, mas também requer a inserção de elementos qualitativos, intuitivos e criativos, cada vez mais valorizados por grande parte das organizações, em função das exigências das próprias audiências, a partir de características do contexto digital como a interatividade (HERREROS, 2003, p.76-78). Alsina (2009, p.177) ressalta que, em função da imprevisibilidade dos acontecimentos e das pressões do tempo e do espaço, o jornalismo dispõe de procedimentos específicos e limites organizacionais à produção das informações, tais como pontos fixos de observação, divisão do trabalho e hierarquia profissional, apenas para citar alguns exemplos. Tendo que pensar na eficácia de um produto imprevisível e, por diversas vezes caro, os jornalistas são compelidos a empregar formas de hierarquia na tomada de decisões, a realizar uma tipificação dos fatos e utilizar critérios de noticiabilidade. A teoria etnoconstrucionista possui dois conceitos fundamentais: a noticiabilidade e os valores-notícia, que se encontram implicitamente relacionados no processo de construção da audiência. A noticiabilidade, ou seja, a possibilidade de um fato virar notícia, pode ser definida como o conjunto de elementos através dos quais as empresas de comunicação exercem controle sobre a quantidade e o tipo de fatos, que serão selecionados para se tornarem efetivamente notícias. Os valores-notícia são um Juliana Fernandes Teixeira; Denise Freitas de Deus Soares | 69 componente da noticiabilidade. A combinação destes dois conceitos auxiliará os jornalistas na percepção dos fatos, enquanto suficientemente interessantes e/ou importantes para a sua transformação em notícia. Os valores-notícia são critérios de relevância espalhados ao longo de todo o processo de produção, isto é, não estão presentes só na seleção de notícias, mas participam de todas as operações anteriores e posteriores à escolha, embora com um relevo diferente em cada situação (VIZEU, 2007, p. 225). Além disso, os valores-notícia são marcados pelo dinamismo, uma vez que podem sofrer modificações de acordo com aspectos culturais, sociológicos ou tecnológicos. Tuchman (1978) defende que, ao contrário de uma abordagem distorcida da realidade, a notícia é um marco que constrói diariamente o mundo social. Portanto, a seleção e as características das notícias sobre determinados acontecimentos são negociáveis, implícita ou explicitamente, entre os seus produtores e as fontes informativas. Praticamente infinitos, segundo Vizeu (2007), os valoresnotícia dividem-se em cinco principais categorias, as quais se subdividem sucessivamente. São elas: categorias substantivas; categorias relativas ao produto; categorias relativas aos meios de informação; categorias relativas ao público e categorias relativas à concorrência. Cabe ressaltar, em acordo com o autor, que as categorias substantivas, por estarem relacionadas ao fato em si e seus personagens, abrangem os critérios de importância e interesse, enquanto as categorias relativas ao produto, que dizem respeito ao caráter do produto informativo, englobam valores como a brevidade, a atualidade, a atualidade interna, a qualidade e o equilíbrio. É importante evidenciar que a relevância dos valores-notícia varia de acordo com cada fato. Esta variação é essencial para o desempenho do trabalho jornalístico, pois os seus profissionais não teriam tempo para considerar os critérios, caso todos fossem 70 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social igualmente importantes. Alguns valores-notícia são quase sempre relevantes, porém a quantidade e a relação que estabelecem com cada notícia é distinta. Isso reforça a hipótese do caráter negociado da noticiabilidade; isto é, os critérios relevantes são variáveis, embora condicionados a determinados fatores. Ou seja, a transformação de um fato em notícia é o resultado de uma ponderação entre avaliações relativas a elementos de peso, relevo e rigidez diferentes quanto aos procedimentos produtivos (VIZEU, 2007, p. 231). Uma das principais funções dos valores-notícia no processo do newsmaking é a rotinização do trabalho, ou seja, atuam enquanto fatores de organização e contextualização dos fatos, pois é assim que adquirem significação. Os valores-notícia buscam alcançar uma aparência de bom-senso, o que os torna elementos naturalizados e considerados pelos profissionais como os mais corretos e adequados, muitas vezes, sem questionamentos. Vale ressaltar ainda que a rotinização do trabalho favorece a eficácia da produção dos jornalistas, uma vez que estes processam tipos de fatos distintos por meio de estruturas rotineiras. Em outras palavras, permite que os jornalistas, mesmo trabalhando com o inesperado, elaborem uma quantidade regular de notícias, independentemente dos fatos e de acordo com os prazos préestabelecidos para o fechamento dos veículos de comunicação. Além disso, conforme já destacava Bourdieu (1997), o jornalista precisa conviver com o que o autor denominou de ditadura da audiência sofrida hoje pelos meios de comunicação. Uma consequência da lógica comercial que cada vez mais se impõe, especialmente sobre a televisão, a qual acaba transferindo esta pressão para o jornalismo e, por conseguinte, para os demais veículos. O autor também aborda a pressão exercida pelo jornalismo sobre os outros campos de produção cultural. Um dos principais desafios dos estudos do newsmaking na atualidade, porém, está na elaboração de uma metodologia Juliana Fernandes Teixeira; Denise Freitas de Deus Soares | 71 adequada. A problemática central é encontrar uma estratégia de pesquisa que permita rigor na obtenção e coleta de informações essenciais para o melhor entendimento acerca da rotina das organizações jornalísticas e seus profissionais. Vizeu (2007) considera que a abordagem etnográfica é a ideal para uma observação mais coerente e consistente sobre as relações sociais que geram produtos culturais. Entretanto, diante da ausência de uma nomenclatura mais apropriada para a observação do cotidiano das redações jornalísticas, o autor propõe “a noção provisória de etnojormalismo, observação sobre as práticas jornalísticas que resultam num produto chamado de notícia” (VIZEU, 2007, p. 234). Sobre essa coleta de informações, como estratégia de pesquisa, detalharemos melhor as dificuldades encontradas para entrada nas redações, bem como a importância de ouvir os relatos dos profissionais da área, para além da análise dos produtos circulados nos meios de comunicação. A importância da pesquisa de campo e suas dificuldades (limitações para entrada nas redações) Em primeiro lugar, é preciso evidenciar que a importância da pesquisa de campo não anula a relevância da análise dos produtos comunicacionais, independente da estratégia metodológica que seja eleita para essa tarefa. Até porque, conforme já sustentava Machado (2001) no que se refere especialmente aos programas televisivos, são poucos os pesquisadores que concentram seus esforços no conjunto dos trabalhos audiovisuais que cada meio efetivamente produz. Gomes (2011, p.17) reforça esse ponto de vista ao sustentar que o audiovisual costuma ser mais abordado a partir de perspectivas macroeconômicas, históricas ou sociais, afastando-se da análise dos programas, de fato, veiculados. Uma situação que é agravada no âmbito específico do jornalismo audiovisual, cujas pesquisas têm conferido pouca ênfase aos produtos circulados, 72 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social resultando em uma fragilidade teórica e metodológica, sobretudo quando nos referimos às especificidades dos conteúdos. Chamar a atenção para a importância da análise dos produtos midiáticos, entretanto, não é o foco do presente artigo. Interessa-nos destacar aqui a importância da combinação das análises dos programas com a pesquisa de campo nas redações jornalísticas; estratégia que tem sido cada vez mais dificultada (e por vezes até impossibilitada) por alguns meios de comunicação. Esse acompanhamento da rotina produtiva, segundo Yin (2005, p.26), é importante até porque espera-se que um estudo de caso apresente diferentes fontes de evidências. Assim sendo, a observação direta dos fenômenos jornalísticos que estão sendo estudados e as entrevistas com as pessoas neles envolvidas tornam-se essenciais para determinadas pesquisas no campo da comunicação. Como observação direta, compreende-se a visita realizada ao local da investigação, com o objetivo de fornecer dados adicionais sobre o tema em análise (MATSUUCHI DUARTE, 2009, p.230), o que nem sempre é possível por questões organizacionais das empresas jornalísticas contemporâneas. Nas pesquisas de campo, Vizeu (2007) sugere a realização de entrevistas não-diretivas. Estas entrevistas explicitam gradualmente os modelos culturais por meio da revelação do emprego de estereótipos e da interferência dos grupos dos quais os indivíduos fazem parte ou se referem de acordo com o seu processo de socialização. Seguindo esses preceitos, em pesquisas anteriores a nível de doutorado e pós-doutorado (TEIXEIRA, 2015; 2018), buscamos realizar entrevistas com os profissionais das organizações jornalísticas estudadas. Localmente (em específico na cidade de Teresina - Piauí), ao longo do estágio pós-doutoral (TEIXEIRA, 2018), visitamos as quatro principais emissoras piauienses (TV Clube, TV Cidade Verde, TV Antena 10 e TV Meio Norte). No mesmo dia da visita em cada uma das organizações jornalísticas, foram Juliana Fernandes Teixeira; Denise Freitas de Deus Soares | 73 entrevistados os profissionais diretamente responsáveis pela produção jornalística e/ou para mídias sociais. Já na tese de doutorado (TEIXEIRA, 2015), que estudava aplicativos jornalísticos autóctones para tablets (e, desse modo, envolvia produtos jornalísticos de diferentes regiões do Brasil e países do mundo), a visita às redações foi inviabilizada. Entre o corpus dessa pesquisa doutoral, estavam incluídos os seguintes cibermeios: La Presse + (Montreal – Canadá); Mail plus (Londres – Reino Unido); El Mundo de la Tarde (Madri – Espanha); Project Week (Londres – Reino Unido); Katachi (Oslo – Noruega); La Repubblica Sera (Roma – Itália); O Globo a Mais (Rio de Janeiro – Brasil); Estadão Noite (São Paulo – Brasil) e Diário do Nordeste Plus (Fortaleza – Brasil). Críticas poderiam ser direcionadas ao fato de que não elencamos estudos de caso em que fosse efetivamente possível empreender uma pesquisa de campo. Contudo, foi priorizada, nesse estudo, a constituição de uma amostragem mais representativa e original, afastando-nos de questões que levassem em conta apenas a proximidade geográfica de alguns cibermeios. Apesar das particularidades de cada uma das pesquisas realizadas, em ambos os casos foi dedicado um tempo expressivo para realização, transcrição, categorização e redação dos resultados da pesquisa de campo, uma vez que essa etapa é uma das mais relevantes no que diz respeito ao potencial dos futuros resultados. Na opinião de Duarte (2009), tem dois objetivos específicos e complementares entre si: identificar hipóteses importantes para a compreensão do objeto de estudo e investigar regularidades e/ou descontinuidades para a elaboração de novas hipóteses. Especial atenção precisa ser dedicada, ainda, ao processamento dos dados coletados, pois é a interpretação e a reconstrução realizada pelo pesquisador que permite a articulação dos conceitos por meio de um diálogo diferenciado com a realidade. Tais foram justamente os objetivos pretendidos pelas pesquisas empreendidas já mencionadas. Nossa intenção aqui, entretanto, não é evidenciar os resultados alcançados, que podem 74 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social ser acessados na tese de doutorado e no relatório final do pósdoutorado. A pretensão, em vez disso, é demonstrar a relevância dos procedimentos de pesquisa de campo para a compreensão do fenômeno do jornalismo audiovisual em dispositivos móveis, mesmo que apenas por meio de entrevistas, conforme será detalhado a seguir. As entrevistas como alternativas mais viáveis para a compreensão do processo de produção Uma ressalva importante, no presente momento do artigo, é que nem todo estudo de caso demanda, necessariamente, a realização de pesquisa de campo. São possíveis adaptações metodológicas de forma a abrir mão da ida a campo, tal como foi exemplificado com a pesquisa de doutorado destacada anteriormente (TEIXEIRA, 2015). De todo modo, não convém que o processo de produção seja totalmente ignorado. Tanto é que, para analisar os aplicativos jornalísticos autóctones para tablets nacionais e internacionais, optou-se por ultrapassar a observação sistemática dos produtos selecionados (que ocorreu por meio de fichas de análise), sendo esta complementada por entrevistas com os editores dos cibermeios estudados. Devido à diversidade de países e regiões do corpus, contudo, as estratégias empregadas para as entrevistas variaram. No caso de O Globo a Mais, a entrevista foi presencial com a jornalista Maria Fernanda Delmas; no caso de Estadão Noite, ocorreu por telefone com Luís Fernando Bovo. O contato foi on-line nos casos de Diário do Nordeste plus (via skype, com Daniel Praciano Nobre) e de La Presse + e El Mundo de la Tarde (por e-mail, com Éric Trottier e Juan Carlos Laviana, respectivamente). Na pesquisa de pós-doutorado (TEIXEIRA, 2018), que investigou, entre outras questões, o uso dos dispositivos móveis no processo de produção telejornalístico, as entrevistas também adquiriram protagonismo. Mas houve um esforço (ou talvez reais Juliana Fernandes Teixeira; Denise Freitas de Deus Soares | 75 condições de proximidade geográfica) para que todas fossem realizadas presencialmente. Sete profissionais foram entrevistados nas quatro emissoras piauienses visitadas. As entrevistas locais se deram com os referidos profissionais: Jaqueliny Siqueira e Paulo Nóbrega (TV Clube); Marcos Monturil (Rede Meio Norte); Yala Sena e Ítallo Victor (TV Cidade Verde); e Renato Ricarte e Douglas Cordeiro (TV Antena 10). Independente do formato adotado e da plataforma em que se baseia, a escolha pela entrevista deve-se ao fato de ser uma técnica que explora um assunto a partir da busca de informações, percepções e experiências de informantes para analisá-las e apresentá-las de maneira estruturada. Busca-se recolher respostas a partir da experiência subjetiva de uma fonte. Esse tipo de ferramenta metodológica permite explorar um assunto ou aprofundá-lo, descrever processos, compreender o passado e apontar perspectivas (DUARTE, 2009). Existem diversas estruturas possíveis para uma entrevista: aberta, fechada, semiaberta, entre outras. Nas pesquisas que temos empreendido, porém, a entrevista semiaberta apresenta-se como uma dos formatos mais profícuos. Afinal, a entrevista semiaberta é um modelo de entrevista em profundidade, que se baseia em um roteiro de questões-guia, as quais atendem ao interesse da pesquisa e são apresentadas ao entrevistado de forma aberta. Desse modo, é possível conciliar a flexibilidade da questão com o controle do roteiro. Embora a temática, a ordem e a profundidade das perguntas sejam determinadas pelo pesquisador, o entrevistado tem um papel fundamental, pois o andamento da entrevista vai depender dos seus conhecimentos e disposição para falar sobre o assunto. É verdade que diversas adaptações no roteiro inicialmente previsto podem ser necessárias em função da dinâmica de funcionamento de cada estudo de caso – tais como alterações na ordem das perguntas das entrevistas e ajustes no roteiro em função de relatos interessantes que determinados entrevistados poderiam agregar à pesquisa. De todo modo, considera-se que as entrevistas 76 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social podem ser consideradas uma estratégia interessante (e bastante viável) para uma compreensão mais efetiva do processo de produção jornalístico nas redações contemporâneas. Contribuições das entrevistas para a compreensão do jornalismo audiovisual em dispositivos móveis Muitas vezes, os meios de comunicação tradicionais são acusados de resistirem aos potenciais da internet e da mobilidade, bem como os cibermeios são acusados de quererem usurpar o espaço informativo e publicitário da TV, do rádio e do impresso. Mas será que essa dicotomia, e até uma certa rivalidade, corresponde à realidade do processo de produção jornalística contemporâneo? Por meio de entrevistas com profissionais das organizações jornalísticas, acreditamos que é possível empreender investigações pertinentes; pelo menos é isso que tem sido demonstrado pelas pesquisas que foram empreendidas no âmbito do jornalismo audiovisual em dispositivos móveis nos últimos anos (TEIXEIRA, 2015; 2018). Ao investigar o panorama de mobilidade e audiovisualização no âmbito do jornalismo nacional e internacional, ouvimos relatos de editores de diferentes tipos de organizações jornalísticas (incluindo empresas tradicionalmente vinculadas ao impresso e à televisão). Um ponto em comum entre grande parte das entrevistas foi a busca por inovações e a necessidade de pesquisas que viabilizem tal processo inventivo. A partir das entrevistas, concluímos que, de uma maneira geral, os editores possuíam e ainda possuem muitas dúvidas sobre o que fazer para inovar, ou seja, promover inovações nos conteúdos para tablets permanecem como desafios para esses profissionais (embora, conforme já mencionamos, essa não seja, de fato, uma obrigação deles, na medida em que a inovação emana de fatores múltiplos e complexos). Se esse panorama, por um lado, gera, por exemplo, receios acerca da lucratividade dos produtos exclusivos para tablets; por outro lado, torna os autóctones espaços mais propícios à experimentação – foi constante, entre os editores Juliana Fernandes Teixeira; Denise Freitas de Deus Soares | 77 ouvidos, a percepção desses produtos como ambientes frutíferos para que fossem exploradas diferentes possibilidades nos conteúdos jornalísticos, principalmente no que se refere à multimidialidade (TEIXEIRA, 2015, p.318) A constatação acima revela a importância de uma aproximação mais efetiva entre a compreensão teórica e a prática do processo jornalístico, no que as pesquisas baseadas no newsmaking podem contribuir em grande medida. Afinal, compreendemos o jornalismo enquanto uma atividade teórico-prática, em que a teoria se modifica constantemente com a experiência prática, que por sua vez se modifica constantemente com a teoria. Cabe, assim, aos pesquisadores procurar a transformação das circunstâncias e, simultaneamente, auxiliar aos indivíduos (no nosso caso específico, os profissionais do jornalismo) a criarem novas práticas. A necessidade desse tipo de compreensão da realidade é ainda mais importante frente aos desafios impostos para o estudo da sociedade em rede, a estrutura social que caracteriza a sociedade no início do século XXI. Conforme pondera Castells (2015, p.21-22), o processo de comunicação contemporâneo é efetivado em função de diferentes lógicas de poder, culturas, organizações e tecnologias, interferindo em todas as áreas de prática social. Portanto, estudar tais práticas, entre as quais incluímos as comunicacionais, demanda uma compreensão plena das especificidades não só das formas, como também dos processos de produção da informação. Considerações finais Uma das principais dificuldades do ensino de jornalismo é que, independente da dimensão ou da estrutura da universidade, está tradicionalmente voltado para o treinamento prático, de um lado, e para a educação conceitual, de outro. Ainda que as demandas do sistema midiático sejam diferentes de uma região para outra e deliberadas com base em culturas específicas, o equilíbrio entre os conhecimentos práticos e conceituais sempre foi um desafio para os 78 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social programas de jornalismo de todo o mundo (DEUZE, 2008, p.271; MENSING, 2011, p.18; TÓTARO, 2008, pp.64-65). E é justamente no que tange a esse aspecto que apresentamos a tentativa de integração entre as pesquisas acadêmicas/ teóricas e as aplicações mercadológicas/ práticas. Reconhecemos que ainda são múltiplos os obstáculos que a pesquisa, a reflexão e o ensino do jornalismo vêm enfrentando na contemporaneidade. De todo modo, a intenção aqui é apontar para a importância da integração entre teoria e prática, entre pesquisadores e profissionais, da transposição desses desafios. A dicotomia teoria e prática tende a desaparecer porque, através da reconstrução e da construção do conhecimento, a teoria constitui uma esfera de compreensão dos limites e da necessidade de atualização da prática e a prática funciona como uma espécie de campo de provas para testar as hipóteses teóricas e apontar as lacunas existentes nas teorias estabelecidas (MACHADO, E., 2007, p.17). Atuar em projetos acadêmicos, por exemplo, é uma das vantagens oferecidas aos alunos de jornalismo em comparação aos de engenharia ou direito, os quais enfrentam mais dificuldades para desempenhar as atividades práticas de sua profissão (WARREN, 1975, p.16). Um dos problemas atuais, entretanto, é que as produções audiovisuais acadêmicas têm se aproximado mais de locais de treinamento para o mercado de trabalho do que de ambientes de aprendizagem capazes de formar novos profissionais, e do que laboratórios de pesquisa de novas práticas e processos jornalísticos (AZAMBUJA, 2008, p.13; SQUIRRA, 1993, p.15). Em geral, hoje, a Internet pode oferecer alternativas para superar essas problemáticas, visto que tem se apresentado como uma aliada no processo de ensino, pesquisa e extensão dos cursos de graduação em jornalismo (BACCO, 2010, p.15), sobretudo a partir das potencialidades oferecidas pelos smartphones. Juliana Fernandes Teixeira; Denise Freitas de Deus Soares | 79 Tal afinidade mais estreita entre teoria e prática não favorece apenas a universidade, mas pode oferecer benefícios também para o mercado jornalístico, uma vez que os resultados obtidos por meio de estudos sistemáticos funcionam como uma espécie de consultoria especializada proporcionada pela academia, ou seja, o mercado pode aproveitar dados e indicações das pesquisas para o aprimoramento da prática. As pesquisas tornam-se, assim, conforme já sugeria Abruzzese (2006), possíveis projetos políticos, culturais e/ou formativos, destinados não apenas aos estudantes, mas também aos profissionais da área e às classes dirigentes, podendo interferir tanto em produtos quanto em processos jornalísticos a curto e longo prazos. Referências ABRUZZESE, Alberto. O esplendor da TV: origens e destino da linguagem audiovisual. Trad.: Roberta Bani. São Paulo: Studio Nobel, 2006. ALSINA, Miquel Rodrigo. A Construção da Notícia. 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Capítulo 4 Jornalismo de capa e as teorias do Newsmaking e do agendamento na Folha de São Paulo Gleisy Nascimento de Alencar 1 Francisco Gilson Rebouças Pôrto Junior 2 Verônica Dantas Menezes 3 Introdução O artigo trata de uma pesquisa que tem como objetivo identificar os temas agendados nas capas do Jornal Folha de São Paulo no período de 01 a 31 de maio de 2018. O período de análise foi escolhido em virtude de anteceder o período da Copa do Mundo, o que poderia inviabilizar ou prejudicar o estudo. O recorte utilizado restringe esta análise aos seguintes indicadores: 1- Manchete principal com ou sem foto; 2-Chamada com foto e 3- Foto-legenda. Foram utilizados os métodos de pesquisa documental e análise de conteúdo. A pesquisa empírica foi orientada por uma revisão de literatura para identificar o estado da arte da Teoria do Newsmaking e da Teoria da Agenda. A Pesquisa Documental foi necessária para levantar as edições do jornal Folha de São Paulo do 1 Mestranda d Programa de Pós Graduação em Comunicação e Sociedade da UFT, Relações Públicas e professora do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Tocantins. 2 Professor Doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea, mestre em Educação, graduação em jornalismo, pedagogia e história, professor da Universidade Federal do Tocantins. 3 Doutora em Comunicação, mestre em Sociologia, graduada em Jornalismo, professora da Universidade Federal do Tocantins. 84 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social mês de maio de 2018, para identificar quais eram as manchetes, chamadas com fotos e fotos legenda contidas neste período. A Análise de Conteúdo (BARDIN, 1977) possibilitou a classificação e reagrupação do material pesquisado em categorias que possibilitaram compreender os assuntos de maior importância (agendamento) para a linha editorial do Jornal Folha de São Paulo. Assim, este ensaio lança algumas problematizações sobre o papel do jornalismo na contemporaneidade, como mediador e promotor de temas e enquadramentos sobre estes temas que são tornados públicos como importante para a sociedade. A Folha A Folha de São Paulo é um jornal diário que circula em todo o território nacional, apesar da queda registrada na circulação impressa dos 11 principais jornais do país, a Folha, segundo a ANJ em 2017, ficou na terceira posição com uma tiragem de 121 mil exemplares, sendo a primeira colocada no ranking das assinaturas digitais com 164,3 mil assinantes. O Jornal sempre esteve envolvido (de forma questionável) nos mais importantes acontecimentos políticos do País. A Folha de São Paulo sempre foi acusada por intelectuais e políticos perseguidos pela ditadura, de ter cedido seus carros para os policiais do DOI-Codi, órgão de repressão da ditadura militar. Porém, somente em 2014 num editorial sobre os 30 anos do fim da ditadura, a Folha reconheceu que foi uma decisão equivocada, porém justificou que na época não tinha como ter a compreensão que temos nos dias de hoje sobre o regime. A Folha também foi o primeiro órgão da imprensa brasileira a pedir em 1991 o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, que renunciaria no ano seguinte, antes mesmo do processo ser concluído. E no processo de impeachment da presidente Dilma Roussef também influenciou a opinião pública com os enquadramentos noticiosos usados. A Folha afirmava em suas Gleisy N. de Alencar; Francisco Gilson R. P. Junior; Verônica D. Menezes | 85 matérias que a crise que o país atravessava somente seria superada com um governo que tivesse uma base aliada muito forte. A história do jornal teve início em 1921, com a criação do jornal "Folha da Noite". Cinco anos depois é fundada a sua versão matutina o jornal "Folha da Manhã. E após 24 anos surge a "Folha da Tarde". Mas foi em 1º de janeiro de 1960, que os três títulos da empresa se fundem e surge o jornal Folha de São Paulo. O veículo é ainda pioneiro na utilização de várias tecnologias, entre elas a impressão offset em cores, recebendo prêmios internacionais pela sua qualidade gráfica e designer. Tendo um parque gráfico também premiado, possui um dos melhores Bancos de Dados do país, abrangendo arquivos de texto, foto e biblioteca. Na década de 90 é criado o Datafolha, instituto de pesquisa de opinião pública e de mercado, que realiza pesquisas eleitorais e também de temas de interesse dos leitores, fornecendo informações à redação do jornal. A Folha ganhou grande visibilidade internacional quando passou a investir em uma política de fascículos encartados ao jornal. O primeiro deles, lançado em parceria com o The New York Times, bateu recorde com a venda de 1.117.802 exemplares. Esse número fez o jornal entrar por duas vezes no "Guinness Book - O Livro dos Recordes" de 1996 (jornal brasileiro a superar um milhão de exemplares e jornal de maior circulação no país). Atualmente a Folha de São Paulo faz parte do Grupo Folha um dos maiores conglomerados de mídia do Brasil, que possui além do Jornal de maior influência, o site de jornal com maior audiência no país, a maior empresa brasileira de conteúdo e serviços de internet (UOL), instituto de pesquisa, editora, gráfica entre outros. Portanto, a escolha do Jornal Folha de São Paulo como objeto de pesquisa se deu a partir dos critérios de tiragem, relevância midiática e influência política. 86 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social Teorias do Newsmaking e da Agenda Setting A Teoria do Newsmaking também chamada de Rotina Produtiva estuda a cultura profissional dos jornalistas, a organização das redações e a forma como é produzida a notícia (WOLF, 2005, p.188). A rotina produtiva de uma redação envolve normalmente três etapas: obter, selecionar e ordenar ou apresentar a notícia. Ward (2005, p.17-18) acrescenta uma fase que antecede as apresentadas, a identificação, que equivale a reunião de pauta. Para fazer a seleção dos fatos cotidianos que se transformarão em notícia, a produção jornalística define critérios de escolha, denominados de noticiabilidade. A noticiabilidade é constituída pelo conjunto de requisitos que se exigem dos acontecimentos ─ do ponto de vista da estrutura do trabalho nos órgãos de informação e do ponto de vista do profissionalismo dos jornalistas ─ para adquirirem a existência pública de notícias (WOLF, 2005, p.190). A noticiabilidade funciona como um instrumento de organização do trabalho jornalístico, contudo, outros fatores, como falta da fonte ou de informações, limitação do tempo, ou até mesmo problemas de locomoção do jornalista, podem influênciar nesses critérios de noticiabilidade. De acordo com Wolf (2005), a escolha daquilo que é ou não notícia será sempre orientada pela "factibilidade" do produto informativo, além do tempo e dos recursos disponíveis. Sendo a noticiabilidade o carro-chefe do processo organizativo, os valores notícia entram como um elemento delimitador dessa noticiabilidade. Wolf (2005, p. 197) afirma que o objetivo dos valores/notícia é estabelecer rotinas no trabalho jornalístico, tornando possível a partir de um critério o gerenciamento da produção da notícia, sendo essa seleção rápida e padronizada. Os valores/notícia possuem sempre uma dinâmica Gleisy N. de Alencar; Francisco Gilson R. P. Junior; Verônica D. Menezes | 87 própria, se adaptando de acordo com as circunstâncias culturais da profissão, e derivam de quatro pressupostos: “a. às características substantivas das notícias; ao seu conteúdo; b. à disponibilidade do material e aos critérios relativos ao produto informativo; c. ao público; d. à concorrência” (WOLF, 2005, p.200). A Teoria do Newsmaking portanto, aborda que a produção de informações jornalísticas ocorre a partir da transformação do cotidiano em notícias. Essa produção, portanto, ocorre a partir de critérios de relevância, noticiabilidade e interesse público, depois é ordenada, levando-se em consideração se pode ser postergada ou adiantada de acordo com a realidade social e os interesses editoriais. Já a hipótese ou teoria do Agendamento aborda que a mídia define os assuntos discutidos em conversas por meio da pauta escolhida pela linha editorial de cada veículo. A Teoria da Agenda não é o retorno à teoria da bala ou hipodérmica sobre os poderosos efeitos da mídia. Nem os membros da audiência são considerados autômatos esperando para serem programados pelos veículos noticiosos. Mas a Teoria da Agenda atribui um papel central aos veículos noticiosos por serem capazes de definir itens para a agenda pública (McCOMBS, 2009, p. 24). Wolf (2005, p.143) acredita que pela Agenda Setting "a mídia apresenta ao público uma lista de fatos a respeito dos quais se pode ter uma opinião e discutir", consequentemente, " a compreensão das pessoas em relação à grande parte da realidade social é modificada pelos meios de comunicação de massa". A imprensa “pode não ser bem sucedida na maioria das vezes em dizer às pessoas como pensar, mas é incrivelmente bem sucedida em dizer a seus leitores o que pensar” (Cohen 1963 p. 13). Segundo McCOMBS (2009, p. 28), há uma relação entre as informações pautadas pela mídia e o conteúdo informativo da opinião pública. Sendo que, mesmo os indivíduos que não 88 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social consomem os canais de noticiários, estão expostos à opinião pública – portanto, indiretamente, são afetados pelo padrão informativo de forma muito parecida com aquele indivíduo que consome os canais de mídia. A Teoria da Agenda ainda prevê uma correlação positiva alta entre a agenda da mídia e a subsequente agenda pública. Os efeitos do agendamento – a transferência bem-sucedida da saliência da agenda da mídia à agenda do público – ocorrem em qualquer lugar no qual exista um sistema político relativamente aberto e um sistema midiático razoavelmente aberto (McCOMBS, 2009, p. 66) A teoria ou hipótese da Agenda Setting (McCOMBS; SHAW, 1972) parte, portanto, do pressuposto que a pauta midiática acaba hierarquizando os assuntos conversados e discutidos pela sociedade, influenciando decisivamente as políticas públicas adotadas pelos governos. Isso ocorre, porque as políticas públicas são frutos da pressão da discussão coletiva - opinião pública. Dessa forma, temos uma realidade representada por um cenário montado pela mídia, muitas vezes, assuntos de interesse público, por não serem agendados midiaticamente, deixam de fazer parte da discussão coletiva, e consequentemente não estarão na pauta dos gestores públicos. Resultados e Análise Foram identificadas 7 categorias, citadas a seguir com sua frequência: Internacional (11), economia (6), atualidades (5), corrupção (5), decisões do judiciário (5), cultura (4), esporte (4), e outras (15). Nesta última categoria agrupou-se os dados com pouca incidência, entre eles estão: notícias de governo federal/ estadual (3); meio-ambiente (1); Questões Sociais (1); eleições ou candidatos (2). Também está a subcategoria greve dos caminhoneiros (9) por ser considerado um evento ocasional. Gleisy N. de Alencar; Francisco Gilson R. P. Junior; Verônica D. Menezes | 89 Tabela 1: Corpus da Pesquisa Data Tipo de Objeto Manchete 01 01/05/2018 02 01/05/2018 Fotolegenda 03 02/05/2018 Manchete 04 03/05/2018 Manchete 05 04/05/2018 Manchete 06 05/05/2018 Manchete 07 06/05/2018 Manchete 08 06/05/2018 Fotolegenda 09 07/05/2018 Manchete 10 07/05/2018 11 08/05/2018 Fotolegenda Manchete 12 08/05/2018 Fotolegenda 13 09/05/2018 Manchete 14 09/05/2018 15 10/05/2018 Chamada com foto Manchete 16 10/05/2018 17 11/05/2018 18 11/05/2018 19 11/05/2018 Fotolegenda Manchete Fotolegenda Chamada com foto Títulos Projetos do governo emperram na Câmara Aquecimentos de Região Polar obriga reforma em cofre de sementes Desabamento de prédio em São Paulo expõe falta de controle público Indústria brasileira aceita cota de Trump para exportar aço STF Restringe foro especial de deputados federais e senadores STF Começa a transferir ações contra congressistas PM diz ter feito entrega em dinheiro a amigo de Temer Policiais detêm manifestantes durante protesto em Moscou contra o presidente Vladimir Putin Suíça vê série de depósitos a operador na Gestão Serra. Joelsa Gonçalves no Edifício Raiada em Salvador Receita com petróleo sob e ajuda estados e municípios Vladimir Putin caminha após a cerimônia de posse no Kremlin, em Moscou (Rússia); considerado seus dois mandatos como PrimeiroMinistro, ele está no poder desde 99. Em crise cambial, Argentina vai ao FMI Trump tira os EUA de Acordo Nuclear com o Irã Toffoli, do STF, quer foro restrito para autoridades Último dia para regularizar situação eleitoral teve filas São Paulo tem 25 mil edifícios fora de regra mais dura antifogo Trump e Kim se reunirão em 12/06 Sócio da Dolly é preso sob suspeita de fraude fiscal Categoria de assuntos Política/Governo Federal Meio-ambiente Atualidades Economia Política/Decisões do Judiciário Política/Decisões do Judiciário Política/Corrupção Internacional Corrupção Social Economia Internacional Internacional Internacional Decisões do Judiciário Política/Eleições Atualidades Internacional Política/Corrupção 90 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social 20 12/05/2018 Manchete 21 12/05/2018 Fotolegenda 22 13/05/2018 Manchete 23 13/05/2018 Fotolegenda 24 14/05/2018 25 14/05/2018 26 15/05/2018 27 15/05/2018 28 16/05/2018 Manchete com foto Fotolegenda Manchete com foto Fotolegenda Manchete 29 16/05/2018 Fotolegenda 30 16/05/2018 Chamada com foto 31 17/05/2018 Manchete 32 17/05/2018 33 18/05/2018 Fotolegenda Manchete 34 18/05/2018 35 18/05/2018 36 19/05/2018 37 19/05/2018 38 20/05/2018 39 20/05/2018 40 20/05/2018 Fotolegenda Fotolegenda Manchete Chamada com foto Manchete Fotolegenda Chamada com foto Gilmar manda soltar Paulo Preto, assessor de tucanos Onda Gigante - brasileiro supera trauma e bate record de maior onda já surfada Zona Franca dá incentivo a beneficiário do Bolsa Família Para a empresária Priscilla Manfredi, 34 (na foto com a filha, serena, 1) o mais difícil da maternidade foi abrir mão da individualidade Governo celebra PM que matou ladrão e contraria polícia Em busca de uma praia para chamar de sua 58 palestinos morrem em confronto na faixa de Gaza Os 23 de Tite Decisões do Judiciário Esporte Política/Corrupção Atualidades Política/Governo Estadual Atualidades Internacional Esporte Dória deixa herança de filas da saúde fora do prazo prometido Em necrotério em gaza, mulher segura a filha de 8 meses morta no confronto entre exécito israelense e manifestantes palestinos na segunda (14) Plateia em Cannes abandona novo filme de Von Frier, o mais cruel de sua carreira Banco Central surpreende e mantém os juros em 6,5% Vítimas de incêndio em SP vivem impasse Desalento recorde diminui o índice de desemprego no país Pateo do Colégio recebe grades removíveis Maradona dá apoio a Maduro Governo Estadual Em novo dia de instabilidade dólar sobre e chega a R$3,74 Queda de avião em Cuba deixa mais de cem mortos Brasil tem a retomada mais lenta após recessão A nova guerra dos ashaninka Economia Meghan se une a Harry Internacional Cultura Economia Atualidades Economia Atualidades Internacional Internacional Economia Cultura Internacional Gleisy N. de Alencar; Francisco Gilson R. P. Junior; Verônica D. Menezes | 91 41 21/05/2018 Manchete com foto Chamada com foto 42 21/05/2018 43 22/05/2018 Manchete 44 22/05/2018 45 23/05/2018 Chamada com foto Manchete 46 23/05/2018 47 24/05/2018 48 24/05/2018 49 25/05/2018 50 26/05/2018 51 27/05/2018 52 27/05/2018 53 28/05/2018 Manchete com foto 54 29/05/2018 55 29/05/2018 56 30/05/2018 57 31/05/2018 Manchete com foto Chamada com foto Manchete com foto Manchete com foto Fotolegenda Manchete com foto Chamada com foto Manchete com foto Manchete com 3 fotos Fotolegenda Manchete Maduro obtém reeleição contestada na Venezuela Virada Cultural retoma atratividade dos palcos do centro sem incidente grave Ministro liberou na Caixa verba usada em negócio do filho Diesel sob e caminhoneiros protestam em 20 estados e DF Justiça manda prender o tucano Eduardo Azeredo Seleção Brasileira gira em torno do seu camisa 10 Governo, Câmara e Petrobrás cedem à pressão de grevistas Morto aos 85, escritor Roth investigou desejo humano Contribuinte pagará conta do diesel mais barato para os caminhoneiros Paralisação continua após acordo e governo mobiliza Forças Armadas Real Madrid vence a Liga dos campeões Governo intensifica ação contra bloqueios; petroleiro fará greve Temer eleva subsídio a R$10 bilhões para conter boicote ao abastecimento Boicote continua apesar do acordo; governo fala em infiltração política Bolsonaro diz ser contra intervenção militar 87% apoiam a paralização, mas rejeitam pagar a conta Bloqueio em rodovias murcha em meio a casos de violência Internacional Cultura Corrupção Greve Caminhoneiros Judiciário Esporte Greve Caminhoneiros Cultura Greve Caminhoneiros Greve Caminhoneiros Esporte Greve Caminhoneiros Greve Caminhoneiros Greve Caminhoneiros Política/Eleições Greve Caminhoneiros Greve Caminhoneiros A partir de 57 matérias publicadas pelo Jornal Folha de São Paulo, dentre elas 21 manchetes, 10 manchetes com fotos, 09 chamadas com fotos e 17 foto-legendas, pode-se criar primeiramente 12 categorias correspondentes a editorias ou seções, sendo elas: Internacional (11), economia (6), atualidades (5), corrupção (5), decisões do judiciário (5), cultura (4), esporte (4), notícias de governo federal/ estadual (3), meio-ambiente (1); 92 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social Questões Sociais (1), eleições ou candidatos (2), greve dos caminhoneiros (9). Com o objetivo de diminuir o número de categorias, criou-se a categoria outros e agrupou-se as que possuíssem menor frequência, isto é, com número menor que quatro em incidência, além da categoria dos caminhoneiros, por entender que se tratava de um assunto isolado. Dessa forma, os resultados sintetizados compreendem as categorias: Internacional (11), economia (6), atualidades (5), corrupção (5), decisões do judiciário (5), cultura (4), esporte (4), e Outros (16). Com a análise foi possível constatar que os assuntos mais agendados pela Folha de São Paulo, a partir do destaque na capa por meio de manchete principal, chamada ou foto-legenda, são as notícias internacionais, estas ocorridas onze vezes. Dentre os assuntos nacionais cabem destacar economia e atualidades, com seis frequências cada uma, e decisões do judiciário e corrupção, ambas destacadas em cinco momentos. Dentre os assuntos menos importantes para haver um destaque na capa, o Jornal Folha de São Paulo considera os assuntos ligado ao meio-ambiente ou a questões sociais, ambos com apenas um destaque durante todo o mês de maio. Em virtude do alinhamento do veículo podemos inferir que haja de fato uma angulação para os assuntos internacionais, seguidos de temas mais macrossociais, e consequentemente mais ligados às estruturas de poder, como economia e política. Em relação às manchetes, contudo, verificamos que assuntos ligados à política e tragédias ou manifestações foram os principais destaques, reforçando a atuação do fazer jornalismo dentro dos processos destacados no Newsmaking. Os valores notícia, neste caso, ratificam o que a maioria dos estudiosos da área enumera, como o drama, o conflito e as más-notícias. Gleisy N. de Alencar; Francisco Gilson R. P. Junior; Verônica D. Menezes | 93 Considerações finais Neste trabalho pudemos verificar que o jornalismo contemporâneo tem sido recortado e com isso o leitor deve procurar comparar os diversos veículos a fim de se manter informado de modo proporcional, conforme analisou Kovach e Rosenstiel (2004). Os autores partem da observação de que o jornalismo cria tendências, é a “cartografia moderna” em que o envolvimento e a relevância devem guiar a abordagem das notícias, embora estas devam ser apresentadas de forma proporcional e compreensível. Este estudo trouxe os resultados da análise descritiva, analítica e de conteúdo das páginas de capa do Jornal Folha de São Paulo a fim identificar o agendamento de temas por editorias. Foram analisadas as edições de 01 a 31 de maio de 2018, sendo utilizada a versão impressa do jornal. O artigo utiliza como arcabouço teórico as Teorias do Newsmaking e da Agenda Setting e os suportes metodológicos da Pesquisa Documental e da Análise de Conteúdo. As análises identificaram que o jornal Folha de São Paulo agenda prioritariamente em suas capas as notícias internacionais. Dentre as notícias nacionais, destacam-se os temas atualidades, economia, corrupção e decisões do judiciário, além das notícias de esporte e cultura, em menor quantidade. Dentre os temas menos importantes para o jornal estão o meio-ambiente e questões sociais. Por fim, acreditamos que o jornalista precisa “ser mais aberto sobre seu próprio trabalho” e assim ser “encorajado a ser mais reflexivo ao recolher, organizar e apresentar as notícias” (KOVACH; ROSENSTIEL , 2004, p. 135). Referências BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. SP: Martins Fontes, 1977. COHEN, B. The Press and the Foreign Policy. Princeton: Princeton University, 1963. 94 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social McCOMBS, Maxwell. A Teoria da Agenda: a mídia e a opinião pública. Petropólis, RJ: Vozes, 2009. MCCOMBS, Maxwell; SHAW, Donald. 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O presente ensaio toma como ponto de partida as contribuições dos Estudos Culturais Britânicos e sua derivação Latino-americana e movimenta para dar conta dessa trajetória autores como Johnson (1999); Hall (2003); García Canclini (1995); e Lopes et al (2002). Na seção seguinte discute os Estudos de Recepção e a Teoria das Mediações a partir das contribuições de 1 Doutor em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2006). Professor-pesquisador da Universidade Federal de Roraima – Boa Vista, Brasil. E-mail: vjrsanti@gmail.com 2 Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (2003). Professor-pesquisador da Universidad Nacional Experimental Simón Rodrígues – Caracas, Venezuela. E-Mail: adrianpadifer@gmail.com 96 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social Martín-Berbero (1997; 2003); Douglas Kellner (2001); Ana Carolina Escosteguy (2003); e Fábio Cruz (2006). Por último movimenta a Teoria da Ação Coletiva e/ou a Teoria dos Movimentos Sociais através dos postulados de Charles Tilly (1993) e Sidney Tarrow (1997) e também as reflexões de autores brasileiros como Fausto Neto (1989), Maria da Glória Ghon (1997) e Christa Berger (1998) para evidenciar que os Movimentos sociais são, por excelência, Movimentos Culturais – são formas históricas de manifestação de consciência (e de subjetividade) e estão relacionados às possibilidades de interpretação de formações sociais mais amplas – ao inteiro (ao todo) das sociedades. Esta construção realça o papel dos sujeitos e abre possibilidades concretas para exercício da resistência enquanto possibilidade de existência concreta em um ambiente de permanente conflito – conflito este que produz movimento; produz movimento social. Tal perspectiva passa a admitir que um mesmo objeto cultural, dentro de cada grupo em particular, pode se transformar em seu uso social e mudar sua significação. Os Estudos Culturais e sua trajetória Como sabemos, os Estudos Culturais Britânicos surgem no final dos anos de 1950 vinculados ao CCCS (Centro de Estudos Culturais Contemporâneos) da Universidade de Birmingham na Inglaterra. Desde o nascimento eles foram pautados pela transdisciplinariedade e fortemente influenciados pelo estruturalismo e pela semiologia materialista. A escola britânica dos Estudos Culturais teve seus pressupostos firmados pelos pesquisadores Richard Hoggart, Raymond Willians, Edward Palmer Thompson e Stuart Hall. A mercantilização da cultura, bem como a aceleração da organização capitalista dentro do universo cultural, facilitada pela atuação progressiva dos meios de comunicação, estiveram entre os principais fatores que contribuíram para a formatação dos Estudos Vilso Junior Santi; Adrián José Padilla Fernandez | 97 Culturais enquanto linha de pesquisa e análise no seu nascedouro. Desde então a corrente tem se caracterizado por vincular suas análises ás realidades históricas locais dos sujeitos, pela variedade de objetos que estuda e analisa e por sua interdisciplinaridade. “Aquele que realiza Estudos Culturais fala a partir de interseções”, ressalta García Canclini (1995, p.27). Para Johnson (1999, p.19) “os Estudos Culturais podem ser definidos como uma tradição intelectual e política; ou em suas relações com as disciplinas acadêmicas; ou em termos de paradigmas teóricos; ou, ainda, por seus objetos característicos de estudo”. Sendo assim, pode-se afirmar que no centro de interesse dos Estudos Culturais estão as conexões entre os sujeitos, a cultura, a história e a sociedade. Segundo o autor (1999, p.10-11) os Estudos Culturais são, agora, um movimento ou uma rede, que tem como principais características sua abertura e versatilidade teórica, seu espírito reflexivo e, especialmente, a importância de sua crítica. “Crítica como o conjunto dos procedimentos pelos quais outras tradições são abordadas tanto pelo que elas podem contribuir quanto pelo que elas podem inibir”. Historicamente na implementação de seu programa, os Estudos Culturais beberam na fonte marxista, apesar de inúmeras discussões acerca dessas contribuições para o seu desenvolvimento. Para Johnson (1999, p.13) as influências de Marx sobre os Estudos Culturais estão ligadas basicamente às seguintes noções: A primeira é que os processos culturais estão intimamente vinculados com as relações sociais, especialmente com as relações e as formações de classe, com as divisões sexuais, com a estruturação racial das relações sociais e com as opressões de idade. A segunda é que cultura envolve poder, contribuindo para produzir assimetrias nas capacidades dos indivíduos e dos grupos sociais para definir e satisfazer suas necessidades. E a terceira, que se deduz das outras duas, é que a cultura não é um campo autônomo nem externamente determinado, mas um local de diferenças e de lutas sociais. 98 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social Outra contribuição importante para os Estudos Culturais em sua trajetória foram as críticas dos movimentos de luta contra o racismo e do feminismo. Estes acabaram por tornar visíveis algumas premissas antes não reconhecidas, por produzir novos objetos e por obrigar a reformulação de outros tantos dentro da tradição. Segundo Johnson (1999, p.15), falando especificamente do movimento feminista, antes, o “pessoal” já era político, mas deslocado da questão do gênero. Para ele, o feminismo de maneira geral contribui para um importante deslocamento: “da crítica anterior baseada na noção de ideologia, para abordagens que se centram nas identidades sociais, nas subjetividades, na popularidade e no prazer”. Nessa sucinta linha histórico-temporal fica claro que para os Estudos Culturais a cultura não pode ser apreendida como um todo. De acordo com Johnson (1999, p.19), precisamos então de uma estratégia particular para sua definição – uma estratégia que revise as abordagens existentes e que identifique seus objetos característicos e a abrangência de sua competência, mas, que também mostre as suas falhas e os seus limites. “Na verdade, não é de uma definição ou de uma codificação que precisamos, mas de ‘sinalizadores’ de novas transformações”. Porém, ele aponta também que precisamos da história dos Estudos Culturais a fim de termos presentes os dilemas recorrentes nas análises e uma visão perspectiva dos projetos atuais. É assim que para Johnson (1999, p.20), “boa parte das fortes continuidades da tradição dos Estudos Culturais está contida no termo singular ‘cultura’ que continua útil não como uma categoria rigorosa, mas como uma espécie de síntese de uma história”. Para o autor, o termo “cultura” tem valor apenas como um lembrete, mas não como uma categoria precisa. Segundo ele, falar de cultura é falar de polissemia. Por isso, na tentativa de emprestar maior precisão ao fenômeno cultural, Johnson (1999, p.25) prefere falar da relação entre “consciência” e “subjetividade” para melhor Vilso Junior Santi; Adrián José Padilla Fernandez | 99 defini-la. Para o autor os problemas centrais dos Estudos Culturais estão situados em algum ponto entre esses dois termos. Ele afirma: Para mim, os Estudos Culturais dizem respeito às formas históricas da consciência ou da subjetividade, ou às formas subjetivas pelas quais nós vivemos ou, ainda, em uma síntese bastante perigosa, talvez uma redução, os Estudos Culturais dizem respeito ao lado subjetivo das relações sociais. Johnson afirma que “consciência”, dentro dessa formulação deve ser tomada como uma premissa para entender a história humana, com uma forte conotação cognitiva e que tem a ver com o conhecimento dos níveis sociais e culturais. Mas não é somente isso. Ela também abriga uma noção de consciência do eu, bem como uma “autoprodução moral” e mental ativa. “Em outras palavras, os seres humanos são caracterizados por uma vida ideal ou imaginária, na qual a vontade é cultivada, os sonhos são sonhados e as categorias elaboradas” (JOHNSON, 1999, p.26). Segundo o autor, o conceito de “subjetividade” é, aqui, especialmente importante, desafiando as ausências na consciência. “Ele inclui a possibilidade, por exemplo, de que alguns elementos estejam subjetivamente ativos – eles nos ‘mobilizam’ – sem serem conscientemente conhecidos”. E, dentre outros, também faz a conexão com uma importante premissa estruturalista: “A subjetividade não é dada, mas produzida, constituindo, portanto, o objeto da análise e não sua premissa ou seu ponto de partida” (JOHNSON, 1999, p.27). Admitindo sua influência marxista, em muitas de suas próprias análises sobre os Estudos Culturais, Johnson (1999, p.29) recorre à noção de “formas”, tanto sociais quanto históricas, para explicar como os seres humanos produzem e reproduzem sua vida material. Para ele, os Estudos Culturais, apesar de enxergarem os fenômenos de um outro ponto de vista, também estão preocupados com formações sociais mais amplas e/ou sociedades inteiras, junto com seu movimento. “Nosso projeto é o de abstrair, descrever e 100 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social reconstruir, em estudos concretos, as formas através das quais os seres humanos vivem, tornam-se conscientes e se sustentam subjetivamente”. Quando retoma as contribuições estruturalistas, no que tange às formas, Johnson (1999, p.29) ressalta que principalmente o caráter estruturado das formas que subjetivamente ocupamos, como a linguagem, os discursos, os mitos etc., tem apontado para as regularidades e para os princípios de organização – aquelas coisas que fazem com que haja forma; e, tem fortalecido nossa sensibilidade sobre a dureza, o caráter determinado e, na verdade, sobre a existência real de formas sociais que exercem suas pressões através do lado subjetivo da vida social. Porém, ele mesmo alerta que isto não significa dizer que a descrição da forma, nesse sentido, é suficiente. É também importante ver a natureza histórica das formas subjetivas, primeiro do ponto de vista de suas pressões ou tendências, ou seja, tanto pelos princípios do movimento quanto na sua combinação; depois analisar como essas tendências são modificadas por outras determinações sociais, “incluindo aquelas que estão em ação através das necessidades materiais” (JOHNSON, 1999, p.30). Por conseguinte, em acordo com a definição de cultura de Johnson (1999), não podemos mais limitar o debate ao campo a práticas especializadas, a gêneros particulares ou a atividades populares de lazer. Segundo ele, todas as práticas sociais podem (e devem) ser examinadas de um ponto de vista cultural, ou seja, podem ser examinadas pelo trabalho que elas fazem subjetivamente. No Brasil (é importante destacar) quatro momentos marcam a trajetória dos Estudos Culturais enquanto linha de pesquisa. O primeiro deles foi marcado pela tradução para o português a obra “Cultura e Sociedade” de Raymond Willians em 1970 - uma época efervescente em que os pesquisadores brasileiros tentavam entender melhor e esmiuçar a sociologia norte-americana. No segundo, o lançamento do livro “Dos Meios às Mediações” de Jesús Martín-Barbero, foi fundamental – o texto se transformou numa Vilso Junior Santi; Adrián José Padilla Fernandez | 101 bíblia para muitos pesquisadores da área dos estudos em comunicação e cultura. Também, a difusão das ideias de outros autores como Néstor García Canclini, foram marcantes no período (LOPES et al, 2002; CRUZ, 2006). O terceiro momento, demonstra claramente o desconhecimento nacional para com a corrente dos Estudos Culturais. Embora as referências a esses pressupostos tenham aumentado, a maior parte da bibliografia ainda disponível na área é em inglês - os textos em português e até mesmo em espanhol, ainda são escassos e difícil de localizar. Na última década, porém, a contribuição brasileira para o desenvolvimento da corrente aparece como relevante. É o Brasil que, na América Latina, tem produzido boa parte da literatura de referência na discussão da relação entre comunicação e cultura junto com suas múltiplas mediações – viés de abordagem que se tornou prioritário para os Estudos Culturais Latino-americanos. Estes desenvolvimentos que hoje fundamentam e dão suporte à prática dos Estudos Culturais, enquanto linha de pesquisa teóricometodológica, dependendo de seu contexto e dimensões, estão contribuindo para ocasionar mudanças no próprio nível teórico do paradigma. Eles, inclusive, autorizam a aproximação que ora propomos: discutir a relação entre os Estudos Culturais, os Estudos de Recepção, a Teoria das Mediações e a Teoria dos Movimentos Sociais, através da tomada de consciência da importância fundamental do papel ativo nos sujeitos nesses processos. Os Estudos de Recepção e a Teoria das Mediações A partir do surgimento da indústria cultural, termo cunhado por Adorno e Horkheimer em oposição aos dúbios conceitos de cultura popular ou de massa, a cultura da mídia toma a dianteira das relações sociais, sendo hoje praticamente impossível estudar cultura sem relacioná-la aos meios e suas inúmeras formas de mediações. Nas investigações, então, torna-se fundamental 102 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social privilegiar não só uma análise da produção e da economia política da cultura, mas também, estudar o texto propriamente dito, sua recepção e usos, baseando-se invariavelmente numa contextualização em nível sócio histórico. Sob essa realidade, uma nova forma de ver e criticar a mídia é proposta por autores como por exemplo Douglas Kellner (2001) “a pedagogia crítica da mídia”. Nela, segundo o autor, são promovidas a resistência à manipulação, e também, a tonificação do sujeito receptor em relação à cultura midiática dominante. Isso significa dizer que os indivíduos (receptores) estabeleceriam significados e usos próprios através de sua bagagem cultural, tendo, assim, plenas condições de discernir o conteúdo proveniente dos meios de comunicação, produzindo, consequentemente novas formas de cultura (CRUZ, 2006, p.69). Esta perspectiva passa a admitir que um mesmo objeto cultural, dentro de cada grupo em particular, pode se transformar em seu “uso social e mudar sua significação”. Criar seus próprios significados e interpretações. Até mesmo “dizer não” passa a ser próprio ou possível no processo de recepção da cultura (GARCÍA CANCLINI, 1995). A referida contextualização deve também considerar que os meios de comunicação reproduzem ações sociais sendo palcos, inúmeras vezes, para o embate das forças e grupos de interesse que compõe e integram a sociedade. As análises, a partir de então, conforme Kellner (2001, p.10) devem passar a explorar: [...] algumas das maneiras como a cultura contemporânea da mídia cria formas de dominação ideológica que ajudam a reiterar as relações vigentes de poder, ao mesmo tempo em que fornece instrumental para a construção de identidades e fortalecimento, resistência e luta. Afirmamos que a cultura da mídia é um terreno de disputa no qual grupos sociais importantes e ideologias políticas rivais lutam pelo domínio, e que os indivíduos vivenciam essas lutas através de imagens, discursos, mitos, e espetáculos veiculados pela mídia. Vilso Junior Santi; Adrián José Padilla Fernandez | 103 Desse modo, pode-se dizer que a mais conveniente forma de leitura sobre os meios de comunicação, dentro dos Estudos Culturais, deve sempre considerar o viés político da ação comunicacional. Essa leitura política, por sua vez, deve significar: [...] não só ler a cultura no seu contexto sócio-político e econômico, mas também ver de que modo os componentes internos de seus textos codificam relações de poder e dominação, servindo para promover o interesse dos grupos dominantes à custa de outros, para oporem-se às ideologias, instituições e práticas hegemônicas, ou para conter uma mistura contraditória de forma que promovem dominação e resistência (KELLNER, 2001, p.76). Detectar tendências, sonhos, medos e anseios incitados pela política cultural da mídia, investigando os porões dessa cultura, através da análise de suas mensagens, valores e ideologias é o objetivo daquilo que Kellner qualificou como diagnóstico crítico etapa indispensável dentro da nova forma de ver e criticar a mídia por ele proposta. O diagnóstico crítico se refere e se relaciona ao mapeamento das forças sociais em conflito, através dos Estudos Culturais, para análise dos polos dominantes e de resistência presentes nos discursos da cultura dos meios de comunicação. Assim sendo a crítica ideológica é inerente a esse tipo de investigação. Investigação esta que pode ser rotulada como multicultural crítica por pressupor uma interpretação da cultura e da sociedade, confrontando-as com as relações de poder e com as forças hegemônicas ou de resistência que atuam no palco social (CRUZ, 2006). No que se refere aos estudos de audiência, os teóricos dos Estudos Culturais Britânicos são reconhecidamente pioneiros. Neles, os estudos de recepção foram definidos como referentes: [...] àquelas pesquisas onde a temática da recepção se vincula, mas não se resume a relação com os media. De um modo geral, tratase de uma abordagem onde estão envolvidas distintas mediações 104 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social sociais e culturais que associam a recepção com a vida social, assim os media tem distintas significações para distintas culturas e, em parte, a cultura das audiências tem peso no trabalho de apropriação dos media. Nessa perspectiva, a compreensão da relação que se estabelece com os media se da a partir das distintas posições ocupadas na estrutura social, apoiando-se com diferentes ênfases na posição de classe social, de gênero, de raça, de idade, de contexto (rural/urbano), de diferentes identidades nacionais, regionais e étnicas, entre outras (ESCOSTEGUY, 2003, p.43). A introdução dos Estudos Culturais como paradigmas norteadores das análises em comunicação, num primeiro momento, conforme afirma Martín-Barbero (2003, p.280), gerou certa instabilidade. “Foi necessário perdermos o objeto para que encontrássemos o caminho do movimento social na comunicação, a comunicação em processo”. Deste modo, como salienta o autor, é importante que o eixo do debate se desloque “dos meios para as mediações. Isto é, para as articulações entre práticas de comunicação e movimentos sociais, para as diferentes temporalidades e para a pluralidade de matrizes culturais”. Para Martín-Barbero (2003, p.274) “o campo daquilo que denominamos mediações é constituído pelos dispositivos através dos quais a hegemonia transforma por dentro o sentido do trabalho e da vida em comunidade”. Assim sendo, complementa Cruz (2006, p.65), “além dos meios, existem as mediações, além das mediações tem-se a cultura”. Martín-Barbero (1997, p.292), em sua teoria, atenta para o que ele classificou como os três principais lugares de mediação: a “cotidianidade familiar” - tida como lugar permanente de reconhecimento dos indivíduos; a “temporalidade social” - que trata da ligação entre os tempos de produção e as rotinas de recepção, denotando momentos diferentes entre uma ação e outra; e a “competência cultural” - que se relaciona à bagagem de cultura que os componentes da esfera receptiva carregam e que concorre para Vilso Junior Santi; Adrián José Padilla Fernandez | 105 um modo específico de ver, ler, interpretar e usar os produtos da mídia. Mediações, portanto, podem a partir dai ser entendidas como as posições a partir das quais se produzem as concepções e os significados. Mediações são os lugares dos quais provêm as construções que delimitam e configuram a materialidade social e a expressividade cultural dos meios (MARTÍN-BARBERO, 1997, p.292). Levando em conta essa realidade, bem como as propostas para o estudo da mídia - sempre em determinada circunstância histórica; em determinado contexto de produção e distribuição da cultura; e, onde é feita a análise do próprio texto vinculando-o ao processo de recepção pelo público, que também ocupa um certo lugar de enunciação – é importante atentar para alguns aspectos críticos e políticos da questão. Isso, segundo Cruz (2006, p.66), implica em considerar dentro de uma contextualização sócio histórica, diversos momentos de construção de cultura e também, investigar “de que forma a mídia produz a informação”, o que pressupõe articulações de cunho interno e externo, regras, aspectos técnicos e visões de mundo; de que forma o texto é construído; e, como esse produto chegará depois ao âmbito da recepção produzindo diversos usos e desdobramentos Martín-Barbero (1995, p.55) reforça esse argumento ao afirmar: Eu não poderia compreender o que faz o receptor, sem levar em conta a economia de produção, a maneira como a produção se organiza e se programa, como e por que pesquisar as expectativas do receptor [...] eu não tenho nenhuma receita, mas ao menos sei o que não quero. Eu não gostaria que o estudo de recepção viesse a nos afastar dos problemas nucleares que ligam recepção com as estruturas e as condições de produção. Nas análises dos processos de produção e recepção é importante atentar ainda para as relações de poder envolvidas, 106 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social sejam elas em nível micro - mais restritas, ligadas aos próprios ambientes de produção e recepção; ou em nível macro - referentes à estruturação geral da sociedade; sempre dentro de um contexto histórico (LOPES et al., 2002). No que tange à recepção, em especial ao contexto de fala dos receptores, assume grande importância à verificação das condições em que a produção de sentido está sendo constituída (MARTÍNBARBERO, 1997). Essas “posições de enunciação” (HALL, 2003, p.68) delineadas são sempre individuais e se baseiam em um contexto particular, e ao mesmo tempo público, ou seja, referem-se à identidade cultural de cada um, a qual consiste em um processo histórico de construção que interage todo o tempo com o campo social (CRUZ, 2006). Esse complexo contexto que engloba as condições de produção de sentido, segundo reforça Cruz (2006), consiste nas mediações. Essas, por sua vez, estão ligadas as diferentes formas de apropriação dos públicos, produtores e receptores, em relação as mensagens e a construção de sentido a elas vinculada. Para o autor, portanto, o deslocamento dos meios para os atores sociais, dentro de cenários específicos estabelecidos, constitui a complexa questão das mediações. Dessa forma, partindo da concepção das mediações, consegue-se transpor os estudos da comunicação para outro patamar. Eles são transferidos do espaço restrito dos meios para o amplo espaço da cultura e mostram que as mediações têm uma relação direta com o processo de comunicação, uma vez que esse não se estabelece de maneira linear e simétrica. A partir de então, admite-se a existência de é uma relação entre diferentes públicos mediatizada pelos contextos em que o processo de comunicação se estabelece. Esse deslocamento se dá devido a inegável aproximação dos debates em torno relação cultura e comunicação. Dentro desse recém descoberto universo, as mediações passam a ser compreendidas fundamentalmente como um conjunto de fatores Vilso Junior Santi; Adrián José Padilla Fernandez | 107 estruturantes, que organizam e reorganizam a percepção e a apropriação da realidade, por parte do agora e mais do que nunca ativo receptor. Então, se as mediações denotam um ponto que articula produção e recepção, logo, a cultura se situa também num contexto sócio histórico que é englobado pelas mediações – no contexto das movimentações da sociedade; dos movimentos sociais. Desse modo, pode-se afirmar que, deslocar o ponto central de análise dos meios de comunicação para a cultura, ou mais precisamente para as mediações, significa enxergar o sujeito receptor não apenas como decodificador, mas também, como agente produtor de sentido. Os Movimentos Sociais e o papel ativo dos sujeitos Tomamos como marcos históricos gerais para a compreensão dos movimentos sociais, os ciclos de protesto e as grandes revoluções as contribuições de Charles Tilly (1993) e para detalhar as formas de exercício de poder por esses movimentos os pressupostos de Tarrow (1997). Também ajudam nas reflexões desta seção os pressupostos de autores brasileiros como Fausto Neto (1989), Ghon (1997) e Berger (1998). De acordo com Gohn (1997, p.243) os indivíduos quando questionados sobre suas simpatias ou identificações para com alguns movimentos sociais (pela paz, reforma agrária, ecológicos) não têm dificuldade em identificá-los. “Isso porque tais pessoas atentam para - apenas – uma das dimensões dos movimentos, a do conteúdo da demanda em si. Elas veem o movimento como um todo homogêneo, a partir da imagem que suas ações projetam na sociedade”. Porém, nas ciências sociais críticas e nos estudos culturais, ao se abarcar outras dimensões como, crenças, valores, diferenças internas etc., e as práticas sociopolíticas desenvolvidas, a definição se torna mais complexa. Desse modo, a partir de algumas diferenciações elas mesmas propostas por Gohn (1997, p.245) entre 108 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social movimento e grupo de interesse, quanto ao uso ampliado da expressão movimentos sociais, entre os modos de ação coletiva e o movimento social propriamente dito e, quanto à esfera de ocorrência da ação coletiva, pode se afirmar que: “movimento social refere-se à ação dos homens na história. Esta ação envolve um fazer - por meio de um conjunto de procedimentos - e um pensar - por meio de um conjunto de ideias que motiva ou dá fundamento a ação”. Pode-se afirmar, portanto, que os movimentos sociais nascem das bases do povo e se organizam independentemente de instituições públicas e privadas e dos meios tradicionais de participação, como sindicatos e partidos políticos. Eles surgem como forma de suprir o vazio deixado por tais instituições enquanto canais institucionalizados e abrindo-se à confluência dos interesses da sociedade. As ideias movimentadas pela teoria da ação coletiva e pelo conceito ação coletiva contenciosa, nesta matriz de pensamento, constituem a base (o alicerce) para o surgimento do que se convencionou chamar depois de movimentos sociais. As ações coletivas contenciosas, conforme os autores, podem se manifestar de múltiplas formas, produzem-se no marco das instituições já estabelecidas e são promovidas por grupos (recém) constituídos que atuam em nome de objetivos comuns. Elas são utilizadas por quem carece de acesso regular as instituições, que atua em nome de reivindicações novas ou não aceitas e que podem representar ameaça aos grupos privilegiados estabelecidos (TARROW, 1997). Os movimentos sociais, nesta perspectiva, surgem quando aparecem as oportunidades políticas para intervenção de agentes sociais que normalmente carecem delas. Estes movimentos atraem a atenção por meio de repertórios conhecidos, demandas reprimidas e enfrentamentos antes amainados. Em sua base, além das insatisfações em relação a ordem estabelecida, estão as redes sociais de solidariedade e os símbolos culturais através dos quais se estruturam as relações sociais. Vilso Junior Santi; Adrián José Padilla Fernandez | 109 Conforme Tarrow (1997) o mecanismo básico disparador dos movimentos sociais relaciona: incentivos pontuais; oportunidades políticas contextuais; possibilidade de ação coletiva concreta; existência de antagonismos sociais; e, a maturação de redes sociais de solidariedade e do seu marco cultural de referência. Esse somatório, segundo o autor, configura os modos de fazer, as dinâmicas (internas e externas) e influencia até mesmo os possíveis resultados dessas movimentações da sociedade. A ação coletiva (que depende do somatório de esforços de sujeitos ativos) é o principal recurso dos movimentos sociais e com frequência o único. São estas ações em conjunto que permitem explorar as oportunidades políticas, criar identidades coletivas, agrupar os indivíduos em organizações e mobilizar essas organizações para o enfrentamento dos adversários. Segundo Tarrow (1997), a ação coletiva, portanto, não está a margem da história e da política e tem poder porque desafia oponentes, desperta solidariedade e cobra significados. Nesse debate ação coletiva, redes sociais, discursos ideológicos, privações, violências e luta política não podem ser tomados em separado, pois, são estas características que autorizam ver as propriedades básicas de qualquer movimento social. A saber: a) Desafios coletivos; b) Objetivos comuns; c) Solidariedade intrínseca; d) Capacidade de ação (TARROW, 1997). Dessa forma, para Tarrow (1997), uma definição conceitual sobre os movimentos sociais fica mais evidente quando estas movimentações da sociedade são relacionadas aos desafios coletivos invocados por um grupo de pessoas de compartilham objetivos comuns (e solidariedade) em uma interação mantida conta as elites, oponentes ou as autoridades. Segundo o autor, inclusive quando fracassam, os movimentos sociais sempre produzem efeitos de grande alcance na sociedade e põe em marcha importantes mudanças. O poder dos movimentos, portanto, se manifesta quando os cidadãos comuns (sujeitos ativos) unem forças para enfrentar as mazelas que os afetam. 110 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social Para Berger (1998, p.85): Os movimentos sociais existem em função da distribuição desigual dos bens produzidos socialmente, o que demanda um tipo de organização cujo objetivo é reivindicar. No seu interior configurase a expressão cultural da desigualdade social. A cultura dos movimentos sociais é do conflito e da solidariedade; da carência, da escassez e da falta, e é ela que subsidia a possibilidade da reunião e a capacidade de rebelião. Já conforme Fausto Neto (1989, p.14), “a expressão Movimentos Sociais designa processos dinâmicos, instáveis, de organizações e ações distanciados em relação aos aparelhos do Estado”. Assim, pode-se dizer que os movimentos sociais são formas de organização e mobilização que atuam como ligação entre os processos de reprodução social e a esfera política, constituindo-se como agentes e construtores entre os dois polos. Estes movimentos trazem em sua essência o desejo de desempenhar um papel de transformadores da sociedade. Considerações finais Realidades complexas como as latino-americanas, as brasileiras e as amazônicas, marcadas por conturbados processos e pelas lutas permanentes de movimentos sociais dos mais variados tipos, tendem a emprestar aspectos únicos aos debates sobre a relação entre Comunicação e Cultura; Estudos Culturais e Estudos de Recepção; Teoria das Mediações e Teoria da Ação Coletiva. Podemos afirmar que é pela via da multiplicidade abarcada pela referida linha teórica que as distintas formas de opressão em realidades sociais tão específicas como as nossas ficam evidentes. Os Estudos Culturais, ao vincular suas análises ás realidades históricas dos sujeitos, pela variedade de objetos que estuda e analisa e por sua interdisciplinaridade potencial, colocam no centro dos debates as conexões entre os sujeitos ativos, a cultura, a história e os Vilso Junior Santi; Adrián José Padilla Fernandez | 111 movimentos da sociedade. Deriva de suas influências Marxistas a preocupação com os processos culturais – em sintonia com as relações sociais díspares estabelecidas (entre classes, gêneros, raças etc.); a percepção de que cultura envolve poder – e com isso contribui para produzir assimetrias nas capacidades dos indivíduos e grupos sociais; e a constatação de que o cultural não é campo autônomo, nem campo determinado – mas local de diferenças e lutas sociais. Tomar a cultura como local de luta social significa credenciála como locus prioritário de análise para os movimentos sociais; como locus prioritário de análise para os movimentos da sociedade. Neste lugar, como afirma Johnson (1999), não há como ficar alheio ao trabalho político do cultural e/ou às condições culturais da política. Aí analisar as formas culturais implica analisá-las em conjunto com as formas de exercício de poder e suas possibilidades sociais. A dimensão política do cultural, por sua vez, nos autoriza a problematizar as formas históricas de consciência (ou de subjetividade); nos autoriza pensar sobre as formas subjetivas que movimentamos para sobreviver e sobre o lado subjetivo das relações sociais. Aqui tanto subjetividade quanto consciência não são dadas, mas tomadas como construídas culturalmente. Movimentos sociais são, portanto, por excelência, também movimentos culturais. São formas históricas de manifestação de consciência (e de subjetividade) e estão relacionados às possibilidades de interpretação de formações sociais mais amplas – ao inteiro (ao todo) das sociedades. Esta construção abre a possibilidade para que todas as práticas sociais possam ser examinadas a partir de um ponto de vista cultural – e, examinadas a partir do trabalho que elas fazem subjetivamente. Isso tonifica o papel dos sujeitos e abre possibilidades concretas para exercício da resistência enquanto bandeira de luta (objetiva e subjetiva). Tal perspectiva passa a admitir que um mesmo objeto cultural, dentro de cada grupo em 112 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social particular, pode se transformar em seu uso social e mudar sua significação. Conforme Kellner (2001) a cultura, portanto, aí passa a ser um terreno de disputa no qual os grupos sociais estabelecem a luta por hegemonia; no qual as relações de poder, dominação e resistência se efetivam; no qual se dá o encontro dos processos comunicacionais para com os movimentos sociais – aos moldes do que postula Martín-Barbero (2003). É neste ponto de encontro que as mediações – as articulações entre práticas de comunicação e os movimentos sociais, suas diferentes temporalidades e pluralidade de matrizes culturais – emergem como categorias de análise. Partindo da concepção das mediações se consegue transpor de fato os estudos a outro patamar – para o amplo espaço da cultura. Esse deslocamento se dá devido a inegável pertinência da aproximação entre os debates em torno relação Cultura e Comunicação; Estudos Culturais e Estudos de Recepção; Teoria das Mediações e Teoria dos Movimentos Sociais. Dentro desse universo, as mediações passam a ser compreendidas como um conjunto de fatores estruturantes, que organizam e reorganizam a percepção e a apropriação da realidade, por parte do agora e mais do que nunca ativo receptor. Nele, a ação coletiva (que depende do somatório de esforços de sujeitos ativos) é o principal recurso para viabilizar os movimentos da sociedade (os movimentos sociais). Nele, é o poder do movimento, que se manifesta quando os cidadãos comuns (sujeitos ativos) unem forças para enfrentar as mazelas que os afetam, o que pode produzir transformações efetivas na realidade social. Referrências BERGER, Christa. Campos em confronto: a terra e o texto. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1998. CRUZ, Fábio Souza da. A Cultura da Mídia no Rio Grande do Sul: o caso MST e Jornal do Almoço. 2006. Tese. Porto Alegre: PUCRS, 2006. Vilso Junior Santi; Adrián José Padilla Fernandez | 113 ESCOSTEGUY, Ana Carolina D. Cartografia dos estudos culturais: uma versão latino-americana. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. FAUSTO NETO, Antônio. Participação comunitária no Brasil: equívocos e desvios comunicacionais. In. MELO, José Marques de (org.). Comunicação na América Latina. Campinas: Papirus, 1989. GARCÍA CANCLINI, Néstor. Consumidores e Cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995. GOHN, Maria da Glória. 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Madrid: Alianza Editorial, 1997. Capítulo 6 Pensamento comunicacional: contribuições da teoria social de Niklas Luhmann Maria Ogécia Drigo1 Primeiros passos... O nosso envolvimento com a Teoria Social de Niklas Luhman teve início durante o doutorado na PUC/SP, no Programa de PósGraduação em Comunicação e Semiótica, mais especificamente em estudos sobre Ciências Cognitivas. Uma das tendências dessas ciências, a enação, proposta por Francisco Varela, tem os seus fundamentos no conceito de autopoiese, que foi desenvolvido por Humberto Maturana e pelo próprio Francisco Varela2. Tal conceito é fundamental na teoria social mencionada. O sociólogo alemão Niklas Luhmann (1927-1998) pode ser considerado um dos autores mais importantes para as ciências sociais no século XX, principalmente pela sua grandiosa produção. No entanto, a operacionalização da sua teoria, com vistas ao desenvolvimento de novos estudos e pesquisas, ainda é um desafio. 1 Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP; pós-doutora pela ECA/USP; Docente e coordenadora do PPG em Comunicação e Cultura da Uniso e integrante de Pesquisa em Imagens Midiáticas GPIM) e vinculada à Linha de Pesquisa Análise de Processos e Produtos Midiáticos. E-mail: maria.ogecia@gmail.com. 2 Maturana e Varela trabalharam em conjunto a noção de autopoiese. As teorias que eles desenvolveram continuaram pelos caminhos de ambos, no entanto, as suas investigações tomaram rumos diferenciados. Maturana desenvolve a biologia do conhecer (teoria das bases biológicas do conhecer) e Varela passa a fazer pesquisas com as ciências cognitivas. 116 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social Orientamos dissertações de Mestrado no Programa de PósGraduação em Comunicação e Cultura, da Universidade de Sorocaba – Uniso -, fundamentadas no pensamento desse sociólogo, o qual se mostra capaz de abalar as certezas sobre o poder da subjetividade, enquanto guia para a interpretação de produtos midiáticos. Comentamos essas pesquisas em um dos itens deste texto. Tal teoria, por possibilitar o redimensionamento da relação entre comunicação e sociedade, bem como a noção de representação e da produção de sentidos, vem na contramão de teorias da comunicação bem assentadas no meio comunicacional. Entre os conceitos abordados, vale enfatizar que a ideia de pensar o papel do sujeito nos processos comunicacionais abala a visão antropocêntrica, que prima por uma noção de sujeito que introjeta sentidos em tudo o que o rodeia. Com ela, é possível redimensionar tal papel, uma vez que a produção de sentidos depende de operações engendradas pelos próprios sistemas. Vale enfatizar que tratamos de diversas tendências do pensamento comunicacional sempre com o propósito de avaliar a contribuição de cada uma delas para a compreensão de processos comunicacionais. Pois é esse propósito que guia também as reflexões que seguem. Não estamos sugerindo que tal teoria seria a mais pertinente para desempenhar tal tarefa. Contudo, trata-se de mais uma possibilidade que merece ser estudada. Outro aspecto que devemos ressaltar é que, nessas nossas reflexões, não damos conta da teoria, no entanto, com elas lançamos o desafio de explorar tal teoria e comprovar seu alcance. Sobre o pensamento comunicacional e seus modelos As teorias das comunicações de massa, segundo Wolf (2005), hipodérmica, abordagem empírico-experimental, que deriva de pesquisa de campo, a teoria funcionalista, teoria crítica dos meios de comunicação de massa, estudos culturais, apresentam diferentes Maria Ogécia Drigo | 117 concepções sobre a relação dos meios de comunicação, ou as mídias, com o contexto social. No contexto dessas reflexões, mídias - plural da palavra mídia -, designa os meios de comunicação e de notícias em geral, bem como os meios publicitários e, atualmente, o surgimento de equipamentos técnicos constitui novas mídias - que instauram novos processos de comunicação de massa, tais como a multiplicação de canais de televisão a cabo, jogos eletrônicos o outros, e, finalmente, com a emergência da comunicação planetária, mídias designa também os processos de comunicação vinculados ao computador. De certo modo, tais tendências mostram que os meios de comunicação interferem nas ações dos usuários, quer seja persuadindo, manipulando ou os influenciando, ou ainda, poderia também contribuir para a integração destes ao meio social, bem como construir novos modos de relacionamento com potencial para transformar a cultura, de onde vêm os termos cultura das mídias, cultura da convergência e outros. Essas tendências se sustentam em modelos que, via de regra, acompanhando Wolf (2005). Encontramos cinco modelos. O primeiro, no qual se sustenta a teoria hipodérmica, foi tomado da psicologia behaviorista, a unidade estímulo/resposta (E R). Como esclarece o mesmo autor, tal modelo mostra que há um vínculo direto entre a exposição à mensagem e o comportamento de uma pessoa que é atingida pela propaganda, que pode ser controlada, induzida a agir de determinadas maneiras. As pesquisas posteriores ao predomínio desta concepção sempre tentaram modificar se não total, ao menos parcialmente, tal modelo. A superação e a inversão da teoria hipodérmica, segundo Wolf (2005), se deu ao longo de três diretrizes distintas: a primeira, a que estudava os fenômenos psicológicos individuais; a segunda, a que buscava explicitar a relação indivíduo/meio de comunicação e a terceira, a que buscava formular hipóteses sobre a relação indivíduo/sociedade/meios de comunicação de massa. Esses estudos estão contemplados na abordagem empírico-experimental, 118 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social ou “da persuasão”, na abordagem empírica em campo, ou “dos efeitos limitados”, bem como na teoria funcionalista dos meios de comunicação de massa. O diagrama (Fig.1) mostra a variação introduzida no modelo anterior, para atender as transformações anunciadas, o segundo modelo. Figura 1- Uma variante para o modelo E R Processos psicológicos envolvidos Fonte: Wolf (2005). Causa (estímulo) Efeito (resposta) Este modelo sugere que a persuasão dos destinatários é possível, se a forma e a organização da mensagem se adequarem aos fatores pessoais do indivíduo, que podem ser ativadas quando da interpretação da mensagem. Assim, há variação dos efeitos, uma vez que há diferenças individuais. À medida que novas tendências se instauram, outros três modelos se tornam proeminentes: o modelo de comunicação da teoria da informação, o semiótico-informativo e o semiótico textual. O modelo advindo da teoria da informação, terceiro modelo, está apresentado no diagrama (Fig. 2). Figura 2 – Sistema geral da comunicação Fonte de informação mensagem Destinatário sinal Sinal recebido receptor transmissor Fonte de ruído mensagem Maria Ogécia Drigo | 119 Fonte: Elaborado pela autora a partir do modelo de Shannon-Weaver, de 1949, como consta em Wolf (2005, p. 109) Neste modelo, o processo de comunicação envolve uma fonte – a nascente da informação -, de onde é emitido um sinal por meio de um aparelho transmissor e tal sinal viaja por um canal, que pode ser perturbado por ruídos. Ao sair do canal chega ao receptor, que o converte numa mensagem e como tal é compreendida pelo destinatário. Este é o esquema do sistema geral de comunicação, proposto por Shanon-Weaver, que em versões diversas e com pequenas variações terminológicas, sempre esteve presente. Tal esquema é adequado para processos de comunicação entre máquinas, entre dois seres humanos ou entre uma máquina e um ser humano. Wolf (2005, p. 110), menciona, valendo-se de definições de Eco, que o código é como um sistema de regras onde os sinais recebem determinados valores. O código que interessa à teoria da informação é o que serve para reduzir o equiprobabilismo inicial da fonte, estabelecendo um sistema de recorrências. Trata-se, portanto, de um sistema organizador, que não contempla na própria competência o problema do significado da mensagem, dimensão mais específica da comunicação. O significado é irrelevante para uma teoria da comunicação. A informação é uma medida estatística de equiprobabilismo dos acontecimentos na fonte. Mesmo com as mudanças pelas quais passou o conceito de código, caminhando da sintaxe interna da sequência de sinais para a correlação entre elementos de sistemas diversos, a problemática envolvendo a significação persistiu. Mas, mesmo assim, Wolf (2005) explica mencionando Eco, que embora todo processo de comunicação entre seres humanos pressuponha a significação como condição necessária, o modelo persistiu. São três os motivos que garantiram a permanência deste modelo. O primeiro deles deve-se ao fato de que Jakobson empreendeu uma integração e um caminho paralelo entre a 120 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social linguística e a teoria matemática. Ao generalizar a teoria da informação, a leitura jakobsoniana exibe um modelo de comunicação que visa o modo como a informação se propaga segundo um código comum e uniforme. A atividade de comunicação é representada como transmissão de um conteúdo semântico fixo entre dois polos definidos e encarregados de codificar e decodificar o conteúdo, por meio de um código fixo. O segundo motivo foi o fato de que os efeitos também foram contemplados. Sim, pois tanto as teorias que englobavam os aspectos psicológicos do receptor como as experimentais que tratavam dos fatores seletivos da audiência e da estrutura mais eficiente das mensagens persuasivas valeram-se do conceito de ruído, que dificultava o processo de transmissão. O terceiro, que pode explicar a permanência de tal modelo está vinculado à teoria crítica e as dela derivadas, que levaram a problemática específica da comunicação para um segundo plano. Sim, pois a indústria cultural esgota em si e predetermina estruturalmente qualquer dinâmica da comunicação, estabelecida pela lógica da reprodução social. Os três motivos mencionados, de acordo com Wolf (2005), fizeram com que o abandono da teoria da informação fosse um processo lento, que foi agravado por dois aspectos moderadores: o primeiro, por trazer avanços metodológicos, notadamente quanto à análise de conteúdo, uma vez que os processos de comunicação eram centrados no processo emissor, o que era funcional para a necessidade operativa de se trabalhar com muitas mensagens. O segundo, o problema das metodologias não darem conta da questão da significação na relação destinador/destinatário, até pela necessidade de se examinar vastas amostras, o que representa desvantagem. Outros modelos - o semiótico-informativo e o semiótico textual - vieram em seguida. O semiótico-informativo, longe de ter nascido em assentimento ao modelo original, veio da crítica à sua inoperância em processos de comunicação humana. A teoria da informação elabora explicitamente a análise das melhores condições Maria Ogécia Drigo | 121 de transmissibilidade das mensagens, enquanto no novo modelo, os efeitos e as funções sociais da mídia não deixam de ser avaliados, considerando-se o mecanismo de reconhecimento e de atribuição de sentidos. Ao enfatizar a necessidade de tratamento da questão da significação ou produção de sentido, Umberto Eco propôs que uma teoria da comunicação mais abrangente só se encontraria em uma teoria semiótica geral. O quarto modelo, o semiótico-informativo, pode ser observado no diagrama abaixo (Figura 3). Neste modelo, “entre a mensagem entendida como forma significante que veicula certo significado, abre-se um espaço heterogêneo e articulado” (WOLF, 2005, p.121). Figura 3 – Modelo semiótico-informativo baseado no modelo de EcoFabbri (fonte) emissor código código subcódigo Mensagem emitida como significante que veicula um determinado significado canal Mensagem recebida como significante destinatário Mensagem recebida como significado código subcódigo Fonte: Wolf (2005, p. 121). O modelo apresenta a possibilidade de se estabelecer processos de negociação, o que é característico dos processos de comunicação. No entanto, permanece no âmbito da análise das mensagens, dos seus códigos, da estrutura da comunicação. Sendo 122 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social assim, esse modelo, tanto como o semiótico-textual, o quinto modelo, foram marginalizados. Este último modelo possibilita a apreensão do modo como, pela mediação da cultura, os dados sociológicos dos aparelhos dos meios de comunicação de massa (fluxo unidirecional, centralização, formatos rígidos etc.) se transformam em mecanismos comunicativos que incidem sobre processos de interpretação, aquisição de conhecimentos e sobre os efeitos desses meios. Portanto, neste modelo não está mais em primeiro plano a relação codificação-decodificação, mecanismo comum tanto à comunicação interpessoal como a comunicação de massa, mas sim a descrição, em termos semióticos, de alguns traços específicos da comunicação de massa. A relação de comunicação é construída em torno de conjuntos de práticas textuais. Wolf (2005) menciona os conceitos de cultura gramaticalizada e cultura textualizada de Lotman e Uspenskij. Na comunicação de massa provavelmente entra “em ação uma competência textual orientada para o valor (o êxito) dos precedentes, para “receitas” e “fórmulas” organizadas. Assim, [...]a orientação para o texto já fruído ou já produzido é, portanto, um critério de comunicação “forte”, vinculativo” (WOLF, 2005, p. 126). Com tal modelo foram redimensionados o papel das mediações culturais, que permitem a circulação de práticas textuais, bem como o do destinatário, inserido na relação destinador/destinatário vinculada à estrutura textual e nela incluída, que pode ser estudada pela semiótica e análise do discurso. O modelo de comunicação de origem informativa entrou em crise devido à presença de quadros gerais de referência, mais amplos do que o do administrativo, também por causa da esterilidade da pesquisa empírica e da presença de abordagens diferenciadas do conceito de comunicação, entre outros motivos. Os modelos apresentados, de modo geral, tem como um elemento comum, a questão da transmissão de mensagens. Deste modo, eles não seriam operantes na Teoria Social de Luhmann. Maria Ogécia Drigo | 123 Para Miège (2000), a comunicação tem um caráter interdisciplinar, aspecto que a teoria mencionada traz à tona também, uma vez que, para Luhmann (2009), os impulsos intelectuais mais fascinantes que permitem entender a sociedade moderna surgiram fora do campo da sociologia, na biologia. Outro conceito que permeia as diversas tendências do pensamento comunicacional é a noção de representação, que é abandonada nesta teoria social. Para Sfez (2007), a noção de representação delineia concepções distintas de comunicação. Ele identifica três visões de mundo atreladas à representação com as metáforas: máquina, organismo e tautismo e classifica a comunicação, respectivamente, em representativa, expressiva e confusional. As palavras norteadoras dessas três modalidades de comunicação, na mesma ordem, são representar, expressar e confundir. A Teoria Social de Luhmann prescinde a noção de representação. Assim, por ser interdisciplinar, por possibilitar o redimensionamento da relação entre comunicação e sociedade, bem como da noção de representação, estas reflexões têm como propósito - ao tomar como corpus a Teoria Social de Niklas Luhmann- avaliar a pertinência desta para a compreensão de processos comunicacionais. Para tanto, revisitamos o conceito de autopoiese, apresentamos alguns aspectos da teoria mencionada com ênfase nas operações de autorreferência e heterorreferência, seguidos de exemplos com os sistemas das marcas e da moda. Seria interessante também verificar se tais teorias fundamentam pesquisas da área de Comunicação. Ao empreender uma busca, no Banco de Dissertações e Teses da Capes, online, em 04/06/18, guiada pela palavra-chave Niklas Luhmann, encontramos, no período 1990-2018, 332 trabalhos, sendo que 80% deles enquadram-se na Área de Ciências Sociais Aplicadas. Deste percentual, 5% pertencem à Comunicação. Do ano de 1990 a 2017, a quantidade de pesquisas anuais, considerando-se os resultados dessa busca, cresceu de uma para trinta e duas, sendo que a média 124 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social no último triênio – 2015/2017 - foi de 35 pesquisas. Ao realizar outra busca, no mesmo banco, guiada pela palavra-chave autopoiese, o resultado foi 214 dissertações ou teses, sendo que 45% dessas pesquisas enquadram-se na Área Ciências Sociais Aplicadas. Desse percentual, 9% são da Comunicação. Do ano de 1990 até 2017, também houve um crescimento da quantidade de pesquisas que, de algum modo, envolvem o conceito de autopoiese, passando de uma para dezesseis. É notório o interesse pelas teorias desse sociólogo, que vale conferir. Iniciamos as nossas reflexões com o conceito de autopiese. Sobre autopoiese O artigo intitulado Neirophysiology of cognition, escrito por Maturana, em 1963, foi o marco inicial na elaboração do conceito de autopoiese, que é apresentado no livro Autopoiese: the organization of living systems, publicado pelos dois biólogos. No prefácio da segunda edição dessa obra, os mesmos autores elaboraram extensos prefácios com reflexões sobre alcances e limites de tal conceito. As investigações dos biólogos partiram do pressuposto de que os seres vivos eram autônomos, contra a visão organicista, que então predominava, a de que os seres vivos são sistemas abertos e que processam energia. A existência de um ser vivo estabelece dois domínios, segundo Maturana (1997, p. 13), “a) o domínio do seu operar como totalidade em seu espaço de interações como tal totalidade, e b) o domínio do operar de seus componentes em sua composição, sem fazer referência à totalidade que constituem, e que é onde se constitui, de fato, o ser vivo como sistema vivente”. Com isso, os autores passaram a tratar o sistema vivo por meio da sua organização, ou seja, guiados pelas relações que o sistema estabelece entre seus componentes e não tomando a sua função e a sua finalidade. Nas palavras de Maturana (1997, p. 15): Maria Ogécia Drigo | 125 É a esta rede de produções de componentes, que resulta fechada sobre si mesma, porque os componentes que produz a constituem ao gerar as próprias dinâmicas de produções que a produziu ao determinar sua extensão como um ente circunscrito, através do qual existe um contínuo fluxo de elementos que se fazem e deixam de ser componentes segundo participam ou deixam de participar nessa rede, o que denominamos (...) autopoiese. Maturana (1997), que concebeu o termo autopoiese para caracterizar a dinâmica constitutiva dos seres vivos, esclarece que tal termo é a combinação do radical grego poiesis, que significa fazer, criar, compor, com o prefixo auto, que quer dizer “por si mesmo”. Assim, tal termo traduz a ideia de algo que se produz por si mesmo. Segundo Varela (1997), a autopoiese emergiu quando se tentava compreender a noção de circularidade no modo de operar dos sistemas nervoso e imunológico. O sistema nervoso é autopoiético, porque as mudanças na sua organização se dão devido às mudanças das propriedades dos seus componentes, os neurônios. Eles constituem uma rede fechada, mas uma rede em que a mudança de alguns neurônios conduz a mudanças nas atividades de outros, por meio de efeito sináptico ou por meio da ação de algum agente físico ou químico. As mudanças no sistema nervoso afetam o organismo, isto porque há um acoplamento entre o sistema nervoso e o organismo. A circularidade operada com a autopoiese pode ser a base para uma organização autônoma, que se dá com a clausura operacional, onde clausura não é sinônimo de fechamento ou ausência de interação. A noção de perturbação no acoplamento estrutural traduziria essa interação. Varela (1997) esclarece que uma das críticas feitas às suas teorias3 reporta-se à noção de representação, que foi substituída pela noção de perturbação da clausura operacional, interpretada pelo organismo em nível celular, 3 Varela, F. Principles of biological autonomy. New York: North-Holland, 1979. 126 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social imunológico ou neuronal. Ele admite que tal noção não incorpora a história de interações do ser vivo com o meio externo4. Sobre tal interação, Maturana (1977, p. 27) explica que a cor dos objetos não é dada pela luz que chega a partir destes, mas que “a experiência de uma cor corresponde a uma configuração específica de estados do sistema nervoso, determinados por sua estrutura”, ou seja, a percepção da cor está vinculada a uma estrutura interna do cérebro e do sistema nervoso. As tentativas de propor sistemas autopoiéticos para além do domínio molecular são criticadas por Maturana. Em relação à Teria Social de Niklas Luhmann, Maturana (1997, p. 20), adverte: “Também não o são, ou poderiam sê-lo, em um espaço das comunicações, como propõe o distinguido sociólogo Niklas Luhmann, porque em tal espaço os componentes de qualquer sistema seriam comunicações, não seres vivos”. Conforme Varela (1997), a utilização metonímica tomou força na sociologia, com as ideias do sociólogo mencionado. No entanto, ele considera tal tentativa um abuso de linguagem, pois com tal uso, a rede de processos transforma-se em ações entre pessoas e a membrana celular torna-se fronteira entre agrupamentos humanos. Contudo, ele defende o uso do conceito, pois com ele pode-se conceber que os seres vivos possuem capacidade interpretativa desde sua origem. Com isso, a noção de representação pode ser descartada. 4 O paradigma enativo, proposto por Varela, em suas pesquisas em ciências cognitivas, com o qual tenta superar as dificuldades impostas pela noção de perturbação da clausura operacional, concebe que o mundo emerge a partir da ação dos agentes cognitivos, num processo de codeterminação realizado pelo aparelho sensório-motor do agente. Nessa concepção, o ser vivo é autônomo e à medida que faz parte do mundo é por ele especificado, de onde vem a possibilidade de conhecimento, que não se dá, portanto, por aprendizagem. A ação que faz emergir um mundo à medida que o agente se torna parte dele é denominada enacción. Vale lembrar que os caminhos de Maturana e Varela se cruzaram em dois momentos, nos quais trabalharam em conjunto a noção de autopoiese. As ideias não se separaram totalmente, permaneceram espalhadas pelos caminhos de ambos, no entanto, as suas investigações tomaram rumos diferenciados. Maturana se envolve com a biologia do conhecer (teoria das bases biológicas do conhecer) e Varela passou a se dedicar às ciências cognitivas. Maria Ogécia Drigo | 127 Luhmann (2009, p.123) menciona que não procede a crítica feita ao modo como utilizou o conceito. Segundo ele, Maturana resiste à aplicação do conceito à comunicação, pois este permitiria mostrar que ela se dá sem a presença do ser humano, ou seja, com ele a comunicação produz suas próprias diferenças e não necessita de outros âmbitos da realidade, como o físico, o químico, ou orgânico, para se explicar. Para Varela (1997), em linhas gerais, a autopoiese caracteriza a autonomia do vivo; descreve a organização do vivo como configuração; explica a constituição da identidade como entidade material; descreve o processo de constituição de identidade como circular, ou seja, como uma rede de produções metabólicas que produz a membrana que a sustenta; a interação da identidade autopoiética é vista não somente em termos físico-químicos, mas como unidade organizada e, por último, torna possível a evolução por meio de séries reprodutivas que podem sofrer transformações estruturais, mas mantêm a identidade. Tais especificidades condensam conceitos que estão no centro das preocupações da neurobiologia, da biologia evolutiva, das ciências cognitivas e da inteligência artificial, bem como das ciências sociais e da comunicação -, sendo que nos importa entre esses conceitos, de modo especial, o fenômeno interpretativo. O “fenômeno interpretativo é uma chave central de todos os fenômenos cognitivos naturais, incluindo a vida social. O significado surge em referência a uma identidade bem definida, e não se explica por uma captação de informação a partir do exterior.” (MATURANA, 1997, p. 48). O conceito de autopoiese permeia a Teoria Social de Luhmann que, a seguir, explicitamos de modo breve. Sobre a Teoria Social de Niklas Luhmann Os estudos da sociologia com Karl Marx, Max Weber, Georg Simmel ou com Durkheim sempre tiveram um alcance médio no campo da pesquisa empírica e não há, na sociologia, conforme 128 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social Luhmann (2009, p. 35), “uma descrição teórica coerente sobre a situação dos problemas da sociedade contemporânea”. A Teoria Social, que parte da Teoria Geral dos Sistemas, de Heinz von Foerster, e substitui a noção de aberto/fechado, que explica as trocas do sistema com o ambiente em que ele está inserido, pelo conceito de autopoiese, viria preencher tal lacuna. Para inteirar-se do conceito de sistema e dos parâmetros sistêmicos, vale ver Santaella e Vieira (2008). Com tal conceito, o de autopoiese, pode-se considerar que a operação básica dos sistemas sociais é a comunicação, a qual se reproduz por meio de comunicações. Só há comunicação nos sistemas sociais e é certamente esse fechamento o responsável pela autonomia dos mesmos. Deste modo, embora a autopoiese possa ser traduzida pela autonomia, ela não elimina a importância do ambiente e, consequentemente, das trocas com o ambiente. O acoplamento estrutural estabelece que um sistema social funciona devido à presença de outros. Para Luhmann (2009), se os sistemas têm capacidade de elaborar internamente um modelo do seu meio e uma identidade própria, ou seja, são autopoiéticos, então, eles também têm capacidade de estabelecer o que é sentido, internamente. Isto leva à redução da complexidade do meio e da contingência interna, o que contribui para a permanência do sistema. Há duas operações que produzem sentidos: autorreferência e heterorreferência. Segundo Luhmann (2009, p. 97-8), a operação que descreve a manobra operativa da autorreferência e da heterorreferência revela a existência de uma esfera específica da realidade: o sentido. Nas palavras de Luhmann (2009, p. 93): Na comunicação deve-se falar sobre algo, ou seja, um tema deve ser abordado. Mas, aquele que fala pode se converter, ele mesmo, em tema. Como se vê, a comunicação tem a especificidade de poder articular-se, indistintamente, ao ato de comunicar ou à informação: o próximo passo da comunicação poderia continuar o mesmo, em referência ao ato de comunicar ou à informação: Daí Maria Ogécia Drigo | 129 que na própria operação da comunicação esteja incorporada a autorreferência (referência à informação), bem como a heterorreferência (referência ao ato de comunicar)5. Acrescenta o sociólogo que a comunicação permanece sempre como a comunicação interior, pois ela não abandona o sistema, ou seja, as conexões são realizadas dentro do próprio sistema. Os sistemas processam quase que simultaneamente duas operações: a autorreferência e a heterorreferência, as quais estabelecem as diferenças entre sistema e meio. Tratamos dessas operações com exemplos em outro item. Outro conceito interessante é o de observador que, segundo Luhmann (2009), envolve o binômio observar/observador. Observar é uma operação e o observador é um sistema que utiliza a operação de observação para obter uma diferença em relação ao meio. A operação só se realiza como um acontecimento instantâneo, fugaz, que necessita de tempo para poder conectar a operação de observação ao objetivo de obter a diferença em relação ao meio. Nesse aspecto, tal binômio implica que o observador observa operações e que ele próprio é uma operação, pois caso contrário, não poderia observar. Assim sendo, o observador é um sistema que pode se observar e também observar outros sistemas. “A hipótese teórica do observador pretende, por um lado, situar-se em uma posição distinta em relação à prevalência da consciência e, por outro lado, à teoria do sujeito”. (LUHMANN, 2009, p.167). O recurso de situar a produção de sentidos no observador pode ter aspecto de plausibilidade, pois o observador pode compreender se a observação está baseada em uma heterorreferência, ou se constitui uma observação de si mesma, a autorreferência. Segundo Luhmann (2009), as pessoas acreditam que se relacionam, que se comunicam, o que requer esforços para explicar os problemas que ocorrem entre os sistemas psíquicos e sociais. As 5 Grifos do autor, Niklas Luhmann. 130 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social relações entre esses sistemas ocorrem com a interpenetração e com o acoplamento estrutural. A interpenetração implica que um sistema deve pressupor que o meio garanta as relações sem que isto interfira nas suas operações internas. A relação entre consciência e comunicação parece depender do fato de que a consciência esteja presente e preste atenção à comunicação. Mas não é isto que ocorre. A comunicação não precisa chamar a atenção da consciência, pois ela pressupõe a consciência. Consciência e comunicação tornam-se possíveis, com suas respectivas complexidades. O conceito de interpenetração refere-se precisamente à complexidade desta manifestação. Nas palavras de Luhmann (2009, p. 275): Somente a consciência pode ter capacidade de percepção e dar-se conta do que acontece no mundo. Em contrapartida, a comunicação não pode perceber: ela transcorre, em certa medida, na obscuridade e no silêncio. Dado que é a consciência que percebe, pode-se decidir, em determinado momento, utilizar energia motora para falar ou escrever. A comunicação em si mesma não pode ver, ouvir ou sentir: ela não tem nenhuma capacidade de percepção. O acoplamento estrutural, conforme Luhmann (2009), embora se aproxime do conceito de interpenetração, é estabelecido sob a perspectiva de um observador externo e responde à questão da relação do sistema com o meio. Tal conceito pode substituir a teoria do sujeito, pois permite pressupor uma operação, sem necessidade de atribuí-la a um portador. Com a noção de sujeito, em contrapartida, pensa-se na preexistência de um sujeito transcendental, que todo mundo sabe que existe como consciência e, assim, não há como, ao se efetuar uma operação, perguntar quem a realizou, bem como não se sentir obrigada a considerar que quem comunica é o homem. A noção de acoplamento estrutural, conforme Luhmann (2009, p. 278), “leva a abandonar a metáfora clássica, segundo a qual a comunicação é uma espécie de transferência de conteúdos Maria Ogécia Drigo | 131 semânticos de um sistema psíquico que já possui internamente a outro sistema”. Mas, qual seria então o papel da consciência na comunicação? Nas palavras de Luhmann (2009, p. 279): A consciência provê irritação à comunicação. Os acoplamentos estruturais não produzem operações, mas somente irritações (surpresas, decepções, perturbações) no sistema. O único fator de irritação da comunicação é a consciência. E exatamente devido a esse efeito de incluir e eliminar do acoplamento estrutural, a comunicação pode aumentar sua capacidade de irritabilidade graças apenas a procedimentos de consciência. Diferentemente dos sistemas de consciência, que podem ser modificados pela percepção sensorial, a comunicação só pode ser transformada através da consciência. Luhmann (2009) esclarece que a comunicação praticamente não pode ignorar o que acontece na consciência, desde que isso possa ser expresso. Ela está de acordo com a consciência, no sentido de dedicar-se exclusividade aos fenômenos psíquicos, ao mesmo tempo em que a consciência está acoplada à comunicação no sentido de estar aberta àquilo que principalmente possa adquirir forma de comunicação. Sendo assim, o homem não se comunica, somente a comunicação faz isso. Mas, como a consciência e a comunicação estão acopladas estruturalmente? Segundo Luhmann (2009), tal acoplamento se dá através da linguagem, que pode ser empregada como consciência e como comunicação, bem como mantêm separadas as operações respectivas. As contribuições das semióticas, a de Saussure e de Peirce, são mencionadas por Luhmann (2009). Explica o sociólogo que tais semióticas renunciaram à antiga distinção entre verbal e não verbal em detrimento da relação significante/significado, que se reproduz na ação do signo. Nelas, as diferenças são diferenças entre signos, produzidas pela linguagem, que podem ser usadas operativamente. Adverte ainda que não é possível precisar a que o desenvolvimento da teoria da linguagem pode levar. Contudo, a linguística não deveria prescindir do conceito de acoplamento estrutural, dos efeitos de 132 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social inclusão/eliminação e, principalmente, do fenômeno de aumento do potencial de complexidade que se realiza mediante a linguagem. Retomamos agora a questão da comunicação para enfatizar que a metáfora da transferência, utilizada para explicar a comunicação, perde o seu reinado. Conforme Luhmann (2009), a ideia de transferência nos leva a compreender que nos desfazemos de algo. O autor dá como exemplo uma transação econômica, onde um pagamento implica em desfazer-se de certa quantia de dinheiro e enfatiza que, no cotidiano, constatamos o quanto a comunicação é uma sucessão de efeitos multiplicadores. Outra objeção à metáfora, segundo Luhmann (2009), é a de que ela pressupõe simultaneidade. A comunicação oral, por exemplo, por se dar em um espaço delimitado pelas presenças individuais, torna-se dependente do presente. Contudo, o advento da escrita rompe com essa concepção espacial, pois ela determina uma organização totalmente nova da temporalidade da operação comunicacional. A escrita também acontece no presente e simultaneamente, no entanto, constrói uma presença diferenciada no tempo, propiciando a ilusão da simultaneidade do não simultâneo. A metáfora da transmissão implica também no ato de compartilhar. Conforme Luhmann (2009, p. 297): [...] o ato de partilhar a comunicação não é mais do que uma proposta de seleção, de sugestão. Somente quando se retoma essa sugestão e se processa o estímulo é que gera a comunicação. Além disso, a referida metáfora exagera a identidade do que se transmite. Ao recorrer a ela, seduz-nos a ideia de que a informação transmitida é a mesma para o emissor e para o receptor. A metáfora da transmissão sugere que a comunicação é um processo unicamente de dois algarismos, de duas seleções, na qual o emissor participa algo ao receptor. No entanto, esta crítica exige algo que possa substituir a metáfora da transferência. Sendo assim, propõe que a comunicação é “um estado de coisas sui generis” [...] que envolve “uma síntese de três diferentes seleções: a) a seleção da informação; b) a seleção do Maria Ogécia Drigo | 133 ato de comunicar; e c) a seleção realizada no ato de entender (ou não entender) a informação e o ato de comunicar” (LUHMANN, 2009, p. 297, grifo do autor). A comunicação só se dá se as três etapas ocorrerem e implicarem na compreensão da diferença entre informação e o ato de comunicar. Luhmann (2009, p. 298) esclarece que: Entender não é nunca somente a duplicação na consciência daquilo que alguém comunicou, mas também a ocasião para que a autopoiesis do sistema se realize. Sem que importe o que cada um entende de consciência (que é autopoiética fechada), o sistema de comunicação elabora seu próprio entendimento e sua própria incompreensão; e, para tanto, o sistema cria seu próprio processo de observação e autocontrole. Assim sendo, é possível comunicar sobre o entendido, o mal entendido, o não compreendido, mas sob a especificação da autopoiese, não conforme o que cada um dos participantes pensa ou deseja. Deste modo, com a comunicação não se obtém consenso, mas uma bifurcação da realidade. Quem chega a entender a comunicação, considera tal entendimento necessariamente como premissa para rechaçá-la, ou para fazer a próxima comunicação e assim sucessivamente. A comunicação está, portanto, aberta ao sim e ao não. Retomamos, a seguir, as operações de autorreferência e heterorreferência, via exemplos, para concluir as nossas reflexões. Retomando a autorreferência e a heterorreferência Vejamos, inicialmente, como se dá a heterorreferência no sistema das marcas. Segundo Drigo e Gonzaga (2014), o sistema das marcas constitui-se com agregados – ou componentes - abstratos e concretos. O projeto da marca, que inclui especificidades da identidade e de suas expressões, é um agregado abstrato. Os símbolos, as peças publicitárias, as embalagens dos produtos e os próprios produtos, manifestações da marca, são agregados concretos. 134 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social As associações empreendidas pelas marcas, segundo Aaker (1998; 2008), constroem uma lógica interna, ou instaura o fechamento operacional, que na perspectiva do pensamento luhmanianno, implica numa dinâmica que diferencia o sistema das marcas do meio em que ele está inserido e, ao mesmo tempo, tornao autônomo. Mas, a permanência deste sistema depende de acoplamentos estruturais. No caso da marca “Itaú”, isto é assegurado pela publicidade e pelo tema “sustentabilidade”, por exemplo. Tal percurso pode ser visto em São Leandro (2015), que explica como a Instituição Financeira Itaú trata o tema da sustentabilidade, contemplando suas três dimensões: econômica, social e ambiental. Ao percorrer as análises realizadas pela mesma autora, constata-se como o tema, segundo as teorias de Luhmann, com as operações próprias do sistema das marcas, via publicidade, transforma-se em informações para a sociedade, bem como para o próprio sistema, a ponto de a marca ter a sustentabilidade acoplada ao seu símbolo (Fig. 1). Figura 1 - A sustentabilidade no símbolo da marca Fonte: São Leandro (2015, p. 88). Mas, a publicidade entendida como meio de comunicação, não se caracteriza como tal por transportar informação dos que sabem àqueles que não sabem. Ela é um meio à medida que disponibiliza um saber de fundo e continua sempre a desenvolvê-lo. No caso da Maria Ogécia Drigo | 135 marca “Itaú”, valores atrelados à sustentabilidade que, em alguma medida, permeiam o meio, são disponibilizados, via publicidade, Outro exemplo, no sistema da moda, vem com Jara e Drigo (2017), que o consideram como um sistema autopoiético e por meio da análise de trajes exibidos no desfile The Horn of Plenty, OutonoInverno, 2009-2010, de Alexander McQueen, esclarecem como as operações, a autorreferência e a heterorreferência, são postas em movimento neste sistema. A autorreferência manifesta-se com a retomada de aspectos de criações de Paco Rabanne, Coco Chanel, Christian Dior, estilistas renomados no universo da moda. Com isso, a moda refere-se exclusivamente a si própria, para garantir a sua autonomia e reforçar a memória. Com o tema – arte, mais especificamente valendo-se das obras de Escher – dá-se a heterorreferência. Das análises observa-se que o que vêm do ambiente passa a ser operado, via lógica do sistema, no caso, com a tradução intersemiótica. O sistema da moda acopla-se, no caso, à arte, o que faz com que ela amplie o seu alcance. A heterorreferência manifesta-se com um tema que não é próprio da moda, mas o seu desenvolvimento subsequente se dará como autorreferência, seguindo as leis de comunicação da moda. Os temas, segundo Luhmann (2005, p. 31), “servem por isso ao acoplamento estrutural dos meios de comunicação com outras áreas da sociedade, e, agindo assim, eles são tão elásticos e tão diversificáveis que os meios de comunicação, fazendo uso de seus temas, podem atingir cada parte da sociedade.” A função social dos meios de comunicação, para Luhmann (2005), é manter a memória do sistema. “Para o sistema social, a memória consiste no fato de, em cada comunicação, se pode tomar como conhecidas algumas suposições determinadas sobre a realidade, sem precisar introduzilas ou justificá-las expressamente.” (LUHMANN, 2005, p. 114). O sistema das marcas, via publicidade, resgatam, reavivam valores que permeiam a sociedade, ampliando a memória e garantindo assim a sua permanência. Isto se dá pela apropriação de temas. O sucesso dos meios de comunicação na sociedade “deve-se 136 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social à imposição dos temas, independentemente se as posições tomadas são positivas ou negativas em relação às informações, às proposições de sentido, às nítidas valorizações.” (LUHMANN, 2005, p. 31). A distinção entre tema e função da comunicação está também vinculada à distinção entre heterorreferência e autorreferência. Vimos que a heterorreferência se faz com os temas, estranhos ao sistema, mas que são submetidos à sua lógica, ao seu modo de operar. Em relação à autorreferência, Luhmann (2005, p. 32) explica: Um observador [...] pode distinguir entre temas e funções6 da comunicação. Ele pode, por exemplo, dizer a si mesmo e aos outros: se não dermos esta ou aquela notícia, se nós cancelarmos a meteorologia ou, mais recentemente, o “bioscópio”, os leitores nos abandonarão. Para isso, a comunicação precisa ser pensada como comunicação, quer dizer, as autorreferências precisam ser atualizadas. A função dos meios de comunicação consiste, em última análise, “em orquestrar a auto-observação do sistema social” (LUHMANN, 2005, p. 158), o que se faz via autorreferência, que se vale de aplicações das operações – as mesmas que possibilitam a diferenciação do sistema em relação ao meio – aos agregados do próprio sistema. Em ambos os casos, trata-se de autopoiese, ou seja, reprodução da comunicação com base nos resultados da comunicação. Com ela não há metas e um final natural estipulados. “Ou melhor, comunicações informativas são elementos autopoiéticos que servem à reprodução desses elementos” (LUHMANN, 2005, p. 139), o que caracteriza o modo construtivista de operação do sistema. 6 Grifo do autor Maria Ogécia Drigo | 137 Considerações Finais As ideias de Luhmann incitam reflexões sobre ideias presentes e persistentes no pensamento comunicacional, como a metáfora da transmissão, da comunicação como consenso, a noção de representação, a teoria do sujeito e a questão da relação da comunicação com as linguagens. Neste artigo, enfatizamos a heterorreferência e autorreferência, operações que nos fazem aderir à ideia de uma lógica interna ou a um modo de operar dos sistemas que os fazem autônomos. No que se refere aos exemplos, podemos destacar que esta teoria não garante como o observador externo – os usuários da marca Itaú, no exemplo - venham a ter algum tipo de mudança no seu modo de sentir, agir ou pensar em relação à sustentabilidade. Devido ao fechamento operacional, a teoria garante a expansão da memória do sistema das marcas, contribuindo para a sua permanência. A heterorreferência, que se dá com a apropriação do tema da sustentabilidade, amplia a possibilidade de acoplamento estrutural deste sistema firmando a sua autonomia, pois coloca em circulação a diferença entre o sistema e o meio. Em relação ao sistema da moda, podemos destacar que o acoplamento desse sistema à arte não garante a transformação da vivência do usuário em relação à arte e nem mesmo a modificação dos modos de operar deste último sistema. A autonomia do sistema da moda é reforçada, sua memória expandida, ou seja, as diferenças entre tal sistema e o meio são firmadas. A apropriação de um tema estranho ao sistema não pode ser revertida em benefício do modo de operar de outros sistemas, pois a lógica que estes engendram são outras. Assim, o referencial teórico selecionado, sob tal ponto de vista, não traz bons resultados, pois todas as operações – articulações ou estratégias – como as do universo das marcas, não garantem a sensibilização dos usuários dessa marca, ou das pessoas em geral, quanto à adesão ou à pratica de ações voltadas à sustentabilidade, nas suas três dimensões. O 138 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social usuário/intérprete pode identificar a marca em questão como uma instituição (financeira) que promove a melhoria da qualidade de vida das pessoas ao colocar em prática ações que contribuem para a preservação do meio ambiente. Os sistemas autopoiéticos – o sistema das marcas e da moda mencionados-, com a autorreferência e a heterorreferência reavivam e expandem a memória, firmam as diferenças com o meio, ou a sua autonomia e, assim, garantem a sua permanência. Referências AAKER, D. Marcas: Brand Equity gerenciando o valor. São Paulo: Negócio, 1998. AAKER, D. Construindo Marcas Fortes. Porto Alegre: Bookmam, 2008. DRIGO, M. O.; GONZAGA, M.F. A publicidade e o câncer de mama com a marca “Avon”: a heterorreferência na comunicação em foco. In: Congresso ALAIC, 2014, Lima/Peru. Anais... Lima: Pontifícia Universidade Católica do Peru. Disponível em:< http://congreso.pucp.edu.pe/alaic2014/wpcontent/uploads/2014/11/GT13-Og%C3%A9cia-Drigo-NunezGonzaga.pdf >. Acesso em: 10 maio 2018. JARA, D. A.; DRIGO, M. O. Comunicação e o sistema da moda: Autorreferência e Heterorreferência no desfile The Horn Of Plenty, por Alexander McQueen. Verso e Reverso Revista de Comunicação, São Leopoldo: Unisinos, 2017, p. 46-55. LUHMANN, N. A realidade dos meios de comunicação. São Paulo: Paulus, 2005. LUHMANN, N. Introdução à Teoria dos Sistemas. Petrópolis (RJ): Vozes, 2009. MATURANA, H. R.; VARELA, F. J. A árvore do conhecimento: as bases da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001. MIÈGE, B. O pensamento comunicacional. Petrópolis: Vozes, 2000. ROMESÍN, H. M. e GARCÍA, F. J. V. De máquinas e seres vivos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. Maria Ogécia Drigo | 139 SANTAELLA, L.; VIEIRA, J. A. Metaciência – uma proposta semiótica e sistêmica. São Paulo: Mérito, 2008. SÃO LEANDRO, R. M. V. Publicidade e sustentabilidade: a proposta do “Itaú” em foco. 2015. 98p. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura). Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba, Sorocaba, SP, 2015. SFEZ, L. A comunicação. São Paulo: Martins fontes, 2007. WOLF, M. Teorias das comunicações de massa. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Capítulo 7 A lei de responsabilidade fiscal, a aplicação da teoria da comunicação e o desafio do fortalecimento da democracia no Brasil Nelson Russo de Moraes1 A Lei de Responsabilidade Fiscal no Brasil Ao iniciar estudos e pesquisas acerca da Lei de Responsabilidade Fiscal no Brasil (Lei Complementar nº 101, de 04 de maio de 2000), os investigadores precisam atentar para origem desta legislação que se estabelece, no Brasil, como um efetivo divisor de águas para a administração pública, contudo esta se consolidara dentro de um contexto internacional de ajustamento – para além de contas – na condução dos recursos públicos, inserindo o país em um debate internacional de busca de maior legitimação da esfera de decisão política, o que vale dizer, fortalecer uma trilha de busca de soluções para o problema da crise da democracia (MORAES, 2013). Tonet (2001a); Nascimento e Debus (2002); Pinho e Sacramento (2003), em seus estudos, estabelecem a demarcação de grandes avanços na qualidade do serviço público e mesmo da 1 Doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea (UFBA). Mestre em Serviço Social (UNESP). Graduado em Administração (ITE/Bauru). Professor da Faculdade de Ciências e Engenharia/FCE e do Programa de Pós-graduação em Agronegócio e Desenvolvimento/PGAD, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Sociedade/PPGCOM, da Universidade Federal do Tocantins – UFT. Líder do Grupo de Estudos em Democracia e Gestão Social/GEDGS (UNESP). E-mail: nelsonrusso.unesp@gmail.com 142 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social administração pública de modo proporcional ao crescimento dos níveis de transparência tanto para a condução das contas públicas (possibilitando a participação mais efetiva) quanto para a publicação das prestações de contas de modo inteligível aos cidadãos. Pinho e Sacramento (2004) contribuem destacando que, no Brasil, a transparência é o cerne da Lei de Responsabilidade Fiscal, conquanto que o fortalecimento da democracia se estabelece sobre uma administração mais transparente e promotora da participação dos cidadãos nos âmbitos de sua inserção nas arenas de debate sobre políticas públicas e do controle social sobre o Estado, desdobrando daí processos de responsabilização que estruturam a accountability: [...] a transparência constitui-se no seu eixo principal, já que necessária desde a fase do planejamento é diretamente dependente dela um efetivo controle que possibilite a responsabilização, enfim, a concretização da accountability. De acordo com Baquero (2003), no Brasil, os esforços empreendidos objetivando o fortalecimento de sua democracia têm convergido para a defesa de maior participação da cidadania nos processos de decisão política e na fiscalização dos gestores públicos. (PINHO e SACRAMENTO, 2004, p.06) A legislação brasileira é bastante clara ao destacar em seu primeiro parágrafo (do artigo primeiro) a explicação da finalidade da referida Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000), que especifica o objetivo de garantir a transparência no planejamento e execução da administração pública, conforme descrito a seguir: § 1o A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar. (BRASIL, 2000) Nelson Russo de Moraes | 143 Vindo ao encontro de muitas necessidades e interesses da sociedade, a Lei de Responsabilidade Fiscal seguiu assim uma diretriz de fortalecimento da democracia por meio da melhor estruturação de marcos que levariam diretamente a melhor transparência e participação, trazendo mais eficácia e eficiência à administração pública brasileira. (MORAES, 2013). Neste sentido, a referida legislação trouxe um amplo conjunto de normativas e princípios alinhados à sustentação de uma melhor atuação dos gestores públicos. Pode-se coerentemente afirmar que a Lei de Responsabilidade Fiscal está fundamentada sobre alicerces do planejamento, controle e publicidade. Tonet (2001a) contribui que gestor público, diante da Lei de Responsabilidade Fiscal, para além de ser um cumpridor de prazos e de procedimentos previamente estabelecidos pela legislação, necessita ter conhecimentos e mesmo habilidades que possam contribuir para a formatação de uma nova maneira de administrar os bens públicos, um novo modo de fazer administração pública, mudanças que poderão trazer desgastes políticos: É preciso muito mais, é preciso conhecimentos e habilidades para, por exemplo, fazer surgir nas administrações públicas uma nova cultura, onde prevaleçam valores e crenças compatíveis com os valores postulados pela LRF, em especial o princípio da transparência; um conjunto de competências profissionais que facilitem uma adequada leitura dos cenários presente e futuro da gestão, de forma a garantir hoje e sempre ações adequadas e produtivas; uma prática centrada em vivência pessoal de situações próprias de gestão, de forma a tornar realidade os princípios da eficiência e da eficácia. (TONET, 2001a, p.19) A Lei de Responsabilidade Fiscal traz uma exigência às entrelinhas de seus artigos, que a de que a máquina administrativa seja conduzida de maneira enxuta, planejada e não apenas alinhada aos interesses políticos de seus gestores. Neste âmbito os administradores públicos passam à necessidade de estarem sempre 144 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social capacitados e bem assessorados por profissionais garantidores do cumprimento direto dos preceitos legais. Ao tratar dos princípios gerais a serem adotados pelos administradores públicos, a Lei de Responsabilidade Fiscal aumentou a importância do processo administrativo da gestão pública, fazendo com que alguns conceitos passassem a compor o cotidiano de prefeituras, governos estaduais, do distrito federal e da união. Neste interim passaram a ser termos comuns da nova administração pública: metas, limites, mecanismos de compensação, relatórios, gestão fiscal, dentre outros. (MORAES, 2013) Contudo, o aspecto mais inovador trazido pela Lei de Responsabilidade Fiscal foi a transparência nas ações de planejamento e de execução financeira, sendo esta estrutura legal de publicidade obrigatória a síntese das novas relações de participação de controle social, em outras palavras de comunicação entre o governo (que administra o Estado) e a sociedade. Nos municípios menores, a interação entre o governo e a sociedade já fazia parte da cultura local, de maneira completamente inversa aos grandes centros e metrópoles, contudo a proximidade por vezes observada nessas localidades (anteriormente à promulgação da lei) não representavam, na maioria das vezes princípios de participação ou transparência, tampouco de inserção do cidadão nas arenas de debate acerca de políticas públicas. Assim, a Lei de Responsabilidade Social, por não fazer acepção entre os distintos municípios ou Estados brasileiros, se estabelece como transversal e normalizadora, atingindo toda a administração pública brasileira. A Lei de Responsabilidade Fiscal propôs ampla divulgação dos meios de acesso e das prestações de contas, para que se facilitasse o acesso da esfera civil ao campo das decisões políticas, ampliando-se a participação e a transparência pública. Dentre os instrumentos e ferramentas que utilizados para a efetivação da aproximação entre a sociedade e o governo estão além da prestação sistematizada de contas, a criação e fortalecimento de Nelson Russo de Moraes | 145 conselhos, o orçamento participativo, a criação de administrações regionalizadas e audiência pública. (TONET, 2001a) A Lei de Acesso à Informação e a Lei de Transparência na Gestão Pública Na trilha pela instrumentalização e implementação da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000), para que houvesse melhor entendimento e aplicação da mesma, foi promulgada, em 27 de maio de 2009, a Lei Complementar nº 131, chamada de Lei da Transparência na Gestão Pública (MORAES, 2013). Segundo Moraes (2013), a lei com apenas três artigos, ajustou a aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal, modificando de modo profundo os artigos IX (“da transparência, controle e fiscalização”) e X (“disposições finais e transitórias”). O artigo 1º da Lei da Transparência modificou o artigo 48 da Lei de Responsabilidade Fiscal, passando a ser válido o seguinte texto: Parágrafo único – a transparência será assegurada também mediante: I – incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e discussão dos planos, leis de diretrizes orçamentárias e orçamentos; II – liberação ao pleno conhecimento e acompanhamento da sociedade, em tempo real, de informações pormenorizadas sobre a execução orçamentária e financeira, em meios eletrônicos de acesso público; III – adoção de sistema integrado de administração financeira e controle, que atenda a padrão mínimo de qualidade estabelecido pelo Poder Executivo da União e ao disposto no art. 48-A. (BRASIL, 2009). Importante destacar que na Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000) era transparência era exigida sim, contudo apenas como instrumento de promoção da participação dos cidadãos, especialmente durante a elaboração dos planos, diretrizes ou orçamentos. Neste sentido, a Lei da Transparência (Lei 146 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social Complementar 131/2009) trouxe a obrigatoriedade de que o gestor público passasse a publicar muitos outros atos da administração pública, introduzindo a rede mundial de computadores (internet) como plataforma obrigatória. Contribui para este entendimento, que a Constituição Federal do Brasil, traz no seu artigo 37, parágrafo primeiro, importante marco jurídico para a publicidade da administração pública: Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também ao seguinte: § 1º - A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos. (BRASIL, 1988) Neste sentido, estabeleceu-se o direito dos cidadãos ao conhecimento dos atos da administração pública, instrumentalizandose de modo efetivo o controle social sobre o Estado, importante pilar da democracia representativa. Um destaque importante desta lei é que, com a finalidade de melhorar o entendimento ou a compreensibilidade das informações publicadas, introduziu-se o caráter educativo, informativo ou de orientação social das publicações exigidas pela Constituição Federal. (MORAES, 2013) A Constituição Federal de 1988 fortaleceu a democracia brasileira em muitos aspectos, dentre eles a ampliação da importância do conhecimento do cidadão dos atos do governo. Sobre isso, Binenbojm (2009, p.05) destaca que “democracia é o regime do poder invisível em oposição aos regimes totalitários onde a regra é o segredo de Estado e controle da informação com um dado oficial” e sobre essa publicidade no regime democrático, assevera: A publicidade é, assim, instrumento essencial do regime democrático, a fim de que o povo possa acompanhar pari passu o desenvolvimento Nelson Russo de Moraes | 147 das atividades administrativas, seja para a defesa dos interesses individuais (uti singuli), seja para a promoção de interesses públicos (uti universi). A publicidade constitui, ainda, pressuposto necessário da transparência administrativa, visto que o trato da coisa pública não pode ser secreto, reservado, acessível apenas a determinados grupos hegemônicos. (BINENBOJM, 2009, p. 05) Com relação ao alcance e à amplitude da legislação, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 70, sobre a obrigação de prestar contas, estabelece: Qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens ou valores públicos ou pelos quais a União responda ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária. (BRASIL, 1988) Assim, no Brasil, todos os administradores públicos devem obedecer ao princípio da publicidade, zelando pela prestação de contas à sociedade, de acordo com as legislações específicas que o impelem a responder ao Poder Legislativo e ao público diretamente, sendo que estes podem se apoiar nas estruturas formais do Poder Judiciário. (MORAES, 2013). Como sanção direta ao infrator (no caso o administrador ou gestor público que não atende aos princípios da publicidade expresso na lei), a legislação traz multas e impetração de processo civil por improbidade administrativa. Este campo da legislação é demarcado em sua origem pelo artigo 5º, inciso XXXIII, da Constituição Federal de 1988: Todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob a pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. (BRASIL, 1988) Com a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº101/2000) e do detalhamento trazido pela Lei de 148 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social Transparência Pública (Lei Complementar nº131/2009), a publicidade dos atos da administração pública recebeu um impulso importante no Brasil, alterando substancialmente o modo de se fazer a administração pública, como aquele como o cidadão se relacionava com o governo e o Estado. Entendendo que a transparência é um princípio da gestão fiscal, a legislação brasileira estabelecendo-a como condição indispensável à correta administração pública. Neste sentido, Cruz et al (2001, p. 183) destaca: A transparência na gestão fiscal é tratada na Lei como um princípio de gestão, que tem por finalidade, entre outros aspectos, franquear ao público o acesso a informações relativas às atividades financeiras do Estado e deflagrar, de forma clara e previamente estabelecida, os procedimentos necessários à divulgação dessas informações. (CRUZ et al, 2001, p.183) Cruz et al (2001) destaca que a transparência pública, sendo tomada como importante princípio de gestão fiscal, deve ser estabelecida e cobrada como instrumento de cidadania em prol da publicidade e da compreensibilidade das informações. Neste sentido, o princípio da transparência é mais amplo que o da publicidade, afinal a divulgação de informações incompreensíveis não pode ser tomada como transparência. (MORAES, 2013). Neste sentido, a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000), que consolida esforços e legislações acerca da eficiência de gestão da administração pública, traz, no artigo 48, os instrumentos de consolidação da transparência na administração pública: São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os planos, orçamentos e lei de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo parecer prévio; o Relatório Resumido de Execução Orçamentária e o Relatório de Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos. (BRASIL, 2000) Nelson Russo de Moraes | 149 O administrador público deve atentar para a observância dos prazos para a publicação das informações pedidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal, sendo que anualmente a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDB) e a Lei Orçamentária Anual (LOA) devem ser publicadas em veículos de comunicação (especialmente a internet). Já os Relatórios Resumidos de Execução Orçamentária (RREO) são bimestrais enquanto os Relatórios de Gestão Fiscal (RGF) são quadrimestrais. A nova legislação (Lei Complementar 131/2009) traz ainda a obrigatoriedade da apresentação – em tempo real – das execuções financeiras, sendo que ao final do inciso II do Parágrafo Único do novo artigo 48, a lei estabelece claramente que a publicação deve ser feita na rede mundial de computadores - internet. A Lei Complementar 131 (de 2009), ao disciplinar a utilização da internet, destaca ao final do inciso III do Parágrafo Único do artigo 48 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que um sistema integrado de administração financeira e controle, a ser estabelecido por legislação específica, garantirá padrão de segurança e de qualidade à publicação. (MORAES, 2013). Apenas ao chegar o prazo estabelecido pela lei (LC 131/2009) para o início do atendimento de suas exigências de publicação de prestações de contas na internet (em especial a pormenorização de despesas efetuadas) foi publicado o Decreto Presidencial nº 7.185 (de 27 de maio de 2010) esclarecendo que “tempo real”, para efeitos da Lei de Transparência Pública (LC 131/2009), seria considerado até o 1º dia útil subsequente a efetivação da despesa. Como destaca o § 2º do art. 2º do Decreto 7.185: § 2º Para fins deste decreto entende-se por: [...] II – Liberação em tempo real: a disponibilização das informações, em meio eletrônico que possibilite amplo acesso público, até o primeiro dia útil subsequente à data do registro contábil no respectivo sistema, sem prejuízo do desempenho e da preservação 150 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social das rotinas de segurança operacional necessários ao seu pleno funcionamento. (BRASIL, 2010) Por fim, destaca-se, acerca das leis que tratam da transparência na gestão pública brasileira, a promulgação da Lei 12.527, de 18 de novembro de 2011, denominada Lei de Acesso à Informação, que impele a ampliação da transparência de atividades dos três poderes e todos os seus níveis. O objetivo central da referida legislação é o de deixar estabelecido e claro que as informações devem sempre estarem publicadas e disponíveis, salvo por exceções expressas por legislações específicas. (MORAES, 2013) Moraes (2013) destaca que a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011) parte da garantia constitucional do direito à informação, tornando a publicidade uma regra e o sigilo uma exceção e que os procedimentos práticos decorrentes desta lei servem para facilitar a promoção da transparência e do controle social sobre o Estado. Teoria da Democracia e Teoria da Comunicação: aproximações Resgatando-se um olhar presente às produções científicas das décadas de 1980 e ainda de 1990, considerava-se que a convergência entre aspectos da necessária reconstrução do interesse cívico do cidadão por uma esfera política que o representasse, mas que se via permeada pela elevação de interesses privados sobre os públicos – corrupção. À esta condição de busca de caminhos pelos estudiosos da Teoria da Democracia, o fenômeno da internet trazia algumas possibilidades de aumento da participação e consequente legitimidade da administração pública, quer seja por meio da participação nos debates de temas públicos, quer seja pela instituição de instrumentos mais efetivos de controle social sobre o Estado. (MORAES, 2013) O entendimento acerca da comunicação e a representação nos regimes democráticos, perpassara pela compreensão da relação entre a esfera pública e a publicidade, sobre isso Gomes (2008) Nelson Russo de Moraes | 151 apresentam suas diferenças e suas aparentes interligações como duas faces de uma mesma moeda: a primeira sobre os aspectos da “visibilidade pública” e a segunda acerca da “discussão pública”. Os autores destacam que não se trata apenas de apresentar as informações, mas sim de um processo de esclarecimento de que existe um jogo estabelecido na arena política consolidado pela comunicação neste campo. (MORAES, 2013) Considerando-se as possibilidades de complementação e atendimento de demandas de participação e controle trazidas pela chamada crise de participação da democracia, as novas perspectivas de interface que seriam construídas entre o Estado e a internet seriam sustentadas pela necessidade de avançar no sentido de aumentar as possibilidades de participação civil na esfera de decisão política e que esse viés poderia aliviar as exigências hoje atribuídas à democracia participacionista ou deliberacionista. (MORAES, 2013) A interface entre o Estado e a internet trouxe consigo a criação de diversas ferramentas digitais que foram criadas ou ajustadas ao grande conjunto de ações de prestação de serviços passíveis de mediação pela internet e mesmo de comunicação de contas, aproximando o cidadão das decisões políticas, vislumbrando-se novas possibilidades, conforme destaca Norris (2001): A internet pode servir a múltiplas funções: divulgação de informações sobre o funcionamento da administração pública, bem como dos serviços públicos, facilitando mecanismos de feedback público, tais como e-mails para as agências governamentais, permitindo uma maior participação direta no processo decisório, incluindo exercícios de consultas locais, e fornecendo apoio direto para o processo democrático, tais como a administração eficiente para o registro eleitoral ou a votação on-line. Existe uma preocupação generalizada de que o público tenha perdido a confiança no desempenho das principais instituições do governo representativo, e esperasse que um governo mais aberto e transparente, e um serviço de distribuição mais eficiente possam ajudar a restaurar a confiança pública (NORRIS, 2001, p. 113, traduzido) 152 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social Segundo Moraes (2013), ao analisar o plano teórico desta convergência, observa-se que a comunicação política deixou de servir apenas para mediações em processos eleitorais ou consultas públicas, aportando-se em possibilidades de interfaces mediadas pela tecnologia. Prado (2009) destaca que, a administração pública brasileira passou a ser fortemente marcada pela informatização, implementando-se muitos programas de estruturação do governo durante o período de reforma do Estado, sendo que o objetivo central era elevar os índices de eficiência nos trâmites internos do governo, desburocratizando-os. Prado (2009) destaca que uma segunda etapa da utilização da internet na administração pública foi a apropriação das possibilidades digitais melhorando os serviços diretamente desenvolvidos junto à população. Esta nova estrutura trouxe a ampliação de níveis de qualidade de serviços e de uma imagem de melhor credibilidade junto aos cidadãos. Sobre o governo eletrônico, assevera Prado (2009): O governo eletrônico pode ser um dos mais importantes instrumentos à disposição dos governos para promoção da transparência. Para que o mesmo se concretize como instrumento efetivo de transparência, é necessário, no entanto, a existência de condições político-institucionais que favoreçam a transparência. (PRADO, 2009, p.121) Para além da melhoria dos serviços (governo eletrônico), a promoção e a instrumentalização da participação do cidadão junto à esfera de decisão política traz efeitos benéficos à democracia, como afirma Perez (2009): A participação popular no Estado de Direito, ademais, representa um avanço nas formas de controle da Administração. Através dos institutos de participação, a coletividade passa a fiscalizar ativamente os desvios e abusos eventualmente cometidos pela administração pública. (PEREZ, 2009, p.62). Nelson Russo de Moraes | 153 Moraes (2013) destaca que o controle cognitivo do cidadão sobre o Estado, de maneira geral, surge a partir do amadurecimento da sociedade quando esta tem seu engajamento cívico ampliado, inclusive ampliando-se o desejo de municiar-se de informações para que se possa cobrar maior responsividade dos gestores públicos e até mesmo interferir nas decisões políticas, inclusive nas eleições. A democracia, fortalecida pela teoria da comunicação, é então o berço seguro do controle social sobre o Estado, onde as pessoas podem (de acordo com sua livre vontade) acompanhar as contas da gestão pública ou ainda delegar tal função, por meio de sua filiação a uma associação ou instituição de transparência pública. A accountability é outro importante desdobramento do amadurecimento da sociedade, fortalecendo-se em muito à proporção em que o cidadão passa a ter acesso às informações sobre a gestão pública. No Brasil, este acesso às informações da administração pública passara a se consolidar a partir das regulações pós Constituição Federal de 1988, como a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 04 de maio de 2000) e a Lei da Transparência na Gestão Pública (Lei Complementar nº 131, de 27 de maio de 2009). Conforme Silva (2009), a accountability (ou responsividade) pode ocorrer de maneira horizontal quando instrumentos institucionais ou do próprio Estado (controle interno, Ministério Público, Tribunal de Contas etc.) realizam a cobrança de prestações de contas e os gestores assumem responsividade, ou de maneira vertical, quando a própria sociedade aprova ou reprova as decisões políticas dos gestores públicos. A pressão da sociedade para que a administração pública se torne mais eficiente e transparente para além dos princípios constitucionais estabelecidos, passa a se efetivar neste momento onde a internet traz rápida comunicação, instrumentalizando os cidadãos pudessem fiscalizar, cobrar, denunciar e expor elementos e resultados de gestão. 154 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social Ao final desta comunicação é importante trazer Rousiley Maia (2008) que trata de publicidade e visibilidade midiática destacando que a publicidade pode ser entendida como o “caráter e qualidade do que é público, a propriedade das coisas na medida em que estão visíveis e disponíveis para o conhecimento comum” (MAIA, 2008, p.167). Assim, a possibilidade facilitada pelo acesso digital, de denúncia realizada pelo cidadão comum (isolado ou organizado) instrumentaliza-o a assumir um papel mais dinâmico, conduzindo a sociedade civil ao exercício de aproximação da esfera de decisão política. Reafirmando a importância da qualidade da publicidade para que o cidadão consiga ter a compreensão, fechando-se um processo exitoso de comunicação, Sant’ana (2009) destaca como essa instrumentalização pode contribuir para o fortalecimento da democracia: Fazendo parte, de forma mais direta do processo de gestão, os cidadãos e as organizações não governamentais podem ter mais claramente delineada a possibilidade de definição de responsabilidades e responsabilização de atos ilícitos ou irregularidades no uso de recursos públicos, participando, assim, do controle e acompanhamento dos atos dos agentes públicos, bem como, da fiscalização realizada por outras esferas do poder público. (SANT’ANA, 2009, 40) Moraes (2013) destaca que a responsabilização de agentes públicos por suas atitudes indevidas de gestão encontra sustentação no sistema de controle social sobre o Estado, nos quais os mecanismos se estabelecem sobre duas possibilidades: os mecanismos de accountability verticais (aqueles que se fundamentam pela sociedade sobre o Estado) e aqueles de accountability horizontais (por instrumentos da própria esfera pública). Por fim, Moraes (2013) descreve que o encadeamento ideal que aproxima a esfera civil da esfera de decisão política, apoiandose à teoria da comunicação, seria expressada por: 1.prestação de contas públicas, 2. transparência na publicidade das contas - Nelson Russo de Moraes | 155 facilitada pela internet -, 3. controle cognitivo da sociedade por meio de acompanhamento de relatórios fiscais e orçamentários, 4. Accountability. Assim, esta comunicação evidencia o quanto a teoria da comunicação contribui para o aumento da participação e do controle social sobre o Estado, o que vale dizer sobre a democracia. Contudo, ainda assim, muito se tem a caminhar o sentido de que a democracia se torne tão robusta no Brasil ao ponto de se ter uma plena participação do cidadão na condução e controle das ações da esfera de decisão política. Referências BINENBOJM, Gustavo. O princípio da publicidade administrativa e a eficácia da divulgação de atos do poder público pela Internet. REDE - Revista Eletrônica de Direito do Estado. Salvador, n. 19, jul./ago./set. 2009. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/revista/REDE-19JULHO_2009%20Acesso%20em%2028%20mar.2011> Acesso em: 28 mar. 2012. BOBBIO, N. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 1999. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Brasília: Senado Federal (Subsecretaria de Edições Técnicas), 1998. _______. Lei complementar nº 101 (de 04 de maio de 2000). 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Possui MBA em Comunicação empresarial e Marketing. É professor na Faculdade Católica do Tocantins. E-mail: agencia.adriano@gmail.com. 1 2 Doutor em Antropologia Cultural pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É professor e pesquisador na Universidade Federal do Tocantins, onde leciona no curso de Ciências Sociais e no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade. É membro do Núcleo de Estudos e Assuntos Indígenas (NEAI) e tutor do Grupo PET Indígena – Conectando Conhecimentos. Realiza pesquisas com os povos Mebengôkre (Kayapó), Apinajé e Xerente. Email: andredemarchi@gmail.com. 3 Embora entendamos a diferença entre os termos: índio e indígena, apresentados por Castro (2017) em seu texto “Involuntários da Pátria”, neste trabalho, visando facilitar a leitura, utilizam-se como sinônimos que se referem aos povos das etnias que já estavam presentes nos territórios brasileiros na época da colonização, e que até hoje resistem às modernidades e transformações do mundo. 160 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social (MEMMI, 1977). Ao referir-se à violência, não são restringidas apenas ao dolo físico, mas também à “violência simbólica”, que é fruto dos discursos generalizantes e que sorrateiramente circulam no imaginário coletivo. Como afirma Bourdieu (2004), a violência simbólica é construída pela legitimação de discursos dominantes que causam danos morais e psicológicos aos que dela sofrem. Neste artigo, busca-se primeiramente discutir as imagens dos povos indígenas representadas através de charges, no intuito de problematizar os sentidos discursivos das ideias equivocadas sobre os povos indígenas que permeiam o senso comum. Em seguida, investiga-se a presença do preconceito sobre os povos indígenas através da hipótese do “efeito de terceira pessoa”, por meio de uma pesquisa quali-quantitativa. Através das análises apresentadas, constata-se que as charges com uma linguagem crítica de protesto, mesmo sendo criadas em favor de suas causas, carregam estereótipos, causam polissemias, e disseminam para o senso comum “ideias equivocadas” sobre os povos indígenas, trazendo à tona preconceitos silenciadores evidenciados através do efeito de terceira pessoa. O referencial que embasa esse artigo se sustenta na análise de conteúdo, que visa categorizar os sentidos discursivos presente nas imagens. Vale-se, ainda, da análise do discurso de matriz francesa para identificá-los, já que, em seus pressupostos, é negada a ideia de sujeito cartesiano, que detém a origem e o sentido da mensagem. Ao contrário, entende que o sujeito não controla a interpretação fundada pela ideologia e pelo inconsciente. Segundo Pêcheux (1977), o contexto sócio histórico faz parte da construção de sentidos de um já-dito, que é sempre ressignificado. E é exatamente na ressignificação de sentidos do “já-dito” que é possível encontrar motivação para levantar a hipótese de que as charges criam distorções de sentido que cristalizam estereótipos generalizantes, neste caso específico, o preconceito para com os povos indígenas. Ao trabalhar a relação interétnica mediada por imagens entre índios e não índios, é necessário evocar os conceitos da antropologia Adriano Alves da Silva; André Demarchi | 161 contemporânea que transcendem a abordagem da arte como sistema simbólico ou linguístico embasado na semiótica. Como afirma Demarchi (2009), a chamada “antropologia da arte” surge com novos questionamentos que não se limitam a responder o que a arte e as suas imagens representam para a sociedade, mas sim, como a sociedade absorve e interage com elas. A antropologia da arte, entre outras questões, procura responder: [...] para onde determinado índice ou objeto de arte aponta? Que elementos estão envolvidos nessa capacidade do objeto em mediar e produzir relações sociais? Como a forma do objeto age cognitivamente sobre as pessoas? Por que isso ocorre? (GELL, 1996, apud DEMARCHI, 2009, p. 183). Quando se passa a considerar a arte como agente cognitivo e social, pode-se compreender que a dimensão que ela atua vai muito além das representatividades estéticas e enunciativas. Por sua vez, elucidam contextos sociais de intencionalidades complexas. Fundamentado nessas correntes teóricas, o artigo faz uma triangulação com a hipótese do Efeito de Terceira Pessoa elaborada por Davison (DAVISON, 1983), pesquisada, discutida e sistematizada principalmente por Perloff(1993) e PÔRTO (2009), objetivando assim, investigar a presença do fenômeno através da percepção das charges. Assim, espera-se provocar um diálogo acerca da representação das imagens dos povos indígenas em charges metodologicamente pinçadas através do buscador de imagens do Google4, procurando identificar em um primeiro momento, se existe nessas imagens a presença de estereótipos e discursos generalizantes. Em um segundo momento, toma-se como base as teorias contemporâneas da comunicação, para realizar uma pesquisa de Busca de imagens pelo termo/palavra-chave: “charge indígena”, no dia 19/04/2018. Método explicitado mais adiante. 4 162 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social opinião que procura investigar a existência de preconceito velado para com os povos indígenas através da presença do “Efeito de Terceira Pessoa”, onde a percepção dos efeitos negativos das mensagens exerce mais impacto nos “outros” (others) do que sobre em si mesmo (self). Para Perloff(1993), o efeito da terceira pessoa tende a surgir quando as mensagens não são percebidas como pessoalmente benéficas. No caso dessa pesquisa, não são necessariamente mensagens midiáticas pontuais, mas sim, toda uma relação interétnica preconceituosa, construída ao longo dos últimos cinco séculos, e que por meio das charges e dos interdiscursos que carregam, nos possibilita visualizar e mensurar o fenômeno. As charges Sobre charges, é válido citar o conceito de Agostinho (1993, p. 229), que diz que “charge se constitui realidade inquestionável no universo da comunicação, dentro do qual não pretende apenas distrair, mas, ao contrário, alertar, denunciar, coibir e levar à reflexão”. O que norteia nesse sentido é a função social atribuída a ela, pois assim como acrescenta Miani (2001, p.42), a charge possui a qualidade: [...] de se constituir como instrumento de persuasão, intervindo no processo de definições políticas e ideológicas do receptor, através da sedução pelo humor, e criando um sentimento de adesão que pode culminar com um processo de mobilização. Ao que cabe ao humor, é necessário esclarecer o que está apresentado no livro organizado por Serra (2014): “O que é Humor Gráfico?”, segundo o qual, charge, cartum ou cartune é o “desenho humorístico” ou “desenho anedótico”. Um gênero textual formado pelo hibridismo da linguagem verbal e não verbal, cuja representação gráfica é associada ao criticismo e comicidade. Adriano Alves da Silva; André Demarchi | 163 As narrativas dos discursos satíricos empregadas nas charges apresentam-se ligadas ao resultado de diversos contextos temporais, e isso serve de matéria-prima para criação de imagens carregadas de subjetividades. Segundo Oliveira (2001, p. 265), “é a partir de fatos e acontecimentos reais que o autor tece sua crítica num texto5 aparentemente despretensioso”. É principalmente em situações de crise social que a charge ganha mais força. Conforme Liebel (2005), a charge, sendo uma representação artística, faz um corte transversal no tempo expondo elementos que provocam alguma ruptura na normalidade histórica e, por isso, merecem uma crítica. É, portanto, um artefato carregado de ideias e preconceitos do seu autor/desenhista em dado momento histórico temporal. O próprio nome, “charge”, que é de origem francesa, significa “carregar” ou “exagerar”. Em muitos casos, como será exposto aqui, esse exagero aparece na forma de preconceitos ou ideias equivocadas. A edição do volume 2 da série “Media Effects: ensaios sobre teorias da Comunicação e do Jornalismo”, organizada por Baptaglin, Moraes, Oliveira e Pôrto Jr (2018),traz publicações de artigos que coincidem com a linha de pensamento aqui proposta, como é o caso do capítulo 11 intitulado “Charges e habitação: uma análise de imagem e discurso”, onde os autores Biavatti, Ertzogue, Meneses e Oliveira (2018),ao trazerem o contexto jornalístico das charges, salientam tratar-se de um gênero textual comumente utilizado como ferramenta ideológica ligada à linha editorial do veículo jornalístico em que é publicado. Nesse recorte, onde os povos indígenas são protagonistas dos conflitos das charges, os contextos temporais, de tão recorrentes, acabam tornando-se “atemporais”, e, dessa forma, podem se conectar involuntariamente com os equívocos que se fazem sobre os índios, operacionalizando e legitimando discursos que forjam 5 A ideia de texto aqui apresentada, toma os preceitos de July (2007), que inclui as charges como gênero textual híbrido composto de mensagens escritas e mensagens visuais, linguagem verbal e não verbal. 164 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social identidades com intuito de silenciamento. A charge, mesmo sendo criada para protestar e favorecer a causa que defende, através do deslocamento de sentidos, pode vir a se tornar uma ferramenta contrária à essa. As ideias equivocadas sobre os índios Uma das ideias equivocadas mais disseminadas entre os diversos extratos da população brasileira diz respeito ao “índio genérico”, que ignora a diversidade étnica, linguística e cosmológica desses povos. Isso acaba estereotipando a sua representação, isso é, cristalizando um estereótipo fixo, aquele de um índio seminu na floresta com uma pena na cabeça. Outra ideia equivocada trata de considerar a cultura dos povos indígenas como atrasada (FREIRE, 2002). Conforme Memmi (1997), o etnocentrismo da colonização forjou essa ideia, forçando o colonizado a se adequar dentro de seus padrões. Caso contrário, o índio seria tido como um selvagem atrasado no tempo, justificando assim as violentas investidas de sua colonização. O terceiro equívoco apresentado por Freire (2002) é de que as culturas indígenas são congeladas, ou não se modificaram com o tempo. A quarta ideia equivocada trata os índios como pertencentes ao passado: Os portugueses, primeiro, e depois os brasileiros, durante cinco séculos acreditaram que os índios eram atrasados e que portugueses e brasileiros representavam a civilização. Portanto, a nossa obrigação era civilizá-los, ou seja, fazer com que eles deixassem de ser índios e passassem a ser como nós. Ocorreu um verdadeiro massacre durante esses 500 anos, com o extermínio de muitas etnias. Os índios ficaram relegados, como pertencentes a um passado incômodo e distante do Brasil. (FREIRE, 2002. p. 18). O autor finaliza com o quinto equívoco partilhado pelo senso comum, que fala que o brasileiro não é índio. Freire (2002) esclarece Adriano Alves da Silva; André Demarchi | 165 que os brasileiros foram formados apenas há 500 anos com a miscigenação de três matrizes principais: a matriz europeia, principalmente a portuguesa, a matriz africana e por fim, a matriz indígena, somando-se a essas, outras origens menos expressivas, como a asiática. No entanto, como os europeus dominaram política e militarmente os demais povos, a tendência do brasileiro, hoje, é se identificar apenas com o vencedor – a matriz europeia – ignorando as culturas africanas e indígenas. Isso reduz e empobrece o Brasil, porque você acaba apresentando aquilo que é apenas uma parte, como se fosse o todo. (FREIRE, 2002. p. 20). Isso explica por que é possível notar pessoas que se vangloriam de descendências europeias, mas não reconhecem a miscigenação indígena. O autor acrescenta ainda que não se trata de traços físicos como a cor da pele ou dos olhos, pois o descendente japonês nascido em São Paulo é brasileiro também. Sua cultura, como qualquer outra, modificou-se no decorrer da história, assim como se modificaram as culturas indígenas. Demarchi e Morais (2015) complementam as ideias apresentadas por Freire (2002), acrescentando mais algumas opiniões equivocadas sobre os povos indígenas, como por exemplo, a imagem do “índio preguiçoso”. O que para os índios fora tido como uma estratégia de resistência contra a escravidão, pelos colonizadores é interpretada como preguiça. Outro absurdo é a suposição de que eles gozam de regalias perante a legislação, ou seja, são considerados “hiper-cidadãos”. O que está diretamente ligado a ideia do “índio preguiçoso”. Segundo Castro (2017), essa percepção de regalias estatais é uma falácia, e a verdade que se esconde por trás da “cidadania indígena” é muito mais sórdida do que se pensa. “O Estado brasileiro e seus ideólogos sempre apostaram que os índios iriam desaparecer, e quanto mais rapidamente melhor; fizeram o possível e o impossível, o inominável e o abominável para tanto. Não que fosse preciso sempre exterminá-los 166 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social fisicamente para isso — como sabemos, porém, o recurso ao genocídio continua amplamente em vigor no Brasil —, mas era sim preciso de qualquer jeito desindianizá-los, transformá-los em “trabalhadores nacionais”. Cristianizar-los, “vesti-los” (como se alguém jamais tenha visto índios nus, a esses mestres do adorno, da plumária, da pintura corporal), proibir-lhes as línguas que falam ou falavam, os costumes que os definiam para si mesmos, submetê-los a um regime de trabalho, polícia e administração. Mas, acima de tudo, cortar a relação deles com a terra. Separar os índios (e todos os demais indígenas) de sua relação orgânica, política, social, vital com a terra e com suas comunidades que vivem da terra — essa separação sempre foi vista como condição necessária para transformar o índio em cidadão. Em cidadão pobre, naturalmente. Porque sem pobres não há capitalismo, o capitalismo precisa de pobres, como precisou e ainda precisa de escravos.” (CASTRO, 2017. p. 5). É partilhado ainda o conceito equivocado de que “os índios são camponeses”, ignorando suas especificidades culturais, bem como o direito de ocuparem suas terras da forma como bem entenderem. Essa é uma ideia que reforça a opressão dos discursos ruralistas que argumentam a existência de “muita terra para pouco índio”, e que essas são improdutivas, que desdobra na percepção de que as terras indígenas são “latifúndios improdutivos”. Por fim, um equívoco sorrateiro que expropria a voz singular e política das populações indígenas é acreditar que esses sujeitos não pensam por si, sendo objeto de manobra de antropólogos, organizações, ONGs, etc. (DEMARCHI; MORAIS, 2015). Adriano Alves da Silva; André Demarchi | 167 Figura 1. Infográfico representando as ideias equivocadas sobre os indígenas apresentadas pelos autores. Fonte: Elaborado pelos autores Esses discursos atravessam as identidades que são forjadas e que acabam por estereotipar o campo social dos povos indígenas, cristalizando conceitos equivocados que são partilhados pelo senso comum, o que o autor denomina “pensamento espontâneo” (BOURDIEU, 2004). Vale ressaltar que todos esses equívocos são veemente refutados pelos autores que as apresentam, com argumentos sensatos e embasados. Metodologia A problemática da legitimidade do campo da comunicação como ciência possui especificidades complexas, visto que os processos, linguagens, tecnologias e práticas constituídas no interior do campo são múltiplas, como por exemplo, o fato de serem costumeiramente atreladas a outros campos da ciência para defender suas bases empíricas. Nesse contexto, segundo Fausto Neto (2002), pode-se acrescentar que grande parte do problema de legitimação do campo da comunicação está na fragilidade metodológica em que se debruçam os estudos de seus objetos. Grosso modo, não é de interesse desse estudo aprofundar questões epistêmicas da legitimidade do campo comunicacional, mas sobretudo, salientar que grande parte da responsabilidade da legitimação do campo advém da clareza e precisão metodológica em que se recorta e examina o objeto. Nesse caso, busca-se construir 168 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social uma linha de pensamento através do que postula o método da Análise de conteúdo, no que diz respeito ao recorte, análise, exploração do material, tratamento de dados, e, sobretudo, da sua categorização, buscando uma interpretação pertinente com o propósito da pesquisa, assegurando assim a sua cientificidade. Reconhece aqui que a busca da cientificidade reflexiva que advém da análise do discurso francesa e de métodos qualitativos, muitas vezes subjetivos, não deve ser reduzida ou comparada com métodos quantitativos. Pelo contrário, precisa firmar o seu lugar de fala no campo comunicacional. Com isso, não se deve furtar ao direito de apropriar de tão profundas estratégias analíticas em busca de respostas plausíveis que traduzam de forma clara os anseios do problema de pesquisa, mesmo sabendo que essa análise não passa de uma interpretação do ponto de vista dos autores. Na verdade, o que se busca é problematizar a construção de sentidos implícitos nas charges, com a hipótese de que esses, involuntariamente, colaboram para a perpetuação de preconceitos. O recorte do Objeto Visando obter uma multiplicidade na amostragem de charges que compõe o corpus da análise, evitou-se escolher arbitrariamente determinado artista, ou charges de determinados veículos. Optouse por realizar uma pesquisa imagética no buscador do Google, utilizando como palavra-chave o termo “Charge Indígena”, pesquisa feita simbolicamente no dia 19 de abril de 20186. Surgiram 99 imagens, porém, as imagens oriundas de buscadores nem sempre são coerentes com o termo da busca7, por isso, foram criados três 6 No Brasil o dia do índio foi promulgado em 1943 através do decreto de lei número 5.540 pelo então presidente Getúlio Vargas. A nível internacional, a Organização das Nações Unidas (ONU) também criou o Dia Internacional dos Povos Indígenas (9 de agosto) para conscientizar os governos e população mundial sobre a importância de preservar e reconhecer os direitos dos indígenas 7 Isso depende da marcação que se faz na postagem e do sistema de varredura automática de metadados da qual se valem os buscadores. Optou-se por usar o Google por ser o mais acessado com 75,22%, segundo dados de pesquisa Serasa Experian. Disponível em: Adriano Alves da Silva; André Demarchi | 169 critérios de recorte. O primeiro é que deveria ser uma charge. O segundo critério é a presença dos termos: índio(a), índios(as), indígena, e/ou indígenas em sua linguagem verbal. Por fim, o terceiro critério, foi ter nas charges a presença ilustrada da personagem indígena. Assim, das 99 imagens, foram recortadas 18 charges que atendiam aos critérios criados, compondo assim o corpus. O método da análise é quali-quantitativo, visto que se pretende classificar a ocorrência de categorias de preconceitos, bem como analisar a forma com que são apresentados sob a ótica da análise do discurso francesa. A categorização exige a análise individual das imagens, que é feita primeiramente buscando a construção do seu significado, ou seja, a exposição do discurso dominante de cada charge, para posteriormente classificá-la nos critérios pré-estabelecidos (VERGARA, 2005). Com base na amostra e nas categorias prédeterminadas, foi realizada uma análise e compilação do material com uso de uma grade mista em busca de algum critério que viesse a se tornar em uma nova categoria, bem como estruturar as próprias categorias apresentadas pelos autores, criando uma fusão de categorias similares e evitando confusões epistêmicas. Foi possível criar uma matriz com três categorias seguidas de suas respectivas binariedades: a) Culturas atrasadas x Índio Moderno; b) Terra indígena x Conflito agrário, e; c) Colonização x Lugar de fala. As imagens foram cuidadosamente analisadas e categorizadas. Visando atender a legislação e as normas que regem os direitos autorais, limitou-se a apresentar sob a forma de “notas de rodapé” os endereços digitais de onde se encontram as imagens. Os resultados das análises são apresentados pelas categorias e não individualmente. <http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2013/03/google-e-buscador-mais-acessado-mas-yahoo-eo-mais-clicado-no-brasil.html> Acesso em 06 ago. 2018. 170 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social Culturas atrasadas x Índio moderno Das 18 charges, quatro imagens8 se enquadram na categoria Culturas atrasadas, perfazendo o percentual de 22% da amostra. As charges que fazem parte dessa categoria satirizam a ideia de “índio moderno”, colocando como ruptura da normalidade o fato dos povos indígenas estarem inseridos em um mundo moderno e dele fazerem parte. É esse o motivo de riso colocado pela imagem. A representação de um indígena, em geral, genérico, ou seja, sem menção ao seu povo ou cultura e fazendo uso de ferramentas tecnológicas como computadores, smartphones, jogos eletrônicos e redes sociais, são os fatores que motivam o humor nessas charges. Segundo Orlandi (1999), e reiterado por Biavatti, Ertzogue, Meneses e Oliveira (2018), na análise do discurso, os artistas são os sujeitos que tomam a fala, e esses não estão deslocados do mundo, pelo contrário, pertencem a um determinado tempo, lugar e espaço, e com isso, a uma determinada classe. Dessa forma, seu discurso está carregado de interesses e ideologias. Assim, os artistas, ao representarem de forma satirizada o índio moderno, corroboram com a ideia equivocada de que eles pertencem ao passado, que possuem culturas atrasadas e que de fato, a modernidade não lhes cabe, quando na verdade, o que se vê é uma intensa apropriação dos meios de comunicação e das tecnologias pelos povos indígenas como forma de potencializar e irradiar pelo globo suas culturas. Sahlins (1997), deu a esse processo o título de “Indigenização da Modernidade”, isso é, a forma como os povos indígenas se 8 Cada link corresponde a uma das quatro imagens citadas. Acesso em 06 ago. 2018.http://2.bp.blogspot.com/-WT3Bl8w_GC8/UWDGHJAl8FI/AAAAAAAAAAo/X9gwFScpW40/ s1600/indio-2-charge-opiniao-quinta-c%C3%B3pia1.jpg https://1.bp.blogspot.com/-25KLIEU_Jjc/VxfMwZ7fK5I/AAAAAAAAPp4/bICxEhCtmE9hz5dP2vl0lqd5v_v9vw3ACLcB/s1600/Charge%2B02.jpg https://2.bp.blogspot.com/-VB-GQphz9iw/VxfOgId8AbI/AAAAAAAAPqc/EtairgG0iCYSm9yaJlVr Em9qjuT2J92AACLcB/s1600/Charge%2B08.jpg https://i2.wp.com/humorpolitico.com.br/wp-content/uploads/2012/04/dia-do-indio-190412-jarbashumor-politico.jpg?resize=400%2C253 Adriano Alves da Silva; André Demarchi | 171 apropriam em benefício próprio de elementos da modernidade capitalista. Terra indígena x Conflito agrário Nessa categoria, foram enquadradas sete imagens9, o que corresponde a 39% da amostra. Um número que, apesar de significante, infelizmente não surpreende, visto que o tema é recorrente no cenário brasileiro. O conflito envolto remete à expropriação das terras indígenas, assim como acontece desde o início da colonização. Como assevera Castro (2017, p.5), os colonizadores fizeram por: Transformar o índio em pobre. Para isso, foi e é preciso antes de mais nada separá-lo de sua terra, da terra que o constitui como indígena. O pobre é antes de mais nada alguém de quem se tirou alguma coisa que tinha, de modo a fazê-lo desejar outra coisa que não pode ter. Para transformar o índio em pobre, o primeiro passo é transformar o Munduruku em índio, depois em índio administrado, depois em índio assistido, depois em índio sem terra, índio que, se insistir em ser índio, ou “voltar” a se reivindicar índio, será um “índio falso”, um índio de jeans, um espertalhão. Um falso índio, ou seja, um subcidadão, que jamais será um 9 Cada link corresponde a uma das sete imagens citadas. Acesso em 06 ago. 2018. https://latuffcartoons.wordpress.com/2013/11/11/charge-ciminacional-espaco-reservado-aosindigenas-no-brasil/ https://3.bp.blogspot.com/-osXMe__HLo0/VxfONQtz_0I/AAAAAAAAPqU/8nqUPtG0VEo1DY0H5G5llI2xWuSmsx2QCLcB/s1600/Charge%2B06.jpg http://1.bp.blogspot.com/-RlxGayEIqgU/UaGMBuxaqII/AAAAAAAAABw/a2MYOR2PGHY/s1600/Charge EscudoGuaraniQuinho.jpg https://4.bp.blogspot.com/-OOBRFZ68FTo/VxfM4aHoh6I/AAAAAAAAPp8/spuaH90axz4d6abvXwCh7p LuhprAvnCqQCLcB/s1600/Charge%2B03.jpg https://4.bp.blogspot.com/-zpdEq_fxCQQ/VxfPAC2fcHI/AAAAAAAAPqs/wh88H68TB0wQXTorQBNRQDoDITGzv2sQCLcB/s1600/CHARGE%2B11.jpg https://mobilizacaonacionalindigena.files.wordpress.com/2013/08/charge-gleisihoffmariosan.jpg?w=474 https://mobilizacaonacionalindigena.files.wordpress.com/2013/09/ch_por240713.jpg?w=474 172 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social “branco”, mas um “mestiço”, esse prodígio de hipocrisia conceitual que define a “identidade brasileira” — que a define na cabeça, pois nascida da cabeça, dos Brancos brasileiros. Para o autor, o termo “torná-los pobres” inclui: tirar-lhes as terras, os direitos, tudo, acabar com o seu mundo, deixá-los sem nada, até mesmo matá-los. Quanto às questões ligadas ao conflito agrário, Demarchi e Morais (2015) salientam que os equívocos partilhados sobre os índios se desdobram em complexas outras teias que fazem por surgir novos preconceitos, como por exemplo, disseminar a ideia de índio preguiçoso. Isso fez surgir a percepção no senso comum de que “existe muita terra para pouco índio” e que “as terras indígenas são improdutivas”, inculcando no senso comum a ideia de “latifúndios improdutivos”, o que dá margem e legitima a ocupação violenta e ilegal de reservas por parte de fazendeiros vinculados ao lucro do agronegócio. No caso das charges dessa categoria, as imagens trazem em comum o sujeito indígena representado de forma frágil, sempre em situação desigual para com os seus dominantes, à margem, com semblantes tristes, ou fragilizados pela situação. Em contraposição a isso, cinco das sete charges trazem a imagem do ruralista poderoso, ameaçador, fortemente armado. Não que isso não venha de encontro ao desequilíbrio de forças existentes nos conflitos fundiários do Brasil contemporâneo, mas, de certa forma, o que está implícito e é dado como ponto de crítica e reflexão nesses casos, é o fato de que supostamente lutam por uma causa perdida, ou seja, a ruptura da realidade está na ideia de que insistem em lutar mesmo sabendo que lutam de forma desigual. Buscam impactar o espectador salientando a fragilidade do índio, e fazem isso reafirmando essa condição e não propondo as estratégias de resistência que os povos indígenas constroem na contemporaneidade e construíram ao longo de sua história. Adriano Alves da Silva; André Demarchi | 173 Colonização x Lugar de fala Nessa categoria foram enquadradas as últimas sete10 charges restantes, o que equivale a 39% da amostra. Dessas, quatro11 fazem menção ao dia do índio no título, satirizando e ridicularizando o sujeito indígena e o seu lugar de fala, trazendo os resultados cruéis da colonização de forma pejorativa para com os indígenas, como se fossem culpados por suas mazelas em função de uma pretensa tolice. E isso fica claro em duas das charges dessa categoria, a primeira delas12 traz o título: “Todo dia é dia de índio…”. Abaixo a imagem de dois índios conversando, um deles segura um relógio na 10 Cada link corresponde a uma das sete imagens citadas. Acesso em 06 ago. 2018.https://latuffcartoons.files.wordpress.com/2012/11/genocidio-indigena-no-brasil.gif?w=590 https://4.bp.blogspot.com/-3fpAP2VXKuQ/Vyb1ZBeSudI/AAAAAAAABV0/aN5kJoH1J1MxyCbJtgGQ b-PYOYtMfcdGgCLcB/s1600/charge_dia_do_%25C3%2583-ndio.jpg https://3.bp.blogspot.com/-is1gjZRKIpM/Vyb1Ym-5dbI/AAAAAAAABVg/sBK1a47lyUwQj1jFviqDHkSEF06GnpmACLcB/s1600/Charge-dia-do-%25C3%25ADndio-joell-190412.jpg https://i2.wp.com/humorpolitico.com.br/wp-content/uploads/2012/04/dia-do-indio-190412-ederhumor-politico.jpg?resize=550%2C400 https://i1.wp.com/humorpolitico.com.br/wp-content/uploads/2012/04/dia-do-indio-180412-brunohumor-politico.jpg?resize=580%2C431 https://4.bp.blogspot.com/-XerEnHZOyRk/Vyb1ZcgKpWI/AAAAAAAABV4/h3IMC1QJbx48ZNM3XY l8SXB69PJuEDnmACLcB/s400/chargeangeli_%25C3%25ADndio%2Bantes%2Be%2Bdepois.gif https://2.bp.blogspot.com/-touAqVdgqpE/Vyb1a6sRLWI/AAAAAAAABWM/HJUVSqrd4CAUlBy36QuLFUMhcef1NJBgCLcB/s1600/wilmarx-charge-indio-nariz_thumb2.jpg 11 Cada link corresponde a uma das quatro imagens citadas. Acesso em 06 ago. 2018. https://4.bp.blogspot.com/3fpAP2VXKuQ/Vyb1ZBeSudI/AAAAAAAABV0/aN5kJoH1J1MxyCbJtgGQbPYOYtMfcdGgCLcB/s1600/charge_dia_do_%25C3%2583-ndio.jpg https://3.bp.blogspot.com/-is1gjZRKIpM/Vyb1Ym-5dbI/AAAAAAAABVg/sBK1a47lyUwQj1jFviqDHkSEF06GnpmACLcB/s1600/Charge-dia-do-%25C3%25ADndio-joell-190412.jpg https://i2.wp.com/humorpolitico.com.br/wp-content/uploads/2012/04/dia-do-indio-190412-ederhumor-politico.jpg?resize=550%2C400 https://i1.wp.com/humorpolitico.com.br/wp-content/uploads/2012/04/dia-do-indio-180412-brunohumor-politico.jpg?resize=580%2C431 12 Disponível em: https://4.bp.blogspot.com/3fpAP2VXKuQ/Vyb1ZBeSudI/AAAAAAAABV0/aN5kJoH1J1MxyCbJtgGQbPYOYtMfcdGgCLcB/s1600/charge_dia_do_%25C3%2583-ndio.jpg Acesso em 06 ago. 2018 174 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social mão, o outro diz: “-Troquei por árvore!” O outro responde: “Mas este Rolex é falso Cauã!”. Ao fundo dessa cena, uma floresta desmatada. A outra charge leva o título: “Dia do índio”13, trazendo a figura de dois índios conversando, um deles diz: “-Ouro, prata, mulheres e pau-brasil, em troca de quê mesmo? O outro respondeu cabisbaixo: - Espelhinhos!!” Os dois exemplos subentendem de maneira perversa que a colonização os passou para trás, foram enganados, que a culpa por isso vem a ser a sua pretensa ingenuidade e não a exploração sanguinária do colonizador. Com isso, desmerecem o lugar de fala dos povos indígenas, ridicularizando suas posições interétnicas, os tratando como inferiores e incapazes de ter autonomia intelectual, reforçando assim uma imagem negativa dos povos indígenas como ingênuos e sem capacidade de reflexão. Ignoram, portanto, séculos de resistência e estratégias de sobrevivência criadas imemorialmente por diversos povos indígenas brasileiros, dotadas de uma ampla diversidade de formas de reflexividade sobre sua condição de exploração pelos colonizadores. Outro ponto observado nessas charges é o fato da natureza ser tida como mercadoria, e essa é uma visão bem peculiar ao chamado “homem branco” (um termo que por si já é pejorativo, por isso, essa pesquisa usa o termo não índio, ou não indígena). Como, por exemplo, uma charge do cartunista Angeli que mostra primeiramente uma imagem de um índio na margem de um rio em meio à natureza pescando com sua lança, e ao lado o mesmo índio com trajes paupérrimos procura comida em um lixão, tendo ao fundo uma cidade cinzenta repleta de prédios e indústrias14. O que 13 Disponível em:https://3.bp.blogspot.com/-is1gjZRKIpM/Vyb1Ym5dbI/AAAAAAAABVg/sBK1a47lyUwQj1j-FviqDHkSEF06GnpmACLcB/s1600/Charge-dia-do%25C3%25ADndio-joell-190412.jpg Acesso em 06 ago. 2018. 14 Disponível em: http://1.bp.blogspot.com/-lLUUt1Q99g/TaS9dMDqRqI/AAAAAAAAAIk/gjwNw0DU4sA/s1600/Angeli%2B%2BAntes%2Be%2BDepois.jpg Adriano Alves da Silva; André Demarchi | 175 fica latente nessa charge é a forma com que a colonização objetifica a natureza, pois o não índio vê dinheiro onde os povos indígenas veem natureza. Quanto a isso, fala de Kopenawa e Albert (2015, p.478) é esclarecedora: Sua floresta é escura e fechada! É ruim e cheia de coisas perigosas. Não lamentem por ela!. Quando tivermos desmatado tudo, vamos dar gado para vocês comerem! Vai ser muito melhor! Vocês serão felizes!” Mas nós respondemos: “Nossos maiores não conheciam os animais que vocês criam. Não queremos comer animais de criação. Achamos nojento e nos dá tonturas! Não queremos seus bois, não saberíamos o que fazer com eles na mata. É nossa floresta que cria desde sempre os animais e peixes que comemos. Ela alimenta seus filhotes e os faz crescer com os frutos de suas árvores. Ficamos felizes que seja assim. Eles não precisam de roças para viver, como os humanos. O valor de fertilidade da terra basta para fazer crescer e amadurecer seu alimento”. Os brancos exterminam os animais com suas espingardas ou os afugentam com suas máquinas. Em seguida queimam as árvores para plantar capim. Depois quando a riqueza da floresta já desapareceu e nem o capim cresce mais, têm de ir para outro lugar para dar de comer ao seu gado faminto.” As charges que são objeto de análise desse artigo usam exclusivamente a fala do não índio para retratar os povos indígenas, colocando-os em situação desfavorável. Buscam assim, denunciar o fato na intenção de aliciar o leitor ideologicamente para os seus princípios, e assim, tomam o lugar de fala dos povos indígenas. Outro preconceito escondido nos interdiscursos das charges analisadas está ligado ao fato de que os povos indígenas são representados de forma parecida, pois, ao estereotipar as imagens dos índios nas charges, fortalecem involuntariamente a ideia equivocada do índio genérico, ignorando a diversidade cultural dos povos indígenas. Das 18 imagens das três categorias, 17 apresentam uma imagem recorrente dos povos indígenas: o sujeito indígena está descalço, seminu, com arco e flecha nas mãos e/ou penas na cabeça. A única charge que não apresenta esse estereótipo é porque não há 176 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social nela a imagem de um indígena. Desta forma, os artistas, visando representar uma imagem visual reconhecível e facilmente interpretável, se utilizam dos estereótipos que mais traduzem a mensagem, e com isso, cristalizam e ridicularizam a imagem do índio genérico e tantos outros equívocos. Hipótese do efeito de terceira pessoa Esse estudo também contou com uma pesquisa de opinião pública visando investigar a presença de preconceito velado contra os povos indígenas através da hipótese do Efeito de Terceira Pessoa (Third-Person Effect), também conhecido por Hipótese de Davidson, que foi o pesquisador responsável por descrevê-lo, pela primeira vez em 1983, em um artigo publicado no Public Opinion Quarterly. A hipótese de Davidson explica a relação entre audiência e a produção simbólica da mídia, supondo inicialmente que as pessoas tendem a superestimar a influência que os meios de comunicação têm em atitudes e comportamentos de outros em detrimento de si mesmas, ou seja, trata da percepção de que os efeitos persuasivos da comunicação são mais fortes nos outros (Other), do que em si (self). Os pressupostos da hipótese de Davidson ganharam importantes desdobramentos a partir dos estudos realizados por Perloff (1993), quando esse salienta que o fenômeno não ocorre em todas as mensagens e para todas as pessoas, mas sim, tende a ocorrer quando existe a percepção de que a mensagem possui cunho negativo, como notícias que carregam teor de violência, sexo, drogas, entre outros. Assim como o efeito tende a ser reverso (atingir a primeira pessoa), quando a mensagem for percebida como positiva, ou seja, quando o sujeito percebe que a mensagem é benéfica para ele, como, por exemplo, mídia sobre antitabagismo, segurança no trânsito, cuidados para a saúde, etc. Estudos da psicologia social comportamentalista dos anos 1960-1970 já traziam a ideia da “preservação da autoestima”. Segundo Pôrto Jr (2009), o que pode parecer uma conjectura óbvia Adriano Alves da Silva; André Demarchi | 177 sem necessidade de pesquisas empíricas para suas deduções, pelo contrário, para as teorias da comunicação, é objeto de análises profundas que fazem com que os pressupostos dos efeitos imaginados em terceiros influenciam o comportamento dos indivíduos na primeira pessoa, e assim a hipótese caminha para se tornar teoria. Embora seja relativamente recente, e ainda dispor de pouco material produzido em português, pesquisadores motivados pela profundidade das análises e multiplicidade de aplicações, realizam estudos com intuito de se investigar os efeitos de recepção da mídia e seus desdobramentos, como é o caso da obra “Media Effect”, onde, em cinco artigos, é analisado o fenômeno sob as mais diversas aplicações e cruzamentos. Em um dos capítulos dessa publicação, Adrian, Gomes e Pôrto Jr. (2018)debruçam-se na hipótese de terceira pessoa, estudando a influência da mídia na promoção da imagem da polícia militar em alunos e ex-alunos de colégios militares do Tocantins. Constataram a presença do efeito nos dois grupos pesquisados, e apoiando-se em Perloff (1999), salientam que a proximidade que o grupo pesquisado tem do objeto noticiado, é proporcional ao efeito de terceira pessoa, pois o vínculo afetivo dos estudantes com a polícia contribui para a crença de que “determinadas notícias veiculadas pela mídia formam uma imagem negativa da instituição perante a opinião pública, levando inclusive a tendências de comportamentos censurantes”. (ADRIAN; GOMES; PÔRTO JR. 2018. p. 79). O trabalho de Wéllida Rocha e Pôrto Jr (2018), traz os profissionais da comunicação como grupo de análise sob o efeito da terceira pessoa e, ao inferir sobre a censura, colocam que: Outro aspecto que merece atenção é que os profissionais da comunicação tem grande função social na medida em que informam notícias de interesse público para a população. Entretanto, deve ser levado em consideração o fato de que as empresas de comunicação também tem seus interesses financeiros e comerciais e buscam “vender” suas informações, mesmo que 178 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social para isso tenham que privilegiar certas notícias em detrimentos de outras. (ROCHA; PÔRTO JR 2018 p. 93). Os autores salientam a importância dos estudos de recepção da mídia, visto que os dados apontam para uma forte influência comportamental, chegando a índices consideráveis quando se trata de interferir ou censurar conteúdos considerados violentos, pornográficos, controversos ou inúteis. Em outro capítulo da mesma obra, Ferreira e Meneses (2018), recortam o público dos produtores audiovisuais para analisar o fenômeno e constata que o indivíduo, uma vez inserido no campo, se percebe imune aos discursos, e que 63,6% da amostra concordam em haver algum tipo de controle/censura nos conteúdos produzidos e veiculados na TV aberta e fechada. Os autores se confessam surpresos ao atestarem que existe, em algum nível, o conservadorismo censor por parte daqueles que paradoxalmente lutam pela liberdade de expressão. Quando passamos para o tópico da censura chegamos a inesperadas conclusões. O campo profissional, que hoje em dia ecoa pelos quatro cantos do país a luta pela liberdade artística, chega a ser conservador quando em algum momento levantamos a questão de permitir algum nível de análise ou filtragem de conteúdos. (FERREIRA; MENESES. 2018. p.116) Embora não seja o foco dessa pesquisa analisar o comportamento censurante, o paralelo que se faz com esses dois últimos artigos é o fato de que os sujeitos pesquisados serem ambos profissionais da comunicação ligados à produção de conteúdo, assim como o ilustrador chargista também é. O sexto capítulo do livro, traz a pesquisa de Oliveira, Okama e Pôrto Jr. (2018), levantando a percepção da população de AltamiraPA sobre os impactos socioambientais gerados pela construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Com os dados obtidos, os autores puderam concluir que o discurso apresentado pela mídia sobre a usina favorece a ideia de progresso nacional em detrimento ao Adriano Alves da Silva; André Demarchi | 179 impacto ambiental causado, e ainda, que essas ideias não representam a população local diretamente impactada. Apoiados por Davison (1983) e Noelle-Neumann (1995), salientam que esses estudos apoiam teorias já existentes, como a Espiral do Silêncio, apresentada 1972, onde a percepção da opinião pública geral prevalece fazendo silenciar e conformar as minorias. Aqui observase uma importante lacuna para ser desvendada em estudos posteriores, visto que o preconceito é por natureza silenciador. No universo das charges, se buscou investigar a existência de preconceitos para com os povos indígenas, tomando como ponto de partida as seguintes hipóteses: 1) Os entrevistados, ao serem expostos ao conjunto das 18 charges hão de notar que as mensagens das charges são discriminatórias, portanto negativas; 2) Ao perceberem a negatividade com que os indígenas são expostos tenderão a se proteger negando serem preconceituosos e atribuirão o preconceito a outrem. O questionário foi criado de forma digital, com a ferramenta de formulários da plataforma Google, em que, depois de dar aceite ao “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”, e preencher as informações preliminares como: nome, sexo, idade e grau de instrução, o pesquisado é levado a uma tela que traz as imagens das charges coletadas na sequência em que foram obtidas no buscador, sem categorização. Todas as 18 charges são mostradas uma após a outra15. Posterior a isso, autodenomina-se indígena ou não. Caso o entrevistado respondesse afirmativamente, era levado a um campo de perguntas específicas16, caso contrário, continuava para uma próxima seção em que respondia às perguntas conforme as imagens que viu. 15 Ressalta-se que o objetivo da pesquisa não foi se debruçar na interpretação individual das charges, por parte dos entrevistados, mas expô-los ao conjunto, na intenção de obter a percepção geral de como seriam interpretadas em sua totalidade, assim como seriam vistas através de uma pesquisa imagética do Google. 16 Os formulários digitais da plataforma Google permitem criar ações com base nas respostas. Desta forma, é possível criar dois questionários diferentes que automaticamente são direcionados conforme a resposta. 180 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social As imagens foram igualmente mostradas para os dois grupos de respondentes, o grupo dos indígenas e o grupo dos não indígenas. O questionário aplicado para o grupo dos respondentes indígenas foi criado de forma diferente, pois algumas perguntas que investigam o Efeito da Terceira Pessoa foram extraídas. Seria contraditório questionar ao indígena se seria preconceituoso para com os indígenas. As perguntas se limitam a respostas binárias do tipo sim ou não, pois a intenção não é mensurar o quanto um determinado sujeito é preconceituoso. O objetivo é saber se existe ou não o preconceito, por entender que uma pessoa ou é preconceituosa ou não é. Para os respondentes não indígenas, as perguntas sobre a terceira pessoa, “o outro” não é especificado, ficando a cargo do entrevistado entender se tratar de qualquer outra pessoa. No caso das perguntas direcionadas ao público indígena, o outro é especificado ser “o não indígena”. Ao todo, foram coletadas 137 respostas. Dessas, 118 pessoas se autodeclararam não indígenas (o equivalente à 86,1% da amostragem), e 19 pessoas se autodeclararam indígenas (13,9%). 81 pessoas são do sexo feminino (59,1%), e 56 do sexo masculino (40,9%). Os resultados e discussões são apresentados na tabela 1. Tabela 1 - Hipótese do Efeito da Terceira Pessoa (universo de 118 pessoas não indígenas). É preconceituoso para com os indígenas? Primeira pessoa - Eu (self) Sim Não 20 pessoas 98 pessoas 16,9% 83,1% Terceira pessoa - Outros (Others) Sim Não 115 pessoas 3 pessoas 97,5% 2,5% Fonte: Elaborado pelos autores A tabela 1 traz o resultado da pergunta direcionada exclusivamente para o grupo de respondentes não indígenas, e diz respeito à hipótese do efeito de terceira pessoa. Conforme os resultados obtidos, pode-se constatar que é possível verificar o Adriano Alves da Silva; André Demarchi | 181 fenômeno, pois da amostragem de 118 pessoas, 98 delas responderam que não são preconceituosas para com os indígenas e 20 assumiram ser, mas quando perguntados sobre o que imaginam pensar outras pessoas, 115 pessoas disseram que os outros são preconceituosos e apenas três disseram que os outros não são. Ainda que os percentuais elucidem claramente o fenômeno, não se pode deixar de registrar a surpresa em perceber que 20 pessoas, o equivalente a 16,9% da amostra, se assume preconceituosa. Apesar de aparentemente baixa, a porcentagem demonstra a grave constatação de que o preconceito se mostra assumidamente presente na sociedade. Tabela 2 - Hipótese do Efeito da Terceira Pessoa (universo de 19 pessoas indígenas). Você acredita que o não índio é preconceituoso para com os indígenas Universo de 19 pessoas (indígenas) Sim 19 pessoas 100% Não 0 0 Fonte: Elaborado pelos autores No caso dos respondentes indígenas, “o outro” para eles é o não indígena, e conforme podemos constatar no resultado, todos foram unânimes em registrar que existe o preconceito. O dado é impressionante, pois, embora exista a diferença numérica da amostragem entre os dois grupos, isso não impede que se faça uma análise dessa percepção, em que 100% dos respondentes, entende que há preconceito. Outro dado pertinente que foi percebido, é que no “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”, da qual os entrevistados eram submetidos, havia um parágrafo que os possibilita receber os resultados da pesquisa, bastando para isso entrar em contato com o pesquisador. Dos 137 respondentes, 10 entraram em contato, todos eles indígenas, mostrando interesse nos 182 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social resultados. Isso demonstra o interesse e a preocupação com a relação interétnica hierárquica a que são submetidos. Tabela 3 - Percepção sobre as charges (pergunta feita para os dois grupos). Nas Charges apresentadas, o índio aparece de forma: Não indígena (universo de 118 pessoas) Enaltecida Depreciada 7 pessoas 111 pessoas 5,9% 94,1% Indígena (universo de 19 pessoas) Enaltecida Depreciada 2 pessoas 17 pessoas 10,5% 89,5% Fonte: Elaborado pelos autores Os dois grupos foram expostos às 18 charges que fazem parte do objeto desse estudo. As imagens foram colocadas na sequência da qual apareceram no buscador, sem a categorização a que foram submetidas neste artigo, evitando assim, direcionar o pensamento dos entrevistados para uma relação lógica entre elas. Os resultados obtidos trazem uma percepção negativa da imagem do índio representada nas charges por parte dos dois grupos. Os percentuais evidenciam que os artistas ao retratar a imagem do índio, supostamente trabalhando em favor da sua causa, o fazem se utilizando dos estereótipos e ideias equivocadas. Tabela 4 - Percepção sobre as charges (pergunta feita para os dois grupos). Você acredita que as Charges apresentadas favorecem a causa indígena? Não indígena (universo de 118 pessoas) Sim Não 37 pessoas 81 pessoas 31,4% 68,6% Indígena (universo de 19 pessoas) Sim Não 7 pessoas 12 pessoas 36,8% 63,2% Fonte: Elaborado pelos autores Embora não seja possível notar uma diferença expressiva nos percentuais obtidos, é possível notar que parte de ambos os grupos percebem que as charges não favorecem as causas indígenas. Isso coloca em questão a verdadeira intenção dos artistas, trazendo à tona as polissemias presentes nos discursos que apresentam. Adriano Alves da Silva; André Demarchi | 183 Tabela 5 - Percepção sobre as charges (pergunta feita para os dois grupos). Você acredita que as mensagens das imagens criam estereótipos para os indígenas? Não indígena (universo de 118 pessoas) Indígena (universo de 19 pessoas) Sim Não 101 pessoas 17 pessoas 85,6% 14,4% Sim Não 16 pessoas 3 pessoas 84,2% 15,8% Fonte: Elaborado pelos autores Ambos os grupos entenderam que as mensagens explícitas nas imagens das charges criam estereótipos para os indígenas, e isso vem a ser coerente com as ideias equivocadas apresentadas pelos autores Freire (2002), Demarchi e Morais (2015). O que se pode concluir com esses dados é que as charges, ao trabalharem a sátira, colocam o sujeito indígena em posição ridicularizada. O motivo do riso se coloca como ferramenta disseminadora de estereótipos generalizantes. Tabela 6 - Percepção sobre as charges versus hipótese do efeito da terceira pessoa (pergunta feita para os dois grupos). Como você imagina que outras pessoas entenderiam as charges apresentadas? Não-indígena (universo de 118 pessoas) De forma Positiva De forma Negativa 34 pessoas 28,8% 84 pessoas 72,2% Indígena (universo de 19 pessoas) De forma Positiva De forma Negativa 4 pessoas 21,1% 15 pessoas 78,9% Fonte: Elaborado pelos autores Ao cruzar a percepção das charges com o que imaginam sobre os efeitos que elas fariam com a terceira pessoa, pode-se observar que a maioria dos entrevistados atribuiu percepções negativas de terceiros. Mesmo não sendo a intenção desse estudo mensurar a probabilidade de censura das mensagens das imagens, não devemos ignorar o que apresenta Perloff(1993), que coloca que esse tipo de percepção pode levar a atitudes censurantes. 184 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social Tabela 7 - Percepção sobre a hipótese do efeito da terceira pessoa (pergunta feita para o grupo não indígena). Como enxergam os índios (possibilidade de assinalar mais de um item). Descrição Os índios são atrasados. Pertencem ao passado. Os Índios são preguiçosos. Primeira pessoa Eu (self) 3 pessoas 2,5% Terceira pessoa Outros (Others) 55 pessoas 46,6% 8 pessoas 6,8% 77 pessoas 65,3% Terra de índio é improdutiva. 3 pessoas 2,5% 51 pessoas 43,2% Perante a Constituição, o índio possui mais direitos que um cidadão nãoíndio. As terras indígenas representam um atraso para o desenvolvimento dos municípios que a cercam. Índio tem que ser índio e não deve sucumbir à modernidade. Nenhum dos anteriores. 19 pessoas 16,1% 63 pessoas 53,4% 4 pessoas 3,4% 63 pessoas 53,4% 17 pessoas 14,4% 56,8% 81 pessoas 68,6% 67 pessoas 7 pessoas 5,9% Fonte: Elaborado pelos autores A pergunta da tabela 7 difere-se das demais por possibilitar ao entrevistado marcar mais de uma opção, e visa, sobretudo, mensurar o efeito das ideias equivocadas da primeira pessoa em comparação com a terceira pessoa, bem como traçar quais equívocos são mais recorrentes. Os resultados evidenciam a presença do fenômeno da terceira pessoa, pois, conforme se nota na tabela, a coluna que trata da primeira pessoa leva percentuais consideravelmente baixos, com uma média de 7,61%, exceto na última descrição que diz: “Nenhum dos anteriores”, com 68,6% dos respondentes, ao contrário do que ocorre na coluna que traz os dados da “terceira pessoa”, onde os percentuais variam, mas mantém-se em uma média de 53,11%, também excluindo a descrição de “nenhum dos anteriores” com a percentual de 5,9%. Os dados elucidam ainda que, mesmo na primeira pessoa, alguns equívocos são recorrentes, como por exemplo, a percepção Adriano Alves da Silva; André Demarchi | 185 de que os índios gozam de direitos privilegiados perante a lei, com 16,1% dos respondentes, bem como, não devem sucumbir à modernidade, com 14,4% dos respondentes. Mesmo com percentuais aparentemente baixos, esses dados não devem ser ignorados, e na verdade são muito graves, uma vez que tratam da percepção da primeira pessoa, ou seja, pessoas que assumidamente se declaram preconceituosas. Tabela 7 - Percepção sobre a hipótese do efeito da terceira pessoa (pergunta feita para o grupo indígena). Como o não índio enxerga o índio (possibilidade de assinalar mais de um item). Descrição Universo de 19 indígenas Os índios são atrasados. Pertencem ao passado. 12 pessoas 63,2% Os Índios são preguiçosos. 12 pessoas 63,2% Terra de índio é improdutiva. 11 pessoas 57,9% Perante a Constituição, o índio possui mais direitos que um cidadão não-índio. As terras indígenas representam um atraso para o desenvolvimento dos municípios que a cercam. Índio tem que ser índio e não deve sucumbir à modernidade. Nenhum dos anteriores. 10 pessoas 52,6% 12 pessoas 63,2% 16 pessoas 84,2% 0 0 Fonte: Elaborado pelos autores Ao grupo dos indígenas, quando perguntados sobre os preconceitos que lhes são atribuídos pelos não indígenas, os resultados trouxeram percentuais expressivos em todos os quesitos negativos. Isso deixa claro que eles percebem esses preconceitos em suas relações interétnicas. Um desses dados se sobressai, o fato de que o não índio entende que “o índio tem que ser índio e não deve sucumbir à modernidade”, com 84,2% das respostas, o que equivale a 16 pessoas em um universo de 19 respondentes. Esta é a comprovação de que a ideia equivocada de que o índio possui 186 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social culturas atrasadas e que a modernidade não lhes faz parte é de fato percebida por ambos os grupos. Tabela 8 - Percepção sobre o silenciamento das culturas indígenas (pergunta feita para ambos os grupos). A cultura do não índio procura silenciar as culturas indígenas? Não indígena (universo de 118 pessoas) Sim Não 104 pessoas 14 pessoas 88,1% 11,9% Indígena (universo de 19 pessoas) Sim Não 14 pessoas 4 pessoas 77,8% 22,2% Fonte: Elaborado pelos autores Por fim, ao serem perguntados sobre o silenciamento das culturas indígenas, ambos os grupos atestaram que existe a intenção de silenciamento. Isso traz a conclusão de que além dos indígenas, o próprio grupo não indígena reconhece essa intenção, com uma porcentagem até maior que a obtida no grupo indígena. Analisando de forma geral os dados da pesquisa, fica evidente que existe o preconceito, e esse aparece velado quando se trabalha sob a ótica da hipótese do efeito de terceira pessoa, mas surpreendentemente emerge de forma clara quando se trata da intenção de silenciamento. Considerações finais O caminho percorrido para chegar a linha de pensamento desse estudo trouxe, em razão da formação de seus autores, o cruzamento epistêmico de saberes da comunicação com a antropologia, permeando também a sociologia, psicologia, filosofia, estatística, entre outros. Isto prova que a cientificidade do campo comunicacional está fundada na sua transversalidade com outras ciências. As teorias da comunicação são incansavelmente estudadas e novas complexidades vão surgindo a medida que novos objetos são recortados por diferentes pontos de vista. A multiplicidade de aplicações e a profundidade das análises dos desdobramentos de Adriano Alves da Silva; André Demarchi | 187 recepção da mídia trazem novas abordagens acompanhadas de novas perguntas. Nesse contexto, há de se perceber que as charges são objetos artísticos capazes de interagir, construir e retroalimentar sistemas sociais, sejam elas criadas para criticar, exagerar, chocar, emocionar ou simplesmente trazer o riso. Contudo, não devem ser reduzidas ao que trazem em sua concepção estética e enunciativa, por outro lado, mostram-se agentes em complexos conjuntos de intencionalidades. O estudo por ora realizado trouxe evidências de que as ideias equivocadas sobre os povos indígenas, infelizmente, continuam sendo partilhadas e povoam o imaginário do senso comum, e isso se faz presente nas charges, que involuntariamente (ou não) reforçam estes preconceitos. Os estereótipos forjados generalizam representações simbólicas na qual o sujeito indígena é reduzido a imagens negativas. Por consequência, emergem preconceitos que aparentemente são velados. O que se pode concluir com tais afirmações, é que as imagens dos povos indígenas nas charges são atravessados por estes preconceitos que sorrateiramente cristalizam e generalizam a imagem destes povos. A hipótese do efeito de terceira pessoa foi confirmada conforme os dados obtidos, levando-nos a perceber que os não indígenas possuem uma percepção negativa do outro (other) em detrimento a sua própria percepção (self). Com isso, afirmam que os outros seriam preconceituosos. Existe um paradoxo em pensar que um entrevistado, ao atribuir uma percepção negativa a outro, é ele mesmo, o outro de alguém. Isso nos faz constatar que as pessoas são preconceituosas, embora de forma oculta, pois projetam em terceiros aquilo que não desejam para si mesmos. Mas não há como separar a projeção daquilo que imaginamos dos outros, daquilo que realmente percebemos em nós, pois somos nós mesmos o “outro de alguém”. E assim, continuamos a perpetuar o preconceito, mesmo que de forma velada. 188 | Media Effects, vol. 5: Newsmaking, gatekeeping e teoria social Há de se concluir, que existe uma forte ligação entre os interdiscursos das charges, com as ideias equivocadas sobre os povos indígenas, alimentando assim o ciclo do preconceito. Se já é preocupante constatar que os entrevistados percebem preconceitos nas charges, e como forma de proteção através do efeito de terceira pessoa atribuem estes preconceitos aos outros (others); o que dizer então sobre o fato de que 16,9% das pessoas entrevistadas se assumiram preconceituosas? Mesmo compreendendo a irreverência satírica da qual a charge se vale, é tênue a linha que separa a reflexão crítica de protesto, dos discursos preconceituosos que circulam no imaginário do senso comum. Estes preconceitos se colocam presentes em uma complexa teia de sentidos, discursos e ideologias que arrastam-se no tempo insistentemente, mas que precisam ser questionados tanto pelos produtores de charges, quanto pela própria sociedade brasileiras em seus mais diversos grupos sociais. Referências ADRIAN, Alessandra B. Bacelar Abreu; GOMES, Luciano S.; PÔRTO JR, Francisco G. R. A influência da mídia na promoção da imagem da polícia militar em alunos e ex-alunos de colégios militares do Tocantins: uma análise a partir do efeito de terceira pessoa. In: PÔRTO JR, Gilson et al. Media effects: ensaios sobre teorias da Comunicação e do Jornalismo, volume 2. Porto Alegre: Editora Fi, 2018. p. 63-01. AGOSTINHO, Aucione Torres. A charge. São Paulo: ECA/USP, 1993. Tese (Doutorado em Comunicação). ECA-USP, São Paulo, 1993. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. CASTRO, Eduardo Viveiro de. Os involuntários da pátria: elogio do subdesenvolvimento. 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