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História da Construção - Os Construtores Arnaldo Sousa Melo e Maria do Carmo Ribeiro (coord.) SoCiedade e eConoMia Coord. Maria do CarMo ribeiro arnaldo SouSa Melo Coord. Maria do CarMo ribeiro arnaldo SouSa Melo Construir, Habitar: A Casa Medieval Manuel Sílvio Alves Conde eVoluÇÃo da PaiSaGeM urbana eVoluÇÃo da PaiSaGeM urbana SoCiedade e eConoMia outros títulos de interesse: Maria do CarMo ribeiro eVoluÇÃo da PaiSaGeM urbana SoCiedade e eConoMia Coord. Maria do CarMo ribeiro arnaldo SouSa Melo Professora Auxiliar do Departamento de História da Universidade do Minho, Investigadora do CITCEM e da Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho. Doutorada em Arqueologia, na especialidade de Arqueologia da Paisagem e do Território, pela Universidade do Minho. A sua investigação tem-se centrado nas questões de urbanismo, morfologia urbana, arqueologia da arquitectura e história da construção. arnaldo SouSa Melo Professor Auxiliar do Departamento de História da Universidade do Minho, Investigador do CITCEM. Doutorado em História da Idade Média pela Universidade do Minho e pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. O seu campo de investigação incide sobre a sociedade, economia, poderes e organização do espaço urbano medieval, em particular a organização do trabalho e da produção, incluindo a história da construção. EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA SOCIEDADE E ECONOMIA COORD. MARIA DO CARMO RIBEIRO ARNALDO SOUSA MELO FICHA TÉCNICA Título: Evolução da paisagem urbana: sociedade e economia Coordenação: Maria do Carmo Ribeiro, Arnaldo Sousa Melo Figura da capa: Detalhe do Mappa da Cidade de Braga Primas, 1755, atribuído a André Soares, pertencente à Biblioteca da Ajuda (Lisboa). Edição: CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória» Design gráico: Helena Lobo www.hldesign.pt ISBN: 978-989-97558-7-1 Depósito Legal: 343493/12 Concepção gráica: Sersilito-Empresa Gráica, Lda. www.sersilito.pt Braga, Maio 2012 O CITCEM é inanciado por Fundos Nacionais através da FCT-Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projecto PEst-OE/HIS/UI4059/2011 SUMÁRIO Apresentação Maria do Carmo Ribeiro e Arnaldo Sousa Melo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 Nascita e sviluppo monumentale della città romana di Ostra (AN) Pier Luigi Dall’Aglio, Michele Silani e Cristian Tassinari. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 Urbanismo e Arquitetura de Bracara Augusta. Sociedade, economia e lazer Manuela Martins, Jorge Ribeiro, Fernanda Magalhães e Cristina Braga . . . . . . . . . . . 29 Dalla città romana alla città tardoantica: trasformazioni e cambiamenti nelle città della pianura padana centro-occidentale Pier Luigi Dall’Aglio, Kevin Ferrari e Gianluca Mete . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69 A evolução do tecido urbano laviense desde Aquae Flaviae a Chaves Medieval: Síntese de Resultados João Ribeiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99 Urbanismo e poder na fundação de Portugal: a reforma de Coimbra com instalação de Afonso Henriques Walter Rossa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127 A inluência das atividades económicas na organização da cidade medieval portuguesa Maria do Carmo Ribeiro e Arnaldo Sousa Melo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145 El impacto de las actividades industriales en el paisaje urbano de la Corona de Aragón (siglo XV) Germán Navarro Espinach. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173 Entre os "ideais e a realidade". A urbanização do Porto na Baixa Idade Média Helena Teixeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185 Casas da Câmara ou Paços do Concelho: espaços e poder na cidade tardo-medieval portuguesa Luísa Trindade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209 O Impacto da Rua Nova do Porto no urbanismo, construção e sociedade Helena Pizarro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229 Na passagem do Estreito: evolução urbana do “castelo pequeno” entre mouros e cristãos Jorge Correia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243 O Porto visto do rio Luís Miguel Duarte. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261 he regulation of ‘nuisance’: civic government and the built environment in the medieval city Sarah Rees Jones . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 283 APRESENTAÇÃO MARIA dO CARMO RIbEIRO ARNAldO SOUSA MElO O estudo da cidade histórica em Portugal tem sido condicionado, em larga medida, por critérios cronológicos ou temáticos especíicos. Reira-se a título de exemplo os estudos realizados sobre a cidade romana, medieval, moderna e colonial, ou contemporânea, mas também aqueles que privilegiam a história económica e social, ou o urbanismo e a arquitetura. Por im, merece igualmente destaque o contributo dado pelos estudos realizados por geógrafos, centrados em aspectos especíicos do plano urbano. Na generalidade tratam-se de estudos sincrónicos realizados numa perspectiva metodológica muito especíica da área do saber que os promove. Todavia, a análise do fenómeno urbano implica, na maioria dos casos, uma perspectiva diacrónica da ocupação do espaço, bem como o uso de fontes e metodologias variadas. Com o objetivo de quebrar a tendência vigente para a compartimentação do estudo da cidade organizou-se o I Colóquio Internacional Evolução da Paisagem Urbana: Sociedade e Economia em Maio de 2011, na Universidade do Minho, com o qual se pretendeu dar início a um Ciclo mais vasto. Este Colóquio teve como principal objetivo a análise histórica das inter-relações entre as estruturas económicas, sociais e políticas e a paisagem urbana, nas suas expressões materiais tais como espaços ou edifícios públicos, ou privados, civis ou religiosos, defensivos ou económicos, entre outros. Foi, igualmente, privilegiada a análise dos condicionamentos legislativos, tais como disposições ou regras de ordenamento urbano, como manifestação dessas inter-relações. Pretendeu-se, assim, avaliar os diferentes mecanismos que condicionaram ou foram condicionados pela transformação dos tecidos urbanos. De facto, o estudo da Evolução da Paisagem Urbana assume-se como um tema fortemente multidisciplinar, que beneicia dos contributos conceptuais e metodológicos de diferentes áreas do saber, bem como do cruzamento de diferentes fontes e perspetivas de análise. 5 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA A análise da génese e evolução do espaço urbano na sua relação com as atividades sociais e económicas constitui uma dimensão com peso signiicativo na compreensão da transformação da paisagem urbana, tema que elegemos para dar início a um ciclo de estudos na perspectiva da análise diacrónica das cidades históricas. Deste modo o presente livro, resultante, em parte, do desenvolvimento das temáticas apresentadas neste I Colóquio, congrega um conjunto de estudos de investigadores de diversas universidades, nacionais e estrangeiras, incluindo historiadores, arqueólogos, historiadores da arte e arquitetos, de origem portuguesa, espanhola, italiana e inglesa, centrando-se numa cronologia larga, do período romano ao tardo Medieval e Moderno (século XVI). Esta obra inicia-se com um conjunto de trabalhos sobre cidades romanas em território português e italiano, que procura abordar o espaço urbano, numa perspetiva diacrónica, em articulação com diferentes aspetos da economia e da sociedade. Pier Luigi Dall’Aglio, Michele Silani e Cristian Tassinari tratam do nascimento e evolução da cidade romana de Ostra, em Itália, entre o inal do século I a.C. e a primeira metade do século I d.C., caraterizando os seus principais elementos constitutivos, nomeadamente o forum, os principais edifícios públicos, sagrados e profanos, e áreas residenciais deinidas por uma malha regular de ruas pavimentadas. Os autores deram particular destaque na sua abordagem à monumentalização progressiva da praça central. Por sua vez, Manuela Martins, Jorge Ribeiro, Fernanda Magalhães e Cristina Braga abordam a evolução da cidade romana de Bracara Augusta, entre a sua fundação, nos inais do século I a.C. e o século IV, analisando em particular o contexto histórico, político e geográico que conduziu à sua criação, bem como a precoce implantação do seu traçado ortogonal. Os autores debruçam-se ainda sobre as caraterísticas e evolução da arquitetura pública e privada, na sua relação com a atividade económica e a organização social. Sobre a transformação da cidade romana para a tardo-antiga, Pier Luigi Dall’Aglio, Kevin Ferrari e Gianluca Mete analisam as cidades da planície padana centro-ocidental, designadamente Cremona, Piacenza e Pavia. A partir do século III d.C. veriicam-se alterações na estrutura urbana destas cidades, designadamente através da construção de novas fortiicações, igrejas e palácios, mas também com a introdução de novas técnicas construtivas, bem como devido à proliferação de atividades rurais entre muros. Estamos em presença do nascimento dos núcleos urbanos medievais. Por im, João Ribeiro analisa a evolução urbana da cidade de Chaves, desde a sua fundação romana até à Idade Média. Desde o século I d.C., como Aquae Flaviae, a cidade conheceu sucessivas ocupações, condicionadas por circunstâncias geográicas e históricas variadas. O autor pretendeu, através da aplicação de uma 6 APRESENTAÇÃO metodologia multidisciplinar, obter algumas respostas a questões levantadas em estudos anteriores e à formalização de novas problemáticas de análise, privilegiando uma análise diacrónica do espaço urbano. Nesse sentido, cruzou diferentes fontes de informação, dando particular ênfase aos elementos materiais remanescentes, quer soterrados, quer integrados no tecido urbano atual, mas também às fontes arqueológicas, cartográicas e documentais. A sua abordagem beneiciou do recurso às novas tecnologias de informação. Segue-se um outro grupo de trabalhos sobre a inluência das atividades políticas, económicas e sociais na organização da paisagem urbana medieval. Destaca-se o trabalho de Walter Rossa sobre o urbanismo e o poder na fundação de Portugal, através da análise do caso das reformas urbanas levadas a cabo em Coimbra, por D. Afonso Henriques. O autor procura mostrar como a instalação do primeiro rei naquela cidade teve uma expressão urbanística concreta, reveladora dum projeto político, que visava a sua transformação em cidade capital. Maria do Carmo Ribeiro e Arnaldo Sousa Melo procederam a uma abordagem acerca do papel das atividades económicas na organização da cidade medieval portuguesa, procurando desde logo identiicar quais os sectores com maior expressão, a sua localização no plano urbano e, posteriormente, a forma como inluenciaram e /ou foram inluenciados pela evolução da paisagem urbana. Através da análise de alguns exemplos concretos, designadamente das cidades de Braga e do Porto, os autores procuraram demonstrar a reciprocidade existente entre a implantação das atividades comerciais e produtivas e a estruturação do tecido urbano medieval. Germán Navarro Espinach inicia o seu estudo com um balanço sobre os trabalhos realizados nos últimos anos acerca do impacto das atividades industriais na paisagem urbana da Coroa de Aragão. De seguida apresenta uma análise mais detalhada do sector das sedas na cidade de Valência, no século XV. Através deste exemplo o autor pretende destacar a importância da utilização conjunta de diferentes tipos de fontes documentais designadamente escritas, arqueológicas e toponímicas para o estudo da paisagem urbana medieval. German Navarro destaca a análise da evolução dos diferentes componentes urbanos na sua interligação com o contexto histórico concreto, contrariando uma visão “formalista do urbanismo”, que se pretende explicar independentemente da história económica e social do território. A partir da análise da urbanização do Porto medieval, Helena Teixeira analisa os mecanismos sociais, políticos e económicos que inluenciaram e condicionaram a evolução da paisagem daquela cidade. Tal como outros autores, privilegia a utilização de diferentes fontes, nomeadamente o espaço físico da cidade atual em articulação com fontes escritas. Contrariamente à maioria dos estudos existentes sobre a paisagem urbana do Porto medieval, que se concentram em zonas especíicas da cidade e não no seu todo, a autora analisa os vários interesses que se 7 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA confrontaram em simultâneo nesta cidade, tentando perceber o crescimento urbano como resultado dessas tensões. Pretendeu apresentar uma nova visão da construção da cidade medieval, não focada na sua descrição física, mas na compreensão dos mecanismos que a determinaram. Com o objectivo de compreender a génese do espaço do poder concelhio – a Casa da Câmara ou Paço do Concelho – na cidade Medieval Portuguesa, Luísa Trindade analisa várias questões relacionadas com o seu aparecimento e evolução. A autora procura explicar o quando e o porquê do surgimento da casa da câmara, qual a sua coniguração espacial, bem como a sua evolução formal, em resposta a questões funcionais, ou a mecanismos retóricos de airmação social. Ilustrou a sua análise com o recurso a vários paços concelhios medievais de diferentes cidades portuguesas. Por sua vez, Helena Pizarro procura apresentar novas perspetivas sobre a abertura da Rua Nova do Porto, nos séculos XV e XVI, analisando alguns aspetos até agora menos aprofundados. A autora pretende compreender de que forma esta Rua interferiu na forma de agir e de pensar o urbanismo por parte dos poderes, tendo em conta as regras estipuladas pelos monarcas no que respeita à organização do espaço, à construção do ediicado, ou ao seu embelezamento, bem como à dimensão social dos seus habitantes, entre outros. Para tal, a autora procura analisar o antes e o depois da construção da Rua Nova, de modo a avaliar o impacto por ela causado no urbanismo da cidade. Por im, Jorge Correia analisa o exemplo de Alcácer Ceguer, cidade do Norte de África, durante o período de domínio português, entre 1458 e 1550. Tratando-se da única das antigas possessões portuguesas no Magrebe que chega ao presente como um campo arqueológico, tem permitido uma análise da evolução urbana entre a ocupação islâmica e a portuguesa. O autor centra o seu estudo na análise do sistema defensivo e suas implicações na organização do tecido urbano. Dois trabalhos com visões distintas sobre a temática em análise concluem esta obra. O estudo de Luís Miguel Duarte sobre O Porto visto do rio, que aborda o desenvolvimento urbanístico da zona ribeirinha da cidade, na Baixa Idade Média, numa perspetiva económica e política, que inclui as duas margens do rio Douro, do Porto medieval até ao mar. O autor analisa as questões de comércio, transporte e produção próprias das zonas portuárias da cidade, inserindo-as em diferentes escalas e âmbitos geográicos e económicos. Por sua vez, Sarah Rees Jones debruça-se sobre a regulamentação da “nuisance” nas cidades tardo-medievais inglesas. O termo aplicava-se a um vasto leque de ofensas menores, regulamentadas ao nível das instituições administrativas locais urbanas, as parishes e os wards. Essas ofensas incluíam a falta de reparação de edifícios arruinados, a obstrução de ruas, ou deixar o lixo em locais interditos, entre 8 APRESENTAÇÃO outros. Mas também compreendiam comportamentos antissociais, que incluíam a perturbação da tranquilidade noturna. As fontes judiciais sobreviventes permitem analisar a perceção social sobre estas questões, bem como o contexto político e social dessa regulamentação. Gostaríamos de inalizar, agradecendo a todos aqueles que tornaram possível esta publicação. Ao CITCEM e à FCT, ao Departamento de História da Universidade do Minho e, de modo muito particular, aos autores dos diferentes artigos que, com as suas diferentes perspetivas de investigação, contribuíram para o enriquecimento dos estudos sobre a inluência da sociedade e da economia na evolução da paisagem urbana. 9 NASCITA E SvIlUPPO MONUMENTAlE dEllA CITTà ROMANA dI OSTRA (AN) PIER lUIgI dAll’AglIO, MIChElE SIlANI, CRISTIAN TASSINARI1 Le ricerche che l’Università di Bologna conduce a partire dal 2006 nella città romana di Ostra, situata in Italia nella regione Marche, attraverso una metodologia di scavo di tipo estensivo aiancata da approfondimenti mirati, stanno permettendo di deinire i processi di evoluzione della città2, a partire dalle prime fasi di presenza nell’area urbana ino al momento del deinitivo abbandono, avvenuto in epoca tardoantica. Il quadro storico che sta emergendo è molto articolato, e in qualche modo supera il tradizionale modello di interpretazione dei processi evolutivi dei centri urbani minori, che riconosce nell’età augustea il periodo di massimo sforzo in senso monumentale, ridimensionandone la portata nell’ambito di uno svolgimento più graduale e protratto nel tempo. La nascita di Ostra è tradizionalmente legata al processo di organizzazione economico-amministrativa avvenuto a seguito dell’espansione e della deinitiva conquista del territorio marchigiano da parte di Roma nel corso del III secolo a.C.: l’insediamento, ricordato tra le città della VI regio Umbria et Ager Gallicus, secondo la sudddivione in regiones di età augustea, sorse sul primo terrazzo luviale di dimensioni signiicative a est della zona appenninica, in relazione alla viabilità incentrata sull’asse della via Flaminia, situandosi lungo il percorso che collegava la via consolare con la colonia di Sena Gallica passando per la valle del iume Misa (Fig. I). Dalle fonti storiche ed epigraiche a disposizione si ricostruiscono solo alcuni momenti dello sviluppo della città, che con ogni probabilità nacque come Dipartimento di Archeologia dell’Università di Bologna (Italia), pierluigi.dallaglio@unibo.it; michele. silani2@unibo.it; cristiantass@libero.it. 2 Silani, Tassinari 2009, pp. 203-205. 1 11 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. I. La città romana di Ostra (AN) nella media valle del iume Misa (Marche, Italia). conciliabulum civium Romanorum, ovvero un nucleo abitativo di importanza centrale nell’ambito del territorio. Con la promulgazione delle Lex Flaminia de agro Gallico et Piceno viritim dividundo del 232 a.C., Ostra dovette ricevere lo statuto di praefectura, in appoggio alla colonia marittima di Sena Gallica per una più eiciente organizzazione della zona. Al termine della guerra sociale, durante il riordino amministrativo del territorio peninsulare voluto da Cesare o, più probabilmente, in epoca augustea, Ostra divenne municipium, e in quanto tale dotata dei propri magistrati, i duumviri. Inine, attestata come diocesi agli inizi del VI secolo d.C.3, verrà abbandonata deinitivamente solo dopo il periodo della guerra greco-gotica. I primi scavi archeologici realizzati nella città risalgono agli inizi del Novecento e furono efettuati dal Cavalier Giuseppe Baldoni di Montalto, allora possessore dei terreni su cui anticamente si estendeva la città. Frutto di questa fase di ricerche “non scientiiche” è la carta raigurante gran parte dell’area monumentale urbana, che costituisce una fonte imprescindibile di ogni studio topograico successivo (Fig. II). Gli scavi riportarono alla luce un ediicio termale e un teatro, separati da una larga strada lastricata con direzione NO-SE. La presenza di un secondo asse viario 3 Nel Concilio Romano del 502 troviamo infatti presente un Vescovo Martinianus Ostrensis. Lanzoni 1927, I, p. 493. 12 NASCITA E SVILUPPO MONUMENTALE DELLA CITTà ROMANA DI OSTRA (AN) Fig. II. Planimetria della città di Ostra realizzata durante gli scavi del 1904-1905. perpendicolare al precedente e di un terzo tratto parallelo al primo, delimitavano una vasta area riconosciuta come il foro della città, sulla quale si afacciavano, oltre al teatro, alcuni ediici, tra cui un probabile tempio del quale sopravvivono tuttora consistenti testimonianze. Per quanto riguarda l’impianto termale furono messi in luce complessivamente 25 ambienti, tra i quali si è riconosciuto il calidarium e il frigidarium, con pareti 13 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA rivestite di marmo e il piano pavimentale a mosaico. Sono stati inoltre individuati due forni e si è attestata l’esistenza di una grande vasca, probabilmente con funzione di riserva d’acqua per l’impianto termale. Nella scarna documentazione di scavo viene inoltre data notizia della grande piazza lastricata che si trovava di fronte agli ambienti termali, identiicabile con la palestra, e degli ambienti che si afacciavano direttamente sulla via lastricata che lambiva l’ediicio termale, con sale adibite a riunione. La riesamina dei rivestimenti musivi, avvenuta in occasione di un intervento di restauro conservativo svolto nel 2000, ha permesso di individuare tra la ine del I e l’inizio del II sec. d.C. il momento di realizzazione dei pavimenti4. Limitati approfondimenti realizzati nelle lacune, inoltre, hanno portato al rinvenimento di piani posti più in profondità databili tra l’età tardo repubblicana e l’età augustea5, a testimonianza della probabile presenza di un quartiere residenziale anteriore alla costruzione delle terme. Per quanto concerne la strada che divideva le terme dal teatro, le relazioni degli scavi attestano l’esistenza dei marciapiedi e la presenza dei solchi carrai. Il teatro di Ostra è il più piccolo ediicio di tale tipologia rinvenuto nella regione marchigiana, con un diametro di 44,60 m. L’ediicio, recentemente oggetto di lavori di scavo e restauro da parte della Soprintendenza per i Beni archeologici della Marche, presentava la scena delimitata sul fondo da un muro caratterizzato dall’alternanza di nicchie a pianta rettangolare e circolare, mentre il piano era rivestito con grandi mattoni di cotto. L’unico ediicio di Ostra di cui sono sopravvissute testimonianze consistenti si trova a nord-est della zona del teatro e si identiica con un tempio: tale ediicio, delle dimensioni di 25 m di lunghezza per 12 m di larghezza, si conserva per un’altezza di circa 2.5 m dal piano di campagna attuale e per quasi 4 m dal piano originario del foro. Gli scavi condotti agli inizi del 1900 all’interno degli ambienti raggiunsero una profondità di 1,80 m, riportando per lo più materiale di risulta, mentre quelli realizzati all’esterno, lungo la facciata, portarono al rinvenimento delle lastre di calcare appartenenti alla pavimentazione del foro, conservatesi al di sotto di un livello di macerie in cui si rinvennero quattro frammenti di un’epigrafe menzionante l’Imperatore Antonino Pio. Le relazioni degli scavi del 1904 contengono ulteriori dati relativi alla città di Ostra: in un saggio di scavo, efettuato di fronte al tempio, è segnalato il ritrovamento delle fondamenta di un grande ediicio in pietra calcarea con vasti ambienti, mentre 4 5 nera. 14 Landoli 2006. In particolare il caso di Ostra è alle pagine 634-636. Si tratta di una porzione di pavimento in opus signinum e di un mosaico bianco con banda laterale NASCITA E SVILUPPO MONUMENTALE DELLA CITTà ROMANA DI OSTRA (AN) Fig. III. Le nuove aree scavate dal Dipartimento di Archeologia dell’Università di Bologna. nei pressi del teatro vennero ritrovati i resti di un’altra costruzione a pianta absidata, che al momento degli scavi venne identiicata come “tempietto”. Il Dipartimento di Archeologia dell’Università di Bologna, partendo dalla carta del Baldoni, ha iniziato l’indagine presso l’angolo nord-est dell’area forense mettendo in luce anche aree già esplorate dagli scavi storici, allo scopo di valutare il grado di correttezza della rappresentazione cartograica tramandataci e per recuperare quelle informazioni di natura stratigraica, non rilevate all’atto dei primi interventi di scavo, ma fondamentali per deinire i rapporti tra i vari ediici e per delineare le fasi di sviluppo urbano (Fig. III). Grazie a questa opera di ricerca, è stato possibile ricondurre al periodo augusteo i primi interventi di sistemazione dell’area forense in senso propriamente monumentale, con l’ediicazione di un sacello (str. 18), composto in questa fase originaria da una piccola cella, preceduta da un pronao con apertura verso est inquadrata da due colonne. All’interno della cella, a ridosso del muro di fondo, era addossata la base in muratura sulla quale doveva trovarsi la statua di culto della divinità cui era destinato il sacello (Fig. IV). A questa stessa fase appartiene anche l’esedra con fronte aperta verso est (str. 19), situata a lato del sacello e di cui l’indagine è ancora in corso. 15 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. IV. Il sacello d’età augustea (struttura 18). Sempre alla prima età augustea si data anche una lunga struttura muraria con andamento NE-SW, individuata nella parte NW del foro nell’ambito di alcuni sondaggi efettuati al di sotto di un ediicio di cronologia posteriore (str. 4), per la quale non si hanno ancora elementi suicienti per potere avanzare precise ipotesi circa l’efettiva pertinenza a un contesto pubblico. Questi interventi andarono a sovrapporsi a un precedente sistema di organizzazione spaziale del comparto pubblico, riconducibile alla prima fase di occupazione della futura area urbana (III-II sec. a.C.). In tutta l’area del foro, alla profondità di 70/80cm dal piano di calpestio di prima età imperiale, è presente un suolo di frequentazione di colore bruno scuro, dello spessore di circa 20cm, che restituisce ceramica a vernice nera e a impasto grossolano, databile al periodo iniziale della presenza romana nel territorio marchigiano. All’interno di un piccolo saggio di scavo realizzato all’interno di str. 4, sulla sommità di questo livello si sono evidenziati alcuni resti che informano sulle tecniche costruttive di questo periodo, caratterizzate dall’uso di materiale povero (argilla e legno), in continuità con una tradizione riconducibile al periodo precedente quello dell’occupazione romana. 16 NASCITA E SVILUPPO MONUMENTALE DELLA CITTà ROMANA DI OSTRA (AN) In particolare, si è potuta riconoscere la presenza di un palo di legno carbonizzato inisso in una struttura realizzata in pani d’argilla cruda, dei quali era ancora possibile riconoscere la forma. Nonostante la ristrettezza dell’area indagata non consenta di avanzare interpretazioni sulla natura di tale struttura, appare signiicativo come, in un momento che possiamo considerare proto-urbano, vi sia attestazione di una frequentazione nella stessa area che in seguito verrà destinata ad accogliere uno dei maggiori ediici del centro monumentale della città. L’avvenuta deinizione urbana, che possiamo collocare in epoca medio-repubblicana (metà II-inizi I sec. a.C.) si manifesta, invece, mediante l’allestimento di una vasta piazza centrale, che in questa fase non si presentava ancora pavimentata in lastre di pietra come nel periodo di massimo impegno monumentale, ma semplicemente inghiaiata. I riporti artiiciali di ghiaia, dello spessore medio di 60/70cm, hanno restituito alcuni manufatti ceramici signiicativi, perché deposti Fig. V. Alcune tabernae rivolte a est verso la strada basolata N/S. 17 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA con inalità propiziatoria e rituale nei livelli di fondazione del foro. Per uno di questi oggetti, una pisside a vernice nera6 databile alla metà del II sec. a.C., l’indiscussa connotazione rituale trova conferma dal confronto con un esemplare analogo, recante sulla parete una dedica incisa a Giove, rinvenuto nei livelli di fondazione del tempio principale di Potentia Picena, una città romana situata sulla costa marchigiana non molto lontana da Ostra7. Nel settore II di scavo, la cui indagine iniziata nella campagna di scavo del 2009 è ancora in corso, si sono riconosciuti i resti di una singolare struttura, denominata str. 14, databile su base stratigraica alla media età repubblicana e demolita in età augustea, quando fu sostituita da un blocco di costruzioni in muratura nel quale possiamo riconoscere alcune tabernae rivolte a est verso la strada basolata (Fig. V). Struttura 14 si compone dell’allineamento in senso NE/SW di almeno quattro buche, profonde 1.40 m e disposte su due ilari paralleli alla distanza di 65/70 cm, nelle quali possiamo riconoscere dei cavi per la fondazione di montanti lignei a base quadrata. A ogni buca della ila più occidentale, inoltre, è associata una fossa di forma quadrangolare di ampie dimensioni ma meno sviluppata nel senso della profondità (Fig. VI). Tale situazione, oltre a costituire la testimonianza del difuso utilizzo del legno come materiale da costruzione anche per gli ediici di carattere pubblico, consente di avanzare anche alcune ipotesi interpretative. Sotto il proilo planimetrico-strutturale e cronologico, infatti, il contesto ostrense trova limitati ma signiicativi confronti nelle fasi repubblicane dei centri forensi di Cosa, Fregellae, Paestum e Alba Fucens, dove sono attestate strutture formate da coppie di pozzetti allineate tra loro, interpretate come cavi di fondazione per i pontes diribitori8. Il diribitorium era quello spazio pubblico in cui il popolo, suddiviso in curie o tribù, si distribuiva per efettuare le operazioni di voto del corpo civico cittadino9. Tradizionalmente tale suddivisione in gruppi era agevolata dall’organizzazione in corsie dello spazio mediante ilari di pali verticali, raccordati tra loro da assiti di legno o bende di lino. Secondo Varrone, inoltre, la struttura in pali di legno seguì in ordine di tempo una versione più arcaica, in cui queste suddivisioni erano realizzate direttamente mediante ilari di alberi10. A sostegno di quanto riportato dallo scrittore latino, ad Alba Fucens nell’area del foro sono state individuati due tipi di fosse: uno di Del tipo Morel 7512. Frapiccini 2001. In particolare inv. 65783, p. 153. 8 Extebarria Akaiturri 2008, in particolare pp. 105-113; Gros, Torelli 1988, p. 136. 9 Torelli 1991, pp. 39-54. 10 Varro, I.L. VII, 9: In hoc templo faciundo arbores constitui ines apparet. 6 7 18 NASCITA E SVILUPPO MONUMENTALE DELLA CITTà ROMANA DI OSTRA (AN) Fig. VI. Struttura 14: si compone dell’allineamento in senso NE/SW di almeno quattro buche disposte su due ilari paralleli, nelle quali possiamo riconoscere dei cavi per la fondazione di montanti lignei a base quadrata. 19 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA dimensioni maggiori e meno profondo, quasi sempre avente un accumulo di pietre sul fondo, in cui si sono riconosciute le piantate arboree, e uno rappresentato da pozzetti quadrangolari più profondi per l’alloggio delle travi lignee11. Tale situazione trova una precisa corrispondenza nello scavo di Ostra, dove tuttavia le fosse per gli alberi sembrerebbero convivere e aiancarsi alle travi di legno, a formare una struttura coerente e unitaria. Un secondo confronto è dato da Iulia Concordia, unica città romana dell’Italia settentrionale in cui sia documentata una sistemazione precoce dell’area del foro, realizzata attraverso la delimitazione della piazza con ile di pali inissi in pozzetti. In questo caso, invece, la presenza dei recinti di pali viene ricondotta alle pratiche di delimitazione dello spazio sacro secondo il modello dei saepta di tradizione centro-italica12. Il rinvenimento di Ostra solleva alcuni interrogativi circa la correttezza dell’interpretazione13 di tali sistemi strutturali come elementi costituitivi del diribitorium. Se, infatti, tale lettura può ben adattarsi al caso delle colonie di diritto latino di Cosa, Fraegelle, Paestum e Alba Fucens, appare più problematica per Ostra, dotata in questa fase dello statuto di praefectura. Al contrario, l’interpretazione proposta per Iulia Concordia, nella quale si vorrebbe riconoscere in queste palizzate il sistema di delimitazione dello spazio sacrale dei saepta, nonostante sembri risolvere la problematica legata all’aspetto giuridico-amministrativo dello statuto cittadino, non appare perfettamente convincente da un punto di vista topograico-planimetrico14. Questa struttura dalla forte connotazione civile venne demolita in età augustea, nell’ambito del programma di trasformazione del centro cittadino in forme monumentali. Dalla grande quantità di oggetti recuperati dai riempimenti delle fosse emerge con una certa chiarezza che l’atto di rimozione dei pali, con conseguente chiusura delle buche, dovette assumere connotati sacrali: considerando, infatti, la posizione centrale della struttura e la grande importanza ancora attribuita in età augustea agli atti di consacrazione delle aree pubbliche, è da escludersi che tale quantità di vasellame possa derivare semplicemente dallo scarico di riiuti domestici nelle fosse, mentre pare più plausibile l’ipotesi che questi elementi siano la testimonianza della celebrazione di una cerimonia pubblica, nell’ambito della quale, data l’abbondanza di ossa animali recuperate insieme ai materiali ceramici, dovette svolgersi un banchetto. Sono comunque proprio i materiali recuperati a De Visscher, Mertens 2004, pp. 110-121. Villicich 2007, pp. 24-25. 13 Già sollevata, tra l’altro, da alcuni studiosi. 14 Si auspica, pertanto, che la prosecuzione delle indagini archeologiche, sia a Ostra che in altri contesti urbani, possa in futuro fornire ulteriori elementi per giungere alla corretta lettura di tali contesti. 11 12 20 NASCITA E SVILUPPO MONUMENTALE DELLA CITTà ROMANA DI OSTRA (AN) suggerire il momento di demolizione della struttura: in particolare, i numerosi reperti in sigillata aretina sono tutti databili a età pre-tiberiana sulla base dei bolli entro cartiglio rettangolare, così come l’unico rinvenimento numismatico, riferibile a un’emissione del magistrato monetale P. Lurius Agrippa del 7 a.C (Fig. VII). Da questo momento prenderà avvio il processo di trasformazione in senso monumentale del centro cittadino che porterà, nel giro di un paio di secoli circa, alla deinizione dello spazio forense nella sua forma evoluta, caratterizzata dall’accentramento delle funzioni economiche, politiche e religiose all’interno di un unico ampio spazio chiuso, coincidente con la situazione fotografata dalla carta del Baldoni. A partire dall’età imperiale tutta la piazza forense viene pavimentata con lastre di marmo e di calcare, conservatesi in più punti, e viene circondata dai principali ediici pubblici che conosciamo, compresi il teatro e il tempio. Anche gli ediici che già si afacciavano sulla piazza, come il piccolo sacello, vengono risistemati e dotati di maggiore impatto monumentale, applicando delle vere e proprie quinte architettoniche alla facciata rivolta sulla piazza. Fig. VII. I materiali recuperati dai riempimenti delle buche di struttura 14, databili a età pre-tiberiana. 21 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Tra gli ediici di nuova realizzazione, nel lato occidentale del foro emerge il complesso formato dal tempio su podio e dal vicino ediicio str. 4. L’ediicio templare (str. 1/2), a pianta rettangolare, doveva presentare una fronte tetrastila con un podio di considerevoli dimensioni al quale si saliva con ogni probabilità per mezzo di due scalinate laterali, per poi accedere agli ambienti pertinenti all’ediicio di culto vero e proprio per mezzo di una scalinata centrale (Fig. VIII). Il podio si conserva in elevato per circa 60 cm sulla fronte, mentre le murature perimetrali del tempio, nella parte posteriore dell’ediicio, raggiungono un’altezza di quasi 4 m. Tutte le strutture murarie sono eseguite con una tecnica laterizia di buona fattura, composta di un nucleo interno in calce, rivestito sia internamente che esternamente da una cortina laterizia formata da ittili tagliati a forma di parallelepipedi a base triangolare, disposti regolarmente su corsi sovrapposti. Il tempio era inserito all’interno di un corridoio di servizio pavimentato a mosaico, che lo circondava su tre lati con la sola eccezione della fronte, afacciata direttamente sulla piazza forense. L’ediicio str. 4, delle dimensioni di 17,90 x 11,15 m, si compone di una sala anteriore rettangolare e di una parte posteriore organizzata in tre ambienti contigui Fig. VIII. L’ediicio templare di Ostra. 22 NASCITA E SVILUPPO MONUMENTALE DELLA CITTà ROMANA DI OSTRA (AN) -di cui quello centrale absidato- tutti comunicanti con la sala centrale ma non collegati tra loro. La sala centrale (A) conserva una fascia di mosaico pavimentale di colore bianco lungo i muri perimetrali, mentre al centro doveva presentare una pavimentazione in lastre di marmo, purtroppo del tutto spogliata nelle fasi tarde di abbandono della struttura. Analogo impegno decorativo era inoltre riservato alle pareti, che conservano ancora il rivestimento in marmo alla base, mentre nelle parti alte dovevano essere arricchite da stucchi colorati, recuperati in grande quantità nei livelli di crollo. A parte il forte legame strutturale con il vicino tempio su podio, con il quale condivide la tecnica costruttiva15, non è chiaro quale tipo di funzione svolgesse in origine questa aula: considerando la posizione, il carattere monumentale e la planimetria, sembrerebbero plausibili, infatti, diverse ipotesi sia nella direzione di una seconda struttura sacra (sacello) che civile (sede di una corporazione). Nel corso della prima età imperiale vengono deiniti anche gli assi viari urbani principali: lo scavo del Settore II ha infatti messo in luce un’ampia porzione dell’asse N/S che delimitava il lato orientale del complesso forense. La strada, in perfetto strato di conservazione, presenta un manto stradale basolato, iancheggiato lateralmente da due marciapiedi larghi circa 80 cm e di poco rilevati rispetto alla carreggiata. Sul marciapiede meridionale si afacciavano alcune strutture, forse con fronte aperta verso la strada, di cui si conservano tratti a livello di fondazione. In concomitanza con la lastricatura delle strade, l’area del foro viene deinitivamente inclusa in un perimetro murario nel quale, in corrispondenza dell’arrivo sulla piazza forense dell’asse stradale principale della città, viene aperta una porta monumentale, dell’ampiezza di 3 m, di cui si conservano la soglia in mattoni manubriati, lo stipite settentrionale in pietra e un blocco, sempre in pietra, con l’incavo per il cardine (Fig. IX). La situazione ino a qui descritta corrisponde con il periodo di massimo sforzo monumentale del centro della città, collocabile tra l’età augustea e la ine del I sec. d.C., al termine del quale il foro di Ostra, chiuso in un perimetro deinito e ben isolato dalla viabilità, contiene al suo interno i maggiori ediici destinati alle attività economiche, civili e religiose. Nell’ambito di uno di questi spazi, inoltre, doveva trovare posto il più eclatante dei ritrovamenti efettuati nella città di Ostra, ovvero la statua colossale in marmo pario ritrovata nel 1841, raigurante un personaggio maschile nel quale 15 In opus latericium con cortina muraria ottenuta mediante l’accostamento di elementi ittili con base triangolare derivanti dalla ripartizione di “mattoni manubriati”. 23 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. IX. Arrivo sulla piazza forense dell’asse stradale principale della città e relativa porta monumentale di accesso. alcuni studiosi riconoscono lo stesso imperatore Traiano16. A parte il problema dell’identiicazione di tale personaggio, la statua costituisce un’ulteriore conferma dell’alto livello artistico e formale raggiunto dal centro urbano tra la ine del I e l’inizio del II secolo. Le ultime campagne di scavo stanno comunque evidenziando come il processo di accrescimento monumentale si protrasse per tutto il periodo della media età imperiale. È ancora il settore II che ha restituito, con l’ediicio str. 8, i resti più signiicativi a tale riguardo: la pianta della struttura emersa dallo scavo, completandosi per le parti non ancora messe in luce con la carta del Baldoni, rivela l’esistenza di un nuovo spazio pubblico che attorno all’inizio del II secolo si sovrappose parzialmente alle tabernae presenti lungo il lato orientale del foro, andando a modiicare sostanzialmente quest’area. L’ediicio presenta caratteristiche planimetriche precise, componendosi di un grande piazzale rettangolare (A), chiuso verso il foro da un muro e circondato sugli altri tre lati da un portico continuo (B-D). Nella parete posteriore del portico orientale si apre un ambiente di forma rettangolare (E) inizialmente di dimensioni limitate e successivamente ampliato (F) ino a raggiungere il limite dell’isolato. Nel cortile, in corrispondenza dell’apertura dell’ambiente E, è inoltre presente una piattaforma in conglomerato di calce e ciottoli (us 385), nella quale si deve riconoscere la fondazione di un prospetto architettonico colonnato aggettante verso la piazza (Fig. X). Tutta la struttura trova un puntuale riscontro nel complesso architettonico del Templum Pacis costruito a Roma da Vespasiano, da cui si derivò un modello che troverà ampia difusione tra l’età lavia e l’epoca 16 24 Virzì 1991, pp. 174-180. NASCITA E SVILUPPO MONUMENTALE DELLA CITTà ROMANA DI OSTRA (AN) Fig. X. Struttura 8: l’ediicio presenta un grande piazzale rettangolare (A), chiuso verso il foro da un muro e circondato sugli altri tre lati da un portico continuo (B-D). Nella parete posteriore del portico orientale si apre un ambiente di forma rettangolare (E) inizialmente di dimensioni limitate e successivamente ampliato (F) ino a raggiungere il limite dell’isolato. traianea in ambito italico e provinciale. Come noto il Templum Pacis, denominato dagli antichi anche aedes e temenos, era un foro anomalo, con forte valenza sacrale, destinato ad accogliere le maggiori opere d’arte conluite a Roma da tutto l’Impero e in cui era anche esposta la Forma Urbis Romae. Da una recente rilettura dei dati di scavo del Templum Pacis è emerso che a una prima versione, in cui il piazzale era fornito di un portico anche sulla fronte, se ne sostituì una evoluta, che prevedeva una facciata costituita da un muro continuo per far posto al Forum Transitorium di Domiziano17. In questo assetto inale, il modello architettonico si difonde nelle aree periferiche dove viene duplicato con minime varianti strutturali: in ambito italiano, tale schema 17 Gà esistente nell’85-86, sebbene inaugurato dal successore Nerva. Meneghini, Corsaro, Pinna Caboni 2009, pp. 190-201. 25 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA trova riscontro in Cisalpina nel complesso monumentale di Alba Pompeia18, che si data tra la tarda età lavia e il regno di Traiano19, e ad Alba Helvorum20; mentre tra gli esempi provenienti dalle province occidentali si annoverano il santuario federale del Cicognier di Aventicum/Avenches21, la cui costruzione si data sulla base della datazione al C14 dei pali di fondazione al primo anno di regno di Traiano (98 d.C.), e il foro provinciale di Tarraco (del 73 d.C.). Il templum rinvenuto a Ostra, datandosi, sulla base dei rapporti stratigraici e dei materiali ceramici rinvenuti, tra l’ultimo venticinquennio del I secolo e il primo venticinquennio del II, ci restituisce anche per il periodo successivo all’età giulio-claudia l’immagine di una cittadina dotata di una vitalità economico-politica tale da consentire l’immediata ricezione e la precoce imitazione del modello architettonico centrale. Dopo questa fase, il centro monumentale, per quanto noto inora, non subisce ulteriori interventi e sembra cristallizzarsi in questo assetto per i tre secoli a seguire, ino a quando si fanno evidenti i segni di una mutata percezione dello spazio pubblico: a partire dal V secolo, stando agli attuali dati di scavo, gli assi stradali centrali vengono progressivamente invasi da accumuli di riiuti, mentre all’interno dell’ambiente centrale di struttura 4, ormai in stato di crollo avanzato, vengono ricavate quattro cantine interrate22. Limitati interventi di sistemazione nell’area del podio del tempio, dove le due scale inferiori sono tamponate per contrastare la crescita del suolo di calpestio nel piazzale esterno, sembrano suggerire la persistenza d’uso di tale ediicio, che poteva ancora preservare un qualche carattere di monumentalità, soprattutto se si vuole ipotizzare una conversione della struttura da luogo di culto pagano in chiesa. Questa ipotesi, fondandosi principalmente sulla fonte scritta dell’inizio del VI secolo menzionante la partecipazione al Concilio Romano da parte del vescovo facente capo alla diocesi ostrense23, in mancanza di ulteriori indizi, trova sostegno solo nel fatto che tutto attorno a tale ediicio, almeno a partire dalla ine del V-inizio del VI secolo, si sviluppa un articolato complesso cimiteriale che consta ormai di oltre 50 sepolture. Villicich 2007, pp. 60-61. Andandosi a sovrapporre a una preesistente domus di età neroniana. 20 Villicich 2007, pp. 61-62. 21 Bridel 2009, pp. 490-491 e Villicich 2007, pp. 62-63. 22 La singolare tecnica costruttiva trova un confronto nella fondazione del muro perimetrale nord della Cattedrale di Luni, datata all’epoca bizantina; vedi Lusuardi Siena, Sannazaro 1984, pp. 36-48. 23 Cfr. nota 3. 18 19 26 NASCITA E SVILUPPO MONUMENTALE DELLA CITTà ROMANA DI OSTRA (AN) BIBlIogrAFIA Bridel 2009 = P. Bridel, Il santuario “del Cicognier”: un Templum Pacis per la città degli Helvetii?, in F. Coarelli (a c. di), Divus Vespasianus. Il bimillenario dei Flavi, (Catalogo della Mostra, Roma 27 marzo 2009- 10 gennaio 2010), Milano 2009, pp. 490-491. De Visscher, Mertens 2004 = F. De Visscher, J. Mertens, Le puits du Forum d’Alba Fucens, BCAR, LXXIV (1954), pp. 2-13; D. Liberatore, Alba Fucens. Studi di storia e di topograia, Bari 2004, pp. 110-121. Extebarria Akaiturri 2008 = A. Extebarria Akaiturri, Los foros romanos repubblicanos en la Italia centro-meridional tirrena. Origen y evolución formal, Madrid 2008, pp. 105-113. Frapiccini 2001= N. Frapiccini, Nuove osservazioni sulla ceramica avernice nera da Potentia, in E. Percossi Serenelli (a c. di), Potentia. Quando poi scese il silenzio…Rito e società in una colonia romana del Piceno fra Repubblica e tardo Impero, Milano 2001, pp. 144-157 Gros, Torelli 1988 = P. Gros, M. Torelli, Storia dell’urbanistica. Il mondo romano, Laterza, Roma-Bari 1988, p. 136. Landoli 2006 = M. Landoli, Nuovi ritrovamenti di mosaici a Ostra, Jesi, Osimo, S. Severino Marche, Falerone e ad Ascoli Piceno, in AISCOM XI (2006), pp. 631-642. Lanzoni 1927 = F. Lanzoni, Le Diocesi d’Italia, I, Faenza 1927, p. 493. Lusuardi Siena, Sannazaro 1984 = S. Lusuardi Siena, M. Sannazaro, Luni. Gli scavi nella cattedrale di S. Maria, in Archeologia in Liguria II. Scavi e scoperte 1976-1981, Genova 1984, pp. 36-48. 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Mariotti (a.c. di), Archeologia delle valli marchigiane: Misa, Nevola e Cesano, Perugia 1991, pp. 174-180. 27 rESUMo: O Departamento de Arqueologia de Bolonha, desde 2005, realiza pesquisas na cidade romana de Ostra (AN), onde no início do século passado foram realizadas escavações sem rigor cientíico. A cidade, construída no processo de romanização de Ager Gallicus, entre o inal do primeiro século a.C. e o primeiro século d.C., tinha todos os monumentos de uma cidade romana típica: uma praça central para que os principais edifícios públicos, sagrados e profanos, residenciais deinida por uma grade regular de ruas pavimentadas. Recentes aquisições resultantes de pesquisas realizadas no leste da praça forense lançaram nova luz sobre a primeira fase de desenvolvimento do campo monumental, um pouco mais tarde, quando a cidade foi fundada. Palavras-chave: Ostra, Ager Gallicus, Planejamento urbano, Forum, Fases republicanas. ABSTrACT: he Department of Archaeology of Bologna, since 2005, conducts research in the Roman town of Ostra (AN), where some non-scientiic excavations were conducted at the beginning of last century. he city was built during the process of Romanization of the Ager Gallicus. Between the end of the 1st century BC and the 1st century AC the center had all the monuments of a typical Roman town: a central square whit the main public buildings, religious and profane, and residential areas deined by a regular grid of paved streets. he last surveys carried out in the eastern side of the forensic square have provided new data on the irst phase of the monumental urban process, which results just later to the foundation of the city. Keywords: Ostra, Ager Gallicus, Urban planning, Forum, Republican phases. URbANISMO E ARqUITETURA dE bRACARA AUgUSTA. SOCIEdAdE, ECONOMIA E lAzER MANUElA MARTINS1; JORgE RIbEIRO2 FERNANdA MAgAlhÃES3 CRISTINA bRAgA4 1. INTroDUção As cidades romanas, tal como todas as cidades, em qualquer tempo ou lugar, podem ser consideradas como organismos vivos em permanente mudança. No entanto, essa natureza mutante dos espaços urbanos só muito diicilmente pode ser percecionada pela arqueologia, que apenas nos fornece fragmentos de uma realidade material, que pouco diz sobre o sentir, os compromissos e os conlitos e contradições das gentes que construíram, usaram e transformaram as cidades. Na verdade, o registo arqueológico, feito de estruturas, construções, ou objetos, não constitui senão um pálido relexo das complexas realidades sociais, económicas ou ideológicas, que estiveram na origem de espaços e ediicados que outrora representaram os animados cenários da vida urbana. Por outro lado, a natureza complexa do registo arqueológico urbano não facilita a construção de cronologias inas, mais conformes ao tempo social. Na verdade, a arqueologia apenas pode fornecer faseamentos grosseiros da evolução urbana, pelo carácter fragmentário Professora Catedrática do Departamento de História da Universidade do Minho; responsável da Unidade de Arqueologia; investigadora do CITCEM, mmmartins@uaum.uminho.pt. 2 Bolseiro pós-Doc da FCT; assistente convidado do Departamento de História da Universidade do Minho; investigador do CITCEM, joribeiro@portugalmail.pt 3 Colaboradora do Projecto de Bracara Augusta (UAUM); investigadora do CITCEM, fernanda. epmagalhaes@gmail.com 4 Colaboradora do Projecto de Bracara Augusta (UAUM); investigadora do CITCEM, cristina_arqueo@ hotmail.com 1 29 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA dos dados, mas, sobretudo, pela diiculdade em apreendermos as mudanças de signiicado dos espaços, ou as pequenas alterações que neles ocorreram, sempre difíceis de datar com precisão. O registo arqueológico apenas nos pode revelar aquelas que foram as grandes mudanças estruturais na organização dos ediicados, cujos vestígios, interpretados em sucessão, nos permitem fasear as principais etapas da evolução urbana. A imagem que se oferece dos espaços urbanos do Império romano ocidental é, por isso, quase sempre fragmentada e imprecisa, apesar dos importantes contributos fornecidos pela arqueologia urbana, que revolucionaram o conhecimento relativo a muitas cidades do mundo romano ocidental, cuja existência física era praticamente desconhecida até aos anos 70 do século passado.5 Assim aconteceu com Bracara Augusta, cidade que vem sendo paulatinamente descoberta pela arqueologia urbana realizada na cidade de Braga desde 1976. Por isso, apesar de todas as limitações inerentes à interpretação do registo arqueológico é necessariamente a ele que temos que recorrer para esboçar as linhas gerais da evolução do espaço urbano e para analisar as arquiteturas que nos falam da sociedade, das atividades económicas e do lazer, tema deste trabalho. A cidade de Bracara Augusta deve a sua descoberta física ao progressivo avanço da urbanização da Braga moderna sobre os terrenos abandonados da antiga cidade romana, processo que se iniciou na década de 50 do século XX e se intensiicou nas seguintes, justiicando a criação, em Braga, de uma equipa de arqueologia urbana em 19766. Desde então, realizaram-se largas dezenas de intervenções arqueológicas que foram trazendo à luz do dia numerosos vestígios da cidade romana, valorizados no âmbito do “Projecto de Bracara Augusta”, da responsabilidade da Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho. Como cidade sobreposta, a Braga romana descobre-se por via das escavações. No entanto, o seu conhecimento está inevitavelmente sujeito a numerosos constrangimentos, relacionados, quer com o carácter descontínuo das áreas intervencionadas, que não permite elaborar leituras amplas do espaço urbano, quer com a reutilização sistemática dos materiais de construção romanos, ao longo de diferentes épocas, facto que fez desaparecer muitos dos vestígios arquitetónicos mais expressivos do seu ediicado. Por outro lado, importa salientar as signiicativas destruições ocorDestacamos neste âmbito os conhecimentos disponíveis sobre o urbanismo da Gália romana, objeto de uma abordagem de síntese por parte de R. Bedon, R. Chevalier e P. Pinon (1988), signiicativamente ampliados pela arqueologia preventiva e valorizados em recentes trabalhos (Bedon 1999; Coulon e Golvin 2006; Martial e Tranoy 2008). 6 Sobre os condicionalismos que presidiram ao desenvolvimento da arqueologia urbana em Braga e aos seus resultados poderão consultar-se vários trabalhos, que dão conta da origem e evolução do “Projecto de Bracara Augusta” (Martins e Lemos 1997-98: 9-22; Martins et al. 2006: 9-30). 5 30 URBANISMO E ARQUITETURA DE BRACARA AUGUSTA. SOCIEDADE, ECONOMIA E LAZER ridas nalguns setores da cidade, sobretudo entre as décadas de 50 e 70 do século passado, que nos impossibilitam deinir com rigor os limites da cidade romana e caracterizar os seus subúrbios, uma vez que os terrenos que lhes correspondiam foram os primeiros a ser afetados pela urbanização moderna7. Pese embora todos os constrangimentos referidos, próprios da arqueologia realizada nas cidades, importa salientar que grande parte dos conhecimentos referentes ao urbanismo, arquitetura, economia e sociedade de Bracara Augusta provêm de uma relexão continuada dos testemunhos arqueológicas exumados em vários locais da cidade de Braga, que nos permitem valorizar o tema sugerido para esta comunicação. 2. A EVolUção UrBANA DE Bracara augusta 2.1. A fundação: problemas e especiicidades Podemos airmar que Bracara Augusta faz parte do pacote de cidades planiicadas, criadas ex nuovo por Augusto, no im das guerras cantábricas, no âmbito da reorganização provincial da Hispânia. No entanto, a data exata da fundação da cidade é ainda controversa, tal como acontece com a que se reporta à reforma provincial. De facto, alguns autores situam a nova divisio provincial entre o ano 27 a.C. e o ano 12 a.C., data da morte de Agrippa, a quem Augusto teria coniado, em 19 a.C., a solução deinitiva do conlito cantábrico e a organização dos territórios recém-conquistados. Considerando que o último episódio bélico que encerrou o longo ciclo da conquista da península Ibérica8 teve lugar no ano 16 a.C.9 é habitualmente essa a data sugerida, quer para a reorganização provincial, quer para o programa fundacional de novas cidades. Tendo por base as referências de Plínio (III, 118), sabemos que as regiões de Asturia e Gallaecia terão inicialmente sido integradas na província da Lusitânia, que se estenderia até ao Cantábrico10. No entanto, a tabula de bronze de Bembibre, redigida no ano 15a.C.11, refere explicitamente aquelas regiões como integradas numa província Transduriana, governada pelo legatus Lucio Sestio Quirinal, facto que demonstra que a divisio de Agrippa As múltiplas, mas sumárias descrições de achados e ruínas, desenterrados do subsolo das áreas limítrofes da cidade, mau grado constituírem importante acervo informativo para a história das investigações de Bracara Augusta representam, todavia, modesta contribuição para o estudo do seu urbanismo e arquitetura, pelas imprecisões que contêm. 8 Bravo Castañeda 2007: 109. 9 Tranoy 1981: 146-147. 10 Tranoy 1981:146. 11 Sánchez Palencia e Mangas 2000; Grau e Hoyas [eds] 2001. 7 31 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA foi alterada, antes dos referidos territórios icarem deinitivamente integrados na Tarraconense, em data incerta, que alguns autores situam entre 16 e 13 a.C., data em que Augusto terá permanecido na Gália e na Hispânia12 e outros entre 12 e 7 a.C.13. As hesitações relativas ao melhor enquadramento a dar aos territórios do NO Peninsular, que chegaram a justiicar a sua inclusão numa província autónoma (Transduriana), parecem reletir o reconhecimento por parte de Roma da especiicidade dessa região, relativamente aos territórios da Lusitânia e da Citerior, demonstrando igualmente que a reorganização provincial da Hispânia e, muito provavelmente também, a fundação das cidades do NO peninsular, constituíram processos dinâmicos que terão envolvido inevitáveis compromissos entre o poder romano e as elites indígenas, conforme é sugerido pelo teor dos dados epigráicos disponíveis14. É ainda a epigraia que demonstra que a criação dos conventos jurídicos foi obra de Augusto e não dos imperadores Flávios, conforme foi tradicionalmente sugerido15. De facto, a referência na tabula Lougeiorum, datada do ano 116, ao conventus Arae Augustae não parece deixar dúvidas quanto à cronologia augustal da subdivisão das províncias em unidades administrativas de carácter judicial, entregues a legati iuridici17, o que revela o interesse particular do primeiro imperador pela organização dos territórios hispânicos18 O conjunto dos dados arqueológicos disponíveis aponta para uma origem civil de Bracara Augusta, facto que lhe confere especiicidades em termos de povoamento e de composição social, distinguindo-a das outras duas cidades fundadas por Augusto no NO Peninsular, com origem em acampamentos militares19. Com efeito, as fontes epigráicas e arqueológicas documentam uma forte componente indígena no processo de povoamento da cidade, bem como na organização do seu corpo cívico, constituído, pelo menos parcialmente, pelas elites indígenas originárias dos principais castella da região bracarense, cujos nomes estão bem documentados no dossier epigráico de Braga20 Quer a origem civil de Bracara Augusta, quer a importância assumida pela população indígena no seu processo de criação e desenvolvimento devem ser entendidas no âmbito das particularidades que conformaram o povoamento pré12 13 14 15 16 17 18 19 20 32 Tranoy 1981: 146. Alföldy 1969: 207. Dopico Caínzos 2009: 35. Tranoy 1981: 153. Dopico Cainzos 1988. Dopico Cainzos 1986: 265-283. Dopico Cainzos 2009: 52-53. Rodríguez Colmenero e Covadonga Carreño 1999; Sevillano Fuertes e Vidal Encinas 2002. Tranoy e Le Roux 1989-90: 183-230. URBANISMO E ARQUITETURA DE BRACARA AUGUSTA. SOCIEDADE, ECONOMIA E LAZER -romano do território em que a cidade se implantou, situado no coração da área ocupada pelos Bracari, um dos povos mais importantes da fachada ocidental e meridional do NO Peninsular. Tendo por base os resultados das investigações21 é possível considerar que o referido território, presumivelmente situado entre Lima e Ave, conheceu um grande desenvolvimento económico ao longo do século I antes da nossa Era, o qual poderá estar na base da implantação de um povoamento hierarquizado22 e da formação de grandes castros, de tipo oppida, que funcionariam como lugares centrais23, controlando castros mais pequenos, maioritariamente dispersos pelos vales24. Esta nova matriz de povoamento estrutura-se, simultaneamente, com o aumento dos contactos da região com os territórios romanizados do sul da Península, documentados pela ocorrência de produtos exógenos em vários castros e pela generalização de novidades técnicas e construtivas, bem patentes nas grandes citânias da área dos Callaeci Bracari, que revelam a especiicidade da região meridional e ocidental do NO hispânico à data da sua integração no Império Romano25. A história da fundação de Bracara Augusta prende-se indiscutivelmente com o protagonismo dos Bracari, povo referido pela primeira vez nas fontes a propósito da expedição militar que Decimus Junius Brutus realizou ao território que hoje corresponde à província portuguesa do Entre Douro e Minho, entre 138-136 a.C.26. No rescaldo dessa expedição parece indiscutível considerar que os Bracari terão desenvolvido um longo percurso de relações com o sul da Hispânia, consolidadas após a expedição de César a Brigantium, cerca do ano 60 a.C., que permitiu o incremento da rota atlântica, indispensável aos contactos das populações do NO Peninsular com a órbita mediterrânica. A fundação de Bracara Augusta parece, assim, corresponder à deinitiva integração dos Bracari no universo político imperial, uma vez que a nova cidade será, simultaneamente, capital do convento jurídico bracarense e caput de uma comunidade étnica, cujo nome permanece na raiz da designação do novo centro urbano. Cabe destacar que os Bracari haviam já interiorizado os valores do espaço urbano, que surgem bem testemunhados nas características dos seus oppida, estruturados como verdadeiras cidades, com uma alta densidade populacional, uma intensa atividade artesanal e uma estrutura complexa, marcada por eixos viários, bairros 21 22 23 24 25 26 Martins 1990; Dinis 1993; Carvalho 2008. Martins 1990; Martins et al. 2005:279-296. González Ruibal 2006-07. Martins 1990; Martins et al. 2005: 284. Silva 1986; Martins 1990; González Ruibal 2006-07; Carvalho 2008. Alarcão 1988: 8-9. 33 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA e edifícios públicos27, como eram as casas de reunião dos concelhos e os balneários rituais28. Neste contexto, a fundação de Bracara Augusta relete a criação de um novo panorama cultural, no qual parece existir uma clara convergência entre os interesses de Roma e os dos indígenas. Os condicionalismos que pesaram na fundação da cidade e o protagonismo que os indígenas tiveram na sua criação permitem considerar que Bracara Augusta emerge como centro administrativo (capital de convento) e económico, claramente assumido pelas elites pré-romanas, que deverão ter negociado os seus legítimos interesses nas recompensas que o sistema urbano romano lhes poderia conceder29. Fig. 1. Localização de Bracara Augusta na península Ibérica. Do conjunto das três cidades fundadas por Augusto no NO Peninsular, Bracara Augusta é sem dúvida aquela que oferece o melhor dossier epigráico relativo às manifestações de lealdade para com o Imperador e respetivos familiares, as quais Estas características estão presentes em vários povoados entre os quais podemos referir Briteiros (Guimarães), Sanins (Paços de Ferreira), Santa Luzia (Viana do Castelo), S. Julião (Vila Verde), ou S. Lourenço (Esposende) (Lemos 2009: 112-115). 28 Silva e Machado 2007: 20-60; Lemos et al. 2008: 319-328. 29 Millet 1990: 35-41; 2001:157-170; Woolf 1998. 27 34 URBANISMO E ARQUITETURA DE BRACARA AUGUSTA. SOCIEDADE, ECONOMIA E LAZER nos ajudam a situar cronologicamente o contexto fundacional da cidade. Um importante testemunho dessa lealdade é constituído pelos textos de três pedestais de estátuas, erguidas a Augusto, dos quais apenas um se conservou. Trata-se de monumentos em forma de coluna, sendo um dedicado ao Genius Caesaris30, outro ao Genius Augusti31 e um terceiro dedicado ao Imperador, no dia do aniversário de Paullus Fabius Maximus. A explícita referência ao XXI poder tribunício de Augusto permite datar o monumento entre os anos 3 e 2 a.C.32, enquanto a menção feita aos bracaraugustanus demonstra que a cidade já existiria nos momentos próximos da transição da Era, sendo ocupada por uma comunidade organizada, com capacidade para se expressar em atos de carácter cívico, bem ao gosto romano, designadamente, através da construção de Fig. 2. Pedestal de estátua dedicada a Augusto, pelos bracaraugustanos, no dia do aniversário de Paulo monumentos em honra do Imperador. Fábio Máximo (MSMS). Cabe igualmente destacar a referência feita aos bracaraugustanus numa outra inscrição, destinada a integrar o pedestal de uma estátua honoríica, dedicada a Agrippa Postumus, ilho do lugar-tenente de Augusto, M. Vipsanius Agrippa, referido, simultaneamente, como neto do Imperador e como Marci ilius, algo que indica que o monumento terá sido erguido antes da sua adoção oicial, ocorrida entre os anos 2 e 4AD33 Tendo por base o material epigráico referido parece-nos possível considerar que entre 3 e 2 a.C. a cidade estaria já ocupada por gentes que se designavam por bracaraugustanos, facto que subentende que a nova urbs havia já sido consagrada, submetida aos rituais de demarcação do espaço e que nela haveriam certamente 30 31 32 33 Vasconcelos 1913: 326. CIL II, 5123. Le Roux 1975: 155; Tranoy 1981: 328. Le Roux 1975: 155-159; 1994: 231, nota 10. 35 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA já sido iniciadas as atividades construtivas que justiicavam a ocupação do sítio. Embora se desconheça o carácter das primeiras construções que terão sido erguidas julgamos poder considerar que os monumentos em honra de Augusto e seus familiares diretos, tinham que ser enquadrados num espaço cívico foral, cuja construção deveria estar já em curso, entre os anos 3 e 2 a.C., quando Paullus Fabius Maximus, então governador da Citerior, se deslocou à cidade e foi homenageado no dia do seu aniversário. 2.2 localização e malha urbana Bracara Augusta foi fundada ex nuovo numa pequena colina aplanada no sentido NE/SO, que remata um esporão montanhoso, com a altitude máxima de 199m, controlando a extensa veiga do rio Cávado, a norte e, a sul, a veiga do rio Este e a mais pequena veiga do Penso, dispondo de um amplo domínio visual sobre o território envolvente. A escolha do local para implantar a cidade parece ter sido determinada por razões de natureza topográica, mas também pela importância que o mesmo já deveria possuir no quadro do povoamento pré-romano. De facto, o sítio onde se implantou a nova urbs possui uma centralidade óbvia, quer no amplo contexto da região situada entre Douro e Minho, na qual ocupa um ponto central, quer no âmbito mais restrito da área controlada pelos Bracari, constituindo o epicentro de uma série de corredores de comunicação naturais que cruzavam o território no sentido N/S e E/O 34. Por isso, tudo indica que o sítio de Braga deveria constituir já em época pré-romana um importante centro viário e económico, no coração de uma das zonas mais desenvolvidas do NO ibérico, com solos férteis e água abundante, que permitiram o lorescimento da atividade agrícola, quer na região do vale do Cávado35, quer no vale do Ave36, ao longo do século I a.C. Não possuindo condições topográicas propícias ao desenvolvimento de um povoado fortiicado indígena, pela sua baixa altitude (199 m), relativamente aos castros da região envolvente (300 m), o sítio onde se implantou a cidade detinha, todavia, características atrativas para as populações que habitavam os castros circundantes. Na verdade, o local poderá ter constituído um ponto de encontro para as comunidades indígenas da região, sem que para tal fosse necessário existir uma ocupação permanente, onde seria possível desenvolver atividades diferenciadas, de natureza económica, religiosa e ritual, documentadas arqueologicamente por 34 35 36 36 Morais 2005; Martins et al. 2005. Martins 1990; Carvalho 2008. Silva 1986; Dinis 1993. URBANISMO E ARQUITETURA DE BRACARA AUGUSTA. SOCIEDADE, ECONOMIA E LAZER cerâmicas de importação e moedas tardo-republicanas, encontradas na Colina do Alto da Cividade37, pelo pequeno balneário indígena, de cronologia pouco precisa (séculos II/I a.C.?), descoberto na parte nordeste da cidade38, mas, também, pelo santuário/fonte rupestre da Fonte do Ídolo. Este santuário, conhecido apenas na sua coniguração romana, deverá ter origem indígena, sendo dedicado a Nabia, divindade associada à água, à fertilidade e à natureza, que continuou a ser venerada no local em época romana39. Fig. 3. Localização de Bracara Augusta no contexto regional. Sendo uma fundação ex nuovo, Bracara Augusta foi objeto de planiicação, possuindo um traçado ortogonal, com orientação N/NO e S/SE, que se justiica pela coniguração da colina onde se implantou. A recuperação da malha ortogonal da cidade tem vindo a ser ensaiada com base nos eixos viários, identiicados em vários pontos da cidade, na rede de saneamento, nos numerosos pórticos que bordejavam as ruas e na orientação geral do ediicado. 37 38 39 Morais 1997-98: 47-136; Zabaleta Estevez 2000: 395-399. Lemos et al. 2003: 43-46; Lemos et al. 2008: 319-328. Elena et al. 2008. 37 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA No entanto, importa realçar que a reconstituição da malha urbana fundacional seria impossível de realizar apenas com os vestígios que consideramos hoje datáveis do período de Augusto, altura em que terá sido realizada a planiicação da cidade e do território envolvente, conforme é sugerido pela existência de um cadastro rural40. Na verdade, a restituição da malha urbana teve que utilizar uma vasta gama de elementos construtivos, posteriores à fundação, datáveis já das épocas lávia e antonina, altura em que se veriica uma generalizada ocupação dos quarteirões. Por outro lado, a restituição do traçado ortogonal da cidade representa o resultado de longos anos de interpretação dos vestígios recuperados pela arqueologia, ao longo dos quais se aprofundou a relexão sobre a organização do espaço urbano. O conjunto dos dados disponíveis permite estimar que a área urbana foi organizada segundo eixos de orientação N/NNO-S/SSE e O/OSO-E/ENE, estruturantes do traçado da rede viária e da malha dos quarteirões, sendo certo que alguns desses eixos se prolongam no traçado das principais vias que ligavam a cidade ao exterior, as quais começaram a ser construídas logo no tempo de Augusto41. No entanto, desconhecem-se ainda os limites exatos da área que terá sido objeto de planiicação, a qual vem sendo sucessivamente apurada com a progressiva identiicação de novas ruas ou ediicados, que obedecem aos eixos já referidos. Tendo por base as ruas já conhecidas, que limitavam os quarteirões construídos, podemos considerar que a sua largura média se situa entre os 10 pés (pertica) e os 12 pés. O cardo máximo possuía uma largura de 24 pés, sendo esse o eixo viário mais largo até agora identiicado42. Por sua vez, os quarteirões possuem forma quadrada, formalizando áreas construídas com cerca de 144 pés, que incluíam os pórticos, com cerca de 12 pés43. Esta modulação foi observada na zona das Carvalheiras44, bem como nas insulae do lado nascente do cardo máximo e noutras intervenções arqueológicas realizadas em vários locais da cidade. Admite-se, contudo, que a modulação proposta possa contemplar adaptações funcionais das construções à topograia, sendo certo que foi alterada ao longo da ocupação da cidade. Na parte mais alta da colina da Cividade situava-se o forum administrativo e religioso, cuja localização é sugerida pela interpretação global da forma urbis e por uma referência impressa no mapa de Braunio, datado do século XVI, que refere o forum romanorum nas imediações da capela de S. Sebastião. No entanto, 40 Identiicado a partir da interpretação da fotograia aérea e da cartograia e por trabalhos de prospeção sistemática, o cadastro, orientado 16º N/NO, organiza-se em centúrias de 20 x 20 actus e abrange uma área de cerca de 320 Km2 (Carvalho 2008). 41 Lemos 2002: 95-127; Carvalho 2008. 42 Lemos e Leite 2000: 15-38. 43 Martins 2004: 149-173; Ribeiro 2008. 44 Martins 1997-98: 23-46. 38 URBANISMO E ARQUITETURA DE BRACARA AUGUSTA. SOCIEDADE, ECONOMIA E LAZER Fig. 4. Traçado ortogonal de Bracara Augusta no Alto Império, com localização das vias e das necrópoles. são desconhecidas quer as dimensões, quer as características desse importante espaço cívico, tendo sido apenas identiicado um conjunto de grandes bases de colunas e um grande capitel jónico que pertenceriam aos edifícios e colunatas que ornamentavam o foro45. 2.3. A cidade do Alto Império 2.3.1. Épocas de augusto e júlio‑cláudia Apesar do elevado número de intervenções arqueológicas realizadas em Braga, ao longo de mais de três décadas, são ainda escassos os vestígios construtivos que podem ser atribuídos aos períodos de Augusto e júlio-cláudio, facto que sublinha o signiicativo desfasamento existente entre o registo epigráico referente à fundação da cidade e às primeiras décadas da sua existência e o registo arqueológico, predominantemente datável a partir dos meados do século I. No entanto, a interpre45 Ribeiro 2010: Apêndice 58 e 74.1. 39 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA tação geral dos vestígios correspondentes a esta fase demonstram uma ocupação signiicativa de diferentes áreas da cidade, bem como o início do funcionamento da necrópole da Via XVII46. De um momento próximo da fundação da cidade são alguns silhares, aparecidos em vários pontos da cidade, que oferecem a particularidade de não possuírem materiais nas suas valas de fundação, parecendo deinir os limites de possíveis quarteirões. Um dos conjuntos mais expressivos deste tipo de estruturas, que formalizaram os limites do cardo máximo, foi encontrado na zona arqueológica do ex Albergue Distrital. Trata-se das estruturas mais antigas implantadas no local, sugestivas de que estamos perante uma forma de materializar no terreno este importante eixo viário, a qual precedeu de algumas décadas a construção das domus que se vieram a instalar nos quarteirões limítrofes da rua, já no período lávio47. A infra-estrutura mais antiga presente no interior do espaço urbano é constituída pelo troço de uma cloaca que corria sob o eixo da metade norte do cardo máximo, datada entre os reinados de Cláudio e Nero, tendo por base os materiais mais tardios presentes na sua vala de fundação48. Trata-se de uma estrutura com 1,50m de altura, com um lastro de lajes graníticas, sobre as quais assentam as paredes de alvenaria de pedra, encaixadas num corte feito na rocha. Identiicada numa extensão de cerca de 50m, a estrutura apresenta-se mais larga na base (0,90 m) do que na parte superior (0,70 m), sendo coberta por grandes monólitos graníticos, sobrepostos por uma espessa camada de argamassa de areão, muito compactada, sobre a qual assentou o pavimento da rua. A presença desta estrutura no eixo do cardo máximo, não só reforça a importância desta via, como subentende que, nos inais do período júlio-cláudio, o processo construtivo dos quarteirões limítrofes justiicava a implementação de um sistema organizado de drenagem de águas sujas. Ao período de Augusto podemos ainda atribuir os vestígios arqueológicos mais antigos associados à infra-estrutura viária que ligava Bracara Augusta a outros centros urbanos, que seguia globalmente a orientação dos eixos da malha urbana, os quais estão relacionados com a marcação do traçado da Via XVII que ligava a cidade a Asturica Augusta. Trata-se de um conjunto de valas que deinem dois alinhamentos paralelos, que delimitam um corredor de circulação, com orientação E/O, constituindo uma delimitação do terreno prévia à construção da via49. A cronologia fornecida pelos materiais presentes no solo negro onde foram rasgadas as 46 Esta necrópole foi objeto de um estudo recente, no âmbito das escavações realizadas numa extensa área arqueológica, que compreendeu o quarteirão dos antigos CTT e a parte central da atual Avenida da Liberdade (Martins et al. 2010; Fontes et al. 2010; Braga 2010). 47 Magalhães 2010: 73-74. 48 Lemos e Leite 2000: 15-38; Morais 2005: 78. 49 Martins et al. 2010; Fontes et al. 2010. 40 URBANISMO E ARQUITETURA DE BRACARA AUGUSTA. SOCIEDADE, ECONOMIA E LAZER valas, claramente anterior a Augusto, bem como a que é sugerida pelos materiais contidos nos enchimentos das valas, que poderá datar já do período de Augusto, demonstra uma intensiicação da utilização deste setor periférico da cidade, eventualmente articulada com as tarefas de marcação da via e com o início da utilização desse espaço de circulação. A construção do primeiro piso da Via XVII está intimamente associada com o início da utilização da área envolvente como necrópole, sendo os enterramentos mais antigos datáveis da transição da Era50. Estes correspondem a cremações e ossários, de morfologia bastante variada, que incluem caixas de madeira, recipientes cerâmicos e uma urna em granito de forma oval. O início da utilização desta necrópole demonstra que a cidade havia já sido objeto de um povoamento signiicativo, que terá tido lugar na última década do século I a.C., enquanto a diversidade dos enterramentos nos documenta uma eventual diferenciação cultural das populações que se foram instalando no local e que se designavam já como bracaraugustanus, entre os anos 3 e 2 a.C. Sabemos que alguns imigrantes têm origem em diferentes locais da península Ibérica, como é sugerido pela urna de pedra de forma oval, encontrada a sul da Via XVII, que recolhe paralelos em duas sepulturas de Uxama, embora de execução mais tosca e de cronologia mais tardia51. De qualquer modo, a presença desta peça em Braga sugere que estamos perante uma sepultura de alguém oriundo deoutra região, que se terá ixado em Bracara Augusta nos inícios da fundação da cidade, fazendo-se enterrar posteriormente ao ano 3 a.C., tendo em conta a cronologia de uma moeda, encontrada no interior da urna, cunhada em Celsa Sulpicia, entre 5 e 3 a.C.52. Os indicadores de utilização da necrópole apontam igualmente para uma signiicativa atividade comercial nos primeiros tempos de vida da cidade, testemunhada pelo número signiicativo de lucernas de produção itálica e de unguentários de vidro, maioritariamente em forma de gota, presentes nos ossários53. O processo de povoamento ocorrido no período de Augusto, com expressão funerária no início da ocupação da necrópole da Via XVII e que estará associado ao início das atividades construtivas e económicas na área urbana, encontra uma menor expressão nos vestígios conservados, quer de edifícios públicos, quer residenciais. Estes encontram-se escassamente representados no registo arqueológico da cidade, algo que julgamos resultar das remodelações sucessivas do tecido urbano de Bracara Augusta, que camularam, destruíram ou reciclaram as evidências arquite50 51 52 53 Braga 2010. Abásolo Alvarez 2002: 152. Martins et al. 2010; Braga 2010. Braga 2010. 41 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA tónicas mais antigas. Contudo, podemos datar do período fundacional um invulgar espaço construído identiicado na Colina do Alto da Cividade, que designamos por edifício pré-termal54, bem como os vestígios de uma domus referenciada nas escavações realizadas no sítio onde foi construído o bloco de serviços do Museu D. Diogo de Sousa. Existem ainda alguns muros na Colina da Cividade que sugerem uma ocupação do local em momentos próximos da transição da Era, ainda que seja por ora impossível avaliar a sua funcionalidade inicial. Cumpre referir que as estruturas mencionadas obedecem aos eixos gerais da malha urbana, facto que sugere que a sua construção foi posterior à marcação dos mesmos. O edifício pré-termal corresponde a uma complexa construção de forma quadrada, com cerca 150 pés de lado (43,50m), deinido por quatro corpos, com diferentes características, que se estruturam em torno de um espaço central aberto, com as dimensões de 21 m x 15 m (70 x 50 pés). O corpo nascente, melhor conhecido, foi integralmente reaproveitado na estrutura das termas públicas que sobre ele foram erguidas nos inícios do século II, possuindo, na parte central, uma galeria de circulação, com 10 pés de largura55. O corpo oeste possui um conjunto de muros e de arcos em tijoleira sugestivos da existência de galerias subterrâneas e de uma fachada monumental, na qual se integrava um fontanário. Julgamos estar em presença de um conjunto arquitetónico datável dos inícios do século I da nossa era, o qual poderá, todavia, ter sofrido algumas alterações anteriormente à sua reforma completa, nos inícios do século II, quando sobre ele foram construídas umas termas e o teatro. Algumas características dos corpos que compõem o conjunto sugerem a sua possível função como espaço comercial que se situaria nas imediações do forum. Na cave da área de serviços do Museu D. Diogo de Sousa encontram-se conservados os vestígios de uma rica domus, que correspondem aos mais antigos testemunhos habitacionais romanos conhecidos até ao momento em Braga, constituídos por pavimentos de opus tesselatum bicromático, de composição geométrica, de cronologia augustal, ou tiberiana, pertencentes a uma casa cuja planta integral não foi possível recuperar. A parte escavada da habitação revela uma elevada qualidade técnica, patente nos mosaicos que revestiam o piso de um longo corredor que abria para vários compartimentos anexos, situados a sul. A cronologia antiga do mosaico é corroborada pela datação da canalização que corre sob o referido corredor, datada do período de Augusto. Uma das evidências mais signiicativas da arquitectura pública associada aos momentos iniciais da vida da cidade é-nos fornecida pela monumentalização da 54 55 42 Martins 2005. Martins 2005: 16-17. URBANISMO E ARQUITETURA DE BRACARA AUGUSTA. SOCIEDADE, ECONOMIA E LAZER Fonte do Ídolo, local periférico do núcleo urbano planiicado, situado a sul da Via XVII, onde existiria anteriormente um santuário/fonte rupestre, que se julga dedicado à deusa Nabia. O referido santuário foi objeto de uma intervenção signiicativa, a expensas de um imigrante, de nome Celicus Fronto, natural de Arcóbriga, que aí mandou esculpir iguras e gravar inscrições. O penedo foi envolvido por um paredão de alvenaria granítica, hoje completamente desaparecido, mas cujos encaixes se conservam na superfície frontal da fonte56. Fig. 5. Panorâmica da fachada da Fonte do Ídolo. Pese embora o reduzido número de vestígios construídos, correspondentes aos períodos de Augusto e júlio-cláudio, importa salientar serem bastante signiicativos os materiais arqueológicos que oferecem essa cronologia, entre os quais cabe destacar as cerâmicas importadas e as moedas. De facto, os estudos realizados por Rui Morais57, tendo por base as cerâmicas inas importadas de cronologia júlio-cláudia e por Mar Zabaleta Estevez58, usando as moedas anteriores ao período 56 57 58 Elena et al. 2008: 47. Morais 1997-98: 47-136. Zabaleta Estévez 2000: 395-399. 43 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA lávio, demonstram a sua concentração na parte mais alta da cidade, em torno da área onde se localizaria o forum administrativo. Quer as cerâmicas importadas de fabrico itálico e sud-gálico, quer as moedas, datadas entre o período de Augusto e o reinado de Cláudio, ocorrem de forma signiicativa na Colina do Alto da Cividade e na plataforma que dela se estende, para nascente, até ao Seminário de Santiago, correspondendo à área do forum e aos quarteirões envolventes, que revelaram uma utilização pré-laviana. Importa contudo valorizar outros materiais arqueológicos que se oferecem como indicadores de atividades produtivas e que nos podem ajudar a compreender as características da ocupação do espaço urbano durante os primeiros tempos de vida da cidade, bem como a natureza do seu povoamento. O aparecimento de 10 fragmentos de moldes bivalves para produção de placas de bronze com decoração geométrica, para fabrico de sítulas59, procedentes de níveis que correspondem à fundação da cloaca construída no eixo do cardo máximo, entre Cláudio e Nero, sugerem a instalação nos quarteirões limítrofes da rua de uma ou mais oicinas de fundição de bronze, para produção de sítulas de clara de tradição indígena60. Uma outra oicina está documentada a sul do forum, num outro quarteirão situado a poente do troço sul do cardo máximo, na zona das Antigas Cavalariças61, onde foram igualmente detetados mais de uma dúzia de moldes similares e um de armela62, num contexto que pode ser claramente datado como anterior ao período lávio, momento em que ocorre a construção no local de uma clássica domus de peristilo. Aí, os materiais provêm de enchimentos de valas de fundação de muros e do nivelamento de um solo, estando associados a cerâmicas datadas entre inais do século I a.C. e os Flávios, que documentam a ocupação do quarteirão por uma oicina de artesãos indígenas, anterior à construção de uma casa de modelo itálico, datada do último quartel do século I. A reforçar uma precoce utilização artesanal deste local, ligada à produção de metais, e claramente anterior à sua utilização habitacional, cabe destacar a existência de um cadinho de ouro, encontrado num nível de enchimento sobre a rocha63. A natureza dos vestígios referidos, bem como os respetivos contextos estratigráicos, sugerem a instalação nalguns quarteirões da área envolvente do forum de ateliers de produção metalúrgica, de bronze e eventualmente de ferro, os quais Morais 2005: Est XXX-XIII. Martins 1988: 25. 61 Trata-se de uma ampla zona intervencionada pela UAUM e pelo Museu D. Diogo de Sousa, em diferentes momentos, que corresponde ao local onde viria a ser construído o referido Museu. A área intervencionada de forma descontínua abrange cerca de 6 insulae da cidade romana. 62 Morais 2005: Est. XXXIV-XXXIX. 63 Morais 2004: Est. XXIX nº7. 59 60 44 URBANISMO E ARQUITETURA DE BRACARA AUGUSTA. SOCIEDADE, ECONOMIA E LAZER devem ter sido construídos maioritariamente com materiais perecíveis, o mesmo acontecendo, certamente, com as residências dos respetivos artesãos, situação que vem sendo documentada noutras cidades do ocidente do Império, onde a construção em pedra apenas se generaliza no último quartel do século I 64. A imagem que podemos reter da cidade do tempo de Augusto e júlio-cláudia corresponde ao paradigma de uma cidade em franca atividade construtiva, mas que não pode ser comparada com as cidades do século II, momento em que os centros urbanos atingem a sua máxima expansão e conhecem uma generalizada arquitetura doméstica em pedra. Por isso, parece mais razoável pensar que a “cidade de Augusto” deveria contemplar apenas alguns edifícios públicos de pedra, quer na área do forum, quer noutros locais. Embora nada se saiba das construções que ornamentaram o espaço foral, conhecemos um edifício de funcionalidade indeterminada nas suas imediações, ao qual já aludimos, sendo possível subentender um outro, sugerido por uma inscrição monumental fragmentada, datada entre 5 e 2 a.C., reaproveitada na fachada do Largo D. João Peculiar65. Muito embora a maioria dos autores seja unânime em considerar que a inscrição se relaciona com a queda de um raio, uns66 consideram que ela se refere à consagração, por ordem de Augusto, de um lugar que teria sido atingido por um raio, enquanto outros67 a interpretam como um bidental, entendendo, por isso, que ela testemunha uma refundação da cidade, resultante do facto de um local emblemático da cidade ter sido atingido por um raio. Independentemente da leitura que se possa fazer da inscrição, julgamos que a mesma nos demonstra que, no momento da sua execução, entre 5 e 2 a.C., existiriam já em Bracara Augusta edifícios ou lugares emblemáticos, sugestivos de uma atividade urbana e construtiva em pleno desenvolvimento. Raras parecem ser as casas feitas em pedra anteriores ao período lávio, tendo em conta o facto da grande maioria dos exemplares conhecidos datarem daquele último período. Pelo contrário, o registo arqueológico parece documentar uma signiicativa ocupação dos quarteirões urbanos, mesmo em áreas nobres, como seria a envolvente do forum, com equipamentos artesanais que se instalariam em simples construções de madeira, as quais terão começado a ser substituídas por domus a partir de meados do século I. No período em análise, a única atividade artesanal arqueologicamente documentada em Braga está representada pela fundição de bronze, realizada em dois locais da cidade, testemunhada por moldes de produção de sítulas com decoração 64 65 66 67 Perring 1991:84-89. CIL II, 2421. Tranoy 1981: 318-319; 328. Santiago Montero e Sabino Perea 1996: 229-319. 45 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA geométrica, possuindo, uma cronologia entre Augusto e Cláudio, uma vez que os referidos moldes procedem de níveis anteriores à construção das domus que viriam a ocupar os quarteirões no período laviano. No entanto, os materiais arqueológicos documentam uma intensa atividade comercial, com importação de contentores anfóricos e outras cerâmicas inas, bem como de peças de vidro68. Um testemunho epigráico da importância assumida pelo comércio como atividade económica nos primeiros tempos da vida da cidade é-nos fornecido por uma inscrição, datada da época de Cláudio, dedicada a C. Caetronius Miccio pelos cidadãos romanos que negociavam em Bracara Augusta69. A referida inscrição remete-nos igualmente para a composição da população residente. Na verdade, o dossier epigráico da cidade fornece raros testemunhos de cidadãos romanos, muito embora seja de supor a sua existência, a avaliar pelos vestígios da rica domus encontrada na área de serviços do Museu D. Diogo de Sousa, bem como pela identiicação de objetos de excecional qualidade70. O povoamento da cidade deverá ter comportado a instalação de elementos detentores da cidadania romana, muito embora a epigraia, sobretudo a funerária, com referência aos castella de origem dos povoadores71, não deixe dúvidas quanto à importância da componente indígena no processo de povoamento da nova Fig. 6. Inscrição dedicada a C. Caetronius Miccio urbs, ainda que, neste caso, seja óbvio (MDDS). que estamos perante franjas privilegiadas da população oriunda dos castros, que representava uma elite, tendo, por isso, condições económicas para mandar lavrar as suas lápides funerárias de acordo com os preceitos romanos. São elas que nos falam dessa elite indígena, em processo de airmação, agora na qualidade de elite urbana, que se fez sepultar segundo o 68 69 70 71 46 Cruz 2007. Alföldy 1966; 363-372; Morais 2005: 69-70. Morais 2002: 219-235. Pereira Menault 1983: 169-192 URBANISMO E ARQUITETURA DE BRACARA AUGUSTA. SOCIEDADE, ECONOMIA E LAZER ritual romano, deixando o seu nome gravado em magníicas estelas, que ostentam uma iconograia de clara matriz indígena. A sua onomástica, bem como a da sua descendência, sugerem a sua provável origem nos castros da região, muito embora o dossier epigráico referencie igualmente outros elementos indígenas, oriundos de diferentes locais da Hispânia. Também a presença generalizada de cerâmica de fabrico indígena, dispersa por toda a cidade, em contextos onde estão representados outros materiais romanos de importação de cronologia antiga, documenta a origem de boa parte da população que se terá instalado na cidade. A ocorrência daqueles materiais parece demonstrar que os estratos mais desfavorecidos da população que se instalaram na área urbana, ou na sua periferia, sobretudo na qualidade de mão-de-obra ligada às atividades construtivas e artesanais, terão continuado a utilizar a sua cerâmica tradicional, ainda durante algumas décadas, não existindo evidências de oicinas de cerâmica claramente romana anteriores ao período lávio. 2.3.2. Épocas lávia e antonina O registo arqueológico disponível documenta que as atividades edilícia e económica atingiram a sua maior expressão entre o período lávio e o século II, momento em que a cidade terá atingido a máxima ocupação da área planiicada, destacando-se igualmente uma maior utilização dos subúrbios, onde se instalam equipamentos artesanais, designadamente oicinas cerâmicas e de vidro, bem como edifícios públicos, como será o caso do aniteatro, na área poente e de uma possível área comercial e religiosa a norte (Fig. 4). O conjunto de edifícios públicos constituído por umas termas72 e por um teatro73, que se sucedeu ao edifício pré-termal na Colina da Cividade, deine os exemplares melhor conhecidos da arquitetura pública de Bracara Augusta, que se desenvolve a partir dos Flávios, situando-se numa zona nobre da cidade, nas imediações do forum (Fig.4) O edifício das termas ocupa uma área quadrada, com 150 pés de lado, que incluía as áreas de banhos e de serviços e uma ampla palaestra. O primeiro projeto do balneário formalizou um edifício retangular alongado, com entrada a sul. A sucessão dos espaços reservados aos banhos era antecedida por um amplo apodyterium, aquecido no Inverno, com uma piscina fria, separado do frigidarium por um longo corredor que dava acesso direto à palaestra. A área de banhos contemplava, para além de uma ampla sala fria, com uma piscina, dois tepidaria e um 72 73 Martins 2005. Martins et al. 2006: 10-30. 47 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA caldarium. Na parte norte do edifício situava-se uma ampla zona de serviços onde se implantava o praefurnium do caldarium e se armazenava o combustível (Fig. 7). Estas termas foram objeto de pelo menos três reformas até ao seu abandono deinitivo entre inais do século IV/inícios do V, tendo a primeira ocorrido entre inais do século II/inícios do III, altura em que foi ampliada e redeinida a área e o circuito de banhos, avançando a fachada poente do edifício sobre a palaestra74. Fig. 7. Restituição das termas públicas do Alto da Cividade na Fase I (século II). O teatro anexo às termas, ainda em fase de estudo, corresponde a um edifício, cujo diâmetro máximo pode ser estimado em cerca de 74,60 m, com base no arco deinido pelo seu muro perimetral. Este possuía cerca de 4 m de largura, facto que permite supor que existiria um pórtico in summa cavea, com cerca de 3 m de largura (10 pés), sendo acessível a partir de uma ou mais portas, que se rasgariam no muro de fachada do teatro. A cavea possuía cerca de 13,50 m de altura (45 pés) e foi parcialmente assente na vertente. Dela conhece-se apenas metade da ima cavea, que conserva restos de cimentações e elementos articulados com as bancadas. Um praecintio separava a ima cavea da orchaestra, na qual se reconhecem cimentações 74 48 Martins 2005: 37-46. URBANISMO E ARQUITETURA DE BRACARA AUGUSTA. SOCIEDADE, ECONOMIA E LAZER de três degraus que coniguram uma poedria. Os elementos disponíveis permitem ainda considerar que o pulpitum teria uma altura aproximada de 1,40 m (cerca de 5 pés), possuindo 6,70 m de largura (cerca de 23 pés), sendo limitado pelas cimentações da scaenae frons e pelo muro do proscaenium, que o separava da orquestra, o qual era decorado com pinturas. Por detrás do postscaenium, desenvolvia-se um quadripórtico, apenas parcialmente conservado, que seria envolvido por um tanque de água, com cerca de 1 m de profundidade, pelo menos no lado nascente. Além de um teatro, Bracara Augusta possuía um aniteatro, hoje soterrado e parcialmente destruído. Testemunhos que comprovam a sua existência são as referências a ele feitas pelos eruditos bracarenses, nos séculos XVII e XVIII, que o localizam na paróquia de S. Pedro de Maximinos, no sítio da antiga igreja, onde, em meados do século XIX, eram ainda visíveis restos da sua estrutura75. As descrições dos antiquários e a análise da fotograia aérea, que deixa perceber uma grande estrutura soterrada, situada no eixo da atual R. de S. Sebastião, cujo traçado corresponderia, aproximadamente, ao decumano máximo oeste da cidade, permitem localizar com algum rigor este importante edifício de espetáculos. Considerando o presumível local onde estaria situado não deixa de ser sugestivo correlacionar o seu alinhamento com o teatro, sendo igualmente de salientar que ambos os edifícios se encontram aproximadamente no eixo do forum e do decumanus máximo oriental. A articulação visual que deveria existir entre os dois edifícios, devido à topograia do terreno, bem como o facto de ambos representarem arquiteturas de prestígio, que serviam como veículos de expressão ideológica, pois permitiam reproduzir as grandes manifestações de vida pública romana, como eram os ludi gladiatorii e os ludi scaenicii, reforçam a hipótese da sua possível construção simultânea, nos inícios do período antonino, momento de apogeu económico da cidade. Os dados arqueológicos permitem admitir que a cidade possuía outros edifícios públicos termais para além daquele que é conhecido no Alto da Cividade. Um deles corresponde a um grande edifício situado a nordeste do forum, ainda não totalmente interpretado, conhecido pelo nome de termas da Rua Afonso Henriques. O outro edifício, melhor conhecido, está representado pelo balneum público das Carvalheiras, que se instalou, em meados do século II, sobre parte de uma domus de cronologia laviana76. O balneário das Carvalheiras (Fig. 8B), com uma área útil de 190m2, era constituído por quatro espaços frios e aquecidos que permitiam cumprir o serviço de banhos recomendado, sendo servido por duas pequenas áreas de serviço, localizadas a norte. A entrada fazia-se pela rua poente que bordejava a insula, através de um 75 76 Morais 2001: 55-76. Martins 1997-98: 28-35. 49 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA pequeno pórtico que dava acesso ao apodyterium, a partir do qual se podia aceder a um amplo frigidarium, com duas piscinas, ou entrar no tepidário que comunicava com o caldário, que dispunha de uma pequena piscina. Tudo leva a crer que o anterior peristilo da casa tenha sido transformado em palestra das termas e que os compartimentos que anteriormente se dispunham a sul e nascente se tivessem transformado em tabernae, às quais se acederia a partir do pórtico que envolvia a palestra77 (Fig. 8 B). Estamos neste caso perante umas termas públicas de média dimensão, que acrescentam mais um espaço balnear à cidade, permitindo satisizer um maior número de utentes na prática alargada dos banhos públicos, que constituíam um dos principais ambientes de lazer das cidades romanas78. Na verdade, pese embora a especiicidade dos respetivos contextos, poderemos considerar que o balneum das Carvalheiras colhe paralelos nas pequenas e médias termas de Ostia, que se construíram por toda a cidade e que reletem o seu dinamismo urbanístico e os processos de transação e de especulação das propriedades urbanas79. Julgamos que o balneum das Carvalheiras nos remete para processos algo semelhantes, bem reveladores da dinâmica económica e construtiva de Bracara Augusta durante o século II, que terá contribuído para a densiicação do seu tecido urbano. Fig. 8. Insula das Carvalheiras. A. Fase I: domus de atrium e peristilo; B: balneum público a norte e área habitacional a sul. 77 78 79 50 Martins et al. 2011. Nielsen 1993: 308-309; DeLaine 1999: 7-16. Mar 1990: 60. URBANISMO E ARQUITETURA DE BRACARA AUGUSTA. SOCIEDADE, ECONOMIA E LAZER Um outro edifício, aparentemente de cronologia lávia, foi detetado no decorrer de escavações realizadas na Sé Catedral, quer na zona do altar-mor80, quer na R. Nossa Senhora do Leite81. Embora não tenha sido possível deinir com clareza a natureza da construção original, profundamente remodelada no Baixo-Império, importa destacar a sua localização periférica relativamente à área planiicada da cidade, a orientação dissonante dos eixos viários dominantes82 e a sua provável função económica, tendo em conta a inscrição dedicada por Flavius Urbicio ao génio macellum, encontrada no local. Poderemos estar perante uma área comercial que poderá ter tido também uma vocação religiosa, se valorizarmos a inscrição dedicada a Isis Augusta por uma sacerdotisa do culto imperial, chamada Lucrecia Fida, a qual poderá ter mandado construir um templo à deusa oriental83. Testemunho do programa de obras públicas que monumentalizaram e embelezaram a cidade a partir do período lávio, que atingiu também as áreas periféricas, foi a remodelação operada na Fonte do Ídolo pelos descendentes de Celicus Fronto, a qual icou assinalada por uma inscrição que pode ter sido colocada na edícula que devia emoldurar a escultura togada esculpida na frente da fonte84. As escavações realizadas até ao momento permitiram identiicar numerosos vestígios de habitações, das quais vamos conhecendo algumas características dominantes. Uma delas é a reprodução do modelo de casa itálica de atrium e peristilo e mais frequentemente de peristilo. Outra característica está representada pela abundância de pórticos, envolvendo as casas, que davam acesso às numerosas tabernae que se dispunham ao longo das fachadas das habitações. Pese embora o elevado número de vestígios de domus identiicados até ao momento, em vários locais da cidade, o exemplar mais elucidativo da arquitetura doméstica de Bracara Augusta está representado pela casa das Carvalheiras, a única cuja planta foi integralmente recuperada (Fig. 8 A). Situada numa área residencial do setor noroeste da cidade romana, relativamente perto do forum, a casa das Carvalheiras foi erguida no último quartel do século I, sofrendo a sua primeira reforma talvez em meados do século II para instalação de um balneum público que viria a ocupar toda a parte norte da anterior habitação85. O projeto arquitetónico da domus, implementado de raiz86, estruturou uma grande habitação que ocupava uma área de 1152 m2 (110 x 120 pés), com forma 80 81 82 83 84 85 86 Rodrigues et al. 1990: 176. Gaspar 1985: 53-54. Fontes et al. 1997-98:140-141. Morais 2009-2010: 121-134. Elena et al. 2008: 54-55. Martins et al. no prelo. Ribeiro 2010: 517-524. 51 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA aproximadamente quadrada, que pode ser dividida em duas áreas diferenciadas, bem marcadas pelo desnível de cerca de 3 m de altura existente entre a plataforma norte (mais baixa) e a plataforma sul (mais alta), resolvido através da construção de uma parede, que se dispunha aproximadamente a meio da habitação. As duas áreas encontravam-se ligadas por uma escada interior. A casa era servida por duas entradas, uma a sul, com acesso direto ao atrium e salas envolventes e outra, a norte, com entrada para o peristilo e compartimentos que se erguiam em torno daquele vasto espaço ajardinado (Fig. 8 A). Ladeando as ruas sul e oeste desenham-se eixos de circulação pedonal porticados, com 10 pés de largura, com acesso ao conjunto de lojas, que se abriam nas fachadas. Por constituir a única casa cuja planta se conhece na totalidade ela oferece-nos informações preciosas sobre a organização do espaço doméstico, sobre a natureza dos seus possessores, mas também sobre as atividades económicas que se desenrolavam, paredes meias com a área habitacional. Tendo em conta a área construída da domus veriicamos que ela se estruturava em torno de dois espaços de representação, um deles constituído pelo átrio (134m2) e outro pelo peristilo (476m2). No total as duas áreas ocupavam cerca de 610m2, valor que corresponde apenas a 53% da área construída do quarteirão, estando a restante reservada a espaços de vocação económica (cerca de 542m2), constituídos por lojas que se abriam aos pórticos poente, sul e nascente. Tendo por referência a diferenciação dos espaços da habitação entre privados, de serviços e de receção, veriicamos uma enorme desproporção entre as áreas reservadas a esta última atividade (363m2, cerca de 60%) e a jardins e zonas descobertas (160m2, cerca de 26%) e as áreas destinadas aos serviços, que ocupavam uns modestos 5% da parte habitada (32m2), não ultrapassando as áreas privadas 8% da mesma (49m2). O evidente protagonismo dos espaços de receção, em torno do átrio e do peristilo, ocupados por tablinos, triclínios e oecus, demonstra uma clara assimilação dos modelos e componentes da arquitetura clássica no projeto da casa, subentendendo, também, que o seu proprietário se encontrava perfeitamente integrado nos cânones da educação romana, sendo capaz de usar o espaço doméstico como referente do seu estatuto social, bem ao modo das elites romanas. Em particular, cabe destacar as de salas ligadas ao atrium, normalmente destinadas a receber os clientes, facto que testemunha que o dono da casa se enquadraria numa classe social que usava a clássica relação patrono/cliente como forma de projetar e demonstrar o seu prestígio e estatuto. A parte económica do quarteirão era signiicativa e as lojas (tabernae) (Fig. 8A) ocupavam quase metade da área construída (542m2, cerca de 47%), o que demonstra que grande parte da atividade comercial, e certamente também a pequena produção 52 URBANISMO E ARQUITETURA DE BRACARA AUGUSTA. SOCIEDADE, ECONOMIA E LAZER artesanal, podiam realizar-se ao longo das ruas, decorrendo essas atividades em íntima articulação com o espaço doméstico. Ainda que seja bastante difícil avaliar a função exata das lojas, podemos admitir que elas se destinariam, quer ao comércio retalhista, quer ao fabrico de certos produtos que não fossem excessivamente exigentes em infra-estruturas. Um aspeto interessante refere-se à subdivisão do espaço de algumas lojas (Fig. 8 A), que permite considerar, ou a existência de áreas de armazenagem de produtos, ou uma separação hipotética entre o espaços de produção e venda, ou, ainda, que os artesãos ou comerciantes dormiriam em espaços anexos ao seu local de trabalho. Os pórticos, que ladeavam as ruas, eram também espaços fundamentais na vida económica das cidades, separando os pedestres do tráico, permitindo que os potenciais compradores avaliassem os serviços ou os produtos oferecidos nas lojas. Neste sentido, cabe referir que todas as domus referenciadas até ao momento em Braga possuem sempre as suas fachadas porticadas, facto que sugere uma animada vida económica ao longo das ruas. O que sabemos da sociedade e da economia de Bracara Augusta entre a época laviana e antonina resulta de uma interpretação cruzada dos dados epigráicos e arqueológicos. Relativamente à componente social cabe destacar as referências epigráicas a cidadãos romanos, normalmente oriundos de outras cidades, facto que sugere a contínua chegada à cidade de populações originárias de outras regiões. Entre eles encontram-se Caius Aemilius Lougo, originário de Clunia, ou Marco António Augustano, nascido em Pax Iulia, que serviu na Legio VII Gemina (Fig. 9). Contudo, muitos cidadãos romanos portadores dos tria nomina, referidos nas inscrições de Braga, possuem uma clara origem indígena, correspondendo a sua cidadania a um processo de promoção, ocorrido, nalguns casos, na época lávia, o que justiica a sua inscrição na tribo Quirina87, como aconteceu, entre outros, com T. Caelius Flaccus, Q. Pontius Severus, ou L. Terentius Rufus. Outros indígenas poderão ter adquirido a cidadania pelo desempenho de cargos, sendo de destacar os casos de Lucius Virius Ruinus e Caius Iulius Pintamus que adotaram os tria nomina mas mantiveram o gentilício indígena (Fig. 9). Também a onomástica lávia poderá ser indicadora de outras promoções, como pode ter acontecido com Flavius Urbicio, que dedicou um monumento ao Génio do Mercado, com Flavius Fronto, que ergueu uma dedicatória ao deus Eventus, ou mesmo com Titus Flavius Graptus, que seria proprietário de uma oicina de produção de tubos de chumbo (istulae). A epigraia documenta também que a cidade possuía uma forte componente de libertos, alguns públicos, sendo quase certo que muitos deles desempenharam um 87 Muito embora a inscrição de cidadãos na Tribo Quirina não tenha sido exclusiva do período lávio ela torna-se então mais frequente e quase exclusiva. 53 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 9. Inscrições funerárias alusivas a cidadãos romanos, um oriundo de Pax Iulia (Marco António Augustano) e outro de origem indígena (Caius Iulius Pintamus). 54 URBANISMO E ARQUITETURA DE BRACARA AUGUSTA. SOCIEDADE, ECONOMIA E LAZER importante papel na economia urbana, quer como artesãos, quer como comerciantes. Igualmente numerosos são os escravos, alguns dos quais dedicados a atividades artesanais, parece acontecer com os referidos numa magníica estela que ostenta uma iconograia sugestiva da atividade de ferreiro, quer do defunto Agathopus, quer do seu companheiro Zethus, ambos escravos de Tito Sátrio, que deveria ter-se dedicado ao mesmo ofício. Pouco sabemos ainda das atividades artesanais urbanas, em parte devido à natureza perecível dos materiais produzidos, mas também em resultado da sua localização periférica. De facto, é possível dividi-las em duas categorias distintas, consoante se relacionavam com as artes do fogo e exigiam equipamentos como fornos (olaria, metalurgia e produção de vidro), ou os dispensavam, como acontecia com o trabalho da madeira, do osso, dos têxteis ou dos couros. No caso da olaria, e porque os detritos de produção não eram normalmente reciclados, não é raro que as oicinas se situassem fora da área urbana. Assim parece acontecer em Bracara Augusta, onde, até ao momento, se podem apenas localizar duas possíveis áreas de olaria, com base na referência a fornos e tanques de decantação, encontrados na zona de Maximinos, infelizmente destruídos (Fig.10). Já a produção de vidro está referenciada na periferia da área urbana, pelo menos em duas áreas. Uma delas laborou entre o período lávio e os inais do século III e é conhecida pelos vestígios procedentes do entulhamento de um poço que forneceu abundantes elementos associados a este tipo de produção88. O outro centro situa-se no setor sudeste da cidade (Fig.10), sendo sugerido por abundantes materiais que denunciam o fabrico de vidro, num período situado entre o Alto e o Baixo-Império89. Apesar de não dispormos para este período de dados referentes às oicinas metalúrgicas sabemos que elas devem ter existido, tendo por base os produtos encontrados na cidade, como acontece, concretamente, com a produção de tubos de chumbo, para distribuição de água limpa (istulae). A tecnologia de fabrico destas peças e a sua produção em série, deveriam exigir que as oicinas que as produziam se localizassem em áreas periféricas, uma vez que requeriam amplos espaços de armazenagem. Pelo contrário, os pequenos objetos de adorno, em vidro, bronze ou ouro, poderiam ser produzidos em espaços restritos, designadamente nos pequenos estabelecimentos dispostos ao longo das ruas (tabernae), na parte baixa das casas, os quais podiam servir, simultaneamente, para produzir e vender os referidos produtos. Esta oicina conhecida pelo nome de Casa do Poço foi parcialmente escavada, mas os seus resultados não lograram testemunhar mais do que a sua existência. 89 Cruz 2007. 88 55 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA A construção foi sem dúvida uma das atividades económicas mais importantes da cidade, envolvendo um considerável número de agentes e artesãos, organizados em collegia, dedicados a várias especialidades, que trabalhavam a madeira, a pedra, a argila, ou o ferro para produção dos elementos indispensáveis na construção e manutenção dos edifícios. O comércio era indispensável à economia do Império, mas também das cidades. Sabemos pelos produtos importados, mas também pela epigraia, que esta atividade está precocemente documentada em Bracara Augusta, estando eventualmente a cargo de negociatores, que assegurariam o abastecimento da cidade nos produtos que esta não produzia. Entre eles destacam-se os alimentares, como os produtos piscícolas, o azeite e o vinho, transportados em contentores anfóricos. Aqui chegavam também baixelas de mesa em cerâmica ina e outros produtos de exceção, igualmente transacionados ao longo das rotas marítimas e luviais, complementadas pelas vias terrestres, que uniam entre si as diferentes províncias e cidades do Império. Estes produtos seriam vendidos por retalhistas, muito provavelmente nas inúmeras lojas a que já nos referimos, que comerciavam também os produtos Fig. 10. Planta de Bracara Augusta com circuito da muralha e localização de oicinas de produção de cerâmica e vidro. 56 URBANISMO E ARQUITETURA DE BRACARA AUGUSTA. SOCIEDADE, ECONOMIA E LAZER feitos na cidade, como a baixela de mesa de produção bracarense, ou a louça mais vulgar, chamada de fabrico comum, que incluía diferentes peças de mesa, cozinha, transporte, ou armazenagem. Aí seriam igualmente vendidas as peças de vidro e as lucernas, maioritariamente de fabrico local. Toda a atividade mercantil era suportada pelo numerário, bem documentado na cidade, acusando a circulação monetária padrões de comportamento semelhantes aos de outras cidades da Hispânia, algo que nos permite airmar que Bracara Augusta estava perfeitamente inserida na economia monetária do Império90. Datará deste período a máxima utilização das diferentes necrópoles identiicadas em Braga91. Entre elas é justo destacar a da Via XVII, situada a nascente da cidade, onde foi possível documentar uma intensa fase de enterramentos associados a recintos e à monumentalização do espaço sepulcral92, com a construção de mausoléus e a generalização da prática de dispor as estelas funerárias ao longo da via. 2.3.3. a cidade baixo‑imperial O período correspondente aos inais do século III/inícios do IV representa um momento de grande dinamismo construtivo em Bracara Augusta, certamente articulado com a promoção da cidade a capital da nova província da Gallaecia, criada por Diocleciano. De facto, este período é assinalado por numerosas remodelações em quase todos os edifícios públicos e privados, registando-se igualmente algumas transformações na topograia urbana. No entanto, o maior investimento construtivo deste período está representado pela construção de uma poderosa fortiicação, com características semelhantes às de Lugo, Astorga, León e Gijón93, que se inserem no estilo legionário hispânico, com paralelos noutras províncias ocidentais, designadamente, na Gália, Germânia e Britânia, facto, que permite supor que a construção destas muralhas resultou de uma decisão política de Roma, relacionada com a defesa estratégica das cidades do ocidente do Império94. A realização de diversas escavações em áreas periféricas da cidade saldaram-se em resultados muito signiicativos para o estudo da muralha, tendo os mais importantes sido obtidos na zona do Fujacal95, local onde foi exumado um extenso pano da fortiicação, cuja vala de fundação forneceu materiais datáveis entre inais do século III / inícios do IV. A estrutura detetada apresenta uma largura 90 91 92 93 94 95 Amaral 2007: 74-76 Martins e Delgado 1989/90: 41-186. Braga 2010. Lemos et al. 2002; 2007. Fernández Ochoa 1997. Lemos et al. 2007. 57 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA que oscila entre os 5 e os 6m, exibindo um aparelho irregular, resultante de reparações, algumas das quais datadas do período medieval e moderno. O paramento interno corresponde à face externa de um muro, com uma largura de cerca de 0,90m, enquanto o externo limita o poderoso enchimento da muralha, estruturado e estratiicado em camadas de grandes pedras transversais, dispostas sobre leitos compostos por pedra miúda, seixos, tijolo partido, argila e areão granítico. Neste sector da cidade foram ainda descobertos dois torreões semi-circulares, com um diâmetro aproximado de 3,20m, cujos alicerces encaixam no solo natural. No sector norte foram observados vários troços da muralha, junto à Sé Catedral96, no logradouro de uma casa da R. D. Paio Mendes e ainda nos alicerces da antiga Casa do Cabido da Sé, na R. D. Diogo de Sousa. Nesta última intervenção foi possível pôr a descoberto parte da face externa da muralha, que oferece um aparelho em opus quadratum e os alicerces de um torreão semi-circular que revelou uma iada de pedras da face construída no mesmo aparelho. Outras intervenções realizadas em zonas periféricas da cidade, com carácter mais pontual, permitiram deinir com maior precisão o traçado da muralha, obter elementos cronológicos e conirmar as suas características construtivas. Tendo em conta o carácter homogéneo da obra, tudo aponta para que a muralha tenha sido construída de forma continuada, como projeto único, sendo quase certo que nela foram usados materiais resultantes do desmonte de habitações, mas também de alguns grandes edifícios públicos, como seria o caso do teatro e do aniteatro. Também, à semelhança do que ocorre em muitas outras cidades, a muralha integrou um elevado número de inscrições, maioritariamente funerárias, que têm vindo a ser paulatinamente descobertas nas intervenções arqueológicas realizadas. A construção da muralha provocou alterações na coniguração da cidade alto-imperial, deixando extramuros algumas construções que persistiram habitadas. A cidade transformou-se num espaço fechado, acessível apenas por algumas portas, no interior do qual a construção se tornou mais compacta. Lentamente, desapareceram vários eixos de circulação viária, bem como os clássicos pórticos que foram sendo integrados nas construções, conforme foi documentado em praticamente todas as intervenções que puseram a descoberto a totalidade, ou parte das habitações que integravam o tecido urbano Bracara Augusta97. O desaparecimento dos pórticos e das lojas distribuídas ao longo das ruas sugere uma alteração dos espaços económicos da cidade, os quais poderão ter passado a estar concentrados. 96 97 58 Fontes et al. 1997-98: 139. Martins e Fontes 2010: 111-124; Fontes et al. 2010. URBANISMO E ARQUITETURA DE BRACARA AUGUSTA. SOCIEDADE, ECONOMIA E LAZER Fase 1 Fase 2 Fig. 11. Planta esquemática da fábrica de vidro encontrada a sul da Via XVII, datada entre os séculos IV e V. Hipótese de evolução do edifício. A partir dos inais do século III/inícios do IV regista-se uma generalizada remodelação de edifícios públicos e privados. No que respeita aos edifícios públicos pode referir-se as termas do Alto da Cividade que conheceram uma profunda reformulação naquele período, caracterizada pela transformação da anterior zona quente em zona fria, sendo aberta uma nova área quente na parte oeste do edifício. Finalmente, uma última remodelação deste balneário, situada em meados do século IV, contemplou pequenas alterações na área aquecida, desafetando a área de serviços norte, que passou a ser ocupada por uma nova palaestra, inserida na parte norte do corpo do edifício, que substituiu a anterior, localizada a poente98. Tendo por base os dados disponíveis é possível airmar que o teatro terá deixado de funcionar no século IV, altura em que deve ter começado a ser desmontado, muito embora se tenham identiicado ocupações secundárias na basílica norte e nas imediações do muro perimetral, datadas dos séculos V/VI, as quais testemunham a perca de sentido deste edifício de espetáculo. Embora sem dados que o comprovem será de admitir que o aniteatro possa ter deixado de funcionar igualmente entre inais do século III e inícios do IV, devendo ter sido parcialmente desmontado para a obtenção de pedra para a construção da muralha. 98 Martins 2005: 62-65. 59 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA O edifício público que se conhece sob a Sé Catedral, de origem alto imperial, sofreu igualmente uma profunda remodelação neste período, transformando-se numa construção mais ampla, associada a um solo de opus signinum, com uma cobertura sustentada por pilares. Em data que se admite ser posterior ao século IV este edifício foi remodelado, passando a conigurar-se com uma planta basilical, de forma retangular e orientação E/O, com pavimento de argamassa, tipo opus signinum, associado a paredes divisórias, pilares e a uma entrada rasgada na parede sul. A morfologia do edifício e os vestígios conhecidos permitem sugerir a sua organização em três naves, formalizando o que se supõe ser a primeira basílica paleocristã da cidade99, a qual dotará a cidade de um novo polo de atração que irá condicionar a futura evolução urbana. As habitações conheceram igualmente uma generalizada remodelação entre inais do século III / inícios do IV, sendo de destacar o avanço das construções sobre os pórticos e a sistemática instalação de balneários privados no seu interior. Assim aconteceu com a domus da Escola Velha da Sé, ou com a domus de Santiago100. Na primeira, o pórtico nascente anexo ao cardo máximo foi fechado e integrado na habitação, que sofreu uma profunda remodelação para permitir a instalação de um balneum, datando desta fase os restos de mosaicos descobertos em corredores e compartimentos, bem como os vestígios de estuques que recobriam as paredes. Vestígios de mosaicos com a mesma cronologia foram igualmente detetados num tanque central do peristilo da domus de Santiago, organizado nesta fase, a partir de um anterior pátio, o qual se conserva no claustro do Seminário do mesmo nome. A habitação parece ter sofrido igualmente uma reforma que permitiu a instalação de um balneum a nordeste do peristilo. A muralha baixo imperial abraçou uma extensa área urbana, com cerca de 48ha, deixando de fora edifícios e áreas artesanais de produção de cerâmica. No entanto, a atividade artesanal de produção de vidro durante o século IV está constatada, tanto intra como extramuros. De facto, permanece em atividade um setor de produção de vidro identiicado na zona do Fujacal, de origem Alto Imperial101, ao mesmo tempo que surge uma nova oicina, na parte sul da Via XVII (Fig. 11), a qual irá laborar até ao século V102. Simultaneamente, terá deixado de funcionar a oicina de produção de vidro identiicada como “Casa do Poço”, cuja área se viu integrada no espaço intramuros. Fontes et al. 1997-98: 145. Magalhães 2010. 101 Cruz 2000; 2007. 102 Martins et al. 2010. 99 100 60 URBANISMO E ARQUITETURA DE BRACARA AUGUSTA. SOCIEDADE, ECONOMIA E LAZER Tendo em conta os dados disponíveis perece-nos possível considerar que as atividades artesanais que exigiam as artes do fogo, designadamente a cerâmica e o vidro, se situavam preferencialmente fora do perímetro fortiicado, com exceção da área do Fujacal que se situaria na periferia da cidade, mas intramuros. O nosso conhecimento sobre as áreas extramuros durante o século IV é ainda reduzido. Sabemos que a Via XVII sofreu uma nova repavimentação entre inais do século III/inícios do IV, o que demonstra a importância daquele eixo viário ainda no Baixo-Império103. Simultaneamente, a área utilizada da necrópole desloca-se mais para nascente, sendo escassos os enterramentos conhecidos que podemos atribuir seguramente ao século IV104. A este período podem pertencer as sepulturas de inumação encontradas na necrópole da Rodovia105, bem como as que foram identiicadas na necrópole do Campo da Vinha, na R. Alferes Ferreira106. Apesar das mudanças ocorridas no tecido urbano, decorrentes da construção da muralha, parece hoje indiscutível que Bracara Augusta conheceu um enorme lorescimento económico, político e cultural, ao longo do século IV, algo que decorre das suas novas funções enquanto capital provincial e sede de Bispado, que reforçaram a sua centralidade no novo quadro da organização provincial da Hispânia romana, criado pelos imperadores da Tetrarquia. A arqueologia dá-nos numerosos testemunhos que documentam uma intensa atividade construtiva, tanto em espaços públicos como privados e uma perfeita continuidade na produção artesanal e das importações, referenciadas por vários produtos oriundos de diferentes províncias do Império que demonstram a continuidade do funcionamento da rota atlântica. à dinâmica cidade do século IV sucede a não menos dinâmica urbe do século V, que manteve a sua importância administrativa, religiosa e económica, apesar de ter passado a integrar o reino suevo como sua capital107. 3. CoNSIDErAçõES FINAIS As dezenas de intervenções arqueológicas realizadas em Braga ao longo dos últimos trinta e cinco anos revolucionaram por completo o conhecimento relativo a esta importante cidade do NO peninsular, deicientemente referida nas fontes documentais da Antiguidade. De facto, foram as escavações urbanas que permitiram documentar o traçado ortogonal da cidade romana, tipiicar alguns dos seus equipamentos públicos e privados, delimitar a sua mancha de ocupação, identiicar 103 104 105 106 107 Martins et al. 2010; Fontes et al. 2010. Braga 2010. Martins e Delgado 1989-90: 151-155. Martins e Delgado 1989-90: 155 e 158. Fontes et al. 2011. 61 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA as suas necrópoles e fases de utilização e caracterizar os diferentes aspetos da sua sociedade e economia. Um dos contributos mais importantes fornecidos pela arqueologia relaciona-se com o reconhecimento da precoce planiicação da cidade, datável da época de Augusto, ocorrida muito provavelmente em simultâneo com a implantação do cadastro rural e a abertura das principais vias que ligaram a cidade ao exterior. No entanto, são ainda escassos os vestígios construtivos que se reportam às primeiras décadas da vida da cidade, seguramente já ocupada entre os anos 4 e 3 a.C., tendo por base testemunhos epigráicos e os primeiros enterramentos realizados na necrópole da Via XVII. Pese embora a escassez e o carácter fragmentário do ediicado anterior ao período lávio sabemos que a área situada nas imediações do forum foi a primeira a ser ocupada, muito embora ao longo da dinastia júlio-cláudia se deva ter densiicado a mancha de ocupação dos diferentes quarteirões que compunham o espaço urbano, conforme parece documentado pela dispersão dos materiais correspondentes à primeira metade do século I. A arquitetura pública e privada dos períodos lávio e antonino exibe uma boa qualidade técnica e reproduz modelos que se enquadram perfeitamente nos padrões técnicos e construtivos da arquitetura romana, ainda que se adaptem à utilização das matérias-primas disponíveis, entre as quais domina o granito, explorado nas máximas potencialidades da sua diversidade. Por sua vez, as construções públicas, sobretudo ligadas ao ócio e ao espetáculo, como as termas, o teatro e o aniteatro, revelam a importância que Bracara Augusta assumiu no contexto do programa de urbanização do NO peninsular, iniciado por Augusto e que atingiu a sua máxima expressão no século II. A intensa atividade edilícia assinalada entre a época lávia e a antonina surge-nos, assim, como uma expressão da capacidade inanceira das elites bracarenses para monumentalizar a cidade com equipamentos carismáticos, os quais documentavam, também, a importância administrativa e económica que Bracara Augusta protagonizou, logo desde a sua fundação, no contexto regional e provincial. à semelhança do que aconteceu em muitas outras cidades do ocidente do Império, a maioria das casas identiicadas em Bracara Augusta data dos inais do período júlio-cláudio e da época lávia, sendo de considerar que esse fato documenta o progressivo enriquecimento da cidade e das suas elites, que disporiam já então dos necessários dividendos para construir habitações de pedra, que adotaram, generalizadamente, os cânones itálicos de inspiração helenística. Importa ainda reforçar a ideia de que, quer o urbanismo, quer a arquitetura de Bracara Augusta se formalizaram ao longo dos séculos, num processo dinâmico, alimentado por sucessivos projetos edilícios, que foram estruturando um tecido urbano em perma62 URBANISMO E ARQUITETURA DE BRACARA AUGUSTA. SOCIEDADE, ECONOMIA E LAZER nente evolução, de acordo com novas necessidades, gostos e conjunturas. Embora a arqueologia não forneça senão retalhos e evidências descontínuas e fragmentárias desse processo, é certo que só ela poderá fornecer os elementos indispensáveis para avaliarmos e reletirmos sobre a natureza das transformações sofridas pela cidade ao longo da sua ocupação. Para inalizar, e em jeito de conclusão, poderíamos considerar que, independentemente da origem indígena da grande maioria dos seus habitantes e, também, das suas elites, Bracara Augusta desenvolveu-se como um centro urbano socialmente eclético e economicamente dinâmico, reproduzindo, pelo menos a partir do período lávio, os cânones construtivos e culturais, característicos da romanitas, não por imposição, mas antes por vontade das suas elites, de origem maioritariamente indígena, que souberam usar os hábitos e a cultura romana como forma de manter o seu poder e aumentar o seu prestígio, numa nova ordem social, económica e política representada pelo Império Romano. BIBlIogrAFIA Abásolo Álvarez, J. A., El Mundo Funerario Romano en el Centro y Norte de Hispana: aspectos diferenciales, in Vaquerizo, D. (ed.), Actas del Congreso Internacional Espacios y Usos Funerarios en el Occidente Romano, Seminario de Arqueología da Universidad de Córdoba, Vol. I, Córdoba, 2002: 145-162. 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Tendo por base os testemunhos construtivos, bem como os artefatos e as inscrições conhecidas procede-se, de seguida, a uma análise da arquitetura pública e privada, numa perspetiva diacrónica, em articulação com diferentes aspectos relacionados com a economia e a organização social. Palavras-chave: Bracara Augusta, Evolução urbana, Arquitetura romana, Economia romana, Sociedade. ABSTrACT: his paper aims to analyze the input provided by urban archeology carried out in Braga in the past thirty-ive years able to approach the evolution of the Roman town of Bracara Augusta, between its foundation at the end of the irst century BC and the fourth century AD. With reference to the available knowledge we discuss the historical and political background which led to the creation of Northwestern Augustan cities, we proceed to an evaluation of pre-Roman occupation in the territory where Bracara Augusta was settled, we analyze the archaeological remains related to early implantation of a orthogonal grid and we valorize both material and epigraphic data relating to the original occupation of the new site. Based upon the constructive evidence, as well as the known artifacts and inscriptions we then evaluate the public and private architecture on a diachronic perspective, in connection with various remains related to the economy and social organization. Keywords: Bracara Augusta, Urban evolution, Roman architecture, Roman economy, Society. dAllA CITTà ROMANA AllA CITTà TARdOANTICA: TRASFORMAzIONI E CAMbIAMENTI NEllE CITTà dEllA PIANURA PAdANA CENTRO‑OCCIdENTAlE PIER lUIgI dAll’AglIO1 KEvIN FERRARI1 gIANlUCA METE1 1. INTroDUZIoNE L’età tardoantica, termine che indica il periodo di transizione tra l’età romana imperiale e l’alto medioevo, è un momento di grande crisi intesa nel senso letterale e originario del temine, ossia di trasformazione e cambiamento. Nella tradizione quest’epoca è stata a lungo interpretata in un’ottica negativa, come se questi mutamenti indicassero soltanto un processo di degenerazione e degrado dell’assetto precedente, una sorta di regressione della civiltà compreso tra due periodi ben deiniti e caratterizzati da fasi di sviluppo e crescita. Pur nella sua problematicità si tratta piuttosto di un’età ricca e complessa in cui molti fattori portavano a una nuova strutturazione delle realtà precedenti trasformandole in qualcosa di nuovo e originale2. I cambiamenti in corso riguardarono moltissimi aspetti, dalla struttura delle istituzioni politiche all’immaginario del potere, dall’economia alla società e alle modalità di sfruttamento del territorio. Il paesaggio stesso subì numerose variazioni, con una riduzione delle aree insediate, la nascita di nuovi poli di aggregazione, la ricomparsa di aree incolte come zone umide, palustri e boschive. Le Dipartimento di Archeologia – Università degli Studi di Bologna (pierluigi.dallaglio@unibo.it); (kevin.ferrari2@unibo.it); (gianluca.mete@virgilio.it) 2 Una discussione sulle problematiche del passaggio tra la città romana e quella medievale si può ad esempio trovare in Catarsi Dall’Aglio, Dall’Aglio 1991-1992; Ward Perkins 1997; Brogiolo, Gelichi 1998; Brogiolo 2010. 1 69 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA nuove condizioni del popolamento, con una diminuzione della presenza umana sul territorio, fecero venire meno il controllo costante sulle infrastrutture e sui corsi d’acqua, tanto che anche l’assetto idrograico mutò in modo sostanziale3. Questi fenomeni non risparmiarono neppure le città. Rispetto all’epoca imperiale caratterizzata da crescita demograica e rinnovamento urbanistico e architettonico, ora si assisteva invece a una fase di ripiego, con interventi meno numerosi o limitati più che altro a restauri, abitazioni private meno ricche, ediici riadattati a nuove funzioni, aree parzialmente abbandonate. Tale situazione non sfuggiva neppure agli stessi autori antichi che percepivano i mutamenti in atto, anche se poi si deve prestare attenzione a contestualizzare e a distinguere tra diverse situazioni e realtà geograiche. In una zona come la Pianura Padana, con particolare riferimento alla VIII regio augustea, vediamo ad esempio una serie di situazioni molto variegate e complesse ma che sono indicative delle tendenze appena descritte. Nel periodo compreso tra il tardoantico e l’alto medioevo, ad esempio, alcune cittadine come Veleia o Claterna cessarono di essere abitate e persero la loro forma di centri urbani, pur essendo attestati (es. pieve a Claterna) alcuni elementi di continuità come centri di riferimento del territorio circostante. Fidentia subì una sorte analoga ma recuperò al contrario un aspetto cittadino dopo una fase di abbandono che fece però perdere memoria persino del suo antico nome. Casi di continuità abitativa, ma con signiicativi mutamenti, sono costituiti ad esempio da Mutina, che subì nel VI secolo d.C. una fase di dissesto idrico con conseguente slittamento del centro della città medievale rispetto a quello romano, o da centri come Parma e Bononia, che videro invece una restrizione dell’area urbana con la costruzione di una cinta muraria che escludeva quartieri precedentemente abitati. Sorte diversa toccò invece a città come Placentia, Cremona e Ticinum, che ancora in età tardoantica mantenevano invariati i limiti materiali della città (le mura), mostrando una continuità formale più marcata che comunque non le risparmiava dalle trasformazioni che stavano interessando indiferentemente tutte le altre città. Collocate nel settore centrale della pianura padana, nelle vicinanze di corsi d’acqua di notevole importanza quali il Po, il Trebbia e il Ticino, tali città sono sorte in un contesto geomorfologico simile e mostrano notevoli analogie nel rapporto tra l’impostazione dell’impianto viario e la geograia isica del territorio. Forse la posizione geograica e lo stretto rapporto che lega forma urbis e geomorfologia si possono annoverare tra le molteplici cause che hanno favorito questa maggiore continuità “apparente” tra città romana e medievale rispetto, ad esempio, ad altri Si pensi ad esempio alla mutazione di corso del Serio (Dall’Aglio et al.2010), a una serie di alluvioni che ricoprirono Modena, o ancora alla zona di Lugo e Faenza (Franceschelli, Marabini 2007) solo per fare alcuni esempi. 3 70 DALLA CITTà ROMANA ALLA CITTà TARDOANTICA: TRASFORMAZIONI E CAMBIAMENTI NELLE CITTà DELLA PIANURA PADANA CENTRO‑OCCIDENTALE centri di pianura come quelli enunciati precedentemente. A questa situazione dovette contribuire anche la loro vicinanza a corsi d’acqua. Sappiamo infatti, anche attraverso una notizia di Sidonio Apollinare, che la viabilità luviale rivestiva in questo periodo un ruolo di grande importanza, rendendo dunque Cremona, Pavia e Piacenza dei centri privilegiati proprio per la loro collocazione4. Anche in queste città si veriicarono comunque una serie di modiiche nella gestione e nell’organizzazione degli spazi interni e nel tessuto viario che ne mutarono l’aspetto. Il passaggio tra la fase romana e quella tardoantica è caratterizzato da alcune problematiche che sono state bene messe in luce dalla storia degli studi e che sono ormai assodate come linee guida di queste trasformazioni. Questi parametri possono essere suddivisi in tre gruppi, uno relativo alla costruzione e realizzazione di nuove strutture (sistemi difensivi, ediici cristiani, centri di potere, luoghi per le attività produttive), uno relativo alla destrutturazione e riutilizzazione di elementi preesistenti (templi, fora, ediici pubblici, ediici da spettacolo, infrastrutture), uno relativo inine alla trasformazione di spazi e usanze (edilizia privata, uso di aree pubbliche, comparsa di giardini e ortivi nel perimetro urbano, nuovi spazi e rituali funerari, diversi sistemi di produzione e scambio)5. In tutte e tre le città oggetto di studio si possono riconoscere chiaramente numerose tracce di questi elementi di mutamento e destrutturazione della città romana che portarono al contempo a una nuova spazialità che costituirà la base dello sviluppo della città medievale. L’analisi dei singoli centri permette comunque di cogliere sfumature e particolarità legate alle peculiarità locali e alle diverse vicende storiche, ma possono anche in questo caso essere in parte collegate con quella che è la geograia isica. 1.1 Inquadramento geomorfologico (ig. 1) Il settore di pianura in cui vennero fondate le città di Cremona, Piacenza e Pavia è caratterizzato dalla presenza di forme di origine luviale che sono state modellate in seguito a un'alternanza di azioni di deposito e di erosione dei corsi d'acqua a partire dal Pleistocene ad arrivare ai giorni nostri. La parte a nord del Po presenta un livello terrazzato ben distinguibile, originatosi in occasione dell’ultima massima espansione glaciale e abbandonato dai principali corsi d’acqua nel corso del Pleistocene, quando questi iniziarono una forte attività erosiva andando a scorrere in valli delimitate da ripide scarpate e per questo chiamate “valli a cassetta”. Sidon. Epist.1,5, 3-5. Narra Sidonio Apollinare, sul inire del V secolo, di essersi imbarcato su una nave cursoria, quindi del servizio pubblico, raggiungendo, attraverso la navigazione luviale del Ticino e del Po, Ravenna. 5 Brogiolo 2010. 4 71 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 1. Inquadramento geograico e geomorfologico dell’area oggetto del presente studio. 1: corsi d’acqua; 2: scarpate dei terrazzi a nord del Po; 3: scarpate dei terrazzi a sud del Po. Tale supericie, nota in letteratura come Livello Fondamentale della Pianura, non è più stata interessata da fenomeni di rilievo a partire dall’inizio dell’Olocene, ma è comunque modellata e articolata in una serie di forme quali dossi e paleoalvei Il settore a sud del Po si mostra invece molto diverso a causa della diferente storia geologica cui è stato soggetto il territorio. La fascia appenninica infatti non fu interessata dalla presenza di ghiacciai e la litologia di questi terreni, ricchi di peliti, ha favorito la produzione di molto sedimento che ha contribuito alla creazione di potenti coltri alluvionali che hanno livellato il rilievo e rendono più problematica una distinzione cronologica dei terrazzi su base topograica come invece è possibile fare per le regioni a nord del Po. Mentre l’attività luviale del comprensorio settentrionale è stata sostanzialmente limitata alle valli a cassetta senza più interessare le superici del ripiano superiore e più antico, nella parte a sud i mutamenti dei corsi d’acqua sono stati più frequenti e sono avvenuti in epoche anche più recenti. Lo stesso iume Po si trova a scorrere in una fascia di meandreggiamento incisa nel corso dell’Olocene nei ripiani limitroi e la cui ampiezza varia da zona a zona. In certi punti il corso d’acqua ha avuto maggiore stabilità e di conseguenza una minore attività erosiva laterale, per cui le scarpate dei terrazzi rispettivamente settentrionale e meridionale si trovano maggiormente ravvicinati. Queste strette morfologiche sono punti ideali di attraversamento e sono strategicamente importanti. Cremona, Piacenza e Pavia si collocano, dunque, in questo contesto morfologico che condiziona la scelta del luogo ove furono fondate, ma anche in parte l’organizzazione della forma urbana. 72 DALLA CITTà ROMANA ALLA CITTà TARDOANTICA: TRASFORMAZIONI E CAMBIAMENTI NELLE CITTà DELLA PIANURA PADANA CENTRO‑OCCIDENTALE 1.2 Inquadramento Storico I Romani iniziarono la loro espansione verso la Pianura Padana a partire dall’ultimo quarto del III secolo a.C. Sconitta una coalizione di Galli Boi, Insubri, Lingoni e Taurini nel 222 a.C., vennero fondate dopo pochi anni le colonie di diritto latino di Cremona e Placentia. Le due città resistettero alle turbolenze portate dalla seconda guerra punica e da un altro periodo di ostilità coi Galli che si concluse nel 190 a.C., anno in cui ricevettero un rinforzo di coloni e iniziarono un processo di crescita economica e demograica. La zona corrispondente all’attuale Emilia Romagna fu romanizzata con una serie di deduzioni coloniarie e di assegnazioni viritane, mentre la Gallia Transpandana fu assimilata con un processo più graduale che si concluderà tra l’89 e il 49 a.C. con la concessione prima del diritto latino e poi della cittadinanza romana. In questo processo di romanizzazione e integrazione delle comunità locali si inserisce la nascita di Ticinum. La regione conobbe durante la ine dell’epoca repubblicana e i primi anni dell’Impero un periodo di sviluppo e crescita economica, ma fu comunque direttamente interessata dalle principali vicende belliche e politiche del periodo. Cremona ad esempio fu colpita da una serie di interventi che inluenzarono negativamente la vita cittadina: in un primo momento (41 a.C.) il suo territorio fu nuovamente centuriato per essere assegnato ai veterani di Ottaviano e successivamente, dopo la caduta di Nerone, fu saccheggiata dalle truppe di Vespasiano nel 69 d.C. Nonostante ciò la città si riprese e visse un nuovo periodo di relativa pace e tranquillità insieme a tutta la regione. Anche a Piacenza sono documentati interventi nei primi anni dell’Impero, quando venne dedotta una colonia augustea e quando sono attestate operazioni sul territorio, come una risistemazione della via Emilia. A partire dal II e III secolo d.C. iniziano i primi segnali di diicoltà. La pressione delle popolazioni germaniche con le prime incursioni, la crisi politica e le diicoltà iscali che interessano l’Impero Romano nel suo complesso hanno delle ripercussioni anche nell’area Padana. E’ proprio in questo periodo che iniziano ad essere documentati in ambito urbano quegli elementi che abbiamo riconosciuto tipici del periodo tardoantico, come la costruzione di nuove opere difensive, la difusione del cristianesimo con i primi ediici di culto e un impoverimento nell’edilizia pubblica e privata. Non ci sono molte fonti letterarie su Piacenza, Cremona e Pavia che testimonino i cambiamenti in corso in questa fase, ma possiamo immaginare, grazie al quadro oferto da alcuni scavi archeologici, che dovevano avere ancora una certa ricchezza grazie alla loro posizione lungo il iume Po, lungo la via Emilia e la via Postumia e lungo il Ticino. Nel V secolo d.C., con la dominazione degli Ostrogoti, Pavia diviene, ad esempio, la seconda capitale del regno con una serie di interventi edilizi che segnano la topo73 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA graia della città altomedievale. Mentre Piacenza fu conquistata probabilmente già sotto il regno di Alboino con la prima ondata di occupazione longobarda (569-570 circa), Pavia resistette ad un assedio di 3 anni e Cremona era ancora abbastanza forte da opporsi ai nuovi invasori. Nonostante ciò nel 603 fu espugnata e distrutta da Agilulfo6. Siamo ormai nel VII secolo e la isionomia dei centri urbani è già mutata rispetto all’epoca romana con il processo di trasformazione e riorganizzazione degli spazi interni ampiamente avviato. La conoscenza di queste fasi è però resa problematica dalla scarsa quantità e qualità dei dati archeologici a disposizione. La maggior parte degli scavi si è svolta in un periodo in cui ancora si privilegiavano le evidenze strutturali e non vi era particolare attenzione alla metodologia per cui le labili tracce delle frequentazioni medievali, spesso legate a strutture in materiale deperibile, non venivano individuate o registrate. Gran parte della stratigraia dei centri storici è stata inoltre danneggiata in parte dalla costruzione dei palazzi e delle cantine rinascimentali, in parte dalle realizzazioni di monumenti di epoca fascista. Tali interventi urbanistici hanno ridisegnato quasi completamente l’aspetto di questi centri abitati e i lavori legati alle nuove realizzazioni hanno interessato in grande profondità il sottosuolo. Nonostante la frammentarietà e la scarsa qualità di certe informazioni si riescono a ricavare, tra vecchi e nuovi scavi, abbastanza dati per ricostruire le linee evolutive generali di questa serie di mutamenti che hanno portato alla nascita della città medievale. 2. ANAlISI DEllE CITTà 2.1 Cremona Cremona venne dedotta, nel 218 a.C.7, sull’orlo di una scarpata di terrazzo luviale, eroso ai margini meridionali dal paleoalveo del Po8 (ig. 2). La scelta dell’area in cui venne impostato l’insediamento era dettata in primis dalla vicinanza di una stretta morfologica che rappresentava un punto di attraversamento e di approdo e allo stesso tempo dal fatto che il terrazzo principale, appartenente al Livello Fondamentale della Pianura tardo pleistocenico e dunque posto a quote sopraelevate rispetto alla vicina fascia di meandreggiamento, costituiva un luogo sicuro da rischi di esondazioni. Inoltre la presenza di alcuni corsi d’acqua minori, provenienti da nord, caratterizzava il territorio sede dell’insediamento urbano9. Le vicende storiche della fondazione, profondamente legate alla deduzione della vicina 6 7 8 9 74 Paul. Diac. Hist. Lang. IV, 28. Tac. Hist.,II, 34; Vera 2003, pp. 274 ss. Cassano et alii 1986; Pellegrini 2003, pp. 2-37. Rivaroli, Marforio 1998, pp. 77-79; Podestà Alberini 1981; Uggeri 1998, pp. 76-79. DALLA CITTà ROMANA ALLA CITTà TARDOANTICA: TRASFORMAZIONI E CAMBIAMENTI NELLE CITTà DELLA PIANURA PADANA CENTRO‑OCCIDENTALE Fig. 2. Modello digitale del terreno della città di Cremona. A = Antiche anse del fume Po di età olocenica; B = Area depressa corrispondente al paleo alveo della Cremonella; C = Livello Fondamentale della Pianura e area occupata dalla città romana. Piacenza, sono da ricercarsi nell’ambito di un progetto politico di ampio respiro che intendeva spostare ancora più a nord il controllo romano, in un’area, quella Cisalpina, insediata da diverse tribù celtiche, tra le quali quella Insubre, che aveva in Milano la propria capitale10. La formalizzazione dell’impianto è riconducibile alla seconda deduzione del 190 a.C., momento in cui venne probabilmente deviato il corso della Cremonella, così da costituire il limite del vallum nord della città. La forma urbis, ad eccezione del limite meridionale che sembra ricalcasse l’andamento del terrazzo, è piuttosto regolare, presentando isolati di 80 metri di lato, individuati attraverso il ritrovamento di numerosi assi stradali11 (ig. 3). Il foro, di cui non abbiamo dati archeologici, occupava probabilmente due isolati all’incrocio tra cardine e decumano 10 11 Pol. II, 34, 10-12; Liv. Perioch. 20; Vell. Paterc. I, 14, 8; Liv. XXVIII,11,10-11. Passi Pitcher 2003, p. 140. 75 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 3. Planimetria della città di Cremona con indicazione delle curve di livello (equidistanza 1 m). Sono riportati il limite della città romana, l’area occupata dal foro e la forma urbis. Le lettere indicano alcune località citate nel testo: A = Via Cavallotti; B = Corso Mazzini; C = Corso Campi; D = Via Monteverdi; E: Via Jacini e Via Manna; F = Via Palestro; G = Corso Garibaldi; H = Corso Matteotti; I = Via Gerolamo da Cremona. massimo. Certa appare l’identiicazione del kardo con le attuali via Monteverdi/ corso Campi (C e D in ig. 3), mentre per il decumano massimo l’identiicazione con via Cavallotti/via Mazzini pone qualche dubbio (A e B in ig. 3). In ogni caso l’ “incrocio decentrato” tra i due assi principali, suggerisce una prima deinizione dell’impianto secondo metodologie ascrivibili all’ambito castrense. Oltre al foro, per quanto attiene alle localizzazione delle altre aree pubbliche e alla loro articolazione si sa ben poco, anzi nulla se escludiamo notizie desumibili dalle fonti scritte in cui comunque si attesta la presenza di templi, anche esterni alla cinta muraria, e di un aniteatro12. La stessa cinta muraria non è mai stata individuata, ma il suo perimetro è comunque ricostruibile, oltre che dall’andamento del piano topograico, anche attraverso i dati delle porte urbiche, la cui localizzazione è da porsi, a nord, in corrispondenza dello snodo tra le attuali via Palestro e corso Garibaldi (F e G 12 76 Tac. Hist., III, 30; Tac. Hist., III, 32. DALLA CITTà ROMANA ALLA CITTà TARDOANTICA: TRASFORMAZIONI E CAMBIAMENTI NELLE CITTà DELLA PIANURA PADANA CENTRO‑OCCIDENTALE Fig. 4. Planimetria della città di Cremona con la localizzazione dei principali rinvenimenti archeologici citati nel testo: 1: Piazza Marconi; 2: Piazza S. Angelo; 3: Piazza Stradivari; 4: Via Bellarocca; 5: Via Goito; 6: Via Milazzo; 7: Via Magenta (fuori pianta); 8: S. Vitale; 9: Via Cavallotti; 10: Piazza Duomo. a: Cattedrale; b: S. Lorenzo; c: S. Vitale; d: S. Lucia. in ig. 3), a sud, nell’area della chiesa di San Vitale (c in ig. 4), a ovest all’altezza dell’incrocio tra le vie Jacini e Manna (E in ig. 3). La porta est, identiicabile con la porta brixiana di cui scrive Tacito13, può essere ubicata allo snodo tra Corso Matteotti e via Gerolamo da Cremona (H e I in ig.3). Proprio lungo quest’ultima via, corrispondente ad un tratto della Postumia, è attestata una necropoli tardo repubblicana e, successivamente, la basilica paleocristiana di San Lorenzo, a testimonianza del grande valore simbolico attribuito a quest’area (b in ig. 4). In ogni caso, nonostante le vicende del 69 d.C. che videro la città pesantemente danneggiata dall’intervento delle truppe vespasianee, la cinta muraria, qualora ricostruita, doveva ricalcare il medesimo andamento e così dovette rimanere, fermo restando numerose manutenzioni, nel periodo tardoantico e almeno sino 13 Tac. Hist., III, 27. 77 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA all’arrivo delle truppe di Agilulfo nel 603 d.C., come confermerebbe indirettamente una notizia di Paolo Diacono14. Il disegno urbano a partire dall’ età tardoantica15, nelle sue linee generali, non subì grandi modiicazioni, anche se, dall’analisi dei dati archeologici emergono alcuni fenomeni tipici della maggior parte dei centri italiani tra il tardoantico e l’alto medioevo: l’abbandono totale o parziale di alcune domus, la costruzione di ediici con materiali deperibili, il proliferare di aree a destinazione ortiva o cimiteriale, l’afermazione delle strutture religiose cristiane (ig. 4). Numerosi interventi archeologici16 hanno permesso di deinire i caratteri dell’edilizia privata e pubblica in maniera signiicativa. Assistiamo, come nel caso della domus di Piazza Marconi (ig. 4 n. 1) ad abbandoni o frazionamenti, volti alla creazione di aree di cortile e giardini, mentre in altri casi, come per le domus di Piazza Sant’Angelo (ig. 4 n. 2) e di Piazza Stradivari (ig. 4 n. 3), le modiiche, più radicali, attestano un impulso costruttivo a partire dal III secolo d.C., indice di una certa vitalità. Fenomeni di ruralizzazione sono evidenti, dal IV-V secolo, nelle aree periferiche, comunque intra moenia, e suburbane, come emerge dai dati del settore meridionale della città (via Baldesio, via Bellarocca – ig. 4 n. 4) e da quello settentrionale (via Milazzo, via Goito – ig. 4 nn. 6, 5). E’ innegabile quindi la tendenza verso il calo demograico e l’abbandono di aree a destinazione residenziale o produttiva (via Magenta – ig. 4 n. 7), ma allo stesso tempo non si registrano fenomeni di abbandono o destrutturazione delle principali direttrici viarie urbane. In sostanza , in questa fase, il calo demograico, la ruralizzazione e la nascita delle strutture di culto cristiano non provocano variazioni dell’assetto urbano generale, quanto piuttosto della distribuzione degli spazi all’interno delle singole insulae. Certamente però la nascita degli ediici di culto cristiano variò notevolmente l’utilizzo degli spazi urbani, creando nuovi equilibri e poli attrattivi, come nel caso dell’attuale Piazza Duomo, situata ad est del foro e a ridosso del limite orientale della città, dove gli scavi archeologici hanno restituito i resti dell’antico battistero paleocristiano e di strutture attribuibili alla chiesa e al polo vescovile17. Allo stesso modo iniziano a comparire le sepolture all’interno della cerchia urbana (Piazza Stradivari – ig. 4 n. 3), spesso in concomitanza delle numerose chiese cimiteriali che iniziano ad essere attestate a partire dal V secolo (San Vitale, San Giorgio, Piazza Duomo – ig. 4 nn. 8, 1, 10), così come le chiese cimiteriali extra moenia spesso legate al culto martiriale, come nel caso della già citata San Lorenzo, a ridosso della via Paul. Diac. Hist. Lang. IV, 28; Paul. Diac. Hist. Lang. IV, 28 a. Cantino Wataghin 1990, p. 167. 16 Per una sintesi: Passi Pitcher 2003, pp. 130-200. 17 Piva 2004, pp. 364-379. Gallina 1998, pp. 15-42; Testini, Cantino Wataghin, Pani Ermini 1989, pp. 193-195. 14 15 78 DALLA CITTà ROMANA ALLA CITTà TARDOANTICA: TRASFORMAZIONI E CAMBIAMENTI NELLE CITTà DELLA PIANURA PADANA CENTRO‑OCCIDENTALE Postumia18. Proprio l’ediicazione degli ediici di culto cristiano che topograicamente non inluiva sul disegno urbano preesistente andava ad inserirsi in posizione non casuale negli equilibri della città, spesso in contesti occupati precedentemente da domus. Alla luce delle evidenze di alcuni ediici, in parte noti archeologicamente (San Vitale, Duomo, San Lorenzo – ig. 4 lettere c, a, b), in parte desumibili da fonti scritte (Santa Lucia19 – ig. 4 lettera d) si riscontra uno schema programmatico che deinisce una rete santuariale esterna o immediatamente a ridosso della cinta muraria, come attestato in numerose città, basti pensare a Bologna o a Rimini20. I lebili segni di un radicale cambiamento riscontrati a partire dal III secolo d.C. si ampliicano e sostanziano intorno al VI secolo d.C. Non solo aumentano i fenomeni di ruralizzazione intra ed extra moenia, le aree a destinazione cimiteriale e il calo demograico, ma vengono sempre meno il rispetto delle direttrici viarie urbane, la manutenzione della rete fognaria e le ediicazioni regolari. Alcuni settori, distribuiti omogeneamente nella città, vengono destinati non solo a coltivo, come nei secoli precedenti, ma a grandi discariche che, attraverso numerosi riporti, mutano radicalmente la morfologia e il piano topograico. Dal periodo longobardo è attestato un cambiamento nei modi dell’abitare e del costruire21 attraverso l’utilizzo di materiale deperibile, la cui diicile leggibilità nei contesti archeologici ha spesso contribuito erroneamente ad una visione estremamente negativa della città in termini di abbandono e spopolamento. E’ certo tuttavia che viene sempre meno il rispetto per l’assetto viario interno, come testimoniano le costruzioni sulle sedi stradali che in alcuni casi, come per via Cavallotti (ig. 4 n. 9), hanno deinitivamente obliterato importanti aree di passaggio22. Le poche strutture in muratura di questo periodo fanno ampio uso, nelle fondazioni, di basoli23, evidentemente recuperati dalle strade dismesse e sono attestati sempre più espedienti, come canali di scolo all’aperto, per sopperire alla crisi del sistema fognario. A partire dal IX secolo assistiamo, oltre che ad una ripresa edilizia, alla nascita e sviluppo di nuovi borghi esterni all’antica cinta muraria, in particolar modo la cosiddetta “Città Nova” che si colloca nel settore settentrionale ricavando rilessi positivi dalla vicinanza con le principali direttrici viarie verso nord (in collegamento per la via Francigena) e ovest (l’approdo al Po) nell’ambito di una rinascita Passi Pitcher 2004, pp. 26-35; Bishop, Passi Pitcher 1990, pp. 290-294. Falconi 1979. 20 Negrelli 2006, p. 235. 21 E’ il caso per esempio, dei resti di ediicio ligneo con pavimento in terra battuta rinvenuto nell’angolo nord-est dello scavo di Piazza Marconi. All’ediicio si accompagnava un canale di scolo a cielo aperto, indice delle diicoltà e scarso controllo in cui versava la rete idrica.(Blockley, Passi Pitcher 2008, pp. 22-23.) 22 Mete 2011, pp. 108-110. 23 Tale uso era già attestato nelle fondazioni murarie del battistero peleocristano. 18 19 79 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA economica della città che vede Cremona tra i centri protagonisti nel commercio di tessuti, spezie e sale. Queste “urbanizzazioni” deiniscono l’esigenza di una nuova e più ampia cinta muraria che , ricoprendo un territorio molto vasto, viene costruita a partire dalla seconda metà del XII secolo e terminata nel 118724. 2.2 Piacenza Placentia fu fondata nel 218 a.C. sull’orlo della scarpata del terrazzo del Po in un luogo ove questo era eroso da due antiche anse che davano al terrazzo più antico, probabilmente pleistocenico, una forma quasi rettangolare protesa verso la fascia topograicamente più bassa25. La città controllava un punto di attraversamento del Fig. 5. Modello digitale del terreno della città di Piacenza. A = antiche anse del iume Po di età Olocenica; B = ansa meandrica del Po in età Pleistocenica; C = paleo alveo del Trebbia nel III secolo a.C.; D = terrazzo pleistocenico e forma urbis di età romana; E = corso attuale del Po. Morandi 1991, p. 9 ss. Per quanto riguarda l’analisi del contesto geomorfologico in cui fu fondata la città si vedano Dall’Aglio et al. 2006; Dall’Aglio et al. 2008, Dall’Aglio et al. (in c.d.s.). 24 25 80 DALLA CITTà ROMANA ALLA CITTà TARDOANTICA: TRASFORMAZIONI E CAMBIAMENTI NELLE CITTà DELLA PIANURA PADANA CENTRO‑OCCIDENTALE Fig. 6. Planimetria della città di Piacenza con indicazione delle curve di livello (equidistanza 1 m). Sono riportati il limite della città romana, i rinvenimenti relativi alla cinta muraria, l’area occupata dal foro e la forma urbis. Le lettere indicano alcune località citate nel testo: A = Via Sopramuro; B = Piazza Cavalli; C = Viale Risorgimento, scavo di Campo della Fiera (aniteatro romano). Po e del Trebbia, che a quell’epoca sfociava ancora a est dell’abitato26. Il luogo scelto per l’insediamento si trovava in corrispondenza di un lieve alto morfologico costituito da un lobo di meandro del Po di epoca pleistocenica e si presentava ottimale perché difeso sui lati settentrionale e occidentale dalle scarpate del Po, su quello orientale dalla scarpata del Trebbia e su quello meridionale dalla depressione del paleo meandro del corso pre-olocenico del Po (ig. 5). La colonia fu pianiicata a partire dalla seconda deduzione del 190 a.C. in modo da adattarsi a questi limiti naturali (ig. 6). La forma urbis venne dunque ad avere una forma quasi rettangolare che sfruttava le scarpate dei terrazzi come elemento difensivo su cui impostare il sistema murario, motivo per cui all’interno del perimetro urbano si trovava anche un avancorpo nel settore occidentale che usciva dalla forma geometrica ideale di 10 isolati di 2 actus e 3 pertiche (80 m) sul 26 Marchetti, Dall’Aglio 1982. 81 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 7. Planimetria della città di Piacenza con la localizzazione dei principali rinvenimenti archeologici citati nel testo. 1: Piazza Duomo; 2: Via Monte Pietà; 3: Via Sopramuro; 4: Via Chiapponi; 5: Via Trebbiola; 6: Via Genocchi angolo vicolo del Guazzo 7: Piazza S. Antonino 8: Via Nova; 9: Scuola Mazzini; 10: Via Roma; 11: Via Genocchi; 12: Piazza Duomo. a: Cattedrale; b: S. Agostino; c: S. Brigida. lato lungo per 6 isolati su quello corto27. Poco si sa della distribuzione delle aree pubbliche all’interno della città. Le fonti parlano della presenza di un aniteatro28 tra la città e il iume, rinvenuto archeologicamente a ridosso della scarpata settentrionale del terrazzo29, mentre il foro doveva occupare i due isolati sud-occidentali all’incrocio del cardine e del decumano massimi ove si trovano le chiese di S. Pietro in foro e di S. Martino in foro30. Mancano però indicazioni sulla localizzazione di terme, teatri, basilica e templi, per cui non si può dire molto sull’articolazione degli spazi interni. Nella rete viaria attuale si legge ancora abbastanza bene la forma urbis di epoca romana, mentre la posizione degli snodi viari all’uscita delle porte Pagliani 1991 p. 43; Dall’Aglio et al. 2008. Tac. Hist., 2, 21. 29 Marini Calvani 1990a p. 782; Pagliani 1991 pp. 50-53; Marini Calvani 2000 p. 384; Scavo archeologico di Campo della iera (C in ig. 6): Calvani 1990b sito 01.01.011 pp.4-5; Pagliani 1991 sito 6 p. 16. 30 Pagliani 1991 p. 49; Maggi 1999 pp. 14-20, Marini Calvani 2000 p. 381. 27 28 82 DALLA CITTà ROMANA ALLA CITTà TARDOANTICA: TRASFORMAZIONI E CAMBIAMENTI NELLE CITTà DELLA PIANURA PADANA CENTRO‑OCCIDENTALE urbiche, delle necropoli e delle aree produttive indicano quelli che dovevano essere i limiti dell’abitato in età imperiale. In epoca repubblicana esisteva, inoltre, una cinta muraria in sesquipedali31 (C in ig. 6), anche se non si può sapere se restò in funzione ino all’età imperiale. Le mura che cingono Piacenza sul lato meridionale sono invece di epoca tardoantica e sono il primo segnale dei mutamenti cui andava soggetta la città. A partire dal III secolo d.C. fu infatti ediicata una nuova cinta difensiva che doveva ricalcare il perimetro di quella precedente o che, in ogni caso, coincideva con i limiti della città imperiale. Di questa struttura si sono ritrovati diversi tratti sul lato meridionale e un altro tratto su quello occidentale (ig. 7, nn. 1-5)32. Si tratta di un grande muraglione costituito da una cortina in laterizi con un nucleo di pietrame e malta realizzato con l’utilizzo di materiale di reimpiego. Il percorso dell’antica cinta muraria è desumibile anche dall’andamento del piano topograico. Proprio in corrispondenza dei limiti dell’abitato e della linea ideale che congiunge i rinvenimenti archeologici si trova un alto morfologico assente in età romana33 e costituito dall’accumulo e dallo spianamento delle macerie delle antiche mura, come sottolineato anche dal toponimo di una via che corre lungo questo piccolo dosso (Via Sopramuro – A in ig. 6). Interessanti sono i rinvenimenti di Via Trebbiola (ig. 7 n. 5) in quanto sono costituiti da due muraglioni aiancati e paralleli, uno più interno e in cima a un lieve dislivello del piano di campagna, e uno più esterno ai piedi di questa piccola scarpata. Il primo viene datato come il resto della cinta muraria al III secolo d.C., mentre i materiali rinvenuti in prossimità del secondo permettono di inquadrarlo cronologicamente nel VI secolo d.C. Secondo alcune interpretazioni la seconda struttura sarebbe stata ediicata come rinforzo dopo il parziale crollo del muraglione più antico34, ma non vi sono in realtà dati che permettano di datare il momento in cui questo divenne inutilizzabile. Non si può escludere a priori dunque che si tratti, come a Verona35, di un raddoppiamento della cinta muraria realizzato in epoca Gota, quando anche in altre città, tra cui Pavia, sono testimoniati interventi sui sistemi difensivi. 31 Marini Calvani 1990a pp. 775-776 ; Marini Calvani 1990b sito 01.01.011 pp.4-5; Pagliani 1991 sito 6 p. 16. 32 Sul lato meridionale si sono rinvenuti tratti delle mura in Via Sopramuro (Marini Calvani 1990 b sito 01.01.061 p. 14; Pagliani 1991 sito 67 pp. 33-35), Via Monte Pietà (Marini calvani 1990 b sito 01.01.020 p. 7; Pagliani 1991 sito 25 p. 27), Via Gazzola (Marini Calvani 1990 b sito 01.01.023 p. 7; Pagliani 1991 sito 11 p. 19), Via Chiapponi (Pagliani 1991 sito 78 p. 38). Sul lato occidentale vi è invece il ritrovamento di via Trebbiola (Marini Calvani 1992 pp. 324-326). 33 Per quanto riguarda l’analisi del piano topograico della città con analisi e interpretazione delle evidenze si veda Dall’Aglio et al. 2007; Dall’Aglio et al. 2008. 34 Marini Calvani 1992 p. 325. 35 Brogiolo, Gelichi 1998, pp. 67-68. 83 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Le mura tardoantiche racchiudevano un’area che coincideva sostanzialmente con quella occupata dalla città imperiale. Nonostante non si registri una contrazione dell’abitato si possono comunque notare segnali di un calo demograico con conseguenti fenomeni di abbandono e spopolamento di molte zone urbane. La presenza della maggior parte delle chiese più antiche nel settore orientale della città sembra indicare infatti una concentrazione della popolazione in questo settore36. Non è forse un caso, dunque, se i quartieri orientali mostrano una maggiore continuità del tessuto viario rispetto a quelli occidentali, ove, pur restando riconoscibile la forma urbis precedente, si registrano variazioni più signiicative. Anche il fatto che la stratigraia successiva all’epoca romana sia più consistente nella metà occidentale dell’antica area urbana può essere in qualche modo connesso all’accumulo di macerie, strati di abbandono o fenomeni di ruralizzazione indicativi di un destino diferenziato tra i due settori. Questo parziale spopolamento fu accompagnato da altre trasformazioni della struttura cittadina tra cui una diversa relazione con gli spazi aperti. Secondo alcuni documenti medievali la campagna arrivava a ridosso della cinta muraria37, sostituendo dunque quello che doveva essere il suburbio dell’epoca precedente. La documentazione archeologica conferma questo quadro generale mostrando come alcune aree periferiche quali ad esempio Via Genocchi e Piazza S. Antonino (ig. 7 nn. 6, 7), utilizzate anticamente come zone produttive o occupate da strutture murarie, vengano successivamente trasformate in aree adibite ad ortivo38. Anche un altro scavo in via Nova, poco lontano dalla cinta muraria, ha riportato in luce una simile situazione con poche strutture murarie inserite in un contesto aperto (ig. 7 n. 8)39. Il fenomeno di ruralizzazione coinvolse in qualche modo anche l’area all’interno della cinta muraria. I documenti medievali, quando citano un’abitazione, fanno sempre riferimento a giardini od orti di pertinenza40, lasciando desumere la presenza di una sorta di campagna dentro la città. Al contempo si impoverivano anche le tecniche costruttive. A partire dal III secolo d.C. non si registrano nuovi interventi signiicativi e i lavori di restauro su strutture e pavimentazioni mostrano una certa povertà e scarsa accuratezza41. Almeno ino al VI secolo d.C. si può pensare, sia per analogia ad altre città dell’Emilia Romagna sia per la presenza di attività edilizie Catarsi Dall’Aglio, Dall’Aglio 1991-1992 pp. 23-24. Galetti 1994 pp. 58-59, in particolare nota 9 p. 58. 38 Per via Genocchi si veda Saronio 1997a pp. 133-134; per Piazza S.Antantonino Marini Calvani 1990 sito 01.01.096 p. 20. 39 Archivio del Museo archeologico di Parma: rif. PC Via Nova 39. 40 Galetti 1994 p. 59. 41 Catarsi Dall’Aglio, Dall’Aglio 1991-1992 p. 24. 36 37 84 DALLA CITTà ROMANA ALLA CITTà TARDOANTICA: TRASFORMAZIONI E CAMBIAMENTI NELLE CITTà DELLA PIANURA PADANA CENTRO‑OCCIDENTALE quali il raforzamento della cinta muraria, all’utilizzo di antiche abitazioni riadattate alle nuove esigenze e alla presenza di qualche raro nuovo ediicio di un certo pregio. In epoca longobarda risulta però un mutamento signiicativo caratterizzato dal passaggio a un’architettura più povera e basata su materiale deperibile come è testimoniato dal rinvenimento in pieno centro storico di buche di palo e di un focolare appartenenti a una capanna (Cortile di Scuola Mazzini – 9 in ig. 7)42. A partire da quest’epoca fanno la loro comparsa anche le prime sepolture all’interno dell’abitato. A sud del tratto meridionale delle mura tardoantiche si trova un sepolcreto datato all’età longobarda costituito da una ventina di tombe (ig. 7 n. 3)43. Se queste evidenze, uniche databili, sono ancora in un settore periferico, non mancano attestazioni di utilizzo a scopo funerario di spazi un tempo adibiti ad un diferente uso funzionale. Nello scavo efettuato nel cortile della Scuola Mazzini, in un isolato settentrionale lungo il cardine massimo della colonia, a una serie di piani pavimentali legati alla presenza di un quartiere abitativo segue un livello con 4 tombe alla cappuccina prive di corredo (ig. 7 n. 9)44. Anche in prossimità del decumano massimo è stata rinvenuta una sepoltura a cassa con pareti in laterizi e tegole che utilizzava come piano d’appoggio una precedente pavimentazione in cocciopesto (ig. 7 n. 10)45. Altri casi attestati in città sono connessi invece al legame che intercorre con i luoghi di culto cristiani, per cui le sepolture si trovano in prossimità di chiese. A questa casistica si possono riferire i rinvenimenti in piazza del Duomo46, nel cantone di S. Margherita47 (anticamente chiesa paleocristiana dedicata a S. Liberata) e in via Genocchi, in prossimità delle chiese di S. Cristoforo e S. Maria in Gariverto48 (ig. 7 rispettivamente nn. 12, 13, 11). Quest’ultimo caso è emblematico e singolare anche per il fatto che una sepoltura utilizzava come piano d’appoggio proprio il selciato della via romana. Questi fenomeni sono dunque indicativi della presenza di aree abbandonate in corrispondenza di antichi quartieri residenziali e di mutamenti, almeno parziali e temporanei, della viabilità interna, con le strade della città romana che perdevano la loro funzionalità. Un altro elemento che contribuì a creare nuovi poli di aggregazione fu la comparsa di ediici di culto cristiani ed in particolar modo della cattedrale con il battistero e il polo vescovile che si trovavano, in dalle origini, in corrispondenza 42 Marini Calvani 1990 sito 01.01.016 p. 6; Saronio 1993 p. 40; Catarsi Dall’Aglio 1994 p. 150; Fronza Valenti 1996 p. 217. 43 Saronio 1993 p. 40. 44 Marini Calvani 1990 sito 01.01.016 p. 6; Pagliani 1991 sito 12 p. 22. 45 Marini Calvani 1990 sito 01.01.030 pp. 8,9; Nasalli Rocca 1937 p. 40. 46 Marini Calvani 1990b sito 01.01.072 p. 16. 47 Marini Calvani 1990 sito 01.01.012 p. 5. 48 Saronio 1997b p. 61. 85 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA dell’attuale piazza del Duomo49, dove gli scavi hanno riportato in luce anche i resti del battistero paleocristiano (ig. 7, a)50. Questi nuovi ediici, che assunsero un ruolo sempre più importante per la comunità piacentina, si trovavano nella periferia sud-orientale ma comunque all’interno della cinta muraria e non troppo lontani dall’antica area forense51. In prossimità delle aree sepolcrali romane all’uscita delle porte sorsero invece le prime chiese cimiteriali legate spesso al culto dei martiri e contenenti le sepolture dei primi vescovi. Due casi esemplari sono S. Antonino in prossimità della porta meridionale (ig. 7, b) e S. Savino in prossimità di quella orientale (ig. 7, d). La comparsa di tutta questa serie di nuovi ediici e l’importanza della via Francigena, che costeggiava le mura meridionali della città senza però attraversarla, favorirono un lento spostamento del baricentro cittadino verso sud, portando a compimento anche il processo di abbandono e di destrutturazione dell’antico spazio forense come mostrano sia la presenza di calcare per la produzione di calce sia la presenza di livelli di abbandono e distruzione contenenti materiale di pregio52. Tale spazio perse la sua isionomia tanto da essere gradualmente occupato da strutture e smarrire la sua originaria natura di area aperta. Nel corso dell’alto medioevo, dunque, si assiste da un lato a una riorganizzazione degli spazi interni con fasi di abbandono e successiva rioccupazione del suolo secondo diverse modalità, dall’altro allo sviluppo di quartieri extraurbani legati alla viabilità e alla presenza di ediici religiosi o di luoghi di mercato, così come avviene ad esempio con lo sviluppo di borghi presso Santa Brigida e S.Antonino (ig. 7 c, b). Nel 1135 queste nuove aree abitate vennero incluse in un nuovo circuito di mura, che venne ulteriormente allargato tra il 1190 e il 1237, arrivando ad includere una supericie quasi equivalente a quella delle mura di età farnesiana53. Tracce di questa espansione si conservano ancora nella rete di canali sotterranei della città, antichi fossati riadattati e inclusi nel tessuto urbano nel corso dell’allargamento. Nell’ultimo quarto del XIII secolo lo spostamento del baricentro verso sud venne deinitivamente sancito dalla costruzione del nuovo palazzo comunale, detto Gotico, e dalla realizzazione dell’antistante Piazza Cavalli (ig 6, B) che faceva da cerniera tra i quartieri di recente realizzazione e l’antico centro storico. Ormai la fase di destrutturazione della colonia romana era terminata e la città aveva preso una isionomia completamente nuova. Piva 1994. Piva 1997. 51 Testini, Cantino Wataghin, Pani Ermini 1989 pp. 157-159. 52 Catarsi Dall’Aglio 1997 pp. 111-112. 53 Per quanto riguarda la ricostruzione dell’espansione della cinta muraria in epoca medievale, anche in relazione allo studio dei canali sotterranei, si veda Spigaroli 1983. 49 50 86 DALLA CITTà ROMANA ALLA CITTà TARDOANTICA: TRASFORMAZIONI E CAMBIAMENTI NELLE CITTà DELLA PIANURA PADANA CENTRO‑OCCIDENTALE Fig. 8. Modello digitale del terreno della città di Pavia. A = terrazzi del Ticino di ordine diferente; B = Livello Fondamentale della Pianura; C = Alveo attuale del Ticino; D = aree depresse ove scorre il Rivo Carona. 2.3 Pavia Ticinum¸ come era anticamente chiamata Pavia, fu fondata in seguito a quella serie di eventi che diede l’avvio alla piena integrazione della Gallia transpadana all’interno del mondo culturale e urbanistico romano successivamente all’89 a.C. La città si trovava sulla riva sinistra del Ticino e controllava in questo modo un importante punto strategico di passaggio sia per via di terra, sia per via luviale. L’insediamento occupava uno spazio delimitato dalle scarpate di due corsi d’acqua minori, il Vernavola e il Navigliaccio, ed era ubicato su due terrazzi di ordine diferente del Ticino: la prima scarpata che divideva il terrazzo di secondo ordine da quello di terzo ordine attraversava la città trasversalmente, diventando un elemento caratteristico del paesaggio urbano, mentre il dislivello che separava il terrazzo di terzo ordine dalla piana esondabile storica costituiva il limite dell’abitato (ig. 8)54. 54 Dall’Aglio et al. (in c.d.s.). 87 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA La forma urbis della città era costituita da un rettangolo di 10 isolati quadrati di 80 m sul lato lungo e un numero variabile tra 7 e 8 isolati sul lato corto, asimmetria dovuta all’adattamento dell’impianto urbanistico alla morfologia dei terrazzi luviali55. Non vi sono purtroppo tracce della cinta muraria, ma i limiti della città sono ben riconoscibili, oltre che dal disegno delle vie che ricalcano in maniera esemplare la disposizione di epoca romana, grazie alla presenza degli snodi viari all’uscita delle porte urbiche, dalla posizione delle necropoli e dall’andamento del Rivo Carona che scorreva esternamente alle mura. Il lato meridionale era invece in stretta connessione al iume, ove si trovava un ponte romano ancora parzialmente conservato in corrispondenza della prosecuzione del cardine massimo56 in questa direzione (ig. 9). L’area forense occupava due isolati disposti in senso nord-sud all’incrocio tra il decumano massimo (oggi Corso Cavour e Corso Mazzini – ig. 9 A, B) e il cardine Fig. 9. Planimetria della città di Pavia con indicazione delle curve di livello (equidistanza 1 m). Sono riportati il limite della città romana, l’area occupata dal foro e la forma urbis. Le lettere indicano alcune località citate nel testo: A = Corso Cavour; B = Corso Mazzini; C = Corso Strada Nuova. Sull’impianto urbanistico di Pavia si vedano Hudson 1981 pp. 12-15; Tozzi 1974 pp. 18-22; Tozzi 1984 pp. 185-191. 56 Tozzi 1981. 55 88 DALLA CITTà ROMANA ALLA CITTà TARDOANTICA: TRASFORMAZIONI E CAMBIAMENTI NELLE CITTà DELLA PIANURA PADANA CENTRO‑OCCIDENTALE massimo (Corso Strada Nuova – ig. 9 C)57, mentre poco altro si può dire purtroppo sull’organizzazione degli spazi interni alla città data la carenza di testimonianze archeologiche e la mancanza di dati sulla collocazione degli ediici pubblici58. Sappiamo che Ticinum era dotata di un aniteatro, localizzato ipoteticamente nel settore orientale, di terme e aveva una cinta muraria con nove porte59, ma manca qualsiasi informazione sulla disposizione dei templi, della basilica e di altre strutture caratteristiche come ad esempio il teatro. L’eredità più signiicativa lasciata dall’epoca romana è costituita dalla conservazione dell’impianto urbanistico e, caso piuttosto singolare, dell’antica rete fognaria. La regolarità dell’impianto stradale, ben riconoscibile oggigiorno dalla fotograia aerea, era ben nota anche nei tempi antichi, come dimostra la resa cartograica realizzata da Opicino de Canistris nella prima metà del XIV secolo. Non visibile perché collocata nel sottosuolo è invece la rete di canali che si mantenne in funzione, seppure con restauri e aggiustamenti continui, ino ad epoca recente60. I condotti fognari si diramano sotto la città rispecchiando l’ordine spaziale che caratterizza la supericie e dando in questo modo un’ulteriore conferma sia alla ricostruzione della forma urbis romana sia all’unitarietà del progetto urbanistico iniziale. Nonostante questa continuità sia indiscutibile, le modalità di conservazione della rete viaria non sono state lineari e inerziali come si potrebbe pensare. Vi sono infatti diverse attestazioni di strutture tardoantiche o altomedievali ediicate in corrispondenza della sede stradale a testimoniare come tra la via moderna e quella antica, sostanzialmente coincidenti, vi siano comunque delle discontinuità. Anche Pavia non fu dunque risparmiata da questo fenomeno tipico del periodo post-romano che vide una parziale perdita di funzionalità del sistema viario interno. Occupazioni della sede stradale sono documentate sia sul cardine massimo (struttura muraria in ciottoli e laterizi in via Cavour61 – ig. 10 n. 1) sia sul decumano massimo (ediicio realizzato con materiale di reimpiego in epoca gota, lungo Strada Nuova all’altezza di Via Mentana e via Calataimi62 – ig. 10 n. 2), ma vi sono altre numerose attestazioni. In Via Omodeo (ig. 10 n. 4), lungo il lato settentrionale del Duomo, un tratto basolato di epoca romana è stato ricoperto da uno strato di abbandono e da una struttura che venne distrutta da un incendio nel X secolo63, Per le problematiche relative al foro di Pavia si veda Maccabruni 1995. Hudson 1981 pp. 18-22. 59 La descrizione della prima cinta muraria è contenuta in un passo di Opicino de’ Canistris, Liber de laudi bus civitatis ticinensis, cap. XI (Si vedano anche Tozzi 1984 p. 190). 60 Tomaselli 1987. 61 Invernizzi 1998 pp. 283-285. 62 Patroni 1924; Invernizzi 1998 p. 284. 63 Blockley, Caporusso 1991; Invernizzi 1998 pp. 280-283; Dezza, Brameri 2007. 57 58 89 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA mentre in via Comi, nel complesso dell’ex caserma Bixio, tracce di una struttura absidata (un vecchio complesso termale?) si estendono ino ad occupare la sede stradale (ig. 10 n. 3)64. Ma queste non furono le uniche trasformazioni cui andò soggetta la città in epoca tardoantica. Divenuta seconda capitale dei Goti, successivamente capitale del regno Longobardo e del Regno Italico, Pavia fu interessata da una fase di attività edilizie che portarono a mutare il volto di alcune parti della città. Oltre al rinvenimento di tegole bollate che testimoniano una produzione di laterizi65, la tradizione letteraria tramanda di lavori svolti da Teoderico alle mura, alle terme, all’aniteatro e fa cenno alla costruzione di un palazzo, struttura che doveva trovarsi nel settore orientale dell’abitato (ig. 10 n. 6)66. La presenza di un polo di potere così importante determinò mutamenti all’impianto urbanistico in questo settore, che infatti anche al giorno d’oggi presenta una regolarità minore di quella che caratterizza la maggior parte del centro storico. Nel frattempo veniva a strutturarsi anche quello che diverrà invece il polo religioso della città in un isolato a poca distanza dal foro e dal cardine massimo. In questo settore si trovava in dalle origini la sede della prima cattedrale67, contrariamente a quanto originariamente pensato68, e dall’epoca longobarda venne ediicata la cattedrale doppia di S. Stefano e S. Maria del Popolo (ig. 10, a). Sempre nelle vicinanze di questo complesso dovevano trovarsi anche il Battistero e il palazzo vescovile. Il palazzo e gli ediici caratteristici della topograia cristiana divennero nuovi punti di aggregazione e di riferimento all’interno del tessuto urbano, e questo favorì un graduale degrado di altre aree pubbliche come il foro. Paolo Diacono cita le condizioni di Pavia, mettendo in luce lo stato di abbandono delle strade e anche dell’antica piazza romana69. Nel IX secolo sembra che quest’ultima fosse ancora riconoscibile, ma a partire da un periodo non meglio precisabile dell’alto medioevo gran parte dell’area aperta venne occupato da ediici e fu soltanto nel XIV secolo, quando venne nuovamente raddrizzata e aperta Strada Nuova sgombrandola dalle costruzioni che avevano invaso la sede stradale, che venne ripristinata la piazza70. Questo testimonierebbe, inoltre, che non si perse mai coscienza della funzione Invernizzi 1998 pp. 287-290. Hudson 1981 p. 23. 66 Hudson 1981 p. 24. 67 Testini, Cantino Wataghin, Pani Ermini 1989 pp. 222-225. 68 Si veda quanto sostenuto ancora da Hudson 1981 pp. 25-26, dove si sosteneva la presenza della prima cattedrale in un contesto fuori dalle mura, presso la chiesa dei SS. Gervasio e Protasio (ig. 10, b). 69 Paol. Diac. Hist. Lang., VI, 5 (Pari etiam modo haec pestilentia Ticinum quoque depopulata est, ita ut, cunctis civibus per iuga montium seu per diversa loca fugientibus, in foro et per plateas civitatis herbae et frutecta nascerentur). 70 Maccabruni 1995 pp. 369 e 378. 64 65 90 DALLA CITTà ROMANA ALLA CITTà TARDOANTICA: TRASFORMAZIONI E CAMBIAMENTI NELLE CITTà DELLA PIANURA PADANA CENTRO‑OCCIDENTALE Fig. 10. Planimetria della città di Pavia con la localizzazione dei principali rinvenimenti archeologici citati nel testo: 1: Corso Cavour; 2: Strada Nuova presso Via Mentana e via Calataimi; 3: Via Comi, ex caserma Bixio; 4: Via Omodeo; 5: Palazzo di Giustizia; 6: Area del vecchio Palazzo teodoriciano. a: Cattedrale; b: Chiesa dei SS. Gervaio e Protasio. 91 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA di questi isolati, così come si conservò memoria della forma urbis nonostante le modiiche nella viabilità cui abbiamo fatto cenno precedentemente. Nonostante l’importanza strategica e politica che Pavia ricoprì nel corso dell’alto medioevo, la città non fu risparmiata da fenomeni di ruralizzazione, dalla comparsa di sepolture all’interno dell’antico perimetro urbano e dall’utilizzo di materiale deperibile soprattutto nell’edilizia privata. I risultati di uno scavo svolto nel Palazzo di Giustizia sono abbastanza sintomatici di tutte queste tendenze (ig. 10 n. 5). Un ediicio romano abbandonato e spoliato viene in parte riutilizzato come mostrano strati di battuto e buche per l’installazione di palizzate e tramezzi lignei. Nell’area adiacente si sono trovate altre buche di palo pertinenti a due capanne di pianta rettangolare nelle cui vicinanze si trovavano due sepolture a fossa. Dopo un successivo periodo di abbandono è attestata un’altra fase di frequentazione con una struttura spoliata a sua volta ricoperta da un altro livello di terre nere71. Valutando lo spessore dei depositi archeologici si può notare come le fasi romane si trovino a una profondità media di 1.5-2.5 m (testa delle canalette delle fognature)72 per cui non vi è stata una crescita verticale sensibile come in altri centri abitati (e come avvenuto anche in certi settori di Cremona e Piacenza). Nonostante strati di abbandono o terreni scuri tipici della fase medievale siano testimoniati, si può pensare che la presenza di un sistema fognario sempre in funzione abbia in qualche modo contribuito a limitare la formazione di questi dark layers. Nel corso dei secoli la città andò lentamente deinendo la sua isionomia, con la difusione di ediici religiosi all’interno delle mura, la divisione tra la zona longobarda ariana (faramania) e quella cattolica, con la difusione di chiese cimiteriali nella prima periferia. Nonostante l’invasione degli Ungari del 924 che portò alla distruzione di diversi ediici, Pavia iniziò il suo processo di espansione con la nascita di sobborghi e con la costruzione di nuove cinte murarie una ediicata tra la ine dell’XI e l’inizio del XII secolo e una verso la ine del XII secolo73. 3. CoNClUSIoNI Il quadro che emerge dall’analisi e dal confronto di questi tre importanti centri della Cisalpina permette di porre in atto una serie di valutazioni inerenti gli aspetti di continuità e cambiamento cui andarono incontro, tra l’età tardoantica e l’altomedioevo, Cremona, Placentia e Ticinum. 71 72 73 92 Invernizzi 2007. Hudson 1981 p. 44. Hudson 1981, p. 33. DALLA CITTà ROMANA ALLA CITTà TARDOANTICA: TRASFORMAZIONI E CAMBIAMENTI NELLE CITTà DELLA PIANURA PADANA CENTRO‑OCCIDENTALE L’impianto romano, impostatosi a partire da una situazione geomorfologica che mostra evidenti analogie, era basato per tutti e tre i centri su un modulo molto frequente con insulae di 80 metri di lato. I segni dell’antica forma urbis sono ancora oggi evidenti nel tessuto urbano, soprattutto per Pavia e Piacenza, mentre per Cremona restano labili tracce, comunque signiicative, a causa di un fenomeno di slittamento degli isolati, causato verosimilmente dalla contrazione altomedievale. Scarsi, per tutti e tre i centri, sono i dati archeologici riferibili all’ubicazione dei principali ediici pubblici, menzionati tuttavia dalla storiograia antica. Dall’analisi dei dati emerge come, a partire dalla ine del III secolo e dalle mutate vicende politico-sociali di quel periodo, le tre città entrarono in una fase di cambiamento comune. Dalla caduta di Massimino, che diede avvio ad una fase di involuzione e debolezza economica e politica, a cui si aggiungevano le prime incursioni esterne, si avviò un processo di rimilitarizzazione che coinvolse la Cisalpina, divenuta ormai nuovo fulcro politico dell’impero. In questo contesto va inquadrata la riediicazione della cinta difensiva di Placentia, attestata dal dato archeologico, fenomeno che quasi certamente interessò gli altri due centri, unitamente a una certa vitalità economica e sociale comune. La rinnovata loridezza politica e in parte economica, come emerge da pochi dati archeologici, sembra però non aver contribuito, alla distanza, a mantenere o migliorare i tessuti urbani, che si avviano invece verso un lento e graduale processo peggiorativo delle preesistenti strutture antiche. Tale fenomeno è evidente dall’analogia tra i nostri tre centri. Già agli inizi del IV secolo d.C. si registrano, pur senza un’iniziale contrazione dell’abitato, fenomeni di abbandono e calo demograico in alcune aree urbane. Placentia assiste allo spopolamento del settore occidentale, mentre per Cremona sono i settori periferici a nord e a sud a subire i maggiori contraccolpi. A Pavia i maggiori segnali di mutamento si hanno dalle numerose ediicazioni irregolari, soprattutto sulle sedi stradali, provocando evidenti scompensi all’equilibrio isodinamico del tessuto urbano. Inoltre l’importanza del ruolo assunto da Pavia proprio a partire dall’età tardoantica non attenuò il fenomeno, indice dell’ormai mutata sensibilità nei confronti della preesistente froma urbis. In questi anni mutano quindi isionomia anche le antiche domus, spesso costrette ad una contrazione degli ambienti a favore della creazione di spazi aperti con orti o giardini, dando l’avvio al fenomeno di ruralizzazione già attestato nei suburbi, come nel caso di Cremona e Piacenza, dove la cinta difensiva coninava spesso con la campagna. Le nuove ediicazioni sono quindi limitate e la tendenza dell’edilizia residenziale, soprattutto sotto il regno longobardo, è legata all’uso di materiale costruttivo deperibile come il legno, per ragioni culturali più che economiche. Indubbiamente è lo sviluppo e la proliferazione dei nuovi luoghi di culto, con il conseguente ingresso delle sepolture in città, a connotare maggiormente il tessuto urbano e gli equilibri interni. 93 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Le primigenie sedi della chiesa cristiana e il polo vescovile sorgono, in tutti e tre i casi, poco distanti dal foro in aree comunque interne alla cinta difensiva. Ampi spazi all’interno delle insulae vengono assorbiti dall’ediicazione di ediici religiosi, mentre chiese cimiteriali e luoghi di culto sorgono spesso sulle principali strade in uscita dalle città. Con il passare degli anni, a tale impulso dell’edilizia cultuale non si aianca un nuovo sviluppo di quella residenziale, né un mantenimento dei tessuti urbani e del sistema fognario. Agli inizi dell’alto medioevo il processo di ruralizzazione, contrazione e scarsa manutenzione del sistema viario è ormai avviato e, ad eccezione del singolare caso pavese, anche il sistema fognario ne risente notevolmente. E’ questa la fase della dismissione di numerose sedi stradali a causa di ediicazioni incontrollate (Pavia e Cremona in primis) e della ruralizzazione di ampie aree all’interno della cinta muraria, come è ben attestato nei casi di Cremona e Piacenza. Nonostante il volto e la struttura delle città fosse in corso di mutamento a causa di tutte queste trasformazioni, il limite ideale dell’abitato, che era dato dalla cerchia muraria, restò invece sostanzialmente invariato. Questo fatto, contrariamente a quanto avvenne in moltissime altre situazioni note, è imputabile in parte anche allo stretto legame che lega l’impianto urbanistico alla geomorfologia in dall’originaria pianiicazione di epoca romana. La capacità di leggere il territorio collocando le città lungo corsi d’acqua, a controllo di punti di attraversamento ma soprattutto adattando il perimetro urbano all’andamento delle scarpate dei terrazzi, quasi che le mura fossero un prolungamento ideale di questi dislivelli naturali, fu l’elemento principale alla base della continuità formale (come abbiamo visto non sostanziale), che caratterizza questi tre centri del settore centrale della Pianura Padana. Altra caratteristica comune che ha inluito sull’importanza di queste città tra tardoantico e alto medieovo e di conseguenza sulle vicende storiche e urbanistiche era dato dalla vicinanza ai corsi d’acqua col loro potenziale di viabilità. Soltanto a partire dal IX secolo si nota una ripresa demograica ed edilizia, con la nascita di numerosi borghi esterni alla città antica, che iniranno per essere assorbiti nelle nuove cinte murarie ediicate tra l’XI e il XII secolo, signiicativamente coeve nella sorte delle tre città. 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A partir du IIIème siècle après J.C. il y avait des modiications dans la structure urbanistique qui ont transformé l’aspect des villes : nouvelles fortiications ; nouveaux bâtiments comme églises ou palaces ; nouvelles techniques de construction ; difusion de la campagne à l’intérieur des murs. Nous sommes en train d’observer la naissance de la ville médiévale. La relation avec la géomorphologie a aussi conditionné cette évolution. Mots-clés: Urbanistique antique, Géomorphologie, Italie septentrionale, Antiquité tardive, Villes médiévales. ABSTrACT: Cremona, Piacenza and Pavia are towns that were founded by the Romans in the centre of the Padana Plain, near water courses and on river terraces. From the III century a.D. changes to the urban structure have transformed the towns: new fortiications, new buildings, new construction techniques, movements from rural areas into the area of the town walls. We thus witness the birth of the medieval town. he relationship with the geomorphology also conditioned that evolution. Keywords: Ancient urbanism, Geomorphology, Northern Italy, Late antiquity, Medieval towns. 98 A EvOlUÇÃO dO TECIdO URbANO FlAvIENSE dESdE AqUAE FlAvIAE A ChAvES MEdIEvAl: SíNTESE dE RESUlTAdOS JOÃO MANUEl gONÇAlvES RIbEIRO1 INTroDUção No âmbito da dissertação de mestrado, visámos a análise da morfologia da cidade de Chaves, desde a sua fundação, em época romana, até à sua coniguração medieval, enquanto vila de Chaves, com vista à reconstituição da forma urbana da cidade nos períodos mencionados. Neste sentido, adoptámos uma abordagem metodológica multidisciplinar iliada na Arqueologia da Arquitectura. O ponto-chave da nossa investigação consistiu na articulação de múltiplos dados provenientes de diversas fontes, e na conjugação de conceitos e metodologias provenientes de diferentes áreas do conhecimento. A este nível, constituiu nosso propósito compreender as dinâmicas construtivas das diferentes realidades urbanas e das condicionantes históricas da morfologia da cidade actual. Verdadeira cidade histórica, Chaves conhece as suas origens no século I da nossa era. Desde a fundação romana como Aquae Flaviae, a cidade foi-se transformando ao longo dos sucessivos períodos históricos, conigurando-se um organismo vivo. Actualmente, as cicatrizes e os vestígios materiais dos mais de 2000 anos de ocupação entrelaçam-se no plano urbano actual. O presente trabalho versará sobre as conclusões retiradas no decorrer da tese de mestrado, seguindo a lógica cronológica de ocupação da cidade de Chaves. Investigador do CITCEM, Mestre em Arqueologia – Câmara Municipal de Chaves Correio electrónico: jrneum@gmail.com 1 99 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA loCAlIZAção Localizada no Nordeste do território Português, a cidade de Chaves desenvolve-se numa zona de vale, numa área correspondente a 25km², encontrando-se banhada pelo Rio Tâmega, importante eixo luvial, cuja transposição desde cedo determinou amplos investimentos públicos pelo poder central e local. Fig. 1. Localização das freguesias urbanas de Chaves no concelho de Chaves. 100 A EVOLUÇÃO DO TECIDO URBANO FLAVIENSE DESDE AQUAE FLAVIAE A CHAVES MEDIEVAL: SÍNTESE DE RESULTADOS A posição geográica de Chaves terá sido avaliada desde muito cedo, constituindo um espaço de circulação muito importante que, desde época romana, materializou um ponto nevrálgico de vias, uma das quais, a via XVII, ligaria a cidade a duas importantes capitais de conventus, Bracara Augusta (Braga) e Asturica Augusta (Astorga). Para além da importância geográica, também os recursos naturais, designadamente as qualidades medicinais das suas águas, terão contribuído para a importância acrescida que a cidade de Chaves adquire no período de ocupação romana e nos períodos seguintes. oBJECTIVoS E METoDologIAS O presente trabalho pretende delinear a evolução da morfologia urbana da cidade de Chaves, analisando o enquadramento histórico e geográico que fundamenta os traços morfológicos e as principais construções que caracterizaram o plano urbano romano e medieval. É igualmente objectivo deste estudo analisar as transformações morfológicas ocorridas no espaço urbano laviense entre os referidos períodos históricos, procurando aferir as continuidades e ou descontinuidades veriicadas entre os sucessivos planos urbanos. A concretização destes objectivos pressupôs a adopção de uma metodologia que permitisse recolher e tratar um elevado número de dados, de natureza diversiicada, susceptíveis de serem cruzados e analisados do ponto de vista arqueológico. Com efeito, para além da metodologia própria da Arqueologia, recorremos a alguns conceitos e metodologias de outras áreas do saber que também têm como objecto de estudo a cidade. Referimo-nos à Geograia, a História, à Arquitectura e ao Urbanismo, disciplinas que têm contribuído para incrementar o conhecimento da cidade histórica, bem como para a formalização de uma metodologia especíica para o estudo da forma urbana (Ribeiro 2008:68). A primeira etapa do nosso trabalho consistiu na recolha e avaliação de todos os dados de natureza arqueológica, desde as estruturas e construções até às gamas mais diversiicadas de artefactos, onde se incluem as epígrafes, os miliários ou os distintos elementos arquitectónicos, encontrados em contexto ou isoladamente. Estes elementos foram armazenados e tratados numa base de dados alfanumérica e posteriormente georreferenciados na planta actual da cidade. Foi com base nesta que elaborámos a nossa proposta para a malha urbana alto-imperial de Aquae Flaviae. Paralelamente, recolhemos e tratámos as fontes iconográicas e cartográicas, que foram igualmente armazenadas e tratadas numa base de dados alfanumérica. 101 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA A análise do tecido construído actual foi sendo realizada simultaneamente, mediante a observação e recolha das marcas e vestígios das ocupações romana e medieval que integram, actualmente, o plano urbano da cidade. Para tal, recorremos, em larga medida, às metodologias aplicadas pela Arqueologia da Arquitectura, cujo objectivo se prende com a análise da “história dos edifícios e dos espaços conexos, considerados na sua individualidade construtiva e nos seus contextos sociais, económicos, artísticos e tecnológicos particulares” (Machado e Fontes 2004: 173). Esta disciplina constitui, de facto, “um instrumento de análise imprescindível para a obtenção do conhecimento necessário a qualquer intervenção informada sobre o património ediicado” (Machado e Fontes 2004: 173). Tal como já referido, a metodologia adoptada para a análise do tecido urbano laviense beneiciou da utilização e do cruzamento de dados de natureza distinta, circunstância que nos permitiu avançar com a apresentação de propostas para os planos urbanísticos da cidade romana de Aquae Flaviae e vilas medievais de Flavias e de Chaves. Aplicando o princípio regressivo, tentámos discriminar as dinâmicas construtivas inerentes a cada realidade urbana e, simultaneamente, esclarecer os pressupostos históricos condicionadores da morfologia actual da cidade de Chaves. No caso do estudo de Aquae Flaviae, a ausência de documentação histórica e cartográica determinou que utilizássemos apenas os dados provenientes das intervenções arqueológicas realizadas na cidade nas últimas décadas. A partir desses dados, pudemos caracterizar os espaços e as construções existentes na cidade romana. A multiplicidade de estruturas exumadas, em certos pontos da cidade, permitiu-nos estabelecer duas fases construtivas para este período cronológico, nomeadamente a cidade alto-imperial e a cidade baixo-imperial. Encetámos uma modelação tridimensional da malha urbana alto-imperial, numa lógica de compreender a relação entre a cidade romana e a cidade actual, coincidentes no espaço de implementação. A interpretação realizada acerca da vila medieval beneiciou do cruzamento dos dados provenientes das fontes escritas com os elementos deinidores da urbs medieval, como sejam o castelo, a igreja e as muralhas, bem deinidos e fossilizados na malha urbana actual. Foi ainda possível perceber a persistência, ou não, da génese urbanística romana na vila medieval. A metodologia para a concretização deste objectivo valorizou uma análise dinâmica realizada em diferentes e intercaladas escalas de abordagem. A partir das estruturas provenientes da primeira forma urbana, estabelecemos uma malha teórica para a organização da cidade romana, a qual posteriormente cruzámos com a malha urbanística actual. De modo contrário, partimos da malha urbana actual e fomos iltrando os diferentes componentes urbanos contemporâneos e modernos de modo a obtermos uma reconstituição do plano da cidade medieval. 102 A EVOLUÇÃO DO TECIDO URBANO FLAVIENSE DESDE AQUAE FLAVIAE A CHAVES MEDIEVAL: SÍNTESE DE RESULTADOS Esta análise, baseada em avanços e recuos temporais, permitiu-nos estabelecer as dinâmicas construtivas ao longo dos séculos e perceber de que forma o tecido urbanístico se foi alterando e quais as causas dessas alterações. Para que o cruzamento dos diferentes tecidos urbanos seja passível de fornecer informações mais concretas sobre a evolução urbanística da cidade de Chaves, a partir da cartograia actual, procedeu-se à individualização dos diferentes quarteirões que compõem o tecido urbano, dentro dos quais foram identiicadas as parcelas construídas e os logradouros. Com base nos traçados das fortiicações medievais, empreendemos uma reconstituição tridimensional do Castelo e da muralha da vila medieval de Chaves, bem como da Igreja de Santa Maria Maior, e a sua relação com o resto do ediicado. ENQUADrAMENTo HISTórICo As origens da cidade de Chaves remontam ao século I d.C, no âmbito da conquista e paciicação do Noroeste Peninsular pelo Império Romano, da qual resultou a fundação da primeira forma urbana de Chaves. O local para a implantação da urbs integraria administrativamente o conventus bracaraugustanus, cuja capital, Bracara Augusta, foi mandada fundar, nos inícios do Império, por Octaviano César Augusto, no âmbito da reorganização política e administrativa da Hispânia (Martins 2004). Ainda que não se possuam dados que permitam avançar uma data para a fundação desta urbanização, tendemos a enquadrá-la num segundo momento de reorganização, pautado pelas fundações e renovações das cidades provinciais levadas a cabo pelos primeiros imperadores. Sob égide da dinastia Flávia, concretamente do Imperador Vespasiano (69d.C. – 79d.C.), é concedido o direito latino – ius latii – aos hispânicos; enquadra-se neste momento a elevação de Aquae Flaviae a municipium latinium. A comprovar este facto, encontra-se a colecção epigráica coetânea desta elevação, mormente a inscrição dos habitantes da cidade na tribo lávia Quirina: […] LAVCIO / [Q] VIR(ina) RVFIN[OS / LA]VCI(us) RVF[VS] / PATRI / [F(aciendum) C(uravit) ?]. A importância deste municipium decorre não só da sua localização geográica, concretamente da relação com a via XVII, mas também com a supremacia regional que parece ter adquirido a partir da época lávia (Teixeira 1996). De facto, o auge de Aquae Flaviae parece consumar-se com a construção da ponte de pedra sobre o rio Tâmega, em 104, no reinado de imperador Trajano. Em época baixo-imperial, parece veriicar-se uma redução do perímetro urbano da cidade e, consequentemente, o seu hipotético amuralhamento, teoria que carece de evidências que a sustentem. Este facto colocaria Aquae Flaviae em linha com outras cidades romanas – Bracara Augusta, Lucus Augusti, Asturica Augusta – que 103 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA conheceram uma intensa actividade construtiva no inal do séc. I e inícios do II d.C., seguida de um período de contracção entre os séculos III e IV d.C. (Carneiro 2009). No decorrer da queda do Império Romano no Ocidente, a cidade de Aquae Flaviae conhece um período conturbado, mercê das invasões suevas, constituindo os relatos de Idácio de Límia, bispo de Chaves, o melhor testemunho dos fenómenos de decomposição do aparelho administrativo romano, mercê das invasões bárbaras e da consolidação do Cristianismo. Com efeito, a cidade de Chaves, Aquae Flaviae, vai dar lugar a Flavias ou Chavias, urbanização que poucas marcas deixou, em termos de morfologia urbana. Pese embora este facto, a cidade parece ter vivenciado o fenómeno generalizado de substituição do decadente aparelho romano por uma nova organização eclesiástica, que inevitavelmente matizaria o traçado urbano da época (Teixeira 1996:125). Flavias terá, à semelhança de outras cidades, conhecido “uma cristianização da topograia” (Teixeira 1996:128), consubstanciada pela desarticulação do centro polarizador que teria sido o forum romano, através da ediicação de monumentos religiosos, de foro episcopal – Igreja Matriz e Capela de Santa Catarina –, e cemiterial, num primeiro momento extra-muros. Estes novos centros espaços passam a constituir elementos marcadores da cidade medieval. Na segunda metade do século IX (866-910), ter-se-á veriicado a presúria de Chaves, consumada pelo conde Odoário em 872 (Barroca 2004:183). No âmbito da política de expansão empreendida por Fernando, o Magno, no século XI, constata-se o desmembramento da organização administrativa em civitates, que dão lugar a centros administrativos de menor expressão – terras –, cheiados por um castelo cabeça de terra (Gomes 1993; Barroca 2004: 189). No caso da civitate Flavias, deste processo reformador decorreu a redução do seu termo, o qual conheceu uma desagregação em várias terras, e provavelmente a deslocação da cabeça do território para Santo Estêvão de Chaves (Dias 1990:41). A situação geoestratégica da cidade de Chaves, que integra a Coroa portuguesa desde 1160, determinou que esta desempenhasse um papel importante nas investidas bélicas entre os reinos de Portugal, no governo de D. Afonso II, e Leão, governado por Afonso IX. De uma das invasões deste último ao território de Trás-os-Montes, resultou a tomada do castelo e terra de Chaves. Não obstante a restituição do castelo de Chaves ao reino de Portugal, em 1223, o castelo de Santo Estêvão de Chaves – cuja localização precisa se desconhece – só é restituído durante o reinado de D. Sancho II, já em 1231. Um documento régio do inicio do séc. XIV, de autoria de D. Dinis, corrobora o povoamento desta cidade por D. Afonso III. (Herculano s/d: IV, 121 in Gomes 2008:13). A segunda metade do século XIII e os inícios do século XIV constituíram um novo período de transformações administrativas, desta feita, consubstanciadas pela 104 A EVOLUÇÃO DO TECIDO URBANO FLAVIENSE DESDE AQUAE FLAVIAE A CHAVES MEDIEVAL: SÍNTESE DE RESULTADOS reorganização territorial em vilas – “habitat concentrado e fortiicado” (Teixeira 1996: 208) – e consequente declínio dos castelos cabeças de terra. No decorrer desta iniciativa régia, a vila de Chaves volta a constituir-se cabeça de território, desta vez com um termo muito mais reduzido, tendo-se restituído o seu povoamento. Uma carta de sentença emitida por D. Dinis, no inicio do séc. XIV (1305), expõe a criação da póvoa de Chaves por D. Afonso III e a divisão de terrenos pelos seus povoadores. Posteriormente, em 1350, D. Afonso IV viria a conirmar todos os privilégios da Vila (Dias 1990:69). As investidas bélicas contra a Vila de Chaves continuam no século XIV, no contexto da crise dinástica que opõe Portugal e Castela. O apoio do alcaide da praça de Chaves a D. Beatriz e Castela determina o seu cerco, sob a iniciativa de D. João I, em 1385-86. Após quatro meses de cerco e consequente tomada da praça, a vila é doada a D. Nuno Álvares Pereira, contrato que é alvo, em 1388, de alargamento a toda a jurisdição e termo da Vila (Dias 1990: 91). No século XV, Chaves continua a constituir objecto de negociações entre a classe nobiliária portuguesa, já que, em 1401, é doada por D. Nuno Álvares Pereira à sua ilha D. Beatriz, como dote do seu casamento com D. Afonso – ilho bastardo de D. João I –, conde de Barcelos. Em 1442, D. Afonso recebe o título de primeiro duque de Bragança e manda construir um paço, no qual se estabeleceu durante longos períodos de tempo até 1461, data do seu falecimento. A sucinta análise do contexto histórico da cidade laviense permite-nos compreender, claramente, a importância da sua posição estratégica. Com efeito, esta situação determinou que fosse alvo de promoções em época romana e palco de uma série de peripécias bélicas, nos períodos posteriores, associadas quer à formação de Portugal quer à independência do nosso país em relação ao vizinho reino de Castela. A EVolUção Do TECIDo UrBANo FlAVIENSE Aquae Flaviae Fundada em época anterior à dinastia Flávia, a primeira urbanização romana do que viria a ser Aquae Flaviae provavelmente coincidiria, em termos de área, com esta última. Este facto, de que não pode ser dissociado o programa de promoção da cidade a capital de municipium durante o período Flávio, acarreta consideráveis limitações ao estudo da morfologia urbana desta cidade. A cidade de Aquae Flaviae encontrar-se-ia deinida a Oeste e Este por cursos luviais, designadamente o Ribelas e o Tâmega. De facto, a corroborar a delimitação a Oeste parece encontrar-se a necrópole situada na zona da capela de Santo Amaro, tendo em conta a proposta de Ricardo Teixeira (1996). Por seu turno, o limite Este 105 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 2. Ilustração de Duarte D'Armas (adaptada). Pormenor da Capela de Santa Maria Madalena. corresponderia, segundo Teixeira (1996), à área cemiterial associada à capela de São Roque, a qual teria, por conseguinte, sido construída para sacralização do espaço de uma anterior necrópole romana. Do nosso ponto de vista, parece adquirir mais fundamento uma sacralização do espaço da anterior necrópole romana através da construção da capela de Santa Maria Madalena, junto à Ponte de Trajano, como pode constatar-se na ilustração efectuada por Duarte d’Armas (séc. XVI). Na actualidade, este edifício corresponde a uma habitação privada. Com efeito, esta teoria constitui repercussão dos relatos de Tomé de Távora e Abreu (séc. XVIII), que menciona que a referida capela “situada no Arrabalde deste nome da outra parte da Ponte, foy fundada p.la Sn.ra Dona Mafalda molher de El Rey de Castella Enrrique Primr.o, e illa do sr D. Sancho primro do nome e segundo Rey de Portugal” (Aires 1990: 98). Outro argumento que sustenta esta proposta prende-se com a própria orientação do edifício, na exacta medida em que, se observarmos a planta da cidade actual, constatamos que este edifício apresenta uma orientação Este-Oeste, aim com a Igreja Matriz e típica das igrejas medievais. 106 A EVOLUÇÃO DO TECIDO URBANO FLAVIENSE DESDE AQUAE FLAVIAE A CHAVES MEDIEVAL: SÍNTESE DE RESULTADOS No que concerne aos limites Norte e Sul corresponderiam às necrópoles identiicadas nos últimos anos, no Largo das Freiras e na Pensão Jaime. Em relação à primeira, a circunstância da necrópole identiicada corresponder a uma cronologia baixo-imperial permite-nos considerá-la como delimitação setentrional de uma fase tardia da cidade; desconhece-se, até à data, qual o limite Norte de Aquae Flaviae em período alto-imperial. Contudo, as evidências encontradas aquando das obras de restauro do Forte S. Francisco referidas por Tomé de Távora e Abreu (Amaral 1993) denunciam um perímetro da área urbanizada que extravasaria o da urbanização baixo-imperial, residindo a diferença na zona Norte. Todavia, pese embora tais evidências, entendemos que área urbana alto-imperial não se estenderia até Outeiro Seco, como airmam alguns autores, entre os quais Montalvão Machado (1972). No que diz respeito ao limite Sul, parece corresponder à necrópole da Pensão Jaime. De facto, a identiicação de uma necrópole neste lugar, aliada ao facto de, a Sul deste local, não terem sido encontrados, até à data, quaisquer vestígios de tecido urbano, permitem aventar que este espaço terá provavelmente cumprido uma função cemiterial e, por conseguinte, limítrofe, durante todo o período romano. Em termos de orgânica interna, a cidade alto-imperial estruturar-se-ia em função de dois eixos principais, designadamente kardo maximus e decumanus Fig. 3. Proposta da malha romana de Aquae Flaviae. 107 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA maximus, e da praça principal, o forum. De acordo com a análise empreendida para a reconstituição do plano urbano romano, a cidade encontrar-se-ia organizada em ínsulas de 127 x 120 pés, ou seja, de 37 x 30 metros (1 pé romano = 0,296 m). A obtenção desta malha resulta das evidências arqueológicas exumadas até ao momento, relacionadas não só com ruas e canalizações, mas também com os restantes vestígios de construções. No seio destes, destacam-se a calçada encontrada na rua da Misericórdia, as canalizações das ruas José Joaquim Delgado e Verde e das construções das ruas 1º de Dezembro, Direita, Bispo Idácio, da Ladeira da Brecha, do Postigo das Caldas, da Travessa do Teatro, bem como da zona envolvente do Castelo, entre outros. Considerando as referidas estruturas, perilámos a orientação da cidade e de alguns dos seus alinhamentos viários. Os dados recolhidos permitiram-nos ainda deinir o limite Este de uma área construída, correspondente a uma ínsula do núcleo urbano romano, que parece totalmente fossilizada no plano urbano actual. Reportamo-nos ao quarteirão deinido, a Norte, pela rua de Santa Catarina, a Sul, pela Rua General Sousa Machado, a Este, pela Travessa General Sousa Machado e, a Oeste, pela Travessa das Caldas. Em termos de dimensionamento, este quarteirão apresenta 127 pés no sentido Este/Oeste, e 120 pés no sentido Norte/Sul. A extrapolação deste módulo à restante área revelou-se bastante satisfatória, uma vez que coincide com as restantes evidências exumadas, não se veriicando colisões entre a referida malha urbana e as restantes estruturas. A topograia de algumas ruas actuais – Trindade, Santa Maria, Direita, Travessa General Sousa Machado, 1º de Dezembro, Açougues, entre outras –, designadamente alguns dos seus traçados regulares, concorre igualmente para comprovar a malha proposta. Relativamente aos eixos principais da cidade romana, propomos que o kardus maximus corresponda à Rua da Trindade, na linha postulada por Rodríguez Colmenero (1997b), tese que encontra fundamento na localização das necrópoles nas extremidades deste eixo – Largo das Freiras e Pensão Jaime – e uma cloaca de grandes dimensões, sita na Rua José Joaquim Delgado. Por seu turno, o decumanus maximus corresponderia sensivelmente à Rua Direita (Rodriguez Colmenero 1997b), a qual desembocaria, a Oeste, na Ponte de Trajano. Com efeito, a largura das actuais Rua Direita e Rua da Trindade, as mais largas do centro histórico, parece resultar da fossilização dos eixos viários estruturantes da cidade romana, aproveitados no contexto da reconstrução da cidade medieval. Estes eixos permaneceram até à actualidade como os dois eixos principais do centro histórico, pese embora no caso da Rua Direita, se veriique uma ligeira distorção, relativamente ao eixo romano proposto. Este desvio pode ter ocorrido na Idade 108 A EVOLUÇÃO DO TECIDO URBANO FLAVIENSE DESDE AQUAE FLAVIAE A CHAVES MEDIEVAL: SÍNTESE DE RESULTADOS Média, aquando da construção dos torreões da muralha, localizados nas imediações das extremidades Este e Oeste da referida rua. No que concerne à praça principal da cidade romana, o forum, propomo-lo no espaço correspondente, grosso modo, à actual Praça de Camões, ocupando aproximadamente seis ínsulas da malha teórica proposta para a organização da cidade. Para além das características topográicas deste local, coincidentes com as orientações de Vitrúvio, e das evidências exumadas por investigadores que anteriormente se dedicaram ao estudo da cidade, as estruturas recentemente exumadas junto ao Castelo, pertencentes a um edifício monumental, parecem reforçar a nossa proposta. Para além destes indícios, deparámo-nos, ao longo da nossa investigação, com um facto que, a conirmar-se, vem reforçar a proposta de localização do forum neste espaço. Referimo-nos à existência, neste local, da capela de Santa Catarina, trasladada, em 1618, para a Rua 1º de Dezembro por prejudicar a fortiicação moderna (Aires 1990:97), tal como mencionado na inscrição epigráica inserida na actual capela. Segundo Tomé de Távora e Abreu, “ A Cappella Alvergaria e Morgado de S. Catherina,” foi fundada “no anno de 1279 (…) junto ao Castello desta V.a” (Aires Fig. 4. Malha urbana romana. Pormenor do quarteirão fossilizado (A) e do fórum (B) na malha urbana actual. 109 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA 1990:96). Este dado leva-nos a equacionar uma possível fundação sobre uma ediicação anterior, talvez a igreja de Idácio ou o baptistério desta igreja. Conirmando-se esta hipótese, será legitimo equacionar a existência de uma sobreposição desta capela a um antigo templo ou outro edifício do forum romano. Admitindo esta hipótese, a proposta de localização do forum de Aquae Flaviae neste local ganha ainda mais consistência. Do mesmo modo, não ignorámos o conjunto epigráico exumado nesta área, designadamente na Praça de Camões, onde foram descobertas epigrafes que podemos associar ao fórum, como é o caso das aras dedicadas a Júpiter. Todavia, uma percentagem considerável do espólio epigráico laviense provém da zona do Castelo e do Paço dos Duques, muito embora, neste caso, face à diversidade tipológica das epígrafes (epigrafes votivas, honoriicas, funerárias), possamos estar perante o resultado de uma prática de recolha deste tipo de espólio, em época medieval ou moderna, em contexto de coleccionismo. Numa lógica de ocupação do espaço, a localização do forum nesta área faria todo o sentido, uma vez que ocuparia toda a plataforma mais elevada da cidade, desenvolvendo-se em seu redor o resto da urbanização propriamente dita. A proposta de organização apresentada teria presidido à fundação da cidade no período alto-imperial. Contudo, à semelhança do que ocorre nas restantes cidades do império, a malha urbana alto-imperial poderá ter sofrido transformações decorrentes da instabilidade política e das alterações características do baixo-império. Entre as principais alterações morfológicas conhecidas, destacam-se a redução do perímetro urbana e as transformações que decorrem da construção das muralhas tardias. No caso de Aquae Flaviae veriica-se que a cidade teria sofrido uma retracção neste período, provavelmente na área a Norte, uma vez que, quer para Este quer para Oeste, estaria coninada pelos dois eixos luviais. Como já tivemos oportunidade de mencionar, o limite Sul baixo-imperial teria permanecido, ao que tudo indica, coincidente com o alto-imperial, ambos na Pensão Jaime. Esta proposta, apesar de necessitar de ser conirmada por um número maior de dados, designadamente arqueológicos, resultou num exercício válido, baseado no cruzamento de diferentes fontes de informação, assumindo-se o plano urbano actual, bem como o seu ediicado, como uma base de trabalho promissora. Pese embora todos os estudos que se têm sido levados a cabo nas últimas décadas, uma abordagem mais abrangente do urbanismo de Aquae Flaviae necessita de um maior e mais diversiicado número de dados de natureza arqueológica. Referimo-nos não só a dados recolhidos no subsolo, através de escavações arqueológicas programadas, mas também à análise estratigráica do ediicado que integra a cidade actual, podendo ser interpretado à luz dos princípios da Arqueologia da Arquitectura. 110 Fig. 5. Modelação tridimensional do terreno com a localização das estruturas romanas. A EVOLUÇÃO DO TECIDO URBANO FLAVIENSE DESDE AQUAE FLAVIAE A CHAVES MEDIEVAL: SÍNTESE DE RESULTADOS 111 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA MAlHA UrBANA MEDIEVAl A malha urbana do período medieval da cidade de Chaves pode dividir-se em dois momentos de génese distinta: Flavias, cidade do Bispo Idácio, entre os sécs. V e XIII, e Chaves pleno medieval, entre os sécs. XIII e XV. Em relação à primeira urbanização medieval – Flavias –, dispomos de poucos dados acerca do seu traçado urbano. Os relatos do Bispo Idácio constituem a principal fonte para o estudo desta cidade; a sua análise permite-nos constatar que esta urbanização, palco de guerras no contexto das invasões bárbaras, não possuiria castelo no século V, e que a Igreja, sede de bispado, se situaria na área da actual Igreja Matriz (Cardoso 1982: 41; López Silva 2004: 88-89). Com efeito, Flavias constitui palco de grandes transformações político – religiosas e estruturais, num contexto em que a concepção urbanística da cidade romana, com os seus aparelhos administrativos e imponentes ediicações públicas, deixa de fazer sentido. Os edifícios públicos conhecerão, à semelhança de outras cidades coevas, um processo de substituição em termos funcionais e morfológicos, e, em alguns casos, uma “cristianização”. A este propósito atente-se na localização das capelas de Santa Maria Madalena e de Santo Amaro – destruída no século XIX –, que parece materializar as saídas da cidade medieval, numa lógica de sacralização do território ou mesmo de cristianização de necrópoles romanas (Teixeira 1996: 127). A evolução do traçado urbano de Flavias nunca constituiu um objecto de análise, uma vez que, atendendo à profunda reconstrução da praça-forte de Chaves no séc. XVII, os vestígios medievais e provavelmente muitos dos vestígios baixo-imperiais foram arrasados, diicultando qualquer proposta de restituição do traçado urbano da cidade alto-medieval. Por oposição a esta urbanização, alguns elementos da póvoa baixo-medieval persistem na malha urbana da actual cidade de Chaves. O traçado urbano baixo-medieval da cidade caracteriza-se por apresentar uma coniguração rectangular, moldada por uma cerca murária construída no séc. XIII. Contudo existem relatos da existência de uma muralha anterior mandada construir no ano 888 por Afonso III de Leão, cujas características se desconhecem. Na zona intra-muros, observamos o castelo numa das extremidades da vila adossado às muralhas e a igreja no centro da póvoa. à sua volta desenvolver-se-ia a habitação privada, disposta pelos quarteirões regulares resultantes, provavelmente, dos traços remanescentes do traçado romano. A organização da malha urbana desta zona parece não ter sofrido signiicativas alterações até à actualidade. Na linha de pensamento de Paulo Gomes (2008: s.p.), inclinamo-nos a dividir esta zona em duas áreas distintas, em termos de génese e, consequentemente, de 112 A EVOLUÇÃO DO TECIDO URBANO FLAVIENSE DESDE AQUAE FLAVIAE A CHAVES MEDIEVAL: SÍNTESE DE RESULTADOS Fig. 6. Vila Medieval e seus elementos deinidores. morfologia. A zona de fronteira entre estas áreas corresponderia a uma “linha” de orientação Nordeste que passaria pela Ladeira da Brecha e pela travessa General Sousa Machado. A área individualizada a Noroeste resulta do planeamento eicaz de um traçado tendencialmente ortogonal (A), observável nos eixos da Rua Bispo Idácio e Rua Direita, sendo que esta ultima extravasa a linha previamente referida. No que diz respeito à área a Sudeste, pautada por um traçado mais irregular (B), parece denunciar um planeamento menos rigoroso, como se constata pelas orientações das ruas que a compõem. A avaliar pela ausência de evidências arqueológicas que comprovem a teoria de Paulo Gomes (2008: s.p.), não nos parece plausível a existência de uma primeira cerca que enquadrasse a área a Noroeste. Na área Sudeste, veriica-se uma “maior irregularidade do tecido urbano resultaria de uma determinação planeadora menos irme ou mesmo inexistente” (Gomes 2008:s.p.), de uma urbanização posterior sem iniciativa régia; parece-nos mais plausível esta hipótese. No que diz respeito à problemática da génese da cidade actual, identiicam-se duas interpretações distintas. Uma, na qual se destaca António Montalvão Machado (1972), que defende uma identiicação clara do actual traçado com o eventual tra113 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 7. Vila Medieval. (A) Malha regular; (B) Malha irregular. çado urbanístico da cidade romana. Na opinião deste autor, o decumanus da cidade romana corresponderia à actual Rua Direita que liga o Arrabalde ao Largo do Anjo, passando pelo provável forum, actual Praça de Camões. António Montalvão realça, com efeito, a ortogonalidade das ruas da actual cidade de Chaves. A outra corrente, no seio da qual se evidenciam Nuno Dias (1990) e Paulo Gomes (1993), apresenta a cidade de Chaves como uma “cidade fortaleza de fronteira”, fundada e povoada por iniciativa régia, na segunda metade do século XIII, no reinado de D. Afonso III. Perante o traçado ortogonal das ruas da actual cidade, os autores outorgam-no à iniciativa régia, não colocando de parte a possibilidade de terem sido aproveitados os traçados remanescentes do período romano. Estes autores fundamentam a sua teoria na documentação escrita que comprova a deslocação do centro do território para Santo Estêvão de Chaves, no século XII e primeira metade do século XIII. Encontra-se subjacente às suas opiniões, sobretudo à de Nuno Dias, a tese do “ermamento”, muito em voga num dado período da historiograia portuguesa. Consideramos que a vila medieval se desenvolve sobre os eixos romanos, sobretudo na área a Noroeste da Ladeira da Brecha, uma vez que não achamos plausível um abandono da cidade, “mesmo nas mais sanguinárias invasões ou nas 114 A EVOLUÇÃO DO TECIDO URBANO FLAVIENSE DESDE AQUAE FLAVIAE A CHAVES MEDIEVAL: SÍNTESE DE RESULTADOS Fig. 8. Reconstituição tridimensional da vila medieval de Chaves. mais pestilentas epidemias” (Batista 2007:53). De facto, neste período “Chaves tinha muito mais de mil anos como povoação activa (…)” (Batista 2007:53), e existem relatos, ainda que esporádicos, relativos à cidade antes do séc. XIII, denunciando a continuidade da sua ocupação. A reforçar a nossa proposta encontra-se a sobreposição, em época medieval, da Rua Direita – a mais importante no período medieval – em relação ao decumanus maximus da cidade romana. Do mesmo modo, veriica-se que os dois elementos deinidores da vila medieval – Castelo e Igreja – se encontram na área que, anteriormente, teria sido ocupada pelo forum romano, mantendo-se esta área como o núcleo dinamizador das duas urbanizações morfologicamente tão distintas entre si. Quanto à teoria de que a vila medieval será de fundação régia, esta não estará de todo errada. Parece-nos que não será de fundação régia, mas sim de reformulação régia. Uma vez que a vila se encontraria frágil e desprotegida, mercê de investidas bélicas, e porquanto se tratava de uma cidade de fronteira, terá conhecido uma reformulação urbanística, por inluência régia. Tal reformulação teria incluído a construção das muralhas, restauros no castelo e na igreja, rejuvenescendo, deste modo, a cidade e dotando-a de meios e características que lhe permitissem a sua defesa. 115 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA CoNClUSão O estudo da morfologia de Chaves, desde a sua fundação em época romana até à sua conformação em Idade Média, compreendeu a análise das sucessivas ocupações da cidade, tendo em conta os elementos deinidores e caracterizadores do espaço urbano para cada período histórico, bem como da forma como estes evoluíram ao longo dos períodos cronológicos abordados. A concretização desta análise pressupôs a pesquisa de vários tipos de fontes, assim como o recurso a uma metodologia multidisciplinar que beneiciou de conceitos e procedimentos provenientes de diferentes áreas do saber, como a História, a Arqueologia, a Geograia, a Arquitectura e o Urbanismo. De facto, os estudos de morfologia das cidades históricas iliados na Arqueologia Urbana têm-se revelado extremamente produtivos, quando realizados sob a multidisciplinaridade característica da disciplina. A Arqueologia, enquanto disciplina que tem como objecto de estudo as cidades, tem possibilitado a compreensão das características urbanísticas dos núcleos urbanos antigos, através da interpretação dos restos que se encontram soterrados, mas também mais recentemente, do ediicado que se encontra à superfície, através da Arqueologia da Arquitectura. Procurámos elaborar o percurso evolutivo da cidade, contemplando os dois grandes momentos históricos representados por duas concepções distintas de cidade: a cidade romana planiicada e a cidade medieval fortiicada. Para além das principais características urbanísticas inerentes a cada período cronológico, procurámos identiicar e analisar a evolução dos elementos deinidores da cidade romana e de como estes se integraram na urbs medieval, em conexão com os elementos emergentes neste novo período. A análise de Aquae Flaviae constituiu um verdadeiro exercício de cruzamento de dados. Face às limitações das evidências arqueológicas recuperadas até ao momento, foram extremamente úteis os dados potencializados pela iconograia e cartograia do século XVI, na exacta medida em que o núcleo central da cidade moderna, retratado nas fontes, não conhece grandes diferenças relativamente ao medieval. Por sua vez, e em função do conhecimento que temos acerca do desenvolvimento da cidade no mesmo local em que se encontrava a romana, pudemos trabalhar com base na hipótese de que o plano urbano do centro histórico actual permanece muito idêntico ao da cidade medieval e este, por sua vez, ao da cidade romana. Este exercício possibilitou-nos propor uma hipótese de organização do plano urbano que terá presidido à fundação da cidade, de acordo com os rituais de fundação das mesmas, mas também, com os conhecimentos alcançados para outras cidades. 116 A EVOLUÇÃO DO TECIDO URBANO FLAVIENSE DESDE AQUAE FLAVIAE A CHAVES MEDIEVAL: SÍNTESE DE RESULTADOS As estruturas identiicadas ao longo das intervenções arqueológicas, bem como os materiais exumados fortuitamente, permitiram deinir periodizações, ainda que dilatadas, para a ocupação romana da cidade. Assim, para além dos vestígios dos séculos I a III d.C., encontrámos evidências que atestam pontuais alterações no século III/IV, referentes ao baixo-império. O primeiro momento engloba a fundação da cidade, no século I, resultante da necessidade de consolidação da conquista romana e da integração das populações autóctones no império. A cidade conhece a elevação a municipium, na dinastia Flávia, Fig. 9. Sobreposição da malha romana e medieval sobre a foto aérea actual. 117 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA mercê, entre outros, da sua localização e importância como elemento central de ligação entre duas das principais cidades do Noroeste Peninsular. A importância da cidade deverá igualmente, estar relacionada com a exploração dos recursos naturais da região, onde se destacam as águas minero-medicinais e a exploração de minério. O segundo momento, apesar de arqueologicamente mal documentado, pode ser caracterizado por uma alteração na orientação das principais construções. A escassez de informação acerca da cronologia exacta das estruturas exumadas impediu-nos de proceder à distinção das malhas urbanas alto e baixo-imperial, facto que consideramos empobrece as conclusões relativas aos fenómenos construtivos veriicados nos vários séculos de ocupação romana. As alterações urbanísticas ocorridas no plano urbano durante a antiguidade tardia são ainda muito difíceis de precisar. De facto, o período de transição da cidade romana para o período alto-medieval, caracterizado pela decadência do sistema administrativo romano e consequentes perturbações relacionadas com as invasões visigodas, explícito nos relatos do Bispo Idácio, no século V, carece, igualmente, de dados arqueológicos que o permitam perceber. Todavia, e à semelhança do que ocorre nas restantes cidades do Noroeste Peninsular, prevê-se uma retracção da área urbana e o abandono de algumas áreas e edifícios da cidade, como sejam as termas ou as necrópoles. A vila medieval, ediicada sobre o plano romano, irá reaproveitar alguns dos traços morfológicos da cidade romana, designadamente alguns eixos de circulação, bem como alguns quarteirões, que passam a estar sub-divididos em parcelas mais pequenas. Todavia, algumas destas parcelas continuam a manter a orientação que parece ter caracterizado a cidade no alto-império. Para a cidade medieval, as fontes, designadamente documentais, iconográicas e cartográicas, são em maior número. Concorre também o facto do ediicado actual apresentar, ainda, muitas características típicas da Idade Média, como é o caso da tipologia habitacional, das técnicas e matérias de construção. O plano actual do centro histórico da cidade de Chaves á claramente o relexo da sua história ocupacional. Compreende eixos e quarteirões bastante regulares, herdados de acordo com a nossa proposta da cidade romana, como é o caso das ruas da Trindade ou parte das ruas Direita e de Santa Maria, e eixos irregulares, de génese medieval, como é o caso das ruas do Poço ou Luís de Viacos. Alguns dos eixos medievais são o relexo claro da organização da cidade medieval, cuja orgânica interna se traduz na disposição da rede viária intramuros a partir do centro e em direcção das portas da cidade. A ocupação do mesmo espaço urbano, desde a época romana até à actualidade, implicou a reutilização e incorporação de alguns elementos da morfologia urbana nos períodos subsequentes. Este facto justiica que encontremos ruas actuais que 118 A EVOLUÇÃO DO TECIDO URBANO FLAVIENSE DESDE AQUAE FLAVIAE A CHAVES MEDIEVAL: SÍNTESE DE RESULTADOS fossilizam eixos romanos, como é o caso da Rua da Trindade, correspondente ao kardo maximus. Esta reutilização está igualmente presente na implantação dos principais elementos da cidade medieval, o Castelo e a Igreja, na zona envolvente do forum romano de Aquae Flaviae. Do mesmo modo, algum do ediicado que integra a cidade actual resulta do reaproveitamento de estruturas ou materiais de cariz medieval. Infelizmente este tipo de estudo carece de um maior investimento. A este propósito reira-se a pertinência de estudos sobre o ediicado actual à luz dos princípios da Arqueologia da Arquitectura. Os resultados da nossa investigação permitiram, para além da proposta de reconstituição da cidade romana de Aquae Flaviae, apresentar os principais edifícios e espaços identiicadores do espaço urbano, romano e medieval. Possibilitou-nos, igualmente, reproduzir numa modelação tridimensional quer a malha urbana romana, a partir da altimetria actual do terreno em que se implanta a cidade, quer a coniguração da vila medieval. Nesta última conferimos particular relevo aos elementos deinidores da urbanização e ao parcelamento da área habitacional, tendo utilizado como base de trabalho os quarteirões actuais, corrigidos a partir da cartograia de época moderna. Pretendemos com este trabalho dar um contributo para o estudo diacrónico da evolução urbanística da cidade de Chaves, através de uma perspectiva que valorize a utilização de diferentes fontes de informação, bem como de uma nova metodologia de abordagem. Postulamos que a concretização plena deste projecto implica um plano de intervenções arqueológicas, susceptível de conirmar/inirmar as nossas propostas. Com efeito, a cidade de Chaves constitui um exemplo privilegiado para o estudo da evolução da morfologia histórica dos núcleos urbanos, na exacta medida em que corresponde a uma área de ocupação contínua, em constante mutação. Esta evolução, lenta e gradual, permitiu a fossilização de traços das ocupações anteriores, que se integram no tecido construído actual, dos quais sobrevivem, por vezes, somente parcas cicatrizes. De facto, à medida que a cidade se foi transformando, os diferentes componentes do plano urbano – ruas, parcelas, quarteirões e ediicado – foram-se adaptando e reciclando às novas realidades históricas e urbanísticas. 119 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA BIBlIogrAFIA Aires, Firmino (1990). Toponímia Flaviense. Câmara Municipal de Chaves. Alarcão, Jorge de (1988a). Roman Portugal. Aris & Phillips, Warminster. Alarcão, Jorge de (1988b). O Domínio Romano em Portugal. Lisboa. Alarcão, Jorge de (1995-1996). As Civitates do Norte de Portugal. Cadernos de Arqueologia, II série, 12-13. Braga, pp. 25-30. Alfenim, Rafael (1995). A Barragem de Aquae Flaviae. Revista Aquae Flaviae, nº13. Chaves, pp. 9-34. Almeida, Carlos Alberto Ferreira de (1986). História de Arte em Portugal. O Românico, Vol. 3. Publicações Alfa, Lisboa. Amaral, Paulo (1993). 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III Congresso de Arqueologia de Trás-os-montes, Alto Douro e Beira Interior – Actas, Vol. 4, Associação Cultural Desportiva e Recreativa de Freixo de Numão. 122 A EVOLUÇÃO DO TECIDO URBANO FLAVIENSE DESDE AQUAE FLAVIAE A CHAVES MEDIEVAL: SÍNTESE DE RESULTADOS Teixeira, Ricardo e Amaral, Paulo (1985-1992). Levantamento Arqueológico do Concelho de Chaves. Relatórios Anuais de Actividades, Chaves. Tranoy, A. (ed.) (1974). HYDACE. Chronique, 2 Vols. (col. Sources Chrétiennes, nº 218). Les Éditions du Cerf, Paris. 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Desde a fundação romana como Aquae Flaviae, a cidade conheceu sucessivas ocupações, condicionadas por circunstâncias geográicas e históricas variadas. A posição geográica de Chaves terá sido avaliada desde muito cedo, constituindo um espaço de circulação muito importante que, desde época romana, materializou um conjunto relevante de vias. Uma dessas vias, a via XVII, ligaria a cidade a duas importantes capitais de conventus – Bracara Augusta (Braga) e Asturica Augusta (Astorga). Enquanto organismo vivo, em constante mutação, Chaves foi-se transformando ao longo dos sucessivos períodos históricos, muito embora as marcas e os vestígios das anteriores ocupações sejam ainda possíveis de identiicar no plano actual da cidade. Neste sentido, à semelhança do que ocorre com os demais centros urbanos históricos, o seu estudo será tanto mais completo quanto variados forem os olhares que sobre ela se debruçarem. A nossa abordagem pretendeu realizar uma análise diacrónica do espaço urbano, com ênfase para os elementos remanescentes, quer soterrados, quer integrados no tecido urbano actual, que permitiram dar continuidade à urbanística laviense, mas também, no presente, proceder ao seu estudo. Para tal, revelou-se imprescindível a articulação de um conjunto avultado de fontes de informações, bem como o recurso às novas tecnologias de informação. Pese embora não se trate de um tema novo, a aplicação de uma metodologia multidisciplinar permitiu-nos a obtenção de respostas a questões levantadas em estudos anteriores e a formalização de novas problemáticas de análise. Os resultados obtidos através deste tipo de abordagem revelaram-se bastante positivos e capazes de propiciar a continuação das pesquisas numa esfera mais ampla, mas também mais detalhada, de forma a incrementar os conhecimentos sobre a evolução urbana da cidade de Chaves. Palavras-chave: Chaves, Aquae Flaviae, Flavias, Arqueologia da arquitectura, Tecido urbano. ABSTrACT: Situated in the Vila Real district, Chaves is a city sprawling an area equivalent to 25 km2 inside a vale where an important luvial axis, the river Tâmega, lows. he need to cross it has motivated, since very early, important public investments by the local and central administrations. he city has a long history, and its origins date back to the irst century of our era. Since being founded by the Romans as Aquae Flaviae, the city has been successively occupied according to several geographical and historic circumstances. he geographical placement of Chaves has likely been assessed since very early since it is an important location in terms of circulation, and in the roman era, that led to the construction of a relevant set of roads. One of those Roman roads, the via XVII, would connect the city to two important conventus capitals -Bracara Augusta (Braga) and Asturica Augusta (Astorga). As a living organism in constant mutation, Chaves transformed progressively throughout the successive historic periods, even though it is still possible to identify the traces and vestiges of previous occupations in the modern day design of the city. As such, like what happens in other urban historic centers, its study will be the more complete the more varied the views that analyze it are. 124 A EVOLUÇÃO DO TECIDO URBANO FLAVIENSE DESDE AQUAE FLAVIAE A CHAVES MEDIEVAL: SÍNTESE DE RESULTADOS Our approach aimed to do a diachronic analysis of the urban area, with a focus on the remaining elements, buried or integrated in the modern day urban tissue, that allowed a continuity for the urbanism of the city. Furthermore we aimed to study it in the present. To that end, it was fundamental the use of a large amount of information sources, as much as the new information technologies. Even though this is not a new theme, applying a new multidisciplinary methodology has allowed us to obtain answers to questions raised in previous studies and formalizing new problems for analysis. he results obtained with this type of approach have revealed themselves to be quite positive and able to foment the continuation of research not only with a wider scope, but also more detailed, so that it may augment the knowledge on the urban evolution of the city of Chaves. Keywords: Chaves, Aquae Flaviae, Flavias, Architecture arqueology, Urban tissue. 125 URbANISMO E POdER NA FUNdAÇÃO dE PORTUgAl: A REFORMA dE COIMbRA COM A INSTAlAÇÃO dE AFONSO hENRIqUES WAlTER ROSSA1 Estudei o assunto que aqui vos trago num trabalho tornado público há uma década: a urbanograia do espaço de Coimbra até ao estabelecimento da Universidade2. O seu objectivo central foi o da compreensão de alguns dos porquês da forma urbana atual, qual é o genoma de uma cidade com um processo histórico singular, não só por ter sido o centro universitário exclusivo do 1º Império português, mas também por antes ter sido charneira de soberanias e credos, encruzilhada de conquistas e capitalidades, no complexo processo de invasões que, entre romanos e francos, matizou a composição do que então começou a ser Portugal. Integrado nessa abordagem mais vasta, o tema da reforma afonsina constitui, em minha opinião, um dos seus aspectos mais interessantes. Por razões práticas (espaço, oportunidade, objectividade), mas também de decoro disciplinar (sou arquiteto e não historiador), tanto quanto possível limitar-me-ei à apresentação de factos. Os dados provêm da profícua historiograia coimbrã sujeita à hermenêutica de um urbanista e, bem assim, do documento que não mente: a cidade de hoje, não só um palimpsesto de informação, mas um sistema de fontes em hipertexto. As referências bibliográicas e documentais provêm daquele meu trabalho, pelo que aqui me dispenso de as repetir, a não ser nos casos de citação direta. A Coimbra que Fernando Magno reconquistou para o domínio cristão em 1064 era uma Æminium muito transformada. O fórum sofrera já a profunda adaptação 1 Universidade de Coimbra | wlrossa@gmail.com 2 ROSSA, Walter (2001), DiverCidade: urbanograia do espaço de Coimbra até ao estabelecimento deinitivo da Universidade. Coimbra: dissertação de doutoramento apresentada à Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. 2001: cap.s 5 e 6. 127 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 1. O lado norte da antiga alcáçova na atualidade. a palácio do bispo, que ali se acolheu após o abandono de Conímbriga; o sistema defensivo evoluíra ao ponto de a muralha perimetral ter icado completa; a ocupação islâmica proveu a construção de uma cidadela do tipo paço-alcáçova dotada de albacar (ou seja, de um perímetro defensivo intermédio coninando um bairro para os notáveis da corte omíada); a provável ponte romana estaria já submersa pelo paulatino, mas implacável e milenar processo de açoramento do Mondego; alguns templos cristãos e, pelo menos, uma mesquita pontuavam a paisagem e estrutura urbanas, etc. A região coimbrã estava também ordenada de forma muito diversa da romana, acentuando-se a polaridade territorial de Coimbra. O efémero Condado de Coimbra criado em 878 em Hermenegildo Guterres e extinto pela reconquista muçulmana dirigida por al-Mansur em 987, é apenas um facto que contribuiu e corrobora a conformação estratégica dessa unidade territorial, que também teve expressão como kura durante a dominação muçulmana. Após a Reconquista o condado seria retomado sob uma fórmula menos evidente, mas não menos efémera e eicaz por Sisnando Davidis (g. 1064-1091). Em 1096 ocorreria a integração do Condado de Coimbra no Portucalense, cujo titular foi o franco Henrique de Borgonha, casado com Teresa, ilha bastarda do rei de Leão. Mais do que um processo político foi, uma vez mais, a imposição dos últimos invasores aos residentes. A então Colimbriæ não fora uma cidade muçulmana, mas antes um dos principais polos moçárabes do espaço peninsular. Nos seus dois períodos, que não chegaram a somar dois séculos e meio, o domínio muçulmano na região foi essencialmente político-militar e não tanto colonial ou civilizacional. Morfologicamente a cidade era então mais a resultante da regionalização da romanização, que das invasões de povos do leste e islâmicos que se lhe seguiram. Os moçárabes 128 URBANISMO E PODER NA FUNDAÇÃO DE PORTUGAL: A REFORMA DE COIMBRA COM A INSTALAÇÃO DE AFONSO HENRIQUES foram o resultado dessa evolução sofrida pelos hispano-romanos, os residentes, não uma etnia invasora. Tinham um culto cristão com uma liturgia própria – dita hispânica ou visigótica – próxima da dos cristãos orientais, a qual, pelo isolamento, icou irremediavelmente ameaçada após o Cisma de 1054. Aquilo a que se assistiu nas escassas décadas decorridas entre a Reconquista de Coimbra em 1064 e a fundação da nacionalidade portuguesa umas oito décadas depois foi, precisamente, à implantação proselitista do culto e liturgia católico-romana e da cultura dos cristãos do norte – os francos – sobre essa matriz moçárabe-orientalizante. Esta apenas logrou resistir nas primeiras décadas, precisamente as do retomar do condado sob o governo de Sisnando Davidis. Com a soberania cristã despontou a inevitável conlitualidade entre facções apenas supostamente fraternas, o que teve a sua pedra de toque com a decisão do Concílio de Burgos de 1080 de proclamar a adaptação do cristianismo ibérico à liturgia romana, ao que aderiu o monarca leonês Afonso VI em 1086. Como em 1919 escreveu Goméz-Moreno, Coimbra foi “el foco más potente de mozarabismo en el pais ocidental”3. Por tudo isso a imposição do novo rito e tudo o que acarretou – de que é bom exemplo a nomeação de bispos – teve implicações arquitectónicas e até urbanísticas a tal ponto enérgicas, que permitem adivinhar e ilustrar alguns dos contornos dos conlitos que terá gerado. Mas como por mais esforço que se faça em contrário, a história corrente é sempre a dos que vencem e prevalecem, o que realmente é valorizado são os feitos de quem chegou e se airmou, não o papel da maioria que estava, recebeu e sofreu. Porém o processo não foi apenas de política religiosa, pois esta conjugou-se com o projeto de poder que conduziu à fundação da nacionalidade portuguesa. O acentuar e a assunção da diferença foi até fundamental à airmação desse projeto. Mais do que o mais simples vergar dos hispano-romanos genericamente vertidos em moçárabes, importava acentuar a componente franca, inovadora, em detrimento da asturiana, também ela residente e resistente. Eufemisticamente, era naquela, tal como no passado visigodo, que se fundava o objecto retórico da Reconquista. Serão esses a razão e o signiicado mais profundo da fusão dos condados sob o governo de Henrique da Borgonha, que pugnou por uma composição entre as partes, a qual tem a sua maior evidência na carta de foral que em 1111 outorgou à cidade, reconhecendo direitos antigos e exclusivos. Com isso logrou pôr cobro a uma sublevação que durava há dois anos, mas também dar um passo importante na autonomização que, desde cedo, se tornou evidente em múltiplos atos da sua governação. No plano religioso uma bula papal de 1116 também apaziguou os 3 GÓMEZ-MORENO, Manuel (1919), Iglesias Mozárabes: arte español de los siglos IX a XI. Granada: Editorial Universidad de Granada. 1998: 98. 129 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA conlitos. O violento assédio almorávida materializado nesse ano e no seguinte forçou essa composição. Enim, era (e permanece) um contexto extraordinariamente complexo. Passando de extremadura a encruzilhada, pela última vez o sítio de Æminium-Coimbra serviu de charneira entre o norte e o sul da facha ibérica ocidental, de testa de ponte político-militar entre duas geograias e dois grupos com diferentes formas de crer, viver e fruir, mas que assim se inter-inluenciaram num diálogo de culturas que compôs Portugal. São por demais conhecidas as razões e motivações que, na sequência da batalha de São Mamede (1128) levaram Afonso Henriques a instalar-se em Coimbra, onde, aliás, parece ter nascido em 1109. Também terá sido de Coimbra que a condessa Teresa partiu para com o seu exército defrontar o ilho acantonado em Guimarães. Foram frequentes e prolongadas as suas estadias em Coimbra depois da morte de Henrique de Borgonha em 1112, acentuando uma tendência que o ilho conirmaria. Claro que esta instalação era então muito relativa, pois as cortes eram quase tão nómadas quanto os soberanos em torno de quem se congregavam. A verdade é que, por entre um conjunto de sinais que contribuíram para essa ideia, a maior permanência em Coimbra e a ixação da insipiente chancelaria régia no novo cenóbio agostinho de Santa Cruz, têm sido invocados como claros sinais da eleição de Coimbra como base de operações – uma capitalidade avant-la-lettre – do projeto de poder do primeiro monarca português. Mas o que aqui mais nos interessa reter é a ideia de que Coimbra se constituiu no centro de um território estruturado em função de uma lógica unitária de poder. Quiçá a primeira depois do processo da Reconquista, uma vez que a norte tal tarefa surgia diicultada pela estrutura senhorial pré-existente. É que enquanto aí se procurava instituir uma fronteira onde ela até então nunca existira – sobre a raia do rio Minho – a sul pretendia-se abrir trilhos de expansão sobre a velha Lusitânia agora islamizada. Projeto ao qual uma nova igreja em airmação não pôde deixar de se associar ativamente, sendo nisso especialmente signiicativo o papel do crúzio Miguel Salomão, bispo de Coimbra entre 1162 e 1176. Z Fig. 2. Os elementos ediicados mais relevantes da cidade no inal do século XII, desenhados sobre as massas ediicadas do levantamento georeferenciado atual à escala 1/10.000. (Walter Rossa e Sandra Pinto, banco digital de Cartograia da Evolução Urbanística de Coimbra, Departamento de Arquitetura da Universidade de Coimbra, 2003). 130 URBANISMO E PODER NA FUNDAÇÃO DE PORTUGAL: A REFORMA DE COIMBRA COM A INSTALAÇÃO DE AFONSO HENRIQUES 1 3 2 4 5 19 6 7 20 21 8 22 10 23 11 25 9 18 24 26 12 29 28 13 16 14 27 30 15 18 31 17 Legenda 1 Igreja de Santa Justa 2 Torre dos sinos de Santa Cruz 3 Cerca de Santa Cruz 4 Mosteiro de São João das Donas 5 Mosteiro de Santa Cruz 6 Sulco da Ribela 7 Igreja de São João da Freiria 8 Igreja de São Tiago 9 Rua dos Francos ou das Tendas 10 Porta de Almedina 11 Igreja de São Bartolomeu 12 Igreja de São Cristóvão 13 Portagem 14 Torre da Estrela 15 Porta de Belcouce 16 Ponte 17 Mosteiro de Santa Ana 18 Albacar 19 Porta Nova 20 Muralha 21 Igreja do Salvador 22 Paço do Bispo e igreja de São João de Almedina 23 Casa do Vodo 24 Sé/ Catedral de Santa Maria 25 Torre dos sinos da Sé 26 Porta do Sol 27 Castelo 28 Paço da Alcáçova 29 Igreja de São Pedro 30 Hospital dos Milreus 31 Porta da Traição 131 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Na perspectiva da história política, religiosa e militar Coimbra surge-nos assim na primeira metade do século XII como o centro da ação da Reconquista na faixa oeste peninsular, numa fase em que o projeto de autonomização soberana dos condes portucalenses era já bem evidente. Mas o que, no fundo, aqui me propus sumariamente apresentar não é essa matéria certa e sabida, mas algumas evidências de como isso teve tradução urbanística, um programa que, como sempre, não é mais do que uma forma de airmação e legitimação. Cada um dos casos nada teria de excecional, mas o todo signiicará por certo mais do que a soma das partes. O assédio almorávida dirigido por Ali ben Yusuf em 1117 produziu uma considerável destruição na cidade ou, pelo menos, no seu arrabalde, pois alguns autores têm desconiado da leitura literal do documento que refere que os mouros “que de mistura entrarão em a cidade com os moradores, que se recolhião, a qual estava neste tempo com pouca gente, porque o Conde a tinha levado a uma empresa […] e na cidade matarão muita gente, e derribarão muitos ediicios, e poseram esta See quase por terra”4. No que diz respeito aos edifícios religiosos, se pela data da conirmação papal da independência (1179) não existiam em Coimbra igrejas instaladas em edifícios anteriores a 1064, é seguro que alguns deles tenham sido objecto de duas reformas no século decorrido desde nesse intervalo de tempo. Ou seja, às fundações ou refundações moçárabes sucederam-se, poucas décadas depois, reformas católicas. Era quase inevitável, pois as diferenças litúrgicas impunham dispositivos espaciais diversos. De qualquer das formas sabemos como, na generalidade, as alterações que daí provieram foram sendo paulatinamente introduzidas ao longo de séculos. Em Coimbra foram, digamos assim, feitas de supetão maioritariamente entre as décadas 1140 e 1170. O centro da soberania emergente, de confessa inspiração gregoriano-romana, não podia ter um parque de igrejas que disso dessem uma leitura ambígua, invocando no quotidiano espiritual matrizes culturais obliteradas segundo um processo recente e algo violento. Bom exemplo é a hoje Sé Velha (a Catedral de Santa Maria), sagrada em 1174. Terá sido erguida naquele local pelo menos no primeiro período condal e foi sujeita a reforma, senão mesmo a uma renovação, nas últimas décadas do século XI. Para o tema de hoje pouco importa a polémica entre António de Vasconcelos5, Nogueira 4 Trata-se de um documento do cabido desaparecido, mas que foi registado em NOGUEIRA, Pedro Álvares (1597), Livro das vidas dos bispos da Sé de Coimbra. Coimbra: Arquivo e Museu de Arte da Universidade. 1942: cap. IV, §3º. 5 VASCONCELOS, António de (1941), A Catedral de Santa Maria Colimbriense ao principiar o seculo XI. Mozarabismo desta região em tempos posteriors. Sé-velha de Coimbra, apontamentos para a sua história, Coimbra: Arquivo da Universidade de Coimbra. 1993: vol. II, 113-140. 132 URBANISMO E PODER NA FUNDAÇÃO DE PORTUGAL: A REFORMA DE COIMBRA COM A INSTALAÇÃO DE AFONSO HENRIQUES Gonçalves6 e Pierre David7 nas décadas de 1930 e 1940, em minha opinião resolvida por Manuel Real em 19748, se o edifício moçárabe foi destruído no ataque almorávida de 1117 ou deliberadamente demolido para ser substituído pelo atual, bem como se a construção foi iniciada em torno de 1140 ou um quarto de século mais tarde, já no bispado de Miguel Salomão. O que interessa é que algumas décadas depois de ter sido renovado foi demolido e substituído por outro, tal como o facto de Afonso Henriques ter contribuído para a sua realização ao ponto de em alguns documentos se apresentar como fundador, o que de todo não é verdade. Como a Catedral de Santa Maria, as demais igrejas da cidade intramuros –Salvador, São João de Almedina, São Cristóvão e São Pedro – trocaram o seu fácies e estrutura moçárabes por outros católicos durante a governação de Afonso Henriques, a maior parte das quais também sob o bispado de Miguel Salomão. Tal como a catedral foram reformas que em primeira mão se devem ao clero, mas mesmo sem contar com as notícias documentais de alguns apoios expressos do monarca, parece-me óbvio que o sincronismo só é explicável através de um programa político. A igreja do Salvador – além da Sé Velha e de São Tiago, a única que chegou até aos nossos dias – corresponde a um edifício erguido quando o respetivo território paroquial se urbanizou e estabilizou, pois antes esteve implantada algo a sul, dentro do albacar. Tal facto ocorreu, precisamente, durante o reinado de Afonso Henriques, sendo que o seu portal ostenta como data o ano de 1179. É provável que a construção só tenha sido concluída alguns anos depois. São João de Almedina foi a capela do paço episcopal. O conjunto inicial era dotado de um claustro do qual ainda subsiste um tramo dentro do atual Museu Nacional de Machado de Castro. Foi reformado dando então origem a uma igreja de que foi possível reconstituir a planta. Em meu entender o seu perímetro coincide com o do templo do fórum de Æminium, dele aproveitando diversos elementos, como as colunas cujas bases ainda hoje se podem observar no local. Isso explicará GONÇALVES, A. Nogueira (1934), A lanterna-coruchéu da Sé-velha de Coimbra. Biblos, ano X. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. 1934: 260-272; GONÇALVES, A. Nogueira (1938), Novas hipóteses àcerca da arquitectura românica de Coimbra. Coimbra: Gráica de Coimbra. 1938; GONÇALVES, A. Nogueira (1942), A Sé Velha Conimbricense e as inconsistentes airmações histórico-arqueológica de M. Pierre David. Porto: Tipograia Guedes. 1942; GONÇALVES, A. Nogueira (1943), Evocação da obra dos canteiros medievais de Coimbra. Coimbra: Sociedade de Defesa e Propaganda de Coimbra. 1944. 7 DAVID, Pierre (1943), A Sé Velha de Coimbra das origens ao século XV. Porto: Portucalense Editora. 1943; DAVID, Pierre (1942), La Sé Velha de Coimbra et les dates de sa construction (1140-1180). Bulletin des Etudes Portugaises, 1. Lisboa: Institut Français au Portugal. 1942. 8 REAL, Manuel Luís (1974), A arte românica de Coimbra (novos dados – novas hipóteses). Porto: dissertação de Licenciatura em História apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2 vol.s. 1974. 6 133 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 3. Reconstituição volumétrica da igreja românica de São João de Almedina e sua relação com o criptopórtico do fórum de Æminium. (Walter Rossa e Sandra Pinto, banco digital de Cartograia da Evolução Urbanística de Coimbra, Departamento de Arquitetura da Universidade de Coimbra, 2003). as suas inusitadas proporções, bem como as das referidas colunas. O mesmo não é possível com a igreja, pois entre 1684 e 1704 foi substituída pela atual cujo eixo rodou 270º. A iniciativa terá também sido do bispo Miguel Salomão. São Cristóvão inicialmente no arrabalde junto à ponte, antes de 957 foi transferida para dentro de muros, instalando-se num pequeno edifício do qual apenas conhecemos a silhueta em planta inscrita no levantamento ao conjunto feito antes da sua integral substituição em 1857 por um teatro. Conjunto que era constituído por uma igreja erguida na segunda metade ou até último quartel do século XII, até porque sob os mais diversos aspectos formais era uma redução da Sé. O edifício moçárabe, que passou a cripta, foi sede de um pequeno mosteiro que em 1108 Henrique da Borgonha doou aos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, em mais um ato de intervenção do poder político na reforma gregoriana das preexistências moçárabes. 134 URBANISMO E PODER NA FUNDAÇÃO DE PORTUGAL: A REFORMA DE COIMBRA COM A INSTALAÇÃO DE AFONSO HENRIQUES Também São Pedro sediava um mosteiro, aliás o mais antigo da cidade. O edifício que chegou até à reforma da alta universitária do Estado Novo na década de 1940, era já a resultante da profunda intervenção ordenada pelo bispo-reformador Francisco de Lemos no âmbito da Reforma Pombalina, mas terá sido erguida no último quartel do século XII sobre uma anterior moçárabe. O templo tinha algumas semelhanças com São Cristóvão, designadamente a cabeceira. Cabeceira que, coincidência ou não, tal como as igrejas de São João e do Salvador encostavam ao velho cardus romano. Além dessa outra característica comum a todas as igrejas de Coimbra de então era a das torres isentas, das quais persiste apenas a do Salvador. A própria Sé tinha os seus sinos numa torre do albacar, a qual terá hipoteticamente também servido de minar da mesquita islâmica. A par destes templos com intervenção documentada para o período afonsino, existia ainda intramuros um outro, o de São Miguel, fundado por Sisnando Davidis e por ele copiosamente dotado através do testamento que lavrou em 1087. Tinha anexo um hospital com três camas e é a origem, desde logo palatina, do que ainda hoje é a Capela de São Miguel (ou da Universidade). O edifício de hoje é a obra nova em novo local ordenada por Manuel I no início de Quinhentos. Mas nada sabemos acerca de eventuais transformações ordenadas por Afonso Henriques na sua capela palatina de São Miguel. Também no arrabalde assistimos no período em apreço à renovação integral dos edifícios das igrejas preexistentes. São Bartolomeu e Santa Justa (esta com programa conventual) são exemplos claros, mas também São Tiago, em cujo dia de 1064 ocorreu a reconquista deinitiva da cidade aos muçulmanos. Com provável origem num templo dedicado a Santa Cristina, que com aquela ação viu o seu orago mudado, foi a última igreja da cidade a sofrer a reforma arquitectónica gregoriana. Havia mais alguns, de que dá conta a imagem 2, mas cuja referenciação aqui pouco adiantaria ao objetivo deste texto. E assim conirmamos como nas últimas décadas do século XII Coimbra tinha um parque eclesial totalmente renovado segundo os preceitos da liturgia determinada para a Península Ibérica um século atrás. Signiicativamente, das sete igrejas listadas todas eram sedes paroquiais (o que é um sistema precoce) e tinham colegiada (o que era um exagero). Conjunto em que, apesar do desaparecimento de algumas unidades, é possível ler características comuns (planta, estruturação e expressão dos alçados, escadórios de acesso, torres isentas, etc.) que levaram à identiicação e caracterização pelos historiadores de arte de um românico coimbrão de clara inspiração franca, o qual foi o conjunto de arquitetura românica mais coerente e concentrado do país. Contudo não é essa a perspectiva, a arquitectónica, a que aqui interessa, mas sim a do programa político e urbanístico de que faz suspeitar e para o qual se me impõe agora juntar conirmações. 135 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 4. Reconstituição planimétrica ao nível térreo dos elementos essenciais do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra em inais do século XII, com destaque para a base da torre-nártex. Escala 1/1.00 (Walter Rossa e Sandra Pinto, banco digital de Cartograia da Evolução Urbanística de Coimbra, Departamento de Arquitetura da Universidade de Coimbra, 2003). 136 URBANISMO E PODER NA FUNDAÇÃO DE PORTUGAL: A REFORMA DE COIMBRA COM A INSTALAÇÃO DE AFONSO HENRIQUES O Mosteiro de Santa Cruz é a primeira. Sabe-se como a iniciativa se deve a um conjunto de membros do cabido diocesano que, descontentes por um deles, Telo, não ter sucedido ao bispo Gonçalo precisamente em 1128, dali saíram para em 1131 para fundar uma comunidade. Entre outros um dos objectivos era ter um espaço onde a oposição resiliente dos locais aos bispos estrangeiros impostos pudesse seguir o seu curso. Os apoios de Telo eram o bispo que falecera e a condessa nesse ano derrotada pelo ilho. Razões óbvias para este prover o lugar em Bernardo, um franco, mas cedo Afonso Henriques reconheceria nele a capacidade de ampliar a conlitualidade latente e em Telo um potencial de liderança uniicadora. Com Telo estavam personagens que se vieram a revelar fundamentais na diplomacia de legitimação do novo reino. Eram cultos e viajados, o que lhes permitiu encontrar em São Rufo de Avinhão um modelo comunitário desalinhado das correntes monásticas em voga: a regra de Santo Agostinho. Tal facto permitiu-lhes obter obediência e tributo exclusivos ao Papa (1135) e, assim, uma inusitada autonomia face a todo o clero da península, designadamente ao próprio bispo. Com tudo isso o apoio de Afonso Henriques só poderia consolidar-se. O modelo – um máximo denominador comum das tendências em conlito latente – frutiicaria, por exemplo, em São Vicente de Fora logo após a conquista de Lisboa em 1147. O que poderia ter sido o reavivar de um partido moçarabizante acabou potenciado como inestimável capital no processo autonómico portucalense. Seria em Santa Cruz que Afonso Henriques recrutaria escribas, chanceleres, sacerdotes e bispos. E foi ali, não no castelo ou na alcáçova, que fez recolher a parca existência material do seu embrionário estado, incluindo o tesouro régio. Ao contrário dos demais edifícios religiosos e em sinal de autonomia, Santa Cruz foi ocupar em ensanche o espaço não urbanizado situado entre a urbe e o núcleo de Santa Justa. O espaço compreendido entre o cenóbio e o rio foi desde logo dinamizado como a primeira urbanização programada portuguesa. Eram propriedades maioritariamente judias situadas ao longo da linha de água que contorna pelo norte a colina de Coimbra. No sítio hoje ocupado pelos Paços do Concelho existiam uns Banhos Régios que foram a primeira doação de Afonso Henriques aos crúzios. A cerca do mosteiro ampliou a da cidade e levou à abertura da Porta Nova, sendo que o conjunto monástico tinha uma forte expressão defensiva. O acesso principal era a sul, lateral, característica que se cruza com um aspecto que para nós é crucial: a solução arquitectónica do que foi 1º panteão régio português. Para além da sepultura de dois reis, reuniram-se as de duas rainhas e sete infantes. Tal como as demais fundações crúzias em Portugal, em especial para a algo posterior de São Vicente de Fora em Lisboa (1147), a igreja de Coimbra tinha a sua fachada principal conformada por uma torre, neste caso portentosa e rematada 137 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 5. Plantas da (desaparecida) igreja de Santa Maria de Oviedo (reconstituição de Fortunato Selgas, 1908) e da Colegiada de Santo Isidoro de Leão (Isidro Bango Torviso, 1992), interessando aqui os panteões reais no extremo oposto à cabeceira. Fig. 6. Abóbadas do Panteão Real da Colegiada de Santo Isidoro de Leão. 138 URBANISMO E PODER NA FUNDAÇÃO DE PORTUGAL: A REFORMA DE COIMBRA COM A INSTALAÇÃO DE AFONSO HENRIQUES por um coruchéu, a qual continha um espaço colunário ao nível do piso térreo no pé da nave. Sobre esse espaço existia uma tribuna, o antecedente do atual coro alto. Não sabemos se a torre tinha acesso direto ao exterior. Eu creio que não, mas isso é aqui irrelevante. Na linha de uma tradição asturiana e também moçárabe – neste caso com expressão formal diversa, em absidíolo – esses espaços tinham uma função cemiterial. No caso de Santa Cruz foi programado com vista à tumulação dos primeiros reis portugueses, sendo determinante que fosse esse o modelo do panteão dos reis em Santo Isidoro de Leão, que por sua vez é uma evolução tipológica do da Igreja de Santa Maria de Oviedo. Há outras coincidências as quais não há aqui espaço para referir, mas não posso deixar de chamar a atenção para o facto de o espaço de Santa Cruz ser já uma evolução próxima do que no centro da Europa viria a ser instituído como o modelo das saint-chapelles. Em suma, em jeito de legitimação, Afonso Henriques terá pretendido emular para a sua monarquia emergente o modelo cemiterial dos seus suseranos. Importa registar que esta opção constituiu uma alteração ao programa inicial feita por alturas do Tratado de Zamora (1143) e, já agora, reforçar o quanto de impacto urbano-paisagístico tinha esse elemento com mais de simbólico que de defensivo. Em tudo quanto acima se disse foi sendo referenciada a existência de um elemento fundamental da urbanidade medieval de Coimbra: a muralha. Além dos aspectos simbólicos, paisagísticos e defensivos, como em todos os casos tinha e continua a ter um papel determinante na morfologia urbana da cidade. Foi possível reconhecer com exatidão todo o seu traçado, bem como as fases e Fig. 7. Vista de sudeste da maqueta do Núcleo da Cidade Muralhada do Museu da Cidade de Coimbra (instalado na Torre da Almedina), com os elementos ediicados mais relevantes da cidade no inal do século XII. (Walter Rossa, Sandra Pinto e Nuno Salgueiro, Departamento de Arquitetura da Universidade de Coimbra, 2003). 139 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA campanhas de obras da sua execução, o que foi vertido num interessante projeto do Museu Municipal de Coimbra, centrado numa maqueta exposta na Torre de Almedina. à época o perímetro muralhado iniciado pelos romanos estava concluído, até nos trechos onde era topograicamente supletivo. Tinha três portas que com Sisnando Davidis, mas também com a condessa Teresa, sofreram reformas, sendo que junto da Porta do Sol foi então concretizado o perímetro do castelo, situado no ponto topograicamente mais vulnerável e de mais fácil acesso. Nada que se Fig. 8. Reconstituição da planimetria geral do castelo, desenhada sobre as massas ediicadas do levantamento georeferenciado atual. (Walter Rossa e Sandra Pinto, banco digital de Cartograia da Evolução Urbanística de Coimbra, Departamento de Arquitetura da Universidade de Coimbra, 2003). 140 URBANISMO E PODER NA FUNDAÇÃO DE PORTUGAL: A REFORMA DE COIMBRA COM A INSTALAÇÃO DE AFONSO HENRIQUES compare com as obras empreendidas pelos governantes seguintes. Iniciavam-se então na Europa as alterações que transformaram os perímetros muralhados em sistemas defensivos com alguma capacidade ativa. É a castelologia dita gótica. Surgem torres e barbacãs, reforçam-se muros e melhoram-se os adarves, criam-se esplanadas para movimentação de engenhos, couraças atingindo pontos estratégicos, como o rio em Coimbra. Dinâmica empreendida por Afonso Henriques em Coimbra, sendo que as principais obras foram concretizadas pelo seu sucessor. A Torre de Menagem, erguida sobre uma cisterna, foi a pedra de toque do processo. Em todo o sector poente o percurso de torres e barbacã marcou para sempre o urbanismo e a imagem da cidade. Também relevante foi, na década de 1140, a já referida abertura da Porta Nova, bem como da rua que lhe dá acesso. Provam o desenvolvimento e consolidação urbanística do sector norte da colina por mercê da instalação crúzia então em curso. A primitiva torre sineira do mosteiro era precisamente a nova torre da muralha que protegia aquela porta. Termino com aquela que será a mais signiicativa concretização urbanística coimbrã da governação de Afonso Henriques: a ponte. Face à dinâmica de assoreamento do Mondego – que apenas estabilizou em meados do século XIX e decorreu a uma média de 80 centímetros por século – a sua provável antecedente romana estaria então com o tabuleiro ao nível dos aluviões. Mas sobre os seus pegões ou de raiz, sabemos pela Chronica Gothorum9 que em 1132 Afonso Henriques mandou erguer nova ponte. Com um comprimento superior à antecedente, mas também inferior às que se lhe seguiram. Como se lia na inscrição da ponte substituída no século XIX, em 1513 Manuel I “mandou fazer de novo esta ponte até as esperas he reediicar até a cruz de são francisco”10. A data e o carácter utilitário do programa têm-me permitido airmar – numa expressão algo metafórica, evidentemente – tratar-se da primeira obra pública portuguesa. Simbolismo acrescido pelo facto de numa zona então de fronteira unir duas margens de um país em construção por mais um século, que, como José Mattoso bem caracterizou, foi composto de opostos que os conceitos de norte e sul sintetizam11. A tudo isto haveria ainda que juntar muitos outros dados, como o corolário jurídico deste processo, o foral promulgado por Afonso Henriques em 1179, o pri9 “Era MCLXX Idem Rex cepit ediicare monasterium Sanctae Crucis in suburbiu Colimbrie et pontem luminis juxta civitaten, anno regni sui quarto” (Portugaliæ Monumenta Historica. Lisboa: Academia das Ciências. 1856-1888: I, 12). 10 No espólio do Museu Nacional de Machado de Castro, Coimbra. 11 MATTOSO, José (1985), Identiicação de um país, ensaio sobre as origens de Portugal, 1096-1325. Lisboa: Editorial Estampa. 2 vol.s, 1988. 141 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 9. Vista de noroeste da maqueta do Núcleo da Cidade Muralhada do Museu da Cidade de Coimbra (instalado na Torre da Almedina), com os elementos ediicados mais relevantes da cidade no inal do século XII. (Walter Rossa, Sandra Pinto e Nuno Salgueiro, Departamento de Arquitetura da Universidade de Coimbra, 2003). meiro de iniciativa régia. Porém, face ao que assim sumariamente registei, penso que já não poderá ser considerado exagero airmar que às inevitáveis alterações urbanísticas da instalação em Coimbra da embrionária corte portuguesa a partir da década de 1130 corresponde um plano. Não algo rigorosamente pré-determinado e arquitetado em documentos desenhados e escritos, mas o desígnio de uma nova ordem na cidade escolhida para albergar o infante que, como todos os sinais indicavam, em breve se tornaria rei. Uma vez mais se veriica que a airmação de qualquer processo de transformação estrutural profunda implica e expressa-se numa marca urbanística – uma reforma – no espaço central da atuação política dos seus protagonistas. Coimbra é assim a primeira cidade portuguesa a sofrer no seu urbanismo a marca dessa nacionalidade lorescida no extremo-ocidente ibérico durante o século XII: Portugal. 142 URBANISMO E PODER NA FUNDAÇÃO DE PORTUGAL: A REFORMA DE COIMBRA COM A INSTALAÇÃO DE AFONSO HENRIQUES rESUMo: A instalação de Afonso Henriques em Coimbra após a Batalha de São Mamede é um marco conhecido no processo de fundação da nacionalidade. Porém não teve ainda correspondente fortuna crítica o quanto essa instalação teve uma expressão urbanística que, claramente, revela a existência de um projeto político, um programa de poder veiculado num conjunto de ações e obras públicas que exprimem uma clara ideia de cidade capital. Nesta comunicação pretendo apresentar alguns dos dados e discutir os signiicados. Palavras-chave: Afonso Henriques, Coimbra, Expressão urbanística, Programa de poder. ABSTrACT: he installation of Afonso Henriques in Coimbra ater the Battle of São Mamede is a well know landmark in the process of founding of the Portuguese nation. But it is not so much spread as this installation has an urbanistic expression that clearly unveil the existence of a political project, a program of power recorded in a set of actions and public works that express a clear idea of capital city. In this paper I intend to present some of the related data and discuss its meanings. Keywords: Afonso Henriques, Coimbra, Urbanistic expression, Program of power. rÉSUMÉ: L’installation de Afonso Henriques à Coimbra après la bataille de São Mamede, est un repère bien connu dans le processus de fondation de la nation portugaise. Mais il n’avait pas encore eu la divulgation correspondant comme cette installation ait une expression urbanistique qui représente clairement l’existence d’un projet politique, un programme de pouvoir enregistré sur un ensemble de actions et de travaux publics qui expriment une idée claire de cité capitale. Dans cette communication, j’ai l’intention de présenter certaines des données et discuter de la signiication. Mots-clés: Afonso Henriques, Coimbra, Expression urbanistique, Programme de pouvoir. 143 A INFlUêNCIA dAS ATIvIdAdES ECONóMICAS NA ORgANIzAÇÃO dA CIdAdE MEdIEvAl PORTUgUESA MARIA dO CARMO RIbEIRO1 ARNAldO SOUSA MElO2 INTroDUção Os centros urbanos medievais portugueses conheceram nos primeiros séculos da nacionalidade, designadamente com o im da Reconquista e a subida ao trono de Afonso III (1248), um notável crescimento potenciado por diferentes fatores, onde se destacam, desde logo, as condições geográicas favoráveis, a riqueza do subsolo, mas também a capacidade produtiva dos mesmos. O aumento populacional condicionou o crescimento urbano através do aparecimento de novos bairros nas imediações exteriores das muralhas, que constituíram, por vezes, arrabaldes. Estes podiam ser simultaneamente urbanos, peri-urbanos e mesmo rurais, onde se implantaram oicinas, moinhos ou pequenas produções agrícolas de consumo diário. Por sua vez, ao longo do século XIII e XIV muitos aglomerados urbanos registaram novas e maiores cercas defensivas que passam a incluir os recém-surgidos bairros. Era, igualmente, nos sectores mais próximos da muralha que se organizavam as comunidades dos Judeus e, no caso dos aglomerados do sul, as mourarias. No entanto, sobretudo as judiarias acabaram por ser instaladas no espaço intramuros. Estas localizavam-se, por vezes, junto dos Paços e podiam possuir alguns equipamentos para uso exclusivo dos seus moradores, que incluíam, para além da 1 2 Departamento de História (ICS), Unidade de Arqueologia, CITCEM, Universidade do Minho. Departamento de História (ICS), CITCEM, Universidade do Minho. 145 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA sinagoga, estruturas como poços e açougue próprios, em virtude das respectivas imposições religiosas3. O desenvolvimento urbano medieval encontra-se intimamente relacionado com o incremento económico, designadamente através do crescimento comercial, fortemente alimentado pelas atividades artesanais e pelas produções agrícolas rurais. O mundo rural e os mercados urbanos são por isso indissociáveis. Igualmente, para que os camponeses possam fazer face às exigências monetárias senhoriais precisam do mercado urbano. De facto, dentro da economia urbana medieval, o comércio e o artesanato constituíam as duas atividades com maior preponderância para a origem e desenvolvimento da cidade4. A relação entre elas é pois inseparável, uma vez que os artesãos, na sua maioria, eram simultaneamente comerciantes, que vendiam diretamente uma parte da sua produção ao público. Todas as cidades produzem ou vendem o máximo de bens para o consumo urbano e para integrar circuitos comerciais mais vastos. Todavia, a importância relativa entre a atividade comercial e a produtiva (artesanal) varia de cidade para cidade. 1. A orgANIZAção DA CIDADE MEDIEVAl PorTUgUESA Na generalidade, as cidades medievais portuguesas assumem-se como centros produtores, consumidores e de distribuição ou troca. Na realidade, os locais destinados ao comércio e à produção estavam entre aqueles que maiores implicações tinham na organização do espaço urbano. Referimo-nos, concretamente, aos locais de venda ao ar livre e aos açougues, entre outros5. A atividade comercial manifesta-se inicialmente nas feiras e nos mercados, segundo uma hierarquia que vai desde o simples mercado até à feira regional, ou em algumas cidades até à grande feira internacional. O mercado de carácter local e diário era realizado dentro das muralhas. Todavia, existiam igualmente espaços para trocas comerciais localizados normalmente nas imediações das portas das muralhas. Tratava-se de feiras de âmbito regional e de menor periodicidade que podiam ser instituídas por carta régia ou senhorial – como as feiras francas. Estes espaços recebiam o nome de campo da feira, largo, rossio ou terreiro, e rapidamente se rodeavam de construções. Todavia, a cidade, para além de um local de comércio, cidade mercantil e de consumo, é igualmente, um centro de produção6. Algumas atividades produtivas exigiam determinados 3 4 5 6 146 Rossa, 1995, p. 233-323. Le Gof, 1992, p. 62. Andrade, 2003. Rossa, 1995, p. 233-323. A INFLUêNCIA DAS ATIVIDADES ECONÓMICAS NA ORGANIZAÇÃO DA CIDADE MEDIEVAL PORTUGUESA tipos de construções, tais como os açougues ou os pelames que, por sua vez, condicionavam a estruturação da paisagem urbana. Procuraremos, de seguida, através da análise dos casos das cidades de Braga e do Porto, contribuir para avaliação da inluência das atividades económicas na organização dos espaços urbanos medievais. 1.1 A cidade de Braga A emergência e a organização da cidade medieval de Braga encontram-se assinaladas, entre outros, pela sagração, em 1089, da Catedral românica, mandada construir pelo arcebispo D. Pedro. Importa, todavia, referir que a cidade medieval de Braga se encontra ediicada sob o quadrante noroeste da cidade romana de Bracara Augusta. Naturalmente, o núcleo medieval irá dotar-se das infraestruturas necessárias para o seu normal funcionamento, na qual pesa, logicamente, a sua condição de feudo eclesiástico. Contudo, o plano urbano medieval encontra-se, ainda, marcado pela morfologia herdada do período romano, no qual se destaca, desde logo, a muralha do Baixo Império, cujo traçado norte será incorporado no sistema defensivo medieval até aos inícios do século XIV7. Posteriormente, ao longo dos séculos XIV e XV a cidade irá crescer para N/Nordeste acompanhada pelo alargamento do perímetro da muralha. (Fig. 1) Entre os séculos XI e XIII o núcleo urbano amuralhado irá permanecer bastante reduzido, encontrando-se a Sé Catedral em posição periférica relativamente ao conjunto ediicado8. Porém, a pequena cidade medieval irá crescendo, de forma lenta e orgânica, dentro dos seus sucessivos perímetros defensivos, até ao século XV, momento em que a Catedral passa a constituir, de facto, o elemento central do espaço urbano deinido pela muralha dita fernandina9. Na realidade, as primeiras transformações planiicadas só se farão sentir nos inícios do século XVI, quando o arcebispo bracarense, D. Diogo de Sousa, decide levar a cabo um programa de modernização, embelezamento e ampliação da pequena cidade medieval, inluenciado pelas novas conceções de espaço urbano, surgidas com o Renascimento europeu10. A planiicação urbanística encetada por D. Diogo de Sousa contemplou, não só a regularização de algumas ruas na zona intramuros, como, também, a abertura Ribeiro, 2008, I, p. 148. Ribeiro, 2008, I, p. 149. 9 Ribeiro, 2008, I, p. 150-152. 10 Ribeiro, 2009/2010, p. 190-200. 7 8 147 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA de novos campos e eixos viários na envolvente da cidade, com o claro objetivo de favorecer a sua expansão periférica11. Fig. 1. Planimetria geral do território desde a época romana até à Idade Média12. 1.1.1 A cidade medieval de Braga como centro de produção artesanal O desenvolvimento da cidade de Braga na Idade Média, à semelhança do que ocorre com outros núcleos urbanos, encontra-se relacionado com o crescimento económico, designadamente através do incremento comercial, alimentado em larga medida pelas produções agrícolas rurais, mas também pelas produções artesanais/ industriais realizadas nas cidades13 e pelos produtos importados. 11 12 13 148 Ribeiro, 2009/2010, p. 190-200. Ribeiro, 2009/2010, p. 190. Le Gof, 1992, p. 62. A INFLUêNCIA DAS ATIVIDADES ECONÓMICAS NA ORGANIZAÇÃO DA CIDADE MEDIEVAL PORTUGUESA Importa referir desde logo que, na cidade de Braga, feudo eclesiástico, o grande proprietário urbano e rural era o Cabido e o Arcebispo. Os dados existentes para os inais do século XIV, designadamente os constantes nos 1º e 2º Livro do Tombo do Cabido, permitem considerar que dentro da economia urbana medieval de Braga, o comércio e o artesanato constituíam as duas atividades com maior preponderância para o desenvolvimento urbano14. A cidade, para além de um local de comércio, cidade mercantil e de consumo, era igualmente, um centro de produção15. à semelhança de muitos outros centros urbanos, encontramos referência a um signiicativo número de proissionais que realizavam a vida económica da cidade. Para o século XIV, e tendo por base os referidos tombos, os dados de maior volume prendem-se com o setor do vestuário e o setor comercial, em particular alfaiates e mercadores, seguidos pelos setores metalúrgico e dos couros, como se pode ver na Tabela 1. Entre as ocupações contam-se alfaiates, tecedeiras, mercadores, regateiras, ferradores, ferreiros, sapateiros, mas também carpinteiros ou almocreves. Tabela 1. Dados referentes ao 2º Livro do Tombo do Cabido de Braga (ADB). ofícios Totais Alfaiata 1 Alfaiates 9 Jubeteiro 1 Tecedeira 1 Mercadores 9 Almocreve 1 Regateira 1 Ferrador 1 Açagador/espadeiro 1 Ferreiros 2 Couros Sapateiros 2 2 Construção Carpinteiro 1 1 Têxtil e Vestuário Setores 1393-94 Comercial Metalúrgico 12 11 4 Estes documentos pertencem ao Arquivo Distrital de Braga. O 1º Livro do Tombo do Cabido foi criticamente datado de 1369-1380 (Costa 1997-2000). O 2º Livro do Tombo do Cabido tem datas extremadas entre 1393-1394. 15 Andrade, 2003, p. 52-53. 14 149 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Ainda que baseado em fontes distintas, desta feita, o 1º Livro de Prazos das Propriedades do Cabido, os dados disponíveis para os inais do século XV invertem um pouco esta tendência, aparecendo em destaque os proissionais dos setores dos couros, da construção e do comércio. Seguem-se os setores do vestuário, metalúrgico, alimentar e têxtil, sendo ainda referidos os ourives e os barbeiros (veja-se Tabela 2). Tabela 2. Dados referentes ao 1º Livro de Prazos das Propriedades do Cabido (ADB). ofícios Têxtil e vestuário Setores Comercial Metalúrgico Couros 1465-1475 Alfaiata 1 Alfaiates 7 Jubeteiro – Tecedeira 1 Tecelão 2 Mercadores 3 Almocreve 6 Regateira – Ferrador 3 Açagador/espadeiro – Ferreiros Picheleiro 2 Ourives 5 Torneiro 1 Sapateiros 12 Ataqueiro 1 Totais 11 9 11 18 Correeiro 5 Carpinteiro 7 Pedreiro 1 Pintor 2 Serralheiro 4 Alimentar Carniceiro 4 4 Outros Barbeiros 7 7 Construção 14 Com o necessário relativismo que deve ser empregue na interpretação dos dados constantes das referidas fontes, podemos veriicar que na cidade medieval de Braga, à semelhança de outras, encontramos proissionais dos mais variados ofícios artesanais/industriais. 150 A INFLUêNCIA DAS ATIVIDADES ECONÓMICAS NA ORGANIZAÇÃO DA CIDADE MEDIEVAL PORTUGUESA Igualmente, à medida que avançamos no tempo, o número e o tipo de proissionais aumenta em consequência de vários fatores, entre os quais se destaca o crescimento urbano de Braga. Relembremos que os dados apontam para uma população de 1745 habitantes para o ano de 1477, e mais do dobro para o ano de 1514, mais precisamente 3575 habitantes16. Reira-se, ainda, a importância do aumento da especialização do sistema produtivo, associado a um aumento da qualidade dos produtos, para a existência dum maior e mais diversiicado número de proissionais. 1.1.2 A cidade medieval de Braga como centro comercial/mercantil Se as atividades produtivas são um aspecto extremamente importante da cidade medieval, a atividade comercial é-o ainda mais. Na verdade, estamos a falar de duas caras da mesma moeda, pois fabrica-se para vender e vice-versa. São dois momentos de um processo que é contínuo. Na realidade, muitos dos artesãos têm também a sua respetiva loja, vendendo nela directamente os seus produtos. Este tipo de comércio de rua parece constituir-se num elemento altamente caraterístico da paisagem urbana medieval em geral, e também da bracarense. Os espaços urbanos consignados à produção são na sua generalidade as ruas e praças, que assumem muitas vezes o topónimo da atividade artesanal, como é o caso da Rua dos Sapateiros, existente em quase todas as cidades medievais17. Todavia, invariavelmente, esta circunstância não signiica que aí não se encontrassem outras atividades. Fig. 2. Rua da Sapataria representada no Mapa das Ruas de Braga18 (1755). Marques, 1983, p. 55. Com uma designação que pode oscilar entre Rua da Sapataria, da Sapateira, dos Sapateiros, entre outros, (Marques et all, 1990; Andrade, 2003, p. 87-89). 18 Mapa das Ruas de Braga, I, 1989-91, s/p. 16 17 151 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Na Rua da Sapataria de Braga19, referida no 1º e 2º Livro do Tombo do Cabido (1369-80 e 1393-91, respectivamente) como Rua da Çapataria, residem no século XIV sapateiros, mas também tecelões, mercadores, advogados, entre outros habitantes cuja proissão desconhecemos. A atividade produtiva e comercial desta artéria medieval tem continuidade nos séculos seguintes, como atestam os Prazos do Cabido mas também a iconograia produzida no século XVIII para a cidade. De facto, a Rua da Sapataria de Braga aparece representada no Mapa das Ruas de Braga20, livro das ruas produzido pela instituição capitular em 1755, como uma via onde habitavam sapateiros, mas também onde se comercializavam e produziam produtos relacionados com o calçado. No entanto, também nela viviam outros proissionais, como por exemplo barbeiros e serralheiros que encontramos referidos nas casas nº 11, 12, 13, 15 e 1621. A partir da análise da representação da fachada das habitações da Rua da Sapataria no Mapa das Ruas de Braga podemos, igualmente, atestar a tipologia da habitação corrente medieval, ainda existente no século XVIII, composta por edifícios que possuíam lojas no rés-do-chão onde se realizava o comércio. De facto, na representação do referido Mapa é ainda visível um signiicativo número de edifícios residenciais que possuíam lojas no rés-do-chão22. Tabela 3. Proissionais que habitavam na Rua dos Sapateiros23 rua rua da Sapataria Casa nº Data do Contrato Proissão 11 28-04-1583 Sapateiro 12 14-02-1509 – 12 05-01-1512 Escudeiro 12 17-09-1516 Sapateiro 12 24-11-1671 Sapateiro 13 15-03-1561 Sapateiro 15 08-02-1564 Sapateiro 16 28-01-1514 Barbeiro 16 17-10-1522 Barbeiro A Rua da Sapataria aparece referida no 1º Livro do Tombo do Cabido (1369-80) como Rua da Çapataria, mudando o seu nome para Rua dos Sapateiros, nos inícios do século XVI, topónimo que mantém até ao século XIX, altura em que é praticamente toda destruída com a criação da atual Rua Frei Caetano Brandão, que rasgou a parte poente da cidade medieval no sentido N/S, afetando drasticamente a pequena Rua da Sapataria (Ribeiro, 2008, p. 467-472). 20 Mapa das Ruas de Braga, 1989/91, Braga, Arquivo Distrital de Braga, Vol. I e II. 21 Mapa das Ruas de Braga, II, 1989-91, p. 90-91. 22 Ribeiro, 2008, I, p. 466-468. 23 Mapa das Ruas de Braga, II, 1989-91, p. 90-91. 19 152 A INFLUêNCIA DAS ATIVIDADES ECONÓMICAS NA ORGANIZAÇÃO DA CIDADE MEDIEVAL PORTUGUESA Hoje em dia, a Rua da Sapataria praticamente já não existe, tendo sido destruída com o alargamento da atual Rua Frei Caetano Brandão. Dela sobreviveram as casas nº 15 e 16, onde residiram sapateiros, mas também barbeiros. Curiosamente, ainda hoje, na loja do rés-do-chão, da casa nº 15, se vende artesanato, como se pode observar na Figura 3. Para além da Rua dos Sapateiros, conhecem-se para a zona intramuros outras ruas cujos topónimos reletem algumas atividades económicas desenvolvidas na cidade medieval de Braga. A título de exemplo, reiram-se, para além da já mencionada Rua dos Sapateiros, as quatro mais signiicativas: a Rua da Triparia, a Rua da Erva, a Rua dos Fig. 3. Casas da antiga Rua da Sapataria (2008). Burgueses e a Rua da Olaria. A Rua da Triparia, atualmente fossilizada nas ruas de Santo António das Travessas e das Chagas, constituía uma artéria medieval onde muito provavelmente se vendiam as vísceras dos animais. Na realidade, na vizinhança da extremidade norte da Rua da Triparia localizavam-se os açougues da cidade, nas imediações da Sé Catedral (Fig.4). A primeira alusão aos açougues encontra-se no 1º Livro do Tombo do Cabido aparecendo esta estrutura como local de referência para identiicar o sistema viário medieval, como ocorre por exemplo no caso da Rua da Triparia, onde se lê: …na dita rua como vão da mão siestra do dito açougue para a dita Igreja de Santiago24. Os açougues devido à sua função, local onde se mata e vende carne, localizavam-se normalmente junto de linhas de água e sensivelmente afastados do centro urbano devido aos maus cheiros que as atividades aí desenvolvidas podiam provocar. Todavia, os açougues medievais de Braga, tal como em outras cidades como o Porto, localizavam-se nas imediações de um dos edifícios mais emblemáticos da cidade, a Sé Catedral, muito embora junto de uma linha de água. Na realidade, toda a zona envolvente da Sé Catedral de Braga era extremamente abundante em água, quer se tratasse de água que para aí era conduzida por canos, quer daquela que 24 ADB, 2º Livro do Tombo do Cabido, l.66 153 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 4. Mapa da cidade de Braga na época medieval (sécs. XIV e XV). brotava e corria livremente à superfície. Reira-se, a título de exemplo, a Fonte de S. Geraldo, situada sob a atual Igreja da Misericórdia que constituia desde a Idade Média um dos locais de abastecimento de água mais importantes intramuros25, mas também uma importante linha de água que corria, ainda no século XVI, sob a atual Rua do Souto26 e que naturalmente se prolongaria para ocidente, acompanhando o declive da topograia que ainda hoje carateriza a Rua de D. Diogo de Sousa. De facto, a abundante quantidade de água que existia nesta zona asseguraria o manancial necessário para as atividades associadas à utilização dos açougues. Igualmente, a topograia elevada do local asseguraria o escoamento necessário às atividades aí desenroladas. Reira-se que esta situação é semelhante à veriicada no Porto, por exemplo. 25 26 154 Ribeiro e Martins, 2012. Martins e Ribeiro, 2012. A INFLUêNCIA DAS ATIVIDADES ECONÓMICAS NA ORGANIZAÇÃO DA CIDADE MEDIEVAL PORTUGUESA Nos inais do século XV, a parte sul da Rua da Triparia passa a designar-se de Rua da Judiaria Nova, pelo facto dos judeus para aí serem deslocados. Por sua vez, a parte norte da Rua da Triparia passa, no século XVI, a designar-se de Rua das Chagas27. Na realidade, ainda nos inais do século XV, os açougues são mudados para fora de muros, para o Campo de S. Miguel o Anjo (Fig.5), onde se mantêm até 1787, quando se constrói um novo edifício para o matadouro da cidade28. Fig. 5. Mapa da cidade de Braga Primas (1755). A Rua da Erva, correspondente grosso modo à atual Rua D. Gonçalo Pereira, ocupava um local destacado na organização urbana medieval de Braga ao ligar a porta da muralha, designada de Santiago, à Sé Catedral. No largo em frente a esta porta, intramuros, realizava-se um mercado para venda de produtos hortícolas frescos, que deve ter dado nome à rua. Até aos inais do século XV era nesta rua que se situava a Judiaria, e onde se concentravam inúmeros locais de produção e venda, designadamente boticas29. A Rua dos Burgueses ligava a fachada principal da Sé à porta da muralha, designada de Maximinos, bem como à rua do mesmo nome localizada extramuros, que 27 28 29 Ribeiro, 2008, p. 424-428. Mapa das Ruas de Braga, II, 1989-91, 97. ADB, 2º Livro dos Prazos do Cabido, l.59, 60 e 61. 155 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA constituía umas das possíveis ligações à cidade do Porto. A Rua dos Burgueses, tal como o topónimo parece sugerir, era um local de concentração de homens ligados às atividades comerciais e produtivas. De facto, encontramos inúmeras referências à existência de locais de venda e produção de diferentes bens, mas também de moradas de homens de diferentes mesteres, tais como sapateiros, alfaiates, ferradores, almocreves e igualmente inúmeros mercadores30. No lado norte, no extremo nascente da Rua dos Burgueses, localizavam-se os açougues, que se manterão nesse sítio até ao século XV, altura em que são deslocados para fora dos muros da cidade, tal como já referido. Igualmente, o largo em frente à fachada principal da Sé passa a designar-se de Praça do Pão, desde os inais do século XV31. Nos inais deste século, a Rua dos Burgueses irá conhecer a alteração do seu nome para Rua de Maximinos, apropriando-se do topónimo que pertencia à artéria por onde se prolongava extramuros. A razão que parece justiicar esta alteração é a transferência da zona comercial da cidade para a Rua do Souto e para a Arcada do Castelo, como veremos mais adiante32. Por im, reira-se a Rua da Olaria, situada em frente da “porta do sol” da Sé Catedral. Este topónimo encontra-se certamente relacionado com a existência neste local de um mercado de olarias33. As escavações arqueológicas realizadas na área da atual Rua da Nossa Senhora do Leite, correspondente à antiga Rua de Oussias, que circunda a cabeceira da Sé, permitiram exumar uma grande quantidade de fragmentos de cerâmica, que possibilitaram a reconstituição de formas inteiras e admitir a existência, neste local, de um centro de produção ou venda de cerâmica nos séculos XIV/XV34. Para Braga, para além das ruas onde se situavam locais destinados à produção e simultaneamente ao comércio, temos igualmente informação relacionada com os espaços destinados especiicamente a esta última atividade. É o caso do mercado de forragens, já referido, nas imediações da Porta de Santiago, mas também de grande parte da área envolvente da Sé Catedral, que se constitui desde o século XIV como um grande mercado, muitas vezes designada nos documentos medievais de Praça 3 5 , onde se vendiam olarias, arcos, santos, panelas, e a partir de inais Ribeiro, 2008, p. 411-478. Ribeiro, 2008, p. 475-480. 32 Ribeiro, 2008, p. 473-478. 33 Ribeiro, 2008, p. 439-442. 34 Ribeiro, 2008, p. 440; Gaspar, 1985, p. 51-125. 35 A.D.B. 1.º Livro de Prazos das Propriedades do Cabido, l. 34v, onde se lê: “… umas casas sobradadas que estão na Praça desta cidade de Braga…” 30 31 156 A INFLUêNCIA DAS ATIVIDADES ECONÓMICAS NA ORGANIZAÇÃO DA CIDADE MEDIEVAL PORTUGUESA Fig. 6. Mapa de Braunio (1594). do século XV, se passa a vender o Pão36. Curiosamente, o lado norte da Catedral fazia a transição para a residência dos arcebispos, não se registando aí atividade comercial37. Reira-se que este tipo de situação se veriica, igualmente, na cidade medieval do Porto, como analisaremos ao longo deste trabalho. Por im, reira-se ainda a Praça do Peixe localizada nas imediações da Porta Nova, na zona intramuros, onde o arcebispo D. Diogo de Sousa mandou fazer um mercado coberto para o peixe. Tratava-se de uma praça de estrutura retangular, com aproximadamente 11,22 m x 7,26 m de lado formada por 6 colunas, que permitiam que servisse de todos os lados, segundo uma descrição do século XVIII38. Esta pracinha conheceu vários designativos até meados do século XVIII, sendo chamada de Praça do Pescado, da Hortaliça e Praça do Pão, entre outros39 (Fig. 5). Para a zona extra-muros merece particular destaque a zona dos Pelames, localizada no im da Rua dos Pelames, actual Rua de S. Geraldo, junto à ponte 36 37 38 39 Ribeiro, 2008, p. 446-449. Acerca do Paço Arquiepiscopal pode ler-se Ribeiro, 2011. A.M.B. Livro da Cidade, vol. I, f. 93. Ribeiro, 2008, I, 390. 157 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 7. Tanques dos pelames representados na planta topográica de 1883/188437. com o mesmo nome, que atravessava o rio Este e permitia a ligação para o Porto. O trabalho das peles terá sido uma atividade com algum peso em Braga, a antever pela existência de 37 pelames de sapateiros, mencionada no 4º Tombo do Cabido de meados do século XV40. A localização destas estruturas aparece representada na primeira cartograia conhecida para Braga, vulgarmente conhecido como Mapa de Braunio, de 1594 (Fig. 6), na parte sul, mas também na planta topográica de 1883/1884 (Fig. 7). ADB, 4º Livro do Tombo do Cabido, l.9 V. Planta elaborada pelo engenheiro civil Francisco Goullard, na escala 1/500, pertencente à Câmara Municipal de Braga, gentilmente cedida à Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho, instituições a quem agradecemos. 40 41 158 A INFLUêNCIA DAS ATIVIDADES ECONÓMICAS NA ORGANIZAÇÃO DA CIDADE MEDIEVAL PORTUGUESA Assim, através dos dados recolhidos para a zona intramuros, nota -se uma concentração dos setores produtivos nas ruas do quadrante sudoeste da cidade. A justiicar esta localização devemos desde logo considerar o facto de se tratar do setor mais antigo, onde a cidade terá estado acantonada desde o século VIII até aos inais do século XIII, inícios do século XIV, momento em que a muralha medieval é alargada para norte e nordeste42 (Fig. 1). A extensão da cerca defensiva para norte, a partir dos inícios do século XIV, e sobretudo as intervenções urbanísticas do arcebispo D. Diogo de Sousa nos inícios do século XVI, designadamente a criação da estrebaria e estalagem junto ao castelo, extramuros, a regularização da Rua do Souto, a abertura da Rua D. Diogo de Sousa e da Porta Nova e a criação da Praça do Peixe, bem como da estrebaria e estalagem na referida porta, terão estado na origem da transferência da zona comercial da cidade para a Rua do Souto e para a Arcada do Castelo. Deste modo, esta área passa a constituir uma das zonas de entrada preferenciais na urbe, contribuindo para a dinamização de outros pólos comerciais e artesanais que permitiram o crescimento periférico da cidade43. 1.2 A cidade do Porto A cidade do Porto na Idade Média, até ao século XV, e provavelmente já desde a época romana, assentava em dois pólos de centralidade, a zona alta e a zona baixa. O primeiro, situa-se no Morro da Sé, onde existem vestígios da muralha de fundação romana, reconstruída no século XII; o segundo, localizado na zona ribeirinha junto ao Rio Douro, na área da Praça da Ribeira e da Alfândega, onde se encontram igualmente vestígios de ediicações romanas. As artérias principais de ligação entre ambos os polos, através das Ruas da Bainharia e dos Mercadores, terão assumido desde cedo um papel estruturante na organização do espaço. A muralha gótica do século XIV irá, inalmente, englobar esses dois polos na mesma cintura defensiva, assim como outros espaços contíguos. Ao longo dos séculos XIV e XV, e talvez mesmo antes, veriica-se uma crescente airmação da zona ribeirinha e do eixo Rua da Bainharia e Rua dos Mercadores, como área mais dinâmica e central do ponto de vista económico e social, em detrimento da zona alta, no Morro da Sé44 (Fig. 8). Fontes et all, 2010, 255-262. Ribeiro, 2008, I, 475. 44 Melo, 2009, I, p. 217-250. Cf. também Oliveira, 1973, sobretudo nas p. 179-260, que fornece importantes elementos de relexão sobre a evolução histórica do urbanismo da cidade do Porto; Basto, 1962, p. 143; Osório, 1994, p. 108-109; Sousa, 1994, p. 124-136 e ss. Encontram-se com frequência nos documentos exemplos que demonstram tal tendência, e que as autoridades senhoriais da cidade, bispo e cabido, 42 43 159 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 8. Mapa da cidade do Porto nos séculos XIV e XV. 1.2.1 Morro da Sé e zona alta A cidade alta vai-se airmando como zona de pendor aristocrático ligado ao senhorio do bispo e cabido. No entanto, isto não signiica que a parte alta não conservasse, apesar de tudo, importantes funções económicas no âmbito dos mesteres e das atividades comerciais. Os carniceiros, por imposição legal, exerciam aí o seu mester, quase em exclusivo, nos açougues, e regra geral moravam nas suas proximidades, em particular nas Ruas da Penaventosa e das Aldas. Em algumas artérias, como a Rua da Sapataria ou a das Tendas, que vizinhavam com os açou- procuravam pela via normativa combater. Tal se veriica, por exemplo, quando a 25 de Junho de 1331 o bispo e o cabido fazem um acordo com o concelho, entregando os pesos da cidade ao município, para sempre, mas com a condição expressa de nunca saírem para fora da cerca velha , ou no máximo entre a Cruz do Souto e o Cima das Eiras. Em 1393 sabemos que os pesos da cidade estavam numa casa da rua da Sapataria na cerca velha (Arnaldo Sousa Melo, 2009, I, p. 218, nota 2). 160 A INFLUêNCIA DAS ATIVIDADES ECONÓMICAS NA ORGANIZAÇÃO DA CIDADE MEDIEVAL PORTUGUESA Fig. 9. Zona alta da cidade do Porto na Idade Média (Oliveira, 1973, p. 256 adaptado). gues, concentravam-se numerosos e variados mesteres: sapateiros, tendeiros e outros (Fig. 9)45. A feira semanal da cidade continuava a ter lugar no Rossio junto à Sé. Ainda hoje, na sua fachada principal, se conservam as medidas padrão do Porto, a vara e a meia vara, essenciais a esse comércio e ao realizado na Rua das Tendas, que desembocava mesmo em frente dessa entrada nobre da catedral46. Reira-se, ainda, a zona da Rua das Aldas, onde se concentravam várias moradas de carniceiros, na proximidade dos açougues, e onde se localizavam armazéns ou espaços de acabamentos de couros: as seedas do bispo47. Melo, 2009, I, p. 218-220 e 239-242. Sousa, 1994, p. 122-155, esp. p. 148-155; Osório, 1994, p. 89-180; Oliveira, 1973, p. 217-258; Real, 2001, p. 9-19. 46 Melo, 2009, I, p. 240. Real, 2001, p. 13; Real, 1984, p. 36-37; Barroca, 1992, p. 53-85, esp. p. 55, 63 e 67. 47 Melo, 2009, I, p. 219. 45 161 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Note-se que esta zona da parte poente e norte da cerca velha mantinha, portanto, um carácter maioritariamente mesteiral e mercantil. A aristocratização deste Morro da Sé ocorre mais na parte nascente e sul, em torno da Catedral e prolongando-se para fora desta muralha primitiva, pela Rua das Eiras. A envolvente do edifício da Sé representa muito bem a divisão espacial do conjunto dessa zona alta. Física e simbolicamente, a Sé fazia a ligação e a separação entre dois tipos de áreas: a comercial e mesteiral, de intensa atividade económica; e a zona mais residencial e aristocrática, onde se incluem os Paços do Bispo e as residências dos cónegos. O edifício da Catedral contribuiu assim para delimitar esses dois mundos48 (Fig. 9). O que não impede que, ainda assim, nessa Rua das Eiras, mas sobretudo na sua continuação na Rua de Cimo de Vila, no Morro da Cividade, se encontre novamente uma zona de concentração de vários mesteres, em particular sapateiros, ferreiros e trapeiros, entre outros. Ou seja, vários mesteres e funções comerciais se mantiveram na zona alta formada pelos morros da Sé e da Cividade. Esses mesteres ixaram-se preferencialmente na Rua de Cimo de Vila e no Morro da Cividade, por um lado, e na parte Oeste/Norte do Morro da Sé, por outro. Isto é, em duas extremidades opostas, do conjunto destes dois morros (Figs. 8, 9 e 10)49. 1.2.2 Cidade alta/cidade baixa Fora da cerca velha, mas muito junto dela, encontravam-se os pelames, na zona da conluência da Rua do Souto com o Rio de Vila, ou seja suicientemente próximo do açougue, mas fora da cidade alto-medieval, obedecendo a um modelo espacial bem conhecido e difundido (Fig. 8). Os Pelames apresentavam elevada concentração de tanarias, constituídas por cubas e tinas de madeira para curtição de peles, tendo conhecido um forte desenvolvimento ao longo dos séculos XIV e XV. Ao longo deste último século, sobretudo desde os seus meados, incrementa-se nesta zona a construção de pelames cavados na rocha, surgindo os topónimos de Rua dos Pelames e Morro dos Pelames, provavelmente já em inais do século XV, ou no século XVI. Reira-se que, com a construção da muralha gótica e com a expansão da cidade dos séculos XIV e XV, os pelames, contrariamente ao que se veriica em outros aglomerados, não foram desviados para espaços mais afastados, pelo contrário até se reforçam e expandem nesta zona e áreas anexas. Esta situação atípica pode encontrar explicação no facto de não haver outra localização viável e próxima, tendo em conta a acidentada topograia da cidade, a rede hídrica e a importância desse sector na economia portuense. A tudo isto podemos acrescentar 48 49 162 Melo, 2009, I, p. 241. Melo, 2009, I, p. 218-220 e 239-242. A INFLUêNCIA DAS ATIVIDADES ECONÓMICAS NA ORGANIZAÇÃO DA CIDADE MEDIEVAL PORTUGUESA a imprescindível dependência dos açougues, de onde os pelames não deveriam afastar-se demasiado50. Por seu lado, a Rua da Bainharia apresentava vários mesteres, em particular dos sectores dos couros e dos metais, muito especializados, tais como bainheiros, correeiros, seleiros, cutileiros, esteireiros, entre outros. Curiosamente, nos séculos XIV e XV não parece incluir grande quantidade dos dois mais numerosos mesteres da cidade: os sapateiros e os ferreiros. No século XIII, esta rua poderá ter conhecido maior concentração de ferreiros, quando se teria chamado Rua Faber ou Rua Ferrariis. A Rua dos Mercadores, que se lhe seguia, fazia a ligação principal entre essa zona alta e a zona baixa da cidade, ou ribeirinha51, como se pode observar na igura 8. 1.2.3 Cidade Baixa Na área ribeirinha concentravam-se os mais variados mesteres e mercadores. A sua presença nesta zona é atestada pelas várias casas-torre da Rua dos Mercadores e da Rua da Reboleira, entre outras, em parte ainda hoje visíveis, mas também através de importantes mercados regulares e tendas, especializadas ou não, aí existentes. Tudo isto articulado com as naturais atividades portuárias e marítimas que aí se desenrolavam (Figs. 8 e 10). Na zona baixa da cidade concentravam-se também as atividades administrativas, iscais e económicas do rei, nomeadamente através do conjunto formado pela Alfândega, a Casa da Moeda e os Paços Régios, que constituíam, juntamente com vários outros edifícios, um verdadeiro quarteirão do rei na cidade. Quanto aos mesteirais, destacava-se nesta área, da Praça da Ribeira para Poente, uma concentração de sapateiros, ourives, moedeiros e ferreiros, entre muitos outros. Para além disso, na área a nascente da Praça da Ribeira, na Lada, evidencia-se uma zona de signiicativa concentração de tanoeiros (Fig. 10)52. A Praça da Ribeira apresentaria uma elevada centralidade no espaço urbano, funcionando como um importante local de comércio e canal de acesso privilegiado à via luvial e marítima. Aí se localizavam certos mercados regulares especializados, alguns obrigatórios, como o do peixe, ou uma feira do pão. Na zona da Praça da Ribeira deviam coexistir mercadores, tabeliães, funcionários régios, tendeiros e diversos mesteirais53. Melo, 2009, I, p. 227-228; Melo, 2007, p. 121-156; cf. ainda Córdoba, 1990, p. 160-163; Leguay, 2005, p. 24-27; 38-39; 58-62. 51 Melo, 2009, I, p. 242. 52 Melo, 2009, I, p. 242-244. 53 Melo, 2009, I, p. 242-243; Sousa, 1994, p. 150-152. 50 163 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 10. Mapa da distribuição dos mesteres no Porto – séculos XIV e XV (Melo, 2009, I: p. 250). Os tendeiros encontravam-se em várias zonas e artérias da cidade, em particular na Rua das Tendas (no Morro da Sé), na Ribeira, ou ainda junto ao Mosteiro de S. Domingos, entre outros locais. A feira na Rua Nova foi transferida em 1413 para o espaço fronteiro ao mosteiro de S. Domingos, motivada pelos constrangimentos de construção dessa rua. Era igualmente junto a este mosteiro que estavam instaladas umas “boticas das judias”, mesmo no sopé da Colina do Olival, no cimo da qual se localizava a Judiaria. Umas escadas, decerto em localização semelhante às ainda hoje existentes, permitiriam o acesso rápido entre os dois locais. Esta zona de S. Domingos, como se vê, airmava-se cada vez mais, desde o início século XV, como um importante polo de comércio da cidade (Figs. 10 e 11)54. 54 164 Melo, 2009, I, p. 243-244. A INFLUêNCIA DAS ATIVIDADES ECONÓMICAS NA ORGANIZAÇÃO DA CIDADE MEDIEVAL PORTUGUESA 1.2.4 Expansão da urbanização para oeste Desde os inais do século XIV que se veriica um amplo e decidido processo de nova urbanização da cidade para Oeste, em espaço até então pouco habitado. Esta expansão veriica-se sobretudo para duas importantes áreas, uma situada a cota alta, e outra a cota baixa. A primeira corresponde ao Morro do Olival (Fig. 8), que se concretizou através da urbanização da parte superior da Rua do Souto e da construção da Judiaria Nova, passando a constituir uma nova parte alta da cidade. A segunda corresponde a uma expansão na zona ribeirinha, através da abertura da Rua Nova (Fig. 11). No primeiro caso estamos perante um desenvolvimento urbano com uma forte participação dos mesteirais e impulsionada sobretudo pelo concelho. A intervenção urbanística do concelho fez-se de forma bastante ativa, muito embora com preocupações de regulamentação aparentemente inferiores às que o Rei teve na abertura da Rua Nova. Na realidade, a expansão desta rua localizada na zona ribeirinha, promovida pelo Rei, apresenta um pendor mais aristocrático e uma vontade régia de planiicação. A cronologia da expansão de ambas as áreas parece ser contemporânea, iniciando-se em inais do século XIV e desenvolvendo-se sobretudo durante a maior parte da centúria seguinte55. Na parte baixa, a expressão melhor conhecida é a abertura da Rua Nova, já referida, que durou quase todo o século XV e provocou alterações urbanísticas e modiicações na ocupação social do espaço56. A construção desta rua terá por sua vez impulsionado uma expansão urbanística da cidade para Ocidente, em direção à Porta Nova (Fig. 11). Quanto a nós, esta evolução urbanística deve ser considerada no seu conjunto e não apenas centrada na abertura da Rua Nova, como tem sido prática frequente. Nesta zona veriicar-se-á uma concentração de vários mesteirais, particularmente dois mesteres que darão o nome a duas novas ruas, durante a segunda metade do século XV ou já no século XVI: a da Ourivesaria e a da Ferraria de Baixo. Ambos os mesteres, ourives e ferreiros, encontravam-se até então concentrados entre a Praça da Ribeira e a Rua de S. Nicolau. A abertura da Rua Nova terá contribuído para a deslocação parcial destes dois mesteres para Poente57 (Fig. 11). No cimo do Morro do Olival, na Rua do Souto, instalaram-se vários mesteirais, em particular ferreiros e sapateiros. No século XVI a parte alta desta rua acabou Melo, 2009, I, p. 221-226; 244-247. Melo, 2009, I, p. 245-247. Sobre a construção desta Rua, que se prolongou por mais de cem anos, cf. Amaral e Duarte, 1985; Santos, 2010; e Teixeira, 2010, p. 76-80. 57 Melo, 2009, I, p. 224-226 e 245-246. 55 56 165 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 11. Urbanização na zona Oeste da cidade do Porto, inais do séc. XIV e XV. por se transformar na Rua da Ferraria de Cima, hoje Rua dos Caldeireiros. Provavelmente ter-se-á veriicado ao longo do século XV uma transferência de parte dos ferreiros, e da sua confraria, da Rua de Cimo de Vila, para esta nova Rua (Fig. 11). De facto, os ferreiros e os sapateiros parecem corresponder às atividades mais numerosas e difundidas que encontramos na cidade, concentrando-se, em ambos os casos, em quatro zonas. Contudo, esta situação não impedia que coexistisse alguma dispersão destes mesteres, embora menos signiicativa. No caso dos ferreiros podemos estar perante um processo de transferência espacial dentro da cidade, de Nascente para Poente e, simultaneamente, na cota alta e na cota baixa. Este processo encontra-se plasmado nas seguintes expressões concretas. Na zona alta, a Confraria e Hospital dos Ferreiros e a Rua dos Ferreiros, em Cimo de Vila, parecem ter sido transferidos para o Morro do Olival. De facto, encontramos referências à sua presença em Cimo de Vila, desde pelo menos os inais do século XIV, as quais parecem desaparecer no século XV. Concomitantemente, no inal deste século e no XVI surge no Morro do Olival a Rua da Ferraria de Cima, antiga Rua do Souto, onde se localizava a Confraria e Hospital dos Ferreiros, que ainda hoje se conserva (Fig. 11). Por sua vez, na zona baixa, os ferreiros encontravam-se concentrados em torno de S. Nicolau, com confraria e hospital próprios, desde pelo menos meados do século XV. Desde o século XVI, esta confraria passou a designar-se de Ferraria de Baixo. Nesta zona constata-se a transferência de grande parte desses ferreiros 166 A INFLUêNCIA DAS ATIVIDADES ECONÓMICAS NA ORGANIZAÇÃO DA CIDADE MEDIEVAL PORTUGUESA para Poente, consequência provável da abertura da Rua Nova durante o século XV, dando origem ao surgimento da Rua da Ferraria de Baixo, já no século XVI. Entre estas duas artérias, surge a Rua da Ourivesaria, desde meados do século XV, como já se referiu (Fig. 11)58. A promoção do Morro do Olival, do ponto de vista urbanístico menos valorizada pela historiograia, foi, quanto a nós, determinante para a coniguração da cidade. Esta expansão, embora promovida pelo concelho, também beneiciou de uma acção régia muito especíica. Referimo-nos à decisão, expressa nas cartas régias de 1386 e 1388, de aí instalar, numa área limitada, a Nova Judiaria do Olival59. Nesta judiaria encontramos vários judeus mesteirais, concretamente alfaiates e ourives. Estes deviam exercer o mester em suas casas. Uma parte do que aí era produzido seria vendida pelas judias, nas suas boticas junto a S. Domingos, local próximo e com acesso rápido à Judiaria60 (Fig. 11). Finalmente, deve ainda destacar-se que no lado exterior da muralha gótica se localizavam as cordoarias, a Nova e a Velha, também designadas de Cima e de Baixo, ambas no Morro do Olival e voltadas a Poente. A sua localização encontrava-se articulada com a construção naval do arrabalde de Miragaia, onde se localizavam as moradas de mareantes e de cordoeiros61. No lado oposto, no Morro da Cividade, no inal da Rua de Cimo de Vila e no arrabalde de Santo Ildefonso, concentravam-se os trapeiros62 (Figs. 10 e 11). CoNClUSão Através da análise destas duas cidades, Braga e Porto, duas realidades urbanas muito distintas, localizadas desde logo em locais topograicamente muito diversos, com dimensões urbanas e demográicas também elas muito diferentes, procuramos ilustrar o modo como as atividades económicas inluenciaram e / ou foram inluenciadas pela evolução da paisagem urbana medieval. Uma conclusão que desde logo nos parece evidente é a de que os espaços centrais atraem e funcionam como locais de comércio por excelência. Por espaços centrais deve entender-se os que funcionam como força centrífuga e agregadora da cidade, mesmo que não ocupem o centro do plano urbano. Por exemplo, as Sés de Braga e do Porto funcionam como elemento agregador, do ponto de vista ideológico e social, mas também comercial e mesteiral. O mesmo se veriica em algumas praças como 58 59 60 61 62 Melo, 2009, I, p. 220-222; 238-239 e 244-246. Melo, 2009, I, p. 221; 243-244 e 246; Dias, 2006, p. 150-152 e 182-190. Melo, 2009, I, p. 221; 243-244 e 246. Melo, 2009, I, p. 222-223; 228; 238 e 244-245. cf. Oliveira, 1973, p. 229; e Barros, 2004, p. 430. Melo, 2009, I, p. 233-234 e 236. 167 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA é o caso da Praça da Ribeira e do Largo de S. Domingos, no Porto, ou em Braga, da Alfândega do Castelo. Do mesmo modo, as artérias intramuros que permitem aceder a esse(s) lugar(es) central(is), sobretudo quando ligam às portas da muralha, são igualmente importantes pólos de atividade comercial e artesanal. Reira-se, por exemplo, para Braga a Rua dos Burgueses, que ligava ao Porto, através da Rua de Maximinos, e a Rua da Erva, que permita aceder ao mundo rural, aos pelames e também ao Porto. Para a cidade do Porto mencione-se os casos das Ruas dos Mercadores e da Bainharia, bem como das Ruas das Eiras e Cimo de Vila, onde se concentravam diversas atividades comerciais e de produção. Por outro lado, merece destaque a constatação de que, quer o comércio, quer a atividade artesanal e industrial acompanham o crescimento urbano da cidade medieval e moderna. Esta situação encontra-se bem expressa na urbanização do Morro do Olival e da zona baixa ribeirinha, a Poente da Rua Nova, no caso da cidade do Porto. Na cidade de Braga, esta circunstância encontra-se ilustrada no crescimento urbano para Norte, através da urbanização da zona do Castelo e da Rua do Souto, para onde se deslocam as atividades comerciais a partir do século XVI. Uma outra conclusão prende-se com o facto das atividades económicas apresentarem distintas expressões físicas que marcam de forma diferenciada a paisagem urbana. Certo tipo de atividades produtivas, designadamente sapateiros e mesteres do couro em geral, do vestuário, do têxtil e ourives, entre outros, requeriam estruturas com menor impacto na paisagem urbana, desenvolvendo-se regra geral, no rés-do-chão das casas, apenas interferindo com a tipologia dos edifícios ao nível da sua composição interna e com a arquitetura da fachada. Pelo contrário, outras atividades económicas, designadamente as que se desenrolavam nos açougues, nos pelames, na Casa da Moeda, na Alfândega, mas também a construção naval e a cordoaria tinham implicações estruturais na organização do espaço urbano. Estas atividades desenvolviam-se, normalmente, em edifícios ou espaços próprios com características especíicas, condicionando a organização de todo o espaço envolvente, quer ao nível das estruturas de circulação, quer ao nível do próprio ediicado. Por im, reira-se ainda que se evidencia uma relação de concentração e /ou dispersão das atividades económicas urbanas em função dos setores económicos, das épocas e das realidades urbanas. Os fatores que condicionam esta situação podiam ser de ordem geográica, técnica, jurídica e senhorial, ou económica e social, resultantes de imposições normativas, de simples tradições, dos condicionalismos do processo de produção, ou de variados fatores gregários espontâneos. Merecem particular destaque os casos dos açougues e dos pelames, que requerem certos requisitos geográicos e técnicos, tais como a proximidade de cursos de água. Estes sectores estavam igualmente sujeitos à tributação de direitos especíicos e eram objecto de preocupações de higiene pública. Do conjunto de todos estes 168 A INFLUêNCIA DAS ATIVIDADES ECONÓMICAS NA ORGANIZAÇÃO DA CIDADE MEDIEVAL PORTUGUESA condicionalismos resulta que normalmente estavam obrigados a ocupar um lugar concreto do espaço urbano. Podemos ainda constatar que, quer as atividades produtivas, quer as comerciais, contribuíam para uma imagem diversiicada da cidade, com distintos ambientes sociais em variados cenários económicos, muito embora fossem também responsáveis por diversas formas de poluição atmosférica, sonora e dos recursos hídricos, entre outros. Todavia, a inluência das atividades económicas na organização de centros urbanos medievos é indiscutível. De facto, moldavam de forma marcante a imagem da cidade medieval, que se converte simultaneamente num grande espaço de mercado e de produção industrial e artesanal. FoNTES E BIBlIogrAFIA Fontes manuscritas ADB – Arquivo Distrital de Braga / Universidade do Minho 1º, 2 e 4 Livros do Tombo das propriedades do Cabido 1º e 2º Livro dos prazos das propriedades do Cabido. AMB – Arquivo Municipal de Braga Livro da Cidade, vol. I. Bibliograia AMARAL, Luís Carlos; DUARTE, Luís Miguel, Os Homens que pagaram a Rua Nova (Fiscalidade, Sociedade e ordenamento territorial no Porto Quatrocentista), Porto, 1985 (separata da Revista de História (Porto), VI, 1985, p. 7-96). ANDRADE, Amélia Aguiar, Horizontes urbanos medievais, Lisboa: Livros Horizonte, 2003. BARROCA, Mário J., “Medidas-padrão medievais portuguesas”, Revista da Faculdade de Letras, 2ª série, 9 (1992), p. 53-85. 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Através da análise de alguns exemplos concretos, designadamente das cidades de Braga e do Porto, procurámos contribuir para a problemática da inluência das actividades económicas na organização dos espaços urbanos medievais. Palavras-Chave: Plano urbano, Actividades económicas, Cidade medieval, Braga, Porto. rÉSUMÉ: L’objectif principal de ce travail est de faire une analyse sur le rôle des activités économiques dans l’organisation de la ville médiévale portugaise. On a commencé pour identiier quelles étaient les activités économiques plus importantes qui se sont développées dans ces villes, pour ensuite identiier le lieu qu’elles occupaient dans le plan urbain. Finalement, on a voulu savoir comment ces activités ont été inluencés par l’évolution du paysage urbain, ou, à l’inverse, comment le paysage urbain a été inluencé par ces activités. La réalisation de ces objectifs a été possible grâce au croisement de diférentes types de sources, parmi lesquelles se détachent les documents écrits, iconographiques et cartographiques, mais également les bâtiments historiques encore existantes dans les villes médiévales au Portugal. Notre contribution pour l’étude de l’inluence des activités économiques dans l’organisation de l’espace urbain médiéval est faite à partir de l’analyse de quelques exemples concrets des villes de Braga et de Porto. Mots-clés: Plan urbaine, Activités économiques, Cité médiéval, Braga, Porto. 171 El IMPACTO dE lAS ACTIvIdAdES INdUSTRIAlES EN El PAISAJE URbANO dE lA CORONA dE ARAgóN (SIglO Xv) gERMÁN NAvARRO ESPINACh1 Desde el año 2010 el quinto número de la revista Territori i Societat del Departament d’Història de la Universitat de Lleida ha pasado a estudiar preferentemente la evolución del paisaje histórico en los últimos dos milenios, cambiando hasta su propia denominación: Territori i Societat: el paisatge històric. En concreto dicho volumen presenta un dossier central dedicado a los estudios sobre la caracterización del paisaje histórico en el marco del proyecto catalán PaHisCat y el programa inglés Historic Landscape Characterisation. La edición corre a cargo del profesor Jordi Bolòs, director de la revista y especialista en historia medieval. La totalidad de trabajos que se recogen en esta iniciativa de primera magnitud abordan cuestiones referidas al paisaje agrario, dando por sentado que estudio del espacio urbano se contempla en la deinición de paisaje histórico pero no es una línea preferente de trabajo. La iniciativa es única dentro de la historiografía española y por tanto muy positiva pero a la vez invita a pensar en la falta de estudios monográicos existentes acerca de la evolución del paisaje urbano en España. En ese sentido, la oportunidad que ofrece ahora el presente coloquio portugués sobre la evolución del paisaje urbano es una buena oportunidad para proponer avances. 1 Universidad de Zaragoza. 173 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Si se observa asimismo el programa de este coloquio se comprueba rápidamente que de nuevo son los medievalistas quienes protagonizan la iniciativa en connivencia con arqueólogos y arquitectos. Algunas de las ponencias se centran además en el impacto de las actividades económicas en las ciudades lusas tanto a nivel del comercio y los espacios portuarios como en el de las actividades industriales. Es en este último ámbito donde se interpretan las medidas tomadas por los poderes municipales en la organización de los espacios urbanos dedicados a las manufacturas especialmente desde el ámbito de las fuentes normativas de los concejos: privilegios, ordenanzas, acuerdos, estatutos. En el ámbito español y más concretamente en el de los paises de la antigua Corona de Aragón la riqueza de las fuentes ha permitido ir más allá de esas disposiciones normativas contrastándolas con otro tipo de informaciones procedentes de los ricos fondos notariales y gremiales de algunas poblaciones. Sí que es cierto que en algunas de las principales ciudades existen obras pioneras en el estudio de las normativas municipales respecto a la organización del espacio urbano como es el caso del libro de la profesora María Isabel Falcón, Zaragoza en el siglo XV. Morfología urbana, huertas y término municipal, cuya edición original por parte del Ayuntamiento de Zaragoza es del año 1981 pero acaba de ser reeditado en 2010, con algunos 174 EL IMPACTO DE LAS ACTIVIDADES INDUSTRIALES EN EL PAISAJE URBANO DE LA CORONA DE ARAGÓN (SIGLO XV) planos interesantes que permiten ubicar el área del mercado en la capital y hasta los puestos concretos de cada una de los negocios especializados que allí se contemplaban gracias a las disposiciones del concejo cesaraugustano. Quizás, a falta de estudios monográicos sobre el impacto de las actividades industriales en el paisaje urbano de la Corona de Aragón en el siglo XV, uno de los ejemplos más contundentes que se pueden traer a colación desde la convergencia de fuentes escritas heterogéneas en el ámbito de la Corona de Aragón es el de la formación del barrio sedero de la ciudad de Valencia tras el despegue de este sector industrial en el siglo XV. Los primeros datos al respecto proceden de nuestro libro El despegue de la industria sedera en la Valencia del siglo XV (Valencia, Consell Valencià de Cultura, 1992), síntesis de nuestra memoria de licenciatura, que desemboco posteriormente en la tesis doctoral titulada Industria y artesanado en Valencia, 1450-1525. Las manufacturas de seda, lino, cáñamo y algodón (Universidad de Valencia, 1995, 4 vols.). Dos libros sirvieron de relejo de los principales datos aportados en dicha tesis, a saber, uno dedicado a la historia del gremio de velluteros o tejedores de terciopelo de seda titulado El Col·legi de l’Art Major de la Seda de València (Valencia, Consell Valencià de Cultura, 1996), y el otro la síntesis general de la propia tesis con el título Los orígenes de la sedería valenciana (siglos XV-XVI) (Ayuntamiento de Valencia, 1999). 175 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Sobre la presencia de topónimos referidos a actividades artesanales en la ciudad de Valencia ya se tenía constancia a través de obras como la de Manuel Carboneres titulada Nomenclator de las puertas, calles y plazas de Valencia con los nombres que hoy tienen y los que han tenido desde el siglo XIV hasta el dia (Valencia, 1873). En esta obra ya iguran algunas noticias a calles que desde la Edad Media tenían denominaciones de espacios artesanales: Aluderia, Argenteria, Armeria, Asaunadoria, Banys de la Sabateria, Bolseria, Caldereria, Calseteria, Coltelleria, Cordoneria, Corretgeria, Draperia, Draperia del Lli, Forn del Vidre, Freneria, Pelleria, Sabateria, Tapineria, Tints d’Olleta, Tints Majors, Tiradors Xics. En 1494 el viajero alemán Jerónimo Münzer describía Valencia como una nobilísima ciudad en una muy grande y hermosísima llanura, regada por doquier y fecunda en olivos, granados, limoneros, naranjos, cidros y otros innumerables frutales. En esa llanura, a poco espacio del mar, se hallaba situada esta preclara ciudad populosísima, mucho mayor que Barcelona, muy bien poblada y habitada. La contratación y comercio principal de toda España estaba cincuenta años antes en Barcelona –escribía Jerónimo Münzer, el viajero alemán– pero, después de la guerra civil catalana (1462-1472), los mercaderes se refugiaron en Valencia, cabeza entonces del comercio español. En el momento de su visita se estaba ediicando en la ciudad una casa magníica que llamaban Lonja, donde se reunían todos los mercaderes para tratar de sus asuntos. Era una casa alta, construida de piedra cortada y de esbeltas columnas. Su anchura era de treinta y dos pasos, y su longitud de sesenta y dos. Estaba terminada casi hasta la techumbre que también se concluiría rápidamente. Iba a tener su huerto con variados frutos y una fuente corriente, así como una torre altísima, con una capilla donde a diario se dirían dos misas. Le aseguraron los arquitectos al viajero alemán que faltaba todavía dos años para terminarla a la perfección. Sin duda alguna, entre los negocios que debían concurrir a esa Lonja Nueva y que más le llamaron la atención a Münzer estaban la venta de esclavos, la caña de azúcar, la grana, el aceite, la lana, las uvas pasas secadas, los higos, el arroz, la miel, la cera, el cuero, el esparto, la cerámica, y, especialmente, la seda. Ésta se criaba y trabajaba en gran abundancia y buena calidad, pues, de hecho, el viajero alemán vió inumerables talleres en la ciudad. Veinticinco años después del relato de Jerónimo Münzer, en 1519 un anónimo mercader milanés visitó también Valencia y anotó en su diario de viaje los aspectos que más le sorprendieron como, por ejemplo, el hecho de ser populosísima ya que, a su juicio, debía tener 100.000 almas. Era una ciudad bella y mercantil con artes y oicios separados por calles. Además había un lugar donde se reunían los mercaderes que se llamaba la Lonja y era un lugar muy hermoso, a modo de una sala grande de 60 por 40 brazas, con dos hileras de 6 columnas cada una en su interior. Al lado se estaba preparando un jardín plantado de manzanas rancias 176 EL IMPACTO DE LAS ACTIVIDADES INDUSTRIALES EN EL PAISAJE URBANO DE LA CORONA DE ARAGÓN (SIGLO XV) para que cuando hiciese calor pudieran ir a pasear y disfrutar los mercaderes. En esa época, según dicho mercader, además de Valencia las otras ciudades más pobladas de España eran Sevilla y sus 105.000 habitantes, Granada de 96.000 a 100.000, Toledo con 84.000, Córdoba con 56.000, o Barcelona con 42.000, todas las cifras en ese mismo año de 1519. Esta Lonja Nueva a que aluden el viajero alemán y el mercader milanés recibió el nombre de “Lonja de la Seda” en contraposición a la Lonja Vieja o “Lonja del Aceite”. En ambos casos ésos eran los productos más destacados que allí se contrataban a pesar de concurrir otros muchos. La Lonja Nueva es un ediicio gótico construido por iniciativa del municipio valenciano que tuvo como objetivo albergar además al Consulado de Mar, lo que explica que tenga dos cuerpos diferenciados, a saber, el salón de columnas como espacio de contratación y el pabellón del Consulado, enlazados ambos por el torreón por cuyo interior se alza la escalera de caracol. La primera piedra se puso el 7 de noviembre de 1482 aunque las obras no comenzaron hasta el 5 de febrero de 1483. El proyecto se adjudicó al maestro de obras Pere Compte, quien coordinó la construcción junto a Joan Ibarra. La última clave de la bóveda de la sala de columnas de 35,60 por 21,39 metros se colocó el 19 de marzo de 1498 alcanzando una altura de 17,40 metros, realizándose posteriormente las almenas decoradas con coronas y las diecinueve gárgolas zoomorfas y antropomorfas. La ediicación completa del torreón vino después, de hecho la primera planta del mismo se realizó entre 1498 y 1506 bajo las órdenes de Pere Compte. Sin embargo, al morir éste, fue el maestro Joan Corbera quien se encargó de concluir el ediicio hasta 1536 con ventanales y parteluces. De cómo debía estar decorado el interior de la Lonja Nueva se posee alguna descripción inédita de sus estancias que ya di a conocer en un dossier monográico sobre la Lonja que publicó la revista Arquitectura Técnica en su número 30 de 1997 del Consejo de Colegios Oiciales de Aparejadores y Arquitectos Técnicos de la Comunidad Valenciana. Se trata de un inventario de los ornamentos adquiridos para la capilla de la Lonja que las autoridades municipales ordenaron pagar el 7 de mayo de 1515. El administrador de la Lonja Nueva entregó 34 libras de moneda valenciana a Jaume Almenara, mercader cónsul de la ciudad, por una serie de objetos cuyo listado localicé en el Archivo Municipal de Valencia (Manuals de Consell, A-56, f. 237). Se dice, aunque no está documentado, que el arquitecto principal de la Lonja Nueva, Pere Compte, construyó una réplica de la escalera de caracol gótica para el ediicio en la casa primitiva del gremio de velluters. Al paso de los siglos se sigue conservando con su suelo original en el ediicio del Colegio del Arte Mayor 177 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Muro de la capilla del Colegio del Arte Mayor de la Seda de Valencia con la escalera de caracol gótica tapiada cuyas obras se realizaron a principios del siglo XVI. Abajo detalles de la escalera y del suelo de la misma junto a una lanzadera y un cortador de los fondos de esta institución gremial. 178 EL IMPACTO DE LAS ACTIVIDADES INDUSTRIALES EN EL PAISAJE URBANO DE LA CORONA DE ARAGÓN (SIGLO XV) de la Seda de Valencia. Los gastos de las obras de dicha escalera fechados en los años 1506-1507 los publiqué en mi libro sobre dicha institución. Hacia inales del siglo XV, como consecuencia de la enorme comunidad artesanal emergente, también la sociotopografía urbana había modiicado sus esquemas precedentes y diseñaba lentamente el nuevo barrio sedero de Valencia. Preocupado de lleno por todas estas cuestiones, Francisco Almela explicaba en su obra titulada El barrio sedero de Valencia. Localización. Ediicios. Obradores (‘porxes’) (Valencia, 1963) que en el año 1876 había en el moderno barrio sedero hasta 103 industriales localizados con sus nombres y apellidos, mientras que en el resto de áreas urbanas sólo vivían 56. Es decir, prácticamente la mitad de los sederos de la ciudad de Valencia a inales del siglo XIX estaban establecidos en torno a la sede del Colegio del Arte Mayor de la Seda en la calle del Hospital, a lo largo de la plaza de Pellicers, calle de Falcons, calle de la Jabonería Nueva, plaza del Molino de Na Rovella, calles del Pie de la Cruz, Santa Teresa y Moro Zeit, el Tossal, calle de Quart y ronda de Guillén de Castro hasta enlazar de nuevo con la dicha calle del Hospital. El autor insistía además en que este barrio sedero moderno había sido conocido en época anterior como barrio de las Torres de Macià Martí. Las prosopografías de nuestra tesis doctoral permitieron identiicar hasta 379 localizaciones topográicas de viviendas para el período 1450-1525. Al respecto, en lo concerniente a los artesanos de la seda, se conirman plenamente las parroquias de Santa Caterina y Sant Martí como aglutinadoras de una inmensa mayoría de oicios sederos. Santa Caterina posee 30 localizaciones entre 1478 y 1525, con una referencia puntual muy interesante que habla de la existencia, en dicha parroquia, de una “Calle de los Sederos” según expresa el inventario de bienes del difunto artesano del oicio Salvador Ferrando, a fecha 21 de agosto de 1466, al hablar de la ubicación y lindes de su casa. Por consiguiente, con proximidad al primitivo núcleo sedero del zoco judío de la parroquia de Sant Tomàs -luego Carrer de les Salines Velles- algunas familias de sederos conversos se concentraban en Santa Caterina. De forma paralela, los velluteros y otros oicios de la seda invadieron con su actividad la parroquia de Sant Martí (108 localizaciones), haciéndolo de una manera sistemática, calle por calle: Carrer de la Verge Maria de Gràcia (12 artesanos entre 1496-1519), Carrer del Fumeral (11 artesanos entre 1479-1523), Carrer de Sant Vicent (8 artesanos entre 1449-1521), Carrer de les Torres de Macià Martí (7 artesanos entre 1510-1525), Carrer de la Fusina (4 artesanos entre 1485-1524) y Plaça dels Pellicers (4 artesanos entre 1481-1517). Obsérvese cómo sólo seis calles reunen a 46 sederos, sobre todo velluters. No sin motivo, la calle de Gràcia, vecindario de la élite del Arte de la Seda, fue campo de batalla y escenario sobrecogedor del asesinato del terciopelero Vicent Peris, líder de 179 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA la revuelta de las Germanías, en su propia casa sita en dicha calle. Así lo relata una carta de los jurados al virrey con fecha 3 de marzo de 1522, narrando la represión llevada a cabo por el Marqués de Cenete. Los motivos de la concentración de los artesanos precisamente en ese área y no en otras debieron ser variados. Pero, atendiendo a los precedentes, hay que tener en cuenta que la primera cofradía de Sant Jeroni de los terciopeleros ya celebraba su misa patronal en la iglesia del convento de Sant Agustí de Valencia, donde tenía establecido un beneicio de 60 libras de renta anual para tal efecto. Esas misas debieron continuar desde 1477, el año de la fundación oicial de la cofradía, hasta 1479 en que las primeras ordenanzas de velluters establecen que la iesta patronal se celebre en la iglesia del santo en el camino de San Vicente. De esa manera, el origen del barrio sedero pudo estar en ese punto de encuentro colectivo y simbólico que fue la iglesia donde se celebraban las misas de la primitiva cofradía de los velluteros, la del convento de Sant Agustí, un ediicio que se encuentra en los propios límites del barrio sedero. Cierto es que la calle de Gràcia era una de las más largas de Valencia, que iba desde dicho convento a la Plaça dels Alls y que, hacia 1374, se llamaba en vez de calle de Gràcia Carrer de Sant Agustí. En esas condiciones, la compra en 1494 de la casa que después se ha conservado como sede del Colegio del Arte Mayor de la Seda de Valencia pudo estar en función de Detalle del plano de la ciudad de Valencia donde se localiza el barrio sedero junto a la Lonja realizado la concurrencia de talleres junto a a partir de los datos de la tesis doctoral de Germán Sant Agustí y devino la conirmación Navarro Espinaca. 180 EL IMPACTO DE LAS ACTIVIDADES INDUSTRIALES EN EL PAISAJE URBANO DE LA CORONA DE ARAGÓN (SIGLO XV) deinitiva de aquel área como epicentro de reuniones de la corporación. Algo que atrajo todavía más a los terciopeleros poderosos y detrás de ellos a los otros maestros del gremio, convirtiendo un entorno vecinal de raices parroquiales y confraternales en un auténtico barrio preindustrial de la seda cuyo epicentro devino para siempre el ediicio del Colegio del Arte Mayor de la Seda de Valencia. En conclusión, con este ejemplo de impacto de un sector artesanal en una de las principales ciudades de la Corona de Aragón se quiere reivindicar la importancia del contraste de fuentes documentales escritas, arqueológicas y toponímicas en el estudio del paisaje urbano medieval insistiendo en su valor como patrimonio digno de ser comprendido y protegido y yendo más allá de los temas que hasta ahora han caracterizado este tipo de estudios: descripción de los perímetros de las ciudades con sus murallas y fosos; catalogación de la trama urbana a través de calles, plazas y espacios públicos identiicables; delimitación de barrios e infraestructuras comunitarias (mercados, hornos, baños, carnicerías y ediicios emblemáticos); e historia de la vivienda urbana y su cultura material. De hecho, un ejemplo como el que se ha relejado insiste en la importancia que han tenido y tienen el contexto histórico y los cambios de época en la construcción del paisaje urbano, enfatizando su conexión dinámica con el desarrollo económico de nuestras ciudades en tiempos pasados, no cayendo en la visión formalista de un urbanismo que se explica por sí mismo al margen de la historia económica y social del territorio. BIBlIogrAFÍA APARICI, J. – (1996) Producció manufacturera i comerç a Vila-real, Ajuntament de Vila-real. – (1997) Manufacturas rurales y comercio interior valenciano. Segorbe en el siglo XV, 2 vols., tesis doctoral, Universidad Jaume I de Castellón. 181 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA – (2000) El Alto Palancia como polo de desarrollo económico en el siglo XV. El sector de la manufactura textil, Ayuntamiento de Segorbe. 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Utilizando como exemplo de estudo o processo de construção física do Porto medievo, tomaremos os mecanismos construtivos, sociais, políticos e económicos que condicionaram o seu desenvolvimento ao longo dos tempos como os representantes da realidade urbana, e os planos urbanísticos, posturas urbanas e cláusulas de contratos de propriedade, como representantes de um ideal simbólico e funcional ambicionado. A sua análise apoia-se no estudo evolutivo das diferentes etapas urbanísticas2 do Porto medievo que desenvolvemos durante o nosso trabalho de mestrado3, e que se situam entre 1114 e 1518. Embora a historiograia sobre a cidade medieval tenha já enorme tradição em Portugal, nomeadamente no que se refere a uma vertente mais global e institucional, a sua vertente ligada ao urbanismo e evolução espacial não está, nem de longe, tão desenvolvida, apesar da nossa rica cultura urbana4. Do mesmo modo, embora o Aluna de Doutoramento do Curso de História da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, CITCEM, helenalopes.t@gmail.com 2 Tendo em conta que a nossa prioridade de estudo é a compreensão do espaço físico da cidade, o urbanismo será um ponto fulcral do nosso estudo, analisado em dois campos diferentes, mas intrinsecamente ligados: o da evolução urbana (como crescimento físico, ao longo dos tempos, da cidade), e o do planeamento e gestão urbana (organização e administração do espaço público e privado). 3 Teixeira, 2010. 4 Com a exceção da obra de alguns poucos autores (Walter Rossa, Manuel Teixeira, Bernardo José Ferrão, Luísa Trindade, Manuel Real, José Ferrão Afonso, Rui Tavares, Pereira de Oliveira), acreditamos 1 185 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA estudo da paisagem urbana do Porto medieval não seja uma novidade no panorama historiográico português, também a sua vertente urbanística e espacial tem recebido menos atenção que a económica ou institucional. Assim sendo, pretendemos aqui, de algum modo, colmatar uma parte desta falha, tentando focar-nos na vertente urbanística, sem, contudo, descurar os vários factores (naturais, económicos, políticos, pessoais, de grupo) que se confrontaram simultaneamente, tentando perceber o crescimento urbano do Porto como resultado destas tensões. Para realizar o nosso estudo analisamos um vasto conjunto de bibliograia e de fontes documentais5, assim como cartográicas e iconográicas relativas à cidade do Porto. Daqui resultou não só uma base de dados que sistematiza a informação contida em prazos e atas de vereação relativamente à informação urbanística e construtiva, mas também esquemas cartográicos imprescindíveis para a compreensão do crescimento urbano do Porto, nomeadamente no que diz respeito às principais infraestruturas urbanas6. Resumindo, esta relexão procura refutar a tradicional divisão entre a construção planeada (ou idealizada) e a construção espontânea (ou real) da cidade medieval, e defender uma posição na qual ambos os tipos de construção se entrelaçavam na sua ediicação, independentemente de esta ser uma construção de raiz ou pré-existente. Acreditamos que as paisagens urbanas, pelo menos as que tinham um sistema institucional de governo, seriam o resultado de um cuidadoso desenvolvimento. Como refere José Mattoso7, a cidade era um centro político e, que ainda muito está por explorar em relação ao trabalho de investigação urbanística em Portugal. O estudo do urbanismo medieval ainda se pauta bastante pela metodologia deinida décadas atrás por Oliveira Marques e presente no “Atlas de cidades medievais portuguesas”, obra de síntese sobre a forma e a topologia urbana portuguesa. Todavia, o carácter sintético da informação exposta, sem referência a uma terceira dimensão e altimetria, acaba por condicionar o seu uso no âmbito da história do urbanismo, pois “impossibilita o reconhecimento seguro, a estruturação e evolução das formas, dos programas e dos contextos materiais”. Trindade, 2010. 5 Relativamente à recolha de informação bibliográica consultamos uma série de autores ligados ao tema em questão, nomeadamente Armindo de Sousa, Luís Miguel Duarte, Luís Carlos Amaral, Manuel Real, Ferrão Afonso e Pereira de Oliveira. Quanto às principais fontes para o estudo desta problemática, procedemos a uma seleção da vasta documentação manuscrita e impressa relativa ao Porto medieval, nomeadamente nos Livros de Vereações, prazos religiosos (Livros de Pergaminhos do Arquivo Histórico Municipal do Porto e os documentos do Cartório do Cabido da Sé do Porto, nomeadamente os que se encontram nos denominados “Livros dos Originais’’, prazos camarários e “Corpus Codicum’’. 6 A nossa cartograia foi feita com o auxílio do programa CAD (Desenho assistido por computador), utilizando não só a sobreposição gráica de cartograia de diferentes épocas, (desde a mais atual até à planta de Balck de 1813), mas também a bibliograia da especialidade, fontes documentais, iconograia de diferentes épocas, informação arqueológica e vestígios visíveis na cidade actual. Entre todos estes elementos foi possível entrever-se com alguma segurança vários dos traços mais signiicativos da evolução urbana e, até, alguns aspectos das razões e das causas especíicas de certos problemas dessa evolução. 7 Mattoso, 1992. 186 ENTRE OS “IDEAIS E A REALIDADE”. A URBANIZAÇÃO DO PORTO NA BAIXA IDADE MÉDIA como tal, legitimaria o seu poder pela intenção de sujeitar o espaço circundante a uma ordem racional. Assim, é natural que a racionalidade estivesse presente numa vertente mais pragmática da construção urbana, sendo preconizada por preceitos que acreditamos serem tudo menos espontâneos ou desprovidos de ponderação. Pensamos, por isso, que o processo de desenvolvimento urbanístico obedecia a um delicado equilíbrio de distintos pressupostos: por um lado, tínhamos aquilo a que chamamos de ideais (que eram normalmente noções jurídicas, estéticas e planeadas daquilo que se desejava para a imagem da cidade) e, por outro, aquilo a que chamamos de propósitos (necessidades pragmáticas e racionais do espaço urbano). Para analisar a realidade física do Porto medieval julgamos ser importante começar pela apresentação dos factores físicos (geográicos e humanos) que serviram de matriz à coniguração e desenvolvimento da cidade medieva. A localização no Morro da Penaventosa, um ponto de grande altitude rodeado de vários recursos agrícolas, minerais e hídricos, foi o factor que proporcionou a este morro uma situação estratégica: boas condições defensivas, domínio sobre a envolvente, convergência de vias terrestres e um povoamento constante desde a época castreja. A topograia acidentada acabou por condicionar o traçado dos arruamentos e a ocupação humana, que procurou seguir as curvas de nível nas encostas. Do mesmo modo, as características físicas do rio e os seus limites condicionaram a morfologia da cidade, assim como seus atravessamentos luviais e eixos viários. Centrando-nos agora no espaço construído pelo homem, especiicamente nos principais sistemas de povoamento e vias de circulação que se mantiveram até à cidade medieval, ressaltamos a época castreja. É a partir deste momento que estão lançados os alicerces de qualquer outra concentração urbana posterior, dando-se início a um particular processo de urbanização, consolidado no período romano, que se tornou fundamento urbano da cidade Fig. 1. Localização estratégica do Morro da Penamedieval. Ainda na época romana, ventosa. destaca-se a passagem pelo burgo da importante estrada de ligação entre Lisboa e Braga que, além de formar um eixo urbano8 de ligação entre a Penaventosa e a zona ribeirinha, acabou por estruturar não só a cidade romana, mas também a medieval depois dela. Outro factor relevante foi o desenvolvimento da zona ribeirinha como resultado do estabelecimento de 8 Alinhado a “grosso modo” com a atual Rua dos Mercadores. Teixeira, 2010. 187 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 2. Esquema espacial do Porto no século XII. um posto ligado à travessia luvial desta via. Durante a Alta Idade Média vemos a cidade regressar ao seu ponto de origem, o alto do morro da Penaventosa, tomando funções bélicas através da rectiicação da muralha, e religiosas, na implantação do importante elemento em redor do qual a cidade medieval se organizou, a Sé9. Em inícios do século XII o Porto seria uma pequena povoação que, à exceção dos pequenos aglomerados junto ao rio e à Cividade, se concentrava no burgo fortiicado em redor da Sé. A partir do século XIII começa a denotar-se o seu crescente desenvolvimento que, atendendo à base topográica de relevo acidentado, resulta num traçado viário irregular e sinuoso10. Embora nesta época se saliente mais o pragmatismo do que um ideal urbanístico (tendo em conta que a cidade assenta o seu esquema espacial de ocupação numa morfologia que não a de matriz geométrica), existe, contudo, uma lógica própria de ocupação do espaço11. Numa primeira instância, foi a base Real, 2001.Teixeira, 2010. Teixeira, 2010. 11 Tal é comprovado pela procura sistemática da exposição solar mais favorável, pelo decalque das curvas de nível como forma de vencer os desníveis, pela ocupação de terras altas por questões defensivas, pela proximidade às vias de comunicação, pela procura de canais de água e locais férteis. Do mesmo 9 10 188 ENTRE OS “IDEAIS E A REALIDADE”. A URBANIZAÇÃO DO PORTO NA BAIXA IDADE MÉDIA geográica que ditou a coniguração da cidade, desde o traçado dos caminhos e estradas (seguindo a menor pendência), à implantação dos edifícios mais emblemáticos. Numa segunda fase, vemos que a cidade, no seu desenvolvimento, se constituiu por partes, sendo cada uma delas caracterizada por elementos de relevo, em volta dos quais se agregam edifícios. Assim, vemos que no Porto a construção se concentra em torno das principais vias de circulação (Rua dos Mercadores, caminho para Braga e caminho para Penaiel), dos principais polos ediicados (Sé e zona Ribeirinha) e das novas centralidades urbanas, umas de iniciativa régia (os Mosteiros mendicantes), e outras de iniciativa eclesiástica (Monchique, Ermida S. Nicolau e Cordoaria do Olival). Do mesmo modo também as atividades económicas (produção e comércio) se concentram em determinadas áreas e vias em função do mester (como os bainheiros na Bainharia e os mercadores na Rua dos Mercadores), reletindo a toponímia urbana o impacto da localização dos mesteres12. Seguindo a mesma lógica de ocupação do espaço por zonas temáticas, temos a concentração em função da distinção sócio/espacial. Numa época em que o poder eclesiástico era o principal a manifestar-se no espaço (através da Catedral, do Paço Episcopal e dos arruamentos de morada eclesiástica), destaca-se a concentração duma elite religiosa na área em torno da Sé. Quanto à elite burguesa esta espalhava-se pela Rua dos Mercadores, zona ribeirinha e também pela Sé. A distinção social é ainda acompanhada por diferenças na tipologia (os edifícios com oicina no rés-do-chão e habitação no primeiro piso seriam os mais comuns, as casas-torre, a exceção), e na qualidade construtiva (material, decoração, altura). Do mesmo modo a construção dos edifícios de mesteres segue regras próprias consoante a atividade a exercer (oicinas tapadas ou abertas para a rua, com diferentes tipos de tabuleiros e balcões)13. Mas o carácter pragmático da cidade medieval tem também lados subversivos, nomeadamente a falta de defesa e manutenção do modo, o carácter irregular e estreito que caracteriza muitas das ruas da cidade medieval tem uma razão de ser: a prevenção contra as intempéries, permitindo a proteção contra o sol e o calor e contra a chuva e o vento. Do mesmo modo também não importava que a largura das casas, e consequentemente dos lotes, fosse muito grande, pois o que interessava era a casa ter um acesso para a rua. Quando a cidade medieval começa a aparecer, o lote estreito e profundo estaria já consolidado, muito em parte pela forma como se “adaptava e respondia às necessidades da cultura urbana emergente”. Lavedan, P., Hugueney, J., 1974, pp. 1-58. Amaral, 2009. p. 42. 12 Os mesteres com carácter poluidor, ou que aproveitavam estruturas naturais ou urbanas próprias para elaboração da sua atividade, seriam colocados em zonas menos habitadas da cidade por razões pragmáticas de afastamento. Exemplo disso são as atividades de curtição, que se concentram no rio de Vila ( Pelames e Souto) e se afastam das zonas mais densamente povoadas por causa da poluição, ou as atividades de cordoaria, que pelo tipo de manuseamento especíico, se localizam nas encostas compridas abaixo do monte do Olival. Melo, 2009. 13 Teixeira, 2010. 189 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 3. Esquema espacial do Porto no século XIII. espaço público. Tendo em conta que o desenvolvimento é deixado inteiramente nas mãos dos moradores, é natural que as ruas e quarteirões tenham começado a ser construídos de modo a melhor se adequarem aos movimentos humanos14. Somente chegando ao século XIV é que vamos encontrar um período em que o diálogo entre os ideais e a realidade começa a ser deinitivamente marcante. Por esta altura, o espaço urbano do Porto era já maior em arrabalde do que em almedina, consequência de se ter tornado numa cidade decididamente comercial e marítima. Este crescimento urbano veriicou-se sobretudo no arrabalde ribeirinho (incluindo agora Miragaia), enquanto espaço apropriado para as atividades mercantis (movimentos de barcos e mercadorias, disposição de redes e percursos viários). Nesta altura a expansão da cidade terá sido certamente caótica, tendo em conta que a população, segundo os cálculos demográicos efectuados, quase duplica entre o século XIII e o século XV15. Neste cenário é lícito adiantar que um descontrole construtivo seria a consequência lógica, assim como novos problemas de circulação Se atentarmos nos modos de movimentação e deslocação humana, vemos que não é natural andar em grelhas ortogonais. Ou seja, havendo uma diagonal num quarteirão, o movimento mais lógico e instintivo é segui-la e não dar a volta. Kostof, 1999. 15 Sousa, 2000. 14 190 ENTRE OS “IDEAIS E A REALIDADE”. A URBANIZAÇÃO DO PORTO NA BAIXA IDADE MÉDIA e vivência do espaço. Torna-se assim necessária uma atuação mais eicaz e cuidada na ediicação do espaço urbano. A resposta a este problema pode subentender-se precisamente no signiicativo conteúdo da carta-sentença endereçada por D. Dinis, em 1316, ao Concelho16, na qual estão patentes indicações normativas relativas à urbanização do aglomerado, nomeadamente da zona ribeirinha. Nesta carta, reconhece-se, pela primeira vez, os rossios como terrenos de serventia pública que devem ser preservados e não ocupados por construções privadas, ao contrário do que era normal até aí17. Do mesmo modo começa a reconhecer-se o valor do alinhamento e da funcionalidade, passando o traçado dos novos arruamentos a ser objecto de prévia deliberação, em vez de resultado da conversão dos caminhos e azinhagas de expressão rural. Tal subentende uma prática, ainda que empírica, de ordenamento urbano de lugares públicos, desde rossios a ruas18. Fig. 4. Esquema espacial no Porto no século XIV. 16 A referida carta sentença vem dar resposta ao recurso do concelho do Porto que apelara ao rei para interceder aos agravos de vária ordem que dizia receber do bispo e seus oiciais, nomeadamente na ocupação indevido dos espaços que deviam ser públicos. Oliveira, 1973, p. 222–224. 17 Assim, em cumprimento do ordenado por D. Dinis, vai-se dar a posse ao concelho de espaços que eram seus mas haviam sido indevidamente apropriados, principalmente na zona ribeirinha. OLIVEIRA, 1973. 222-225. Corpus Codicum, vol. I, p. 41, art. 261. 18 Oliveira, 1973, p. 222– 226. 191 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Voltando à referida carta-sentença, vemos que esta vem dar ao concelho uma maior atuação sobre o espaço físico, até então quase sempre controlada pelo poder eclesiástico (com exceção das intervenções urbanas da Coroa). Tal subentende uma responsabilização do concelho do Porto pela preservação dos espaços tidos como públicos, o que pressupõe a consciência da sua função e signiicado. Todos os factores atrás referidos levam-nos a crer que esta carta marcou um momento crucial da história urbanística do Porto, não só por ter sido provavelmente a primeira expressão conhecida de preocupação com o ordenamento e regulamentação do espaço urbano, mas também como modelo futuro de legislação e ordenamento urbanístico19. Testemunho disso é a abertura, já no reinado de D. Afonso IV, de espaços delineados segundo um traçado que respondesse a uma determinada função, como o arranjo do rossio no campo do Olival e a construção da Alfândega do Rei, iniciada em 1325, da qual ressalta a importância política20 e a inovação urbanística. Constituída por um conjunto amplo de construções e arruamentos com funções alfandegárias e viárias, a Alfândega régia tem como base um traçado que faz pressupor o seu deliberado planeamento. A articulação que cria entre a Rua da Alfândega e a Rua das Congostas21 vai precisamente preconizar novos valores urbanísticos de alinhamento e funcionalidade, cuja implantação no terreno vai acabar por organizar todo o espaço envolvente. O facto de esta construção estar inserida num período de airmação régia e de consolidação do Porto como polo comercial, pode indicar que a nova consciência de intervenção no espaço público22 está diretamente relacionada com a airmação do poder temporal ante o poder secular vigente. Outro equipamento de relevo que se enquadra num contexto de atribuição de maiores poderes ao concelho e que, simultaneamente, viu nele aplicados novos valores espaciais, foi o edifício dos Paços do Concelho. E são precisamente as suas características espaciais e arquitectónicas (a implantação em frente à Sé catedral, 19 Tendo em conta que as medidas nela contidas vão igurar depois noutros documentos e atuações sobre a cidade. Oliveira, 1973, p. 222–226. 20 Pois faz parte da estratégia régia de intervenção num dos espaços mais relevantes do Porto do século XIV, a área a oeste do rio da Vila, em terreno reclamado pela Coroa e Mitra simultaneamente. Tavares, Real, 1987. 21 Podendo esta última ser um caminho pré-existente que é somente rectiicado ou alinhado neste processo. Oliveira, 1973. 22 Para o bom funcionamento duma cidade comercial e marítima são imprescindíveis equipamentos adequados. Quando estes têm já uma escala considerável, assim como uma especiicação funcional complexa (arruamentos e diferentes infraestruturas), o melhor caminho para a sua rápida e eicaz implantação será, em nossa opinião, um planeamento prévio, de qualquer grau ou tipo que seja. 192 ENTRE OS “IDEAIS E A REALIDADE”. A URBANIZAÇÃO DO PORTO NA BAIXA IDADE MÉDIA e o relevo na paisagem utilizando uma tipologia de torre), que vão personiicar o afrontamento ao poder da Mitra23. Mas é com a construção da muralha gótica, o elemento medieval por excelência, que os novos pressupostos de intervenção no espaço vão ter, de modo incisivo, a sua inluência na urbanização do Porto medievo. Este elemento, que deine e condiciona toda a cidade, foi mandado erguer por ordem de Afonso IV24, enquadrando-se num contexto de acentuação do poder do rei na cidade. Surgiu como resposta a uma série de novas necessidades do tempo, nomeadamente de segurança25, prestígio e controle sobre a iscalidade26. Um dos aspectos mais inovadores desta muralha, e inequivocamente ligado a um pressuposto de ideal urbanístico, foi a sua implantação, que se baseava sobretudo em factores militares. Obra de homens bem conhecedores das artes militares, que sabiam de defesa, assalto, ângulos e estratégias de ataque, utilizou na sua construção altos muros fortiicados com parapeitos, ameias e várias torres de base quadrangular (onde se situavam as portas), dispostas ao longo dos muros, sobressaindo para cima e para fora, a “espaços ditados pela ocorrência das aberturas e pelas técnicas de defesa”27. Mas também razões pragmáticas estiveram presentes na construção da muralha gótica. Começando pelos factores que ditaram a sua delimitação, vemos que estes foram essencialmente de ordem prática: incluir áreas de valor defensivo, como o Morro do Olival, aproveitar os declives da zona e incluir áreas urbanizadas que estavam fora da proteção da muralha antiga (Cividade, Chã das Eiras e especialmente a Ribeira, devido à sua importância económica). Outro aspecto prático que se reletiu na construção da muralha teve a ver com a colocação das suas portas Para a localização deste equipamento a Câmara do Porto escolheu, num gesto simbólico e provocatório, o alto da colina, à entrada do burgo, entre a Rua de S. Sebastião e o Pátio da Sé. Com esta localização, ombreando com o Edifício do Bispo, ambos os edifícios passaram a formar os pontos de referência tutelares do velho burgo. Real, 2001. 24 Segundo Armindo de Sousa, a sua ediicação terá começado provavelmente em 1355, mas uma inscrição datada de 1348 encontrada no postigo do Carvão, na Ribeira, pode recuar o seu início a esta última data 163. Oliveira, 1973. 228. 25 Os primeiros que sentiram a sua necessidade terão sido os burgueses, sobretudo aqueles que tinham casa e negócio fora da zona amuralhada, agora pequena demais. Mas também os funcionários da alfândega, e a restante população deveria pensar o mesmo, procurando proteção eicaz contra os inimigos de guerra ou contra malfeitores, pois vivia-se um clima de guerra onde ainda não estavam a estabilizadas as relações com o país vizinho e reinava um clima de insegurança devido aos conlitos entre o Infante D. Pedro e seu pai D. Afonso IV. Ferrão, 1989; Sousa, 2000. 26 Ao vedarem o espaço e melhor vigiarem os acessos e a cobrança de portagens. Almeida, 1992, p. 138. 27 O impacto que esta muralha queria causar como obra defensiva acabou por também se manifestar num efeito visual extremamente poderoso, não só pela altura e robustez das muralhas, mas também pela amplitude do traçado e pelas numerosas torres, adarves e peitoris. Sousa, 2000, p. 140. 23 193 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 5. Coniguração da Muralha gótica. e postigos, que foi condicionada pelas principais vias pré-existentes de acesso à cidade28. É importante frisar que a muralha acaba por funcionar nesta altura como uma verdadeira matriz física da cidade coeva e da cidade futura, enquadrando o desenvolvimento espacial vindouro. Continuando o nosso estudo de um ideal urbanístico como ferramenta de construção do Porto medieval, segue-se, em ins do século XIV, a implantação da Judiaria do Olival, equipamento importantíssimo pela razão de que nele se desenvolveu o planeamento como ferramenta de intervenção no espaço. Até aqui poucas tinham sido as experiências urbanísticas na cidade (podemos considerar a da Alfândega a um nível muito básico), mas nenhuma, pelo menos que se saiba, teria sido elaborada seguindo um plano prévio como a Judiaria, primeiro, e a Rua 28 Quase todas as portas da muralha gótica faziam ligação com os caminhos regionais que desembocavam nas portas da muralha românica. Junto às portas foram-se formando aglomerados com o decorrer do tempo. O facto de serem locais de muito trânsito, aliado ao facto de servirem de iltros que controlavam as entradas e saídas da cidade, teve como consequência a concentração de construções suburbanas, nomeadamente habitacionais e comerciais, de pessoas que não queriam aceder à urbe e se icavam por aqui, partilhando vantagens como a localização. Teixeira, 2010. 194 ENTRE OS “IDEAIS E A REALIDADE”. A URBANIZAÇÃO DO PORTO NA BAIXA IDADE MÉDIA Nova, logo de seguida, ambas construídas num contexto da airmação do poder real e concelhio29. O conjunto urbano da Judiaria do Olival (instituído por D. João I por volta de 1386), foi criado com o intuito de isolar da restante população, e numa determinada área, uma comunidade “diferente”, mas ligada ao comércio internacional, cujos serviços se não podiam dispensar. A zona escolhida para a sua implantação, contrariamente ao que acontecia em outras cidades medievais, distanciava-se dos centros políticos e económicos do Porto medieval, mas tinha a vantagem de ser plana e desocupada, factor necessário à implantação de um conjunto ediicado de grande envergadura. Além do mais, situava-se junto a duas das principais saídas da cidade (estradas para a Póvoa e Braga), a elementos urbanos de relevo (rossio do Concelho, cordoaria do Bispo e cimo urbanizado da Rua do Souto) e dentro da proteção da muralha. Mas o que nos interessa aqui realçar é o carácter inédito da construção deste bairro na cidade. Primeiro devido à sua composição espacial geométrica (eixo central que formava um ângulo recto30), segundo porque foi uma construção planeada desde raiz, que começou pela delimitação dos arruamentos, realizando-se posteriormente a ediicação das casas, e terceiro porque a sua implantação em grande escala previa um loteamento em parcelas semelhantes. Aliando estes factores a Judiaria constituiu-se como um dos primeiros arranjos urbanísticos da cidade31, ainda que condicionado de algum modo pela ação conjunta do poder régio e eclesiástico que, com o objectivo de anular o seu impacto espacial, proibiu a elevação dos edifícios acima do casario envolvente e obrigou a uma estrita contenção decorativa32. Também a construção da Rua Nova, na qual já se trabalhava em 1395, preconizou novos ideais urbanísticos como uma das primeiras experiências de planeamento na cidade. A sua implantação na zona ribeirinha surge no enquadramento da expansão urbana encetada por D. João I, e terá resultado da vontade deste rei em ter um espaço representativo no Porto, bem como da necessidade de estruturação viária da zona33. A sua implantação, larga e em linha recta, conjugou as 29 Nesta fase os burgueses impõem-se no caminho político, consolidando o seu papel numa sociedade que cada vez mais se complexiica em gradações de riqueza e proissões. Estes acabaram por formar uma verdadeira oligarquia urbana composta por mercadores, armadores, alguns funcionários régios e poucos mesteirais de mesteres de maior prestígio, como os ourives. Melo, 2009, p. 209 – 210; Miranda, Sequeira, Duarte, 2010. p. 43. 30 Este eixo corresponde hoje às ruas de S. Bento da Vitória e de S. Miguel. Teixeira, 2010. 31 Tavares, Real, 1987. 32 Trindade, 2010, p. 648 – 657. 33 “O desenvolvimento do porto luvial, a frequente estadia de estrangeiros e o nascimento de uma nova burguesia mercantil estimularam o rei para a construção de uma artéria luxuosa, regularizadora do quadro urbanístico ribeirinho”. Tavares, Real, 1987, p. 398. 195 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA características inovadoras de regularidade e amplitude, desejadas pelo rei34, com a função comercial e de reunião que os burgueses pretendiam nesta zona da cidade. Outros exemplos da sua inovação urbanística são o facto de ser uma rua plana numa cidade e época em que as vias se submetiam ao declive acidentado, e de ter um alinhamento paralelo ao rio para melhor articulação com as vielas e ruas existentes (Congostas e São Nicolau), e melhor estruturação do crescente tráfego da zona ribeirinha (que como escoamento viário tinha simplesmente os caminhos e ruas que se articulavam perpendicularmente ao rio Douro – ruas das Congostas e da Alfândega)35. Assim, a sua implantação, mais do que um capricho régio, representou “uma compreensão nova das funções dos arruamentos na estrutura do desenvolvimento da cidade”36. Mas outro ideal urbanístico está aqui presente: um padrão arquitectónico pré-estabelecido das fachadas e da tipologia das habitações. Como espaço representativo régio, esta rua deveria ter as casas mais altas e mais formosas da cidade, assim como o conjunto ediicado mais harmonioso37. Tal reletiu-se no ordenamento conjunto das fachadas ao sistematizar soluções especíicas: teriam de ser “casas de pedraria e carpintaria e sem sobrelojas”, com “balcões e compartimentos como são feitos em outras casas da dita rua” 38. Assim, vemos que esta rua usou o planeamento não só para estabelecer uma lógica de organização viária na zona, consolidando o tecido existente, mas também para criar, provavelmente pela primeira vez no Porto, modelos arquitectónicos a seguir em outras artérias da cidade39. Quanto ao pragmatismo da realidade, este está presente na “ideal” Rua Nova através dos vários relatos de casas degradadas, ameaçando ruína, num período anterior à conclusão da rua40. As razões podem ser várias, mas a falta de verbas 34 Numa altura em que o típico das ruas medievais era serem o mais estreitas possível (para proteção das chuvas e do sol), o alinhamento recto e a largura do seu peril transversal (à volta de 8,5 m) seria algo verdadeiramente notável para a época, uma vez que o normal eram ruas de 2 a 5 metros de largo. Leguay, 1984. 35 Como refere Pereira de Oliveira, seria importante a existência de um eixo “sensivelmente paralelo à Ribeira e proporcionando uma relativa aproximação constante desta”, dado que caminhos que o izessem perpendicularmente já existiam. Do mesmo modo a sua implantação, paralela ao cais, permitia a ligação de vários edifícios de grande vitalidade e signiicado: a Casa da Moeda do Rei e sua Alfândega, o Mosteiro de São Francisco e a igreja de São Nicolau. Oliveira, 1973, p. 233–235. 36 Oliveira, 1973, p. 234. 37 Oliveira, 1973, p. 231–234. 38 Tavares, Real, 1987. p. 397-398 39 Tavares, Real, 1987. p. 397-398 40 Sabemos que a Coroa terá recorrido à prática de aforamentos a preços relativamente baixos para compensar o investimento, aforando muitas vezes pardieiros situados no traçado da rua a construir. Tal leva a pensar que a falta de dinheiro seria o principal motivo do estado de ruína de algumas casas, ou pelo 196 ENTRE OS “IDEAIS E A REALIDADE”. A URBANIZAÇÃO DO PORTO NA BAIXA IDADE MÉDIA Fig. 6. Implantação da Judiaria e da Rua Nova. para construção de acordo com o plano ambicioso, já referido, deverá ter sido o principal factor. Assim, à exceção das construções planeadas, o grosso da urbanização do Porto do século XV ia crescendo segundo uma lógica mais funcional e pragmática. Ou seja, concentrando-se em redor dos eixos viários mais importantes (entre a zona ribeirinha e o Cima de Vila, e entre a zona este e oeste da cidade)41. Mas com a passagem do senhorio do Porto, em 1405-1406, para D. João I, uma nova legitimidade de intervenção no espaço é delegada ao concelho, que toma em mãos grande parte da gestão administrativa e espacial da cidade42. A iniciativa urbanística concelhia revelou-se sobretudo no fomento à construção em novas zonas da cidade, nomeadamente junto à Judiaria, Rua Nova e Alfândega. Assim, vemos a menos da sua não conclusão (que certamente lhe conferia um aspecto semelhante a uma ruína). Amaral, Duarte, 1985, p. 17. Marques, 1980. 41 Este eixo viário compreendia cinco ruas umas a seguir às outras: a dos Mercadores, da Bainharia, a Escura, a Chã das Eiras e a de Cimo de Vila. Real, 2001. 42 Mas embora por um lado o protagonismo do Concelho tenha aumentado com a passagem do senhorio do Porto ao rei, depois de uma primeira fase em que é protagonista, segue-se outra fase, já em inais do século XV, na qual vemos já um certo acentuar do poder dos mesteirais e alguma perda do poder concelhio, que se intensiicou a partir do ano de 1518, data em que é comumente aceite o im do poder autárquico popular no Porto. Machado, 2006. 197 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA área da Sé perder o seu relevo urbano sensivelmente ao mesmo tempo que o Clero perdia o seu poder político, e zonas como o Monte do Olival e a vertente oeste do rio da Vila ganhar população e consistência urbana43. Também na zona este da cidade começam a surgir novas áreas urbanizadas, assim como equipamentos de relevo, tais como o convento de Santa Clara, situado no Cimo de Vila que, por sua vez, terá contribuído para a ediicação da sua envolvente44. A norte da cidade, na proximidade da Rua do Souto e da Porta de Carros45 destacamos a construção do convento dos Lóios. A escolha da sua localização nesta área (a maior zona verde da cidade intramuros, denominada as “Hortas do Bispo, e junto ao principal caminho de saída da cidade para Norte), foi uma boa aposta da Igreja. E na verdade, a implantação deste convento acabou por conduzir a um surto de construção em redor, assim como à estruturação viária da zona46. Fig. 7. Esquema espacial no Porto no século XV 43 Neste processo de crescimento urbanístico é também de assinalar a atividade do Hospital de Rocamador, administrado pela Câmara, que muito contribuiu para a urbanização da zona do Souto. Ferrão, 1989. 44 Barros, 1998, p. 416–41 45 Que depois se passa a chamar Porta de Santo Elói Oliveira, 1973, p. 237–241. 46 A ele se deve a urbanização do largo com o mesmo nome e, provavelmente, a urbanização da Rua de Trás, que estaria não só ligada à Porta do Olival mas também situada acima da Rua do Souto. Oliveira, 1973, p. 237–241. 198 ENTRE OS “IDEAIS E A REALIDADE”. A URBANIZAÇÃO DO PORTO NA BAIXA IDADE MÉDIA Vimos assim durante todo o século XV uma intervenção acentuada da Câmara do Porto no seu espaço público, que procurava seguir os preceitos dum ideal urbano. Esta elite governativa, saída do grupo mercantil, seria conhecedora de novos mecanismos de intervenção no espaço através da sua atividade proissional e das suas viagens, que usou para aliar a funcionalidade ao “enobrecimento” e “embelezamento” da cidade. A requaliicação da Praça da Ribeira em inais do século XV é disso o principal exemplo. Lugar privilegiado, mas exíguo para a quantidade de pessoas e bancas que ali se amontoavam, recebeu agora a atenção da câmara seguindo critérios que visavam uma maior amplitude, organização e cuidado do ponto de vista urbanístico e estético. Assim, coniguraram-se os limites da praça numa forma rectangular, através de edifícios cujas fachadas foram enobrecidas por arcadas, criando um espaço coberto adequado a uma intensa atividade comercial. Além da harmonização da tipologia arquitectónica o espaço foi também enobrecido com o arranjo das vias de acesso e a pavimentação da praça, algo raro na época47. Também na reconstrução dos antigos Paços do Concelho, feita em meados do século XV, é notório o cuidado que a câmara teve a nível arquitectónico, embora expectável tendo em conta o relevo que esta adquirira na cidade. A força simbólica desta obra expressa-se na grande elevação da torre, assim como nos esforços com a sua ornamentação48 e especialização funcional (como local de reunião e de arquivo). Completa a análise dos principais planos e equipamentos urbanísticos do Porto medievo, passaremos agora à análise das estratégias de atuação tomadas pelos órgãos de poder (Rei/Concelho/Clero), tendo em vista o controlo e transformação do espaço urbano. Este conjunto de decisões tomadas para a gestão e planeamento da cidade vão materializar-se em instrumentos oiciais de controlo como posturas municipais, ordenações régias e contratos de propriedade. Relembrando a paisagem física da cidade medieval, sabemos que, apesar de alguns exemplos de planeamento urbano, os mais comuns seriam os espaços construídos segundo necessidades pragmáticas do quotidiano. Imperavam assim as ruas exíguas e sinuosas e os edifícios que apresentavam várias reentrâncias e saliências (alpendres, sacadas e passadiços, entre outros elementos perturbadores da luidez espacial). A construção privada disputava entre si o espaço que deveria ser público e colectivo, impondo-se cada vez mais uma boa gestão do espaço49. Gonçalves, 1987; Machado, 1997. Seria uma construção toda lavrada em granito, com coroamento de ameias e janelas trabalhadas. “Vereações”, anos de 1390 – 1395, (Comentário e Notas de Artur Magalhães Basto), Documentos e Memórias para a História do Porto, Porto: Publicações da Câmara Municipal do Porto, Gabinete de História da cidade, pp. 253 – 264. 49 Este processo começou lentamente, sendo mais precoce em Lisboa. A este respeito ver: Gonçalves, 1996: p. 77-94. 47 48 199 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Nos livros de vereações do Porto analisados50 encontramos algumas deliberações que provam a atenção que, em inais do século XIV e primeira metade do século XV, o concelho demonstrava relativamente ao espaço urbano. As principais preocupações relacionavam-se com a circulação na cidade e com a defesa do espaço público perante a invasão de construções privadas. Exemplos disso foram as medidas de obrigação de colocação de elementos físicos (sacadas, tabuleiros, mós, etc.) de modo a não embargar o trajeto de quem passava na rua, a proibição contra o avanço das casas para além do alinhamento da rua e a proibição de construções junto à muralha, entre outras51. Outro aspecto relativo à qualidade urbana, importante para o concelho, relacionava-se com questões de higiene pública. É sabido que a cidade medieval apresentava zonas bastante sujas, nomeadamente ruas, fontes e chafarizes, onde se acumulavam todo o tipo de detritos. Tal situação, juntamente com o livre-trânsito de animais, constituía um perigo para a saúde pública que urgia resolver. Nesse sentido foram estabelecidas posturas com o objectivo de manter a cidade mais limpa, nomeadamente a proibição de poluir o Rio da Vila e lançar “coisas sujas” na rua e nos chafarizes, a remoção dos lixos da cidade, o afastamento do centro urbano de algumas das atividades artesanais e industriais mais poluentes e a proibição de construções que retirassem “dignidade” à cidade (exemplo das “privadas”)52. Do mesmo modo, o “embelezamento” e “enobrecimento” da cidade eram valorizados pelos homens do concelho, que promoviam o calcetamento e o alargamento das ruas o que, além de permitir criar espaços mais amplos e luminosos, facilitava a circulação. Tiveram ainda uma intervenção acentuada nos espaços e equipamentos públicos existentes, especialmente a Praça da Ribeira, os Paços do Concelho, a prisão, a muralha, as estalagens e as ruas. Também novas ruas foram construídas, assim como chafarizes e fontes e corrigidas calçadas e casas em vias de ruir. As cláusulas contratuais foram também instrumentos importantíssimos na intervenção sobre o espaço urbano do Porto. Baseadas no regime de “Eniteuse” (regime de concessão de propriedade em que o proprietário cedia o domínio útil a um concessionário mediante uma série de condições), tinham como condicionantes urbanísticas uma série de imposições relacionadas com o tempo de duração do contrato, o tipo de materiais a usar, o alinhamento que a construção deveria ter e o número de pisos, entre outros factores. Neste panorama, o tempo de duração do contrato, que podia ser em anos (arrendamento), vidas (emprazamento) ou No decorrer do texto detalharemos as referências aos livros de vereações em questão. Teixeira, 2010. 52 Os matadouros, os curtumes e a venda e a conserva de peixe eram afastados da cidade, sobretudo das suas zonas mais “nobres” como a Rua Nova. Gonçalves, 1996. p. 89. 50 51 200 ENTRE OS “IDEAIS E A REALIDADE”. A URBANIZAÇÃO DO PORTO NA BAIXA IDADE MÉDIA perpétuo (aforamento), poderia funcionar como condicionante ou impulsionador da urbanização, pois quanto maior fosse a sua duração (prazos perpétuos), maior seria a segurança e incentivo do foreiro para investir no terreno53. Os contratos do Clero eram, na sua maioria emprazamentos, e preconizavam algum cuidado com o espaço público envolvente. Muitos referem a reparação e a manutenção da propriedade -“façades no dito lugar toda a benfeitoria e melhoramento que poderdes em tal guisa que todo seja melhorado e não pejorado”54. Quanto às propriedades concelhias (que se concentravam sobretudo no Souto, na Cordoaria e no Olival), estas eram aforadas maioritariamente a título perpétuo. Para tal contribuiu a carta régia que D. Afonso V emitiu, autorizando o corpo municipal a aforar “para sempre” os campos e lugares baldios da cidade, “pois muitas vezes, devido ao sistema habitual das três vidas, não se construíam aí casas porque a despesa não era compensada” 55. Esta situação convinha ao concelho porque, via os seus terrenos vazios serem valorizados pelas construções neles erguidas, podendo ainda, eventualmente, ter retorno da propriedade e depois aforá-la por preços mais elevados. Interessava também aos foreiros porque, embora investissem uma grande quantia na construção do imóvel, acabavam por garantir “para si e para os seus descendentes” uma habitação por um custo bastante aceitável56. Assim, nos prazos camarários que analisamos, veriicamos a forte presença da obrigação de construção de casas por parte dos inquilinos, especialmente nos contratos de aforamento, embora também a houvesse, mas em minoria, nos de emprazamento57. Veriicamos ainda na maioria dos contratos analisados (quer de aforamento quer de emprazamento) que era obrigatória a benfeitoria e manutenção da propriedade58. Um dos aspectos que nos interessa especialmente nos contratos camarários é o modo como era encarada a via pública. Nos prazos analisados salientamos como exemplo da preocupação com o espaço público as seguintes cláusulas: obrigatoriedade das paredes dos andares sobrados não saírem para além do alinhamento da casa térrea; obrigatoriedade da manutenção do alinhamento das casas da mesma rua; obrigações especíicas na construção de zonas de trabalho (exemplo da oicina de tanoaria que deveria ser alta e toda tapada em redor); obrigatoriedade do uso de determinados materiais como a madeira, a pedra, ou telha. O uso de medidas Amaral, 1984. p.16. Teixeira, 2010. p. 119-120. 55 Duarte, 1984.pp.105-106. 56 Duarte, 1984.pp.105-106. 57 Teixeira, 2010. p. 120-123. 58 Através de expressões como: “as adubedes de todo aquello que lhes comprir e fezer mester”. Teixeira, 2010. p. 120-123. 53 54 201 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA físicas nos contratos camarários mostra também a preocupação do concelho no controle dos limites das propriedades, podendo tal indicar uma vontade de regularização e ordenação dos lotes e terrenos59. Todavia, o facto de o concelho permitir a construção de sacadas e alpendres sobre o espaço público, ainda que sob o pagamento de um foro, contrariava a preocupação com a invasão do espaço urbano. Do mesmo modo, vielas e azinhagas podiam ser aforadas a particulares, assim como pranchas (que eram usadas para fazer a ligação entre algumas habitações e a muralha). O aluguer do espaço público estendia-se ainda a logradouros públicos, para a colocação de bancas, mós e aduelas que, pelo seu tamanho, ocupariam ainda um espaço considerável60. Relativamente às propriedades régias, vemos que o monarca usou sobretudo a mesma forma de contrato que o concelho61: o aforamento de terrenos vagos ou casas arruinadas situados no traçado de uma rua a urbanizar, para serem construídos ou reparados à custa dos foreiros, com rendas relativamente baixas para compensar o investimento. Muitas destas habitações, nomeadamente as da Rua Nova, deveriam seguir condições especiicadas no contrato, como ter escadas, sobrados, compartimentos em madeira, cozinhas, chaminés, armários e “privadas”. Resumindo, tanto o concelho como o clero e o rei utilizavam cláusulas relativas à intervenção no espaço público, mas é lícito pensar que o primeiro, enquanto representante da cidade, e sensível à honra de tal cargo, assumisse mais a responsabilidade de velar em “prol e proveito” da urbe, procurando várias formas de promover a sua qualidade urbanística. Tal está patente nas cláusulas de não obstrução do espaço público, na obrigação de construção e manutenção de casas que aforavam, nos foros baixos que pediam e no tempo longo dos contratos. Tal poderia ter a ver com o facto de os cargos municipais, ao contrários dos clericais, serem rotativos, e não permitirem um lucro pessoal com a administração do património do burgo. Mas não nos podemos esquecer que alguns dos membros concelhios eram também grandes arrendatários, como era o caso do vereador e mercador João Martins Ferreira62. Na verdade, os aforamentos com foros baixos Teixeira, 2010. p. 120-123. Teixeira, 2010. p. 120-123. 61 Para mais informações ver: Marques, 1980. 62 Este homem foi o perfeito exemplo da diiculdade em separar os interesses pessoais dos cargos políticos e impessoais. Embora grande proprietário urbano, e acusado de atuação abusiva, destacou-se na procura de um maior rigor na construção da cidade. Foi este homem que pediu o restauro dos Paços do Concelho e a construção da ponte de ligação entre a Rua Nova e a Rua dos Mercadores, mostrando a sua preocupação com questões de ordenamento e bem-estar. Claro que o facto de ter a sua habitação precisamente na Rua dos Mercadores, junto à referida Rua Nova, não deve ter sido alheio a esta decisão, pois ao criar uma ligação direta a este espaço emblemático da cidade terá rentabilizado a sua propriedade e o seu acesso a este local. Teixeira, 2010. Para mais informações ver: Um Mercador e Autarca dos Séculos 59 60 202 ENTRE OS “IDEAIS E A REALIDADE”. A URBANIZAÇÃO DO PORTO NA BAIXA IDADE MÉDIA podiam levar ao aumento do número de sub-emprazamentos, favorecendo a atividade especulativa de alguns homens que faziam contratos perpétuos com a Câmara, com o objectivo de, depois, os emprazar a termo, pensando nos lucros que poderiam vir a ter63. Isto leva a crer que uma certa mentalidade “rentista” começava a inluenciar o comportamento dos burgueses do Porto a partir da primeira metade do século XV. Sempre que se colocaram valores económicos em equação, forças contrárias64 notaram-se na construção da cidade, forças que induziam a construir, a adquirir e a vender terrenos. E isto surge quando o monopólio do solo passa a propriedade privada (por posse direta ou indireta) passando a ser objecto de especulação, dando aos proprietários, ou sub-emprazadores, uma possibilidade grande de valorizar os seus terrenos. Desenvolvem-se então duas posturas antagónicas por parte dos poderes urbanos em relação ao espaço. Como representantes de um ideal urbano tínhamos os planos urbanísticos e o conjunto de medidas que visavam a correta organização e embelezamento da cidade, assim como a defesa do seu espaço público e a iscalização do aspecto exterior das construções. Mas do outro lado da moeda, estava a procura da capitalização do espaço através da permissão da ediicação de certos elementos construtivos sobre a área pública, mediante o pagamento de foro à edilidade, e o arrendamento de terrenos por parte dos membros da câmara, ou de outros homens mais abastados, tendo em vista a sua rentabilização num clima de especulação urbanística. Ainda assim é preciso não esquecer que os membros concelhios, enquanto representantes da cidade, procuravam que a sua atuação urbana projetasse de si uma boa imagem, reforçando a sua posição. E, como já vimos, estes, efetivamente, estavam mais conscientes dos problemas dos espaços urbanos e da necessidade de defesa do espaço público65. Mesmo quando era permitida a invasão da área comum sob pagamento de um foro, esta podia ser anulada quando ocorresse em locais emblemáticos ou durante acontecimentos em que era importante digniicar a cidade. Do mesmo modo, a especulação do solo se, por um lado, podia levar à degeneração do espaço público ao procurar rentabilizar ao máximo os terrenos, por outro, promovia o seu desenvolvimento e construção. XV-XVI: O Arquivo de João Martins Ferreira. “Exposição comemorativa da classiicação do Porto como Património Cultural da Humanidade”, Porto, 1996. 63 Gonçalves, 1987. p 16-30. 64 E quando as iniciativas de intervenção urbana dizem respeito a necessidades particulares de diferentes indivíduos ou poderes políticos-económicos, dá-se um grande choque de inluências e motivações em jogo, mesmo que acidentais. 65 Gonçalves, 1996. p. 87. 203 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Assim, e concordando com Armindo de Sousa66, podemos concluir que a honra de desempenhar cargos concelhios talvez tenha levado estes homens a aliar os seus interesses e negócios com os da urbe, tirando partido inanceiro da situação e, simultaneamente, a acumular proveito e prestígio em nome da sua cidade, o Porto. 66 204 Sousa, 2000. ENTRE OS “IDEAIS E A REALIDADE”. 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A URBANIZAÇÃO DO PORTO NA BAIXA IDADE MÉDIA rESUMo: Este artigo tem como objectivo a análise dos mecanismos sociais, políticos e económicos que inluenciaram e condicionaram a paisagem urbanística do Porto medieval. Para tal consideraremos, por um lado, o espaço físico da cidade e, por outro, os planos, posturas, e condições contractuais defendidas na construção do espaço urbano do Porto pelos principais grupos sociais da cidade (elites municipais e religiosas). Para esta análise baseamo-nos na informação contida nas Atas das Vereações e Livros de Pergaminhos do Arquivo Histórico Municipal do Porto, e nos documentos do Cartório do Cabido da Sé. Em oposição à maioria dos estudos existentes sobre a paisagem urbana do Porto medieval, que, concentrando-se em zonas especíicas da cidade e não no seu todo, mostram uma visão compartimentada e limitada na sua abrangência, o presente estudo procura analisar os vários interesses que se confrontaram em simultâneo no Porto medieval, tentando perceber o seu crescimento urbano como resultado destas tensões. Pretende-se assim uma nova visão da construção da cidade medieval, não focada na sua descrição física, mas na compreensão dos mecanismos que a determinaram. Palavras Chave: Urbanismo, Porto Medieval, Evolução urbana, Planos urbanísticos, Posturas urbanas. ABSTrACT: his paper aims to analyze the social, political and economical mechanisms, that have inluenced and conditioned the urban landscape of Porto in the middle ages. We consider both the physical space of the city, and the attitudes, conditions and decisions defended in the construction of urban space by the city’s main social groups (municipal and religious elites). For this analysis we rely on the information contained in the “Actas of Vereações” and the”Books of Scrolls” from the Municipal Historical Archive of Porto, and in the documents from the Oice of the Chapter of the Cathedral of the city. Contrary to most existing studies on the medieval urban landscape of Porto, which, by focusing on speciic areas of the city and not in her whole, show a compartmentalized and limited vision in its scope, this study seeks to analyze the various interests that are simultaneously confronted in the medieval Porto, thus trying to understand its urban growth as a result of these tensions. Our goal is to construct a new vision of the medieval city, moving the focus from its physical description to the mechanisms that shaped it. Keywords: Urbanism, Medieval Porto, Urban evolution, Urbanistic plans, Urban postures. 207 CASAS dA CâMARA OU PAÇOS dO CONCElhO: ESPAÇOS E POdER NA CIdAdE TARdO‑MEdIEvAl PORTUgUESA lUíSA TRINdAdE1 No domínio das práticas de gestão concelhia, o ano de 1340 constituiu um momento de viragem: por ordem régia, o conselho de vereadores passaria a reunir com uma frequência semanal, ao domingo de manhã, devendo, para tal, apartar-se “a um logar para falar e concordar em todas as cousas que forem prol e bom vereamento da dicta vila” 2. Que a determinação de D. Afonso IV foi quase imediatamente cumprida, prova-o o facto de, apenas 12 anos decorridos, nas cortes de Lisboa de 1352, o povo apresentar queixa de que “os vereadores se apartam em logares çiuis e fazem sas posturas”3. Subjacente à medida, e por maioria de razões à queixa, estava o processo de transferência de poderes da assembleia ou concilium alargado para o seio de uma elite restrita de homens-bons, aspecto que aqui importa sublinhar porque determinante no aparecimento e vulgarização de um espaço próprio ou “apartado”, reservado à administração concelhia: a Casa da Câmara, também chamada Paço do Concelho ou Paço da Relação. O crescimento dos núcleos urbanos, o fortalecimento da economia monetária, o dinamismo das trocas comerciais ou a difusão da escrita e do número, foram alguns dos factores que concorreram para tornar a administração da cidade uma tarefa cada vez mais exigente, a que a estrutura pesada e pouco especializada de uma assembleia alargada não conseguia já dar resposta capaz. A administração Universidade de Coimbra. e-mail: luisa.trindade@l.uc.pt Determinações incluídas no Regimento dos Corregedores publicado por Caetano, 1951:168. No texto é ainda utilizado o termo “veedores”. 3 Cortes Portuguesas, reinado de D. Afonso IV: 134. 1 2 209 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA tornava-se necessariamente assunto de apenas uns quantos, em breve verdadeiros “proissionais da vereação”4. É bem conhecido o processo pelo qual este grupo desenvolveu mecanismos que lhe permitiram monopolizar o poder municipal, rodando entre si os cargos, vedando o acesso a novos membros, fazendo da administração urbana uma carreira praticamente vitalícia5. Mas sabemos também que, se o conseguiram fazer, foi porque essa concentração de poderes veio de encontro à estratégia de reforço e centralização do poder real, de que o controlo dos núcleos urbanos foi um dos vectores essenciais. à multiplicação de cargos de nomeação régia – meirinhos, corregedores, juízes “por el rei” – a coroa associou várias outras medidas conducentes ao esvaziamento de poderes da assembleia, com destaque para a Ordenação dos Pelouros, de 1391, potenciando um controlo apertado senão mesmo a manipulação dos que “andavam na governança”. As reuniões amplamente participadas, convocadas por pregão para espaços desafogados – um adro, a praça da vila ou o claustro de um convento – só teriam doravante lugar quando o assunto fosse considerado “grande e grave”. Ou seja, quase nunca. E, quando aconteciam, pouco mais eram do que simples sessões informativas, adiando-se a verdadeira discussão para a reunião camarária seguinte. Para além do secretismo que devia rodear os assuntos tratados, sigilo que os vereadores juravam guardar no momento em que tomavam posse do cargo, a complexidade crescente da vida urbana e a correspondente burocracia fazia dos paços do concelho uma estrutura inadiável: em 1393, D. João I tornava obrigatório o arrolamento em livros próprios de todas as rendas e bens, armas, medidas, ferramentas, foros, privilégios, estromentos e sentenças6. Para além de determinar a recolha de toda a documentação que se encontrasse dispersa, o monarca insistia na necessidade de, doravante, os livros de registo serem mantidos escrupulosamente atualizados. As próprias reuniões concelhias, cuja frequência entretanto duplicara, realizando-se agora às quartas feiras e sábados, deveriam icar registadas em ata. Todo este volume de informação seria obrigatoriamente guardado nos armários da casa da câmara. Longe ia o tempo em que a bandeira, o selo e a carta de foral eram praticamente os únicos bens a conservar, necessidade que uma simples arca à guarda de um mosteiro vizinho facilmente cumpria. Centralizar registos e ofícios num determinado espaço aumentava a eicácia da gestão. Permitia, sobretudo, exercer um controlo e iscalização mais apertado sobre práticas e funcionários. Em 1431, pretendendo evitar as falsiicações e os abusos 4 5 6 210 Costa, 1993: 68. Veja-se, por todos, Coelho; Magalhães, 1986. Pereira, 1998: 168-169. Moreno, 1986: 88-89. CASAS DA CâMARA OU PAÇOS DO CONCELHO: ESPAÇOS E PODER NA CIDADE TARDO‑MEDIEVAL PORTUGUESA que a dispersão dos atos originava, D. João I, declarava só reconhecer validade às cartas procedentes da administração local desde que redigidas “demtro em a camara do comçelho” 7, assinadas e seladas pelos respectivos vereadores e procuradores. Esta disposição de D. João I é a prova cabal da consolidação deste equipamento na cidade portuguesa. E se esse é um dado adquirido em 1430, importa então recuar no tempo, compreendendo o processo que a tal conduziu, das primeiras experiências à sua generalização, com destaque para o movimento de disseminação. A primeira referência que conhecemos a um edifício concelhio, recuando em duas décadas a data tradicionalmente aceite8, é de 1316, para Leiria; um ano depois, em 1317, também já existia em Lamego9. A partir da década de trinta, os testemunhos multiplicam-se: 1334 em Óbidos, 1336 em Lisboa, 1337 em Torres Vedras, 1341 em Coimbra, 1346 em Alcácer do Sal, 1355 em Vila Nova de Gaia, 1358 em Montemor-o-Novo e 1360 em Faro10. Ainda antes do inal do terceiro quartel do século XIV, era já um equipamento amplamente divulgado. É essa a conclusão a retirar da leitura das procurações que os concelhos enviaram às cortes de 1383, realizadas em Santarém, pelas quais juravam aceitar como herdeiros do trono a infanta D. Beatriz e o seu marido Juan I, de Castela11. Embora o corpo do texto obedeça a uma grande uniformidade, o protocolo inicial refere-se especiicamente a cada uma das vilas ou cidades, incluindo, entre outras informações, o local apregoado para a reunião dos vizinhos12: em 28 casos declara-se explicitamente que o documento foi lido e assinado na “Casa ou Paço do concelho” na “Casa ou paço da audiência”, na “Casa da fala” ou no “Paço da Relação”, em síntese, num espaço próprio para a administração concelhia. O elenco é esclarecedor, quer em termos quantitativos quer em amplitude geográica, sendo importante referir que o facto de as restantes localidades não indicarem um espaço próprio não signiica necessariamente que dele não dispusessem: sendo a convocatória feita por pregão e dirigida ao conselho alargado, muitas vilas e cidades terão sido obrigadas a escolher locais suicientemente amplos para acolher a multidão esperada, como claustros e salas capitulares, praças e adros, alpendres e interiores de igrejas ou simples terreiros Moreno, 1986: 88-89. Almeida; Barroca, 2002: 143. 9 Documentos publicados respetivamente por Gomes, 1990: 60-61 e Saraiva, 2003: 576. 10 Silva, 1997:127; Caetano, 1951: 94; Rodrigues, 1995: 148; Coelho: 1992:337; Pereira, 2000: 106-107; Guimarães, 1995: 74 ; Andrade, 1977: 14-15; Chancelarias Portuguesas: D. Pedro I: 177. 11 Cortes Portuguesas, Reinado de D. Fernando I, vol. II (1383). 12 Do total de 66 procurações, duas referem-se ao Mosteiro de Alcobaça e à comenda de Idanha-a-Nova. Nas procurações de Lanhoso, Melgaço, Monção e Pinhel não se regista o local de realização da assembleia. 7 8 211 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA a céu aberto. São disso exemplo o Porto, Montemor-o-Velho e Santarém, núcleos que já então dispunham de sede própria para o exercício do poder. Sintetizando, casas da câmara ou paços do concelho são uma conquista do século XIV: surgidos na segunda década e divulgados nos anos 30-40, constituem uma realidade comum e extensível a todo o reino ainda antes dos inais da década de 80. A leitura atenta da documentação permite tirar algumas conclusões: em primeiro lugar, não existe entre as duas principais denominações – casa e paço do concelho – uma sequência cronológica. Efetivamente, nada corrobora a ideia de que “os concelhos que, no século XIII, reuniam nos adros ou nas igrejas passam a ter “casa” ou “câmara” no século XIV e “paço” na centúria seguinte”13. Não só tal não se veriica, como a designação de paço é até a mais utilizada14. Em segundo lugar, este mesmo designativo de paço não surge necessariamente associado a uma arquitetura qualiicada, formalmente diferenciada do restante tecido ediicado. A utilização do termo paço identiica, por analogia com a morada do rei ou do senhor, um espaço de poder, neste caso, a sede do poder local, onde o monarca delega parte substancial da sua autoridade. A verdade é que muito pouco se sabe sobre estes primeiros edifícios. Do universo já aqui elencado, apenas cerca de uma dezena de casos são referenciados por outra documentação escrita que, por mais vaga e imprecisa que seja, nos permite ir mais além da simples conirmação da existência do edifício. Claro que em bastante menor número são aqueles que permanecem materialmente, por escassos que sejam os vestígios. Vale a pena passar em revista o que as fontes dizem relativamente à implantação na malha urbana, sobre as soluções arquitectónicas adoptadas ou sobre a forma como se adaptaram às necessidades especiicas da administração concelhia. Começando pelas soluções arquitectónicas, tudo indica que o caso mais simples, e por isso aquele que mais frequentemente surge documentado, foi a adaptação de uma casa de morada vulgar. Aponte-se, como exemplo ainda existente, a de Castelo de Vide ou, por descrição documental, a de vila de Santa Cruz, na Madeira, onde os vereadores em exercício arrendaram “huas casas de morada pera a camara e cadea”, com “sobrado, camara cozinha e com sua salla pera fazerem as vereações he audiências”15. Nesta categoria, destaca-se, mais ainda pela capitalidade da cidade em causa, o caso de Lisboa, onde o paço do concelho ocupou a casa que fora de Almeida; Barroca, 2002:143. Limitando-nos ao universo referido nas procurações, e como tal ao século XIV, encontram-se doze referências a “Paços do Concelho” contra apenas uma menção a “Casa da Câmara”. O mesmo se passa para “paço” e “casa da audiência”, numa proporção de sete para um. 15 Vereações da Câmara Municipal do Funchal. Primeira metade do século XVI: 513. 13 14 212 CASAS DA CâMARA OU PAÇOS DO CONCELHO: ESPAÇOS E PODER NA CIDADE TARDO‑MEDIEVAL PORTUGUESA Santo António, então apenas Fernando de Bulhões, situada nas imediações da Sé, praticamente no adro onde até aí reunia regularmente o conselho. Edifícios simples, não necessariamente residenciais, foram opção comum a algumas das maiores cidades do reino. Tal foi o caso de Coimbra e Porto, pelo menos nos primeiros tempos: à modéstia e exiguidade dos edifícios contrapunha-se, todavia, a centralidade da localização. Em ambos os casos, as vereações da primeira metade do século XIV, escolheram a proximidade das respectivas catedrais como local de reunião16. No Porto não passava de uma casa de madeira, encostada aos muros da Sé, sem qualquer privacidade, a acreditar nas queixas dos homens-bons; em Coimbra, a escolha recaiu sobre a diminuta “Casa do Vodo”17, a um escasso metro e meio da fachada da Sé Velha. Num caso e noutro, porém, em breve seriam encontradas novas alternativas, em resposta às denúncias feitas pelos vereadores de não terem “paços nem lugar honesto, nem conveniente, segundo à dita cidade pertencia”18. Do edifício do Porto, erguido propositadamente para o efeito no adro fronteiro à Sé, ao longo da década de cinquenta, sabe-se apenas que era um “paço em arcos”. Construído em terreno instável, pouco duraria, ruindo ainda antes de inais do século. A solução encontrada em Coimbra remete para uma segunda alternativa frequente: a reutilização de uma torre da muralha. Viana do Castelo, até aos inais do século XV, Pinhel, Torre de Moncorvo, Loulé, Melgaço, Sesimbra e Penamacor, são alguns dos exemplos possíveis, destacando-se, entre todos, Silves e Coimbra, pelo recurso às torres de maior porte do circuito muralhado, em ambos os casos conhecidas por Torre da Almedina19. Nesta categoria formal, integra-se de novo o caso do Porto, uma vez que, após a derrocada do “paço em arcos” e praticamente no local que este ocupara, foi erguida uma torre, convocando para o espaço do exercício do poder concelhio toda a carga retórica e simbólica associada, em inais da Idade Média, às estruturas turriformes20. Nem sempre, porém, as vereações recorreram a estruturas já existentes. Deixando de lado os edifícios que apenas conhecemos por testemunho documental e passando à análise dos poucos que, com maiores ou menores transformações e restauros, sobreviveram até aos dias de hoje, veriica-se como, corroborando o exemplo do Se em Coimbra, Porto e Lisboa se veriica a proximidade à catedral, em Monsaraz, Estremoz, Bragança e Avis, por exemplo, a sede do concelho é invariavelmente contígua à igreja matriz. 17 Vasconcelos, 1930:452 e 1935: 220. 18 A documentação relativa à casa da Câmara do Porto está publicada em BASTO, 1937: 247-306. 19 Caldas; Gomes, 1990: 19; Gomes, 1996: 46-47 e 87; Botão, 2004: 160; o caso de Melgaço é representado por Duarte de Armas, Livro das Fortalezas, l. 22; Ferreira; Gonçalves, 2001: 385-388; Cortes Portuguesas, reinado de D. Fernando I , vol. II: 331; Coelho, 1992: 337. 20 Silva, 1995: 69. 16 213 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 1. Estremoz, primitivos Paços do Concelho. Porto, os paços concelhios foram construções que, desde a origem e sempre que possível, suscitaram um cuidado acrescido, justiicando a construção de estruturas próprias. Entre os mais precoces edifícios erguidos com esta função especíica contam-se os de Estremoz, Monsaraz e Bragança, qualquer deles construído ainda em meados do século XIV, ou o de Avis, ainda hoje tão mal conhecido21. Da sua análise, a par de outros indícios dispersos, pode constatar-se como do recurso ao mesmo tipo de soluções – algumas adoptadas em resposta a questões funcionais, outras a questões de referencial simbólico – viria a resultar uma tipologia própria, apurada no decorrer do século XV. Os paços do concelho de Estremoz, implantados a sul da igreja de Santa Maria e iniciados ainda no reinado de D. Dinis, estariam concluídos em 1341, como atesta a inscrição sobre a porta principal. Estruturalmente, associam uma galeria, 21 Só recentemente tivemos conhecimento do texto de Jorge Rodrigues justamente intitulado “Os Paços medievais de Avis” onde o autor, para além de chamar a atenção para o edifício, estabelece a relação com os paços de Estremoz e Monsaraz. Entre as ainidades apontadas, sublinha a série de cinco pares de janelas ogivais, que uma intervenção arqueológica recente pusera a descoberto bem como o que parece ser a organização interna em duas divisões: uma antecâmara, virada a nascente e aberta a norte pelo par de janelas formalmente mais rico, em arco trilobado, e uma sala grande, iluminada pelas restantes janelas. Rodrigues, 1999: 303-307. Sendo este edifício um elemento chave para a discussão que aqui trazemos, em torno da permeabilidade do espaço de exercício do poder e dos modelos que possam ter estado na sua origem, a verdade é que as grandes transformações sofridas pelo paramento nascente, resultantes do acrescento de uma escada de acesso ao piso superior, adicionado já no século XIX, não permite conhecer qual o grau de abertura ao exterior desta fachada. Da mesma forma, no que toca às características da parede que divide os dois compartimentos, nada podemos acrescentar por não nos ter sido ainda possível aceder ao interior. 214 CASAS DA CâMARA OU PAÇOS DO CONCELHO: ESPAÇOS E PODER NA CIDADE TARDO‑MEDIEVAL PORTUGUESA originalmente aberta nos dois topos, a uma vasta sala, percorrida em todo o seu perímetro por um banco de pedra. Na parede intermédia, permitindo o acesso e a entrada de luz, abre-se um portal, ladeado por amplas janelas duplas. O edifício de Monsaraz, documentado desde 1362 e como o anterior implantado junto à igreja matriz, é também constituído por dois espaços adjacentes: um corredor e um compartimento amplo. Se o primeiro foi muito alterado em datas posteriores, o segundo, a sala de reuniões ou câmara propriamente dita, mantém ainda praticamente intacta a sua coniguração original destacando-se a parede poente, virada à rua principal ou Direita e rasgada por três janelas duplas (que coniguram pelo exterior uma série de seis janelas de arco apontado), bem como a composição de vãos do paramento sul, aquele que separa a sala do corredor/galeria, com portal de arco quebrado ao centro ladeado por amplas janelas geminadas. Fig. 2. Monsaraz, antiga Casa da Câmara. Este esquema, similar ao de Estremoz, remete claramente para a organização característica das salas capitulares, monásticas ou catedralícias, onde o dispositivo portal – dupla janela se rasgava sobre uma das naves ou galerias do claustro. Admitindo a frágil representatividade de apenas dois casos, nada nos impede de conjecturar como, confrontados com a necessidade de criar um espaço próprio para as suas reuniões, os homens bons de meados do século XIV possam ter procurado inspiração nas velhas salas do capítulo, funcionalmente idênticas e já amplamente testadas, por eles próprios, de resto, que a elas tantas vezes recorriam por empréstimo22. Nos claustros, como agora nas casas da câmara, a solução de galeria associada a uma sala rasgada por uma série de janelas respondia a Era, por exemplo, o caso de Guimarães, onde o concelho reunia frequentemente na sala do cabido da igreja de Santa Maria. Ferreira, 1997: 526. Também no Porto a vereação recorria ao claustro de S. Francisco, ou em Castelo Rodrigo ao de Santa Maria. Em Braga utilizava-se o claustro da Sé. Cortes portuguesas. Reinado de D. Fernando I, vol. II: 95 e 287. 22 215 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA exigências várias: fazer preceder um espaço de reunião de um espaço de espera capaz de albergar um número considerável de pessoas; criar, entre um e outro, e logo, entre os membros que reúnem no interior e os que aguardam e observam do exterior, uma relação visual e auditiva permitindo, se necessário, diferentes níveis de participação23. Fig. 3. Casa da Câmara medieval de Avis. Vista sobre a fachada norte onde se encontra a série de cinco janelas duplas. Estruturalmente diverso mas mantendo intacta e desenvolvendo até essa característica de permeabilidade entre o espaço interior e o espaço exterior, encontramos um outro edifício, igualmente datável dos primeiros tempos: os paços do Concelho de Bragança, comummente designados por Domus Municipalis. Mais do que o facto de integrar no seu interior a cisterna (situação repetida em Chaves e Montemor-o-Novo) importa sublinhar como o vasto salão, rodeado a toda a volta por um banco de pedra, surge rasgado em todas as cinco faces por uma série contínua de janelas em arco. O uso recorrente de soluções arquitectónicas vazadas, que os edifícios sobreviventes atestam, sai reforçado pelos testemunhos escritos: recorde-se a referência ao “paço em arcos” do Porto ou, numa versão mais rudimentar, o alpendre onde o conselho de Guimarães reunia, em 135324. Em Évora, para a casa do concelho situada junto ao castelo velho, utilizada pelo menos até 1446, alude-se à “crasta nova” e à “quintaa das casas da fala”25, expressões que apontam, uma vez mais, para uma solução espacial próxima de um claustro ou galeria aberta sobre um pátio, para o qual dava também a casa da fala, aqui entendida como sinónimo de câmara. Da análise conjunta de todos estes casos emerge um primeiro denominador comum: a concepção de um espaço vazado e permeável, a um tempo protegido Sobre as funções requeridas pelas comunidades monásticas à sala do capítulo veja-se Stein-Kecks, 2003: 159. 24 Ferreira, 1997: 526. 25 Pereira, 1998: 144; Cortes Portuguesas, reinado de D. Fernando I, vol. II: 131. 23 216 CASAS DA CâMARA OU PAÇOS DO CONCELHO: ESPAÇOS E PODER NA CIDADE TARDO‑MEDIEVAL PORTUGUESA e aberto ao exterior. Esta opção tipológica foi, de resto, comum a toda a zona de inluência mediterrânica. As laubia, loggeas, perxes ou lonjas tornaram-se, desde o século XIII, um dos mais característicos traços identiicativos dos edifícios de gestão concelhia, da Lombardia à Península Ibérica. Portugal não constituiu uma exceção. A fortuna do modelo justiica-se facilmente por uma associação antiga entre espaços porticados e duas práticas concretas: o exercício da justiça e o desenrolar de atividades comerciais. Ora qualquer destas duas funções ocupou um lugar central no âmbito da gestão concelhia. Fig. 4. Paços do Concelho de Barcelos. Era em pórticos térreos que os monarcas ou os seus representantes exerciam a justiça. É essa tradição que sustenta a sua presença em palácios portugueses como Sintra, Belas, Tentúgal ou Barcelos26. A justiça concelhia, que era ainal também um braço da justiça régia, adoptaria o mesmo esquema: é disso exemplo o alpendre do ouvidor no Funchal logo depois substituído pela “logea de bayxo onde se fazem as audiências”, ou os “Alpendres em que se fazem as audiências” 27 registados para Évora. Duarte de Armas permite-nos visualizar o que seria, possivelmente, a 26 27 Silva, 1995: 216-217. Respetivamente Vereações da Câmara Municipal do Funchal. Século XV: IX e Moniz, 1984: 56. 217 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 5. Paço de Sintra (pormenor). versão mais rudimentar deste tipo de estrutura, ao incluir na vista panorâmica de Ouguela um simples alpendre encostado ao exterior da muralha, legendado por “aquj fazem audiencya”28. Associada à função judicial, a utilização da Casa da Câmara para atividades comerciais terá sido, porventura, até mais determinante. Os Paços do Concelho acolhiam no seu interior, ou na sua proximidade imediata, o monopólio de determinadas transações. Por necessidade de controlo e iscalização, a venda de cereais e carnes recaía sob a sua alçada direta pelo que fangas e açougues ocuparam frequentemente o piso térreo dos edifícios camarários. E mais uma vez, as arcadas surgiram como a resposta adequada, prolongando, de resto, uma associação milenar entre espaços de mercado e pórticos, arcadas ou galerias. Os próprios edifícios de patrocínio régio onde a atividade comercial se encontrava de alguma forma presente, contribuíam para consagrar essa mesma associação: recorde-se o Paço da Ribeira, os Jerónimos ou o Hospital Real de Todos os Santos. 28 218 Duarte de Armas, Livro das Fortalezas, l. 30. CASAS DA CâMARA OU PAÇOS DO CONCELHO: ESPAÇOS E PODER NA CIDADE TARDO‑MEDIEVAL PORTUGUESA Assim, e apenas a título de exemplo, em Viana do Castelo, Guimarães e Braga, é sob os arcos que se faz a venda do pão; em Vila do Conde, a determinação abarcava todas as mercadorias que chegassem por terra, em carros, bestas ou ao colo”, devendo aí permanecer por três dias durante os quais eram negociadas na arcada do edifício. Em Leiria, no século XVI, a relação fazia-se sobre os açougues. Em Coimbra, os açougues de carne e pescado ocupavam o piso térreo porticado do edifício camarário reediicado na Praça Velha, na segunda década de Quinhentos. Em Setúbal, pela mesma época, casa do concelho, açougue e paço do trigo confrontavam entre si, unidos por extensa galeria. A mesma proximidade física entre açougues, fangas e sede concelhia existia em Faro, na Praça de Marvila em Santarém, na Praça da Porta de Alconchel em Évora ou, a partir de inícios do século XV, em Ponte de Lima29. Em síntese, tudo parece concorrer para a adopção de estruturas vazadas nos edifícios destinados à gestão urbana: possibilidade de reunir de forma mais ou menos alargada consoante os assuntos em debate, exercício e visibilidade da justiça ou troca de produtos são, em qualquer dos casos, ações que explicam a associação entre espaços fechados e outros que estabelecem uma relação aberta com a envolvente urbana. Associação que se faz no sentido horizontal – caso de Estremoz e Monsaraz – ou no vertical, com arcada térrea e sala no sobrado, como veremos na esmagadora maioria dos próximos exemplos. A partir de meados de quatrocentos, de norte a sul do país, assiste-se a um verdadeiro surto construtivo que atinge o auge no reinado de D. Manuel. As vereações reclamam novos edifícios mais condizentes com a nobreza da vila ou cidade, mas também com a “nobreza” a que essas mesma elites se pretendem guindar. Como sublinhou Maria Helena Coelho, “estas aristocracias urbanas mimetizam os códigos e valores da aristocracia de sangue. Vestem-se à maneira da nobreza, habitam nas melhores ruas, rodeiam-se de criadagem .[...] Desilam nas procissões e nos cortejos em montadas ricamente ajaezadas e envergando vestes e joias ricas e deslumbrantes, entram na igreja com grandes comitivas e ocupam os lugares mais honoráveis”. Enim, “ostentam a riqueza, o poder e a honra. Em vida e na morte” 30. Não espanta, por isso, que na consolidação do modelo arquitectónico da sua sede de atuação política seja igualmente detetável uma aproximação deliberada à imagem do paço da nobreza. Não se trata agora das arcadas cuja presença se justiica (também) por questões funcionais, embora tal seja já um primeiro ponto 29 Para Vila do Conde veja-se Marques, 1983: 33-34 e 68-69; o caso de Leiria em Gomes, 1990: 74; para Coimbra, Rossa, 2001: 575; para Setúbal, Câmara, 1992: 66; sobre Faro, Iria, 1990: 225-226; para Santarém e Évora veja-se respetivamente Beirante, 1980: 74 e Beirante, 1995: 116; inalmente para Ponte de Lima, Andrade, 1990: 24. 30 Coelho, 1999: 284. 219 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 6. Paços do Concelho de Guimarães. de contacto. Referimo-nos concretamente à apropriação de elementos próprios da heráldica paçã31, de que os coroamentos ameados (entretanto liberalizados pelo poder régio) ou a adopção da torre são exemplos paradigmáticos. Se os primeiros foram recorrentemente aplicados nos edifícios concelhios – Guimarães, Barcelos, Viana do Castelo, Braga ou Évora –, a torre encontrou em Barcelos e no Porto a sua melhor expressão. Ao indar a centúria de Quatrocentos, a Casa da Câmara ou Paço do Concelho tornava-se indiscutivelmente um dispositivo retórico de prestigio e airmação social compensando, porventura, a perda efetiva de poder que um estado progressivamente mais centralizado e atuante inevitavelmente signiicava para as elites locais. Uma prova de que a arquitetura nobre era um paradigma conscientemente mimetizado pelas vereações encontra-se nos modelos que os homens-bons do Porto elegeram para a torre que então erguiam e que conhecemos através do conApenas a título de exemplo comparem-se os Paços do Concelho de Viana e Guimarães com a obra joanina no Paço de Sintra, concretamente o pórtico sob a Sala dos Cisnes ou o que resta ainda da logea manuelina da Casa Cordovil, em Évora. 31 220 CASAS DA CâMARA OU PAÇOS DO CONCELHO: ESPAÇOS E PODER NA CIDADE TARDO‑MEDIEVAL PORTUGUESA trato celebrado, em 1443, entre a cidade e o mestre de carpintaria del-rei Gonçalo Domingues: a escada de madeira, seria idêntica à “de pedra do Paço do Senhor Bispo que vai para a sua Câmara”; quanto ao tecto de madeira da câmara propriamente dita, seria feito “pela guiza que Nosso Senhor El-Rei mandou fazer a sala do castelo de Lisboa” ou doutra “guisa” melhor ainda, e “todo pintado de muito boa pintura, e formoso, e de boas tintas”32. Os edifícios assim erguidos apresentam um inequívoco “ar de família”: dois pisos, arcada no térreo, janelas ou varanda no superior, coroamentos ameados. A cada piso, corresponde um conjunto de funções diferentes e de compartimentos/ espaços especializados. à visibilidade das soluções arquitectónicas, pela qual as vereações projetavam de si próprias uma imagem de grandeza, acresceu a escolha de uma nova implantação, de forte impacto urbanístico e absoluta centralidade. Fig. 7. Paços do Concelho de Viana do Castelo. 32 Bastos, 1937: 252-258. 221 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 8. Paços do Concelho de Braga (Mapa das Ruas de Braga, ADB, 1750). Barcelos, Viana, Guimarães, Funchal, Évora, Braga ou Setúbal são os casos paradigmáticos, os três primeiros ainda existentes, embora transformados, os restantes apenas conhecidos por documentação escrita, alguma da qual invulgarmente detalhada. Vejamos então, ainda que de forma necessariamente rápida, alguns destes exemplos: em 1516, os homens bons de Guimarães diziam necessitar de uma “nova casa do concelho como cumpria à vila”33. Erguida entre a Praça de Santiago e o Largo de Nossa Senhora da Oliveira, veio consolidar em arcada monumental as velhas e frágeis estruturas alpendradas – recorde-se o velho o alpendre onde, em 1342, se fazia a venda do grão. No piso superior, rasgado por amplas janelas e coroado por merlões, reuniam regularmente as vereações. A mesma necessidade de renovação do edifício camarário fez-se sentir em Braga, ainda em meados do século XV. Em 1442, a pobreza dos velhos paços, nas proximidades da Sé, era a razão apresentada pelos procuradores da cidade ao regente 33 222 Ferreira, 1997: 525. CASAS DA CâMARA OU PAÇOS DO CONCELHO: ESPAÇOS E PODER NA CIDADE TARDO‑MEDIEVAL PORTUGUESA D. Pedro, a quem solicitavam 15 a 20.000 reais para a construção de uma “boa e fermosa casa de concelho”34. Mais de sessenta anos decorreriam até que o pedido fosse atendido, não já pelo poder central, mas por D. Diogo de Sousa, arcebispo de Braga, entre 1505 e 1532. Coroado por ameias, elevava-se em três pisos: o térreo aberto em “hum allpendre com dous arquos grandes e assentos de pedraria pera se vender pão”; o primeiro sobrado para as audiências; o último, guarnecido de “allmarios pera escripturas e cousas da cidade”35. Se nos casos de Braga e Guimarães se optou por manter a localização, renovando desde os alicerces os edifícios, os casos seguintes deixam bem patente a vontade do monarca, tanto quanto das vereações, de conigurar uma “nova centralidade” criando espaços onde, como destacou Walter Rossa36, se concentraram os principais equipamentos urbanos e os símbolos tangíveis de um estado centralizado. Em Évora, nas primeiras décadas do século XVI, assistiu-se à construção de um novo edifício implantado no topo da praça, o mais central dos espaços públicos. Com uma arcada térrea na fachada oriental onde, para além da cadeia, estavam Fig. 9. Paços do Concelho de Évora (fotograia de 1898). 34 35 36 Almeida; Barroca, 2002: 144. A descrição está publicada em Maurício, 2000: vol. II: 295-303. Rossa, 1995: 260-263. 223 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA instaladas seis boticas, apresentava no piso nobre uma varanda virada à Praça, rematada por alinhamento de ameias, correndo entre os coruchéus. Em Barcelos, a casa da câmara abandonou o velho largo do Apoio, preterido a favor do espaço em torno da matriz, onde veio a ser erguido o novo paço concelhio. Referenciado já em 1432, recebeu nova campanha de obras na segunda metade da centúria de que resultou a solução formal do edifício que o recente restauro deixou à vista. às arcadas térreas e coroamento de ameias associou-se, neste caso, o simbolismo da torre, criando um sugestivo diálogo senhorial com o fronteiro paço do duque. Finalmente, dos exemplos sobreviventes, resta referir Viana do Castelo que, entre 1501 e 1510, associou à nova implantação, no então centralíssimo Campo do Forno, antigo rossio exterior à muralha, o partido arquitectónico esperado: piso térreo vazado por arcaria apontada, câmara no piso nobre, remate de merlões. No caso do Funchal a procura de centralidade foi ainda mais evidente uma vez que os equipamentos existentes acabavam praticamente de ser inaugurados. Por exigência de D. Manuel elegeu-se o chão do duque onde câmara do concelho, paço de tabeliães e pelourinho deveriam icar juntos. Da solução formal adoptada sabemos, através das recomendações enviadas a Brás Afonso Correia, que a câmara deveria ser sobradada e “tam grande e tall que na logea de bayxo se podessem fazer as audiências”37, ou seja dois pisos, sendo o térreo vazado. O caso de Setúbal representa o culminar das principais tendências registadas no processo de coniguração de um modelo de edifício de gestão pública. Na praça do Sapal, a “praça noua”, descrita como “o milhor e mais nobre lugar da uila” e com projeto delineado na corte, conhecido nas suas linhas mestras através do regimento de obra datado de 152638, entrevemos um edifício de grande porte, com frontaria rasgada em dupla arcaria sobreposta, formando a do piso térreo um alpendre e a superior uma varanda. Coroavam o edifício “duas grinhas com suas bolas de cobre e bandeyras e auitos de samtiago”. Ao carácter funcional do alpendre térreo, onde se encontrava o paço do trigo, o açougue e a cadeia, contrapunha-se o carácter nobre do piso superior, destinado a câmara e sala audiências, com varanda solhada de castanho, dotada de peitoril e arcos de pedraria. A obra estaria terminada em 1537. Que à própria época estes novos espaços urbanos – verdadeiros dispositivos retóricos de representação e poder – foram tidos por excepcionais, prova-o a determinação de D. João III, obrigando todos quantos vivessem na praça ou das suas janelas a avistassem a participar nos custos, por receberem “beneicio e melhoria pelo nobresjmento que aí se fez”. 37 38 224 Vereações da câmara municipal do Funchal, século XV: IX. Documentação publicada por Câmara, 1992: 55-84. CASAS DA CâMARA OU PAÇOS DO CONCELHO: ESPAÇOS E PODER NA CIDADE TARDO‑MEDIEVAL PORTUGUESA E nessa procura de enobrecimento, que de norte a sul varreu os principais municípios aliando esforços de monarcas e vereações, o papel principal coube à casa da câmara ou paço do concelho, inalmente consolidado num tipo arquitectónico tão eicaz do ponto de vista funcional, quanto simbolicamente expressivo. BIBLIOGRAFIA Alberto I., O Algarve nas corte medievais portuguesas do século XV, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1990. Almeida, C.; Barroca, M., História da Arte em Portugal. O Gótico, Lisboa, Presença, 2002. 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ABSTrACT: his paper aims to understand the genesis of city halls in Portuguese medieval cities. he chronology, the reasons beyond it, the spaces occupied or constructed for that speciic purpose as well as it’s evolution are some of the main topics in discussion. Keywords: City hall, Urban space, Political power seat. Este texto é uma breve síntese do capítulo “Casa da Câmara” incluído na dissertação de doutoramento que apresentei em 2009, à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Toda a informação aqui contida remete, tanto em desenvolvimento temático como em referências bibliográicas completas para Trindade, 2009: 743-802. 39 227 O IMPACTO dA RUA NOvA dO PORTO NO URbANISMO, CONSTRUÇÃO E SOCIEdAdE Mª hElENA PIzARRO PAUlA SANTOS1 O presente artigo tem como pano de fundo a Rua Nova do Porto, nos séculos XV e XVI. Pretende-se compreender qual o impacto que esta rua teve no urbanismo e na construção, mas também na sociedade do burgo portuense. Assim, este artigo dividir-se-á em dois grandes pontos, entre o Antes e o Depois da Rua Nova. Ao debruçar-me sobre esta temática tornou-se imprescindível conhecer o cenário existente no espaço que viu crescer a Rua Formosa – nome que era usado pelo rei João I. Assim, temos conhecimento, através de alguma informação contida em documentos anteriores a 1395 e à decisão “política” da sua construção, que já existia aqui um quotidiano, que este espaço era palco de um conjunto de atividades e vivências que remontariam, pelo menos, até ao período romano. Período que icou melhor conhecido graças às intervenções arqueológicas no centro histórico, que revelaram como se organizou a ocupação territorial, e que foi precisamente nesta zona que se estabeleceu o fórum, as termas, as habitações, entre outros aspectos típicos do mundo romano. Não houve um hiato ocupacional entre a romanidade e a data da inauguração da rua, na Idade Média. Para datas anteriores mas próximas da abertura da Rua Nova, em 1364, conhece-se um aforamento de umas casas da Coroa nesta zona do centro do Porto, mencionando-se a existência de algumas hortas, o Armazém do Rei e a Rua das Congostas2. Num outro documento, feito nove anos depois, são Arqueóloga pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto; Mestre em História Medieval e do Renascimento pela mesma faculdade. E-mail: mh_pps@yahoo.com 2 Chancelaria de D. Pedro I (1357-1367), 1984, p. 481. 1 229 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA reveladas algumas vielas, o Rio da Vila e uma casa de pedra junto a este e ainda a torre de Estevão Lourenço3. Outros arruamentos, edifícios, espaços e acessos foram referenciados em documentos anteriores à construção da Rua Nova, fazendo-nos ver que já existiria um urbanismo suicientemente organizado. Ruas que contariam com circulação de pessoas e mercadorias, por São Nicolau e a rua pública da Ribeira, que de momento desconheço qual seria, mas que nas quais Magalhães Basto menciona a existência de várias casas, em 13164. Segundo Ferrão Afonso, a zona a ocidente da atual rua da Reboleira já apresentava alguma relevância no séc. XIV, o que de alguma maneira vem esclarecer a orientação da Rua Nova. Contudo, o investigador sublinha que a mesma situação não era visível a nascente desse mesmo arruamento, fundamentando-se numa passagem de um documento da Leitura Nova, a qual refere a “Rua da Fonte Dourina que vai direita para Miragaia”5. Ainda assim, para a Reboleira, não possuo documentação sobre aforamentos que antecedessem a centúria de Quatrocentos, o que me leva a acreditar que só no decorrer do século XV, provavelmente com a abertura da Rua Formosa, esta zona terá alguma organização em termos urbanísticos. Gostaria de mencionar o “Ressio da Ribeira”, espaço onde decerto haveria gente a vender peixe e pão, a carregar e a descarregar navios com madeira e outros produtos, conforme sugestão de um documento de 1392. Não tinha ainda a função de Praça onde se desenrolava o mercado da cidade, mas caminhava nesse sentido. Outros elementos pré-existentes neste espaço que estamos a analisar foram detectados ao longo da minha investigação, mas considero da maior pertinência inseri-los um pouco mais adiante, quando falar das alterações que se izeram notar na área estudada. O que importa realmente é compreender de que modo tudo isto “reagiu” à abertura da nova rua. Interessa conjugar o antes e o depois da obra da Rua Formosa para analisarmos os efeitos desta no modo de pensar e organizar a malha urbana; como foi entendida e projetada a construção dos edifícios relativamente a fachadas e alçados; e, ainda, de que maneira interferiu com o modus vivendi e estatuto social das personagens que deram vida a esta zona ribeirinha. Penso que as suas dimensões tornaram-se, de imediato, numa mudança irreversível no que respeita a rua e urbanismo medievais. Inevitavelmente, a Rua Nova veio alterar a Referido por AFONSO, José Ferrão, A Rua das Flores no séc. XVI..., 2000, p. 72. A transcrição é retirada de A.D.P., Cabido, nº 804, Sentenças, l. 10. 4 BASTO, Artur de Magalhães, Desenvolvimento Topográico da Cidade – Sécs XII-XV..., p. 128. 5 A.N.T.T., Leitura Nova, Além Douro, Liv. 2, l. 93v (20 Julho, 1388). 3 230 O IMPACTO DA RUA NOVA DO PORTO NO URBANISMO, CONSTRUÇÃO E SOCIEDADE paisagem no sentido em que as ruas e vielas que com ela comunicavam começaram a parecer mais estreitas e escuras do que na realidade eram. Por im, o que se pretende com este artigo é também mostrar o quão importante e inovador foi a crescente existência de património régio na cidade do Porto. As regras estipuladas pelo monarca relativamente ao urbanismo, construção e ambientes sociais, vieram alterar a vida do burgo, com os seus diversos serviços, atividades e estatutos, na medida em que viu alguns dos seus espaços e edifícios perderem a funcionalidade e, consequentemente, o seu interesse. Ocupemo-nos agora, um pouco, com a Rua Nova propriamente dita, apresentando algumas das circunstâncias da sua criação e fazendo o ponto da situação historiográica, para se compreender qual é, na verdade, o ponto de partida para este meu trabalho. Importa, portanto, relembrar alguns dos aspectos que acompanharam o fenómeno urbano do Porto medieval, de forma a inscrevermos a rua em estudo no espaço e contexto de que foi, indiscutivelmente, parte integrante. O Porto, outrora senhorio eclesiástico, vai sofrer grandes alterações após as estadias de D. João I. Pouco tempo depois da sua terceira e muito longa estadia, em 1394, o monarca deu início à construção da Rua Nova nos terrenos que alguns investigadores consideram, de forma discutível, “subtraídos à jurisdição Episcopal”6. Para além de querer retribuir à cidade o quanto ela fez e apoiou para que o Mestre de Avis chegasse onde chegou, o monarca pretendia construir no Porto uma rua que fosse digna de ser designada como património régio e que fosse palco de uma crescente vivacidade e atividade que se fazia notar; portanto, uma rua larga, comprida e arejada. Já muito se escreveu sobre este tema no que respeita ao património régio e eclesiástico, às questões inanceiras e urbanísticas. Quando se fala em Porto medieval é quase inevitável referir-se a Rua Nova, até porque já foi matéria de estudo para diversos trabalhos. Foi por muito tempo considerada a “jóia da cidade”, tornando-se o modelo de projetos urbanísticos vindouros e, sem dúvida, veio personalizar a zona ribeirinha. Segundo vários historiadores e escritores foi, durante séculos, uma das ruas mais afamadas do Porto, pois admirava pelas suas dimensões e também pelo luxo das casas nela construídas. Como já foi sugerido, grandes ruas, como a Rua Nova, diicilmente se encontra mais do que uma por povoação. Não nos podemos esquecer de que o prestígio e importância de uma rua, tanto nos tempos medievais como nos de hoje, advém da sua posição geográica em relação à cidade, das ruas e edifícios com que comunica, dos meios de ligação que fornece, das atividades que nela decorrem e, inalmente, das pessoas que nela moram ou que, de algum modo, com ela se relacionam. Não nos passe despercebido 6 MARQUES, José, Património Régio na Cidade do Porto e seu Termo nos inais do século XV, 1980. 231 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA que a Rua Nova é construída numa zona que estava em galopante desenvolvimento, devido à sua proximidade com o rio e aos negócios que ali começaram a proliferar. Teremos em conta, também, que nas imediações se encontra a Casa da Moeda, a Alfândega do Rei, a Bolsa de Mercadores, o Paço dos Tabeliães, a Casa do Ver-do-Peso, o Convento de S. Francisco e o Convento de S. Domingos. Foi, portanto, um cenário que propiciou um estudo mais aprofundado, que atraiu muitos investigadores e nos deixou um ponto de partida, ideias e considerações sobre a rua Formosa. Relativamente à organização do espaço e das atividades proissionais, também vamos assistindo a diversas mudanças com o aparecimento da Rua Nova. É sabido que estas atividades eram, muitas vezes, realizadas em plena rua e, tendo como base desta temática o importante trabalho do Prof. Arnaldo Melo7, pretendo corroborar algumas das suas airmações com dados recolhidos dos contratos da Leitura Nova. Deste modo, temos, por exemplo, o caso representativo do ‘local’ dos tanoeiros, que no século XIV se concentravam em frente à Alfândega, onde se situavam as casas “em que moram os tanoeiros” – um chão para casas aforado em Vale-de-Pegas em 1387, “ que estam amte o dito almazem em que moram os tanoeiros”8. Em 1425, ainda se mencionam estas casas dos tanoeiros. Pouco se sabe, até à data, sobre como se processou a distribuição dos diversos ofícios e negócios pela Rua Nova. Sabe-se que havia mesteres que não deviam ser realizados na cidade, mas sim nos arredores; no entanto, não é dado adquirido dizer que esta ou aquela proissão não podia ser exercida na própria rua. Ainda assim, penso também que neste ponto a Rua Nova se apresentou como uma novidade, pois na maioria dos contratos analisados frisava-se que não era permitido exercer determinados ofícios na rua, nem à face desta. Isto porque se pretendia uma rua limpa, com espaço, arejada e calma, e desejava-se inovar a imagem de rua no meio urbano, para que se distinguisse das demais, nos seus mais diversos sentidos. É de realçar, por isso, que a Rua Nova não foi só inovadora no traçado: nela não se permitiu o exercício a céu aberto, como era tradição na Idade Média, de ofícios como o da tanoaria: temos a prova ilustrada no caso de Gonçalo Anes Adão9. No meu ponto de vista, este documento mostrou-se importantíssimo, para se compreender em que aspectos a Rua Formosa se apresentou verdadeiramente diferente e inovadora. Podemos retirar desta passagem a vontade, por parte do monarca 7 MELO, Arnaldo de Sousa, Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média: O Porto, c. 1320 – c. 1415, 2009. 8 A.N.T.T., Leitura Nova, Além Douro, Liv. 2, l. 134, segundo Ferrão Afonso, In AFONSO, José Ferrão, A construção de um novo centro cívico…, 2000, p. 37. 9 Aforamento de umas casas na Rua Nova “com comdiçam que o dito Gomçalle Annes Adam nom lavrasse de seu oiçio de tenoaria em façe da dita Rua Fremosa sallvante de tras das ditas casas comtra as Camguostas” ; A.N.T.T., Leitura Nova, Além Douro, liv. 2, ls. 4v – 7. 232 O IMPACTO DA RUA NOVA DO PORTO NO URBANISMO, CONSTRUÇÃO E SOCIEDADE e das autoridades locais, de iniciar um processo de ‘arrumação’ e soluções higiénicas que, apesar de longo, vai acabar por acontecer. Leva-nos também a acreditar que, se não era permitido trabalhar na tanoaria em plena rua, outros ofícios seriam também, por maioria de razão, proibidos – como os dos carniceiros, por exemplo. Quanto à construção existente, pensa-se que as casas que aí se encontravam eram de arquitetura e construção de luxo, todas idênticas entre si, feitas na sua maioria de “madeira telha e pedra”; e a sua dimensão também não deveria ser muito distinta. Conceição Falcão escreveu, em 1997, que o “máximo de crescimento em altura não ultrapassou, até aos inais de Trezentos, o nosso conceito de casa com rés-do-chão, e dois pisos”10. Observámos um caso, na Rua Nova, junto a S. Nicolau, de uma casa à qual não foi concedida a possibilidade de possuir um segundo sobrado. Alguns investigadores sustentam a ideia de que esta proibição demonstra uma certa vontade de criar um nivelamento dos alçados, o que nos leva a pensar que a rua não seria assim tão nivelada como se tem vindo a airmar, ao longo dos tempos. A uniformidade não era apenas visível no número de sobrados. Pensamos poder falar de toda uma construção e divisão que se pretendia homogénea, fundamentando a nossa ideia com expressões tais como “lhas acabassem de todo o que lhes fosse compridoiro segumdo o que se fez aas outras casas que na dita Rua Nova ja sam fectas” ou “fossem feitas e acabadas e corregidas de todo pomto assi como eram feitas as outras que estavam na dita rua”. Denota-se um interesse pela igualdade no padrão, talvez para marcar um tipo de arquitectura, acabamentos, materiais e, aparentemente, de uma certa organização de compartimentos. O último ponto deste meu artigo – o Depois da Rua Nova – pretende abordar algumas das alterações que esta rua provocou no espaço onde tomou lugar. Revestiu-se de um impacto tal que muitas das mudanças subsequentes permanecem até aos dias de hoje. Assim, devemos relembrar que o projeto que foi pensado e desenhado era bastante ambicioso. Ou seja, construir um arruamento rectilíneo em plena malha urbana do Porto, caracterizada – como ainda hoje – pela sinuosidade típica das suas ruas, foi algo pensado para se fazer notar. Pretendia-se que aquela rua fosse o símbolo do prestígio e do poder do monarca; a marca de excelência foi, sem dúvida, o grande passo que se começou a dar no processo levado a cabo relativamente ao património régio no burgo portuense. A concretização de tamanho projeto impunha diversas condições. Entre elas destaca-se o consequente alargamento de ruas pré-existentes – caso da rua das 10 FERREIRA, Maria da Conceição Falcão, Guimarães ‘duas vilas, um só povo’ – Estudo de História Urbana (1250-1389), Braga, 2010, p. 340. 233 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Congostas – ou as que muito mais tarde se abriram, tal como Mouzinho da Silveira – não a atual, mas a via primitiva. Neste sentido, foram sendo destruídos os edifícios que ultrapassassem a linha recta deinida, num processo que desconheço. Vejamos uma outra alteração que se fez notar aquando da nova construção. Tudo parece indicar que a formação da Praça da Ribeira como local de mercado, na concepção que hoje temos, esteja também relacionada com a abertura da Rua Nova. Só em 1401, posteriormente à abertura da Rua Formosa, surge, e julgo que pela primeira vez, a menção expressa à Praça da Ribeira. E, como já referi anteriormente, será tendo em conta o exemplo daquela rua que se vai desenrolar o projeto de reconstrução da Praça11 – não só no que respeita a pavimentação mas também ao prestígio que se lhe pretendia atribuir, talvez por ser um elemento de serventia da rua de D. João I12. Fátima Machado sustenta a ideia de que, na verdade, “das cinzas13 nasceu um novo espaço mais amplo, mais racional e mais cuidado do ponto de vista urbanístico e estético”14, porque, de facto, era isto o pretendido para este espaço e envolvente. Entre o inextricável panorama de ruas, estreitas na sua maioria, com a sua conhecida irregularidade e imundície, começam-se a evidenciar algumas mais amplas e com um traçado mais “racional”, como será o caso, após 1521, da Rua das Flores15. No entanto, neste micro espaço e, tendo em conta a temática do Colóquio16, será pertinente falar de uma situação particular que nos remete para uma zona que envolvia um rossio, um forno e um arco grande. Penso poder airmar, com base na documentação disponível, que estes três elementos são anteriores à abertura da Rua Formosa, mas também contemporâneos com a mesma, pelo menos numa parte do período sobre o qual me propus debruçar. Contudo, vão ver diminuída – se não anulada – a sua expressão e funcionalidade, com a organização urbanística que se pretendia com este novo arruamento. Assim, comecemos por nos localizar. Temos, neste espaço, uma viela – referenciada desde o século XV – que se encontra nas traseiras das casas sitas na margem 11 Após o incêndio de 1491/1492 que delagrou nesta zona. Apesar de não conhecermos as proporções concretas do incêndio, sabemos que muitas bancas e casas foram reduzidas a cinzas. 12 No trabalho de Maria de Fátima Machado, é referido que a “Câmara da cidade viu-se a braços com a necessidade de reconstruir um centro vital da atividade comercial e social portuense” e ainda que esta “se ora novamente fez por nobrecimento da cidade”. MACHADO, Maria de Fátima Pereira, A Praça da Ribeira no Porto Manuelino, 1997, p. 233-234 (pp. 231-246). 13 Queremos chamar atenção que este incêndio remete para o inal do século XV. 14 MACHADO, Maria de Fátima Pereira, obra citada, p. 233. 15 OLIVEIRA, J. M. Pereira de, O Espaço Urbano do Porto. Condições Naturais e Desenvolvimento, 1973, pp. 243-245. 16 Colóquio Evolução da Paisagem Urbana: Economia e Sociedade (Universidade do Minho/Braga – 05 e 06 de Maio de 2011) 234 O IMPACTO DA RUA NOVA DO PORTO NO URBANISMO, CONSTRUÇÃO E SOCIEDADE norte da Rua Nova, paralela a esta, partindo do cruzamento com a Rua das Congostas. Segundo vários autores, esta viela funcionava como uma rua de serviço e estaria, como é de supor, associada a um acesso que, através de um documento de 141117, se pode considerar provável que fosse para a Bolsa de Mercadores que se previu existir, ainda que, neste momento, não tenha sido mais que um projeto. Esse mesmo documento é de uma riqueza extraordinária – não só para compreendermos este assunto, como também torna mais perceptível e completo, aos nossos olhos, a micro-realidade que se pretende trabalhar18. Nalguns documentos analisados é referido um Rossio por detrás das casas da Rua Nova onde, na mesma zona se menciona um portal, o qual era formado pelo tal arco grande, tendo este sido escolhido, na casa que aí existia, como ideal para se estabelecer a Bolsa dos Mercadores19, por não possuir loja e, portanto, não ser adequado para habitação. Curiosa esta ideia, pois elucida-nos acerca da existência de um processo, de algum modo rígido, na forma como se pensava a projeção habitacional da Rua Nova. Posteriormente, observa-se a demolição de umas casas no cabo nascente das Congostas, o que nos leva a pensar num outro aspecto: a importância que teve este arco e a sua consequente perda de interesse. Em primeiro lugar, tínhamos de perceber se foi projetado numa lógica moderna de articulação de espaços ou se apenas serviu para ceder passagem a um espaço público anterior. Esta segunda hipótese mostrou-se mais bem fundamentada; não só por nos parecer que faria sentido que o arco estabelecesse o acesso para o Rossio, como também algumas das intervenções arqueológicas nesta zona puseram a descoberto uma calçada, perpendicular à Rua Formosa, que deve ser anterior ao século XIV e que passaria no local onde se encontrava o arco. Segundo Ferrão Afonso, parte desta calçada foi inutilizada – ainda antes da abertura da Rua Nova – para a construção da Casa da Moeda, cujo edifício ainda se mantém no local. Com o sucessivo fecho do arco, esta calçada deixou de ter utilidade, pois já não exercia a função para a qual possivelmente foi construída. Assim sendo, compreende-se agora a razão para a demolição da casa de que há pouco falava. Ou seja, se a passagem já tinha sido obstruída pelo acrescento de uma loja na casa construída no arco, tornava-se imperativo a abertura de uma nova viela a ocidente de acesso ao rossio e à rua de serviço que ainda há pouco mencionei. 17 Documento parcialmente transcrito no trabalho de AFONSO, José Ferrão, A construção de um novo centro cívico…, 2000, p. 42. (A.N.T.T., Leitura Nova, Além Douro, liv. 2, ls.4v – 7.) 18 O referido documento – aforamento de umas casas ao tanoeiro Gonçalo Anes Adão – menciona “ho portal gramde que foi estabellicido pera aa Rua das Camguostas”, entre as casas da Rua Nova. (A.N.T.T., Leitura Nova, Além Douro, liv. 2, ls. 4v – 7) 19 Decidiu-se criar a Bolsa em 1402, mas foi apenas em 1412 que a mesma se instalou na Rua Nova. 235 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Nesta zona de que se está a tratar, situava-se a torre de Estevão Lourenço, como anteriormente já foi referido. Só a título de curiosidade e, para se compreender que não é estranho veriicar alterações nas plantas urbanas quando se trata de necessidades públicas e/ou particulares através do normal crescimento das cidades, acrescento que esta torre, mais tarde, já no século XVIII, e a casa da Rua Nova que lhe icava na frente, foram demolidas para a construção da Feitoria Inglesa20. Há investigadores que não excluem a hipótese de que este cenário seja proveniente de um urbanismo pensado e organizado, com uma razão de ser, e não apenas motivado pelas necessidades do homem medieval. Assim, justiicam esta ideia alegando as dimensões consideráveis do arco e que este, curiosamente, se encontra próximo do centro geométrico do lado norte da Rua Formosa; como se existisse a tendência de se criar um determinado arranjo simétrico. Ou seja, apresentam esta calçada que foi posta a descoberto, e que era perpendicular ao rio, como sendo o eixo de simetria em torno do qual se traçou a Rua Nova. Mas então podemos nós concluir que a Rua Formosa não foi, na sua totalidade, uma inovação extraordinária em termos urbanísticos, como sempre foi reconhecido? Terão estes homens aproveitado o que já existia para simplesmente criar uma rua larga e arejada? Será, ainal de contas, um reaproveitamento dos eixos principais do mundo romano – tomando a rua Nova como decumanus e a rua dos Mercadores ou a calçada que referimos como cardus – para dar resposta ao desenvolvimento crescente da zona ribeirinha? Podemos concluir então que, na verdade, existiram alterações importantes na planta da cidade, como consequência da abertura desta via. O que não podemos airmar é que ela seja o relexo de um urbanismo pensado e desenhado, radicalmente diferente do modo como se projetava o urbanismo anteriormente a 1395, pois existiam diversos factores favoráveis e, de certa maneira, apelativos para que o projeto da sua abertura, traçado e dimensões fosse daquela maneira e não de outra. É curioso como, por vezes, podemos complicar o que pode ser bastante simples. Para os homens medievais a construção daquela rua pode não ter sido algo de extraordinário como nós hoje imaginamos que poderá ter sido. Os edifícios que ali foram erguidos, a pretendida uniformidade dos seus alçados e fachadas e todas as suas gentes é que poderão, na realidade, ter feito a verdadeira diferença! Assim, poderemos dizer que o seu traçado terá sido, quem sabe, o ponto de partida para uma evolução em termos de paisagem urbana e de ocupação? Perante tal obra, toda a construção das suas casas e ambiente social teria que estar à altura e teria de ser minuciosamente escolhido e rigidamente controlado, segundo parâmetros estipulados pelo monarca. Deste modo, os foreiros teriam de obedecer às obrigações 20 236 AFONSO, José Ferrão, A construção de um novo centro cívico…, 2000, p. 34. O IMPACTO DA RUA NOVA DO PORTO NO URBANISMO, CONSTRUÇÃO E SOCIEDADE e proibições apresentadas nos contratos, no que respeita à colocação das armas da Coroa nas fachadas, à permissão ou proibição de terem eixidos, privadas, escadas, etc., de construção de mais sobrados, os critérios aplicados aos negócios e mesteres ali existentes e de venda e/ou doação das casas e, por im, que respeitassem o estatuto social pretendido – que, curiosamente, foi bastante tido em conta nas primeiras décadas após a abertura da Rua, mas que, gradualmente, foi passando para um plano secundário, ultrapassado pela capacidade inanceira dos moradores para as obter e lhes aplicar obras de manutenção. Vim a veriicar que foi esta elite endinheirada que, aos poucos, alterou a malha urbana consoante as suas necessidades e vontades. Sabíamos que os limites da Rua Nova eram o Convento de S. Francisco e a Rua dos Mercadores. No entanto, estranhava o estreitamento da rua no troço que medeia a Rua de S. João e a dos Mercadores. E vai ser precisamente o conhecimento de iguras que transitavam e/ou habitavam por esta zona, de as relacionar com a construção urbanística, que nos irá dar uma resposta, pois foi através de uma delas, o mercador João Martins Ferreira, que me apercebi que, só mais tarde, esse troço fará parte da Rua Nova. Tendo o rio de Vila como barreira, o mercador lançou uma ponte para aceder à Rua Formosa. Inicialmente, talvez se tenham colocado apenas algumas tábuas que permitissem esse acesso, mas o facto é que estava aqui a ligação que fez com que a rua se estendesse até à dos Mercadores. Portanto, também ao monarca interessava não só gente com elevado estatuto social mas também com poder sobre a cidade e, com certeza, poder inanceiro para desenvolver cada vez mais e melhor esta zona, assim como as casas que ali se construíam. Concluo, portanto, que a abertura da Rua Nova não só veio alterar a paisagem urbana como também o seu conceito alterou o modo de construir, viver e pensar a cidade. Terá sido o ponto de partida para um urbanismo que se pretendeu mais organizado, arejado e com uma funcionalidade intrínseca. FoNTES E BIBlIogrAFIA Fontes manuscritas A.D.P., Cabido, nº 804, Sentenças, l. 10. A.N.T.T., Leitura Nova, Além Douro, Liv. 1 – 5. Fontes impressas Chancelaria de D. Pedro I (1357-1367), edição preparada por A. H. de Oliveira Marques, Lisboa, 1984: 481 p. 237 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Bibliograia AFONSO, José Ferrão, A construção de um novo centro cívico: Notas para a História da Rua Nova e da zona ribeirinha do Porto no século XV, Museu, IV série, nº 9, 2000. AFONSO, José Ferrão, A Rua das Flores no séc. XVI, Elementos para a História Urbana do Porto Quinhentista, vol. I, F.A.U.P. Publicações, Porto, 2000: 72 p. ALMEIDA, Carlos A. Brochado de; ALMEIDA, Pedro M. D. Brochado de, Vestígios romanos encontrados na Rua Mouzinho da Silveira – Porto, Revista Portugalia, Nova Série, vol. XXIII, 2002. BASTO, Artur de Magalhães, Desenvolvimento Topográico da Cidade – Sécs XII-XV, in História da Cidade do Porto, vol. I, Porto, 1962,: 128 p. FERREIRA, Maria da Conceição Falcão, Guimarães ‘duas vilas, um só povo’ – Estudo de História Urbana (1250-1389), Braga, 2010: 340 p. MACHADO, Maria de Fátima Pereira, A Praça da Ribeira no Porto Manuelino, Revista da Faculdade de Letras: História, série II, vol. 14, 1997: 233-234 (pp. 231-246). MARQUES, José, Património Régio na Cidade do Porto e seu Termo nos inais do século XV, Actas do Colóquio “O Porto na Época Moderna” II, Revista de História, vol. III, 1980. MELO, Arnaldo de Sousa, Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média: O Porto, c. 1320 – c. 1415, tese de Doutoramento, vol. I, Braga, 2009. OLIVEIRA, J. M. Pereira de, O Espaço Urbano do Porto. Condições Naturais e Desenvolvimento, vol. I, Coimbra, Instituto da Alta Cultura – Centro de Estudos Geográicos, 1973: 243-245. ANEXoS Quadro I. Número de foreiros por proissão. Proissões Nr. Foreiros Proissões Nr. Foreiros Ourives 2 Marinheiro 1 Criado do Rei 2 Vassalo do Rei 1 Escrivão dos Contos do Porto 1 Ama 1 Escudeiro idalgo 2 Almoxarife da Alfândega 2 Mercador 15 Cavaleiro 3 Tanoeiro 3 Escrivão das sisas do haver do peso, ferro e madeira 1 Criado de outrém 5 Barbeiro-mor 1 Homem do Armazém 1 Mercador-mor 1 Picheleiro 3 Tesoureiro da Moeda no Porto 1 Tabelião 2 Recebedor das sisas dos panos 1 Homem do Rei 1 Contador 2 Escudeiro 5 Procurador 1 Correiro 2 Mestre 1 Porteiro dos Contos 1 Barbeiro 1 ToTAl 45 238 18 O IMPACTO DA RUA NOVA DO PORTO NO URBANISMO, CONSTRUÇÃO E SOCIEDADE Quadro II. Número de moradores por proissão. Proissões Nr. Moradores Proissões Nr. Moradores Tabelião 5 Escrivão da Moeda 1 Mercador 10 Recebedor das Terçenas 1 Amos do Infante D. Pedro 2 Patrão 1 Ferrador 2 Almoxarife 2 Esteireiro 1 Cavaleiro da Casa Real 2 Ferreiro 1 Vogado 1 Criado do Rei 2 Tanoeiro 1 Carpinteiro 1 Barbeiro 2 Alcaide de Leiria 2 Escrivão das Sisas 1 Almoxarife das Terçenas 1 Ourives 1 Vedor da Fazenda 2 Procurador 1 Marinheiro 1 Caldeireiro 1 Picheleiro 2 Porteiro dos Contos de Ceuta 1 Escrivão dos Contos 1 Feitor 1 Tosador 1 Alfaiate 1 Criado de 2 Cutileiro 1 Contador 1 Tesoureiro 1 Total 37 20 239 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. I. As armas da Coroa “abertas em pedra e pintadas no frontal” das casas da Rua Nova, ainda existentes numa das casas. Fig. II. Planta da Rua Nova de José Ferrão Afonso. (AFONSO, José Ferrão, A construção de um novo centro cívico: Notas para a História da Rua Nova e da zona ribeirinha do Porto no século XV, Museu, IV série, nº 9, 2000.) 240 O IMPACTO DA RUA NOVA DO PORTO NO URBANISMO, CONSTRUÇÃO E SOCIEDADE rESUMo: Este artigo é parte de um reabrir da página da História da Rua Nova, numa investigação que analisou assuntos, ainda pouco esclarecidos até à realização da referida, num período que abrange os séculos XV e XVI. Pretende-se, com o mesmo, compreender de que forma esta nova Rua, sita na zona ribeirinha do Porto, interferiu na forma de agir e de pensar o urbanismo, tendo em conta as regras estipuladas pelos monarcas (visto tratar-se de património régio) no que respeita à organização de espaços, construção do ediicado, o seu embelezamento, sua inovação e marcas próprias, e, ainda, o estatuto social que, cada vez mais, lhe foi intrínseco. Trata-se, portanto, de uma rua que se pretendia arejada, limpa e, principalmente, inovadora em variadíssimos aspectos. Para clariicar as ideias surgidas da investigação que levei a cabo, proponho a análise do Antes e do Depois da construção da Rua Nova, para que seja possível compreender, grosso modo, qual o impacto causado no urbanismo que, anteriormente, se fazia e, por contraponto, o que se começou a veriicar, pouco a pouco, na zona ribeirinha do Porto, a partir de 1395, aquando do arranque da sua construção. Pretendo, desde já, deixar claro que a construção da Rua Nova foi, sem dúvida, uma medida inovadora, em especial no seu traçado e dimensões, bem como no luxo das suas casas (que decerto seriam melhores que as restantes). Penso poder mesmo airmar que a dita Rua veio alterar, de uma forma irremediável, o modo de como se pensava o urbanismo, se tivermos em consideração, a título exempliicativo, os efeitos sob a maneira de organizar a malha urbana, a forma como foi entendida e projetada a construção no que concerne a fachadas e alçados, e, ainda, de que maneira interferiu com o modus vivendi das personagens que deram vida a esta zona. Antes de qualquer análise, revela-se fundamental compreender que, inevitavelmente, a Rua Formosa de D. João I veio alterar a paisagem portuense uma vez que as ruas e vielas que com ela comunicavam começaram a parecer mais escuras e estreitas do que na realidade eram. Portanto, não é de estranhar o signiicativo impacto que esta Rua, que muitos designaram por praça, terá tido no mundo medieval. Palavras-chave: Porto medieval, Rua Nova, Urbanismo, Construção, Património régio. ABSTrACT: his article is a part of a page reopening on the Rua Nova’s History, in the ambit of a research performed which examined several issues (poorly understood until the mentioned study), during the period 15th and 16th centuries. Its main objective is related to the demonstration how this new street, located in the Oporto’s riverside, interfered in the way of acting and thinking of the urban planning, bearing in mind the rules that were set by the monarchs (once it is considered as royal heritage), regarding the organization of spaces, building’s construction, its beautiication, innovation and own brands, as well as the social status which was, increasingly, sank in it. Considering the above, it was expected to be an airy, clean and, mainly, innovative street in many diferent ways. In order to clarify the ideas raised from research performed, it is proposed an analysis of the Before and Ater of the Rua Nova’s construction, so that it can be possible to understand, roughly, what was the impact on the urbanism concept previously assumed and, by contrast, what has been started to be implemented, in a slowly way, at the Oporto’s riverside, from 1395, when it began to be build up. It should be clearly understood that the Rua Nova’s construction was, with no doubt, an innovative measure, especially on its layout and dimensions, as well as the building’s luxury (in fact, the buildings were certainly considered better than the others located on other streets). Furthermore, it is reasonable to airm that the mentioned Street has changed, irremediably, the way how urbanism concept was interiorized, namely in what concerns 241 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA to the efects on organizing the urban fabric, how it was understood and designed for building facades and elevations, and also the terms that it has interfered with the modus vivendi of the people that brought life to that zone. As a starting point, it is fundamental to consider, inevitably, that the Rua Formosa, from the king D. João I, has changed the Oporto’s landscape in the sense that the streets and alleys which communicate with the Street began to look darker and narrower than they really were. So, it is not surprising that the impact of this street (named square by many people) was enormous in the medieval world. Keywords: Oporto medieval, Rua Nova, Urban planning, Construction, Royal heritage. 242 NA PASSAgEM dO ESTREITO: EvOlUÇÃO URbANA dO “CASTElO PEqUENO” ENTRE MOUROS E CRISTÃOS JORgE CORREIA1 ANTECEDENTES HISTórICoS Seleccionamos para esta comunicação o caso de Alcácer Ceguer, “pequeno espaço” satélite e estratégico no apoio a Ceuta e na aproximação a Tânger. (Fig. I) A presença portuguesa no Norte de África, do ponto de vista da intervenção na paisagem urbana, desenvolve-se entre 1415, com a conquista de Ceuta, e 1769, com a evacuação de Mazagão. Actualmente designado por Qsar es-Seghir, este local foi conhecendo várias designações ao longo dos tempos que mantiveram sempre o preixo Qsar – castelo –, evidência do seu carácter militar. Aquando da primeira invasão árabe da Península Ibérica, em 711, já existiria nesta localização, no território da tribo Masmuda, uma pequena fortaleza, que passaria a ser denominada de Qsar Masmuda, e que funcionaria como ponto estratégico de passagem do Estreito de Gibraltar para a conquista da Europa2. Idrissi, na primeira metade do século XII, apontava-o também como Masmuda, atestando a construção naval como a principal actividade3. Entretanto, ainda no século XI, Al Bekri designava-o por Qsar Awwal, registando EAUM Escola de Arquitectura da Universidade do Minho / CHAM Centro de História de Além-Mar, Universidade Nova de Lisboa e Universidade dos Açores / jorge.correia@arquitectura.uminho.pt. Esta comunicação tem por base o texto publicado na tese de doutoramento do autor, bem como a recente missão de campo no âmbito do projecto FCT/CNRST “Cidades e arquitecturas de origem portuguesa no norte de Marrocos: Alcácer Ceguer e Arzila”, EAUM, CHAM e a Direction Régionale de la Culture – Tanger/ Tétouan. Direction Régionale de la Culture - Tanger/Tétouan (DRC-TT). 2 Cf. Encyclopédie de l’Islam, 1960-2005, IV, 759. 3 Idrissi, 1866, 202. 1 243 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. I. Planta geral das ruínas de Qsar es-Seghir (EAUM, CHAM, DRC-TT). 244 NA PASSAGEM DO ESTREITO: EVOLUÇÃO URBANA DO “CASTELO PEQUENO” ENTRE MOUROS E CRISTÃOS as boas condições portuárias e vastas lorestas nas imediações, suporte para os estaleiros navais4. Os percursos ascendentes das invasões almorávida e almôada tomam este entreposto como principal porto de embarque de tropas para a Península. Yacoub al Mansour, cabeça do ímpeto almôada, troca Ceuta por este porto como local privilegiado de atravessamento, daí herdando a designação de Qsar al-Madjaz – castelo da passagem5 –, reforçando a mancha construída com mesquitas e casas, povoando-a com muitos marinheiros, mercadores, oiciais e outras gentes6. O crescimento da importância estratégica deste local veria o seu corolário em 1287, com a construção de uma muralha fortiicada, com portas monumentais, por Abu Yacoub Ysuf7, concorrendo para a ideia de uma localidade não só dependente da ligação marítima, mas também capaz de gerar riqueza internamente. A prosperidade da vila perdia-se, porém, à medida que os árabes iam perdendo terreno no Al Andalus, fenómeno inclusiva e simbolicamente conirmado pela nova alteração do nome da povoação para Qsar es-Seghir (Alcácer Ceguer) – castelo pequeno –, durante o século XIV. UMA IDEIA PArA A UrBE ISlâMICA Das escassas informações disponíveis, sucintamente expostas atrás, é possível inferir uma primeira ideia acerca da morfologia urbana de Alcácer Ceguer em meados do século XV, imediatamente antes da conquista portuguesa. (Fig. II) Tratava-se de uma localidade árabe e muçulmana em declínio de importância e perda de inluência num período em que quer a outra margem do Estreito, quer a vizinha cidade de Ceuta estavam já em mãos cristãs, castelhanas e portuguesas, respectivamente. As principais estruturas escavadas revelaram uma distinção entre três aspectos fundamentais da compreensão da Alcácer islâmica: a cintura amuralhada, os equipamentos públicos e as habitações. A localização das duas principais permeabilidades, as portas do Mar (Bab al-Bahar) e de Ceuta (Bab es-Sebta), parecem concorrer para a distribuição dos locais de reunião e encontro – mesquita, banhos públicos (hammam) e mercado – e para a determinação dos movimentos mais importantes de pessoas nas áreas norte e nordeste da urbe, ao longo do principal canal de comunicação. Al Bekri, 1918, 206. Guimarães, 1916, 224. 6 Francisco de Andrade, Chronica do muito alto e muito poderoso rei d’estes reinos de Portugal D. Joao III d’este nome, Lisboa, 1613, in Gozalbes Busto, 1975, 69. 7 Redman, 1978a, 154. 4 5 245 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. II. Reconstituição esquemática da cidade islâmica 1. Bab al-Bahar (Porta do Mar) 6. Perímetro urbano 2. Bab Sebta (Porta de Ceuta) 7. Zona residencial 3. Bab Fes (Porta de Fez) 8. Rio 4. Mesquita maior 9. Praia 5. Hammam (banhos públicos) 246 NA PASSAGEM DO ESTREITO: EVOLUÇÃO URBANA DO “CASTELO PEQUENO” ENTRE MOUROS E CRISTÃOS Será relativamente pacíico admitir uma superfície urbana compreendida entre o posicionamento das duas portas encontradas, entre as quais a praia impõe por si um limite natural, e o curso do rio que, com o seu trajecto sinuoso, descreve a curva que estabelece fronteira a oeste e a sul. Todavia, o desenho quase perfeito de uma circunferência não parece encaixar na tradição de construção de cortinas fortiicadas no Norte de África ou Al Andalus, protagonizada por almorávidas, almôadas ou merínidas. Contudo, poder-se-á ler em Alcácer Ceguer uma réplica do modelo circular da grande capital abássida, Bagdad? Por comparação com as cidades magrebinas ou peninsulares de alguma importância, centros de decisão, inluência ou difusão de ideias ou critérios – Fez, Marráquexe, Sevilha ou Córdoba – observa-se que a organicidade dos contornos defensivos, por opção ou constrangimento, impera sobre a geometria regular. Apesar de as ciências arqueológicas não terem ainda respondido indubitavelmente a esta questão, alguns factos são ixos e incontornáveis: o posicionamento das portas em tempo islâmico, alguns troços de muralha encontrados nos níveis estratigráicos das construções islâmicas intra-muros, a dimensão reduzida da mancha urbana e, daí decorrente, a possibilidade excepcional de uma escolha de traçado circular entre os séculos XII e XIII. Os equipamentos de maior relevância conirmam, uma vez mais, a tendência exclusiva no universo islâmico para a reunião em espaços públicos encerrados – mesquita e hammam –, à excepção do mercado ou ruas comerciais, dada a impossibilidade da averiguação da existência ou não de uma alcaçaria ou mercado coberto (kissaria). Provavelmente situadas na vizinhança dos edifícios que asseguravam dois requisitos do Islão, a oração e a higiene, as artérias comerciais providenciavam o local para a venda de víveres e artefactos, quer através de lojas ixas, quer no espaço aberto disponível. Assim, antes da chegada dos portugueses e com base nos vestígios encontrados, percebe-se como a grande superfície da mancha urbana de Alcácer Ceguer era formada por um imbricado de ruelas que conduziam o transeunte até à soleira da sua casa, num processo de hierarquização viária desde os canais de tráfego mais solicitados – do zanqat ao derb. Várias unidades de habitação foram escavadas pela equipa de Charles Redman, revelando uma tipologia habitacional integrada na grande tradição mediterrânea vernacular. O plano quase que invariavelmente se dispunha a partir de uma entrada iltrada em cotovelo para um pátio central donde se efectuava a distribuição dos diversos compartimentos: salas, cozinha, latrina8. (Fig. III) Este era o estado de uma povoação muçulmana em letargia em meados de Quatrocentos. 8 Idem, 164-168. 247 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. III. Casa islâmica, 1978 (IMHT). A ForMAlIZAção Do DoMÍNIo PorTUgUêS A 23 de Outubro de 1458, Alcácer Ceguer foi conquistada por D. Afonso V, icando D. Duarte de Meneses como capitão da vila. O impacto da tomada portuguesa fez-se logo sentir simbolicamente com a consagração da mesquita maior como igreja, numa cerimónia carregada de simbolismo9. Os primeiros dias foram preenchidos com a reconstrução de alguns panos de muro e valas, ainda sob direcção real10. É possível que durante esta operação se tenha procedido à correcção e regularização do traçado da muralha nas zonas mais afectadas pelos assaltos portugueses, nomeadamente entre as portas do Mar e de Ceuta, onde se poderá desconiar da amarração da actual muralha com a Porta de Ceuta. Devido à exiguidade das dimensões da urbe islâmica pré-existente, não é de crer num processo de atalho como aquele que acontecia na vizinha Ceuta, ou seja, a uma redução voluntária de perímetro e área por razões de sustentabilidade militar. São três as principais crónicas sobres a conquista e estabelecimento dos portugueses na nova vila de Alcácer Ceguer: Pina, Chronica d’El-Rei D. Afonso V, 1901; Zurara, Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, 1978; Góis, Crónica do Príncipe D. João, 1977. 10 Gois, op. cit., 39. 9 248 NA PASSAGEM DO ESTREITO: EVOLUÇÃO URBANA DO “CASTELO PEQUENO” ENTRE MOUROS E CRISTÃOS Porém, a quase perfeição da circunferência amuralhada, regularmente marcada por torreões circulares salientes, continua a suscitar dúvidas quanto à sua autoria e datação. Poderá este desenho corresponder a um esforço de regularização, pegando apenas na premissa de racionalização geométrica também inerente a uma operação de atalho, em detrimento da redução de superfície defensável, injustiicável em Alcácer? De facto, esta vila constituirá, por ventura, uma excepção no panorama geral das apropriações portuguesas de fortiicações e tecidos muçulmanos no Magrebe, onde o atalho constituiu uma técnica sempre presente e onde as novas muralhas assumiam o real papel de fronteira de soberania e credo. O frequente assédio militar que o sultão de Fez imporia logo após a tomada portuguesa11, fomentava a progressão das obras nas fortiicações da vila, não só devido aos danos causados pelos ataques mouros, mas sobretudo com vista à idealização de uma praça sustentável com ajuda exterior em caso de constrangimento físico por asixiamento militar. A estratégia passava pela construção de uma couraça, uma obra vivida sob grande tensão provocada pelo inimigo, mas que contava com o apoio material – cal e cantaria – enviado pelo reino. Tratar-se-ia de uma couraça, um espigão em túnel, diverso daquele que ainda hoje aponta para o mar nas ruínas de Alcácer Ceguer. Como nos conta Zurara, a sua localização icaria, em termos gerais, entre as portas do Mar e de Fez, sobre o rio, em direcção ao monte adjacente12. Fig. IV. Torreão circular da Porta do Mar e praça de armas no interior do castelo português. 11 12 Encyclopédie de l’Islam, op. cit., vol. IV, 759. Zurara, op. cit., 206. 249 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA No entanto, em 1460, a mesma Porta do Mar viu-se metamorfoseada para alojamento do capitão, por falta de condições de habitabilidade nobre no resto da vila13, elegendo a antiga Bab al-Bahar como charneira administrativa e de comunicação marítima com o exterior, ou seja, como castelo da vila, aproveitando os dois portais monumentais em arco de ferradura apontado e ligados por um corredor em cotovelo que se distribuía por duas Fig. V. Momçaom in Armas, 1997, l. 133. antecâmaras abobadadas. (Fig. IV) Simultaneamente, o ângulo nordeste da dita porta era reforçado com um torreão circular mais elevado para defesa e vigilância da praia e desembocadura do rio. A erecção da nova torre/atalaia recoloca a questão da datação da cintura amuralhada de Alcácer Ceguer na medida em que a série de torreões, que pontuam a muralha circular em intervalos constantes, aparecem morfologicamente semelhantes à torre. Por outro lado, como se aludiu atrás, a vila inscreve-se num circunferência de noventa metros de raio, cuja regularidade do traçado não só faz supor um projecto, como também traz à memória uma tradição de recintos acastelados ou amuralhados tendencialmente circulares da raia portuguesa – Freixo-de-Espada-à-Cinta, Melgaço ou Monção – claramente expostos nas gravuras de Duarte de Armas14. Aliás, acrescente-se a proximidade diametral entre algumas das vilas mencionadas, nomeadamente Monção, e a praça magrebina. (Fig. V) A consubstanciação do processo não pode ter sido fruto de um gesto imediato à tomada da vila, estando os portugueses mais atarefados no repúdio dos assaltos inimigos. Todavia, em 1473, quando Rodrigo Anes foi nomeado mestre das obras dos lugares de África15, as condições poderiam estar reunidas em Alcácer para a elaboração de um plano de obras a médio prazo. No entanto, um verdadeiro e documentado projecto ediicativo só viria a iniciar-se em deinitivo no início do século XVI, icando registado no auto de medição “(…) E por que naquella uilla nom auya casas em que se elle bem podesse aloiar. Todo o mês de Setembro entendeo em mandar fazer huuns paaços muy nobres com que afortellezou e afremosentou o castello da uilla. (…)” in Zurara, op. cit., 235. 14 Armas, 1997, ls. 129, 131, 132v e 133, respectivamente. 15 IAN-TT, Chancelaria de D. Afonso V, liv. 33, fol. 211v. In Sousa Viterbo, 1899-1922, I, 4. 13 250 NA PASSAGEM DO ESTREITO: EVOLUÇÃO URBANA DO “CASTELO PEQUENO” ENTRE MOUROS E CRISTÃOS de Alcacere realizado por Boitaca em 151416. A primeira campanha aparece documentada sob a forma de regimento dado a Pêro Vaz, vedor das obras, em 150217. Aí se faz menção a Fernão Gomes, pedreiro de Faro, como mestre das obras, num conjunto de instruções dedicadas, quase na integralidade, à reforma da couraça que se fazia então em Alcácer. Aparentemente, a primeira couraça voltada ao rio ter-se-ia tornado obsoleta e um novo espigão se lançava agora sobre a praia. (Fig. VI) Fig. VI. Vestígios da couraça portuguesa sobre a praia. O objectivo principal era prolongar a estrutura até ao mar. A extremidade seria rematada com dois torreões redondos. Entre os cubelos rasgava-se a porta principal de serventia marítima da couraça e nos interiores dos mesmos estavam as bocas de bombardeira ou troneira distribuídas pelos andares. Para além deste objectivo, o documento aponta curiosamente a continuação do “corregimento” dos muros da vila acaso sobrasse algum dinheiro, claro: “(…) E se depois da dicta obra acabada o outro muro da villa ou barreira ouver mester alguu corregimemto que seja necesario fa lo ees e gastarees niso qualquer dinheiro que vos sobejar. (…)”, nova alusão aos trabalhos de intervenção na muralha da vila, já em tempo português. Estando o regimento de 1502 essencialmente concentrado na construção de uma extensa couraça para o mar e sendo bastante lacónico no que ao resto do castelo ou vila diz respeito, seria um novo regimento, datado de 20 de Dezembro de 1508, 16 Livro das medidas de Arzila, Alcácer, Ceuta e Tânger, feitas por mestre Boytac e Bastião Luiz em 1514, in IAN-TT, Núcleo Antigo, nº 769, ls. 6-36. 17 Instruções a respeito das obras da vila de Alcácer Seguer, Lisboa – 16 de Junho de 1502 e Regimento a Pêro Vaaz que vay a Alcácer fazer as obras d’Alcacer, Lisboa – 22 de Junho de 1502, in As Gavetas da Torre do Tombo, 1960-1977, V, 213-217. 251 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. VII. Reconstituição da vila no século XVI, com as obras de Danzilho 1. Baluarte da Praia 9. Edifício denominado “assembleia da vila” 2. Baluarte de Fez 10. Igreja de S. Sebastião 3. Baluarte de Ceuta 11. Terreiro 4. Castelo 12. Rua Direita 5. Porta do Mar 13. Couraça 6. Porta da Vila 14. Rio 7. Igreja matriz 15. Praia 8. Prisão 16. Seinal 252 NA PASSAGEM DO ESTREITO: EVOLUÇÃO URBANA DO “CASTELO PEQUENO” ENTRE MOUROS E CRISTÃOS a impulsionar as reformas de Alcácer Ceguer, em particular do seu castelo18. Eis as principais ordens construtivas: a) deinição do perímetro acastelado, coroado por um caminho de ronda, uma forma tendencialmente quadrangular que contorna a antiga Porta do Mar islâmica; b) construção de cubelos no encaixe entre novo castelo e o muro da vila; c) para dentro da vila, o castelo far-se-ia comunicar e defender através de um novo baluarte semi-circular, munido de bombardeiras e ponte levadiça sobre a cava. Na mesma cota da Torre do Tombo, pode ainda ler-se uma avaliação de umas casas pertencentes a Brás Cebolinho, executadas pelo mestre das obras Martim Lourenço19. Da informação fornecida, retenha-se o pensamento, ao mesmo tempo pragmático e racional, da prioridade de um campo desafogado para a implantação do castelo sobre a demolição de um conjunto de casas particulares, ou seja, da primazia do interesse público e colectivo sobre o individual. Com o objectivo de continuar e fomentar este grande volume de trabalhos, chegou de Portugal o mestre biscainho Francisco Danzilho, em 151120. O que se conhece dessas obras foi medido pelo dito mestre Boitaca e seu escrivão, Bastião Luiz, a partir de 13 de Junho de 1514 e durante as duas semanas seguintes21. Danzilho veio, essencialmente, dotar as portas de Alcácer Ceguer de sistemas proto-abaluartados mais modernos. (Fig. VII) O Baluarte da Praia foi acrescentado ao castelo como plataforma sobre a frente marítima, introduzindo novas valências militares ao conjunto, agora com uma confortável praça de armas. Avançou-se na praia para defesa da couraça e vila, uma vez que o sector oeste do castelo se encontrava naturalmente resguardado pelo rio. O tiro era assegurado por um grupo de seis bombardeiras, previsto pelo regimento e distribuído equitativamente entre dois andares, ao qual se somava uma outra no andar de baixo, no eniamento da mesma parede de ligação leste, e mais três no muro norte para varrimento tangencial da couraça22. Este dispositivo fortiicado – Baluarte da Praia – aparece como chave do projecto manuelino para esta vila. (Fig. VIII) 18 Regimento das obras de Alcácer Ceguer, Évora – 20 de Dezembro de 1508 (IAN-TT, Corpo Cronológico, parte II, maço 19, doc. 106) in Moreira, 1991, II, 24-35. 19 Avaliaçam das casas de Bras Cebolinho, Alcácer – 9 de Setembro de 1511, in Moreira, op. cit., 32-35: “(…) foy dado juramento aos Santos Avangelhos per Pero Vaz veador das obras da vylla d’Alcaçer em Africa e per ... Symam Lopez escprivao dellas a Martym Lourenco mestre e a Nuno Afonso pedreiro que bem e verdadeiramente avaliase as casas de Bras Çebolinho que per bem do castello se deribaram (…)”. 20 Sousa Viterbo, op. cit., I, 272-274. 21 Livro das medidas de Arzila, Alcácer, Ceuta e Tânger, feitas por mestre Boytac e Bastião Luiz em 1514, in IAN-TT, Núcleo Antigo, nº 769, ls. 6-36. 22 Idem, l. 22. 253 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. VIII. Baluarte da Praia e praça de armas no interior do castelo português. A informação coeva fornecida acerca das medidas do novo baluarte da Porta de Ceuta coincide ainda com os restos dessa estrutura escavada pela equipa americana, veriicando-se a justaposição do aparelho português aos contrafortes da antiga porta islâmica, Bab Sebta23. A empreitada subdividiu-se em quatro novos lanços para formar uma pinça de protecção da porta. Estando Alcácer Ceguer conformada defensivamente, qual a constituição social e a disposição interna do tecido urbano no seu interior? Para uma população maioritariamente masculina, Valentim Fernandes na sua Descripçãm de Cepta por sua costa de Mauritânia e Ethiopia…, entre 1505 e 1507, adianta uma avaliação de oitocentos moradores. Este total acaba por coincidir com os cálculos da população portuguesa efectuados pelos arqueólogos americanos, após a quarta campanha de escavações, através de uma estimativa com base nas casas escavadas e nas amostras do cemitério24. Tal como na vizinha Ceuta, num cenário que se conirmaria em todas as ocupações lusas de cidades preexistentes, a adaptação dos principais equipamentos da medina muçulmana constituiu o processo mais comum para a implantação de pólos geradores de centralidades e movimentos. A mesquita maior foi imediatamente apropriada como igreja matriz da vila, tendo para o efeito recebido algumas 23 24 254 Idem, ls. 12-13v. Redman, Bonne, Myers, 1979-80, 281-282. NA PASSAGEM DO ESTREITO: EVOLUÇÃO URBANA DO “CASTELO PEQUENO” ENTRE MOUROS E CRISTÃOS transformações nos decénios que se seguiram. Para além da óbvia reconstrução do minarete como campanário, os tramos das naves mantiveram a mesma disposição e orientação. Na antiga qibla, junto ao nicho penta-facetado do mihrab, foi adicionada uma capela também com cinco faces no canto sudeste, podendo ser interpretada como uma cabeceira descentrada25. Na proximidade meridional desta igreja encontrava-se o antigo complexo de banhos, talvez transformado em prisão pelos portugueses. A divisão interna das diferentes salas aquecidas e vestiário pode ter sido convertida em celas e câmara de acesso, respectivamente. O largo do Terreiro, nas imediações da Porta da Vila, do baluarte do mesmo e da igreja matriz, assumia-se como um dos núcleos aglutinadores e difusores da dinâmica interna de Alcácer Ceguer. Também voltado para esse espaço público, foi escavado um terceiro edifício, mais para nordeste dos anteriores, e classiicado por Redman como equipamento civil para a assembleia da vila26. Ora, sabendo-se da inexistência de casas de câmara nas praças norte-africanas, onde o poder administrativo e judicial passava pelo capitão ou governador vindo directamente do rei, parece estranha a atribuição daquela função ao edifício. Poderia ter servido de armazém, dada a proximidade do castelo. Apenas novas campanhas arqueológicas poderão ensaiar uma resposta deinitiva. Noutra zona da vila, entre o Castelo e a Porta de Ceuta, situava-se uma outra igreja de proporções bem inferiores à matriz. Tratava-se da igreja de S. Sebastião, cujo desenho em planta descrevia o modelo mais vernacular da arquitectura religiosa portuguesa: dois rectângulos assimétricos justapostos pelos topos (nave e cabeceira). Esta igreja e suas casas, pertencentes à Misericórdia, abriam para a Rua Direita, o principal eixo viário da Alcácer portuguesa. A restante malha era pontuada por pequenos equipamentos colectivos, como moinhos, fornos e poços, que deiniam unidades residenciais compostas por várias casas, numa cobertura bastante equilibrada da superfície intramuros. As habitações portuguesas adaptaram-se às pré-existentes, mas muitas vezes impuseram novas plantas, mais próximas da rua, embora de matriz mediterrânica. De facto, uma maior abertura da arquitectura doméstica ao exterior traduz o efeito geral da apropriação da cidade herdada ao pensamento e exercício europeus que gradualmente foram desenhando uma malha mais disciplinada, procurando eniamentos e ortogonalidades. Para além de pequenas pracetas de surgimento espontâneo e natural, junto à Porta de Ceuta, em cruzamentos ou nas frentes dos ditos equipamentos, o espaço público de referência Informações mais detalhadas sobre os motivos decorativos e revestimentos do interior da igreja portuguesa podem ser recolhidas em: Redman, Bonne, 1979, 20-22. 26 Idem, 25. 25 255 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. IX. Antigo Terreiro, entre igreja e baluarte da Vila. era, de facto, o largo do Terreiro, entre a igreja e o castelo. (Fig. IX) Com base nos quadrados escavados da rede arqueológica, é possível tentar uma reconstituição parcial dos quarteirões e artérias centrais da vila portuguesa27, onde aparece um matriz viária tendencialmente regular. o FIM DE VIDA DA PrAçA à medida que se caminhava para meados do século XVI, a ameaça inimiga aumentava de proporções e de frentes e o volume de obras realizado durante o reinado de D. Manuel I no primeiro quartel da centúria tornava-se insuiciente. Dividido entre o perigo vindo do mar, protagonizado pelos turcos, ou a força crescente provinda do sul, o ascendente árabe culminaria com o cerco e conquista de Fez por parte do xerife meridional, em 154928. Se a perda de Santa Cruz do Cabo de Guer havia implicado a imediata evacuação da cidade de Saim e da vila de Azamor, a tomada da capital setentrional Fez estendeu o processo de relexão sobre a manutenção às praças portuguesas próximas do Estreito. Esta reconstituição adapta e completa a proposta de Redman, Boone, Myers, op. cit., 280, também consultável em Dias, op. cit., p. 70. Eis as amostras escavadas utilizadas para uma aproximação ao cenário urbano da fase portuguesa: E2N10, E4N15, E5N11, E5N7, E10N14, E13N15, E16N12 e E16N14, de 1975-76. 28 Ricard, 1937, 286-289. 27 256 NA PASSAGEM DO ESTREITO: EVOLUÇÃO URBANA DO “CASTELO PEQUENO” ENTRE MOUROS E CRISTÃOS No que a Alcácer diz respeito e tratando-se de uma vila de pequenas dimensões, a primeira reacção caracterizou-se por uma resposta pela força. Apesar das melhorias introduzidas no sistema defensivo no início de Quinhentos, a arquitectura militar começava a revelar sinais de desactualização face à evolução para a pirobalística. O rei decidiu-se então por uma translação da fortaleza de Alcácer para o monte sobranceiro, Seinal29, cuja defesa ainda poderia salvar a vila baixa. D. Afonso de Noronha, então capitão de Ceuta, deveria dirigir as obras segundo plano de Miguel de Arruda. No início do Outono trabalhavam arduamente mais de duas centenas de homens no Seinal. Todavia, a empresa parece abortar meses depois por decisão régia, suspendendo-se deinitivamente durante 1550. O avanço dos trabalhos à época parece difícil de avaliar visto não restarem quaisquer vestígios sobre o monte actualmente, sendo provável que o projecto de Arruda não tenha passado do risco. A decisão de D. João III preteriu Alcácer e o Seinal em favor de Tânger. Juntamente com Arzila, evacuou-se esta praça intermédia entre aquela cidade e Ceuta na segunda semana de Julho de 155030, não tendo Fez mostrado intenção de a repovoar. Reocupações efémeras não desvirtuaram aquilo que se perpetuou como último estrato português em Alcácer Ceguer, praticamente abandonado à ruína até ao presente e ameaçado pelos avanços clandestinos de um renascimento tardio da localidade. Hoje, face à proximidade geográica da construção recente do mega projecto portuário marroquino de TangerMed, a pressão aumenta. De novo e inalmente talvez, desviam-se os olhares para o interesse patrimonial deste enclave congelado de uma história partilhada. Graças à acção da Conservation du Site de Ksar Seghir, um arranjo recente do campo arqueológico permite uma valorização das ruínas pela sua descoberta através de acessos e um percurso informativo. (Fig. X) Porém, o capítulo cientíico da história da ocupação e povoamento deste sítio só agora foi reaberto com o projecto FCT/CNRST “Cidades e arquitecturas de origem portuguesa no norte de Marrocos: Alcácer Ceguer e Arzila”31. Dos resultados do levantamento e das campanhas arqueológicas espera-se que alguns pontos abordados nesta comunicação seja aprofundados ou revistos com vista a uma melhor compreensão do lugar de Alcácer Ceguer nas dinâmicas culturais do Magrebe, do Mediterrâneo e da Expansão portuguesa. Carta de D. João III a D. Afonso de Noronha, Almeirim – 27 de Fevereiro de 1549 (BNL – cód. 1758, ls. 325-328), in Les Sources Inédites de l’Histoire du Maroc, Archives et Bibliothèques de Portugal, IV, 1951, 310-315. 30 Fontoura, 1998, 167-168. 31 Ver nota 1. 29 257 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. X. Aspecto geral das ruínas. FoNTES Al Bekri, A. O. – Description de l’Afrique Septentrionale. Traduction par Mac Guckin de Slane. Alger, Typographie Adolphe Jourdan, 1918. Armas, D. – Livro das Fortalezas. Introdução de Manuel da Silva Castelo Branco; facsímile du ms. 159 de la Casa Forte do Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo. Lisboa, Edições Inapa, 1997. As Gavetas da Torre do Tombo, Lisboa, Centro de Estudos Ultramarinos da Junta de Investigações Cientíicas do Ultramar, 1960-1977, 12 volumes. Fernandes, V. – Description de la côte d’Afrique de Ceuta au Sénegal par Valentim Fernandes (1506/1507). 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As ruínas foram alvo de importantes campanhas arqueológicas por parte de uma equipa norte-americana, liderada por Charles Redman, na década de 1970. Os seus relatórios constituem um material essencial e o corpo analítico base para o estudo do sítio. Pretende -se realizar um ponto de situação face ao estado actual do conhecimento, bem como proporcionar uma revisão crítica no que às estruturas urbano-constructivas diz respeito, com particular ênfase para o tempo português. Palavras-chave: Alcácer Ceguer, Marrocos, Vila portuguesa, Castelo manuelino. Abstract: Among all former Portuguese possessions in the Maghreb, Qsar es-Seghir is the only to have remained as an archaeological ield. Withdrawals and ephemeral reoccupations have masked its past which corresponds to a sequence of the two main periods: the Arab settlement and the Portuguese occupation for nearly one century, between 1458 and 1550. he ruins were excavated by important missions carried out by an American team in the 1970s and led by Charles Redman. His reports are an essential material and the analytical basis for the study of this site. his paper wishes to provide an updated balance of its state of the art, as well as to ofer a critical review as far as its urban and built structures are concerned, especially in as far as regards the Portuguese is concerned. Keywords: Qsar es-Seghir, Morocco, Portuguese town, Manueline castle. 260 O PORTO vISTO dO RIO lUíS MIgUEl dUARTE1 Seria o Porto tardomedieval uma cidade portuária, estruturando-se, crescendo, respirando exclusivamente em torno do seu porto luvial-marítimo? Não o creio. Embora seja clara a importância do rio e do mar próximo no urbanismo e na vida da cidade, os ancoradouros, os locais de carga e descarga, as estruturas de apoio à navegação, de construção e manutenção naval dispersam-se por longas extensões e pelas duas margens, e sobretudo a cidade foi tendo sucessivos centros e vectores de crescimento, nem todos dependendo do rio. Imaginemos as duas margens do Douro até meados do século XIV, ou seja, até à construção da muralha gótica. Poderíamos até começar na presença romana, já que esta integrava perfeitamente a margem esquerda e a direita: a travessia do rio, obrigatória na importante estrada romana de Lisboa a Astorga, exigia uma preparação cuidada dos locais de embarque.2 Recordemos, em primeiro lugar, as condições naturais: tudo se passava – a superfície do rio e a ocupação das margens – a uma cota cerca de dois metros mais baixa do que actual, facilmente visível na inserção do Postigo do Carvão. As margens eram em larga medida orladas por ‘praias’, areais que na realidade são barras de meandro. Enim, antes da construção das barragens, na segunda metade do século XX, o regime do rio era muitíssimo mais irregular, com perdas acentuadas de caudal nos meses de verão e cheias torrenciais nos de inverno; navegava-se com alguma segurança no rio sete a oito meses no ano, e as marés podiam fazer-se sentir até cerca de 33 km adentro do curso do Douro3. O veio do rio era bastante profundo, desde perto da Foz até bem a montante da cidade, e muito perto da margem as águas permitiam a ancoragem de barcos de grande calado. Uma escassa meia légua, muito fácil de transpor, separava o porto da foz. 1 2 3 Universidade do Porto / CITCEM; lduarte@letras.up.pt Na margem esquerda seria o entreposto militar, na direita o comercial. Amândio Barros, Porto: a construção de um espaço marítimo…, p. 42. 261 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Foz que, ela sim, podia ser um tremendo obstáculo à navegação e ao comércio: da banda do sul, uma língua de areia mudava constantemente de coniguração4; e por todo o leito inicial do rio, com maior incidência perto da margem norte, multiplicavam-se perigosíssimos rochedos, na sua maioria submersos e portanto invisíveis. Em dias de nevoeiro e de mar picado, a barra fechava. Para subsistir como cidade de comércio luvial e marítimo, o Porto teve de minorar esta diiculdade. Fê-lo recorrendo a pilotos, que aguardavam em batéis em S. João da Foz e depois rebocavam cuidadosamente os barcos maiores pelo meio dos penedos escondidos; fê-lo ainda assinalando as rochas – através de uma cruz de ferro, de uma estátua à moda romana, ou simplesmente dando-lhes nomes em mapas e desenhos – ou tentando destruir algumas delas; fê-lo por último recorrendo a pontos de mira para uma navegação segura na margem direita: a ermida de Santa Catarina, no Ouro, o pinheiro da marca, depois a torre da marca.5 Fig. 1 – Planta da barra do Porto, assinalando cada rochedo perigoso. Dois barcos estão a ser conduzidos por batéis através dos obstáculos. Veja-se ainda o farol de S. Miguel-o-Anjo e os varais para secar o peixe no areal do Ouro, ou, em primeiro plano, os pescadores a lançar a rede. Isso aconteceu até muito recentemente. A construção dos molhes visou também estabilizar essa formação arenosa. 5 Mas com o curso serpenteante do rio, as duas margens podiam oferecer muitos outros pontos de referência a marinheiros experientes. 4 262 O PORTO VISTO DO RIO Até à construção do porto de Leixões, teríamos entre o Porto e Gaia um rio coalhado de barcos de diferentes tipos, funções e calado, visível em quase todas as gravuras e nas fotograias mais antigas – essa verdadeira loresta de mastros e velas que a cidade erguera, como única defesa, contra as tropas do Infante D. Afonso, sublevado contra seu pai D. Dinis. Fig. 2 – O Douro junto à Alfândega nova: entre os barcos maiores, ancorados no veio do rio, e as margens, uma verdadeira ponte de barcaças e batéis. O leito do rio era a zona de ancoragem: nos locais com areia, os barcos de maior calado não se podiam aproximar, naturalmente; mas havia outros pontos em que mesmo junto à margem as águas eram profundas e grandes navios podiam estar amarrados às margens. Nestas procedia-se ao embarque e desembarque, à carga e descarga; aí encontraríamos algumas infra-estruturas portuárias: cais, molhes, linguetas, estacadas, gruas, armazéns, fontes para a aguada dos navios. UM CoMPlEXo DE PorToS Não faz sentido, na minha opinião, fazer uma descrição meramente urbanística do Porto junto ao Douro. As paisagens naturais, humanizadas ou construídas, só ganham verdadeiro signiicado se integradas em histórias de ocupação humana e 263 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA em dinâmicas políticas seculares, de rivalidades tantas vezes ferozes entre a Igreja da cidade liderada pelo seu prelado, as elites que ascenderam ao governo da Câmara, a Coroa de Portugal e alguns idalgos que nunca desistiram de viver dentro de muros, no mínimo, ou de se assenhorearem mesmo do burgo, no máximo.6 A tensão constante entre a Coroa e a Sé, com a primeira a tentar recuperar, pela coação e mesmo através de alguns expedientes ilegais, o senhorio que dera livremente à segunda em 1120, ditou alguns gestos políticos que determinaram para sempre a coniguração urbanística e o desenvolvimento do Porto: assim a outorga do foral a Gaia, em 1255, por D. Afonso III7, ao desviar para a margem sul uma parte muito importante dos tráfegos luvial e marítimo, subtraindo-o aos impostos do bispo em favor dos da Coroa; ou a construção da alfândega régia, essa sim perfeitamente legal porque fora do couto episcopal, a partir de 1325. A concepção, primeiro, e o difícil processo de construção, depois, da Rua Formosa, só se entende como testemunho de um momento excepcional de equilíbrio e entendimento entre D. João I, os regedores da cidade e o bispo D. Gil Alma. Depois de ter posto a tónica na dimensão urbanisticamente inovadora desta rua, neste momento acredito que ela foi principalmente pensada para ser o instrumento inanceiro da mudança de senhorio.8 Ora são precisamente esses dois empreendimentos politicamente motivados – a alfândega e a Rua Nova – que estão no centro daquilo a que se tem chamado, talvez com exagero, a “revolução urbanística” da Ribeira do Porto no século XIV.9 Por outro lado, as duas margens com o conjunto de pequenas póvoas adjacentes, foram o palco de intensa actividade comercial, pesqueira, transportista, de construção naval, bem como bases militares navais e pontos de travessia do rio. Só podemos perceber integralmente a vida portuária da cidade se pensarmos não num porto, mas num complexo de portos de diferentes características, funções e raio de alcance.10 Assim, e começando pela costa, a sul tínhamos apenas Aveiro, depois a entrada do Douro, e continuando para norte Bouças, Azurara – Vila do Conde, Esposende – Fão, Viana do Lima e Caminha. Nenhum deles era um bom 6 Estou a pensar em famílias como os Coutinho e os Pereira, no primeiro caso, e em D. Afonso, Duque de Guimarães, no segundo. 7 E em menor medida o foral outorgado por D. Dinis a Vila Nova em 1288; os dois núcleos populacionais eram quase contíguos, apenas separados pela Ribeira de Santo Antão. 8 Ribeiro L. M. A., A Transição do senhorio episcopal portucalense para a Coroa em 1406, Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2009. 9 E que já começara no início do século anterior com a ediicação dos primeiros conventos mendicantes. Quanto ao foral de Gaia de 1255, ele contribuiu decisivamente para o grande desenvolvimento portuário da margem sul. 10 Não falo em sistema, porque isso pressuporia uma articulação e uma integração que não existiam. 264 O PORTO VISTO DO RIO porto: ou rochedos a mais, ou assoreamentos traiçoeiros, ou as duas coisas; não era uma costa acolhedora para se navegar. Entrando no Douro, havia pequenos ancoradouros ou extensos areais na margem sul, começando na Afurada, prosseguindo por Val de Amores, pela ribeira de Vila Nova, pelos Guindais11; bastante mais para o interior, Arnelas. Na margem direita, S. João da Foz, depois o Ouro, Massarelos, Miragaia, a zona em frente à Alfândega, a Ribeira, os Guindais. Cada um destes locais tinha uma história e uma isionomia próprias: alguns mais não seriam do que microrganismos portuários, outros portos embrionários, para me servir de expressões de Michel Bochaca. O porto principal era, sem dúvida, o do Porto, em frente à cidade (e incluindo a ribeira de Vila Nova): era o ponto de embarque dos produtos do Entre-Douro-e-Minho12 e de Trás-os-Montes13, chegados por terra ou pelo rio, bem como daqueles que, vindos por mar, eram depois redistribuídos por aquelas comarcas. E era sobretudo uma base de operações para toda a costa portuguesa, com laços privilegiados com o Algarve, e para a navegação do Mediterrâneo ocidental ao Mar do Norte, fosse ela protagonizada por naturais da cidade, por outros portugueses ou por estrangeiros, fosse ela de exportação ou apenas de transporte. Fig. 3 – As margens do Douro no início do século XIX, com vistas para Massarelos. Em primeiro plano, um barco de grande calado é rebocado por um batel. Existia um local com o mesmo nome na margem direita. Desde logo os mercadores de Guimarães e de Braga vinham ao Porto. É decisivo o facto de o Porto fazer parte de uma região muito populosa e economicamente dinâmica. 13 Note-se no entanto que os vinhos de Lamego, nomeadamente os das terras do Infante D. Henrique, foram frequentemente exportados por Aveiro. 11 12 265 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA As ligações entre todos estes locais eram variáveis: alguns deles tinham vocações especíicas e complementares do ‘grande’ porto da cidade – ou, pelo menos, não conlituais. Mas outros podiam ser e foram concorrenciais: a margem sul em frente ao Porto, Aveiro e Bouças, por motivos diferentes. O porto da cidade, em frente à Ribeira, era aquilo que em logística de transportes se chama um ponto de ruptura de carga, isto é, uma etapa ou um momento em que passageiros e mercadorias trocam de meio de transporte – entre o rio, o mar e diversas estradas e caminhos de terra.14 Para percebermos como funcionava teremos de reconstituir os principais produtos, as direcções que seguiam e os diferentes pontos possíveis de carga e descarga; começando por lembrar que há bens que podem ser simultaneamente importados e exportados. Sobretudo a partir de inais do século XIV, a oligarquia que governa o Porto estrutura uma política ‘comercial’ dura, em torno de dois produtos básicos e centrais em todo o comércio medieval: o sal e o peixe.15 Essa política assentava num primeiro princípio: o sal e o peixe das redondezas teriam de sair obrigatoriamente pelo porto da cidade, o que era uma asixia violenta de outros portos próximos. O peixe era capturado em S. João da Foz, na Afurada e sobretudo em Bouças16; o sal era produzido em Aveiro e de novo em Bouças. Qualquer destes portos tinha capacidade para vender os seus produtos e lucrar muito com isso; aliás fazia-o regularmente. Por isso a imposição do monopólio do Porto não se fez sem a pura e simples coação física que, no caso de Bouças, levou mesmo a uma intervenção paramilitar da cidade e à prisão de muitos dos habitantes do lugar – o tal ‘império’, mesmo pequeno, de que todas as cidades precisam para sobreviver, como explicou Braudel. A sul, na terra de Santa Maria, produzia-se algum sal em Cabanões; nada que preocupasse muito o Porto mas, ainda assim, o suiciente para alimentar constantes conlitos entre as duas margens. Já com Aveiro as disputas foram bem mais sérias, et pour cause. Por outro lado, os pescadores galegos vinham regularmente trazer peixe ao Porto. O segundo ‘princípio’ obrigava a que quem viesse à cidade carregar peixe ou sal trouxesse para ela o equivalente em mercadorias, particularmente em cereais. Era uma postura virtual, isto é, uma decisão camarária que a vereação podia invoO que pode acontecer sem nenhum intervalo, ou após algum tempo em que os passageiros se instalam em albergarias e os produtos em armazéns. Naturalmente que esta operação aumenta muito os custos do transporte, pelo que era essencial garantir cargas, descargas e armazenagens tão rápidas e eicientes quanto possível. 15 Que não têm, entre si, a mesma importância relativa, as mesmas lutuações de preço, as mesmas condições de armazenamento e transporte, o mesmo ciclo produtivo. 16 Já que a cidade nunca aspirou a alargar essa imposição a portos pesqueiros mais a norte, como Azurara-Vila do Conde, por exemplo. 14 266 O PORTO VISTO DO RIO car quando entendesse e esquecer quando não lhe izesse falta; e que era prática comum em várias cidades. Em teoria visava garantir a alimentação do burgo em momentos de crise cerealífera17; os regedores que governavam a terra em nome do “bem comum” não podiam permitir que faltasse o pão. Mas signiica várias coisas: que os produtos que chegavam à cidade vindos do norte e do interior não eram suicientemente apelativos para os mercadores de fora para assegurar que estes viriam por eles à cidade – ou, pelo menos, que viriam sempre que o Porto precisasse de cereais. E signiica talvez – é uma simples hipótese para discutir – que para os seus próprios negócios de importação e exportação, os mais importantes mercadores do Porto tinham necessidade de recorrer a esse expediente comercial para manter determinados níveis de movimento no porto da cidade. Para um porto ter alguma importância, não sendo o responsável pelo abastecimento de uma grande cidade nem podendo oferecer um bem especíico de elevado valor18 ou a produção de uma região manufactureira fortemente evoluída, convinha-lhe ter, para exportar, sal, vinho, cereais, peixe e carne. O Porto tinha facilidade em garantir vinho e carne; menos no cereal; e só pela força assegurou o sal e, de algum modo, o peixe. Nas Cortes de Elvas de 1361, airmam os procuradores que “…essa cidade nom avia mantimento senom de carreto de cada dia”.19 De Braga e Guimarães vinham alguns produtos manufacturados (sobretudo panos); chegavam vinhos de Ribadouro20, embora vinho de Lamego também fosse, por terra, até Aveiro, com o que este porto se tornava duplamente concorrencial, ao oferecer dois produtos estratégicos (o vinho e o sal). Do Douro vinham ainda azeite, frutas, couros, sumagre, madeiras. Alguns destes produtos icavam no Porto para aí serem consumidos – parte do vinho – outros, como já disse, apenas mudavam de meio de transporte para poderem sair a barra e seguir para outras regiões de Portugal mas sobretudo para o Norte da Europa. Assim, perto do rio havia locais de armazenagem do vinho, sobretudo em Miragaia, mas cada taberna era um pequeno armazém21; nada sei, de momento, quanto a uma eventual guarda de sal ou de peixe, admitindo que ele fosse transbordado de uns barcos para outros, até para evitar problemas de conservação. Nem se sabe muito sobre o armazenamento de cereal, Essas crises, muito frequentes no Antigo Regime, podiam ser de produção (resultado de um ano mau por excesso de chuva ou falta dela), mas também de abastecimento (circuitos comerciais perturbados pela guerra ou pela especulação, por exemplo). 18 O açúcar, um corante ou um ixador, um minério. 19 Cortes Portuguesas. Reinado de D. Pedro, p. 109. 20 E eventualmente algum vinho de Monção também era exportado pelo Porto, além do que saía pelo Minho e pelo Lima. 21 No limite, várias casas particulares guardariam, nas lojas, pipas para consumo e para uma revenda marginal. 17 267 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA para consumo da cidade ou para exportação (uma vez que temos testemunhos de barcos a carregarem grandes quantidades de pão para Lisboa ou para fora do reino). É provável que a madeira icasse empilhada ao ar livre, ou sob cobertos.22 Fig. 4 – Pequeno areal e cais junto aos Guindais. Foi desde a Idade Média um local de descarga e de pagamento de taxas para os barcos que desciam o Douro. Julgo que, para além dos locais centrais – o areal em frente à Ribeira e, em grande medida, a praia de Miragaia – podia haver pontos de carga e descarga especializadas que, já no tempo da muralha trecentista, baptizarão os correspondentes Postigos – do Carvão, do Peixe, da Madeira.23 Desta forma, entre os espaços principais de ancoragem, inspecção, carga e descarga, e o complexo de portos secundários (alguns dos quais meras enseadas com um aterro, algumas estacas e umas pranchas de desembarque) se geria o abastecimento da cidade em alimentos e em matérias-primas como madeira, pedra ou cal e se alimentavam tratos vários A madeira podia vir da margem sul mas chegava sobretudo pelo Douro, possivelmente com os troncos amarrados entre eles e despachados pelo rio abaixo, vigiados por homens em pequenos barcos ou jangadas, as almadias. 23 E o da Areia? 22 268 O PORTO VISTO DO RIO de alcance regional24, nacional25 e internacional26. Algumas correntes comerciais que o Porto dinamizava colocavam problemas curiosos: barcos da cidade (ou fretados pelos seus mercadores) iam ao Algarve carregar fruta para o Norte da Europa, e muitas vezes levavam pedra para os seus ‘amigos’ algarvios. Essa pedra podia ir simplesmente como lastro, e acontecia ser pura e simplesmente rapada das próprias muralhas, ou então era levada de pedreiras.27 Fig. 5 Nas escadas da Ribeira, barcos carregados pela força humana e através de pranchas. AS ESTrADAS TErrESTrES A ruptura de carga, que se podia fazer entre embarcações, passando ou não pela margem, ocorria igualmente ou sobretudo por terra: os produtos que vinham para a barra do Douro de Trás-os-Montes, do Entre Douro e Minho e das Beiras entravam na cidade por caminhos ou por estradas lajeadas, no dorso dos animais de carga dos almocreves ou em carros de bois. Como já há muitos anos lembrou Carlos Alberto Ferreira de Almeida a propósito da barra do Douro, sobretudo “nos séculos XIV e XV esta era a saída portuária utilizada pelos mercadores do Porto, Sobretudo do Entre-Douro-e-Minho mas, em geral, de todo o território a Norte do Douro. De e para Lisboa, de e para o Algarve. 26 Entre o Mediterrâneo ocidental, valenciano e aragonês, e o Norte da Europa, com destaque para a Flandres, o sul da Grã-Bretanha e aquilo que foi sendo a França atlântica dos séculos XIII a XV. 27 Suponho que essa pedra oferecida aos ‘amigos’ algarvios seria uma prática propiciatória de bons negócios ou, para citar Martha Howell, de comércio antes do capitalismo. 24 25 269 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Viseu, Lamego, Guimarães e Trás-os-Montes”28; documentos avulsos permitemnos acrescentar exportações de Chaves, de Vila Real, de Mesão Frio. Em 1456, por exemplo, diz-se que os almocreves de Lamego transportam para o Porto azeite, pão, vinho e vinagre, e trazem de volta essencialmente peixe.29 O mesmo historiador airma que foi durante o século XIII, a par com o crescimento do dinamismo comercial do Porto, que a linha de trânsito mais escolhida entre o Centro e o Norte de Portugal se deslocou de Ribadouro para o Porto, retomando portanto a antiga estrada romana entre Lisboa e Astorga.30 Por isso importa lembrar as principais estradas que ligavam a cidade às terras mais importantes e as portas por onde esse trânsito atravessava o Porto, sempre tendo em vista a aproximação ao rio. 1. Uma primeira estrada partia para Matosinhos, Leça e Vila do Conde; saía da Porta do Olival e nela circulariam provavelmente peixe e sal. 2. Pela mesma porta saía a estrada para Barcelos.31 3. A muito antiga estrada para Braga partia igualmente do Olival, pela Lapa, Castelo da Maia e Trofa. 4. A estrada para Guimarães trazia por certo ao Porto alguns produtos manufacturados daquela vila; seguia pelo Bonjardim e Alto da Maia, por Ermesinde e Alfena. A entrada no Porto podia fazer-se pela Porta de Santo Elói, como sugeriu Carlos Alberto Ferreira de Almeida, ou pela Porta de Carros. 5. A estrada Porto-Amarante saía pela Porta de Cimo de Vila para Rio Tinto e Valongo; de Amarante partiam três outras estradas: para Vila Real, para Mesão Frio e para Canaveses. Os almocreves de Lamego vinham pela margem Norte do Douro, por Mesão Frio. 6. A estrada de Coimbra, Aveiro e Terra de Santa Maria atravessava na ribeira de Gaia e tinha vários acessos possíveis ao Porto, escolhendo talvez sobretudo a porta virada para Miragaia. As Vias Medievais. I – Entre Douro e Minho, Porto: Faculdade de Letras, 1968, dactil., Vias pp. 63 e 165. Capítulos especiais de Lamego às Cortes de Lisboa de 1456 (H. Gama Barros, Historia da Administração Pública, vol. X, p. 100). A célebre descrição de Rui Fernandes, que apresenta a cidade e o termo como se do paraíso se tratasse e portanto deve ser lida com as devidas reservas, diz-nos que podia faltar peixe fresco no Porto, mas em Lamego não faltava nunca, já que os almocreves o traziam diariamente desse mesmo Porto, de Matosinhos, de Aveiro ou mesmo da Galiza; e que esses almocreves levavam para fora sumagre, vinho, castanha, noz e azeite (Rui Fernandes, Descrição do terreno …). 30 O.c., p. 165. 31 Passando por Cedofeita, pelo Padrão da Légua e pela Ponte do Ave. 28 29 270 O PORTO VISTO DO RIO A partir da construção da segunda muralha, após as décadas de 50 e 60 do século XIV, este trânsito foi disciplinado à entrada do Porto, fazendo-se sobretudo através da Porta de Cimo de Vila e da Porta do Olival. Como resumiu Helena Lopes Teixeira, “intramuros, a rede viária estruturava-se segundo dois percursos bem deinidos – um que ligava a Praça da Ribeira à Porta de Cimo de Vila, e outro que começava na Reboleira e terminava na Porta do Olival. O primeiro compreendia cinco ruas umas a seguir às outras: a dos Mercadores, da Bainharia, a Escura, a Chã das Eiras e a de Cimo de Vila. O segundo, cinco ruas também: a da Alfândega, das Congostas, da Bainharia (atingida através da ponte de S. Domingos), a do Souto e a da Ferraria de Cima (depois dos Caldeireiros).”32 O movimento era especialmente intenso na Bainharia, na Cruz do Souto, no Largo de S. Domingos, zonas que não estavam ao pé do rio. As portas e postigos virados para o Douro serviam o tráfego portuário e recebiam o movimento do sul. Em tempos extraordinários, a azáfama em direcção ao porto devia ser um espectáculo único. Como quando se preparou a armada a Ceuta, em 1415: “Era alli o tráfego tamanho em aquella rribeira que de Fig. 6 – Carros de bois, força humana, barcaças e pranchas: o embarque e desembarque de pipas de vinho, no areal da margem sul, em frente a Miragaia. 32 Helena Lopes Teixeira, Porto, 1114-1518. A Construção da Cidade Medieval. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2010, p. 80. 271 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA dia nem de noute numca estava soo [o Infante D. Henrique], nem os marinheiros nom eram pouco camssados em arrimar tamanha multidom de frasca. E com esto as estradas e caminhos erom cheos de carros e de bestas, que viinham carregados com mamtiimentos e armas das terras daquelles idallgos…”.33 o PorTo MolDADo PElo ‘PorTo’? Seguirei em boa medida, para esta relexão, o roteiro de interrogações que Michel Bochaca propôs para os casos de Libourne e Bordéus34: poderemos falar, também no caso do Porto, de um “forte tropismo portuário”? 1. Das dezoito aberturas da muralha gótica, entre portas e postigos, onze estão viradas para o rio: “o que signiica estar aí localizada, graças ao rio, a zona quente do tráfego citadino, a linha das entradas e saídas mais inescusáveis. Era pelo troço molhado da cerca que no Porto se efectuava o essencial das serventias.”35 Muitas dessas portas ou postigos contam, através do nome, essas serventias: o Postigo da Praia (depois Porta Nova), o da Lingueta, o da Alfândega ou do Terreirinho, o do Carvão, o do Peixe, a porta da Ribeira, o Postigo da Madeira e o da Areia.36 2. Não julgo que se possa airmar, sem mais, que os bairros ao pé do porto fossem mais densamente povoados do que os ‘de terra’. A complexa topograia da cidade, aliás, não é subsumível naquela dicotomia. E entre os séculos XII e XVI o Porto conheceu diversos desenvolvimentos urbanísticos, simultâneos ou sucessivos, complementares ou antagónicos. O morro da Sé nunca deixou de ser um núcleo importante da vida da cidade, mesmo depois da mudança do estatuto do burgo, em 1405-1406. Mantiveram-se dentro do perímetro da cerca românica os açougues e casas de pesos e medidas, bem como o aljube do bispo e as casas dos cónegos do Cabido. A Rua dos Mercadores tinha dois sentidos: um na direcção do rio, outro na do Arco de Sant’Ana. A Rua 33 Gomes Eanes de Zurara, Crónica da Tomada de Ceuta por El-Rei D. João I, ed. de Francisco Maria Esteves Pereira, Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1915 (Cap. 35, “Como o Ifamte Dom Hamrrique veo depois de Janeiro fallar a seu padre, e como se tornou pêra o Porto, e da maneira que teve em sua armaçom”, p. 113). 34 «Les caractéristiques économiques des villes portuaires de la France atlantique à la in du Moyen âge : l’exemple des ports aquitains », comunicação apresentada ao Colóquio Internacional « A Cidade Medieval em debate” (Lisboa, 27-29 de Janeiro de 2011, organização do Instituto de Estudos Medievais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa). As actas estão no prelo; sigo o pensamento deste historiador a partir de notas pessoais e do esquema que ele distribuiu. 35 Sousa, Armindo de, Tempos Medievais, p. 141. Propomos onze, e não nove, como este autor. 36 Mais os Postigos dos Banhos, do Pelourinho e da Forca. 272 O PORTO VISTO DO RIO da Ferraria, com o prolongamento para fora da Porta do Olival, o Morro da Cividade e a saída pela Porta de Cimo de Vila foram eixos dinâmicos de povoamento e de actividade; o Largo de S. Domingos testemunha uma centralidade que não tem apenas a ver com o rio. 3. As adegas e armazéns concentraram-se com toda a certeza nas ruas e zonas próximas da Ribeira e muito em Miragaia. Muitas casas da Rua Nova tinham uma loja subterrânea com funções de armazenagem. E, a partir de 1325, a zona era dominada pelo “almazém” por excelência, o do rei. 4. A forte presença de mercadores nas ruas vizinhas do porto não oferece dúvidas. Desde logo na rua com o nome deles (por todas, a habitação de João Martins Ferreira, na transição do século XV para o XVI), na Rua Nova, sobretudo no século XV, ou perto da Alfândega, no Largo do Terreirinho (a casa de João Ramalho). 5. Finalmente, se a concentração de gentes cujo modo de vida está ligado ao rio e ao mar era evidente e natural nas ruas próximas da ribeira, ela prolongava-se também por Miragaia, muito por Vila Nova e por Gaia e, em menor escala, por Massarelos, pelo Ouro, por S. João da Foz. Tirando este último núcleo populacional, que era uma comunidade de pescadores independente do Porto, aqueles cujas actividades se encontravam mais directamente ligadas ao rio e ao mar viviam sobretudo em Miragaia e na margem sul. oS TrABAlHoS Do rIo E Do MAr Recapitulemos a propósito essas actividades. Começando pelos homens do rio, havia muita pesca, mas não estou certo de que houvesse pescadores de rio a tempo inteiro.37 Essa pesca fazia-se sobretudo através de caneiros e pesqueiras38, alguns muito próximos da ribeira, a montante dos Guindais, e era um complemento para outros meios de sustento. Já quanto à pesca de mar, em S. João da Foz e na Afurada, não creio que os seus actores se misturassem com a demais população ribeirinha. Temos também notícia de pequenas salinas de rio, das quais sabemos pouco, e que diicilmente ocupariam mão-de-obra signiicativa. Depois havia os barqueiros das barcas de passagem que, exceptuando a noite e os períodos em que o rio se 37 Os pescadores de mar de S. João da Foz e de Gaia dedicavam-se totalmente a essa actividade. Nos tempos em que não podiam ir ao mar provavelmente trabalhavam a terra, como ainda se faz em algumas comunidades marítimas. 38 Que podiam ser muito perigosas para a navegação (veja-se, de L. M. Duarte e A. Barros, “Corações Alitos. Navegação e travessia do Douro…”). 273 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA mostrava perigoso, deviam estar quase constantemente em acção. E os pilotos, que se encarregavam de guiar os barcos de maior calado por entre a verdadeira gincana de obstáculos que era a foz do rio. Os marinheiros e os mestres das embarcações concentravam-se em Miragaia, e também em Massarelos e do lado de Gaia. Mas os mais numerosos e economicamente mais signiicativos eram os mesteres ligados à construção, manutenção e reparação naval: os cordoeiros, os carpinteiros, os calafates39; que trabalhavam nas diversas taracenas e cordoarias da cidade, sendo menos evidente onde residiam. Os tanoeiros fabricavam e reparavam as pipas entre a Rua Nova e Miragaia, sempre perto da porta da muralha. Fig. 7 – Casas góticas já demolidas da Rua da ReboMuito próximo da água, nos cais leira. As pipas à porta indiciam uma taberna, ou são e nas várias praias estariam a todo para consumo dos habitantes? tempo numerosos estivadores40 prontos para a carga e descarga de barcos, bem como boieiros e carreteiros. E por aí se cruzariam com os responsáveis pela iscalização e pela colecta de todas as taxas que deviam ser pagas ao rei, ao bispo, à cidade – neste último caso, podiam ser mesmo os oiciais camarários ou então homens a mando dos que arrendaram esses impostos.41 Essa iscalização era difícil de fazer: os responsáveis tinham que cobrir uma extensão bastante grande na margem norte, com várias línguas de areia, cais, pontos de amarração, estruturas de armazenamento; tinham de inspeccionar mercadorias descarregadas ou outras ainda a bordo dos barcos atracados à margem ou ancorados no meio do rio, desde as muralhas da cidade até à Foz, e garantir que elas pagavam todas as taxas e impostos devidos ao rei, à cidade (ou aos seus rendeiros) e ao bispo; deviam veriicar a qualidade de alguns produtos, o local de 39 E talvez os que fabricavam os remos, os remolares. A verdade é que não temos indícios da existência deles nas taracenas do Porto, mas há informações sobre a importação de remos, o que é de algum modo surpreendente. 40 Que costumamos classiicar como trabalhadores indiferenciados, e erradamente, porque carregar e descarregar um navio, além de enorme força física, exigia experiência e perícia. 41 Por todos, a imposição do vinho. 274 O PORTO VISTO DO RIO descarga e os horários e as condições de venda – esta supervisão competia aos almotacés; conirmar que o manifesto de carga correspondia ao que o barco efectivamente transportava; enim, assegurar que a política de ‘equilíbrio comercial’ da vereação, de que já falámos, era obedecida. Neste jogo de gato e do rato, havia marcos territoriais para a ‘legalidade’ iscal. Os barcos que descessem o rio tinham de parar antes do pano de muralha dos Guindais, junto à Torre do Laranjo42, para manifestar a respectiva carga; a poente, é possível que nos areais de S. João da Foz, de Massarelos e mesmo de Miragaia, já à vista da cidade, se izesse compra e venda de peixe contrabandeado (isto é, que não pagava todas as taxas nem obedecia a todas as regras ditadas pela vereação) em anódinas choupanas, tal como Amândio Barros documentou para o inal do século XVI.43 Se a partir de 1325, grosso modo, a Coroa tem no novo edifício do “Armazém” uma excelente repartição para centralizar todas estas operações de registo e cobrança de impostos, e o bispo do Porto tem também um representante nesse mesmo local, já a Câmara trabalha a partir de uma base algo distante, o “Sobrado da Vereação”, na acrópole, à porta da Sé. De que forma a actividade dos iscais e colectores de impostos do rei, do bispo, da câmara e dos rendeiros particulares44 se harmonizaria ou, pelo contrário, entraria em conlito? Essa actividade assentava em muitas notas, em muitos actos escritos de escrivães da câmara, do bispo, da alfândega.45 Logo abaixo do armazém do rei, portanto a escassos metros do rio, uma casa de aspecto banal era na verdade um centro nevrálgico da economia portuense: o paço dos tabeliães. Aí se celebravam contratos comerciais, fretamentos, reconhecimentos de dívidas. A estes “intermediários do comércio marítimo”, como lhes chamou Michel Bochaca, havia que acrescentar os corretores, agentes mediadores nas compras e vendas de mercadorias46; os estalajadeiros47; os mercadores que recebiam em sua casa os seus parceiros do país ou de fora. Temos vindo a tentar identiicar este edifício em fotograias ou gravuras antigas, sem chegar a um resultado seguro. Não é importante, uma vez que a localização não oferece qualquer dúvida: era uma casa relativamente alta, na margem direita, imediatamente antes da muralha e encostada a ela e portanto, simbolicamente, fora da cidade propriamente dita. 43 Porto. A construção de um espaço marítimo…, p. 41. 44 Sem falar nos mordomos do mosteiro de Santo Tirso e depois do bispo de Viseu, para os pescadores de S. João da Foz. 45 A perda dos registos medievais da alfândega, no Porto como em todo o país, é dos maiores obstáculos para a nossa história económica. 46 Com actividade já claramente regulada desde Afonso III e muito fortalecida por lei de D. Fernando de 1279 (veja-se Rui de Almeida Torres, “Corretor”, in Dicionário de História de Portugal, Vol. II, p. 185; e Gama Barros, História da Administração Publica…, T. IV da 1ª ed., pp. 180-191). 47 Entre a lista das boas estalagens que a Vereação decidiu fazer e as que de facto chegaram a existir, não temos ainda informação deinitiva. 42 275 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 8 – O Porto visto da margem sul. Em primeiro plano, construção e manutenção de navios. Bem visíveis, ao fundo, o cais da Ribeira, o areal e os cobertos de Miragaia e, ao fundo do lado esquerdo, a Torre da Marca. A economia do Porto, centrada no comércio marítimo e no transporte, exigia uma gestão muito eicaz do espaço portuário, com uma boa capacidade de acolher as embarcações48 e os agentes de navegação, de as carregar e descarregar, de as abastecer com alimentos e água para a nova viagem, de garantir um ambiente acolhedor aos mestres e aos marinheiros, com tabernas para comerem e beberem, camas em estalagens, hospitais e albergarias e, enim, aquela animação muito particular que aquecia os corpos e os corações de quem andava demasiado tempo embarcado. Exigia ainda um sistema iscal claro, estável e conhecido, fácil de satisfazer, com taxas portuárias acessíveis; e mecanismos sérios e expeditos para resolver qualquer conlito ou desentendimento que acontecesse. Sabemos que o Paço da Vereação foi com frequência o palco para a resolução destes conlitos, e que o próprio bispo do Porto, em 1431, compareceu numa reunião camarária – tanto quanto sei pela primeira e última vez – para garantir que fosse desembargado com justiça e celeridade um barco levantino imobilizado por uma divergência iscal.49 O prelado tinha tanto a perder como a cidade se a reputação desta como centro de negócios fosse abalada. A começar pela traiçoeira entrada na barra. “Vereaçoens” (1431-1432), leitura e transcrição paleográica de Luís Miguel Duarte e João Alberto Machado, Porto: Arquivo Histórico – Câmara Municipal, 1985, pp. 85-87. 48 49 276 O PORTO VISTO DO RIO A CoNSTrUção NAVAl A construção e a reparação navais foram sempre estratégicas, no Porto medieval e moderno, de muitos pontos de vista: em primeiro lugar, para construir e alimentar a frota mercante da cidade, bem como a multidão de barcos mais pequenos para o tráfego no rio, e para assegurar a reparação a barcos chegados de fora. Mas também para fazer navios para fora, como galés e naus para as armadas do rei. Esta actividade especializada e exigente alimentava uma mão-de-obra muito numerosa de carpinteiros navais, de calafates, de cordoeiros. Consumia madeira de várias dimensões e qualidades, muitos pregos e peças de metal, resina, breu, estopa, panos de lona para as velas (o “pano de treu”); e quando se tratava de equipar os barcos, animava-se o fabrico de biscoito, sobretudo na margem sul, e a preparação de carne e peixe salgados. São muitos negócios e muito trabalho para muita gente – a construção naval era sem dúvida uma das quatro indústrias centrais do Portugal medievo, junto com a construção civil, a actividade têxtil e o trabalho dos couros. As taracenas – entendidas como espaços de construção e reparação naval e também como estruturas de armazenamento de materiais, armas e abastecimento dos barcos, quando necessário – marcaram a silhueta ribeirinha da cidade. A história das taracenas do Porto e de Gaia para o período que me ocupa foi já, em grande medida, reconstituída por Amândio Barros.50 Continuam alguns aspectos por esclarecer: como eram as primitivas taracenas, perto da Praça da Ribeira51, se construíram apenas galés, a que ritmo e em que cronologia. Depois a história é mais complexa e mais dispersa: o grande centro passou a ser o areal de Miragaia, mas também se construíram barcos no Ouro e nas praias da margem sul52: em vários períodos da história as duas margens do Douro foram palco de intensa actividade de construção naval, com o estímulo económico que tal implicou. São várias as fontes, desde descrições de viajantes estrangeiros até ao próprio Fernão Lopes, que o salientam, a ponto de airmarem que o Porto era o maior centro de construção naval do reino.53 Nos areais de um e outro lado do rio multiplicaram-se O Porto: a construção de um espaço marítimo…, vol. 1, pp. 219-337. Possivelmente num espaço próximo do Postigo do Carvão, que parece ter funcionado também como armazém de galés quando elas não estavam ao serviço. 52 Também aqui talvez em mais do que uma localização; estão a desaparecer à nossa vista os últimos vestígios dos estaleiros do Ouro e de Gaia. 53 “Esta cidade é situada junto com o rio, a que chamam Douro, no qual se fazem muitas e boas naus e outros navios, mais que em outro lugar que no reino haja.” (F. Lopes, Crónica de D. João I, Lisboa: Biblioteca de Clássicos Portugueses, 1898, II Parte, Cap. IX – “Como el Rei chegou à cidade do Porto, e foi recebido dos do lugar”, p. 36). 50 51 277 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Fig. 9 – Construção naval do lado de Gaia. Ainda há vestígios deste estaleiro. fossos, gradeamentos em madeira, barracões, guindastes. O Porto vizinho do rio cheirava a peixe e a sal, mas também, e muito, a madeira e a breu. CoNClUSão Até meados do século XIX e a chegada a Portugal do caminho-de-ferro, o transporte de largas quantidades de pessoas ou de produtos fazia-se por meio aquático. O Porto cresceu ao pé de um rio importante e muito próximo do mar. Como lembra Wim Blockmans, para se desenvolver de um modo consistente, a cidade precisaria de dispor de riquezas naturais comercializáveis. No ‘sítio’ do Porto não havia nada disso; é verdade que no Entre-Douro-e-Minho e nas duas margens do Douro se produzia boa fruta, azeite, sumagre, couros, cereais, muito vinho. Mas os produtos verdadeiramente estratégicos eram o sal e o peixe. Dos quais o Porto se fez, à força, porta de saída. Esse era apenas um dos efeitos de dominação possível de uma cidade importante sobre o seu termo, primeiro, e sobre uma zona económica e geográica, depois; igualmente essencial era o domínio iscal54, judicial e 54 Como de há muito vem explicando Denis Menjot, o estabelecimento de um determinado sistema iscal é, antes de mais, um problema político e uma questão de poder. 278 O PORTO VISTO DO RIO militar55, o condicionamento sobre a produção e, em geral, a deinição das regras dos mercados. Se é verdade que uma Coroa forte geralmente signiica cidades fracas – e o inverso, a Coroa portuguesa, precocemente centralizadora, teve de se acomodar com uma cidade muito forte, Lisboa, e um Porto que soube combinar o relativo afastamento da capital com uma intensa iniciativa económica e política. Pelas ruas que desciam dos Morros da Pena Ventosa, da Cividade ou da Vitória até à Ribeira, pelos diversos areais e enseadas das duas margens do Douro foram-se exercendo saberes e técnicas de trabalho e de negócios e investindo capitais. Se os corretores intermediavam muitos desses negócios e garantiam entendimento, coniança, informação legal e iscal, por vezes simples tradução, taberneiros e estalajadeiros também favoreciam o comércio ou participavam mesmo nele. A cidade granítica, governada com mão-de-ferro por elites fechadas e conservadoras, era também, pela sua forma de vida, um burgo aberto, de algum modo cosmopolita56; e deiniuse tanto por isso como pelos produtos que movimentou, pelos barcos que podia acolher e pelas condições portuárias que lhes foi oferecendo. BIBlIogrAFIA Almeida C.A.F., As Vias Medievais. I – Entre Douro e Minho, Porto: Faculdade de Letras, 1968, dactil. Barroca M., As Fortiicações do litoral portuense, Lisboa: Edições Inapa, 2001. Barros A. 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Cruz A., “O Porto na génese dos descobrimentos”, Studium Generale, VII (1960): 1-103. 55 Apenas sobre o termo, é claro; mas o termo do Porto, após o reinado de D. Fernando, icou enorme, populoso e rico. 56 Pela presença regular de estrangeiros e sobretudo pela presença constante de mercadores e barcos portuenses nos portos atlânticos e mediterrânicos; não pela existência de comunidades estrangeiras na cidade. 279 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA Descobrimentos Portugueses. Documentos para a sua história, ed. de J. M. Silva Marques, Lisboa, I.N.I.C., 1988 (fac-simile da edição original de 1944). Duarte L.M., Barros A., “Corações Alitos: navegação e travessia do Douro na Idade Média e no início da Época Moderna”, Douro – Estudos e Documentos, vol. 2 (4), 1997: 77-118. Fernandes R., Descrição do terreno ao redor de Lamego duas léguas [1531-1532]. Edição crítica de Amândio Morais Barros. Lamego: Edição Beira Douro, 2001. 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João I, ed. de Francisco Maria Esteves Pereira, Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1915. 280 O PORTO VISTO DO RIO rESUMo: Pretende-se relectir sobre o desenvolvimento urbanístico da zona ribeirinha do Porto na Baixa Idade Média, integrando essa análise numa perspectiva económica e política, e alargando-a às duas margens até ao mar. Tentando ultrapassar uma descrição excessivamente harmoniosa dos espaços e das suas funções integradas, este trabalho insiste nas diferentes escalas, interesses e âmbitos geográicos e económicos. Palavras-chave: Ribeira, Urbanismo, Porto, Comércio, Política. ABSTrACT: Ce travail veut réléchir sur le développement urbanistique des quartiers riverains de Porto au Bas Moyen âge, en intégrant cette analyse dans une perspective économique et politique et en incluant les deux rivages jusqu’à la mer. En essayant de dépasser une description trop harmonieuse des espaces et de leurs fonctions intégrées, il insiste dans les diférentes échelles, intérêts et portées géographiques et économiques. Keywords: Riverside, Urbanism, Harbour, Trade, Politics. 281 ThE REgUlATION OF ‘NUISANCE’: CIvIC gOvERNMENT ANd ThE bUIlT ENvIRONMENT IN ThE MEdIEvAl CITY SARAh REES JONES1 he lived environment of the medieval English city changed substantially over the period between 1100 and 1500. Cities grew in size and towns proliferated in number. By 1300 London had a population of around 80,000 while provincial cities such as Exeter, Norwich and York had populations of between 15,000 and 30,000. Urban growth resulted in the denser development of city centres as the inilling of gardens, churchyards and street frontages created a visibly more crowded urban streetscape. Indeed some historians have compared the density of occupation in England’s larger city centres in the iteenth century with that in the mid nineteenth century, even if the overall geographical area of cities was smaller.2 he growth and denser development of cities resulted in (and was encouraged by) major technical innovations in the construction of houses that resulted irst in the construction of a greater number of domestic buildings in stone in the twelth century, and second (from the thirteenth century), through the development of timber box framing. As a consequence townspeople were able to inhabit more complex houses which were capable of surviving for centuries.3 In a few towns, University of York. David A. Hinton, ‘he large towns 600-1300’ in David M. Palliser (ed.), he Cambridge Urban History of Britain, vol 1, 600-1540 (Cambridge: Cambridge University Press, 2000), 217-44; Derek Keene, ‘A New Study of London before the Great Fire’, Urban History Yearbook (1984): 11-21. 3 John Schoield and Alan Vince, Medieval Towns (London: Leicester University Press, 1994), pp. 63-98; John Schoield, Medieval London Houses (New Haven and London: Yale University Press, 1995); Jane Grenville, Medieval Housing (London: Leicester University Press, 1997); Anthony Quiney, Town Houses of Medieval Britain (New Haven and London: Yale University Press, 2003); David M. Palliser, T. R. Slater and Elizabeth P. Dennison, ‘he topography of towns 600-1300’, in David M. Palliser (ed.), he Cambridge urban history of Britain, vol. 1 : 600-1540 (Cambridge: Cambridge University Press, 2000), pp. 1 2 283 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA such as Lincoln, there are surviving stone houses from the twelth century. he oldest timber-framed houses which still survive generally date from around 1300, such as a merchant’s house in Southampton (c. 1290) or a row of two-roomed cottages in York (1316). Just as important as these changes in the architectural appearance of towns were changes in practices in the disposal of waste from private property and in the maintenance and cleaning of streets and other public spaces. Larger towns in particular developed systems for the removal of waste from houses and its disposal in public tips. By 1300 London employed street scavengers and cleaners to remove waste from the streets, while in other towns regulations required householders to remove their waste to public tips.4 As a result of all these innovations the accumulation of debris on domestic sites was much less in the iteenth century than it had been in the eleventh century: houses did not need to be demolished and rebuilt as regularly and domestic rubbish was also cleared more regularly from domestic sites. Much of the evidence for improvements in the standards of construction and for the decline in the accumulation of domestic debris is provided by archaeological excavation. However in answering the question as to why towns became ‘cleaner’ we can fruitfully explore the documentary evidence also.5 Using the two sources together enables a better understanding of developing ideas and practices towards the built environment over the medieval period. However concerns about cleanliness were only part of a wider range of concerns about the orderliness of the built environment in which there was a highly developed interaction between domestic and public interests .his chapter will argue that we can recover two broad overlapping phases in developing concern about urban built environments in the written record. he irst phase, c. 1150-1400, coincides with the creation of the irst written records relating to the administration of ‘nuisance’ in English cities by town governments. he second phase, c. 1350 to 1550, saw much greater popular engagement in the everyday enforcement of these laws of nuisance by neighbourhood communities. So we can trace a trajectory of increasingly popular engagement with the practical management of public cleanliness. In doing so it became one of the most pervasive 181-5; Sarah Pearson, ‘Rural and Urban Houses 1100-1500: urban adaptation reconsidered’ in Kate Giles and Christopher Dyer (eds), Town and Country in the Middle Ages (Leeds: Maney, 2005), pp. 43-63; Sarah Rees Jones, ‘Building domesticity in the city: English urban housing before the Black Death’, in Maryanne Kowaleski and Jeremy Goldberg (eds), Medieval Domesticity: Home, Housing and Household in Medieval England (Cambridge: Cambridge University Press, 2008), pp. 66-91 4 Ernest L. Sabine, ‘City Cleaning in Medieval London’, Speculum 12/1 (1937): 19-43; Derek Keene, ‘Rubbish in Medieval Towns’, in Environmental Archaeology in the Urban Context, ed. A. R. Hall and H. K. Kenward (London, 1982), pp. 26-30. 5 Dolly Jørgensen, ‘Cooperative Sanitation: Managing Streets and Gutters in Late Medieval England and Scandinavia, Technology and Culture, vol 49/3 (2008): 547-67. 284 THE REGULATION OF ‘NUISANCE’: CIVIC GOVERNMENT AND THE BUILT ENVIRONMENT IN THE MEDIEVAL CITY discourses for the relationship of the individual to the state and one of the most popular discourses of public order. Much of the regulation of the built environment fell within an area known as ‘nuisance’. What did ‘nuisance’ mean? ‘Nuisance’ was a term which was used to describe minor ofences which disrupted the peace between neighbours and within neighbourhoods.6 Nuisance ofences covered both environmental and social pollution. Environmental issues included the disposal of rubbish, the maintenance of ditches, water-courses and streets and the regulation of buildings in relation to the street and to each other. hey might also include defence against ire, such as the provision of ire-ighting equipment and other measures designed to inhibit the spread of ires in towns. Social issues included a wide variety of misbehaviour including excessive arguing, scolding and gossiping, walking around ater the curfew at night, and loitering (and so obstructing the street) for the purposes of prostitution. Nuisance laws are irst recorded in writing in London at the very end of the twelth century but by 1300 many boroughs (or self-governing towns) had local laws, or customs, of this kind and they were progressively recorded in writing as urban collections of written law proliferated from the fourteenth century into the iteenth.7 In London nuisance law divided into two branches administered slightly diferently.8 First there were the nuisances between private properties through which the owners of adjacent properties could prosecute each other. here private nuisances covered matters such as encroachments, when one neighbour extended their building across the boundary of a neighbouring plot or allowed waste from their property to over-low into their neighbour’s garden. In 1301, for example, William de Béthune complained ‘that the cess-pit of the privy (puteum cloace) of William de Gartone adjoins so closely his stone wall that the sewage penetrates his cellar (celarium)’, while Elias Russel complained that the house of his neighbour Amice Horn was so ruinous that ‘the water falls from it upon his land and that she has a view into his tenement’.9 Private nuisance thus also deined acceptable levels of privacy between neighbouring houses: windows overlooking neighbouring houses were restricted in size and height (unlike windows overlooking the street). By contrast public nuisances were those which were an afront to the ‘common good’ 6 Helena M. Chew and William Kellaway (eds), London Assize of Nuisance, 1301-1431: a calendar, London Record Society, 1973. 7 Sarah Rees Jones, ‘City and Country, Wealth and Labour’ in Peter Brown (ed), Blackwell Companion to Medieval English Literature and Culture c. 1350-1500 (Oxford: Blackwell, 2007), pp. 56-73 (at 66-67); Jørgensen, ‘Cooperative Sanitation’, p.550. 8 Chew and Kellaway, London Assize of Nuisance. 9 ibidem, pp. 1-10. 285 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA of a neighbourhood and afected the common spaces of the town. Such ofences included the obstruction or disrepair of pavements and streets, the pollution of water courses and personal misconduct in public spaces. As a result of this division in the administration of nuisance two diferent types of prosecution emerged. Private disputes were heard in the mayor’s court. Pleas were presented by individual property owners (they could not be brought by tenants) against the owners of neighbouring properties in formal court sessions. Oten such protagonists were represented by attorneys, and in exploring the evidence expert witnesses might be used. Members of the building trades were frequently employed to examine cases where boundaries were in dispute, and they might be employed to excavate the foundations of buildings in order to measure the extent to which they crossed established boundaries between plots. he following detailed and precise record of such an examination made in 1365 is not uncommon: “Certiicate of John de Totenham, Richard de Salyng, Richard de Schropschire and Richard atte Cherche, carpenters and masons. hey report that homas atte Noket, citizen and draper, who has a tenement in the par. of Our Lady of Wolnoth in Lombardstrete, situated between the tenement of Gilbert de Hoo, formerly belonging to homas de Ware, ‘pelliter’, and called ‘la Cardenaleshatte’ on the east, and that of Cecily de Bosenham on the west, is entitled to 12¾ ins. of the stone wall, between his tenement and Gilbert’s, and extending northwards for 10 ells 1 in. to his kitchen. Further, he is entitled to 9½ ins. of the wall running north for 13¼ ells from his same kitchen, in which, moreover, there is a chimney which overhangs his tenement, to his great inconvenience, and which ought to be demolished. Also, there is a leaden gutter (une gotiere de plombe, guttysoun) 7½ ells long on la Cardenaleshat, from which the water overlows on to homas’s land (place), and which Gilbert ought to turn away from his tenement.”10 By contrast ofences of common nuisance were not presented to the courts as a private dispute between plaintif and defendant; rather they were presented by juries made up of householders from the parish or ward at public meetings in those neighbourhoods held once or twice a year.11 Complaints might be directed against public oicials or against private householders, as in the following cases from the ward of Colmanstrete in London in 1421: Ibidem, pp. 123-39 Caroline Barron, ‘Lay solidarities: he Wards of Medieval London’, in P. Staford, J. Nelson and J. Martindale (eds), Law, Laity and Solidarities: Essays in Honour of Susan Reynolds (Manchester, 2001), 218-33; A. H. homas (ed.), Calendar of Plea and Memoranda Rolls ... of the City of London ... 1413-1437 (1943), pp. 115-141. 10 11 286 THE REGULATION OF ‘NUISANCE’: CIVIC GOVERNMENT AND THE BUILT ENVIRONMENT IN THE MEDIEVAL CITY ‘First they say and present that the chamberlain of the Guildhall used to pay a rayker 26s 8d yearly to keep and cleanse the grates at London Wall and Lothbury, and because of non-payment the said grates are evilly and horribly stopped up with mud and ordure to the great nuisance of all the ward, wherein the chamberlain is at fault. ... Also Margery, dwelling in the rent of William Calwer in Colmanstrete, is a common scold and by day and night throws out of her house stinking ordure, to the very great nuisance of the neighbours dwelling there.’12 By the iteenth century there is therefore ample evidence that English cities maintained complex and sophisticated systems for the cleansing and regulation of the built environment. Householders were actively engaged in enforcing these laws and the sheer abundance of the written material regarding their enforcement is more likely testament to their popularity and success than to their inefectiveness.13 he irst phase in the development of written laws of nuisance and their regulation by public courts emerged, in the decades ater 1150, under the inluence of two quite diferent forces. he developing inluence of royal law and the increased fear of ire in densely developed urban centres, combined to produce bodies of written custom concerning the regulation of nuisance in the built environment. Janet Loengard has argued that the assize of nuisance originated as a branch of a new legal remedy developed under ‘common law’ in the royal courts during the middle decades of the twelth century which was known as the ‘assize of novel disseisin’.14 he assize of novel disseisin covered the loss of property through unjust occupation by another and Leongard showed that the assize of nuisance in royal courts originally focussed on remedies for damage to, and loss of, property caused by neighbours. he earliest recorded assizes particularly focused on ‘mills and millponds (or milldams), hedges, banks, ditches and walls wrongfully put up, heightened or thrown down’.15 For example, between 1156 and 1159 King Henry II instructed that the borough authorities of Canterbury were to ensure that all the mills within and immediately outside the walls of the city were to be reduced in height so that the mills of Canterbury cathedral priory could grind ‘fully and well’, presumably because the neighbouring mills had been built so high that they were stealing the wind from their sails.16 Such disputes, between freeholders and tenants-in-chief of the king were not restricted to urban contexts. However it is also Ibidem, p. 117. Jørgensen, ‘Cooperative Sanitation’. 14 Janet Loengard, ‘he Assize of Nuisance: Origins of an Action at Common Law’, Cambridge Law Journal, 37 (1), April 1978, pp. 144-166. 15 Ibidem, p. 163. 16 Ibidem, p. 151. Although it these were windmills they predate the oten cited earliest reference to a windmill in England by around 30 years: Lynn White Jr., Medieval technology and social change (Oxford, 1962) p. 87. 12 13 287 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA clear that from an early date towns were also developing bodies of local custom regulating the built environment. As early as the ninth century Canterbury had rules governing the spaces to be let between neighbouring houses, and by the later twelth century the city of London had established a complex set of building regulations known as the Assize of Buildings which regulated ‘walls, gutters, privies, windows, and pavements’ in great detail.17 Like the common law assize this London assize was primarily focussed on damage to property rights, and the customs were accompanied by detailed instruction on the procedure on holding the assize. However these reasons for the assize were soon expanded to include a desire to mitigate the risk of ire in towns. Popular memory associated this development with a particular mayor of London, Henry itz Ailwyn, who was credited with creating a new set of regulations ater a great city ire in 1212. he rules included ‘provisions concerning rooing and rooing materials; no building should be covered with reeds, rushes, straw or stubble but only with tiles, shingles or boards and buildings roofed with reeds or rushes should be plastered over within eight days. It was also ordered that all the wooden houses in Cheap which endangered the stone houses there should be removed, by view of the mayor, sherifs and discreet men of the City.’18 Indeed there is remarkably little evidence of major city-wide ires in any major English city ater 1212, until the Great Fire of London in 1666.19 While the resulting urban assizes of nuisance betray the inluence of both royal legal innovations and a pragmatic response to an increasingly developed built environment, we might also note that it was precisely over the same period that urban constitutions in England developed apace. Particularly ater the accession of Richard I in 1189 large numbers of towns within his dominions in both France and England were formally conirmed as self-governing ‘communes’ and along with the development of their legal status went the development of other new expressions of civic identity such as the construction of town halls, treasuries, city walls and market places. 20 Such buildings enabled and required the development Nicholas Brooks, he Early History of the Church in Canterbury (Leicester: Leicester University Press, 1984), p. 27; Chew & Kellaway, London assize of nuisance, p. 9. 18 Chew & Kellaway, London assize of nuisance, pp. IX-XXXIV 19 D. M. Palliser, T. R. Slater and E. Patricia Dennison, ‘he topography of towns 600-1300’, in CUHB, pp. 182-5. 20 David Bowsher , Tony Dyson , Nick Holder , Isca Howell (eds.). he London Guildhall : an archaeological history of a neighbourhood from early medieval to modern times (MoLAS monograph, 36). London: Museum of London Archaeology Service, 2007. 2 vols. (xxvi, 536 p.), pp. 19-121, 352-81; S. R. Blaylock, ‘Exeter guildhall’. Proceedings of the Devon Archaeological Society, 48 (1990), 123-78; David M. Palliser, ‘he Birth of York’s Civic Liberties, c. 1200-1354’. In Rees Jones, Sarah (ed.), he government of medieval York : essays in commemoration of the 1396 royal charter (Borthwick Studies in History, 3) (York: University of York, Borthwick Institute of Historical Research, 1997), 88-107; Sarah Rees Jones, ‘Civic Government and 17 288 THE REGULATION OF ‘NUISANCE’: CIVIC GOVERNMENT AND THE BUILT ENVIRONMENT IN THE MEDIEVAL CITY of a culture of record keeping as towns moved ‘from memory to written record’ in the procedures used in urban government.21 As civic government advanced both through increasing bureaucracy and through its control and elaboration of the built environment literacy and architecture became inextricably intertwined in the expression of new civic values. Nothing expressed this more efectively than the new assizes of buildings and nuisance which tried to imprint the authority of civic government on every wall, window and gutter throughout the city. However, the way in which civic authorities began to express their interest in the built environment, in the decades around 1200, was inluenced by factors other than royal law and simple expediency. Civic culture developed in relation to other local agencies, more pervasively embedded in local communities than were new royal laws. Among the most important of these were the ecclesiastical institutions who, as landlords, were a major cultural inluence as towns developed and prospered across the twelth century and beyond.22 Abbeys and cathedral chapters were among the wealthiest urban landlords, and oten developed courts for their tenants which introduced the use of bureaucratic procedures and written records into local administration before the royal courts did and oten as an efective counterpart to royal administrators.23 In several cases townspeople even preferred to use these (so-called private) courts rather than the royal courts, whose novel impositions they resisted.24 It was also oten church landlords who were among the earliest to invest in the public infrastructure of towns through the foundation of hospitals, the construction of piped water supplies and the sponsorship of public works such as bridges.25 In York a new stone bridge over the major river lowing through the city centre was built ater 1170 with alms collected under the patronage of the Archbishop of York and the oice of the city mayor was located in the chapel of St William (a former archbishop, canonised ater 1154) built on the bridge.26 In the development of public buildings and spaces in Later Medieval England’, in Beatriz Arízaga Bolumburu and Jesús Á. Solórzano Telechea (eds), Construir La Ciudad en la Edad Media (Logroño, 2010), pp. 497-512. 21 Geofrey Howard Martin, ‘he origins of borough records’. Journal of the Society of Archivists, 2:4 (1961), 147-53; Martin, Geofrey. ‘English town records, 1250-1330’ in Britnell, Richard Hugh (ed.), Pragmatic literacy, east and west, 1200-1330 (Woodbridge: Boydell Press, 1997), 119-30. 22 T. R. Slater and Gervase Rosser (eds), he Church in the Medieval Town (Aldershot, 1998) 23 Sarah Rees Jones, ‘Cities and their Saints in England, circa 1150-1300: he Development of Bourgeois Values in the Cults of Saint William of York and Saint Kenelm of Winchcombe’, in C. Goodson, Anne E. Lester and Carol Symes (eds), Cities, Texts and Social Networks 400-1500. Experiences and Perceptions of Medieval Urban Space (Farnham, Ashgate, 2010), p. 197 24 Ibidem, pp. 202-3. 25 Sethina Watson, ‘City as Charter: Charity and the Lordship of English Towns, 1170-1250’ in Cities, Texts and Social Networks, pp. 235-262. 26 Rees Jones, ‘Cities and their Saints’, pp. 206-7. 289 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA London the cult of homas Becket, late archbishop of Canterbury, was instrumental both to the reconstruction of London Bridge and to the provision of the city’s irst piped supply of water in the early thirteenth century.27 Indeed in several towns, such as Southampton, Bristol and Dublin, it was friaries and monasteries which introduced the irst piped water supplies only later transferring their management to lay urban authorities.28 he inluence of the church was thus a major factor in the development of literate urban local government and in the promotion and patronage of beneicial local amenities. When we broaden the framework within which we imagine urban communities developing to include the church as well as the state, and to include cultures of faith as well as pragmatic necessity their developing interest in the beautiication of the urban environment takes on new dimensions. In particular we can observe that the same decades, before and ater 1200, were the period in which new cults of urban saints lourished and with them domestic homilies of the many miracles performed by those saints.29 hese stories – of children revived ater falling down wells, of sight restored to impoverished widows, of husbands found for unmarried pregnant women and of stressed business-men restored to health ater sufering mental and physical collapse – paint a vivid picture of the mundane, everyday problems alicting ordinary townspeople living in the rapidly growing and changing towns of Angevin England. hey perhaps give us a more sympathetic insight into the living conditions and everyday concerns of townspeople than do the more formal charters of urban incorporation, or even the detailed new assizes of buildings and nuisance law. Above all they demonstrate the moral dimension to the development of civic interest in the common good and regulation of urban society which helps us to understand that from the very inception of laws about the physical environment, it was understood that ‘cleanliness was next to Godliness’; that the beautiication of the city was closely related to its beatiication.30 From the time of the very irst written laws concerning the regulation of the built environment of towns we can therefore see that there was a strong understanding of the classical principle that architecture (like law) was instrumental to shaping individual and collective morality. However when we look at the records of the enforcement of the regulation of nuisance there is some evidence to suggest that 27 Vanessa Harding and Laura Wright (eds), London Bridge: Selected Accounts and Rentals, 1381-1538 (London, 1995 for 1994), pp. I-xxix; Derek Keene, ‘Issues of Water in Medieval London to 1300’, Urban History, 28 (2001): 161-79 28 Roberta J. Magnusson, Cities, Monasteries and Waterworks ater the Roman Empire: Water Technology in the Middle Ages (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2001) 29 Rees Jones, ‘Cities and Saints’, pp. 200-201, 209-211. 30 Keith Lilley, City and Cosmos. he Medieval World in Urban Form (Reaktion Books, 2009) 290 THE REGULATION OF ‘NUISANCE’: CIVIC GOVERNMENT AND THE BUILT ENVIRONMENT IN THE MEDIEVAL CITY this moral dimension to oicial nuisance law was not popularly embraced by town inhabitants before the middle of the fourteenth century. Although we there are many surviving collections of urban custom which indicate the prevalence of environmental laws, fewer court records which show their enforcement survive. Nevertheless we can compare a body of surviving records from the leet (or ward) courts of Norwich around 1300 with a similar body of material from the ward courts of London in 1421-3.31 he comparison suggests that London householders in the early iteenth century were more likely to present ofences of nuisance before the courts than were jurors in Norwich just over a century earlier. Indeed in London by the 1420s the majority of court business (around 60%) was concerned with nuisance ofences, compared with less than 5% in Norwich around 1300 (see table 1 below). While this was in part because of the changing function of the courts, and in particular the decay of some administrative rules, the impression that townspeople grew more actively concerned about the built environment over the course of the fourteenth century is suggested by other evidence. In particular archaeological evidence of the increasing use of stone-lined cesspits (which could be regularly cleaned) and of declining deposits of household waste found in situ both suggest that public services and regulations for cleaning the city were more actively enforced and voluntarily practised in the later middle ages than earlier.32 Norwich c. 1300 % ofences by type london 1421-3 % ofences by type Trading ofences 30 29 Administrative ofences 28 7 Bread and ale 22 <1 Petty criminal ofences 8 0 4% 61% Nuisance ofences he detailed surviving records of the London ward courts for two years between 1421 and 1423 suggest that jurors were fearless in presenting their neighbours to the courts. Civic oicials, aldermen and priests were as likely to be presented to the courts as were the poor inhabitants of cottages. he following example, although exceptional, also shows the extent to which jurors were prepared to be inventive in stretching the law to deal with local nuisances: W. H. Hudson (ed), Leet Jurisdiction in the City of Norwich during the XIIIth and XIVth centuries (London, 1892); Calendar of Plea and Memoranda Rolls ... of the City of London ... 1413-1437, pp. 115-141. 32 Jørgensen, ‘Cooperative Sanitation’, pp. 560-64 31 291 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA “On 25 December 1421, John Scarle priest of the parish of St Leonard in Fasterlane was accused of being a common pimp of his own parishioners and a quarreller and a scold, and a vicious slanderer. He threatened to reveal the confessions of those women who would not assent to his lechery. All this is a great disease to the whole parish. hey also said that he deceived people with false cunning by pretending to be a physician and a surgeon, by which deception he had killed many a man.” 33 In several respects this case should not have been raised in the ward courts at all. As a priest charged with usurping the confessional for lewd purposes, John Scarle should have been presented to the church courts, not the civic courts, while the charge that he was a ‘false physician’ was not at all covered by the articles of the court or the customs of the city on which the jurors were asked to depose. Rather the householders of the ward interpreted their authority in matters of ‘nuisance’ inventively as a means of asserting their opinion both within their own parish (in this case against the parish priest) and, as we saw in the example from Colemanstreet, as a means of criticizing civic oicials and civic government for failing to uphold the law and maintain the common good. Nuisance law had thus become a vehicle for popular opinion through which local householders could make their voice heard, and even assert their authority, against the oicials of both church and city. Moreover as nuisance law became a means of expressing the popular political sentiments of the street, so it also became an important means through which new immigrants to the town could establish themselves as good neighbours. London, like many medieval towns, maintained many regulations against immigrants who were not full citizens, but were ‘foreigners’ trading in the town. However, by 1421 at least, such foreigners were not commonly presented to the ward courts for breaking these laws (as they had been in Norwich around 1300). Rather foreigners were presented only when they were a nuisance, as in the following example from Bassyngshawe Ward: “Robert Sutton and his wife, being newly come from Coventry, keep their doors open at night until 11 or 12 o’clock having various men, who are strangers and unknown to the ward, making violent and grievous noises to the nuisance of all dwelling around.”34 he implication is that behaving as a good neighbour, not being a nuisance, but keeping a quiet and tidy house was popularly considered the most important virtue through which an immigrant could become an accepted member of the community and that this superceded the more oicial rules of citizenship maintained 33 34 292 homas, Plea and Memoranda Rolls of London, p. 127 homas, Plea and Memoranda Rolls of London, p. 117. THE REGULATION OF ‘NUISANCE’: CIVIC GOVERNMENT AND THE BUILT ENVIRONMENT IN THE MEDIEVAL CITY by the greater guilds and higher civic courts. Just as around 1200, it is possible to see public concern about ‘nuisance’ as being a bottom-up process rooted in deep, local and popular concerns about the security and morality of everyday living and family life (and not just originating from royal regulation), so by the iteenth century nuisance courts had become a dynamic and versatile theatre in which local householders could efectively express their authority. hey provided householders with authority within their own neighbourhoods, empowered them to criticize public oicials and allowed them to incorporate newcomers into the neighbourhood, (if they so chose).35 he rise of nuisance law as a vehicle for popular, grassroots politics between the thirteenth and iteenth centuries provided a forum for the popular voice which was to remain an important outlet for local and even national politics into the modern era. As records of such neighbourhood courts become more abundant in the later iteenth and sixteenth centuries we can see that nuisance law provided a versatile framework for community politics as neighbourly concerns and attitudes changed.36 Too oten the business of the neighbourhood courts in England’s towns has been dismissed as mundane, medieval attitudes to street cleaning have been dismissed as inefectual, and popular engagement with ideas of cleanliness and environmental regulation have been too narrowly interpreted as either merely pragmatic or purely symbolic. In fact all these explanatory frameworks oversimplify and underestimate the importance of the regulation of nuisance as a dynamic and elastic discourse. ‘Nuisance’ enabled local communities to shape and give meaning to their lived environment and also to use that environment to shape the social relationships through which individuals became members of society. his empowering of householders also contributed to the creation of a class system in which non-householders such as ‘cottagers’ or ‘inmates’ (the occupants of lodging houses), who did not live up to conventions of good neighbourliness, could be subordinated and classiied as a public nuisance themselves: Sarah Rees Jones, ‘Household, work and the problem of mobile labour: the regulation of labour in medieval English towns’, in J. Goldberg & M. Ormrod (eds), he Problem of Labour (Woodbridge: Boydell and Brewer, 2001); Lena Cowen Orlin, ‘Temporary Lives in London Lodgings’, Huntington Library Quarterly 71/1 (2008), pp. 219-42. 36 Marjorie McIntosh, Controlling Misbehavior in England, 1370-1600 (Cambridge: Cambridge University Press, 2002); Pamela Hartshorne, ‘he Street and the Perception of Public Space in York, 1476-1586’, Unpublished History PhD hesis, University of York (2004); Sandy Bardsley, Venomous Tongues: Speech and Gender in Late Medieval England (University of Pennsylvania Press, 2006); Shannon Mcshefrey, Marriage, Sex and Civic Culture in Late Medieval London (University of Pennsylvania Press, 2006). 35 293 EVOLUÇÃO DA PAISAGEM URBANA: SOCIEDADE E ECONOMIA ABSTrACT: he term ‘nuisance’ in later medieval England covered a wide range of minor ofences which were regulated by the very lowest level of public courts in the parishes and wards (quarters) of England’s towns and cities. Nuisance ofences included ofences against the built environment such as the failure to repair ruined buildings, the obstruction of roads and ditches or the illegal disposal of waste. hey also included ofences of social misconduct such as breaking the curfew, scolding and other anti-social behaviors. Although ordinances and statutes for these ofences were made in the central city courts it was up to juries of local householders to determine and present ofences within their neighborhood. Local people of modest social status thus controlled much of the business that came before the courts. he surviving records of these courts therefore provide valuable evidence for exploring changing attitudes to the built environment in towns and the social and political contexts of environmental regulation. Keywords: Nuisance, English medieval towns, Medieval crimes and courts, Pollution and urban and social regulations. rESUMo: 294 O termo “nuisance” na Inglaterra tardo-medieval cobria uma vasta gama de delitos menores, que foram regulamentados pelos tribunais públicos de paróquias e de wards (divisão administrativa) das cidades inglesas. Sob a designação de “nuisance” incluíam-se crimes contra o meio urbano, tais como a não reparação de prédios em ruínas, a obstrução de ruas, ou a deposição ilegal de resíduos. Nele também incluíam crimes de conduta social, nomeadamente o desrespeito pelas horas de recolher, os insultos e outros comportamentos antissociais. Apesar da legislação que regulamentavam estas infracções ser elaborada nos tribunais centrais da cidade, era aos júris constituídos por chefes de família locais que competia julgar esse tipo de delitos no âmbito do respectivo bairro. Deste modo, era à população local, de estatuto social modesto, que cabia controlar grande parte dos assuntos que chegava aos tribunais. Neste sentido, os registos ainda hoje existentes desses tribunais fornecem elementos valiosos para analisar a mudança de atitudes relativamente aos crimes contra o meio urbano, bem como os contextos sociais e políticos de regulamentação ambiental. Palavras-chave: Nuisance, Cidades inglesas medievais, Crimes e tribunais na Idade Média, Poluição e ordenamento urbanístico e social.