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ISBN 978-85-02-15803-0
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Coelho, Fábio Ulhoa
Curso de direito
comercial, volume 1 :
direito de
empresa / Fábio Ulhoa
Coelho. — 16. ed. — São
Paulo :
Saraiva, 2012.
1. Direito comercial I.
Título.
CDU-347.7
Índice para catálogo sistemático:
1. Direito comercial 347.7
Diretor editorial Luiz Roberto Curia
Diretor de produção editorial Lígia Alves
Editor Jônatas Junqueira de Mello
Assistente editorial Sirlene Miranda de Sales
Produção editorial Clarissa Boraschi Maria
Preparação de originais Ana Cristina Garcia / Maria Izabel Barreiros
Bitencourt Bressan / Daniel Pavani Naveira
Arte e diagramação Cristina Aparecida Agudo de Freitas
Revisão de provas Rita de Cássia Queiroz Gorgati / Cecília Devus
Serviços editoriais Ana Paula Mazzoco / Kelli Priscila Pinto
Capa Conexão Editorial
Produção gráfica Marli Rampim
Data de fechamento da
edição: 6-12-2011
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Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento,e não lutando por
dinheiro e poder, então nossa sociedade enfim evoluira a um novo nível.
ÍNDICE
Nota da 13ª edição
Primeira Parte
Empresa e Estabelecimento
Capítulo 1
O direito comercial e a disciplina da atividade econômica
1. Introdução
2. O Estado, a economia e o direito no início do século XXI
3. Disciplina privada da atividade econômica
4. O sistema francês (teoria dos atos de comércio)
5. O sistema italiano (teoria da empresa)
6. Filiação do direito brasileiro ao sistema francês em 1850
7. Aproximação do direito brasileiro ao sistema italiano
8. Do direito comercial ao direito empresarial
9. O conhecimento tecnológico do direito
10. O direito e as externalidades
11. O custo do direito para a atividade empresarial
12. Direito comercial como direito-custo
Capítulo 2
OS PRINCÍPIOS DO DIREITO COMERCIAL
1. Classificação dos princípios do direito comercial
2. Princípio da liberdade de iniciativa
2.1. Os dois vetores do princípio da liberdade de iniciativa
2.2. A liberdade de iniciativa na ordem constitucional
brasileira
2.3. Desdobramentos do princípio da liberdade de
iniciativa
3. Princípio da liberdade de concorrência
4. Princípio da função social da empresa
5. Princípio da liberdade de associação
6. Princípio da preservação da empresa
7. Princípio da autonomia patrimonial da sociedade empresária
8. Princípio da subsidiariedade da responsabilidade dos sócios pelas
obrigações sociais
9. Princípio da limitação da responsabilidade dos sócios pelas
obrigações sociais
10. Princípio majoritário nas deliberações sociais
11. Princípio da proteção do sócio minoritário
12. Princípio da autonomia da vontade
13. Princípio da vinculação dos contratantes ao contrato
14. Princípio da proteção do contratante mais fraco
15. Princípio da eficácia dos usos e costumes
16. Os princípios do direito cambiário
17. Princípio da inerência do risco
18. Princípio do impacto social da crise da empresa
19. Princípio da transparência nos processos falimentares
20. Princípio do tratamento paritário dos credores
Capítulo 3
A disciplina da atividade empresarial e A GLOBALIZAÇÃO
1. As vantagens competitivas decorrentes do marco regulatório
2. Princípios do direito do comércio internacional
3. Integração econômica e a cláusula social
4. Processo de integração econômica regional
4.1. Harmonização do direito
4.2. Harmonização do direito comercial
Capítulo 4
O empresário
1. Introdução
2. Sociedade empresária
3. Obrigações gerais dos empresários
4. Registro de empresas
4.1. Órgãos do registro de empresas
4.2. Atos do registro de empresas
4.3. Procedimentos e regimes
4.4. Consequências da falta do registro: sociedade
empresária irregular
4.5. Empresário rural e pequeno empresário
4.6. Inatividade da empresa
5. Escrituração
5.1. Espécies de livros
5.2. Regularidade na escrituração
5.3. Processos de escrituração
5.4. Extravio e perda da escrituração
5.5. Exibição dos livros
5.6. Eficácia probatória dos livros mercantis
5.7. Consequências da falta de escrituração
5.8. Escrituração da microempresa e empresa de
pequeno porte
6. Demonstrações contábeis periódicas
Capítulo 5
Estabelecimento empresarial
1. Conceito de estabelecimento empresarial
2. Natureza do estabelecimento empresarial
3. Elementos do estabelecimento empresarial
4. A proteção ao ponto: locação empresarial
4.1. Requisitos da locação empresarial
4.2. Exceção de retomada
4.3. Ação renovatória
4.4. Indenização do ponto
5. Shopping center
6. Alienação do estabelecimento empresarial
6.1. A questão da sucessão
6.2. Trespasse e locação empresarial
6.3. Cláusula de não restabelecimento
7. Franquia
7.1. Circular de oferta de franquia
7.2. Registro da franquia
Capítulo 6
Propriedade industrial
1. Introdução
2. Bens da propriedade industrial
2.1. Segredo de empresa
2.2. Marcas coletivas e de certificação
3. A propriedade intelectual
3.1. Diferenças entre o direito industrial e o direito autoral
3.2. Desenho industrial e obra de arte
4. Patenteabilidade
4.1. Novidade
4.2. Atividade inventiva
4.3. Industriabilidade
4.4. Desimpedimento
5. Registrabilidade
5.1. Registro de desenho industrial
5.2. Registro de marca
6. Processo administrativo no INPI
6.1. Pedido de patente
6.2. Pedido de registro de desenho industrial
6.3. Pedido de registro de marca
6.4. Prioridade
7. Exploração da propriedade industrial
7.1. Licença de direito industrial
7.2. Cessão de direito industrial
7.3. Secondary meaning e degeneração de marca notória
8. Extinção do direito industrial
9. Nome empresarial
9.1. Espécies de nome empresarial
9.2. Formação e proteção do nome empresarial
9.3. Diferenças entre nome empresarial e marca
10. Título de estabelecimento
Capítulo 7
Disciplina jurídica da concorrência
1. Princípio constitucional da livre-iniciativa
2. Concorrência desleal
2.1. Classificação da concorrência desleal
2.2. Modalidades de concorrência desleal específica
2.3. Repressão civil
2.4. Repressão penal
3. Infração da ordem econômica
3.1. Órgãos administrativos de repressão às infrações
3.2. Natureza da competência do CADE
4. Caracterização da infração da ordem econômica
4.1. Irrelevância da culpa
4.2. Prejuízo à livre concorrência ou livre-iniciativa
4.3. Mercado relevante
4.4. Aumento arbitrário de lucros
4.5. Abuso de posição dominante
4.6. Paralelismo de preços ou conduta
5. Condutas infracionais
6. Sanções por infração da ordem econômica
7. Controle preventivo dos atos de concentração empresarial
8. Comprovação da concorrência ilícita
9. Disciplina contratual da concorrência
Capítulo 8
A atividade empresarial e a qualidade do fornecimento de bens e serviços
1. Fornecimento sem qualidade
1.1. Falta de qualidade por periculosidade
1.2. Falta de qualidade por defeito
1.3. Falta de qualidade por vício
1.4. Teoria da qualidade
2. Superamento do princípio da culpabilidade
3. Superamento do princípio da relatividade
4. Fornecimento perigoso
4.1. Riscos normais e previsíveis
4.2. Alto grau de periculosidade ou nocividade
5. Periculosidade do fornecimento e informação do consumidor
5.1. Dever de informar sobre riscos de consumo
5.2. Adequabilidade e suficiência das informações sobre
riscos de produtos e serviços
6. Risco de desenvolvimento
6.1. Dever de pesquisar
6.2. Estado da arte
7. Fornecimento defeituoso
7.1. Classificação dos fornecedores
7.2. Responsabilidade do fabricante, produtor, construtor
e importador
7.3. Responsabilidade do comerciante
7.4. Responsabilidade do prestador de serviços
7.5. Responsabilidade dos profissionais liberais
8. Fornecimento viciado
8.1. Impropriedade nos produtos e serviços
8.2. Superação da teoria tradicional dos vícios redibitórios
8.3. Perdas e danos por fornecimento viciado
9. Direitos do consumidor na solução dos vícios
9.1. Vício de qualidade ou de quantidade no produto
9.2. Vício de qualidade no serviço
9.3. Decadência do direito de reclamação por vício
10. Relações interempresariais e qualidade do fornecimento
10.1. Direito de regresso
10.2. Responsabilidade do sucessor
10.3. Responsabilidade do licenciador de direito industrial
10.4. Responsabilidade do merchandisor
10.5. Responsabilidade do franqueador
10.6. Sociedades controladas, consorciadas, coligadas e
integrantes de grupo
Capítulo 9
A atividade empresarial e a publicidade
1. A publicidade e a tutela do consumidor
2. A autorregulação publicitária
2.1. Âmbito de abrangência do sistema de autorregulação
2.2. Sanções do sistema de autorregulação
3. Publicidade simulada
4. Publicidade enganosa
4.1. Falsidade e enganosidade
4.2. Caracterização da publicidade enganosa
4.3. Consumidor padrão
4.4. Conteúdo da mensagem
4.5. Princípio da veracidade, princípio da transparência e
enganosidade por omissão
5. Publicidade abusiva
5.1. Abuso por discriminação
5.2. Abuso por incitação à violência
5.3. Abuso por exploração do medo e superstição
5.4. Abuso na publicidade dirigida a crianças
5.5. Abuso por desrespeito aos valores ambientais
5.6. Abuso por indução a conduta nociva à saúde ou
segurança do consumidor
5.7. Caracterização da publicidade abusiva
5.8. Agressão aos valores da sociedade
5.9. Valores sociais e questões individuais
6. Publicity
7. Responsabilidade civil do anunciante
8. Responsabilidade administrativa do anunciante
8.1. Efetividade da contrapropaganda
8.2. Natureza da responsabilidade administrativa do
anunciante
9. Responsabilidade penal do anunciante
9.1. Elementos do tipo do art. 67 do CDC
9.2. Crime formal e crime material de publicidade
enganosa
10. Responsabilidade da agência de propaganda e do veículo de
comunicação
11. Publicidade comparativa
Segunda Parte
Títulos de Crédito
Capítulo 10
Teoria geral dos títulos de crédito
1. Conceito de títulos de crédito
2. Princípios do direito cambiário
2.1. Cartularidade
2.2. Literalidade
2.3. Autonomia
2.3.1. Abstração
2.3.2. Inoponibilidade
3. Natureza da obrigação cambial
4. Classificação dos títulos de crédito
5. Títulos de crédito no Código Civil de 2002
6. A informática e o futuro do direito cambiário
Capítulo 11
Constituição e exigibilidade do crédito cambiário
1. Introdução
2. Saque da letra de câmbio
2.1. Requisitos da letra de câmbio
2.2. Cláusula-mandato
2.3. Título em branco ou incompleto
3. Aceite da letra de câmbio
3.1. Recusa parcial do aceite
3.2. Cláusula não aceitável
4. Endosso da letra de câmbio
4.1. Endosso impróprio
4.2. Endosso e cessão civil de crédito
4.3. Circulação cambial e o Plano Collor
5. Aval da letra de câmbio
5.1. Avais simultâneos
5.2. Aval e fiança
5.3. Aval e garantias extracartulares
6. Vencimento
7. Pagamento
7.1. Prazo para apresentação
7.2. Cautelas no pagamento
8. Protesto
8.1. Protesto por falta de pagamento
8.2. Pagamento em cartório
8.3. Cancelamento do protesto
9. Ação cambial
Capítulo 12
Nota promissória
1. Requisitos da nota promissória
2. Regime jurídico da nota promissória
Capítulo 13
Cheque
1. Conceito de cheque
1.1. Circulação do cheque
1.2. Modalidades
1.3. Prazo de apresentação
2. Cheque pós-datado
3. Sustação do cheque
4. Cheque sem fundos
4.1. Ações cambiais
4.2. Encargos do emitente
4.3. Repressão ao uso de cheque sem fundos
Capítulo 14
Duplicata
1. Introdução
2. Causalidade da duplicata mercantil
3. Aceite da duplicata mercantil
4. Protesto da duplicata mercantil
4.1. Protesto por indicações
4.2. Triplicata
5. Execução da duplicata mercantil
5.1. Juros e correção monetária
5.2. Executividade da duplicata em meio eletrônico
6. Títulos de crédito por prestação de serviços
Capítulo 15
OUTROS TÍTULOS DE CRÉDITO
1. Títulos de crédito impróprios
1.1. Categorias de títulos de crédito impróprios
1.2. Títulos armazeneiros
2. Títulos de crédito sujeitos ao Código Civil
2.1. Títulos de crédito não regulados
2.2. Títulos de crédito atípicos (ou inominados)
3. Títulos bancários
3.1. Títulos de financiamento de atividade econômica
3.2. Cédula de crédito bancário
4. Títulos do agronegócio
4.1. O suporte dos títulos do agronegócio
4.2. Cédula de Produto Rural (CPR)
4.2.1. Cédula de Produto Rural Física
4.2.2. Cédula de Produto Rural Financeira
4.2.3. CPR como instrumento de investimento
4.3. Certificado de Depósito Agropecuário (CDA) e
Warrant Agropecuário (WA)
4.4. Refinanciamento do agronegócio e Securitização
4.4.1. Certificado de Direitos Creditórios do
Agronegócio (CDCA)
4.4.2. Letra de Crédito do Agronegócio (LCA)
4.4.3. Certificado de Recebíveis do
Agronegócio (CRA)
4.5. Nota Comercial do Agronegócio (NCA)
Índice alfabético-remissivo
Bibliografia
Nota da 13ª edição
Direito Comercial é uma disciplina de muitos nomes, no mundo todo:
Mercantil, Empresarial, dos Negócios etc. O Código Civil abriga, desde 2002,
parte das disposições legais que regem a matéria objeto de estudo da disciplina
no seu Livro “Direito de Empresa”, com o que lhe deu mais um nome.
A partir da 11ª edição, o Curso de Direito Comercial passou a ostentar, no
título, a referência a esse novo nome da disciplina, com o objetivo de dissipar
algumas dúvidas que têm surgido entre estudantes e profissionais do Direito.
Primeira Parte
EMPRESA E ESTABELECIMENTO
Capítulo 1
O DIREITO COMERCIAL E A DISCIPLINA DA ATIVIDADE CONÔMICA
1. INTRODUÇÃO
Este Curso de Direito Comercial não é um trabalho despretensioso. Ele
tem uma ambição clara: ser uma obra do seu tempo.
Tempo em que, finda a guerra fria, pode-se reler Marx fora do contexto
maniqueísta de amigo ou inimigo; e, com isso, resituá-lo como a mais importante
e talvez a derradeira tentativa de o homem racionalizar por completo a produção
de sua vida material. Mais do que um projeto revolucionário da classe proletária
para superação do sistema capitalista, o marxismo deve ser compreendido como
um projeto da humanidade, em seus renovados esforços para reorganizar a
sociedade de forma científica. Antes de conclamar o proletariado à revolução
socialista, Marx se convencera de que houvera desenvolvido um método capaz
de dar ao conhecimento da sociedade o estatuto científico que Galileu, duzentos e
cinquenta anos antes, houvera dado às ciências naturais. O método materialista e
dialético, ao apontar a luta de classes como o motor da história, era o instrumento
para antever cientificamente a insurreição do operariado e a implantação do
socialismo, a etapa seguinte da evolução da humanidade. Assim, uma das
motivações do marxismo foi a ambiciosa tentativa — que se encontra também
em outras filosofias nada comunistas, como no positivismo de Comte — de
transpor para o campo do humano os progressos alcançados no domínio da
natureza. Os marxistas reivindicam a condição de criadores da ciência da
História (cf. Poulantzas in Châtelet, 1979:151/153). A revolução socialista poria
fim à anarquia do mercado característica do capitalismo, e propiciaria a
planificação central da economia; desse modo, o homem acabaria submetendo a
organização social ao poder de sua racionalidade científica, assim como já
houvera subjugado as forças físicas, químicas, biológicas.
A diferença entre o projeto de reorganização social do marxismo e o de
outros socialistas reside, como os próprios marxistas gostam de dizer, na
consistência científica reivindicada pelo primeiro. Engels considera utópicos os
socialistas anteriores, porque teriam formulado seus projetos de sociedade ideal
ignorando as forças que realmente atuam na evolução da sociedade (1892). Para
ele, o projeto marxista é o que, pela primeira vez, se alicerça em pesquisa
metódica e científica sobre a dinâmica da história. Assim, a palavra de ordem do
“manifesto comunista”, exortando à união os operários de todo o mundo, tem
menos de aglutinador dos espoliados, para a defesa de seus interesses, e mais de
afirmação cientificamente fundada acerca dos meios corretos de racionalizar as
relações sociais.
O fracasso da experiência planificadora, nos países soviéticos, simbolizada
pela queda do Muro de Berlim, na noite de 9 de novembro de 1989, revela que o
projeto marxista tem algo de falho. Não estou pretendendo discutir — como até
seria possível, admita-se — a maior ou menor fidelidade do estado soviético, e
seus antigos países satélites, ao ideário de Marx, mas a demonstração eloquente,
naquele significativo fato histórico, da incapacidade de o homem planificar
totalmente a economia. E discutir este aspecto da teoria marxista seria cabível,
ainda que nenhum povo houvesse tentado a revolução proletária. O definitivo, em
relação à extraordinariamente rápida desarticulação das economias planificadas
europeias na última década do século XX, é a atual incapacitação científica do
homem para lidar com as questões humanas, e parece ser o questionamento da
possibilidade mesma de um projeto científico de reorganização social.
Com
o
fracasso
da
experiência de centralização
da economia, tentada pela
União Soviética e seus países
satélites, fica claro que a
ciência não consegue controlar
as relações sociais. Se o
homem, cada vez mais, está
dominando cientificamente a
natureza, o mesmo domínio não
consegue sobre a sociedade.
A filosofia, aliás, já tinha se antecipado algumas décadas à história. Se eu
tivesse que resumir numa ideia o núcleo do pensamento filosófico do século XX,
escolheria a percepção dos limites do saber científico. Neste século, ficamos
mais humildes. Se até o entreguerras, a filosofia exaltou e se encantou com os
progressos aparentemente ilimitados da ciência, durante a guerra fria (19451989) a reflexão filosófica de maior envergadura, tanto entre os cientificistas (a
escola analítica e o positivismo lógico), como entre seus opositores, representou o
amadurecimento de uma postura cautelosa diante dos desafios da humanidade:
não conhecemos tudo, não podemos conhecer tudo, não podemos controlar tudo.
Quando Habermas, por exemplo, na década de 1960, insiste na importância da
distinção entre dois conceitos de racionalização, um relacionado ao trabalho (a
ação racional com respeito aos fins), e outro às ações comunicativas no interior
dos marcos institucionais (1968:66/108), está já alertando para as questões que
viriam a ser incisivamente postas pelo fracasso da experiência socialista.
Para ser uma obra do seu tempo, este Curso de Direito Comercial deve se
inserir no contexto da apercepção, pelo pensamento filosófico — e, em certa
medida, também pelo jurídico —, da impossibilidade de completa reorganização
científica da economia e da sociedade. De fato, como são as normas jurídicas de
disciplina da atividade econômica os principais instrumentos dos responsáveis
pelo governo da produção e circulação de bens e serviços, é inevitável que a
tecnologia jurídica correspondente se permita influir pela consciência das
inexoráveis limitações próprias a essa função estatal.
2. O ESTADO, A ECONOMIA E O DIREITO NO INÍCIO DO SÉCULO XXI
Os tempos que correm viram a utopia marxista fracassar por inteiro, com
o fim das economias central e globalmente planificadas. Viram também, no
entanto, o revigorar do marxismo como instrumento teórico mais evoluído de
compreensão das ações humanas. De fato, somente se podem entender as
relações entre o estado e a economia, no mundo ocidental de passagem do século
XX a XXI, a partir do enfoque de Marx. Explico-me: após o desmantelamento
do modelo econômico do bloco soviético (o antigo “segundo mundo”), opera-se a
desarticulação do estado de bem-estar social nas economias centrais do bloco
capitalista (o antigo “primeiro mundo”) e dos seus incipientes rascunhos nas
economias periféricas deste bloco (alguns países do antigo “terceiro mundo”).
Numa palavra, constata-se que o estado capitalista está procurando readquirir um
perfil liberal.
Penso, contudo, que há limites para esse processo de redução da
participação do estado na economia. É improvável que retornemos ao modelo
pré-1929, ano da grande crise capitalista, que forçou os mais tradicionais
governos liberais a abandonarem políticas de não intervenção. Mas a tendência,
em todo o mundo, é a de desarticulação do estado do bem-estar social, onde ele
existe, e a paralisação ou reversão do processo de sua criação, nas economias
que o ensaiavam.
A explicação, nos quadrantes do marxismo, para essa tendência é muito
convincente. O estado é considerado, em tais quadrantes, um dos instrumentos da
luta de classe. A classe dominante pode utilizar, e quase sempre utiliza, a
estrutura burocrática do estado para preservar seu poder de dominação
econômica. O estado capitalista, nesse contexto, tem o tamanho variando em
relação direta com o acirramento da luta de classes. O fim da guerra fria, com a
vitória dos países capitalistas liderados pelos Estados Unidos, representou
indiscutivelmente o afastamento de ameaças imediatas à ordem econômica
existente nestes países. Ninguém mais tem medo de comunista — isso, se calhar
de ainda encontrar um pela frente —, nos tempos que correm.
Ora, o estado do bem-estar social nunca foi visto pelos marxistas como
um resultado positivo da evolução capitalista, mas simplesmente como meio de
conter as insatisfações do operariado quanto às condições de vida a que se
encontram sujeitos. Um meio bastante caro, mas que valia a pena à burguesia
utilizar para impedir que tais insatisfações pudessem se traduzir em revoluções
socialistas. Afastado, pelo menos temporariamente, o perigo de subversão do
capitalismo, não se justificam mais os gastos com a manutenção do welfare state.
A tendência de reliberalização do estado se explica pelo desaparecimento da
ameaça de socialização da economia. Até que ponto os trabalhadores poderão
manter suas conquistas, no clima de eufórico triunfalismo do sistema capitalista
neoliberal, somente a dinâmica da luta de classes irá revelar.
No final do século XX, o
estado
capitalista
tenta
reassumir feições liberais, que
o
haviam
caracterizado,
ideologicamente, na origem.
Isto é, ele procura se livrar de
algumas das funções de
intervenção na economia, que,
após a crise de 1929, lhe foram
reservadas.
Esta tentativa se traduz em
medidas de interesse para o
direito, como a privatização de
estatais,
a
reforma
da
Previdência e a mudança da
disciplina da concorrência.
Em relação aos efeitos que a reliberalização do estado capitalista pode
trazer para o direito, não é um despropósito antever o ressurgimento de princípios
e noções que, ao longo do século XX, pareceram progressivamente relegados
aos capítulos “históricos”, dos compêndios de doutrina. Penso especificamente
nos padrões jurídicos de inspiração liberal centrados na noção de autonomia da
vontade. Revestidos de feições neoliberais, tais postulados jurídicos podem voltar
a desempenhar um papel de relevo na fundamentação de reformas normativas e
de decisões administrativas ou judiciais (Cap. 35, item 3). A distinção entre
direito público e privado, de desprestigiadíssima, poderá voltar a ser, embora
renovada, uma importante categoria do pensamento jurídico.
Claro que não predigo um simples e mecânico retorno aos padrões
jurídicos do liberalismo clássico do passado. A crescente complexidade da
economia e da própria vida, a necessidade de se evitarem ao máximo as
periódicas crises do capitalismo e a política afastam, de qualquer cenário
projetado, o ressurgimento do estado do laissez-faire. A alteração que a
reliberalização em curso provavelmente projetará no direito deve ser igualmente
restrita. Alguns benefícios trabalhistas poderão vir a ser suprimidos, ficando
condicionados à previsão em acordos coletivos intersindicais, mas o direito do
trabalho continuará a existir. Nas relações de consumo, a interpretação
jurisprudencial das normas jurídico-consumeristas pode identificar uma margem
maior de atuação da autonomia privada, mas permanecerão vigentes normas de
coibição a práticas comerciais abusivas, e assim por diante. O ramo jurídico
mais sensível a esse processo de mudanças será, claro, o da disciplina das
atividades econômicas. Dependendo das nuanças das relações sociais, talvez se
inverta a tendência antiprivatista que marcou o pensamento jurídico ao longo do
século, e o direito comercial deixe de ser cada vez mais direito econômico.
3. DISCIPLINA PRIVADA DA ATIVIDADE ECONÔMICA
A disciplina jurídica da exploração de atividade econômica tem sido
objeto de dois diferentes níveis de abordagem pela tecnologia. De um lado,
temas como o controle de preços, a intervenção do estado na economia, a
fiscalização da localização da atividade, o controle da segurança de uso dos
imóveis comerciais e industriais, a tutela do meio ambiente, e outros, têm atraído
a atenção de estudiosos de diversos sub-ramos do direito público, como o
urbanístico, ambiental, econômico, tributário e administrativo. De outro, as
relações obrigacionais envolvendo apenas exercentes de atividade econômica e
particulares, incluindo a concessão de crédito, a tutela dos sinais distintivos, as
relações entre os sócios de um empreendimento, o concurso de credores em
caso de insolvência, constituem objeto de estudo de sub-ramos do direito privado,
assim o civil, comercial, cambiário e industrial. A esses dois níveis de abordagem
tecnológica da disciplina jurídica da atividade econômica, segundo um enfoque
assente, mas não inteiramente indiscutível, corresponderiam diferentes sistemas
jurídicos. Haveria algo assim como dois direitos, cada qual com seus próprios
princípios, irredutíveis entre si em certa medida, a justificar a existência de
desiguais maneiras para a sua apreensão.
Na verdade, a distinção entre direito público e privado, embora em
diferentes níveis corresponda historicamente a concepções culturais acerca dos
limites entre as esferas do individual e do coletivo, é, em essência, um conceito
da doutrina jurídica, com vistas ao tratamento paraconsistente de seu objeto.
Para Ferraz Jr., a definição da natureza publicista ou privatista dos ramos do
direito corresponde à necessidade de certeza e segurança dos critérios de
decidibilidade. A dogmática jurídica, em sua função de criar as condições para a
decidibilidade dos conflitos, com o mínimo de perturbação social, atende a essa
necessidade, na medida em que estabelece princípios básicos para a
operacionalização das normas de cada um desses grandes ramos do direito.
Contudo, tais princípios decorrem, eles próprios, da maneira pela qual a
dogmática concebe o ramo com que se relacionam, e, assim, revelam--se como
definições tópicas, como topoi (1988:127/132).
Claro está, portanto, que é infrutífera a tentativa de busca de critérios
rigorosos, imunes a qualquer questionamento lógico, que delineassem com
exatidão os limites de cada nível da disciplina jurídica. Isto não em virtude de
alguma episódica característica do tema enfocado, mas em razão mesmo do
caráter quase lógico do direito (cf. Coelho, 1992). O factível, assim, em termos
de elaboração do conhecimento jurídico, cinge-se à definição de conceitos
meramente operacionais, que auxiliem a equação e solução dos conflitos de
interesse, no contexto de uma argumentação retoricamente eficaz. Nesse sentido,
se, em sede do regime de direito público, se pode cogitar dos princípios da
supremacia e da indisponibilidade do interesse público, como os conceitos
operacionais basilares de pelo menos uma de suas divisões (cf. Mello, 1980:3/34),
para o regime de direito privado, ressaltam os da autonomia privada e da
igualdade. A disciplina da atividade econômica pertinente às relações entre
particulares se pauta assim no reconhecimento, pela ordem em vigor, da relativa
possibilidade de eles próprios compatibilizarem os seus interesses, num cenário
jurídico de condições equilibradas.
Um
dos
fundamentais
princípios
do
direito
público é o da supremacia do
interesse público. Neste ramo
do direito, as leis e normas
estabelecem desigualdade nas
relações jurídicas, para que o
interesse geral prepondere
sobre o particular.
Os princípios do direito
privado são os da autonomia
da vontade e o da igualdade.
No seio da concepção jusnaturalista, a faculdade de os particulares
regularem os seus próprios interesses, por meio de negócios jurídicos celebrados
livremente, aparece como atributo natural dos homens, que a ordem positiva
apenas deveria reconhecer e assegurar. A vontade humana, nesse contexto, é a
fonte dos direitos. Com a evolução das ideias políticas e jurídicas, a partir da era
moderna, a possibilidade de autorregulação dos interesses passa a ser entendida,
em certa medida, não mais como direito natural, mas, sim, como faculdade
outorgada pelo direito positivo. Assim, limita-se o seu exercício aos quadrantes
definidos pela ordem jurídica. Largos, durante períodos de liberalização
econômica, e estreitos no decorrer de processos de intervenção do estado
capitalista na economia, tais quadrantes estabelecem as balizas dentro das quais
atua a vontade dos particulares. Desse modo, o princípio da autonomia privada
experimenta sucessivas redefinições e revela o seu caráter histórico, reprodutor
das nuanças da luta de classes. É bastante provável, por isso, que a onda
liberalizante do final do século XX acabe alargando novamente o campo de
eficácia jurídica da autorregulação dos interesses.
Certamente, o chamado dirigismo econômico importou a restrição da
margem de livre atuação da vontade particular. A anarquia do mercado, se não
podia ser de todo eliminada, como pretendido pelo fracassado ideal socialista de
planificação estatal da economia, devia ser pelo menos controlada, e isto, no
plano jurídico, representou o aumento da regulação dos interesses econômicos
pela interferência da ordem positivada, externa à vontade das pessoas
diretamente envolvidas. Diante desse aumento da ingerência estatal nos negócios
particulares, alguns teóricos perdem a referência histórica e passam a tratar a
autonomia da vontade como espécie em via de extinção, ante novos conceitos
jurídicos, como os contratos-tipos e a função social da propriedade, por exemplo.
Não lhes importa, aparentemente, que desde sempre, e a despeito do propagado
a cada etapa evolutiva da história das ideias econômicas e jurídicas, a vontade
dos particulares foi eficaz na regulação dos próprios interesses apenas nos limites
tolerados pela dinâmica da luta de classes. Em termos meramente formais, a
autonomia da vontade sempre atuou nas raias traçadas pela ordem positiva,
fossem elas mais ou menos largas (cf. Prata, 1982:42/44).
O questionamento que o século XX reservou à autonomia da vontade (cf.
Gomes, 1967:9/26) reflete, sem dúvida, o crescimento da interferência externa à
manifestação volitiva dos particulares na regulação dos seus interesses. Para
alguns, como Gianini, essa maior ingerência do estado representaria apenas a
acentuação de uma marca existente já no século passado, e não uma inovação
jurídica propriamente dita, ao que se contrapõe Ana Prata, com razão,
afirmando que as formas adotadas contemporaneamente pela intervenção estatal
na economia não têm apenas uma amplitude quantitativamente diferenciada,
mas revelam o surgimento de situação qualitativamente nova (1982:39). A
solução encontrada pelos privatistas, no sentido de abandonar a ideia de
voluntarismo e cunhar a de autonomia privada (Betti, 1950:50/70), corresponde a
essa mudança. E, apesar das limitações experimentadas, o reconhecimento de
eficácia jurídica, na regulação dos interesses particulares pela vontade de seus
próprios titulares, fundamenta uma considerável gama de obrigações. Esta
constatação situa a questão dos limites do princípio da autonomia privada como
ponto essencial de qualquer reflexão, hoje, acerca das relações jurídicas entre
particulares. Em outros termos, o tecnólogo do direito não pode, no atual estágio
evolutivo das relações sociais e econômicas, simplesmente desconsiderar a
função da autonomia da vontade, na análise da disciplina das obrigações
privadas. Há que se empenhar na pesquisa das balizas delineadas pela ordem
positiva, em cujo interior atua a faculdade de autorregulação dos interesses. Em
consequência, deve-se inverter a tendência, que contaminou o pensamento
jurídico--privatista, de examinar todas as questões atinentes ao exercício da
atividade econômica, por um prisma exclusivamente publicístico, isto é, negando
qualquer importância à composição dos interesses pelas manifestações de
vontade dos diretamente envolvidos com o negócio.
O princípio da autonomia da
vontade significa que as
pessoas podem dispor sobre os
seus interesses, por meio de
negociações com as outras
pessoas envolvidas. Essas
negociações, contudo, geram
efeitos jurídicos vinculantes, se
a ordem positiva assim o
estabelecer.
A autonomia da vontade,
assim, é limitada pela lei.
Mas, ressalte-se, se é incorreto repudiar qualquer função atual ao princípio
da autonomia privada, também o é considerá-lo em termos absolutos. Já não há
mais como sustentar a visão ingênua (ou, muito pelo contrário, bastante
engenhosa) de homens igualmente livres e capazes celebrando, no comércio das
pretensões, pactos irretratáveis sobre seus interesses comuns. Empregador e
empregado, empresário e consumidor, franqueador e franqueado, atacadista e
varejista não se encontram, no mercado, em igualdade de condições, e, assim, a
ordem jurídica, reinterpretando o princípio da isonomia, tem criado mecanismos
de desigualação formal entre os agentes econômicos, de modo a atenuar as
diferenças reais. Entre o forte e o fraco, teria dito Lacordaire já em 1881, a
liberdade escraviza e a lei liberta. A hipossuficiência do empregado, o
reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor, o estatuto da microempresa,
entre outros, são manifestações do novo perfil da igualdade entre os particulares
que enforma o direito privado. Dessa maneira, o princípio da isonomia como
base para a disciplina das relações entre particulares apresenta-se, hoje, mais
como equalizador de pretensões de sujeitos inequivocamente desiguais, e menos
como exclusão de privilégios. E, nesse diapasão, resgata e enriquece a noção
aristotélica de igualdade como proporcionalidade.
O princípio da igualdade,
para fins de disciplina das
relações
entre
pessoas
privadas, significou no passado
a proibição de privilégios.
Atualmente,
significa
o
amparo
jurídico
ao
economicamente mais fraco,
para atenuar os efeitos da
desigualdade econômica.
Àqueles dois níveis de abordagem da disciplina da atividade econômica,
referidos de início, corresponderiam, portanto, dois modelos doutrinários distintos:
o público, relativo às obrigações e direitos do exercente da atividade econômica
perante o estado, em que as pretensões das partes são desigualadas para
privilegiar os interesses curatelados por esse último; e o privado, pertinente às
obrigações e direitos do exercente da atividade econômica perante outros
particulares, em que as pretensões são desigualadas para que não haja privilégio
de qualquer interesse. Em suma, a compreensão da disciplina privada das
atividades econômicas deve ser norteada pelos postulados da autorregulação dos
interesses, observados os limites da ordem positiva, e da equalização das
condições de atuação das partes (Coelho, 2003:11/18).
4. O SISTEMA FRANCÊS (TEORIA DOS ATOS DE COMÉRCIO)
No direito de tradição romanística, a que se filia o brasileiro, podem ser
divisados dois sistemas de disciplina privada da economia: o francês, em que as
atividades econômicas agrupadas em dois grandes conjuntos, sujeitos a subregimes próprios, qualificam-se como civis ou comerciais; e o italiano, em que
se estabelece o regime geral para o exercício das atividades, do qual se exclui a
exploração de algumas poucas, que reclamam tratamento específico. O sistema
francês antecede ao italiano. Seu surgimento ocorre com a entrada em vigor do
Code de Commerce, em 1808, documento legislativo conhecido por Código
Mercantil napoleônico, de forte influência na codificação oitocentista. Já o
sistema italiano surge depois de mais de um século, em 1942, quando é aprovado
pelo Rei Vittorio Emanuele III o Codice Civile, diploma unificador da legislação
peninsular de direito privado.
A elaboração doutrinária fundamental do sistema francês é a teoria dos
atos de comércio, vista como instrumento de objetivação do tratamento jurídico
da atividade mercantil. Isto é, com ela, o direito comercial deixou de ser apenas
o direito de uma certa categoria de profissionais, organizados em corporações
próprias, para se tornar a disciplina de um conjunto de atos que, em princípio,
poderiam ser praticados por qualquer cidadão.
Para Ascarelli (1962:29/74), sempre existiram regras sobre matéria
mercantil, inclusive em normatizações antigas, como o Código de Hammurabi.
Não houve, contudo, um sistema de direito comercial, ou seja, um conjunto de
normas sobre o comércio coordenadas por princípios comuns, senão a partir do
que ele chama de civilização comunal — na verdade, apenas uma referência às
corporações medievais —, que nasce no seio do feudalismo. A partir da segunda
metade do século XII, com os comerciantes e artesãos se reunindo em
corporações de artes e ofícios, inicia-se o primeiro período histórico do direito
comercial. Nele, as corporações de comerciantes constituem jurisdições próprias
cujas decisões eram fundamentadas principalmente nos usos e costumes
praticados por seus membros. Resultante da autonomia corporativa, o direito
comercial de então se caracteriza pelo acento subjetivo e apenas se aplica aos
comerciantes associados à corporação. Mas já nesse primeiro período histórico,
muitos dos principais institutos do direito comercial, como o seguro, a letra de
câmbio, a atividade bancária, são esboçados e desenvolvidos. A península itálica
pode ser vista como o cenário de referência para essa etapa evolutiva do direito
mercantil, em razão de sua localização estratégica para as cruzadas e da
importância das cidades italianas no comércio internacional.
A
história
do
direito
comercial
é
normalmente
dividida em quatro períodos.
No primeiro, entre a segunda
metade do século XII e a
segunda do XVI, o direito
comercial é o direito aplicável
aos integrantes de uma
específica
corporação
de
ofício, a dos comerciantes.
Adota-se, assim, um critério
subjetivo para definir seu
âmbito de incidência. A letra de
câmbio, os bancos e o seguro
são exemplos de institutos já
existentes nesse período.
Na última metade do século XVI, historia Ascarelli, com o florescer do
mercantilismo, inicia-se o segundo período do direito comercial, em que o centro
de referência se desloca para o Ocidente. No processo de unificação nacional da
Inglaterra e da França, a uniformização das normas jurídicas sobre as atividades
econômicas desempenha papel de especial importância, antecedendo em certa
medida a própria criação da identidade cultural e política. Consideráveis
diferenças, no entanto, existem entre a criação do estado nacional inglês e o
francês, com significativas repercussões no tratamento jurídico-privado da
economia. Na ilha, a absorção da jurisdição das corporações mercantis pelos
tribunais da Common Law é, por assim dizer, total, enquanto no continente ocorre
um processo parcial. Em França, as corporações dos comerciantes,
paulatinamente, perdem competência jurisdicional para tribunais do estado
nacional em gestação, mas continua a existir um direito fundado nos usos e
costumes dos comerciantes e apenas a eles aplicável — caracterizado, portanto,
pelo subjetivismo. A evolução do processo inglês, com a modernização
experimentada por meio da equity, acaba por distanciar ainda mais o seu modelo
de disciplina das atividades econômicas do francês. O direito de tradição inglesa,
ao contrário do de tradição romanística, desde este período, não conhece
distinção entre atividades comerciais e civis.
Da segunda etapa evolutiva do direito comercial, uma significativa
contribuição para os institutos deste ramo jurídico é a sociedade anônima que,
comparada às sociedades de pessoas então existentes, acabou se revelando muito
mais adequada aos empreendimentos mercantis da expansão colonial, os quais
demandavam vultosos aportes de capital e limitação de riscos.
No segundo período de sua
história (séculos XVI a XVIII),
o direito comercial ainda é, na
Europa Continental, o direito
dos membros da corporação
dos
comerciantes.
Na
Inglaterra, o desenvolvimento
da Common Law contribui para
a
superação
dessa
característica.
O
mais
importante instituto do período
é a sociedade anônima.
O terceiro período da evolução histórica do direito mercantil, segundo
ainda Ascarelli, inicia-se com a codificação napoleônica. A objetivação do
direito comercial, isto é, a sua transformação em disciplina jurídica aplicável a
determinados atos e não a determinadas pessoas, relaciona-se não apenas com o
princípio da igualdade dos cidadãos, mas também com o fortalecimento do
estado nacional ante os organismos corporativos (1962:66). Claro está que a
mudança não desnatura o direito comercial como conjunto de normas
protecionistas dos comerciantes, uma vez que preceitos sobre recuperação
judicial e extrajudicial (instituto sucedâneo da concordata), extinção das
obrigações na falência ou eficácia probatória da escrituração mercantil
permanecem em vigor até hoje. O sentido da passagem para a terceira etapa
evolutiva do direito comercial, ou seja, da adoção da teoria dos atos de comércio
como critério de identificação do âmbito de incidência deste ramo da disciplina
jurídica, restringe-se à abolição do corporativismo. Em outros termos, a partir do
terceiro período histórico do direito comercial, qualquer cidadão pode exercer
atividade mercantil, e não apenas os aceitos em determinada associação
profissional (a corporação de ofício dos comerciantes). Contudo, uma vez
explorando o comércio, passa a gozar de alguns privilégios concedidos por uma
disciplina jurídica específica.
O terceiro período (séculos
XIX e primeira metade do XX)
se caracteriza pela superação
do critério subjetivo de
identificação do âmbito de
incidência
do
direito
comercial. A partir do código
napoleônico, de 1808, ele não é
mais
o
direito
dos
comerciantes, mas dos “atos de
comércio”.
O Código Civil de Napoleão, de 1804, influenciou fortemente toda a
codificação oitocentista dos direitos de tradição romanística, tanto em
decorrência da conquista armada como pelo seu reconhecido valor jurídico
(Limpens, 1956). Por sua vez, o Código Mercantil do período napoleônico de
1807, embora tenha exercido influência menor em razão de sua inferioridade
técnica, também transmitiu a sua marca para os códigos de muitos países de
língua latina, como o belga de 1811, o espanhol de 1829, o português de 1833, o
italiano de 1882 e os de países sul-americanos (Ripert-Roblot, 1947:48/49). Deste
modo, a teoria dos atos de comércio alcançou o direito vigente em considerável
parcela do mundo ocidental, não penetrando somente na Alemanha e nos países
da Common Law.
A teoria dos atos de comércio resume-se, rigorosamente falando, a uma
relação de atividades econômicas, sem que entre elas se possa encontrar
qualquer elemento interno de ligação, o que acarreta indefinições no tocante à
natureza mercantil de algumas delas. Embora haja quem considere a imprecisão
inerente à teoria dos atos de comércio (Vicente y Gella, 1934:37/41), vários
comercialistas dedicaram-se à tentativa de localizar o seu elemento de identidade
no próprio elenco de atos mercantis. Uma delas, de menor inconsistência, é a de
Rocco, para quem os atos comerciais são os que realizam ou facilitam uma
interposição na troca. Partindo da relação de atos mercantis constante do art. 3º
do Codice di Commercio del Regno D’Italia, de 1882, Rocco inicialmente os
distingue como atos intrinsecamente comerciais, para em seguida classificá-los
em quatro categorias: compra para revenda, operações bancárias, empresas e
seguros. Nessas quatro espécies de atos de comércio, identifica então o elemento
comum da troca indireta, isto é, a interposição na efetivação da troca. Na
compra para revenda, dinheiro é cambiado com bens ou títulos; nas operações
bancárias, permuta-se dinheiro presente por dinheiro futuro; nas empresas,
resultados do trabalho são trocados por dinheiro e outros benefícios econômicos;
e nos seguros, o risco individual se troca pela cota-parte do risco coletivo
(1928:218/222).
O elo entre as diversas atividades abrangidas pelo elenco dos atos de
comércio, contudo, não se encontra senão externamente. Isto é, a unidade dos
atos mercantis reside apenas em sua relação com as atividades profissionais de
uma classe social, a burguesia. A exclusão da negociação de imóveis do âmbito
de incidência do direito comercial pelo Code de Commerce de 1807 — que não
se reproduz em outras legislações adeptas da teoria dos atos de comércio, a
exemplo do código italiano de 1882 — é, por vezes, relacionada a um caráter
sacro de que se revestiria a propriedade imobiliária ou pela tardia distinção entre
circulação física e econômica dos bens (Estrella, 1973:101/114). Porém, esta
exclusão só pode ser satisfatoriamente explicada à luz de considerações políticas
e históricas, ou seja, a partir da necessidade de a burguesia francesa preservar a
sua identidade na luta contra o feudalismo. Na Inglaterra, em que a construção
do estado nacional é produto de uma aliança entre a nobreza feudal e a
burguesia, onde o desenvolvimento do capitalismo prescindiu da tomada pela
força do poder político, a disciplina jurídico-privada da economia pôde tratar
indistintamente as atividades lucrativas exercidas pela classe burguesa e as
relacionadas com a exploração da terra, que são típicas do senhor feudal. Em
França, ao contrário, explica-se a preservação do direito próprio às atividades
lucrativas exploradas pela burguesia, não confundido com o aplicável aos
negócios da terra, porque lá ela se viu na contingência de se organizar enquanto
classe social, para tomar o poder político das mãos da nobreza feudal. O
fracionamento do direito privado em diferentes regimes para as atividades
comerciais e civis, característico da teoria dos atos de comércio, decorre de
fatores externos à tecnologia jurídica; ou, em termos mais usuais da doutrina, não
se reveste, como disse Requião, de “consistência científica” (1971:34).
Em 2000, foi editado novo Code de Commerce na França. Resultado de
uma Ordenança cujos objetivos era a sistematização dos textos legais e
regulamentares esparsos e sua harmonização com normas hierarquicamente
superiores, o novo diploma manteve a teoria dos atos de comércio como núcleo
do direito comercial francês. Contemplou duas categorias: os atos de comércio
pela forma e os pela natureza. Na primeira, estão as sociedades que adotam a
forma de nome coletivo, em comandita simples, de responsabilidade limitada e
anônima; na segunda, está a lista de atos do antigo Code acrescida da compra de
imóveis para revenda e operações no mercado financeiro. A rigor, a noção de
atos de comércio pela forma acaba aproximando o sistema francês do italiano,
objeto de estudo no item seguinte.
5. O SISTEMA ITALIANO (TEORIA DA EMPRESA)
Na Itália, a bipartição da disciplina privada da economia começou a
preocupar a doutrina jurídica ainda no final do século passado, sendo significativa
a este respeito a defesa por Vivante, na aula inaugural de seu curso na
Universidade de Bolonha, em 1892 (cf. Bulgarelli, 1977:59), da tese pelo fim da
autonomia do direito comercial. Suscitou, então, cinco argumentos em favor da
superação da divisão básica no direito privado. De início, questionou a sujeição
de não comerciantes (os consumidores) a regras elaboradas a partir de práticas
mercantis desenvolvidas pelos comerciantes e em seu próprio interesse. Como
cidadão, deplorou o fato de o Código Comercial, considerado por ele lei de
classe, perturbar a solidariedade social, que deveria ser o objetivo supremo do
legislador. Em segundo lugar, lembrou que a autonomia do direito comercial
importava desnecessária litigiosidade para a prévia discussão da natureza civil ou
mercantil do foro, na definição de prazos, ritos processuais e regras de
competência. Outra razão invocada para a superação da dicotomia foi a
insegurança decorrente do caráter exemplificativo do elenco dos atos de
comércio. Uma pessoa, que pensava exercer atividade civil, podia ser
surpreendida com a declaração de sua falência, inclusive em função de
inesperados desdobramentos penais. Também pretendia Vivante que a
duplicidade de disciplinas sobre idênticos assuntos era fonte de dificuldades. Por
fim, a autonomia do direito comercial atuava negativamente no progresso
científico, na medida em que o estudioso da matéria comercial perdia a noção
geral do direito das obrigações (1922:1/25). Vivante, no entanto, não insistiu
nessas críticas à autonomia do direito comercial; em 1919, após ser nomeado
presidente da comissão de reforma da legislação comercial na Itália, abandonou
a tese da unificação e elaborou um projeto de Código Comercial específico.
Em 1942, o Codice Civile passa a disciplinar, na Itália, tanto a matéria civil
como a comercial, e a sua entrada em vigor inaugura a última etapa evolutiva do
direito comercial nos países de tradição romanística. É fato que a uniformização
legislativa do direito privado já existia em parte na Suíça, desde 1881, com a
edição de código único sobre obrigações, mas será o texto italiano que servirá de
referência doutrinária porque, embora posterior, é acompanhado de uma teoria
substitutiva à dos atos de comércio. Com certeza, não basta a reunião da
disciplina privada das atividades econômicas num mesmo diploma legal, para
que se eliminem as diferenças de tratamento entre as comerciais e as civis. É
necessária ainda uma noção teórica capaz de se constituir o modelo para esta
disciplina, um sistema que se contraponha ao francês e o supere. Se a legislação
suíça já não apresenta diferenças entre as atividades dos comerciantes e a dos
não comerciantes, sob o ponto de vista da disciplina das obrigações, não veio a
inovação acompanhada de uma reflexão doutrinária mais abrangente, que
projetasse seus efeitos no mundo jurídico de tradição romanística.
O modelo italiano de regular o exercício da atividade econômica, sob o
prisma privatístico, encontra a sua síntese na teoria da empresa. Vista como a
consagração da tese da unificação do direito privado (Ascarelli, 1962:127;
Ferrara, 1952:15), essa teoria, contudo, bem examinada, apenas desloca a
fronteira entre os regimes civil e comercial. No sistema francês, excluem-se
atividades de grande importância econômica — como a prestação de serviços,
agricultura, pecuária, negociação imobiliária — do âmbito de incidência do
direito mercantil, ao passo que, no italiano, se reserva uma disciplina específica
para algumas atividades de menor expressão econômica, tais as dos profissionais
liberais ou dos pequenos comerciantes. A teoria da empresa é, sem dúvida, um
novo modelo de disciplina privada da economia, mais adequado à realidade do
capitalismo superior. Mas por meio dela não se supera, totalmente, um certo
tratamento diferenciado das atividades econômicas. O acento da diferenciação
deixa de ser posto no gênero da atividade e passa para a medida de sua
importância econômica. Por isso é mais apropriado entender a elaboração da
teoria da empresa como o núcleo de um sistema novo de disciplina privada da
atividade econômica e não como expressão da unificação dos direitos comercial
e civil.
O marco inicial do quarto e
último período da história do
direito comercial é a edição,
em 1942 na Itália, do Codice
Civile, que reúne numa única
lei as normas de direito
privado (civil, comercial e
trabalhista). Neste período, o
núcleo conceitual do direito
comercial deixa de ser o “ato
de comércio”, e passa a ser a
“empresa”.
Conceitua-se empresa como sendo atividade, cuja marca essencial é a
obtenção de lucros com o oferecimento ao mercado de bens ou serviços, gerados
estes mediante a organização dos fatores de produção (força de trabalho,
matéria-prima, capital e tecnologia). Esse modo de conceituar empresa, em
torno de uma peculiar atividade, embora não seja totalmente isento de
imprecisões (Bulgarelli, 1985:175/199), é corrente hoje em dia entre os
doutrinadores. No passado, contudo, muito se discutiu sobre a unidade da noção
jurídica da empresa, que era vista como resultante de diferentes fatores,
objetivos e subjetivos (cf. Fanelli, 1950:73/75). Certo entendimento bastante
prestigiado considerava-a, em termos jurídicos, um conceito plurivalente. Para
Asquini (1943), não se deve pressupor que o fenômeno econômico poliédrico da
empresa necessariamente ingresse no direito por um esquema unitário, tal como
ocorre na ciência econômica. Ele divisa, por conseguinte, quatro perfis na
empresa: subjetivo, funcional, patrimonial (ou objetivo) e corporativo. Pelo
primeiro, a empresa é vista como empresário, isto é, o exercente de atividade
autônoma, de caráter organizativo e com assunção de risco. Pelo perfil funcional,
identifica-se a empresa à própria atividade. Pelo terceiro perfil, corresponde ao
patrimônio aziendal ou estabelecimento. E, por fim, pelo perfil corporativo, ela é
considerada uma instituição, na medida em que reúne pessoas — empresário e
seus empregados — com propósitos comuns.
A visão multifacetária da empresa proposta por Asquini, sem dúvida,
recebe apoio entusiasmado de alguma doutrina (entre nós, Marcondes, 1977:7/8),
mas dos quatro perfis delineados apenas o funcional realmente corresponde a um
conceito jurídico próprio (cf. Ferrara, 1945:90/91). Os perfis subjetivo e objetivo
não são mais que uma nova denominação para os conhecidos institutos de sujeito
de direito e de estabelecimento empresarial. O perfil corporativo, por sua vez,
sequer corresponde a algum dado de realidade, pois a ideia de identidade de
propósitos a reunir na empresa proletários e capitalista apenas existe em
ideologias populistas de direita, ou totalitárias (como a fascista, que dominava a
Itália na época).
Empresa é a atividade
econômica organizada para a
produção ou circulação de
bens ou serviços. Sendo uma
atividade, a empresa não tem a
natureza jurídica de sujeito de
direito nem de coisa. Em outros
termos, não se confunde com o
empresário (sujeito) nem com o
estabelecimento empresarial
(coisa).
Como atividade econômica, profissional e organizada, a empresa tem
estatuto jurídico próprio, que possibilita o seu tratamento com abstração até
mesmo do empresário. Claro que a autonomia da empresa frente ao capitalista
empreendedor deve ser entendida como mero expediente técnico-jurídico, não
podendo servir para fundamentar visões irrealistas. Já houve quem, por exemplo,
negasse aos administradores de sociedades por ações a qualidade de
“mandatários” dos acionistas, por entender que eles representariam não somente
o capital, mas todas as forças engajadas na empresa, que deveria ser dirigida
com vistas à realização dos interesses comuns dessas forças (Ripert, 1951:286). A
separação entre empresa e empresário é apenas um conceito jurídico, destinado
a melhor compor os conflitos de interesses relacionados com a produção ou
circulação de certos bens ou serviços. É fato que muitos interesses gravitam em
torno da empresa, isto é, muitas pessoas, além dos sócios da sociedade
empresária, têm interesse no desenvolvimento da atividade empresarial. Assim,
figura com crescente importância, entre os fundamentos da disciplina jurídica da
atividade econômica da atualidade, o princípio da preservação da empresa, isto
é, do empreendimento, da atividade em si. Isso explica porque cada vez mais a
preocupação do processo falimentar tem sido a de garantir a não interrupção do
desenvolvimento da atividade econômica explorada pelo falido, com o seu
afastamento e responsabilização (Coelho, 2005). Isto em atenção aos muitos
interesses que gravitam em torno da empresa, como os titularizados pelos
empregados, pela comunidade, pelos consumidores etc. A dissociação entre
empresa e empresário é tema de reflexão doutrinária da maior envergadura (cf.
Despax, 1957), e seus resultados na legislação e jurisprudência se fazem já sentir
há algum tempo, inclusive no Brasil (cf. Grau, 1981:122/133), porém — repita-se
— não é mais que um conceito operacional do direito, criado para a tutela, em
parte, dos interesses de trabalhadores, consumidores, investidores e outros.
O sistema italiano de disciplina privada da atividade econômica,
sintetizado pela teoria da empresa, acabou superando o francês, ou seja, as
legislações de direito privado sobre matéria econômica, a partir de meados do
século XX, não têm mais dividido os empreendimentos em duas categorias (civis
e comerciais), para submetê-los a regimes distintos. A isso, têm preferido os
legisladores criar um regime geral para a disciplina privada da economia,
excepcionando algumas atividades de expressão econômica marginal. A teoria
dos atos de comércio vê-se substituída pela da empresa, ainda que não se
adotem, na lei ou na doutrina, exatamente estas designações para fazer
referência, respectivamente, ao modelo francês de partição das atividades, ou ao
italiano, de regime geral parcialmente excepcionado. Até mesmo em França,
onde nasceu, o sistema de dupla disciplina privada das atividades econômicas se
encontra hoje bastante descaracterizado, já que se submetem à jurisdição
comercial, independentemente de seu objeto, as sociedades anônimas (desde
1893), de responsabilidade limitada (desde 1925) e as em nome coletivo e em
comandita (desde 1966), o que, concretamente, aproxima a legislação francesa
ao modelo italiano.
6. FILIAÇÃO DO DIREITO BRASILEIRO AO SISTEMA FRANCÊS EM
1850
No século XVIII, o sistema colonial ibérico representava um verdadeiro
anacronismo. Portugal e Espanha, embora possuíssem as colônias de maior
extensão e riquezas, não ocupavam mais, no cenário das potências europeias, a
posição de destaque que lhes haviam proporcionado as grandes descobertas de
três séculos antes. A Inglaterra, a França e, até certo ponto, a Holanda, nações
centrais em termos de importância política e econômica, disputavam, pelas
armas e pela diplomacia, as possessões portuguesas e espanholas na América.
No contexto, surge o bloqueio continental imposto por Napoleão, que pôs fim às
renovadas tentativas protelatórias do regente português de evitar se definir entre a
preservação da histórica aliança com a Inglaterra e a submissão ao poderio
militar francês. Protegido pela força naval inglesa, e trazendo consigo dez mil
pessoas, entre nobres e funcionários burocráticos, ele aportou em Salvador, em
24 de janeiro de 1808 (cf. Prado Jr., 1945:123/131).
A história do direito comercial brasileiro se inicia nesse momento, com a
abertura dos portos às nações amigas, decretada com a Carta Régia de 28 de
janeiro de 1808. Édito de caráter expressamente provisório, acabou, no entanto,
criando condições econômicas de fato irreversíveis. Naquele ano, ainda, outros
importantes atos de disciplina do comércio foram editados, como o Alvará de 1º
de abril, permitindo o livre estabelecimento de fábricas e manufaturas; o de 23
de agosto, instituindo o Tribunal da Real Junta do Commercio, Agricultura,
Fabricas e Navegação; e o de 12 de outubro, criando o Banco do Brazil. A edição
dessas normas teve não apenas o sentido de propiciar as condições de vida
reclamadas pela presença da real corte portuguesa em solo colonial, mas
também, e principalmente, o de atender às pressões do imperialismo inglês. Pela
proteção oferecida em face do perigo napoleônico, a Inglaterra cobrou pesado
preço, passando a interferir diretamente nos negócios do frágil estado português,
especialmente em relação à sua imensa possessão colonial na América do Sul.
Para se ter uma ideia da medida da ingerência britânica na economia da colônia,
basta lembrar que, entre 1810 e 1816, os produtos ingleses importados pelo Brasil
eram taxados em alíquota inferior (15%) à dos portugueses (16%).
Com a paz na Europa, em 1815, e o retorno, um tanto forçado, do então
Rei D. João VI à sua terra, em 1821, criaram-se as condições políticas para o
surgimento do estado brasileiro. O rompimento, sob o ponto de vista econômico,
da dependência colonial com a metrópole portuguesa, em razão da presença
marcante das potências europeias no nosso comércio, reclamava a
independência política, que, aos gritos, veio ocorrer em 1822. Para suprir a
carência de legislação própria, a Assembleia Constituinte e Legislativa, eleita no
ano seguinte, determinou a aplicação no Brasil das leis portuguesas, vigentes na
data do retorno a Portugal de D. João VI. Entre estas, a doutrina destaca a curiosa
Lei da Boa Razão, de 1769, que em matéria comercial determinava a
observância das leis vigorantes nas “nações cristãs, iluminadas e polidas, que
com elas estavam resplandecendo na boa, depurada e sã jurisprudência”
(Requião, 1971:15). Desta forma, o Código Comercial napoleônico, o português e
o espanhol passaram a constituir as normas disciplinadoras da exploração da
atividade econômica do novo estado.
O Brasil vivia, então, uma época de crescimento econômico, chegando a
ser mais atraente que certos lugares da Europa. Tanto assim que o próprio rei
português adiou o quanto pôde seu regresso. Os invasores franceses já haviam
sido expulsos de Portugal pelos ingleses desde 1809, Napoleão Bonaparte já havia
sido derrotado em Waterloo, em 1815, mas a corte portuguesa continuava
sediada no Rio de Janeiro, desenvolvendo grandes e promissores
empreendimentos, numa economia em real expansão. Reclamava-se, para
atender a essa vitalidade econômica, um Código Comercial próprio, em
substituição à disciplina lacunosa e contraditória, decorrente da remissão a
legislações estrangeiras. A lei, no entanto, somente veio a ser aprovada pelo
Imperador D. Pedro II em 1850, a partir de projeto iniciado dezessete anos antes.
O Código Comercial brasileiro inspirou-se diretamente no Code de
Commerce e, assim, trouxe para o direito nacional o sistema francês de disciplina
privada da atividade econômica. O próprio Código não menciona a expressão
“atos de comércio” e tampouco os enumera. Na tramitação do projeto pelo
senado, apresentou-se emenda para introduzir no texto o elenco dos atos
mercantis, à semelhança do existente no diploma napoleônico, mas a iniciativa
não prosperou, em razão da imprecisão da teoria, cujos efeitos na doutrina e
jurisprudência já eram conhecidos e temidos (cf. Requião, 1971:38; Bulgarelli,
1977:67). Contudo, a despeito dessa proposital inexplicitação, todos os dispositivos
do Código são acentuadamente marcados pela teoria dos atos de comércio. E, de
qualquer modo, a legislação brasileira não teve como fugir do elenco normativo
desses atos, editando-se, ainda em 1850, o Regulamento n. 737, diploma
processual de qualidade técnica destacada, em cujo art. 19 definem-se as
atividades sujeitas à jurisdição dos Tribunais do Comércio.
Regulamento n. 737, de 1850
Art.
19.
Considera-se
mercancia:
§ 1º A compra e venda ou
troca de efeitos móveis ou
semoventes, para os vender por
grosso ou a retalho, na mesma
espécie ou manufaturados, ou
para alugar o seu uso;
§ 2º As operações de câmbio,
banco e corretagem;
§ 3º As empresas de fábrica,
de comissões, de depósito, de
expedição,
consignação
e
transporte de mercadorias, de
espetáculos públicos;
§ 4º Os seguros, fretamentos,
riscos e quaisquer contratos
relativos
ao
comércio
marítimo;
§ 5º A armação e expedição de
navios.
Mesmo com a extinção dos Tribunais do Comércio, em 1875, continuou o
direito brasileiro a disciplinar a atividade econômica a partir do critério
fundamental da teoria dos atos de comércio, isto é, contemplando dois diferentes
regimes basilares (civil e comercial). Neste sentido, ao se criar em 1934, com a
chamada Lei de Luvas, a tutela do fundo de comércio, reservou-se o direito à
renovação compulsória do contrato de locação apenas aos exercentes de
atividades comerciais e industriais. Por outro lado, a eficácia probatória da
escrituração sempre foi tratada, pela legislação processual, como privilégio de
comerciantes. E, por fim, a execução judicial coletiva do patrimônio do devedor
insolvente nunca foi unificada no direito brasileiro, prevendo-se a falência aos
comerciantes e a insolvência civil para os demais exercentes de atividade
econômica.
A lista de atividades estabelecida pelo Regulamento n. 737 continuou
servindo de referência doutrinária para a definição do campo de incidência do
direito comercial brasileiro, mesmo após a sua revogação. Somente a partir dos
anos 1960, quando o direito brasileiro inicia o processo de aproximação ao
sistema italiano de disciplina privada da atividade econômica, a lista do velho
regulamento imperial vê diminuída sua importância.
7. APROXIMAÇÃO DO DIREITO BRASILEIRO AO SISTEMA ITALIANO
Na mesma tendência dos demais países de tradição romanística, o Brasil
tem se aproximado paulatinamente do modelo italiano, isto é, do estabelecimento
de um regime geral de disciplina privada da atividade econômica, que apenas
não alcança certas modalidades de importância marginal. Se considerarmos as
várias tentativas de codificação do nosso direito privado, desde o esboço de
Teixeira de Freitas até o projeto de Miguel Reale, tem prevalecido a tese da
unificação. O projeto Inglês de Sousa do Código Comercial foi apresentado, em
1912, ao governo Hermes da Fonseca, juntamente com a alternativa de um
código único de direito privado. Em 1941, o ministro Francisco Campos recebeu
de Orozimbo Nonato, Philadelpho Azevedo e Hahnemann Guimarães o
anteprojeto de código das obrigações. A mesma orientação unificadora esteve
presente no código encomendado a Caio Mário da Silva Pereira em 1961, e
encaminhado ao Congresso em 1965. Em suma, nas muitas oportunidades em
que se intentou reformar o Código Comercial, apenas numa delas, no projeto
Florêncio de Abreu de 1950, prestigiou-se a proposta de codificação própria da
matéria mercantil (Borges, 1959:48/51).
Com a aprovação do projeto de Código Civil de Miguel Reale, que
tramitou no Congresso entre 1975 e 2002, o direito privado brasileiro conclui seu
demorado processo de transição entre os sistemas francês e italiano. À
semelhança do anteprojeto de 1965, de cujo livro III sobre a atividade negocial
encarregou-se Sy lvio Marcondes, o Código Civil inspira-se no Codice Civile e,
adotando expressamente a teoria da empresa, incorpora o modelo italiano de
disciplina privada da atividade econômica. A despeito de seu inegável
envelhecimento precoce em muitos aspectos, trata-se de texto sintonizado com a
evolução dos sistemas de tratamento da economia, pelo ângulo das relações entre
os particulares.
O Código Civil define empresário como o profissional exercente de
atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de
serviços (art. 966), sujeitando-o às disposições de lei referentes à matéria
mercantil (art. 2.037). Exclui do conceito de empresário o exercente de atividade
intelectual, de natureza científica, literária ou artística, mesmo que conte com o
concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se constituir o exercício da
profissão elemento de empresa (art. 966, parágrafo único). Esse dispositivo
alcança, grosso modo, o chamado profissional liberal (advogado, dentista,
médico, engenheiro etc.), que apenas se submete ao regime geral da atividade
econômica se inserir a sua atividade específica numa organização empresarial
(na linguagem normativa, se for “elemento de empresa”). Caso contrário,
mesmo que empregue terceiros, permanecerá sujeito somente ao regime
próprio de sua categoria profissional. Em situação diversa, encontram-se os
empresários rurais, que são dispensados de inscrição no registro de empresa e
dos demais deveres impostos aos inscritos (art. 970). Não são, por evidente,
excluídos do conceito de empresário, tal como os profissionais liberais, mas
podem, por ato unilateral de vontade (inscrição no registro de empresa),
ingressar ou não no regime geral de disciplina da atividade econômica.
Código Civil
Art.
966.
Considera-se
empresário
quem
exerce
profissionalmente
atividade
econômica organizada para a
produção ou circulação de
bens ou de serviços.
Parágrafo único. Não se
considera empresário quem
exerce profissão intelectual, de
natureza científica, literária ou
artística, ainda com o concurso
de auxiliares ou colaboradores,
salvo se o exercício da
profissão constituir elemento
de empresa.
Mesmo antes da entrada em vigor do Código Civil, pode-se afirmar que o
direito brasileiro já vinha adotando fundamentalmente a teoria da empresa. A
evolução do nosso direito não ficou dependendo da reforma da codificação.
Apesar da vigência de um Código Comercial ainda inspirado na teoria dos atos de
comércio, a doutrina, jurisprudência e a própria legislação esparsa cuidaram de
ajustar o direito comercial, para que pudesse cumprir sua função de solucionar
conflitos de interesses entre os empresários por critérios mais adequados à
realidade econômica do último quarto do século XX. Isto se pode afirmar não
apenas em razão da doutrina e jurisprudência — ou mesmo de decisões de juízes
de primeiro grau afinadas com as modernas concepções de disciplina privada da
economia, de que era significativo exemplo a concessão de concordata
preventiva aos pecuaristas em Minas Gerais —, mas sobretudo em função da
própria legislação editada a partir dos anos 1990.
Registre-se, a propósito, que as últimas grandes inovações legislativas no
direito privado brasileiro do século XX não mais prestigiaram o modelo francês
de disciplina privada da atividade econômica. O Código de Defesa do
Consumidor, de 1990, trata a todos os fornecedores independentemente do
gênero de atividade em que operam, submetendo a mesmo tratamento jurídico
os empresários do ramo imobiliário, industriais, prestadores de serviços,
banqueiros e comerciantes. A Lei n. 8.245/91, que dispõe sobre a locação predial
urbana, introduziu pequenas alterações na disciplina da renovação compulsória
do contrato de locação, de imóvel destinado a abrigar a exploração de atividade
econômica, para estender o direito à ação renovatória às sociedades civis com
fins lucrativos, eliminando o privilégio que a Lei de Luvas havia estabelecido em
favor apenas dos exercentes de atividade comercial (Cap. 5). Também cabe
mencionar que a reforma do Registro de Comércio, levada a efeito pela Lei n.
8.934/94, que passou, inclusive, a denominá-lo “Registro de Empresas e
Atividades Afins”, não obstante algumas imprecisões conceituais, teve o sentido
geral de atender à tendência de superação da teoria dos atos de comércio (Cap.
4).
São duas as importantes consequências da configuração de certa atividade
econômica como sujeita ao direito comercial: de um lado, a execução judicial
concursal do patrimônio do empresário por meio de procedimento próprio, isto é,
a falência, e, de outro, a possibilidade de requerer a recuperação judicial da
empresa ou a homologação da recuperação extrajudicial. Nenhuma outra
distinção de relevo, quanto ao regramento de suas relações com os demais
particulares, separa hoje os empresários e os exercentes de atividades civis
(profissionais intelectuais, cooperativas e empresários rurais não inscritos no
registro das empresas). Claro que há, pontualmente, algumas outras diferenças
de tratamento, a exemplo das chamadas obrigações comuns aos empresários
(escrituração, levantamento de balanços), ou a da prova do vínculo contratual e
do efetivo cumprimento das obrigações como requisito para o protesto por
indicações de duplicata de prestação de serviços, condição inexistente para a
duplicata mercantil. Mas, de qualquer forma, em termos gerais, ao contrário do
que se verificava no passado, sob a égide da teoria dos atos de comércio, é cada
vez mais dispensável discernir a natureza civil ou empresarial do exercente de
atividade econômica, para aplicar o direito em vigor no Brasil.
Em suma, deve-se situar o direito brasileiro, no que diz respeito aos
modelos de disciplina privada da atividade econômica, entre os que adotam o
sistema italiano, caracterizado pelo estabelecimento de regime geral
marginalmente excepcionado.
O direito comercial brasileiro
filia-se, desde o último quarto
do século XX, à teoria da
empresa. Nos anos 1970, a
doutrina comercialista estuda
com atenção o sistema italiano
de disciplina privada da
atividade econômica. Já nos
anos 1980, diversos julgados
mostram-se guiados pela teoria
da empresa para alcançar
soluções mais justas aos
conflitos de interesse entre os
empresários. A partir dos anos
1990, pelo menos três leis
(Código
de
Defesa
do
Consumidor, Lei de Locações e
Lei do Registro do Comércio)
são editadas sem nenhuma
inspiração na teoria dos atos
de comércio.O Código Civil de
2002 conclui a transição, ao
disciplinar, no Livro II da
Parte Especial, o direito de
empresa.
8. DO DIREITO COMERCIAL AO DIREITO EMPRESARIAL
Direito comercial é a designação tradicional do ramo jurídico que tem por
objeto os meios socialmente estruturados de superação dos conflitos de interesse
entre os exercentes de atividades econômicas de produção ou circulação de bens
ou serviços de que necessitamos todos para viver. Note-se que não apenas as
atividades especificamente comerciais (intermediação de mercadorias, no
atacado ou varejo), mas também as industriais, bancárias, securitárias, de
prestação de serviços e outras, estão sujeitas aos parâmetros (doutrinários,
jurisprudenciais e legais) de superação de conflitos estudados pelo direito
comercial. Talvez seu nome mais adequado, hoje em dia, fosse direito
empresarial. Qualquer que seja a denominação, o direito comercial (mercantil,
de empresa ou de negócios) é uma área especializada do conhecimento jurídico.
Sua autonomia, como disciplina curricular ou campo de atuação profissional
específico, decorre dos conhecimentos extrajurídicos que professores e
advogados devem buscar, quando o elegem como ramo jurídico de atuação.
Exige-se do comercialista não só dominar conceitos básicos de economia,
administração de empresas, finanças e contabilidade, como principalmente
compreender as necessidades próprias do empresário e a natureza de elemento
de custo que o direito muitas vezes assume para este (Cap. 1). Quem escolhe o
direito comercial como sua área de estudo ou trabalho deve estar disposto a
contribuir para que o empresário alcance o objetivo fundamental que o motiva
na empresa: o lucro. Sem tal disposição, será melhor — para o estudioso e
profissional do direito, para os empresários e para a sociedade — que ele dedique
seus esforços a outra das muitas e ricas áreas jurídicas.
No Brasil, a autonomia do direito comercial vem referida na Constituição
Federal, que, ao listar as matérias da competência legislativa privativa da União,
menciona “direito civil” em separado de “comercial” (CF, art. 22, I). Note-se
que não compromete a autonomia do direito comercial a opção do legislador
brasileiro de 2002, no sentido de tratar a matéria correspondente ao objeto desta
disciplina no Código Civil (Livro II da Parte Especial), já que a autonomia
didática e profissional não é minimamente determinada pela legislativa.
Também não compromete a autonomia da disciplina a adoção, no direito privado
brasileiro, da teoria da empresa. Como visto, a bipartição dos regimes jurídicos
disciplinadores de atividades econômicas não deixa de existir, quando se adota o
critério da empresarialidade para circunscrever os contornos do âmbito de
incidência do direito comercial. Aliás, a teoria da empresa não importa nem
mesmo a unificação legislativa do direito privado. Na Espanha, desde 1989, o
Código do Comércio incorpora os fundamentos dessa teoria, permanecendo
diploma separado do Código Civil.
No Brasil, consideram alguns autores que o Código Civil teria levado à
unificação do direito das obrigações. Bem examinada a questão, no entanto, notase o desacerto do argumento. Os contratos entre os empresários, no direito
brasileiro, em nenhum momento submeteram--se exclusivamente ao Código
Civil, nem mesmo depois da propalada unificação. Tome-se o exemplo da
insolvência (ou, quando empresário, falência) do comprador. A lei civil
estabelece que o vendedor, nesse caso, tem o direito de exigir caução antes de
cumprir sua obrigação de entregar a coisa vendida (CC, art. 495). Essa norma
nunca regeu, não rege e nem mesmo poderia reger uma compra e venda entre
empresários, já que a lei de falências (tanto a de 1945 como a de 2005) dá ao
administrador judicial da massa falida do comprador os meios para exigir o
cumprimento da avença por parte do vendedor independentemente de prestar a
caução mencionada na lei civil. Por outro lado, além das regras específicas que a
legislação de direito comercial estabelece para as obrigações nela regidas, não se
podem esquecer os princípios aplicáveis aos contratos entre empresários. No
direito comercial, o princípio do pleno respeito à autonomia da vontade e do
informalismo contratual conferem à disciplina jurídica dos contratos entre
empresários nuances que não se estendem à generalidade das obrigações civis.
Falar-se, assim, em unificação do direito das obrigações quando ainda
sobrevivem, de um lado, regras específicas para os contratos entre empresários
e, de outro, princípios próprios para os negócios jurídicos sujeitos ao direito
comercial é inapropriado.
A demonstração irrespondível, porém, de que a autonomia do direito
comercial não é comprometida nem pela unificação legislativa do direito
privado, nem pela teoria da empresa, encontra-se nos currículos dos cursos
jurídicos das faculdades italianas. Já se passaram 60 anos da unificação
legislativa e da adoção da teoria da empresa na Itália, e o direito comercial
continua sendo tratado lá como disciplina autônoma, com professores e literatura
especializados. Até mesmo em reformas curriculares recentes, como a
empreendida na Faculdade de Direito de Bolonha a partir do ano letivo de
1996/1997, a autonomia do direito comercial foi amplamente prestigiada.
9. O CONHECIMENTO TECNOLÓGICO DO DIREITO
No século XX, enquanto a ciência realizava progressos fantásticos,
alterando profundamente o cenário do planeta e o cotidiano das pessoas, a
filosofia constatava que o conhecimento científico não é ilimitado. Mais que isso,
percebia que nem todos os níveis de saber têm o mesmo estatuto: o homem não
pode dominar tudo, não pode tudo. No campo do conhecimento jurídico, após o
fracasso das tentativas de criação de uma ciência do direito como reveladora dos
verdadeiros sentidos das normas jurídicas — em Kelsen, Ross, von Wright e
noutros —, abre-se, graças às contribuições como as de Perelman (1958) ou
Ferraz Jr. (1980), uma nova perspectiva na discussão do tema, a partir da
afirmação do caráter tecnológico desse conhecimento.
Em termos mais precisos, o direito pode ser objeto de dois níveis de
conhecimentos diferentes. Dependendo dos objetivos pretendidos pelo estudioso,
da questão fundamental que ele se propõe a resolver, o seu conhecimento poderá
ser científico ou tecnológico. Se procura compreender as razões pelas quais uma
certa sociedade, em determinado momento histórico, produziu as normas
jurídicas que produziu e não outras, o estudioso do direito se verá diante de
alternativas cuja pertinência será medida por critérios excludentes de
veracidade. Ou seja, as respostas que sugerir para entender essa questão serão
verdadeiras ou falsas. O estudioso deve, por isso, discutir o método pelo qual
poderá afirmar uma hipótese como verdadeira, e afastar as demais como falsas.
Em todo o processo cognitivo científico, está presente a ideia de superação das
afirmações inconciliáveis, a ideia de que dois enunciados conflitantes não podem
ser igualmente pertinentes. Para responder à questão sobre a origem das normas,
o estudioso desenvolve um conhecimento científico do direito. Esse é o tipo de
conhecimento, por exemplo, que os cultores do Direito Romano produzem,
quando observam método adequado.
Por outro lado, se a questão fundamental que o sujeito pretende esclarecer
não está ligada à contextualização histórica da norma jurídica, mas
exclusivamente ao sentido ou sentidos que lhe podem ser atribuídos, então será
outro o critério de aferição da pertinência das respostas experimentadas. Quer
dizer, não será possível, nesse nível de conhecimento, buscar algo assim como a
verdadeira interpretação dos comandos normativos. Afirmações conflitantes
acerca do sentido de uma determinada norma jurídica não se excluem, pelo
contrário podem conviver numa harmonia própria. Isso não significa, ressalte-se,
que inexistam critérios de aferição da pertinência das muitas respostas dadas à
questão do significado da norma em estudo; apenas que tais critérios não são
provenientes de um método científico, mas de esforços argumentativos de
caráter retórico. Em termos mais simples, os enunciados doutrinários acerca do
conteúdo de uma certa norma jurídica não são verdadeiros ou falsos, mas
adequados ou inadequados à aplicação do preceito.
Ao se debruçar sobre uma norma jurídica para delimitar as decisões que
podem ser adotadas a partir dela, o estudioso desenvolve um conhecimento
tecnológico. Ou seja, ele conhece os meios mais ou menos adequados para se
alcançarem fins preestabelecidos. Se se considera que a finalidade do direito é a
realização da justiça, a tecnologia jurídica fornece o conhecimento acerca dos
significados mais ou menos justos que se podem atribuir às normas vigentes. Se
se considera que é a administração dos conflitos sociais com o menor nível de
perturbação, será novamente o conhecimento tecnológico que poderá apontar
quais interpretações das normas jurídicas estão aptas a realizar tal escopo. Se se
considera o direito um instrumento de dominação de classes, a exegese
normativa fornecerá os meios de reafirmação dos interesses dominantes. Se,
enfim, se entrevê no direito um instrumento de insurreição contra a ordem
estabelecida, a tecnologia jurídica indicará modos de interpretação crítica das
leis em vigor. Em suma, independente da razão de ser vislumbrada no direito, o
conhecimento do conteúdo das normas jurídicas postas não pode ser mais que o
estudo dos meios aptos (inaptos, mais ou menos aptos etc.) a propiciarem que o
direito cumpra suas finalidades.
A interpretação de normas
jurídicas não corresponde a um
conhecimento científico, capaz
de demonstrar a “verdade” ou
“falsidade”
de
suas
proposições. Corresponde, sim,
a um conhecimento de outro
nível, tecnológico. É um saber
relativo a meios aptos — mais
ou menos aptos — à realização
de fins dados.
A doutrina jurídica é um complexo de conhecimentos composto de
enunciados de ambos os níveis de saber. Há, no trabalho doutrinário, afirmações
de ciência e de tecnologia do direito, entremeadas e indistinguíveis. Quando
Ascarelli, por exemplo, afirma que
“a sociedade anônima (em 1811, no Estado de Nova York; em 1844
na Inglaterra; de início e sob um aspecto particular, em 1863,
depois e de um modo geral, em 1867, na França) supera a
necessidade de autorização governamental para cada caso; passa a
poder ser constituída, em princípio, com a observância de
determinadas normas legais e de publicidade, independentemente
de um controle de mérito pelas autoridades em cada constituição.
(...) De um instrumento jurídico excepcional, a sociedade anônima
passou a constituir uma forma jurídica normal da empresa
econômica e a sua adoção se espalhou pari passu com a
industrialização dos vários países” (1945:340),
está apresentando uma forma de se compreender a expansão das sociedades
anônimas, as razões pelas quais esse tipo societário se desenvolveu. Já, na
seguinte passagem do mesmo Ascarelli:
“quando o valor do reembolso tenha sido fixado no ato constitutivo
(com o consentimento, portanto, do sócio que se retira, se ele é um
subscritor; ou com o seu conhecimento prévio desse valor, se
adquiriu as ações depois da constituição da sociedade), entenderia
não ser cabível a impugnação. Nessa hipótese, a sociedade e o
sócio, consensual e conscientemente, fixaram e aceitaram um
determinado valor de reembolso; o funcionamento sucessivo da
empresa pode tornar esse valor inferior ou superior ao valor real,
mas esse é um risco que ambas as partes conscientemente
aceitaram. Não há motivo para se dar ao sócio que se retira (assim
como não haveria motivo para dá-la à sociedade) a possibilidade de
fugir ao aceito” (1945:433),
ele está produzindo um conhecimento de estatuto diferente. No primeiro caso,
sua afirmação pode ser verdadeira ou falsa (quer dizer, ou corresponde à
realidade histórica que a expansão do modelo acionário acompanhou o processo
de industrialização, ou não); o método científico revelará a veracidade ou não da
ideia exposta por Ascarelli, excluindo-a do conhecimento se concluir por sua
falsidade. No último, a sua interpretação da ordem vigente, sobre a
impossibilidade de impugnação do reembolso pelo acionista dissidente, quando
fixado estatutariamente o seu valor, é uma entre várias outras, que podem
conviver nas discussões jurídicas — o próprio Ascarelli lembra, em nota de
rodapé, o entendimento algo divergente de Miranda Valverde, acerca da
validade de cláusula do estatuto fixando o valor do reembolso pelo nominal
(1945:433, nota 37).
Resta claro, a partir das passagens transpostas da obra de um dos maiores
comercialistas de todos os tempos, que a doutrina jurídica se preocupa —
embora não na mesma proporção — com duas dimensões diferentes do fato
social consistente na definição de normas de conduta. De um lado com as razões
pelas quais se produziu determinada norma jurídica, e, de outro, os sentidos que
se podem atribuir-lhe. À primeira preocupação corresponde um conhecimento
científico cujo objeto é a historicidade das normas; à segunda um saber
tecnológico voltado às decisões que se podem derivar das normas postas. A
tecnologia jurídica, assim, é a parte do conhecimento doutrinário que se propõe a
esclarecer o sentido ou sentidos das normas jurídicas, e o direito comercial,
enquanto interpretação da disciplina jurídico-privatística do exercício da
atividade econômica, é um capítulo desse conhecimento.
10. O DIREITO E AS EXTERNALIDADES
Toda atividade econômica insere-se necessariamente num contexto
social, e, assim, gera custos não apenas para o empresário que a explora, mas,
em diferentes graus, também para a sociedade. A indústria polui o ar, esgota
fontes de matéria-prima, reclama investimentos públicos em infraestrutura etc.
Gera, por assim dizer, custos sociais, que poderão ou não se compensar com os
benefícios que a mesma atividade econômica propicia para a sociedade, como a
geração de empregos diretos e indiretos, atendimento aos consumidores, criação
de novos negócios etc. A equação entre os custos e benefícios sociais nem
sempre é equilibrada. Alguns agentes econômicos podem usufruir mais
benefícios que os custos despendidos, outros o inverso, ensejando o que
tecnicamente se denomina “externalidade” ou “deseconomia externa”. Note-se
que por agentes econômicos se compreende aqui um conjunto bastante amplo de
pessoas, abrangente não apenas dos empresários — que organizam e dirigem
atividades econômicas de produção ou circulação de bens ou serviços —, mas de
todas as pessoas com uma função qualquer na economia. A noção envolve,
portanto, também consumidores, trabalhadores, o próprio estado etc.
Externalidade é conceituada como todo efeito produzido por um agente
econômico que repercute positiva ou negativamente sobre a atividade
econômica, renda ou bem-estar de outro agente econômico, sem a
correspondente compensação. Nenhum pedestre morador de uma metrópole, por
exemplo, é compensado por respirar o ar contaminado pelos poluentes
produzidos por veículos das empresas de transporte coletivo, mas também não é
obrigado a remunerar o aumento de espaço livre nas calçadas propiciado pelo
serviço dessas mesmas empresas. Tanto a poluição do ar como o aumento do
espaço livre nas calçadas são, para o pedestre, externalidades da prestação do
serviço de transporte coletivo, não ressarcidas de parte a parte.
Externalidade é todo efeito
(negativo ou positivo) que uma
pessoa
produz
sobre
a
atividade econômica, a renda
ou o bem-estar de outra, sem
compensar os prejuízos que
causa nem ser compensada
pelos benefícios que traz.
Há dois desdobramentos jurídicos da noção de externalidade: a forma de
se distinguirem as relevantes das irrelevantes e a eleição de mecanismos para a
compensação das externalidades relevantes.
Para Mercado Pacheco, o primeiro aspecto do aproveitamento desse
conceito econômico no campo do direito — a separação entre externalidades
relevantes e irrelevantes — estaria ligado à determinação da ilicitude ou licitude
da atividade (1994:136), mas não me parece assim. A relevância da
externalidade guarda relação com mudanças comportamentais e evolução de
valores, não necessariamente reproduzidas em normas jurídicas proibitivas de
atividades econômicas. Apenas recentemente, note-se, a agressão da indústria ao
meio ambiente transformou-se numa externalidade relevante (no Brasil, a
primeira lei específica sobre controle de poluição industrial data de 1967), mas o
direito ambiental não tem respondido a essa transformação com a interdição das
atividades poluidoras, e sim por mecanismos mais ou menos eficientes de
controle de produção de poluentes. De qualquer forma, será certamente
impossível pretender a compensação de todas as deseconomias externas, tendo
em vista inclusive que as compensações são elas próprias geradoras também de
novas externalidades: o estado, ao impor regras de direito ambiental à indústria,
gera, como agente econômico no conceito amplo aqui considerado, uma
externalidade para o empresário.
Não há como eliminar, na exploração de atividades econômicas, uma
determinada margem de produção de efeitos negativos ou positivos não
compensáveis. Nessa margem, correspondente às externalidades irrelevantes, os
efeitos gerados pela empresa não merecem sequer a atenção do direito.
Correspondem a fatos não jurídicos, isto é, ignorados pela ordem jurídica, tendo
em vista a irrelevância dos interesses atingidos, segundo ponderações de valor
variáveis historicamente.
O segundo desdobramento do conceito de externalidade na matéria
jurídica volta-se à definição dos mecanismos de compensação entre os agentes
econômicos expostos a tais efeitos (empresa e comunidade, empresários e
vizinhos, fornecedor e consumidor etc). Ou, como prefere a economia, este
desdobramento diz respeito ao processo de internalização das externalidades.
Quer dizer, uma vez conferida relevância a certos efeitos produzidos por um
empreendimento econômico — a indústria polui e gera empregos —, cabe
discutir como se proceder à sua compensação, por meio da imputação de
obrigações ao empresário pelos efeitos considerados negativos, e do
reconhecimento de direitos em relação aos reputados positivos. Por definição,
quando uma externalidade é compensada ela deixa de ser externalidade. É, por
assim dizer, internalizada. Internalizar as externalidades para equalizar a relação
custos-benefícios sociais é, em termos jurídicos, impor deveres e garantir direitos
para fazer justiça.
Quando o direito considera
relevante
uma
certa
externalidade e determina a
sua compensação, opera-se a
“internalização”. Isto é, a
externalidade, que se define
como efeito não compensável,
deixa de ser externalidade.
No enfrentamento da questão da internalização de externalidades, duas
diferentes concepções se apresentam, frutos de distintas formas de se
compreender o papel do estado e do direito na organização econômica: de um
lado, a da economia do bem-estar; de outro, a da análise econômica do direito.
O teórico central da economia do bem-estar é Arthur Pigou, que, de sua
cátedra de economia política em Cambridge, na década de 1920, formulou
crítica sistemática às concepções clássicas de suficiência das forças livres do
mercado para equilibrar os custos e benefícios sociais. Para ele, as
externalidades são derivadas de falhas no mercado, que cabe ao estado corrigir
(1928), e o mecanismo por excelência para tal correção seria o sistema
tributário. Em termos concretos, economistas de filiação pigouniana propõem
que se proceda ao cálculo dos custos sociais e sua comparação aos custos
individuais, em relação a cada atividade econômica. Esta operação, se resultasse
em diferença, revelaria a existência de uma externalidade, que o estado
internalizaria do seguinte modo: sendo a diferença em desfavor da sociedade
(isto é, se os custos sociais fossem maiores que os individuais), ele seria credor, e
o empresário deveria pagar um tributo; no caso inverso, o estado seria devedor e
o empresário teria direito a isenções ou incentivos.
A análise econômica do direito, por sua vez, nasce com a publicação de
um artigo de Ronald Coase, expoente da Escola de Chicago, em que discute a
visão de Pigou sobre os custos sociais (1960), e ambiciona criar um modelo
teórico que concilie a aplicação de normas jurídicas (inclusive de direito penal,
de família e sucessões etc.) a padrões de eficiência econômica (Posner, 1973;
Stephen, 1989; Coelho, 1995b). Com forte acento liberal, a análise econômica do
direito considera que as externalidades não refletem falhas do mercado, mas
situações conflitantes que devem ser solucionadas pelos próprios interessados.
Não existe um efeito de atividade econômica que seja, em si mesmo, positivo ou
negativo. O que é favorável a um agente econômico é desfavorável ao outro, e
cada um deles procurará nortear suas opções segundo padrões racionais de
eficiência, isto é, gastando o menos para lucrar o máximo possível. Para Coase, a
externalidade apenas gera ineficiência quando são elevados os custos de
transação entre os agentes econômicos interessados. Isto é, quando o
entendimento entre o agente que cria e o que suporta a externalidade tem um
custo não desprezível.
Nota-se claramente a diferença entre a função que se espera do estado e
do direito no contexto de cada uma das concepções aqui delineadas. Para a
economia do bem-estar, o estado é o agente do processo de internalização das
externalidades, cabendo-lhe definir e dimensionar os custos sociais e impor a
compensação aos agentes econômicos. Já, para a análise econômica do direito, a
contribuição do estado na internalização das externalidades deve se limitar à
redução dos custos da transação entre os particulares. As normas jurídicas, em
Pigou, em especial as de conteúdo tributário, são o instrumento para o estado
internalizar as externalidades; enquanto para a análise econômica do direito, elas
devem simplesmente reproduzir o mercado de competição perfeita (law as
market mimiker) (Pacheco, 1994:37).
Não é preciso muito para perceber que as duas orientações refletem as
nuanças da reorganização do sistema capitalista ao longo do século XX, e as
tentativas de definir limites da intervenção do estado na economia. O essencial,
contudo, que é a vinculação entre tal intervenção e a luta de classes, escapa tanto
à economia do bem-estar como à análise econômica do direito. Pigou e Coase
pretenderam construir modelos ideais de explicação e reorganização da
economia, que definissem de uma vez por todas o campo de ingerência (e de não
ingerência) do estado na atividade econômica. Mas o fato é que a dinâmica da
luta de classes obriga o aparato estatal a avanços e recuos, de modo que as
orientações sobre a internalização das externalidades divisadas pelas concepções
aqui em foco apenas refletem momentos diferentes da história do capitalismo. O
pretendido pela economia do bem-estar (utilização do sistema tributário para
internalizar externalidades) e o pretendido pela análise econômica do direito (a
eficiência econômica norteando as decisões judiciais) não se realizam, e não se
podem realizar, porque partem estas concepções de um pressuposto abstrato e
irreal: o de que o estado capitalista pode ter sua natureza, função e dimensão
imunes aos conflitos de interesses, aos embates entre as classes sociais e seus
segmentos.
Na economia, podem ser
mencionados dois diferentes
modelos de internalização da
externalidade: a “economia do
bem-estar social” e a “análise
econômica do direito”. A
primeira
considera
a
externalidade uma falha do
mercado, que cabe ao estado
corrigir
por
meio
principalmente
do
direito
tributário. Para a segunda, os
próprios interessados devem
negociar a internalização das
externalidades, sendo função
do direito apenas reduzir ao
máximo os custos de transação.
11. O CUSTO DO DIREITO PARA A ATIVIDADE EMPRESARIAL
Da crítica que a análise econômica do direito faz à economia do bemestar, no tocante ao mecanismo de internalização de externalidades, como
apresentado sinteticamente acima, resulta um dado de extrema importância, que
a tecnologia do direito não pode ignorar, isto é, a afirmação de que algumas
normas jurídicas repercutem diretamente no custo da atividade econômica. A
grande contribuição para o conhecimento jurídico, do debate entre essas
correntes econômicas, não se encontra nas propostas finais de cada concepção
— abstratas e irrealizáveis —, mas na consideração dos marcos institucionais no
universo da microeconomia. Em outros termos, a transposição da noção de
“internalização de externalidades” do campo do conhecimento econômico para o
contexto da reflexão jurídica tem o grande mérito de alertar para o fato de que
as obrigações jurídicas impostas ao empresário têm a natureza de elemento de
custo.
Para definir o preço dos produtos e serviços que fornece ao mercado, o
empresário realiza um cálculo cada vez mais complexo, que compreende o
preço dos seus insumos, a mão de obra, os tributos, a margem de lucro esperada
e também as contingências. Parte desses custos pode ser objeto de um cálculo
matemático, sujeito a variáveis controladas quantitativamente. Outra parte,
contudo, exige um cálculo menos preciso, mas ainda assim indispensável à
preservação da margem de lucros. Nessa última categoria encontram-se as
contingências, como greves prolongadas, quebra de safra, instabilizações
políticas, acidentes etc. Estes fatos podem interferir de forma acentuada nas
contas do empresário, reduzindo ou comprometendo sua lucratividade ou até
mesmo levando-o à falência. Proponho chamar-se essa segunda modalidade de
cálculo pelo nome “qualitativo”, em referência às inúmeras variáveis não
inteiramente controladas por quantificações.
Nesse sentido, nota-se que algumas normas jurídicas representam, para o
empresário, um importante elemento de custo. São desta natureza, por exemplo,
grande parte das normas de direito do trabalho (excetuam-se as disciplinadoras
de regimes especiais, como a do empregado doméstico), de direito tributário
(quando relacionadas a tributos do interesse da empresa), de direito
previdenciário (as referentes às contribuições do empregador e, também, às do
empregado), ambiental, urbanístico e outros. Por evidente, também o direito
comercial integra esse grupo de ramos jurídicos, cujas normas podem influir nos
custos da empresa. Para facilitar o desenvolvimento da matéria, vou me referir a
tais normas pela expressão “direito-custo”. Qualquer alteração no direito-custo
interfere, em diferentes medidas, com as contas dos empresários e, em
decorrência, com o preço dos produtos e serviços oferecidos no mercado. Isto é,
cada nova obrigação que se impõe ao empresário, de cunho fiscal, trabalhista,
previdenciário, ambiental, urbanístico, contratual etc., representa aumento de
custos para a atividade empresarial e aumento do preço dos produtos e serviços
para os seus adquirentes e consumidores.
Há normas jurídicas que
importam aumento do custo da
atividade produtiva. Quando a
lei cria um novo direito
trabalhista, por exemplo, os
empresários
alcançados
refazem seus cálculos para
redefinir o aumento dos custos
de seu negócio. Esse aumento
de custos implica, quase
sempre, aumento dos preços
dos produtos ou serviços que o
empresário oferece ao mercado
consumidor.
Conceitua-se “direito-custo”
como
as
normas
dessa
categoria.
As repercussões de mudanças no direito-custo podem ser objeto de
cálculo matemático ou de cálculo qualitativo. Se a lei majora a alíquota do
imposto de circulação de mercadorias e serviços — ICMS, o empresário
incorpora tal mudança em seus custos de forma precisa, calculando sem maiores
dúvidas as consequências da reforma legislativa. O princípio da anterioridade, no
direito tributário, representa, sob o aspecto aqui apresentado, uma certa garantia
de objetividade e permanência para o cálculo empresarial, na medida em que
afasta algumas oscilações no decorrer do exercício. Outras alterações no direitocusto podem exigir cálculos qualitativos, como, por exemplo, as referentes às
normas de responsabilidade civil. Quando o direito brasileiro adotou, com o
Código de Defesa do Consumidor, a teoria da responsabilidade objetiva dos
empresários por acidente de consumo, criou um novo elemento de custo a ser
considerado pelo cálculo empresarial (cf. Coelho, 1994:35/37).
Em qualquer hipótese, a interpretação das normas do direito--custo exige
a maior objetividade possível, com vistas a ensejar a relativa antecipação das
decisões judiciais ou administrativas derivadas dessas mesmas normas. O cálculo
empresarial é condição da preservação do lucro e este, por sua vez, é a alavanca
das atividades econômicas no capitalismo. De fato, se não vislumbrar atraente
perspectiva de lucros na exploração de uma empresa, o empreendedor privado
dará às suas energias e aos seus recursos outra destinação. Pode-se pretender a
superação do sistema capitalista, pelas grandes e inumeráveis injustiças que gera,
mas, enquanto ele reger a economia e as nossas vidas, não se poderá negar ao
lucro a importantíssima função de móvel fundamental da produção e circulação
de bens ou serviços (que, a final, são atividades indispensáveis à sobrevivência de
todos). A interpretação o quanto possível objetiva das normas de direito-custo
está ligada ao próprio funcionamento da estrutura econômica do sistema
capitalista. E, ressalte-se, a objetividade possível aqui reclamada alimenta tanto o
cálculo matemático como o qualitativo. Ambos pressupõem informações
confiáveis, embora com graus de precisão diversos.
A informação jurídica confiável para fins de cálculo é baseada não
apenas em precedentes jurisprudenciais e ensinamentos doutrinários, mas
principalmente nas variáveis próprias ao cálculo qualitativo, específico da
tecnologia jurídica. Em outros termos, o tecnólogo do direito, ao se debruçar
sobre normas do direito-custo, para fornecer subsídios ao cálculo empresarial,
deve estar atento às seguintes condições: a) inexistência de consenso absoluto, na
comunidade jurídica, acerca da exata interpretação das normas; b) papel da
ideologia e dos valores na interpretação e aplicação do direito; c) alterações
econômicas, políticas e sociais que possam interferir com o entendimento que a
comunidade jurídica tem das normas em vigor. Note-se, a redemocratização do
Brasil, nos fins da década de 1980, se fez acompanhar pela revalorização do
Poder Judiciário, e isso acarretou mudanças sensíveis na eficácia dos princípios
constitucionais do sistema tributário. Em termos formais, as normas
constitucionais de 1969 e de 1988 não são substancialmente distintas, mas as
decisões em favor do contribuinte pautadas em tais princípios foram ampliadas.
Só o tecnólogo do direito atento às nuanças da vida política nacional poderia estar
apto a antecipar ao empresário o novo cenário. Já o estudioso do direito que
prefere fazer pose de cientista formal de normas positivadas, simplesmente não
teria qualquer contribuição profissional de valor a dar ao empresário, para a
organização de sua empresa.
O
direito-custo
exige
interpretação o mais objetiva
possível para possibilitar o
cálculo empresarial, isto é, a
definição dos custos da
atividade econômica e dos
preços dos produtos ou
serviços correspondentes.
As variáveis próprias do cálculo qualitativo da tecnologia jurídica afastam
a perspectiva de uma absoluta objetividade do cálculo empresarial. Claro que se
pode falar numa objetividade relativa ou em graus diferentes de precisão, mas
pretender quantificar com exatidão estatística a probabilidade de êxito em
demandas judiciais é despropositado. A parte qualitativa do cálculo empresarial
convive necessariamente com maior ou menor grau de imprecisão, e mesmo a
parte desse cálculo feita por operações matemáticas (por exemplo, a base de
cálculo de um imposto) pode ser afetada pela natureza retórica do conhecimento
jurídico (como as divergências jurisprudenciais). A despeito dessa
complexidade, no entanto, as normas jurídicas que repercutem nos custos da
empresa devem ser editadas, estudadas, interpretadas e aplicadas com a maior
objetividade que se possa alcançar, de forma a contribuir o direito para o
aperfeiçoamento do cálculo empresarial e, em última análise, para o
desenvolvimento e organização da empresa e da economia.
12. DIREITO COMERCIAL COMO DIREITO-CUSTO
Conforme proposto acima, direito-custo são as normas jurídicas cuja
aplicação interfere com os custos da atividade empresarial, da produção e
circulação de bens ou serviços. As normas tributárias pertinentes aos impostos
devidos pelos empresários, as de direito urbanístico que vedam estabelecimentos
empresariais em determinadas zonas da cidade, as de direito previdenciário ou
do trabalho instituidoras de encargos são, entre outras, exemplos de direito-custo.
Estatuem obrigações que o empresário deve internalizar em sua empresa, isto é,
levar em conta no momento de calcular e fixar os preços de seus produtos ou
serviços.
No âmbito da disciplina privada da atividade econômica (isto é, do direito
comercial ou empresarial), há, como é evidente, normas com a natureza de
direito-custo. Nem todas as disposições normativas desse ramo jurídico, contudo,
podem ser enquadradas em tal categoria. Muitas e importantes regras de direito
societário, como as relacionadas com a constituição e funcionamento de
sociedades anônimas fechadas não interferem significativamente com os custos
de produtos e serviços para a empresa fornecedora. Outras, como as do registro
de empresa, têm implicação de dimensões tão diminutas em tais custos que nem
sempre se justifica tentar compreendê-las segundo esse enfoque. Portanto, o
direito comercial, não obstante a importância de suas normas de direito-custo,
não pode ser reduzido ao regramento do cálculo empresarial.
Enquanto direito-custo, o direito comercial ou empresarial se manifesta
principalmente na disciplina dos seguintes aspectos da exploração da atividade de
empresa:
a) Responsabilidade civil — este é o tema que melhor exemplifica a
aplicação das categorias aqui propostas de cálculo empresarial e direito-custo,
notadamente quanto à discussão da natureza subjetiva ou objetiva de cada
hipótese de responsabilização. De fato, muitos acidentes podem ocorrer no
ambiente empresarial (acidente de trânsito), ou mesmo em razão do consumo de
bens industrializados ou de serviços (fornecimento perigoso ou defeituoso), e a
imputação ao empresário da responsabilidade objetiva pela indenização dos
prejuízos decorrentes importa a criação de um claro elemento de custo.
Assim, o empresário responde subjetivamente pelos acidentes de trânsito,
quando o condutor do veículo da empresa é o responsável pelos danos. Isto é, a
demonstração da culpa ou dolo do empresário como causa, mesmo remota, do
acidente é condição para a sua responsabilização. Se o evento danoso decorre de
culpa exclusiva do outro motorista envolvido no evento, caso fortuito ou força
maior, o empresário não será responsável por indenizar os danos. A
responsabilidade do empresário, no caso de acidente de trânsito, portanto, é
subjetiva. No entanto, ele responde independentemente de culpa pelos danos
derivados de acidente de consumo provocados por defeitos em produto ou
serviço (CDC, arts. 12 e 14). Nessa hipótese, a sua responsabilidade é objetiva,
quer dizer, existe mesmo que ele tenha dotado sua empresa da mais avançada
tecnologia de produção e observe os mais rigorosos padrões de controle de
qualidade.
A diferença entre a responsabilidade subjetiva e a objetiva reside, em
última análise, na natureza ilícita ou lícita do ato praticado pelo agente, a quem
ela é imputada. O empresário que, agindo com culpa ou dolo, provoca acidente
de trabalho, incorre num ilícito e responde desde que demonstradas a ilicitude
(negligência, imprudência, imperícia ou intenção), a relação causal entre o ato e
o evento danoso, e a extensão do dano. Já o mesmo empresário, ao fornecer
produto defeituoso ao mercado, nem sempre incorre em conduta ilícita. Por mais
desenvolvidos que sejam os processos produtivos e os controles de qualidade
empregados na atividade empresarial, a falibilidade natural dos homens que
trabalham na empresa não afasta a possibilidade de fornecimento ao mercado de
alguns produtos ou serviços com defeito. Nesse caso, inexistente a culpa ou o
dolo, não podem ser considerados ilícitos os atos do empresário. Sua
responsabilidade pelo acidente de consumo é objetiva, porque não pressupõe a
ilicitude da conduta; existe ainda que inteiramente lícito o comportamento do
devedor da indenização (sobre as relações entre a natureza da responsabilidade e
a eficiência econômica, ver: Posner, 1973:175/182; López, 1987:60/66).
Ao editar regra de responsabilidade objetiva, o direito está criando um
novo elemento de custo para o empresário. Para cumprir a lei sem sacrifício da
lucratividade de seu empreendimento, ele deve procurar definir, por cálculos
apropriados, a probabilidade da ocorrência de acidentes de consumo, bem como
a provável dimensão de suas consequências econômicas. Esses dados o
empresário considera no cômputo dos preços de seus produtos ou serviços,
repassando a cada consumidor uma quota-parte, por assim dizer, das
repercussões previsíveis do fornecimento defeituoso. Em outros termos, o
empresário dilui, socializa entre os consumidores, realoca as perdas estimadas
por acidente de consumo, reunindo recursos para atender à regra da
responsabilidade civil independente de culpa (para uma discussão sobre os limites
do spreading of losses, ver Calabresi, 1961). A operação prévia ao repasse das
perdas por acidente de consumo para os próprios consumidores, mediante a
fixação do preço dos produtos ou serviços vendidos, é viabilizada pelo cálculo
empresarial.
A previsão, no Código de
Defesa do Consumidor, de
responsabilidade objetiva do
empresário por acidente de
consumo redundou aumento
imediato dos
custos
de
exploração
da
atividade
econômica, e mediato dos
preços dos produtos e serviços
vendidos no mercado de
consumo.
b) Responsabilidade contratual — existem dois sistemas de tutela jurídica
da vontade dos contratantes: de um lado, a composição das perdas e danos; de
outro, a execução específica. Pelo primeiro, o contratante que descumpre as
obrigações assumidas é condenado pelo juiz a indenizar a outra parte pelos
prejuízos advindos do inadimplemento; pelo segundo sistema, a prestação
jurisdicional garante ou o exato cumprimento da obrigação inadimplida, ou o
resultado concreto equivalente, ou o mais próximo ao pretendido pelas partes
quando da celebração do contrato.
Antes da entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, era
sustentável, com base no Código Comercial de 1850, que o comerciante, ao
descumprir a obrigação de entregar a mercadoria vendida ao consumidor, estava
sujeito somente à pena de indenizar este último, não havendo fundamento legal
para o Judiciário expedir, por exemplo, mandado de busca e apreensão da
mercadoria objeto de contrato. Isto é, o sistema de tutela da vontade contratada
apenas garantia, na hipótese de inadimplemento, a recomposição das perdas.
Após a entrada em vigor da legislação consumerista, não há dúvidas de que o
consumidor tem direito à execução específica das obrigações assumidas pelo
fornecedor (CDC, art. 84).
Contudo, observe-se que nem sempre o fiel cumprimento do contrato
equivale, sob o ponto de vista da economia de acento liberal, à solução mais
eficiente para o contratante; isso porque as condições de fato se alteram ao longo
do tempo, e o que era projetado como eficiente na data da celebração do
contrato, por uma das partes, pode se mostrar exatamente o contrário na época
do cumprimento das obrigações. Para o outro contratante será, em geral,
indiferente o cumprimento do contrato ou a integral composição das perdas, mas
para o inadimplente esta última solução pode ser significativamente mais
vantajosa e, portanto, mais eficiente que a primeira. Assim, quando presentes tais
pressupostos, a regra jurídica consagradora da execução específica pode
representar a solução menos eficiente para o caso de descumprimento de
obrigações contratuais (Posner, 1973:130/132).
As normas sobre responsabilidade contratual são direito-custo, na medida
em que as consequências do inadimplemento de obrigação assumida pelo
empresário — seja as relacionadas ao sistema da composição de perdas, seja ao
da execução específica — devem ser absorvidas pela empresa, sem
comprometimento, ou com o menor comprometimento possível, da margem de
lucro.
As
normas
de
responsabilidade contratual —
tanto as que impõem a
composição dos danos, como as
que asseguram a execução
específica
—
também
interferem com os custos da
atividade econômica.
c) Propriedade industrial — as normas de direito industrial relacionadas à
duração e garantias das patentes e dos registros de marca, é fácil compreendê-lo,
têm direta incidência sobre os custos da empresa. A amortização do investimento
realizado nas pesquisas e invenções, ou na criação e fixação das marcas, será
proporcional ao tempo em que a empresa dispuser da exclusividade de
exploração econômica do direito industrial correspondente. Quanto mais dilatado
o prazo de duração da patente ou do registro, menor poderá ser o percentual de
amortização do investimento agregado ao preço do produto ou serviço.
d) Concorrência desleal e abuso do poder econômico — a garantia
jurídica do funcionamento das estruturas do mercado livre abre a possibilidade a
novos empresários de ingressarem em segmentos desse mercado, para fins de
competirem com os que nele já atuam. Na medida em que o direito
concorrencial e o antitruste contemplem normas mais rigorosas contra práticas
desleais e abusivas, consolida-se a garantia de competitividade entre
empresários. Note-se, contudo, que há uma ambiguidade decorrente do rigor na
aplicação da legislação repressora do abuso do poder econômico. As sanções
impostas pelas autoridades fiscalizadoras das estruturas do livre mercado — e
aqui lembro não apenas as multas, mas igualmente o desfazimento de operações
societárias concentracionistas, a invalidação da cessão de marcas e patentes, e
outras medidas desconstitutivas de negócios jurídicos — formam um dos
elementos de custo da empresa. Desse modo, quanto maior o rigor do direito de
tutela das estruturas do mercado livre, melhores são as condições de
investimento, mas é maior o custo da atividade. Afinal, se, de um lado, a
repressão às práticas anticoncorrenciais amplia o acesso das empresas aos
diversos mercados relevantes, de outro, não podem os empresários deixar de se
precaverem, por meio da formação de reservas para absorção de eventuais
punições. São paradoxos próprios à legislação antitruste.
Se o direito assegura — de
modo efetivo e não apenas
formal — aos empresários
plenas condições para a livre
concorrência, coibindo as
práticas desleais e as abusivas,
o custo para a implantação de
atividades econômicas e o
prazo
para
retorno
de
investimentos
são
mais
atraentes do que seriam se tais
condições não existissem. Por
outro
lado,
assim
que
amortizado o investimento, o
empresário
procurará
constituir
reserva,
para
absorção de eventual sanção
por prática anticoncorrencial.
e) Direitos dos consumidores — costuma a legislação consumerista
estabelecer padrões de transparência nas relações pré-contratuais entre
fornecedores e consumidores, além de sancionar com a nulidade ou ineficácia as
cláusulas abusivas, bem como estipular a rescisão do negócio em razão de vícios
nos produtos ou serviços. Esses direitos reconhecidos aos consumidores se
refletem em obrigações a que se sujeitam os empresários, e, para as cumprir,
eles têm à sua frente três alternativas não excludentes. A primeira é a de investir
no aperfeiçoamento da empresa, na qualidade do fornecimento de produtos ou
serviços, para fins de reduzir a margem de defeitos ou de exposição dos
consumidores a perigos. A segunda alternativa do empresário, diante da
imposição de novas obrigações mediante os consumidores, é a de contratar
seguro, transferindo os riscos para as instituições securitárias. A última opção é a
constituição de uma reserva própria para enfrentar a diminuição de receita
decorrente do atendimento aos direitos dos consumidores, como a gerada por
rescisões de contratos ou reexecução de serviços malfeitos etc.
Qualquer dessas opções implica aumento dos custos e consequentemente
do preço final do fornecimento, de forma que se repassam, ainda que a médio
prazo, aos consumidores, os encargos derivados do aprimoramento das relações
de consumo. O consumidor paga mais caro os produtos e serviços que adquire,
mas recebe, em contrapartida, maiores garantias quanto à sua qualidade (cf.
Coelho, 1994:29/34).
Se
o
direito
assegura
proteção aos consumidores, os
empresários devem aparelhar
melhor suas empresas para
atenderem às obrigações legais
correspondentes. Isto significa
maiores
custos
para
a
atividade econômica. Significa,
também,
inevitavelmente,
majoração dos preços aos
consumidores.
No final, cabe ao consumidor
arcar com o preço da melhoria
da qualidade do mercado de
consumo.
f) Recuperação de crédito — também são direito-custo as normas
processuais sobre cobrança e arbitragem, bem como as instituidoras do regime
cambiário e falimentar.
A concessão de crédito é elemento vital ao bom funcionamento da
economia, porque possibilita ampliação e dinamização da produção e do volume
de negócios. É certo, por um lado, que o empresário conta com uma relativa
margem de inadimplência dos tomadores de crédito — e até procura se
preservar por meio do seguro de crédito ou diluindo as perdas com a receita
gerada pelos adimplentes —, mas também é certo que as normas disciplinadoras
da recuperação do valor disponibilizado influem na administração empresarial.
Curioso registrar que essa influência manifesta-se tanto do lado do credor, que,
ao tentar recuperar seus recursos, deve ajustar expectativas à realidade do
Judiciário, como do devedor, para quem as possibilidades de postergação do
cumprimento da obrigação pode significar novas alternativas negociais.
Essa lista não exaure todas as normas de direito-custo reservadas ao
estudo do direito comercial. Ela serve apenas de referência bastante genérica de
como o complexo jurídico-normativo se introduz no universo da microeconomia,
agindo de forma relevante no cotidiano da administração empresarial. Serve, por
outro lado, para alertar o estudante e o estudioso do direito empresarial acerca da
importância que a interpretação o mais objetiva possível de suas normas se
impõe, como condição para o desenvolvimento da própria economia.
Capítulo 2
OS PRINCÍPIOS DO DIREITO COMERCIAL
1. CLASSIFICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DO DIREITO COMERCIAL
Os princípios do direito comercial podem ser classificados segundo três
critérios: hierarquia, abrangência ou positivação.
Segundo o critério da hierarquia, os princípios podem ser constitucionais
ou legais.
No primeiro caso, são enunciados pela Constituição Federal. A liberdade
de iniciativa é exemplo de princípio constitucional, consoante o disposto no caput
do art. 170 da CF. No segundo caso, isto é, no dos princípios legais, a enunciação
se encontra em preceito de lei ordinária. O princípio da inoponibilidade das
exceções pessoais aos terceiros de boa-fé, na cobrança de obrigação cambiária,
vem previsto no art. 916 do Código Civil, no art. 17 da Lei Uniforme de Genebra
(letra de câmbio e nota promissória) e no art. 25 da Lei n. 7.357/85 (lei do
cheque).
De acordo com o critério da abrangência, os princípios podem ser gerais
ou especiais.
Na primeira categoria, encontram-se os princípios aplicáveis a todas as
relações jurídicas regidas pelo direito comercial, ao passo que a segunda
categoria reúne os destinados à disciplina de relações regidas por
desdobramentos da disciplina, como são o direito societário, cambiário,
falimentar etc. A liberdade de competição é um princípio geral do direito
comercial, porque informa relações jurídicas abrangidas por todas as subáreas.
Desse modo, na interpretação de preceitos do direito industrial (proteção dos
registros de marcas e patentes de invenção), societário (viabilidade de
determinadas operações), contratual (condições para a admissibilidade de
cláusulas de não concorrência), cambiário (legitimidade do suporte eletrônico) e
falimentar (resguardo das informações estratégicas da empresa recuperanda),
sempre deverá ser levada em conta a liberdade de competição, e seu corolário
imediato, que é a “premiação” (com o lucro) dos que tomam a decisão
empresarialmente acertada e a “penalização” (com a perda, e, se for o caso, a
falência) dos que tomam a decisão equivocada.
Já na categoria dos princípios especiais, acomodam-se os aplicáveis
apenas a determinados setores do direito comercial. É exemplo o princípio da
livre associação, que, embora sendo de hierarquia constitucional, incide apenas
nas relações jurídicas regidas, no campo do direito comercial, por um de seus
sub-ramos, o direito societário.
Os princípios do direito
comercial classificam-se em:
constitucionais
ou
legais
(conforme estejam abrigados na
Constituição Federal ou na lei
ordinária), gerais ou especiais
(se são aplicáveis a todo o ramo
jurídico ou somente a um de
seus
desdobramentos)
e
explícitos ou implícitos (caso
estejam expressamente previstos
na norma de direito positivo ou
decorram desta).
Por fim, os princípios podem ser, em função do critério da positivação,
explícitos (diretos ou positivados) ou implícitos (indiretos ou não positivados). São
explícitos os princípios enunciados expressamente pelo constituinte ou pelo
legislador, em texto de direito positivo; por sua vez, são implícitos aqueles cujos
enunciados o julgador ou o doutrinador concluem dos dispositivos vigentes. O
princípio da celeridade e economia processual da falência está consignado, de
modo expresso, no art. 75, parágrafo único, da Lei n. 11.101/2005. É, portanto,
um princípio explícito. Já o da função social da empresa, malgrado
constitucional, é da categoria dos implícitos, por não se encontrar diretamente
enunciado em nenhum dispositivo da Constituição Federal, mas decorrer, por
interpretação doutrinária, da função social da propriedade, este, sim, um
princípio explícito constante dos seus arts. 5º, XXIII, e 170, III.
2. PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE INICIATIVA
O modo como os homens se relacionam para a produção dos bens de que
necessitam para a vida (o modo de produção) variou ao longo da história. De
início, muito antes da invenção da escrita e do começo dos registros históricos,
provavelmente predominou um modo de produção em que tudo era dividido
entre os membros da tribo ou do clã. A divisão, também provavelmente, não
devia ser igualitária, tendo em conta a grande proximidade com o estado de
natureza (e consequente incipiência da organização social), ambiente em que
vige a “lei do mais forte”. Mas ninguém era dispensado de trabalhar (caçar,
pescar, cuidar da prole, fazer os utensílios domésticos etc.) e ninguém era
privado da parte que lhe cabia no que a tribo ou o clã produzia em comum (e que
deveria atender suas necessidades básicas).
Com a descoberta da agricultura e das técnicas de domesticação de alguns
animais, o homem, até então um ser nômade e extrativista, passou a se fixar com
mais constância em determinados lugares. Essa transformação dos hábitos da
espécie criou as condições para a apropriação, por alguns, não só dos meios e
instrumentos de produção (terra, arado etc.), como de tudo o que era produzido.
Surge a propriedade privada, que revoluciona o modo de produção. A
organização social já, então, apresenta certa complexidade, com a divisão das
pessoas em pelo menos duas classes antagônicas (possuidores dos meios de
produção vs. não possuidores) e o surgimento de um aparato destinado a resolver
os conflitos que surgem entre elas (o embrião do Estado).
Depois do aparecimento da propriedade privada dos meios de produção,
podem-se esquematizar três sucessivos modos de produção. Observadas as
nuances próprias da história ocorrida em cada região ocupada pela espécie
humana, de modo geral, seguiram-se o modo de produção escravagista, o
feudalismo e o capitalismo. No escravismo, a classe detentora dos meios de
produção é dona, também, da pessoa dos que trabalham, os escravos. Estes nada
têm, nem mesmo sua própria força de trabalho. No feudalismo, a relação de
produção é diferente, porque os servos (os que trabalham) já são vistos como
donos de sua força de trabalho. Eles lavram as terras do senhor feudal e
cumprem as tarefas de organização doméstica em troca de segurança, abrigo e
alimentação. No capitalismo, os trabalhadores continuam donos de sua força de
trabalho, mas não a trocam diretamente pelos bens ou comodidades básicas de
que necessitam para viver, e, sim, vendem-na aos detentores dos bens de
produção – agora, não mais só a terra e os instrumentos agrícolas, mas também
indústrias cada vez mais sofisticadas.
A substituição do modo de produção feudal pelo capitalista, na Europa
continental moderna, foi um processo longo, complexo e, principalmente,
conflituoso. A classe social que já se tornara dominante na produção (a
burguesia) tinha os interesses prejudicados pelos anacrônicos entraves impostos
pela ordem feudal. O ápice deste processo de confronto aberto foi a Revolução
Francesa, em 1789. A luta pela supressão da ordem feudal travou-se
especialmente em torno da noção de liberdade. Se no feudalismo, a posição de
cada um na relação de produção era definida ao nascer, na nova ordem,
propaga-se que todos serão livres para trabalhar no que quiserem,
independentemente da ascendência nobre, burguesa ou plebeia.
A liberdade de iniciativa é elemento essencial do capitalismo; quero dizer,
do próprio modo de produção e não somente de sua ideologia. Diferentemente da
igualdade e da fraternidade, valores com os quais compôs o mais conhecido
slogan revolucionário, a liberdade não é apenas uma palavra de ordem que
poderia, depois da vitória sobre a ordem feudal, ser olvidada. O capitalismo
depende, para funcionar com eficiência, de um ambiente econômico e
institucional em que a liberdade de iniciativa esteja assegurada. Nas épocas e nos
lugares em que o Estado capitalista restringiu seriamente esta liberdade
econômica, em prol de medidas protecionistas de determinadas atividades, o
resultado foi, em longo prazo, desastroso.
Necessária para a eficiência do modo de produção, a liberdade de
iniciativa é também a responsável pelas mazelas do capitalismo. Como todos são
livres para produzir o que bem entendem, é inevitável certa anarquia na
produção: produz-se o que não será consumido e deixa-se de produzir o que seria.
Por isto, de tempos em tempos, o excesso ou a carência de produção gera crises.
A macroeconomia e os instrumentos de administração monetária têm ajudado
na prevenção e superação destas crises; mas elas não podem ser completamente
evitadas.
A liberdade de iniciativa, por outro lado, está entre as causas de muitas
injustiças. Como a quantidade e qualidade da produção são definidas, em última
instância, pelas perspectivas de lucratividade de sua exploração econômica, bens
essenciais (comida, por exemplo) podem não ser produzidos na escala necessária
ao atendimento de todos; enquanto a produção de bens inteiramente fúteis, a seu
turno, consome não pouca “energia social”.
O princípio da liberdade de
iniciativa é inerente ao modo de
produção capitalista, em que os
bens ou serviços de que
necessitam ou querem as
pessoas são fornecidos quase
que
exclusivamente
por
empresas privadas.
O capitalismo é, assim, um sistema de crises periódicas e injustiças
permanentes. Mas enquanto for o modo de produção predominante, será
proveitoso para todos que ele possa funcionar da maneira mais eficiente possível.
Daí a importância de a ordem jurídica assegurar a liberdade de iniciativa. Só os
que acreditam numa solução definitiva advinda da substituição do capitalismo por
outro modo de produção, e que adotam, por estratégia, a radical piora nas
condições de vida dos trabalhadores, podem ver sentido no solapar dos
pressupostos de eficiência do sistema, no dificultar do seu melhor funcionamento.
O princípio da liberdade de iniciativa é constitucional, geral e explícito
(CF, art. 170, caput).
2.1. Os Dois Vetores do Princípio da Liberdade de Iniciativa
Há dois vetores no princípio da liberdade de iniciativa: de um lado,
antepõe um freio à intervenção do Estado na economia; de outro, coíbe
determinadas práticas empresariais. O primeiro vetor liga-se a questões
estudadas pelo direito público, como, por exemplo, as atinentes às atividades
econômicas constitucionalmente reservadas à União, as condições para o
estabelecimento de novas empresas, as posturas municipais definindo zonas em
que a localização destas é autorizada ou proibida etc.
O direito comercial ocupa-se do segundo vetor, vale dizer, da coibição das
práticas empresariais incompatíveis com a liberdade de iniciativa. Quando o
empresário conquista parcelas significativas de determinado segmento de
mercado, passa a exercer um poder. O poder de mercado não está
necessariamente associado ao poder econômico, embora seja bastante comum
tal ligação. O empresário de grande porte, com extenso poder econômico, não
terá poder de mercado se atuar em segmento da economia altamente
competitivo, marcado pela presença de outros empresários igualmente
poderosos, sob o ponto de vista econômico.
O empresário com poder de mercado tem ao seu alcance instrumentos
empresariais que, uma vez empregados, poderiam impedir ou dificultar o
ingresso de outros empresários no mesmo segmento de atividade econômica. Ele
poderia, por exemplo, diante da ameaça da chegada de novos competidores,
baixar seus preços a patamar tal que desmotivaria os potenciais interessados na
exploração daquele mercado. Passada a ameaça, retornaria os preços aos níveis
anteriores, recuperando os ganhos de que se privara temporariamente. Apenas o
empresário com poder de mercado poderia valer-se desta estratégia; ela seria
“suicida” em qualquer segmento marcado pela competitividade.
Valer-se destes instrumentos representaria uma prática empresarial
contrária à liberdade de iniciativa. Uma prática que configura infração da ordem
econômica, objeto de estudo do direito comercial.
O direito comercial se ocupa
de um dos vetores do princípio
constitucional da liberdade de
iniciativa, o que importa, diante
da faculdade assegurada a cada
pessoa
de
estabelecer-se
empresarialmente, a obrigação
de todos os demais empresários
de não impedirem o exercício
deste direito.
Dito de outro modo. Ao assegurar a liberdade de iniciativa, a Constituição
Federal atribui a todos os brasileiros e residentes no Brasil um direito, o de se
estabelecer como empresário. A todo direito atribuído a alguém, correspondem
obrigações impostas a outros sujeitos. No primeiro vetor, a liberdade de iniciativa
é garantida pela obrigação imposta ao Estado de não interferir na economia,
dificultando ou impedindo a formação e o desenvolvimento de empresas
privadas; no segundo vetor, esse princípio é garantido pela obrigação imposta aos
demais empresários, no sentido de concorrerem licitamente.
2.2. A Liberdade de Iniciativa na Ordem Constitucional Brasileira
Como acentuado, a liberdade de iniciativa, malgrado sua essencialidade
para a eficiência do sistema capitalista, causa anarquia na produção e injustiças
na sociedade. Para atenuar seus efeitos, o Estado contemporâneo intervém, em
alguma medida, na economia. A exata dimensão desta intervenção, contudo, não
é definível científica ou ideologicamente. O Estado capitalista deve ser maior ou
menor, conforme as necessidades ditadas pelas crises periódicas ou pelas
injustiças permanentes. Se necessário para prevenir ou resolver crises, ou para
impedir que injustiças ponham em risco a ordem, o Estado capitalista aumenta
sua presença na economia; uma vez, contudo, superadas estas demandas, não há
por que sustentar-se um aparato estatal avantajado e, então, ele é paulatinamente
reduzido.
Na complexa sociedade contemporânea, a liberdade de iniciativa não
pode ser absoluta. O direito do consumidor fornece um exemplo significativo. Na
visão da doutrina liberal clássica, a lei não precisaria assegurar aos consumidores
nenhuma proteção. Se determinado empresário não o respeitasse, vendendo a
preços abusivos ou enganando na pesagem, bastaria ao consumidor trocar de
fornecedor. Por outro lado, se, em determinado mercado, não houver nenhum
fornecedor que atenda satisfatoriamente os consumidores, isto despertará a
atenção de um empresário, que identificará uma excelente oportunidade de lucro
em estabelecer naquele segmento uma empresa diferenciada, correspondente às
expectativas dos seus clientes. Obviamente, esta solução para os conflitos no
mercado de consumo, indicada pela doutrina liberal clássica, é insuficiente para
assegurar os interesses legítimos dos consumidores. O Estado, então, precisa
intervir, não somente por meio de leis que definam os direitos destes, mas
também por organismos que os defendam.
A ordem constitucional brasileira, assim, consagra a liberdade de
iniciativa como fundamental, mas mitiga seus efeitos, determinando, a rigor, o
equilíbrio entre esta medida de eficiência exigida pelo modo de produção
capitalista e a promoção da justiça social (Frontini, 1975:35). A ordem
constitucional brasileira tem, desse modo, um perfil neoliberal (Cap. 7, item 1).
2.3. Desdobramentos do Princípio da Liberdade de Iniciativa
Quando funda a ordem econômica na liberdade de iniciativa e, mitigandoa, associa-a a valores aos quais confere igual importância como elemento
estruturador desta ordem (proteção do meio ambiente, do consumidor, função
social da propriedade etc.), a Constituição Federal reserva aos empresários a
tarefa de serem os principais agentes do atendimento às necessidades e
querências de todos nós. No capitalismo, tudo o que precisamos e queremos
(roupas, alimentos, transportes, lazer, educação, saúde etc.), em geral, só
podemos ter se uma ou algumas pessoas, entre nós, se dispuserem a investir na
organização de uma empresa destinada a produzir e fornecer o bem ou serviço
almejado. No capitalismo, os bens e serviços, essenciais ou não, são produzidos e
comercializados, em sua expressiva maioria, por empresas exploradas por
particulares.
Desdobra-se, por isto, o princípio da liberdade de iniciativa no
reconhecimento de determinadas condições para o funcionamento mais eficiente
do modo de produção.
A primeira delas é a afirmação da imprescindibilidade, no sistema
capitalista, da empresa privada para o atendimento das necessidades e
querências de cada um e de todos. Quando um empresário decide assumir o
risco de certa atividade empresarial, esta sua iniciativa tem em mira, inicial e
principalmente, a obtenção de lucro. Na perspectiva do empresário, em geral, há
um simples cálculo egoísta, a partir do qual concluiu que o fornecimento ao
mercado de determinado bem ou serviço será lucrativo. Ora, será lucrativo
exatamente porque corresponderá à necessidade ou querência de parcelas dos
consumidores, em volume tal que garanta este resultado. Se não houver pessoas
interessadas em adquirir os bens ou serviços oferecidos pelo empresário, este
simplesmente não terá os lucros projetados. Aos interesses individuais dos
empresários na obtenção de lucro corresponde, assim, inexoravelmente, o
interesse metaindividual de todos os integrantes da sociedade em terem acesso
aos bens e serviços de que necessitam ou desejam. Sem o atendimento aos
interesses metaindividuais destes, não se realizam – não há como se realizarem –
os interesses individuais dos empresários.
A segunda condição em que se desdobra o princípio da livre iniciativa é a
do lucro como o principal fator de motivação da iniciativa privada; o lucro obtido
com a exploração regular e lícita da empresa. Como afirmado, qualquer
empresa nasce sempre do interesse individual e egoísta do empresário, o qual
busca auferir ganhos com a exploração de uma atividade econômica que vá ao
encontro das necessidades e querências de parcelas dos consumidores. O lucro,
assim, no sistema capitalista, não pode ser jurídica ou moralmente condenado.
Pelo contrário, deve ser reconhecido como o elemento propulsor do eficiente
funcionamento do modo de produção. Sem a perspectiva de lucro, ninguém se
dispõe a empreender (ou mesmo investir); mas se ninguém se dispuser a
empreender a organização da produção ou circulação de determinado bem ou
serviço, restarão desatendidas as necessidades e querências de todos associadas a
este bem ou serviço.
A terceira condição resultante do princípio da liberdade de iniciativa diz
respeito à importância, para toda a sociedade, da proteção jurídica liberada ao
investimento privado, feito com vistas ao fornecimento de produtos ou serviços,
na criação, consolidação ou ampliação de mercados consumidores e
desenvolvimento econômico. Quando a Constituição Federal prescreve, como
modo de produção, o fundado na liberdade de iniciativa, ela não está
disciplinando a realidade econômica unicamente focada nos interesses dos
empresários. Pelo contrário, a norma constitucional que define a liberdade de
iniciativa como um dos elementos fundamentais da ordem econômica (ao lado
da valorização do trabalho, proteção do meio ambiente, do desenvolvimento
regional etc.) tutela interesse de toda a sociedade. A proteção jurídica ao
investimento privado, se, obviamente, atende aos interesses individuais do
empresário investidor, atende também aos interesses de toda a sociedade. Não há
como dissociar: a lei, ao proteger o investimento, está necessariamente
protegendo interesses que não se reduzem aos do investidor.
Quando conflitarem, de um lado, os interesses individuais dos empresários
voltados à obtenção de lucro e, de outro, os metaindividuais que se espalham pela
sociedade, não há a menor dúvida de que estes últimos devem sempre
prevalecer. É assim que determina a Constituição Federal, ao mitigar a liberdade
de iniciativa, associando-a com outros valores na estruturação da ordem
econômica. Quer dizer, talvez um empresário tivesse seus lucros
acentuadamente elevados se ignorasse qualquer cautela com a questão
ambiental. Nesse caso, há nítido conflito entre o interesse individual dele
(maiores lucros) e o partilhado por toda a sociedade (preservação do meio
ambiente). Claro, o interesse individual e egoísta do empresário não pode ser, e
não será, minimamente protegido pela ordem jurídica, enquanto não se
compatibilizar com o de todos relacionado à sustentabilidade ambiental.
Quatro desdobramentos podem
ser extraídos do princípio da
liberdade de iniciativa: (a)
imprescindibilidade,
no
capitalismo, da empresa privada
para
o
atendimento
das
necessidades de cada um e de
todos; (b) reconhecimento do
lucro como principal fator de
motivação da iniciativa privada;
(c) importância, para toda a
sociedade, da proteção jurídica
do investimento; (d) importância
da empresa na geração de
postos de trabalho e tributos,
bem como no fomento da
riqueza local, regional, nacional
e global.
Por fim, o quarto desdobramento da liberdade de iniciativa reconhece na
empresa privada um importante polo gerador de postos de trabalho e tributos,
bem como fomentador de riqueza local, regional, nacional e global. Em torno da
empresa, de seu desenvolvimento e fortalecimento, gravitam interesses
metaindividuais, como são os dos trabalhadores, consumidores, do fisco, das
empresas satélites etc. As pessoas de cada um destes “grupos” titulam, claro,
interesses conflitantes com os do empresário: o trabalhador reclama aumentos
salariais, o consumidor exige qualidade pelo menor preço, o fisco adota a
interpretação da lei tributária que mais o favorece, e assim por diante. Não tem
nenhum cabimento afirmar, como pretendia a ideologia fascista, que os
interesses de todos esses “grupos” se harmonizariam na empresa, sob a liderança
do empresário. Mas, mesmo não negando a existência desses conflitos de
interesse, no seio da atividade empresarial, deve-se reconhecer que, na
complexa economia dos nossos tempos, pelo sucesso da empresa criada por
iniciativa do empresário passam a se interessar, direta ou indiretamente, muitas
outras pessoas. Se a empresa não prospera, seus empregados têm menor
margem para pressionar por melhorias salariais ou nas condições de trabalho; o
atendimento aos consumidores, mesmo cumprindo as obrigações legais do CDC,
é mais precário; menos atividades econômicas geram menos impostos, e assim
por diante.
3. PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE CONCORRÊNCIA
O princípio da liberdade de concorrência está, de tal modo, ligado ao da
liberdade de iniciativa, que nem sempre se distinguem. São, por vezes, aspectos
diferentes da mesma regra básica de funcionamento eficiente do capitalismo.
A liberdade de concorrência é que garante o fornecimento, ao mercado,
de produtos ou serviços com qualidade crescente e preços decrescentes. Ao
competirem pela preferência do consumidor, os empresários se empenham em
aparelhar suas empresas visando à melhoria da qualidade dos produtos ou
serviços, bem como em ajustá-las com o objetivo de economizar nos custos e
possibilitar redução dos preços; tudo com vistas a potencializar o volume de
vendas e obter mais lucros. Uma vez mais, contudo, é necessário pontuar que, ao
dedicar-se ao aprimoramento das condições de competitividade de sua empresa,
o empresário persegue um interesse individual inteiramente compatível com a
realização dos interesses metaindividuais da sociedade. Esta intrínseca ligação de
dependência entre tais interesses encontra-se nos fundamentos da definição legal,
que elege a “coletividade” como titular dos bens jurídicos protegidos pela
coibição “às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames
constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da
propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder
econômico” (Lei n. 12.529/2011, art. 1º e seu parágrafo único).
No direito comercial, o princípio constitucional da liberdade de
concorrência implica, em primeiro lugar, a coibição de determinadas práticas
empresariais, incompatíveis com sua afirmação. Tais práticas são as de
concorrência ilícita e classificam-se em duas categorias. De um lado, há as que
implicam risco ao regular funcionamento da economia de livre mercado, e são
coibidas como infração da ordem econômica; de outro, as que não implicam tal
risco, restringindo-se os efeitos da prática anticoncorrencial à lesão dos interesses
individuais dos empresários diretamente envolvidos, e configuram concorrência
desleal.
Mas há uma segunda esfera de atuação do direito comercial, relevante à
observância do princípio de liberdade de concorrência, que não diz respeito
especificamente à coibição de práticas empresariais. Ao limitar acentuadamente
as possibilidades de revisão dos contratos entre empresários, o direito comercial
também está prestigiando este princípio constitucional.
Para se compreender esta segunda esfera de atuação em prol do princípio
da liberdade de concorrência, deve-se partir da compreensão dos principais
efeitos da regra da competição. Basicamente, os consumidores terão acesso a
produtos e serviços de maior qualidade e menores preços, se esta regra da
competição for observada. Que dita esta regra? Ela estabelece que serão
“premiados” os empresários que tiverem adotado as decisões empresariais
acertadas e “penalizados” os que adotaram as equivocadas. Raro é o empresário
que ganha sempre. Em razão dos riscos próprios da atividade empresarial, o mais
comum é que ele tanto ganhe, como perca, em seus negócios, obtendo o lucro da
mera circunstância de que ganha mais do que perde. Conforme destaca, com
propriedade, Paula Andrea Forgioni, o direito comercial não pode poupar os
empresários de seus erros (2003:16).
Os ganhos resultam de decisões empresarialmente acertadas; e as perdas,
das decisões erradas. Há, entre as “certas”, não apenas decisões racionalmente
fundadas em estudos científicos ou tecnológicos, em profundas e percucientes
análises da economia e dos hábitos dos consumidores, no sopesar criterioso de
alternativas, mas também as simplesmente intuídas pelo empresário, ou
resultantes de mera aposta dele num determinado cenário. As decisões
empresarialmente “erradas”, por outro lado, não são necessariamente
provenientes de precipitações, desleixos ou falta de competência, embora estes
ingredientes se encontrem com preocupante frequência. Ainda em razão do risco
inerente a qualquer empresa, mesmo a decisão criteriosamente adotada pode se
revelar um erro. Na verdade, o acerto ou equívoco das decisões empresariais é
sempre verificado a posteriori. Boa parte delas depende da “resposta” dos
consumidores: se os produtos fornecidos pelo empresário ao mercado são
comprados, sua decisão em fornecê-los foi acertada, mas se “encalham na
prateleira”, ela se revelou equivocada. Outra parte do acerto das decisões
depende de fatores macroeconômicos (como a variação cambial, inflação, o
desaquecimento da economia etc.) ou de outros absolutamente fora do controle
do empresário (aumento do preço dos insumos, quebra de safras, greves, eventos
naturais que tumultuam os sistemas de transportes etc.): se tais fatores favorecem
os negócios, a decisão foi acertada; se os desfavorecem, equivocada.
Pela regra básica da competição, as decisões acertadas devem ser
premiadas e as equivocadas, penalizadas. O “prêmio” é, evidentemente, o lucro;
a “penalização” advém de perdas ocasionais ou, conforme o caso, da falência.
A regra básica da competição
empresarial, que decorre do
princípio constitucional da livre
concorrência,
implica
a
premiação
das
decisões
empresarialmente “acertadas”
(com o lucro) e a penalização
das “equivocadas” (com o
prejuízo, ou, se o caso, a
falência).
Esta regra básica não pode ser
neutralizada por nenhuma norma
jurídica, para que todos possam
se beneficiar dos resultados
esperados
da
livre
concorrência:
melhoria
da
qualidade e redução dos preços
de produtos e serviços.
Pois bem. O direito comercial não pode, por meio de normas jurídicas,
inverter a equação desta regra básica. Não pode transferir o prêmio, ou parte
dele, do empresário que acertou para aquele que errou. A distorção na regra
básica da competição, ao impedir que os acertos sejam inteiramente premiados,
e os erros devidamente penalizados, desestimularia novos investimentos e
alimentaria o risco moral. Acabaria, enfim, por neutralizar os benefícios que a
ordem constitucional espera extrair, para toda a sociedade, do princípio da
liberdade de concorrência.
Por esta razão, em decorrência deste princípio constitucional, a lesão por
inexperiência não pode ser motivo para a revisão dos contratos empresariais,
nem para sua invalidação. Mostra-se mais justo, no campo das relações regidas
pelo direito civil, que a pessoa, ao assumir certa obrigação lesiva aos seus
próprios interesses, movida por inexperiência no trato dos negócios, seja
preservada dos efeitos de sua decisão equivocada. Assim, o jovem que aluga,
pela primeira vez na vida, um apartamento, se contrata mal, em razão de sua
pouca experiência, deve ter o direito de conseguir, em juízo, a revisão ou
invalidação do contrato (CC, arts. 157 e 171, II). Mas, quando se trata de um
empresário, a figura da lesão por inexperiência significa uma verdadeira
distorção da regra básica da competição empresarial. Sendo profissional, o
empresário não pode alegar pouca experiência para tentar se poupar de seus
erros à frente da empresa. Ademais, para que sua decisão equivocada não seja
penalizada, será necessário reduzir ou suprimir o prêmio do outro empresário,
com quem contratara. Inverter--se-ia irracionalmente a regra básica da
competição, neste caso, com a penalização do empresário que acertou e a
premiação, à custa deste, daquele que errou.
O princípio da liberdade de concorrência é constitucional, geral e explícito
(CF, art. 170, IV).
4. PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA
Fábio Konder Comparato (1986) mostra como do princípio constitucional
da função social da propriedade, consagrado nos arts. 5º, XXIII, e 170, III, da CF,
extrai-se o da função social da empresa. A propriedade dos bens de produção
deve cumprir a função social, no sentido de não se concentrarem, apenas na
titularidade dos empresários, todos os interesses juridicamente protegidos que os
circundam. A Constituição Federal reconhece, por meio deste princípio implícito,
que são igualmente dignos de proteção jurídica os interesses metaindividuais, de
toda a sociedade ou de parcela desta, potencialmente afetados pelo modo com
que se empregam os bens de produção.
Por bens de produção, como conceito jurídico, devem-se compreender
todos os reunidos pelo empresário na organização do estabelecimento
empresarial. Embora sobre estes bens nem sempre o empresário exerça
especificamente o direito de propriedade (entre eles, há os alugados, os alienados
fiduciariamente, os objeto de leasing etc.), é fato que os controla e decide se
serão, e como serão, empregados na exploração de atividade econômica. Esta
decisão deve se orientar pelo atendimento da função social da empresa.
A empresa cumpre a função
social ao gerar empregos,
tributos e riqueza, ao contribuir
para
o
desenvolvimento
econômico, social e cultural da
comunidade em que atua, de sua
região ou do país, ao adotar
práticas
empresariais
sustentáveis visando à proteção
do meio ambiente e ao respeitar
os direitos dos consumidores,
desde
que
com
estrita
obediência às leis a que se
encontra sujeita.
Cumpre sua função social a empresa que gera empregos, tributos e
riqueza, contribui para o desenvolvimento econômico, social e cultural da
comunidade em que atua, de sua região ou do país, adota práticas empresariais
sustentáveis visando à proteção do meio ambiente e ao respeito aos direitos dos
consumidores. Se sua atuação é consentânea com estes objetivos, e se
desenvolve com estrita obediência às leis a que se encontra sujeita, a empresa
está cumprindo sua função social; isto é, os bens de produção reunidos pelo
empresário na organização do estabelecimento empresarial estão tendo o
emprego determinado pela Constituição Federal.
O princípio da função social da empresa é constitucional, geral e implícito.
5. PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO
A Constituição Federal, ao assegurar a plena liberdade de associação (CF,
art. 5º, XVII e XX), não tinha em mente as sociedades empresárias, pelo menos
não como principal objeto de preocupação. Trata-se, primariamente, de
disposição de ordem política, destinada a garantir, no estado democrático de
direito, que todos possam se unir àqueles com quem nutrem qualquer afinidade
de interesses, para somarem forças na realização destes. Obviamente, aplica-se
o princípio às sociedades empresárias, que são pessoas jurídicas constituídas para
disponibilizar aos seus integrantes melhores meios para eles atingirem o objetivo
comum de lucrar com a exploração de uma atividade econômica.
A liberdade de associação, para ser plena, deve não somente assegurar
que pessoas interessadas em se unirem em torno de objetivos comuns lícitos
possam fazê-la, sem encontrar óbices na ordem jurídica (inciso XVII do art. 5º
da CF), mas também vedar que alguém seja compelido a associar-se contra a
vontade, ou que não consiga se dissociar, quando quer (inciso XX). Esta última
faceta da liberdade de associação, no entanto, assume contornos específicos,
quando diz respeito às sociedades empresárias.
Isto porque a participação numa sociedade empresária não estabelece
entre o integrante da pessoa jurídica, e esta, um vínculo de natureza
exclusivamente pessoal (como é o caso, por exemplo, da participação num
partido político ou num clube). O sócio necessariamente investe recursos na
sociedade (dinheiro, bens ou créditos), de modo que sua permanência ou
desligamento projeta efeitos que atingem os direitos e patrimônios de outros
sujeitos, a começar pela própria pessoa jurídica resultante da associação. Em
outros termos, o direito de se desligar de uma sociedade empresária, por
geralmente afetar os interesses dos demais sócios ou mesmo importar
desinvestimento, com dragagem dos recursos alocados na empresa, só pode ser
exercido sob determinadas condições.
Estas condições são estabelecidas pelo direito societário. Para referir-me
a estas condições, de um modo geral, parto da classificação das sociedades
empresárias, segundo os regimes de constituição e desfazimento dos vínculos
sociais, em contratuais e institucionais.
A sociedade limitada, por exemplo, é contratual. Nela, se o prazo de
duração da sociedade é indeterminado, o sócio pode se desligar a qualquer
tempo, exigindo o reembolso do capital investido; mas se o sócio contratou com
os demais um prazo determinado de duração, ele fica obrigado a permanecer
investindo seus recursos (na medida da quota subscrita) na empresa, pelo menos
durante o tempo ajustado. A impossibilidade de o sócio reclamar o reembolso do
capital durante o prazo determinado de duração da sociedade limitada não
representa nenhum agravo ao direito constitucional de livre associação, porque,
ao assinar o contrato social no qual constava cláusula determinando o prazo de
duração, ele manifestou sua concordância em permanecer associado no
transcurso deste; isto é, o sócio, neste caso, renunciou ao exercício, durante certo
tempo, do direito constitucional de livremente dissociar-se.
Outras consequências advêm da natureza contratual da sociedade
limitada, seja para facilitar, seja para dificultar a dissociação. Quando um sócio
falece, as quotas são, na partilha, transferidas à titularidade de um sucessor
(herdeiro ou legatário). Mas, por se tratar de sociedade originada em contrato, e
ninguém é obrigado a contratar, o sucessor pode, em vez de ingressar na
sociedade, exigir o reembolso do capital nela investido pelo sócio falecido. Por
outro lado, se o contrato social contempla cláusula submetendo a cessão de
quotas a terceiros à prévia anuência dos demais integrantes da sociedade, o
desligamento por esta via fica a depender da vontade de todos os sócios. Não há,
novamente, desrespeito à Constituição, porque, tratando-se de direito disponível,
ficou seu exercício dependente do implemento desta condição (a anuência dos
demais sócios) por vontade do próprio titular do direito constitucional.
A liberdade de associação é
irrestrita no momento da
constituição
da
sociedade
empresária ou do ingresso na
constituída,
não
podendo
ninguém ser obrigado a se tornar
sócio de sociedade contratual
contra a vontade. Uma vez,
porém,
ingressando
na
sociedade empresária, o sócio
não poderá dela se desligar
senão nas hipóteses previstas
em lei.
Já a sociedade anônima é institucional, e, como visto, segue regras
diversas de constituição e dissolução dos vínculos sociais. Nela, por exemplo, ao
contrário da sociedade limitada, o sucessor é obrigado a ingressar na sociedade,
não podendo exigir o reembolso do capital investido pelo falecido. Também em
virtude do caráter institucional deste tipo de sociedade empresária, mesmo no
caso de ser indeterminado o prazo de duração, o acionista não pode exigir o
reembolso do seu capital, impondo à companhia o desinvestimento, por simples
vontade unilateral de não mais permanecer associado.
Entre as condições estabelecidas pelo direito societário para o exercício da
liberdade constitucional de associação, estão as ligadas à dissidência. Em
decorrência do princípio majoritário, os sócios minoritários que discordam de
decisões adotadas pela maioria, quando alteram significativamente a estrutura ou
o objetivo da sociedade empresária, podem reclamar o reembolso do capital e
dela se dissociarem. O direito de dissidência (ou de recesso) neutraliza os efeitos
da anterior renúncia ao exercício do direito constitucional de dissociação, porque
ela (a renúncia) foi declarada, pelo sócio, quando do ingresso numa sociedade
com determinada configuração; alterada esta, a renúncia obviamente deve ter a
eficácia suspensa, porque não se sabe se o mesmo sócio também concordaria
em abrir mão temporariamente de seu direito constitucional de dissociação se a
estrutura ou o objeto da sociedade fosse outro.
Deste modo, a liberdade de associação é irrestrita no momento da
constituição da sociedade empresária ou no do ingresso na constituída, não
podendo ninguém ser obrigado a se tornar sócio de sociedade contratual contra a
vontade. Uma vez, contudo, ingressando na sociedade empresária, o sócio não
poderá dela se desligar senão nas hipóteses previstas em lei, entre as quais a que
autoriza o reembolso em caso de dissidência ou recesso.
O princípio da liberdade de associação é constitucional, especial e
explícito (CF, art. 5º, XVII e XX).
6. PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA
Quando se assenta, juridicamente, o princípio da preservação da empresa,
o que se tem em mira é a proteção da atividade econômica, como objeto de
direito cuja existência e desenvolvimento interessam não somente ao
empresário, ou aos sócios da sociedade empresária, mas a um conjunto bem
maior de sujeitos. Na locução identificadora do princípio, “empresa” é conceito
de sentido técnico bem específico e preciso. Não se confunde nem com o seu
titular (“empresário”) nem com o lugar em que é explorada (“estabelecimento
empresarial”). O que se busca preservar, na aplicação do princípio da
preservação da empresa, é, portanto, a atividade, o empreendimento.
Diversas soluções para os conflitos de interesses decorrem do valor que
embasa este princípio. A dissolução parcial da sociedade empresária, por
exemplo, é uma construção jurisprudencial de meados do século passado,
posteriormente prestigiada pela doutrina, em que se procura conciliar, de um
lado, a solução do conflito societário, e, de outro, a permanência da atividade
empresarial, evitando-se, com isto, que problemas entre os sócios prejudiquem
os interesses de trabalhadores, consumidores, do fisco, da comunidade etc. A
desconsideração da personalidade jurídica é outro instituto que decorre do
mesmo princípio, ao estabelecer os critérios a partir dos quais a fraude na
manipulação da autonomia patrimonial pode ser coibida, sem o
comprometimento da atividade explorada pela pessoa jurídica instrumentalizada
no ilícito. No campo do direito falimentar, o próprio instituto da recuperação
judicial se fundamenta no princípio de que pode interessar à coletividade a
preservação de determinada atividade empresarial, mesmo quando o empresário
não se mostra suficientemente capaz de dirigi-la.
O princípio da preservação da
empresa reconhece que, em
torno do funcionamento regular
e desenvolvimento de cada
empresa, não gravitam apenas
os interesses individuais dos
empresários e empreendedores,
mas também os metaindividuais
de trabalhadores, consumidores
e outras pessoas; são estes
últimos interesses que devem
ser considerados e protegidos,
na aplicação de qualquer norma
de direito comercial.
Não há formulação, na lei, do princípio da preservação da empresa. Ele é
concluído, pela jurisprudência e doutrina, das normas relacionadas à resolução
da sociedade em relação a um sócio (CC, arts. 1.028 e seguintes),
desconsideração da personalidade jurídica (CC, art. 50; CDC, art. 28) e
recuperação judicial (Lei n. 11.101/2005). Aplicando-se a mais de um capítulo
do direito comercial (pelo menos, ao societário e falimentar), não é especial a
nenhum deles.
O princípio da preservação da empresa é legal, geral e implícito.
7. PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PATRIMONIAL DA SOCIEDADE
EMPRESÁRIA
A autonomia patrimonial das sociedades empresárias é uma técnica de
segregação de riscos. Outras técnicas jurídicas igualmente cumprem esta
finalidade, como, por exemplo, o patrimônio especial, a conta de participação e,
em alguns casos, o condomínio. Em razão da autonomia patrimonial, os bens,
direitos e as obrigações da sociedade, enquanto pessoa jurídica, não se
confundem com os dos seus sócios. A principal implicação deste princípio é a
impossibilidade de se cobrar, em regra, dos sócios, uma obrigação que não é
deles, mas de outra pessoa, a sociedade. Outras implicações projetam-se na
definição das partes do negócio jurídico e na questão da legitimidade processual,
mas com relevância menor do que a da responsabilidade patrimonial.
Se a autonomia da sociedade empresária está sendo relativizada (no
direito brasileiro desde meados do século passado), no sentido de a lei e a
jurisprudência passarem a considerar os sócios responsáveis por determinados
passivos da pessoa jurídica, esta tendência não alcança (e não deve alcançar) as
relações regidas pelo direito comercial. Quando a obrigação envolve
exclusivamente empresários, como seus credores e devedores principais, o
princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas deve ser estritamente
respeitado.
Noto que os credores de qualquer pessoa jurídica podem ser extremados,
de um lado, entre os que dispõem de meios para acrescer ao preço de seu
produto ou serviço (ou aos juros, se for o caso) uma taxa de risco associado às
possíveis perdas que o princípio da autonomia patrimonial pode acarretar; e, de
outro, os que não dispõem destes meios. Os primeiros são chamados de credores
“negociais”, e os segundos de “não negociais”.
São negociais os empresários fornecedores de insumos mediante
pagamento a prazo e os bancos concedentes de financiamento. Estes credores
podem, mediante cálculo estatístico, antecipar a probabilidade de virem a não
receber os créditos abertos às sociedades empresárias, em razão da autonomia
patrimonial destas, e acrescerem aos seus preços ou juros uma taxa de risco
associado a tal eventualidade. Quando deixarem de receber o crédito aberto a
certa sociedade empresária, exatamente por não terem podido executar bens do
patrimônio dos sócios, isto não lhes trará prejuízo porque em todos os créditos
abertos a pessoas jurídicas adimplidos por estas, estes credores (negociais)
receberam um “plus”, correspondente à taxa de risco e que compensa o
inadimplemento daquela obrigação. São não negociais os credores que não
dispõem de igual recurso para blindarem seus interesses, como, por exemplo, o
empregado e o consumidor.
Como se vê, os aqui chamados credores negociais são necessariamente
empresários, estando, em decorrência, a relação jurídica com a sociedade
empresária devedora sujeita à disciplina do direito comercial. Já os direitos dos
credores não negociais perante as sociedades empresárias são regidos por outros
ramos jurídicos, como o direito do trabalho e do consumidor. Se, nestes últimos, a
autonomia patrimonial tem sido relativizada (embora não propriamente
eliminada), em vista de princípios e valores próprios a cada ramo jurídico, no
direito comercial, ela há de ser amplamente prestigiada.
Nas relações empresariais, o princípio da autonomia patrimonial deve ser
estritamente observado porque esta técnica de segregação de riscos está ao
alcance das duas partes da relação obrigacional. Se uma sociedade empresária,
quando devedora de certa obrigação, está sob o abrigo do princípio da autonomia
patrimonial, ela não pode, na posição de credora, pretender obstar à outra
sociedade empresária, que lhe deve, o acesso a igual benefício.
Pelo princípio da autonomia
patrimonial, considera-se a
sociedade empresária, por ser
pessoa jurídica, um sujeito de
direito diferente dos sócios que
a compõem. Entre outras
consequências, este princípio
implica que a responsabilização
pelas obrigações sociais cabe à
sociedade, e não aos sócios.
Apenas depois de executados os
bens da sociedade, e mesmo
assim observando-se eventuais
limitações impostas por lei, os
credores podem pretender a
responsabilização dos sócios.
Como técnica de segregação de riscos, a autonomia patrimonial das
sociedades empresárias é um dos mais importantes instrumentos de atração de
investimentos na economia globalizada. Trata-se de expediente que, em última
instância, aproveita a toda a coletividade, como proteção do investimento. A
segregação dos riscos motiva e atrai novos investimentos por poupar o investidor
de perdas elevadas ou totais, em caso de insucesso da empresa. Se determinada
ordem jurídica não contemplar a autonomia patrimonial (ou outras técnicas
igualmente disseminadas de segregação de risco), é provável que muitos
investidores receiem investir na economia correspondente. Afinal, se o fato de a
empresa não prosperar e vir a experimentar perdas que acabem por levá-la à
quebra, num determinado país, colocar em risco a totalidade do patrimônio do
investidor (e não somente o que investiu no infeliz negócio), é provável que ele
opte por direcionar seu capital para outro lugar.
Investidores risk makers talvez não desistam de investir na economia cuja
ordem jurídica não disponha de eficientes mecanismos de segregação de riscos;
mas, certamente, ao investirem, estruturarão as empresas com vistas a obterem
um retorno mais elevado (quanto maior o risco, maior o ganho esperado). Para
lograrem este resultado, contudo, deverão encarecer os produtos ou serviços que
oferecem.
Concluindo, se o direito brasileiro não prestigiar o princípio da autonomia
patrimonial das sociedades empresárias, de um lado, os investidores tradicionais
não se sentirão suficientemente atraídos pelo ambiente negocial em nosso país, e,
de outro, os produtos ou serviços fornecidos por risk makers acabarão
contribuindo para a carestia e inflação. Deste modo, interessa não somente aos
sócios das sociedades empresárias a aplicação, pelo Poder Judiciário, do
princípio da autonomia patrimonial, mas a toda a coletividade.
Antes de encerrar, convém uma pequena palavra sobre a teoria da
desconsideração da personalidade jurídica, a partir da qual o juiz pode, em
determinados casos, sustar a eficácia episódica do ato constitutivo da sociedade
empresária, afastando os efeitos do princípio da autonomia patrimonial. Os casos
em que o juiz está autorizado a desconsiderar a personalidade jurídica da
sociedade empresária são os de manipulação fraudulenta da técnica de
segregação de riscos (concepção subjetiva da teoria) ou a confusão de
patrimônios ou de objetivos (concepção objetiva). A desconsideração da
personalidade jurídica não significa, portanto, a negação da autonomia
patrimonial ou questionamento de sua importância para o regular funcionamento
da economia, em proveito de todos. Apenas quando presente um de seus
pressupostos (fraude, confusão patrimonial etc.) é que o juiz pode desconsiderar
a autonomia patrimonial da sociedade empresária. Deste modo, quando se falou,
acima, em relativização deste princípio em ramos jurídicos estranhos ao direito
comercial, não se estava fazendo qualquer referência à teoria da
desconsideração. Embora, muitas vezes, ela seja impropriamente lembrada em
tais relativizações (até mesmo pela lei!), a desconsideração deve ser vista como
um verdadeiro aperfeiçoamento da teoria da pessoa jurídica.
O princípio da autonomia patrimonial da sociedade empresária é legal,
especial e implícito.
8. PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE DA RESPONSABILIDADE DOS
SÓCIOS PELAS OBRIGAÇÕES SOCIAIS
Derivação do princípio da autonomia patrimonial, o da subsidiariedade da
responsabilidade pelas obrigações sociais só autoriza a execução de bens dos
sócios, para o adimplemento de dívida da sociedade, depois de executados todos
os bens do patrimônio desta. Sendo a sociedade empresária um sujeito de direito
autônomo, enquanto ela dispuser, em seu patrimônio, de bens, não há sentido em
buscá-los no patrimônio dos sócios. Apenas depois de exaurido o ativo do
patrimônio social justifica-se satisfazer os direitos do credor mediante execução
dos bens de sócio. Trata-se de princípio aplicável a todas as sociedades,
independentemente de eventual limitação da responsabilidade dos sócios, ou de
parte deles.
O princípio da subsidiariedade da responsabilidade dos sócios pelas
obrigações sociais é legal, especial e implícito.
9. PRINCÍPIO DA LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS
PELAS OBRIGAÇÕES SOCIAIS
Os riscos são inerentes a qualquer empreitada econômica. Por mais
prudente, criterioso, honesto e percuciente que seja o empresário, fatores
absolutamente fora do controle dele (e de qualquer um) podem frustrar, por
completo, as consistentes expectativas depositadas numa empresa. Ao limitar a
responsabilidade dos sócios pelas obrigações da sociedade, o direito estimula os
investimentos.
Diante de empreitada arriscada, as pessoas, em geral, adotam duas
posturas. As de perfil mais conservador costumam ter a tendência de se
afastarem, dedicando sua energia e recursos a outros interesses de risco menos
acentuado. Já as arrojadas podem até enfrentar os altos riscos daquela
empreitada, mas desde que obtenham, em caso de sucesso, um ganho
excepcional. Nos cálculos geralmente feitos pelos investidores, sempre está
presente a premissa da proporcionalidade entre risco e lucro: quanto maior o
risco, mais elevada deve ser a expectativa de ganho.
Como toda empresa pode redundar em insucesso, se este tiver o potencial
de comprometer a totalidade do patrimônio do investidor, os de perfil
conservador ficarão desinteressados; e os arrojados, para obterem o ganho
proporcional ao alto risco assumido, precisarão que os produtos ou serviços
sejam oferecidos pela empresa ao mercado por preços elevados.
O princípio da limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações
sociais visa justamente manter o risco empresarial em determinado nível que, de
um lado, atraia o interesse dos investidores conservadores e, de outro, contribua
para que os preços dos produtos e serviços sejam acessíveis a maior parcela da
população.
É natural. A maioria de nós teria muito receio em envolver-se em
qualquer empreitada que poderia implicar a perda de tudo o que amealhamos
em nosso patrimônio. A partir de determinado momento da vida, todos que se
empenharam decididamente em seu trabalho (manual, liberal, empresarial etc.)
conseguem reunir algum patrimônio, ainda que modesto. São os bens com que
pretendem se manter na velhice, terminar de criar os filhos, desfrutar de
prazeres. Ninguém quer expor deliberadamente a riscos de perda todos os seus
bens. Também a maioria dos investidores naturalmente pensa assim. O princípio
da limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais, ao eliminar
o risco de o investidor perder a totalidade dos bens do seu patrimônio, estimula
novos investimentos.
No sistema capitalista, lembre-se, o atendimento das necessidades e
querências de todos depende da iniciativa de alguns, voltada à organização de
empresas privadas fornecedoras de produtos e serviços de que precisamos ou
queremos. Ao estimular novos investimentos, o princípio da limitação da
responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais atende, portanto, aos
interesses metaindividuais de toda a coletividade.
Ao restringir o risco inerente a qualquer empresa econômica (limitando
ao montante investido a responsabilidade dos sócios), este princípio jurídico torna
mais competitivos os empresários que operam no mercado brasileiro. Em razão
da premissa, do cálculo empresarial e da proporcionalidade entre risco e ganhos,
quanto mais prestigiado for o princípio da limitação da responsabilidade dos
sócios pelas obrigações sociais, menores serão os preços dos produtos e serviços
oferecidos no mercado brasileiro.
A limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais,
portanto, não é uma forma de torná-los irresponsáveis. Pelo contrário, é um
expediente de segregação de riscos, que, ao incentivar maiores investimentos
(em especial, dos empresários com perfil conservador), traz proveitos a toda a
coletividade. Mais uma vez, o princípio do direito comercial, ao mesmo tempo
em que protege o interesse individual dos sócios da sociedade empresária (de tipo
limitada ou anônima), ampara, também, o metaindividual de todos os
consumidores brasileiros.
Os sócios respondem pelas
obrigações
sempre
subsidiariamente e, em alguns
casos (limitada e anônima, entre
eles), apenas até o limite fixado
em lei.
A
limitação
da
responsabilidade dos sócios
pelas obrigações sociais, no
nosso direito comercial, é
princípio jurídico que atende, a
rigor, apenas aos interesses dos
trabalhadores e consumidores
brasileiros. Os empresários e
investidores,
nacionais
ou
estrangeiros,
não
são
propriamente os beneficiados
por este princípio, porque
podem,
na
economia
globalizada, escolher muitos
outros países (nos quais a
responsabilidade
pelas
obrigações sociais é limitada)
para alocarem seus capitais.
Se o direito comercial
brasileiro não protegesse o
investimento pelo princípio da
limitação da responsabilidade
dos sócios, o empresário
continuaria em condições de
obter
o
mesmo
lucro,
redirecionando seu investimento
a outro país.
Protege-se, com o princípio da limitação da responsabilidade dos sócios
pelas obrigações sociais, em última análise, o próprio investimento. O direito
comercial brasileiro, ao enunciar o princípio, aparelha a ordem jurídica nacional
para a competição, no plano da economia global, pelos investimentos. Em
consequência, os beneficiários da proteção jurídica emanada deste princípio não
é apenas o sócio investidor, mas toda a coletividade.
O princípio da limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações
sociais é legal, especial e implícito.
10. PRINCÍPIO MAJORITÁRIO NAS DELIBERAÇÕES SOCIAIS
A sociedade empresária, sendo pessoa jurídica, deve manifestar sua
vontade por meio das pessoas naturais investidas, nesta função, pela lei e pelo
respectivo ato constitutivo (estatuto ou contrato social). O conjunto de sócios – por
vezes, reunidos formalmente num órgão, a assembleia geral – corresponde às
pessoas investidas na função de definir a vontade geral da sociedade empresária.
Nesta definição, em vista do princípio majoritário, prevalecerá a vontade ou o
entendimento da maioria.
Convém destacar, desde logo, que o princípio majoritário, no direito
societário, não é democrático. Pelo contrário, quando se fala em maioria, não se
está necessariamente prestigiando a vontade ou o entendimento da maior
quantidade de sócios. Se fosse democrático, o princípio majoritário adotaria a
fórmula um sócio, um voto; mas não é assim. A maioria, no campo do direito
societário, está invariavelmente associada ao risco assumido. Quanto maior o
risco que o sócio assume em determinada sociedade, maior será a sua
participação nas deliberações sociais.
Deste modo, em geral, o princípio majoritário se expressa pela atribuição
de poder deliberativo ao sócio proporcionalmente às quotas ou ações (votantes)
tituladas. Em decorrência, numa sociedade limitada, o sócio titular de quotas
representativas de mais da metade do capital social é o majoritário; e na
anônima, será o acionista titular de mais da metade das ações votantes, presentes
na assembleia geral. Este sócio majoritário, sozinho, pode definir a vontade da
sociedade empresária, mesmo que com ele não concordem os demais. As
deliberações sociais dependem da vontade ou entendimento de outros sócios,
além do majoritário, somente se previsto algum mecanismo que o assegure num
acordo de quotistas ou de acionistas.
Ressalto que o princípio majoritário foi, acima, enunciado em seu
delineamento geral. Na sociedade limitada, a lei estabelece um complexo
sistema de deliberação que exige, para a aprovação de determinadas matérias,
quorum superior ou inferior ao da maioria do capital (CC, arts. 1.061, 1.063, § 1º,
e 1.076). Também para a sociedade anônima, a lei fixou quorum de deliberação
qualificado, na votação de certas matérias (LSA, arts. 136 e 221).
Pelo princípio majoritário, as
deliberações
sociais
são
adotadas, em princípio, pela
vontade ou entendimento do
sócio (ou sócios) que mais
investiu
na
empresa
e,
consequentemente,
assumiu
maior risco.
A lei fixa o quorum de
deliberação, definindo-o, em
alguns casos, por critério
diferente.
Tema relacionado ao princípio majoritário é o do interesse da sociedade
empresária. Em sua abordagem, dividem-se os autores em torno de duas
concepções básicas: de um lado o contratualismo, reunindo os que identificam o
interesse social com o da maioria dos sócios, ou, a rigor, com o do sócio
majoritário; de outro, o institucionalismo, em que estão os defensores de um
interesse social não redutível aos dos sócios. A discussão entre os adeptos dessas
concepções, não raro, leva a abstrações desprovidas de qualquer
operacionalidade jurídica. Aliás, não se pode confundir estas tendências
relacionadas à questão dos interesses da empresa com as categorias da
classificação das sociedades quanto aos regimes de constituição e dissolução: são
expressões equivalentes empregadas para objetos semânticos completamente
distintos.
Pois bem, cogitar-se de “interesse social” (interesse da sociedade
empresária) não passa de uma mera metáfora. Somente homens e mulheres
podem ter, realisticamente falando, interesse. Uma pessoa jurídica, sendo
técnica de segregação de riscos, não pode ter interesse, senão num sentido
metafórico. Não há problema nenhum em argumentar por meio de metáforas,
desde que, obviamente, não se perca de vista o caráter artificial deste expediente
linguístico – que, por definição, não descreve seu objeto como ele é, mas como
parece ser.
A que se refere, então, a metáfora do “interesse social”? Só pode se
referir a outros homens e mulheres. Há sentido, portanto, em discutir, sob o ponto
de vista jurídico, eventual conflito entre os interesses de um sócio e o da
sociedade, apenas se identificados os homens ou mulheres afetados, em seus
patrimônios. Por interesse social pode-se entender, em determinados casos, o
interesse dos trabalhadores, consumidores, investidores no mercado de capital e
outros homens e mulheres, aos quais aproveita a preservação da empresa.
Quando os interesses destas pessoas conflitam com os de um sócio, é pertinente o
argumento jurídico socorrer-se da metáfora do interesse social para se referir
aos primeiros.
De qualquer forma, a questão do interesse da sociedade empresária
resume-se à da identificação do seu intérprete, ou seja, da definição da pessoa
natural (ou grupo de pessoas naturais) incumbida, pela lei, de interpretar o que
seria mais proveitoso ao desenvolvimento da empresa. Na maioria das vezes, o
intérprete deste interesse dito social é o sócio majoritário. Nem sempre, porém,
ele está em condições de cumprir esta função. Quando o sócio majoritário é,
também, administrador da sociedade e está em pauta a votação de suas contas,
obviamente, o intérprete do interesse social não poderá ser ele. O sócio
minoritário, aqui, será chamado a interpretar o que mais proveito traz ao
desenvolvimento da empresa.
O princípio majoritário nas deliberações sociais é legal, especial e
explícito (CC, arts. 1.061, 1.063, § 1º, e 1.076; LSA, arts. 110, 115, 129 e 136).
11. PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DO SÓCIO MINORITÁRIO
Ao atribuir ao sócio majoritário a incumbência de ser, em geral, o
intérprete do interesse social, a lei não descuida dos direitos dos demais sócios,
cuja contribuição para a empresa não pode ter a importância desprezada. O
princípio da proteção do sócio minoritário limita o princípio majoritário. Por
meio de instrumentos disponibilizados aos minoritários, como os direitos de
fiscalização e de recesso, a lei impede que o majoritário acabe se apropriando de
ganhos que devem ser repartidos entre todos os sócios.
O princípio da proteção do sócio minoritário é legal, especial e implícito.
12. PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE
“Autonomia da vontade” é expressão cujo significado jurídico aponta
para a plena liberdade de cada pessoa de contratar, ou não, bem como de
escolher com quem contratar e de negociar as cláusulas do contrato. Esta
liberdade somente encontraria limite no interesse público: contratos cuja
prestação é criminosa não são válidos, por mais que correspondam à vontade
livre e conscientemente declarada dos contratantes.
A evolução do direito contratual é uma história de crescentes limitações à
autonomia da vontade. Nos primórdios da trajetória, inspirado em valor caro à
civilização ocidental, esse princípio encontra-se ligado à noção de que ninguém
pode ser obrigado contra a própria vontade. A liberdade é o paradigma, balizada
apenas pelo interesse público. À medida, porém, que se tornam mais complexas
as relações sociais, a noção jurídica de autonomia da vontade não mais consegue
servir de adequada referência à compreensão de todos os contratos.
No contrato de trabalho, por exemplo, é inapropriado falar-se em
autonomia da vontade: o trabalhador não contrata porque quer (ao contrário,
precisa trabalhar para sobreviver), não escolhe livremente o outro contratante
(candidata-se às vagas disponíveis, nas habilidades que tem) e não pode discutir
minimamente as cláusulas do contrato (adere às estabelecidas, unilateralmente,
pelo patrão). O de consumo é outro exemplo de contrato em que a autonomia da
vontade é acentuadamente restringida, já que ao consumidor, muitas vezes,
nega-se a opção de não contratar e a possibilidade de escolher o contratante; e,
invariavelmente, ele não pode negociar o conteúdo das cláusulas do contrato,
devendo aderir às fixadas pelo fornecedor. A demonstrar igualmente a
insuficiência da noção de autonomia da vontade na compreensão dos contratos
da era contemporânea, há hipóteses de contratações obrigatórias, como no caso
de fornecimento de energia elétrica ou de determinados tipos de seguro.
Nesta história de crescentes limitações, porém, uma espécie de contrato
tem sido geralmente poupada – o empresarial.
Sendo os contratantes empresários e relacionando-se a prestação
contratada à exploração de atividade empresarial, a autonomia da vontade ainda
corresponde ao princípio jurídico mais adequado à disciplina das relações entre
as partes. Quando a indústria siderúrgica senta-se à mesa de negociação com a
fábrica de automóveis; ou o fundo de investimento passa a tratar, com o
controlador, sobre a aquisição do controle de uma companhia aberta; ou o banco
de primeira linha procura a seguradora para segurar contra roubo o transporte de
valores – em situações como estas, os sujeitos envolvidos contratam porque
querem, com quem querem e do modo que querem.
O princípio da autonomia da vontade, quando pertinente a contrato
empresarial, articula-se com os da livre-iniciativa e livre concorrência.
Empresários devem ser livres para contratar segundo suas vontades porque a
liberdade de iniciativa estrutura o modo de produção capitalista. Ademais, a
liberdade de contratar dos empresários não pode ser restringida, para que, assim,
a competição empresarial possa gerar, à coletividade, os benefícios esperados de
redução dos preços e aumento da qualidade dos produtos e serviços.
No contrato entre empresários
(contratos empresariais), ao
contrário do que se verifica no
contrato de trabalho e no de
consumo, a autonomia da
vontade ainda é bastante ampla,
porque, em geral, as partes
podem escolher entre contratar
ou não, com quem contratar e
negociam
livremente
as
cláusulas do contrato.
É indubitável que o contrato empresarial deve, como os demais gêneros
de contrato, cumprir sua função social (CC, art. 421). E isso é feito quando os
contratantes atentam aos eventuais interesses metaindividuais que poderiam ser
afetados, de modo significativo, com o objeto do contrato (Salomão, 2003). Em
outras palavras, o contrato empresarial não cumpre a função social quando,
embora atendendo aos interesses das partes, prejudica ou pode prejudicar
gravemente interesse coletivo, difuso ou individual homogêneo. A cláusula geral
da função social dos contratos é, desse modo, mais uma limitação da autonomia
da vontade.
Também é indubitável, por fim, que a autonomia da vontade não pode se
dissociar dos demais princípios do direito comercial. Assim, esbarra em balizas,
como no caso de acentuada assimetria entre os contratantes, hipótese em que
esse princípio se articula com o da proteção do contratante empresário mais débil
(item 14).
O princípio da autonomia da vontade é legal, especial e implícito.
13. PRINCÍPIO DA VINCULAÇÃO DOS CONTRATANTES AO
CONTRATO
As crescentes limitações à autonomia da vontade, que resumem a história
do direito contratual, encontram certo paralelo nas sucessivas relativizações ao
princípio da vinculação dos contratantes ao contrato. O brocardo “o contrato faz
lei entre as partes” é uma derivação natural da plena autonomia da vontade. Se a
pessoa teve a chance de contratar, ou não, de escolher o outro contratante e de
discutir amplamente as cláusulas do contrato, ela não pode se furtar ao exato
cumprimento do contratado. Como visto, o aumento da complexidade das
relações econômicas e sociais acabou por tornar o princípio da autonomia da
vontade insuficiente à disciplina do direito contratual; em paralelo, cada vez mais
a jurisprudência e a lei foram aplacando a rigidez do princípio da vinculação ao
contrato, no sentido de dispensar o contratante de cumprir a obrigação que havia
assumido, no todo ou em parte (Guerreiro, 1978).
Desenvolveram-se, então, teorias como a da imprevisão, com o objetivo
de delimitarem as circunstâncias em que o juiz poderia se imiscuir no negócio
jurídico com o objetivo de rever as cláusulas contratadas, em vista de um critério
geral de justiça. Pela teoria da imprevisão, o contratante deve ser dispensado de
cumprir a obrigação, sempre que fatos imprevisíveis a tornarem excessivamente
onerosa, implicando vantagem excepcional para o outro contratante.
Quando se trata de negócios civis ou de consumo, estas relativizações no
princípio da vinculação dos contratantes ao contrato justificam-se. No entanto,
sendo empresarial o contrato, somente em situações realmente excepcionais – e
mesmo assim, desde que respeitadas as especificidades do direito comercial –
pode o juiz rever as cláusulas contratadas.
Em primeiro lugar, não basta, para autorizar a revisão judicial do contrato
empresarial, a onerosidade excessiva de uma parte ou a vantagem extraordinária
da outra. Nenhum contrato empresarial pode ser analisado isoladamente. É, aliás,
muito comum, que o empresário realize negócios que, isolados, não lhe traz
nenhum ganho pontual, mas que, no contexto de sua empresa, é extremamente
vantajoso. Imagine que o empresário do ramo de segurança patrimonial celebre
contrato com renomado banco, no qual o preço contratado pelos serviços é
inferior aos custos para a prestação destes. Por que ele faria isto? Para ter no seu
portfólio de clientes aquele banco. Mais que um contrato de prestação de
serviços, trata-se de um investimento que aquele empresário está fazendo em sua
empresa. Claro que não poderá, posteriormente, ir a juízo pretender a revisão do
preço contratado, mesmo provando o prejuízo que este, pontualmente, lhe
acarreta.
Os
empresários
estão
vinculados aos contratos que
celebram entre eles em grau
maior do que os trabalhadores e
consumidores. A revisão judicial
das cláusulas do contrato
empresarial não deve neutralizar
a regra básica da competição,
que premia, com lucros, o
empresário que adotou a decisão
empresarialmente “acertada”, e
pune, com prejuízos ou mesmo a
falência, o que adotou a decisão
“equivocada”.
Ademais, também é insuficiente, para a revisão judicial dos contratos
empresariais, a mera imprevisibilidade do fato superveniente que frustrou a
expectativa de um dos contratantes. É necessário compatibilizar-se, no campo do
direito contratual empresarial, a teoria da imprevisão com a regra básica da
competição (que premia as decisões acertadas e penaliza as equivocadas). A
revisão judicial de contrato empresarial não pode nunca servir à neutralização
dos efeitos de qualquer decisão empresarial equivocada do contratante. Imagine
que certo industrial brasileiro tenha contratado a exportação de suas mercadorias,
por preço fixado em dólar, e, junto a um banco nacional, financiou esta
operação, recebendo antecipação em reais do valor da exportação. Se, em
seguida à celebração do contrato, o governo norte-americano promove
acentuada desvalorização do dólar, quando o exportador brasileiro receber o
pagamento das mercadorias, terá em mãos um valor em reais inferior ao que lhe
foi antecipado pelo banco, ficando, perante este, devedor da diferença. Ora,
mesmo no caso de a forte desvalorização da moeda norte-americana ser
considerada “fato imprevisível”, não haverá fundamento para a revisão do
contrato firmado entre exportador e banco. Isto porque a decisão
empresarialmente correta, ao assumir qualquer crédito ou compromisso sujeito à
variação cambial, consiste na utilização de instrumentos financeiros que
neutralizam os efeitos desta (hedge). Se o industrial do exemplo não se protegeu
devidamente, com um destes instrumentos financeiros, ele tomou decisão
empresarial equivocada. Para que a regra básica da competição possa operar-se
plenamente, em proveito de toda a coletividade, este exportador não poderá ser
poupado das consequências de seu erro.
O princípio da vinculação dos contratantes ao contrato é legal, especial e
implícito.
14. PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DO CONTRATANTE MAIS FRACO
Entre dois contratantes em igualdade de condições de negociação, os
princípios da autonomia da vontade e da vinculação ao contratado disciplinam,
adequadamente, as relações contratuais. Cada qual dispõe dos meios necessários
à defesa de seus interesses, bem como à exata compreensão do alcance das
obrigações ativas e passivas contraídas por um e por outro contratante. A simetria
das partes basta para assegurar o regular fluxo das negociações e o resguardo dos
legítimos interesses de cada uma.
Contudo, em relações contratuais assimétricas, em que os contratantes não
dispõem das mesmas condições (culturais, econômicas, mercadológicas, acesso
às informações etc.), a lei não pode deixar de contemplar instrumentos de
proteção dos legítimos interesses da parte mais fraca. São necessariamente
assimétricas, por exemplo, as relações no contrato de trabalho e de consumo.
Os contratos empresariais, por sua vez, podem ser simétricos ou
assimétricos. Quando a transportadora aérea de grande porte contrata a aquisição
de aeronave com o fabricante deste veículo, há inegável simetria na relação
contratual. Mas, no contrato da fábrica de bebidas com os seus distribuidores, a
relação é assimétrica.
No campo do direito do trabalho, a assimetria resulta da situação de
necessidade em que se encontra o trabalhador. Ele precisa do trabalho, para ter o
salário, com o qual vai se manter e à sua família. Caracteriza-se, então, a
hipossuficiência, a justificar o tratamento mais benéfico que o direito do trabalho
dispensa ao empregado. No campo do direito do consumidor, por outro lado, a
assimetria tem sentido diverso. Não é a situação de necessidade, propriamente,
que torna assimétrica a relação do consumidor com o fornecedor, e, sim, o
profundo desnível no acesso às informações. Em geral, o consumidor tem,
relativamente ao produto ou serviço que pretende adquirir, apenas as
informações prestadas pelo fornecedor. Caracteriza-se, no caso, a
vulnerabilidade do consumidor, fundamento para o tratamento legal mais
benéfico liberado pelo direito do consumidor.
Pois bem. No campo das relações empresariais, a assimetria não deriva
nem da hipossuficiência nem da vulnerabilidade daquele empresário contratante
mais débil. O franqueado, ao contratar a franquia, não se encontra em situação
de necessidade; nem, por outro lado, pode alegar ter insuficiente informação
sobre o objeto do contrato, por ser um profissional. O que marca a assimetria nas
relações contratuais entre empresários é a dependência empresarial. De modo
esquemático, a dependência empresarial está para o empresário mais fraco,
assim como a hipossuficiência está para o trabalhador e a vulnerabilidade para o
consumidor.
Por dependência empresarial entende-se aquela situação de fato, no
contexto de um contrato empresarial, em que a empresa de um dos empresários
contratantes deve ser organizada de acordo com instruções ditadas pelo outro.
Esta dependência tem origem contratual, de modo que o empresário dependente
manifestou sua vontade no sentido de submeter-se à situação. No entanto,
malgrado derivar de manifestação de vontade plenamente vinculativa, a
dependência empresarial restringe a liberdade de organização da empresa. O
leque de alternativas que se abre às decisões do empresário dependente, na
condução de sua empresa, é reduzido pelas orientações do outro contratante, a
quem deve acatamento. Como o empresário mais forte (distribuído, agenciado,
concedente, franqueador etc.) não está sujeito a igual limitação, na condução da
empresa dele, caracteriza-se a assimetria típica do direito comercial.
A assimetria, nos contratos
empresariais, que justifica a
proteção do contratante mais
fraco, decorre da obrigação
contratual de organizar sua
empresa seguindo orientações
emanadas do outro contratante.
O empresário mais fraco,
assim, não está em estado de
hipossuficiência (necessidade
de
contratar)
como
o
trabalhador, nem vulnerável (no
acesso às informações) como o
consumidor.
A exemplo dos demais princípios de direito comercial, o da proteção do
contratante mais fraco não pode ser interpretado isoladamente. Quer dizer,
também o empresário dependente, o que se encontra na posição inferior na
relação de assimetria, não pode invocar este princípio com o objetivo de se
preservar das consequências econômicas, financeiras, patrimoniais ou
administrativas das decisões que adota na condução da empresa, quando
frustrarem suas expectativas ou se mostrarem prejudiciais aos seus interesses. Se
o franqueado é pessoa sem o devido trato com os empregados, e isto atrapalha
significativamente o funcionamento da empresa, a ponto de comprometer os
lucros, é claro que não terá como responsabilizar o franqueador pelo insucesso da
franquia. A regra básica da competição não pode ser neutralizada pelo merecido
amparo que o empresário mais fraco, na relação empresarial assimétrica, deve
receber do direito comercial.
O princípio da proteção do contratante mais fraco é legal, especial e
implícito.
15. PRINCÍPIO DA EFICÁCIA DOS USOS E COSTUMES
Particularidade do direito comercial é a importância reservada aos usos e
costumes, como padrão para a definição da existência e do alcance de qualquer
obrigação entre empresários. Em nenhum outro ramo jurídico, as práticas
adotadas pelos próprios sujeitos têm igual relevância. É certo que a globalização
vem reduzindo a variedade destas práticas, no bojo do processo de pasteurização
cultural que lamentavelmente a acompanha. Dependente da crescente
padronização dos mercados, como meio de facilitar o trânsito global de
mercadorias, serviços e capitais, a economia dos nossos tempos tem,
paulatinamente, prestigiado os usos e costumes internacionais e reduzido os
locais. Estes, porém, ainda cumprem função de importância em muitas
operações. O direito comercial, por meio do princípio da eficácia dos usos e
costumes, reconhece como válidas e eficazes as cláusulas do contrato
empresarial em que as partes contraem obrigações de acordo com as práticas
costumeiras, seja no âmbito local ou internacional.
O princípio da eficácia dos usos e costumes é legal, especial e implícito.
16. OS PRINCÍPIOS DO DIREITO CAMBIÁRIO
Entre os sub-ramos do direito comercial, o cambiário é o único, desde
sempre, marcadamente principiológico. Destinados a conferirem maior
segurança e celeridade à circulação do crédito, elemento essencial para a
dinamização dos negócios comerciais, os princípios do direito cambiário foram
enunciados há muito tempo e têm sido objeto de extensos estudos pelos
comercialistas. São três os princípios do direito cambiário: cartularidade,
literalidade e autonomia das obrigações cambiais.
Pelo princípio da cartularidade, a posse do título de crédito é condição
para o exercício do direito nele incorporado. O objetivo desta regra
principiológica é impedir que alguém se apresente como credor do título, depois
de ter negociado o crédito com terceiro, cedendo-o. Pelo princípio da
literalidade, só produzem efeitos os atos que constam do teor do título de crédito.
Com isto, facilita-se a circulação, porque potenciais adquirentes não precisam
fazer investigações sobre eventuais outros negócios jurídicos que pudessem
restringir ou suprimir o crédito; mesmo que existam, como não estão
documentados na própria cártula, não produzirão efeitos que impeçam a
oportuna cobrança do título. Pelo princípio da autonomia das obrigações
cambiais, vícios que possam eventualmente comprometer qualquer das relações
obrigacionais documentadas no título não se estendem às demais. Também
facilita a circulação, porque os potenciais interessados em adquirir o crédito não
precisam investigar se todas as relações obrigacionais documentadas no título são
válidas e eficazes; mesmo que alguma delas não seja, isto nunca prejudicará o
direito de cobrar o título.
O princípio da autonomia das obrigações cambiárias desdobra-se em dois
subprincípios, o da abstração e o da inoponibilidade das exceções pessoais aos
terceiros de boa-fé. São subprincípios porque, a rigor, nada acrescentam ao que
já está definido pela autonomia das obrigações cambiárias, limitando-se a
descrever a mesma disciplina jurídica por outros ângulos. O subprincípio da
abstração prescreve que, após o título ser posto em circulação, ele se desliga da
relação negocial originária e, em consequência, eventuais vícios desta relação
não são óbices à cobrança do título. Já o da inoponibilidade das exceções pessoais
aos terceiros de boa-fé obsta, ao demandado em razão de um título, a
possibilidade de se defender contra o credor, suscitando matérias que ele poderia
opor a outro coobrigado pelo mesmo título, a menos que prove o conluio entre
este e o demandante.
A disseminação do suporte eletrônico para o registro da concessão e
circulação do crédito tem afetado, evidentemente, os seculares princípios do
direito cambiário. E afeta-os, cada um à sua maneira. Enquanto, se o título de
crédito é eletrônico, o princípio da cartularidade deixa de ter qualquer sentido e o
da literalidade deve ser ajustado ao novo suporte (de modo a só reconhecer a
eficácia dos atos registrados no mesmo ambiente eletrônico do título), continua a
vigorar plenamente o da autonomia das obrigações cambiárias, e seus
subprincípios da abstração e da inoponibilidade. O objetivo destas regras
principiológicas permanece, também, de dar segurança e agilidade à circulação
do crédito.
Os princípios do direito cambiário são legais, especiais e, em geral,
implícitos. Apenas a inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boafé é explícito (CC, art. 916; LU, art. 17; Lei n. 7.357/85, art. 25). Voltaremos aos
princípios do direito cambiário, mais à frente (Cap. 10, item 2).
17. PRINCÍPIO DA INERÊNCIA DO RISCO
O risco é inerente a qualquer atividade empresarial. A prosperidade ou o
fracasso da empresa estão sempre sujeitos a determinada margem aleatória; não
dependem de fatores inteiramente controláveis e antecipáveis pelo empresário.
A crise pode sobrevir à empresa, mesmo nos casos em que o empresário e o
administrador agiram em cumprimento à lei e aos seus deveres, e não tomaram
nenhuma decisão precipitada, equivocada ou irregular.
A inerência do risco da empresa, esclareça-se, não pode servir de escusa
para o empresário furtar-se às suas responsabilidades. Trata-se, ao contrário, de
princípio informador da interpretação das normas jurídicas aplicáveis à crise da
empresa, inclusive no circunscrever do exato âmbito de incidência das normas
sancionadoras da falência fraudulenta ou criminosa.
Pelo princípio da inerência do
risco a qualquer atividade
empresarial, reconhece-se que a
crise pode sobrevir à empresa
mesmo nos casos em que o
empresário e o administrador
agiram em cumprimento à lei e
aos seus deveres, e não tomaram
nenhuma decisão precipitada,
equivocada ou irregular.
Este princípio embasa, também, o instituto da recuperação judicial.
Sempre que um empresário lança mão deste recurso, é inevitável que seus
credores e toda a coletividade suportem os respectivos “custos”. Os credores os
suportam diretamente, na medida em que o plano de reorganização estabeleça
redução de seu crédito ou dilação do prazo de pagamentos. A coletividade
suporta os “custos” indiretamente, porque os empresários, em geral, para se
preservarem das consequências da recuperação judicial de alguns de seus
devedores, com o tempo, passam a acrescer aos preços de seus produtos ou
serviços uma taxa de risco associada a esta eventualidade. Ora, só tem sentido
racional, econômico, moral e jurídico impor aos credores, num primeiro
momento, e à coletividade, em seguida, tais “custos”, na medida em que, sendo o
risco inerente a qualquer empreendimento, não se pode imputar exclusivamente
ao empresário a responsabilidade pelas crises da empresa.
O princípio da inerência do risco é legal, especial e implícito.
18. PRINCÍPIO DO IMPACTO SOCIAL DA CRISE DA EMPRESA
A língua inglesa tem uma expressão largamente utilizada, pelos
profissionais jurídicos, para aglutinar as pessoas que, não sendo o empresário,
têm interesses gravitando em torno do desenvolvimento da empresa: bystanders.
Não há tradução, para o português, desta expressão com igual carga significativa.
“Expectadores”, que seria a tradução literal, não diz tudo, porque sugere alguma
passividade. O argumento em torno dos princípios do direito comercial será
enormemente facilitado quando os comercialistas conseguirem cunhar uma
expressão que reúna os trabalhadores de determinada empresa, os consumidores
dos produtos e serviços por ela oferecidos, os fornecedores de insumos
(empresas satélites), fisco, investidores não sofisticados do mercado de capitais
etc.
Além deste conjunto de pessoas, também a coletividade tem interesse
metaindividual afetado, direta ou indiretamente, pelos sucessos ou insucessos que
marcam a trajetória de grandes empresas.
É útil a imagem de três círculos em torno da empresa – a exemplo das
elipses representantes dos movimentos dos planetas ao redor do Sol. No círculo
mais próximo ao centro, estão representados os interesses dos empresários; mas
não somente os deles, como também os dos sócios da sociedade empresária,
investidores estratégicos, acionistas do bloco de controle e, nas companhias com
elevado nível de dispersão acionária, os dos administradores graduados. No
segundo círculo, o mediano, representam-se os interesses dos bystanders: os dos
trabalhadores (voltados à preservação de seus empregos e melhoria no salário e
nas condições de trabalho), dos consumidores (que precisam ou querem os
produtos ou serviços fornecidos pela empresa), do fisco (cuja arrecadação
aumenta em relação direta com o desenvolvimento da atividade econômica), dos
fornecedores de insumo (empresas satélites, muitas delas exploradas por micro,
pequenos e médios empresários), dos investidores não sofisticados no mercado
de capitais (se a empresa é explorada por companhia aberta) e dos vizinhos dos
estabelecimentos empresariais (normalmente, beneficiados com a valorização
do entorno). No terceiro círculo, o mais extenso, são representados os interesses
metaindividuais coletivos ou difusos da coletividade, ou seja, o de todos os
brasileiros (favorecidos, em caso de plena eficácia dos princípios de direito
comercial, pelo decorrente barateamento geral dos preços), e a economia local,
regional, nacional e global (com o desenvolvimento, que, afinal, é a soma dos
desenvolvimentos das respectivas empresas).
Esta imagem ajuda a entender o princípio jurídico do impacto social da
crise da empresa. Ele justifica que os mecanismos jurídicos de prevenção e
solução da crise são destinados não somente à proteção dos interesses dos
empresários, mas também, quando pertinentes, à dos interesses metaindividuais
relacionados à continuidade da atividade empresarial. A formulação deste
princípio, no direito positivo brasileiro, deriva do art. 47 da LF: “a recuperação
judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômicofinanceira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do
emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a
preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.
Em razão do impacto social da
crise da empresa, sua prevenção
e solução serão destinadas não
somente à proteção dos
interesses do empresário, de
seus credores e empregados,
mas também, quando necessário,
à proteção dos interesses
metaindividuais relacionados à
continuidade
da
atividade
empresarial.
O princípio do impacto social da crise da empresa é legal, especial e
implícito.
19. PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA NOS PROCESSOS
FALIMENTARES
O processo de falência e a recuperação judicial importam,
inevitavelmente, “custos” para os credores da empresa em crise. Eles, ou ao
menos parte deles, suportarão prejuízo, em razão da quebra ou da recuperação
do empresário devedor. Os processos falimentares, por isto, devem ser
transparentes, de modo a que todos os credores possam acompanhar as decisões
nele adotadas e conferir se o prejuízo que eventualmente suportam está, com
efeito, na exata medida do inevitável. A transparência dos processos falimentares
deve possibilitar que todos os credores que saíram prejudicados possam se
convencer razoavelmente de que não tiveram nenhum prejuízo além do
estritamente necessário para a realização dos objetivos da falência ou da
recuperação judicial.
Deve ser conciliado o princípio da transparência com a preservação das
informações estratégicas da empresa em crise, indispensáveis à manutenção de
sua competitividade. Mesmo falido o empresário, é possível que a atividade
econômica que explorava, saneada e transferida às mãos de pessoas mais
competentes ou sortudas, ainda frutifique. Deste modo, tendo em vista este
possível cenário, toda cautela na preservação da competitividade da empresa é
recomendável, não somente na recuperação judicial, mas igualmente no
processo de falência.
O princípio da transparência nos processos falimentares é legal, especial e
implícito.
20. PRINCÍPIO DO TRATAMENTO PARITÁRIO DOS CREDORES
A par condicio creditorum (tratamento paritário dos credores)
corresponde a um valor secular, cultivado pelo direito falimentar. Por ele, já que
o empresário falido não terá recursos para honrar a totalidade de suas
obrigações, o justo e racional é que os credores mais necessitados (como os
trabalhadores, por exemplo) sejam satisfeitos antes dos demais, e que, entre
credores titulares de crédito da mesma natureza, não sendo suficientes os
recursos disponíveis para o pagamento da totalidade de seus direitos, proceda-se
ao rateio proporcional ao valor destes.
O princípio do tratamento paritário dos credores é legal, especial e
implícito.
Capítulo 3
A DISCIPLINA DA ATIVIDADE EMPRESARIAL E A GLOBALIZAÇÃO
1. AS VANTAGENS COMPETITIVAS DECORRENTES DO MARCO
REGULATÓRIO
No regime econômico de liberdade de iniciativa e competição, os
empresários devem ser “premiados” pelo sucesso derivado exclusivamente das
características de suas empresas. Aquelas exploradas com competência, controle
adequado de custos, adoção das tecnologias mais avançadas, preocupação com a
sustentabilidade ambiental, respeito aos direitos dos consumidores e constantes
reinvestimentos no aprimoramento da organização empresarial dispõem de
saudáveis meios para se desenvolverem, conquistando crescentes fatias do
mercado. Pode-se dizer que as empresas com tais características ostentam
“vantagens competitivas” de fundo econômico; ou seja, elas tendem a se sair
melhor que a concorrência por serem economicamente avantajadas.
Ao lado, porém, dessas vantagens competitivas de raízes econômicas, há
outras que não guardam nenhuma relação direta com as características das
empresas. Não são vantagens originadas da competência dos empresários, e,
porque beneficiam indistintamente a todos os de determinados segmentos da
economia, acabam premiando também os menos competentes, implicando uma
séria distorção dos fundamentos do regime de liberdade de iniciativa e
competição. Essas vantagens competitivas decorrem do marco regulatório, isto é,
do direito vigente em cada país (leis, regulamentos administrativos, sua
interpretação pelos Tribunais etc.). São vantagens “institucionais”, de
fundamentos distintos dos das “econômicas”, pois não derivam de nenhuma
manifestação de competência empresarial.
Tome-se um exemplo bastante simples, de expediente empregado há
tempos por diversos países com o objetivo de “proteger” sua indústria: a
cobrança de elevados impostos de importação. Nesse caso, o empresário
nacional goza de uma vantagem competitiva institucional, na medida em que
pode oferecer o seu produto no mercado “interno” com preço bem inferior ao
concorrente importado (o importador só consegue recuperar o tributo pago,
repassando-o ao preço do produto). Observe-se que os dois empresários (o
industrial nacional e o importador) não estão competindo “em pé de igualdade”:
a ordem jurídica conferiu a um deles excepcional condição vantajosa.
Provavelmente o imposto de importação é alto, nesse caso, porque, se não
houvesse nenhum entrave à livre competição e esta dependesse exclusivamente
de fatores econômicos (as características de cada empresa competidora), o
produto importado seria o preferido pelo consumidor. Além dessa política
tarifária, há vários exemplos de vantagem competitiva decorrente do marco
regulatório: leis de proteção ao meio ambiente, controle fitossanitário, subsídios,
direitos trabalhistas etc.
Note-se que nenhum empresário, ao se aproveitar de uma vantagem de
natureza institucional, incorre, por só este fato, em concorrência desleal (Cap. 7,
item 2). Pelo contrário, ele está se posicionando na competição empresarial
atendendo a um dos pressupostos da lealdade competitiva, que é o respeito à
ordem jurídica. Não se trata de um ilícito, portanto. Acontece, porém, que as
vantagens competitivas derivadas do marco regulatório (tanto quanto a
concorrência ilícita) dificultam o adequado funcionamento da economia de livre
mercado.
As vantagens institucionais expressam-se por meio do direito- -custo, quer
dizer, por normas jurídicas e suas interpretações que interferem no preço dos
produtos e serviços oferecidos no mercado em que incidem (Cap. 1, item 11).
A vantagem competitiva pode
ter origem na competência do
empresário para organizar sua
empresa e concorrer (vantagem
econômica) ou no marco
regulatório, isto é, nas leis, nos
regulamentos
e
nas
interpretações jurisprudenciais
aplicáveis
(vantagem
institucional).
O regime de liberdade de
iniciativa e competição funciona
adequadamente
quando
os
empresários se diferenciam
apenas a partir de vantagens
econômicas. As
vantagens
institucionais, por sua vez,
comprometem
o
regular
funcionamento deste regime e,
por
isso,
devem
ser
paulatinamente eliminadas.
Uma das preocupações do direito do comércio internacional consiste
exatamente em viabilizar a eliminação gradual das vantagens competitivas
decorrentes do marco regulatório. Essa eliminação, a rigor, é o ponto central do
processo de globalização. Por isso, as diplomacias dos países de todo o mundo,
bem como organismos internacionais (OMC, principalmente), empenham-se em
discutir e celebrar acordos que visem à supressão das vantagens institucionais.
Não é um processo negocial fácil, nem célere. Ao contrário, tem registrado e
continuará registrando avanços e recuos. Como, porém, a globalização é,
realisticamente falando, o único meio de atender à constante necessidade do
capitalismo de ampliação dos mercados (Coelho, 2004, 2:233/239), todas as
vantagens competitivas decorrentes do marco regulatório terão, um dia, que
desaparecer.
2. PRINCÍPIOS DO DIREITO DO COMÉRCIO INTERNACIONAL
Com a preocupação de reduzir ou eliminar vantagens competitivas
institucionais, os Estados têm negociado e assinado tratados e convenções
internacionais, principalmente a partir do fim da segunda guerra (por exemplo, o
General Agreement on Tariffs and Trade – GATT, cuja primeira versão é de
1947). Desses documentos internacionais em vigor atualmente no Brasil, podemse extrair alguns princípios do direito do comércio internacional.
a) Cláusula da nação mais favorecida. Por este princípio, nenhum Estado
pode conceder aos produtos originados de outro Estado qualquer benefício
(vantagem, favor, privilégio ou imunidade) que não seja concedido, na mesma
medida, aos produtos originados dos demais Estados participantes do Tratado.
Este é o principal instrumento de impulso ao multilateralismo, na medida em que
amplia para todos os países os benefícios constantes de acordos bilaterais. Se o
país A celebra, por exemplo, com o país B, acordo isentando o imposto de
importação para eletrodomésticos fabricados neste último, ele é obrigado, pela
cláusula da nação mais favorecida, a estender o mesmo tratamento tributário aos
eletrodomésticos provenientes de qualquer outro país sujeito ao mesmo princípio.
A extensão do tratamento mais benéfico é, por assim dizer, “automática”;
isto significa que não está sujeita a qualquer condição, independe de
formalidades. Basta ter sido concedido o benefício aos produtos de um país
específico, para que ele possa ser, de imediato, aproveitado também pelo
empresário de qualquer outro país.
A cláusula da nação mais favorecida não tem aplicação em algumas
hipóteses, como a autorização específica para a concessão de benefício em favor
de países em via de desenvolvimento (Cláusula de Habilitação) ou os tratamentos
diferenciados observados no interior duma zona de integração econômica
regional. Tempera-se, nessas hipóteses, o multilateralismo, em razão do
reconhecimento da importância de certos acordos bilaterais ou regionais para o
avanço do processo de liberalização do comércio global.
b) Tratamento nacional. Por este princípio, a ordem jurídica deve liberar
aos produtos fabricados no país e aos importados, quando similares, igual
tratamento. Uma vez internalizada a mercadoria proveniente do exterior, ela
deve sujeitar-se ao mesmo regime jurídico, inclusive tributário, aplicável às
fabricadas no país, com as quais concorra. Nenhum Estado pode, por exemplo,
cobrar tributos internos com alíquotas diferenciadas na comercialização de
produtos nacionais ou importados; não pode também, outro exemplo, impor ao
comerciante do produto importado obrigações relativas à publicidade, à oferta,
ao transporte e à utilização no mercado interno que não sejam igualmente
exigíveis daquele que comercializa o similar nacional.
c) Repressão ao dumping. Quando o empresário vende seus produtos num
país estrangeiro por preço inferior ao praticado em seu próprio país, esta prática,
conhecida por dumping, provoca distorções na livre concorrência e, por isso,
deve ser reprimida. Esse empresário pode ser obrigado, pelo Estado em cujo
território se pratica o preço predatório, a pagar um “direito antidumping”, que
torne mais gravosa e desestimule essa tentativa agressiva de conquista de
mercados.
Os princípios do direito do
comércio internacional norteiam
o processo de liberalização do
comércio global, mediante a
redução ou eliminação das
vantagens
competitivas
institucionais. Destacam-se três:
princípio da nação mais
favorecida,
do
tratamento
nacional e da repressão ao
dumping.
Obviamente, este Curso é o lugar apenas para uma menção bastante
genérica a tais princípios. Seu estudo e aprofundamento, bem como o das regras
derivadas e dos instrumentos de implementação são objeto de outra disciplina
jurídica: o direito do comércio internacional. Como o estudioso do direito
comercial necessita conhecer o contexto em que, hoje em dia, se desenvolve o
comércio, a abordagem sucinta do tema é imprescindível. No futuro, quando
houver um único mercado planetário, o direito do comércio internacional deixará
de existir e todas as relações entre empresários, mesmo os sediados em países
diferentes, serão regidas pelo direito comercial globalmente harmonizado.
3. INTEGRAÇÃO ECONÔMICA E A CLÁUSULA SOCIAL
Um dos aspectos mais sensíveis na questão da eliminação gradual das
vantagens competitivas derivadas do marco regulatório, por meio de acordos
internacionais, consiste no que se convencionou chamar de “cláusula social”.
Quanto menos protetora dos direitos humanos e do meio ambiente for
determinada ordem jurídica, maior será a vantagem competitiva do empresário
cuja empresa estiver sujeita a esta ordem. A liberalização do comércio global
depende, em consequência, da concomitante elevação do padrão de proteção dos
direitos humanos e do meio ambiente.
Imagine que um Estado não coíba o trabalho infantil. Normalmente, a
utilização de mão de obra de crianças acaba proporcionando ao empresário uma
extraordinária economia de custos, por serem os “salários”, nesse caso,
extremamente baixos. Como não há repressão à inominável prática, os
empresários sediados no território deste Estado podem exportar seus produtos a
preços inferiores aos praticados pelos sediados onde o trabalho infantil foi
completamente erradicado. Igual raciocínio se pode aplicar relativamente
àqueles Estados em que não existem ou são incipientes o direito do trabalho e a
legislação ambiental. Até mesmo a elevação do grau de tutela de alguns direitos
fundamentais, como a liberdade de expressão ou de organização sindical, é
importante na redução de vantagens competitivas institucionais.
Na Índia, as pessoas são divididas em castas e a mobilidade social é
mínima. As massas nascidas na casta inferior, exatamente por não nutrirem
perspectivas de ascensão social, pressionam menos o Estado pela universalização
do acesso à educação, saúde e previdência. Nesse cenário, sobram mais recursos
estatais para investimentos em infraestrutura do que, por exemplo, no Brasil,
onde as demandas sociais consomem parte considerável da receita do Estado e
contribuem para o déficit público. Em decorrência, o empresário indiano goza de
uma vantagem competitiva derivada do marco regulatório, em relação ao
brasileiro. Vantagem que somente com a eliminação do sistema de castas poderá
ser neutralizada.
O grau de proteção aos
direitos humanos e ao meio
ambiente também guarda relação
indireta com a criação de
vantagens
competitivas
institucionais. Quanto menor a
proteção liberada pela ordem
jurídica, maior a vantagem
desfrutada pelo empresário
sediado no país a ela sujeita. A
liberalização
do
comércio
global acaba forçando a
elevação do nível de proteção
dos direitos humanos e do meio
ambiente.
A globalização nivela pelo alto. Há como que um “padrão civilizatório”,
observável nas democracias centrais do sistema capitalista, a servir de meta a ser
perseguida e, cedo ou tarde, alcançada por qualquer país interessado em inserirse na economia globalizada.
4. PROCESSO DE INTEGRAÇÃO ECONÔMICA REGIONAL
A globalização da economia, processo de superação das fronteiras
nacionais no desenvolvimento do comércio, ao mesmo tempo em que possibilita,
também força a integração regional. O Brasil e alguns países territorialmente
próximos estão envolvidos no processo de integração econômica que se
denominou “Mercado Comum do Sul — Mercosul”, previsto no Tratado de
Assunção de 1991. Está envolvido, também, com outros países do continente
americano, na construção da ALCA – Associação de Livre Comércio das
Américas.
Os processos de integração econômica regional, em termos gerais, têm se
desenvolvido por etapas progressivas, conceitualmente distintas. Em primeiro
lugar, busca-se a organização da denominada “Zona de Livre Comércio”, estágio
que representa o objetivo final do NAFTA ( North American Free Trade
Association), de que participam os Estados Unidos, o México e o Canadá; ou da
EFTA ( European Free Trade Association), constituída pela Islândia, Noruega e
Suíça; ou também da ALCA. Nessa etapa do processo integrativo, os estados
participantes da Zona assumem reciprocamente o compromisso de eliminar as
barreiras tarifárias existentes nas suas fronteiras, para as mercadorias produzidas
nos demais países participantes. Isto é, as mercadorias produzidas em cada um
dos países envolvidos no processo de integração têm livre circulação nos demais.
As barreiras tarifárias permanecem apenas em relação aos produtos importados
por empresas sediadas em qualquer um dos países participantes, para a
comercialização nos outros.
O
processo
de
integração
econômica tem-se desenvolvido,
basicamente, por meio de
algumas
etapas,
com
características próprias.
A primeira costuma ser
denominada “Zona de Livre
Comércio”. Nesta etapa, os
países participantes do bloco
regional econômico eliminam as
barreiras tarifárias dos produtos
neles fabricados.
Uma definição econômica e jurídica indispensável para o bom
desenvolvimento da “Zona de Livre Comércio”, enquanto etapa do processo
integrativo, é a relacionada à nacionalidade dos produtos que transitam pelas
fronteiras dos países participantes. Isto é, devem-se negociar os critérios segundo
os quais se pode considerar, por exemplo, brasileiro um produto fabricado no
Brasil, mas com utilização de componentes e tecnologia importados. É uma
questão crucial — essa do controle de origem dos produtos — para se definir se
cabe ou não a tarifação de determinada mercadoria. O desenvolvimento do
processo integrativo depende muito da discussão da nacionalidade das
mercadorias, já que cada país participante mantém, em relação às importadas
de países não participantes, sua própria política aduaneira. Pode, assim, haver
sérias distorções na competição entre empresários de dois diferentes países da
“Zona de Livre Comércio”, se um deles, por exemplo, puder importar
mercadorias fabricadas na Ásia para comercializá-las, como se fossem
nacionais, no mercado consumidor do outro país participante da Zona, pagando
impostos de importação menores dos que os pagos pelos empresários sediados
nesse último.
Outra preocupação típica desse período do processo integrativo diz
respeito à identificação e estudo das denominadas barreiras não tarifárias, isto é,
fatores econômicos, administrativos, burocráticos e até mesmo culturais, que
interferem — ou podem vir a interferir, a partir do desenvolvimento do processo
integrativo — com a circulação de mercadorias. A eliminação dessas barreiras
far-se-á ao longo do processo de integração, mas a paulatina atenuação de seus
efeitos deve ser desde logo deflagrada. Assim, por exemplo, é importante
examinar as condições de uniformização dos procedimentos burocráticos, de
cunho aduaneiro, exigidos nos diferentes países integrandos, da disciplina
antidumping, das regras de controle sanitário etc.
A segunda etapa do processo integrativo se costuma chamar “União
Aduaneira”. Nessa etapa, os participantes mantêm a liberdade de circulação de
mercadorias entre as suas fronteiras e uniformizam as tarifas de importação
incidentes sobre as trazidas de países não participantes. Na etapa correspondente
à “União Aduaneira”, não tem a mesma importância a discussão sobre os
critérios de nacionalidade dos produtos, o estabelecimento de regras de controle
de origem. Nesse momento do processo integrativo, a prática de tarifa única
torna irrelevante, sob o ponto de vista da tributação, o país pelo qual a mercadoria
ingressa no mercado de consumo correspondente à União. Permanecem,
entretanto, atuantes outros fatores econômicos e muitas barreiras não tarifárias.
Assim, a qualidade e o custo dos serviços de transporte, portuários ou
aeroportuários de cada um dos países integrandos, por exemplo, serão decisivos
para o importador encontrar a melhor alternativa para introduzir a mercadoria no
território da União. Se um porto tem preço dos serviços de desembarque e
estadia superior ao do situado em outro país da União Aduaneira, o empresário
preferirá importar suas mercadorias por este último, mesmo para comercializálas no mercado correspondente ao país em que se situa aquele primeiro porto.
A segunda etapa é a “União
Aduaneira”, em que os países
participantes do bloco regional
econômico uniformizam suas
políticas de comércio exterior,
padronizando as alíquotas para
a importação e exportação de
produtos.
A terceira etapa tem sido identificada, normalmente, como a do
“Mercado Comum”, meta prevista pelo Tratado de Assunção. Nessa etapa, os
países envolvidos com o processo de integração adotam compromissos
internacionais que possibilitam o livre trânsito de mercadorias, capitais, bens,
pessoas e serviços entre os respectivos territórios nacionais. Condição inafastável
para se alcançar esse degrau de integração econômica é a unificação de
determinados regramentos jurídicos, de modo a possibilitar iguais condições de
competição entre os empresários de cada um dos países integrandos.
A terceira etapa é a do
“Mercado Comum”, em que é
permitido, entre os países
participantes do bloco regional
econômico, o livre trânsito de
mercadorias, capitais, bens,
pessoas e serviços.
O desenvolvimento do processo integrativo em suas três etapas principais
depende fundamentalmente da supressão das assim denominadas “barreiras não
tarifárias”. Algumas delas, como a dos custos dos serviços de transporte,
portuários ou aeroportuários, dependem, ou podem depender pelo menos em
parte, da iniciativa privada. Outras barreiras não tarifárias devem ser eliminadas
pela atuação conjunta dos estados participantes do processo integrativo. São elas:
a) exigências burocráticas desiguais relacionadas à circulação de mercadorias e
serviços, em especial as pertinentes aos documentos que os devem acompanhar;
b) diferenças e duplicidade de procedimentos aduaneiros, de controle e
fiscalização do trânsito de mercadorias; c) diferentes regras de controle sanitário,
de proteção fitossanitária e pecuária, ou diferentes modos de as aplicar; d)
variações e até mesmo conflitos nas normas técnicas, de segurança ou
metrologia; e) divergências nos critérios de conversibilidade de moedas; f)
políticas diversas de incentivos fiscais ou subsídios econômicos (cf. Baptista,
1994:20).
Como se pode antever, durante todo o processo de integração, são
entabuladas, entre os agentes governamentais e os próprios setores organizados
da sociedade e da economia de cada um dos países envolvidos, inúmeras
negociações. Integrar, pode-se dizer, é fudamentalmente negociar com
parceiros. O Mercosul pode ser considerado, desde 31 de dezembro de 1994,
uma União Aduaneira imperfeita. É certo que o Tratado de Assunção preceitua
que, nesta data, já se implantaria o Mercado Comum (art.1º), e é fato que não se
pode considerá-lo uma simples zona de livre comércio, porque já está eliminado
o certificado de origem dos produtos nacionais. Chama-se imperfeita a união
aduaneira do Mercosul em razão das inúmeras exceções à Tarifa Externa
Comum (Accioly, 1996). De qualquer modo, identificando no estágio de
evolução do processo integrativo, iniciado no primeiro dia de 1995, a primeira
fase de zona de livre comércio, ou uma inconclusa segunda fase de união
aduaneira, o fato é que o Brasil e seus parceiros se encontram ainda às voltas
com enormes dificuldades para alcançar a meta fixada em 1991, em Assunção
(cf. Ana Pereira, 1997). O fortalecimento do Mercosul depende, na verdade, do
aprofundamento do processo de integração. Quando os conflitos entre
empresários e governos dos países do bloco — principalmente os do Brasil e
Argentina — afloram, os economistas costumam apontar como saída a adoção
de políticas econômicas coordenadas; em outras palavras, passos em direção à
derradeira etapa da integração regional: a de formação da comunidade
econômica. A despeito das imensas dificuldades que apresenta, o fortalecimento
do Mercosul é vital para que os países componentes deste bloco possam negociar
melhor sua integração à ALCA e os acordos comerciais com a União Europeia.
4.1. Harmonização do Direito
No campo jurídico, o aspecto mais relevante do processo integrativo diz
respeito à eliminação de diferenças legislativas que possam obstaculizar o seu
desenvolvimento. Os tratados, inclusive o de Assunção de 1991, e demais
documentos firmados pelos estados participantes, costumam mencionar a
harmonização do direito vigente em cada país como um dos principais objetivos
propostos. Por sua vez, os doutrinadores de direito de integração distinguem entre
coordenação, harmonização e aproximação de normas ou ordenamentos,
procurando encontrar as nuanças características de cada uma. Segundo o
ensinamento mais corrente, coordenadas seriam as normas jurídicas que não
apresentam incompatibilidades, harmonizadas as que produzem os mesmos
efeitos e aproximadas as que adotam diretivas de órgãos comunitários
supranacionais (Faria, 1995:12/16).
Na verdade, o processo integrativo não depende exatamente da absoluta
uniformização das normas, no sentido de vigência de um texto único. O modelo
da uniformização foi o usado, nos anos 1930, pelas Convenções de Genebra para
a adoção de uma disciplina comum sobre os principais títulos de crédito (letra de
câmbio, nota promissória e cheque). Naquele momento, a uniformização do
texto legislativo sobre determinados assuntos foi o mais adequado instrumento
encontrado pela diplomacia, para estimular os negócios no comércio
internacional — objetivo, convenha-se, bem mais modesto que o da integração
econômica. Já o processo de globalização do final do século XX, por sua
amplitude, dinâmica e objetivos, não poderia se limitar ao mecanismo da
uniformização da lei, reclamando dos serviços diplomáticos a criação de
expedientes mais flexíveis, capazes de compor os múltiplos interesses envolvidos.
O pressuposto do desenvolvimento do processo integrativo, nesse contexto,
não é a uniformização redacional de textos de leis, mas a harmonização do
sentido do comando normativo nelas existente e, em consequência, a expectativa
de identidade dos seus efeitos.
Para o desenvolvimento do
processo de integração regional,
é necessária a harmonização do
direito vigente
participantes.
nos
países
O Tratado de Assunção menciona o compromisso de os integrantes do
Mercosul harmonizarem suas legislações “nas matérias pertinentes para obter o
fortalecimento do processo de integração”. Para um documento diplomático, não
seria talvez factível pretender algo diverso de uma fórmula tão genérica e
imprecisa. De fato, o acordo não especifica as áreas em que se deve buscar a
harmonização, nem fixa metas claras quanto a esse tema do processo de criação
do mercado comum. Cabe à tecnologia jurídica, em sua independência
acadêmica, contribuir para a concretização do enunciado constante do
instrumento internacional. Fixar os parâmetros teóricos e conceituais a partir dos
quais se possa aclarar o que cabe entender, exatamente, por “fortalecimento do
processo integrativo”, para fins de delimitação do campo de negociações da
harmonização legislativa, é tarefa para os tecnólogos do direito.
Alguns autores consideram que a harmonização das legislações dos países
integrantes do mercado comum deve alcançar um arco bastante largo de
regimes jurídicos. Luiz Olavo Baptista, por exemplo, considera que o livre
trânsito de pessoas, bens e serviços característico do Mercado Comum torna
potencialmente sujeita a mudanças toda a legislação civil, inclusive os capítulos
do direito de personalidade, família e sucessão (1994:22). No meu modo de
entender a questão, no entanto, a harmonização pressuposta do desenvolvimento
do processo de integração refere-se a um campo normativo bem restrito e
delimitável. A construção do mercado comum, em suma, depende
fundamentalmente de um direito-custo harmonizado. Isto é, a integração
legislativa diz respeito às normas jurídicas que interferem direta ou indiretamente
nos custos da produção e demais atividades econômicas. Normas sobre
usucapião, direito criminal impositivo de sanções limitadoras da liberdade
individual, família, sucessão, infância e adolescência, processo judicial de
conhecimento, valores mobiliários, benefícios previdenciários, funcionalismo
público, licitação e direito financeiro, desapropriação, direito eleitoral e tantas
outras que não obrigam o empresário a rever o preço dos seus produtos ou
serviços, para preservar a margem de lucratividade esperada, são normas cuja
harmonização é plenamente dispensável. Já as normas pertinentes à tutela dos
consumidores, tributos incidentes sobre atividade econômica, proteção da
propriedade industrial, repressão ao abuso do poder econômico, recuperação de
crédito e outras, de efeitos imediatos ou mediatos sobre o cálculo empresarial,
reclamam harmonia como condição para o desenvolvimento do processo
integrativo.
A harmonização indispensável
ao desenvolvimento do processo
de integração econômica diz
respeito
às
normas
que
interferem no
custo
das
atividades
econômicas
(“direito-custo”).
Em outras palavras, o objetivo fundamental da harmonização do direitocusto é o de eliminar as vantagens e desvantagens competitivas entre os
empresários de cada país do bloco. Se um deles possui direito tributário ou do
trabalho que impõem menos encargos aos seus empresários na produção, estes
têm vantagens competitivas para negociar seus produtos nos mercados dos
demais países do bloco. Os empresários desses outros, porque estão sujeitos a
regras mais onerosas de direito tributário ou do trabalho, acabam produzindo bens
ou serviços mais caros. Se um dos países possuir direito do consumidor mais
evoluído, no sentido de impor maiores obrigações aos que comercializam bens ou
serviços no seu mercado, inverte-se a vantagem competitiva: os seus
empresários podem vender nos demais países do bloco a preços mais
competitivos que os sediados nestes últimos em relação ao mercado consumidor
mais bem protegido. Para alcançar a fase de integração denominada “mercado
comum”, é indispensável eliminarem-se as vantagens e desvantagens
competitivas entre os empresários dos países envolvidos no processo de
integração e isto se faz com a harmonização do direito-custo.
A propósito, ao discutir sua interessante tese da descodificação e da
ressistematização do direito privado, Ricardo Luis Lorenzetti lembra que alguns
países disputam a condição de sede de empresas, instituindo legislações com
baixos graus de proteção, das quais decorrem menores custos para a instalação
de atividades econômicas. Segundo anota, à medida que os estados atingidos por
essa política de captação de investimentos pressionam tais países, no sentido de
exigir o cumprimento de alguns direitos fundamentais, e à medida que os
organismos internacionais de crédito condicionam a outorga de financiamento à
observância de tais direitos, e se multiplicam acordos de livre comércio com
referência a regulações mínimas, acaba surgindo uma normatização dos direitos
fundamentais e das condições de competição proveniente de diversas vias. Desse
modo, as vantagens competitivas de cada nação paulatinamente deixam de
sacrificar ou limitar direitos humanos ou garantias fundamentais, para se
assentarem em aspectos diversos do regramento jurídico (1995:34/35). De fato, a
disparidade entre ordens normativas nacionais mais ou menos protetoras de
direitos individuais — inclusive e principalmente os trabalhistas — cria a
possibilidade de o empresário sediado no país menos protetivo vender os seus
produtos, com preço bastante inferior aos praticados nos mercados dos países
mais protetivos. É o que já se denominou por dumping “social”, problema típico
da globalização da economia, responsável inclusive pela manutenção de políticas
protecionistas de indústrias nacionais.
Na implantação de um mercado comum, é claro que tais disparidades
devem ser eliminadas. Mas note-se que o processo de integração econômica
tende, normalmente, a aproximar estados com alguma identidade histórica e
cultural — como é, aliás, o caso do Mercosul. Assim, as diferenças entre os graus
de proteção aos direitos individuais dos países participantes do processo
integrativo não são, já de antemão, enormemente acentuadas. A harmonização
dos ordenamentos vigentes, então, deve se preocupar mais com as “vantagens
competitivas” não assentadas nos direitos humanos e garantias fundamentais,
para usar a expressão de Lorenzetti. E, desse modo, ganha relevo a
harmonização do direito comercial, nos aspectos em que interferem com o
cálculo empresarial.
4.2. Harmonização do Direito Comercial
A harmonização do direito comercial ou empresarial, compreendida no
sentido acima de igualação dos efeitos dos comandos normativos de direito-custo
das ordens jurídicas dos países em processo de integração, poderá ser alcançada
por três formas diferentes: a) com a alteração do direito positivo dos estados
participantes para fins de ajustá-lo ao vigente em um deles, escolhido como
paradigma; b) pela alteração do direito positivo vigente em todos os estados
participantes, para a adoção de novos modelos de disciplina jurídica; c) pela
interpretação do direito vigente num país participante, a partir de referências a
princípios ou normas adotados pelo direito de outro ou outros países participantes
(interpretação integrativa). Note-se que apenas nas duas primeiras hipóteses a
mudança formal da legislação é necessária. A terceira via independe de uma tal
mudança; decorrerá, na verdade, de progressos na criação de uma comunidade
jurídica do Mercosul (sobre o conceito de comunidade jurídica: Coelho,
1992b:14/16). Nesse contexto, embora a tecnologia jurídica tenha contribuições a
dar nos três meios delineados, é evidente que a importância dessas aumenta
consideravelmente no último. A comparação do direito de empresa em vigor no
Brasil e na Argentina pode servir à exemplificação desses mecanismos, cabendo,
contudo, a expressa advertência de que pretendo aqui desenvolver um simples
exercício de exploração das possibilidades abertas por cada hipótese, sem
defender necessariamente uma específica solução para o desenvolvimento da
diplomacia do processo integrativo.
A primeira forma de harmonização — a adoção de normas vigorantes em
um dos países do mercado comum como paradigma para os demais — pode-se
ilustrar pela questão da responsabilidade do empresário por acidentes de
consumo. A discussão sobre essa matéria centra-se em duas concepções
desenvolvidas pelo moderno consumerismo, isto é, a superação do princípio da
relatividade contratual e a da culpabilidade.
Vigora no direito brasileiro a regra de responsabilização objetiva do
fabricante, produtor, construtor, importador e prestador de serviços, pelos danos
decorrentes de fornecimento defeituoso (CDC, arts. 12 e 14). Adotou a lei
brasileira, portanto, os dois postulados do consumerismo, de modo que, em
virtude dela, pode o consumidor demandar indenização por acidente de consumo
contra qualquer dos empresários da cadeia de produção e distribuição, mesmo
que não tenha havido contrato com o demandado (superação do princípio da
relatividade contratual) e independente da existência de culpa deste (superação
do princípio da culpabilidade).
Quanto ao primeiro aspecto da questão (a superação do princípio da
relatividade), importa considerar que o consumidor, via de regra, contrata com
um comerciante varejista, e não diretamente com o fabricante. Condicionar o
exercício do direito à indenização ao princípio da relatividade dos contratos, de
modo a decretar a carência de ação judicial promovida contra o fabricante, que
não foi parte no contrato de compra e venda, equivale, muitas vezes, a deixar
sem tutela o consumidor. O varejista, com efeito, nem sempre dispõe dos
recursos para responder pelos prejuízos derivados de acidente de consumo, nem
pode, por outro lado, responder por problemas ocorridos em fases do processo
econômico sobre as quais não teve nenhum controle.
A responsabilização objetiva, por seu turno, é também o modo mais
racional de se disciplinar a matéria, tendo em vista a inevitabilidade do
oferecimento ao mercado de alguns produtos ou serviços defeituosos. Está, sem
dúvida, além da capacidade humana produzir bens e comodidades absolutamente
perfeitos, sem nenhuma impropriedade capaz de causar danos aos seus
consumidores e usuários. Sendo inevitável o fornecimento defeituoso, apesar do
emprego das mais avançadas técnicas de produção e de controle de qualidade, o
consumidor vitimado por acidente de consumo fica sem proteção no sistema da
responsabilidade subjetiva. Se o empresário demonstrar que fez tudo ao alcance
da limitada natureza humana para organizar sua empresa, não se poderá
imputar-lhe culpa e, em decorrência, a causa do acidente somente se poderá
conceituar como caso fortuito ou força maior. No sistema clássico da
responsabilidade subjetiva, a vítima arca com as consequências do evento danoso
com uma tal qualificação jurídica. Já no da responsabilidade objetiva, será o
empresário que deve indenizar a vítima — salvo se ela foi a única responsável
pelos danos que sofreu (CDC, art. 12, § 3º, III) —, na medida em que ele tem os
meios para absorver o valor despendido na indenização como elemento de custo
de sua atividade empresarial.
No direito argentino, o projeto da lei de defesa do consumidor sancionado
pelo Congresso previa a responsabilidade solidária do produtor, fabricante,
importador, distribuidor, fornecedor, vendedor, prestador de serviços ou quem
tenha posto sua marca na mercadoria ou no serviço defeituoso (Lei n. 24.240, art.
40). Essa previsão não se tornou direito vigente, quando da sanção e
promulgação, em 1993, porque foi vetada pelo Presidente da República (ou
“observada”, como se diz na Argentina). O dispositivo em questão, no entanto,
embora viabilizasse o superamento do princípio da relatividade contratual, não
era claramente filiado ao sistema da responsabilidade objetiva, já que
mencionava a exoneração dos empresários que não contribuíram para o evento
danoso, e não fazia referência expressa à irrelevância da culpa para a
responsabilização dos agentes elencados.
Notem-se as razões do veto: “El sistema (do projeto de lei) es más amplio
que los vigentes en países más avanzados en la producción de bienes y servicios
y inclusive del sistema del principal socio de la República Argentina en el
Mercosur, la República Federativa del Brasil, circunstancia ésta que opera como
una clara desventaja comparativa para productores y consumidores”. Isto é, a
preocupação do legislador argentino, ao afastar a solidariedade entre os agentes
econômicos pelos danos derivados de fornecimento defeituoso, foi a de não
impor aos empresários encargos maiores que os derivados da legislação
consumerista brasileira, no contexto da construção do mercado comum.
As razões acima transcritas sugerem duas observações. Primeira,
constata-se que a norma objeto de veto, ao responsabilizar solidariamente os
licenciadores de marca, os distribuidores e comerciantes, ostentava de fato maior
rigor que a vigente no ordenamento brasileiro no aspecto do superamento do
princípio da relatividade; mas a mesma norma era, por outro lado, menos
rigorosa que a brasileira no outro aspecto essencial da matéria, ou seja, no da
definição da natureza — objetiva ou subjetiva — da responsabilidade do
produtor, fabricante, importador e prestador de serviços.
Segunda, a lógica econômica do veto é curiosa, já que, em razão dele, o
industrial argentino, ao operar no mercado brasileiro, acaba tendo maiores
responsabilidades que o industrial brasileiro atuante no mercado argentino. De
fato, o empresário industrial sediado na Argentina submete-se à responsabilidade
da lei brasileira ao colocar no Brasil os seus produtos. Responde, portanto, de
modo objetivo e independente de contrato com a vítima do acidente. Por outro
lado, em razão do veto, o industrial sediado no Brasil não está sujeito, ao colocar
seus produtos e serviços na Argentina, sequer à responsabilidade solidária
referida no dispositivo vetado. O curioso é a extraordinária inversão de valores: o
veto, ao afirmar a intenção de poupar o empresário argentino de uma
desvantagem, acaba por criá-la.
De qualquer modo, a doutrina argentina, com base nos dispositivos da
legislação civil, conclui pela inocuidade do veto. Há, segundo Juan M. Farina,
fundamentos sólidos para sustentar a responsabilidade solidária ou concorrente do
empresário, pelos acidentes de consumo, com base na interpretação dos
dispositivos genéricos da lei tutelar dos consumidores, que imputam obrigações a
todos os que intervêm na cadeia de produção ou circulação de mercadorias,
sendo que tais dispositivos não formulam nem permitem formular exceções
(1995:330/331 e 346/347). Por outro lado, o mesmo autor acentua que ninguém
atualmente interpreta até o direito civil, concluindo pela imposição ao
consumidor do ônus de prova de culpa do fabricante. Isto é, para parte da
doutrina argentina, independentemente de expressa previsão legal, deve-se
observar a presunção de culpa do empresário pelos danos derivados de acidente
de consumo, o que seria, na avaliação de Farina, bastante próximo da
responsabilidade objetiva (1995:333). Para outras concepções doutrinárias, seria
objetiva a responsabilidade do empresário, mesmo se considerado apenas o
disposto no Código Civil argentino (art. 1.113), diploma aplicável em vista do veto
à lei tutelar dos consumidores (Ferrey ra-Romera, 1994:109/110 e 188). De
qualquer forma, a questão da solidariedade entre os agentes econômicos restou
superada, em 1998, com a edição da Lei n. 24.999, que a prevê de modo
expresso. Permanece, contudo, a da natureza subjetiva ou objetiva da
responsabilidade dos empresários, pelo defeito em produtos ou serviços, matéria
sobre a qual não há específico e claro dispositivo legal.
Em suma, os direitos desses dois países participantes do processo
integrativo do Mercosul, o Brasil e a Argentina, apresentam uma diferença
substancial na disciplina dos acidentes de consumo. Essa diferença não pode
subsistir, uma vez que a responsabilização objetiva do empresário pelos danos
derivados de fornecimento defeituoso é típica norma de direito-custo. A
harmonização aponta, nesse caso, para a mudança no direito positivo argentino,
no sentido de também ele vir a incorporar a regra da responsabilidade sem culpa.
Se o empresário pode antecipar, em termos relativos que seja, as repercussões
dos acidentes provocados por seus produtos ou serviços, para fins de considerálas na composição de seus preços, então não há argumento capaz de contestar a
racionalidade do sistema de responsabilidade objetiva por acidentes de consumo.
Se fosse inversa a situação — se, por hipótese, o direito brasileiro adotasse o
sistema subjetivo, e o argentino, o objetivo —, a racionalidade desse último
nortearia do mesmo modo a harmonização, isto é, pela mudança da ordem
jurídica filiada à noção de culpa como fonte da responsabilidade.
A
primeira
forma
de
harmonização do direito-custo é
a adoção, por um país, do
direito vigente em outro do
mesmo
bloco
regional
econômico. A superação do
princípio da culpabilidade e do
da
relatividade,
na
responsabilidade por acidentes
de
consumo,
no
direito
argentino, é exemplo de como se
poderia viabilizá-la.
A segunda forma de harmonização do direito empresarial é a alteração do
direito vigente nos países participantes. Se na hipótese anterior, o direito de um
dos estados serve de modelo para o dos demais, na de agora, o modelo reside no
direito de países não participantes, ou num paradigma meramente conceitual,
abstrato. O tema que escolho para ilustrar essa forma de harmonização é de
cunho consumerista, também. Trata-se da definição das garantias do empresário
pelos vícios em produtos.
O direito brasileiro optou, na disciplina da matéria, por excluir a
possibilidade de exoneração do empresário por alguns vícios. Fixou claramente a
nulidade de cláusula limitativa da responsabilidade dos fornecedores (válida
apenas na hipótese de consumidor pessoa jurídica: CDC, art. 51, I) e estipulou
que as garantias contratuais serão sempre complementares à legal (CDC, art.
50). Não há margem, no direito consumerista vigente no Brasil, para o
empresário ressalvar certas garantias. Sempre terá o consumidor, diante de
qualquer vício de qualidade no produto, o direito de optar pela substituição deste,
redução proporcional do preço ou pela rescisão do contrato, cabendo ao
fornecedor apenas a faculdade de tentar sanar o problema, quando não se trate
de produto essencial ao consumidor (CDC, art. 18, §§ 1º e 3º).
Compare-se, então, a sistemática brasileira com a adotada pelo direito
norte-americano. Lá, o empresário pode limitar a extensão de sua
responsabilidade, exigindo-se apenas que o faça de modo expresso, para não
incorrer nas chamadas garantias implícitas referidas no Uniform Commercial
Code. Desse modo, não há predeterminação pelo direito positivo da extensão das
garantias titularizadas pelo consumidor na aquisição de bens; o que se lhe
assegura apenas é o pleno conhecimento das obrigações que o empresário se
propõe assumir, abrindo margem inclusive para negociações entre as partes.
Sobre o assunto, vigora ainda no direito norte-americano o Magnuson-Moss
Warranty Act, de 1975, um disclosure statute, que define os requisitos do termo de
garantia nas vendas de bens, sem o tornar obrigatório, mas assegurando, no caso
de sua elaboração, a transparência na veiculação de informações aos
consumidores (cf. Epstein-Nickles, 1976:282/289). Assim, enquanto no Brasil o
legislador se entendeu forçado a limitar bastante a margem de negociação nas
relações de consumo, nos Estados Unidos o consumidor pôde ser tratado de
forma diversa. O fornecedor norte-americano que não confere garantia, ou as
limita, apenas tem o dever de esclarecer suficientemente os consumidores dessa
circunstância, para que eles possam tomar a decisão que melhor lhes aprouver,
munidos de todas as informações indispensáveis. Os produtos não garantidos ou
garantidos com restrições custam (ou devem custar) menos, e quem os adquire
conhece (ou deve ter os meios para conhecer) a razão do preço reduzido. Em
consequência, os consumidores podem nortear suas opções, selecionando os
riscos que tomarão para si e os que repartirão com os empresários fornecedores,
para pagarem mais ou menos em função da alternativa seguida. Quer dizer, se o
consumidor prefere pagar um preço menor pelo produto menos garantido e
correr o risco de o perder, caso um sério vício se manifeste, ele tem essa opção,
comparando o que o mercado oferece.
Na sistemática adotada pelo direito brasileiro, o legislador substitui o
consumidor na aferição da oportunidade de aderir ou não (e em que medida) à
socialização dos riscos inerentes à atividade econômica de produção de bens.
Desse modo, ao atribuir ao empresário responsabilidade total pela qualidade do
produto, o direito acaba, de modo indireto, impondo aos consumidores todos os
encargos que essa opção legislativa forçosamente representa.
No direito argentino, a questão foi, de um certo modo, suscitada no veto
imposto pelo Presidente ao art. 11 da Lei n. 24.240, fundado nas seguintes razões:
“la garantía legal proy ectada en los arts. 11 y 13 cercenaría la libertad del
oferente de poner en el mercado productos con o sin garantía, y la del
consumidor de elegir unos u otros, y significaria como tal limitar el acceso al
mercado de ciertos productos, en general de bajo costo o de uso rápidamente
descartable o de rezago, en prejuicio del consumidor. Que dicha garantía
constituy e además un requisito legal no exigido por la legislación de defensa al
consumidor de los países más industrializados, tales como las de la Comunidad
Económica europea, Japón o los Estados Unidos de América, y operaría en ese
sentido como una desventaja comparativa al desarollo industrial de bienes de
consumo durable y del mercado de tales bienes, en especial los de bajo costo, en
la República Argentina”.
A doutrina, contudo, apontando as limitações do veto — o qual, a rigor,
apenas fulminou o prazo de seis meses para a vigência da garantia —, conclui
pela impossibilidade de o empresário se exonerar de responsabilidade por vícios
nos produtos, exceto no caso de venda de bens usados, reconstituídos ou com
defeito (se tal circunstância for claramente comunicada aos consumidores: Lei n.
24.240, art. 9º) (Farina, 1995:162/163). Em suma, embora pretendida pelo ato
presidencial, a limitação das garantias pelo fornecedor está afastada do direito
argentino em razão da vigência de outros dispositivos legais encontrados na
própria lei tutelar dos consumidores (arts. 3º e 37) e nos Códigos Civil e do
Comércio.
Os direitos brasileiro e argentino, desse modo, são igualmente
insatisfatórios no tratamento da matéria relativa à responsabilidade por vícios de
qualidade em produto, no que diz respeito à impossibilidade de o empresário
ressalvar determinadas garantias. Poder-se-ia, assim, considerar já harmonizado
esse particular aspecto do direito-custo. O processo de integração, no entanto,
pode servir também à revisão do direito dos países participantes do Mercosul, ao
representar, por assim dizer, uma oportunidade ímpar para a reflexão sobre a
melhor sistemática de disciplina jurídica dos temas em foco, inclusive com a
atenção voltada à experiência de outros países não participantes. No exemplo
aqui apresentado, a harmonização poderia se processar mediante a alteração do
direito aplicável ao assunto tanto no Brasil como na Argentina, aprimorando-o.
A
segunda
forma
de
harmonização do direito se
concretiza pela mudança do
direito vigente nos países
participantes, para adoção de
normas inspiradas no direito de
um país não participante. O
direito consumerista acerca de
qualidade dos produtos e
serviços, vigente no Brasil e na
Argentina, poderia ser alterado
para a introdução de simples
“regras
de
transparência”,
possibilitando a oferta ao
mercado
consumidor
de
produtos ou serviços com
qualidade
e
preços
proporcionais.
A terceira e última forma de harmonização consiste na referência ao
direito vigente em um dos países participantes na interpretação de disposição
legal ou normativa de outro país. Essa forma prescinde de alterações no direito
positivo e viabiliza a harmonização reclamada pelo processo integrativo, no
momento da aplicação do direito positivo, e não no de sua elaboração.
Exemplifico com a questão da responsabilidade dos empresários na venda de
produtos imperfeitos, quando a imperfeição é informada ao consumidor.
Produtos imperfeitos existem e — tudo indica — sempre existirão. A
falibilidade ínsita ao ser humano torna vãos os melhores esforços de busca da
perfeição. Por mais que o empresário se empenhe em dotar a empresa dos mais
desenvolvidos equipamentos e processos de produção, aprimore o máximo seu
controle de qualidade e invista em treinamento, parte dos produtos que seguirão
de sua indústria para o mercado apresentará impropriedades. É inevitável. Pois
bem, há defeitos que, por sua gravidade ou pelas características do produto,
podem lesar enormemente os consumidores. Eles não podem ser oferecidos ao
mercado e cabe ao empresário inutilizá-los, arcando com os prejuízos. Pense-se
na pílula anticoncepcional de composição indevida, sem eficácia na prevenção
da gravidez. Deve esse produto ser descartado, simplesmente. Mas há, de outro
lado, produtos imperfeitos que não oferecem riscos à saúde ou segurança do
consumidor. São vícios, no mais das vezes, pequenos e de importância
meramente estética. É o caso do sofá mal-acabado, da roupa sem caimento
ideal, do eletrodoméstico com a pintura arranhada. Embora imperfeitos, tais
produtos podem interessar a consumidores de menor poder aquisitivo, desde que
a preço compensatório.
A responsabilidade do fornecedor desses produtos imperfeitos, vendidos
com plena ciência do consumidor acerca da imperfeição e mediante pagamento
de preço menor, não pode ser a mesma que tem ao vender igual produto sem
imperfeição. Isto é, ele não responde pelos vícios informados que justificaram a
redução do preço. Pelos demais vícios (imperfeições que não trazem prejuízos
de relevo ao consumidor), e pelos defeitos (imperfeições que geram danos ao
consumidor), terá evidentemente responsabilidade integral.
No Código brasileiro de defesa do consumidor não existe nenhuma regra
expressa no sentido de possibilitar a limitação da responsabilidade na venda de
produtos ostensivamente viciados com abatimento no preço. Mas, no direito
argentino, como referido acima no tratamento da segunda forma de
harmonização, contempla a lei a ressalva de responsabilidade na hipótese se a
existência do vício (lá, fala-se “defeito”) é claramente comunicada aos
consumidores. Dessa maneira, na fundamentação de que, no direito
consumerista brasileiro, o fornecedor de produtos viciados não responde pelos
vícios que ostensivamente informar ao consumidor, na prática de abatimento de
preço, é plenamente cabível invocar-se o direito argentino como um argumento
a mais. Essa é também uma forma de harmonização jurídica própria do
processo de integração regional, cuja característica mais relevante é o campo
em que se desenvolve: o doutrinário e o jurisprudencial.
A terceira e última forma de
harmonização independe de
mudança no direito positivo.
Opera-se por intermédio da
doutrina e jurisprudência, com o
aproveitamento, na interpretação
das leis de um dos países
participantes, da experiência
jurídica de outro país do bloco.
Por exemplo, mesmo não
existindo norma expressa no
direito brasileiro sobre a
exoneração de responsabilidade
do empresário pelos vícios que
ostensivamente informa aos
consumidores, em venda a preço
menor, é cabível invocar--se a
previsão constante do direito
positivo argentino no exame da
matéria.
Dois outros exemplos de harmonização via interpretação se colhem do
direito uruguaio. Lá, a ley que regula las relaciones de consumo, de 2000,
contempla normas que não se encontram no Código de Defesa do Consumidor,
mas que podem ser consideradas na aplicação deste. No Uruguai, o legislador
dispôs expressamente que não se considera consumidor “aquele que, sem
constituir-se em destinatário final, adquire, armazena, utiliza ou consome
produtos ou serviços com o fim de integrá-los em processos de produção,
transformação ou comercialização”. A previsão do direito positivo de outro país
integrante do mesmo bloco regional que o Brasil pode servir ao aclaramento da
discussão sobre a aplicação ou não do Código de Defesa do Consumidor em
favor de empresários, questão controvertida na doutrina e jurisprudência
nacionais (Cap. 42, item 2). Como dito de modo expresso na lei uruguaia,
também no Brasil não se deve considerar consumidor o empresário que adquire,
armazena, utiliza ou consome produtos ou serviços em sua atividade econômica,
reinserindo-os física ou economicamente no mercado. O segundo exemplo diz
respeito à publicidade comparativa, disciplinada no direito consumerista do
Uruguai, mas não no brasileiro (Cap. 9, item 11). Pela harmonização via
interpretação, pode-se considerar que, também entre nós, a “publicidade
comparativa é permitida”, se atendidos, na comparação, os requisitos da
objetividade e possibilidade de comprovação, conforme previsto no art. 25 da lei
consumerista uruguaia.
Capítulo 4
O EMPRESÁRIO
1. INTRODUÇÃO
Empresário é a pessoa que toma a iniciativa de organizar uma atividade
econômica de produção ou circulação de bens ou serviços. Essa pessoa pode ser
tanto a física, que emprega seu dinheiro e organiza a empresa individualmente,
como a jurídica, nascida da união de esforços de seus integrantes. O direito
positivo brasileiro, em diversas passagens, ainda organiza a disciplina normativa
da atividade empresarial, a partir da figura da pessoa física. O Código Civil e a lei
de falências são exemplos. O certo, no entanto, é que as atividades econômicas
de alguma relevância — mesmo as de pequeno porte — são desenvolvidas em
sua maioria por pessoas jurídicas, por sociedades empresárias. O mais adequado,
por evidente, seria o ajuste entre o texto legal e a realidade que se pretende
regular, de modo que a disciplina geral da empresa (isto é, do exercício da
atividade empresarial) fosse a relativa ao empresário pessoa jurídica,
reservando-se algumas poucas disposições especiais ao empresário pessoa física.
Nem sempre, contudo, os elaboradores de textos de normas jurídicas possuem
essa preocupação.
Por outro lado, em razão dessa opção — considerar ainda a pessoa física o
núcleo conceitual das normas que edita sobre a atividade empresarial —, a lei
acaba dando ensejo a confusões entre o empresário pessoa jurídica e os sócios
desta. A confusão aumenta, inclusive, pela distância existente entre os conceitos
técnicos do direito e a linguagem natural. A pessoa jurídica empresária é
cotidianamente denominada “empresa”, e os seus sócios são chamados
“empresários”. Em termos técnicos, contudo, empresa é a atividade, e não a
pessoa que a explora; e empresário não é o sócio da sociedade empresarial, mas
a própria sociedade. É necessário, assim, acentuar, de modo enfático, que o
integrante de uma sociedade empresária (o sócio) não é empresário; não está,
por conseguinte, sujeito às normas que definem os direitos e deveres do
empresário. Claro que o direito também disciplina a situação do sócio,
garantindo-lhe direitos e imputando-lhe responsabilidades em razão da
exploração da atividade empresarial pela sociedade de que faz parte. Mas não
são os direitos e as responsabilidades do empresário que cabem à pessoa jurídica;
são outros, reservados pela lei para os que se encontram na condição de sócio.
A empresa pode ser explorada
por uma pessoa física ou
jurídica. No primeiro caso, o
exercente
da
atividade
econômica
se
chama
empresário individual; no
segundo,
sociedade
empresária. Como é a pessoa
jurídica
que
explora
a
atividade empresarial, não é
correto
chamar
de
“empresário” o sócio da
sociedade empresária.
Neste capítulo — e, de resto, em todo o Curso —, o exame das questões
em geral terá por foco o empresário pessoa jurídica. Não se tratará, senão em
pouquíssimas passagens, do exercente individual da atividade econômica de
produção ou circulação de bens ou serviços, porque esta figura, na verdade, não
possui presença relevante na economia. Ao mencionar “sociedade empresária”,
ou simplesmente “empresário”, a referência será à pessoa jurídica que explora
atividade econômica, e não aos seus sócios. A expressão “empresa” designará a
atividade, e nunca a sociedade.
2. SOCIEDADE EMPRESÁRIA
Como é a própria pessoa jurídica a empresária — e não os seus sócios —,
o correto é falar-se “sociedade empresária”, e não “sociedade empresarial” (isto
é, “de empresários”). A sociedade empresária assume, hoje em dia, duas das
cinco formas admitidas pelo direito comercial em vigor: a de uma sociedade por
quotas de responsabilidade limitada (Ltda.) ou a de uma sociesdade anônima
(S/A). O estudo desses tipos societários está reservado para o volume 2 do Curso,
mas, desde já, alguns conceitos precisam ser apresentados, por razões didáticas.
As
pessoas
jurídicas
empresárias adotam a forma de
sociedade limitada (Ltda.) ou
de sociedade anônima (S/A).
A sociedade limitada, normalmente relacionada à exploração de
atividades econômicas de pequeno e médio porte, é constituída por um contrato
celebrado entre os sócios. O seu ato constitutivo é, assim, o contrato social,
instrumento que eles assinam para ajustarem os seus interesses recíprocos. Já a
sociedade anônima — também chamada “companhia” — se relaciona
normalmente à exploração de grandes atividades econômicas, e o documento
básico de disciplina das relações entre os sócios se denomina estatuto.
O capital social representa, grosso modo, o montante de recursos que os
sócios disponibilizam para a constituição da sociedade. De fato, para existir e dar
início às suas atividades, a pessoa jurídica necessita de dinheiro ou bens, que são
providenciados pelos que a constituem. Não se confunde o capital social com o
patrimônio social. Este último é o conjunto de bens e direitos de titularidade da
sociedade (ou seja, tudo que é de sua propriedade). Note-se que, no exato
momento da sua constituição, a sociedade tem em seu patrimônio apenas os
recursos inicialmente fornecidos pelos sócios, mas, se o negócio que ela explora
revelar-se frutífero, ocorrerá a ampliação desses recursos iniciais; caso
contrário, a sociedade acabará perdendo uma parte ou a totalidade de tais
recursos, e seu patrimônio será menor que o capital social — podendo vir a
ocorrer, inclusive, a falência.
Em contrapartida à contribuição que o sócio dá ao capital social, é-lhe
atribuída uma participação societária. Se a sociedade é limitada, esta
participação se chama “quota” (ou “cota”); se anônima, “ação” (motivo pelo
qual o sócio da S/A é chamado também acionista). A participação societária é
bem integrante do patrimônio de cada sócio, que pode aliená-la ou onerá-la, se
atendidas determinadas condições. A quota ou ação não pertencem à sociedade.
Se o sócio possui uma dívida, o credor poderá, salvo em alguns casos específicos,
executá-la sobre a participação societária que ele titulariza; já o credor da
sociedade tem como garantia o patrimônio social, e nunca as partes
representativas do capital social.
As decisões dos sócios são tomadas pela maioria, computando-se esta em
função da participação societária de cada um. Assim, um sócio de sociedade
limitada que titularize mais da metade do capital social compõe, sozinho, a
maioria societária. Ele poderá decidir sozinho pela sociedade, mesmo contra a
vontade dos demais sócios, exceto nas hipóteses em que a lei estabelecer quorum
qualificado para a deliberação. Na sociedade anônima, há ações que conferem
aos acionistas o direito de voto no principal órgão deliberativo de sua estrutura, a
assembleia geral, e há ações que não conferem esse direito. O sócio titular da
maioria das ações com direito a voto é normalmente o acionista controlador da
companhia.
A sociedade limitada tem como representante legal o administrador, que é
escolhido e substituído pela maioria societária qualificada (unanimidade, três
quartos, dois terços ou mais da metade do capital social). Nada impede, por outro
lado, que a administração seja atribuída a mais de uma pessoa, que atuarão em
conjunto ou isoladamente, segundo o previsto no contrato social. Já na sociedade
anônima, a representação legal cabe ao diretor, eleito em assembleia geral (ou
pelo Conselho de Administração da companhia, se este órgão existir).Tanto na
limitada como na anônima o administrador não precisa ser sócio.
3. OBRIGAÇÕES GERAIS DOS EMPRESÁRIOS
Os empresários estão sujeitos, em termos gerais, às seguintes obrigações:
a) registrar-se na Junta Comercial antes de dar início à exploração de sua
atividade; b) manter escrituração regular de seus negócios; c) levantar
demonstrações contábeis periódicas.
São obrigações de natureza formal, mas cujo desatendimento gera
consequências sérias — em algumas hipóteses, inclusive, penais. A razão de ser
dessas formalidades, que o direito exige dos exercentes de atividade empresarial,
diz respeito ao controle da própria atividade, que interessa não apenas aos sócios
do empreendimento econômico, mas também aos seus credores e parceiros, ao
fisco e, em certa medida, à própria comunidade. O empresário que não cumpre
suas obrigações gerais — o empresário irregular — simplesmente não consegue
entabular e desenvolver negócios com empresários regulares, vender para a
Administração Pública, contrair empréstimos bancários, requerer a recuperação
judicial etc. Sua empresa será informal, clandestina e sonegadora de tributos.
4. REGISTRO DE EMPRESAS
O Código Comercial, em 1850, criou os “Tribunais do Comércio”, órgãos
que exerciam tanto a jurisdição em matéria comercial, julgando conflitos que
envolviam comerciantes ou a prática de atos de comércio, como também as
funções administrativas de natureza registrária. O registro do comércio era
atribuição de uma repartição daqueles Tribunais, denominada “Junta
Comercial”, perante a qual os comerciantes deviam proceder à sua matrícula e
ao depósito de outros documentos mencionados em lei.
Os “Tribunais do Comércio”, contudo, com competências de natureza
jurisdicional e administrativa, acabavam representando um certo anacronismo.
A Constituição Imperial, de 1824, já estabelecia a separação dos poderes
executivo e judicial, e os Tribunais do Comércio ostentavam uma ambiguidade
difícil de se compatibilizar com a estrutura constitucional. Seu perfil, assim,
lembrava mais a figura das antigas corporações de ofício dos comerciantes
europeus do que uma repartição do estado. Em 1875, os Tribunais do Comércio
foram extintos, e suas atribuições jurisdicionais transferidas para a competência
dos juízes de direito. As atribuições administrativas permaneceram a cargo de
sete Juntas Comerciais (sediadas no Rio de Janeiro, Belém, São Luís, Fortaleza,
Recife, Salvador e Porto Alegre) e quatorze Inspetorias, organizadas em 1876.
Atualmente, o registro público de interesse para os empresários leva a
denominação de “registro de empresas mercantis e atividades afins”, e está
disciplinado pela Lei n. 8.934/94, e pelo Dec. n. 1.800/96. Existe uma Junta
Comercial em cada unidade federativa, ou seja, uma em cada Estado e uma no
Distrito Federal.
As sociedades empresárias,
independentemente do objeto a
que se dedicam, devem se
registrar na Junta Comercial
do Estado em que estão
sediadas.
A mais importante inovação da lei de 1994 foi a ampliação do âmbito do
registro. Até então, fora as companhias (que se consideravam mercantis
independentemente de seu objeto: art. 2º, § 1º, da LSA), apenas as sociedades
limitadas dedicadas à exploração de atividade mercantil, segundo a teoria dos
atos de comércio, podiam ter seus atos constitutivos registrados na Junta
Comercial. As demais limitadas, com objeto social relacionado a atividade civil,
tinham negado o pedido de registro neste órgão e deviam buscar os Registros
Civis de Pessoas Jurídicas (RCPJ). Era, por exemplo, o caso das agências de
propaganda e de outras empresas prestadoras de serviços, que nem sempre
conseguiam fazer-se registrar na Junta. A partir da Lei n. 8.934/94, qualquer
sociedade com finalidade econômica, independentemente de seu objeto, podia
registrar-se na Junta Comercial. Com a entrada em vigor do Código Civil, o
âmbito do registro pelas Juntas Comerciais voltou a se restringir (art. 998).
Apenas as sociedades empresárias devem ser atualmente registradas nas Juntas.
As sociedades simples são registradas no Registro Civil de Pessoas Jurídicas e as
voltadas à prestação de serviços de advocacia devem ter seus atos constitutivos
levados à Ordem dos Advogados do Brasil — OAB (Lei n. 8.906/94, art. 15, § 1º).
4.1. Órgãos do Registro de Empresas
O registro de empresas encontra-se a cargo do Departamento Nacional do
Registro do Comércio — DNRC, e das Juntas Comerciais. A denominação desses
órgãos, estranhamente, não foi compatibilizada com o novo conceito de
“empresa”, adotado pela legislação de 1994. Apenas o apego à tradição explica a
manutenção de denominações criadas em 1961 (a do DNRC), e no século
passado (a das Juntas).
O DNRC é órgão federal, integrante do Ministério do Desenvolvimento,
Indústria e Comércio Exterior. Suas atribuições não são de execução do registro
de empresa (nenhuma sociedade terá os seus atos constitutivos depositados neste
órgão, por exemplo), mas de normatização, disciplina, supervisão e controle
deste registro. Nos termos do art. 4º da Lei n. 8.934/94, é de sua competência a
supervisão e coordenação dos atos praticados pelas Juntas Comerciais, o
estabelecimento e a consolidação de normas ou diretrizes gerais sobre o registro
de empresas, a solução de dúvidas sobre a matéria — mediante a edição de
instruções, ou de resposta às consultas das Juntas —, bem como a fiscalização
destas e a atuação supletiva, nos casos de deficiência de serviço. Cabe-lhe,
também, organizar e manter o Cadastro Nacional de Empresas Mercantis,
preparar os processos de autorização para nacionalização ou instalação no Brasil
de empresa estrangeira (se a autoridade competente para a sua apreciação é o
Ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior), e, enfim,
desenvolver estudos e patrocinar reuniões ou publicações, para o aprimoramento
do registro de empresas.
Embora tenha sido investido nas funções de órgão central disciplinador,
fiscalizador e supervisor do registro de empresas, o DNRC não dispõe de
instrumentos de intervenção nas Juntas Comerciais, caso não adotem suas
diretrizes ou deixem de acatar recomendações de correção. A lei estabelece,
apenas, que o DNRC pode representar às autoridades competentes (o
Governador do Estado ou do Distrito Federal, o Ministério Público estadual e
outros).
As Juntas Comerciais, por sua vez, têm funções executivas. Cabe--lhes,
em essência, a prática dos atos registrários, como a matrícula de leiloeiro, o
arquivamento de sociedade, a autenticação de livros, e outros. Além disso, é de
sua competência a expedição da carteira de exercício profissional, o
assentamento de usos e práticas dos comerciantes e a habilitação e nomeação de
tradutores públicos e intérpretes.
Os órgãos do registro de
empresas são, em nível federal,
o Departamento Nacional do
Registro do Comércio —
DNRC, e, em nível estadual, as
Juntas Comerciais. Ao primeiro
cabem funções de disciplina,
supervisão e fiscalização do
registro de empresas; às
Juntas, compete executá-lo.
A vinculação hierárquica a que se submetem as Juntas é de natureza
híbrida. Em matéria de direito comercial e atinente ao registro de comércio, ela
se encontra sujeita ao DNRC, órgão federal; nas demais matérias (assim, o
direito administrativo e financeiro), o vínculo de subordinação se estabelece com
o governo da unidade federativa que integra. Assim, do mesmo modo que ao
DNRC não cabe, por exemplo, fixar orientações acerca da execução
orçamentária da Junta, também não compete ao Governador do Estado, ou do
Distrito Federal, baixar decreto dispondo sobre as cláusulas indispensáveis ao
registro do contrato social. A vinculação hierárquica de natureza híbrida se
manifesta, igualmente, na hipótese de interposição de recurso administrativo,
dirigido ao Ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (esfera federal),
contra decisões do Plenário da Junta Comercial (esfera estadual), com base no
art. 44, III, da Lei n. 8.934/94. Também deve ser lembrado que da duplicidade de
vínculos hierárquicos decorre, segundo algumas decisões judiciais, a
competência da Justiça Federal para apreciar a validade dos atos da Junta,
relacionados ao direito comercial. Se o registro de uma sociedade limitada é, por
exemplo, negado, a pretexto de que o contrato social não atende aos requisitos da
lei, a discussão sobre a pertinência, ou não, do indeferimento caberia ser feita, de
acordo com esse entendimento, perante juízes federais, porque a Junta, no caso,
atuou como órgão executante das normas emanadas pelo DNRC, integrante da
estrutura administrativa da União. Já na hipótese de a Junta, por exemplo, ter
inabilitado um licitante, na concorrência pública para a construção de sua sede, o
conhecimento da matéria seria da competência do juiz estadual, tendo em vista
que o objeto da lide, agora, é ato administrativo.
A Junta se estrutura de acordo com a legislação estadual respectiva. Na
maioria das unidades federativas, tem-se preferido revesti-la da natureza de
autarquia, com autonomia administrativa e financeira; noutras, ela é apenas um
órgão da administração direta, normalmente integrante da Secretaria da Justiça.
Em qualquer caso, ela deve possuir, por força da legislação federal, os seguintes
órgãos: a Presidência, o Plenário, as Turmas, a Secretaria-Geral e a
Procuradoria. A Presidência é responsável pela direção administrativa da Junta,
bem como pela sua representação. O Plenário é composto por vogais (no
mínimo 11 e no máximo 23: Lei n. 10.194/2001), que representam empresários,
advogados, economistas, contadores e a administração pública. Trata-se do órgão
deliberativo de maior hierarquia, na estrutura da Junta. Os membros do Plenário
dividem-se em Turmas, compostas por 3 vogais cada, que também são órgãos
deliberativos. Por fim, a Secretaria-Geral executa os atos de registro e
desempenha tarefas de suporte administrativo; e a Procuradoria exerce funções
de consultoria, advocacia judicial nos feitos de interesse da Junta, e de
fiscalização da aplicação da lei, regulamentos e normas.
4.2. Atos do Registro de Empresas
São três os atos compreendidos pelo registro de empresas: a matrícula, o
arquivamento e a autenticação (Lei n. 8.934/94, art. 32). A matrícula e seu
cancelamento dizem respeito a alguns profissionais cuja atividade é, muito por
tradição, sujeita ao controle das Juntas. São os leiloeiros, tradutores públicos e
intérpretes comerciais, trapicheiros e administradores de armazéns-gerais. Estes
agentes apenas exercem suas atividades de forma regular, quando matriculados
no registro de empresas.
O arquivamento se refere à grande generalidade dos atos levados ao
registro de empresas. Assim, os de constituição, alteração, dissolução e extinção
de sociedades empresárias são arquivados na Junta. Também serão objeto de
arquivamento a firma individual (com que o empresário pessoa física explora
sua empresa), os atos relativos a consórcio e grupo de sociedades, as autorizações
de empresas estrangeiras e as declarações de microempresa. Do mesmo modo,
será arquivado qualquer documento que, por lei, deva ser registrado pela Junta
Comercial, como, por exemplo, as atas de assembleias gerais de sociedades
anônimas. Esses documentos todos, de registro obrigatório, só produzem efeitos
jurídicos válidos, após a formalidade do arquivamento.
Não se devem omitir, por fim, os documentos que não estão sujeitos a
registro obrigatório, mas são do interesse de empresários ou das empresas, como
as procurações com a cláusula ad negotia. Se o empresário desejar, para
conferir maior segurança às suas relações jurídicas e dotar certos atos de maior
publicidade, ele poderá registrar esses documentos na Junta. O ato registrário
será, neste caso também, o arquivamento. Porém, como o registro desses
documentos é meramente facultativo, não pode ser tomado como condição de
validade ou eficácia do negócio jurídico a que correspondem.
O terceiro ato do registro de empresas é a autenticação, relacionada aos
instrumentos de escrituração (livros contábeis, fichas, balanços e outras
demonstrações financeiras etc.) impostos por lei aos empresários em geral.
Os atos do registro de
empresas praticados pelas
Juntas Comerciais são a
matrícula, o arquivamento e a
autenticação.
Os atos do registro de empresas têm alcance formal, apenas. Quer dizer, a
Junta não aprecia o mérito do ato praticado, mas exclusivamente a observância
das formalidades exigidas pela lei, pelo decreto regulamentar e pelas instruções
do DNRC. Assim, se a maioria dos sócios de uma sociedade limitada resolve
expulsar um minoritário que está concorrendo com a própria sociedade, não
caberá à Junta verificar se é verdadeiro ou não o fato ensejador da expulsão. Sua
competência se exaure na apreciação dos requisitos formais de validade e
eficácia do instrumento — por exemplo, se a alteração contratual está assinada
pela maioria societária, se o contrato social não contém cláusula restritiva de sua
alteração apenas com a assinatura da maioria, se consta a qualificação completa
dos sócios etc. Se ela extrapolar suas atribuições, indeferindo o arquivamento
pelo mérito, será cabível mandado de segurança contra o despacho denegatório
de registro, em favor dos sócios majoritários. Da mesma forma, caberá, em
favor do minoritário expulso, a revisão judicial do despacho concessivo, se a
Junta registrar o ato, a despeito da inobservância de determinada formalidade.
4.3. Procedimentos e Regimes
Os atos sujeitos a arquivamento devem ser encaminhados à Junta
Comercial nos 30 dias seguintes à sua assinatura (salvo no caso de ata de
assembleia de sócio na sociedade limitada, que deve ser encaminhada no prazo
de 20 dias — CC, art. 1.075, § 2º). Por exemplo, a alteração do contrato social de
uma sociedade limitada, que admita um novo sócio, deve ser entregue ao
protocolo da Junta dentro daquele prazo. Nesta hipótese, os efeitos do registro se
produzirão a partir da data da assinatura do documento. Ou seja, o sócio será
considerado participante da sociedade desde a data constante da alteração
contratual, embora o arquivamento possua data posterior. Se o prazo da lei,
contudo, não for observado, o arquivamento só produzirá efeitos a partir do ato
administrativo concessivo do registro, que será proferido pelo vogal ou pelo
funcionário da Junta. Nesta última hipótese, o ingressante somente será
considerado legalmente sócio, a partir da data do arquivamento, mesmo que
posterior à data em que havia contratado sua entrada na sociedade.
Como se afirmou acima, a Junta tem competência apenas para apreciar a
forma do ato submetido ao seu exame, para fins de arquivamento. Se constatar a
existência de vício formal sanável, a Junta Comercial concederá 30 dias para que
o interessado corrija o ato (na linguagem da lei, o “processo será colocado em
exigência”). Prevê a lei que, ultrapassado esse prazo, o saneamento do vício será
tratado como novo pedido, incidindo as taxas correspondentes (art. 40, § 3º). Se a
parte não se conformar com a exigência, poderá, nos mesmos 30 dias,
apresentar um pedido de reconsideração, hipótese em que se opera a interrupção
do prazo para o seu atendimento (o Dec. n. 1.800/96, no art. 65, § 2º, fala,
incorretamente, em suspensão). Mantida a decisão que determina o saneamento
do vício, será ainda interponível recurso ao Plenário e, na sequência, ao Ministro
do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. O julgamento deste último
encerra a instância administrativa, restando ao interessado apenas a via judicial
para discussão da validade da exigência.
Se insanável o vício constatado pela Junta, será o arquivamento indeferido,
podendo o interessado valer-se dos mesmos pedidos revisionais e recursos
administrativos acima. Insanável é o vício que compromete um requisito de
validade do ato submetido a exame. Por exemplo, um contrato de sociedade
celebrado por pessoa incapaz, sem a devida assistência ou representação legal.
Distingue-se dos vícios sanáveis, na medida em que estes últimos não
comprometem a validade do ato, mas apenas a sua eficácia ou registrabilidade.
Exemplo de vício sanável é o de contrato de sociedade a que falte cláusula
declaratória do objeto. A única consequência da distinção entre uma e outra
categoria de vício está relacionada ao pagamento das taxas de serviço, na
hipótese de reapresentação do documento, nos 30 dias seguintes ao
indeferimento. Se a Junta considerar insanável vício que, na verdade, não o é, o
interessado que reapresentar o instrumento no prazo legal poderá exigir a
dispensa do pagamento de novas taxas.
A matrícula, o arquivamento e a autenticação de atos pela Junta
Comercial submetem-se a dois regimes distintos: de um lado, o regime de
decisão colegiada; de outro, o de decisão singular. Trata-se de um sistema
desburocratizante, implantado, com outras denominações (regime ordinário e
sumário, respectivamente), no então registro do comércio, em 1981. O regime de
decisão colegiada é reservado para a tramitação de atos de maior complexidade,
enquanto o de decisão singular se observa no registro dos menos complexos. Em
termos precisos, submete-se à decisão colegiada das Turmas o arquivamento de
atos relacionados às sociedades anônimas, consórcios e grupos de sociedade,
bem como os pertinentes às operações de transformação, incorporação, fusão e
cisão (Lei n. 8.934/94, art. 41, I). Submete-se, por outro lado, à decisão colegiada
em Plenário o julgamento de recursos administrativos interpostos contra atos
praticados pelos demais órgãos da Junta (Lei n. 8.934/94, arts. 19 e 41, II). Ao seu
turno, o regime de decisão singular é observado no registro de todos os demais
atos, como a alteração de contrato de sociedade limitada, a matrícula de
leiloeiro, a autenticação do livro de registro de duplicatas etc. Neste caso, a
análise do atendimento às formalidades legais é feita individualmente por um
vogal, ou mesmo por funcionário da Junta com comprovados conhecimentos de
direito comercial e registro de empresas, em ambos os casos designados pelo
Presidente (Lei n. 8.934/94, art. 42).
Existem dois regimes de
tramitação de processos no
âmbito
do
registro
de
empresas: o regime de decisão
singular e o de decisão
colegiada. O primeiro diz
respeito aos atos em geral,
enquanto o último está
reservado aos atos mais
complexos e julgamento de
recursos.
Os atos submetidos a registro devem ser apreciados pela Junta no prazo
legal. Para os atos sujeitos ao regime de decisão colegiada, a lei prescreveu o
prazo de 5 dias úteis; para os demais, 2 dias úteis, sempre a contar do protocolo
na Junta. Se o prazo é ultrapassado, considera-se registrado o ato para todos os
efeitos legais. É a aprovação por decurso de prazo, bastante comum no direito
administrativo (o instituto existe, por exemplo, na expedição de licença para
construção, na aprovação de atos de concentração pelo CADE etc.). O registro
por decurso de prazo, contudo, poderá vir a ser desconstituído se, a pedido de
qualquer interessado, a Procuradoria identificar no ato a inobservância de
alguma formalidade legal inafastável (Lei n. 8.934/94, art. 43).
4.4. Consequências da Falta do Registro: Sociedade Empresária Irregular
A principal sanção imposta à sociedade empresária que explora
irregularmente sua atividade econômica, isto é, que funciona sem registro na
Junta Comercial, é a responsabilidade ilimitada dos sócios pelas obrigações da
sociedade. O arquivamento do ato constitutivo da pessoa jurídica — contrato
social da limitada, ou os estatutos da anônima — no registro de empresas é
condição para a limitação da responsabilidade dos sócios. A natureza desta
responsabilidade limitada — se direta ou subsidiária — depende da posição
adotada pelo sócio na gestão dos negócios sociais. O sócio que se apresentou
como representante da sociedade tem responsabilidade direta, enquanto os
demais, subsidiária (CC, art. 990), a menos que tenham tido a intenção de
constituir uma sociedade anônima, hipótese em que responderão solidária, direta
e ilimitadamente pelas obrigações nascidas da atividade irregular. A matéria será
aprofundada noutra oportunidade (Cap. 28, item 6). Por ora, importa deixar
assente que os sócios poderão vir a responder com o seu próprio patrimônio, por
todas as obrigações da sociedade, se não for providenciado o registro do
respectivo ato constitutivo na Junta Comercial.
Além dessa sanção, a sociedade empresária irregular não tem
legitimidade ativa para o pedido de falência de outro comerciante (LF, art. 97, §
1º) e não pode requerer a recuperação judicial (LF, art. 51, V).
A falta do registro na Junta Comercial importa, também, a aplicação de
sanções de natureza fiscal e administrativa. Assim, o descumprimento da
obrigação comercial acarretará a impossibilidade de inscrição da pessoa jurídica
no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), e nos cadastros estaduais e
municipais; também impossibilitará a matrícula do empresário no Instituto
Nacional da Seguridade Social. Aliás, são simultâneos o registro na Junta e a
matrícula no INSS (Lei n. 8.212/92, art. 49, I). A falta do CNPJ, inclusive, além
de dar ensejo à incidência de multa pela inobservância da obrigação tributária
instrumental, impede o empresário de entabular negócios regulares; sua atividade
fica forçosamente restrita ao universo da economia informal.
4.5. Empresário Rural e Pequeno Empresário
Ao dispor sobre a obrigação geral imposta aos empresários de se
inscreverem na Junta Comercial antes de darem início à exploração de sua
atividade, cuidou a lei de excepcionar duas hipóteses: a dos empresários rurais e
pequenos empresários. Estes, embora explorem profissionalmente atividade
econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços,
merecem tratamento específico por razões diversas.
Atividade econômica rural é a explorada normalmente fora da cidade.
Certas atividades produtivas não são costumeiramente exploradas em meio
urbano, por razões de diversas ordens (materiais, culturais, econômicas ou
jurídicas). São rurais, por exemplo, as atividades econômicas de plantação de
vegetais destinadas a alimentos, fonte energética ou matéria-prima (agricultura,
reflorestamento), a criação de animais para abate, reprodução, competição ou
lazer (pecuária, suinocultura, granja, equinocultura) e o extrativismo vegetal
(corte de árvores), animal (caça e pesca) e mineral (mineradoras, garimpo).
As atividades rurais, no Brasil, são exploradas em dois tipos radicalmente
diferentes de organizações econômicas. Tomando-se a produção de alimentos,
por exemplo, encontra-se na economia brasileira, de um lado, a agroindústria (ou
agronegócio) e, de outro, a agricultura familiar. Naquela, emprega-se tecnologia
avançada e mão de obra assalariada (permanente e temporária), há a
especialização de culturas em grandes áreas de cultivo; na familiar, trabalham o
dono da terra e seus familiares, um ou outro empregado, e são relativamente
mais diversificadas as culturas e menores as áreas de cultivo. Convém registrar
que, ao contrário de outros países, principalmente na Europa, em que a pequena
propriedade rural sempre teve e continua tendo importância econômica no
encaminhamento da questão agrícola, entre nós, a produção de alimentos é
altamente industrializada e concentra--se em grandes empresas rurais. Por isso a
reforma agrária, no Brasil, apesar do que parece ter sido o entendimento dos
constituintes de 1988 (CF, art. 187, § 2 º), não é solução de nenhum problema
econômico, como foi para outros povos; destina-se a solucionar apenas
problemas sociais de enorme gravidade (pobreza, desemprego no campo,
crescimento desordenado das cidades, violência urbana etc.).
Em vista destas características da agricultura brasileira, o Código Civil
reservou para o exercente de atividade rural um tratamento específico (arts. 971
e 984). Ele está dispensado de requerer sua inscrição no registro das empresas,
mas pode fazê-lo. Se optar por se registrar na Junta Comercial, será considerado
empresário e submeter--se-á ao regime correspondente. Neste caso, deve
manter escrituração regular, levantar balanços periódicos e pode falir ou
requerer a recuperação judicial. Sujeita-se, também, às sanções da
irregularidade no cumprimento das obrigações gerais dos empresários. Caso,
porém, o empresário rural não requeira a inscrição no registro das empresas, não
se considera juridicamente empresário e seu regime será o do direito civil (claro,
se a atividade for exercida em sociedade, os seus atos constitutivos devem ser
levados ao Registro Civil de Pessoas Jurídicas). A primeira — regime de direito
empresarial — deve ser a opção do agronegócio, da grande indústria agrícola; a
última — regime de direito civil —, a predominante entre os titulares de negócios
rurais familiares.
Estão
dispensados
da
exigência de prévio registro na
Junta Comercial, imposta aos
empresários em geral, os
pequenos empresários (isto é,
os
microempresários
e
empresários de pequeno porte)
e os empresários rurais. Estes
últimos, se quiserem, podem
requerer o registro na Junta
Comercial, mas ficarão sujeitos
ao mesmo regime dos demais
empresários:
dever
de
escrituração e levantamento de
balanços anuais, decretação de
falência e requerimento de
recuperação judicial.
O microempresário e o empresário de pequeno porte, por sua vez, têm
constitucionalmente assegurado o direito a tratamento jurídico diferenciado, com
o objetivo de estimular-lhes o crescimento com a simplificação, redução ou
eliminação de obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e
creditícias (CF, art. 179). O Código Civil, aparentemente em consonância com o
preceito constitucional, dispensou o “pequeno empresário” da obrigação geral de
registro na Junta Comercial (art. 970). O art. 68 da Lei Complementar n.
123/2006 (Estatuto de 2006) define pequeno empresário como o empresário
individual caracterizado como microempresa e cuja receita bruta anual não
ultrapasse R$ 36.000,00 (trinta e seis mil reais). O pequeno empresário do Código
Civil, se for optante pelo Simples e atender às demais exigências legais, será
considerado “microempreendedor individual”, para fins de gozar de
determinados benefícios tributários. Deste modo, a lei acaba criando uma
classificação pouco clara, em que o pequeno empresário tem receita bruta
menor que o microempresário e o empresário de pequeno porte. Apenas o
pequeno empresário, como definido pela lei complementar, está dispensado de
inscrição na Junta Comercial.
4.6. Inatividade da Empresa
Uma das inovações trazidas pela lei de 1994 é a figura da inatividade da
empresa (art. 60). Trata-se da situação em que se encontra a sociedade que não
solicita arquivamento de qualquer documento, por mais de uma década. A
inatividade, que pode também dizer respeito a empresários individuais, pareceme criação do direito brasileiro. Não conheço instituto similar no direito
comparado.
A sistemática é a seguinte: se a sociedade empresária não praticou, em
dez anos, nenhum ato sujeito a registro, ela deve tomar a iniciativa de comunicar
à Junta a sua intenção de manter-se em funcionamento. A hipótese,
evidentemente, diz respeito às sociedades limitadas, e não às anônimas. Somente
as primeiras podem passar tanto tempo sem praticar ato passível de
arquivamento e, mesmo assim, não incorrer em qualquer irregularidade. A
companhia que se encontra nessa situação, necessariamente deixou de dar
cumprimento a certas obrigações legais (levantamento de demonstrações
financeiras, renovação do mandato de diretores, realização de assembleias
ordinárias etc.). Pois bem, se a sociedade não providenciar a comunicação de
intenção de funcionamento, a Junta instaura um procedimento para o
cancelamento do registro, passando a considerar a empresa inativa.
A inatividade da empresa
decorre
da
falta
de
arquivamento de qualquer
documento na Junta Comercial,
no período de dez anos.
Prevê a lei que a Junta, após o cancelamento do arquivamento, deve
comunicar o fato às autoridades arrecadadoras (isto é, à receita federal, estadual
e municipal, bem como ao INSS e à Caixa Econômica Federal, que administra o
FGTS), para que elas adotem as providências que o caso recomenda; em geral, a
responsabilização do sócio ou sócios que exerciam a gerência da sociedade
dissolvida.
A inatividade da empresa e o consequente cancelamento do registro da
sociedade não significam o mesmo que a sua dissolução determinada
administrativamente. Ou seja, a figura da inatividade não corresponde a uma
terceira modalidade de dissolução de sociedade. O direito societário brasileiro
conhece apenas a dissolução judicial (determinada pelo juiz) e a amigável
(avençada entre os sócios). Não existe instrumento legal para a sua imposição
por ato da autoridade administrativa encarregada do registro — a Junta
Comercial. Se a sociedade, a despeito da decretação de sua inatividade, continuar
a funcionar, será considerada empresária irregular, sofrendo as consequências já
examinadas (item 4.3). É este o seu status jurídico.
5. ESCRITURAÇÃO
Os empresários têm o dever de manter a escrituração dos negócios de que
participam (CC, art. 1.179). Ou seja, o exercício regular da atividade empresarial
pressupõe a organização de uma contabilidade, a cargo de profissionais
habilitados. Não há empresário regular que possa prescindir dos serviços do
contador, seja contratando-o como empregado, seja como profissional
autônomo. Historicamente, o primeiro instrumento de escrituração foi o livro
mercantil, ou simplesmente livro. Hoje em dia, embora existam quatros outros
instrumentos igualmente admitidos pelo registro de empresas (a saber: conjunto
de fichas ou folhas soltas, conjunto de folhas contínuas, microfichas geradas por
microfilmagem de saída direta de computador e o livro digital), a expressão livro
conserva ainda o sentido genérico designativo do instrumento de que o
empresário se vale, para dar cumprimento ao dever legal de escrituração do seu
negócio.
“A
consciência
do
comerciante está escrita nos
seus livros; neles é que o
comerciante registra todas as
suas ações; são, para ele, uma
espécie de garantia (...).
Quando surgem contestações, é
preciso que a consciência do
juiz fique esclarecida; e é
então que os livros são
necessários, pois que eles são
os confidentes das ações do
comerciante” (Exposição de
Motivos
do
Código
de
Comércio Napoleônico, de
1807; Valverde, 1960:25).
A escrituração das operações realizadas pelo empresário atende,
inicialmente, uma necessidade do próprio exercente da atividade econômica. O
comerciante, na Idade Média, logo sentiu que era condição indispensável, para o
controle de seu negócio, registrar os valores que recebia e despendia, que tomava
emprestado ou emprestava, dos créditos concedidos e das obrigações assumidas.
Para que, ao término de uma feira, ou do ano, o comerciante pudesse avaliar os
resultados de seu comércio, com vistas a manter ou alterar suas decisões
negociais daí em diante, ele necessitava de registros desse tipo. A primeira
função da escrita mercantil — num sentido meramente esquemático, e não
histórico — tem natureza gerencial.
Outra função dos registros das operações realizadas pelo comerciante
estava relacionada à necessidade de demonstração dos resultados da atividade
comercial para outras pessoas. Muitas vezes, o comerciante possuía sócios em
determinadas expedições, com os quais repartiria os lucros. A demonstração da
justeza do valor que o comerciante trazia ao sócio, a título de participação nos
resultados da empreitada, dependia da confiança depositada nos números
apresentados, os quais eram extraídos dos registros. Em decorrência desse uso, o
lançamento dos valores passou a reclamar uma certa técnica, um padrão que
pudesse ser compreendido por qualquer pessoa minimamente familiarizada com
o respectivo método. Enquanto a escrituração tem apenas função gerencial, o
próprio comerciante decide como vai nomear os valores que registra, quais
agrupará sob determinadas rubricas, se cabe fazer provisões ou não. Quando,
porém, a escrituração passa a ter função documental, ela não pode mais ser feita
sem critérios uniformes e reconhecidos como pertinentes pelos destinatários.
Assim, entre os séculos XIV e XV, na península itálica, começou a se
desenvolver o sistema de “partidas dobradas”, em que cada operação é lançada
duas vezes, a crédito de uma pessoa e a débito de outra, dando início à construção
de um saber específico, crescentemente complexo, que é a contabilidade
(Valverde, 1960:21/23).
A terceira função da escrituração do empresário é fiscal, isto é, está
relacionada ao controle da incidência e pagamento de tributos. Pesquisas
arqueológicas revelam a existência de registros de operações econômicas, para
servirem ao controle das finanças públicas, já na Babilônia da Antiguidade
(Sandroni, 1985:66). O poder político feudal e o estado moderno, aos seus
tempos, tributaram as operações comerciais, mas foi, principalmente, a partir do
desenvolvimento propiciado pela Revolução Industrial, e em razão das
necessidades ligadas à sua função fiscal, que os registros das operações
realizadas pelos empresários passam a ser normatizados, e não podem mais ser
feitos por pessoas não especializadas. A primeira lei a tornar obrigatória a
escrituração mercantil foi a ordenança sobre o câmbio, editada em 1539, no
reinado de Francisco I, em França. Esta norma impunha a prévia autorização
estatal para o exercício da atividade de câmbio, e a escrituração de todas as
operações era exigida para fins de controle dos agentes autorizados.
Posteriormente, em 1673, a obrigatoriedade foi estendida pelo direito francês a
todos os comerciantes (Valverde, 1960:23/24; Ripert-Roblot, 1947:312/313).
A escrituração possui, portanto, três funções. Serve de instrumento à
tomada de decisões administrativas, financeiras e comerciais, por parte dos
empresários e dos dirigentes da empresa; serve de suporte para informações do
interesse de terceiros, como sócios, investidores, parceiros empresariais, bancos
credores ou órgão público licitante; e serve também para a fiscalização do
cumprimento de obrigações legais, inclusive e principalmente de natureza fiscal.
Em suma, serve ao controle interno e externo do exercício da atividade
empresarial (Nigro, 1978:259/307). No direito brasileiro, a previsão genérica do
dever de escrituração está no art. 1.179 do Código Civil, para a sociedade
empresária limitada e demais empresários, e no art. 177 da LSA, para a
anônima.
São três as
escrituração:
funções da
gerencial,
documental e fiscal.
O empresário está obrigado a manter livros (ou outra modalidade de
instrumento de escrituração), que são documentos unilaterais, que registram atos
e fatos reputados importantes pela lei para o regular funcionamento da empresa.
Os livros que os empresários devem possuir, contudo, não são todos “contábeis”,
em sentido estrito. Quer dizer, alguns servem à memória dos valores
relacionados às operações de compra e venda, mútuo, liquidação de obrigações
etc. — em síntese, o quanto o empresário deve gastar ou receber, num
determinado período. Outros servem à memória de dados fáticos, como o livro
de registro de empregados (CLT, art. 41) ou o de atas das assembleias gerais
(LSA, art. 100, IV), ou da prática de atos jurídicos, como o livro de registro de
transferência de ações nominativas (LSA, art. 100, II). Chamem-se os primeiros
livros contábeis, e os outros livros simplesmente memoriais.
A disciplina da escrituração de um livro contábil pode se encontrar na
legislação comercial ou tributária. Em função disso, a doutrina costuma
classificar os livros em mercantis ou fiscais. Não existe, contudo, nenhuma
diferença entre os livros de uma ou outra dessas categorias, no tocante aos
requisitos de sua escrituração, às hipóteses de exibição judicial, ou perante
autoridade administrativa, e às responsabilidades do empresário pela sua falta ou
irregularidade. A classificação, assim, não se justifica senão para fins didáticos:
ao direito comercial, enquanto disciplina curricular, cabe enumerar os livros
mercantis; ao direito tributário, os fiscais. Reafirme-se, contudo, que é idêntico o
regime jurídico atinente aos livros contábeis exigidos pela lei comercial e pela lei
tributária.
Os livros simplesmente memoriais, por sua vez, são obrigatórios pela
legislação mercantil ou trabalhista — o direito do trabalho impõe aos
empregadores a escrituração de dois livros: o de registro de empregados (CLT,
art. 41) e o denominado Inspeção do Trabalho (CLT, art. 628, § 1 º) —, e sua
confecção costuma ser menos complexa que a dos livros contábeis. A diferença
principal é a de que neles não é necessária uma contabilidade, mas apenas o
assentamento de dados fáticos e, eventualmente, a aposição da assinatura dos
sujeitos do ato ou negócio jurídico objeto de registro. À semelhança dos
contábeis, os livros simplesmente memoriais também podem ser elaborados em
instrumento alternativo, como as microfichas geradas por meio de
microfilmagem de saída direta de computador. Há, por fim, livros simplesmente
memoriais de escrituração imposta apenas a determinados empresários, e tendo
em vista o atendimento a objetivos de outros ramos do direito. É o caso dos livros
registro de entrada e saída e registro de uso de placas de experiência, que o
Código de Trânsito Brasileiro impõe aos empresários que reformam, recuperam,
compram, vendem ou desmontam veículos, usados ou novos (Lei n. 9.503/97, art.
330), para fins de repressão a ilícitos penais.
5.1. Espécies de Livros
Os livros contábeis e os simplesmente memoriais se classificam, segundo
a exigibilidade de sua escrituração, em obrigatórios e facultativos. Obrigatórios
são os livros cuja escrituração é imposta aos empresários; a sua falta implica
sanções. Já os facultativos (por vezes, chamados auxiliares) são os que o
empresário escritura para fins gerenciais, ou seja, exclusivamente para extrair
subsídios às decisões que deve tomar à frente da empresa; por evidente, sua falta
não implica sanções.
O primeiro livro obrigatório, referido em legislação de direito comercial,
que se deve mencionar é o Diário. O Código Comercial, em 1850, já o obrigava
a todos os comerciantes, juntamente com outro livro — o Copiador de Cartas.
Em 1969, a lei aboliu a obrigatoriedade deste último, mas manteve a do Diário
(Dec.-lei n. 486/69, arts. 5º e 11). O Código Civil também prevê a obrigatoriedade
apenas deste livro, esclarecendo que pode ser substituído por fichas no caso de
escrituração mecanizada ou eletrônica (art. 1.180). Trata-se de livro contábil, em
que se devem lançar, dia a dia, diretamente ou por reprodução, os atos ou
operações da atividade empresarial, bem como os atos que modificam ou podem
modificar o patrimônio do empresário. Até 1984, todos os empresários
comerciais, independentemente de seu porte econômico, ou ramo de atividade a
que se dedicavam, ou tipo societário de que se revestiam, estavam obrigados à
escrituração desse livro. Como nenhum empresário estava dispensado de o
possuir, a doutrina o classificava como livro obrigatório comum (Requião,
1971:132).
Em 1984, a lei passou a dispensar ao microempresário (e, posteriormente,
também ao empresário de pequeno porte) tratamento favorecido, visando criar
condições mais favoráveis ao seu desenvolvimento. Nesse contexto, preocupouse a lei em abrandar ou, por vezes, suprimir a obrigação de manter escrituração.
Este tema será objeto de estudo à frente (subitem 5.8). Por enquanto, basta o
registro de que o livro obrigatório comum (Diário) tem a sua escrituração imposta
aos empresários em geral, mas não aos microempresários e empresários de
pequeno porte.
Outro livro contábil que a legislação mercantil disciplina é o Registro de
Duplicatas (Lei n. 5.474/68, art. 19). Sua obrigatoriedade não diz respeito a todos
os empresários, mas somente aos que emitem duplicata mercantil ou de
prestação de serviços. A exigência alcança até mesmo os microempresários e
empresários de pequeno porte, caso eles pretendam sacar a duplicata, para
cobrança dos devedores ou desconto bancário. Note-se que a emissão de
duplicata é sempre facultativa; em nenhum caso está o comerciante ou o
prestador de serviços obrigado a documentar o seu crédito por meio
especificamente deste título. Contudo, se optar por sua emissão, o empresário
fica sujeito à obrigatória escrituração daquele livro. Desse modo, se o
empresário, de qualquer porte econômico, não emite duplicatas, preferindo
documentar os créditos que titulariza por meio de outros instrumentos (nota
promissória, contratos, cartas comerciais etc.), não se pode exigir-lhe a
escrituração do Registro de Duplicatas. Entre os simplesmente memoriais, são
obrigatórios pela legislação de direito comercial os livros próprios das sociedades
anônimas (LSA, art. 100), em que são registradas as atas das assembleias gerais
e de outros órgãos societários, a presença dos acionistas nas assembleias gerais,
os dados cadastrais dos acionistas, os atos de transferência da titularidade das
ações nominativas. Também as limitadas que realizam assembleias de sócios
devem escriturar o livro de atas da assembleia (CC, art. 1.075, § 1º), as que
possuem conselho fiscal, o livro de atas e pareceres do conselho fiscal (art. 1.069,
II), e aquelas cujos administradores não são nomeados no contrato social, mas
em ato separado, o livro de atas da administração, em que devem ser lavrados os
termos de posse (art. 1.062).
Por fim, os livros facultativos. Neste grupo pode-se incluir qualquer tipo de
registro ordenado e uniforme que os empresários realizam, para controle do
andamento de seus negócios, ou memória de decisões. Não é comum esta
prática, mas, em tese, nada impede que um empresário crie métodos próprios de
contabilizar os seus negócios e os utilize. Claro que o livro facultativo tem valor
meramente gerencial e, mesmo quando autenticado pela Junta Comercial, não
terá a eficácia probatória que a lei confere aos livros obrigatórios. O direito
argentino, a propósito, contempla norma positiva expressa estabelecendo que os
livros facultativos não podem servir de prova em favor do comerciante, salvo se
os obrigatórios se tiverem perdido sem culpa a ele imputável.
5.2. Regularidade na Escrituração
A confecção dos livros simplesmente memoriais não apresenta a mesma
complexidade que a escrituração dos contábeis. Claro que, por vezes, a redação
de uma ata de assembleia geral exige conhecimentos técnicos especializados,
para que a deliberação dos acionistas produza validamente todos os efeitos
jurídicos pretendidos. Em geral, contudo, costuma ser menos complexa a
elaboração dos livros que prescindem da forma contábil. De qualquer modo, a
escrituração se considera regular quando atende a determinadas condições
preceituadas em lei, ou seja, aos requisitos intrínsecos e extrínsecos.
Os requisitos intrínsecos da escrituração mercantil dizem respeito à
técnica apropriada de sua elaboração. Em primeiro lugar, o uso do idioma
português é obrigatório. Não se considera regular o livro mercantil, qualquer que
seja, escriturado em língua estrangeira. Além disso, não podem existir intervalos,
entrelinhas, borraduras, rasuras, emendas, anotações à margem ou notas de
rodapé. Qualquer ocorrência desse tipo, ou mesmo indício de adulteração,
compromete a confiabilidade dos registros correspondentes, ainda que não haja
prova de má-fé ou fraude. Quando se trata de livro contábil, os requisitos
intrínsecos estão relacionados aos métodos de contabilidade geralmente aceitos
entre os profissionais da área, e são detalhados pelo art. 1.183 do Código Civil
(art. 2º do Dec.-lei n. 486/69). Quer dizer, além das condições já referidas, o livro
contábil deve ainda observar os seguintes parâmetros: moeda nacional,
individuação (ou seja, a consignação expressa das principais características dos
documentos que dão sustentação ao lançamento: Dec. n. 64.567/69, art. 2º),
clareza e ordem cronológica de dia, mês e ano.
Código Civil
Art. 1.183. A escrituração
será feita em idioma e moeda
corrente nacionais e em forma
contábil,
por
ordem
cronológica de dia, mês e ano,
sem intervalos em branco, nem
entrelinhas, borrões, rasuras,
emendas ou transportes para as
margens.
Os requisitos extrínsecos visam conferir segurança jurídica ao livro. São
formalidades que definem a responsabilidade pela escrituração — identificando
o empresário e o seu contador — e, em tese, podem dificultar alterações nos
lançamentos feitos. São três: termo de abertura, termo de encerramento e
autenticação da Junta Comercial. Pela lógica, a primeira providência do contador
contratado pelo empresário seria lavrar o termo de abertura para, na sequência,
proceder aos lançamentos das operações. Quando terminasse o livro, o contador
lavraria o termo de encerramento e o encaminharia à Junta, para a autenticação.
Na prática, contudo, não é necessariamente assim. A Junta autentica livros em
branco, desde que tenham sido já lavrados os termos de abertura e encerramento
(IN-DNRC n. 65/97, art. 5º, I).
5.3. Processos de Escrituração
Já vai longe no tempo a figura do antigo “guarda-livros”, a quem os
comerciantes encarregavam a tarefa de, manualmente, lançar os registros
contábeis e fazer as demais anotações e cópias de correspondência,
indispensáveis ao controle da atividade comercial. Nesta época, utilizavam-se
livros encadernados e com páginas numeradas tipograficamente, adquiridos em
papelarias. No Brasil, a primeira grande transformação, neste cenário, ocorreu
em 1967, quando se passou a admitir, em substituição ao processo manual, o
mecanográfico. Isto é, o contador, valendo-se de uma “máquina de escrever”,
datilografava os lançamentos em fichas soltas que, posteriormente, eram
encadernadas junto com as folhas dos termos de abertura e de encerramento.
Feito isto, o livro assim organizado era legalizado pela Junta Comercial. Em 1968,
foi regulamentada a microfilmagem dos documentos, inclusive livros e demais
instrumentos contábeis. Em 1972, ocorreu outra grande transformação no
sistema de escrituração mercantil, que foi a disciplina do processo eletrônico. Os
computadores imprimiam os lançamentos contábeis em “formulário contínuo,
com as subdivisões numeradas tipograficamente”. Em seguida, as subdivisões
eram destacadas e encadernadas para, junto com os termos de abertura e
encerramento, serem levadas à Junta.
A partir dos anos 1990, com a disseminação, no Brasil, do uso do
microcomputador (os Personal Computers) entre empresários e contadores, os
lançamentos contábeis passaram a ser digitados em programas de cálculo e,
posteriormente, impressos em folhas soltas. Encadernadas junto com os termos
legais, são então levadas à autenticação pela Junta. Há, ainda, a alternativa de
microfichas geradas por meio de microfilmagem de saída direta de computador
(COM), cuja utilização é admitida pelo DNRC.
Os processos mecanográfico, eletrônico e com o uso de microcomputador
mencionados até aqui, embora representem inegável avanço em relação à
escrita manual, na verdade acabam, tanto quanto esta, gerando lançamentos em
meio-papel. A partir de 2006, o DNRC passou a admitir a elaboração,
processamento e armazenamento da escrituração do empresário exclusivamente
em meio eletrônico. Denominou a alternativa de livro digital, instrumento
contábil que pode, mas não precisa, ser impresso em papel. O livro digital é
autenticado pelas Juntas Comerciais eletronicamente, mediante a aposição de
certificado digital e selo cronológico digital, na conformidade das regras da
Infraestrutura Brasileira de Chaves Públicas — ICP-Brasil (IN 102/2006). Alguns
empresários, aliás, são obrigados a manter sua escrituração em meio eletrônico
(isto é, em livros digitais) em razão de norma tributária (Dec. n. 6.022/2007).
5.4. Extravio e Perda da Escrituração
A falta de um instrumento de escrituração obrigatório implica sanções ao
empresário. Deste modo, ocorrendo extravio, deterioração ou destruição de
livros, fichas ou microfichas já autenticadas pela Junta Comercial, o empresário
deve adotar certas providências, exigidas pelo registro de empresas, para não
sofrer as sanções relacionadas à falta da escrituração. Em primeiro lugar, é
necessário providenciar a publicação, em jornal de grande circulação na sede do
estabelecimento correspondente, de um aviso relativo à ocorrência. Em segundo,
nas quarenta e oito horas que se seguirem à publicação, o empresário deve
apresentar na Junta Comercial uma comunicação, com detalhado relato do fato.
Após essas providências, o empresário poderá recompor sua escrituração,
adotando o mesmo número de ordem do instrumento extraviado ou perdido, para
fins de a submeter à autenticação. A segunda via do livro ou instrumento de
escrituração, após o atendimento destas cautelas e formalidades, produzirá, em
princípio, os mesmos efeitos jurídicos da primeira. Claro que, uma vez
demonstrada a fraude na substituição do livro mercantil — o empresário, na
verdade, inutilizou o original —, a segunda via tem a sua eficácia probatória
limitada ou comprometida. Quando presentes as cautelas e formalidades acima,
no entanto, presume-se regular a substituição do instrumento de escrituração,
recaindo sobre a parte adversa o ônus de prova de eventuais fraudes.
5.5. Exibição dos Livros
O Código Civil consagra o princípio do sigilo dos livros comerciais (art.
1.190). Considerava-se que o comerciante tinha o direito de manter reservadas
informações que somente lhe diziam respeito, como os seus ganhos e suas
despesas. Claro que a norma se ajusta apenas à figura do comerciante individual,
pessoa física, que explora atividade cujos frutos lhe pertencem unicamente. O
princípio do sigilo da escrituração mercantil está, assim, ligado à tutela da
privacidade e tem um sentido histórico. Com base no dispositivo legal que o
assegurava, o comerciante podia legitimamente se recusar a apresentar seus
livros, perante qualquer autoridade, juiz ou Tribunal. No decorrer do Século XX,
o princípio do sigilo da escrita mercantil foi paulatinamente sendo excepcionado
e, hoje em dia, não pode ser oposto contra autoridades fiscais (CC, art. 1.193), ou
contra ordem do juiz (CC, art. 1.191). Sua aplicação ficou, assim, restrita às
hipóteses em que a exigência eventualmente parte de órgãos públicos com
atuação estranha à apuração e arrecadação de tributos ou contribuição
previdenciária — por exemplo, os agentes fiscais do meio ambiente, ou de
normas municipais de segurança de uso de imóveis.
Examine-se, primeiro, a exibição dos livros mercantis perante autoridades
administrativas com poderes para a determinar. Perante o Poder Executivo, a
exibição dos livros mercantis pode ser obrigada pelos agentes de fiscalização da
receita (federal, estadual ou municipal) ou do INSS. Os primeiros lastreados no
art. 195 do CTN, que afasta a incidência de quaisquer disposições legais
excludentes ou limitativas do poder de a fiscalização tributária examinar os livros
dos empresários; os do INSS, com base no art. 33, § 1º, da Lei n. 8.212/91 (lei do
custeio da seguridade social). A fiscalização nesses dois casos, no entanto,
segundo considera a jurisprudência dominante (Súmula 439 do STF), não poderá
extravasar certos limites; ou seja, deve se ater apenas aos elementos objeto de
investigação.
“Estão sujeitos à fiscalização
tributária, ou previdenciária,
quaisquer livros comerciais,
limitado o exame aos pontos
objeto
de
investigação”
(Súmula 439 do STF).
Para o exame dos livros do empresário, normalmente, é instaurada uma
operação de fiscalização, com a autuação de um procedimento administrativo da
receita, ou do INSS. Trata-se de uma formalidade preliminar, que serve também
de garantia aos empresários, quanto à natureza oficial da atuação do funcionário
público. Seguem-se, então, duas alternativas: ou é expedida uma intimação ao
empresário, para que compareça no posto fiscal, portando seus livros, ou os
agentes do órgão público comparecem ao estabelecimento do empresário, ou ao
escritório do seu contador, para ali mesmo consultá-los. Se a escrituração dos
livros objeto de fiscalização não estiver regular, ou se do seu exame constatarem
os fiscais a falta de pagamento do tributo, será lavrado contra o empresário um
auto de infração, que abrangerá, além dos valores sonegados, as multas e
encargos da lei.
Além da exibição perante órgãos administrativos, quando é inoperante o
princípio do sigilo da escrituração mercantil, prevê a lei também a sua
decretação pelo juiz. Na verdade, quando a prova de um fato em juízo depende
do exame de um livro mercantil, em geral, procede-se comumente à perícia
contábil, com a nomeação do perito pelo juiz e indicação dos assistentes técnicos
pelas partes. Estes profissionais se dirigem, então, ao estabelecimento do
empresário, consultam os livros e, posteriormente, elaboram seus laudos técnicos
(ou parecer), que são juntados aos autos judiciais. Trata-se do procedimento
usual, plenamente satisfatório para a produção da prova.
A lei processual, no entanto, disciplina também um outro expediente
probatório, relacionado à escrituração mercantil, que pressupõe a exibição do
livro. Trata-se de sistemática existente em outros direitos, como o argentino por
exemplo. Há duas modalidades de exibição judicial: a parcial (CPC, art. 382) e a
total (CPC, art. 381). A primeira se viabiliza com a designação de audiência, para
que o livro seja apresentado ao juiz. Nesta audiência, extrai-se a suma dos
elementos que interessam à demanda (por exemplo, se consta o lançamento do
crédito reclamado pela outra parte e se foi feito de modo regular) e reduz-se a
termo. É só. Na exibição parcial, o empresário permanece na posse do livro, que
não ficará retido em cartório. Por tal razão, esta modalidade de exibição do livro
mercantil pode ser decretada pelo juiz de ofício e em qualquer processo de que
seja parte o empresário.
Por sua vez, a exibição total importa a retenção dos livros em cartório e a
possibilidade de depósito em mãos de litigantes, isto é, o desapossamento do
empresário que o escritura. Assim, a lei impede a decretação da medida em toda
e qualquer ação, circunscrevendo as hipóteses em que a exibição total é
permitida. Ela só cabe nas ações de liquidação de sociedade, na sucessão por
morte de sócio de sociedade empresária ou de empresário individual,
administração ou gestão à conta de outrem ou em hipótese expressamente
prevista por lei. Exemplo desta última encontra-se no art. 105 da LSA, que
assegura aos acionistas com pelo menos 5% do capital social a exibição judicial
dos livros da sociedade anônima, quando houver indícios de irregularidades na
sua administração; ou no caso de negativa do direito assegurado aos sócios da
sociedade limitada regida supletivamente pelo regime das sociedades simples,
pelo art. 1.021 do Código Civil. Mesmo nestes casos em que a exibição total é
autorizada por lei, o juiz não a pode decretar de ofício, mas apenas para atender
a pedido da parte interessada.
Dois outros requisitos se exigem para a exibição judicial dos livros, tanto
na modalidade parcial quanto na total: quem requer a exibição deve demonstrar
legítimo interesse (Valverde, 1960:89/90), e esta só terá lugar se o empresário
que escritura o livro for parte da relação processual.
5.6. Eficácia Probatória dos Livros Mercantis
Seja em razão de perícia contábil, seja por força da exibição determinada
pelo juiz, os livros apresentam uma certa eficácia probatória, cujos contornos são
fixados pela legislação civil (CC, art. 226) e processual civil (CPC, arts. 378 a
380).
O livro mercantil, enquanto um documento unilateral, em nenhuma
hipótese pode fazer prova plena. Se o conjunto probatório como um todo sugere
que os lançamentos contábeis não correspondem à verdade dos fatos, não se
sustentam em documentos hábeis nem são reforçados por outras provas
testemunhais ou periciais, então o juiz pode conferir--lhe valor relativo, ou
mesmo desconsiderá-lo. Se, entretanto, o seu exame é a única prova produzida
nos autos, ou se as conclusões que dele se extraem são compatíveis com as
demais provas, então o juiz irá conferir ao livro o valor que a lei menciona. Neste
sentido, o livro pode fazer prova a favor ou contra o empresário que o escriturou.
Para fazer prova a favor do seu titular, além da confirmação por outros
elementos probatórios (CC, art. 226, in fine), duas condições são necessárias: a
regularidade na escrituração (ou seja, o atendimento aos requisitos intrínsecos e
extrínsecos) e a isonomia das partes litigantes (quer dizer, a outra parte também
deve ser empresário e ter, por isso, como se valer do mesmo meio de prova)
(CPC, art. 379). Presentes tais condições, ao empresário basta a perícia ou a
exibição de seu livro mercantil, para que seja considerado desonerado dos ônus
de prova que lhe cabem. Se for o demandante, nenhuma outra prova terá que
produzir para ver julgado procedente o pedido. Se demandado, terá feito prova
do fato desconstitutivo do direito do autor. Mas, se o livro não se encontra
regularmente escriturado, ou se o empresário está litigando contra um
consumidor, a administração pública ou qualquer outro não empresário, a perícia
ou a exibição não poderá, sozinha, ser invocada como desencargo do onus
probandi.
Atualmente, o direito brasileiro admite o uso de meios informatizados não
somente para a preparação da escrituração mercantil, como também para a
materialização do documento. O papel não é mais o suporte único para a
escrituração mercantil. Desse modo, no Brasil, a exemplo do que já se verificava
há alguns anos no direito de outros países (cf. Lamberterie, 1992), é cabível a
prova, em favor do comerciante, de lançamentos contábeis conservados
exclusivamente em meio eletrônico, desde que autenticados pela Junta
Comercial por meio das chaves geradas pela ICP-Brasil (Infraestrutura
Brasileira de Chaves Públicas).
Para fazer prova contra o empresário que o escriturou (CC, art. 226; CPC,
art. 378), estas condições não se exigem. Quer dizer, mesmo que o livro
apresente irregularidades na escrituração, mesmo que a demanda não envolva
apenas empresários, a perícia contábil ou a exibição judicial dão fundamento
suficiente para se considerar realizada a prova contrária ao interesse do autor da
escrituração examinada (Amaral Santos, 1976:187/188). Como, no entanto, tratase o livro mercantil de documento unilateral, inábil para a produção de plena
prova, admite a lei que o empresário demonstre, por outros meios, que a
escrituração não corresponde à verdade dos fatos. Em outros termos, os dados
constantes da escrituração mercantil, quando contrários ao interesse perseguido
pelo empresário em juízo, criam uma presunção relativa em favor do outro
litigante.
Os dados contábeis conservados em meio eletrônico fazem prova contra o
empresário que os escriturou. A exigência da autenticação pela Junta, como
visto, impõe-se apenas na hipótese de prova judicial favorável ao autor do
instrumento contábil. Para a prova contrária ao empresário responsável pelo
tratamento informatizado das informações contábeis, tal formalidade é
dispensável. Assim, se a parte adversa teve acesso legítimo àqueles dados
contábeis, poderá fazer uso deles em juízo, em oposição ao interesse perseguido
ou defendido pelo empresário titular do banco de dados correspondente.
Os livros podem fazer prova
em processo judicial, tanto em
favor do empresário que os
escriturou,
como
contrariamente a ele.
Se, por fim, a perícia contábil ou a exibição judicial permitem a
sustentação de dados tanto em favor como contrariamente aos interesses do
empresário que escriturou o livro examinado, determina a lei processual que se
considerem estes dados como uma unidade. É o princípio da indivisibilidade da
escrituração contábil, referida no art. 380 do CPC.
5.7. Consequências da Falta de Escrituração
Devem ser distinguidas duas ordens de consequências da falta de
escrituração dos livros: de um lado, as sancionadoras; de outro, as motivadoras.
As primeiras importam a penalização do empresário, inclusive pela imputação
de responsabilidade penal; as outras apenas negam o acesso do empresário a um
benefício de que poderia usufruir caso tivesse cumprido a obrigação. São duas as
consequências sancionadoras: na órbita civil, a eventual presunção de veracidade
dos fatos alegados pela parte adversa, em medida judicial de exibição de livros;
na órbita penal, a tipificação de crime falimentar. São duas, também, as
motivadoras: inacessibilidade à recuperação judicial e ineficácia probatória da
escrituração.
A medida de exibição judicial de documentos pode ter por objeto a
escrituração de um empresário, e está disciplinada nos arts. 355 a 363 do CPC. O
pedido pode ter lugar em qualquer processo judicial, ou em procedimento
preparatório (CPC, art. 844, II e III). Ao requerer a exibição, o interessado irá
aduzir os fatos que pretende provar com a medida. Se o livro obrigatório não for
exibido, ou ostentar irregularidades na parte relevante à demanda, e o
empresário tinha a obrigação legal de exibi-lo, o juiz considerará
presumivelmente verdadeiros os fatos articulados pelo outro litigante (CPC, art.
359, I e II).
A tipificação do crime falimentar, a seu turno, se encontra no art. 178 da
Lei de Falências. Convém acentuar que a falta de escrituração, em si, não é
crime. Ou seja, criminoso não é o exercício da atividade empresarial sem a
escrituração prevista na lei; criminoso é falir sem esta escrituração. Trata-se de
crime de perigo a falta ou irregularidade, em caso de falência, dos livros
mercantis, porque elas impossibilitam ao juízo falimentar assentar-se em
documento seguro, ao examinar as diversas habilitações de credores que se
apresentam ao processo de falência. Deste modo, há o perigo de alguém,
embora não sendo credor, acabar admitido no quadro de credores (Requião,
1975:152/153).
No campo das consequências motivadoras, o empresário que não cumpre
o dever de escriturar regularmente os seus negócios está impedido de obter o
benefício da recuperação judicial (LF, art. 51, V). Pela concordata, o empresário
com dificuldades de saldar seus compromissos tem assegurada em juízo a
redução do valor devido ou a ampliação do prazo de pagamento. Para tanto, deve
cumprir certos requisitos que a lei estabelece, entre os quais o de autenticar no
registro de empresas os livros obrigatórios. Outra consequência desta ordem é a
ineficácia probatória da escrituração, já que o art. 379 do CPC somente
reconhece força probante, em favor do empresário que o escritura, ao livro que
atende aos requisitos intrínsecos e extrínsecos da lei. Em outros termos, se o
empresário deixou de cumprir — ou cumpriu mal — seu dever de manter
escrituração regular, ele não se poderá valer, em demanda contra outro
empresário, da prerrogativa que lhe confere a legislação processual.
A lei exige que o empresário conserve em boa guarda a escrituração
mercantil, enquanto não prescritas as ações relativas às obrigações nela
contabilizadas ou não operada a decadência (CC, art. 1.194; Dec.-lei n. 486/69,
art. 4º). É difícil falar em um prazo geral, que sirva a todos os casos, exigindo-se,
a rigor, o exame casuístico e detalhado de cada lançamento para a definição de
um termo seguro, a partir do qual o empresário poderá se desfazer dos livros. Isto
porque há inúmeras hipóteses de suspensão e interrupção de prazos
prescricionais, que não podem ser ignorados. Claro que, uma vez prescritas todas
as ações, poderá o empresário, se for de seu interesse, inutilizar ou resumir os
instrumentos de escrituração. E, neste caso, não poderá sofrer sanção alguma,
em decorrência da inutilização ou alteração.
5.8. Escrituração da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte
Como referido anteriormente (subitem 5.1), a lei impõe à generalidade
dos empresários a escrituração do livro Diário, que é, por esta razão, classificado,
na doutrina, como obrigatório comum. Desta obrigação, contudo, têm sido
poupados os empresários de menor porte, de modo variado, desde 1984.
Naquele ano, foi editado o primeiro Estatuto da Microempresa (Lei
n. 7.256/84), que estabelecia, entre as medidas de amparo e promoção do
microempresário, a dispensa de escrituração mercantil. Enquanto vigorou, os
empresários com receita bruta anual inferior ao limite estabelecido na lei, e que
podiam por isso usufruir dos benefícios do Estatuto, não estavam obrigados a
escriturar o Diário. Dez anos após, com a edição do segundo Estatuto (Lei n.
8.864/94), o da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte, a lei restaurou a
obrigatoriedade da escrituração, mas determinou que ela fosse simplificada,
postergando para o decreto regulamentar a definição do regime de escrituração
próprio a estas categorias de empresário. O decreto regulamentar, entretanto,
não foi editado.
Em 1996, foi instituído o programa SIMPLES (Sistema Integrado de
Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e Empresas de
Pequeno Porte). Durante a vigência deste programa, o microempresário e o
empresário de pequeno porte optantes do SIMPLES não estavam obrigados à
escrituração do Diário, mas de dois outros livros: o Caixa, com registro de toda a
movimentação financeira, inclusive bancária, e o Registro de Inventário, com a
relação do estoque existente ao término de cada ano (Lei n. 9.317/96, art. 7º).
Em 1999, foi editado o terceiro Estatuto da Microempresa e da Empresa
de Pequeno Porte, que revogou os de 1984 e de 1994 e manteve inalterado o
programa SIMPLES. Ressalte-se que, entre as medidas legais de apoio ao
microempresário e ao empresário de pequeno porte definidas por esse Estatuto,
não se encontrava nenhuma referente à dispensa ou simplificação da
escrituração mercantil. Em decorrência, o microempresário ou empresário de
pequeno porte que não estivesse enquadrado no SIMPLES — por não poder ou
não querer — ficava obrigado a escriturar seus negócios segundo as mesmas
regras dos empresários em geral, até a entrada em vigor do Código Civil em
2003, que reintroduziu esta medida de apoio aos microempresários e empresários
de pequeno porte (art. 1.179, § 2º).
Em 2006, foi aprovado o quarto Estatuto, por meio da Lei Complementar
n. 123. De acordo com o art. 26 desta lei, o microempresário e o empresário de
pequeno porte optantes do Simples Nacional (programa tributário sucedâneo do
SIMPLES) estão dispensados de qualquer escrituração mercantil, devendo os não
optantes manter o livro Caixa. Os “pequenos empresários”, istó é, os empresários
individuais com receita anual inferior a R$ 36.000,00, estão dispensados de
qualquer escrituração (CC, art. 1.179, § 2º; LD n. 123/2006, art. 68).
Para a completa compreensão da matéria, contudo, não se pode esquecer
que o art. 29, VII, do Estatuto de 2006 determina a exclusão do Simples Nacional
quando, in litteris, “houver falta de escrituração do livro Caixa ou não permitir a
identificação da movimentação financeira, inclusive bancária”. Aparentemente,
haveria uma contradição na lei. O que o art. 26 dispensaria (escrituração do livro
Caixa), o art. 29, VII, exigiria indiretamente. Na verdade, a melhor forma de
interpretar esses dispositivos, conferindo sistematicidade ao texto legal, consiste
em reconhecer aos optantes pelo Simples Nacional duas alternativas: ou bem eles
mantêm documentação que permita a identificação da movimentação
financeira, inclusive bancária, ou bem escrituram o livro Caixa. Quer dizer, o
optante pelo Simples Nacional somente está dispensado de qualquer escrituração
mercantil se a documentação que mantiver arquivada nos termos do art. 26, II,
do Estatuto permitir a identificação da movimentação financeira, incluindo a
bancária. Se os documentos guardados não têm essa aptidão, a escrituração do
livro Caixa deverá ser feita para suprir a deficiência. Em suma, o optante pelo
Simples Nacional tem, na verdade, a escolha entre manter a documentação que
permita a identificação da movimentação financeira, dispensando-se de fazer
qualquer escrituração mercantil, ou escriturar o livro Caixa. Continua, assim,
dispensado do dever geral de escrituração imposto aos empresários, em razão da
primeira alternativa ao seu alcance.
Em conclusão, os microempresários e empresários de pequeno porte
estão, desde 2006, dispensados de escrituração mercantil desde que sejam
optantes pelo Simples Nacional e mantenham arquivados documentos referentes
ao seu giro empresarial que permitam a identificação da movimentação
financeira, inclusive bancária. Os demais microempresários e empresários de
pequeno porte devem escriturar o livro Caixa, a menos que sejam pequenos
empresários segundo a definição legal.
Ressalte-se, por outro lado, que a sociedade limitada de propósito
específico (SPE) constituída por microempresários ou empresários de pequeno
porte optantes do Simples Nacional, para exploração do comércio nacional ou
internacional, não se beneficia da dispensa da escrituração mercantil. O art. 56, §
2º, IV, do Estatuto (com a redação dada pela LC n. 128/2008) apenas autoriza a
SPE a manter um regime próprio de escrituração mercantil, que compreende
dois livros: Diário e Razão.
6. DEMONSTRAÇÕES CONTÁBEIS PERIÓDICAS
Como visto, o Código Civil impõe aos empresários em geral três
obrigações: a de manter escrituração regular de seus negócios; a de se registrar
na Junta Comercial, antes de dar início à exploração de suas atividades; e,
finalmente, a de levantar balanços anuais, patrimonial e de resultado (art. 1.179).
As duas primeiras foram objeto de estudo nos itens anteriores. Examine-se,
agora, a última.
Quando se trata de uma sociedade limitada, a obrigação se resume ao
levantamento do balanço geral do ativo (considerados todos os bens, dinheiro e
créditos) e passivo (todas as obrigações de que é devedora), e a demonstração de
resultados (ou “da conta de lucros e perdas”), observadas as técnicas geralmente
aceitas pela contabilidade (CC, art. 1.188). Estes balanços terão por base a
escrituração mercantil elaborada ao longo do exercício, e serão lançados pelo
contador no próprio livro Diário, ou, se este tiver sido substituído por fichas soltas,
no livro denominado Balancetes Diários e Balanços (CC, art. 1.185).
Se, no entanto, a sociedade empresária adota a forma de anônima ou se
enquadra no conceito legal de sociedade de grande porte (Lei n. 11.638/2007, art.
3º, parágrafo único), a disciplina legal é bem mais detalhada. O balanço
patrimonial deve apresentar determinadas contas de ativo (circulante, realizável
a longo prazo e permanente, este último subdividido em imobilizado, diferido e
investimentos) e de passivo (circulante, exigível a longo prazo, resultados futuros
e patrimônio líquido, subdividido este último em capital social, reservas e lucros
ou prejuízos acumulados). Em relação a este tipo de empresário, a lei também
exige, além do balanço patrimonial, o levantamento de quatro outras
demonstrações contábeis: lucros ou prejuízos acumulados, resultado do exercício,
dos fluxos de caixa e valor adicionado. Só por estes elementos já se pode notar a
grande diferença, no tocante ao cumprimento das obrigações legais, entre a
limitada (desde que não enquadrada no conceito de sociedade de grande porte) e
a anônima.
Quanto à periodicidade para a elaboração das demonstrações contábeis, a
exemplo da vigente em outros países (Alemanha, Espanha, Portugal, Itália e
Argentina), é ela, em regra, anual. No Brasil, existem duas exceções apenas: as
sociedades anônimas cujo estatuto estabeleça a distribuição de dividendos
semestrais (LSA, art. 204) e as instituições financeiras (Lei n. 4.595/64, art. 31).
Nesses casos, o período para elaboração do balanço e demais demonstrativos é o
semestre. Geralmente, adotam os empresários em geral o ano civil como
referência, embora possam escolher livremente qualquer período anual, para
fins de dar cumprimento à obrigação (salvo, novamente, no caso das instituições
financeiras, que devem levantar o balanço nos dias 30 de junho e 31 de
dezembro, por força da lei).
A periodicidade para a
elaboração de demonstrações
contábeis é, em regra, anual.
Apenas
as
instituições
financeiras e as sociedades
anônimas
que
distribuem
dividendos semestrais estão
obrigadas a levantá-las em
menor periodicidade.
As consequências para a falta das demonstrações contábeis periódicas são
as seguintes: a) o empresário terá dificuldade de acesso ao crédito bancário, ou a
outros serviços prestados pelos bancos que se valem do balanço como
instrumento de aferição da idoneidade econômica e patrimonial de seus clientes;
b) não poderá participar de licitação promovida pelo Poder Público, tendo em
vista as exigências da legislação própria (Lei n. 8.666/93, art. 31, I); c) os
administradores de sociedade anônima e os administradores da limitada
responderão, perante os sócios, por eventuais prejuízos advindos da inexistência
do documento.
Finalmente, cabe uma referência aos balanços patrimoniais especial e de
determinação. São instrumentos contábeis que a sociedade empresária
providencia, quando necessária a mensuração do seu patrimônio durante o
exercício. Como visto, a obrigação legal impõe aos empresários o levantamento
do balanço patrimonial ao término de um determinado período (anual, em regra;
semestral, excepcionalmente). É o balanço ordinário ou periódico. Existem,
contudo, situações verificadas no transcorrer do período, que reclamam a
definição do valor do patrimônio líquido da sociedade empresária num
determinado momento, não coincidente com o término do exercício social.
Nesses casos, levanta-se o balanço especial, ou o de determinação. No primeiro
(balanço especial), mantêm-se os mesmos critérios de apropriação de contas e
avaliação dos bens e direitos adotados pelo balanço ordinário. Não se procede,
em outros termos, a nenhuma reavaliação de ativo ou passivo. Sua finalidade é
apenas a de atualizar o balanço, considerando os fatos contábeis verificados
desde o término do exercício até a data de seu levantamento. No último (balanço
de determinação), alteram-se os critérios de apropriação de contas e avaliação
dos bens e direitos adotados pelo balanço ordinário, para atender-se a
necessidade específica da sociedade, por exemplo, a de apurar os haveres de
sócio falecido, expulso ou dissidente. Os bens do ativo e direitos do passivo são,
então, reavaliados (a preço de mercado). Os balanços especial e de
determinação não geram desdobramentos de ordem tributária.
Capítulo 5
ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL
1. CONCEITO DE ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL
Estabelecimento empresarial é o conjunto de bens que o empresário
reúne para exploração de sua atividade econômica. Compreende os bens
indispensáveis ou úteis ao desenvolvimento da empresa, como as mercadorias
em estoque, máquinas, veículos, marca e outros sinais distintivos, tecnologia etc.
Trata-se de elemento indissociável à empresa. Não existe como dar início à
exploração de qualquer atividade empresarial, sem a organização de um
estabelecimento. Pense-se a hipótese do empresário interessado no comércio
varejista de medicamentos (farmácia). Ele deve adquirir, alugar, tomar
emprestado, ou, de qualquer forma, reunir determinados bens, como por
exemplo: os remédios e outros produtos normalmente comercializados em
farmácia, as estantes, balcões e demais itens de mobiliários, a máquina
registradora, balança e equipamentos. Além desses bens, o empresário deverá
encontrar um ponto para o seu estabelecimento, isto é, um imóvel (normalmente
alugado), em que exercerá o comércio.
Ao organizar o estabelecimento, o empresário agrega aos bens reunidos
um sobrevalor. Isto é, enquanto esses bens permanecem articulados em função
da empresa, o conjunto alcança, no mercado, um valor superior à simples soma
de cada um deles em separado. Aquele empresário interessado em se
estabelecer no ramo farmacêutico tem, na verdade, duas opções: adquirir uma
farmácia já pronta, ou todos os bens que devem existir numa farmácia. No
primeiro caso, irá despender valor maior que no segundo. Isto porque, ao
comprar o estabelecimento já organizado, o empresário paga não apenas os bens
nele integrados, mas também a organização, um “serviço” que o mercado
valoriza. As perspectivas de lucratividade da empresa abrigada no
estabelecimento compõem, por outro lado, importante elemento de sua
avaliação, ou seja, é algo por que também se paga.
O estabelecimento é, assim, uma propriedade com características
dinâmicas singulares. A desarticulação de um ou mais bens, por vezes, não
compromete o valor do estabelecimento como um todo. O industrial, ao
terceirizar a entrega de suas mercadorias, contratando serviço de uma
transportadora, pode vender os caminhões que possuía. A venda desses bens não
repercute necessariamente no valor da sua indústria. Claro que a desarticulação
de bens essenciais — cuja identificação varia enormemente, de acordo com o
tipo de atividade desenvolvida, e o seu porte — faz desaparecer o
estabelecimento e o sobrevalor que gerava. Se o industrial desenvolveu uma
tecnologia especial, responsável pelo sucesso do empreendimento, a cessão do
know how pode significar a acentuada desvalorização do parque fabril.
Este fato econômico — a agregação de sobrevalor aos bens integrantes do
estabelecimento empresarial — não é ignorado pelo direito. Quando o poder
público desapropria imóvel, em que existia um estabelecimento empresarial,
deve indenizar tanto o proprietário do imóvel como o locatário titular do
estabelecimento (Barreto Filho, 1969). Por outro lado, o direito admite a
reivindicação do estabelecimento, como um complexo organizado, além da
reivindicação de cada um de seus bens componentes (Correia, 1973:139/141).
Finalmente, a proteção desse sobrevalor pressupõe a disciplina jurídica dos
negócios relacionados ao estabelecimento (a locação empresarial com direito a
renovatória, a vedação do restabelecimento do alienante no trespasse etc.), de
forma a garantir que o investimento realizado pelo empresário na organização do
estabelecimento não seja indevidamente apropriado por concorrentes.
Estabelecimento empresarial
é o conjunto de bens reunidos
pelo empresário para a
exploração de sua atividade
econômica. A proteção jurídica
do estabelecimento empresarial
visa
à
preservação
do
investimento realizado na
organização da empresa.
O valor agregado ao estabelecimento é referido, no meio empresarial,
pela locução inglesa goodwill of a trade, ou simplesmente goodwill. No meio
jurídico, adota-se ora a expressão “fundo de comércio” (derivada do francês
fonds de commerce, e cuja tradução mais ajustada seria, na verdade, “fundos de
comércio”), ora “aviamento” (do italiano avviamento), para designar o
sobrevalor nascido da atividade organizacional do empresário. Prefiro falar em
“fundo de empresa”, tendo em vista que o mesmo fato econômico e suas
repercussões jurídicas se verificam na organização de estabelecimento de
qualquer atividade empresarial. Registro que não é correto tomar por sinônimos
“estabelecimento empresarial” e “fundo de empresa”. Este é um atributo
daquele; não são, portanto, a mesma coisa. Precise-se: o estabelecimento
empresarial é o conjunto de bens que o empresário reúne para explorar uma
atividade econômica, e o fundo de empresa é o valor agregado ao referido
conjunto, em razão da mesma atividade.
A sociedade empresária pode ser titular de mais de um estabelecimento.
Nesse caso, aquele que ela considerar mais importante será a sede, e o outro ou
outros as filiais ou sucursais (para as instituições financeiras, usa-se a expressão
“agência”, para mencionar os diversos estabelecimentos). Em relação a cada
um dos seus estabelecimentos, a sociedade empresária exerce os mesmos
direitos, sendo irrelevante a distinção entre sede e filiais, para o direito comercial.
Para os objetivos das regras de competência judicial, no entanto, ganha relevo a
identificação da categoria própria do estabelecimento, porque a ação contra a
sociedade empresária deve ser proposta no foro do lugar de sua sede, ou no de
sua filial, segundo a origem da obrigação (CPC, art. 100, IV, a e b). Quando se
trata, por outro lado, de pedido de falência ou de recuperação judicial, o juízo
competente será o do principal estabelecimento da sociedade devedora, sob o
ponto de vista econômico, independentemente de ser a sede ou uma filial (LF,
art. 3º). A distinção, por conseguinte, entre as duas espécies de estabelecimento
do mesmo empresário (sede ou filial), abstraídos os aspectos pertinentes à
competência judicial, não apresenta maiores desdobramentos para o direito
(Ferreira, 1962, 6:30/42).
Por fim, registre-se que o desenvolvimento do comércio eletrônico via
internete importou a criação do estabelecimento virtual, que o consumidor ou
adquirente de produtos ou serviços acessa exclusivamente por via de transmissão
e recepção eletrônica de dados. Aqui, cuidarei apenas do estabelecimento físico
— isto é, o acessível por deslocamento no espaço; do virtual, cuido mais à frente
(Cap. 36, item 2).
2. NATUREZA DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL
Existem nada menos que nove teorias diferentes sobre a natureza do
estabelecimento, compondo um leque de visões que vão desde a personificação
do complexo de bens até a negativa de sua relevância para o direito (cf. Barreto
Filho, 1969:77/109; Correia, 1973:121/134; Ferrara, 1952:161/162). Da rica
discussão, basta apenas destacar três pontos essenciais: 1º) o estabelecimento
empresarial não é sujeito de direito; 2º) o estabelecimento empresarial é um
bem; 3º) o estabelecimento empresarial integra o patrimônio da sociedade
empresária. Esses tópicos são suficientes para a completa e adequada
compreensão do instituto e dispensam maiores considerações sobre o infértil
debate acerca da natureza do estabelecimento empresarial.
O
estabelecimento
empresarial não pode ser
confundido com a sociedade
empresária (sujeito de direito),
nem com a empresa (atividade
econômica).
Ao se afirmar que o estabelecimento empresarial não é sujeito de direito,
o que se pretende afastar é a noção de personalização desse complexo de bens,
presente em algumas proposições da segunda metade do século XIX,
principalmente na Alemanha, que procuravam criar um conceito legal capaz de
justificar a relativa autonomia entre a empresa e o empresário. Falo aqui da tese
da empresa em si (Unternehmen an sich), cujos precursores são Endemann e
Wilhelm. Procurou-se, na oportunidade, explorar a noção do estabelecimento
como uma pessoa jurídica. A tentativa de personalização do estabelecimento,
contudo, não logrou êxito, inclusive no direito brasileiro, em que se mostra
totalmente incompatível com as normas vigentes. Considerar o estabelecimento
empresarial uma pessoa jurídica é errado, segundo o disposto na legislação
brasileira. Sujeito de direito é a sociedade empresária, que, reunindo os bens
necessários ou úteis ao desenvolvimento da empresa, organiza um complexo
com características dinâmicas próprias. A ela, e não ao estabelecimento
empresarial, imputam-se as obrigações e asseguram-se os direitos relacionados
com a empresa.
Ao seu turno, a afirmação de que o estabelecimento empresarial é bem
serve para classificá-lo entre os objetos de propriedade, diferenciando-o da
empresa propriamente dita. Antigas formulações da doutrina italiana sobre a
empresa, que a pretendiam um fenômeno poliédrico, sustentavam que o
estabelecimento era o seu perfil patrimonial ou objetivo (Asquini, 1943),
estabelecendo uma identidade parcial entre os conceitos. Mesmo no linguajar
cotidiano, encontra-se referência ao local de exploração da atividade econômica
pela palavra “empresa”. Em termos técnicos, contudo, esta relação semântica é
inadequada. Empresa é a atividade econômica desenvolvida no estabelecimento,
e não se confunde com o complexo de bens nele reunidos. Assim, o
estabelecimento empresarial pode ser alienado, onerado, arrestado ou
penhorado, mas a empresa não.
Por fim, a definição de que o estabelecimento empresarial integra o
patrimônio da sociedade empresária, composto pelos bens empregados na
implantação e desenvolvimento da atividade econômica, importa a superação da
discussão acerca da separação do patrimônio do empresário (a teoria do
estabelecimento como patrimônio de afetação). De fato, enquanto se tem em
mira a figura do empresário individual, a pessoa física que explora a atividade
econômica, cabe distinguir, entre os bens do seu patrimônio, os que estão
empregados nessa atividade dos demais (a residência do empresário e sua
família, o carro etc.). Essa distinção não tem o alcance de poupar os bens não
empregados na empresa, no momento da responsabilização do empresário
individual. Em princípio, todos os bens do patrimônio de certa pessoa, no direito
brasileiro, respondem pelas obrigações dessa pessoa (há exceções, como o bem
de família, os inalienáveis etc.). Mas a distinção era importante, ao se considerar
a questão da sucessão na chamada firma individual. De qualquer forma, como
atualmente as empresas de alguma relevância (para o direito e para a economia)
são pessoas jurídicas, revestidas da forma de sociedade limitada ou anônima, a
questão perdeu toda a sua pertinência. O estabelecimento empresarial e o ativo
do patrimônio social se confundem (cf. Ferreira, 1962, 6:4/6).
Na classificação geral dos bens, estabelecida pelo Código Civil, o
estabelecimento empresarial é uma universalidade de fato (art. 90), por encerrar
um conjunto de bens pertinentes ao empresário (cuja propriedade titulariza ou
dos quais é locador, comodatário, arrendatário etc.) e destinados à mesma
finalidade, de servir à exploração de empresa.
3. ELEMENTOS DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL
O estabelecimento empresarial é composto por elementos materiais e
imateriais. No primeiro grupo, encontram-se as mercadorias do estoque, os
mobiliários, utensílios, veículos, maquinaria e todos os demais bens corpóreos que
o empresário utiliza na exploração de sua atividade econômica. A propósito
desses, importa destacar que a sua proteção jurídica não é diferente da liberada
às demais coisas (corpóreas). Quer dizer, se o empresário tem desrespeitado seu
direito de propriedade sobre uma mercadoria do estoque, a sua proteção, no
âmbito penal e civil, será idêntica à que o direito dá a qualquer outra pessoa não
empresária, na mesma situação. O direito comercial, por outro lado, não possui
normas específicas sobre a tutela dessa parte do estabelecimento empresarial. Os
elementos imateriais do estabelecimento empresarial são, principalmente, os
bens industriais (patente de invenção, de modelo de utilidade, registro de desenho
industrial, marca registrada, nome empresarial e título de estabelecimento) e o
ponto (local em que se explora a atividade econômica). Abrange esse grupo
institutos jurídicos tradicionalmente estudados pelo direito comercial.
Há autores que consideram, entre os elementos incorpóreos do
estabelecimento, o aviamento, que é o potencial de lucratividade da empresa (por
exemplo Waldemar Ferreira, 1962, 6:209). Mas não é correta essa afirmação.
Conforme destaca a doutrina, o aviamento é um atributo da empresa, e não um
bem de propriedade do empresário (cf. Correia, 1973:119; Ferrara, 1952:167;
Barreto Filho, 1969:169). Quando se negocia o estabelecimento empresarial, a
definição do preço a ser pago pelo adquirente se baseia fundamentalmente no
aviamento, isto é, nas perspectivas de lucratividade que a empresa explorada no
local pode gerar. Isto não significa que se trate de elemento integrante do
complexo de bens a ser transacionado. Significa unicamente que a articulação
desses bens, na exploração de uma atividade econômica, agregou-lhes um valor
que o mercado reconhece. Aviamento é, a rigor, sinônimo de fundo de empresa,
ou seja, designam ambas expressões o sobrevalor, agregado aos bens do
estabelecimento empresarial em razão da sua racional organização pelo
empresário.
Outro equívoco reside na consideração da clientela como elemento do
estabelecimento empresarial. Clientela é o conjunto de pessoas que
habitualmente consomem os produtos ou serviços fornecidos por um empresário.
Embora até seja possível falar-se em um direito à clientela, cuja tutela se faz por
meio da repressão à concorrência desleal (Colombo, 1979:172/173), não se deve
confundi-la com os bens do patrimônio da sociedade empresária. De fato, não
deriva da tutela jurídica a necessária natureza de bem do objeto tutelado. A
proteção jurídica conferida ao empresário, no sentido de não se ver tolhido da
clientela conquistada, em razão de condutas condenáveis de seus concorrentes,
não significa que essa se tornou propriedade daquele. Muito pelo contrário, a
noção de clientela como objeto de domínio do empresário é imprópria, porque
cuida de um conjunto de pessoas — a clientela é isso, nada mais —, insuscetíveis
de apropriação, para o direito em vigor.
4. A PROTEÇÃO AO PONTO: LOCAÇÃO EMPRESARIAL
Ao se estabelecer, uma das principais questões que o empresário deve
equacionar diz respeito à localização do seu negócio. Em função do vulto do
empreendimento, do tipo de atividade, do perfil da clientela potencial, tem
fundamental importância o local em que se situa o estabelecimento. A distância
em relação às fontes de insumo ou aos mercados consumidores, por exemplo,
representa elemento de custo da atividade industrial. Para determinados
comércios de varejo de produtos alimentícios será útil a proximidade a alguns
equipamentos urbanos, como parada de ônibus, estações do metropolitano, vias
de grande afluxo de pessoas. Para a comercialização de material escolar,
fornecimento de cópias xerográficas, venda de livros etc. é importante a
vizinhança a uma instituição de ensino. Por outro lado, alguns ramos de comércio
e serviços concentram-se em certas regiões da cidade, as quais se tornam
referência para os consumidores. Criam-se como que ruas especializadas: a
avenida Paulista é conhecida, mesmo fora de São Paulo, como um centro
financeiro, em que se concentram agências da quase totalidade dos bancos
operantes no país.
O ponto — também chamado de “propriedade comercial” — é o local
em que o empresário se estabelece. É um dos fatores decisivos para o sucesso do
seu empreendimento. Por essa razão, o interesse voltado à permanência no ponto
é prestigiado pelo direito. Não apenas porque a mudança do estabelecimento
empresarial costuma trazer transtornos, despesas, suspensão da atividade, perda
de tempo, mas principalmente porque pode acarretar prejuízos ou redução de
faturamento em função da nova localização, o empresário tem interesse em
manter o seu negócio no local em que se encontra. Claro que, por vezes, a
mudança pode se revelar um fator de crescimento da atividade econômica
explorada, mas isto cabe ao empresário dimensionar. Se ele considera mais útil
ao seu negócio permanecer no local em que se encontra estabelecido, este seu
interesse é legítimo e goza de tutela jurídica. Proponho denominar-se direito de
inerência ao ponto o interesse, juridicamente protegido, do empresário relativo à
permanência de sua atividade no local onde se encontra estabelecido.
Ponto é o local em que se
encontra o estabelecimento
empresarial.
A
proteção
jurídica do ponto decorre da
sua importância para o sucesso
da empresa.
Quando o empresário é o proprietário do imóvel em que se estabeleceu, o
seu direito de inerência ao ponto é assegurado pelo direito de propriedade de que
é titular. Quando, entretanto, ele não é o proprietário, mas o locatário do prédio
em que se situa o estabelecimento, a proteção do seu direito de inerência ao
ponto decorre de uma disciplina específica de certos contratos de locação não
residencial que assegura, dadas algumas condições, a prorrogação compulsória.
O direito brasileiro passou a tutelar o direito de inerência ao ponto do
locatário, em 1934, por meio de um diploma legal que ficou conhecido como lei
de luvas. De acordo com a sistemática então introduzida, o comerciante e o
industrial que locasse imóvel para a exploração de sua atividade, por prazo
determinado de no mínimo 5 anos, e não tivesse mudado de ramo nos 3 últimos,
podia pleitear a renovação compulsória do vínculo locatício. Presentes tais
pressupostos, o contrato de locação era renovado, independentemente da vontade
do locador. A lei de locação predial urbana vigente (LL: Lei n. 8.245/91, art. 51)
manteve o instituto e, a partir da experiência com a aplicação judicial da lei de
luvas, aprimorou-o em muitos aspectos. Um dos mais importantes foi a extensão
do benefício às pessoas jurídicas com fins lucrativos exercentes de atividades
civis, mudança que caracterizou o descarte da teoria dos atos de comércio na
disciplina da matéria. Com a entrada em vigor do Código Civil, e adotando-se os
conceitos nele empregados, pode-se dizer que titularizam o direito à renovação
compulsória do contrato de locação os empresários (individual ou sociedade
empresária) e a sociedade simples.
4.1. Requisitos da Locação Empresarial
Classificam-se as locações prediais urbanas em duas categorias: a
residencial e a não residencial. Nesta última, encontram-se os contratos em que o
locatário é autorizado a explorar, no prédio locado, uma atividade econômica
(anote-se que também são não residenciais as locações com outras finalidades,
tais as filantrópicas, associativas, culturais, moradia de diretor etc.). Por outro
lado, se o locatário, na locação não residencial, é titular de direito de inerência ao
ponto, e pode pleitear judicialmente a renovação compulsória do contrato, então
a locação é empresarial. Nem toda locação, em que o imóvel abriga a
exploração de atividade econômica, portanto, dá ao empresário direito à
renovação. É necessário, para que a locação seja empresarial, o atendimento aos
seguintes requisitos do art. 51 da LL: a) contrato escrito, com prazo determinado
(requisito formal); b) mínimo de 5 anos de relação locatícia (requisito temporal);
c) exploração da mesma atividade econômica por pelo menos 3 anos
ininterruptos (requisito material).
Lei de Locações
Art. 51. Nas locações de
imóveis
destinados
ao
comércio, o locatário terá
direito a renovação do
contrato, por igual prazo,
desde que, cumulativamente:
I — o contrato a renovar
tenha sido celebrado por
escrito
e
com
prazo
determinado;
II — o prazo mínimo do
contrato a renovar ou a soma
dos prazos ininterruptos dos
contratos escritos seja de cinco
anos;
III — o locatário esteja
explorando seu comércio, no
mesmo ramo, pelo prazo
mínimo e ininterrupto de três
anos.
O atendimento ao requisito formal geralmente não desperta problemas. Se
o contrato é oral ou, sendo escrito, estabelece prazo de duração indeterminado, a
locação não é empresarial. Não tem o empresário, neste caso, direito de
permanecer no prédio locado. Quer dizer, a qualquer tempo, mesmo que
transcorridos já 5 anos de relação locatícia, o locador poderá denunciar o
contrato mediante aviso escrito ao locatário, com a antecedência mínima de 30
dias (LL, art. 56). Raramente o empresário tem interesse em locar imóvel, para
a sua atividade, sem prazo determinado de duração, porque a instabilidade do
vínculo indeterminado, derivada da prerrogativa de o locador retomar o imóvel a
qualquer tempo, é, em geral, incompatível com o desenvolvimento de atividade
econômica.
O requisito temporal se refere ao prazo da relação locatícia: para se
caracterizar como empresarial, é necessário que a locação tenha no mínimo 5
anos. De duas maneiras se preenche o requisito: se o contrato é firmado com este
prazo, ou superior, ou se a soma dos prazos determinados de contratos sucessivos
alcança a mesma marca (accessio temporis). Assim, se as partes, sempre por
escrito, celebram inicialmente um contrato por 3 anos e, vencido este, contratam
nova locação do mesmo imóvel, agora por 2 anos, este último contrato poderá
ser renovado compulsoriamente, visto que a relação locatícia perdura pelo
quinquênio legal. A soma dos prazos pode ser invocada pelo locatário, ou pelo seu
cessionário ou sucessor.
Em relação, ainda, à soma de prazos contratuais para o atendimento ao
requisito temporal, deve-se examinar uma situação bastante corriqueira,
consistente em alguma demora na formalização do novo contrato de locação
entre as partes. É, sem dúvida, comum que, entremeando dois contratos escritos,
transcorra um pequeno lapso de tempo sem instrumento escrito, correspondente
ao momento em que locador e locatário estavam desenvolvendo tratativas
acerca da renovação do vínculo. Claro que a locação, nesse período, existiu, e as
obrigações correspondentes (pagamento do aluguel e encargos, posse do bem
etc.) foram cumpridas pelas partes, mas não havendo instrumento escrito, devese considerar o vínculo contratual sem prazo determinado. Em razão da
existência de um contrato oral entre dois contratos escritos, o cabimento da soma
destes é, consequentemente, discutível. Em outros termos, o interregno sem
contrato escrito descaracteriza a locação empresarial? Na lei de luvas, não havia
sequer a previsão da accessio, de modo que se admitia a renovação do contrato,
desde que o tempo de negociação tivesse sido curto (algo como 2 ou 3 meses).
Este entendimento, contudo, não se coaduna com o texto da lei de 1991, que
exige “prazos ininterruptos”. No rigor do direito vigente, qualquer lapso temporal
entre dois contratos escritos, ainda que diminuto, impede a soma dos respectivos
prazos. A questão, contudo, é controvertível: Nascimento Franco, com respaldo
em pronunciamentos jurisprudenciais, admite a soma de prazos, a despeito do
interregno sem instrumento escrito, mesmo sob a vigência da lei de 1991
(1994:84/92). Segundo esse autorizado entendimento, a aceitação da renovatória,
no caso, tem o objetivo de coibir eventual tentativa do locador de frustrar os
direitos do locatário.
Uma derradeira questão se coloca, pertinente à admissibilidade da
consideração, na accessio, do tempo de vigência de um contrato escrito com
prazo indeterminado. Claro que o contrato a renovar deve ter sido firmado com
prazo determinado, para que se atenda ao requisito formal da renovação, mas
seria possível aditar a este, para alcançar os 5 anos exigidos, o tempo de relação
locatícia anterior, em que o instrumento contratual escrito não estipulava prazo de
duração? A lei nada dispõe sobre essa situação particular. Contudo, a adição do
tempo de vigência do primeiro contrato escrito (o indeterminado) ao prazo
determinado do segundo atende aos objetivos do regime de locação empresarial,
que é justamente o de tutelar a inerência ao ponto do locatário. Por esta razão,
deve-se admitir a somatória no caso.
Finalmente, no que diz respeito ao requisito material, impõe-se a
exploração, ininterrupta, pelo locatário, de uma mesma atividade econômica no
prédio locado, por pelo menos 3 anos. Este requisito de caracterização da locação
empresarial está relacionado com o sobrevalor agregado ao imóvel, em razão da
exploração de uma atividade econômica no local, de sorte a transformá-lo em
referência para os consumidores. Ora, esse sobrevalor só existe após uma certa
permanência da atividade no ponto, que foi estimada pelo legislador em 3 anos.
De acordo com a regra estabelecida, sem a exploração de uma mesma atividade
no prédio locado, pelo prazo em questão, o empresário locatário não cria, com o
seu estabelecimento, nenhuma referência aos consumidores digna de tutela
jurídica. O seu fundo de empresa não merece proteção do direito porque não
transcorreu um tempo considerado mínimo, pela lei, para a consolidação de uma
clientela. O requisito material deve estar atendido à data do ajuizamento da ação
renovatória (Buzaid, 1957:292/293). Assim, num contrato com prazo determinado
de 5 anos, a exploração do mesmo ramo de atividade econômica deve ter se
iniciado, no mais tardar, até o décimo oitavo mês de sua vigência. Se houver,
depois, mudança no ramo de atividade explorado, o locatário perde o direito de
inerência ao ponto.
4.2. Exceção de Retomada
Na locação empresarial, o direito do locatário de inerência ao ponto tem o
seu fundamento na lei ordinária (LL, art. 51). De outro lado, o direito de
propriedade do locador é constitucionalmente garantido (CF, art. 5 º, XXII). Por
esta razão, a tutela do interesse na renovação do contrato de locação, que
aproveita ao locatário, não pode importar o esvaziamento do direito real de
propriedade titularizado pelo locador. Uma disposição de lei ordinária que
contemplasse o locatário com uma tutela incompatível com a proteção à
propriedade seria, com certeza, inconstitucional. Neste sentido, sempre que
houver conflito entre os direitos — do locatário, voltado à renovação da locação,
e do locador, no tocante ao uso pleno do seu bem —, prevalecerá o fundado no
texto constitucional, em detrimento do previsto na legislação ordinária. Em outros
termos, em determinadas situações, apesar de a locação atender aos requisitos do
art. 51 da LL, ela não será renovada porque, se o fosse, o direito de propriedade
do locador restaria desprestigiado. Ainda que a ação renovatória tenha sido
aforada no interregno legal, com o estrito atendimento às condições
estabelecidas, ela não deverá ser julgada procedente, porque um direito de índole
constitucional não pode ser limitado por lei. A renovação compulsória do contrato
de locação empresarial, com efeito, só terá validade se for compatível com o
exercício do direito de propriedade pelo locador.
A renovação compulsória do
contrato
de
locação
empresarial não pode ser
incompatível com o exercício
do direito de propriedade, pelo
locador. Por essa razão,
admite-se a exceção de
retomada, na ação renovatória.
A lei de locações assinala algumas das hipóteses em que a oposição dos
interesses dos contratantes da locação empresarial é resolvida em favor do
locador, não reconhecendo o direito de inerência ao ponto. Evidentemente, tratase de uma referência exemplificativa, não exaustiva, da lei. Ou seja, em
qualquer caso, se a renovação compulsória da relação locatícia importar a
impossibilidade de o locador exercer plenamente o seu direito de propriedade,
ainda que a hipótese não se encontre especificamente contemplada na lei como
fator impeditivo da renovação, esta não pode ocorrer, porque o contrário
representaria desobediência à norma constitucional assecuratória daquele direito.
As situações previstas na lei (LL, arts. 52 e 72, II e III) são as seguintes: a)
realização de obras no imóvel, que importem sua radical transformação, por
exigência do Poder Público; b) reformas no imóvel, que o valorizem, pretendidas
pelo locador; c) insuficiência da proposta apresentada pelo locatário, na ação
renovatória; d) proposta melhor de terceiros; e) transferência de estabelecimento
existente há mais de um ano, pertencente ao cônjuge, ascendente ou descendente
do locador, ou a sociedade por ele controlada; f) uso próprio.
Nessas situações — e nas demais em que ficar caracterizada a
impossibilidade de pleno exercício do direito constitucional de propriedade, se
prorrogado o contrato de locação empresarial — o locador pode resistir
eficazmente à pretensão do locatário, voltada à renovação do vínculo locatício.
Entre o interesse de o empresário conservar o ponto, em cuja criação investiu
recursos materiais e intelectuais, e o do proprietário, no sentido de tirar dos seus
bens os mais rentáveis frutos, o sistema jurídico prestigia o último. Em outros
termos, apenas quando compatível com o interesse do dono do imóvel, tem o
locatário direito à renovação compulsória.
Merece destaque, a propósito, a hipótese de retomada por alegação de uso
próprio pelo locador. O legislador assegurou ao proprietário a exceção, mas
pretendeu limitá-la, ao vedar a exploração no prédio de atividade econômica de
idêntico ramo ao do locatário. A vedação apenas não se aplicaria, nos termos da
lei, na hipótese de locação-gerência, ou seja, na locação cujo objeto é o imóvel e
também o estabelecimento empresarial nele instalado (LL, art. 52, § 1º). A
limitação operada, contudo, não sobrevive à análise de sua constitucionalidade. O
locador é titular de um direito garantido na Carta Magna. A lei ordinária, por
evidente, pode disciplinar o exercício desse direito, inclusive para o
compatibilizar com a função social, também determinada pela Constituição (arts.
5º, XXIII, e 170, II). Entretanto, a lei não pode impedir o uso, gozo e disposição
do bem pelo seu proprietário, sob pena de invalidade.
Quando o direito de propriedade do locador entra em conflito com o
direito de inerência ao ponto do locatário, está em questão uma simples oposição
de interesses privados, individuais. Nem sequer se compromete a continuidade da
empresa explorada pelo locatário, posto que a retomada do prédio significa,
estritamente, apenas a mudança do local da exploração da atividade econômica.
Neste contexto, não haveria razões para se invocar alguma restrição
constitucional ao pleno exercício do direito de propriedade, de modo a se
prestigiar a inerência ao ponto. Nenhum interesse social ou metaindividual é
atingido ou prejudicado, com a retomada do prédio pelo locador. Assim sendo,
deve-se entender de modo absoluto e ilimitado a prerrogativa do locador de
impedir a renovação compulsória do contrato de locação, sob a alegação de uso
próprio. Quer dizer, o locador pode manifestar oposição à renovatória, por
pretender usar o bem diretamente, para quaisquer finalidades. Isto abrange desde
a hipótese de moradia do locador e sua família, até a de exploração de atividade
econômica idêntica à do locatário.
É inconstitucional, portanto, a limitação do art. 52, § 1º, da LL, à alegação
de uso próprio como fator impeditivo da renovação do contrato de locação. Pode,
dessa forma, o locador arguir, na contestação à ação renovatória, o seu interesse
em retomar o bem, para nele explorar igual ramo de atividade do locatário.
Claro está, por outro lado, que é devida, na hipótese, a indenização em favor do
locatário, pela perda do ponto, sempre que tiver sido ele o responsável pela
organização do estabelecimento empresarial naquele lugar.
4.3. Ação Renovatória
O direito de inerência ao ponto é exercido por meio de uma ação judicial
própria, denominada renovatória. Esta ação deve ser proposta pelo locatário no
prazo de decadência assinalado pela lei, isto é, entre 1 ano e 6 meses antes do
término do prazo do contrato a renovar. Em termos práticos, a renovação deve
ser pleiteada pelo locatário no transcurso dos primeiros 6 meses do último
período anual de vigência do contrato de locação. Se o locatário não conseguir
negociar com o locador, antes do fim desse prazo, a assinatura de novo contrato
de locação por escrito, deve promover a ação renovatória, para assegurar o seu
direito. Como é decadencial o prazo, não se interrompe, nem se suspende.
Note-se que a perda do prazo para a ação renovatória não importa o fim
do vínculo locatício. Na verdade, encerrado o prazo contratual determinado, se as
partes simplesmente continuarem cumprindo as obrigações próprias da locação,
considera-se prorrogado o vínculo. Neste caso, contudo, a locação perde a sua
natureza empresarial e o locatário sujeita-se à retomada do bem, pelo locador,
mediante simples aviso com 30 dias de antecedência.
O direito à renovação
compulsória do contrato de
locação empresarial é exercido
pelo locatário, por meio de
uma ação judicial específica: a
renovatória.
Na petição inicial, além de comprovar o atendimento aos requisitos da
locação empresarial e o exato cumprimento do contrato, inclusive quanto ao
pagamento dos impostos e taxas que lhe cabia, o locatário deve apresentar uma
proposta de aluguel para o novo período locatício. Diz a lei que a proposta deve
indicar, de modo claro e preciso, as condições negociais oferecidas para a
renovação (LL, art. 71, IV). O mérito da contestação do locador pode ter três
fundamentos: a) desatendimento dos requisitos da locação empresarial; b)
decadência do direito à renovação; c) exceção de retomada. No primeiro e
segundo casos, a improcedência da renovatória não significa, necessariamente, o
fim do vínculo locatício. A decisão judicial apenas não reconhece o direito do
locatário à renovação compulsória, mas não obsta o prosseguimento da locação
não residencial (cf. Franco-Gondo, 1968:255/256). No último caso, entretanto, ao
decretar a improcedência da ação, o juiz determinará a expedição de mandado
de despejo, para a desocupação do imóvel, em 30 dias (art. 74).
4.4. Indenização do Ponto
O empresário, por vezes, apesar de preencher os requisitos legalmente
estabelecidos para pleitear a renovação compulsória do contrato, não consegue
ver julgada procedente a sua renovatória, em virtude do acolhimento de exceção
de retomada arguida pelo locador. Trata-se, como visto (item 4.2), de uma
decorrência do princípio da supremacia constitucional. O legislador ordinário não
pode assegurar ao inquilino um direito que importe o esvaziamento da
propriedade, porque isto seria inconstitucional. A forma de se compatibilizar a
retomada do bem com os legítimos interesses do locatário — que criou o fundo
de empresa — é a sua indenização pela perda do ponto. De fato, o empresário
constitui no prédio, por ele locado para o exercício da atividade empresarial, um
ponto de referência para os consumidores. Se, em seguida, outro negociante
ocupa o mesmo imóvel, para explorar atividade afim, há um inquestionável
enriquecimento indevido, posto que este último usufrui, sem a necessária
retribuição, dos efeitos do investimento, material e intelectual, feito pelo anterior
ocupante do imóvel, ao instalar ali a sua empresa. Para que não se verifique o
enriquecimento indevido, a obediência ao mandamento constitucional protetivo
do direito de propriedade exige a previsão legal de mecanismos de
compensação, em favor do empresário que perde o ponto.
Não é qualquer hipótese de desacolhimento da ação renovatória que dá
ensejo à indenização em favor do locatário. Apenas se a improcedência decorre
do atendimento à exceção de retomada apresentada pelo locador, terá o
empresário o ressarcimento pela perda do ponto. As duas outras hipóteses de
mérito de contestação — desatendimento dos requisitos da locação empresarial
ou perda do prazo para a proprositura da ação —, se acolhidas, não importam o
dever de indenizar. Também não conduz ao ressarcimento o insucesso da ação
renovatória, em razão de matéria preliminar. Dito de outra forma, os
pressupostos para o empresário ter direito à indenização pela perda do ponto são
três: a) caracterização da locação como empresarial, com o atendimento aos
requisitos formal, temporal e material; b) ajuizamento da ação renovatória
dentro do prazo; c) acolhimento de exceção de retomada.
Presentes, pois, estes pressupostos, caberá a indenização pela perda do
ponto nas seguintes hipóteses: a) se a exceção de retomada foi a existência de
proposta melhor de terceiro; b) se o locador demorou mais de 3 meses, contados
da entrega do imóvel, para dar-lhe o destino alegado na exceção de retomada
(por exemplo: realização de obras, transferência de estabelecimento de
descendente etc.); c) exploração, no imóvel, da mesma atividade do locatário; d)
insinceridade da exceção de retomada. Desta lista, apenas as duas primeiras são
especificamente mencionadas na lei (LL, art. 52, § 3º), decorrendo as demais dos
princípios gerais de direito, que vedam o enriquecimento indevido e tutelam a
boa-fé.
Se caracterizada a locação
empresarial e proposta a ação
renovatória dentro do prazo, o
locatário
terá,
em
determinadas situações, direito
à indenização pela perda do
ponto, caso o locador obtenha
a retomada do imóvel.
Acerca da hipótese c, de exploração do mesmo ramo de atividade do
locatário, importa ressalvar a situação da locação-gerência, aquela que abrange
não só o imóvel, mas também um estabelecimento empresarial nele abrigado.
Se, por exemplo, um empresário, estabelecido em prédio de sua propriedade,
resolve afastar-se temporariamente do negócio, ele pode se utilizar do
mecanismo da locação-gerência, isto é, ele pode alugar o seu imóvel a outro
empresário, junto com o estabelecimento empresarial (cf. Ripert-Roblot,
1946:473/484). Nesse caso, o responsável pela criação, no local, de um ponto de
referência dos consumidores não é o locatário-gerente, mas o locador, que,
antes, ali explorava a atividade. Na locação-gerência, é cabível a ação
renovatória e, entre as exceções de retomada, pode o locador invocar sua
pretensão de retomar o exercício da empresa, no imóvel objeto de contrato.
Embora o ramo de negócio seja o mesmo que o do locatário, a indenização pela
perda do ponto não é cabível, por faltar o fundamento do enriquecimento
indevido.
A indenização deve cobrir os prejuízos e lucros cessantes em decorrência
tanto da mudança como da perda do lugar e desvalorização do fundo. Em suma,
tudo que o empresário perdeu e o que razoavelmente deixou de lucrar em razão
da retomada do imóvel (LL, art. 52, § 3º). Observe-se que o ponto não se
confunde com os demais elementos integrantes do estabelecimento, nem com
este tampouco. Assim, mesmo se o locatário levantar todos os bens — materiais
ou imateriais — por ele instalados no prédio locado, o ponto, enquanto referência
aos consumidores, permanecerá pelo menos por algum tempo. O
locupletamento, nessa situação, ocorre se é explorada a mesma atividade do
locatário, no local, ainda que sob outro nome, com instalações diversas, pessoal
próprio etc., sendo por isso devida a indenização.
5. “SHOPPING CENTER”
O proprietário de um terreno que nele constrói prédio destinado a abrigar
um estabelecimento empresarial e, depois de concluída a obra, loca-o a pessoa
interessada em explorar atividade econômica no local, dá ao seu bem certo fim
rentável. Ele, proprietário, contudo, não é empresário. Se, no mesmo terreno,
construir um prédio constituído de espaços relativamente autônomos, para fins de
os alugar a quaisquer pessoas interessadas em explorar atividade econômica no
lugar, ele ainda não pode ser considerado empresário. Continua apenas o titular
de propriedade imobiliária (uma “galeria”), de que extrai renda. Se, finalmente,
o prédio é constituído de espaços relativamente autônomos, e o proprietário
organiza a distribuição desses espaços, de forma a locá-los para pessoas
interessadas em explorar determinadas atividades econômicas predefinidas, ele
já se pode considerar empresário. Ele é titular de empresa do ramo shopping
center.
No empreendimento denominado shopping center, o empresário deve
organizar os gêneros de atividade econômica (comércio ou prestação de
serviços) que se instalarão no grande estabelecimento. A ideia básica do negócio
é pôr à disposição dos consumidores, num local único, de cômodo acesso e
seguro, a mais variada sorte de produtos e serviços. Assim, as ocupações dos
espaços devem ser planejadas, atendendo às múltiplas necessidades do
consumidor. Geralmente, não podem faltar num shopping center certas
modalidades de serviços (correios, cinemas, lazer etc.) ou comércio
(restaurantes, lanchonetes, papelarias etc.), mesmo que a sua principal atividade
seja estritamente definida (utilidades domésticas, moda, material de construção
etc.), pois o objetivo do empreendimento volta-se ao atendimento de muitas das
necessidades dos consumidores. É esta concentração variada de fornecedores
que acaba por atrair maior clientela, redundando benefício para todos os
negociantes instalados no shopping.
O empreendimento compreende, inclusive, uma relativa organização da
competição empresarial. Este aspecto do negócio abrange não apenas as
promoções de venda conjuntas (em épocas de grande apelo consumista, como
Natal ou Dia das Mães), a definição de ramos de atividades que podem ou
devem ser exploradas com maior ou menor visibilidade, em razão das evoluções
do mercado de consumo, como também a proibição da competição autofágica
(o lojista se compromete a não manter outro estabelecimento nas cercanias).
Sem a organização da concorrência interna, não se pode considerar shopping
center uma simples concentração de lojas num mesmo prédio. Neste sentido, o
empresário titular do shopping deve ficar atento às exigências do consumo, às
marcas em ascensão, aos novos serviços e tecnologias, aos modismos, bem
como ao potencial econômico de cada negociante instalado no complexo.
Finalmente, o empreendimento dessa natureza pressupõe investimentos em
publicidade, instalações comuns, aprimoramento das condições de comodidade,
decoração e segurança do prédio etc. Mesmo para enfrentar a concorrência
entre os shopping centers, o empresário deve constantemente ajustar o complexo
às imposições do mercado de consumo (por exemplo: substituindo ou subtraindo
lojas âncoras, oferecendo produtos da moda, melhorando a praça de
alimentação).
Em suma, o empresário que explora shopping center desenvolve atividade
econômica bastante singular, que não se reduz a um simples negócio imobiliário.
Há todo um planejamento de distribuição do espaço (o tenant mix), de sorte a
oferecer aos consumidores uma variada gama de produtos, marcas, além de
atrativos na área de lazer e restauração. Ao locar uma loja, o empreendedor não
pode perder de vista o complexo em sua inteireza, devendo atentar à necessária
combinação da diversidade de ofertas, fator inerente ao sucesso do
empreendimento. Se no shopping já há uma farmácia estabelecida, não se
justifica, pela lógica do negócio, locar espaço para outra. Se o consumidor está
nutrindo particular afeição por certa marca de doceria, o empreendedor deve
procurar atrair o titular desta, ou um franqueado, propondo-lhe condições
vantajosas para se estabelecer no shopping. Por sua vez, o lojista, ao ocupar
espaço no centro de compras, passa a fazer parte de um sistema empresarial,
devendo se submeter às normas fixadas quanto ao horário de funcionamento,
padrão dos produtos oferecidos, layout, bem como participar das promoções
conjuntas de vendas, contribuir para a manutenção dos espaços comuns, integrar
a associação dos lojistas etc. Pode-se, portanto, compreender que nem o
empreendedor de shopping center é um locador comum, nem o lojista um
locatário comum.
É de tal forma especialíssima a situação das partes no contrato entre o
empreendedor do shopping center e o lojista, que alguns doutrinadores põem em
questão a sua natureza. Orlando Gomes, por exemplo, considera-o um contrato
atípico misto, no que é seguido por Alfredo Buzaid (revendo anterior
entendimento sobre o assunto), Fernando Albino e Nascimento Franco, entre
outros. Rubens Requião, a seu turno, vê na relação jurídica entre o empreendedor
e o lojista uma coligação de contratos, entre os quais o de locação. Há, inclusive,
sugestões de denominação específica para este tipo de vínculo: contrato de
estabelecimento (Alfredo Buzaid) ou de centro comercial (Villaça Azevedo). A
lei, entretanto, prestigia o entendimento de parte da doutrina que considera de
natureza locatícia a relação jurídica entre o empreendedor do shopping center e
o empresário que nele se estabelece. Autores como Washington de Barros
Monteiro, Caio Mário da Silva Pereira e Modesto Carvalhosa, embora admitam a
existência de aspectos muito específicos na relação contratual em foco, não os
consideram suficientes à descaracterização da natureza locatícia (cf. em ArrudaLobo, 1984, e Pinto-Oliveira, 1991).
De minha parte, considero que entre o empreendedor e o lojista existe um
contrato de locação, embora revestido de cláusulas especiais com vistas ao
atendimento das características próprias do shopping. Estas cláusulas dizem
respeito, essencialmente, à remuneração devida pelo lojista ao empreendedor, e
costumam desdobrar o aluguel numa parcela fixa, reajustável segundo índice e
periodicidade contratados, e noutra variável, proporcional ao faturamento do
locatário. Para mensurar o valor da parcela variável do aluguel, o contrato
autoriza o locador proceder à auditoria das contas do locatário, à vistoria das
instalações, à fiscalização do movimento econômico ou à adoção de outras
providências úteis à exata definição do seu faturamento. Aliás, em épocas de
grande estímulo ao consumo (assim, o Natal, o Dia das Mães etc.), os shopping
centers promovem sorteios entre os consumidores, que recebem cupons
numerados em quantidade proporcional ao valor da compra realizada. Estes
certames, além da finalidade óbvia de atrair consumidores, também servem
para o controle do faturamento dos lojistas.
O shopping center é um
empreendimento peculiar, em
que espaços comerciais são
alugados para empresários
com determinados perfis, de
forma que o complexo possa
atender diversas necessidades
dos consumidores.
Além do aluguel, há outras obrigações de natureza pecuniária assumidas
pelo locatário de loja em shopping center. Geralmente, paga-se uma prestação
denominada res sperata, retributiva das vantagens de se estabelecer num
complexo comercial que possui já uma clientela constituída. O consumidor, por
certo, muitas vezes procura o shopping e não especificamente um de seus
lojistas. O fundo de empresa do empreendedor do shopping center (chamado de
sobrefundo por Ives Gandra) é, em certa medida, utilizado pelos locatários, que
devem, em contrapartida, remunerá-lo por meio da res sperata. Também devem
os locatários se filiar à associação dos lojistas, pagando a mensalidade de
associado correspondente. Caberá à associação custear despesas de interesse
comum, notadamente com publicidade. Em alguns shopping centers, por fim, é
devido em dezembro o dobro da parte fixa do aluguel, tendo em vista o
extraordinário movimento do comércio, em geral, nesta época do ano.
As obrigações do locatário, relacionadas à específica situação de um
negociante estabelecido num centro de compras, encontram amplo respaldo na
lei, que determina a observância das condições pactuadas com o empreendedor
(LL, art. 54, caput). As despesas de manutenção das partes comuns do shopping,
inclusive algumas de natureza extraordinária, podem ser carreadas aos lojistas
pelo contrato de locação, desde que constem do orçamento. A lei só impede
sejam cobradas dos lojistas as despesas com: a) obras de reformas ou
acréscimos que interessem à estrutura integral do imóvel; b) pintura das
fachadas, esquadrias externas, empenas, poços de aeração e iluminação; c)
indenizações trabalhistas e previdenciárias pela dispensa de empregados,
anteriores ao início da locação; d) obras ou substituições de equipamentos, que
impliquem modificação do projeto original; e) obras de paisagismo.
Em virtude das particularidades do contrato de locação de espaço
comercial em shopping, discutia-se o cabimento da ação renovatória em favor
do lojista (Franco, 1994:63/65; Pinto, 1992:54/57). A dinâmica característica do
empreendimento, em certas ocasiões, revela-se incompatível com a
permanência de alguns lojistas. Se, por exemplo, determinada marca de produtos
de perfumaria tem recebido dos consumidores maior aceitação que outra, o
shopping, com espaço locado para o comerciante titular desta última, tem
interesse — partilhado por todos os demais locatários — em substituí-lo pelo
titular da marca em ascensão. O exercício do direito de inerência ao ponto pelo
lojista, no entanto, pode entravar o pleno desenvolvimento do complexo. Por esta
razão, uma das consequências da tentativa de descaracterizar o vínculo contratual
como locação era a de afastar a possibilidade de renovação compulsória.
A lei de locações, contudo, admite claramente a renovação compulsória
do contrato de locação de espaços em shopping centers (LL, art. 52, § 2º). Devese ressaltar, contudo, que, se a renovação importa prejuízo ao empreendimento,
caberá a exceção de retomada. Trata-se de uma questão de fato, a ser provada
pelo empresário titular do shopping center. Quando a tutela do direito de
inerência redundar injustificável redução de receita do locador, por inadequação
do negócio do locatário às evoluções do mercado de consumo, é decorrência da
proteção constitucional do seu direito de propriedade o impedimento da
renovação compulsória da locação. O locatário receberá a correspondente
indenização, pela perda do ponto, se for o caso, mas não poderá o empreendedor
deixar de exercer o seu direito de propriedade — neste caso, traduzido pela
faculdade de reorganizar a oferta dos produtos e serviços, no interior do
complexo — para fins de ajustar a exploração econômica do seu bem às
demandas dos consumidores.
6. ALIENAÇÃO DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL
O estabelecimento empresarial pode ser vendido pelo empresário que o
titulariza. O contrato de compra e venda de estabelecimento denomina-se
trespasse, e é muitas vezes proposto, no meio empresarial, por meio das
expressões “passa-se o ponto”. O trespasse não se confunde com a cessão de
quotas sociais de sociedade limitada ou a alienação de controle de sociedade
anônima. São institutos jurídicos bastante distintos, embora com efeitos
econômicos idênticos, na medida em que são meios de transferência da
empresa. No trespasse, o estabelecimento empresarial deixa de integrar o
patrimônio de um empresário (o alienante) e passa para o de outro (o
adquirente). O objeto da venda é o complexo de bens corpóreos e incorpóreos,
envolvidos com a exploração de uma atividade empresarial. Já na cessão de
quotas sociais de sociedade limitada ou na alienação de controle de sociedade
anônima, o estabelecimento empresarial não muda de titular. Tanto antes como
após a transação, ele pertencia e continua a pertencer à sociedade empresária.
Essa, contudo, tem a sua composição de sócios alterada. Na cessão de quotas ou
alienação de controle, o objeto da venda é a participação societária. As
repercussões da distinção jurídica são significativas, em especial no que diz
respeito à sucessão empresarial, que pode ou não existir no trespasse, mas não
existe na transferência de participação societária.
Exemplifique-se: se Antonio e Benedito pretendem se tornar os titulares da
empresa hoje explorada pela sociedade Bandeirantes Ltda., de que são sócios
Carlos e Darcy, há dois caminhos possíveis. O primeiro é a constituição de uma
sociedade entre eles (suponha-se, Primavera Ltda.), que adquire o
estabelecimento empresarial da Bandeirantes Ltda. Nessa hipótese, o contrato
entre as duas sociedades é o trespasse, e será cabível discutir se a adquirente
tornou-se, ou não, sucessora da alienante (isto é, se os credores da Bandeirantes
Ltda. poderão, ou não, exercer seus direitos contra a Primavera Ltda.). No
segundo caminho, Antonio adquire as quotas de Carlos e Benedito, as de Darcy.
Não se verifica o trespasse: o estabelecimento empresarial, pertencente à
Bandeirantes Ltda. continua da propriedade da mesma pessoa jurídica. O que se
negocia, nessa hipótese, não é o estabelecimento, mas as quotas representativas
do capital da sociedade empresária. Aqui, a questão da sucessão não se põe,
porque os credores da Bandeirantes Ltda. continuam titulares de seus créditos
perante essa pessoa jurídica, independentemente de quem sejam os seus sócios.
6.1. A Q uestão da Sucessão
O direito de diversos países se preocupa em disciplinar a alienação do
estabelecimento empresarial, para fins de tutelar os interesses dos credores. Na
Alemanha, o Handelsgesetzbuch, de 1897, contempla regra que importa a
responsabilidade do adquirente do estabelecimento empresarial pelas obrigações
do alienante, quando mantido o nome empresarial (Koller-Roth-Morck,
1996:109/117). O direito francês, por sua vez, desde 1909, admite que os credores
do alienante se oponham à venda do estabelecimento, inclusive para discutir o
preço contratado, que deve ser suficiente para ele solver suas obrigações (RipertRoblot, 1947:503/504). Na Argentina, desde 1934, a lei determina que o preço do
estabelecimento não pode ser inferior ao total do passivo do alienante, e o seu
pagamento não pode ser realizado senão depois de transcorridos 10 dias da
publicação do anúncio da venda. Essas duas limitações são estabelecidas, para
que terceiros possam reclamar, naquele prazo, junto ao adquirente, a satisfação
do crédito titularizado perante o alienante. Após atender às reclamações dos
credores, o adquirente paga ao alienante o saldo do valor pactuado. Por fim, cabe
lembrar o direito italiano, em que disposições do Codice Civile, de 1942, definem
que o adquirente se sub-roga em todas as obrigações ativas e passivas do
alienante, salvo as de caráter pessoal e as expressamente ressalvadas no contrato.
No Brasil, até a entrada em vigor do Código Civil, considerava-se que o
passivo não integrava o estabelecimento (Barreto Filho, 1969:228/229); em
consequência, a regra era a de que o adquirente não se tornava sucessor do
alienante. Isto é, os credores de um empresário não podiam, em princípio,
pretender o recebimento de seus créditos de outro empresário, em razão de este
haver adquirido o estabelecimento do primeiro. Admitia-se, então, somente três
hipóteses de sucessão: a assunção de passivo expressa no contrato, as dívidas
trabalhistas e fiscais. Com a entrada em vigor do Código Civil, altera-se por
completo o tratamento da matéria: o adquirente do estabelecimento empresário
responde por todas as obrigações relacionadas ao negócio explorado naquele
local, desde que regularmente contabilizadas, e cessa a responsabilidade do
alienante por estas obrigações no prazo de um ano (art. 1.146). Claro está que
somente nos trespasses realizados após a vigência do Código Civil, opera-se a
sucessão e liberação nestes termos; nos anteriores, vigora o princípio da não subrogação de passivo em decorrência do trespasse.
O contrato de alienação do estabelecimento empresarial deve ser levado a
registro na Junta Comercial e publicado na imprensa oficial (CC, art. 1.144).
Além dessas formalidades, se ao alienante não restarem bens suficientes para
solver o passivo relacionado ao estabelecimento vendido, a eficácia do contrato
ficará na dependência do pagamento de todos os credores ou da anuência destes.
Em decorrência, o empresário que pretende alienar o seu estabelecimento
empresarial deve solicitar o prévio consentimento dos seus credores. Este pode
ser expresso (isto é, dado por escrito) ou tácito (caracterizado pela inércia do
credor, nos 30 dias seguintes à notificação judicial ou extrajudicial). O alienante
apenas está dispensado da precaução na hipótese em que permanece solvente,
mesmo após a alienação (CC, art. 1.145). Assim, a sociedade empresária, com
diversas filiais e grande patrimônio, pode se dispensar de obter a anuência dos
credores, ao resolver vender uma delas, caso permaneça com os demais
estabelecimentos.
Em suma, o direito brasileiro estabelece uma determinada formalidade,
prévia ou concomitante ao trespasse, que é a anuência expressa ou tácita dos
credores, dispensando-a apenas no caso de solvência do alienante, posterior à
transação. Se tal formalidade não é cumprida, a consequência será altamente
prejudicial ao adquirente, pois ele poderá perder o estabelecimento, em favor da
coletividade dos credores, caso o alienante venha a ter a sua falência decretada
(LF, art. 129, VI). É ineficaz, perante a massa falida, a venda do estabelecimento
empresarial realizada sem as precauções acima. O adquirente que não se
acautela, no sentido de exigir do alienante a prova da anuência dos credores ou
da sua solvência, perde, em favor da massa falida, o estabelecimento
empresarial que houvera comprado.
Para evitar a ineficácia do trespasse, bem como para administrar
diretamente os passivos de algum modo ligados ao estabelecimento que passa a
assumir, o adquirente costuma contratar com o alienante a assunção de todas as
obrigações. É comum — e atende, em geral, à conveniência dos empresários
contratantes — a inserção de cláusula, no trespasse, que transfere ao adquirente a
responsabilidade pela solução das dívidas pendentes do alienante, ligadas ao
estabelecimento transacionado. Normalmente, em anexo ao instrumento
contratual, relacionam--se os débitos e identificam-se os credores e valores
correspondentes, para maior segurança quanto à extensão da obrigação assumida
pelo comprador do estabelecimento. Claro que as partes podem também
estabelecer o inverso no contrato de trespasse: o adquirente não assume nenhum
passivo do alienante, e fica este obrigado em regresso a indenizá-lo caso um
credor venha a obter sua responsabilização em juízo.
Considera-se
sucessor
o
adquirente do estabelecimento,
quando a obrigação do
alienante
se
encontrava
regularmente
contabilizada.
Independentemente de regular
escrituração, o adquirente é
sempre sucessor do alienante,
em relação às obrigações
trabalhistas e fiscais ligadas
ao estabelecimento.
A regular contabilização da dívida para fins de responsabilização do
adquirente do estabelecimento empresarial não se exige em relação a passivos
de duas ordens: trabalhista e tributário. Também não se verifica relativamente a
essas obrigações a liberação do alienante no prazo de um ano.
De acordo com o art. 448, da CLT, mudanças na propriedade da empresa
não afetam os contratos de trabalho. Essa regra, na verdade, abre ao empregado
duas opções: a de demandar o antigo proprietário do estabelecimento
empresarial em que trabalhava, ou o atual. Em qualquer hipótese, o empresário
reclamado não poderá, em contestação, opor-se à pretensão do empregado, com
base nos termos do contrato de trespasse. Se a reclamação foi proposta contra o
alienante do estabelecimento empresarial, em nada o aproveita, perante a Justiça
do Trabalho, a cláusula contratual em que transferiu para o adquirente o passivo
que possuía. Da mesma forma, se o demandado é o adquirente, ele não poderá
opor ao ex-empregado do alienante os termos do negócio de trespasse, pelos
quais não se tornou cessionário das dívidas. Em suma, perante o empregado do
alienante, as condições contratadas entre o adquirente e o alienante ou a
contabilidade referente ao estabelecimento não operam efeitos, quer a
reclamação tenha sido proposta contra este último, quer contra o primeiro.
Apenas na composição dos interesses dos próprios empresários contratantes, no
juízo de regresso, interessam tais condições: se o adquirente é responsabilizado
perante antigo empregado do alienante, e, pelo instrumento de trespasse, não
havia expressamente assumido aquele passivo trabalhista, ou a dívida não se
encontrava regularmente contabilizada, terá direito de regresso para se ressarcir
do prejuízo; o mesmo direito terá o alienante, se o trespasse previa a cessão da
dívida, ou mesmo omisso, estava esta regularmente escriturada.
Em relação ao passivo fiscal, devem-se distinguir, nos termos do art. 133
do CTN, duas situações: se o alienante deixa de explorar qualquer atividade
econômica, ou se continua a exploração de alguma atividade (mesmo que
diferente da explorada no estabelecimento vendido), nos seis meses seguintes à
alienação. No primeiro caso, a responsabilidade do adquirente é direta, e pode o
fisco cobrar dele todas as dívidas tributárias do alienante, originadas da atividade
desenvolvida no local do estabelecimento. No segundo, o adquirente responde de
forma subsidiária, quer dizer, apenas no caso de falência ou insolvência do
alienante. Registre-se que a sucessão tributária somente se caracteriza, em
qualquer caso, se o adquirente continuar explorando, no local, idêntica atividade
econômica do alienante. Se alterar o ramo de atividade do estabelecimento, não
responde mais pelas dívidas fiscais do alienante, nem direta, nem
subsidiariamente.
Assim, se o empresário é executado por dívida fiscal do antigo titular do
seu estabelecimento, sendo iguais os ramos de atividades ali exploradas por ele e
pelo antecessor, terá de realizar a prova, em embargos à execução, de que o
alienante ainda explora alguma atividade econômica. Se produzida essa prova,
conclui-se que o fisco não é titular do direito de responsabilizá-lo, enquanto não
exaurido o patrimônio do alienante; não produzida a prova de que o alienante
ainda é empresário estabelecido em outro local, prossegue-se a execução contra
o adquirente. De se registrar, também, que, perante o fisco, são inoponíveis os
termos do trespasse ou a omissão na contabilidade do alienante, que apenas
podem eventualmente fundamentar o direito de regresso. Quer dizer, se o
adquirente for judicialmente responsabilizado por obrigação tributária do
alienante, poderá ressarcir-se junto a esse, se o contrato de trespasse previa a não
assunção da dívida objeto da execução fiscal. Do mesmo modo, se o alienante
foi executado por dívida fiscal que, nos termos do contrato de trespasse, era da
responsabilidade do adquirente, terá contra esse o direito de regresso.
6.2. Trespasse e Locação Empresarial
Na maioria dos casos, o estabelecimento empresarial se encontra em
prédio locado pela sociedade empresária. Quando assim é, o trespasse envolve
necessariamente a cessão da locação, que depende de autorização do locador
(LL, art. 13) ou pode se ocasionar a rescisão desta em 90 dias seguintes à sua
publicação (CC, art. 1.148). O adquirente do estabelecimento empresarial situado
em imóvel locado, desse modo, deve negociar não apenas com o titular do fundo
de empresa (o locatário), como também com o dono do imóvel (o locador),
pagando eventualmente luvas a esse último.
A anuência do locador para a cessão da locação pode ser expressa ou
tácita, caracterizando-se a última pela sua inércia, no prazo de 30 dias, após a
notificação do trespasse. Se não manifestada a concordância do locador, por uma
dessas formas, sujeita-se o adquirente à retomada do imóvel, a qualquer tempo
(LL, art. 9º, II). Além disso, o empresário não terá direito à ação renovatória,
ainda que preenchidos os requisitos legais característicos da locação empresarial,
mesmo que o locador não tenha manifestado oposição formal (LL, art. 13, § 1º).
Independente de receber a notificação pleiteando a autorização para a
cessão, ou mesmo de respondê-la, pode o locador, nos 90 dias seguintes à
publicação do contrato de alienação na imprensa oficial, rescindir a locação, se
houver justa causa. Caracterizam-na fatos como a não aprovação do novo fiador
apresentado, existência de protestos em nome do adquirente, ou de ações
judiciais intentadas contra este, sua situação patrimonial, econômica ou
financeira insatisfatória ao atendimento das condições normalmente exigidas
pelo locador etc. Em ocorrendo a rescisão da locação empresarial nestes termos,
o alienante deve indenizar o adquirente pelos danos decorrentes.
Desse modo, para fins de preservar a integridade de seu investimento, o
empresário, ao locar imóvel para a instalação da empresa, deve negociar com o
locador a inserção, no contrato de locação, da anuência prévia para eventual
cessão ou outra disposição contratual expressa que contemple a sub-rogação. Se
não conseguir essa condição negocial no início do vínculo locatício, ele poderá vir
a ter dificuldades para recuperar o investimento, quando do trespasse, caso o
locador imponha luvas excessivas para anuir com a cessão do vínculo locatício.
O adquirente do estabelecimento empresarial, uma vez dada a
autorização, pelo locador, para a cessão ou sub-rogação da locação, poderá se
aproveitar dos prazos relativos ao alienante, para fins de ajuizamento da ação
renovatória. Os prazos anteriores podem ser somados aos seus tanto para o
atendimento do requisito temporal, que é o de 5 anos de contrato (LL, art. 51, II),
como do requisito material, que exige 3 anos de exploração do mesmo ramo de
atividade (LL, art. 51, III). Desse modo, imagine-se que o alienante era locatário
de um contrato por prazo determinado de 4 anos, e que, após 3, cedeu a locação
para o adquirente, com a anuência do locador. Imagine-se, também, que, ao
anuir com a cessão, o locador assinou novo contrato com o adquirente, fixando o
prazo de 2 anos de duração. Nessa hipótese, está caracterizada a locação
empresarial, tendo o adquirente do estabelecimento direito de pleitear a
renovação compulsória do vínculo (LL, art. 51, § 1º).
6.3. Cláusula de Não Restabelecimento
O alienante do estabelecimento empresarial que se restabelece em
concorrência com o adquirente, em geral acaba atraindo para o novo local de
seus negócios a clientela que formou no antigo. Note-se que o desvio de clientela,
atualmente, deve-se menos ao contato pessoal entre o consumidor e
comerciante, e mais às informações que o empresário alienante detém sobre a
realidade do mercado em que opera. O uso dessas informações na exploração da
mesma atividade, no novo estabelecimento concorrente, é o elemento decisivo
para a atração da clientela formada em torno do outro. Esse fato, por evidente,
importa prejuízo ao adquirente que, embora esteja exposto à concorrência em
geral, pagou ao alienante um determinado valor, em razão especificamente do
aviamento do estabelecimento transacionado. Ora, o restabelecimento do
alienante pode, por essa razão, caracterizar enriquecimento indevido. Para evitálo, é comum nos contratos de trespasse (e também em outros atos empresariais,
como a cessão de participação societária, a locação de espaço em shopping
center, a rescisão de franquia etc.) a inserção de cláusula proibitiva de
restabelecimento do alienante.
O direito positivo italiano foi o primeiro a disciplinar o assunto, prevendo a
interdição do restabelecimento do alienante, nos 5 anos seguintes ao trespasse. Na
Itália, a propósito, os primeiros julgados considerando irregular a concorrência
do alienante datam do início do século XX (Colombo, 1979:172). É, no entanto,
unânime, na doutrina e jurisprudência de diversos países, que a validade da
interdição, mesmo a legalmente prevista, depende de alguns limites. O
empresário que alienou o seu estabelecimento não pode ficar impedido de
explorar atividades não concorrentes, ou ficar vinculado à obrigação de não fazer
por prazo indeterminado ou sem delimitações geográficas. A cláusula de não
restabelecimento que vede a exploração de qualquer atividade econômica, ou
não estipule restrições temporais ou territoriais ao impedimento, é inválida. O
objetivo da proibição contratual é impedir o enriquecimento indevido do
alienante, por meio do desvio eficaz de clientela. Ora, se ele se restabelece em
atividade não concorrente, ou para atender região inalcançável pelo potencial
econômico do antigo estabelecimento, ou, ainda, depois de transcorrido prazo
suficiente para o adquirente consolidar sua posição no mercado, não se verifica
concorrência direta entre os participantes do contrato de trespasse;
consequentemente, não há disputa da mesma clientela, nem enriquecimento
indevido do alienante.
A
cláusula
de
não
restabelecimento representa a
garantia da integridade do
valor
despendido
pelo
adquirente, no trespasse, ao
remunerar o fundo de empresa.
Com a entrada em vigor do
Código Civil, o alienante, salvo
disposição diversa no contrato
de trespasse, fica impedido de
concorrer com o adquirente
pelo prazo de 5 anos.
Se o instrumento contratual do trespasse, portanto, prevê a cláusula de não
restabelecimento, e ela atende às condições de validade apontadas pela doutrina
(isto é, a proibição possui balizas materiais, temporais e espaciais), então o
alienante não poderá competir com o adquirente. Por outro lado, se o mesmo
documento contempla autorização expressa para o restabelecimento do
alienante, porque foi esta uma das condições tratadas entre as partes, deverá o
adquirente suportar eventual perda de clientela, em razão do novo
estabelecimento concorrente. Em qualquer caso, se expresso o trespasse, não
haverá dificuldades em se estabelecerem os direitos e obrigações dos
contratantes, em relação à concorrência. Mas, se o instrumento é omisso, se as
partes não estabeleceram nenhuma convenção expressa a respeito do eventual
restabelecimento do alienante dispõe a lei que o alienante não poderá concorrer
com o adquirente pelo prazo de 5 anos subsequentes ao trespasse (CC, art. 1.147).
Para ilustrar a discussão da matéria, vale a pena recordar um caso
rumoroso da jurisprudência brasileira (acórdão publicado em RT, 12/180 e,
também, na Revista Direito de Empresa n. 1), relativo a ação judicial, em que
uma empresa com sede no Rio de Janeiro, a Companhia Nacional de Tecidos de
Juta, pleiteou indenização do Conde Álvares Penteado, de quem havia adquirido
um estabelecimento empresarial, situado em São Paulo (a Fábrica Santana). O
fundamento do pedido era o fato de o Conde ter se restabelecido, por intermédio
da Companhia Paulista de Aniagem, corré da ação. O advogado da autora foi
Carvalho de Mendonça, e, no derradeiro recurso junto ao STF, os réus
contrataram Ruy Barbosa. Embora a decisão final deste famoso feito tenha sido
desfavorável ao adquirente, que não obteve a indenização pretendida, o
entendimento de que a cláusula de não restabelecimento deve ser expressa não
se consolidou, não fez jurisprudência.
Mesmo antes da entrada em vigor do Código Civil, portanto, já
predominava, no direito brasileiro, o entendimento de que, omisso o contrato de
trespasse, devia-se reputar implícita a cláusula de não restabelecimento. Era a
lição de Carvalho de Mendonça, Oscar Barreto Filho, Pontes de Miranda e, em
certo sentido, Waldemar Ferreira (com entendimento contrário: Ruy Barbosa).
Quer dizer, o restabelecimento do alienante, em competição direta com o
adquirente, era considerado lícito apenas se o contrato de trespasse contivesse
cláusula de autorização expressa. Verificada a omissão do instrumento,
pressupunha-se vedado o restabelecimento do alienante. Se as partes não haviam
contratado em outro sentido, devia-se considerar que a intenção tinha sido a de
transferir, do alienante para o adquirente, todo o potencial econômico
representado pelo estabelecimento empresarial, o que implicava
necessariamente a interdição da concorrência, por parte do alienante (cf. Barreto
Filho, 1969:251/253; Barbosa, 1913).
7. FRANQ UIA
O estabelecimento empresarial não se organiza facilmente. Aliás, se o
mercado valoriza o aviamento, o fundo de empresa, então reconhece a
importância e a dificuldade do trabalho organizativo que o empresário despende.
As pessoas sem experiência na condução de atividades econômicas poderão
sofrer prejuízos consideráveis, ou até mesmo quebrar, se não possuem aptidão.
Nesse contexto, desenvolveram-se serviços de organização da empresa,
prestados por profissionais, que visam a suprir eventuais deficiências do
empresário. O contrato de franquia (franchising) corresponde a um dos
mecanismos mais aprimorados de prestação de tais serviços. Ele resulta da
conjugação de dois outros contratos empresariais. De um lado, a licença de uso
de marca, e, de outro, a prestação de serviços de organização de empresa. Sob o
ponto de vista do franqueador, serve o contrato para promover acentuada
expansão dos seus negócios, sem os investimentos exigidos na criação de novos
estabelecimentos. Sob o ponto de vista do franqueado, o contrato viabiliza o
investimento em negócios de marca já consolidada junto aos consumidores, e
possibilita o aproveitamento da experiência administrativa e empresarial do
franqueador.
Segundo a estrutura básica do negócio, o franqueador autoriza o uso de sua
marca e presta aos franqueados de sua rede os serviços de organização
empresarial, enquanto estes pagam os royalties pelo uso da marca e remuneram
os serviços adquiridos, conforme a previsão contratual (cf. Farina, 1994:451/454;
Martins, 1961:583/596; Bulgarelli, 1979:486). A venda de produtos, do
franqueador para o franqueado, não é requisito essencial da franquia, mesmo das
comerciais; o elemento indispensável à configuração do contrato é a prestação
de serviços de organização empresarial, ou, por outra, o acesso a um conjunto de
informações e conhecimentos, detidos pelo franqueador, que viabilizam a
redução dos riscos na criação do estabelecimento do franqueado (Comparato,
1978:377).
Normalmente, os serviços de organização empresarial se desdobram em
três contratos: o management, relacionado com os sistemas de controle de
estoque, de custos e treinamento de pessoal; o engineering, pertinente à
organização do espaço (layout) do estabelecimento do franqueado; e o marketing,
cujo conteúdo diz respeito às técnicas de colocação do produto ou serviço junto
ao consumidor, incluindo a publicidade. Entre as partes do contrato de franquia,
estabelece-se nítida relação de subordinação. O franqueado deverá organizar a
sua empresa com estrita observância das diretrizes gerais e determinações
específicas do franqueador. Essa subordinação empresarial é inerente ao
contrato. Não existe franquia sem tal característica. Ela é indispensável à plena
eficiência dos serviços de organização empresarial, que o franqueado adquire. O
franqueador, desse modo, num certo sentido participa do aviamento do
franqueado (cf. Silveira, 1984:81/83).
O crescimento do sistema de franquias, no Brasil, a partir dos anos 1990,
despertou o interesse de empresários, no sentido de franquearem seus negócios, e
diversos investidores foram atraídos pelas alternativas abertas pelo segmento.
Alguns empresários, no entanto, passaram a conceder franquias sem se
aparelharem de modo conveniente para a prestação dos serviços de organização
empresarial. O surgimento de conflitos entre franqueadores e franqueados foi,
assim, inevitável. Em 1994, editou-se a Lei n. 8.955, com o objetivo de disciplinar
a formação do contrato de franquia. Trata-se de diploma legal do gênero
denominado disclosure statute pelo direito norte-americano. Ou seja, encerra
normas que não regulamentam propriamente o conteúdo de determinada relação
jurídico-contratual, mas apenas impõem o dever de transparência nessa relação
(cf. Epstein-Nickles, 1976:28/34 e 275/289). A lei brasileira sobre franquias não
confere tipicidade ao contrato: prevalecem entre franqueador e franqueado as
condições, termos, encargos, garantias e obrigações exclusivamente previstos no
instrumento contratual entre eles firmado. Procura, apenas, a lei assegurar ao
franqueado o amplo acesso às informações indispensáveis à ponderação das
vantagens e desvantagens relacionadas ao ingresso em determinada rede de
franquia. Em outros termos, o contrato de franquia é atípico porque a lei não
define direitos e deveres dos contratantes, mas apenas obriga os empresários que
pretendem franquear seu negócio a expor, anteriormente à conclusão do acordo,
aos interessados algumas informações essenciais.
7.1. Circular de Oferta de Franquia
A Lei n. 8.955/94 introduziu no direito brasileiro um instrumento
fundamental para a formação válida do vínculo entre franqueador e franqueado:
a Circular de Oferta de Franquia — COF. Esse documento equivale ao “dossiê de
informação” (basic disclosure document) exigido dos franqueadores, nos Estados
Unidos, desde 1979, em razão do Franchising and Business Opportunity Ventures
Trades Regulations Rule (Abrão, 1984:24). Reúnem-se na COF as informações,
dados, elementos e documentos capazes de apresentar aos interessados na
franquia um completo quadro da situação em que se encontra a rede e a exata
extensão das obrigações que serão assumidas pelas partes, caso vingue o
contrato. A COF deve apresentar o conteúdo exigido pela lei (art. 3º), conter
somente informações verídicas, e ser entregue ao interessado em aderir ao
sistema, com a antecedência mínima de dez dias, sob pena de anulabilidade do
contrato que vier a ser firmado, devolução de todos os valores pagos a título de
taxa de filiação e royalties, além de indenização (art. 4º).
A lei brasileira sobre franquia
não disciplina especificamente
os direitos e deveres dos
contratantes,
durante
a
execução do contrato. Ela
apenas
obriga
que
os
empresários, ao oferecerem
franquia,
prestem
aos
interessados
informações
indispensáveis à avaliação das
reais
condições
proporcionadas pelo negócio.
As informações, dados, elementos e documentos exigidos para a COF
podem ser distribuídos nas seguintes categorias: a) perfil do franqueador; b) perfil
da franquia; c) perfil do franqueado ideal; d) obrigações do franqueador e
direitos do franqueado; e) obrigações do franqueado. Grosso modo, portanto, a
Circular deve se desdobrar em cinco grandes capítulos, correspondentes a essas
categorias de informações exigidas na lei.
No capítulo referente ao perfil do franqueador, a COF deve apresentar o
histórico resumido da empresa franqueadora, com os dados relacionados à época
de sua implantação e menção dos principais fatos que marcam a trajetória do
seu desenvolvimento econômico e mercadológico. Também é exigida a
explicitação da forma societária adotada pelo franqueador (vale dizer: se
sociedade limitada ou anônima) e pelas demais empresas a que se encontra
diretamente ligado, por meio, por exemplo, de grupo empresarial, coligação,
controle, consórcio ou outras modalidades de vínculo jurídico ou econômico. A
COF deve informar os nomes empresariais do franqueador e das empresas
diretamente ligadas, anotando, se for o caso, a denominação constituída por
elemento fantasia, além dos respectivos endereços. Ainda para fins de delinear o
perfil do franqueador, deverão acompanhar a COF as demonstrações
financeiras, inclusive os balanços, relativos aos dois últimos exercícios. Se o
franqueador adota a forma de uma sociedade anônima, os demonstrativos são os
definidos pelo art. 176 da LSA (balanço patrimonial, demonstração dos lucros ou
prejuízos acumulados, do resultado do exercício e das origens e aplicação de
recursos). Já se o franqueador é sociedade limitada, deverá apresentar o balanço
patrimonial, que deve levantar ao menos uma vez por ano, além dos
demonstrativos elaborados para o atendimento da legislação tributária, segundo o
regime próprio adotado.
No capítulo relacionado ao perfil da franquia, os interessados devem
encontrar as informações que lhes permitam avaliar a real situação da rede, sob
todos os aspectos relevantes, bem como o potencial de desenvolvimento do
negócio. Nesse sentido, o franqueador tem o dever de revelar aos interessados
todas as pendências judiciais (isto é, as ações cautelares, de conhecimento,
especiais, execuções, recursos, notificações etc.) que tenham por objeto o
funcionamento do sistema de franquia, ou que possam eventualmente inviabilizálo. No primeiro grupo de pendências, encontram-se as promovidas pelos
franqueados, ou contra eles, pertinentes às relações entre o franqueador e um ou
mais integrantes da rede de franquia. No segundo grupo as demandas, em que é
discutida a titularidade, caducidade ou validade do registro da marca empregada
pelo franqueador, ou mesmo a juridicidade da cessão ou licença de uso que o
beneficia. O rol de pendências judiciais deve abranger tanto aquelas de que é
parte o franqueador, como as que envolvem empresas controladoras e titulares
de marcas, patentes e direitos autorais relacionados com a franquia, bem como
os subfranqueadores. É decorrência do dever de transparência a identificação do
número dos autos e do juízo relativo a cada processo, bem como notícia
atualizada sobre a sua tramitação.
Será também no capítulo do perfil da franquia que os interessados devem
encontrar informações especialmente importantes para a análise da
conveniência de sua adesão ao sistema. Trata-se das descrições da franquia, do
negócio e das atividades a serem desenvolvidas pelos franqueados. Exige-se
detalhamento na descrição da franquia, e faculta-se a generalidade na do
negócio e atividades. Para fins de elaboração da COF, deve-se distinguir entre
franquia e negócio, considerando o primeiro conceito relacionado ao contrato que
se pretende estabelecer entre as partes, e o último às implicações econômicas
deste. O vínculo contratual deve ser detalhadamente descrito pela Circular,
enquanto as suas implicações negociais podem ser descritas de forma genérica.
Entende-se a distinção estabelecida pela lei (art. 3º, IV), já que no capítulo
relacionado às obrigações do franqueado, a COF deve detalhar as repercussões
econômicas do contrato, razão pela qual eventual exigência de detalhamento
dessa descrição também no capítulo do perfil da franquia caracterizaria
redundância. Ainda sobre as informações relacionadas ao contrato que será
firmado, caso o interessado manifeste sua adesão ao sistema, exige a lei que a
COF se faça acompanhar do correspondente modelo. Embora a lei se refira
unicamente a contrato-padrão, porque esta tem sido, em larga medida, a prática
no setor, é evidente que, inexistindo modelo, a Circular deve ser instruída pela
minuta do contrato que o franqueador se propõe a assinar com os interessados.
Para possibilitar aos pretendentes da franquia o contato direto com os
integrantes do sistema, de modo a viabilizar o levantamento de dados e informes
de experiências negociais, no capítulo referente ao perfil da franquia, a COF
deve relacionar nome, endereço e telefone dos franqueados, subfranqueados e
subfranqueadores atuais, e dos que se desligaram da rede nos últimos doze
meses. E, para completar o capítulo, a Circular deve apresentar informação
atualizada sobre a situação, perante o INPI, das marcas e patentes abrangidas
pelo contrato de franquia. Isto é, se se trata de simples depósito, ou se o registro
ou patente já foram concedidos, e as respectivas datas, se há pedido de
caducidade ou oposição administrativa ao direito industrial pleiteado, se foi
solicitada a prorrogação, quando cabível etc. Esse item deve necessariamente
trazer os elementos que possibilitem aos interessados qualquer tipo de pesquisa no
INPI, como o número da patente, do certificado ou do processo.
No terceiro capítulo da COF, sobre o perfil do franqueado ideal, devem
ser fixados os requisitos que, necessaria ou preferencialmente, o interessado deve
atender para ingressar na rede. A lei se refere ao grau de escolaridade e à
experiência anterior, mas não apenas essas condições subjetivas podem ser
exigidas ou desejadas do interessado, mas quaisquer outras também, como, por
exemplo, idade mínima ou máxima, formação técnica ou superior específica,
idoneidade econômica e moral, residência em determinada cidade ou região.
Convém que a COF defina os meios de comprovação do atendimento das
condições subjetivas do franqueado ideal, mencionando, por exemplo, a
necessidade de apresentação de certidões negativas de protesto, de débitos fiscais
ou de distribuidores cíveis, criminais e trabalhistas, ou de documentos probatórios
da conclusão de cursos etc.
O capítulo da Circular acerca das obrigações do franqueador e direitos do
franqueado deve referir-se, de início, à cláusula da territorialidade,
importantíssimo aspecto do relacionamento entre franqueador e franqueado. Os
interessados devem ser informados pela COF se a franquia adota o sistema de
exclusividade territorial para os franqueados. Claro que, na hipótese de adoção
deste sistema, fica vedada a possibilidade de atuação além dos limites do
território contratado, porque isso feriria a exclusividade de outros franqueados. A
cláusula de territorialidade pode estabelecer, também, não exatamente a
exclusividade, mas a simples preferência do franqueado, por meio de sistemas
de compensação interna da rede. Nesse caso, a definição das condições de
atuação além dos limites do território de cada franqueado devem ser claramente
estabelecidas, para que não se lesem os interesses de nenhum dos integrantes da
rede.
A lei não menciona, especificamente, a obrigação de informar os critérios
para a definição da área de atuação (território) de cada franqueado. Isso,
contudo, é essencial para a perfeita avaliação das condições de rentabilidade da
franquia e do prazo de amortização do capital investido. Assim, do dever
genérico de transparência, conclui-se a necessidade de tal informação, podendo
se definir na COF, por exem plo, a metodologia a ser empregada em futuras
avaliações do potencial de mercado.
Outro elemento de extrema importância, no capítulo das obrigações do
franqueador, é a indicação dos serviços de organização empresarial com os quais
o franqueado poderá contar. Assim, a COF deve detalhar se o contrato abrange
ou não, e em que medida, a prestação dos serviços de supervisão da rede,
treinamento do franqueado e seus empregados, fornecimento de manuais, auxílio
na escolha do ponto, definição do layout e outros normalmente esperados do
concedente da franquia. Especial atenção deve ser dedicada à elaboração (pelo
franqueador) ou leitura (pelo franqueado) desse capítulo, tendo em conta que
muitos dos conflitos internos à rede estão relacionados à extensão dos serviços de
organização empresarial, objeto do contrato de franquia.
O maior capítulo da COF é necessariamente o dedicado às obrigações do
franqueado, não apenas em razão da natureza das informações abrangidas, mas
principalmente pela extensão do seu objeto. Em relação a esse tópico, a Circular
deve, inicialmente, especificar as atividades que cabem ao franqueado
desenvolver diretamente para a exploração do negócio objeto de contrato; ou
seja, as franquias apresentam diferentes graus de dependência do trabalho
pessoal do franqueado, em função da atividade econômica, porte ou organização
administrativa. Em parte delas, o regular desenvolvimento da empresa pressupõe
a presença constante do próprio franqueado no estabelecimento (ou do sóciogerente da sociedade franqueada), para cuidar pessoalmente de certos aspectos
do negócio, enquanto noutras franquias essa presença não se exige. A COF deve
esclarecer convenientemente esse aspecto, mencionando as horas semanais de
absorção de trabalho do franqueado e a natureza do seu envolvimento no
cotidiano da empresa e da rede.
Também no capítulo referente às obrigações do franqueado, à Circular
cabe apresentar especificações quanto aos valores a serem aportados pelos
interessados no investimento. Assim, o instrumento deve estimar o aporte inicial
de capital, abrangendo tanto o relacionado à compra, implantação e entrada em
operação da franquia, quanto o relacionado às instalações, equipamento e
estoque. Além dessas estimativas, a COF deve definir a taxa inicial de filiação
(também denominada “taxa de franquia”) e a caução a ser prestada pelo
franqueado. Note-se que os valores correspondentes à taxa e à caução devem ser
exatos, enquanto os demais itens do investimento podem ser aproximados,
recomendando-se a apresentação dos critérios de estimação e de eventuais
margens de erro.
Tudo quanto for devido pelo franqueado ao franqueador, durante a
execução do contrato, deve ser detidamente discriminado pela COF, de modo a
aclarar suas bases de cálculo e finalidades. Exige-se a indicação específica dos
pagamentos devidos a título de remuneração pela utilização da marca e pelos
serviços fornecidos, sendo cabível a utilização de percentuais sobre o
faturamento. Exige-se, também, a referência ao aluguel de equipamento ou do
ponto, e, se houver algum esquema de publicidade comum, à contribuição do
franqueado para o seu custeio. Do mesmo modo, em havendo a obrigação de
constituição de seguro, o valor mínimo do prêmio deverá ser definido pela
Circular. Note-se que a COF não poderá omitir nenhum desembolso a cargo do
franqueado, por mais específico, incomum ou reduzido que seja. Aliás, convém
ao franqueador, em obediência ao dever genérico de transparência, informar
também os itens que, em sua franquia, não serão eventualmente devidos.
Neste mesmo capítulo, a Circular deve prestar informações claras e
detalhadas acerca dos bens, serviços e insumos que o franqueado se obriga a
adquirir, tanto do próprio franqueador quanto de outros fornecedores. Esses
últimos, por sua vez, devem estar identificados pela COF, para que os
interessados possam avaliar concretamente a extensão da obrigação assumida.
Por fim, o instrumento de oferta deve prever a disciplina das relações entre os
contratantes após o encerramento da franquia, tratando em especial dos segredos
de empresa a que tem acesso o franqueado, bem como das condições de
concorrência entre este e o franqueador (se haverá, ou não, cláusula de não
restabelecimento e em que termos).
7.2. Registro da Franquia
Os contratos de franquia devem ser registrados no INPI, por exigência da
lei (LPI, art. 211). Esse registro não representa, contudo, requisito de validade ou
eficácia do ato, entre as partes contratantes. A franquia não registrada é
plenamente válida e eficaz entre o franqueador e o franqueado, e a ausência da
formalidade não pode ser invocada, por qualquer um deles, a pretexto de
descumprimento de obrigação contratual. Mas o registro é condição para que o
negócio produza efeitos perante terceiros, em especial o fisco e as autoridades
monetárias. Sem o registro da franquia, não se admite a dedução fiscal dos
royalties, pagos pela licença do uso de marca, nem a remessa de dinheiro para o
exterior.
Deve-se ressaltar, no entanto, que o registro da franquia é condição de
eficácia do ato perante terceiros, apenas na hipótese em que franqueador e
franqueado titularizam direitos perante esses. Quando ocorre o inverso — os
terceiros são credores dos participantes da franquia —, o registro não pode ser
considerado condição de eficácia. É, por exemplo, o caso dos consumidores que,
embora “terceiros” em relação aos participantes do contrato de franquia, não
podem ter os seus direitos prejudicados pela ausência do registro. Nas hipóteses
em que o consumidor pode agir contra o franqueador, em razão de
irregularidade do franqueado, a ausência do registro não é fator excludente de
responsabilidade.
Capítulo 6
PROPRIEDADE INDUSTRIAL
1. INTRODUÇÃO
A história do direito industrial — ramo jurídico muitas vezes referido pela
expressão “marcas e patentes” — tem início na Inglaterra, mais de um século
antes da primeira Revolução Industrial, com a edição do Statute of Monopolies,
em 1623, quando, pela primeira vez, a exclusividade no desenvolvimento de uma
atividade econômica deixou de se basear apenas em critérios de distribuição
geográfica de mercados, privilégios nobiliárquicos e outras restrições próprias ao
regime feudal, para prestigiar as inovações nas técnicas, utensílios e ferramentas
de produção. O inventor passou a ter condições de acesso a certas modalidades
de monopólio concedidas pela Coroa, fator essencial para motivá-lo a novas
pesquisas e aprimoramentos de suas descobertas. Não é, aliás, um despropósito
imaginar que o pioneirismo do direito inglês, na matéria de proteção aos
inventores, pode ter contribuído decisivamente para o extraordinário processo de
industrialização que teve lugar na Inglaterra, a partir de meados do século XVIII.
A segunda norma de direito positivo que, historicamente, se destaca é a
Constituição dos Estados Unidos (1787), cujo art. 1º, § 8.8, atribui ao congresso da
Federação poderes para assegurar aos inventores, por prazo determinado, o
direito de exclusividade sobre a invenção, tendo sido editada a lei correspondente
já em 1790. A França foi o terceiro país a legislar sobre direito dos inventores,
em 1791 (Miranda, 1956, 16:207/216).
Outro momento de extrema importância, para a evolução do direito
industrial, foi a criação, em 1883, da União de Paris, convenção internacional da
qual o Brasil é participante desde o início, e cujo objetivo principal é a
declaração dos princípios da disciplina da propriedade industrial. A convenção —
revista em Bruxelas (1900), Washington (1911), Haia (1925), Londres (1934),
Lisboa (1958) e Estocolmo (1967) — adota conceito amplo de propriedade
industrial, abrangendo não apenas os direitos dos inventores, como também as
marcas e outros sinais distintivos da atividade econômica (denominação de
origem, nome e insígnia).
Convenção de Paris
Art. 1º, n. 2: “a proteção da
propriedade industrial tem por
objeto as patentes de invenção,
os modelos de utilidade, os
desenhos
ou
modelos
industriais, as marcas de
fábrica ou de comércio, as
marcas de serviço, o nome
comercial e as indicações de
proveniência ou denominações
de origem, bem como a
repressão da concorrência
desleal”.
A Convenção de Paris, pela abrangência que conferiu ao conceito de
propriedade industrial, consolidou uma nova perspectiva para o tratamento da
matéria. Os direitos dos inventores sobre as invenções, e os dos empresários
sobre os sinais distintivos de sua atividade, juntamente com as regras de
repressão à concorrência desleal, passaram a integrar um mesmo ramo jurídico.
É certo que as invenções e os sinais distintivos se identificam enquanto bens
imateriais, cuja exploração econômica pressupõe investimentos importantes para
os empresários. É certo, também, que todas as regras de direito industrial se
fundam, direta ou indiretamente, em preceitos de lealdade competitiva. Mas o
conceito amplo de propriedade industrial adotado pela União de Paris não deixa
de sugerir algo de arbitrário. Tanto assim que diversos países, como a Espanha,
Alemanha e Argentina, por exemplo, possuem leis separadas para as invenções,
e para as marcas. Nos Estados Unidos, a Constituição atribui poderes ao
Congresso da Federação para disciplinar os direitos dos inventores, mas não a
matéria relativa às marcas. Por esta razão, a legislação federal norte-americana
sobre sinais distintivos dos empresários (trademark) somente é aplicável às
operações interestaduais, cabendo aos Estados legislar sobre direito marcário
(Miller-Davis, 1983:148/149).
A história do direito industrial brasileiro, a exemplo do direito comercial,
se inicia no processo de desentrave da nossa economia colonial, no início do
século XIX, quando a Corte portuguesa se encontrava no Brasil, evitando
Napoleão. Em 1809, o Príncipe Regente baixou alvará que, entre outras medidas,
reconheceu o direito do inventor ao privilégio da exclusividade, por 14 anos,
sobre as invenções levadas a registro na Real Junta do Comércio. A doutrina
brasileira reivindica, a partir desse fato, um “lugar proeminente” ao nosso país na
história do direito industrial, sob a alegação de que teria sido ele o quarto, no
mundo, a disciplinar a matéria (Cerqueira, 1946:6/7). De qualquer forma, em
1830, tendo já conquistado sua independência política, o Brasil editou lei sobre
invenções, atendendo à previsão constante da Constituição do Império (art. 179,
n. 26). Posteriormente, em 1875, surgiu a primeira lei brasileira sobre marcas,
uma resposta à representação ao governo, apresentada por Ruy Barbosa, que não
havia logrado êxito na defesa dos interesses de um cliente seu — o titular da
marca de rapé Areia Preta — por falta de uma legislação protetora (cf. Ferreira,
1962, 6:259/263).
O direito brasileiro, originariamente, disciplinava em separado as
invenções e as marcas. Em 1882, editou-se nova lei sobre patentes, e em 1887 e
1904, outras sobre marcas. O critério de tratamento da matéria industrial em leis
separadas somente foi abandonado em 1923, a partir da criação da Diretoria
Geral da Propriedade Industrial, órgão que passou a centralizar
administrativamente as questões afetas aos seus dois âmbitos. A partir de então, o
direito industrial brasileiro passou a disciplinar, no mesmo diploma legislativo, as
patentes de invenções e os registros de marca. Mas o conceito amplo de
propriedade industrial, estabelecido pela União de Paris, nunca foi integralmente
incorporado nas muitas reformas legislativas que se seguiram (1945, 1967, 1969
e 1971). A vigente Lei da Propriedade Industrial (LPI: Lei n. 9.279/96), por
exemplo, aplica-se às invenções, desenhos industriais, marcas, indicações
geográficas e à concorrência desleal, mas não trata do nome empresarial,
instituto cuja disciplina é feita pela lei do registro de empresas (Lei n. 8.934/94).
2. BENS DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL
São bens integrantes da propriedade industrial: a invenção, o modelo de
utilidade, o desenho industrial e a marca. O direito de exploração com
exclusividade dos dois primeiros se materializa no ato de concessão da respectiva
patente (documentado pela “carta-patente”); em relação aos dois últimos,
concede-se o registro (documentado pelo “certificado”). A concessão da patente
ou do registro compete a uma autarquia federal denominada Instituto Nacional
da Propriedade Industrial — INPI.
O direito industrial é a
divisão do direito comercial
que protege os interesses dos
inventores,
designers
e
empresários em relação às
invenções, modelo de utilidade,
desenho industrial e marcas.
Dos quatro bens industriais, a invenção é a única não definida pela lei. Esta
ausência de definição corresponde à tradição legislativa sobre a matéria,
nacional e estrangeira (Cerqueira, 1946:211/212), e é plenamente justificável
pela extrema dificuldade de se conceituar o instituto. Todos, de fato, sabem
intuitivamente o que é uma invenção e não há dúvidas quanto aos elementos
essenciais que a caracterizam (criação original do espírito humano, ampliação do
domínio que o homem exerce sobre a natureza etc.), mas não é fácil estabelecer
os seus exatos contornos conceituais. Em razão da dificuldade em definir
invenção, o legislador prefere se valer de um critério de exclusão, apresentando
uma lista de manifestações do intelecto humano que não se consideram
abrangidas no conceito (LPI, art. 10). Neste sentido, não são invenção: a) as
descobertas e teorias científicas (a teoria da relatividade de Albert Einstein, por
exemplo); b) métodos matemáticos (o cálculo infinitesimal, de Isaac Newton); c)
concepções puramente abstratas (a lógica heterodoxa, de Newton da Costa); d)
esquemas, planos, princípios ou métodos comerciais, contábeis, financeiros,
educativos, publicitários, de sorteio e de fiscalização (a pedagogia do oprimido,
de Paulo Freire, é exemplo de método educativo); e) obras literárias,
arquitetônicas, artísticas e científicas ou qualquer criação estética e programas de
computador (tutelados pelo direito autoral); f) apresentação de informações,
regras de jogo, técnicas e métodos operatórios ou cirúrgicos, terapêuticos ou de
diagnóstico, e os seres vivos naturais.
O modelo de utilidade é, por sua vez, uma espécie de aperfeiçoamento da
invenção — já foi denominado de “pequena invenção”. A lei define o modelo de
utilidade como “objeto de uso prático, ou parte deste, suscetível de aplicação
industrial, que apresente nova forma ou disposição, envolvendo ato inventivo, que
resulte em melhoria funcional no seu uso ou em sua fabricação” (LPI, art. 9º).
Os recursos agregados às invenções, para, de um modo não evidente a um
técnico no assunto, ampliar as possibilidades de sua utilização, são modelos de
utilidade. As manifestações intelectuais excluídas do conceito de invenção
também não se compreendem no de modelo de utilidade (LPI, art. 10).
Para se caracterizar como modelo de utilidade, o aperfeiçoamento deve
revelar a atividade inventiva do seu criador. Deve representar um avanço
tecnológico, que os técnicos da área reputem engenhoso. Se o aperfeiçoamento é
destituído dessa característica, sua natureza jurídica é a de mera “adição de
invenção” (LPI, art. 76; Strenger, 1996:18). Por outro lado, havendo dúvidas
acerca do correto enquadramento de uma criação industrial — se invenção ou
modelo de utilidade —, e não existindo critério técnico de ampla aceitação capaz
de eliminá-las, deve-se considerar o objeto uma invenção. Como a lei preceitua
o conceito de modelo de utilidade, mas não o de invenção, a criação industrial
que não se puder enquadrar com certeza no primeiro (ou em outra categoria do
direito industrial), deve-se considerar enquadrado no segundo.
O desenho industrial (design) é a alteração da forma dos objetos. Está
definido, na lei, como “a forma plástica ornamental de um objeto ou o conjunto
ornamental de linhas e cores que possa ser aplicado a um produto,
proporcionando resultado visual novo e original na sua configuração externa e
que possa servir de tipo de fabricação industrial” (LPI, art. 95). A sua
característica de fundo — que, inclusive, o diferencia dos bens industriais
patenteáveis — é a futilidade. Quer dizer, a alteração que o desenho industrial
introduz nos objetos não amplia a sua utilidade, apenas o reveste de um aspecto
diferente. A cadeira de braços que August Endell projetou em 1899, em
Jungendstil (versão alemã do estilo art nouveau), por exemplo, não tem mais
utilidade do que qualquer outra cadeira. Servem todas ao mesmo propósito, o de
sentar. Este traço da futilidade é essencial para que a alteração no objeto seja,
sob o ponto de vista jurídico, um desenho industrial, e não um eventual modelo de
utilidade ou uma adição de invenção. Por outro lado, este mesmo traço aproxima
o design da obra de arte. São ambos fúteis, no sentido de que não ampliam as
utilidades dos objetos a que se referem (anote-se, contudo, que os objetos
revestidos de desenho industrial têm necessariamente função utilitária, ao
contrário daqueles em que se imprime a arte, desprovidos dessa função).
Lei da Propriedade Industrial
Art. 95. Considera-se desenho
industrial a forma plástica
ornamental de um objeto ou o
conjunto ornamental de linhas
e cores que possa ser aplicado
a um produto, proporcionando
resultado visual novo e
original na sua configuração
externa e que possa servir de
tipo de fabricação industrial.
A invenção, o modelo de utilidade, a adição de invenção e o desenho
industrial são, assim, alterações em objetos em graus diferentes. Nos dois
primeiros, é indispensável a presença da atividade inventiva; isto é, a alteração
não pode ser uma decorrência óbvia dos conhecimentos técnicos existentes à
época da criação. Presente este requisito, a alteração será considerada invenção
quando for independente; e modelo de utilidade quando acessória de uma
invenção. Já no caso de faltar atividade inventiva, a alteração poderá ser adição
de invenção ou desenho industrial. A primeira existe na hipótese de um pequeno
aperfei-çoamento na invenção patenteada, enquanto a última se manifesta pela
mudança de natureza exclusivamente estética. A definição do melhor
enquadramento de uma certa alteração, entre essas quatro categorias, muitas
vezes apresenta dificuldades consideráveis, exigindo percuciência dos técnicos e
dos profissionais do direito envolvidos com a matéria.
O quarto bem industrial é a marca, definida como o sinal distintivo,
suscetível de percepção visual, que identifica, direta ou indiretamente, produtos
ou serviços (LPI, art. 122). No Brasil (ao contrário do que se verifica em outros
países, como a França e a Alemanha), os sinais sonoros, ainda que originais e
exclusivos, embora possam também individualizar produtos e serviços, não são
suscetíveis de registro como marca. É o caso, por exemplo, do “plim plim”,
adotado pela Rede Globo de Televisão, no passado, para destacar a veiculação de
publicidade da apresentação de filmes e outros programas (cf. Domingues,
1984:199/201). Também não são marcas a s características de cheiro, gosto ou
tato de que se revestem os produtos ou serviços. Os signos não visuais são
tutelados pela disciplina jurídica da concorrência, na medida em que sua
usurpação sirva de meio fraudulento para desviar clientela. Apenas os sinais
visualmente perceptíveis podem ser registrados como marca no INPI. Os
exemplos são inúmeros: Coca-cola, Saraiva, Itaú etc.
A doutrina costuma classificar as marcas em nominativas, figurativas ou
mistas (Requião, 1971:193/194). No primeiro grupo, estariam as marcas
compostas exclusivamente por palavras, que não apresentam uma particular
forma de letras (por exemplo, Revista Direito de Empresa); no segundo, as
marcas consistentes de desenhos ou logotipos (por exemplo, a famosa gravatinha
da Chevrolet); no último, as marcas seriam palavras escritas com letras
revestidas de uma particular forma, ou inseridas em logotipos (por exemplo,
Coca-cola). Esta classificação, no entanto, é inútil, para fins jurídicos. Qualquer
que seja o tipo de marca, segundo este critério diferencial, a proteção é idêntica.
Por fim, vale a pena um registro sobre a marca tridimensional. Para
determinados produtos, a forma serve como fator de distinção. Pense na caneta
Bic ou na garrafa da Coca-cola. Eles apresentam formas eventualmente
protegidas como desenho industrial, mas por sua distintividade também
comportam proteção como marcas. A marca é tridimensional sempre que a
forma do produto for um signo, ou, como diz a lei, um sinal distintivo (LPI, art.
122).
2.1. Segredo de Empresa
O inventor — ou o criador de modelo de utilidade —, se pretender
patentear sua invenção, deve estar atento ao fato de que todos passarão a ter
conhecimento das inovações que realizou, em seus detalhes. Providência
essencial do procedimento administrativo de concessão da patente é a publicação
do pedido, bem como o irrestrito acesso dos interessados ao relatório descritivo,
reivindicações, resumo e desenhos correspondentes (LPI, art. 30). A publicação,
pelo órgão oficial do INPI (a Revista da Propriedade Industrial), ocorrerá no
prazo máximo de 18 meses, a contar do depósito do pedido ou da data da
solicitação de prioridade mais antiga. Essa providência, que somente não existe
na hipótese de invenção de interesse à defesa nacional (LPI, art. 75), é
indispensável para que os demais titulares de patente possam eventualmente se
opor a pretensões lesivas aos seus direitos, e os inventores em geral possam
reorientar suas pesquisas.
A publicação da invenção é
condição para a concessão da
patente. Por esta razão, muitos
empresários preferem manter
em segredo suas invenções a
pedir a proteção legal.
Pois bem, uma vez divulgados pelo INPI os detalhes da invenção, caberá
ao titular do depósito da patente — e só a ele — zelar para que terceiros não se
utilizem indevidamente de sua criação industrial. A fiscalização dessa
eventualidade e a adoção das providências judiciais pertinentes são da exclusiva
alçada do particular interessado. Se assim é, em algumas circunstâncias, poderá
revelar-se mais interessante ao inventor manter segredo acerca de sua invenção,
explorando-a sem requerer a concessão da patente. O risco desta alternativa é a
de outro inventor, que chegar aos mesmos resultados posteriormente, acabar
titularizando o direito industrial, por ser o primeiro a depositar o pedido. Neste
sentido, cabe ponderar qual a situação menos desvantajosa: controlar a invenção
depositada e divulgada, ou explorá-la sigilosamente.
O segredo de empresa não está totalmente desamparado no direito
brasileiro. Pelo contrário, a lei tipifica como crime de concorrência desleal a
exploração, sem autorização, de “conhecimentos, informações ou dados
confidenciais, utilizáveis na indústria, comércio ou prestação de serviços,
excluídos aqueles que sejam de conhecimento público ou que sejam evidentes
para um técnico no assunto”, se o acesso ao segredo foi fraudulento ou derivou
de relação contratual ou empregatícia (LPI, art. 195, XII e XI). Deste modo, a
usurpação de segredo de empresa gera responsabilidade penal e civil, com
fundamento na disciplina jurídica da concorrência. Apenas não haverá lesão a
direito de um empresário se o outro, que explora economicamente o mesmo
conhecimento secreto, também o obteve graças às próprias pesquisas. Nesse
caso, se nenhum dos dois titulariza a patente, não haverá concorrência desleal.
Por outro lado, quando dois ou mais empresários exploram um mesmo
conhecimento secreto, o primeiro deles a depositar o pedido de patente poderá
impedir que os demais continuem a explorá-lo. A proteção do direito brasileiro
ao segredo de empresa — a exemplo do que se verifica noutros países, como nos
Estados Unidos (Weston-Maggs-Schechter, 1950:306/308) —, não dá ensejo à
exclusividade de exploração da invenção.
No Brasil, não existe nenhum registro do segredo de empresa. Trata-se de
um fato cuja prova deve se fazer em juízo pelos meios periciais, documentais ou
testemunhais. Na França, registra a doutrina, desenvolveu-se uma prática simples
e eficaz de formalização da existência do segredo. O empresário descreve a
invenção em relatório do qual extrai duas vias, envelopando-as em separado.
Envia-as, dentro de um envelope maior, apropriado a esta finalidade, ao Institut
National de la Propriété Industrielle, que registra o recebimento. Um dos
envelopes, ainda lacrado, é restituído ao interessado; o outro permanecerá,
também lacrado, no arquivo da repartição pública, pelo prazo de cinco anos,
renovável. Se, neste período, for necessário provar a existência e a anterioridade
do segredo, os envelopes serão abertos (Ripert-Roblot, 1947:398/399).
2.2. Marcas Coletivas e de Certificação
As marcas são sinais distintivos que identificam, direta ou indiretamente,
produtos ou serviços. A identificação se realiza pela aposição do sinal no produto
ou no resultado do serviço, na embalagem, nas notas fiscais expedidas, nos
anúncios, nos uniformes dos empregados, nos veículos etc. Dá-se uma
identificação direta se o sinal está relacionado especificamente ao produto ou
serviço. A identificação indireta se realiza por meio de duas outras categorias de
marca, introduzidas no direito brasileiro pela atual legislação: as coletivas e de
certificação. De fato, o art. 123 da LPI conceitua: a) marca de produto ou
serviço, como sendo a usada para os individuar, distinguindo-os de outros
idênticos, semelhantes ou afins, de origem diversa; b) marca de certificação,
como a que atesta a conformidade de produto ou serviço a normas ou
especificações técnicas; c) marca coletiva, como a que informa ser o produto ou
serviço fornecido por empresário filiado a certa entidade.
As marcas de identificação indireta são a coletiva e a de certificação.
Existentes também em outros direitos (como o norte-americano, francês, alemão
e espanhol), estas marcas possuem o traço comum de transmitirem ao
consumidor a informação de que o produto ou serviço possui uma qualidade
destacada, especial, acima da média; seja porque o empresário que os fornece
participa de uma conceituada associação empresarial (a marca coletiva), seja
porque foram atendidos determinados padrões de qualidade (a marca de
certificação). Outro elemento comum é a existência de um regulamento de uso,
indispensável ao registro no INPI. Este regulamento estabelecerá as condições
pelas quais um empresário tem direito de usar a marca coletiva ou de
certificação, bem como as hipóteses em que perde o direito. Finalmente, o
terceiro aspecto comum às duas categorias é a desnecessidade de licença para o
uso da marca. Se o empresário atende aos pressupostos previstos no regulamento
de uso, está autorizado a usá-la em seus produtos ou serviços, independentemente
de qualquer registro no INPI.
Lei da Propriedade Industrial
Art. 123. Para os efeitos desta
Lei, considera-se:
I — marca de produto ou
serviço: aquela usada para
distinguir produto ou serviço
de outro idêntico, semelhante
ou afim, de origem diversa;
II — marca de certificação:
aquela usada para atestar a
conformidade de um produto ou
serviço com determinadas
normas
ou
especificações
técnicas, notadamente quanto à
qualidade, natureza, material
utilizado
e
metodologia
empregada; e
III — marca coletiva: aquela
usada para identificar produtos
ou serviços provindos de
membros de uma determinada
entidade.
A diferença entre a marca coletiva e a de certificação diz respeito à
natureza do titular do registro. No caso da coletiva, o titular será sempre uma
associação empresarial, ou seja, uma entidade, sindical ou não, que congrega os
empresários de determinado produto, ou de certa região, ou adeptos de uma
específica ideologia (por exemplo, os empresários cristãos, os ecológicos etc.).
No caso da marca de certificação, o titular não é uma associação empresarial,
mas um agente econômico (normalmente, um empresário) cuja atividade é a de
avaliar e controlar a produção ou circulação de bens ou serviços, desenvolvidas
por outros agentes. O titular da marca de certificação, aliás, não pode ter direto
interesse comercial ou industrial em relação ao produto ou serviço cuja
conformidade ele atesta (LPI, art. 128, § 3º).
Se o empresário pretende identificar seus produtos com uma marca
coletiva ou de certificação, ele deverá consultar o respectivo regulamento de uso,
registrado no INPI, para verificar se atende às condições nele estipuladas.
Normalmente, o regulamento irá estabelecer, entre as condições de uso, uma
contrapartida remuneratória em favor do titular da marca (por exemplo, a taxa
de filiação à associação empresarial, o pagamento dos serviços de controle de
qualidade etc.). Atendidas as condições, a lei considera outorgada a autorização
de uso da marca, sem que outra formalidade seja necessária além das previstas
no respectivo regulamento.
Por outro lado, se alguém usa marca coletiva ou de certificação, sem
atender às condições regulamentares correspondentes, as medidas judiciais de
coibição e reparação do ilícito cabem exclusivamente ao titular da marca, isto é,
à associação empresarial ou à empresa de avaliação e controle, às quais o INPI
concedeu o registro. O empresário usuário da marca coletiva ou de certificação
não tem ação contra o usurpador, e apenas pode reclamar as providências do
titular da marca, e, caso este permaneça inerte, representar ao INPI, para que
promova a extinção do registro (LPI, art. 151, II).
3. A PROPRIEDADE INTELECTUAL
Os bens sujeitos à tutela jurídica sob a noção de “propriedade industrial”
(isto é, as patentes de invenção, as marcas de produtos ou serviços, o nome
empresarial etc.) integram o estabelecimento empresarial. São, assim, bens
imateriais da propriedade do empresário. Há, porém, outros bens da mesma
natureza, cuja tutela segue disciplina diversa, a do direito autoral.
O conjunto destas duas categorias de bens é normalmente denominado
“propriedade intelectual”, numa referência à sua imaterialidade e à origem
comum, localizada no exercício de aptidões de criatividade pelos titulares dos
respectivos direitos. A propriedade intelectual, portanto, compreende tanto as
invenções e sinais distintivos da empresa, como as obras científicas, artísticas,
literárias e outras. O direito intelectual, deste modo, é o gênero, do qual são
espécies o industrial e o autoral. Normalmente, o estudo deste último é reservado
à doutrina de direito civil, não cuidando dele os comercialistas. Deve-se, contudo,
acentuar que há bens de extraordinária importância econômica para os
empresários que são protegidos, no Brasil e no exterior, pelo direito autoral, e não
pelo industrial, como, por exemplo, os programas de computador (Lei n.
9.609/98; cf. Manso, 1987). Por esta razão, é necessário pelo menos uma
referência genérica às diferenças entre os dois grandes capítulos do direito
intelectual. Além disso, cabe examinar também o critério distintivo entre desenho
industrial e obra de arte, para assinalar as hipóteses de aplicação de cada ramo
do direito de tutela da propriedade intelectual.
3.1. Diferenças entre o Direito Industrial e o Direito Autoral
A proteção liberada ao criador pelo direito industrial diferencia--se da do
autoral, em dois aspectos: em primeiro lugar, quanto à origem do direito; em
segundo, quanto à extensão da tutela.
A exclusividade na exploração do bem imaterial conferida pelo direito
industrial decorre de um ato administrativo. O inventor e o designer somente
titularizam o direito de exploração exclusiva da invenção, modelo ou desenho,
após a expedição da patente, pelo INPI. Do mesmo modo, o empresário só se
considera titular do direito de exclusividade, em relação à marca, após expedido
o certificado de registro. Em outros termos, o ato administrativo pelo qual o
inventor ou o empresário tem reconhecido o seu direito industrial é de natureza
constitutiva, e não declaratória. A consequência imediata da definição é clara: o
direito de exclusividade será titularizado por quem pedir a patente ou o registro
em primeiro lugar. Não interessa quem tenha sido realmente o primeiro a
inventar o objeto, projetar o desenho ou a utilizar comercialmente a marca. O
que interessa saber é quem foi o primeiro a tomar a iniciativa de se dirigir ao
INPI, para reivindicar o direito de sua exploração econômica exclusiva.
Em decorrência da natureza constitutiva do ato de concessão do direito
industrial, quem titulariza a patente pode não ter sido necessariamente a primeira
pessoa a proceder à correspondente invenção. E mesmo que essa pessoa venha a
provar, por documentos confiáveis que sejam, ter sido dela a primeira invenção,
não poderá impedir que o titular da patente exerça seu direito de exclusividade,
também contra ela. Ou seja, esta pessoa — a despeito de ter sido a primeira a
inventar — somente poderá explorar economicamente a invenção mediante
licença do titular da patente.
Já em relação aos bens que integram a propriedade autoral, a regra não é
esta. O direito de exclusividade do criador de obra científica, artística, literária ou
de programa de computador não decorre de algum ato administrativo
concessivo, mas da criação mesma. Se alguém compõe uma música, surge do
próprio ato de composição o direito de exclusividade de sua exploração
econômica. É certo que a legislação de direito autoral prevê o registro dessas
obras: o escritor deve levar seu livro à Biblioteca Nacional, o escultor sua peça à
Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o arquiteto seu
projeto ao CREA, e assim por diante (Lei n. 5.988/73, art. 17, mantido em vigor
pelo art. 115 da Lei n. 9.610/98). Estes registros, contudo, não têm natureza
constitutiva, mas apenas servem à prova da anterioridade da criação, se e quando
necessária ao exercício do direito autoral. O autor, portanto, pode reivindicar em
juízo o reconhecimento de seu direito de exploração exclusiva da obra, mesmo
que não tenha o registro. O inventor, o designer e o empresário não podem
reivindicar idêntica tutela, se não exibirem a patente ou o registro.
Mesmo o registro de programas de computador, embora feito pelo INPI,
não tem natureza constitutiva, porque se cuida de direito de autor. Na verdade, o
INPI, neste caso, não desempenha uma função própria, relacionada à tutela da
propriedade industrial, mas atua apenas como o órgão designado pelo Ministério
do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, que, se, no futuro, entender
de passar a incumbência a outra repartição pública, poderá fazê-lo, sem que isto
altere a natureza jurídica do ato registrário, que continuará sendo, no caso,
meramente declaratório. Ou seja, o INPI, quando patenteia uma invenção ou
registra desenho industrial ou marca, pratica ato de natureza constitutiva, fundado
no direito industrial; quando, porém, registra um logiciário (software), pratica ato
declaratório, relacionado ao direito autoral.
Se restar demonstrado, portanto, que uma determinada pessoa foi a
primeira a criar uma obra intelectual, artística ou científica, ou um programa de
computador, ela será a titular do direito à exploração exclusiva, mesmo que outra
pessoa tenha feito, anteriormente, o registro da mesma obra nas entidades
mencionadas por lei ou designadas pelo MICT.
Uma das diferenças entre o
direito industrial e o autoral
está relacionada à natureza do
registro do objeto, ou da obra.
O do primeiro é constitutivo; o
da obra se destina apenas à
prova da anterioridade.
A segunda diferença entre os dois sistemas protetivos da proprie-dade
intelectual diz respeito à extensão da tutela. O direito industrial protege não
apenas a forma exterior do objeto, como a própria ideia inventiva, ao passo que o
direito autoral apenas protege a forma exterior. Se alguém apresenta ao INPI um
pedido de patente, descrevendo de maneira diferente uma invenção já
patenteada, ele não poderá receber o direito industrial que pleiteia. Isto porque a
propriedade, neste caso, está protegida como a ideia de que decorre a invenção.
Ao seu turno, no campo do direito autoral, coíbem-se os plágios, ou seja, a
apropriação irregular de obra alheia, tal como ela se apresenta externamente.
Qualquer um pode publicar um livro, narrando, em primeira pessoa, a história de
um homem obcecado pela ideia de que sua mulher foi adúltera, tema introduzido
na literatura brasileira por Machado de Assis, em Dom Casmurro. Ora, desde que
não reproduza trechos do texto machadiano, este escritor não incorrerá em
plágio, embora a sua ideia não seja minimamente original. O pintor que retratar
as coloridas bandeirolas de papel, usadas nas festas juninas do interior paulista,
não estará infringindo os direitos autorais de Volpi (ou seus sucessores), que foi o
criador do tema, desde que não reproduza especificamente nenhuma tela ou
gravura dele. Isto porque a proteção liberada pelo direito autoral não alcança a
ideia do autor, mas só a forma pela qual ela se exterioriza, e se apresenta ao
público.
A segunda diferença entre o
direito industrial e o autoral
está relacionada à extensão da
tutela jurídica. Enquanto o
primeiro protege a própria
ideia inventiva, o segundo
cuida apenas da forma em que
a ideia se exterioriza.
A propósito desta segunda diferença, vale relembrar que o programa de
computador, por ser protegido pelo direito autoral, submete--se ao regime
próprio desse gênero de propriedade intelectual. Em decorrência, é possível a
qualquer um comercializar logiciários que atendam às mesmas necessidades dos
já existentes no mercado, desde que não os reproduzam (o que configuraria
plágio). Também em virtude deste enquadramento no campo do direito do autor,
não é ilícita a desengenharia dos logiciários, isto é, a descoberta do modo de
operação do programa, por meio de sua desestruturação, como forma de
pesquisa de novas alternativas de desenvolvimento da informática.
3.2. Desenho Industrial e Obra de Arte
Situa-se o desenho industrial no limite entre a atividade de criação
industrial e a artística. É, ademais, muito comum, em grandes museus de arte, a
existência de seção dedicada ao design, na qual se exibem móveis e utensílios
dotados de formas esteticamente inovadoras. O primeiro a criar essa seção, o
Museum of Modern Art, de Nova York, exibe até um helicóptero (modelo Bell,
projetado por Arthur Young). A proximidade entre o desenho industrial e a obra
de arte derivam da natureza fútil do ato de criação. Tanto o designer como o
artista não contribuem para o aumento das utilidades que o homem pode esperar
dos objetos. A contribuição deles é de outro gênero, ligada basicamente aos
prazeres de fruição visual: uma contribuição estética, portanto. Não é
considerada desenho industrial, contudo, uma obra de caráter exclusivamente
artístico, por expressa disposição da lei (LPI, art. 98).
Como visto, a tutela da criação artística é feita pelo direito do autor, e não
pelo industrial. É, portanto, uma questão doutrinária relevante, para o direito da
propriedade intelectual, a distinção entre o desenho industrial e a obra de arte.
Esta discussão não desperta muito o interesse dos artistas e designers, mas a
tecnologia jurídica não a pode evitar, uma vez que é essencial para a definição
do regime tutelar aplicável. Outrossim, não é demais lembrar que a tecnologia do
direito se vale de conceitos operacionais, para fins práticos — solucionar conflitos
de interesse. Não tem, e não pode ter, a pretensão de substituir a reflexão da
teoria da arte. Por outro lado, não vale a pena considerar, nesta discussão, toda e
qualquer manifestação artística do homem (literatura, teatro, cinema etc.), mas
apenas a pintura e a escultura, que são as únicas com as quais o desenho
industrial pode eventualmente se confundir.
A distinção jurídica entre desenho industrial e obra de arte (escultura ou
pintura) está relacionada a algumas das funções que os respectivos objetos têm.
Note-se que, embora tanto o design como a manifestação artística revelem o
traço comum da futilidade — isto é, não aumentam a utilidade que uma coisa
pode ter — há uma diferença essencial entre os objetos revestidos de desenho
industrial e aqueles em que a arte se materializa. E esta diferença está ligada à
sua natureza utilitária ou simplesmente estética. Para se chegar a um conceito
minimamente operacional, no emaranhado do problema, deve-se partir de uma
reflexão (um tanto superficial, admita-se) sobre a função desses objetos.
Abstraindo-se a questão das motivações dos artistas, e centrando o foco
sobre as do consumidor de arte, pode-se distinguir uma primeira função de
qualquer pintura ou escultura, que é a estética. Elas se destinam, por esta
perspectiva, a tornar mais bonito o ambiente em que são colocadas. O desejo de
embelezar — e o que vem a ser bonito ou feio é questão altamente subjetiva,
desinteressante à tecnologia jurídica — é elemento motivador de grande parte
das pessoas que consomem arte. Mas, além da estética, as obras de arte
cumprem também outras funções. Geralmente, são uma referência à condição
social de quem as adquire, um símbolo de prestígio, refinamento ou poder
econômico. Quando uma corporação financeira japonesa desembolsa dezenas
de milhões de dólares, para arrematar em leilão um Girassóis de Van Gogh,
mais do que procurando algo para enfeitar a sala de diretoria, ela está fazendo
uma demonstração de força. A mesma, guardadas as proporções, que faz o
empresário brasileiro, ao dependurar um Anita Malfatti sobre a lareira de sua sala
de estar. A arte tem, assim, uma função (digo) publicitária.
As duas funções destacadas, a estética e a publicitária, talvez não sejam as
mais importantes da arte. Mas não interessa, aqui, examinar tal aspecto da
questão. Fato é que essas funções são as mesmas que podem ter o desenho
industrial. Um serviço Noritake embeleza a mesa e, ao mesmo tempo, revela a
condição econômica do anfitrião. Mas há, aqui, uma diferença fundamental, em
relação à obra de arte. O objeto em que se materializa o desenho industrial possui
sempre uma função principal, de natureza utilitária, que falta às telas e suportes
de esculturas. O desenho industrial, em si, é fútil, no sentido de que não amplia as
possibilidades de utilização do objeto a que é aplicado; mas o objeto tem
necessariamente utilidade. Note-se que, pela perspectiva do empresário que
contrata o designer, a função esperada do desenho é a de dotar a mercadoria
produzida de um elemento ornamental (nela mesma ou na embalagem) que a
individualize, no mercado, em relação aos concorrentes (Schulmann, 1991). Para
fins jurídicos, a função mercadológica é a decisiva para distinguir os desenhos
registráveis dos não registráveis; é, porém, irrelevante para distanciar o design
das concepções puramente artísticas.
O desenho industrial é
diferente da escultura e da
pintura (obras de arte) porque
o objeto a que se refere tem
função utilitária e não apenas
estética, decorativa ou de
promoção do seu proprietário.
Em outros termos, a diferença entre desenho industrial e obra de arte está
relacionada à inspiração básica da atividade do designer, desde o seu surgimento,
no final do século XIX: a articulação entre forma e função (Pevsner, 1968;
Heskett, 1980:10/49). O objeto meramente utilitário — que só proporciona uma
certa comodidade, sem possuir forma esteticamente destacada — não ostenta
qualquer design. Um jogo de talher comum, destituído de valor estético, que
serve apenas para comer, não possui sua forma protegida pelo direito industrial.
Ao contrário do faqueiro Riemerschmid, dotado de grande originalidade quando
lançado no mercado nos anos 1910, e que ainda hoje agrada por sua graciosa
forma. Do mesmo modo, o objeto de pura forma, sem nenhuma função utilitária
(assim, a escultura ou a tela), também não tem sua concepção protegida pelo
direito industrial. Por mais desconfortável que pareça, a cadeira vermelha, azul e
amarela, de Gerrit Rietveld, de 1918, serve para sentar; e é neste particular —
quer dizer, no remodelar a forma, sem eliminar a função — que o desenho
industrial de uma cadeira se distingue da escultura de uma cadeira. Se o objeto
resultante da atividade criativa, em suma, não apresenta função utilitária, a
forma correspondente pode ter a proteção do direito autoral, mas não a do direito
industrial.
Na distinção entre desenho industrial e obra de arte, pelo aspecto da
articulação entre função e forma do objeto correspondente, há uma exceção a se
considerar: as joias. São objetos de utilidade prática nenhuma, mas provêm de
atividade criativa tutelada pelo direito industrial. Brincos, colares, anéis e
pulseiras, ainda que exclusivos, não são obras de arte, mas resultam de desenhos
industriais. Seus criadores são protegidos pelo direito industrial, e não pelo autoral.
4. PATENTEABILIDADE
Os bens industriais patenteáveis são a invenção e o modelo de utilidade.
Não basta, contudo, que o inventor ou o criador do modelo tenha conseguido, em
suas pesquisas científicas ou tecnológicas, um resultado original, para que tenha
direito à patente. A lei estabelece diversas condições para a concessão do direito
industrial, às quais se refere, neste caso, pelo neologismo “patenteabilidade”. São
as seguintes: a) novidade; b) atividade inventiva; c) industriabilidade; d)
desimpedimento. As mesmas condições são exigíveis da invenção e do modelo
de utilidade, mas, por razões de ordem exclusivamente didáticas, com vistas a
facilitar a exposição do tema, será feita referência somente à primeira.
4.1. Novidade
Uma invenção atende ao requisito da novidade se é desconhecida dos
cientistas ou pesquisadores especializados. Se os experts não são capazes, pelos
conhecimentos que possuem, de descrever um objeto, o primeiro a fazê-lo será
considerado o seu inventor. Nos termos legais, a invenção é nova quando não
compreendida no estado da técnica (LPI, art. 11). A avaliação da novidade do
invento, portanto, depende do conceito de estado da técnica, fundado
essencialmente na ideia de divulgação do trabalho científico e tecnológico.
O estado da técnica abrange, de início, todos os conhecimentos a que pode
ter acesso qualquer pessoa, especialmente os estudiosos de um assunto em
particular, no Brasil ou no exterior. São alcançados pelo conceito os
conhecimentos divulgados por qualquer meio, inclusive o oral e o eletrônico, na
data em que o inventor submete a sua invenção ao INPI (depósito do pedido de
patente). Se o objeto reivindicado pelo inventor já se encontra acessível, nestes
termos, a qualquer outra pessoa, então lhe falta o requisito da novidade. Não
caberá a proteção do direito industrial, porque, se a correspondente descrição já
se encontra divulgada, o requerente não pode ser tido como o primeiro a inventar
o objeto.
Também se consideram integrantes do estado da técnica alguns
conhecimentos não divulgados. São os descritos em patente depositada, ainda não
publicada. Como se examinará mais à frente, o pedido de patente fica mantido
em sigilo pelo INPI, nos 18 meses subsequentes ao depósito (LPI, art. 30), findos
os quais a invenção será obrigatoriamente tornada pública (podendo o interessado
eventualmente requerer a antecipação da publicação). Pois bem, de acordo com
a lei, o conteúdo completo de pedido depositado é considerado estado da técnica,
a partir da data do depósito, embora a sua publicação seja posterior. Em outros
termos, se o inventor júnior depositou seu pedido, quando já se encontrava em
curso o prazo de sigilo do pedido do inventor sênior, não será considerada nova a
invenção daquele, mesmo que nenhuma delas tenha sido publicada (ou mesmo
que o júnior requeira a antecipação da publicação de seu pedido, em relação à
do sênior).
O estado da técnica, desse modo, compreende todos os conhecimentos
difundidos no meio científico, acessível a qualquer pessoa, e todos os
reivindicados regularmente por um inventor, por meio de depósito de patente,
mesmo que ainda não tornados públicos. Estes são os contornos básicos da noção
conceitual que permite avaliar o grau de novidade das invenções (LPI, art. 11),
mas o conceito de estado da técnica não está completo, ainda. Devem-se
ressalvar algumas formas de divulgação que não chegam a comprometer a
novidade do invento. Assim, se o próprio inventor, nos 12 meses anteriores ao
depósito da patente, deu notícias de sua invenção — por exemplo, em congressos
ou por meio de revista acadêmica —, então não se considera que a invenção já
integre o estado da técnica. O mesmo ocorre se a divulgação é feita em razão de
fraude, como no caso de o INPI inadvertidamente publicar a invenção, na
tramitação de pedido de patente apresentado por quem, na verdade, usurpara
uma criação intelectual alheia. Outro exemplo é o da divulgação do invento por
quem não estava autorizado a fazê-lo (LPI, art. 12). Nas duas últimas situações,
para que a divulgação não seja considerada integrante do estado da técnica, ela
também deve ter-se verificado no período de 12 meses anteriores ao depósito do
pedido de patente. É o chamado “período de graça”.
Lei da Propriedade Industrial
Art. 11. A invenção e o modelo
de utilidade são considerados
novos
quando
não
compreendidos no estado da
técnica.
A novidade, portanto, se define a partir de um conceito negativo, de uma
exclusão. Novo é o invento que não se encontra no estado da técnica. A doutrina
costuma distinguir novidade de originalidade, atributo de toda invenção, sob o
ponto de vista subjetivo. Original é a qualidade da concepção, no momento em
que ela passa de desconhecida para conhecida, no espírito de uma pessoa, em
razão de seu esforço próprio (quer dizer, fora do processo ensino-aprendizagem).
Um inventor que ignora o funcionamento de um determinado objeto pode chegar
ao seu conhecimento, em razão das pesquisas que realiza. Em sua mente, formase uma ideia original. Em seguida, ao tentar obter a patente, fica sabendo que
outro inventor (um ano antes, que seja) havia já depositado a mesma invenção.
A ideia do júnior era original, mas não nova (cf. Cerqueira, 1946:307/309).
4.2. Atividade Inventiva
O segundo requisito para a concessão da patente é a atividade inventiva.
Apresenta-a a invenção que não decorre do estado da técnica de um modo óbvio,
para um especialista. Quer dizer, para ser patenteável, a invenção, além de não
compreendida no estado da técnica (novidade), não pode derivar de forma
simples dos conhecimentos nele reunidos. É necessário que a invenção resulte de
um verdadeiro engenho, de um ato de criação intelectual especialmente arguto.
Este requisito da atividade inventiva foi criado pelo direito norte-americano (nonobviousness), em 1952, a partir de precedentes judiciais, e, hoje em dia,
corresponde a preceito básico do direito industrial em diversos países (a França
adotou-o em 1968; a Espanha o admite na lei de 1986; o Brasil o introduziu em
1996).
A atividade inventiva (ou inventividade) é o atributo da invenção que
permite distinguir a simples criação intelectual do engenho. Numa hipotética
classificação dos inventores, de acordo com a capacidade inventiva, haveria pelo
menos 3 níveis a considerar: os gênios (em que se enquadraria, por exemplo,
Thomas Edison ou James Watt), os engenhosos e os criativos. Para um leigo, os
avanços que os criativos proporcionam ao estado da técnica podem ser
surpreendentes ou instigantes. Para o especialista, entretanto, tais avanços são
óbvios, evidentes, meros desdobramentos previsíveis dos conhecimentos
existentes. Sob o ponto de vista jurídico, apenas as invenções dos engenhosos e
dos gênios podem ser patenteadas, porque só estas se revestem do atributo da
atividade inventiva.
Ressalte-se que a referência à capacidade inventiva dos pesquisadores,
que eu acabei de fazer, na verdade, só pode servir de esquema didático para
melhor compreensão do conceito legal (atividade inventiva). Nenhuma patente
poderá ser negada, em função de critérios subjetivos, isto é, das qualidades
apresentadas pela pessoa do inventor. O INPI não pode classificar os inventores,
segundo as respectivas habilidades, para fins de apreciar os pedidos de patente. O
exame da patenteabilidade de uma invenção é sempre objetivo, quer dizer,
exaure-se na comparação entre, de um lado, a descrição submetida à análise e,
de outro, o estado da técnica e suas decorrências óbvias.
Lei da Propriedade Industrial
Art. 13. A invenção é dotada
de atividade inventiva sempre
que, para um técnico no
assunto, não decorra de
maneira evidente ou óbvia do
estado da técnica.
Art. 14. O modelo de utilidade
é dotado de ato inventivo
sempre que, para um técnico no
assunto, não decorra de
maneira comum ou vulgar do
estado da técnica.
No direito norte-americano, a presença do requisito da non-obviousness,
muitas vezes, é feita pela verificação dos resultados alcançados pelo invento,
quando colocado no mercado. Assim, por exemplo, se há sucesso imediato na
sua aceitação pelos consumidores, este fato é considerado sinal indicativo do
atendimento à condição de patenteabilidade. Se, por outro lado, as necessidades
dos consumidores, que se pretendiam atender com o invento, continuam
insatisfeitas, é sinal de falta de atividade inventiva (Miller-Davis, 1983:70/94). O
critério pode ser útil à aplicação do direito industrial brasileiro. De fato, a análise
da inventividade, no pedido de patente, pode ser auxiliada por exames
relacionados aos resultados que o invento proporciona, em termos econômicos, à
empresa e aos consumidores. Elementos como a eficiência do produto, a
redução de custos, a simplificação de processos industriais ou a diminuição do
tamanho de utensílios e máquinas podem reforçar a conclusão acerca da
presença de atividade inventiva no invento correspondente (cf. Blasi-GarciaMendes, 1997:129).
O exame dos resultados proporcionados pela invenção, contudo, pode
servir unicamente de critério auxiliar, na análise da inventividade. O essencial,
para aferição do atendimento do requisito da lei, é a ampliação do estado da
técnica para além dos limites de suas decorrências óbvias. O aumento da
eficiência de um processo industrial é normalmente associado a uma ampliação
desta ordem, e, por isso, pode contribuir para a análise da patenteabilidade da
invenção. Mas, por si só, não é suficiente para a concessão do direito industrial;
assim como, por outro lado, não se justifica o indeferimento da patente apenas
pela falta de maior eficiência na utilização do invento. O decisivo é a
demonstração de que, para um especialista, a invenção não representa uma
decorrência óbvia ou evidente do estado da técnica.
4.3. Industriabilidade
O terceiro requisito da patenteabilidade é a industriabilidade, que se reputa
atendido quando demonstrada a possibilidade de utilização ou produção do
invento, por qualquer tipo de indústria (LPI, art. 15). Aqui, a expressão
“indústria” possui um sentido bastante largo, equivalente a atividade produtiva, e
alcança não apenas a transformação de matéria--prima em mercadorias (noção
estrita de atividade industrial), mas também a agricultura, pecuária, construção
civil, prestação de serviços etc. A doutrina brasileira costumava lecionar que esse
requisito (a “utilização industrial”) tinha o propósito de excluir, do campo das
criações patenteáveis, as puras concepções intelectuais, como as descobertas
científicas. Em outros termos, o requisito circunscreveria a patenteabilidade às
criações de efeitos práticos (Cerqueira, 1946:340). A lição, contudo, não mais se
ajusta aos termos da lei vigente, perante a qual não se enquadram as concepções
teóricas no conceito de invenção (LPI, art. 10, I a III). Quer dizer, toda invenção
— tanto a patenteável como a não patenteável — tem, por definição legal, efeitos
práticos. A industriabilidade como condição de patenteabilidade, portanto, não
pode ter o mesmo sentido que a doutrina antigamente apontava.
Na verdade, o que pretende a lei, ao eleger a industriabilidade como
condição de patenteabilidade, é afastar a concessão de patentes a invenções que
ainda não podem ser fabricadas, em razão do estágio evolutivo do estado da
técnica, ou que são desvestidas de qualquer utilidade para o homem. Duas,
portanto, são as invenções que não atendem ao requisito da industriabilidade: as
muito avançadas e as inúteis.
Não tem direito a patente, portanto, o criador da invenção que, por se
mostrar tão avançada em relação ao estado da técnica, ainda não pode ser
fabricada. Note-se que não está em questão a fabricação em escala industrial,
que pressupõe a viabilidade do custo e a absorção pelo mercado consumidor. O
transistor, por exemplo, à época de sua invenção, não pôde ser utilizado pela
indústria em larga escala, por uma questão de ordem econômica apenas. Não
existia qualquer dificuldade técnica a impedir sua imediata fabricação, mas os
custos eram muito altos. O mesmo aconteceu com o raio laser e o chip (BlasiGarcia-Mendes, 1997:131). A inexistência de condições econômicas para a
fabricação em escala industrial não impede a patenteabilidade da invenção. O
que a impede é a inexistência dos conhecimentos técnicos indispensáveis à
fabricação do invento. Assim, se o pedido de patente descreve objeto cuja
industrialização depende de outras invenções ainda inexistentes, embora
previsíveis, então lhe falta o requisito da industriabilidade. A patente não poderá
ser concedida, pelo menos enquanto esta circunstância persistir.
Em segundo lugar, também não atendem ao requisito da industriabilidade
as invenções sem qualquer utilidade para o homem. Uma criação simplesmente
curiosa ou intelectualmente instigante não goza da proteção do direito industrial,
ainda que represente uma novidade e resulte de inegável atividade inventiva.
Para obter a patente, é indispensável que o inventor demonstre algum tipo de
proveito, para as pessoas em geral ou para as de determinado grupo, em função
do uso do invento. Assim, o fabricante de medicamentos que pretender patentear
uma nova droga, deverá demonstrar sua eficácia terapêutica. Os placebos não
podem ser patenteados.
4.4. Desimpedimento
O derradeiro requisito da patenteabilidade é o desimpedimento. Invenções
há que, embora novas, inventivas e industrializáveis, não podem receber a
proteção da patente, por razões de ordem pública. A lei anterior de propriedade
industrial vigente no Brasil, por exemplo, excluía da proteção industrial a
invenção de medicamentos. Considerava-se, então, que a descoberta de um novo
remédio era assunto de interesse da saúde pública, de tal forma que a todos os
empresários interessados — e não somente ao inventor — deveria ser possível
fabricá-lo. Com isto, estar-se-ia garantindo maior acesso da população em geral
aos avanços da ciência. Em outros termos, os produtos essenciais à saúde
deveriam ser livremente explorados (Cerqueira, 1946:355). Por esta razão, havia,
na legislação anterior, um impedimento à concessão da patente (então chamada
de “privilégio”) para a invenção de remédios.
A nossa atual legislação de propriedade industrial é resultante, em boa
parte, da necessidade que teve o Brasil de responder, a partir da segunda metade
dos anos 1980, às crescentes pressões internacionais — principalmente dos
Estados Unidos — no sentido de passar a reconhecer o direito das indústrias
farmacêuticas. O valor social da ampla acessibilidade da população aos avanços
da ciência, na área dos medicamentos, esconde, na verdade, uma falácia. A
pesquisa científica pressupõe investimentos de grande porte, e a exclusividade na
fabricação de novas drogas é condição para o retorno destes. O empresário que
apenas se apropria dos resultados da pesquisa alheia, sem realizar nenhum
investimento de monta e sem pagar royalties ao inventor, pode comercializar o
mesmo remédio a preço inferior ao praticado pela indústria responsável pela
invenção. A concorrência desleal acaba, a médio e longo prazo, prejudicando o
próprio consumidor. Claro, porque, se não houver garantia de retorno, novos
investimentos em pesquisa simplesmente não serão feitos. Desse modo, ao
descartar o impedimento de patente de remédios, a lei brasileira em vigor valeu-se da melhor alternativa de tratamento da matéria.
Três sãos os impedimentos existentes no direito brasileiro, atualmente: a)
as invenções contrárias à moral, aos bons costumes e à segurança, à ordem e à
saúde públicas; b) substâncias, matérias, misturas, elementos ou produtos
resultantes de transformação do núcleo atômico, bem como a modificação de
suas propriedades e os processos respectivos; c) seres vivos, ou parte deles (LPI,
art. 18). Esta última hipótese de impedimento possui uma exceção: pode se
conceder patente para a transformação genética introduzida pelo homem em
micro-organismos (são os chamados “transgênicos”).
O direito industrial brasileiro
não impede a patente de
organismos vivos transgênicos.
Note-se que o desimpedimento à concessão da patente não diz respeito às
qualidades intrínsecas, aos atributos da invenção, como os outros requisitos —
novidade, inventividade e industriabilidade. O impedimento é previsto na lei, a
rigor, em atenção a valores sociais estranhos à questão propriamente técnica da
invenção, e está muitas vezes ligado a preceitos éticos. O desimpedimento, por
consequência, é um atributo extrínseco da invenção, e muitas vezes o exame do
atendimento a esse requisito se vê sujeito às nuanças dos valores disseminados na
sociedade.
5. REGISTRABILIDADE
Os registros concedidos pelo INPI referem-se a dois diferentes bens
industriais: o desenho industrial (design) e as marcas. O registro do primeiro
guarda algumas semelhanças com a patente de invenção ou de modelo de
utilidade (nas leis brasileiras anteriores, aliás, os desenhos industriais eram
patenteados e não registrados), distanciando--se, por vezes, da marca. Por essa
razão, ao contrário da patenteabilidade, a registrabilidade não comporta
tratamento geral. São acentuadamente desiguais, em outros termos, as condições
para o registro do desenho industrial e da marca.
5.1. Registro de Desenho Industrial
Há três requisitos para o registro do desenho industrial: a) novidade; b)
originalidade; c) desimpedimento.
Um desenho industrial é novo quando não compreendido no estado da
técnica. Os designers, evidentemente, conhecem os principais trabalhos
realizados no campo do desenho industrial, bem como estão atentos às inovações
apresentadas por seus colegas; dedicam-se, inclusive, a estudar peças clássicas,
de modo a aprenderem com as soluções encontradas por seus autores. O
conjunto de conhecimentos resultante das observações e estudos compõe o
estado da técnica, legalmente definido como tudo que foi divulgado, por qualquer
meio, até a data do depósito do pedido de registro. Integra, também, o estado da
técnica o desenho depositado no INPI, embora ainda não publicado. A exemplo
do disposto relativamente ao estado da técnica das invenções e modelos de
utilidade, também é concedido um “período de graça”, ao autor do desenho. No
caso do design, no entanto, a lei estabeleceu os 180 dias anteriores ao depósito do
pedido de registro, para fins de excluir do estado da técnica a divulgação feita,
nesse período, pelo próprio designer, ou realizada em decorrência de fraude
(LPI, art. 96, § 3º). Prazo menor, portanto, que o relativo às invenções e modelo
de utilidade.
A originalidade, por sua vez, é a apresentação de uma configuração visual
distintiva, em relação aos objetos anteriores (LPI, art. 97). Algumas alterações
no desenho registrado por outra pessoa podem significar novidade (já que não se
encontram no estado da técnica); mas se não trouxerem para o objeto uma
característica peculiar, que o faça perfeitamente distinguível dos seus pares, o
registro não poderá ser concedido, em razão da falta de originalidade. Para o
exemplo, lembre-se da famosa cadeira que Charles Mackintosh, arquiteto e
designer escocês, projetou para a Hill House, em 1902. Cadeira de espaldar bem
alto, formado por ripas pretas, que lembra uma escada (sete ripas abaixo do
assento, vinte e duas acima). As ripas mais altas são cortadas por traves verticais.
Se um designer submeter ao INPI uma cadeira com estas mesmas
características, mas com traves diagonais sobrepostas às ripas superiores, esta
cadeira será eventualmente nova — posto nenhum outro designer a tivesse
projetado, antes —, mas nada original. O resultado visual da nova cadeira não
seria suficientemente distinto do da Mackintosh. A originalidade está para o
desenho industrial como a inventividade está para a invenção. Quer dizer, o
direito industrial protege as criações engenhosas do espírito humano, e não
qualquer tipo de inovação trazida aos objetos.
Finalmente, a lei estabelece três impedimentos à concessão do registro de
desenho industrial. Não pode ser registrado o desenho que: a) tem natureza
puramente artística (ver item 3.2, acima); b) ofende a moral e os bons costumes,
a honra ou imagem de pessoas, ou atente contra a liberdade de consciência,
crença, culto religioso, ou contra ideias ou sentimentos dignos de respeito e
veneração; c) apresenta forma necessária, comum, vulgar ou determinada
essencialmente por considerações técnicas e funcionais (LPI, arts. 98 e 100).
Os requisitos para o registro
de desenho industrial são a
novidade, a originalidade e o
desimpedimento.
A concessão do registro de desenho industrial independe da prévia
verificação, pelo INPI, da sua novidade e originalidade. Apenas a inexistência
dos impedimentos é checada pela autarquia, antes da expedição do certificado.
Se, em momento posterior, restar demonstrado o desatendimento dos requisitos
da registrabilidade, o INPI instaura de ofício o processo de nulidade do registro
concedido (ver item 6.2).
5.2. Registro de Marca
O registro de marca está sujeito a três condições: a) novidade relativa; b)
não colidência com notoriamente conhecida; c) desimpedimento.
A primeira — novidade relativa — é exigida para que a marca cumpra a
sua finalidade, de identificar, direta ou indiretamente, produtos e serviços,
destacando-os dos seus concorrentes. Se a marca não for nova, ela não atenderá
essa finalidade. Note-se que não é exigida a novidade absoluta para a concessão
do registro. Não é necessário que o requerente tenha criado o sinal, em sua
expressão linguística, mas que lhe dê, ou ao signo não linguístico escolhido, uma
nova utilização. Se o fabricante de móveis de escritório adota para seus produtos
a marca triângulo, ele poderá obter a proteção do direito industrial, apesar de a
expressão não ter sido criada por ele. Aliás, triângulo é figura geométrica
estudada desde a Antiguidade, que todos conhecem nos primeiros anos de escola.
O que é novo, na decisão do fabricante, é chamar móveis de triângulo. A
ninguém antes dele pode ter ocorrido semelhante ideia. Em outros termos, o uso
emprestado à expressão linguística (ou ao signo não linguístico) é que deve se
revestir de novidade, para que a marca possa ser registrada.
Em razão do caráter relativo da novidade, a proteção da marca registrada
é restrita ao segmento dos produtos ou serviços a que pertence o objeto marcado.
A regra do direito marcário, que se conhece por “princípio da especificidade”,
tem o objetivo de impedir a confusão entre os consumidores acerca dos produtos
ou serviços disponíveis no mercado. Se houver possibilidade de os consumidores
os confundirem, as marcas adotadas para os identificar não podem ser iguais ou
semelhantes.
No exemplo hipotético acima, o fabricante de móveis de escritório terá a
sua marca registrada pelo INPI, na classe 20 (“móveis, espelhos, molduras,
produtos (não incluídos em outras classes) de madeira, cortiça, junco, cana,
vime, chifre, marfim, osso, barbatana de baleia, concha, tartaruga, âmbar,
madrepérola, espuma do mar e sucedâneos de todas estas matérias ou de
matérias plásticas”). Nenhum empresário dedicado aos produtos abrangidos na
mesma classe poderá utilizar marca idêntica ou semelhante. O comerciante que
vende móveis de piscina, por exemplo, está impedido de usar a expressão
triângulo, para os identificar. Contudo, se uma agência de publicidade pretender
adotar a mesma marca, para os seus serviços, poderá fazê-lo livremente, sem
que exista ofensa ao direito do industrial titular da marca registrada. Aliás, a
agência poderá também requerer o registro da expressão triângulo, como sua
marca, uma vez que este será feito agora na classe 35 (“Propaganda; gestão de
negócios; administração de negócios; funções de escritório”).
Destaco que duas marcas iguais ou semelhantes até podem ser registradas
na mesma classe, desde que não se verifique a possibilidade de confusão entre os
produtos ou serviços a que se referem. É respeitado o princípio da especificidade,
em suma, sempre que o consumidor, diante de certo produto ou serviço, não
possa minimamente confundi-lo com outro identificado com marca igual ou
semelhante. Afastada essa possibilidade, será indiferente se as marcas em
questão estão registradas na mesma classe ou em classes diferentes.
O INPI classifica os produtos e serviços, para facilitar a pesquisa do
âmbito da proteção deferida pelo registro, adotando a Classificação Internacional
de Produtos e Serviços (“Classificação de Nice” — 9ª Edição). A classificação
dos produtos e serviços para fins do direito marcário tem a função de auxiliar a
investigação da eventualidade da confusão entre as marcas. As classes não
delimitam, em outros termos, o âmbito do direito de exclusividade concedido ao
titular do registro.
A única exceção à regra da especificidade (limitação da tutela ao
segmento dos produtos e serviços suscetíveis de confusão pelo consumidor) diz
respeito à marca de alto renome, cuja proteção é extensiva a todos os ramos de
atividade (LPI, art. 125). Trata-se de uma situação especial, em que se
encontram certas marcas, amplamente conhecidas pelos consumidores (por
exemplo, Coca-cola, Natura, Fiat, Pirelli). Nenhum consumidor poderia pensar
que um móvel de escritório com a marca Coca-cola teria sido fabricada pelo
mesmo empresário que fornece os refrigerantes. Mas, como se trata de marca
de alto renome, o fabricante de roupas não tem direito de empregá-la em seus
produtos, a despeito da impossibilidade de confusão.
O titular de marca, registrada numa ou mais classes, pode requerer ao
INPI que lhe atribua a qualidade de “alto renome”. Deve fazê-lo
necessariamente como meio de defesa (isto é, ao impugnar o pedido de registro
formulado por outrem ou no bojo de pedido de anulação de registro alheio),
segundo o regulamento administrativo do tema (Res. INPI 121/2005). Se a
autarquia, diante das provas apresentadas pelo impugnante ou requerente da
anulação do registro, considerar que a marca dele é mesmo amplamente
conhecida, a sua proteção deixará de ser restrita ao segmento de produtos ou
serviços passíveis de confusão e se estenderá para todas as atividades
econômicas. Durante o prazo de 5 anos, ele não precisará produzir prova do alto
renome da marca quando impugnar pedidos formulados por outros empresários
ou pleitear a anulação de registro concedido. O titular de marca de alto renome
pode, desse modo, impedir sua utilização por qualquer outro empresário, mesmo
os que oferecem produtos ou serviços em relação aos quais a possibilidade de
confusão estaria completamente afastada.
Pelo
“princípio
da
especificidade”, a proteção da
marca registrada é limitada
aos produtos e serviços a
respeito dos quais podem os
consumidores se confundir,
salvo quando o INPI reconhece
sua natureza de “marca de alto
renome”. Nesta hipótese, a
proteção é ampliada para todos
os
ramos
da
atividade
econômica.
A proteção especial que a lei dá à marca registrada de alto renome, além
de significar a possibilidade de o titular impedir a utilização de sinal idêntico ou
semelhante, em qualquer outro ramo de atividade econômica, apresenta também
outro aspecto, relativo às características essenciais responsáveis pelo seu amplo
conhecimento junto aos consumidores. Quer dizer: a marca de alto renome não
pode ter sua forma distintiva principal utilizada por ninguém.
Quando se trata de marca comum, o titular está protegido contra
reproduções e semelhanças, dentro do mesmo segmento. Mas não pode impedir
o uso de signos visuais ou expressões linguísticas comuns aos concorrentes, ainda
que tenha sido o primeiro a ostentá-los em sua marca. São as chamadas marcas
débeis ou frágeis. No campo da indústria farmacêutica, podem-se colher alguns
exemplos, uma vez que os medicamentos são muitas vezes chamados por
variações linguísticas do nome científico de seu componente básico ou do mal
que pretende combater (assim: Cefalon e Cefalit, destinados à atenuação da
cefaleia; ou Deltaren e Voltaren; cf. Domingues, 1984:156/164). Pois bem, uma
marca de alto renome recebe a proteção especial mesmo em relação aos signos
de uso comum. É o caso, por exemplo, da marca McDonald’s, de que é titular
conhecidíssima rede de fast-food. O prefixo Mc identifica de tal forma a rede,
que, embora se trate de sinal linguístico comum — na composição de nomes
pessoais sobretudo —, não pode ser utilizado por nenhum outro empresário. Ela é,
em todo o mundo, de tal forma conhecida por seu prefixo — largamente
explorado nas propagandas e na identificação dos produtos —, que esse fato
impede, como ilustra Wolfgang Berlit (1995:184), o registro de marcas como
McChinese.
O segundo requisito para o registro de marca é a não colidência com
marca notoriamente conhecida. Seu fundamento legal se encontra no art. 126 da
LPI, que atribui ao INPI poderes para indeferir de ofício pedido de registro de
marca, que reproduza ou imite, ainda que de forma parcial, uma outra marca,
que notoriamente não pertence ao solicitante. Trata-se de disposição introduzida
pela atual lei, pela qual o Brasil finalmente cumpre compromisso internacional,
assumido quando de sua adesão à Convenção da União de Paris, em 1884. Pelo
seu art. 6º bis (I), os países unionistas (isto é, os integrantes da União de Paris) se
comprometem a recusar ou invalidar registro, bem como proibir o uso, de marca
que constitua reprodução, imitação ou tradução de uma outra, que se saiba
pertencer a pessoa diversa, nascida ou domiciliada noutro país unionista (sobre o
tema, ver Gusmão, 1990).
A
marca
notoriamente
conhecida goza de uma
proteção
especial,
que
independe de registro no INPI.
Assim, se alguém pretender
apropriar-se de marca que
evidentemente
não
lhe
pertence, o seu pedido poderá
ser indeferido pelo INPI,
mesmo que não exista registro
anterior da marca no Brasil.
O principal objetivo do segundo requisito da registrabilidade é a repressão
à contrafação de marcas (a chamada pirataria). Essa prática ilícita consiste em
requerer o registro de marcas ainda não exploradas pelos seus criadores no
Brasil, mas já utilizadas noutros países. Quando o empresário, responsável pela
criação e consolidação da marca no exterior, resolve expandir seus negócios
para o mercado brasileiro, encontra-a registrada em nome de outra pessoa, em
princípio o titular do direito de exclusividade. Demonstrada a notoriedade da
marca, o empresário poderá requerer ao INPI a nulidade do registro anterior,
bem como a concessão do direito industrial em seu nome.
O terceiro requisito é o desimpedimento. O art. 124 da LPI apresenta
extensa lista de signos que não são registráveis como marca. Em alguns incisos
(IV, XIII, XV, XVI), na verdade, o legislador estabelece condições especiais
para alguns registros, e não propriamente impedimento. É, por exemplo, o caso
de pseudônimo ou apelido (como Pelé ou Xuxa), cujo registro não é impedido,
mas apenas condicionado à autorização da pessoa notoriamente conhecida por
ele. Em outros incisos (V, VII, XI, XII, XVII, XIX, XXII, XXIII), o legislador se
refere à extensão da proteção de bens imateriais de natureza diversa, o que
também não significa impedimento, mas definição dos signos suscetíveis de
compor uma marca. Abstraídas estas hipóteses, restam as seguintes: a) brasão,
armas, medalha, bandeira, emblema, distintivo e monumento oficiais; b) letra,
algarismo e data, salvo se revestidos de suficiente forma distintiva; c) expressão,
figura, desenho ou sinal contrário à moral e aos bons costumes, ou que ofenda a
honra ou imagem de pessoas, ou atente contra a liberdade de consciência,
crença, culto religioso ou ideia e sentimento dignos de respeito e veneração; d)
sinal de caráter genérico, necessário, comum, vulgar ou simplesmente descritivo,
quando tiver relação com o produto ou serviço a distinguir, ou suas qualidades,
salvo quando revestido de suficiente forma distintiva; e) as cores e suas
denominações, salvo se dispostas ou combinadas de modo peculiar e distintivo; f)
indicação geográfica; g) falsa indicação de origem; h) reprodução ou imitação
de título ou apólice públicos, moeda ou cédula; i) termo técnico usado para
distinguir produto ou serviço; j) a forma necessária, comum ou vulgar, bem
como a que não pode ser tecnicamente dissociada de um produto ou de seu
acondicionamento.
Ressalte-se que o impedimento legal obsta o registro do signo como
marca, mas não a sua utilização na identificação de produtos ou serviços. Quer
dizer, o empresário pode adotar, por exemplo, a bandeira nacional estilizada para
identificar suas mercadorias ou atividade, mas não poderá exercer nenhum
direito de exclusividade sobre ela. Outro exemplo: o fornecedor de massas
alimentícias pode escolher a expressão Macarrão para identificar seus produtos.
Não poderá, porém, registrá-la como marca, porque se trata de signo genérico,
isto é, referente ao gênero ao qual pertence a mercadoria marcada. Não
podendo registrar a expressão como marca, não poderá impedir o seu uso pelos
concorrentes. Somente poderá pleitear o direito industrial, se revestir o signo
Macarrão de uma forma suficientemente distintiva. Se entrelaçar a letra M ao
restante da palavra, digamos. Neste caso, terá a exclusividade de uso da
expressão, na forma registrada. Qualquer um poderá continuar usando a palavra,
desde que evite o entrelaçamento característico da marca levada a registro.
6. PROCESSO ADMINISTRATIVO NO INPI
No passado, o direito industrial de alguns países europeus (a França e a
Itália, por exemplo) adotaram um sistema de tramitação dos pedidos de patente e
registro em geral, chamado de livre concessão. Era caracterizado pela definição
de que o processo administrativo, preparatório da expedição da patente ou do
registro, dedicava-se unicamente à verificação do atendimento às formalidades
legais, dispensada análise do mérito do pedido (isto é, o preenchimento das
condições de patenteabilidade ou registrabilidade). Ao sistema de livre-concessão
se contrapõe o de exame prévio, adotado nos Estados Unidos e na Alemanha, por
exemplo. Carvalho de Mendonça identifica, ainda, dois outros sistemas: o de
aviso prévio e secreto, criado pelo direito suíço, e o de publicação preventiva, da
legislação inglesa de 1907 (1938:124/125). Atualmente, em parte devido à
globalização, em parte às garantias que proporciona, predomina o sistema de
exame prévio. Mesmo na França — em que foi criado o sistema de livreconcessão —, desde 1978, é feito o exame limitado da novidade da invenção, ou
do caráter distintivo da marca (Ripert-Roblot, 1947:408 e 436/437; Gusmão,
1990:7/8).
O direito industrial brasileiro era filiado ao sistema de exame prévio,
desde 1923 (cf. Cerqueira, 1946:364/385). A lei de 1996, no entanto, inovou o
tratamento da matéria, adotando um sistema misto: enquanto os pedidos de
patente de invenção e de modelo de utilidade, bem como o de registro de marca
continuam sujeitos ao regime do exame prévio, o de registro de desenho
industrial está, agora, submetido a tramitação mais próxima à do de livre
concessão.
Note-se que as particularidades do processo administrativo — quer dizer,
se há ou não exame prévio das condições de patenteabilidade ou de
registrabilidade —, ao contrário do que pensou alguma doutrina (Cerqueira,
1946:763/764), não têm necessária relação com a natureza atributiva ou
declaratória do ato de expedição da patente ou do registro. No Brasil, o ato
administrativo praticado pelo INPI, mesmo quando diz respeito ao registro de
desenho industrial, é sempre constitutivo do direito industrial de exclusividade na
exploração econômica do bem (LPI, art. 109). Também importa acentuar que
não existe diferença entre os dois regimes, no que diz respeito ao controle
jurisdicional do ato administrativo praticado pelo INPI. Seja no sistema de
exame prévio, seja no de livre concessão, os interessados podem discutir
judicialmente se a concessão do direito industrial pela autoridade administrativa
atendeu aos requisitos legais de patenteabilidade ou de registrabilidade. A
diferença entre os dois sistemas tem pertinência unicamente no âmbito do INPI.
Quer dizer, na tramitação de pedido de direito industrial relacionado à invenção,
modelo de utilidade ou marca, a autarquia examina os requisitos da
patenteabilidade ou da registrabilidade antes de decidir o pedido; na tramitação
do relacionado a desenho industrial, os requisitos da registrabilidade serão
examinados posteriormente, e mesmo assim apenas em alguns casos.
6.1. Pedido de Patente
O objetivo do processo administrativo do INPI, deflagrado pela
apresentação de um pedido de patente, é o de verificar se este atende às
condições de patenteabilidade (isto é, a novidade, a inventividade, a
industriabilidade e o desimpedimento). As principais fases do pedido são o
depósito, a publicação, o exame e a decisão.
O pedido de patente de
invenção ou de modelo de
utilidade segue tramitação que
compreende quatro fases:
depósito, publicação, exame e
decisão.
O depósito é um ato mais complexo que o simples protocolo do pedido,
em razão dos efeitos que produz. Ele assinala não só a anterioridade da
apresentação da criação industrial ao INPI — o que implica a definição do titular
do direito, em caso de sobreposição de pedidos —, mas também o início da
contagem de importantes prazos, inclusive o da duração da patente. Para que o
pedido possa ser depositado pelo INPI, ele deve atender a determinados
requisitos formais, entre os quais ressalta o da apresentação das “reivindicações”
(LPI, art. 19, III). A definição exata e técnica da invenção ou modelo de
utilidade, cuja patente é pleiteada, se encontra neste capítulo do pedido. Nele, o
requerente deve detalhar os aspectos da sua criação industrial que a
individualizam, a ponto de justificar a proteção legal. O exame de mérito e a
própria extensão dos efeitos da patente (LPI, art. 41) dependem das
reivindicações apresentadas.
Se o requerente ainda não tem condições de apresentar todos os elementos
exigidos para o depósito, mas quer se assegurar quanto à anterioridade de seu
pedido, poderá entregá-lo incompleto ao INPI, contra recibo datado. Neste caso,
o INPI concederá prazo de 30 dias ao requerente para o atendimento às
exigências relacionadas à complementação do depósito. Se tempestivamente
atendidas as exigências, o depósito se considera efetivado na data do recibo; se
desatendidas, arquiva-se o pedido, perdendo o requerente a anterioridade que
eventualmente o favorecia. O depósito de patente só poderá ser alterado pelo
depositante, com vistas a melhor esclarecer ou definir seu objeto, antes da
apresentação do pedido de exame (LPI, art. 32).
A publicação é o ato que dá aos interessados a notícia da existência do
pedido de concessão de direito industrial. Trata-se de providência indispensável
para a tramitação do processo administrativo. De fato, é necessário que todos os
empresários, inventores e demais pessoas interessadas possam ter conhecimento
preciso e detalhado da reivindicação, para defender seus interesses. O inventor
sênior, que depositou seu pedido de patente em primeiro lugar, só poderá resistir
ao pleito do júnior, se tiver conhecimento da invenção reivindicada por este
último. A indispensabilidade da publicação, para o direito industrial, é fato que
justifica, muitas vezes, o empresário preferir manter em segredo de empresa os
avanços tecnológicos que seu departamento de pesquisa alcançou. Isto porque,
uma vez tornada pública a reivindicação, qualquer pessoa terá acesso a esses
avanços, e poderá deles se utilizar, cabendo ao empresário as providências para
descobrir a utilização ilícita e bloqueá-la.
O pedido de patente será mantido em segredo, no INPI, pelo prazo de 18
meses, a contar do depósito (LPI, art. 30). No vencimento do prazo, será feita a
publicação, salvo no caso de patente de interesse da defesa nacional, que tramita
totalmente em sigilo (LPI, art. 75). O requerente pode, se for do seu interesse,
solicitar a antecipação da publicação.
Na fase do exame, o INPI investiga as condições de patenteabilidade.
Além do inventor-depositante, qualquer pessoa pode apresentar ao INPI o pedido
de exame, nos 36 meses seguintes à data do depósito. Melhor dizendo, desde a
publicação do pedido, e até o encerramento da fase do exame, podem os
interessados apresentar à autarquia os elementos que possuírem, seja para
demonstrar eventual desatendimento às condições de patenteabilidade (por
exemplo, no caso de o pedido colidir com outra patente, anteriormente
depositada ou concedida), seja para contribuir com a outorga do direito industrial
(no caso de um outro empresário interessado na futura exploração da invenção,
mediante licença). Não há, propriamente, um prazo para a apresentação da
oposição ou da contribuição, mas como a lei determina que o exame não pode
ter início antes de 60 dias da publicação do pedido (LPI, art. 31, parágrafo único),
a cautela recomenda que se observe este termo para a providência por parte dos
interessados. A fase de exame de patente se conclui com a elaboração, pelos
setores técnicos do INPI, do parecer de mérito, acerca do qual terá o depositante
direito de manifestação, caso seja desfavorável à sua pretensão (LPI, art. 36).
Quando a patente tiver por objeto produtos e processos farmacêuticos, a
concessão dependerá de prévia anuência da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária – ANVISA (LPI, art. 229-C). Note-se que, neste caso, além do INPI,
também este outro órgão governamental deverá se pronunciar sobre o
atendimento dos requisitos da patenteabilidade. Não estão em causa, por óbvio,
questões como a eficácia do medicamento e a relevância para a saúde pública
em sua comercialização massiva, assuntos de que tratará ou poderá tratar a
ANVISA em procedimentos administrativos próprios. Ao se manifestar sobre o
pedido de patente, ela deverá unicamente manifestar seu entendimento sobre
patenteabilidade de produtos que possam pôr em risco a saúde de seus usuários, e
nada mais. É este o correto entendimento adotado pela Advocacia Geral da
União (Parecer n. 337/PGF/EA/2010). Quando não há risco à saúde, cabe
exclusivamente ao INPI conferir os requisitos de patenteabilidade dos produtos e
processos farmacêuticos.
Deferido o pedido, é expedida a carta-patente, o único documento
comprobatório da existência do direito industrial sobre a invenção ou modelo de
utilidade.
6.2. Pedido de Registro de Desenho Industrial
O pedido de registro de desenho industrial, como já assinalado, tem a sua
tramitação disciplinada, na lei de 1996, segundo o sistema de livre concessão.
Deste modo, feito o depósito do design no INPI, segue-se a sua imediata
publicação e concomitante expedição do certificado. Esta sistemática apenas não
será observada em duas hipóteses: se o interessado solicitar sigilo, ou se o pedido
não preencher as condições mínimas para o registro. No primeiro caso, o
processo aguardará a manifestação do requerente ou a fluência do prazo
máximo legal, de 180 dias, quando então terá seguimento, com a publicação. No
segundo, o INPI indeferirá de plano o pedido.
O pedido de registro de
desenho industrial é o único,
no direito brasileiro, submetido
ao sistema de livre concessão,
que dispensa o exame da
novidade
e
originalidade
previamente à outorga do
direito de exclusividade.
Ressalte-se que a publicação do desenho industrial e a expedição do
respectivo certificado independem do exame, pelo INPI, da novidade e da
originalidade. A autarquia, assim, apenas poderá indeferir o registro, se o pedido
esbarrar em algum impedimento legal (por exemplo: trouxer desenho de
natureza puramente artística, contrário à moral ou de forma comum) ou se for
desatendida formalidade essencial ao depósito (por exemplo: mais de vinte
variações, falta de explicitação do campo de aplicação do objeto). Se o design é
novo e original, este é assunto a se examinar eventualmente em outra
oportunidade. O depositante, portanto, após a expedição do certificado, já é o
titular do direito industrial de exploração com exclusividade do desenho (LPI, art.
109).
Claro que o sistema, ao dispensar o exame prévio, dá ensejo à concessão
do mesmo direito industrial a duas pessoas diferentes. Como a autoridade
administrativa não procede à prévia verificação da novidade e da originalidade, é
possível que dois designers portem certificados de registro de um mesmo
desenho industrial. Como resolver esta questão? Em primeiro lugar, não se deve
descartar a hipótese de acordo entre os titulares do registro, até mesmo para
somarem esforços na defesa dos seus direitos de exploração exclusiva, em
relação a terceiros. Não existindo acordo, qualquer um deles poderá requerer ao
INPI o exame do objeto do seu registro (LPI, art. 111). Será, então, emitido
parecer técnico sobre a sua novidade e originalidade. Se o INPI constatar que o
desenho, registrado em nome de quem requereu o exame de mérito, atende aos
pressupostos de registrabilidade, ele instaura ex officio o processo de nulidade do
outro registro; se constatar o desatendimento a tais pressupostos, o processo de
nulidade, também instaurado de ofício, direciona-se ao próprio registro
examinado.
6.3. Pedido de Registro de Marca
Apresentado pedido de registro de marca, o INPI realiza um exame
formal preliminar, pertinente à instrução. Se convenientemente instruído, na
forma que a lei determina (LPI, art. 155), o pedido é depositado. Se a instrução
estiver incompleta, mas individuar suficientemente o requerente, o sinal e a
classe da marca, então o INPI expede um recibo e fixa as exigências a serem
atendidas pelo requerente. Caso se dê o atendimento, no prazo de 5 dias, o
depósito considera-se realizado na data do recibo. Finalmente, se a instrução
estiver muito incompleta, não possibilitando sequer a expedição do recibo, o
pedido simplesmente não será protocolado. O apresentante não tem direito ao
protocolo, se não instruir minimamente o pedido.
Em seguida ao depósito, é feita a publicação da marca, podendo qualquer
interessado, nos 60 dias seguintes, apresentar oposição. Os empresários —
diretamente ou por meio de seus agentes de propriedade industrial — costumam
acompanhar as publicações da Revista da Propriedade Industrial, para
verificarem se não estão sendo apresentados pedidos que possam prejudicar seus
interesses. Muitos têm na marca registrada o mais valioso elemento do
estabelecimento empresarial, de forma a justificar gastos na proteção do
respectivo direito. Se um concorrente apresenta pedido de registro de marca,
cujo signo é igual ou semelhante ao da registrada em nome daquele empresário,
terá ele interesse em manifestar oposição. O depositante será intimado das
oposições ofertadas para, nos 60 dias seguintes, defender sua pretensão ao
registro.
Na sequência, o INPI realiza o exame das condições da registrabilidade
(novidade relativa, não colidência com marca notória e desimpedimento),
podendo, se for o caso, impor exigências ao depositante. Concluída a fase do
exame, decide o pedido, concedendo ou negando o registro da marca.
6.4. Prioridade
O Brasil, como país unionista — isto é, pertencente à União de Paris —,
assumiu compromisso internacional de conferir prioridade a determinados
pedidos de patente ou registro industrial. Nos termos do art. 4º da Convenção
(cuja revisão de Estocolmo, de 1967, foi promulgada pelo Dec. n. 75.572/75),
quem apresenta pedido de patente de invenção ou de modelo de utilidade, ou
deposita desenho industrial ou marca em qualquer país unionista tem, durante
certo prazo, o direito de prioridade nos demais países da União. O prazo é de 12
meses para as invenções e modelos de utilidade, e de 6 para os desenhos
industriais e marcas, contados da data do primeiro pedido. Durante esse período,
em virtude da sistemática adotada pela União, os inventores, designers e
empresários são protegidos, em matéria de direito industrial, como se não
existissem fronteiras entre os países membros. Assim, se o inventor pede a
patente no Japão (unionista desde 1899), e tem interesse em explorá-la no Brasil
(unionista desde 1884), nos Estados Unidos (desde 1887) e Argentina (desde
1967), deverá, nos doze meses seguintes à apresentação daquele pedido,
promover o depósito da mesma invenção nos três outros países, de acordo com o
direito industrial neles vigente. Ao fazê-lo, deve reivindicar a prioridade,
provando a data em que pediu a patente na agência japonesa de propriedade
industrial. Imagine-se que, na tramitação do processo de patente no Brasil,
verifica-se que outro inventor também depositou igual pedido no INPI. Nesse
caso, em observância da Convenção de Paris, a agência brasileira deve analisar
a questão da novidade considerando, para o primeiro inventor, a data do pedido
no Japão, e, para o segundo, a do depósito no Brasil. A reivindicação da
prioridade deve ser feita juntamente com o pedido de patente ou de registro
(LPI, arts. 16, 99 e 127).
7. EXPLORAÇÃO DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL
A concessão pelo INPI do direito industrial assegura ao titular da patente
ou do registro a faculdade de utilização econômica da invenção, modelo, desenho
ou marca, com exclusividade. Ninguém poderá, em outros termos, fazer uso
desses bens, sem a sua licença. Quem usurpa direito industrial alheio sujeita-se,
além das sanções de ordem civil, também à persecução penal (LPI, arts. 183 a
190). A lei, no entanto, contempla uma exceção, ressalvando a situação dos
usuários anteriores de boa-fé. As condições para o tratamento excepcional
variam segundo a natureza do bem intelectual.
O direito industrial protege
os empresários de boa-fé que já
exploravam
a
invenção,
desenho ou marca, na data em
que foi solicitada a patente ou
o registro. A proteção dos
usuários da marca, no entanto,
é diferente da conferida aos
usuários de invenção ou
desenho.
No tocante a invenção, modelo de utilidade e desenho industrial, é
reconhecido ao usuário de boa-fé o direito de continuar a sua exploração
econômica, sem o pagamento de qualquer remuneração em favor do titular da
patente ou do registro (LPI, arts. 45 e 110). Note-se que a exceção não beneficia
o inventor ou o designer que, na data do depósito da patente realizado por outro,
não explorava economicamente a sua criação intelectual. Ou seja, o direito
industrial protege a pessoa que primeiro reivindica a sua proteção, não
necessariamente a primeira a conceber o bem intelectual. Isto é correto. Se,
contudo, já havia uma atividade econômica organizada em torno de uma
invenção, modelo ou desenho, não há por que sacrificá-la (e aos empregos e
riquezas que gera), em decorrência da tutela conferida ao primeiro que pleiteou
a patente ou registro. São plenamente compatibilizáveis a proteção liberada em
favor das criações industriais e o princípio da preservação da empresa.
Em relação às marcas, a tutela concedida aos usuários anteriores de boafé tem extensão diversa. No caso das patentes e dos desenhos industriais, esses
usuários têm assegurado o direito de continuarem explorando as atividades
econômicas, já existentes ao tempo da apresentação do depósito, sem o
pagamento de royalties ao titular do bem industrial. A faculdade não está sujeita
a nenhuma providência junto ao INPI; é suficiente, para o exercício do direito,
que os usuários disponham de meios de prova da boa-fé e da anterioridade da
exploração econômica, para a eventualidade de virem a ser judicialmente
acionados. Em relação à marca, no entanto, a situação é bem diferente. O
usuário de boa-fé, que explorava a marca no Brasil há pelo menos 6 meses, tem
direito de precedência ao registro. Quer dizer, ele não pode simplesmente
continuar utilizando a marca, mas deve apresentar também o seu pedido de
registro. E deve fazê-lo, entendo, nos 60 dias seguintes à publicação do pedido da
marca concorrente, que é o prazo assinalado em lei para as oposições (LPI, art.
158). Negligenciando na providência, o registro será outorgado ao concorrente
que o solicitara, hipótese em que o usuário de boa-fé pode ser impedido de
continuar usando a marca.
7.1. Licença de Direito Industrial
A exploração do direito industrial se realiza direta ou indiretamente. Na
primeira forma, o próprio titular da patente ou do registro assume os riscos da
atividade empresarial, fabricando e comercializando ele mesmo o objeto
inventado ou desenhado, ou usando a marca nos produtos ou serviços que oferece
ao mercado. A forma indireta de exploração do direito industrial decorre da
outorga de licença de uso, pelo titular da patente ou do registro em favor de um
empresário. Muito comum, também, é a simultânea exploração direta e indireta
do bem industrial.
A licença é o contrato pelo qual o titular de uma patente ou registro, ou o
depositante (licenciador), autoriza a exploração do objeto correspondente pelo
outro contratante (licenciado), sem lhe transferir a propriedade intelectual. A
autorização pode ser concedida com ou sem exclusividade e admite limitações
temporais ou territoriais, hipóteses em que os seus efeitos se circunscrevem aos
âmbitos definidos pelas partes. A averbação do instrumento no INPI, embora não
seja requisito de validade do ato, ou de eficácia entre os contratantes, define-se
como condição para que a licença produza efeitos perante terceiros, em especial
o fisco e as autoridades monetárias. Deste modo, a dedutibilidade fiscal dos
royalties pagos pelo licenciado ao licenciador, ou a remessa de divisas para o
exterior, a este título, depende da averbação.
Entre as partes é aplicável, subsidiariamente às normas estabelecidas pela
legislação de direito industrial, o regime jurídico do contrato de locação de coisas
móveis (CC, arts. 565 a 578); equiparando-se o licenciador ao locador e o
licenciado ao locatário (Cerqueira, 1946:438). Em decorrência, salvo acordo em
contrário das partes, o cancelamento, anulação ou caducidade do direito
industrial, bem como o indeferimento do pedido de patente ou registro, exoneram
o licenciador de suas obrigações e não importam o dever de indenizar o
licenciado. Por outro lado, como se trata de contrato intuitu personae, o
licenciado não pode, sem autorização expressa do licenciador, sublicenciar a
patente ou o registro. Também decorre desta característica a rescisão da licença
em virtude de cessão do direito industrial (salvo se o instrumento prevê cláusula
de vigência perante cessionários e está averbado no INPI).
Normalmente, a licença é ato voluntário, um acordo amplamente
negociado entre o licenciador e o licenciado. A lei prevê, contudo, hipóteses em
que o titular da patente é obrigado, pelo INPI, a licenciar o seu uso em favor de
terceiros interessados (LPI, arts. 68 a 71). São as seguintes: a) exercício abusivo
do direito, como, por exemplo, a cobrança de preços excessivos; b) abuso do
poder econômico, em que a patente é usada para domínio de mercado; c) falta
de exploração integral do invento ou modelo no Brasil, quando viável
economicamente a exploração; d) comercialização insatisfatória para
atendimento das necessidades do mercado; e) dependência de uma patente em
relação a outra, se demonstrada a superioridade da patente dependente, e a
intransigência do titular da dependida em negociar a licença; f) emergência
nacional ou interesse público, declarado por ato do Poder Executivo Federal.
O interessado em explorar a invenção ou modelo, patenteado por outra
pessoa, pode, decorridos 3 anos da concessão da patente, requerer ao INPI a
licença compulsória, se presente uma das hipóteses que a lei autoriza. Feito o
pedido, o titular será intimado a se manifestar sobre as condições oferecidas,
seguindo-se a instrução do processo e a decisão do INPI, concessiva ou
denegatória da licença. As licenças compulsórias são outorgadas sem
exclusividade e com cláusula proibitiva de sublicenciamento, ficando garantida a
remuneração do titular do direito industrial, fixada, se necessário, mediante
arbitramento. O licenciado, no licenciamento compulsório, tem o prazo de 1 ano,
para dar início à exploração econômica da patente, sob pena de cassação da
licença.
7.2. Cessão de Direito Industrial
A cessão de direito industrial é o contrato de transferência da propriedade
industrial, e tem por objeto a patente ou registro, concedidos ou simplesmente
depositados. A cessão pode ser total, quando compreende todos os direitos
titularizados pelo cedente, ou parcial. Esta última pode se limitar quanto ao objeto
(cede-se parte das reivindicações depositadas ou patenteadas, por exemplo) ou
quanto à área de atuação do cessionário (transfere-se o direito de exploração
econômica com exclusividade dentro de certo país, por exemplo). Não há cessão
temporalmente limitada, na medida em que ela se define como o ato de
transferência da propriedade industrial, e não apenas de autorização de seu uso
(hipótese relacionada a outro contrato intelectual, a licença).
Rege-se a cessão de direito industrial pelas normas atinentes à cessão de
direitos, observadas as disposições específicas da legislação de propriedade
industrial (LPI, arts. 58 a 60, 121, 134 e 135). Por esta razão, o cedente responde,
perante o cessionário, pela existência do direito à data da cessão (CC, art. 295).
Ou seja, se for declarado o cancelamento, a nulidade ou caducidade da patente
ou do registro, por fato anterior à transferência, o cessionário poderá rescindir o
contrato e pleitear perdas e danos. O mesmo se verifica caso o objeto do direito
industrial não apresente o desempenho propagado pelo cedente. Com mais
precisão: se a invenção ou o modelo de utilidade não revelam a eficiência que
lhes foi atribuída, se o desenho industrial ou a marca não estimulam o consumo
na medida garantida pelo instrumento de cessão, poderá o cessionário optar entre
a rescisão do contrato, com indenização, ou o abatimento proporcional do preço.
Não se responsabiliza, contudo, o cedente pelos resultados unilateralmente
esperados pelo cessionário e não obtidos com a exploração do direito industrial
cedido.
A licença de direito industrial
está para a cessão, como a
locação está para a venda.
Na hipótese de o cedente aperfeiçoar a sua invenção, poderá obter a
patente do aperfeiçoamento, não estando obrigado a transferi-lo ao cessionário.
Contudo, em se tratando de cessão total, ele não poderá explorar o
aperfeiçoamento junto com a invenção, sem a licença do cessionário, ou do atual
titular da patente, salvo se o instrumento de cessão dispõe em contrário. De
qualquer modo, o cedente tem o direito moral à revelação de seu nome, quando
veiculada pelo cessionário qualquer notícia sobre o inventor, mesmo após
sucessivas cessões.
7.3. “Secondary Meaning” e Degeneração de Marca Notória
Duas são as espécies de marca notória no direito brasileiro: as de alto
renome e as notoriamente conhecidas. Como visto, elas são protegidas de modo
especial porque nenhum outro empresário, concorrente ou não, pode adotá-las,
mesmo que esteja completamente afastada a possibilidade de confusão entre os
consumidores.
Dois fenômenos mercadológicos são típicos da marca notória. De um
lado, o amplo conhecimento que os consumidores têm dela acaba dando
distintividade a expressões meramente descritivas — que, não fosse a
notoriedade da marca, seriam inaptas a cumprir a função de identificar
determinado produto ou serviço. Trata-se de fenômeno designado pela locação
inglesa secondary meaning. A expressão descritiva do produto ou serviço passa a
ter um segundo significado, que é o de identificar um deles em especial. A
notoriedade gera, então, a distintividade. Por exemplo, ninguém pode registrar
com exclusividade a expressão Fruta para identificar as frutas que comercializa,
em razão de seu caráter meramente descritivo. Mas se essa marca acabar se
tornando notória na identificação, pelos consumidores, de um determinado
fornecedor desse produto, o amplo conhecimento justificará a proteção liberada
pela lei para as marcas notórias.
Interessa-nos aqui, também, um outro fenômeno mercadológico típico das
marcas notórias, que é exatamente o inverso do secondary meaning. O fenômeno
da degeneração, em que a notoriedade elimina a distintividade.
A degeneração de marca notória é um interessante fenômeno
mercadológico, que se verifica quando os consumidores passam a identificar o
gênero do produto pela marca de um de seus fabricantes (cf. Sampaio, 1995).
Marcas como aspirina, gilete e fórmica encontram-se degeneradas, na medida
em que deixaram de identificar certo produto, fornecido por determinado
empresário, e passaram a se referir ao gênero, incluindo produtos concorrentes.
A degeneração é altamente prejudicial ao empresário, porque a marca deixa de
cumprir com a sua função essencial. Todos os investimentos em publicidade para
tornar notória a marca podem se perder, pelo exagero da notoriedade. Os
investimentos para reverter processo de degeneração em curso, por sua vez,
devem ser tão ou mais elevados, e sua eficácia não é garantida, podendo até
mesmo contribuir para degenerar mais ainda a marca.
Há quem considere conceitos sinônimos os de degeneração e
diluição (Moro, 2003:131). Também há doutrinadores que tomam a diluição
como gênero, do qual a degeneração seria espécie (Barbosa, 2003:816). Bem
examinados os institutos, porém, constata-se tratarem de temas diversos. Em
comum se percebe o elevado risco de desvalorização da marca em razão da
erosão da distintividade, mas cessa nesse ponto a convergência. Na verdade,
diluição não é, como a degeneração, um fenômeno mercadológico, algo que se
espraia entre os consumidores usuários de uma mesma língua. A diluição é, na
verdade, resultante de práticas adotadas por outros empresários (concorrentes ou
não) que podem levar à perda de valor de uma marca notória.
Não se consegue com facilidade identificar quem provoca a degeneração
da marca, no sentido de ter sido o primeiro a se apropriar da expressão como
indicativa do gênero e não da espécie. Mesmo que o empresário titular da marca
tenha motivado ou dado causa à degeneração, a pessoa ou pessoas que passaram
a tomá-la como repertório de sua língua não são identificáveis. Já na diluição, é
sempre prontamente identificável o responsável pela prática empresarial apta a
impor desvalor à marca diluída. No direito norte-americano, em que a noção de
diluição se construiu, costumam-se diferenciar duas hipóteses: de um lado, a
diluição-turvação (dilution by blurring) e, de outro, a diluição--mácula (dilution
by tarnishment) (Weston-Maggs-Schechter, 1950:215/224). Na diluição-turvação,
a marca famosa é diluída em razão de seu uso por outros empresários, na
identificação de negócio, produto ou serviço não concorrente (SchechterThomas, 2003:710/711). Aquela associação imediata entre o signo empregado na
marca e o produto, que os investidores em publicidade procuram despertar nos
consumidores, é prejudicada pela existência de outros produtos (não
concorrentes) que ostentam a mesma marca ou parecida. Já a diluição-mácula
compromete a reputação da marca, em razão da qualidade inferior dos negócios,
produtos ou serviços não concorrentes operantes ou oferecidos no mercado por
outros empresários (Schechter-Thomas, 2003:715/716).
Ao instituto da diluição (turvação ou mácula) do direito norte-americano
corresponde o da repressão às condutas parasitárias, construído no direito
europeu. A coibição da diluição atende, na common law, ao mesmo objetivo que,
nos direitos de tradição românica, busca a responsabilização por condutas
parasitárias. Quando as marcas deixaram de indicar, primordialmente, a origem
do produto e passaram a servir de referência à sua qualidade e reputação,
empresários não concorrentes procuraram se beneficiar, indevidamente, do
prestígio associado a marcas conhecidas, e o direito marcário precisou
desenvolver novos padrões para proteger os titulares destas, já que o princípio da
especificidade não se mostrara suficiente ao novo cenário. No direito norte-americano, também por vezes é invocada a doutrina da expansão para assegurar
este círculo de proteção aos titulares de marcas afamadas (Miler-Davis,
1980:180/181). Não há, portanto, equivalência entre os institutos da diluição e da
degeneração. E se ao titular de marca diluída é reconhecido o direito de sempre
buscar a reparação de seus danos contra o empresário não concorrente
responsável pela prática que desencadeou o processo de desvalorização, ao titular
da marca degenerada nem sempre se atribui este direito.
Em outros países, a degeneração de marcas pode ser causa de extinção do
direito industrial (na Itália, por exemplo; cf. Galgano, 1992:98), ou fundamento
para impedir o uso de marca semelhante por outro empresário. Embora não se
afastem tais consequências, a degeneração de marca notória tem relevância
jurídica, no direito brasileiro, especificamente na hipótese de responsabilização
civil de um empresário, por ato prejudicial ao titular do registro. Se, por exemplo,
na publicidade de um televisor, associa-se o produto a uma cerveja bastante
conhecida, isto pode — de acordo com as características da mensagem
publicitária — contribuir para o processo de degeneração da marca da bebida.
Este tipo de publicidade, ressalte-se, não é necessariamente lesivo ao direito
industrial titularizado pelo fabricante da cerveja (ver posição contrária de
Gusmão, 1989); ela somente importa responsabilidade do anunciante do televisor,
se resta caracterizado o efeito degenerativo do anúncio. A lei, de fato, ampara o
interesse do titular da marca em impedir que a sua citação em publicidade,
comparativa ou não, possa ter efeito degenerativo. De acordo com os arts. 130,
III, e 131 da LPI, zelar pela integridade material e reputação da marca é direito
decorrente do depósito ou do registro, inclusive em relação ao seu uso em
propaganda alheia.
8. EXTINÇÃO DO DIREITO INDUSTRIAL
Extingue-se o direito industrial pelas seguintes razões: a) decurso do prazo
de duração; b) caducidade; c) falta de pagamento da retribuição devida ao INPI;
d) renúncia do titular; e) inexistência de representante legal no Brasil, se o titular
é domiciliado ou sediado no exterior.
O primeiro fator extintivo está ligado à limitação no tempo do direito de
propriedade intelectual. Ao contrário de outras propriedades, a relacionada a
bens industriais, mesmo se usufruída ininterruptamente pelo seu titular, encontra
na fluência de um termo legal o seu fim. Varia para cada bem imaterial o prazo
de duração. A patente de invenção dura 20 anos, contados da data do depósito, ou
10 da concessão, o que ocorrer por último. Para as patentes de modelo de
utilidade, o prazo é de 15 anos, a partir do depósito, ou 7, após a concessão,
também o que ocorrer por último. Observe-se que, tanto para a invenção como
para o modelo, na hipótese de retardamento do processo no âmbito do INPI, em
razão de pendência judicial ou por força maior, o prazo não poderá ser contado
da concessão (LPI, art. 40).
No caso da patente, os prazos de duração são improrrogáveis.
O registro de desenho industrial, por sua vez, dura 10 anos, a contar do
depósito, admitidas até 3 prorrogações sucessivas, por período de 5 anos cada
(LPI, art. 108). Em outros termos, o designer poderá titularizar a exclusividade
sobre a sua criação industrial pelo prazo máximo de 25 anos, a partir do depósito.
Por fim o registro de marca vigora por 10 anos, contados da concessão, sendo
cabíveis sucessivas prorrogações, por igual período. Deste modo, o empresário
pode, a rigor, preservar o seu registro de marca, enquanto considerar interessante
(LPI, art. 133). Tanto no caso do desenho industrial, como no da marca, o pedido
de prorrogação deve ser apresentado durante o último ano de vigência do
registro. Perdido o prazo, a lei ainda dá ao titular do direito industrial mais uma
derradeira chance (180 dias para os desenhos, 6 meses para as marcas), desde
que pague retribuição adicional.
Em termos gerais, a patente
de invenção dura vinte anos, e
a de modelo de utilidade
quinze, enquanto o registro de
desenho industrial dura dez
anos.
Estes
prazos
são
contados do depósito; os dois
primeiros
não
admitem
prorrogação, mas o último
comporta até três prorrogações
sucessivas, de cinco anos cada.
O registro de marca dura dez
anos, contados da concessão, e
é sempre prorrogável.
A caducidade é fator extintivo decorrente do abuso ou desuso no exercício
do direito industrial. Em relação à patente, se o titular não explorar (diretamente
ou por licença voluntária) a invenção ou o modelo, de modo a atender às
demandas do mercado, mesmo tendo decorridos 3 anos da concessão, qualquer
interessado poderá pleitear a licença compulsória. Decorridos 2 anos do
licenciamento compulsório, a caducidade poderá ser declarada pelo INPI, de
ofício ou a requerimento de interessado no caimento da patente em domínio
público, se ainda persistir o abuso ou o desuso. A declaração de caducidade
pressupõe processo administrativo, em que o interessado tem a oportunidade de
se defender (LPI, arts. 80 a 83).
Em relação ao registro de marca, a caducidade se caracteriza pela
fluência do prazo de 5 anos sem exploração econômica no Brasil. O empresário
titular do registro deve, no quinquênio subsequente à concessão, iniciar o uso da
marca, imprimindo-a nas embalagens, notas fiscais, uniformes, veículos e
anúncios publicitários. Por outro lado, se ocorrer interrupção de uso, ele deverá
ser retomado antes do transcurso daquele prazo. Cabe anotar que a utilização da
marca, feita com significativas diferenças em relação ao sinal constante do
certificado de registro, equivale, para fins de caducidade, ao desuso. Não existe
caducidade do registro de desenho industrial.
A renúncia aos direitos da patente ou do registro, por sua vez, é fator
extintivo decorrente de ato unilateral do seu titular. A lei põe a salvo os direitos de
terceiros, como licenciados ou franqueados, ao condicionar a sua aceitação, pelo
INPI, à inexistência de prejuízos para eles. Existindo, portanto, averbação de
licença de uso em vigor, o INPI não poderá aceitar a renúncia desacompanhada
de instrumento de anuência dos contratantes interessados. Finalmente, a
derradeira hipótese de extinção do direito industrial é a falta de representante
legal no Brasil, inclusive com poderes para receber citação judicial, quando
domiciliado ou sediado no exterior o titular da patente ou do registro (LPI, art.
217).
Extinto, por qualquer motivo, o direito industrial, o respectivo objeto cai
em domínio público. Isto significa que qualquer pessoa poderá utilizá-lo e dar-lhe
exploração econômica livremente, sem que o criador possa reclamar, ou exigir
remuneração. Além da extinção, outros fatores também importam o domínio
público de bens industriais. Se o processo administrativo de patente, após a
publicação, é arquivado por inércia do requerente em atender às exigências do
INPI, a invenção ou o modelo de utilidade não poderão mais ser patenteados, já
que está insuperavelmente comprometida a sua novidade. Outro exemplo: se o
depositante de patente ou registro no exterior não pedir a extensão ao Brasil de
seu direito, no prazo assinalado pela União de Paris, o bem industrial cai em
domínio público, no território brasileiro (salvo se estiver em tramitação processo
iniciado antes do término do prazo de prioridade).
9. NOME EMPRESARIAL
Nome empresarial é aquele utilizado pelo empresário para se identificar,
enquanto sujeito exercente de uma atividade econômica. Se a marca identifica,
direta ou indiretamente, os produtos e serviços, o nome empresarial irá
identificar o sujeito de direito que os fornece ao mercado (normalmente, uma
pessoa jurídica revestida da forma de uma sociedade limitada ou anônima). No
passado, quando as atividades comerciais eram, em regra, exploradas
individualmente — isto é, predominavam comerciantes pessoas físicas, e não
jurídicas —, era comum a adoção de um nome específico, um tanto diferente do
nome civil, para a identificação do sujeito, enquanto comerciante. Essa prática,
na verdade, correspondia a uma estratégia negocial. Ao adotar a abreviatura,
acompanhada geralmente de referência ao ramo de comércio a que se
dedicava, o comerciante se distinguia — e, indiretamente, aos seus produtos —
da concorrência. Era mais fácil ao consumidor reportar-se ao comerciante pelo
nome comercial, do que pelo civil. Em outros termos, com base em seu nome de
batismo, o comerciante costumava criar outro nome, de mais fácil assimilação
pelos consumidores e demais agentes econômicos, passando a usá-lo nos atos de
comércio.
Vai longe o tempo em que o empresário se valia deste expediente para se
distinguir da concorrência. Hoje em dia, o nome empresarial não cumpre mais a
função mercadológica do passado. Foi substituído, na função, pela marca. Se
antes, os consumidores formulavam o conceito acerca da qualidade dos produtos,
pelo prestígio do nome do comerciante que os vendia, na economia de massa
opera-se uma inversão: conhece-se a marca, e é por meio dela que,
indiretamente, se identifica o empresário. Ou seja, antigamente, a seda era boa
porque havia sido adquirida na Casa de um certo comerciante. Hoje em dia, a
empresa é conceituada porque vende a seda identificada por uma conhecida
marca.
Embora o nome de identificação do sujeito que explora a atividade
econômica não tenha mais a mesma importância mercadológica que possuía no
passado, ele ainda goza de proteção jurídica em razão de outro aspecto relevante:
a reputação do empresário entre fornecedores e financiadores. De fato, o nome
é, atualmente, uma referência muito mais importante no meio empresarial, do
que no mercado de consumo. E é exatamente em razão do papel que tem,
enquanto instrumento de reputação (boa ou má) do empresário, que o direito não
o pode ignorar. Por outro lado, essa função do nome empresarial (ligada mais às
relações do seu titular com outros empresários, e menos às voltadas aos
consumidores) justifica a diferença do tratamento jurídico que lhe é dispensado,
frente ao das marcas.
O nome que identifica o empresário é considerado, em alguns direitos
estrangeiros, elemento integrante do estabelecimento empresarial; constitui,
nesses países, bem de propriedade do titular da empresa, como, aliás, define
expressamente a ley de marcas y designaciones argentina, de 1981. A doutrina
brasileira debateu à exaustão a “natureza jurídica” do nome comercial, propondo
alguns a tese do direito pessoal, pela qual o nome é tido como a expressão da
personalidade, agregado à pessoa do comerciante e, consequentemente,
inalienável e impenhorável. Corresponde à visão de Pontes de Miranda (1956,
16:222/231). Contraposta à tese do nome como direito da personalidade, há a do
direito patrimonial, defendida, entre outros, por Clóvis Beviláqua (1908). A
distinção entre nome comercial subjetivo e objetivo é, por outro lado, uma
tentativa de conciliar as duas concepções, ao reconhecer que, além de atributo da
personalidade do comerciante (feição subjetiva), o nome é, ao mesmo tempo,
elemento de identificação da própria atividade (feição objetiva). Para Gama
Cerqueira, esta distinção é suficiente para desembaraçar a matéria doutrinária,
na medida em que o sentido objetivo de nome comercial o torna uma
propriedade incorpórea, suscetível de proteção pelo direito industrial (1946:1.174;
também Martins, 1957:490).
O Código Civil parece ter optado pela tese do direito pessoal. O art. 1.164
do Código Civil, que proíbe a alienação do nome empresarial, deve, segundo
alguns autores, ser interpretado em consonância com o art. 16, que inclui o direito
ao nome entre os “da personalidade”, que são, por definição, intransmissíveis
(Carvalhosa, 2003: 730/732). Deve-se, no entanto, levar em conta que o mercado de fato atribui ao nome
empresarial um valor, como intangível da empresa. Ora, se há quem, em
determinadas circunstâncias, paga pela utilização do nome empresarial criado
pelo exercente de atividade econômica, então negar-lhe a condição de bem do
patrimônio desse último pode ser uma solução legal dissociada da realidade. Se o
direito não reconhecer a natureza patrimonial do nome adotado pelo empresário,
os conflitos eventualmente ligados à sua negociação não poderão ser
convenientemente equacionados, na medida em que a própria juridicidade do
negócio é questionável.
9.1. Espécies de Nome Empresarial
Duas são as espécies de nome empresarial: a firma e a denominação.
Alguns empresários somente podem adotar firma, outros apenas denominação, e
há, ainda, os que podem optar por uma ou outra espécie. O empresário
individual, por exemplo, só pode adotar nome empresarial da modalidade firma;
a sociedade anônima só denominação; a sociedade limitada pode optar por
qualquer uma delas. As diferenças entre firma e denominação são duas: a
primeira diz respeito à estrutura do nome empresarial; a segunda, à função.
As
espécies
de
nome
empresarial são a firma e a
denominação. Diferenciam-se
quanto à estrutura e a função.
Em termos de estrutura, a firma tem por base necessariamente um nome
civil, seja do próprio empresário individual, seja de sócio da sociedade
empresária. Se Antonio da Silva se dedica ao comércio de antiguidades, ele
deverá inscrever como firma o seu nome civil, por extenso (Antonio da Silva) ou
abreviado (A. Silva, Silva), acompanhado ou não de menção ao ramo de
atividade (A. Silva — Antiguidades, Silva — Antiquário). Se ele contrata uma
sociedade limitada com Benedito Costa, a firma social será formada pelo nome
deles, por extenso ou abreviado (Silva & Costa Ltda., A. Silva & B. Costa Ltda.),
admitindo-se a substituição do nome de sócio (ou sócios, se três ou mais) pela
partícula “& Cia.”, bem como a referência ao ramo de atividade explorado
(Silva & Cia. Ltda. — Antiquário, Benedito Costa & Cia. — Comércio de
Antiguidades Ltda.). A expressão “razão social” designa o mesmo que firma,
quando titularizada por pessoa jurídica.
A denominação, por sua vez, pode tomar por base qualquer expressão
linguística, seja ou não o nome civil de sócio da sociedade empresária. A
sociedade limitada entre Antonio da Silva, Benedito Costa e Carlos de Souza pode
adotar como denominação Silva, Costa & Souza Ltda. ou Antiquário Bandeirante
Ltda.; se constituem uma sociedade anônima, a denominação poderá ser
Companhia Bandeirante de Antiguidades, Antiquário Carlos de Souza Sociedade
Anônima ou ABC — Comércio de Antiguidades S/A. Quando a expressão
linguística escolhida pelos sócios para a estrutura da denominação não é nome
civil, chama-se “elemento fantasia”.
Nota-se que a estrutura do nome empresarial nem sempre é suficiente
para distinguir a correspondente espécie, já que tanto a firma como a
denominação podem se basear em nomes civis. Claro, se o nome identifica
sociedade anônima, sabe-se que se trata de denominação, porque este tipo
societário não pode adotar firma; por outro lado, como o empresário individual
não pode se identificar por meio de denominação, seu nome empresarial será
necessariamente firma. O problema se coloca, por exemplo, em relação à
sociedade limitada, que pode optar entre as duas modalidades de nome
empresarial. Quando uma sociedade deste tipo se identifica a partir do nome civil
de seus sócios (Silva & Cia. Ltda. — Comércio e Indústria ou Benedito Costa
Turismo Ltda.), a espécie de nome empresarial adotada será definida por sua
função. Quer dizer, a firma possui uma função que a denominação não tem: ela
serve também de assinatura do empresário. No passado, o representante legal da
sociedade limitada, ao representá-la, não devia se utilizar de sua própria
assinatura; a boa técnica recomendava que ele fizesse uso, nesses casos, de outra
assinatura, correspondente à razão social. Se José Penteado era gerente de Silva
& Cia. Ltda., ele devia possuir duas assinaturas: uma, correspondente ao seu
nome civil, para os atos de seu interesse e outra, representativa da firma da
sociedade, para os de interesse desta.
Está em absoluto desuso a prática de dupla assinatura. Há muito tempo, os
gerentes de sociedade adotam o mesmo e único sinal, como assinatura, tanto nos
atos de interesse pessoal, como na qualidade de representante da pessoa jurídica.
Assim, a distinção entre firma e denominação, para a sociedade limitada, acaba
se reduzindo a uma questão formal, de importância nenhuma: se na última
página do contrato social, encontra-se o campo “firmas por quem de direito”,
com as assinaturas dos gerentes, então o nome empresarial é do tipo firma; caso
não se encontre esse campo, será do tipo denominação.
9.2. Formação e Proteção do Nome Empresarial
A formação do nome empresarial deve atender a dois princípios: a
veracidade e a novidade (Lei n. 8.934/94, art. 34). O princípio da veracidade
proíbe a adoção de nome que veicule informação falsa sobre o empresário a que
se refere. O da novidade impede a adoção de nome igual ou semelhante ao de
outro empresário. Os dois parâmetros se justificam, em última análise, na
coibição da concorrência desleal e na preservação da reputação dos
empresários, junto aos seus fornecedores e financiadores. Para cumprir
satisfatoriamente a função de identificar o sujeito de direito exercente de
atividade econômica, o nome empresarial não pode dar ensejo a confusões, e
deve ser suficientemente distinto.
Lei n. 8.934/94
Art. 33. A proteção ao nome
empresarial
decorre
automaticamente
do
arquivamento
dos
atos
constitutivos
de
firma
individual e de sociedades, ou
de suas alterações.
Art. 34. O nome empresarial
obedecerá aos princípios da
veracidade e da novidade.
Em razão do princípio da veracidade, a retirada, expulsão ou morte de
sócio de sociedade limitada impõe a alteração da firma, quando o dissidente,
expulso ou falecido havia emprestado o seu nome civil à composição do nome
empresarial. Assim, saindo, sendo expulso ou falecendo o sócio de sociedade
limitada, cujo nome empresarial aproveitava o seu nome civil, impõe-se a
mudança para excluir a referência ao dissidente, expulso ou falecido, seja o
nome empresarial firma (CC, art. 1.165) ou denominação (CC, art. 1.158, § 2º, in
fine). Quando se trata de sociedade anônima, o princípio da veracidade é menos
restritivo, já que impede apenas a adoção de nome civil de quem não é
“fundador, acionista, ou pessoa que, por qualquer outro modo, tenha concorrido
para o êxito da empresa” (CC, art. 1.160, parágrafo único; Lei n. 6.404/76, art. 3º,
§ 1º). Deste modo, da denominação da sociedade anônima pode constar nome
civil de quem não é, nunca foi ou deixou de ser sócio, desde que ele a tenha
fundado ou contribuído para o seu êxito.
O princípio da novidade, ao seu turno, representa a garantia de
exclusividade do uso do nome empresarial (CC, art. 1.166). O primeiro
empresário que arquivar firma ou denominação, na Junta Comercial, tem o
direito de impedir que outro adote nome igual ou semelhante, já que isso
importaria desrespeito à novidade. O primeiro empresário pode exercer a
prerrogativa na esfera administrativa, opondo-se ao arquivamento do ato
constitutivo do concorrente, ou na judicial. A última via é mais comum, em vista
da brevíssima duração dos prazos fixados na Lei n. 8.934/94, para o
arquivamento de ato constitutivo de sociedade empresária.
O DNRC recomenda às Juntas o seguinte critério, na observância do
princípio da novidade: a) devem ser comparados os nomes por inteiro, quando
colidem duas firmas individuais ou razões sociais; b) devem ser comparadas por
inteiro, também, as denominações compostas por expressões comuns, de
fantasia, de uso generalizado ou vulgar; c) devem ser, por fim, comparados os
núcleos das denominações compostas por expressões de fantasia incomum.
Nessas comparações, consideram-se iguais as expressões homógrafas e
semelhantes as homófonas (IN-DNRC n. 104, art. 8º). São criticáveis tais
critérios, tendo em vista a sua generalidade e abstração, frente à multiplicidade
de hipóteses que se podem verificar. Na verdade, os parâmetros fixados pelo
DNRC, para a avaliação da novidade do nome empresarial, se destinam a
orientar e uniformizar a atuação dos órgãos do registro de empresa, mas, por
evidente, não estão isentos de questionamento junto ao Poder Judiciário, caso se
revelem inapropriados em algum caso concreto. Até mesmo porque não
possuem alicerce legal, mas regulamentar.
O uso indevido de nome empresarial caracteriza crime de concorrência
desleal (LPI, art. 195, V), cabendo a responsabilização civil do usurpador, pelos
danos derivados do desvio de clientela (LPI, art. 209).
9.3. Diferenças entre Nome Empresarial e Marca
O nome empresarial e a marca se reportam a diferentes “objetos
semânticos”. O primeiro identifica o sujeito de direito (o empresário, pessoa
física ou jurídica), enquanto a marca identifica, direta ou indiretamente, produtos
ou serviços. Sob o ponto de vista econômico e mercadológico, é oportuno e
vantajoso adotar-se, nos dois designativos, o mesmo núcleo linguístico. Assim, o
Banco Itaú S/A é o nome empresarial que identifica o sujeito de direito titular da
marca de serviços bancários Itaú. Para o direito, no entanto, é irrelevante se há
ou não identidade linguística. A proteção dispensada a cada designativo será a
prevista no correspondente regime jurídico. São quatro as diferenças entre esses
regimes: a) órgão registrário; b) âmbito territorial da tutela; c) âmbito material;
d) âmbito temporal.
O primeiro elemento distintivo entre a proteção do nome e da marca diz
respeito ao órgão em que são registrados. A proteção ao nome empresarial
deriva da inscrição da firma individual, ou do arquivamento do ato constitutivo da
sociedade, na Junta Comercial, ao passo que a da marca decorre do registro no
Instituto Nacional da Propriedade Industrial. Um não substitui o outro, em
nenhuma hipótese. Só têm proteção o nome empresarial arquivado ou registrado
na Junta e a marca registrada no INPI.
A segunda diferença é uma consequência da primeira: a proteção
conferida pela Junta Comercial ao nome se exaure nos limites do Estado a que
ela pertence, enquanto que os efeitos do registro de marca são nacionais (CC, art.
1.166). Ou seja, o empresário sediado em Santa Catarina tem, a partir do
arquivamento de seu ato constitutivo no registro de empresas, protegido o seu
nome empresarial em todo o Estado catarinense. Se abrir filiais no Paraná e no
Rio Grande do Sul, terá neles a mesma proteção. Nenhum outro empresário
poderá se estabelecer, ou abrir filial, com nome idêntico ou semelhante, nestes
três Estados. Tais arquivamentos, contudo, não impedem que, em outro Estado da
Federação (Rio de Janeiro, suponha-se), seja arquivado ato constitutivo com
nome empresarial colidente. Ressalte-se, para precisar, que tanto o empresário
catarinense pode vender seus produtos ou serviços no Rio de Janeiro, como o
carioca pode fazê-lo em Santa Catarina, Paraná ou Rio Grande do Sul (desde que
não abram filiais). Um, contudo, não poderá impedir que o outro se utilize do
nome registrado na respectiva Junta.
Como o registro do nome empresarial tem abrangência estadual, e não
nacional, os seus efeitos estão restritos aos Estados em que o empresário tem
sede ou filial. Para estender a tutela ao país todo, ele deve providenciar o
arquivamento de pedido de proteção ao nome empresarial, nas Juntas dos demais
Estados (CC, art. 1.166, parágrafo único; IN-DNRC n. 104, art. 11, §§ 1º e 2º). O
mesmo não ocorre com a marca, que, registrada no INPI, estará protegida em
todo o território brasileiro (e, até mesmo, nos demais países unionistas, se
presentes as condições da Convenção de Paris).
A terceira diferença está relacionada ao âmbito material da tutela. A
marca tem a sua proteção restrita, em razão do princípio da especificidade, ao
segmento dos produtos ou serviços passíveis de confusão pelo consumidor (salvo
no caso excepcional da marca de alto renome, cuja proteção é especial e
abrange todas as classes), enquanto o nome empresarial é protegido
independentemente do ramo de atividade econômica a que se dedica o
empresário. Como visto acima, a proteção liberada ao nome empresarial não
visa apenas impedir confusão entre os consumidores, mas principalmente
preservar a reputação do titular da empresa, junto aos fornecedores e
financiadores. O protesto de títulos em nome de um pode prejudicar o crédito de
outro empresário, com nome igual ou semelhante. E este prejuízo independe do
específico ramo de negócio explorado por eles. Por tal razão, aquele que
primeiro registrar o nome na Junta Comercial pode impedir que outro adote, no
Estado correspondente, nome igual ou semelhante, ainda que as atividades não
sejam concorrentes.
Finalmente, a quarta diferença é ligada ao prazo de duração da proteção.
Enquanto o direito de utilização exclusiva da marca extingue--se em dez anos, se
não for solicitada pelo interessado a prorrogação, o do nome empresarial vigora
por prazo indeterminado. Enquanto a sociedade estiver em funcionamento
regular, ela terá tutelado o interesse em relação ao nome empresarial. Apenas a
declaração de inatividade da empresa pode importar a extinção do direito ao
nome empresarial contra a vontade de seu titular (Lei n. 8.934/94, art. 60, § 1º, in
fine).
O regime protetivo do nome empresarial, assim, difere-se do da marca,
nos aspectos assinalados. Quando colidem nomes, portanto, o critério da
anterioridade no Estado ampara o empresário, em relação a todos os ramos de
atividade econômica. Mas, cabe a indagação: e se o conflito for entre nome
empresarial e marca? Imagine-se, com efeito, que o fabricante de produtos de
higiene, chamado Souza & Irmãos Ltda., titular da marca registrada Sol, resolva
impedir que o comerciante de utensílios de banheiro, denominado Comércio e
Representação Sol Ltda., seja proibido de utilizar o seu nome empresarial, em
vista da possibilidade de confusão entre os consumidores. Complemente-se a
hipótese, cogitando que o registro do nome na Junta Comercial é anterior ao da
marca no INPI. Como solucionar este conflito? Na lei, não se encontra dispositivo
regulando a matéria, mas a jurisprudência tem normalmente prestigiado a tutela
da marca, em detrimento da do nome empresarial, mesmo quando o registro
deste é anterior. Exige-se, contudo, em função do princípio da especialidade, que
o titular da marca e o do nome colidentes operem no mesmo segmento de
mercado (salvo se a marca for de alto renome, quando o empresário goza de
proteção em todos os segmentos).
10. TÍTULO DE ESTABELECIMENTO
Além da marca e do nome empresarial, o direito industrial cuida de uma
terceira categoria de sinal distintivo: o título de estabelecimento. Trata-se da
designação que o empresário empresta ao local em que desenvolve sua
atividade. Por exemplo: quando o consumidor se dirige à agência do Banco Itaú
S/A, encontra-a identificada pela expressão Itaú. É este o título do
estabelecimento, o designativo referente ao lugar do exercício da atividade. A
expressão linguística do título não precisa coincidir com o núcleo do nome
empresarial, nem com a marca. Por razões econômicas e mercadológicas,
entretanto, é comum a adoção, como título de estabelecimento, da própria marca
registrada. Tal alternativa, inclusive, além de ajudar na fixação da marca,
possibilita ao empresário a proteção do sinal identificador do local do exercício
do seu negócio, por meio do registro industrial. Ele pode impedir que
concorrentes se utilizem de sinal idêntico ou semelhante, com base no seu direito
marcário.
Quando o título de estabelecimento, contudo, apresenta expressão
linguística diversa da da marca — e não se encontra registrado também como
marca no INPI —, o empresário somente poderá impedir que alguém o imite ou
reproduza, com base na repressão à concorrência desleal. A lei tipifica como
crime desta natureza o uso indevido de título de estabelecimento (LPI, art. 195,
V), do que decorre também a responsabilidade civil do infrator, pelos danos
decorrentes do desvio de clientela (LPI, art. 209). Como, por outro lado, não
existe atualmente registro do título de estabelecimento — ele existiu, no Brasil,
entre 1934 e 1967, e produzia efeitos restritos ao âmbito do município —, a prova
da anterioridade, no uso do sinal distintivo, pode ser feita por testemunhas ou
documentos de qualquer gênero.
Capítulo 7
DISCIPLINA JURÍDICA DA CONCORRÊNCIA
1. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA LIVRE-INICIATIVA
O perfil que a Constituição desenhou para a ordem econômica tem
natureza neoliberal. Essa última é uma expressão cujo sentido deve ser
precisado. O conceito de liberalismo já é, por si, plurívoco. Nicola Matteucci, por
exemplo, discutindo-o no campo da política, após identificar quatro diferentes
níveis em que se poderia enfocar o conceito (histórico, filosófico, temporal e
estrutural), conclui pela impossibilidade de uma definição satisfatória (BobbioMatteucci-Pasquino, 1983:686/705). Se assim é com o conceito de liberalismo, o
de neoliberalismo não poderia deixar de introduzir novas dificuldades na
discussão semântica.
Historicamente, a expressão teria sido utilizada pela primeira vez em
discursos governamentais justificadores das medidas de reconstrução das
estruturas da economia capitalista, abaladas pela crise de 1929. Em tal contexto,
o neoliberalismo é a forma de se acentuar que o dirigismo estatal, então
implementado, não poderia ser confundido com a planificação econômica
centralizada e o socialismo, experimentados na União Soviética. Embora não
fossem tempos de guerra fria, a Revolução Russa, ainda jovem, inspirava os
movimentos operários de todo o mundo ocidental. As medidas de ingerência do
estado, em searas que a ideologia capitalista procurava reservar ardorosamente
aos particulares, não poderiam vir desacompanhadas de uma reafirmação de
alguns princípios liberais. A ideia de um liberalismo renovado — veiculada pela
expressão “neoliberal” — atendia essa necessidade. No final dos anos 1930,
desenvolveram-se estudos acadêmicos que visavam estruturar a doutrina
econômica neoliberal, a partir desse contexto político (cf. Sandroni, 1985:214).
Terminada a guerra fria, a mesma expressão se vê utilizada com o
significado exatamente oposto, nos discursos críticos à desarticulação do estado
do bem-estar social ou da paralisação do processo de sua construção. Neoliberal,
agora, é o defensor da retração do estado, do fim das políticas sociais. Não é
mais a referência ao liberalismo renovado, mas sim ao liberalismo ressurgente.
Se antes da guerra fria, o neoliberalismo era a defesa do aumento da intromissão
do aparato estatal na economia, depois dela, torna-se o inverso, a defesa da
redução da intromissão.
Abstraindo os discursos dos políticos e suas rotulações simplificadoras —
que, na verdade, no contexto de um trabalho tecnológico, não passam de
curiosidades —, conceituo neoliberal como o modelo econômico definido na
Constituição que se funda na livre-iniciativa, mas consagra também outros valores
com os quais aquela deve se compatibilizar. A defesa do consumidor, a proteção
ao meio ambiente, a função social da propriedade e os demais princípios
elencados pelo art. 170 da CF como informadores da ordem econômica, bem
como a lembrança da valorização do trabalho como um dos fundamentos dessa
ordem, tentam refletir o conceito de que a livre-iniciativa não é mais que um dos
elementos estruturais da economia. Ao delinear o perfil da ordem econômica
com o traço neoliberal, a Constituição, enquanto assegura aos particulares a
primazia da produção e circulação dos bens e serviços, baliza a exploração dessa
atividade com a afirmação de valores que o interesse egoístico do empresariado
comumente desrespeita.
Constituição Federal
Art. 170. A ordem econômica,
fundada na valorização do
trabalho humano e na livreiniciativa,
tem
por
fim
assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da
justiça social, observados os
seguintes princípios:
I — soberania nacional;
II — propriedade privada;
III — função social da
propriedade;
IV — livre concorrência;
V — defesa do consumidor;
VI — defesa do meio
ambiente;
VII
—
redução
das
desigualdades regionais e
sociais;
VIII — busca do pleno
emprego;
IX — tratamento favorecido
para as empresas de pequeno
porte constituídas sob as leis
brasileiras e que tenham sua
sede e administração no País.
Parágrafo
único.
É
assegurado a todos o livre
exercício de qualquer atividade
econômica, independentemente
de autorização de órgãos
públicos, salvo nos casos
previstos em lei.
Considera alguma doutrina, a partir do balizamento constitucional da livre
iniciativa por valores de “justiça social e bem-estar coletivo”, que a exploração
de atividade econômica com puro objetivo de lucro e de satisfação pessoal do
empresário seria, sob o ponto de vista jurídico, ilegítima. É, por exemplo, o
entendimento de José Afonso da Silva (1976:673). A natureza neoliberal da
ordem econômica prevista pela Constituição não tem, entretanto, tal extensão. A
equiparação, em importância, da livre-iniciativa e dos valores normalmente
desconsiderados pelo empresário egoísta (a defesa do consumidor, a proteção do
meio ambiente, a função social da propriedade etc.) apenas afasta a possibilidade
de edição de leis, complementares ou ordinárias, disciplinadoras da atividade
econômica, desatentas a esses valores. O empresário visa, com os lucros gerados
pela empresa, ter meios para atender às necessidades suas e de sua família, em
padrão de vida normalmente bem acima da generalidade das pessoas. Além
dessa motivação básica, ele também tem a da busca da satisfação pessoal:
costuma ser extremamente gratificante ao empresário admirar a evolução do
empreendimento que esboçou, organizou e dirigiu, bem como ver nos resultados
a realização do seu projeto. E nada há de ilegítimo nisso. Da norma constitucional
ordenadora da economia (o art. 170 da CF) apenas se pode concluir a
inconstitucionalidade de regras jurídicas que eventualmente não reflitam a
mesma igualação valorativa, estabelecida no texto fundamental, entre a livreiniciativa, a defesa do consumidor, a proteção ao meio ambiente etc.
Para o direito comercial, dois aspectos relevantes se concluem da
inserção da livre-iniciativa entre os fundamentos da ordem econômica. Em
primeiro lugar, a constitucionalidade de preceitos de lei que visam a motivar os
particulares à exploração de atividades empresariais. O primado da autonomia
patrimonial das pessoas jurídicas, por exemplo, quando aplicado ao direito
societário, tem o sentido de limitar o risco, de forma a que as pessoas não
receiem investir em atividades econômicas em razão da possibilidade de elevado
comprometimento de seu patrimônio. Outro exemplo está na aplicação do
princípio da autonomia das obrigações cambiais — destinado a viabilizar a ágil
circulação do crédito —, mesmo quando o devedor do título é um consumidor
(cf. Coelho, 1994:202/203). Nesses casos, o princípio constitucional da livre-iniciativa é uma importante referência à interpretação das normas
infraconstitucionais disciplinadoras do exercício de atividades econômicas.
Em segundo lugar, o prestígio que a liberdade de iniciativa recebe da
Constituição significa, também, o reconhecimento de um direito, titularizado por
todos: o de explorarem atividades empresariais. Disso decorre o dever, imposto à
generalidade das pessoas, de respeitarem o mesmo direito constitucional, bem
como a ilicitude dos atos que impeçam o seu pleno exercício. Em duas direções
se projeta a defesa do direito à livre-iniciativa: contra o próprio estado, que
somente pode ingerir-se na economia nos limites constitucionalmente definidos, e
contra os demais particulares. O direito comercial cuida desse segundo aspecto
da questão, isto é, das normas jurídicas que tutelam o exercício do direito à livreiniciativa, quando ameaçado por concorrência ilícita.
Há duas formas de concorrência que o direito repudia, para fins de
prestigiar a livre-iniciativa: a desleal e a perpetrada com abuso de poder. A
primeira é reprimida em nível civil e penal, e envolve apenas os interesses
particulares dos empresários concorrentes (item 2); a segunda, reprimida
também em nível administrativo, compromete as estruturas do livre mercado e
são chamadas de infração da ordem econômica (itens 3 a 7). São modalidades
diferentes de repressão a práticas concorrenciais (item 8).
Essa separação em dois do regime repressivo da concorrência ilícita — de
um lado, a desleal, que não compromete as estruturas da livre concorrência; de
outro, a infração da ordem econômica, que as compromete — está claramente
estabelecida no direito brasileiro, em consonância com a tradição europeia do
tratamento da matéria. Na França, Itália, Espanha e Portugal, por exemplo, a
mesma distinção se pode constatar de forma clara; ao passo que nos Estados
Unidos ela não é nitidamente estabelecida (cf. Ripert-Roblot, 1947:335/337;
Ferrara, 1952:177/178; Sánchez, 1992:132/139; Santos-Gonçalves-Marques,
1991:359/360; Weston-Maggs-Schechter, 1950:573/580).
2. CONCORRÊNCIA DESLEAL
Ao direito constitucional de explorar atividade econômica, expresso no
princípio da livre-iniciativa como fundamento da organização da economia,
corresponde o dever, imposto a todos, de o respeitar. Em relação ao estado, esse
dever se traduz na inconstitucionalidade de exigências administrativas não
fundadas na lei, para o estabelecimento e funcionamento de uma empresa (CF,
art. 170, parágrafo único). Em relação aos particulares, se traduz pela ilicitude de
determinadas práticas concorrenciais. Por ilícita conceituo todas as formas de
concorrência sancionadas pela lei, independentemente da natureza civil, penal ou
administrativa da sanção (para uma breve referência acerca de outras propostas
conceituais: Cerqueira, 1946:1.271/1.273; também Miranda, 1956, 17:267/270).
Pelo conceito aqui proposto, não se reduz a concorrência ilícita à criminosa.
Uma das hipóteses de concorrência ilícita é a desleal. A concorrência
desleal se diferencia da outra forma de ilicitude competitiva (a infração da ordem
econômica), na medida em que as lesões produzidas pela primeira não alcançam
outros interesses além dos do empresário diretamente vitimado pela prática
irregular. Na infração da ordem econômica, a concorrência ilícita ameaça as
estruturas da economia de mercado, e, portanto, um universo muito maior de
interesses juridicamente relevantes são atingidos. Em razão de tal diferença, a lei
não se preocupou em estabelecer mecanismos de repressão administrativa à
concorrência desleal, contentando-se com as repressões civil e penal.
O direito brasileiro reprime
duas formas de práticas
concorrenciais
ilícitas:
a
“concorrência desleal” e a
“infração
da
ordem
econômica”.
É uma questão teórica de difícil elucidação a do conceito de concorrência
desleal (cf. Cerqueira, 1946:1.266/1.271; Ripert-Roblot, 1947:336). Não há
competição empresarial sem o intuito de conquista de mercado. Desse modo, o
elemento fundamental da concorrência, sua essência mesmo, é o intuito de
alargar a clientela, em prejuízo de concorrentes dedicados ao mesmo segmento
de mercado. O objetivo imediato do empresário em competição é simplesmente
o de cativar consumidores, por meio de recursos (publicidade, melhoria da
qualidade, redução do preço etc.) que os motivem a direcionar suas opções no
sentido de adquirirem o produto ou serviço que ele, e não outro empresário,
fornece. Ora, o efeito necessário da competição é a indissociação entre o
benefício de uma empresa e o prejuízo de outra, ou outras. Na concorrência, os
empresários objetivam, de modo claro e indisfarçado, infligir perdas a seus
concorrentes, porque é assim que poderão obter ganhos.
A hipótese em que o empresário ganha sem prejudicar nenhum outro é a
da criação de mercados novos, com introdução de produtos ou serviços até então
não fornecidos aos consumidores. Essa hipótese, contudo, enquanto outros
empresários não atuarem no mesmo segmento, não representa competição — ao
contrário, é caso de falta de competição. Por outro lado, quando pessoas
anteriormente excluídas ingressam no mercado de consumo (em virtude, por
exemplo, do aumento do poder aquisitivo de algumas camadas da população),
durante certo tempo os empresários que se adiantam podem lucrar sem infligir
perdas aos demais. A médio prazo, contudo, uma vez consolidado o aumento do
mercado, restaura-se a concorrência e as vantagens de uns voltam a significar
desvantagens de outros.
Sendo assim, não é simples diferenciar-se a concorrência leal da desleal.
Em ambas, o empresário tem o intuito de prejudicar concorrentes, retirandolhes, total ou parcialmente, fatias do mercado que haviam conquistado. A
intencionalidade de causar dano a outro empresário é elemento presente tanto na
concorrência lícita como na ilícita. Nos efeitos produzidos, a alteração nas opções
dos consumidores, também se identificam a concorrência leal e a desleal. São os
meios empregados para a realização dessa finalidade que as distinguem. Há
meios idôneos e meios inidôneos de ganhar consumidores, em detrimento dos
concorrentes. Será, assim, pela análise dos recursos utilizados pelo empresário,
que se poderá identificar a deslealdade competitiva. À frente (item 8), ver-se-á
que a outra modalidade de concorrência ilícita — a infração da ordem
econômica — não se caracteriza pelo meio utilizado, mas pelos efeitos potenciais
ou efetivos da prática concorrencial.
Como as motivações e os
efeitos da concorrência leal e
da desleal são idênticos, a
diferença entre
elas
se
encontra no meio empregado
para conquistar a preferência
dos consumidores.
2.1. Classificação da Concorrência Desleal
Para Gama Cerqueira, pode-se classificar a concorrência desleal em duas
categorias: a específica, que se traduz pela tipificação penal de condutas lesivas
aos direitos de propriedade intelectual titularizados por empresários (isto é, os
direitos sobre marcas, patentes, título de estabelecimento, nome empresarial); e a
genérica, que corresponde à responsabilidade extracontratual (1946:1.271).
Adotando-se a mesma noção, proponho precisar-se a classificação nos seguintes
termos: específica, a concorrência desleal sancionada civil e penalmente;
genérica, a sancionada apenas no âmbito civil. Desse modo, as práticas
empresariais tipificadas como crime de concorrência desleal (LPI, art. 195) são
formas de concorrência desleal específica; e as não tipificadas como crime, mas
geradoras do direito à indenização por perdas e danos (LPI, art. 209), são de
concorrência desleal genérica.
A concorrência desleal específica se viabiliza por meios inidôneos mais
facilmente delineados (isto é, a violação de segredo de empresa e a indução de
consumidor em erro). Já em relação à genérica, é mais difícil precisar os meios
concorrenciais ilícitos. São exemplos de concorrência desleal genérica o
desrespeito aos direitos do consumidor (inobservância do padrão legal de
qualidade, por exemplo) e a sonegação de tributos. Nesses dois casos, os meios
inidôneos — sintetizados pela noção de desrespeito ao direito vigente —
permitem ao empresário desleal praticar preço mais baixo que os concorrentes
cumpridores da lei e, em consequência, subtrair-lhes consumidores.
2.2. Modalidades de Concorrência Desleal Específica
A concorrência desleal específica se viabiliza, basicamente, por meio de
fraude na obtenção ou veiculação de informações sobre empresa concorrente. A
fraude na obtenção de informações se opera por meio de violação de segredo de
empresa; a fraude na veiculação, mediante a indução de consumidores em erro.
De fato, a concorrência desleal se diferencia da leal no tocante ao meio
empregado pelo empresário para conquistar clientela de outro. São os meios
adotados — e não a intenção do ato ou seus efeitos — que conferem ilicitude a
determinada prática concorrencial. A violação de segredo de empresa e a
indução do consumidor em erro são os meios que, empregados na conquista de
mercados, distinguem a concorrência lícita da desleal específica.
Normalmente, quando a concorrência desleal se traduz no ato de obter
informações, essas são verdadeiras, já que as inverídicas dificilmente poderão
ser úteis à definição de uma eficiente estratégia empresarial. Entretanto, quando
a deslealdade diz respeito à veiculação de informações, costumam ser essas
falsas, no sentido de promover o aumento indevido da reputação do infrator, ou o
comprometimento da imagem da vítima. Historicamente, o direito tem dedicado
maior atenção a esse último modo de deslealdade competitiva. Basta, para
confirmá-lo, relembrar que a Convenção da União de Paris, de 1883, ao delinear
os contornos da concorrência desleal, no art. 10-bis, contemplou exemplos que se
referem unicamente à fraude na divulgação de informações. Cada vez mais, no
entanto, e em função do progresso das técnicas de processamento de dados,
ganha relevância a outra modalidade de concorrência desleal, a da fraude na
obtenção de informações.
A
concorrência
desleal
específica
se
viabiliza,
basicamente, por meio de
violação do segredo de
empresa ou pela indução do
consumidor em erro.
Na primeira modalidade (concorrência desleal específica por violação do
segredo de empresa), o agente ativo do ilícito tem acesso a informações que a
vítima tinha interesse em manter reservadas, fora do alcance de concorrentes; tal
acesso, porém, não se dá por acaso ou por descuido da empresa-vítima, e sim
por invasão a banco de dados, infiltração de empregados ou colaboradores do
agente ativo no corpo funcional da concorrente, ou aliciamento de membros
desta.
O primeiro exemplo de violação de segredo de empresa se refere ao
acesso não autorizado a banco de dados. Devido ao desenvolvimento da
informática, cada vez mais as empresas se expõem ao perigo de “espionagem a
distância”, sem a infiltração de pessoas no corpo funcional da concorrente para
fins de apropriação de informações. As informações mantidas em banco de
dados podem ser, tecnicamente, acessadas por via telefônica e reproduzidas em
meio eletrônico com rapidez. Sofisticados sistemas de segurança contra tais
acessos são desenvolvidos, mas, proporcionalmente, desenvolvem-se fórmulas
de neutralização. Essa prática, assim como a aquisição das informações por meio
dela obtidas, configura concorrência desleal.
A hipótese de infiltração de funcionários no quadro da concorrente é
também conhecida por “espionagem econômica”. A pessoa paga pelo
concorrente emprega-se na empresa vítima, com o fim de se apropriar de
informações, geralmente essenciais sobre a estratégia ou o processo produtivo da
última.
A outra forma de violação de segredo de empresa consiste na “compra”
de informações privilegiadas e envolve empregados graduados, administradores,
sócios minoritários ou mesmo colaboradores (advogados, contadores,
representantes comerciais etc.) do empresário atingido pela concorrência
desleal. O aliciamento de trabalhadores ou profissionais que servem à empresa
vítima, além de caracterizar a concorrência ilícita da empresa aliciadora,
também importa a responsabilidade do sujeito aliciado. Este, ao colaborar com o
concorrente, descumpre seu dever de lealdade com a empresa que o havia
contratado e poderá ser responsabilizado, se empregado ou ex-empregado, de
acordo com o direito do trabalho. A seu turno, a legislação societária imputa
responsabilidade ao administrador pelo descumprimento do dever de lealdade
(LSA, art. 155). Em situação semelhante se encontra o sócio minoritário, que
pode ser expulso da sociedade por falta de cumprimento de obrigações
societárias (CC, art. 1.085). Há, por outro lado, solidariedade entre o empresário
agente da concorrência desleal e o sujeito aliciado (CC, art. 942). O empresário
vítima, assim, poderá optar pela responsabilização do concorrente ou do seu
antigo colaborador ou sócio, para se ressarcir dos prejuízos.
Espionagem
econômica,
mesmo realizada a distância
(hacking) é modalidade de
concorrência
desleal
específica.
Na segunda modalidade de concorrência desleal (isto é, a realizada por
indução do consumidor em erro), o agente ativo da conduta ilícita faz chegar ao
conhecimento dos consumidores uma informação, falsa no conteúdo ou na
forma, capaz de os enganar. O engano pode dizer respeito, por exemplo, à
origem do produto ou serviço. O consumidor é levado a crer que certa
mercadoria é produzida por determinada e conceituada empresa, quando isso
não corresponde à verdade. Não está apenas em questão, aqui, a tutela dos
interesses dos consumidores, mas também a do empresário que teve a sua
imagem indevidamente utilizada para o lucro de concorrente. De fato, a
utilização de imagem empresarial alheia, sem a devida autorização do titular e a
correspondente compensação econômica, representa uma forma sutil de
enriquecimento indevido, e por essa razão é coibida pelo direito. Outro exemplo:
se a empresa de remoção médica pratica preços abaixo da concorrência porque
limita o número de vezes em que o consumidor poderá beneficiar-se dos
serviços, mas isso não é suficientemente aclarado nas peças publicitárias, dá-se a
enganosidade por omissão, condenada pelo Código de Defesa do Consumidor
(art. 37, § 3º). A indução do consumidor em erro, nesse caso, também prejudica
os direitos dos concorrentes, porque cria a falsa impressão de que estes têm
preços elevados, ou mesmo extorsivos.
Muitas vezes, quem promove a divulgação do falso não é o empresário
concorrente, que procura se preservar, mas pessoas que, embora sem vínculo
formal de subordinação, agem por ordem dele. Nesse caso, é maior a
dificuldade de prova, mas, uma vez estabelecida a ligação entre quem propagou
a falsa informação e o mandante, caracteriza-se a concorrência desleal.
O engano a que se induz o consumidor pode dizer respeito, finalmente, à
reputação da própria empresa infratora, no sentido da valorização. O empresário
atribui-se diretamente, ou por meio da promoção de seus produtos ou serviços,
uma qualidade que não possui. Note-se a dificuldade do estabelecimento de
liame específico entre a atitude do autor da concorrência desleal (arrogar
qualidade que não possui) e o dano decorrente de perda de clientela por parte de
empresário concorrente. Não é fácil demonstrar que a redução da participação
no mercado de um empresário se deve ao fato de o outro promover publicidade
enganosa sobre si mesmo. Uma vez, no entanto, feita a demonstração, caberá a
responsabilização civil. Por fim, registro que essa derradeira forma de ilustrar a
concorrência desleal por indução do consumidor em erro representa,
rigorosamente, a mesma figura jurídica que a legislação consumerista
conceituou como publicidade enganosa (CDC, art. 36, § 1º).
A
publicidade
enganosa
representa uma espécie de
concorrência
desleal
específica.
A
mesma
propaganda pode, assim, gerar
responsabilidade
do
anunciante
perante
consumidores e concorrentes.
2.3. Repressão Civil
A repressão civil à concorrência desleal assegura ao empresário--vítima a
devida composição dos danos sofridos. Quando se cuida de concorrência desleal
específica, a caracterização da conduta como ilícita, ensejadora da reparação
civil, não enfrenta maiores problemas. Ou seja, inexistem dúvidas quanto à
natureza desleal da prática de concorrência quando o ato é tipificado como
crime, pelo art. 195 da LPI. Nesse caso, inclusive, aplica-se à repressão civil o
disposto no art. 935 do CC; quer dizer, a existência do fato e sua autoria não
podem ser rediscutidas no foro cível, caso se encontrem já decididas no penal. Se
o acusado de crime de concorrência desleal é inocentado no processo-crime, não
poderá ser acolhida a pretensão à indenização civil contra essa pessoa. Se o
acusado, contudo, não foi condenado por falta de provas ou por prescrição da
pretensão punitiva, a ação civil pode ter seguimento.
No caso de concorrência desleal genérica (isto é, não tipificada como
crime), a questão da caracterização da conduta do demandado ganha contornos
mais complexos, em vista da impossibilidade de se diferenciar, quanto à
finalidade e aos resultados, a concorrência lícita da ilícita. De fato, como visto
acima, tanto o empresário que compete dentro das condições reputadas leais,
como o que transgride os limites desta, têm idênticos objetivos, quais sejam, o de
subtrair clientela alheia. Será a idoneidade do meio utilizado que possibilitará a
distinção entre o que se permite e o que se condena, na concorrência entre
empresas.
A
concorrência
desleal
genérica se caracteriza quando
utilizado
meio
imoral,
desonesto ou condenado pelas
práticas
usuais
dos
empresários.
O texto legal referente à matéria (concorrência desleal genérica), o art.
209 da LPI, ressalva o direito a indenização civil por atos de competição desleal
não tipificados como crime, quando “tendentes a prejudicar a reputação ou os
negócios alheios, a criar confusão entre estabelecimentos comerciais, industriais
ou prestadores de serviços, ou entre os produtos e serviços postos no comércio”.
A primeira parte da transcrição revela um legislador desatento à referida
dificuldade de repousar na intenção ou no resultado da prática empresarial, a
distinção entre a concorrência leal e a desleal — em ambas, o empresário quer
impor prejuízos ao concorrente, porque essa é a condição de seus ganhos. No
restante do dispositivo transcrito, percebe-se que, dos meios fraudulentos para a
realização da concorrência desleal, referiu-se a lei unicamente à indução dos
consumidores em erro, deixando de lado a violação do segredo de empresa e os
muitos outros em que a concorrência desleal genérica pode se traduzir.
A redação imprecisa da norma poderia levar à conclusão de que a
concorrência desleal por violação de segredo de empresa somente geraria a
responsabilidade civil na hipótese específica, ou seja, se também estivesse
caracterizada como crime; enquanto a realizada mediante a indução de
consumidores em erro comportaria a repressão civil, mesmo que genérica. Essa
interpretação, contudo, por ser meramente gramatical, deve ser afastada, de
forma a se assegurar a indenização aos empresários cujos segredos foram
violados, ainda quando inexistir tipo penal correspondente. A importância da
interpretação teleológica cresce, na medida em que aumentam os recursos de
informática para o acesso não autorizado a bancos de dados, atualmente a mais
danosa forma de violar segredos de empresa.
Na verdade, qualquer meio inidôneo gera a responsabilidade civil por
concorrência desleal. A dificuldade de apontar, de modo exaustivo, a lista de
meios desleais é a mesma de distinguir a concorrência desleal genérica das
formas lícitas de competição.
A lei estabelece critérios para a definição do valor da indenização a ser
paga ao empresário vítima de concorrência desleal. Em termos gerais, o art. 208
da LPI preceitua que a “indenização será determinada pelos benefícios que o
prejudicado teria auferido se a violação não tivesse ocorrido”. É, na verdade,
apenas uma forma diferente de estabelecer o mesmo critério genérico da
legislação civil, que define o montante da indenização pelo que efetivamente se
perdeu mais o que razoavelmente se deixou de ganhar (CC, art. 402).
Em especial, quanto aos lucros cessantes, o legislador se preocupou em
definir que o valor do ressarcimento será o mais favorável ao prejudicado dentre
três possíveis: a) os benefícios que ele teria se não tivesse existido a deslealdade
competitiva; b) os benefícios que o concorrente condenado auferiu; c) a
remuneração que o prejudicado teria recebido se, por meio de licença, houvesse
legitimado a ação do concorrente (LPI, art. 210). É bem verdade que o primeiro
critério tem abrangência maior que a do conceito de lucros cessantes, de sorte
que sua utilização dar-se-á apenas nos casos em que não houve outras perdas. O
segundo critério não poderá, por sua vez, ser utilizado se o autor da concorrência
desleal, a despeito dela, não conseguiu auferir benefício concreto. Finalmente, o
último critério é cabível só nas indenizações por práticas que poderiam ser objeto
de licença, como, por exemplo, as de utilização de nome empresarial, sinal de
propaganda, título de estabelecimento ou insígnia alheia. Nenhum dos critérios
apontados pela lei, desse modo, se pode aplicar em qualquer situação. Sempre
haverá pelo menos uma hipótese em que determinado critério se revela
inoperante. Não se trata, portanto, de conjunto de alternativas de que sempre
poderão se socorrer as vítimas da concorrência desleal. Em outros termos, entre
as vias legais de fixação dos lucros cessantes, não existe nenhuma que possa, ou
mesmo deva, preponderar sobre a outra de modo definitivo. Será sempre uma
mera questão quantitativa a da operacionalização desses critérios: isto é, aplica-se
o que resultar maior valor de indenização.
2.4. Repressão Penal
Lei n. 9.279/96 (Lei da
Propriedade Industrial)
Art. 195. Comete crime de
concorrência desleal quem:
I — publica, por qualquer
meio, falsa afirmação, em
detrimento de concorrente, com
o fim de obter vantagem;
II — presta ou divulga,
acerca de concorrente, falsa
informação, com o fim de obter
vantagem;
III
—
emprega
meio
fraudulento, para desviar, em
proveito próprio ou alheio,
clientela de outrem;
IV — usa expressão ou sinal
de propaganda alheios, ou os
imita, de modo a criar confusão
entre
os
produtos
ou
estabelecimentos;
V — usa, indevidamente,
nome comercial, título de
estabelecimento ou insígnia
alheios ou vende, expõe ou
oferece à venda ou tem em
estoque produto com essas
referências;
VI — substitui, pelo seu
próprio nome ou razão social,
em produto de outrem, o nome
ou razão social deste, sem o
seu consentimento;
VII — atribui-se, como meio
de propaganda, recompensa ou
distinção que não obteve;
VIII — vende ou expõe ou
oferece à venda, em recipiente
ou invólucro de outrem,
produto
adulterado
ou
falsificado, ou dele se utiliza
para negociar com produto da
mesma espécie, embora não
adulterado ou falsificado, se o
fato não constitui crime mais
grave;
IX — dá ou promete dinheiro
ou outra utilidade a empregado
de concorrente, para que o
empregado, faltando ao dever
do emprego, lhe proporcione
vantagem;
X — recebe dinheiro ou outra
utilidade, ou aceita promessa
de paga ou recompensa, para,
faltando
ao
dever
de
empregado,
proporcionar
vantagem a concorrente do
empregador;
XI — divulga, explora ou
utiliza-se, sem autorização, de
conhecimentos, informações ou
dados confidenciais, utilizáveis
na indústria, comércio ou
prestação
de
serviços,
excluídos aqueles que sejam de
conhecimento público ou que
sejam evidentes para um
técnico no assunto, a que teve
acesso
mediante
relação
contratual ou empregatícia,
mesmo após o término do
contrato;
XII — divulga, explora ou
utiliza-se, sem autorização, de
conhecimentos ou informações
a que se refere o inciso
anterior, obtidos por meios
ilícitos ou a que teve acesso
mediante fraude; ou
XIII — vende, expõe ou
oferece à venda produto,
declarando ser objeto de
patente
depositada,
ou
concedida, ou de desenho
industrial registrado, que não o
seja, ou menciona-o, em
anúncio ou papel comercial,
como
depositado
ou
patenteado, ou registrado, sem
o ser;
XIV — divulga, explora ou
utiliza-se, sem autorização, de
resultados de testes ou outros
dados não divulgados, cuja
elaboração envolve esforço
considerável e que tenham sido
apresentados
a
entidades
governamentais como condição
para
aprovar
a
comercialização de produtos.
Pena — detenção de 3 (três)
meses a 1 (um) ano, ou multa.
A LPI, em seu título sobre crimes contra a propriedade industrial, tipifica
condutas de concorrência desleal (art. 195). A comparação do texto da lei
vigente com o da anterior sobre a matéria (Dec. n. 7.903/45, art. 178) ressalta a
substituição das imprecisas expressões “segredo de fábrica” e “segredo de
negócio”, na descrição das condutas criminais, por um conceito que, malgrado a
complexidade, se revela mais apropriado, e que se poderia denominar segredo
de empresa. Este segredo compreende os “conhecimentos, informações ou dados
confidenciais, utilizáveis na indústria, comércio ou prestação de serviços,
excluídos aqueles que sejam de conhecimento público ou (...) evidentes para um
técnico no assunto” (LPI, art. 185, XI).
A substituição conceitual importou, além de maior precisão, a superação
da diferença entre as duas espécies de segredo mencionadas nos tipos penais da
antiga legislação repressora, diferença que a doutrina apontava residir no objeto
da informação mantida sigilosa: “de fábrica” era o segredo relativo ao processo
de produção; “de negócio”, o relacionado aos aspectos especificamente
comerciais da empresa (Delmanto, 1975:238/239). Certamente, não há razões
para tal distinção, tendo em conta que tanto um como outro gênero de
informação possuem a mesma importância estratégica para o desenvolvimento
de qualquer gênero de atividade econômica.
A violação de segredo de empresa é conduta típica tanto na hipótese em
que o autor do crime é ou foi colaborador do empresário-vítima, na qualidade de
empregado, prestador de serviços profissionais, administrador, sócio e outros
(LPI, art. 195, inciso XI e § 1º), como naquela em que o autor não manteve
qualquer vínculo jurídico com a vítima (idem, inciso XII). Nesse último caso,
incluem-se os espiões a distância (os chamados hackers), que se introduzem, sem
autorização, nos bancos de dados informatizados das empresas, em busca de
informações que possam ser negociadas com concorrentes desleais.
Em França, desde 1988, o simples ato de acessar fraudulentamente, no
todo ou em parte, sistema de tratamento automatizado de dados é crime, mesmo
que não haja nenhuma exploração das informações assim obtidas. Essa
representa, apenas, uma hipótese de agravamento da pena (Larguier-Larguier,
1994:177). No Brasil, no entanto, o crime não se caracteriza se o invasor apenas
se apropria do segredo, dando-se por satisfeito por considerar atendidas suas
necessidades hedônicas de desafio intelectual. Para a configuração do crime de
concorrência desleal, na espécie, será necessário que o agente ativo divulgue,
explore ou se utilize do segredo. Será necessário, por exemplo, que o hacker
transmita as informações, mediante pagamento ou de modo gracioso, a
empresário concorrente, à imprensa ou aos consumidores. Por outro lado, se o
invasor, após a apropriação das informações sigilosas, também praticar ato que
importe a destruição ou adulteração destas, ou o seu comprometimento de
qualquer forma, responderá também pelo crime de dano (CP, art. 163).
3. INFRAÇÃO DA ORDEM ECONÔMICA
Por constituição econômica entende-se o conjunto de normas
constitucionais referentes à economia ou, como se diz mais usualmente, à ordem
econômica (Santos-Gonçalves-Marques, 1991:17). No direito brasileiro em vigor,
a constituição econômica tem perfil neoliberal. Significa isso que se baseia nos
princípios tradicionais do liberalismo econômico — a propriedade privada, a
liberdade de iniciativa e a de competição —, temperados com a afirmação de
certas conquistas sociais, consolidadas principalmente na última metade do
século — a função social da propriedade, a defesa do consumidor, busca do
pleno emprego etc. Por outro lado, entre os elementos basilares da constituição
econômica, prevê-se a repressão ao abuso do poder econômico, que visa à
dominação dos mercados, eliminação da concorrência ou aumento arbitrário dos
lucros (CF, art. 173, § 4º).
Constituição Federal
Art. 173, § 4º A lei reprimirá o
abuso do poder econômico que
vise
à
dominação
dos
mercados, à eliminação da
concorrência e ao aumento
arbitrário dos lucros.
Do perfil neoliberal da constituição econômica brasileira, pode-se concluir
a livre concorrência como uma das estruturas básicas de organização da
economia, cujos contornos ganham precisão com as normas infraconstitucionais
repressoras do abuso de poder econômico (ou infração da ordem econômica,
como preferiu denominá-lo o legislador de 1994). O princípio da repressão aos
abusos do poder econômico é, no dizer de Eros Grau, um fragmento do princípio
da livre concorrência (1990:230). Desse modo, a interpretação da legislação
antitruste (Lei n. 12.529/2011), especialmente quanto à caracterização legal das
condutas infracionais, não pode ser feita dissociada da referência constitucional à
matéria. A livre concorrência deve ser prestigiada como estrutura fundamental
da ordem econômica e a repressão aos abusos do poder econômico deve servir
unicamente de sua garantia.
O poder econômico, note-se, é um dado de fato inerente ao livre
mercado. Se a organização da economia se pauta na liberdade de iniciativa e de
competição, então os agentes econômicos são necessariamente desiguais, uns
mais fortes que outros. Ou seja, conforme assentou Miguel Reale, o poder
econômico não é em si ilícito, mas é o instrumento normal ou natural de
produção e circulação de riquezas nas sociedades constitucionalmente
organizadas em função do modelo da economia de mercado (em FranceschiniFranceschini, 1985:521). Ora, nem a Constituição nem a lei poderiam ignorar ou
pretender a eliminação do poder econômico. O direito somente pode disciplinar o
exercício desse poder, reprimindo as iniciativas que comprometem as estruturas
do livre mercado (cf. Grau, 1990:228/229). É apenas a repressão a certas
modalidades de exercício do poder econômico que a lei pode contemplar, em
obediência ao mandamento constitucional. Em outros termos, nem todas as
manifestações de exercício do poder econômico se encontram, pela constituição
econômica, no campo do que a lei pode considerar ilícito administrativo, mas
apenas aquelas que têm ou podem ter o efeito de domínio de mercados,
eliminação da concorrência ou aumento arbitrário dos lucros. Por exemplo, o
abuso do poder de controle pelo acionista controlador (LSA, art. 117) não deixa
de ser “econômico” e, mesmo assim, não configura, quando ausentes os
elementos do art. 173, § 4º, da Constituição Federal, infração da ordem
econômica.
O poder econômico não é
punido por si. O que o direito
coíbe é o abuso do poder
econômico que ameaça ou pode
ameaçar a livre concorrência.
Se o empresário titular de poder econômico exerce-o ao competir com os
demais agentes atuantes no mesmo mercado, e lucra ou tira vantagens de sua
posição destacada, nada há de irregular nisso. É apenas o jogo competitivo
característico do regime capitalista, em que os mais fortes, economicamente
falando, se valem desse fator de supremacia para ampliar a participação no
mercado, evidentemente em detrimento da de outros empresários. O exercício
do poder econômico que não tenha e não possa ter o efeito de dominância de
mercado, eliminação da concorrência ou aumento arbitrário de lucros insere-se
nesse jogo e não pode ser, sob o ponto de vista constitucional, considerado
abusivo; e, consequentemente, não pode ser objeto de repressão legal. A
Constituição Federal, ao estruturar a economia brasileira pelo princípio da livre
concorrência, admite a generalidade das práticas empresariais voltadas à
conquista de mercados, ainda que derivadas do exercício do poder econômico.
Somente quando a própria competição está em risco, a Constituição, para a
assegurar, reputa abusivo o seu exercício e autoriza à lei a repressão.
Em suma, a Constituição Federal, em seu art. 173, § 4º, delineou as
modalidades de exercício do poder econômico que podem ser consideradas
juridicamente abusivas. São aquelas que põem em risco a própria estrutura do
livre mercado. Especificamente, aquelas que podem ocasionar a dominação de
setores da economia, eliminação da competição ou aumento arbitrário de lucros.
As outras formas de exercício do poder econômico, insuscetíveis de produzirem
tais efeitos, não são abusivas, por definição do direito positivo brasileiro vigente.
A Constituição não reputa abusivo o exercício do poder econômico compatível
com as estruturas do livre mercado.
A disciplina jurídica da concorrência, que reprime as infrações da ordem
econômica, é chamada, tradicionalmente, de “direito antitruste”. A expressão se
liga, por evidente, aos propósitos originários da atuação estatal, voltados a impedir
a formação de grandes conglomerados econômicos. Claro que hoje se alarga o
campo de aplicação desse capítulo da disciplina jurídica da concorrência, que
passa a tutelar as estruturas do livre mercado, também contra outras formas de
abuso. Por tradição, contudo, continua utilizável o nome.
3.1. Órgãos Administrativos de Repressão às Infrações
A repressão administrativa às infrações da ordem econômica compete ao
Conselho Administrativo de Defesa Econômica — CADE.
O CADE foi criado pela Lei n. 4.137/62 como órgão da administração
direta federal, vinculado inicialmente ao Conselho de Ministros e, posteriormente,
ao Ministério da Justiça. Houve quem tentasse fazer vingar a tese de que teria
natureza autárquica desde sua origem, com o intuito de acelerar a efetivação em
juízo das decisões administrativas (ver em Franceschini-Franceschini,
1985:470/476; cf. Barbieri Filho, 1984:49/98), mas o entendimento mais correto
era mesmo o de que, a despeito de sua relativa autonomia, o CADE tinha a
natureza de simples desdobramento funcional da administração direta, sem
personalidade jurídica própria (Meirelles, 1981:125/140).
Em 1994, o CADE transformou-se em autarquia, o que visou propiciar
maior agilidade para atuação em juízo. Ele é definido legalmente como
“entidade judicante com jurisdição em todo o território nacional” (art. 4º). Bem
entendida, tal definição diz respeito à chamada jurisdição administrativa e não
judicial, visto que a autarquia integra o Poder Executivo e não o Judiciário. É,
segundo propõe parte da doutrina de direito público, uma entidade com caráter
de órgão administrativo de função quase judicial, categoria de que seriam
exemplos, além do CADE, também o Tribunal Marítimo, os Conselhos de
Contribuintes e outros (cf. Meirelles, 1981:129; Carvalho, 1986:207/210). Aos
chamados órgãos administrativos quase judiciais correspondem, contudo, apenas
maiores formalidades na preparação e edição dos respectivos atos. Tais
formalidades são muito semelhantes às praticadas no Judiciário. Mas a
solenidade com que reveste os julgamentos, bem assim o detalhamento
legislativo da disciplina de tramitação dos processos administrativos não são
fatores suficientes para alterar a qualidade jurídica dos atos emanados do CADE.
Sua natureza é igual à dos atos emanados dos demais órgãos administrativos.
Abstraídas as formalidades, estas sim quase judiciais, as sanções do CADE têm
rigorosamente a mesma natureza administrativa das aplicadas por qualquer fiscal
de normas edilícias de uma Prefeitura, ou pela Polícia de Trânsito, em estradas
estaduais. Seus pronunciamentos, em suma, a despeito das formalidades
próximas às dos órgãos judiciais, não fazem coisa julgada e estão sujeitos
sempre à revisão pelo Poder Judiciário, na mesma medida de todos os demais
atos administrativos (CF, art. 5º, XXXV).
Além da competência relacionada à coibição das práticas infracionais,
tem o CADE atribuições preventivas, cabendo nota à relacionada com a
aprovação dos atos que possam limitar ou prejudicar a livre concorrência ou
resultar dominação de mercado, como os de concentração empresarial (Lei n.
12.529/2011, art. 88).
O CADE é composto por três órgãos: a) Tribunal Administrativo de
Defesa Econômica, órgão judicante integrado por um Presidente e seis
Conselheiros; b) Superintendência-Geral, à qual compete, por exemplo, instaurar
e instruir os processos administrativos relacionados à infração da ordem
econômica; c) Departamento de Estudos Econômicos, dirigido pelo EconomistaChefe, incumbido de estudos e pareceres econômicos que subsidiem as decisões
da Superintendência e do Tribunal.
A repressão administrativa às
infrações da ordem econômica
compete ao CADE (Conselho
Administrativo
de
Defesa
Econômica), entidade judicante
integrante da administração
indireta (autarquia) vinculada
ao Ministério da Justiça.
3.2. Natureza da Competência do CADE
A doutrina de direito econômico ensaia uma classificação das
experiências legislativas em matéria de defesa da concorrência reportando-se a
dois diferentes sistemas. De um lado, o que proíbe restrições à concorrência
pelos danos potenciais que produzem e, de outro, o que as reprime somente pelos
danos efetivamente produzidos. A tendência do primeiro é a de tomar a
concorrência como um fim em si mesmo (teoria da concorrência-condição),
com total abstração dos muitos outros aspectos econômicos relacionados com a
prática anticoncorrencial. A tendência do outro sistema é a de considerar a
concorrência como apenas um dos diversos bens da estrutura do livre mercado
dignos de tutela (teoria da concorrência-meio). Para os ordenamentos
econômicos desse último sistema, a repressão aos acordos, oligopólios,
monopólios ou domínio de mercado está condicionada ao prejuízo ao interesse
geral (cf. Santos-Gonçalves-Marques, 1991:361).
O direito norte-americano é exemplo típico de ordenamento filiado ao
sistema da concorrência-condição, e mesmo lá a jurisprudência tem atenuado a
rigidez das proibições legais, mediante a pesquisa das razões motivadoras da
prática anticoncorrencial (rule of reason) ou de seu caráter subsidiário e razoável
(ancillary restraint doctrine). Por outro lado, o próprio estatuto legal, o Sherman
Act, de 1890, a primeira lei antitruste norte-americana, submete à prudência do
juiz (discretion of the court) a definição da pena cabível contra as práticas
restritivas de mercado (Sullivan-Harrison, 1988:77/84). Nos Estados Unidos, é
amplamente discutido se as condutas restritivas da concorrência por cartéis
devem ser sancionadas sempre que celebrado o contrato de atuação concertada
(“per se” rule of illegality), ou se a punição dependeria da análise da
razoabilidade ou não do procedimento empresarial em referência (rule of
reason). No contexto daquele direito, um acordo de uniformização de preços, por
exemplo, pode ser visto ou como absolutamente injurídico, em si e por si mesmo
considerado, independentemente da indagação de seus efeitos (cf. Sullivan,
1977), ou como jurídico, em razão de sua razoabilidade, caso a principal função
não tenha sido a de limitar a competição. Em outros termos, se duas empresas
firmam acordo de uniformização de preços, com o objetivo de restringir a
concorrência, a jurisprudência norte-americana tende a puni-las sempre, ainda
que eventualmente os preços concertados sejam razoáveis e os consumidores se
beneficiem. Mas, se a restrição da concorrência não é o objetivo principal do
ajuste, então o exame da razoabilidade dos efeitos ganha realce, devendo ser
afastada a punição se a conduta empresarial for justificável. Essa tendência é
identificada pela doutrina, apesar da dificuldade de se sistematizarem os muitos
pronunciamentos judiciais sobre a matéria antitruste (Sullivan-Harrison, 1988:82;
Morgan, 1994:510 e ss.).
Por sua vez, o direito comunitário europeu filia-se ao sistema da
concorrência-meio, e a declaração de inaplicabilidade da legislação comunitária
antitruste pressupõe o que se convencionou chamar de “balanço econômico”, em
que tem relevo a melhoria da produção ou distribuição, o progresso técnico e
econômico, os benefícios aos consumidores e a necessidade ou desnecessidade
da restrição, relacionados com a conduta empresarial investigada (Burkhardt,
1995; Santos- -Gonçalves-Marques, 1991:383/384 e 431). Na Europa, não se
distinguem acordos com função econômica primordialmente restritiva e acordos
com mero efeito subsidiário restritivo, prevalecendo a análise da razoabilidade
dos efeitos em todos os casos, mesmo naqueles em que o objetivo pretendido
pelo empresário ou empresários em atuação concertada seja o de restrição da
concorrência.
Conforme a lição de Benjamin Shieber (1966:97/105), a solução do direito
antitruste brasileiro, desde a edição da lei de 1962, tem sido a de se situar mais
próxima ao enfoque europeu no tratamento da matéria, dando sempre relevância
à razoabilidade dos acordos empresariais de efeitos direta ou indiretamente
restritivos. Na aplicação de medidas sancionadoras, o direito brasileiro não
poderia distanciar-se da tendência mundial de considerar todos os efeitos da
prática anticoncorrencial, benéficos ou prejudiciais. A tutela da liberdade de
concorrência e repressão às práticas empresariais restritivas, em geral,
repercutem positivamente em todos os demais setores da estrutura econômica.
Contudo, isso pode não se verificar, e de fato não se verifica, em diversas
oportunidades. Não há bom senso, nem assim pode querer a lei, na defesa da
competição como um valor abstrato, em detrimento de efetiva melhoria de
níveis de emprego, desenvolvimento tecnológico, melhor atendimento aos
consumidores etc. O CADE, órgão administrativo, é instrumento da política
econômica do Poder Executivo. Há, é certo, garantias institucionais de
autonomia, visando maior imparcialidade de seus julgados. Porém, eles não
podem se distanciar dos princípios básicos norteadores da política econômica
implementada pelo Presidente da República, e sua equipe.
De fato, segundo o que se afirma dos mecanismos constitucionais de
prevalência da vontade popular, ao eleger o Presidente da República, o povo opta
por uma determinada forma de tratar o interesse público (traduzida no programa
de governo ou até na inexistência de qualquer tipo de programa). Empossado na
chefia do Poder Executivo, o eleito compõe a sua equipe de governo, inclusive a
responsável pela implementação da política econômica sufragada nas urnas.
Ora, a atuação de qualquer órgão administrativo em descompasso com essa
política representa, em última instância, a negação da vontade popular expressa
na eleição presidencial. Abstraindo-se a questão do funcionamento do poder,
muito mais complexa do que faz crer a descrição acima (Coelho, 1992b:75/90),
fato é que, juridicamente, a atuação da autarquia antitruste deve estar
harmonizada com a política econômica do governo.
Ora, no contexto, devem-se considerar as muitas hipóteses em que a
prática empresarial, embora tipificada como infração à ordem econômica,
repercute favoravelmente em outros aspectos da economia. Por vezes, a conduta
infracional implica maior desenvolvimento econômico regional ou nacional,
decréscimo da taxa de desemprego, geração de tributos, avanços tecnológicos e
eficiência na produção. O CADE não pode simplesmente ignorar eventuais
reflexos positivos da prática empresarial, ao decidir pela aplicação de sanção.
Deve, ao contrário, inserir sua atuação na política econômica (legitimada nas
urnas) e, se for o caso, atenuar (Lei n. 12.529/2011, art. 45) ou mesmo não
aplicar a penalidade.
Em outros termos, o CADE, órgão encarregado de apurar a ocorrência do
ilícito e julgá-lo, não dispõe de discricionariedade quando examina a
caracterização de infração da ordem econômica. Em outros termos, o
julgamento da existência das práticas infracionais deriva do exercício de
competência vinculada. Não pode, assim, o Conselho considerar infração à
ordem econômica a conduta que o legislador não descreveu como tal, nem pode
deixar de considerá-la infração se corresponder à hipótese legal. Não há
interpretação extensiva ou analogia possíveis nessa matéria. Se os fatos
demonstrados no processo administrativo geram a convicção de que agiu o
empresário do modo como a lei caracteriza a infração, então o CADE não
poderá deixar de tomá--la por ocorrida. Ao contrário, se dos fatos colecionados
no processo administrativo não decorre essa convicção, mas sim a de licitude da
prática empresarial, então o CADE não poderá considerar a infração existente.
Contudo, à natureza vinculante da competência do CADE para considerar
determinada prática empresarial como ilícita contrapõe-se a discricionariedade
para punir ou não o agente econômico que a perpetrou.
O CADE exerce competência
vinculada ao tipificar certa
prática empresarial como
infração da ordem econômica.
Sua competência para aplicar
sanção,
contudo,
é
discricionária.
Inexiste na Lei n. 12.529/2011 dispositivo expresso atributivo de
competência discricionária para não sancionar a infração da ordem econômica.
Mas ele não seria realmente indispensável, porque o seu fundamento repousa,
em última análise, na estrutura constitucional do exercício do poder pelo povo,
que obsta interpretações ilimitadas da autonomia administrativa conferida pelo
legislador. Há, por outro lado, isto é certo, dispositivos na legislação antitruste que
somente se justificam pela competência discricionária para a aplicação da
sanção. É o caso, por exemplo, do art. 45, pertinente à gradação da pena, ou do
art. 88, § 6º, que autoriza a aprovação de atos restritivos ou prejudiciais da
concorrência.
Antes de encerrar o exame dessa matéria, convém assinalar que a
ingerência política na atuação dos órgãos de defesa da concorrência está se
esvaziando, com aumento do prestígio da tecnicidade das decisões, no mundo
todo. A alteração da lei argentina de defesa da concorrência, em 1999, ilustra
bem a tendência, com a transferência da competência para o trato da matéria de
um Secretário de Estado (o de Comércio e Negociações Econômicas
Internacionais) para uma autarquia, então criada, o Tribunal Nacional de Defesa
da Concorrência. A despolitização do direito de defesa da concorrência é
exigência do processo de globalização econômica, para o qual a liberdade de
iniciativa e concorrência tem sido, por enquanto, a tônica.
4. CARACTERIZAÇÃO DA INFRAÇÃO DA ORDEM ECONÔMICA
A caracterização da infração da ordem econômica é feita pela
indispensável conjugação de dois dispositivos da Lei Antitruste, o art. 36 e seu § 3º
da Lei n. 12.529/2011. Isto é, a conduta empresarial correspondente a qualquer
um dos incisos do § 3º do art. 36 somente é infracional se o seu efeito, efetivo ou
potencial, no mercado estiver configurado no caput do referido dispositivo;
especificamente, se dela resultar dominação de mercado, eliminação da
concorrência ou aumento arbitrário dos lucros (o exercício abusivo de posição
dominante não configura categoria autônoma: item 4.5). A norma constitucional
programadora da Lei Antitruste (CF, art. 173, § 4 º) circunscreve com clareza o
conjunto das condutas empresariais suscetíveis de repressão legal. Diz a
Constituição que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise
determinados efeitos lesivos às estruturas do livre mercado. Assim dispondo,
estabelece que outros modos de exercício do poder econômico, incapazes de
redundarem os efeitos assinalados, são, em virtude da proeminência do princípio
da livre competição, plenamente jurídicos, lícitos.
Tome-se um exemplo. É corrente e legítimo, no meio empresarial,
conceder tratamento diferenciado a revendedores, com base exclusivamente em
critérios subjetivos. Imagine-se o fabricante de componentes de veículos
automotores terrestres negociando a mesma peça, em igual quantidade, com dois
diferentes revendedores: um deles, tradicional e próspero comerciante, bom
pagador, operando há décadas na atividade e com quem o industrial sempre
manteve excelentes e frutíferas relações; o outro, recém-estabelecido no ramo,
desconhecido e com fama de mau pagador. É justo, técnico, normal e lícito
diferenciar, exclusivamente sob o ponto de vista subjetivo, os dois revendedores,
concedendo ao primeiro vantagens comerciais negadas ao outro. Em geral, a
diferenciação nas condições de negócio não produz efeitos senão nas próprias
relações privadas entre os contratantes, inserindo-se a matéria exclusivamente no
campo da autonomia da vontade.
Não haverá infração da ordem econômica se os efeitos do tratamento
discriminatório não ultrapassarem os limites das relações negociais entre os
empresários envolvidos. Mesmo ultrapassando tais limites, pode se verificar
hipótese em que não é caracterizada infração. Com efeito, o tratamento
discriminatório pode ser, em determinadas situações, mecanismo de implemento
da competitividade. É o caso, por exemplo, em que o fabricante, com o intuito de
conquistar o mercado de uma região distante da sede de sua fábrica, oferece aos
distribuidores situados nesse mercado um desconto, no preço dos produtos, que
possa compensar o custo mais elevado do transporte, negando aos distribuidores
mais próximos, operadores de mercados já conquistados, o mesmo benefício. A
discriminação aqui é o fator que propiciará o aumento da competitividade no
mercado em que o empresário pretende ingressar, inexistindo, assim, infração da
ordem econômica (o exemplo é de Cuevas, 1983:553/555). Somente se o
tratamento diferenciado, ao produzir efeitos para além das relações comerciais
do exclusivo interesse dos agentes diretamente envolvidos, puder ocasionar
domínio de mercado, eliminação de concorrência ou aumento arbitrário de
lucros, então a própria estrutura do livre mercado estará em risco. Somente
assim, a discriminação configura ilicitude.
Não há, portanto, como caracterizar a infração da ordem econômica,
isolando-se o descrito em cada um dos dispositivos legais componentes da
estrutura da hipótese infracional. Aliás, o próprio § 3º do art. 36 da Lei n.
12.529/2011 preceitua expressamente a indispensabilidade da remissão ao caput
do dispositivo daquela lei, ao fixar que as condutas nele exemplificadas são
infracionais “na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste
artigo e seus incisos”. Em suma, a caracterização da infração da ordem
econômica é feita já pelo texto constitucional (art. 173, § 4º), apenas reproduzido
no art. 36, I a IV, da Lei Antitruste. O elenco de condutas apresentado pelo art.
36, § 3º, é meramente exemplificativo dos instrumentos mais utilizados no abuso
do poder econômico, e não esgotam todas as possibilidades de condutas
empresariais lesivas às estruturas do livre mercado.
Nenhuma prática empresarial
é infração da ordem econômica
se os seus efeitos — potenciais
ou reais — não importam
dominação
de
mercado,
eliminação de concorrência ou
aumento arbitrário de lucros.
Assim, a mesma prática pode
configurar
ou
não
concorrência
ilícita,
dependendo dos efeitos que
gera ou pode gerar.
Há, por outro lado, duas modalidades fundamentais de infração da ordem
econômica. De um lado, aquelas que somente se viabilizam mediante a
realização de acordo, ainda que oral, entre empresários; e, de outro, as que são
perpetradas apenas por um agente econômico. As primeiras denominam-se
colusão e podem ser de três categorias: as horizontais, quando envolvem apenas
empresários situados no mesmo estágio da produção e circulação econômica
(por exemplo, industriais concorrentes em atuação concertada); as verticais,
quando envolvem empresários situados em estágios diferentes da produção e
circulação econômica (por exemplo: fornecedor e distribuidores em atuação
concertada); ou de concentração, quando empresas passam a submeter-se à
mesma direção econômica com ou sem perda de autonomia jurídica (cf. Faria,
1992:15/18).
4.1. Irrelevância da Culpa
Para se caracterizar a infração da ordem econômica, é irrelevante se os
agentes ativos agiram ou não com culpa. A responsabilidade administrativa,
segundo o previsto na lei, decorre de avaliação objetiva dos efeitos da conduta
empresarial. Se a prática em consideração implica ou mesmo pode implicar
certos resultados — os reputados comprometedores das estruturas do livre
mercado pelo art. 173, § 4º, da CF —, então não interessa indagar se o
empresário os pretendeu ou, não os pretendendo, agiu com imprudência,
negligência ou imperícia.
Convencionou-se chamar a hipótese de responsabilidade objetiva. Essa
categoria, a rigor, é pertinente à composição das perdas e danos por atos lícitos
(responsabilidade do estado, do INSS por acidente de trabalho, do fornecedor por
acidentes de consumo etc.), de modo que a sua transposição para o direito
antitruste deve ser feita com cautelas, porque a responsabilidade por infração da
ordem econômica, embora independa de culpa do agente, configura sempre um
ilícito.
A responsabilidade civil ou se funda na culpa (subjetiva) ou na
possibilidade de socialização das repercussões econômicas do dano (objetiva).
No primeiro caso, o fundamento da atribuição de responsabilidade é, em última
análise, a manifestação da vontade, isto é, a noção clássica de que toda obrigação
apenas pode originar-se da vontade do devedor. Se uma pessoa produz danos a
outra, há só duas possibilidades: ou poderia tê-los evitado ou não. Se não os
poderia ter evitado, a hipótese é de caso fortuito ou força maior, e inexiste
responsabilidade; se poderia e o não fez, manifestou uma certa vontade. No caso
da responsabilidade objetiva, o fundamento último não é a vontade do agente,
mas a possibilidade de o responsável socializar entre as pessoas de determinado
grupo as repercussões econômicas do evento danoso. Na responsabilidade
objetiva, o agente responde por ato lícito, que ele não provocou nem poderia ter
evitado. A imputação de responsabilidade, contudo, é racional e justificável, a
despeito da inexistência de vontade em causar danos, porque o agente tem plenas
condições, pela posição econômica que ocupa, de socializar as repercussões do
evento danoso (cf. Coelho, 1997:10/17).
O fabricante, por exemplo, responde objetivamente pelos danos derivados
de acidente de consumo. Quer dizer, ainda que tenha dotado sua empresa da
mais moderna tecnologia e mais apurado controle de qualidade, alguns produtos
sairão da linha de montagem defeituosos e poderão causar lesões a
consumidores. Não se caracteriza culpa ou dolo do empresário, na hipótese, já
que, no exemplo, lançou mão dos recursos mais desenvolvidos que o
conhecimento humano pôde engendrar. Na doutrina tradicional da
responsabilidade civil, essa hipótese de acidente de consumo teria a natureza de
caso fortuito ou força maior. Na legislação consumerista, inclusive a brasileira, a
responsabilidade é imputável ao fabricante porque ele pode, por meio de
mecanismos de composição do preço de seus produtos, distribuir entre os
consumidores as repercussões econômicas do acidente (Cap. 8, item 7).
A legislação estipuladora de responsabilidade administrativa em geral
desconsidera o elemento subjetivo concernente às intenções do infrator ao
descrever os comportamentos infracionais. Cogitem-se, para ilustração da
afirmativa, as multas por descumprimento das posturas edilícias, por infração às
normas de trânsito, por descumprimento de obrigação tributária instrumental, ou
as penas próprias do regime dos servidores públicos. Em todos esses casos, o
fundamento da responsabilização não é a culpa do responsabilizado, mas sim o
efeito prejudicial da conduta típica (para o trânsito, para a administração
tributária, para o serviço público etc.).
Portanto, chamar objetiva a responsabilidade por infração da ordem
econômica se justifica apenas por uma semelhança com a categoria do direito
civil, consistente na irrelevância da culpa. Mas, rigorosamente falando, não há
objetivização da responsabilidade do agente ativo porque, embora haja a
possibilidade de socialização das repercussões econômicas do dano, nas situações
relacionadas à infração da ordem econômica, a responsabilização decorre
sempre de prática ilícita.
A
responsabilização
administrativa do empresário
em virtude de infração da
ordem econômica independe de
culpa. No entanto, não é
técnico chamar a hipótese de
“objetiva”, à semelhança do
que se verifica com a
responsabilidade
civil
independente de culpa. Isto
porque a infração da ordem
econômica é sempre um ato
ilícito.
O legislador antitruste, na verdade, apenas passou a adotar a melhor
tradição do direito na disciplina da imposição de sanções administrativas,
desconsiderando o elemento subjetivo e dando relevo aos efeitos potenciais ou
efetivos da conduta empresarial indesejada. Sob a égide do antigo direito
antitruste brasileiro, parte da doutrina considerava indispensável o dolo para a
caracterização do abuso do poder econômico (Medeiros da Silva, 1979:31),
questão que está totalmente superada no contexto do direito atual (cf. Denozza,
1988:44/45).
4.2. Prejuízo à Livre Concorrência ou Livre-Iniciativa
O direito positivo (Lei n. 12.529/2011, art. 36, I) estabelece que os atos de
qualquer natureza que tenham o efeito, potencial ou real, de limitar, falsear ou
prejudicar a livre concorrência ou a livre-iniciativa são definidos como infração
da ordem econômica.
Lei n. 12.529/2011
Art. 36. Constituem infração
da
ordem
econômica,
independentemente de culpa, os
atos sob qualquer forma
manifestados, que tenham por
objeto ou possam produzir os
seguintes efeitos, ainda que
não sejam alcançados:
I — limitar, falsear ou de
qualquer forma prejudicar a
livre concorrência ou a livreiniciativa;
II — dominar mercado
relevante de bens ou serviços;
III
—
aumentar
arbitrariamente os lucros; e
IV — exercer de forma
abusiva posição dominante.
Há quem distinga entre a livre concorrência e a livre-iniciativa, definindo
a primeira como o princípio norteador dos limites da última. Assim, afirma-se
que todos têm direito de se estabelecerem no exercício de atividade econômica,
desde que o façam competitivamente. Para os fins operacionais de aplicação da
legislação antitruste, não tem maior importância a distinção entre livre
concorrência ou liberdade de iniciativa. Se a limitação, falseamento ou prejuízo
atingiu a liberdade de concorrer ou a liberdade de empreender, as repercussões
jurídicas são rigorosamente idênticas.
Limitar a livre concorrência ou a livre-iniciativa é barrar total ou
parcialmente, mediante determinadas práticas empresariais, a possibilidade de
acesso de outros empreendedores à atividade produtiva em questão. Em geral, a
obstaculização do acesso decorre do aumento dos custos para novos
estabelecimentos, provocado com vistas a desencorajar eventuais interessados. A
venda de produtos ou serviços por preços abaixo do custo, por exemplo, pode ser
suportada temporariamente por empresários já estabelecidos em dada atividade.
Isso, no entanto, aumenta o custo de ingresso na atividade, porque amplia a
previsão de amortização do investimento inicial, ao forçar os preços daquele
mercado para baixo. Aliás, a simples ameaça, dos empresários estabelecidos, no
sentido de virem a praticar preços abaixo do custo já é suficiente para
desestimular outros empresários a se estabelecerem no mesmo segmento de
mercado.
Falsear a livre concorrência ou iniciativa significa ocultar a prática
restritiva, por meio de atos e contratos aparentemente compatíveis com as regras
de estruturação do livre mercado. A expressão falsear, também utilizada pelo
legislador português, em atenção ao Tratado de Roma, sugere ideia mais ampla
que a de simulação, relativa aos defeitos dos atos jurídicos. Pode haver
falseamento da concorrência, sem que o negócio jurídico que o viabiliza se
caracterize como simulado. Imaginem-se algumas empresas oligopolizadas
celebrando contrato de troca de informações sobre custos operacionais, com
vistas a ocultarem a ação concertada na fixação de preços. A caracterização da
infração da ordem econômica e imposição da sanção administrativa independem
da prova de simulação. Quer dizer, as autoridades não precisam demonstrar a
existência do defeito do ato jurídico como condição da sanção, nessa modalidade
específica de infração da ordem econômica. Claro está, por outro lado, que a
prática de negócio simulado pode servir de indício de falseamento.
Prejudicar a livre concorrência ou iniciativa, por fim, significa incorrer
em qualquer prática empresarial lesiva às estruturas do mercado, ainda que não
limitativas ou falseadoras dessas estruturas. Trata-se de conduta difícil de se
exemplificar em nível conceitual. A previsão normativa se explica como cautela
do legislador, tendo em conta as imprevisíveis e variadíssimas possibilidades
abertas pelas múltiplas formas de relacionamento entre empresas, de que podem
derivar restrições horizontais ou verticais.
Note-se, por fim, que a Constituição Federal menciona como reprimíveis
pela lei o abuso do poder econômico que visa à eliminação da concorrência (art.
173, § 4º). Ora, não é feita específica referência no texto constitucional à
limitação, ao falseamento e ao prejuízo da livre concorrência, que são formas de
eliminação parcial e não total da competição. Nesse contexto, insere-se
interessante questão, suscitada já ao tempo da lei anterior, respeitante à
constitucionalidade da repressão legal às condutas empresariais que apenas em
parte eliminam a concorrência. Medeiros da Silva, examinando a norma
correspondente da lei de 1962, que tipificava como abuso do poder econômico a
eliminação parcial da concorrência, manifestou opinião no sentido de que havia
inconstitucionalidade na previsão legal. Para ele, a falta de distinção na Carta
Fundamental entre as diversas formas de eliminação significaria que o
constituinte apenas teria reputado abusiva a eliminação total da competição
(1979:32/33). Não considero, contudo, que houvesse inconstitucionalidade,
mesmo no antigo direito antitruste. Ademais, a eliminação total da competição é
fato raro, e as estruturas do livre mercado precisam ser protegidas
principalmente contra as condutas de eliminação parcial, muitíssimo mais
comuns.
4.3. Mercado Relevante
Para a caracterização de posição dominante, é indispensável a definição
do que se convencionou chamar por mercado relevante, ou mercado em causa. A
dominância nunca diz respeito a toda a atividade econômica, mas a segmentos
delineados, cujos contornos devem ser pesquisados e estabelecidos para a
caracterização da infração da ordem econômica. Como lecionam Santos,
Gonçalves e Marques, a noção de posição dominante é relativa e somente tem
sentido com a concreta definição geográfica e material do mercado em que a
dominância se revela (1991:393). Em outros termos, para configurar o domínio
de mercado por determinados empresários, o primeiro aspecto a precisar é o
mercado relevante. Ninguém domina globalmente a economia de um país como
o Brasil, por mais poder econômico e político que concentre. Devem-se, então,
especificar os limites do ramo de fornecimento de produtos ou serviços em que
se manifesta o domínio econômico.
Mercado relevante não é
conceito que se refere à
importância econômica da
atividade em consideração.
Os percentuais de participação no mercado de cada empresário possuem
relevância e ganham expressão na medida em que são conferidos em função dos
segmentos específicos em que atuam. Tais participações certamente se
reduziriam e se diluiriam, perdendo sentido jurídico-operacional, se a referência
fosse alargada para maiores parcelas ou mesmo para toda a economia do país. A
definição do mercado relevante é feita, assim, em dois níveis: o geográfico e o
material.
A delimitação geográfica do mercado é importante, principalmente no
Brasil, em razão das profundas e variadas diferenças regionais existentes em
termos econômicos e mesmo culturais. Não há necessidade de o mercado
relevante abranger todo o território nacional, embora em determinadas hipóteses
isso aconteça. Ou seja, a relevância a que se reporta o legislador não é função
quantitativa do maior ou menor tamanho da base territorial do mercado. Não é
necessário, por outro lado, que o mercado relevante mobilize grandes somas de
capital, posto que também não é função quantitativa do volume de recursos
monetários que movimenta. O mercado relevante pode ser, também, o
internacional, fato característico da economia globalizada do nosso tempo.
A delimitação material do mercado é feita a partir da perspectiva do
consumidor. O mercado relevante abrange todos os produtos ou serviços pelos
quais o consumidor poderia trocar, razoavelmente, o produto ou serviço acerca
de cuja produção ou distribuição se pesquisa a ocorrência de infração da ordem
econômica. Se a mercadoria ou o serviço pode ser perfeitamente substituído, de
acordo com a avaliação do consumidor médio, por outros de igual qualidade,
oferecidos na mesma localidade ou região, então o mercado relevante
compreenderá também todos os outros produtos ou serviços potencialmente
substitutos.
A definição geográfica e material do mercado relevante, portanto,
somente pode ser feita mediante análise casuística. A título de exemplo, imaginese que determinado atacadista de produtos frutíferos seja responsável por
pequena parcela do mercado de frutas frescas, mas está paulatinamente
adquirindo todas as empresas que fornecem bananas para a região sudeste do
Brasil. Para se definir se tal prática configura ou não domínio de mercado
relevante, é necessário desenvolver raciocínio a partir da perspectiva do
consumidor da base territorial referida. Assim, se na região sudeste do Brasil,
consome-se qualquer tipo de frutas frescas nas refeições, sendo considerada
dispensável a banana em qualquer circunstância, então o mercado relevante é o
das frutas frescas, e o empresário não está incorrendo em nenhuma conduta
infracional, na medida em que participa em pouca escala desse segmento.
Entretanto, se o consumidor morador daquela região faz questão da banana em
determinadas ocasiões, quando não a substitui por nenhuma outra fruta, então o
mercado relevante é o da banana, e o empresário incorre em prática de
dominância de mercado ao adquirir todas as empresas desse segmento
mercadológico (cf. Santos-Gonçalves-Marques, 1991:438).
A definição do mercado
relevante é casuística e leva em
conta duas variáveis, a
geográfica e a material. Essa
última se delineia a partir da
perspectiva do consumidor.
Uma vez encontrado o mercado relevante, é necessário verificar se o
fornecedor, intermediário, adquirente ou financiador do produto ou serviço (ou
da tecnologia neles empregada) controla o respectivo segmento da atividade
econômica. Isto é, se as operações e negócios que desenvolve repercutem
consideravelmente nas decisões adotadas pelos demais agentes econômicos que
operam no mesmo mercado. Há a presunção de tal controle, quando a
participação do empresário é da ordem de vinte por cento (Lei n. 12.529/2011,
art. 36, § 2º). Quer dizer, se o agente econômico desenvolve operações que
correspondem a esse percentual, então presume a lei que há o controle do
mercado e, consequentemente, o domínio.
4.4. Aumento Arbitrário de Lucros
No regime capitalista de produção, o lucro é o elemento propulsor da
iniciativa dos particulares. Sem a motivação de ganhos atraentes, dificilmente as
pessoas se lançariam a um empreendimento econômico, suportando seus riscos e
percalços. Dariam às suas energias e recursos melhor destino. Nesse contexto,
revela-se plenamente compatível com a constituição econômica brasileira os
atos, negócios e práticas empresariais destinadas à geração de lucros. Quanto
maior a perspectiva de lucro vislumbrada pelo empresário, mais capital e
esforço ele se sentirá motivado a investir em determinada atividade.
Em suma, as estruturas do livre mercado se fortalecem e desenvolvem
pela busca de lucros. A concorrência entre os empresários se alimenta da
perspectiva de aumento de lucratividade das empresas. Há, contudo, limites,
balizados pela própria constituição econômica, na geração dos lucros: eles devem
ser justificáveis sob o ponto de vista da lógica da livre competição. Pressupõemse que os lucros sem justificação dessa ordem são arbitrários, porque podem
chegar a comprometer as estruturas do livre mercado. Por essa razão, tais
condutas são reputadas infracionais. Atente-se, por outro lado, à conjunção
aditiva “e”, do final do § 4º do art. 173 da Constituição Federal; ela sugere que a
lei somente pode reprimir abusos do poder econômico que manifestem os 3
efeitos potencialmente lesivos à economia liberal (dominação de mercado,
eliminação da concorrência e aumento arbitrário dos lucros). É certo, por outro
lado, que esses efeitos, em muitas vezes, se sobrepõem: quem domina mercado
também elimina, pelo menos em parte, a concorrência, e vice-versa. Pois bem,
da ocasional indissociabilidade desses conceitos decorre uma outra formulação
para a questão: arbitrário é o lucro obtido por práticas anticoncorrenciais, não
explicável por nenhuma outra razão econômica.
Grosso modo, portanto, o lucro que não se justifica, sob o ponto de vista
tecnológico, administrativo, econômico ou financeiro, foi produzido de modo
arbitrário, por uma prática empresarial irregular.
O lucro gerado pela regular exploração de atividade econômica, no
contexto da competição capitalista, nada tem de arbitrário, por maior que seja, se
a sua origem está relacionada com investimentos, desenvolvimento tecnológico,
política de marketing, boa administração financeira etc. Ou seja, a justificação
do lucro descaracteriza qualquer tipo de arbitrariedade. Se ficar demonstrado que
a causa dos ganhos auferidos pelo empresário se insere no contexto da regular
concorrência, não existirá o tipo infracional. Reafirme-se, por outro lado, que a
caracterização da arbitrariedade dos lucros não é uma questão quantitativa: o
lucro pode ser arbitrário, apesar de sua reduzida expressão, assim como pode ser
elevadíssimo sem que se revele qualquer forma de arbitrariedade.
Lucro arbitrário é aquele que
não decorre de inovações
tecnológicas,
medidas
de
racionalidade administrativa
da empresa ou de outros
fatores justificáveis.
Por fim, e em termos muito gerais, duas são as possibilidades de geração
de lucro na empresa capitalista: aumento da receita ou redução dos custos. A
legislação anterior punia como abuso do poder econômico apenas o lucro
injustificável (quer dizer: arbitrário) derivado de aumento do preço sem justa
causa. Pela lei de 1994, é ilícita a produção de lucros arbitrários decorrentes não
somente do aumento dos preços, mas também de receitas de outra natureza,
como as de venda de ativos, por exemplo. Também será caracterizável a
infração, se os lucros arbitrários se originarem da redução de custos. Se o
empresário tem exclusivo acesso a determinada fonte de insumo, os seus custos
podem ser menores do que os dos concorrentes e isso pode ter o efeito de gerar
lucros arbitrários, caracterizando-se a infração da ordem econômica (Lei n.
12.529/2011, art. 36, V), ainda que os preços praticados não se elevem.
4.5. Abuso de Posição Dominante
O previsto no inciso IV do art. 36 da Lei Antitruste é, em vista da
interpretação sistemática do dispositivo, mera redundância. Com efeito, o que
significa “exercício de posição dominante de forma abusiva”? Ou, em outros
termos, o que quer dizer “abuso de posição econômica dominante”?
A resposta somente pode se encontrar no próprio texto constitucional, que
fixa os contornos básicos da disciplina da atividade econômica. Deve-se partir,
portanto, do art. 173, § 4º, da CF, em cujos termos se encontram os limites dentro
dos quais pode se mover o legislador ordinário, ao dispor sobre o direito antitruste.
No referido dispositivo constitucional, encontra-se referência aos efeitos lesivos à
estrutura do livre mercado abrangidos nos três primeiros incisos do art. 36 da
legislação antitruste. A eliminação da concorrência (inc. I), a dominação de
mercado (inc. II) e o aumento arbitrário de lucros (inc. III) são expressamente
mencionados pelo § 4º do art. 173 da Constituição Federal.
Mas o abuso de posição dominante não foi lembrado pelo constituinte
como efeito lesivo à ordem econômica, que se pudesse distinguir dos demais
efeitos compreendidos na mesma disposição constitucional. Ou seja, o abuso da
posição dominante não pode ser considerado pela legislação ordinária um efeito
autônomo, independente dos outros identificados pela norma constitucional. Se
assim eventualmente pretendesse o legislador ordinário, ele estaria incorrendo
em inconstitucionalidade, indo além dos limites fixados pela ordem fundamental
vigente. Limitar, falsear ou prejudicar a concorrência, dominar mercado
relevante e aumentar arbitrariamente os lucros são maneiras de se exercer
abusivamente a posição dominante. Não há como incorrer em conduta capaz de
gerar os efeitos referidos no art. 173, § 4º, da Constituição, e reproduzidos nos
incisos I a III do art. 36 da Lei Antitruste, senão por meio do exercício abusivo de
posição dominante. O sentido adequado para a exegese desse dispositivo somente
pode ser, por conseguinte, o de síntese da matéria abrangida já pelos outros
incisos do mesmo artigo. Em outros termos, se não for considerado redundante, a
norma em questão (o inciso IV) será necessariamente inválida, por
inconstitucionalidade, já que estaria reprimindo práticas empresariais além da
autorização contida na Constituição Federal. O princípio hermenêutico da
inexistência de termos inúteis na lei cede, por evidente, diante da supremacia
constitucional.
4.6. Paralelismo de Preços ou Conduta
A cartelização ordinariamente está acompanhada do alinhamento de
preços. Como o objetivo dos concorrentes em colusão é o de alcançarem os
mesmos ganhos que adviriam da monopolização, eles devem praticar preço
próximo, com variações desprezíveis, que definem por meios diretos ou indiretos.
Mas mesmo em segmentos de mercado onde impera a livre competição, podese verificar a prática de preços fixados em valores próximos para produtos
concorrentes. O paralelismo na fixação do preço não é indicativo necessário da
existência de colusão entre os agentes econômicos. Assim, embora a restrição de
concorrência por meio do cartel normalmente importe o alinhamento dos preços,
nem sempre estão em colusão os concorrentes que praticam preços alinhados.
A economia conhece e descreve hipóteses em que o alinhamento de
preços nada tem de colusivo. Uma delas é a interdependência dos concorrentes.
Quando são homogêneos os produtos, equivalem as tecnologias empregadas e os
custos para a produção se assemelham, é natural supor que os competidores
tendem a praticar preços próximos (Sullivan, 1977:164). Os pãezinhos são
vendidos nas padarias de uma mesma localidade por preços em geral idênticos
em razão dessa interdependência. Os padeiros não fecham nenhum acordo
visando a restrição da competição entre eles. Simplesmente as condições
econômicas sob as quais fabricam o produto são de tal modo semelhantes que os
preços naturalmente se aproximam.
Outra hipótese de alinhamento não derivada de cartelização do mercado
que a economia estuda é a liderança de preços. Em segmentos em que atuam
uma ou poucas empresas de porte e várias pequenas, a tendência é de estas
últimas alinharem seus preços com os daquelas, seguindo-as nos aumentos e
reduções. A definição do preço mais adequado para o produto não raras vezes
demanda estimativas, avaliações e estudos que os pequenos empresários não têm
como custear, sendo mais fácil para eles imitarem (proporcionalizando) os
líderes do setor (Cf. Forgioni, 1998:338). No mercado de pneumáticos, houve
tempo em que pequenos fabricantes costumavam praticar preços equivalentes a
determinado percentual do praticado pelas empresas líderes, sem que houvesse a
mínima conduta concertada entre eles.
Tanto a interdependência do s concorrentes como a liderança de preços
podem configurar ato anticoncorrencial, mesmo não havendo colusão, quando
acompanhada de outros elementos como o controle cruzado dos interdependentes
ou a imposição pelo líder do seu preço aos demais players. Mas interessa
sublinhar que, ausentes esses ingredientes, a simples proximidade dos preços
praticados por concorrentes não indica a presença necessária do cartel, já que há
alinhamentos provenientes do regular funcionamento do mercado de livre
competição. Exatamente porque o alinhamento de preços não indica, por si só, a
cartelização, as autoridades antitruste sempre se depararam com o problema de
distinguir as situações em que o paralelismo é indício de colusão daquelas em que
ele não o é.
A autoridade antitruste norte-americana (a Federal Trade Commission —
FTC), em precedentes famosos, assentou o entendimento de que a prova da
existência de cartelização não depende necessariamente da existência de um
contrato expresso entre os concorrentes em colusão. O mais citado de todos é o
American Tobaco v. United States , julgado pela Suprema Corte em 1946, no qual
se decidiu que a condenação judicial pela formação de cartel não depende
necessariamente da prova de contrato expresso entre as empresas em colusão,
bastando demonstrar o concerto das condutas (Morgan, 1994:269/280). O cartel,
assim, é condenável como anticoncorrencial tanto na hipótese de acerto explícito
entre os conluiados, como tácito. Afinal, se conscientemente os concorrentes
agem de modo uniforme, ainda que não tenham feito nenhum acordo, os efeitos
deletérios para os consumidores são idênticos ao de um cartel.
O paralelismo de preços, em suma, pode indicar a colusão fundada num
acordo expresso, num acordo tácito (por vezes, chamado de “paralelismo
consciente”) ou simplesmente o regular funcionamento do mercado. O desafio
do direito antitruste consiste em distinguir basicamente essas duas últimas
hipóteses. No enfrentamento dessa questão, considera-se que o paralelismo de
preços não é indício de cartelização tacitamente estabelecida quando há
explicação econômica que o justifica como manifestação do regular
funcionamento do mercado. Em outros termos, para que se configure o ilícito, é
necessário um plus factor, isto é, um elemento a mais além do paralelismo de
conduta (Sullivan-Harrison, 1992:125). Essa formulação ficou conhecida como a
teoria do “algo mais que o paralelismo” ou “paralelismo plus”. Por ela, em
síntese, do simples fato de concorrentes praticarem preços próximos não deriva
nenhum ilícito concorrencial se é justificável, sob o ponto de vista econômico, o
paralelismo e não há outros elementos caracterizadores de colusão.
De acordo com a doutrina do
paralelismo plus não basta à
caracterização da infração da
ordem econômica o mero
alinhamento de preços ou
condutas, sendo necessário
algo mais, sem suficiente
explicação econômica, para
que a autoridade antitruste
possa concluir pela existência
de cartel.
A doutrina do paralelismo plus tem sido adotada pelas autoridades
antitruste brasileiras. Em 2001, as três grandes fabricantes de papel higiênico
reduziram 25% o comprimento dos rolos de papel de alta qualidade. Note que
não se trata, aqui, propriamente de paralelismo de preço, mas de conduta. O algo
a mais tipificador da infração considerado pelo CADE foi o fato de os
supermercados terem recebido destes três fabricantes aviso a respeito da futura
redução dos rolos, antes de qualquer uma delas ter feito a entrega do produto no
novo tamanho. Se fosse o caso de liderança, não se explicaria o aviso prévio
simultâneo, porque as empresas seguidoras não teriam como antever o
comportamento do líder. Fica claro que houve troca de informações entre os
concorrentes, característica do cartel. O CADE também adotou a teoria do
paralelismo plus ao instaurar, em 1997, processo para investigar a cartelização na
comercialização de aço plano comum, entre três empresas líderes do segmento.
Neste processo, a autoridade antitruste brasileira concluiu pela caracterização do
cartel, considerando como plus a realização de uma reunião entre as empresas
representadas, ocorrida nas dependências de um órgão governamental (SEAE),
em que o objetivo era o de comunicar ao governo os preços que passariam a
adotar.
Esses precedentes demonstram o tipo de elemento adicional que o CADE
exige para considerar que o paralelismo de conduta seria indicativo de
cartelização. Como se pode notar, o “algo a mais” tipificador de infração da
ordem econômica é exatamente a colusão, o acordo sobre preços a praticar (ou
outra conduta que impacte os preços, como, por exemplo, no caso da redução
uniforme do tamanho do rolo de papel higiênico de alta qualidade). Não existindo
esse ingrediente no contato entre as empresas concorrentes e sendo justificável
economicamente o paralelismo de preços ou de conduta, não há ilícito nenhum.
5. CONDUTAS INFRACIONAIS
A interpretação do art. 36, § 3º, da Lei n. 12.529/2011 não pode ser feita
isoladamente. As condutas descritas nos vinte e quatro incisos do dispositivo não
configuram, por si só, infração da ordem econômica. Para a caracterização do
ilícito, é necessário que a conduta descrita tenha ou possa ter alguns dos efeitos
precisamente delineados pela norma constitucional programadora da legislação
antitruste (art. 173, § 4º) e reproduzidos no art. 36, I, II e III, da mesma lei.
Ou seja, haverá infração da ordem econômica somente se a conduta
descrita no § 3º do art. 36 da Lei Antitruste implicar efetivamente, ou puder
implicar, em tese, a eliminação da concorrência, o domínio de mercado ou o
aumento arbitrário de lucros. Se a conduta em foco não produzir, mesmo em
termos potenciais, qualquer um dos efeitos lesivos às estruturas do livre mercado
não desejados pelo constituinte, ainda que represente o exercício de um poder
econômico, não existirá ilegalidade.
A título de exemplo, considere-se que as franqueadoras normalmente
fixam o preço final ao consumidor dos produtos e serviços de suas franqueadas.
Ora, essa situação corresponde ao comportamento descrito no inciso IX do
mesmo art. 36 (“impor, no comércio de bens ou serviços, a distribuidores ...
preços de revenda”), mas não se caracteriza, em princípio, a infração da ordem
econômica. Isso porque o efeito da imposição de preços não lesa as estruturas do
livre mercado — não elimina a concorrência, não gera lucros arbitrários e não
importa dominação de mercado. Ao contrário, é parte indissociável do negócio
da franquia a uniformização da rede, em todos os aspectos do negócio, inclusive
e principalmente quanto aos preços praticados, devendo ser desligada da franquia
a franqueada que desatender a essa definição da franqueadora.
A caracterização das condutas infracionais foi feita, rigorosamente
falando, não pela legislação antitruste, mas sim pela própria Constituição Federal
(cf. Faria, 1990:155/161). Esta, no art. 173, § 4º, delimitou com precisão quais
condutas empresariais comportam repressão pela lei ordinária. Além dos limites
traçados por esse dispositivo, vigora em plenitude o princípio da livre-iniciativa.
Não pode o legislador, sob pena de inconstitucionalidade, reprimir qualquer tipo
de comportamento que não configure abuso do poder econômico praticado com
o objetivo de produzir determinados efeitos comprometedores das estruturas do
livre mercado (eliminação da concorrência, lucratividade arbitrária ou domínio
de mercado). Ao seu turno, o intérprete também não pode ignorar que os
contornos básicos da matéria se esgotam no texto constitucional, devendo sempre
contextualizar as normas da legislação ordinária antitruste.
São as seguintes, portanto, as condutas infracionais exemplificadas pelo
art. 36, § 3º, da Lei Antitruste:
Lei n. 12.529/2011
Art. 36. (...) § 3º As seguintes
condutas, além de outras, na
medida em que configurem
hipótese prevista no caput deste
artigo
e
seus
incisos,
caracterizam
infração
da
ordem econômica:
I — acordar, combinar,
manipular ou ajustar com
concorrente, sob qualquer
forma:
a) os preços de bens ou
serviços
ofertados
individualmente;
b) a produção ou a
comercialização
de
uma
quantidade restrita ou limitada
de bens ou serviços, mediante,
dentre outros, a distribuição de
clientes, fornecedores, regiões
ou períodos;
c) a divisão de partes ou
segmentos de um mercado atual
ou potencial de bens ou
serviços, mediante, dentre
outros, a distribuição de
clientes, fornecedores, regiões
ou períodos;
d)
preços,
condições,
vantagens ou abstenção em
licitação pública.
a) Preços concertados — uma das principais modalidades de infração à
ordem econômica é o acordo entre concorrentes para a prática ou fixação de
preços e condições de venda. Normalmente celebrado entre os maiores agentes
econômicos do mercado, pode pretender tanto o aumento como a redução dos
preços.
O aumento concertado dos preços com o objetivo de elevação dos
praticados pelos participantes do negócio redunda, sob o ponto de vista
econômico, na transferência de renda dos consumidores para as empresas do
oligopólio. Claro que, mesmo em atividades monopolizadas ou oligopolizadas, há
limites econômicos máximos para a definição de preços, além dos quais haverá
queda de procura e de consumo (elasticidade). Mas isso não significará
necessariamente diminuição da margem de lucro, se os principais empresários
operando no mercado mantiverem os níveis concertados, compatibilizando com
estes os custos da produção.
Já a redução concertada de preços tem o efeito econômico de obstaculizar
o acesso de outros empresários ao mesmo mercado. A prática de preços baixos,
ainda que importe comprometimento temporário de parte da margem de lucros,
dificulta aos novos agentes se aventurem no mesmo mercado, já que para
competirem com alguma chance de sucesso deveriam praticar preços baixos
também. Ora, se isso é factível para empresários já estabelecidos, com
participação consolidada no mercado, para os demais significa elevação dos
custos da produção (pela majoração da perspectiva de amortização do
investimento inicial).
Para a configuração da infração, é necessário que haja efetivo acordo
entre os agentes envolvidos. Não basta apenas o efeito da padronização de preços
e condições de negócio. É indispensável que tenha havido realmente algum tipo
de entendimento entre os empresários com vistas ao tratamento concertado da
questão. Se muitos agentes de certo segmento de mercado praticam preços
uniformes ou paritários, mas não estabeleceram acordo de nenhum tipo nesse
sentido, inexiste concerto e tampouco infração. É a doutrina do paralelismo plus,
já examinada (subitem 4.5).
A composição de preços de produtos e serviços envolve complexidades
crescentes. Os cálculos indispensáveis à sua definição pressupõem pessoal
técnico especializado, acesso a informações diversas, definições econômicas,
administrativas e jurídicas, equipamento e logiciário apropriados etc. Os
pequenos e médios empresários muitas vezes valem-se dos preços praticados
pelas grandes empresas, para definirem os seus próprios, uma vez que não têm
condições nem recursos para realizarem cálculo de tamanha complexidade. Sem
os meios para fixarem com segurança seus preços, eles simplesmente aguardam
o anúncio da tabela do grande empresário e os estabelecem proporcionalmente
(em geral, para menos). Ora, quem de fora se depara com a situação, poderia
imaginar que está diante da prática descrita em lei. Para que ela se configure,
contudo, seria necessário que tivesse ocorrido algum tipo de entendimento entre
os empresários de pequeno e médio porte, de um lado, e o grande, de outro.
Como se trata de elemento indispensável à caracterização da hipótese
infracional, a existência do acordo deve ser demonstrada pela autoridade
administrativa como condição para a aplicação da sanção (ou, na ação judicial
de indenização civil, pelo autor diretamente lesado ou legitimado à defesa de
interesse individual homogêneo, difuso ou coletivo). Claro está que não se exige a
apreensão física do instrumento firmado pelas partes, até porque ele não é
requisito formal necessário à celebração do acordo de preços. Imprescindível, a
rigor, é a demonstração de que ocorreu o encontro de vontades, ainda que feita
por meio de indícios externos de prática concertada (doutrina do conscious
parallelism: cf. Sullivan-Harrison, 1988:124/127).
É irrelevante, para essa hipótese infracional, a natureza específica do
acordo ou entendimento estabelecido entre os agentes ativos do ilícito.
Normalmente, aliás, na tentativa de fugirem à incidência da lei, os empresários
não firmam instrumento denominado “acordo de preços”, ou algo que o valha,
mas procuram formalizar a sua relação negocial de modo aparentemente
inofensivo, celebrando, por exemplo, um simples ajuste de troca de informações
comerciais, por meio do qual viabilizam o concerto dos preços e condições de
venda.
b) Divisão de mercados ou de fontes de fornecimento de matéria-prima —
no caso da infração consistente na divisão de mercados ou de fontes de
fornecimento de matéria-prima, é pressuposto da caracterização da conduta o
acordo entre os empresários concorrentes (práticas colusivas). Não caracteriza o
ilícito a simples conservação de posições, mediante redução da agressividade na
competição, não decorrente de qualquer forma de entendimento entre os agentes
econômicos. Várias fórmulas foram desenvolvidas pelas práticas comerciais
para a divisão de mercados. Como mostram Sullivan e Harrison (1992:11/112), a
mais usual é a divisão de bases territoriais (um empresário comercializa seu
produto na região sudeste do país e o outro na região nordeste, p. ex.), geralmente
associada aos acordos de preços; mas podem-se também tomar por referencial
os adquirentes (um contratante negocia com tais e quais revendedores e o outro
com os demais), os produtos negociados (um transaciona com linhas de produto
com as quais o outro não opera) ou mesmo funções econômicas (um empresário
não vende no varejo e o outro não vende no atacado).
Ressalte-se que a divisão de mercados ou de fontes de fornecimento de
matéria-prima será infracional apenas se visar aos efeitos lesivos à estrutura do
livre mercado. Quer dizer, se a divisão é feita com vistas a racionalizar o
escoamento de produtos ou serviços, então não existe qualquer ilicitude. Assim, o
concedente, na comercialização de veículos automotores terrestres, é obrigado
por lei a observar, na atribuição de novas concessões, os critérios de potencial de
mercado (Lei n. 6.729/79, art. 5º), com o objetivo de racionalizar a definição das
áreas operacionais de responsabilidade de cada concessionário. Nesse caso,
estará certamente dividindo mercados entre os integrantes de sua rede, mas não
há comprometimento da livre concorrência, até porque os consumidores podem
optar por adquirirem os veículos de qualquer estabelecimento (Lei n. 6.729/79,
art. 5º, § 3º).
c) Atuação concertada em licitação pública — a conduta consistente na
atuação concertada em licitação pública, para fins de combinação prévia de
preços ou ajuste de vantagens, para se configurar infração da ordem econômica,
deve estar inserida no contexto do abuso do poder econômico, tal como definido
na Constituição (CF, art. 173, § 4 º). Se duas ou mais licitantes combinam
previamente os preços ou vantagens, mas apenas com o intuito de obter o
contrato administrativo em licitação, sem outras repercussões quanto às
estruturas do livre mercado, estará caracterizado apenas o ilícito penal do art. 90
da Lei n. 8.666/93, mas não a conduta infracional da lei antitruste.
II — promover, obter ou
influenciar a adoção de
conduta comercial uniforme ou
concertada entre concorrentes;
d) Conduta comercial uniforme ou concertada — conduta comercial é
conceito mais amplo que o de padronização de preços e condições de venda.
Compreende essa última, mas apresenta contornos de maior amplitude. Se um
grande empresário pretende ingressar no mercado de fornecimento de matériasprimas, no qual já atuam umas poucas e pequenas empresas, ele poderia tentar
reunir os industriais adquirentes do insumo, eventualmente insatisfeitos com —
diga-se — a demora na entrega dos produtos, para acenar-lhes com a
possibilidade de melhor atendimento, desde que de imediato e conjuntamente
cancelem todos os pedidos feitos junto àqueles fornecedores.
Note-se que o empresário motivador do cancelamento simultâneo dos
pedidos, agente ativo da hipótese infracional agora em exame, não pratica a
conduta comercial uniforme ou concertada, que é realizada pelos industriais
adquirentes da matéria-prima em questão. A lei somente caracteriza como
infração o acordo entre concorrentes, em matéria de concerto de preços e de
condições de venda, e nem toda a conduta comercial uniforme ou concertada diz
respeito a esses assuntos. No exemplo acima, a padronização de comportamentos
se revelou no cancelamento simultâneo de pedidos.
A hipótese infracional também é usualmente perpetrada por associações
ou entidades de empresários, que servem de instrumentos à motivação da
uniformização ou concerto de condutas comerciais. Rea-firme-se, contudo, que é
indispensável à configuração da infração que o objetivo da adoção de conduta
uniforme ou concertada seja o de eliminar a competição, dominar mercado ou
aumentar arbitrariamente os lucros. Se os jornais com circulação nacional
uniformizam as dimensões-padrões para os seus anúncios, motivados por
associação de agências de publicidade, sem outro intuito a não ser o de
racionalizar a veiculação de propaganda, não ocorrerá o ilícito.
III — limitar ou impedir o
acesso de novas empresas ao
mercado;
e) Limitação ou obstáculo ao acesso ao mercado — a conduta infracional
de limitação ou obstáculo ao acesso ao mercado é prática em que incorrem
agentes econômicos de modo indireto. Nada poderia ser feito diretamente voltado
a impedir ou dificultar o estabelecimento de novas empresas, sem que se
configurasse ilícito penal. A restrição ou a obstaculização do acesso ao mercado
é resultado, por isso, de operações econômicas, mais ou menos sutis.
Normalmente, a limitação ou obstáculo ao acesso de novos empresários a
determinado ramo de atividade econômica decorrem do aumento dos custos
para o estabelecimento de empresas nessa atividade. Aumento que pode ser
ocasionado por muitas e variadas condutas empresariais. Têm, por exemplo, o
efeito de aumentar o custo de instalação de novas empresas: a obtenção de
exclusividade para o fornecimento de bens de capital ou de matéria--prima, a
prática de preços abaixo do custo etc.
Nesse sentido, a exclusividade de fornecimento de bens de capital ou de
matéria-prima, obtida pelo empresário já estabelecido em certo segmento de
mercado, reserva aos demais apenas a alternativa de buscarem os insumos junto
a outras fontes, eventualmente no exterior. Ora, nesse caso, os novos empresários
deverão custear a importação dos bens de capital ou da matéria-prima,
inexistentes para o detentor da exclusividade. Já a prática de preços abaixo do
custo também impede ou dificulta o acesso de novos empresários ao mercado,
na medida em que, para adotarem preço competitivo, devem necessariamente
suportar a dilatação do prazo para a amortização do investimento inicial.
Uma interessante hipótese de impedimento de entrada de empresa
concorrente no mercado foi examinada por Arnoldo Wald relativamente à
cláusula penal por rescisão do contrato de fornecimento. Segundo a consulta
originária de seu parecer, várias empresas distribuidoras de derivados de petróleo
incluíram no instrumento celebrado com os respectivos revendedores uma
cláusula penal exorbitante, com o objetivo de impedir que esses passassem a
operar com a Petrobras Distribuidora S/A (em Franceschini-Franceschini,
1985:506/520). O valor da multa pela rescisão do contrato de fornecimento é, sob
o ponto de vista econômico (embora não necessariamente jurídico), custo de
instalação de novas empresas. Quanto maior a pena contratual nesse caso, maior
o entrave ao ingresso de concorrentes, aos quais cabe oferecer oportunidades
negociais aos revendedores que compensem os encargos contratuais da rescisão.
IV — criar dificuldades à
constituição, ao funcionamento
ou ao desenvolvimento de
empresa concorrente ou de
fornecedor, adquirente ou
financiador de bens ou
serviços;
f) Dificultação de constituição, funcionamento ou desenvolvimento de
empresa — as dificuldades à constituição, funcionamento ou desenvolvimento de
empresa podem se referir especificamente às concorrentes ou aos fornecedores,
adquirentes e financiadores. No primeiro caso, diz-se que há prática restritiva
horizontal, enquanto no segundo, vertical. Em ambos, a infração resulta
normalmente de operações comerciais ou econômicas, em geral voltadas a
desestimularem terceiros a contratarem com os concorrentes, adquirentes,
fornecedores ou financiadores. Qualquer atitude diretamente voltada a dificultar
a constituição, funcionamento ou desenvolvimento de empresa poderia
configurar ilícito penal, de modo que o infrator procurará atingir os mesmos
efeitos por via transversa, por meio de expedientes econômicos mais ou menos
sutis. Diga-se que uma indústria mantenha contrato de fornecimento relativo a
dois produtos diferentes com determinado revendedor. E suponha-se que um
concorrente resolva expandir seus negócios para fornecer um desses produtos,
em condições comerciais mais vantajosas. A tendência do revendedor será a de
procurar negociar um produto com cada fabricante. Imagine-se que a primeira
indústria, apenas com o intuito de desestimular o revendedor a contratar com seu
concorrente, suspendesse os descontos, dos quais sempre se beneficiara o
revendedor, no preço do produto fornecido só por ela, reservando a mesma
vantagem comercial apenas para a hipótese de aquisição das duas mercadorias.
Assente-se, por oportuno, que não ocorreria a infração de venda casada
(tying agreement) na hipótese sugerida acima, porque a venda de uma
mercadoria não está sendo condicionada à aquisição da outra. O empresário
apenas está concedendo certa vantagem para quem adquirir as duas
mercadorias, sem recusar-se a vender qualquer delas em separado.
V — impedir o acesso de
concorrente às fontes de
insumo,
matérias--primas,
equipamentos ou tecnologia,
bem como aos canais de
distribuição;
g) Obstáculo de acesso a fontes de insumo — a infração de impedir o
acesso de concorrentes a fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou
tecnologias e aos canais de distribuição é das modalidades de práticas
anticoncorrenciais que pressupõem acordo entre agentes econômicos (práticas
colusivas). Não é possível incorrer-se nessa conduta infracional unilateralmente.
O obstáculo de acesso decorrerá, portanto, de ajuste entre um empresário e o
fornecedor do insumo, em detrimento de concorrente do primeiro e adquirente
do segundo.
VI — exigir ou conceder
exclusividade para divulgação
de publicidade nos meios de
comunicação de massa;
h) Exclusividade de publicidade — exigir ou conceder vínculo exclusivo
na veiculação de publicidade pode configurar infração da ordem econômica,
porque a exclusividade importa obstáculos à comunicação entre os demais
agentes econômicos. Ao obstar a livre veiculação de informações, com o intuito
de dominar mercado, eliminar a concorrência ou aumentar arbitrariamente os
lucros, o infrator atua em descompasso com as estruturas do mercado capitalista.
Podem incorrer na conduta infracional tanto o anunciante como o veículo de
comunicação (rádio, TV, jornal, cartazes externos etc.). Claro, no entanto, que a
exclusividade somente poderá decorrer de acordo entre esses agentes
econômicos. O simples fato de um empresário exigir a exclusividade, sem que
possua poder econômico para tornar séria a exigência, não tem qualquer
significado para o direito antitruste, já que não se estabelecerá nenhum obstáculo
ao livre trânsito das informações no mercado.
VII
—
utilizar
meios
enganosos para provocar a
oscilação de preços de
terceiros;
i) Oscilação de preços de terceiros — a utilização de meios enganosos
para provocar a oscilação de preços de terceiros, na tentativa de eliminar
concorrência, dominar mercados ou aumentar arbitrariamente os lucros é
infração da ordem econômica que caracteriza também o crime de concorrência
desleal, tipificado no inciso II do art. 195 da Lei n. 9.279/96, se tiver sido
efetivada por meio da veiculação, por qualquer meio, de informação falsa sobre
o concorrente.
A oscilação pode ser para baixo ou para cima, e nas duas hipóteses há a
possibilidade de prejuízos para a concorrência. Por vezes, a subida de preços de
terceiros desestimula o consumo de seus produtos ou serviços e, por vezes, a
queda dos preços pode comprometer a sua margem de lucros. De um modo ou
de outro, o meio enganoso ocasio-na ou pode ocasionar a retirada (ou mesmo o
não ingresso) de outros empresários no segmento de mercado que se pretende
dominar.
VIII — regular mercados de
bens ou serviços, estabelecendo
acordos para limitar ou
controlar a pesquisa e o
desenvolvimento tecnológico, a
produção de bens ou prestação
de serviços, ou para dificultar
investimentos destinados à
produção de bens ou serviços
ou à sua distribuição;
j) Regulação de mercado — a conduta infracional de regulação do
mercado pressupõe necessariamente a existência de atuação concertada entre
pelo menos dois agentes econômicos, não podendo ocorrer de modo unilateral.
São práticas restritivas colusivas, horizontais ou verticais. É necessário, para o
enquadramento da conduta na hipótese legal, que a regulação do mercado tenha
o sentido de limitação ou controle de tecnologia, da própria produção, da
distribuição ou do financiamento dessas. Se agentes econômicos padronizam os
critérios de avaliação de desempenho, por exemplo, sem que a regulação
ultrapasse os limites da organização interna das respectivas empresas, não se
caracteriza qualquer infração.
IX — impor, no comércio de
bens
ou
serviços,
a
distribuidores, varejistas e
representantes,
preços
de
revenda, descontos, condições
de pagamento, quantidades
mínimas ou máximas, margem
de lucro ou quaisquer outras
condições de comercialização
relativos a negócios destes com
terceiros;
k) Imposição de condições a distribuidores — a imposição de condições a
distribuidores é modalidade de restrição vertical, porque envolve agentes
econômicos que se relacionam em fases diferentes da cadeia de produção e
circulação de mercadorias, como, por exemplo, concedente e concessionários,
franqueador e franqueados, industrial e seus revendedores etc. Não configura o
ilícito a previsão contratual de quotas mínimas ou máximas de mercadorias a
serem adquiridas pelos distribuidores, limitação da margem de lucro, descontos
ou condições diferenciadas de negócio, ou qualquer outro fator relativo
exclusivamente ao vínculo contratual existente entre o empresário e seus
revendedores. A imposição deve dizer respeito aos negócios desses últimos com
terceiros (em geral, consumidores), conforme estabelece claramente o texto
legal. Aliás, para determinados setores da produção, o próprio direito positivo
preceitua a fixação de quotas de bens para a compra pelo distribuidor. É o que
ocorre, exemplificando, com a concessão comercial de veículos automotores
terrestres (Lei n. 6.729/79, art. 6º).
A ilicitude preceituada na norma refere-se à ingerência não prevista em
contrato, do industrial ou atacadista nas relações jurídicas e negociais entre os
seus distribuidores e terceiros adquirentes. É, por exemplo, conduta ilícita do
vendedor sujeitar os distribuidores a não revenderem seus produtos a outros
agentes econômicos, normalmente consumidores, que não se dispuserem a
adquirir quantidade mínima das mercadorias distribuídas.
Na franquia, como visto, é ínsito ao sistema, entre outras condutas
empresariais padronizadas, o desenvolvimento de promoções conjuntas, muitas
das quais sustentadas em descontos uniformemente concedidos aos consumidores
por toda a rede, durante o prazo da promoção. Nenhum franqueado pode deixar
de conceder exatamente o mesmo desconto, porque a uniformização de conduta
empresarial é inerente à própria estrutura da franquia.
X — discriminar adquirentes
ou fornecedores de bens ou
serviços por meio da fixação
diferenciada de preços, ou de
condições operacionais de
venda
ou
prestação
de
serviços;
l) Discriminação de adquirentes ou fornecedores — a repressão
administrativa à prática diferenciada de preços, no direito brasileiro, ao contrário
do que se verifica, por exemplo, nos Estados Unidos, somente tem base jurídica
no contexto da tutela das estruturas do livre mercado. Isto é, a diferenciação será
ilícita apenas se visar a eliminação de concorrência, domínio de mercado ou
aumento arbitrário de lucros. Qualquer outra forma de diferenciação ou
discriminação, nas relações entre empresários, deslocada do contexto das
práticas restritivas de mercado, será plenamente lícita, ainda que baseada apenas
em critérios subjetivos. Aliás, como visto anteriormente, é usual conceder-se
tratamento diferenciado a revendedores, a partir de critérios exclusivamente
subjetivos.
A diferença de preços pode se basear também em critérios objetivos,
dizendo respeito a descontos concedidos em função da quantidade de
mercadorias adquiridas, ou do momento do pedido. Assim, pode o empresário
vender seus produtos a preço unitário cotados em relação indireta com o volume
de mercadorias solicitadas (quanto maior este, menor aquele), ou garantindo
descontos apenas àqueles adquirentes que solicitam mercadorias todos os meses
do ano. Também em relação às diferenciações fundadas em critério objetivo, o
direito brasileiro exige a contextualização nas práticas restritivas para a
caracterização da infração. Quer dizer, somente estarão presentes os elementos
do tipo infracional se a prática de preços diferenciados tiver por objetivo a
limitação da concorrência, o domínio de mercado ou o aumento arbitrário dos
lucros.
Estão alcançadas também pela norma definidora da infração da ordem
econômica as assim chamadas discriminações indiretas, caracterizadas pela
uniformização do preço nominal pago por todos os compradores, acompanhada
da concessão de vantagens adicionais, como serviços, somente a parte dos
compradores (cf. Sullivan-Harrison, 1988:318/319).
XI — recusar a venda de bens
ou a prestação de serviços,
dentro das condições de
pagamento normais aos usos e
costumes comerciais;
m) Recusa de fornecimento — o princípio da autonomia da vontade sofreu,
na passagem do capitalismo inferior para o superior, uma considerável restrição.
De fundamento universal para as obrigações imputáveis às pessoas,
paulatinamente reservou-se ao princípio apenas a margem estreita da
complementação de disposições normativas. No direito do trabalho, por exemplo,
pouquíssimos aspectos da relação de emprego são definidos pela vontade
específica do empregador e do empregado. No direito de tutela dos
consumidores, o fornecedor não pode se recusar a vender os produtos ou prestar
os serviços aos consumidores (CDC, arts. 35 e 39, IX). Nas relações de direito
comercial, no entanto, continua em plena vigência o princípio da autonomia da
vontade. Nenhum empresário é obrigado, por qualquer norma jurídica em vigor
no Brasil, a contratar a venda de suas mercadorias ou a prestação de seus
serviços com outro empresário intermediário do fornecimento. O fabricante tem
o direito de simplesmente não querer vender os seus produtos a determinado
comerciante, por motivos subjetivos, particulares, pessoais, que somente lhe
dizem respeito.
Apenas se configura ilícita a recusa de venda se ela é o instrumento de
política empresarial restritiva; quer dizer, se, pela recusa, puder se verificar o
efeito de eliminação da concorrência, domínio de mercado ou aumento
arbitrário de lucros, então haverá infração da ordem econômica. Caso não
ocorram esses efeitos, sequer potencialmente, a recusa de venda não tem
importância para o direito antitruste.
XII — dificultar ou romper a
continuidade
ou
desenvolvimento de relações
comerciais
de
prazo
indeterminado em razão de
recusa da outra parte em
submeter-se a cláusulas e
condições
comerciais
injustificáveis
ou
anticoncorrenciais;
n) Dificultação ou rompimento de relação comercial — a previsão como
infracional da conduta de dificultação ou rompimento de relação comercial,
motivada pela resistência do outro contratante em se submeter a cláusulas e
condições comerciais injustificáveis ou anticoncorrenciais, é indispensável à
proteção dos agentes econômicos que procuram ajustar suas condutas às regras
estruturais do livre mercado. Se não existisse a previsão, o empresário que se
recusasse a aderir a condutas restritivas impostas por seus fornecedores ou
adquirentes, estaria desprotegido. Isso serviria, na verdade, como verdadeira
motivação à ampliação das práticas restritivas, já que a lei deixaria ao desabrigo
os agentes econômicos com interesse na preservação da liberdade de
competição.
XIII — destruir, inutilizar ou
açambarcar matérias-primas,
produtos intermediários ou
acabados, assim como destruir,
inutilizar ou dificultar a
operação de equipamentos
destinados
a
produzi-los,
distribuí-los ou transportá-los;
o) Destruição, inutilização ou açambarque de insumo — a infração da
ordem econômica desenhada no inciso XIII do § 3º do art. 36 da Lei n.
12.529/2011 parece ter sido inspirada em famoso caso do direito antitruste
brasileiro, que ficou conhecido como a “guerra das garrafas”. Conforme relata
Frontini (1974), duas fábricas de refrigerantes competiam pelo mercado de certa
região do Rio Grande do Sul, e uma delas percebeu que os vasilhames de seu
produto e os engradados não retornavam após o consumo. Isso porque a outra
empresa retirava os vasilhames de circulação e os destruía, reaproveitando os
engradados com a adulteração da marca. O CADE considerou a prática abusiva
de criação de dificuldades à constituição, ao funcionamento e ao
desenvolvimento de empresa.
XIV — açambarcar
impedir a exploração
ou
de
direitos
de
propriedade
industrial ou intelectual ou de
tecnologia;
p) Obstáculos à exploração ou açambarque de direitos intelectuais —
Franceschini, em percuciente estudo referente ao abuso do poder econômico
exercido por meio dos contratos de tecnologia (em Franceschini-Franceschini,
1985:609/620), aponta dois aspectos na questão da circulação dos bens imateriais:
o estático, referente à não utilização ou não exploração intencional, em
detrimento do interesse coletivo; e o dinâmico, consistente na outorga de licença
ou cessão de direito industrial em termos anticoncorrenciais. Ainda segundo a
lição de Franceschini, o desuso de direito industrial materializado em patente
pode caracterizar abuso do poder econômico, principalmente quando a empresa
detentora de certa tecnologia e com presença proeminente no mercado em que é
empregada empenha-se em adquirir as demais patentes exploráveis nesse
mercado, alcançando status monopolístico por via oblíqua. É a hipótese de
açambarque de direito industrial, mencionado pela Lei Antitruste. Sob o aspecto
dinâmico, lembra Franceschini que a licença ou cessão de direitos industriais
pode ficar condicionada a práticas restritivas da concorrência, tais como
restrições ao licenciado ou cessionário, preço dos produtos beneficiados com a
tecnologia, proibição de venda a concorrente etc. Mesmo a circulação de registro
de marca pode servir a práticas anticoncorrenciais, como meio de divisão de
mercados por exemplo (Franceschini-Franceschini, 1985:616). Tanto os
mecanismos estáticos como os dinâmicos de utilização anticoncorrencial de
direitos industriais são puníveis como infração da ordem econômica pela atual
legislação antitruste.
XV — vender mercadoria ou
prestar
serviços
injustificadamente abaixo do
preço de custo;
q) Venda a preço inferior ao custo — a venda de mercadoria abaixo do
preço de custo (preço predatório) representa necessariamente prejuízo, em
termos marginais; mas não é comumente praticada se chegar a comprometer a
lucratividade da empresa, em termos globais. Ou seja, o empresário próspero
apenas vende seus produtos a preço inferior ao respectivo custo como meio de
alcançar posições no mercado que lhe garantam, no futuro, a reposição de
perdas temporárias e localizadas. O objetivo da prática, normalmente, é o de
aumentar os custos de competição no mercado e desencorajar competidores. Se
o empresário pratica preços de certas mercadorias inferiores ao correspondente
custo, os concorrentes são forçados a baixar os seus preços também. Aqueles que
ainda não amortizaram o investimento para ingresso naquele mercado terão
maiores dificuldades em competir, os interessados em explorar a mesma
atividade são desestimulados, tendo em vista a ampliação do prazo de
amortização do investimento inicial. Anotam os autores que a simples ameaça de
drástica redução de preços, por vezes, já é suficiente para afastar outros
empresários da competição (Denozza, 1988:63/64 e 111/113).
XVI — reter bens de produção
ou de consumo, exceto para
garantir a cobertura de custos
de produção;
r) Retenção de bens — a retenção de bens de produção ou de mercadorias
pode ser expediente utilizado em práticas restritivas, principalmente em negócios
de empreitada na construção civil. A ressalva legal diz respeito à garantia do
cumprimento de obrigações, referentes à cobertura dos custos da produção,
hipótese em que a retenção não configura ilícito. Importa relembrar, contudo,
que a retenção de bens, para configurar conduta infracional, deve produzir os
efeitos constitucionalmente considerados lesivos às estruturas do livre mercado
(isto é, a eliminação da concorrência, o domínio de mercado e o aumento
arbitrário dos lucros). Se não estiver vinculada a esses efeitos, a retenção gera
apenas responsabilidades de direito privado entre os contratantes.
XVII — cessar parcial ou
totalmente as atividades da
empresa sem justa causa
comprovada;
s) Cessação de atividade de empresa — é bastante característica a prática
restritiva consistente na aquisição de empresas concorrentes, com o objetivo de
paralisar a exploração de atividade econômica. Configura já infração da ordem
econômica a simples cessação de determinadas linhas de produção, mesmo sem
a dissolução de sociedade empresária, caso evidentemente esteja relacionada
com os efeitos referidos pelo art. 20 da Lei Antitruste. As justas causas para a
cessação de atividade empresarial podem ser econômicas, relacionadas com a
minoração das perspectivas de lucro, aumento dos custos, redirecionamento das
atividades do empresário etc. Somente não são justificáveis as cessações que
objetivam a eliminação da concorrência, domínio de mercado ou aumento
arbitrário dos lucros, referidas no fundamento constitucional da repressão ao
abuso do poder econômico.
XVIII — subordinar a venda
de um bem à aquisição de outro
ou à utilização de um serviço,
ou subordinar a prestação de
um serviço à utilização de
outro ou à aquisição de um
bem;
t) Vendas casadas — a venda casada (tying agreement) significa a
subordinação da venda de um produto à compra de outro, ou à utilização de
determinado serviço, ou ainda a subordinação da prestação de serviço à
utilização de outro ou à aquisição de certo bem. O Código de Defesa do
Consumidor havia já considerado essa prática comercial como abusiva (art. 39,
I), mas esse diploma, com o âmbito de incidência restrito às relações de
consumo, não se aplica aos negócios entre empresários. A venda casada na
relação de direito comercial não é, em si mesma, ilícita. Será infração da ordem
econômica somente se inserida no contexto das práticas restritivas, voltadas à
eliminação da concorrência, domínio de mercados ou aumento arbitrário dos
lucros. Essa prática pode estar ligada à conquista do domínio de certo mercado, a
partir da posição dominante já consolidada em outro. É o que se denomina teoria
da alavanca: valendo-se de operações casadas, o empresário que domina a
produção pode, inclusive, estender o seu domínio para o setor da distribuição,
exemplifica Denozza (1988:101/110).
A venda casada pode também se caracterizar indiretamente. Imagine-se
o fabricante de dois diferentes produtos que, para enfrentar a concorrência do
fabricante de apenas um deles, resolve aglutiná-los para torná-los materialmente
indissociáveis. O fornecimento do novo produto alcança, em concreto, os
mesmos efeitos lesivos às estruturas do livre mercado que a venda casada,
devendo ser considerado infracional, também.
XIX — exercer ou explorar
abusivamente
direitos
de
propriedade
industrial,
intelectual,
tecnologia
ou
marca.
u) Exercício abusivo de direitos — o exercício abusivo de direitos é
definido legalmente como ato ilícito (CC, art. 187). A legislação antitruste
exemplifica a infração da ordem econômica com essa hipótese, fazendo
referência aos direitos de propriedade industrial, intelectual, tecnologia ou marca.
Desse modo, se o empresário, por exemplo, explora patente de invenção de sua
titularidade não com o objetivo exclusivo de auferir lucros de certa atividade
econômica, mas como instrumento de dominação de mercado ou eliminação da
concorrência, incorre em ilícito anticoncorrencial.
6. SANÇÕES POR INFRAÇÃO DA ORDEM ECONÔMICA
A legislação antitruste tem, basicamente, a natureza de estatuto de direito
administrativo. Por meio dela, o Poder Executivo Federal pode exercer um dos
mais importantes aspectos da política econômica de governo, voltado à
preservação das estruturas da livre competição. As infrações da ordem
econômica correspondem, assim, a ilícitos administrativos.
A lei prevê duas ordens de sanções administrativas: as de natureza
pecuniária (art. 37) e as de natureza não pecuniária (art. 38). No primeiro caso,
podem ser impostas sanções de multa contra a pessoa jurídica empresarial (com
valor baseado no faturamento bruto da empresa) e também contra o seu
administrador (proporcional à imposta à pessoa jurídica). Como o abuso do poder
econômico pode ser perpetrado por pessoa física, pessoa jurídica não
empresarial (uma associação profissional ou pessoa jurídica de direito público,
por exemplo) ou ente despersonalizado, a lei também cuida de multa em valor
fixo, independentemente do faturamento. Quanto às sanções não pecuniárias,
elas envolvem medidas como a publicação de notícia sobre a ocorrência de
prática anticoncorrencial, a inscrição do infrator no Cadastro Nacional de Defesa
do Consumidor, a proibição de participar de licitação e outras.
As infrações da ordem
econômica são sancionadas, em
nível administrativo, mediante
a
aplicação
de
penas
pecuniárias e não pecuniárias.
Pode ocorrer de a mesma conduta empresarial caracterizar infração da
ordem econômica e, também, crime contra a ordem econômica. Isso se verifica
quando a conduta, a um só tempo, é descrita pelo art. 36 da Lei n. 12.529/2011 e
pelos arts. 4º a 6º da Lei n. 8.137/90. Nessa hipótese, sobrepõem-se as sanções
administrativa e penal. Note-se que não há exata similitude entre uma e outra
categoria de ilícitos; quer dizer, pode se verificar de o empresário sancionado por
infração da ordem econômica não cometer crime algum, e vice-versa.
No entanto, se há situações em que a infração da ordem econômica não é
acompanhada em tese da tipificação de conduta criminosa, isso não se repete no
campo da responsabilidade civil. Isto é, uma vez caracterizada a conduta
infracional do empresário, estará ele sujeito à sanção administrativa (imposta
pelo CADE) e também à responsabilização civil em juízo. Claro que a prova dos
fatos deve ser produzida pela autoridade administrativa, na primeira hipótese, e
pelo demandante, na segunda; e se a Superintendência-Geral do CADE não
provar a infração no processo administrativo, mas o autor a provar em juízo,
poderá ocorrer de o empresário absolvido no Tribunal Administrativo da Defesa
Econômica vir a ser responsabilizado judicialmente; ou vice-versa. Uma questão
é a caracterização em tese da conduta infracional — quando não se pode
distinguir hipótese de responsabilização em apenas uma das esferas, civil ou
administrativa; outra questão é a prova de que determinado empresário incorreu
em tal conduta — quando a autoridade administrativa e o juiz podem chegar a
conclusões diferentes.
De fato, a possibilidade de o lesado por infração da ordem econômica
demandar perdas e danos do empresário infrator está especificamente prevista
pelo art. 47 da Lei Antitruste, que assegura o mesmo direito também aos
legitimados para a tutela de interesses individuais homogêneos, difusos e
coletivos. A prova da conduta infracional é ônus do autor da demanda, em
qualquer hipótese (isto é, tanto no caso de ação promovida pelo sujeito direta e
individualmente lesado, como no de ação para tutela de interesses individuais
homogêneos, difusos e coletivos). A imposição de penalidade administrativa
contra o empresário demandado não é condição para o exercício da ação
judicial de indenização, mas apenas um consistente elemento de prova. Quer
dizer, se o lesado ou o legitimado aguardarem a conclusão do processo
administrativo no CADE, antes de ingressarem com a ação de indenização civil,
terão vantagem tanto na hipótese em que sobrevier sancionamento
administrativo, como na oposta. Ocorrendo punição, o lesado ou o legitimado
poderão se valer deste resultado no âmbito administrativo, para facilitar
enormemente o desencargo probatório que lhes cabe na esfera civil, já que a
autarquia antitruste terá esmiuçado os fatos de alta complexidade econômica e
delineado as irregularidades. No caso de ausência de penalização, isto deve servir
de alerta sobre os riscos de insucesso da demanda civil, posto que o demandado
possui elementos demonstrativos da licitude de sua prática empresarial.
7. CONTROLE PREVENTIVO DOS ATOS DE CONCENTRAÇÃO
EMPRESARIAL
No início da década de 1990, com o Plano Collor, o Brasil alterou um
aspecto fundamental de sua política econômica relacionada ao comércio
exterior. Com a introdução do câmbio flutuante e a eliminação do controle
quantitativo como barreira alfandegária, deu-se início à superação do modelo de
“substituição das importações”. Esse modelo havia tentado, desde o fim da
segunda guerra, redefinir o papel de nosso país no contexto mundial, por meio do
desenvolvimento de parque industrial próprio. A antiga colônia pretendeu, por
cerca de quatro décadas, poder alterar sua posição de tradicional fornecedora de
insumos e importadora de bens de consumo.
Ao abandonar o projeto de “substituição das importações”, o Brasil aposta
que os laços de dependência, herdados de seu antigo estatuto de colônia, podem
ser rompidos com sua inserção na economia globalizada do final do século XX.
Acredita que a criação de grandes mercados comuns regionais (no nosso caso, o
Mercosul) pode acabar rompendo a divisão entre o centro e a periferia do
sistema capitalista. De outro lado, com a falência do modelo socialista de
planificação da produção, o estado brasileiro — a exemplo da maioria dos
estados capitalistas — pôde se permitir uma retração, em sua interferência na
economia.
Nesse contexto econômico, uma consequência mostrou-se inevitável: o
aumento da competição entre os empresários atuantes no nosso país.
O direito antitruste brasileiro foi extremamente sensível a essa mudança
no cenário econômico. Desde a sua criação, em 1962, até a reformulação de
1994, ele assumira inegavelmente a forma de um direito repressivo. Era
costume, inclusive, denominá-lo “direito penal econômico” (p. ex.: Carvalho,
1986), expressão hoje abandonada. Mesmo o texto de 1994 refletia, ainda, essa
forma, com a predominância de dispositivos reguladores da repressão à infração
da ordem econômica, em relação às normas de caráter preventivo. A aplicação
da lei, contudo, em razão das mudanças na economia, acabou invertendo a
equação: o CADE passa a se dedicar muito mais à apreciação dos atos de
concentração do que ao julgamento dos processos administrativos sobre condutas
infracionais. Assumia, assim, a autarquia, paulatinamente, a posição de agente
governamental de disciplina das condições de estruturação do livre mercado,
abandonando a de mero órgão repressor. A reforma da lei antitruste de 2011
reflete a nova feição assumida pelo CADE nos quinze anos anteriores.
A partir do esgotamento do
modelo de “substituição das
importações”, acirrou-se a
concorrência econômica no
Brasil. O CADE, de órgão
essencialmente
repressor,
passa a atuar cada vez mais
como agência de disciplina da
livre
competição.
Ganha
destaque, então, a função
preventiva do Conselho, na
aprovação
de
atos
de
concentração empresarial.
O exame do controle preventivo dos atos de concentração econômica não
se fará no presente capítulo. Ele fica melhor nos dedicados aos atos societários
que podem viabilizar limitação ou prejuízo à concorrência, ou domínio de
mercado relevante (Cap. 43, item 3).
8. COMPROVAÇÃO DA CONCORRÊNCIA ILÍCITA
São, como visto, dois os institutos repressores da concorrência ilícita: o
relacionado à tutela da clientela e à propriedade industrial, que coíbe a
deslealdade entre os empresários concorrentes (LPI, art. 209), e o voltado à
preservação das estruturas da economia de livre mercado, que pune as infrações
da ordem econômica (Lei n. 12.529/2011). Raramente, a mesma prática
empresarial caracteriza tanto concorrência desleal como infração da ordem
econômica. Somente em situações específicas — como na utilização de meios
enganosos para promover a oscilação dos preços de concorrente —, ambas as
modalidades de concorrência ilícita se configuram. Em geral, o empresário ou
queria conquistar a clientela de concorrente ou concorrentes e, para tanto, lançou
mão de meios inidôneos (incorrendo em concorrência desleal), ou pretendia
valer-se de seu poder de mercado para dificultar ou impedir a competição, em
prejuízo da “coletividade” (praticando, então, infração da ordem econômica).
Desse modo, em raras oportunidades caberá a aplicação simultânea das sanções
estabelecidas pelos dois diferentes sistemas repressivos da concorrência
irregular.
A caracterização da concorrência desleal, conforme visto acima (item 2),
não se pode fazer com recurso aos objetivos ou aos efeitos de determinada
prática empresarial. É de todo irrelevante, para os fins de imputar ao empresário
responsabilidade civil por concorrência desleal, a discussão sobre os objetivos
pretendidos ou sobre os efeitos alcançados. Tanto na concorrência legítima,
como na desleal, o empresário quer a mesma coisa: subtrair fatias de mercado
de concorrentes; tanto numa como noutra, os efeitos são os mesmos: ganho para
um e perda para outro concorrente.
Se não são os objetivos, nem os efeitos, que caracterizam a concorrência
desleal, então se deve direcionar a pesquisa para os meios empregados.
Há, em outras palavras, meios idôneos e meios inidôneos de conquistar
consumidores, em detrimento de concorrentes. Será pela análise dos recursos
utilizados pelo empresário, que se poderá identificar a deslealdade competitiva.
Nesse sentido, quando utilizado meio desonesto, imoral ou condenável pelas
práticas usuais dos empresários, configura-se a ilicitude; utilizado, no entanto,
meio honesto, moral e aceito pelas práticas usuais dos empresários, nunca se
poderá configurar a concorrência desleal.
A concorrência desleal se
demonstra pela análise dos
meios
empregados
pelo
empresário para conquistar
clientela.
Se não é condenável o meio
empregado por um determinado
empresário, na conquista de
fatias
de
mercado,
simplesmente
não
há
concorrência desleal.
Em outros termos, como são irrelevantes as referências às finalidades da
prática empresarial e aos seus objetivos, na caracterização da concorrência
desleal — já que idênticos tais elementos aos que se encontram em qualquer
competição econômica, inclusive as legítimas, regulares e leais —, então a
atenção se deve voltar à análise da idoneidade do meio. Mas o meio não pode ser,
neste contexto, idôneo para uns, e inidôneo para outros; idôneos para certos
objetivos, inidôneos para objetivos diversos; idôneos se produz efeitos
socialmente relevantes, inidôneos se não os produz.
Ou o meio, em si considerado, é desonesto, imoral ou condenado pelas
práticas usuais dos empresários, e então se configura a concorrência desleal em
qualquer situação; ou o meio é honesto, moral e aceito pelas práticas usuais dos
empresários, e não se configura esse tipo de ilícito concorrencial, quaisquer que
sejam as pessoas, objetivos e efeitos envolvidos. Assente-se, pois, que o ato de
concorrência desleal se demonstra pela prova de que o empresário se valeu, na
conquista de fatias de mercado, de instrumentos desonestos, imorais e repudiados
pela generalidade dos empresários.
Já a infração da ordem econômica se caracteriza por algumas formas de
abuso de posição dominante em determinado segmento de mercado; quais
sejam, as práticas empresariais que, por restringirem ou eliminarem a
concorrência, ou importarem aumento arbitrário de preços, comprometem a
organização liberal da economia.
Foi mencionado no estudo dessa modalidade de concorrência ilícita que é
a própria Constituição Federal que define as práticas anti- concorrenciais puníveis
(CF, art. 173, § 4 º). À lei ordinária somente cabe reprimir o abuso de poder
econômico que tenha certas finalidades: a dominação dos mercados, a
eliminação da concorrência ou o aumento arbitrário dos lucros. As demais
formas de exercício do poder econômico — que não comprometam a própria
concorrência — inserem--se no campo das condutas lícitas, juridicamente
ancoradas no princípio geral de livre-iniciativa e competição (CF, art. 170).
A caracterização da infração da ordem econômica, portanto, se faz pela
análise dos objetivos e efeitos relacionados a determinada prática empresarial. Se
o pretendido ou o resultante da prática enquadra-se nas referências do art. 173, §
4º, da Constituição Federal — quer dizer, seus efeitos importam dominação de
mercado, limitação da concorrência ou aumento arbitrário de lucros —, então se
verifica essa forma de concorrência ilícita, cabendo a responsabilização civil do
infrator.
No caso de demonstração da infração da ordem econômica, deve--se
inverter a equação da concorrência desleal. Se para a caracterização desta
última, o que interessa é o meio empregado e a discussão de sua inidoneidade,
em contraste com as práticas usuais dos empresários, para a primeira, o
relevante são os objetivos e os efeitos da conduta. O emprego de um mesmo
meio pode dar ensejo à infração da ordem econômica, ou não; depende dos
efeitos, potenciais ou concretos, dele derivados.
A demonstração da infração
da ordem econômica se faz pela
análise dos objetivos do
empresário titular de poder
econômico, e dos efeitos que a
prática concorrencial poderia
produzir ou, de fato, produziu.
É
irrelevante
o
meio
empregado.
Deste modo, conclui-se que a inidoneidade do instrumento empregado na
conquista de fatias do mercado é o elemento essencial para a caracterização da
concorrência desleal, enquanto a dominação de mercado, eliminação da
concorrência ou aumento arbitrário dos lucros, por quaisquer meios, é o da
infração da ordem econômica.
Há outros elementos, no entanto, que, embora não se revistam da mesma
essencialidade, poderiam também ser lembrados na distinção entre os dois
sistemas de repressão à concorrência ilícita. A concorrência desleal é sempre ato
culposo, enquanto a infração da ordem econômica independe, para a sua
configuração, de culpa. De fato, como espécie de abuso de direito que se
viabiliza mediante um meio necessariamente imoral ou desonesto, não existe
concorrência desleal sem culpa. Não pode existir. Já a infração da ordem
econômica independe de tal ingrediente. A análise dos efeitos que determinada
conduta provoca — ou poderia provocar — no mercado relevante é objetiva.
Por fim, a concorrência desleal, em razão de seus efeitos pontuais,
normalmente se justifica pela existência de um fato particular, envolvendo
especificamente demandante e demandado, ao passo que a infração da ordem
econômica, por seus efeitos amplos, se justifica em geral por razões de maior
relevância para a economia. Raramente se encontra, nos fatos típicos da
concorrência desleal, referência a assuntos macroeconômicos, como abertura de
mercados nacionais, alterações na política de câmbio, implantação de mercados
comuns regionais. Do mesmo modo, são incomuns relatos do histórico de uma
certa e localizada relação negocial, e dos seus problemas de alcance restrito aos
diretamente envolvidos, como elementos configuradores da infração da ordem
econômica.
9. DISCIPLINA CONTRATUAL DA CONCORRÊNCIA
É comum os empresários, em seus contratos, inserirem cláusulas em que
regulam os respectivos interesses, no tocante à competição econômica entre eles.
Quando se estudou a alienação do estabelecimento empresarial (Cap. 5), foi feita
referência à cláusula de não restabelecimento, em que o alienante se
compromete a não concorrer com o adquirente. Essa cláusula, no caso do
contrato de trespasse, é indispensável para a preservação da integridade do
potencial econômico do bem alienado, já que, na hipótese de o alienante
concorrer com o adquirente, parte do potencial — senão todo ele — é
comprometido pelo desvio de clientela. Outro exemplo é a cláusula restritiva de
concorrência inserida nos contratos de locação de loja em shopping center, pela
qual o locatário se compromete a não se estabelecer nas cercanias do complexo,
de forma a se afastar a concorrência autofágica (cf. Comparato, 1995). De fato,
há entre o empreendedor do shopping e os locatários nele estabelecidos um
determinado grau de parceria, que justifica e pressupõe a limitação.
As cláusulas contratuais de disciplina da concorrência podem ou não ser
válidas, de acordo com uma série de fatores, a serem especificamente
analisados. Para a análise, o critério mais relevante é o da preservação do livre
mercado. Ou seja, as partes podem disciplinar o exercício da concorrência entre
elas, desde que não a eliminem por completo. Em outros termos, a validade da
disciplina contratual da concorrência depende da preservação de margem para a
competição (ainda que futura) entre os contratantes; ou seja, da definição de
limites materiais, temporais e espaciais. Em concreto, a vedação não pode dizer
respeito a todas as atividades econômicas, nem deixar de possuir delimitações no
tempo ou no espaço.
É válida a cláusula contratual
de não concorrência quando
estabelece limites materiais,
geográficos e temporais. A
proibição
irrestrita
da
competição
entre
os
contratantes não vale porque
significa
desrespeito
ao
princípio
básico
de
organização da economia de
livre mercado.
Em relação aos limites materiais, observa-se que a cláusula disciplinando
a concorrência é inválida, se impede o contratante de explorar qualquer atividade
econômica. A restrição deve necessariamente se circunscrever a determinados
ramos de comércio, indústria ou serviços. Para as demais atividades, as partes
ficam livres de qualquer obrigação (de não fazer). A propósito da restrição
material, deve-se também considerar inválida a cláusula que impeça o
contratante pessoa física de exercer a sua profissão. Por exemplo, o sócio que se
desliga de sociedade de engenheiros pode, no instrumento de cessão de cotas,
ficar impedido de competir com a sociedade, desde que os termos contratados
não alcancem todas as atividades de engenharia para as quais o retirante se
encontra profissionalmente habilitado ou preparado.
Também é inválida a cláusula que vede a concorrência para sempre ou
em qualquer lugar. Limites temporais ou espaciais são exigidos, para que a
restrição contratada não importe eliminação total da concorrência. Trata-se,
aqui, de uma alternativa inclusiva; quer dizer, o contrato pode prever limite no
tempo e no espaço, ou só num deles. A restrição contratual limitada apenas
geograficamente se considera feita para sempre, enquanto a limitada apenas no
tempo alcança todos os mercados (Ripert-Roblot, 1947:350). A invalidade existe
quando não há simultaneamente limite temporal e espacial. É igualmente
inválida a cláusula de não concorrência que estabelece prazo demasiado longo,
ou defina limites espaciais exagerados, que ultrapassam o potencial de conquista
de mercado que as partes possuem. Desse modo, é nula a cláusula de não
estabelecimento que o empreendedor de shopping center, para evitar a
concorrência autofágica, contrata com os lojistas, quando os limites territoriais
nela referidos extrapolam os do mercado sobre o qual pode exercer atração.
O exame da validade da cláusula de disciplina da concorrência também
comporta outro ângulo de abordagem. Há, como se assentou acima, duas
modalidades de concorrência ilícita: a desleal e a infração da ordem econômica.
Se a cláusula examinada não instrumentaliza nenhuma dessas modalidades, ela é
válida; caso contrário, não.
O desrespeito pelo contratante da cláusula de disciplina da concorrência
— a chamada concorrência antinegocial — gera responsabilidade contratual, ou
seja, o dever de indenizar as perdas e danos sofridos pela outra parte. Esta
infringência aos termos pactuados não importa necessariamente concorrência
desleal (cf. Miranda, 1956, 17:313). De fato, a cláusula de não concorrência pode
ser descumprida pelo contratante, mesmo por meio de concorrência leal, isto é,
sem o uso de meios inidôneos de exploração da atividade econômica.
Capítulo 8
A ATIVIDADE EMPRESARIAL E A QUALIDADE DO FORNECIMENTO DE
BENS E SERVIÇOS
1. FORNECIMENTO SEM Q UALIDADE
A responsabilidade dos empresários no tocante à qualidade do
fornecimento de produtos e serviços é disciplinada no Código de Defesa do
Consumidor (Lei n. 8.078/90). Para a sistematização dessa disciplina, cabe lançar
mão de três conceitos (fornecimento perigoso, defeituoso ou viciado),
correspondentes a diferentes situações jurídicas. Embora elas se entrelacem e se
sobreponham em alguns momentos, devem ser distinguidas para possibilitar a
compreensão sistemática do tema.
1.1. Falta de Q ualidade por Periculosidade
Todo fornecimento apresenta alguma periculosidade em potencial.
Qualquer produto ou serviço pode oferecer, em maior ou menor grau, risco aos
seus consumidores. Até o mais inofensivo ursinho de pelúcia pode se tornar letal
ao bebê que engolir o olhinho de plástico desprendido do brinquedo. Já uma faca,
embora possa servir de arma letal, nem por isso se caracteriza juridicamente
como perigosa. Por outro lado, produtos destinados a garantir a segurança do
consumidor, se forem utilizados inadequadamente, tornam-se perigosos. É o
caso, por exemplo, do cinto de segurança que estrangula o passageiro que, no
momento do impacto, utilizava o dispositivo com o banco totalmente reclinado. É,
também, o caso do air bag que, acionado, pode sufocar crianças acomodadas no
banco dianteiro do veículo.
O conceito de produto e serviço perigoso, portanto, deve circunscrever
aqueles cuja periculosidade gera a responsabilização do empresário. Isto é, já
que todos os fornecimentos de produtos ou serviços trazem em si risco potencial,
o conceito jurídico de periculosidade não se pode delinear apenas em função dos
perigos a que materialmente se expõem os seus consumidores, mas pela
existência ou não de responsabilidade dos empresários pela indenização
decorrente de acidente de consumo.
O primeiro aspecto a acentuar na definição de periculosidade é a lesão à
vida, integridade física ou patrimônio do consumidor. Se do uso do produto ou
serviço não sobrevier dano ao consumidor, não se caracteriza juridicamente o
perigo no fornecimento. É o caso, por exemplo, de produtos acionados por
energia nuclear, mas providos de adequados sistemas de segurança. Outro
aspecto relevante é a inexistência de defeito, seja em sua concepção, execução
ou comercialização. Se o dano experimentado pelo consumidor decorre de
impropriedade do produto ou serviço, então a questão não é pertinente à sua
periculosidade, mas sim à defeituosidade. O produto de limpeza que irrita a pele
de determinadas pessoas alérgicas não apresenta qualquer defeito, mas
eventualmente pode se caracterizar como perigoso se o empresário tinha como
detectar esse efeito nocivo do fornecimento, para fins de informar os
consumidores, e não o fez. Essa distinção pode repercutir na extensão da
responsabilidade do empresário.
Finalmente, para a conceituação de fornecimento perigoso interessa
averiguar a suficiência das informações acerca de riscos prestadas pelo
fornecedor e eventual má utilização do produto ou serviço pelo consumidor.
Aqui, estamos no cerne da questão. Se o produto ou serviço não defeituoso causar
dano ao consumidor, deve-se investigar se esse decorreu de sua má utilização,
hipótese em que não se caracteriza a periculosidade. Fabricantes de faca não
respondem pelos cortes produzidos pela cozinheira em sua mão.
A caracterização de um certo
produto ou serviço como
perigoso depende da análise
das
informações
que
o
consumidor possui sobre os
riscos relacionados à sua
utilização.
Juridicamente
falando, nenhum produto ou
serviço é, em si mesmo,
perigoso.
A inadequação da conduta do consumidor é mensurada a partir das
informações prestadas pelo fornecedor acerca do grau de risco existente no
produto ou serviço. Claro que o empresário está dispensado de veicular
informação sobre conhecimento já vulgarizado entre os consumidores, por
exemplo sobre os riscos relacionados ao manuseio de tesouras pontiagudas. No
tocante aos conhecimentos não difundidos entre os consumidores, contudo, as
informações devem ser capazes de orientar a segura utilização do produto ou
serviço e, consequentemente, evitar lesão à saúde, integridade física ou interesse
patrimonial do consumidor. Anote-se que, por lei, o empresário está obrigado a
prestar ao consumidor não somente informações sobre os riscos, mas também
sobre a utilização do produto ou serviço.
Perigoso, portanto, é o fornecimento de produtos ou serviços sem
impropriedades, que causa dano aos consumidores em razão da insuficiência ou
falta de clareza das informações sobre riscos prestadas pelo empresário.
1.2. Falta de Q ualidade por Defeito
Entre o fornecimento perigoso e o defeituoso há, em comum, a
circunstância de ambos causarem dano à saúde, integridade física ou interesse
patrimonial dos consumidores. Distinguem-se, no entanto, quanto à origem do
evento danoso. No fornecimento perigoso, a razão dos prejuízos sofridos pelo
consumidor é a utilização indevida (mal orientada pelo fornecedor) do produto ou
serviço, enquanto no defeituoso aqueles prejuízos decorrem de alguma
impropriedade no objeto de consumo.
O conceito de defeito, para a doutrina, gravita em torno das expectativas
legitimamente esperadas pelo consumidor. Calvão da Silva não distingue, como
aqui proponho, defeito de perigo e, assim, considera defeituoso o produto que não
atende às expectativas objetivas do público em geral em relação à segurança
oferecida. Em outros termos, o defeito é decorrente da frustração daquilo que
normalmente os consumidores esperam do bem transacionado (1990:633/637).
Para Antonio Benjamin, os defeitos configuram vício de qualidade por
insegurança, que conceitua como a desconformidade à expectativa legítima do
consumidor e a capacidade de provocar acidentes (1991b:46/47). No meu modo
de entender a questão, defeito é conceito objetivo, que não se pode pautar em
expectativas dos usuários. Tanto Calvão da Silva como Benjamin pretendem que
a referência às expectativas dos consumidores médios, em detrimento das
nutridas pelos consumidores individualmente considerados, garantiriam
objetividade ao conceito. Para mim, no entanto, a frustração do que
legitimamente se espera da segurança do produto e do serviço a que se refere o §
1º, respectivamente, dos arts. 12 e 14 do Código de Defesa do Consumidor é uma
questão de natureza técnica. Não é o desatendimento da expectativa nutrida pelo
consumidor, concreta ou abstratamente considerado, que pode servir de critério à
definição da defeituosidade do fornecimento (cf. Will, 1990). A disparidade entre
o esperado e a realidade do produto ou serviço deve ser apontada pela ciência ou
tecnologia especializada. Caso contrário, isto é, configurando-se o defeito a partir
das frustrações que teriam as pessoas enquadráveis num padrão ideal de
consumidor, não se garante ao fornecedor os meios indispensáveis ao cálculo
empresarial.
Defeito, portanto, deve ser entendido como a impropriedade no produto ou
serviço de que resulta dano à saúde, integridade física ou interesse patrimonial do
consumidor, definindo-se aquela a partir de elementos técnicos capazes de
apontar no fornecimento a frustração de expectativa legitimamente esperada
pelo saber científico ou tecnológico, da época de seu oferecimento ao mercado
de consumo.
Há três espécies de defeitos: de concepção, execução e comercialização.
No primeiro caso, a desconformidade se estabelece entre o projeto empresarial
efetivamente elaborado e um projeto idealmente concebido, de acordo com o
estágio de desenvolvimento científico e tecnológico. Se o empresário, ao projetar
o produto ou serviço que pretende oferecer ao mercado de consumo, deixar de
levar em consideração os avanços do saber humano especializado, inclusive no
campo da administração de empresas, poderá ocorrer impropriedade de
concepção do fornecimento. No segundo caso, a desconformidade se verifica
entre o projeto e a execução do fornecimento. O produto é fabricado ou
conservado e o serviço é prestado em descompasso com o respectivo projeto
empresarial. Por fim, o defeito de comercialização se caracteriza a partir da
desconformidade entre os meios adequados de utilização do produto ou serviço e
as informações acerca deles, prestadas pelos fornecedores. O empresário deixa
de fornecer ao consumidor orientação precisa acerca da utilização do produto ou
serviço e, em virtude de tal omissão, o bem ou comodidade objeto de consumo
danifica-se, ou torna-se imprestável.
Produto ou serviço defeituoso
é aquele que apresenta uma
impropriedade, de que resultam
danos aos consumidores. Há
três tipos de defeito: de
concepção, de execução e de
comercialização.
Aponte-se para o fato de que o empresário fornece produto ou serviço
com defeito (de concepção) quando não se empenha totalmente na pesquisa de
todas as possibilidades concretamente abertas pelo desenvolvimento científico ou
tecnológico, estabelecendo-se um hiato entre o projeto empresarial que
desenvolveu e o que poderia ter desenvolvido. Deve-se, contudo, entender bem a
extensão da responsabilidade civil relacionada com essa disparidade, uma vez
que o Código de Defesa do Consumidor estabelece não se reputar defeituoso
certo produto apenas porque outro de melhor qualidade foi oferecido ao mercado
(CDC, art. 12, § 2º). Ou seja, a análise da existência do defeito de concepção
deve se circunscrever aos objetivos do projeto empresarial em exame. Se o
empresário pretende oferecer ao mercado produto de qualidade inferior ao do
concorrente, para atender parcelas de consumidores de menor poder aquisitivo,
então a mensuração da desconformidade entre o projeto empresarial efetivo e
aquele que poderia ter sido desenvolvido em termos ideais não pode ser feita
ignorando-se os limites traçados pelo próprio fornecedor. O ponto de partida será
sempre a consideração do objetivo do projeto. Somente depois de definido este,
pode-se comparar determinado projeto com os demais de igual objetivo.
O fabricante de automóveis interessado em lançar no mercado um novo
modelo, destinado ao consumidor de menor poder aquisitivo, não está
evidentemente obrigado a incorporar ao seu projeto todos os progressos
alcançados pela pesquisa tecnológica de ponta. Se o fizer, inclusive, o produto se
encarece e o objetivo de atendimento aos consumidores sem grande poder de
compra não é atingido. O empresário não tem o dever de empregar no modelo
popular todos os sofisticados sistemas de ignição, frenagem, eletricidade e outros
testados nas pistas de Fórmula 1. Por outro lado, sempre será possível avaliar se,
dentro dos limites circunscritos pelos objetivos do projeto empresarial e pelo
potencial de mercado, o empresário desenvolveu o melhor projeto possível, de
acordo com o estágio evolutivo da tecnologia automobilística referente a veículos
de baixo preço.
Portanto, levando-se em conta os objetivos do empresário, se havia
condições, dadas pelo conhecimento humano especializado e pela conjuntura
econômica, para a elaboração de um projeto mais aprimorado do que o
realmente desenvolvido, então se pode caracterizar a disparidade decorrente
como defeito de concepção, respondendo o fornecedor pelos danos ocasionados
pelo fornecimento.
Para a caracterização de
defeito de concepção, deve-se
verificar se o projeto do
produto ou serviço aproveitou
todos os avanços de que
dispunha
a
ciência
ou
tecnologia, levando-se em
conta o perfil econômico do
consumidor que se pretendeu
atender.
A desconformidade entre o projeto e a execução do fornecimento é,
dentre as três modalidades de defeito, a mais simples de se caracterizar.
Inclusive, porque se trata de defeito mensurável por cálculos estatísticos e, em
certa medida, inevitáveis. Em relação a essa categoria específica de
defeituosidade, casam-se perfeitamente a teoria da responsabilidade objetiva do
fornecedor e a realidade econômica da produção em massa. Tanto assim que,
diferentemente da solução adotada pela legislação brasileira, a maioria das
cortes dos Estados Unidos consideram objetiva a responsabilidade do empresário
apenas no tocante aos defeitos de execução, condicionando o ressarcimento dos
danos decorrentes de defeitos de concepção ou de comercialização à existência
de culpa (Phillips, 1974:4/5).
Por último, há os defeitos de comercialização, caracterizados pela
desconformidade entre as informações liberadas pelos empresários sobre a
utilização do produto ou serviço e as cautelas e providências que devam ser
realmente adotadas pelos consumidores para usufruir adequadamente o bem ou
a comodidade, adquiridos no mercado de consumo. Lembre-se que a
insuficiência nas informações sobre os riscos configura não propriamente
defeito, mas periculosidade do fornecimento. Assim, se a dona de casa não for
convenientemente instruída sobre como usar um novo eletrodoméstico, pode
ocorrer a danificação do produto, sem outras consequências para a sua saúde ou
integridade física. Caracteriza-se, nessa hipótese, fornecimento defeituoso,
porque a insuficiência das informações refere-se à utilização da mercadoria.
Defeituoso, por conseguinte, é o fornecimento em que o produto ou
serviço apresenta impropriedade na concepção, execução ou comercialização,
de que resulta dano à saúde, integridade física ou interesse econômico do
consumidor.
1.3. Falta de Q ualidade por Vício
O vício no fornecimento, por fim, se verifica quando os produtos e
serviços apresentam impropriedades inócuas. Isto é, nenhum prejuízo de
importância sofre o consumidor em sua saúde, integridade física ou interesse
patrimonial, mas o produto ou serviço é impróprio para as finalidades a que se
destina.
A mesma impropriedade pode se caracterizar como defeito ou vício, em
função da superveniência ou não de danos à saúde, integridade física ou interesse
patrimonial do consumidor. Imagine-se uma falha no processo de fabricação de
automóvel, pertinente ao sistema de freios. Se o consumidor percebe o problema
a poucos metros da concessionária da qual acaba de adquirir o veículo e,
cautelosamente, retorna ao estabelecimento do fornecedor, para o devido reparo
do produto, então aquela impropriedade se determina como vício. Se, entretanto,
o consumidor já se encontra transitando por via expressa, quando se manifesta a
falha do sistema de frenagem, ocorrendo em decorrência grave acidente de
trânsito, então aquela mesma impropriedade se determina agora como defeito.
A mesma impropriedade no
produto ou serviço pode
significar defeito ou vício; será
defeito, se causar danos e vício
se não os causar.
Claro que, no fornecimento viciado, haverá para o consumidor, no
mínimo, perda de tempo ou despesas com deslocamento até o estabelecimento
do fornecedor, para reclamar as providências atinentes ao vício. Mas, além
dessas importunações de pequeno alcance, nenhum outro prejuízo de relevo
sofre o consumidor de produto ou serviço viciado. Se tais importunações,
contudo, redundarem danos consideráveis, como perda de dia de trabalho por
exemplo, então a impropriedade em questão não se pode mais caracterizar como
vício inócuo, mas sim como defeito.
Viciado, assim, é o fornecimento em que o produto ou serviço apresenta
impropriedade da qual, no entanto, não sobrevém dano à saúde, integridade física
ou interesse patrimonial do consumidor.
1.4. Teoria da Q ualidade
No tratamento da matéria da responsabilidade do fornecedor pela
qualidade do fornecimento de produtos e serviços ao mercado de consumo, a
doutrina, nacional e estrangeira, costuma revelar certa imprecisão quanto às três
situações jurídicas que entendo devam ser suficientemente distinguidas. Em
termos conceituais, como visto, deve-se discernir entre produto ou serviço
perigoso, defeituoso e viciado, muito em função das diferenças nos regimes de
responsabilização do empresário relativamente a cada uma dessas espécies de
fornecimento sem qualidade. A doutrina, com efeito, tem se utilizado de
conceitos que tendem a reduzir, em certa medida, toda a questão da qualidade do
fornecimento de produtos e serviços a uma noção unitária de imperfeição. O
perigo apresentado por produto ou serviço é visto, nesse sentido, como vício de
segurança; a falta de informações adequadas sobre os riscos do fornecimento é
definida como defeito de comercialização. Em suma, a relativa indistinção
conceitual entre perigo, defeito e vício, nos produtos e serviços oferecidos ao
mercado pelo empresário, na tentativa de se alcançar uma teoria unitária da
qualidade do fornecimento, não corresponde, segundo entendo, ao mais
adequado modo de sistematização da matéria.
Perceba-se que, embora, de um lado, produtos com defeito de fabricação
ou concepção representem sempre perigo ao consumidor, em vista dos danos
que podem causar à sua integridade física ou ao seu patrimônio, de outro, nem
toda a periculosidade decorre de defeito. O Contergan-Thalidomida, a despeito de
suas nefastas consequências, não pode ser visto como produto defeituoso. Não se
trata, a rigor, de medicamento oferecido ao mercado com algum tipo de
desconformidade capaz de ocasionar dano ao consumidor, mas sim de produto
com efeito desconhecido da ciência da época do seu lançamento. São duas
situações bastante diferentes, às quais se ligam soluções distintas no campo da
responsabilidade do fornecedor.
Proponho, portanto, que o fornecimento se classifique, quanto à questão da
responsabilidade do fornecedor pela qualidade de produtos ou serviços, em
perigoso e impróprio, sendo essa segunda categoria subdividida em danoso e
inócuo. O fornecimento perigoso corresponde ao de produtos ou serviços
prejudiciais à saúde e segurança do consumidor, e pelo qual responde o
empresário que não atender satisfatoriamente aos deveres legais de pesquisar e
de informar o potencial de risco. O fornecimento impróprio danoso relaciona-se
ao de produtos ou serviços com defeitos, e gera a responsabilização do
empresário pelos danos ocasionados em razão desses. Por fim, o fornecimento
impróprio inócuo compreende os produtos com vícios de qualidade ou de
quantidade, e serviços com vício de qualidade, importando no dever de dar
acolhida à opção do consumidor quanto ao desfazimento do negócio, redução
proporcional do preço ou substituição do objeto.
Essa classificação aqui cogitada apenas organiza de forma mais rigorosa
os dados pertinentes à questão da responsabilidade do empresário pela qualidade
do fornecimento. Não configura, propriamente, uma contribuição originalíssima,
posto que se pauta em conceitos que, em certa medida, já se encontram
delineados pelo texto da lei tutelar dos consumidores. Apenas a considero mais
útil à abordagem e compreensão dos muitos aspectos relacionados ao tema. Ou
seja, a tentativa de se construir uma teoria unitária da qualidade do fornecimento
— com a redução do defeito e da periculosidade a tipos de vícios, ou outro
esquema semelhante —, embora se revista de inegável valor acadêmico no
tocante ao superamento das insuficiências apresentadas pela teoria dos vícios
redibitórios (cf. Benjamin, 1991b:38/43), frustra-se enquanto sistema global de
entendimento da matéria.
Claro que entre a perspectiva unitária e a aqui proposta não se vislumbra
qualquer diferença pertinente à extensão da tutela liberada pela lei em favor dos
consumidores. Trata-se, na verdade, de formas diversas de entendimento e
exposição do mesmo conjunto de normas jurídicas. Desse modo, do fato de se
distinguir entre defeituosidade de comercialização e periculosidade, por exemplo,
não se segue que o consumidor atingido por uma das modalidades de
fornecimento sem qualidade não deva ser atendido, caso tenha proposto ação
judicial alegando a ocorrência da outra modalidade. Em matéria de
responsabilidade do fornecedor por acidentes de consumo, aliás, ocorre relativa
superposição de teorias, devido à recente e acelerada evolução do
reconhecimento dos direitos dos consumidores. De fato, nem todas as distinções
se encontram já suficientemente claras e sedimentadas, de forma a se conviver
com alguma imprecisão conceitual, embora sem prejuízo à proteção dos
interesses legítimos dos consumidores.
2. SUPERAMENTO DO PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE
Nos quadrantes da fase inferior do capitalismo, em que se desenvolvia o
processo de acumulação de capital, as normas jurídicas sobre a responsabilidade
civil pautavam-se na ideia de culpabilidade (cf. Leães, 1987:19/21; Gorassini,
1990:110/112). O excedente social não podia então ter outro destino que o
reinvestimento em atividades produtivas e comerciais, porque o estágio inicial de
evolução do modo de produção capitalista reclamava a concentração de capital
nas mãos da classe burguesa. Em termos superestruturais, pela ideologia do
liberalismo econômico, os homens eram vistos como proprietários livres e iguais,
capazes de regular os seus próprios interesses por meio da vontade manifestada
no mercado. A única fonte de obrigações entre os particulares deveria ser a
vontade. Em decorrência, quem impõe prejuízo a outro somente devia ser
responsabilizado se se pudesse caracterizar, na origem da ação danosa, um ato
livre de vontade. Isto é, se ao agente causador do prejuízo tivesse sido possível
agir de forma diversa, evitando o efeito danoso de sua conduta, e mesmo assim
ele não o fez, então a sua vontade era a de prejudicar outras pessoas, tendo
sentido obrigá-lo ao ressarcimento dos danos. Mas se não era possível (material
ou juridicamente falando) exigir-se do mesmo agente comportamento diverso,
então ele não se responsabiliza pelos danos experimentados por terceiros, já que
na base de sua ação não há uma livre e consciente opção.
Pelo princípio “nenhuma
responsabilidade sem culpa”,
somente
caberia
responsabilizar-se o agente
causador do dano, se dele
pudesse ter sido exigida
conduta diversa. Na raiz,
encontra-se a noção liberal de
que somente a vontade é fonte
de obrigações.
Na fase superior do capitalismo, o excedente gerado pela produção já
comporta a criação de mecanismos de seguridade social, que compreendem
inicialmente o atendimento à inatividade e o socorro às vítimas de acidente de
trabalho. Tais mecanismos, a partir dos anos 1960, voltam-se ao socorro às
vítimas de acidente de consumo também. Novamente, está-se diante de profunda
transformação no direito, que somente se pode explicar satisfatoriamente, em
última análise, pelas necessidades evolutivas do modo de produção. A exclusiva
destinação do excedente como reinvestimento, de impulsionadora passa a
entrave do desenvolvimento econômico. Perde sentido falar-se na culpabilidade
como fator indispensável à responsabilização dos empresários em decorrência da
exploração de atividade econômica (cf. Melo da Silva, 1974:164/203; Lima,
1973:121/122).
O custo do processo de melhoria qualitativa do mercado de consumo
corre por conta dos próprios consumidores, por meio do repasse ao preço dos
produtos ou serviços, de uma quota-parte das despesas havidas na empresa com
o pagamento de seguro ou de indenizações, quebra de contratos ou investimentos
em controle de qualidade (Cap. 1). Esse processo de redistribuição de perdas
abrange também a compensação pela queda de faturamento em razão da
solução de pendências em fornecimentos viciados, mas, principalmente,
representa um mecanismo de absorção e diluição dos ressarcimentos
decorrentes de acidente de consumo (fornecimento perigoso ou defeituoso).
Para Guido Alpa, a transferência dos encargos com os acidentes de
consumo da empresa produtora para os consumidores não é tão simples quanto
se poderia supor da primeira impressão da equação teórica aqui apresentada. É o
que se infere do seu exame das relações entre produtores e seguradoras (AlpaBessone 1976:373/375). Com certeza, conforme acentua, o modelo de
distribuição das perdas abstratamente considerado é linear e racional, ao passo
que a sua atuação em concreto nem sempre se pode fazer de forma imediata e
singela. A manipulação dos preços sujeita-se, com efeito, às nuanças da
conjuntura econômica, de sorte que os empresários, por vezes, podem se ver
impedidos de repassarem aos consumidores os encargos pelos acidentes de
consumo e, consequentemente, devem a médio prazo suportá-los. Claro que, a
longo prazo, o processo de realocação das perdas encontrará oportunidades de se
realizar. Uma vez cessados os obstáculos conjunturais, que inviabilizavam a
momentânea majoração do preço aos consumidores, o repasse pode se verificar,
compensando o empresário as suas perdas pretéritas.
No capitalismo superior, portanto, estão criadas as condições econômicas
para o surgimento de sistemas de seguridade social de acidentes de consumo. Em
muitas das unidades federadas dos Estados Unidos, com variações pertinentes aos
limites do dano ressarcível, existe já desde os anos 1970, sistemas de seguridade
institucional por acidente de consumo envolvendo veículos automotores (o
denominado no-fault). Em geral, contudo, e ao contrário do que se verifica com
os sistemas de acidentes de trabalho, os de ressarcimento de acidentes de
consumo não têm assumido caráter institucional, e tornam-se efetivos pelo
processo de realocação de perdas, implementado pelo próprio empresário, por
meio da fixação do preço. De qualquer forma, institucionalizado ou não, a
criação de mecanismo de socorro social às vítimas dos acidentes de consumo
possibilita, às normas jurídicas sobre a responsabilidade civil do produtor, a
superação dos limites do princípio da culpabilidade.
O empresário ocupa posição
econômica que lhe permite, ao
fixar o preço de seus produtos
ou serviços, distribuir entre os
consumidores as repercussões
de um acidente de consumo.
Por essa razão, ele pode ser
responsabilizado, mesmo que
não tenha agido com culpa
para o acidente.
Em outros termos, cabe ao empresário criar os meios para que o
consumidor envolvido em fornecimento perigoso, defeituoso ou vicia-do não
sofra isoladamente as consequências. A doutrina dedicada ao tema sempre se
referiu à inevitabilidade dos acidentes de consumo (cf., por todos, Leães,
1987:15/25). Ou seja, há uma margem de periculosidade, defeituosidade e vício
no fornecimento que o mais diligente dos empresários não é capaz de suprimir.
Assim, alguns consumidores — isto é inexorável — acabarão adquirindo produtos
ou serviços perigosos ou impróprios; e não é justo, nem racional, que sofram
individualmente os efeitos desse infortúnio, quando, mediante o mecanismo da
realocação das perdas, se pode perfeitamente distribuir entre os muitos
consumidores daquele fornecimento as repercussões econômicas das inevitáveis
falhas do processo produtivo.
O Código de Defesa do Consumidor definiu como objetiva, em regra, a
responsabilidade por fornecimento defeituoso (CDC, arts. 12 a 14). Exceção feita
ao comerciante responsável por má conservação de produto perecível (CDC, art.
13, III) e aos profissionais liberais não caracterizáveis como elementos de
empresa (CDC, art. 14, § 4º), em relação aos quais conservou o princípio da
culpabilidade como fundamento da responsabilização, a todos os demais
fornecedores atribuiu responsabilidade por defeitos no produto ou serviço em
termos objetivos.
3. SUPERAMENTO DO PRINCÍPIO DA RELATIVIDADE
As necessidades ditadas pela acumulação primitiva de capital na fase
inferior do capitalismo, que inviabilizavam a distribuição das perdas relacionadas
com acidente de consumo ou com produtos viciados, em razão da inexistência de
excedente social, não se traduziram somente na elaboração do princípio da
culpabilidade. Um outro aspecto da noção superestrutural básica do liberalismo
— isto é, a ideia da vontade como única fonte de obrigação — também
correspondia a tais necessidades, de sorte a possibilitar reinvestimentos
crescentes nas atividades produtivas. Trata-se do princípio da relatividade dos
contratos.
De acordo com esse postulado do direito obrigacional, os efeitos jurídicos
da manifestação de vontade somente se podem circunscrever aos participantes
da relação contratual. Terceiros estranhos ao contrato não podem ser atingidos
pelos seus efeitos, na medida em que não manifestaram qualquer vontade nesse
sentido (res inter alios acta, aliis neque nocet neque podest). Em princípio,
portanto, se o consumidor de produtos não pudesse identificar a relação
contratual a uni-lo ao fornecedor, não poderia invocar contra ele qualquer direito.
Como, normalmente, contrata com varejista, o consumidor não possuía ação
contra o fabricante. Este último, no entanto, é geralmente quem reúne as
condições econômicas e conhecimentos tecnológicos, para responder pela
qualidade do produto. O resultado da observância do princípio da relatividade dos
contratos, nas questões emergentes da relação de consumo, era a desproteção do
consumidor de fornecimento viciado e das pessoas expostas aos acidentes de
consumo.
O Judiciário inglês, por exemplo, em 1892, negou acolhimento à pretensão
do condutor de uma diligência, que pleiteava ser indenizado por lesão corporal
sofrida em acidente com o veículo. Apesar de comprovada a sua culpa na
conservação da diligência, o demandado não foi condenado, exatamente porque
inexistia qualquer liame contratual entre ele e o demandante. Na verdade, porque
o veículo havia sido lo-cado aos correios, entendeu-se que somente perante esse
o demandado eventualmente poderia ter sido responsabilizado. Curiosa é a
preocupação manifestada em alguns votos, no tocante às possibilidades ilimitadas
de litígios, que se abririam caso não fosse estritamente respeitada a regra da
relatividade dos contratos. Do teor de tais votos se pode concluir a deliberada e
consciente irresponsabilização do fornecedor, em nome do interesse geral da
comunidade voltado ao desenvolvimento econômico (cf. Alpa-Bessone,
1987:216/218; Leães, 1987:34/35).
O primeiro julgamento, em que a relatividade dos contratos é superada na
apreciação dos acidentes de consumo, pertence à jurisprudência norteamericana. Em 1916, deu-se ganho de causa ao proprietário de automóvel, que
pleiteava o ressarcimento dos danos sofridos em acidente motivado por defeito
na roda, demandando diretamente o fabricante do veículo. Afastou-se a alegação
da defesa quanto à inextensão de suas obrigações para além do revendedor com
quem mantivera relação contratual.
O direito norte-americano em matéria de responsabilidade do fabricante
por fato do produto registra, a partir de então, rápida evolução no sentido do
superamento da relatividade contratual. São tidas por exceção as jurisdições em
que ainda se exige a existência de vínculo contratual entre as partes, como
fundamento para a ação de garantia (cf. Phillips, 1974:74). Atualmente, a teoria
jurídica norte-amerciana considera, além da relatividade estrita entre o
adquirente do produto e o varejista, a existência de três outras espécies de
relatividade, a fundamentar a responsabilização de agentes econômicos perante
pessoas com as quais não celebra contrato: a vertical, que liga todos os
fornecedores e intermediários até o destinatário final do produto; a horizontal,
entre o varejista e terceiros atingidos pelo produto; e a diagonal, relacionando o
produtor diretamente ao destinatário final do produto (Calvão da Silva,
1990:296/298). No Brasil, o Código de Defesa do Consumidor não condicionou à
existência de vínculo contratual o exercício dos direitos relacionados com
fornecimento sem qualidade. O consumidor pode pleitear o ressarcimento dos
danos experimentados ou a substituição do produto viciado, diretamente do
fornecedor real (fabricante, construtor ou produtor), ainda que o tenha adquirido
de varejista ou intermediário, e, portanto, não haja estabelecido qualquer
contrato com aquele. O mesmo direito existe no tocante à intermediação na
prestação de serviços, tendo o consumidor ação contra o fornecedor primário. O
princípio da relatividade simplesmente não existe no tratamento das relações de
consumo feito pelo direito brasileiro.
A legislação protetiva dos
consumidores não adota o
“princípio da relatividade dos
contratos”, ao responsabilizar
os fornecedores por perigo,
defeito ou vício em produtos ou
serviços.
No tocante ao fornecimento perigoso ou defeituoso, o estágio evolutivo da
jurisprudência e da doutrina nacionais já comportava certa responsabilização
direta dos fabricantes, fundada por vezes na teoria da guarda da estrutura do
produto desenvolvida pelo direito francês, segundo a qual o fabricante tem a
obrigação de zelar pelo oferecimento de produtos adequadamente fabricados,
respondendo pelos danos sobrevindos do descumprimento de tal dever. Trata-se,
sem dúvida, de concepção que, a despeito dos meritórios objetivos de sua
formulação, apresenta lacunas e deixa muitas críticas sem resposta satisfatória,
principalmente quanto à possibilidade da guarda não material do produto, após a
sua inserção na cadeia de circulação de mercadorias (cf. Rodrigues, 1979:115;
Leães, 1987:135/136; Dias, 1979, 2:80). Mas, apesar de suas insuficiências, a
teoria da responsabilidade do fabricante pela guarda da estrutura dos produtos
possibilitava, em certo grau, a tutela dos interesses dos consumidores, lesados por
fornecimento perigoso ou defeituoso, em ação voltada diretamente contra o
fornecedor real do produto ou o fornecedor primário do serviço.
Já as reclamações dos consumidores por fornecimento de produto viciado
não podiam — segundo a jurisprudência anterior ao CDC — ser endereçadas
diretamente ao fabricante, em razão da inexistência de vínculo contratual entre
eles. Idêntica desproteção se verificava também no fornecimento de serviços,
em que o consumidor não podia acionar o fornecedor primário, em virtude do
princípio da relatividade dos contratos. A principal consequência do superamento
desse princípio, pelo Código de Defesa do Consumidor, portanto, se refere aos
vícios em produtos ou serviços. Ao tratar da responsabilidade dos empresários
por fornecimento viciado (CDC, arts. 18 a 20), o legislador brasileiro não
distinguiu entre aqueles com os quais os consumidores mantêm imediata relação
contratual e os demais agentes da cadeia econômica. Todos, perante o
destinatário final, são igualmente responsáveis, embora depois possam, em
regresso, recompor entre si os seus interesses, em razão da maior ou menor
atuação no viciamento do produto ou serviço.
Outro aspecto muito importante relativo à superação do princípio da
relatividade diz respeito ao alargamento da responsabilidade do empresário, por
danos decorrentes de fornecimento perigoso e defeituoso, em favor de qualquer
pessoa exposta aos efeitos do perigo ou do defeito. De acordo com o art. 17 do
Código de Defesa do Consumidor, as vítimas do evento danoso são equiparadas
aos consumidores para os fins da tutela relativa aos acidentes de consumo. São os
denominados espectadores, conjunto de pessoas que usam os produtos e serviços,
ou se encontram em contato direto ou indireto com estes, sem que
necessariamente os tenham adquirido, como por exemplo os membros da
família, os vizinhos e os comensais do consumidor (cf. Lima Lopes, 1992:83/86).
A extensão do art. 17, inclusive, supera os limites da relação de consumo
definida pelos arts. 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor. Isto é, se o
empregado do restaurante sofrer lesões em decorrência de explosão de garrafa
de refrigerante, apesar de inexistir relação de consumo entre ele (ou o seu
empregador) e o fabricante da bebida, será possível demandar este último, nos
termos preceituados pela legislação tutelar do consumidor, tendo em vista a
amplitude do superamento do princípio da relatividade.
Contudo, o Código deixou de fixar, com a devida clareza, o superamento
do princípio da relatividade em determinadas situações, cada vez mais comuns
no comércio, tais como as do sucessor, merchandisor, franqueador e outras.
Nesses casos, a doutrina, atenta às características próprias do contrato
interempresarial correspondente, deve delinear as alternativas de tutela possíveis,
face à ausência de norma legal específica.
4. FORNECIMENTO PERIGOSO
Por fornecimento perigoso se entende o relativo a produtos ou serviços
não defeituosos, desacompanhados de informações adequadas acerca dos riscos
envolvidos com o seu consumo. Todas as questões quanto à responsabilidade dos
empresários, em razão de fornecimento perigoso, se resolvem pela avaliação da
adequabilidade das informações prestadas ao consumidor sobre os riscos
apresentados pelo produto ou serviço. Deve-se, claro, ter presente a distinção
anteriormente proposta entre fornecimento perigoso e fornecimento impróprio
danoso. Ou seja, a avaliação da adequabilidade das informações sobre riscos é
suficiente, para a definição da responsabilidade dos fornecedores, no tocante
apenas aos produtos e serviços não defeituosos, isto é, sem impropriedades de
qualquer natureza.
Nesse sentido, é possível afirmar que para a solução de todas as questões
relativas à responsabilidade por fornecimento perigoso basta ao intérprete da lei
considerar a regra segundo a qual o empresário é obrigado a prestar informações
sobre os riscos de seus produtos e serviços, sendo estas tanto mais ostensivas
quanto maior for o perigo a que se expuser o consumidor (CDC, art. 9º).
4.1. Riscos Normais e Previsíveis
Todos os produtos e serviços podem oferecer risco à saúde e segurança do
consumidor, dependendo do seu uso. Como no fornecimento perigoso não se
registra defeito de qualquer espécie no bem ou comodidade consumidos, afastase a hipótese de danos ocorridos independentemente da ação do consumidor. Na
responsabilização dos empresários por perigo no fornecimento, sempre se poderá
identificar uma conduta do consumidor, no manuseio ou desfrute do produto ou
serviço, da qual resultou diretamente o prejuízo à sua saúde, integridade física ou
interesse patrimonial. A responsabilidade do fornecedor se fundamenta
racionalmente, nesse contexto, na medida em que se possa ligar a conduta do
consumidor ocasionadora do dano a uma inadequação nas informações sobre
riscos, que acompanhavam o objeto do consumo. Em outros termos, embora a
ação do consumidor tenha sido a causa direta do dano, indiretamente esse se
pode atribuir à inexistência ou insuficiência das informações, sobre os riscos
apresentados pelo produto ou serviço.
De início, portanto, deve-se constatar que os danos causados pela ação do
consumidor, que não se possam justificar a partir da inadequação das
informações prestadas pelo fornecedor, não geram responsabilidade por perigo
no fornecimento. Assim, o evidente uso inapropriado do objeto do consumo,
como a ingestão de remédios em quantidade excessivamente superior ao
prescrito pelo médico, não acarreta qualquer responsabilidade da indústria
farmacêutica. A menos que a bula contivesse informação que autorizasse o
consumidor a acreditar na inocuidade de tal atitude, o exagero no consumo do
remédio e as consequências lesivas decorrentes não se podem imputar ao
fornecedor.
Se o produto ou serviço
perigoso
não
apresenta
nenhuma improprie-dade, o
acidente de consumo somente
pode ter sido causado em razão
de sua utilização indevida pelo
próprio consumidor.
A utilização indevida, no
entanto,
pode
ter
sido
originada
pelo
desconhecimento
do
consumidor, acerca dos riscos
oferecidos pelo produto ou
serviço.
Neste
caso,
o
empresário será o responsável
pelo acidente, se não prestou
informações
suficientes
e
adequadas.
Também a imprudência do consumidor, no tocante aos riscos normais e
previsíveis, não se pode considerar justificada por inadequação das informações
do fornecedor. O fabricante de facas não está obrigado a advertir os seus
consumidores acerca de efeitos letais que o produto pode acarretar. Desde muito
antes da invenção da escrita, todos os homens sabem que a faca pode lesionar
seriamente, ou mesmo matar pessoas. Não seria possível estabelecer-se qualquer
liame entre a qualidade das informações prestadas pelo fabricante da faca e a
conduta do consumidor, de que resultou lesão corporal ou morte de alguém,
exatamente em função da normalidade e previsibilidade do risco oferecido pelo
produto em questão. Por isso, o art. 8º do Código de Defesa do Consumidor, ao
determinar que os produtos e serviços não devem expor a saúde e segurança dos
consumidores a riscos, ressalva destes os “normais e previsíveis”.
Ora, a normalidade e previsibilidade dos riscos são função da vulgarização
de informações entre os consumidores. O perigo apresentado pelo uso
inadequado de produto de limpeza pode ser normal e previsível para o
consumidor graduado em química, exatamente porque conhece o assunto. Não o
é, contudo, para os consumidores em geral. Já os oferecidos por garrafas de
vidro quebradas são normais e previsíveis para todos, porque se encontra
amplamente difundido o conhecimento acerca desse material. Atualmente,
aparelhos com aproveitamento de energia nuclear são perigosos porque o
consumidor tem pouquíssima experiência no seu uso, não os conhece
propriamente e não pode, portanto, prever ou considerar normal qualquer risco.
Em relação a tais produtos e serviços pouco experimentados e pouco conhecidos
do consumidor, cabe ao fornecedor informar de modo ostensivo e adequado os
riscos relacionados com a sua utilização. E na medida em que se informa
ostensiva e adequadamente acerca dos riscos, esses passam a ser conhecidos e,
portanto, normais e previsíveis para os consumidores.
Conclui-se, assim, que a análise do conteúdo das expressões normais e
previsíveis, adotadas pela lei para qualificar os riscos admitidos no fornecimento,
gravita em torno da adequabilidade das informações prestadas pelo fornecedor.
Em outros termos, abstraindo-se os produtos e serviços já amplamente
conhecidos das pessoas em geral, o fornecedor deve prestar informações com tal
eficiência, que possibilite ao consumidor antever todo o potencial de
periculosidade emergente do bem ou comodidade adquiridos. Informações
adequadas, nesse contexto, são as que capacitam o consumidor a prever os riscos
a que se expõe, diante do fornecimento.
4.2. Alto Grau de Periculosidade ou Nocividade
O legislador proíbe o fornecimento de produtos ou serviços com alto grau
de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança do consumidor (CDC, art.
10). E, aqui, novamente o critério para se definir o elevado grau de perigo é a
adequabilidade das informações prestadas pelo empresário. Explico-me: se o
produto ou serviço exigem para o seu seguro consumo uma tal ordem de cautelas
e conhecimentos, que não se conseguiriam transmitir com facilidade ao
consumidor, em razão de sua alta complexidade, então o fornecimento está
vedado. Em outros termos, a interpretação do art. 10 do CDC não deve ser feita a
partir do potencial de risco encontrável no produto ou serviço em si mesmo
considerado, de modo a concluir que, por exemplo, nenhum produto com
aproveitamento de energia nuclear poderia ser oferecido ao mercado. A
interpretação desse dispositivo legal deve, ao contrário, apontar para a avaliação
da eficácia das informações prestadas pelo fornecedor, no sentido de capacitar o
consumidor a fazer uso seguro do produto ou serviço.
Código
de
Defesa
do
Consumidor
Art. 8º Os produtos e serviços
colocados no mercado de
consumo não acarretarão
riscos à saúde ou segurança
dos consumidores, exceto os
considerados
normais
e
previsíveis em decorrência de
sua natureza e fruição,
obrigando-se os fornecedores,
em qualquer hipótese, a dar as
informações necessárias e
adequadas a seu respeito.
Art. 10. O fornecedor não
poderá colocar no mercado de
consumo produto ou serviço
que sabe ou deveria saber
apresentar alto grau de
nocividade ou periculosidade à
saúde ou segurança.
Em suma, para se saber se certo fornecimento oferece apenas riscos
normais e previsíveis, de sorte a considerá-lo permitido pelo art. 8º, ou para se
saber se o mesmo fornecimento apresenta alto grau de periculosidade ou
nocividade, de modo a considerá-lo proibido pelo art. 10 do CDC, o que interessa
é verificar se há efetiva possibilidade de se transmitirem ao consumidor do
referido fornecimento informações adequadas acerca dos riscos. Ou seja,
informações que capacitem o consumidor do fornecimento em questão ao
seguro consumo do produto ou serviço. Se tais informações puderem ser
prestadas, o fornecimento apresenta riscos normais e previsíveis, pois o
consumidor bem informado poderá antever eventuais consequências danosas do
ato de consumo. Se, porém, tais informações não puderem ser facilmente
prestadas, porque o uso do produto ou serviço reclama cautelas e conhecimentos
complexos, então o seu oferecimento ao mercado de consumo é proibido porque
expõe o consumidor a alto grau de periculosidade ou nocividade.
Assim, uma vez constatado que se trata de produto ou serviço a respeito de
cujos riscos se pode informar com segurança o respectivo consumidor, encontrase o empresário em condições de fornecê-los ao mercado de consumo.
Responderá, contudo, por acidentes provocados pelo consumidor, caso fique
comprovada a insuficiência ou inadequação das informações sobre os riscos que
acompanhavam o fornecimento.
A responsabilidade do empresário por periculosidade dos produtos ou
serviços é objetiva, e por isso o cerne da discussão judicial deverá dizer respeito
não à sua eventual negligência no desenvolvimento da atividade econômica, mas
sim ao exame da adequabilidade, sob o ponto de vista técnico, das informações
sobre os riscos prestadas. Ou seja, de acordo com os arts. 12 e 14 do CDC, o
empresário responde pelos danos causados por informações insuficientes ou
inadequadas, sobre riscos de produto ou serviço. Ora, se o empresário provar a
suficiência e adequação das informações prestadas, não se verificará a hipótese
legal de responsabilização. Além disso, caso se apure, em perícia técnica, que as
informações se encontravam suficientes e adequadas, a causa do dano somente
se poderá imputar ao próprio consumidor, hipótese em que a responsabilidade do
fornecedor é expressamente ressalvada (CDC, art. 12, § 3º, III, e art. 14, § 3º, II).
5. PERICULOSIDADE DO FORNECIMENTO E INFORMAÇÃO DO
CONSUMIDOR
No fornecimento perigoso (isto é, em que o produto ou serviço não
apresentam qualquer defeito ou vício), a obrigação do fornecedor, no sentido de
ressarcir os prejuízos sofridos pelo consumidor, decorre do descumprimento do
dever de informá-lo, suficiente e adequadamente, acerca dos riscos a que se
expõe adquirindo aquele bem ou comodidade. O objeto exclusivo da ação de
indenização será a definição, mediante perícia técnica, da qualidade das
informações sobre os riscos prestadas pelo empresário demandado, se estas
eram ou não suficientes e adequadas à capacitação do consumidor, para o
consumo seguro do fornecimento em questão.
A periculosidade do fornecimento é sempre definida, portanto, a partir da
relação entre as informações sobre os riscos de consumo prestadas pelo
fornecedor e a sua compreensibilidade pelo consumidor. O fornecimento não é
perigoso, portanto, desde que tenha havido o cumprimento do dever de informar
os consumidores acerca dos riscos do produto ou serviço.
A legislação consumerista, entretanto, além do dever de informar sobre
riscos, prescreve outros aos empresários. Por exemplo, o referido no final do art.
9º, que prevê a adoção de medidas de segurança cabíveis em cada caso em
particular. O descumprimento desse dever, de prover os mecanismos de
segurança nos produtos e serviços, contudo, não caracteriza fornecimento
perigoso, mas sim defeituosidade de concepção. São, por vezes, tênues os limites
entre o fornecimento perigoso e o defeito de concepção, ou mesmo de
comercialização, porque os elaboradores do texto normativo não se preocuparam
em tratar em dispositivos próprios cada uma dessas situações.
Nesse sentido ainda, pode-se extrair do contido no art. 10 do CDC o dever
de o empresário pesquisar os riscos oferecidos pelo seu fornecimento. A lei se
refere, com efeito, a graus de periculosidade ou nocividade que o fornecedor
sabe ou deveria saber. Assim, estabelece-se a responsabilidade do empresário
em manter-se renovadamente atualizado com a pesquisa tecnológica em todo o
mundo, referente ao objeto do seu fornecimento. Ao pretender lançar no
mercado novo produto ou serviço, o fornecedor deve estar certo de que esgotou
todas as possibilidades de testes e investigações científicas ou tecnológicas,
concretamente oferecidas pelo estado de desenvolvimento do conhecimento
especializado, observados os limites circunscritos pelo projeto empresarial
correspondente. Se não der atenção a esse dever, contudo, oferecendo ao
mercado produto ou serviço não totalmente testado, estará incorrendo na prática
de fornecimento defeituoso (defeito de concepção) e não propriamente de
fornecimento perigoso.
5.1. Dever de Informar sobre Riscos de Consumo
O fornecimento perigoso, como visto, se caracteriza com a prestação de
informações insuficientes ou inadequadas sobre os riscos de consumo,
apresentados por produto ou serviço não defeituoso. A questão que se deve
propor em seguida diz respeito, exatamente, à extensão do conceito de
suficiência e adequabilidade das informações sobre os riscos. Em termos gerais,
suficientes e adequadas são as informações cuja compreensão capacita o
consumidor a se portar de modo seguro no consumo do produto ou serviço.
Informações adequadas e
suficientes
são
as
que
capacitam o consumidor a se
portar de modo seguro, ao
consumir o produto ou serviço
correspondente.
Para a mensuração desse efeito pedagógico das informações deve--se
considerar o padrão de consumidor do fornecimento em questão. Claro que as
pessoas têm diferentes níveis de capacidade intelectual e de atenção, de sorte que
a mesma advertência acerca do manuseio do produto pode ser entendida de
diversos modos pelos destinatários da mensagem. Ora, se o fundamento racional
da responsabilidade objetiva por acidentes de consumo é a possibilidade de o
fornecedor socializar os prejuízos decorrentes, então o cálculo empresarial deve
ser assegurado. O fornecedor deve responder objetivamente pelos acidentes de
consumo, porque ele reúne os meios para absorver e diluir os custos sociais da
produção. Consequentemente, a lei deve conferir-lhe instrumentos para
mensurar, por cálculos atuariais, a extensão do encargo que lhe é atribuído.
O cálculo empresarial somente é possível a partir da consideração de
padrões ideais de consumidores. Não há como desenvolvê-lo a partir de pessoas
individualmente consideradas. A suficiência e adequabilidade ou não das
informações atinentes ao perigo do fornecimento devem ser, portanto, aferidas
em função da capacidade de intelecção de um consumidor-padrão. Esse, por sua
vez, deve ser considerado em função de cada tipo de fornecimento em
particular, sendo infrutífera e sem sentido a pesquisa do padrão geral de
consumidor brasileiro, com vistas a nortear o cálculo de todo e qualquer
empresário estabelecido no Brasil. As informações sobre os riscos de consumo
devem ser elaboradas para os consumidores do produto ou serviço singularmente
considerado, para que se revelem eficazes.
Os fenilcetonúricos, por exemplo, não podem consumir produtos em cuja
composição é empregado o ácido fenilalanina, e, por essa razão, alguns produtos
são comercializados com a advertência “fenil-cetonúricos: contém fenilalanina”.
É certo que a expressiva maioria dos consumidores não tem a mais pálida ideia
do sentido dessas palavras, encontradas em latas de refrigerantes dietéticos ou
em envelopes de adoçante à base de aspartame. Isso não significa, porém, que a
informação é inadequada ou insuficiente, uma vez que os fenilcetonúricos
representam grupo de pessoas normalmente submetidas a acompanhamento
médico e especialmente informadas acerca dos riscos apresentados por tais
produtos à sua saúde.
O exemplo dos fenilcetonúricos ilustra bem a ideia de que a avaliação da
qualidade das informações sobre riscos no fornecimento deve pautar-se na
consideração do consumidor-padrão, referência elaborada a partir dos
consumidores de cada tipo de produto ou serviço. Se se examinasse a suficiência
e adequação da advertência “fenilcetonúricos: contém fenilalanina” a partir de
modelo de consumidor médio em geral, dever-se-ia concluir pelo não
atendimento do dever de informar, uma vez que essa frase é simplesmente
ininteligível para a grande maioria das pessoas. Contudo, considerando os seus
destinatários específicos e as informações que eles geralmente já possuem sobre
os riscos oferecidos pelo ácido em questão, pode-se constatar a sua integral
suficiência e adequabilidade.
A
avaliação
da
adequabilidade e suficiência
das informações leva em conta
o perfil do consumidor-padrão
de um produto ou serviço
específico.
Outro aspecto importante na elaboração do padrão de consumidor
relaciona-se com a questão da deficiência de significativa parcela de
consumidores, especialmente no mercado de consumo brasileiro. Para a
mensuração da adequação das informações, poderia o empresário construir a
noção de consumidor-padrão considerando apenas os consumidores médios de
seu fornecimento. Poderia, contudo, considerar também os desprovidos de
conhecimentos médios. Nas duas hipóteses, o cálculo empresarial se mostra
realizável, mas, por evidente, algumas informações tomadas por adequadas com
a adoção do primeiro critério (o padrão é apenas o consumidor médio) seriam
tidas por inadequadas pelo segundo critério (o padrão é também o consumidor
desprovido de conhecimentos médios). A melhor interpretação do Código de
Defesa do Consumidor é a de que, na aferição da pertinência de informações
prestadas aos consumidores, deve-se imaginar como destinatário o consumidor
desprovido de conhecimentos médios. Com essa medida, tutela-se maior
quantidade de pessoas, concretizando a disposição do constituinte e do legislador,
no sentido de liberar proteção eficaz aos consumidores.
Note-se que elaborar a ideia de consumidor-padrão com atenção aos
desprovidos de conhecimentos médios não é o mesmo que considerar todos os
consumidores individuadamente. Com certeza, haverá pessoas exageradamente
distraídas ou particularmente desinformadas ou limitadas, que não podem ser
levadas em conta na mensuração da adequabilidade e suficiência das
informações sobre riscos de produtos ou serviços. Exigir-se o contrário do
empresário equivaleria a impossibilitar o cálculo empresarial.
5.2. Adequabilidade e Suficiência das Informações sobre Riscos de Produtos e
Serviços
Em termos gerais, a informação sobre risco de consumo é suficien-te e
adequada se for capaz de instruir o consumidor de certo fornecimento, acerca
dos meios seguros de utilização do produto ou serviço correspondente. Em termos
específicos, o Código de Defesa do Consumidor, no art. 31, estabelece outros
requisitos. Segundo o dispositivo, as informações sobre os riscos que os produtos
ou serviços oferecem à saúde e segurança dos consumidores devem ser corretas,
claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa.
Código
de
Consumidor
Defesa
do
Art.
31.
A oferta
e
apresentação de produtos ou
serviços
devem assegurar
informações corretas, claras,
precisas, ostensivas e em
língua portuguesa sobre suas
características,
qualidades,
quantidade, composição, preço,
garantia, prazos de validade e
origem, entre outros dados,
bem como sobre os riscos que
apresentam
à
saúde
e
segurança dos consumidores.
Correta é a informação verdadeira, isto é, correspondente com a
realidade do produto ou serviço. Qualquer dado em desacordo com os reais
efeitos proporcionados pelo fornecimento é falso, e não atende ao dever de
veracidade prescrito por lei. Também não deve ser considerada correta a
informação incompleta, que omite informação essencial sobre o perigo
relacionado ao produto ou serviço. A correção da informação compreende sua
absoluta exatidão e necessariamente deve abranger todos os aspectos relevantes
à segurança do consumo.
Clara é a informação que pode ser assimilada pelo consumidor médio
com facilidade. A informação pode ser verdadeira sem ter o atributo da clareza
se, por exemplo, for elaborada apenas com expressões e notações científicas
inaccessíveis a quem não domina o conhecimento especializado. A obscuridade
não é necessariamente falsidade, mas desinforma na mesma medida.
A precisão da informação é atributo que não se confunde com a correção
nem com a clareza. Diz respeito ao conteúdo específico da informação.
Caracteriza-se a precisão pela apresentação de dados indicativos da exata
extensão dos riscos oferecidos pelo produto. Advertências genéricas do tipo
“cuidado: o uso inapropriado desse produto pode causar danos irreparáveis à sua
saúde” não atendem ao ditame legal e também desinformam mais do que
informam, pois, apesar de corretas e claras, são imprecisas.
Relativamente às informações sobre os riscos de consumo, um atributo
muito importante é a ostentação. Atende-se a exigência legal quando se
destacam as informações de tal modo, no contexto da embalagem, oferta,
publicidade ou bula, que ao consumidor médio é impossível não ter a atenção
despertada para o seu conteúdo. A ostentação deve ser tanto maior quanto mais
elevado for o grau de periculosidade ou nocividade do fornecimento.
Por fim, as informações sobre os riscos do produto ou serviço devem ser
apresentadas em língua portuguesa. Claro que o uso de algumas expressões em
língua estrangeira, se conhecidas dos consumidores, não torna inadequada ou
insuficiente a mensagem. Uma advertência do tipo “não pressione o spray
diretamente sobre os olhos”, em recipientes de produtos de higiene, é
perfeitamente compreensível por qualquer habitante de cidade brasileira. Se,
contudo, aquela palavra em inglês fosse substituída por dispositivo de
vaporização, aí sim a referida advertência seria inadequada em vista de sua
inusualidade.
A inadequação ou insuficiência das informações podem resultar de fator
que o direito norte-americano chama de countervailing representation (Phillips,
1974:222/224). Verifica-se quando a apresentação e embalagem do produto têm
características tais que o consumidor é intuitivamente levado a crer que o seu
consumo não oferece qualquer tipo de insegurança. Ocorre como que uma
contrainformação liberada pelo aspecto geral do produto. É a hipótese
exemplificativa de detergentes incolores, acondicionados em garrafas plásticas
parecidas com as de água mineral. Também as marcas podem acabar
neutralizando o efeito pedagógico de informações sobre riscos. Ocorre
contrainformação quando se adota, por exemplo, a marca Suave, para produto
de limpeza tóxico no manuseio direto.
6. RISCO DE DESENVOLVIMENTO
A mais intrincada questão em matéria de responsabilidade dos
fornecedores por lesão à saúde, integridade física ou interesse patrimonial dos
consumidores de produtos e serviços está relacionada com a indenizabilidade dos
danos decorrentes de risco de desenvolvimento, isto é, de efeitos desconhecidos
que, em tese, todo fornecimento pode apresentar. Deveras, por mais cauteloso e
diligente que o empresário seja, ao pesquisar amplamente as consequências que
o novo produto ou serviço pode acarretar aos seus usuários, valendo-se dos mais
avançados métodos e conhecimentos do saber científico e tecnológico no mundo,
é possível que efeitos lesivos do fornecimento apenas venham a se manifestar
após a sua inserção no mercado de consumo. Em outros termos, a discussão
sobre os riscos de desenvolvimento refere-se às responsabilidades do empresário,
pelos danos decorrentes de efeito do fornecimento incognoscível no momento de
sua introdução no mercado de consumo.
6.1. Dever de Pesquisar
Aos empresários o Código de Defesa do Consumidor prescreve o dever de
pesquisar. Isto é, eles não podem oferecer ao mercado de consumo produto ou
serviço acerca do qual não conheçam a exata mensuração do potencial de risco.
Esse conhecimento o fornecedor pode buscá-lo diretamente, por meio da
estruturação de departamento de pesquisa em sua empresa, ou indiretamente,
por meio de contato com os resultados mundialmente obtidos pelo
desenvolvimento científico e tecnológico. O que não pode ocorrer é o
fornecimento de produto ou serviço, sem que o fornecedor esteja
exaustivamente informado acerca dos riscos a que se expõem os seus
consumidores. Da observância do dever de pesquisar resulta não só o
aperfeiçoamento das medidas de segurança envolventes do fornecimento, mas
também a prestação de informações adequadas ao consumidor. A desobediência
ao dever de pesquisar, por sua vez, caracteriza defeito de concepção no
fornecimento com a responsabilidade do fornecedor pelos danos decorrentes.
Para dar cumprimento ao dever de pesquisar, o fornecedor deve esgotar
as possibilidades oferecidas pelo estado da arte. São os objetivos do seu projeto
empresarial que fixarão os limites do esforço de pesquisa. A proposta respeitante
ao fornecimento de bens ou comodidades de baixo custo, tendo em vista o
atendimento a consumidor de determinado perfil econômico, condicionará,
certamente, a natureza das pesquisas a serem desenvolvidas. Contudo, mesmo no
interior desses limites, circunscritos pelos condicionantes econômicos do projeto
empresarial, será possível averiguar se o fornecedor adotou, ou não, todas as
providências possíveis, no sentido de esclarecer o potencial de risco do seu
fornecimento de baixo custo. Em outros termos, se houve o esgotamento dos
testes e investigações possibilitados pelo estágio de desenvolvimento científico e
tecnológico na aferição dos riscos latentes do fornecimento.
O risco de desenvolvimento
está
relacionado
à
possibilidade de o produto ou
serviço vir a apresentar efeito
danoso, que não poderia ter
sido previsto pelas pesquisas
científicas ou tecnológicas
realizadas antes de sua
colocação
no
mercado
consumidor.
De fato, a despeito do exaurimento das possibilidades oferecidas pelo
estado da arte, um risco não antecipado pela ciência ou tecnologia pode se
manifestar após o oferecimento do produto ou serviço ao mercado consumidor,
com gravíssimas consequências aos seus usuários, como se verificou no
lamentável e conhecido caso do calmante Contergan-Thalidomida. Nessa
hipótese, se por suposto já vigorasse o Código de Defesa do Consumidor, o
fornecedor brasileiro do medicamento poderia ou não ser responsabilizado pela
indenização dos danos acarretados às vítimas do acidente de consumo?
Note-se que não se trata, como já se acentuou, de fornecimento perigoso,
posto que as informações prestadas ao consumidor teriam sido adequadas e
suficientes, conforme o que o conhecimento humano especializado podia,
realmente, antever. Isto é, o empresário não teria desobedecido o dever de
informar; ao contrário, teria prestado as devidas informações, nos limites reais do
desenvolvimento do saber científico e tecnológico. Como a responsabilidade do
empresário por fornecimento perigoso decorre unicamente da insuficiência ou
inadequação das informações acerca dos riscos ao consumidor, esse não o
poderia demandar alegando periculosidade no produto ou serviço.
Considere-se, também, que no caso não haveria fornecimento defeituoso
por impropriedade de concepção. Isso se pode afirmar, na medida em que o
projeto empresarial desenvolvido tivesse incorporado todos os avanços de
pesquisa científica possibilitados pelo estágio de desenvolvimento da ciência e
tecnologia. A diferença entre defeituosidade de concepção (descumprimento do
dever de pesquisar) e incognoscibilidade de efeito danoso (risco de
desenvolvimento) se estabelece precisamente a partir do aproveitamento integral
das possibilidades abertas pelo desenvolvimento do conhecimento humano
especializado, pelo estado da arte. Enquanto no defeito de concepção, o
empresário não aproveita tais possibilidades, no fornecimento com efeito danoso
incognoscível ocorre o aproveitamento. Nas lições de Calvão da Silva, o estágio
de desenvolvimento da ciência e da técnica serve de linha fronteiriça entre, de
um lado, os defeitos de concepção e informação e, de outro, os riscos de
desenvolvimento (1990:521).
Desse modo, ao fornecer ao mercado consumidor produto ou serviço que,
posteriormente, apresenta riscos, cuja potencialidade não pôde ser antevista pela
ciência ou tecnologia, o empresário não deve ser responsabilizado com
fundamento nem na periculosidade (pois prestou informações sobre riscos
adequadas e suficientes), nem na defeituosidade (porque cumpriu o seu dever de
pesquisar). Por outro lado, frustra o espírito tutelar do consumerismo deixar ao
desabrigo os consumidores de fornecimento de potencial latente de risco não
revelado durante os testes preparatórios de sua inserção no mercado. Trata--se
de questão bastante complexa e qualquer que seja a sua solução não se atenderão
satisfatoriamente todos os interesses transindividuais envolvidos, pois ou se inibirá
o desenvolvimento científico e tecnológico, ou permanecerão inindenes certos
acidentes de consumo. Daí a discussão acerca da responsabilidade do
fornecedor, por risco de desenvolvimento, aguçar o espírito de doutrinadores e
legisladores, em busca do critério mais ajustado (para uma visão geral da
complexidade da matéria, ver Lucan, 1990:519/532).
A diretiva europeia — cujos documentos preparatórios oscilaram entre a
admissão e a rejeição da excludente de responsabilidade por risco de
desenvolvimento —, acabou adotando uma solução ambígua no tocante ao
assunto. Ao mesmo tempo que previu não ser o produtor responsável, se provar a
impossibilidade de constatação do defeito no momento em que ofereceu o
produto ao mercado, autorizou o estado--membro a derrogar referida previsão.
Portugal, Itália, Alemanha, França e Áustria não se utilizaram da autorização
derrogatória, consagrando nos seus direitos internos a excludente por risco de
desenvolvimento. Mesmo nos Estados Unidos, em que a responsabilização dos
fornecedores por acidente de consumo tradicionalmente foi bastante ampla, já se
admite a escusa por risco de desenvolvimento, depois de séria retração na
indústria farmacêutica, no tocante ao oferecimento de novos remédios e vacinas,
motivada pelos rigores da responsabilidade civil (cf. Calvão da Silva, 1990:524).
Ressalta a doutrina que a imprevisibilidade dos riscos dessa natureza torna
insuportáveis os prêmios dos seguros (Bin, 1989:136). A grande controvérsia em
todo o mundo na disciplina da responsabilidade dos empresários, por risco de
desenvolvimento, na verdade apenas reflete a atual insuficiência do excedente
social para o atendimento das vítimas desse tipo de acidente de consumo.
A responsabilização objetiva
dos empresários por risco de
desenvolvimento
pode
desestimular a pesquisa de
novos produtos, em especial os
farmacêuticos. Por outro lado,
deixar o consumidor ao
desamparo frustra os objetivos
do consumerismo.
O direito brasileiro não trata diretamente do assunto, não obstante a sua
relevância para os usuários de novos produtos e serviços e para o
desenvolvimento da pesquisa tecnológica nacional. Para Antonio Benjamin, o
CDC não admitiria o risco de desenvolvimento como excludente de
responsabilização dos empresários, em função de haver incorporado a tese do
risco de empresa (1991b:67). Penso, ao contrário, que a legislação nacional na
verdade admite a excludente. O art. 10 do estatuto tutelar dos consumidores
estabelece que o fornecedor não pode oferecer ao mercado produtos ou serviços
que saiba, ou devesse saber, apresentarem alto grau de periculosidade ou
nocividade aos consumidores. Ora, à falta de expressa previsão legal sobre o
tema, pode-se concluir que o empresário não está proibido de oferecer produtos
e serviços, acerca de cujos riscos o estado da arte da época do seu lançamento
não tem condições de detectar totalmente. Esses riscos o fornecedor, por
evidente, não tem e não pode ter o dever de saber, pois isso equivaleria a obrigálo ao impossível. Por outro lado, o § 1º do mesmo art. 10, ao tratar da descoberta
de periculosidade posteriormente à introdução do produto ou serviço no mercado
de consumo, não prevê a indenização pelos danos supervenientes, mas apenas
impõe a obrigação de comunicar o fato às autoridades (que deverão retirar o
produto ou serviço de circulação, caso o fornecedor não o faça) e aos
consumidores.
Assim, pode-se afirmar que o produto ou serviço, que manifeste
nocividade apenas depois de sua inserção na cadeia de circulação econômica,
torna-se juridicamente perigoso somente se, uma vez revelada a real extensão do
potencial de risco, omitir-se o fornecedor de proceder à devida divulgação da
descoberta aos consumidores e ao poder público. Lembre-se que a questão da
periculosidade do fornecimento se exaure na análise do cumprimento do dever
de informar. Se for dado pronto atendimento a esse dever, nenhuma
responsabilidade poderá advir ao empresário em razão dos danos ocasionados
pelo risco anteriormente desconhecido.
6.2. Estado da Arte
O cerne da questão relativa à responsabilidade do fornecedor, por
acidentes de consumo derivados da inobservância do dever de pesquisar, referese à definição do estado da arte da época do lançamento do produto ou serviço. A
partir desse conceito, é possível decidir se o empresário incorreu eventualmente
em defeito de concepção, deixando de esgotar todas as possibilidades de testes e
investigações científicos e tecnológicos existentes na oportunidade, ou não. E,
consequentemente, decidir se os danos advindos da manifestação ulterior do
potencial de periculosidade seriam imprevisíveis, de modo a se caracterizar risco
de desenvolvimento, fator excludente de sua responsabilização.
No direito brasileiro não há conceito normativo de estado da arte. É certo
que a Lei da Propriedade Industrial contempla conceito de estado da técnica
(LPI, art. 11, § 1º), para fins da definição das criações intelectuais que, por sua
novidade, podem ser objeto de patente de invenção. Trata-se, no entanto, de
noção um tanto restrita, elaborada a partir da ideia de conhecimentos tornados
públicos por qualquer meio e, portanto, com exclusão da importante área dos
segredos de empresa. Por estado da arte se deve entender o conjunto de
conhecimentos acumulados pelos cientistas e especialistas no mundo todo, ligados
ao meio acadêmico ou empresarial, acerca dos efeitos que o emprego de
determinados processos, substâncias, formas ou mecanismos em produtos e
serviços pode acarretar à saúde ou segurança das pessoas a eles expostas, sejam
ou não tutelados pelo direito industrial.
Na aferição da exploração de todos os recursos disponibilizados pelo
estado da arte, na fase preparatória do lançamento de produto ou serviço, não se
deve considerar apenas os dados ou informes científicos e tecnológicos
imediatamente ao alcance do fornecedor. O dever de pesquisar, imposto por lei,
obriga o empresário a se reportar, cotidiana e eficientemente, a todas as notícias
de novidade no tratamento científico ou tecnológico do objeto de sua empresa, de
molde a manter-se estritamente atualizado. O decisivo na caracterização do
chamado defeito de desenvolvimento, como ensina Maria Angeles Lucan
(1990:521), é que o risco não poderia ter sido previsto por ninguém e não se o
produtor individualmente considerado reunia as condições de descobri-lo.
Para atender ao dever de
pesquisar que a lei lhe impõe, o
empresário deve manter-se
(pessoalmente ou por meio dos
seus empregados técnicos) bem
atualizado com as conquistas
da ciência ou da tecnologia
respeitante aos produtos ou
serviços que coloca no
mercado.
Na delimitação do dever de pesquisar, por fim, tem sido objeto de
preocupação doutrinária discutir a importância a se atribuir às posições
minoritárias do conhecimento especializado e às teses científicas ainda não
inteiramente confirmadas. O critério que se mostra mais ajustado, nesse
particular, parece ser o extensivo. Ou seja, na dúvida, responsabiliza-se o
fornecedor. Claro que as manifestações pseudoconsistentes de saberes
autoproclamados alternativos, que o saber acadêmico e universitário tendem a
não reconhecer como interlocutores, não podem servir de padrão para o cálculo
empresarial e, consequentemente, para o julgamento do cumprimento do dever
de pesquisar pelo fornecedor. O que ele não pode ignorar são as dúvidas
metodicamente suscitadas por setores minoritários da pesquisa científica, com os
quais o saber acadêmico e universitário costuma manter diálogo, mesmo que
antitético. De tais questionamentos embrionários e por vezes meramente
intuitivos costumam nascer verdadeiras revoluções no saber científico e
tecnológico.
Acentue-se que a adoção dessa perspectiva não pressupõe a
desqualificação epistemológica dos saberes autoproclamados alternativos. A
despeito das instigantes possibilidades suscitadas pela questão filosófica acerca
dos fundamentos pelos quais o conhecimento acadêmico e universitário
reivindica para si a primazia e a exclusividade no tratamento da verdade, e de
outros atributos da capacidade intelectiva humana — questão esta bem visitada
por Foucault, em sua genealogia do poder —, o fato é que o empresário necessita
de critério seguro para estruturar sua empresa, para o qual nenhuma contribuição
pode fornecer, no momento, a reflexão filosófica sobre a hierarquia dos saberes.
Juridicamente falando, os conhecimentos que o meio acadêmico e universitário
não elegem como interlocutores não integram o estado da arte.
No tocante às teses científicas não inteiramente confirmadas, Marino Bin
propõe que se proceda à aferição casuística. Se os possíveis efeitos danosos à
saúde das pessoas, provocados por remédio ou produto químico, forem referidos
em estudo científico teórico ainda não testado, o fornecedor deve postergar o seu
lançamento no mercado de consumo, até que experimentos idôneos demonstrem
a insubsistência da hipótese levantada por aquele estudo (1989:137). Assim, caso
não dê a devida consideração à advertência suscitada pela tese científica,
precipitando o oferecimento do produto ou serviço ao consumidor, o fornecedor
terá descumprido o dever de pesquisar, e responderá pelos danos decorrentes de
defeito de concepção, se porventura restarem posteriormente confirmadas as
preocupações daquele estudo teórico. Evidentemente, se a nocividade, revelada
após a venda do produto ou serviço, for diversa da referida por esse ou por
qualquer outro estudo, o fornecedor estará isento de responsabilização.
A exclusão de responsabilidade do fornecedor por risco de
desenvolvimento está, portanto, indiretamente prevista pelo Código de Defesa do
Consumidor, sintonizado, nesse particular, com a solução adotada pelo direito de
países centrais do capitalismo. Essa causa de exclusão, no entanto, deverá ser
futuramente afastada da disciplina da matéria. Tal possibilidade, aliás
expressamente prevista pela diretiva europeia, está condicionada
economicamente pelo estágio de acúmulo de força de trabalho (excedente
social). Quando cálculos atuariais permitirem constatar que o socorro às vítimas
por acidente de consumo, originado por risco de desenvolvimento, não mais
comprometeria os investimentos em pesquisa científica e tecnológica, seguir-seá a transformação da norma jurídica, ou de sua interpretação doutrinária e
jurisprudencial, no sentido da responsabilização dos fornecedores também por
riscos incognoscíveis no momento da introdução do fornecimento no mercado.
Por enquanto, inviabilizado o cálculo empresarial pela inexistência de excedente,
o direito deve mesmo excluir a responsabilidade do fornecedor por risco de
desenvolvimento.
7. FORNECIMENTO DEFEITUOSO
Se o acidente de consumo decorre de conduta negligente do consumidor,
no manuseio de produto ou desfrute de serviço, de duas uma: ou as informações
sobre os riscos do fornecimento estavam adequadas, e então o fornecimento não
se determina juridicamente como perigoso, e inexiste responsabilidade para o
fornecedor; ou não estavam, e então se caracteriza para o direito a
periculosidade, e o consumidor será integralmente indenizado.
O acidente de consumo, porém, nem sempre é causado pela conduta do
consumidor. Por vezes, pode decorrer de fatores estranhos à ação do usuário do
produto ou serviço. É o caso de fornecimento defeituoso, em que se verifica
impropriedade no bem ou comodidade oferecidos ao mercado, do qual resultam
danos à saúde, à integridade física ou a interesse patrimonial do consumidor.
Defeito é uma impropriedade, algo que não deveria ser o que é.
Distingue-se do perigo, na medida em que, nesse último, os produtos ou serviços
são exatamente o que deveriam ser, embora as informações sobre os seus riscos
não se mostrem suficientes ou adequadas à capacitação do consumidor para o
consumo seguro. No fornecimento defeituoso, haverá sempre disparidade,
dessintonia, desacordo entre um fator ideal e outro real. No defeito de
concepção, o descompasso se estabelece entre o projeto empresarial que poderia
ser elaborado, com o aproveitamento de todos os recursos oferecidos pela
ciência e tecnologia para a produção do bem ou serviço em questão, e o projeto
empresarial efetivamente desenvolvido. No defeito de execução, o descompasso
se verifica entre a fabricação ou conservação do produto ou prestação do serviço
e o respectivo projeto empresarial. No defeito de comercialização, por fim, entre
o padrão de informações adequadas e suficientes sobre a utilização do produto e
o conjunto de dados a esse respeito efetivamente transmitido aos consumidores.
O
defeito
é
uma
impropriedade do produto ou
serviço, uma disparidade entre
o que ele deveria ser e o que é.
Na aferição de defeito de concepção, é necessária a análise da relação
custo-benefício. É sabido que o fornecimento de energia elétrica por cabos
subterrâneos representaria menor grau de perigo a todas as pessoas. Em tese,
portanto, um projeto de fornecimento de energia elétrica por cabos suspensos
não corresponde ao esgotamento dos avanços tecnológicos e científicos,
proporcionados pela evolução do conhecimento humano. Contudo, o montante
que seria dispendido com a execução e manutenção do sistema subterrâneo de
cabos elevaria consideravelmente o preço para o consumidor da energia elétrica,
sem que a correspondente diminuição dos acidentes de consumo pudesse
caracterizar benefício compensador. Em outros termos, não se podem ignorar os
limites econômicos fixados pelos objetivos do projeto empresarial, no exame da
pertinência ou defeituosidade do fornecimento.
Entre as modalidades de defeito de execução, deve-se incluir a hipótese
de produtos perecíveis, inadequadamente conservados pelo fabricante ou por
qualquer intermediário, e seus contratados (como as transportadoras, por
exemplo). Os métodos ou cautelas para a conveniente conservação de produtos
perecíveis é capítulo necessário do projeto empresarial referente à introdução
desse tipo de fornecimento. A deterioração do produto motivada pela má
conservação configura, assim, inobservância da parte do projeto relativa ao seu
armazenamento e transporte adequados.
O defeito de comercialização, por sua vez, decorre da inadequação ou
insuficiência das informações acerca da utilização do produto, prestadas aos
consumidores. Note-se que o dano decorrente de defeito de comercialização
compromete em geral apenas o próprio produto adquirido pelo consumidor. Se o
aparelho eletrodoméstico não é acompanhado de indicações ostensivas sobre a
voltagem adequada ao seu funcionamento e, por isso, o consumidor o conecta à
rede errada, os danos, em geral, atingirão apenas o próprio aparelho. Se as
informações, cuja inadequação resultou prejuízos ao consumidor, referirem-se
não mais à utilização, mas sim aos riscos do produto, então a questão se desloca
para o campo da periculosidade.
7.1. Classificação dos Fornecedores
Em matéria de responsabilidade por produtos defeituosos, o legislador
nacional distinguiu duas espécies de fornecedores. De um lado, o fabricante,
produtor, construtor e importador e, de outro, o comerciante.
O conceito de fabricante relaciona-se com a atividade de transformação e
compreende os empresários que industrializam ou manufaturam produtos para
oferecê-los ao mercado, tais como as montadoras de veículos, fábricas de
utensílios domésticos, móveis, roupas, remédios, produtos alimentícios,
refrigerantes etc. A noção de fabricante não se circunscreve apenas aos
empresários de maior poderio econômico. O microempresário e o empresário
de pequeno porte, ao confeccionarem bens mais ou menos personalizados, se
determinam como fabricantes também. A legislação tutelar de consumo não
distingue os fornecedores, em função de sua força econômica, responsabilizando
na mesma medida a multinacional e a fábrica de fundo de quintal.
Produtor é o empresário dedicado às atividades de fornecimento de
produtos extraídos diretamente da natureza. É o pecuarista, agricultor, caçador ou
pescador. Construtor, por sua vez, é o empresário do ramo imobiliário que ergue
prédios ou realiza loteamentos. De acordo com a legislação nacional, têm eles a
mesma responsabilidade dos industriais por fornecimento defeituoso. Ao atribuir
a esses tipos de fornecedores (produtor e construtor) responsabilidade de igual
extensão e natureza da reservada aos fabricantes, o direito brasileiro se revela
mais protetor que o dos estados-membros da Comunidade Europeia, cuja diretiva
os exclui expressamente do sistema de responsabilidade objetiva.
O fabricante, produtor e construtor são designados, doutrinariamente, por
fornecedores reais (Benjamin, 1991b:56).
Importador é o revendedor no Brasil de bens fabricados ou produzidos no
exterior. Em termos econômicos, encontra-se na mesma situação do
comerciante, isto é, trata-se de mero intermediário na cadeia de circulação de
riquezas, que não interfere com o processo produtivo, estritamente considerado.
No entanto, o legislador atribuiu-lhe a responsabilidade do fabricante, com vistas
a tornar efetiva a tutela deferida aos consumidores. Se o importador fosse tratado
tal como o comerciante, dificilmente o consumidor teria condições de ser
ressarcido em seus danos em face da complexidade envolvida com a promoção
da responsabilização de fabricante ou produtor sediado em país estrangeiro. O
importador é chamado, pelos doutrinadores, de fornecedor presumido
(Benjamin, 1991b:56).
7.2. Responsabilidade do Fabricante, Produtor, Construtor e Importador
O fabricante, produtor, construtor e importador respondem pelos danos
causados por fornecimento defeituoso de produtos (CDC, art. 12). Aquele que
sofrer acidente de consumo, decorrente de defeito de concepção, execução ou
comercialização de produto, tem o direito de ser indenizado por todos os danos
decorrentes. A responsabilidade, no caso, é objetiva, independe de culpa da parte
dos empresários.
Código
de
Defesa
do
Consumidor
Art. 12. O fabricante, o
produtor,
o
construtor,
nacional ou estrangeiro, e o
importador
respondem,
independentemente
da
existência de culpa, pela
reparação dos danos causados
aos consumidores por defeitos
decorrentes
de
projeto,
fabricação,
construção,
montagem,
fórmulas,
manipulação, apresentação ou
acondicionamento de seus
produtos, bem como por
informações insuficientes ou
inadequadas
sobre
sua
utilização e risco.
Na verdade, o fornecedor real ou presumido, demandado por defeito do
produto, deixará de ser responsabilizado se provar uma das hipóteses aventadas
pelo art. 12, § 3º, do CDC. Isto é, a ilegitimidade passiva, a inexistência do defeito
ou a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. No primeiro caso, o
empresário deve provar que o produto defeituoso não foi fabricado, produzido,
construído ou importado por ele. Nessa excludente de responsabilização, encaixase não somente a hipótese de equívoco do consumidor na identificação do
fornecedor responsável, mas também os defeitos provocados por produtos
falsificados ou com marca usurpada.
A segunda excludente relaciona-se à inexistência de defeitos. Cabe, nesse
caso, ao empresário demonstrar que o produto fornecido ao mercado não
apresentava qualquer impropriedade, seja na concepção, execução ou
comercialização. Isto é, deve provar que o projeto empresarial desenvolvido
aproveitou todos os recursos proporcionados pela evolução do saber humano
especializado, que o processo de fabricação do produto observou o projeto
empresarial e que as informações sobre a sua utilização capacitam os
consumidores a manuseá-lo apropriadamente. Com tais provas, demonstra-se a
inocorrência de impropriedade de qualquer natureza, no fornecimento do
produto.
A defeituosidade, nos termos da lei, se revela a partir da frustração de
expectativas, concernentes à segurança oferecida pelo consumo do produto em
particular (CDC, art. 12, § 1º). Claro que essas expectativas não podem ser senão
as do conhecimento científico e tecnológico especializado, de modo a possibilitar
o cálculo empresarial. Considerar a defeituosidade a partir da perspectiva dos
consumidores impossibilita qualquer antecipação do montante a ser distribuído ao
preço do produto, na socialização de perdas relacionadas a acidentes de
consumo. É certo, por outro lado, que a insuficiência ou inadequação das
informações sobre riscos, prestadas pelo fornecedor, podem gerar falsa
expectativa dos consumidores relativamente à segurança do produto; mas, nesse
caso, será responsabilizado o empresário por periculosidade e não por
defeituosidade do fornecimento.
A terceira excludente de responsabilização do fornecedor por produtos
defeituosos refere-se à culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros na
causação do evento danoso. A rigor, nesse caso, o empresário irá demonstrar,
embora sob outro ângulo, ainda a inexistência do defeito. Pois se o acidente de
consumo decorre exclusivamente de conduta culposa do próprio consumidor ou
de outrem, então é porque o produto não apresenta qualquer impropriedade
capaz de deflagrá-lo. A culpa concorrente da vítima, na responsabilização do
fabricante, produtor, construtor ou importador, não é causa de diminuição do
valor da indenização, como ocorre, em regra, nas demais hipóteses de
responsabilidade civil.
O elenco de excludentes do art. 12, § 3º, do Código de Defesa do
Consumidor não é exaustivo. O fornecedor também é liberado do dever de
indenizar em demonstrando a presença, entre as causas do acidente de consumo,
da força maior ou do caso fortuito, desde que posteriores ao fornecimento. A
força maior ou o caso fortuito anteriores ao fornecimento não configuram
excludente de responsabilização, uma vez que o fundamento racional da
responsabilidade objetiva do empresário, por acidente de consumo, se encontra
exatamente na constatação da relativa inevitabilidade dos defeitos no processo
produtivo (cf. Alpa, 1989:24). Assim, o mais diligente dos empresários pode
acabar oferecendo ao mercado produtos com defeitos. Ora, se esses não são
resultantes de conduta culposa na organização da empresa, somente se podem
explicar pela superveniência de força maior ou caso fortuito. Contudo, ao se
manifestarem esses fatores após a introdução do produto na cadeia de circulação
econômica, não se verificam mais aqueles pressupostos da responsabilização
objetiva do fornecedor. Por esta razão, a prova do caso fortuito e da força maior
posteriores ao fornecimento o libera do ressarcimento dos danos. Com efeito, a
manifestação de tais fatores, posteriormente ao fornecimento, desconstitui
qualquer liame causal entre o ato de fornecer produtos ao mercado e os danos
experimentados pelo consumidor. Por exemplo, se o eletrodoméstico é inutilizado
por um raio, não se responsabiliza o empresário pelos prejuízos do consumidor.
Também a excludente por risco de desenvolvimento deve ser lembrada
para fundamentar o caráter exemplificativo do elenco do art. 12, § 3º, do CDC. É
certo que proponho diferenciar periculosidade de defeituosidade do produto,
como solução teórica mais útil ao entendimento da matéria relativa às
responsabilidades dos empresários por acidente de consumo. Mas, como o
Código de Defesa do Consumidor não adota essa diferenciação tão claramente,
tratando as duas situações nos mesmos dispositivos (CDC, arts. 12 a 14), mostrase conveniente a sua referência, na análise das causas de exclusão de
responsabilidade dos fornecedores.
7.3. Responsabilidade do Comerciante
O comerciante é o intermediário no fornecimento de produtos fabricados,
construídos ou produzidos no Brasil ou para aqui importados. O conceito abrange
tanto o varejista como o atacadista, bastando à sua determinação que inexista
qualquer atividade industrial ou manufatureira de sua parte, na circulação
econômica do bem. Na sua caracterização, outrossim, são totalmente
irrelevantes os contornos elaborados pela doutrina comercialista, a partir da
teoria dos atos de comércio ou mesmo da empresa. Assim, há fornecedores
considerados comerciantes pelo direito comercial que não o são para o direito do
consumidor, tais o industrial, banqueiro e construtor; e há os considerados
comerciantes pelo direito do consumidor, que não o são para o direito comercial,
como a cooperativa. Para a doutrina, o comerciante é denominado fornecedor
aparente (Benjamin, 1991b:56).
A responsabilidade do comerciante é ora objetiva, ora subjetiva. É
objetiva quando substitui a dos fornecedores reais ou presumidos. Ou seja, ele
responde independentemente de culpa, na medida em que não se puderem
identificar, com facilidade, o fabricante, construtor, produtor ou importador do
produto defeituoso (CDC, art. 13, I e II). Pretendeu o legislador, nessa hipótese,
proporcionar aos consumidores meios de verem ressarcidos os danos sofridos
pelo manuseio de produtos defeituosos, que não apresentam identificação do
responsável pelo seu processo de produção ou pela sua introdução no mercado
nacional. Alcança, por exemplo, os produtos artesanais, em que o fabricante não
costuma ser designado, ou os hortifrutigranjeiros, que geralmente são
comercializados sem identificação do produtor, ou ainda imóveis adquiridos por
meio de corretores, sem a menção do respectivo construtor.
É irrelevante, para o consumidor, se o comerciante pode ou não informarlhe o nome do fornecedor real ou presumido. Se o produto, em si mesmo
considerado, não possibilita a fácil identificação do fabricante, construtor,
produtor ou importador, o comerciante irá responder, e objetivamente, pelos
acidentes de consumo provocados por seus defeitos.
Por outro lado, é subjetiva a responsabilidade do comerciante se o dano
tiver sido ocasionado por má conservação de produtos perecíveis (CDC, art. 13,
III). Nesse caso, o comerciante não tem responsabilidade substitutiva, porque
indenizará o consumidor em razão de sua própria negligência no adequado
armazenamento de produtos perecíveis. Verific a-se que o legislador fez
referência à má conservação de produtos perecíveis, o que centra o foco da
questão sobre a conduta do comerciante, e recupera o princípio da culpabilidade.
Se tivesse se reportado à deterioração de produtos perecíveis, durante o tempo
em que se encontravam sob a guarda do comerciante, aí sim, teria consagrado
mais uma hipótese de responsabilidade objetiva.
O fato de ser baseada na culpa essa hipótese de responsabilização em
nada altera a distribuição do ônus probatório desenhada pelo legislador. Cabe ao
comerciante demandado provar que não incorreu em prática culposa na
conservação do produto. Evidentemente, como se trata de fato negativo, admitese em certa medida a prova indiciária, com a demonstração de diligência
empresarial em termos globais. De qualquer forma, não se imporá ao
consumidor, em nenhuma circunstância, a prova diabólica da culpa do
comerciante, na conservação do produto perecível.
O comerciante é chamado de
fornecedor aparente. A sua
responsabilidade é objetiva
quando o fornecedor real ou
presumido não puder ser
identificado pelo consumidor; e
é subjetiva quando conservou
indevidamente
produtos
perecíveis.
O consumidor que sofrer danos em virtude dessa modalidade específica
de defeito de execução (isto é, a má conservação de produtos perecíveis) tem
ação contra o comerciante, devendo ser julgado carecedor se demandar os
fornecedores reais ou presumidos. Se alegar má conservação do produto como
fundamento de seu pedido, o consumidor só pode demandar o comerciante. Se,
porém, o consumidor ignorava a causa efetiva do defeito e ajuizou a ação contra
o fabricante, imaginando tratar-se, por exemplo, de defeito de concepção, e, no
curso do processo, ficou definido que o dano decorreu de má conservação, então
nesse caso em particular, o réu deve ser condenado e, em regresso, ressarcir-se
perante o comerciante culpado pelo defeito.
7.4. Responsabilidade do Prestador de Serviços
Ao prestador de serviços, por sua vez, reservou a legislação brasileira
responsabilidade objetiva pelos danos ocasionados aos consumidores (CDC, art.
14).
Código
de
Defesa
do
Consumidor
Art. 14. O fornecedor de
serviços
responde,
independentemente
da
existência de culpa, pela
reparação dos danos causados
aos consumidores por defeitos
relativos à prestação dos
serviços, bem como por
informações insuficientes ou
inadequadas sobre sua fruição
e riscos.
Em relação aos serviços, pode-se cogitar também de defeito de
concepção, execução ou comercialização. No serviço de lavanderia
estruturalmente mal dimensionado, em que se mancham as roupas claras, em
razão de não se as separarem das que soltam tinta, pode-se caracterizar defeito
de concepção. No serviço de dedetização, em que não se protejem
adequadamente os produtos alimentícios da ação do veneno pulverizado,
verifica-se defeito de execução. E no serviço bancário, em que não se informa
adequadamente o consumidor acerca das cautelas mínimas no uso do cartão
magnético, ocorre defeito de comercialização.
Libera-se o prestador de serviços da indenização pelos danos decorrentes
de fornecimento defeituoso, se provar a inexistência do defeito ou culpa
exclusiva do consumidor ou de terceiros (CDC, art. 14, § 3º). Cabe-lhe, portanto,
demonstrar em juízo que inexiste descompasso entre o projeto empresarial do
serviço prestado e aquele que, idealmente, decorreria do aproveitamento de
todas as possibilidades abertas pelo desenvolvimento da ciência e da tecnologia;
ou entre a prestação do serviço e o respectivo projeto empresarial; ou entre as
informações sobre o desfrute do serviço e as que, idealmente, capacitariam o
consumidor-padrão a usufruí-lo de modo satisfatório.
Não há qualquer distinção, no tocante à circulação dos serviços, entre o
intermediário e o prestador originário. Se o buffet põe à disposição de seus
clientes serviço de manobrista prestado por empresa especializada, ele
intermedeia esse serviço e responde por defeitos no seu fornecimento, cabendolhe eventualmente direito de regresso. A agência de turismo, por sua vez,
intermedeia serviços prestados por empresas de transporte aéreo, hotéis, guias e
outros. A lei não trata o intermediário do serviço de forma particular, como faz
com o intermediário da venda de produtos (o comerciante). O consumidor
poderá, assim, demandar diretamente tanto o intermediário, como o prestador
originário, pelos prejuízos sofridos em decorrência de defeito no fornecimento.
7.5. Responsabilidade dos Profissionais Liberais
Há uma categoria de prestadores de serviços que se encontra sujeita a
disciplina específica no tocante aos defeitos de fornecimento. Trata-se dos
profissionais liberais, que respondem apenas pelos danos decorrentes de conduta
culposa (CDC, art. 14, § 4º). Entende-se que o profissional liberal presta serviço
personalizado, não se caracterizando normalmente qualquer elemento
empresarial, que justifique cogitar-se de exploração de atividade econômica
organizada, de forma a possibilitar a distribuição de perdas entre os seus clientes.
Zelmo Denari aponta para o fato de que a natureza intuitu personae dos serviços
prestados pelos profissionais liberais implica a indispensável confiança estrita do
consumidor na pessoa do profissional, a motivar a celebração do contrato. A
adoção do princípio da culpabilidade, contudo, não afasta, ainda segundo Denari,
a inversão do ônus probatório em favor do consumidor, cabendo ao profissional a
prova da inexistência de culpa na prestação do serviço (1991:95).
Costuma a doutrina ressaltar que a norma do art. 14, § 4º, do CDC não se
aplicaria às pessoas jurídicas prestadoras de serviços liberais, como a sociedade
de advogados, médicos, dentistas etc. (cf. Denari, 1991:95; Benjamin,
1991b:79/80). Na verdade, a interpretação mais adequada é a de que os serviços
liberais prestados sob a forma de empresa serão decididos com o superamento do
princípio da culpabilidade, e os desenvolvidos pessoalmente mediante a
verificação de culpa. Não se identificam os conceitos de pessoa jurídica e de
empresa. Embora geralmente a atividade empresarial seja desenvolvida por
pessoa jurídica, isso não significa que a pessoa física não possa ser empresária.
Também é certo, por outro lado, que nem sempre a pessoa jurídica é
empresária. A constituição de sociedade entre advogados para repartição de
despesas e de resultados, no desenvolvimento da advocacia, não caracteriza a
exploração de atividade empresarial. Permanecem, na base das relações entre
os profissionais sócios dessa sociedade e seus respectivos clientes aquele
elemento de confiança estrita que justifica a análise da culpabilidade no defeito
de fornecimento.
Assim, quando a atividade liberal (advocacia, medicina, odontologia etc.)
for explorada empresarialmente, sem a característica da pessoalidade estrita na
prestação do serviço, então os defeitos de fornecimentos serão indenizáveis
independentemente de culpa. Já, se a motivação básica do consumidor ao
procurar os serviços liberais é a confiança específica na pessoa do profissional,
mesmo que ele integre pessoa jurídica, não se vislumbra qualquer atividade de
empresa, e, portanto, os defeitos de fornecimento só se devem indenizar se
presente a culpa do profissional.
O
profissional
liberal
(advogado, médico, dentista e
outros) tem responsabilidade
subjetiva pelos defeitos na
prestação de serviços, a menos
que
sua
atividade
seja
desenvolvida
com
características de empresa,
hipótese em que responde
independentemente de culpa.
Para a análise da extensão do tratamento excepcional do art. 14, § 4º, do
CDC, revela-se bastante útil a noção de elemento de empresa adotada pelo direito
italiano. De acordo com a noção, o prestador de serviço intelectual — inclusive o
profissional liberal, portanto —, ainda que contrate terceiros para o auxiliar, não
se considera empresário, salvo se for elemento de empresa. O médico que atende
à sua clientela, em consultório mantido junto com colegas, não é empresário,
porque, embora até eventualmente integre pessoa jurídica para a repartição de
despesas e de resultados, ele não pode ser caracterizado como elemento de
empresa. Já o mesmo médico, ao organizar um pronto--socorro, empregando
clínicos, enfermeiros, pessoal administrativo etc., passa a ser visto como
elemento de empresa, mesmo se continuar dando atendimento médico
especializado. Como se vê, o aspecto referente à formação ou não de pessoa
jurídica é irrelevante para a definição da incidência do tratamento excepcional,
baseado no princípio da culpabilidade, reservado aos profissionais liberais. O
decisivo é tratar-se, ou não, de exploração empresarial da atividade.
8. FORNECIMENTO VICIADO
A falta de qualidade no fornecimento nem sempre é causa de danos à
saúde, integridade física e interesse patrimonial do consumidor. Por vezes, o
produto ou serviço apresenta impropriedades inócuas, inofensivas. Nesse caso, o
fornecimento se considera viciado e o empresário tem, grosso modo, o dever de
respeitar a opção escolhida pelo consumidor entre as proporcionadas pela lei,
para a solução do vício.
A mesma impropriedade pode se determinar como defeito ou vício, em
função de sua inocuidade (ou não) relativamente à saúde, integridade física ou
interesses patrimoniais do consumidor. Se a conserva alimentícia está estragada,
em decorrência de má conservação, falha no processo produtivo ou qualquer
outra razão, mas o consumidor antes de ingeri-la constata o fato, pelo odor ou
pela aparência, está-se diante de fornecimento viciado. Se, contudo, ele ingere
aquela mesma conserva, sofrendo contaminação alimentar, então cuida-se de
fornecimento defeituoso.
É certo que, mesmo na hipótese de consumo de produtos ou serviços
viciados, sobrevêm em pequena medida prejuízos aos consumidores. Em geral,
há pelo menos as despesas com idas ao estabelecimento empresarial do
fornecedor, e perda de tempo. Se o valor dessas despesas é pequeno, a ponto de
ser absorvido pelo próprio consumidor, pode-se considerar que inexistiram
propriamente prejuízos. É claro que a lei assegura a indenização do consumidor
independentemente do montante das perdas, inclusive em decorrência de
fornecimento viciado. Assim, mesmo as despesas decorrentes daquelas
importunações relacionadas com o saneamento do vício, de reduzido valor,
podem ser objeto de ressarcimento, caso o consumidor as demonstre. Já, por
outro lado, não caracteriza vício, mas sim defeito, a existência de prejuí-zos
consideráveis relacionados com o fornecimento, tais a perda de dia de trabalho
ou do próprio emprego, lesões, tratamento médico, lucros cessantes etc.
Não é fácil precisar o limite a partir do qual o fornecimento se determina
como viciado ou defeituoso. A questão envolve, certamente, a dimensão das
perdas. Se o liquidificador simplesmente não funciona, e o consumidor aproveita
a sua ida ao estabelecimento do fornecedor para outros fins, e apresenta sua
reclamação, e é prontamente atendido, caracteriza-se inequívoco caso de
fornecimento viciado. Se o liquidificador, no entanto, provoca curto-circuito na
rede de alimentação de energia elétrica e causa pequeno incêndio, verifica-se
inequívoca hipótese de fornecimento defeituoso. Entre ambos os extremos, é
difícil situar a fronteira a partir da qual as perdas do consumidor, pela falta de
qualidade do produto ou serviço, não caracteriza mais vício, e sim defeito. Tal
imprecisão conceitual, contudo, não pode trazer qualquer consequência em
desfavor dos consumidores. Se a ação indenizatória fundar-se em
responsabilidade por fornecimento viciado, quando era caso de fornecimento
defeituoso, ou vice-versa, isso não tem nenhuma importância, em razão da
natureza embrionária dos conceitos da teoria consumerista.
8.1. Impropriedade nos Produtos e Serviços
O Código de Defesa do Consumidor define impropriedade nos produtos e
serviços respectivamente nos arts. 18, § 6º e 20, § 2º. A interpretação desses
dispositivos aponta para a distinção de dois níveis de impropriedade: intrínseca e
extrínseca.
Manifesta-se a impropriedade intrínseca nos produtos, em termos gerais,
quando, por qualquer razão, não se revelam adequados aos fins a que se
destinam. A análise do comprometimento das finalidades do consumo do produto
é questão técnica, que não se pode resolver simplesmente pela perspectiva do
próprio consumidor. Nessa categoria de fornecimento viciado, incluem-se os
produtos deteriorados, alterados, adulterados, avariados, corrompidos, nocivos à
vida ou à saúde e os perigosos. Aqui, a impropriedade refere-se a atributos da
substancialidade do produto, comprometedores da realização dos fins a que se
destina. Nem o consumidor, nem ninguém, conseguiria utilizá-lo
proveitosamente, porque isso é impossível. Anote-se, à margem da questão, que
a venda de produto nocivo ou perigoso somente configura fornecimento viciado
se, a despeito da nocividade ou periculosidade, inocorrerem danos à saúde,
integridade física ou interesse patrimonial do consumidor. Na hipótese de se
verificarem tais danos, o fornecimento se determina como perigoso, se as
informações acerca de seus riscos forem insuficientes e inadequadas ao
consumo seguro.
Por outro lado, a impropriedade extrínseca se revela em função de fatores
estranhos à substancialidade do bem cujos efeitos o legislador considerou
semelhantes aos do comprometimento da finalidade do consumo do produto.
Compreende três hipóteses: o vencimento do prazo de validade, a falsificação ou
fraude da mercadoria e a inobservância de normas técnicas regulamentares de
fabricação, distribuição ou apresentação. Note-se que, nesses casos, o produto até
eventualmente poderia se mostrar apropriado ao consumo, mas estabelece a lei a
presunção absoluta de vício. A calça fabricada pelo usurpador de marca,
eventualmente, pode ser tão boa ou até melhor que a fornecida pelo legítimo
titular do direito industrial. Não interessam, no entanto, as qualidades
apresentadas pelos produtos, pois a falsificação da peça de vestuário, decorrente
de contrafação, caracteriza modalidade de viciamento, independentemente
daquelas qualidades. O desatendimento de norma técnica regulamentar de
fabricação, distribuição ou apresentação pode, por vezes, não implicar
oferecimento ao mercado de produto imprestável. É isto, no entanto, irrelevante,
já que a desobediência referida já basta à caracterização do fornecimento
viciado.
No tocante aos serviços, revela-se a impropriedade intrínseca quando se
mostram inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam.
Exemplificativamente, a desinsetização que resulta ineficaz. O exame da
adequabilidade do serviço aos seus fins envolve, segundo entendo, apreciação
técnica e não se pode circunscrever unicamente às expectativas nutridas pelos
consumidores. Já a impropriedade extrínseca decorre do desatendimento de
normas regulamentares de prestabilidade. Claro que, por se cuidar de presunção
absoluta da lei, o vício por inobservância de regulamento se configura ainda no
caso de se mostrar eficaz o serviço. Ao juiz cabe, no entanto, sopesar
adequadamente os aspectos particulares de cada caso, de modo a evitar o
locupletamento indevido do consumidor.
O vício pode ser intrínseco ou
extrínseco. No primeiro caso, o
produto
ou
serviço
é
materialmente imprestável às
finalidades a que se destinam;
no segundo, sua prestabilidade
é comprometida por fatores
externos, como a falsificação
da marca, vencimento do prazo
de
validade
e
outras
presunções legais.
Além da hipótese de impropriedade intrínseca ou extrínseca, a lei também
considera o fornecimento viciado quando se verifica diminuição do valor do bem
ou serviço, ou, ainda, disparidade com as indicações constantes do recipiente,
embalagem, rotulagem ou publicidade. No que diz respeito a essa última situação
— disparidade com a publicidade —, deve o intérprete levar em conta as
características culturais próprias da atividade publicitária, que busca mobilizar o
imaginário dos consumidores de modo a promover o consumo. Em decorrência
disso, há disparidades entre a realidade do produto ou serviço e a respectiva
publicidade que não chegam a tipificar o ilícito da enganosidade (CDC, art. 37, §
1º), e, consequentemente, não configuram vício de fornecimento. Apresentar,
por exemplo, em filme publicitário uma barra de chocolate flutuando no ar, ao se
ouvir sua denominação entoada melodiosamente por uma bela mulher, não dá
ensejo ao consumidor reclamar por vício decorrente de disparidade entre o
veiculado no anúncio e os reais atributos do produto. Para que a disparidade com
a mensagem publicitária caracterize vício de fornecimento é necessário que se
verifique a ilicitude de publicidade enganosa (Cap. 9).
8.2. Superação da Teoria Tradicional dos Vícios
Redibitórios
A teoria tradicional dos vícios redibitórios insere-se na disciplina dos
contratos comutativos e exige, para atendimento dos interesses do contratante
lesado, os seguintes requisitos: vínculo contratual, ocultação da impropriedade,
apreciação econômica e indenizabilidade apenas em caso de má-fé. Quanto aos
seus direitos, tradicionalmente se reconheceu apenas a alternativa entre a ação
redibitória e a estimatória (cf., por todos, Silva Pereira, 1963:103/109). Esse é
ainda, genericamente, o regime dos contratos civis e empresariais.
A disciplina dos vícios no
CDC é diferente da teoria
clássica dos vícios redibitórios,
em quatro tópicos: superação
do princípio da relatividade,
consideração
dos
vícios
aparentes, irrelevância da
apreciação
econômica
e
objetividade
na
responsabilização.
No âmbito dos contratos comutativos sujeitos à tutela do Código de Defesa
do Consumidor, revolucionaram-se tais requisitos. Como significativa revelação
da insuficiência dos princípios jurídicos do liberalismo econômico, para a efetiva
tutela dos consumidores, afastam--se, quase completamente, os contornos da
teoria clássica dos vícios redibitórios, para fundar a proteção contra o
fornecimento viciado em bases substancialmente distintas.
Assim, em primeiro lugar, não se exige em todos os casos a presença de
vínculo contratual entre o consumidor e o fornecedor reclamado. Superando o
princípio da relatividade, a lei reconhece a possibilidade de demanda por vício
diretamente contra o fabricante do produto ou o fornecedor originário do serviço.
O direito de reclamação não é restrito ao fornecedor imediato, com quem se
celebra o contrato. Também o titular de produto ou serviço, presenteado por
terceiro, tem ação contra o fornecedor, embora entre eles inexista qualquer
relação contratual.
Claro que o consumidor não pode, para reclamar seus direitos, dirigir-se
contra qualquer comerciante estabelecido que também transacione com o
produto viciado. O superamento do princípio da relatividade na disciplina das
relações de consumo não tem essa extensão, embora futuramente possa vir a ter.
O consumidor poderá eleger para o recebimento da reclamação, entre todos os
agentes econômicos participantes do fornecimento do produto por ele titularizado,
o que se lhe apresentar mais conveniente. Depois, os empresários se acertarão,
em regresso, no tocante às responsabilidades pela viciação da mercadoria. Aliás,
tendo em vista a eventualidade do exercício do direito de regresso, o consumidor
é sempre obrigado a informar ao fabricante reclamado (ou na petição inicial de
sua ação indenizatória) a identidade do comerciante de quem adquiriu o produto.
Alguma doutrina (Amaral Jr., 1992:105/106) cogita da indispensabilidade
de vínculo contratual originário na reclamação por vício, apontando nesse
requisito, inclusive, uma das diferenças entre fornecimento viciado e defeituoso.
Contudo, como o referido vínculo contratual originário está sempre presente em
toda introdução de mercadorias na cadeia de circulação econômica, ele não
pode propriamente servir de fator diferencial. Rigorosamente falando, o
superamento do princípio da relatividade desponta em termos diversos, na
reclamação por vícios ou por defeitos, mas de acordo com outros fatores, não
pertinentes ao chamado contrato originário. Assim, na viciação do fornecimento,
tem legitimidade para reclamar o titular do direito de propriedade do produto ou
o do direito ao recebimento do serviço, ao passo que na defeituosidade, a
reclamação cabe à vítima do acidente de consumo, ainda que não titularize a
propriedade do bem ou o direito à comodidade. Nas duas hipóteses, não se
condiciona o exercício dos direitos pelo consumidor à ligação contratual direta
com o fornecedor. Desde que o empresário tenha participado da circulação
econômica do produto ou do serviço, poderá ser demandado.
Na disciplina do fornecimento viciado, apenas em duas oportunidades o
legislador não superou o princípio da relatividade contratual. Cuida-se da
reclamação por vício de qualidade em produtos in natura de produtor não
identificado (CDC, art. 18, § 4º) e por vício de quantidade em produtos
decorrentes de pesagem ou medição feita por instrumento não aferido segundo
padrões oficiais (CDC, art. 19, § 2º). Nesses dois casos, o demandado será
sempre o fornecedor imediato, isto é, o comerciante de quem o consumidor
adquiriu diretamente o produto.
Outro elemento da teoria clássica dos vícios redibitórios afastado pelo
Código de Defesa do Consumidor, na disciplina do fornecimento viciado, diz
respeito à ocultação da impropriedade. Nos contratos civis ou comerciais, o vício
deve ser oculto para que o contratante lesado possa pleitear a redibição ou a
redução do preço. Na relação de consumo, contudo, responde o fornecedor
também por vício aparente ou de fácil constatação. É inequívoca tal amplitude da
responsabilização do fornecedor diante do disposto no art. 26, que, ao disciplinar a
decadência da reclamação, menciona expressamente vícios dessa natureza.
Também se afasta, na análise do fornecimento viciado, qualquer
apreciação da extensão do prejuízo imposto ao consumidor. Segundo a teoria
tradicional dos vícios redibitórios, o contratante não tem direito a reclamação se
os danos decorrentes da viciação do objeto contratual forem de reduzida monta.
Por evidente, nas relações de consumo, essa ressalva seria um despropósito,
conquanto a grande massa dos negócios de que participa o consumidor envolve
valores reduzidos.
Por fim, o último requisito da teoria tradicional não acolhida pelo Código
de Defesa do Consumidor diz respeito ao caráter objetivo da responsabilidade do
fornecedor pelos danos decorrentes do viciamento dos produtos ou serviços. Nos
contratos referentes à relação de consumo, mesmo se ficar demonstrado o
desconhecimento do fornecedor quanto ao vício objeto de reclamação, ele
poderá ser responsabilizado pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo
consumidor. Nos quadrantes da teoria clássica dos vícios redibitórios, o
contratante reclamado somente é responsável pela indenização da outra parte, se
ficar provada a sua má-fé.
8.3. Perdas e Danos por Fornecimento Viciado
A lei tutelar dos consumidores, é certo, não menciona especificamente a
responsabilidade por perdas e danos em todas as hipóteses de solução de
fornecimento viciado, mas somente na alternativa referente à ação redibitória
(CDC, art. 18, § 1º, II, art. 19, IV e art. 20, II). A doutrina entende, no entanto,
que a omissão localizada do legislador não afasta a conclusão da plena
ressarcibilidade dos danos sofridos pelo consumidor no fornecimento viciado, em
razão do previsto, como regra geral, pelo art. 6º, VI, do Código, que define como
direito básico do consumidor a efetiva reparação de danos patrimoniais e morais
(cf., por todos, Nery Jr., 1992:56/61). Trata-se do melhor entendimento da
matéria. Como menciona René Roblot, a jurisprudência francesa tem admitido,
mesmo sob a égide do código civil napoleônico, o tratamento do vendedor
profissional ou fabricante, em matéria de vícios, como contratante de má-fé. Por
considerar que ele não poderia ignorar os vícios, por presumir o seu
conhecimento ou por atribuir-lhe o dever de conhecê-los, a Corte de Cassação na
França tem condenado o empresário à completa indenização dos consumidores
em decorrência da venda de produtos viciados (Ripert-Roblot, 1947, 2:587). Ora,
se mesmo com fundamento em textos legislativos oitocentistas, é possível
reconhecer o dever de plena indenizabilidade dos consumidores por
fornecimento viciado, então com maior razão se deve interpretar no mesmo
sentido a legislação consumerista.
9. DIREITOS DO CONSUMIDOR NA SOLUÇÃO DOS VÍCIOS
Para fins de disciplinar os direitos do consumidor na solução dos vícios de
fornecimento, o legislador distingue três situações: vício de qualidade no produto
(CDC, art. 18), vício de quantidade no produto (CDC, arts. 18 e 19) e vício de
qualidade no serviço (CDC, art. 20). Aparentemente, a lei considera que o
serviço não é suscetível de vício de quantidade, já que não tratou
especificamente dessa hipótese. No entanto, pode-se cogitar do pacote de viagem
encurtado em alguns dias, da lavanderia que deixou de lavar todas as peças que
lhe foram entregues, do serviço de dedetização que não alcançou todos os
cômodos da casa para os quais foi encomendado e outros, como exemplos de
serviços quantitativamente viciados. O vício de quantidade no serviço, à falta de
expressa disposição legal correspondente, deve subsumir-se ao previsto pelo art.
20 do CDC, isto é, deve ser considerado espécie de vício de qualidade no serviço.
As alternativas abertas ao consumidor em razão de fornecimento viciado
são, sempre, excludentes. Uma vez escolhida uma delas, torna--se irretratável a
decisão do consumidor. Claro que, valendo-se da ação executória específica e
recebendo o consumidor novamente produto ou serviço viciado, renovam-se os
seus direitos e prazos, sendo-lhe assegurado tanto insistir na mesma opção como
acionar outra. A escolha pela ação estimatória deve ser suficientemente
documentada pelo fornecedor para evitar que consumidor de má-fé possa
cumular a redução proporcional do preço com outra alternativa.
Por evidente, o oferecimento ao mercado de consumo de produtos ou
serviços com vícios declarados, como a venda de mercadorias de ponta de
estoque, não se submete ao mesmo regime de coibição reservado aos
fornecimentos viciados em geral. Se o consumidor é suficientemente esclarecido
de que o produto ou serviço em particular apresenta certo e identificado vício de
qualidade ou quantidade, razão pela qual o seu preço é reduzido em relação aos
demais da mesma espécie, marca ou modelo, e ele, de posse dessas
informações, concorda em adquiri-lo em vistas de vantagens econômicas que
entende obter na realização do negócio, então não há que se cogitar de aplicação
dos arts. 18 a 20 do CDC. Mais uma vez, o empresário deve documentar
suficientemente a transação para frustrar qualquer abuso da parte do consumidor
de má-fé.
9.1. Vício de Q ualidade ou de Q uantidade no Produto
Se o vício de qualidade ou de quantidade no produto importarem
imprestabilidade ou inadequabilidade do seu consumo, diminuição de valor ou
ainda decorrerem de disparidade com as indicações constantes de recipiente,
embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, prevê a lei o direito de o
empresário tentar sanar o vício no prazo de trinta dias (CDC, art. 18, § 1º). O
prazo de saneamento pode ser alterado pela vontade das partes, observado o
limite mínimo de sete, e o máximo de cento e oitenta dias (CDC, art. 18, § 2º).
Não se trata, aqui, do prazo de reclamação do consumidor, que, fixado pelo art.
26, não pode ser reduzido contratualmente (CDC, art. 50, caput). Trata-se, isto
sim, do prazo a que o fornecedor, em princípio, tem direito para tentar eliminar o
vício. Na ampliação contratual do prazo de saneamento, não pode o fornecedor
incorrer em prática abusiva. A cláusula no contrato que estabelecer lapso
temporal excessivamente largo para as finalidades do saneamento do vício é nula
(CDC, art. 51, IV), devendo se observar nesse caso o prazo legal de trinta dias.
Na hipótese de vício de
qualidade em produtos, o
fornecedor tem direito de
tentar eliminá-lo, no prazo de
30 dias. Esse prazo pode ser
contratualmente
alterado,
desde que se respeitem os
limites legais.
Em certas situações, o saneamento do vício é impossível. Pode-se, de
antemão, constatar que sua extensão é tamanha que a substituição das partes
viciadas não resolveria o problema ou poderia, inclusive, agravá-lo com o
comprometimento da qualidade ou das características do produto. Outras vezes,
embora factível tecnicamente, revela-se inoportuno o saneamento, pois poderia
provocar a diminuição do valor de troca da mercadoria. E há situações em que o
produto é essencial ao consumidor, como por exemplo a geladeira, fogão,
microcomputador etc. Não terá lugar a concessão do prazo de saneamento
nessas situações, em virtude de a eliminação do vício, se realizável, revelar-se
não só insuficiente ao atendimento dos interesses do consumidor, como também
geradora de outros problemas, por vezes até mais graves. É a previsão do art. 18,
§ 3º, do CDC.
Vencido o prazo de saneamento, e não solucionado o vício no produto,
abrem-se ao consumidor três alternativas excludentes: a substituição do produto
por outro sem vício (ação executória específica), a rescisão do contrato com a
devolução do produto e a restituição imediata da quantia paga, monetariamente
atualizada (ação redibitória), ou a redução proporcional do preço (ação
estimatória). Como nos contratos de consumo, o fornecedor do bem geralmente
desenvolve produção em massa, é-lhe absolutamente possível substituir o produto
viciado por outro, razão pela qual a lei pôde prescrever a ação executória
específica.
Código
de
Defesa
do
Consumidor
Art. 18, § 1º Não sendo o vício
sanado no prazo máximo de 30
(trinta)
dias,
pode
o
consumidor
exigir,
alternativamente e à sua
escolha:
I — a substituição do produto
por outro da mesma espécie,
em perfeitas condições de uso;
II — a restituição imediata da
quantia paga, monetariamente
atualizada, sem prejuízo de
eventuais perdas e danos;
III
—
o
abatimento
proporcional do preço.
Se o vício de quantidade no produto referir-se à defasagem, para menor,
entre o seu conteúdo líquido e as indicações constantes do respectivo recipiente,
embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, não há que se cogitar em
direito do fornecedor ao prazo para tentativa de saneamento do vício.
Note-se que o vício de quantidade vem mencionado tanto no art. 18 quanto
no art. 19 do Código de Defesa do Consumidor. São, na verdade, duas situações
distintas que os elaboradores do texto não explicitaram de forma suficiente.
Incide o art. 18 do CDC, assegurando-se em princípio ao empresário o direito ao
prazo de saneamento, na hipótese de vício de quantidade que afeta a qualidade do
produto, como, por exemplo, o emprego de certa substância em quantidades
inferiores à prescrita pela receita médica, em sua manipulação pelo
farmacêutico. Já o art. 19 do CDC, que não prevê o prazo de saneamento em
nenhuma circunstância, refere-se às insuficiências quantitativas no produto que
não alteram a sua qualidade, como na hipótese do pacote de um quilo de açúcar
no qual há apenas oitocentos gramas.
As alternativas abertas ao consumidor em decorrência de vício de
quantidade no produto, de acordo com o art. 19 do CDC, são as seguintes: o
pronto saneamento do vício, por meio da complementação do conteúdo líquido
ou da substituição do produto (ação executória específica), a rescisão do negócio,
com a devolução do produto viciado e a restituição da importância paga
devidamente atualizada (ação redibitória) ou o abatimento proporcional do preço
(ação estimatória).
Código
de
Defesa
do
Consumidor
Art. 19. Os fornecedores
respondem
solidariamente
pelos vícios de quantidade do
produto
sempre
que,
respeitadas
as
variações
decorrentes de sua natureza,
seu conteúdo líquido for
inferior
às
indicações
constantes do recipiente, da
embalagem, rotulagem ou de
mensagem
publicitária,
podendo o consumidor exigir,
alternativamente e à sua
escolha:
I
—
o
abatimento
proporcional do preço;
II — complementação do peso
ou medida;
III — a substituição do
produto por outro da mesma
espécie, marca ou modelo, sem
os aludidos vícios.
No fornecimento qualitativa ou quantitativamente viciado de produtos, o
consumidor que optar pela ação executória específica poderá, em se mostrando
impossível a substituição do bem por outro da mesma espécie, optar por produto
de tipo, modelo ou marca diferente, desde que também oferecido ao mercado
pelo empresário (CDC, arts. 18, § 4º e 19, § 1º).
9.2. Vício de Q ualidade no Serviço
No viciamento de serviços, a lei oferece ao consumidor as seguintes
alternativas excludentes: a reexecução dos serviços, sem custo adicional e
quando cabível (ação executória específica), a rescisão do contrato com a
restituição da quantia paga devidamente atualizada (ação redibitória) ou a
redução proporcional do preço (ação estimatória).
Código
de
Defesa
do
Consumidor
Art. 20. O fornecedor de
serviços responde pelos vícios
de qualidade que os tornem
impróprios ao consumo ou lhes
diminuam o valor, assim como
por aqueles decorrentes da
disparidade com as indicações
constantes da oferta ou
mensagem
publicitária,
podendo o consumidor exigir,
alternativamente e à sua
escolha:
I — a reexecução dos
serviços, sem custo adicional e
quando cabível;
II — a restituição imediata da
quantia paga, monetariamente
atualizada, sem prejuízo de
eventuais perdas e danos;
III
—
o
abatimento
proporcional do preço.
O legislador, ao tratar os direitos dos consumidores de serviços de forma
impropriamente paralela aos dos consumidores de produtos, elaborou sistemática
capaz de gerar sérias injustiças. Com efeito, as alternativas não podem depender
todas exclusivamente da vontade do consumidor, tal como sugerido no caput do
art. 20. É certo que, já no inciso I, se revela a condição de pertinência para a
realização da ação executória específica. Isto é, como o serviço, via de regra,
comporta saneamento sem necessidade de reexecução, esta apenas quando
cabível poderá ser exigida pelo consumidor. Ora, a indispensabilidade da
reexecução do serviço ou a adoção de outros meios de saneamento de vício é
questão técnica, e não decisão tomada unilateralmente pelo consumidor.
No tocante, entretanto, à alternativa redibitória, não há expressamente no
texto legal a previsão da condição de pertinência, e isso poderá significar, em
casos concretos, locupletamento indevido do consumidor. Imagine-se a pintura
de uma casa que, embora não tenha sido realizada estritamente de acordo com
os elevados padrões de qualidade do consumidor, apresenta-se aceitável sob o
ponto de vista técnico e mesmo para a generalidade das pessoas. Impor-se, aqui,
a restituição do dinheiro pago, sem que seja factível ao fornecedor reaver
minimamente o conteúdo econômico da sua prestação, é altamente injusto. Por
essa razão, cabe ao juiz, ponderando os aspectos próprios do fato submetido a
julgamento, coibir os abusos e negar ao consumidor a ação redibitória,
reconhecendo-lhe somente a estimatória. Afinal, serviço não é produto, que
mesmo viciado sempre se pode restituir ao empresário na rescisão do negócio.
9.3. Decadência do Direito de Reclamação por Vício
O direito de reclamação por vícios no fornecimento deve ser exercido
dentro do prazo decadencial estipulado no art. 26 do Código de Defesa do
Consumidor. Quer dizer, no prazo de trinta dias para o fornecimento não durável
e de noventa para o durável. Não é fácil precisar o critério de distinção entre
essas duas espécies de fornecimento, cabendo apelar-se a referências intuitivas
acerca do tempo de aproveitamento do bem ou comodidade pelo consumidor.
Assim, alimentos e bebidas são produtos não duráveis, ao passo que
eletrodomésticos e livros são duráveis; lavagem de automóveis e estacionamento
são serviços não duráveis, enquanto pintura e consertos mecânicos são duráveis.
Em situações limite, sendo duvidosa a natureza do fornecimento, deve-se reputálo durável, como meio de assegurar amplamente a tutela dos consumidores.
Em se tratando de vício aparente ou de fácil constatação, o prazo começa
a fluir da entrega efetiva do produto ou do término da execução dos serviços, e
sendo o vício oculto inicia-se a fluência da sua manifestação (CDC, art. 26, §§ 1º
e 3º). O vício é aparente quando a desconformidade é óbvia, ostensiva,
manifesta, perceptível sem a mínima dificuldade por qualquer pessoa, antes
mesmo da utilização do produto ou serviço; é de fácil constatação, ao se revelar a
desconformidade na primeira tentativa de utilização do produto ou serviço; e é
oculto nas demais hipóteses. Note-se que o vício aparente não se torna oculto em
razão da demora do consumidor em constatá-lo. Se o eletrodoméstico
permanece meses encaixotado, e sua primeira utilização e a consequente
percepção da desconformidade ocorre depois de já exaurido o prazo decadencial
para a reclamação, o consumidor não poderá alegar ocultação do vício (cf.
Nunes, 1991:37).
Os prazos para o consumidor
reclamar seus direitos, na
hipótese
de
fornecimento
viciado, é de 30 dias, para
produtos ou serviços não
duráveis, e 90 para os
duráveis.
O termo inicial para a
fluência do prazo varia
segundo a natureza do vício. Se
é aparente ou de fácil
constatação,
conta-se
da
entrega do produto ou serviço;
se oculto, da manifestação do
problema.
Estabelece a lei dois fatores obstantes da fluência do prazo decadencial
(CDC, art. 26, § 2º). Trata-se, rigorosamente falando, de hipóteses de suspensão
da decadência (Denari, 1991:121/122), mais uma inovação na teoria do direito
trazida pela legislação consumerista (para o direito civil, com efeito, os prazos de
decadência não se interrompem nem se suspendem — Coelho, 2003:374/380). A
comprovada reclamação do consumidor e a instauração de inquérito civil pelo
Ministério Público sustam a fluência do prazo legal para o consumidor exercer
seus direitos relativamente ao vício do fornecimento. O prazo volta a correr a
partir da resposta do fornecedor, transmitida de forma inequívoca, ou do
encerramento do inquérito civil. Por evidente, tratando-se de suspensão, deve-se
considerar no cômputo do prazo o tempo decorrido anteriormente à
superveniência do fator obstante.
Questão não inteiramente definida pelo texto legal indaga se, para o
consumidor evitar o perecimento de seu direito, basta a simples reclamação
junto ao fornecedor ou ao Ministério Público dentro do prazo do art. 26, ou se
também é necessário o aforamento da ação judicial antes da conclusão desse
mesmo prazo. Para Antonio Benjamin, a decadência diz respeito apenas à
reclamação do consumidor, podendo ser promovida a ação judicial mesmo
depois de vencido o termo do art. 26 do CDC, desde que, por certo, tenha se
verificado no momento oportuno aquele reclamo (1991b:131).
Para Cláudia Lima Marques, no entanto, se a lei define como causa
obstante da fluência do prazo a própria formulação de reclamação junto ao
fornecedor, então a decadência só pode dizer respeito ao direito de reclamar em
juízo. Se o art. 26 fosse pertinente apenas à reclamação extrajudicial, a sua
formulação não poderia ser definida como causa suspensiva, já que representa o
próprio exercício do direito (1992:204). No mesmo sentido de tomar o prazo de
decadência do Código de Defesa do Consumidor como abrangente do exercício
judicial do direito de reclamar a solução dos vícios, encontra-se a lição de
Thereza Alvim. Acentua ela, inclusive, que o despacho do juiz determinando a
citação é o fator impeditivo da consumação da decadência, desde que realizada
esta nos termos dos arts. 219 e 220 do Código de Processo Civil (1991:69/72).
Trata-se, a meu ver, da resposta mais ajustada à indagação. O consumidor deve,
portanto, promover o ajuizamento da competente ação, antes do fim do prazo de
trinta ou noventa dias previsto na lei, sob pena de decadência do direito.
10. RELAÇÕES INTEREMPRESARIAIS E Q UALIDADE DO
FORNECIMENTO
Muitos dos aspectos das relações dos fornecedores entre si são relevantes
para a adequada interpretação do regramento introduzido pelo Código de Defesa
do Consumidor na disciplina privada da economia. Destacam-se, em primeiro
lugar, o exercício do direito de regresso do empresário condenado a ressarcir o
consumidor contra o culpado pelo acidente de consumo ou pela viciação do
fornecimento; em seguida, a responsabilidade do sucessor, do licenciador e do
franqueador pelo fornecimento realizado pelo antecessor, licenciado ou
franqueado; e, por último, a responsabilidade das sociedades controladas,
consorciadas, coligadas e integrantes de grupo.
10.1. Direito de Regresso
Como examinado anteriormente, o superamento do princípio da
relatividade possibilita ao consumidor demandar, por acidente de consumo ou por
fornecimento viciado, qualquer um dos agentes econômicos que participam da
produção ou circulação do produto ou serviço sem qualidade.
É certo que se preocupou o legislador em ressalvar determinadas
situações, em que o superamento do princípio da relatividade poderia se
apresentar inoperante ou injusto. Assim, o comerciante responde por acidentes
de consumo, se não for facilmente identificável o fabricante, construtor, produtor
ou importador, ou, ainda, se negligenciar na conservação de produtos perecíveis
(CDC, art. 13); e o fornecedor imediato responde por vícios em produtos in
natura sem clara identificação do produtor (CDC, art. 18, § 5º) ou por vícios de
quantidade em produtos originados de pesagem ou medição, feita com o uso de
instrumento não aferido segundo padrões oficiais (CDC, art. 19, § 2º).
Excetuadas, contudo, tais hipóteses em particular, ao consumidor se abre a
oportunidade de escolher, entre os fornecedores imediatos e mediatos, reais,
presumidos ou aparentes, qual deles deverá ser demandado.
Claro que, uma vez decidido quem o consumidor prefere demandar,
somente em caso de falência ou insolvência do demandado poderá este voltar-se
contra outro fornecedor alegando idêntico fundamento. Se for julgada
improcedente a postulação judicial do consumidor, por caracterizada a
inexistência de fornecimento perigoso, defeituoso ou viciado, não poderá ser
pleiteada igual tutela contra outro empresário da cadeia econômica. Revela-se,
inclusive, de todo conveniente, que os empresários intercambiem informações,
sempre que forem acionados por acidente de consumo, de modo a evitar, por
exemplo, que consumidor de má-fé acione concomitantemente, e pelo mesmo
fundamento, mais de um fornecedor.
Código
de
Defesa
do
Consumidor
Art. 13, parágrafo único.
Aquele
que
efetivar
o
pagamento ao prejudicado
poderá exercer o direito de
regresso contra os demais
responsáveis, segundo sua
participação na causação do
evento danoso.
O direito de regresso é expressamente previsto pela lei tutelar dos
consumidores, no parágrafo único do art. 13, que, a despeito de sua localização
na seção destinada aos fatos do produto ou serviço, aplica--se à generalidade das
relações interempresariais. Mas, ao contrário da legislação consumerista
portuguesa, que disciplina especificamente a distribuição dos encargos entre os
agentes econômicos do fornecimento perigoso, defeituoso ou viciado, o nosso
direito se limita a assegurar o regresso na disciplina das relações
interempresariais, nada definindo quanto ao seu regime.
Conclui-se, então, que o regime jurídico próprio do exercício do direito de
regresso é o civil, para as questões gerais, e o comercial, para as específicas. Isto
significa, por exemplo, que o fornecedor tem perante o consumidor
responsabilidade objetiva, mas somente poderá demandar, em regresso, outro
fornecedor, com fundamento na verificação da culpa. Significa, outrossim, que
não poderá pleitear a inversão de ônus probatório ou o superamento do princípio
da relatividade contratual. Também significa que os empresários podem
livremente contratar a distribuição, entre eles, dos encargos decorrentes da
responsabilidade por fornecimento, inexistindo quaisquer limites à autonomia da
vontade nesse âmbito.
Em algumas oportunidades, poderá se revelar injusto, tanto quanto era em
relação ao consumidor, impor-se ao comerciante titular do direito de regresso a
prova da ocorrência de vício, ou defeito de concepção ou de execução no
fornecimento. Contudo, o Código de Defesa do Consumidor não pode ser
aplicado além da relação de consumo, salvo nas hipóteses expressamente
ressalvadas. Em vista disso, é altamente oportuno aos empresários, insertos em
determinada cadeia de circulação econômica, celebrarem, com os demais
fornecedores, contrato de repartição das responsabilidades decorrentes da
legislação consumerista.
10.2. Responsabilidade do Sucessor
Em relação ao sucessor, impõe-se o exame da extensão de sua
responsabilidade pelo passivo consumerista do antecessor. Note-se que,
tecnicamente considerando, apenas é correto chamar de sucessor ao adquirente
de estabelecimento empresarial que, de modo expresso, se sub-roga nas
obrigações do alienante. Sucessão, em termos próprios, não se verifica sempre
nesse tipo de contrato interempresarial (trespasse) nem em todas as operações de
assunção de atividade econômica. Há contratos de transferência de empresa, tais
a cessão total de cotas da sociedade limitada ou a alienação de controle da
sociedade anônima, que, embora guardem semelhanças econômicas e
administrativas com a alienação do estabelecimento empresarial, não importam
sucessão empresarial. Note-se que a alienação de participação societária não
altera, em nenhuma circunstância, as responsabilidades da pessoa jurídica. Os
seus credores anteriores àquele contrato, inclusive os consumidores,
permanecem rigorosamente titulares dos mesmos direitos.
Na alienação do estabelecimento empresarial, contudo, os consumidores
que titularizam crédito perante o alienante por obrigação decorrente de má
qualidade do fornecimento, não estão adequadamente tutelados pelo Código de
Defesa do Consumidor. Com a venda do estabelecimento, não se transfere
necessariamente ao adquirente o passivo do alienante. No direito brasileiro, como
no alemão e no italiano (Cap. 5, item 6.1), o adquirente de estabelecimento
empresarial é, em regra, presumido sucessor do alienante, continue ou não a
exploração de idêntica atividade econômica no local, desde que a obrigação
esteja regularmente contabilizada. É certo que, desejando o novo titular do
estabelecimento dar prosseguimento à mesma empresa ali organizada, a cautela
recomenda que ele assuma a obrigação de solver o passivo consumerista do
alienante, compensando-se, no preço da venda, o valor deste. Assim procedendo,
tende a manter sua clientela. Mas não tendo havido expressamente a sub-rogação
do passivo consumerista, o adquirente não responderá, em regra, pelas
obrigações do alienante, e, por via de consequência, os consumidores poderão ter
dificuldades em realizar os seus créditos.
O Código Tributário Nacional atribui à pessoa física ou jurídica de direito
privado que adquirir estabelecimento empresarial, e continuar a sua exploração,
a responsabilidade pelo passivo fiscal do anterior titular. Trata-se de
responsabilidade subsidiária, se o alienante continuar o exercício de atividade
econômica, ou integral, na hipótese de ele não continuar (CTN, art. 133). Na
Consolidação das Leis do Trabalho, o legislador resguardou os créditos
trabalhistas das mudanças na propriedade da empresa (CLT, art. 448). O Código
de Defesa do Consumidor, a exemplo desses outros diplomas, poderia ter
excepcionado o passivo consumerista da disciplina geral das obrigações, pela
qual o adquirente do estabelecimento empresarial não se sub-roga nas dívidas
contraídas pelo alienante não contabilizadas. Não o fazendo, deixou
eventualmente ao desabrigo as vítimas de acidentes de consumo e os
prejudicados por fornecimento viciado, já que se o alienante do estabelecimento
não voltar a se restabelecer, hipótese aliás comum, os consumidores seus
credores terão consideráveis dificuldades para executá-lo, e não poderão
demandar o adquirente.
Embora o adquirente do
estabelecimento empresarial
seja, por lei, responsável pelo
passivo trabalhista e tributário
do alienante, ele não responde
pelo passivo consumerista,
porque o CDC é omisso na
matéria.
Somente se o adquirente do estabelecimento empresarial, por disposição
expressa do instrumento de trespasse, se sub-rogar em todas as obrigações
contraídas pelo alienante, na exploração de atividade econômica naquele local,
ele é considerado sucessor e responde pelas indenizações devidas por seu
antecessor, em virtude de direito titularizado por consumidores.
10.3. Responsabilidade do Licenciador de Direito
Industrial
Introduzindo a questão relativa às responsabilidades do licenciador de
direito industrial pela qualidade do fornecimento prestado pelo licenciado, devese recuperar a classificação básica da propriedade industrial que distingue entre
patente e registro (Cap. 6). Aquela pertinente à exclusividade na exploração
econômica de invenção e modelo de utilidade, e este referente aos desenhos
industriais e às marcas.
O licenciador, tanto de patente como de registro industrial, não se subsume
necessariamente ao conceito legal de fornecedor. O titular de patente de
invenção, por exemplo, ao licenciar um fabricante, não participa do processo
produtivo, estritamente falando. O simples aproveitamento de sua criação
intelectual na produção de mercadorias não caracteriza o exercício de atividade
de fornecimento de bens ao mercado de consumo. Tanto assim, que exaurido o
prazo de duração do direito industrial, o aproveitamento das ideias do inventor
poderá ser feito por qualquer fabricante, sem a necessidade de licença ou
pagamento de royalties. Como se percebe, o titular de direito industrial não é
fornecedor, na hipótese de licença de exploração de patente ou registro por
terceiros; somente o será se ele, além de ter licenciado seu direito, também o
explora economicamente para fornecimento ao mercado de consumo.
A licença de uso de direito industrial é contrato em que o titular ou
depositante de patente ou registro (licenciador) autoriza a sua exploração
econômica pelo outro contratante (licenciado). Trata-se de vínculo obrigacional
sujeito à disciplina geral da locação de coisa e às disposições específicas da Lei
de Propriedade Industrial (arts. 61 a 74, 139 e 140).
Se o licenciador de direito industrial também se puder caracterizar como
fornecedor, nos termos do art. 3º do CDC, ele terá responsabilidade pelos
produtos ou serviços que diretamente oferecer ao mercado e, também, pelos
oferecidos por seu licenciado ou licenciados. Ou seja, se o licenciador da patente
ou da marca, além de autorizar o licenciado a se utilizar de seus direitos
industriais, também os explora diretamente, para fins de fornecimento de
produtos ou serviços ao mercado consumidor, então ele poderá ser
responsabilizado perante os consumidores do licenciado. Isto porque do
consumidor não se pode exigir que conheça os exatos contornos da relação
jurídica existente entre os empresários. Se adquiriu mercadoria, de invenção
patenteada por um fornecedor, e ela apresentou periculosidade, defeito ou vício,
então o consumidor poderá demandar o titular da patente, ainda que aquele
produto, especificamente, tenha sido fabricado por um licenciado. O mesmo se
diga da licença de marca. O consumidor poderá demandar o titular do registro,
se ele também explora diretamente o seu direito industrial, mesmo que tenha
entabulado negociações com um empresário licenciado.
O titular de direito industrial, de patente ou registro, somente se exonera de
responsabilidade perante consumidores de seus licenciados, se demonstrar que
ele não é, sob o ponto de vista jurídico, fornecedor. Ou seja, se provar que é
apenas inventor, designer ou criador de marcas.
10.4. Responsabilidade do “Merchandisor”
Em regra, o licenciador de uso de marca, que também a explora
diretamente, pode ser responsabilizado pelo fornecimento prestado por um
licenciado seu. Há, no entanto, um tipo específico de licença, em que o
licenciador não tem qualquer responsabilidade pelo fornecimento de produtos ou
serviços com sua marca. Trata-se do merchandising, contrato em que o
licenciado usa as marcas registradas ou depositadas do licenciador em produtos
ostensivamente diversos dos fornecidos por esse último.
Por exemplo, o fabricante de roupas, ao estampar o logotipo de famoso
refrigerante em suas camisetas, solicita previamente a autorização ao titular da
marca. A licença, no caso, é merchandising porque o licenciado comercializa
produtos (roupas) suficientemente diferenciados dos fabricados pelo licenciador
(bebida), e não existe a possibilidade de o consumidor médio imaginar que esse
último exerça ou tenha condições de exercer qualquer controle de qualidade
sobre mercadorias estranhas ao seu ramo de atividade. Nessa particular forma
de licença de uso de marca, o licenciador (merchandisor) não responde pelos
perigos, defeitos ou vícios no fornecimento praticado pelo licenciado
(merchandisee). Igual entendimento é adotado por Atti, para quem cabe aos
consumidores o mínimo dever de individualização da fonte produtora
(1989:73/75).
10.5. Responsabilidade do Franqueador
Pela franquia, o empresário (franqueador) licencia o uso de sua marca ao
outro contratante (franqueado) e presta-lhe serviços de organização empresarial,
com ou sem venda de produtos. O objeto principal do contrato é, de um lado, a
autorização do uso dos sinais distintivos e, de outro, a prestação dos serviços de
estruturação de empresa pelo franqueador, experiente na exploração do negócio,
ao franqueado. A venda de produtos não é essencial à franquia, embora em
muitos casos se verifique (Cap. 5).
Pelo fornecimento do franqueado aos consumidores responde o
franqueador, em razão da outorga da licença de uso de marca. Porém, como a
simples prestação de serviços de organização empresarial (engineering,
marketing ou management), desacompanhada da licença, não caracteriza a
franquia, o prestador de tais serviços não responde pelo fornecimento aos
consumidores, prestado pelo adquirente dos mesmos serviços.
10.6. Sociedades Controladas, Consorciadas, Coligadas e Integrantes de Grupo
Por fim, no tocante às relações interempresariais, importa examinar-se o
disposto nos §§ 2º, 3º e 4º do art. 28 do CDC, referente à responsabilidade das
sociedades controladas, consorciadas, coligadas e integrantes de grupo. A
inserção dessa matéria nos desdobramentos do dispositivo referente à
desconsideração da personalidade jurídica é de todo inoportuna, tendo em vista a
significativa distância entre os assuntos.
As sociedades que pertencem
ao
mesmo
grupo
têm
responsabilidade subsidiária
perante os consumidores umas
das outras; a controlada
também, perante o consumidor
da controladora.
As consorciadas respondem
solidariamente e as coligadas
apenas se demonstrada a culpa.
Nos termos do art. 28, § 2º, do CDC, as sociedades integrantes de grupos
societários e as controladas têm responsabilidade subsidiária. Grupo de
sociedades, segundo o art. 265 da LSA, é a reunião de socie-dades sob o controle
de uma brasileira, mediante convenção pela qual se obrigam a combinar
recursos ou esforços tendo em vista a realização de seus objetos sociais ou a
participação em empreendimentos desenvolvidos conjuntamente. Não basta, à
caracterização de grupo societário, a simples existência de sociedades sujeitas ao
mesmo controle. Ainda que desenvolvam atividades comuns ou combinem
recursos, é imprescindível a formalização do grupo por meio da aprovação,
registro e publicação da convenção (LSA, arts. 269 a 271). Assim, ao definir
como subsidiária a responsabilidade de sociedades integrantes de grupo, o Código
de Defesa do Consumidor deve ser interpretado sistematicamente, no sentido de
não se aplicar o dispositivo em tela às meras reuniões de fato. Apenas a
sociedade pertencente a grupo formalizado possui responsabilidade subsidiária
pelas obrigações das demais integrantes em matéria de defesa do consumidor.
Em relação às controladas, prevê o art. 28, § 2º, do CDC também a
subsidiariedade, que deve ser entendida como pertinente às obrigações da
sociedade controladora. Curiosamente, o legislador não atribuiu às controladoras
a responsabilidade subsidiária pelas obrigações das controladas, mas somente o
inverso. Desse modo, afastadas as hipóteses de grupo societário ou de aplicação
da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, a controladora não pode
ser responsabilizada pelo passivo consumerista da controlada.
Importa esclarecer que a responsabilidade subsidiária pressupõe o
exaurimento do patrimônio da principal devedora. Como não se trata de
solidariedade, as sociedades integrantes de grupo e as controladas somente
podem ser executadas após a falência da obrigada perante o consumidor. Mais: é
necessário que a fase de liquidação do processo falimentar esteja encerrada e o
crédito do consumidor não tenha sido integralmente satisfeito. Sem tais
condições, não é possível promover a responsabilização das sociedades
integrantes de grupo ou controladas. Esta é a diferença essencial entre a
subsidiariedade e a solidariedade.
Em relação às consorciadas, estabelece o Código de Defesa do
Consumidor a responsabilidade solidária. A regra geral (LSA, art. 278, § 1º)
prescreve que, nos consórcios, esta não se presume. Quando, contudo, a
obrigação de uma das consorciadas decorrer de relação de consumo, a outra
responderá solidariamente. Acentue-se que a solidariedade limita-se às
obrigações relativas ao objeto do consórcio. Quanto às demais, vigora a regra
geral negativa do vínculo solidário. Os atos e contratos de sociedade em
consórcio estranhos ao objeto deste não obrigam solidariamente a consorciada,
mesmo se decorrentes de relação de consumo. O § 3º do art. 28 do CDC
comporta interpretação restritiva, por representar exceção ao princípio geral da
não presunção da solidariedade.
Finalmente, a lei tutelar dos consumidores estipula que as sociedades
coligadas respondem apenas por culpa. São dessa natureza as sociedades em que
uma participa com dez por cento ou mais do capital social da outra, sem a
controlar contudo (LSA, art. 243, § 1º). A rigor, não seria necessário dispor nesse
sentido, já que a natureza geral da responsabilidade civil tem a culpa como
elemento essencial. Bastaria ao Código de Defesa do Consumidor silenciar a
respeito das sociedades coligadas para que a responsabilidade delas não existisse
senão na hipótese genericamente prevista pelo art. 927 do Código Civil. Contudo,
o legislador parece ter considerado importante a previsão expressa das condições
de responsabilização das coligadas como forma de impedir qualquer aplicação
analógica do prescrito em relação às controladas.
Capítulo 9
A ATIVIDADE EMPRESARIAL E A PUBLICIDADE
1. A PUBLICIDADE E A TUTELA DO CONSUMIDOR
Segundo uma interpretação romântica da evolução humana, a publicidade
e seu extraordinário potencial de influência na conduta das pessoas teria sido
descoberta já pelo homem pré-histórico ao observar certos aspectos da natureza.
Assim, o parente próximo do Pithecanthropus erectus teria intuído os benefícios
da publicidade ao perceber o murmúrio do regato anunciando a existência de
água fresca, o rugido da fêmea no cio chamando a atenção do macho, o canto
dos pássaros atraindo as suas companheiras e os frutos mais intensamente
coloridos despertando a voracidade das aves, como as flores a dos insetos, e
propiciando assim que suas sementes se espalhassem para outras paisagens.
Inspirado nas lições da natureza, o homem, desde então, teria feito da publicidade
a arma suprema de competição com os seus semelhantes. Essa é a concepção de
Kerner, para quem a publicidade é instrumento que, eficientemente manuseado,
pode erguer os medíocres acima dos que, embora superiores, deixam de utilizála (apud Giacomini Filho, 1991:11).
Essa ideia excessivamente larga de publicidade, que a identifica por todas
as partes, não apresenta qualquer operacionalidade conceitual. Importa, pois,
depurá-la para restringir o conceito à ação humana. Mais especificamente à
ação econômica destinada a convencer consumidores a adquirirem os produtos
ou serviços objeto de promoção. Os meios usados na transmissão da mensagem
variam enormemente, compreendendo desde simples panfletos e pequenos
anúncios impressos em jornais, até cartazes externos (outdoor), links
patrocinados em ferramentas de busca na internet e inserções em rádio e TV.
No conceito de publicidade não se enquadram todas as mensagens
persuasivas veiculadas pelos meios de comunicação em massa. Há também
aquelas sem conteúdo mercantil, destinadas a público que não pode
juridicamente ser considerado consumidor, tais como as de mensagem política,
oferta de emprego, campanhas públicas de vacinação ou esclarecimento sobre
doenças e outras para as quais se deve reservar o conceito de propaganda. No
direito brasileiro, ao contrário do que se verifica em outros ordenamentos, não
era comum distinguirem-se esses dois conceitos. Publicidade e propaganda
muitas vezes foram tidas por expressões sinônimas, como se pode verificar na
leitura da Lei n. 4.680/65, diploma básico de regulamentação da atividade
publicitária, que usa indistintamente ambas as acepções.
A distinção entre publicidade e propaganda foi, em certa medida, adotada
pelo Código de Defesa do Consumidor. Certo é que ao se referir à sanção
administrativa cabível contra a publicidade enganosa ou abusiva, optou o
legislador pela expressão contrapropaganda. Mas, salvo nessa passagem, valeuse em geral do conceito próprio de publicidade, isto é, a veiculação de
mensagens com o objetivo de motivar pessoas ao consumo.
Publicidade
é
a
ação
econômica que visa a motivar o
consumo de produtos ou
serviços,
por
meio
da
veiculação
de
mensagens
persuasivas
por
diversas
mídias. Não se confunde com a
propaganda, cujos objetivos
não são mercantis.
A disciplina jurídica da publicidade não se esgota na questão de tutela do
consumidor. Há outros aspectos da atividade publicitária que reclamam
regramento jurídico, como os pertinentes às relações entre a agência, o veículo e
o anunciante, a ética profissional, a relação quantitativa entre publicidade e
programação no rádio e TV etc. A disciplina dos deveres do anunciante para
com os destinatários da mensagem publicitária se revela, não obstante a sua
significativa importância, apenas um dos muitos assuntos a serem tratados pelo
direito, no tocante à publicidade.
No Brasil, os efeitos da atividade publicitária relativamente ao seu público
é matéria abrangida unicamente pelo Código de Defesa do Consumidor. É esta
também a alternativa seguida pelo Code de la Consommation, em França. A
sucinta análise do panorama de direito comparado, no entanto, possibilita
constatar que essa vinculação do assunto à legislação consumerista não
corresponde à opção de legisladores de outros países. Na Itália, por exemplo, há
normas sobre o tema na disciplina geral da difusão radiotelevisiva, em diploma
que contempla desde critérios urbanísticos e administrativos para a outorga de
concessão de serviço de transmissão por rádio e televisão, até a prescrição do
pluralismo e imparcialidade como princípios fundamentais do sistema (a “legge
Mammì”). Por evidente, essa opção do legislador italiano, embora abrangente e
normatizadora de diferentes aspectos da comunicação em massa, para o
consumerismo se revela insuficiente, pois importa em deixar ao desabrigo o
consumidor exposto a publicidade veiculada em cartazes externos, jornais,
periódicos, embalagens, rotulagens e outros meios não operados pela transmissão
radiotelevisiva. Nos Estados Unidos, por sua vez, grande parte dos problemas
relacionados à publicidade em meios de comunicação em massa — seja a de
natureza comercial, seja de qualquer outro tipo — são resolvidos, no âmbito da
common law, a partir da discussão dos limites da Primeira Emenda à
Constituição, que garante a liberdade de expressão (Zuckman-Gay nes-CarterDee, 1983:331/343).
Na Espanha, optou-se em 1988 por uma lei geral sobre publicidade, que,
além de disciplinar o contrato entre anunciante e as agências de propaganda,
define e sanciona as publicidades ilícitas (abusiva, enganosa, desleal, subliminar e
irregular). Também em Portugal, vigora, desde 1980, o Código da Publicidade (o
atual é de 1990), em que se regulamenta amplamente a atividade publicitária,
excluindo apenas a propaganda política. Nele, encontram-se também normas
pertinentes aos deveres dos anunciantes para com os consumidores. Trata-se,
talvez, da alternativa legislativa mais adequada, por possibilitar o tratamento
sistemático do assunto, e consequentemente liberar tutela não só ao consumidor,
mas a todos os destinatários de mensagem publicitária.
No direito brasileiro, em que a responsabilidade dos anunciantes pelo
conteúdo da publicidade é matéria inscrita unicamente na lei de proteção dos
consumidores, somente os seus espectadores que se possam determinar,
juridicamente, como insertos em relação de consumo são, em princípio,
protegidos. O postulante a emprego não pode invocar o Código de Defesa do
Consumidor contra o empresário que anuncia em jornal a existência de vagas
em sua empresa, porque entre eles se estabelece relação jurídica de direito do
trabalho. O cidadão também não pode, baseando-se naquele mesmo código,
dirigir-se contra o administrador público que propagandeia suas obras, já que a
relação jurídica que os aproxima é de direito público. Entre o postulante a
emprego e o empregador, e entre o cidadão e o seu representante político, não se
estabelece relação de consumo, não incidindo, por isso, nesses casos o Código de
Defesa do Consumidor.
O Código de Defesa do Consumidor se aplica apenas às relações jurídicas
entre o destinatário final de bens ou serviços e os exercentes de atividade de
fornecimento ao mercado de consumo (CDC, arts. 2º e 3º), cuidando das demais
relações o regime jurídico próprio do direito trabalhista, administrativo, civil ou
comercial.
Relação de consumo é aquela
que envolve, de um lado, uma
pessoa que se pode considerar
“consumidor” (nos termos do
conceito legal do art. 2º do
CDC) e, de outro, uma que se
considera
“fornecedor”
(segundo o definido pelo art. 3º
do CDC).
As normas sobre publicidade
enganosa ou abusiva do CDC
somente se aplicam se o
destinatário da mensagem é (ou
pode vir a ser) consumidor, e o
anunciante é fornecedor.
Também não se submete às normas sobre publicidade do CDC aquele
que, sem exercer qualquer atividade econômica de fornecimento de bens ou
serviços ao mercado, anuncia a venda ou locação de bens de seu patrimônio. Se
eu anunciar, em classificados de jornal, meu carro para venda, a mensagem não
estará sujeita ao CDC, porque não me enquadro no conceito legal de fornecedor,
já que não desenvolvo atividade econômica de comercialização de veículos
usados. De fato, inexiste relação de consumo na hipótese porque, embora o
espectador da mensagem seja provavelmente o destinatário final do objeto do
contrato, o anunciante não se enquadra no conceito de fornecedor do art. 3º do
CDC. Trata-se, em suma, aqui de contrato disciplinado pelo direito civil, e
portanto excluído do âmbito de incidência da norma tutelar dos consumidores.
Por último, sequer toda a publicidade comercial é abrangida pelas normas
do Código de Defesa do Consumidor. Há peças publicitárias dirigidas
especificamente aos empresários, as quais nem sempre se subordinam à
disciplina da lei tutelar do consumo, exatamente porque se inserem em relação
interempresarial, de direito comercial, e, portanto, igualmente estranha ao
âmbito de incidência do CDC. São dessa natureza a publicidade referente ao
próprio meio de comunicação (outdoor acerca das vantagens de se anunciar em
outdoor, comercial de rádio propagando a eficiência da publicidade radiofônica
etc.), a promovida pelas agências de propaganda e as pertinentes a bens de
produção.
É certo, por um lado, que o art. 29 do CDC equipara ao consumidor as
pessoas, determináveis ou não, expostas à publicidade. Essa equiparação, no
entanto, não alcança o pretendente ao emprego, o cidadão ou o empresário
expostos respectivamente à propaganda do empregador e do administrador
público, ou à publicidade de insumos. O universo das pessoas albergadas por
aquele dispositivo restringe-se aos consumidores em potencial. Com efeito, o
consumidor é sempre pessoa determinável, posto que, de acordo com o conceito
do art. 2º do CDC, ele adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário
final. Participante, pois, de um negócio, o consumidor sempre se pode identificar
a partir do vínculo contratual firmado com o fornecedor. Ele é o comprador na
compra e venda de mercadorias, o adquirente dos serviços, o locatário de bens, o
mutuário, o segurado etc. A equiparação procedida pelo art. 29 do CDC —
dispositivo resultante de negociações parlamentares (cf. Benjamin, 1991:147) —
refere-se àqueles que não são partes em contrato de consumo, mas que podem
vir a ser. O legislador os submeteu à idêntica tutela reconhecida aos
consumidores, no tocante às práticas comerciais e contratuais, por considerar que
a proteção não estaria completa nesses campos se a restringisse apenas ao
momento posterior à celebração do contrato. Ora, o empregado envolvido por
anúncio de oferta de emprego e o cidadão destinatário da propaganda política
não estão, na hipótese, expostos a práticas comerciais, não são potencialmente
consumidores. Consequentemente, não se encontram sob a guarda das normas
previstas no Código de Defesa do Consumidor acerca da publicidade.
O art. 29 do CDC estabelece
que as pessoas, determináveis
ou não, expostas às práticas
comerciais são equiparadas
aos consumidores. Com esta
definição, estende-se a tutela
do Código aos consumidores
em potencial.
Considere-se, no entanto, a eventual aplicação analógica das normas
constantes do Código de Defesa do Consumidor, na solução de pendências
envolvendo propaganda de empregador ou de administrador público, o anúncio
do vendedor ou locador civil ou a publicidade comercial de insumos. À vista da
inexistência de disciplina específica do direito do trabalho, do direito público, do
direito civil e comercial, no tocante às responsabilidades do anunciante em
relação aos destinatários do anúncio, pode-se cogitar, se presentes os seus
pressupostos, de integração dessas lacunas legislativas, mediante o emprego da
analogia. Por evidente, a aplicação analógica das normas sobre publicidade,
fixadas pela lei tutelar dos consumidores, para além da relação de consumo,
somente se pode verificar no campo da responsabilidade civil e nunca no da
responsabilidade penal ou administrativa. Não caracteriza crime a simples
veiculação de publicidade, ou propaganda, com potencial de enganosidade ou
abusividade fora da relação jurídica de consumo. E, na mesma medida, o Poder
Público não pode impor a pena de contrapropaganda aos anunciantes cujo
anúncio dirige-se a pretendentes a emprego, cidadãos, adquirentes de insumos ou
quaisquer outras pessoas que não possam ser conceituadas como consumidores
(ou potencialmente consumidores), isto é, como destinatários finais de bens ou
serviços adquiridos de fornecedor.
2. A AUTORREGULAÇÃO PUBLICITÁRIA
A autorregulação publicitária é, no Brasil, a mais interessante experiência
de disciplina de atividade econômica por iniciativa dos próprios agentes nela
envolvidos. O seu documento normativo fundamental é o Código Brasileiro de
Autorregulamentação Publicitária — CBAP, cuja primeira versão foi aprovada
no III Congresso Brasileiro de Propaganda em 1978. De sua aplicação se
encarrega o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária —
CONAR, associação civil constituída em 1980 especificamente para essa
finalidade pela Associação Brasileira de Agências de Propaganda — ABAP, a
Associação Brasileira de Anunciantes — ABA, a Associação Brasileira de
Emissoras de Rádio e Televisão — ABERT, a Associação Nacional de Jornais —
ANJ, a Associação Nacional de Editores de Revistas — ANER e a Central de
Outdoor.
2.1. Âmbito de Abrangência do Sistema de Autorregulação
O Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária divide--se em
cinco capítulos (introdução; princípios gerais; categorias especiais de anúncios;
responsabilidades; infrações e penalidades) e possui vinte anexos, pertinentes a
determinadas situações específicas (bebidas alcoólicas; educação, cursos, ensino;
empregos e oportunidades; imóveis: venda e aluguel; investimentos, empréstimos
e mercado de capitais; lojas e varejo; médicos, dentistas, veterinários, parteiras,
massagistas, enfermeiros, serviços hospitalares, paramédicos, para-hospitalares,
produtos proteicos, dietéticos, tratamento e dietas; produtos alimentícios; produtos
farmacêuticos populares; produtos de fumo; produtos inibidores de fumo;
profissionais liberais; reembolso postal ou vendas pelo correio; turismo, viagens,
excursões, hotelaria; veículos motorizados; vinhos e cervejas; testemunhais,
atestados, endossos; defensivos agrícolas; armas de fogo; ices e bebidas
assemelhadas).
O âmbito de incidência do Código Brasileiro de Autorregulamentação
Publicitária é mais amplo que o das normas sobre a publicidade existentes no
Código de Defesa do Consumidor. Inicialmente, porque o próprio conceito de
publicidade constante do diploma autorregulamentar extrapola o campo das
relações de consumo e compreende também a promoção de ideias, conceitos ou
instituições, inclusive as de intuito não lucrativo. Além disso, as normas dos
capítulos referentes a modalidades específicas de anúncio alcançam relações
outras, de índole estritamente não comercial, como os de oferta de emprego, por
exemplo. Está expressamente ressalvada da incidência do CBAP a propaganda
política, mas a publicidade promovida pelo governo e por entidades paraestatais
subordina-se às mesmas normas da publicidade comercial. Por fim, a
autorregulação dispõe sobre aspectos da publicidade, que apenas indiretamente
pode interessar aos consumidores, como a questão pertinente à concorrência
desleal (arts. 4º e 32, f).
Em suma, o sistema de autorregulação publicitária trata a publicidade
considerando-a sob ângulo mais abrangente, que não se exaure na tutela dos
interesses dos consumidores. Aliás, o objetivo da autorregulação publicitária em
todo o mundo é o de criar regras no interesse da própria atividade econômica, de
modo a evitar que um grande número de anúncios enganosos ou agressivos
pudesse vir a comprometer a credibilidade e eficiência da publicidade como um
todo (cf. Calais-Auloy, 1980:86/87). Evidentemente, o consumidor tem os seus
direitos protegidos de forma indireta, mas a principal razão do sistema de
autorregulação publicitária é o controle do desenvolvimento da publicidade, com
o sentido de preservar o seu extraordinário potencial econômico.
O
Código
de
Autorregulamentação
Publicitária tem âmbito de
incidência maior que o das
normas sobre publicidade
constantes do CDC.
Percebe-se, com nitidez, a diferença de objetivos entre a disciplina
consumerista da publicidade e o sistema de autorregulação, quando se nota a
preocupação do CONAR em relação aos chamados exageros no apelo ao sexo e
à nudez, pelas peças publicitárias de produtos de todos os gêneros. Em 1987, ano
de particular incremento do uso de modelos despidos em filmes publicitários, foi
determinada a sustação, entre outros, da veiculação do filme Technos Mariner
Plus, em que linda e jovem modelo escolhe roupas para sair e, após colocar o
relógio da marca propagandeada no pulso, sente-se já suficientemente vestida e
ganha as ruas totalmente nua. Dois rapazes veem-na e comentam “que relógio!”.
Se estivesse já em vigor o Código de Defesa do Consumidor, não se verificaria
qualquer ilicitude no filme em questão, sequer a da abusividade. Mas como a
apresentação pela TV de cenas de nudez, nos intervalos comerciais da
programação normal, realmente deixa desconfortáveis parcelas de espectadores
— perante os quais, por isso, de alguma forma, pode restar desacreditada a
atividade publicitária —, o sistema de autorregulação não pode descuidar do
assunto. Para fins da legislação de tutela do consumidor, contudo, se não houver
simulação, enganosidade ou abusividade, o anúncio com mulheres ou homens
nus, ainda que grotesco, apelativo, indecente etc. não configura qualquer
transgressão ao CDC.
Também a utilização do baixo calão em anúncios publicitários representa
acentuada preocupação do sistema de autorregulação, que o proíbe (CBAP, art.
27, § 6º, d), porque efetivamente pode perturbar significativos segmentos da
audiência. Em 1991, o CONAR decidiu: “o título chulo torna o anúncio
inquestionavelmente ofensivo e desrespeitoso para com o consumidor, ferindo a
ética publicitária”. Para a legislação de tutela do consumidor, no entanto, trata-se
de tema sem a mesma relevância, pois o uso do baixo calão na publicidade não
tipifica por si só qualquer forma de ilicitude prevista no CDC.
2.2. Sanções do Sistema de Autorregulação
O Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária atribui ao
CONAR competência para a imposição de sanções de quatro categorias:
advertência, recomendação de alteração ou correção do anúncio, recomendação
de suspensão da veiculação e divulgação da posição do CONAR. O texto
normativo não apresenta as hipóteses de aplicação de cada uma das penalidades,
de modo que se deve concluir a existência de regra, implícita e geral, atributiva
ao Conselho de poder discricionário para mensurar a gravidade da infração
cometida e definir a punição adequada. Do exame dos casos submetidos a
julgamento pelo Conselho de Ética daquela associação, no entanto, é possível
concluírem-se alguns critérios.
O CBAP estabelece quatro
sanções,
a
serem
discricionariamente aplicadas
pelo CONAR: advertência,
alteração
do
anúncio,
suspensão da veiculação e
divulgação da posição da
entidade.
A penalidade mais branda é a de advertência, e tem sido aplicada contra
anúncios que, embora infrinjam o código, não são potencialmente nocivos aos
consumidores ou à atividade publicitária. Exemplo dessa hipótese se encontra no
provimento do recurso interposto contra a sustação dos filmes denominados
Confidências I e Confidências II, em que uma simpaticíssima modelo infantil
mostra às crianças os meios mais adequados para se obter determinado suco,
recorrendo a agrados ou ameaças às mães. O Plenário do Conselho de Ética, por
apertada maioria de votos, abrandou a pena para advertência, impondo-a contra
o anunciante e a agência.
A recomendação de alteração ou correção do anúncio é penalidade
reservada àqueles casos em que a mudança na forma ou no conteúdo da
publicidade se revela já suficiente para o atendimento às disposições do CBAP.
Por exemplo, o julgamento do caso Têxtil da Xuxa, em que na promoção de
novelo composto por 100% de fios acrílicos ouvia-se balido de carneiro, sempre
que a famosa apresentadora mencionava a palavra lã. A simples supressão do
som emitido pelo animal já tornaria o anúncio aceitável, pois eliminaria a
inverídica sugestão de produto natural. Evidentemente, ao CONAR não cabe
apontar senão as partes do anúncio que reclamam adequação. Não deve, com
efeito, elaborar a nova peça publicitária. O próprio anunciante, por meio da
mesma agência ou de outra, deverá providenciar a mudança recomendada, caso
seja de seu interesse continuar veiculando o anúncio.
A recomendação aos veículos no sentido de que sustem a divulgação da
publicidade é a terceira e mais eficiente sanção prevista no CBAP. Cabe na
hipótese em que a infringência ao código revela-se tão grave que somente a
proibição da veiculação do anúncio se mostra capaz de tutelar adequadamente os
interesses prestigiados pela autorregulação publicitária. Muitos são os exemplos
dessa modalidade de penalização, podendo-se ilustrá-los com a referência ao
filme Você gosta da sua professora? , em que era sugerido aos alunos
presentearem suas professoras com determinado perfume, objetivando a
aprovação na avaliação do rendimento escolar.
E, por fim, prevê o CBAP como sanção mais grave a divulgação da
posição do CONAR relativamente a anunciante, agência ou veículo em face do
não acatamento das medidas e providências por ele preconizadas. Trata-se de
pena reservada àqueles que, submetidos às deliberações do CONAR, não lhe dão
o devido cumprimento. É aplicável, também, na hipótese de reincidência
específica de anunciante ou agência já sancionados por desobediência às normas
da autorregulação. Como, por exemplo, no julgamento do anúncio Mulher
Completa, veiculado na mídia impressa e relativo a produtos de beleza, em que o
anunciante e a agência, após a recomendação de suspensão da peça pelo
CONAR, apenas introduziram nela alterações formais, dando ensejo então à
aplicação da pena máxima. A pertinência dessa sanção depende
fundamentalmente da credibilidade do CONAR, semeada junto aos
consumidores e integrantes do sistema de autorregulação.
A eficácia das normas autorreguladoras da publicidade é condicio-nada,
basicamente, pela atuação dos organismos envolvidos com a concepção do
sistema. As agências de publicidade e os profissionais da criação devem nortear
seus trabalhos pelos princípios e regras constantes do CBAP, inclusive
incentivando o empresário anunciante a conformar suas expectativas às diretrizes
desse código. Os veículos, por sua vez, devem acatar as sanções impostas pelo
CONAR, recusando anúncios que contrariam o CBAP. Às Associações de
publicidade, de anunciantes e de veículos, cabe exercer sua liderança entre os
respectivos associados, motivando-os ao permanente respeito às disposições do
código. E o CONAR, finalmente, deve zelar pela aplicação equânime da
disciplina autorregulamentar, inspirando confiança não só nos profissionais da
área, como também nos destinatários da mensagem publicitária.
Apesar das diferenças de objetivos e de âmbito de incidência, o sistema
de autorregulação publicitária e a tutela legal dos consumidores são
complementares um do outro. Na aplicação das normas sobre publicidade
estabelecidas pelo CDC, pode-se aproveitar a experiência do CONAR. Conforme
acentua Maurizio Fusi (1989:53), relativamente ao sistema italiano de
autorregulação publicitária, o órgão encarregado de sua aplicação, o Giurì
dell’Autodisciplina Pubblicitaria, tal como o CONAR, possui membros de
diferentes profissões e não apenas com formação jurídica, o que permite
valorações diversificadas acerca dos efeitos da publicidade sobre o público. Em
razão, portanto, da contribuição dada por múltiplos enfoques profissionais, ínsita à
autorregulação, não se pode negar-lhe o caráter de verdadeiro modelo para a
aplicação das normas jurídicas pertinentes à complexa problemática da
publicidade.
3. PUBLICIDADE SIMULADA
Há, no direito brasileiro, três espécies de publicidade ilícita: a simulada, a
enganosa e a abusiva. Na primeira, o caráter publicitário do anúncio é disfarçado
para que o seu destinatário não perceba a intenção promocional inerente à
mensagem veiculada. Na segunda, o anúncio induz o consumidor em erro,
afirmando falsidades ou sonegando informações essenciais acerca do objeto da
mensagem. E na terceira, valores socialmente aceitos são deturpados com
objetivos meramente comerciais.
A publicidade simulada é vedada indiretamente pelo Código de Defesa do
Consumidor. O art. 36 do CDC prescreve que a mensagem publicitária deve ser
fácil e imediatamente identificada pelo consumidor. Trata-se da introdução no
direito nacional do que se convencionou chamar de princípio da
identificabilidade, elemento presente na normatização da publicidade em vários
outros diplomas (CBAP, art. 28, Código da Publicidade português e Legge
Mammì), pelo qual se reconhece ao destinatário da mensagem publicitária o
direito de ser informado acerca da natureza publicitária da mensagem que lhe é
dirigida. Essa natureza não pode ser disfarçada ou oculta ao consumidor, que
deve ter plenas condições para se posicionar de maneira adequada frente à gama
de informações que lhe é endereçada.
Um dos
disciplina
publicidade
princípios
jurídica
é
o
da
da
da
“identificabilidade”, pelo qual
a mensagem não pode ocultar o
seu caráter publicitário.
Em outros termos, como é natural que a veiculação de mensagem
destinada a promover produtos ou serviços revista-se de claro objetivo de
persuasão, o destinatário tem legitimamente o interesse de se precaver, adotando
cautelas e reservas que não adotaria diante de outros tipos de veiculação, como
documentários ou filmes de ficção. Tal atitude semidefensiva, que o consumidor
tem o direito de assumir perante a publicidade, pressupõe justamente o que o
referido art. 36 do CDC afirma, ou seja, a possibilidade de sua fácil e imediata
identificação.
Código
de
Defesa
do
Consumidor
Art. 36. A publicidade deve
ser veiculada de tal forma que
o
consumidor,
fácil
e
imediatamente, a identifique
como tal.
A vedação da publicidade simulada torna ilícitas algumas técnicas de
marketing, caracterizadas pelo oportunismo na abordagem ao consumidor
desprevenido. Indefeso, teoricamente ele se encontra mais suscetível ao
acatamento da promoção comercial. Hipótese evidente dessa técnica é a da
publicidade subliminar, que consiste na inserção de mensagens publicitárias, de
duração equivalente a milionésimos de segundo, no transcorrer da exibição de
filmes. Em razão da extraordinária rapidez do contato mantido entre o
consumidor e a mensagem, ela se torna perceptível apenas ao seu inconsciente.
Embora a eficácia dessa técnica seja altamente questionável pelos especialistas
da área, o fato é que, para o direito brasileiro, ela é indiscutivelmente proibida,
por caracterizar publicidade simulada.
Outra técnica de larga utilização abrangida pela norma proibitiva da
publicidade simulada é a reportagem publicitária. É muito frequente a veiculação
pelos jornais, revistas ou periódicos, de reportagens sobre assuntos de interesse
aparentemente geral dos leitores, mas que, na verdade, com maior ou menor
grau de sutileza, escondem a promoção de produtos, empreendimentos
imobiliários, centros comerciais etc. O tema da matéria jornalística pode ser, por
exemplo, a mudança nos hábitos alimentares da população, mas a sua leitura
acaba sugerindo a plena adequação de certo restaurante aos novos hábitos
noticiados. Os encartes ou cadernos dos periódicos voltados ao lazer contêm
muita publicidade oculta dessa natureza. A lei condena tal prática, devendo as
editorias informar os leitores acerca das circunstâncias em que a reportagem foi
realizada, distinguindo com clareza absoluta as mensagens publicitárias
eventualmente nela contidas.
Igualmente, as chamadas testemunhais dissimuladas têm a sua licitude
comprometida. Cuida-se de técnica utilizada principalmente na mídia radiofônica
em que o locutor, após a comunicação de notícia imparcial referente ao
anunciante, manifesta opinião favorável a este, como se fosse sua e espontânea.
A publicidade governamental faz intenso uso desse meio dissimulado de
autopromoção. A proibição de publicidade simulada, contudo, não alcança as
testemunhais ostensivas, disciplinadas pelo CBAP (Anexo Q), ou seja, aquelas
em que o consumidor fácil e prontamente percebe a natureza publicitária do
depoimento prestado.
Também pode ser eventualmente alcançada pela vedação legal da
publicidade simulada a técnica que, no Brasil, se convencionou chamar por
merchandising, isto é, a inserção de mensagens publicitárias no transcorrer de
novelas, peças teatrais, programas de televisão, filmes etc. Informa Maria
Elizabete Vilaça Lopes que o conceito originário de merchandising referia-se a
certos métodos empregados nos pontos de venda self-service. Especificamente,
relacionava-se com os critérios de arrumação, localização e apresentação de
produtos nas gôndolas de supermercados ou lojas de conveniência, de modo a
chamar a atenção dos consumidores para determinados itens colocados à altura
dos olhos, nas proximidades do caixa recebedor ou nos corredores. É o chamado
vendedor silencioso, ideia que, sutilmente, possibilita transmudar o conceito de
merchandising para o de inclusão disfarçada de chamadas publicitárias no
desenrolar de tramas novelísticas ou de outras apresentações (1992:154/155).
Atente-se que o merchandising não é, necessariamente, ilícito. Desde que
empregado de modo facilmente constatável pelos espectadores, nenhuma
irregularidade se verifica. A cena da telenovela, nesse sentido, deve ser
produzida com a preocupação de se revelar claro, evidente e translúcido o intuito
publicitário da referência ao produto ou serviço nela contida. A inserção de
esclarecimentos nos créditos de abertura ou encerramento do capítulo também
se revela meio idôneo ao emprego lícito da técnica. Qualquer outra forma, aliás,
que transmita eficientemente ao consumidor a informação de que ele se
encontra diante de publicidade atende ao preceito legal.
Por último, cabe lembrar o infomercial, que as TVs a cabo trouxeram aos
televisores brasileiros, com traduções caracteristicamente malfeitas. Trata-se de
venda, por telemarketing, em que a apresentação do produto é ambientada num
programa de auditório. Diante de uma plateia inicialmente incrédula, que vai aos
poucos externando, por meio de interjeições e aplausos, sua estupefação com a
eficiência proclamada do produto, o apresentador destaca os atributos deste. Os
infomerciais, para se adequarem à nossa legislação consumerista, devem
explicitar, de forma clara, sua natureza de peça publicitária (Krohn, 1995:100).
Não obstante a prescrição da ilicitude da publicidade simulada, e da forte
presença nos meios de comunicação dessa categoria de técnica publicitária,
omitiu-se o legislador no estabelecimento de sanções contra o anunciante que a
promove. O parágrafo único do art. 67 do projeto de Código de Defesa do
Consumidor aprovado pelo legislativo, é certo, definia-a como crime, mas houve
veto presidencial ao dispositivo, fundamentado em pretensa obscuridade e
imprecisão do tipo, de que decorreria vício de inconstitucionalidade por
desrespeito ao princípio da reserva legal (CF, art. 5 º, XXXIX). Por criticável que
seja a opção da chefia do executivo — em vista da propriedade dos termos
utilizados pelo legislativo na descrição do tipo ou mesmo em função do
antecedente da autorregulação publicitária, que inquestionavelmente contribuiria
na superação de eventuais imprecisões (cf. Filomeno, 1991:455) —, fato é que
inexiste norma penal vigente tipificando a publicidade simulada.
Por outro lado, o art. 60 do CDC, ao eleger os pressupostos da imposição
da contrapropaganda, cogita apenas da publicidade enganosa e abusiva, não
fazendo referência a outras modalidades de ilícito publicitário. Essa sanção
administrativa, portanto, não se pode aplicar contra o anunciante que promove
publicidade simulada. O anunciante, no caso, fica exposto à pena de multa (Dec.
n. 2.181/97, art. 19, parágrafo único, II).
Finalmente, também não se encontra consignada na lei de modo expresso
a responsabilidade civil em decorrência de prática de simulação do caráter
publicitário de mensagem endereçada ao consumidor. Será, contudo, cabível
invocar-se a regra genérica do art. 927 do Código Civil, para fundamentar
demanda contra o empresário que, por tê-la promovido, causou danos aos
consumidores ou espectadores. Claro que, por se fundar a ação na teoria geral da
responsabilidade civil, a condenação do anunciante, nesse caso, dependerá de
prova de culpa. Na melhor das hipóteses para o consumidor, demonstrada a
hipossuficiência de sua condição ou a verossimilhança de suas alegações, poderá
o juiz favorecê-lo com a decretação da inversão do ônus probatório (CDC, art. 6º,
VIII). Tal inversão, contudo, não significa o mesmo que o reconhecimento da
responsabilidade objetiva, porque importa apenas a atribuição ao demandado da
prova negativa de culpa, que, realizada, evita a condenação. Assim, o empresário
que demonstrar ter promovido publicidade simulada sem culpa não é civilmente
responsável pelos eventuais danos decorrentes.
4. PUBLICIDADE ENGANOSA
Para explicar ao público leigo alguns aspectos marcantes da ópera, o
musicista e compositor Aaron Copland destaca que a sua audiência pressupõe a
aceitação, pelo ouvinte, das convenções próprias desse gênero de arte. O
espectador não pode esperar nada de muito sensato desenvolvido no cenário
operístico, em que cantores líricos dramatizam com exagero os temas da trama.
De fato, o ouvinte não conseguiria entreter-se com o espetáculo se, a cada passo,
lhe ocorresse que as pessoas não costumam ficar cantando suas mazelas e
amores tal como apresentado pela ópera. O próprio tempo é decomposto e
reconstruído operisticamente: o soldado José, alertado pelo toque de recolher, ao
invés de entregar-se prontamente ao amor de Carmem, gasta o apertadíssimo
tempo que lhe resta discutindo com a cigana por que deve atender à retreta. Essa
submissão às convenções próprias, acentua ainda Copland, não é marca
exclusiva da ópera. Em felicíssima imagem, ele lembra, o teatro pretende que a
quarta parede de um aposento está ali no palco e que os espectadores, por algum
meio milagroso, contemplam cenas da vida real (1939:166). Ora, quem quer
usufruir a apresentação de peça teatral deve aceitar essa convenção.
A publicidade, atividade econômica que pode se revestir de forte acento
artístico, tem a sua quarta parede também, isto é, sua convenção própria que se
pode entender e que se deve controlar, mas cuja aceitação é imposta em alguma
medida ao espectador. Em outras palavras, costuma haver sempre algo de
fantasioso (e, portanto, de falso) nas mensagens publicitárias. Nenhuma lingerie é
usada por mulheres feias; nenhum apartamento é comprado por famílias
desestruturadas; nenhum produto é relacionado seriamente com o fracasso
pessoal ou profissional. Apenas nos anúncios de formato bastante simples, não se
vislumbra qualquer apelo fantasioso. São desse tipo aquelas peças publicitárias
que se limitam a mostrar a imagem do produto e informar o preço e condições
de pagamento, por exemplo. Basta, contudo, introduzir-se no formato do anúncio
um famoso artista ou desportista como modelo, para que se desperte, já, a
fantasia do consumidor: insinua-se que o produto é consumido, ou pelo menos
prestigiado, por pessoas importantes.
A publicidade é, em grande
medida, fantasiosa e visa a
mobilizar
emoções
dos
espectadores. Há sempre algo
de falso, em qualquer anúncio
publicitário.
Muitos exemplos demonstram que, antes de transmitir ideias
racionalmente inteligíveis, a publicidade visa geralmente mobilizar desejos e
emoções, conscientes ou não, dos consumidores. Manipulam, pois, fantasias
capazes de despertar, pelo menos, a simpatia do espectador em relação ao
produto ou serviço promovido. O consumo de certa marca de drops faz o casal
levitar; o trânsito congestionado desaparece imediatamente, tão logo dada a
partida em determinado automóvel; conhecido chef cuisinier francês radicado no
Brasil assegura categoricamente que utiliza maionese nacional na confecção de
seus pratos mais requintados. São, ou podem ser, mentiras fantasiosas com as
quais o espectador deve contar; ele deve ser inclusive capacitado, pela própria
mensagem publicitária ou por sua experiência de vida, a discernir o verdadeiro
do falso. Em outros termos, a coibição à publicidade enganosa pode e deve ser
feita sem o sacrifício da criatividade na produção e transmissão de anúncios
publicitários.
4.1. Falsidade e Enganosidade
Não é a simples veiculação de informações total ou parcialmente falsas
que configura o ilícito da enganosidade. Apesar da redação empregada no art.
37, § 1º, do CDC, a mensagem publicitária pode conter informações falsas, como
por exemplo a levitação dos consumidores do drops em promoção, e nem por
isso representar infração à lei.
Código
de
Defesa
do
Consumidor
Art. 37, § 1º É enganosa
qualquer
modalidade
de
informação ou comunicação de
caráter publicitário, inteira ou
parcialmente falsa, ou, por
qualquer outro modo, mesmo
por omissão, capaz de induzir
em erro o consumidor a
respeito
da
natureza,
características,
qualidade,
quantidade,
propriedades,
origem, preço e quaisquer
outros dados sobre produtos e
serviços.
A presença no anúncio de informações não confirmadas pela experiência
dos espectadores não é fator suficiente para a caracterização de publicidade
enganosa. É necessário, ainda, que os dados falsos tenham efetivo potencial de
indução dos consumidores em erro.
O anteprojeto de Código de Defesa do Consumidor elaborado pela
comissão de juristas, fonte mediata do texto em vigor (DOU, 4 jan. 1989),
revelava-se mais adequado no tratamento da matéria, na medida em que o seu
art. 26, § 1º, ao definir publicidade enganosa, circunscrevia o ilícito à hipótese de
criação de dúvidas ou indução em erro. O dispositivo em vigor, como se sabe,
sugere prima facie que a simples existência de informações falsas já estaria a
comprometer a licitude da mensagem publicitária. Essa interpretação
meramente literal da norma posta (CDC, art. 37, § 1º), contudo, não pode
prevalecer diante da compreensão global da atividade publicitária. É enganosa a
publicidade capaz de induzir consumidores em erro quanto ao produto ou serviço
em promoção. A mera inserção de informações inverídicas, por si só, nada tem
de ilegal, uma vez que pode representar a lícita tentativa de mobilizar a fantasia
do espectador, com objetivos de promover o consumo. Em outras palavras, para
se caracterizar a publicidade enganosa, não basta a veiculação de inverdades. É
necessário também que a informação inverídica seja, pelo seu conteúdo, pela
forma de apresentação, pelo contexto em que se insere ou pelo público a que se
dirige, capaz de ludibriar as pessoas expostas à publicidade.
Pode haver, portanto, algum toque de fantasia (e de falsidade por
conseguinte) nas peças publicitárias. Isso, no entanto, não representa agressão ao
direito dos espectadores à mensagem verdadeira, porque a percepção do
fantasioso afasta a enganosidade, descarta a possibilidade de qualquer afirmação
fundada na realidade dos fatos. O espectador, ao assistir filme publicitário de
certa marca de tênis, em que acrobatas fazem arriscadas evoluções no alto de
montanha russa, não está autorizado a crer que a aquisição daquele produto lhe
asseguraria igual habilidade. É de tal forma improvável que o tênis possa ter essa
qualidade, que a ligação entre o produto e as acrobacias, sugerida pelo anúncio,
somente deve ser recebida como fantasiosa. A ninguém seria lícito reclamar do
tênis o efeito de habilitar acrobatas, porque simplesmente isso é impossível, não
existe. Perceber que se trata de sugestão falsa destinada apenas a mobilizar as
emoções e o espírito de aventura do espectador é aceitar a quarta parede da
publicidade.
Do fato de existirem, em maior ou menor grau, falsidades fantasiosas na
promoção publicitária, não se pode concluir, no entanto, que o empresário estaria
autorizado a inserir nos anúncios informações inverídicas de qualquer natureza.
Aquele atributo da publicidade, razão de sua extraordinária eficácia e causa
latente de seu descrédito, pode e deve ser controlado. A autorregulação, aliás,
preocupada em preservar o potencial econômico da atividade, pretende
racionalizar o manuseio da fantasia, evitando que excessivo número de peças
publicitárias enganosas venham a desacreditar o conjunto e comprometer a
eficácia e rentabilidade da própria atividade publicitária. Embora com objetivos
diversos, o Código de Defesa do Consumidor, ao conceituar a enganosidade na
publicidade como ilícito, também confere meios de racionalizar e controlar o
manuseio da fantasia na promoção de produtos e serviços.
4.2. Caracterização da Publicidade Enganosa
Pode-se cogitar, inicialmente, de critérios auxiliares de identificação da
manipulação legítima do fantasioso na produção e veiculação de publicidade.
Assim, se o próprio anúncio explicita a inverdade da informação ou da situação
representada, se a informação é manifestamente inverídica, impossível,
inexistente, segundo o que se pode concluir da experiência de vida, ou, ainda, liga
o produto ou serviço a personagens como papai noel, Frankstein, fadas e outras,
não se verifica prima facie a prática de publicidade enganosa.
Esses critérios, contudo, são meramente auxiliares. O decisivo é investigar
se o conteúdo transmitido é suscetível de induzir em erro o consumidor do
fornecimento em promoção. Se, a partir da mensagem, se constata que ele pode
ser levado a tomar por verdadeira a informação falsa, então caracteriza-se a
publicidade enganosa. Pelo contrário, se, a partir ainda da mensagem, se constata
que o consumidor não tem como tomar por verdadeira a informação falsa, então
a publicidade é lícita, apesar de conter falsidades.
Há publicidade enganosa se o
anúncio veicula mensagem
falsa como se verdadeira fosse.
Se o consumidor tem, pela
própria mensagem ou por sua
experiência de vida, condições
de perceber a falsidade da
informação, não se caracteriza
o ilícito.
A equação proposta suscita três questões, cuja discussão contribui para o
aclaramento do critério. Em primeiro lugar, a definição do universo de
consumidores que compõe o padrão para se mensurar o potencial enganoso da
publicidade (item 4.3). Em segundo, a natureza e a articulação das muitas
informações veiculadas na peça publicitária em exame (item 4.4). E, por fim, a
figura da enganosidade por omissão, especificamente referida pela lei (CDC, art.
37, § 3º), e que será objeto de exame no transcorrer da análise dos princípios da
veracidade e da transparência (item 4.5).
4.3. Consumidor Padrão
Para se enfrentar a questão relativa ao padrão de consumidor na
mensuração do potencial de enganosidade da publicidade, devem-se assentar
duas premissas: interessa considerar apenas o conjunto de consumidores
específico do fornecimento promovido e, dentro desse conjunto, considerar não
somente as pessoas medianamente informadas, mas também os desprovidos de
conhecimentos médios.
Na análise de eventual ilicitude na publicidade, deve-se tomar por
referência, inicialmente, o universo de consumidores do fornecimento em
questão. Produtos e serviços mais caros são normalmente consumidos por
pessoas de maior poder aquisitivo, cuja formação e experiência de vida, em
geral, permite mais apurada percepção da realidade dos fatos, e menor
suscetibilidade à crédula aceitação passiva do que a publicidade veicula. Na
promoção de imóveis de alto luxo, a ponderação do potencial de enganosidade
das informações transmitidas pode ser, relativamente, menos rigorosa do que no
exame de publicidade de imóveis de padrão médio ou popular.
O empresário que comercializa automóveis importados de luxo pode
anunciar preços vantajosos de leasing dos veículos, comparando--os a preços de
venda de concorrentes, sem, necessariamente, esmiuçar as diferenças entre os
dois sistemas, porque o consumidor próprio desse tipo de fornecimento tem
amplas condições de se informar sobre o assunto, caso já não o conheça. Em
situação bastante diferente, no entanto, se encontra o empresário que
comercializa automóveis de menor preço ao sugerir, em seu anúncio, que
determinado valor de prestação se refere à venda a crédito do veículo quando, na
verdade, representa a cota mensal de participação em consórcio de bem durável.
Nesse último caso, o destinatário da mensagem, geralmente pessoa de renda e
instrução média, tem o direito de ser suficientemente informado acerca das
diferenças dos dois sistemas.
Claro que nem sempre o consumidor de maior poder aquisitivo está
amplamente informado sobre economia e direito, assim como nem sempre o de
menor poder desconhece por completo os assuntos negociais. Além disso, há
dados de natureza especificamente técnica, cujo conhecimento independe da
situação econômica do consumidor. Contudo, refletindo em busca de critérios
teóricos, pode-se situar genericamente essa relação. O essencial é que o
empresário, ao apreciar a proposta de campanha publicitária de sua agência,
tenha meios de proceder a cálculo, o quanto possível objetivo, que antecipe, em
termos globais, futura apreciação judicial da publicidade a ser veiculada. Nesse
sentido, o primeiro dado a se levar em conta, no exame do potencial enganoso da
publicidade, é o de que a mensagem é dirigida a pessoas que, ao menos
potencialmente, são consumidores daquele específico fornecimento em
promoção. Não tem o empresário o dever de se preocupar com as pessoas que
não compõem o perfil de seus consumidores, no momento em que aprecia a
veracidade das informações a serem transmitidas.
Definido o universo dos consumidores em potencial do fornecimento
objeto de publicidade, o padrão a ser considerado na análise de sua eventual
natureza enganosa deve compreender não só o consumidor medianamente
informado, mas também o desprovido de conhecimentos médios (cf. Fusi,
1989:45/48). Mesmo entre pessoas de mesmo poder aquisitivo, ou de equivalente
formação, encontrar-se-ão diferentes níveis de capacidade intelectual ou
conhecimento de informações específicas. Para que a proteção dos
consumidores, liberada pela lei, seja realmente efetiva, deve-se considerar que
também os mais desprovidos, dentre os consumidores em potencial do
fornecimento em questão, encontram--se abrangidos pela norma tutelar.
O englobamento do consumidor desprovido de conhecimentos médios na
construção do conceito de consumidor padrão — noção indispensável à aferição
de eventual enganosidade em anúncio publicitário — não significa,
absolutamente, que todo e qualquer adquirente de produto ou serviço pode alegar
que se enganou e invocar a proteção legal. Afirmar isso seria tornar inexequível
o cálculo empresarial e impossibilitar a socialização de perdas, condição
inafastável da tutela dos consumidores no sistema capitalista. Haverá, por certo,
pessoas especialmente limitadas ou particularmente desatentas, em relação às
quais nenhuma cautela do anunciante, por maior que seja, será suficiente para
evitar distorções no entendimento da mensagem publicitária. Bem precisada a
questão, aquele que não puder ser determinado sequer como o menos informado
dentre os consumidores habituais do fornecimento, não deve ser considerado no
exame do potencial de enganosidade da publicidade.
Em outros termos, se o adquirente de produto ou serviço não integra o
conjunto de consumidores habituais do fornecimento objeto de promoção
publicitária, eventual entendimento distorcido de sua parte não pode dar ensejo à
caracterização de ilícito. Entender de outro modo a questão equivaleria a
impossibilitar o cálculo empresarial e consequentemente obrigar o empresário ao
impossível.
A publicidade se revela
enganosa
quando
sua
mensagem pode induzir em erro
o menos informado dos
consumidores específicos do
fornecimento
objeto
da
promoção publicitária.
4.4. Conteúdo da Mensagem
A mensagem veiculada pelo anúncio deve ser também examinada, para
se caracterizar a publicidade como enganosa. Anote-se, em primeiro lugar, que o
potencial de indução em erro deve necessariamente decorrer do exame da peça
publicitária como um todo. Mesmo a publicidade literalmente verdadeira pode
ser tida por enganosa se, globalmente considerada, puder induzir o consumidor
em erro. Como afirmava um extraordinário anúncio de TV do jornal Folha de S.
Paulo (no qual frases verdadeiras e aparentemente positivas acerca da realidade
econômica e política da Alemanha interguerras acompanhavam a construção
pontual do retrato de Hitler), pode-se mentir falando apenas verdades. Por certo,
uma vez provando o empresário que as informações veiculadas em sua
publicidade, globalmente consideradas, revelam-se verdadeiras, então não se
verifica o ilícito da enganosidade.
As chamadas ou destaques de anúncios escritos, no mesmo sentido, não
devem ser considerados isoladamente, uma vez que o respectivo texto pode
apresentar a devida elucidação das condições do negócio ou qualidade do
fornecimento. Aliás, é técnica publicitária de largo uso, voltada a despertar a
curiosidade do espectador e chamar a sua atenção para o produto ou serviço, a
apresentação de chamadas intrigantes, que o motiva a acompanhar o
desenvolvimento do anúncio em busca do desfazimento da contradição ou do
absurdo de início sugeridos. O exemplo típico e bastante usual é o do comerciante
que propaga “queima de estoque” e, em seguida, especifica que está vendendo
determinados produtos a preço ou condições promocionais.
O essencial, no caso de utilização de chamada intrigante, é que se
atendam rigorosamente dois pressupostos. Em primeiro lugar, a própria
publicidade deve se encarregar de clarificar o verdadeiro conteúdo da
mensagem. Se o cabal esclarecimento da exata condição de negócio ou das
características do fornecimento, o consumidor só obtém comparecendo ao
estabelecimento do fornecedor, então a publicidade é, sem dúvida, enganosa. Em
segundo, o aclaramento da mensagem deve ser inequívoco. Se a publicidade
comporta duas ou mais interpretações, sendo pelo menos uma delas enganosa,
configura-se o ilícito. A contradição ou o absurdo sugerido de início devem ser
totalmente desfeitos no desenvolvimento da mensagem, de modo a se evitar
qualquer resquício de ambiguidade (cf. Benjamin, 1991:203).
Exatamente porque a aferição da enganosidade decorre de exame da
mensagem considerada em sua inteireza, não se pode admitir a utilização de
esclarecimentos grafados em tipos minúsculos em notas de rodapé ou
disfarçadamente situados em cantos pouco lidos do anúncio escrito, bem como a
apresentação de rápidas e complexas legendas de ressalvas em filme televisivo.
Também não é lícito o estabelecimento de relações implícitas entre as
informações veiculadas, das quais o espectador pode legitimamente inferir certa
característica inexistente no fornecimento. Seria, exemplificativamente,
enganoso o anúncio que afirmasse “deguste o autêntico vinho californiano” e
recomendasse a compra de um produto de vinícola brasileira. Em termos lógicos
estritos, inexiste ligação entre uma e outra proposição. Pode-se sugerir a uma
pessoa que experimente vinhos da Califórnia e que também compre bebida
nacional. São, logicamente, duas afirmações independentes. Contudo, há
implícita relação entre elas, de modo que o espectador fica autorizado a imaginar
que o vinho em promoção é o importado (cf. Craswell, apud Benjamin,
1991:204).
Para concluir esse primeiro aspecto relativo à consideração da mensagem
em termos globais, na aferição de publicidade enganosa, deve-se referir ao
teaser, técnica publicitária que compreende a veiculação de anúncios
preparatórios de campanha promocional, geralmente enigmáticos. O CBAP a
conceitua como “mensagens que visam criar expectativas ou curiosidade,
sobretudo em torno de produtos a serem lançados” (art. 9º, parágrafo único),
para excepcioná-la da proibição geral de publicidade por anunciante não
identificado. Exemplificando: a cidade amanhece com outdoor por todos os
cantos anunciando a breve chegada de algo que vai mudar a vida de todos. Não
são dadas muitas pistas ao espectador que se vê, paulatinamente, consumido pela
curiosidade. Surpreendem-se as pessoas em conversas com os amigos,
formulando palpites acerca da natureza do produto ansiosamente esperado.
Algum tempo depois, expectativa já espalhada entre os consumidores, novos
cartazes externos vêm saciar a sede de curiosidade dos circunstantes,
apresentando uma nova marca de sabão em pó. Trata-se de técnica em princípio
lícita, até porque os anúncios preparatórios costumam ser bastante lacunosos.
Haverá, contudo, enganosidade se o prometido pelo teaser não se confirmar pelo
fornecimento anunciado, induzindo em erro os consumidores. Em termos outros,
nada há de específico nessa técnica, relativamente à ilicitude da enganosidade,
estando as respectivas peças publicitárias sujeitas à mesma disciplina das demais.
O segundo aspecto relevante a acentuar na reflexão pertinente à
mensagem para fins de definição da prática de publicidade enganosa diz respeito
à sua natureza. Há, com efeito, duas fundamentais espécies de informações
veiculadas em publicidade. De um lado, as persuasivas, cujo objetivo é
convencer o espectador a se comportar de uma certa maneira, e, de outro, as
descritivas, que apenas transmitem dados elucidativos acerca do fornecimento
em promoção. Claro que o sentido geral de qualquer peça publicitária é o de
persuadir o espectador a consumir o objeto promovido, mediante a veiculação de
informações acerca dele. Por vezes, assim, será difícil discernir exatamente a
natureza persuasiva ou descritiva de uma específica mensagem. A tentativa,
contudo, deve ser feita, porque, rigorosamente falando, as frases persuasivas não
podem ser verdadeiras ou falsas. Essas qualidades dizem respeito exclusivamente
às frases descritivas.
Imagine-se filme publicitário em que o modelo com jeito de pessoa
confiável, com voz e postura intimistas, dirige-se ao espectador e afirma “você
não deixaria de comprar o melhor apenas porque é um pouco mais caro,
deixaria?”. Essa informação, a rigor, não é verdadeira ou falsa, mas
simplesmente persuasiva. Se o fornecimento a que se refere é, efetivamente, o
melhor ou o mais caro, isso não caracteriza seja a pertinência, seja a
impertinência da indagação formulada.
Se a publicidade apenas transmite postulados deônticos, afirmando que o
consumidor deve conduzir-se de certa forma, inexiste qualquer descrição do
produto ou serviço promovido. E, assim sendo, nada é possível aferir quanto à sua
veracidade ou falsidade. Os atributos das frases persuasivas são os de pertinência
em relação a fins presumidos (no exemplo acima, pressupõe-se que o objetivo
de todo consumidor sensato é adquirir produtos de qualidade, mesmo pagando
mais por eles), enquanto os das frases descritivas são os de veracidade ou
falsidade (caso reportem ou não adequadamente o seu objeto). Por isso, em
termos gerais, enquanto a impertinência de afirmações persuasivas pode
caracterizar o ilícito de publicidade abusiva, a falsidade de afirmações descritivas
pode dar ensejo ao ilícito da enganosidade. Na mesma medida, não se pode
tomar por abusiva publicidade fundada apenas em informações descritivas, ainda
que falsas, assim como não se verifica o ilícito da enganosidade em anúncio
pautado exclusivamente em mensagens persuasivas, ainda que impróprias.
As frases veiculadas por um
anúncio podem ser descritivas
(“este remédio é eficaz no
combate à dor de cabeça”) ou
persuasivas (“você merece ter
o carro mais bonito do
bairro”). As descritivas podem
ser verdadeiras ou falsas, mas
as
persuasivas
não.
As
primeiras,
assim,
estão
relacionadas ao ilícito da
enganosidade e as outras ao da
abusividade.
Nesse passo das considerações acerca da definição do potencial de
enganosidade de anúncios publicitários, cabe referência ao uso de superlativos ou
expressões exageradas (puffing ou exaggerated graphics). São, com efeito,
mensagens descritivas cuja veracidade dificilmente pode ser testada. Ao
propagar que o seu produto é o melhor do mundo, o empresário afirma algo que
simplesmente não se pode confirmar ou negar. Há quem considere ilícita a
adoção de superlativos ou de exageros por não ter o anunciante condições de
provar sua veracidade (cf. Bernitz-Draper, apud Benjamin, 1991:201). Anota
Waldírio Bulgarelli (1985b:90), porém, que a regra geral do direito da maioria
dos países industrializados aponta para a licitude da adoção de expressões
exageradas na publicidade, desde que inofensivas. Penso que, quanto a esse
tema, é necessário relembrar as convenções próprias da publicidade, que o
consumidor, ao longo de sua vida, passa a conhecer e aceitar. Os superlativos e
os exageros são exemplos da manipulação do fantasioso das pessoas, ou seja, da
quarta parede a que me referi inicialmente, com ajuda da imagem de Copland
sobre o teatro. Não há, portanto, nenhum ilícito intrínseco a essas técnicas de
publicidade. Evidentemente, em função da natureza da expressão exagerada ou
do superlativo, em sendo factível o teste da veracidade do afirmado, certamente
se configurará a enganosidade caso haja indução de consumidores em erro.
4.5. Princípio da Veracidade, Princípio da Transparência e Enganosidade por
Omissão
A doutrina assinala que a significativa mudança da evolução da disciplina
normativa da publicidade se verifica quando se passa do princípio da veracidade
ao da transparência (Ghidini, 1989:38). Adotando apenas o primeiro, o direito
limita-se a coibir a veiculação de publicidade capaz de enganar os espectadores.
Ao incorporar o segundo, o direito define as informações indispensáveis que o
empresário está obrigado a prestar, em sua publicidade, para contribuir com a
tomada de decisão adequada pelo consumidor. Entre um e outro estágio, podemse registrar situações intermediárias, como por exemplo a do direito norteamericano de disciplina da publicidade referente a crédito ao consumidor. Nela,
o princípio da transparência se manifesta com feitio peculiar, na prescrição da
regra all or nothing. Isto é, o fornecedor de crédito não está obrigado a anunciar,
em sua publicidade, as condições do mútuo, mas se o fizer, deverá apresentá-las
detalhadamente, prestando as informações definidas pela norma positiva.
Entre nós, no capítulo da proteção contratual, o Código de Defesa do
Consumidor contempla regras das quais se pode concluir a adoção do princípio
da transparência. Nesse sentido, ao consumidor deve ser assegurado o direito de
saber, previamente, a exata extensão das obrigações assumidas por ele e pelo
fornecedor (CDC, arts. 46, 52, 54, §§ 3º e 4º). No tocante à publicidade, no
entanto, o legislador nacional não ultrapassou os limites do princípio da
veracidade. Anote-se que as regras relativas à publicidade enganosa constantes
do Código de Defesa do Consumidor referem-se apenas à tutela de interesses
difusos e coletivos. No tocante à tutela dos interesses individuais, simples ou
homogêneos, o disposto no art. 37, § 1º, nada acrescenta à proteção que já havia
sido reconhecida a cada consumidor singular no tratamento do fornecimento
viciado. A transparência, portanto, é princípio aplicável apenas à disciplina das
relações de consumo individuais e não à das relações coletivas.
Diante de cada consumidor, o fornecedor tem o dever de informar prévia,
ampla e adequadamente, acerca do seu fornecimento. Diante da coletividade dos
consumidores, porém, inexiste esse dever e o fornecedor está obrigado somente
a não enganar em sua publicidade.
Na proteção de direitos
individuais simples, o CDC
adota
o
princípio
da
transparência, mas na dos
direitos coletivos, difusos e
individuais homogêneos, o
princípio adotado é o da
veracidade.
Em função da não adoção do princípio da transparência pelo direito
brasileiro, em matéria de disciplina das relações coletivas de consumo, o
empresário não se encontra obrigado a fazer publicidade de seu fornecimento. A
única hipótese de obrigatoriedade de realização de publicidade é a destinada à
divulgação de periculosidade em produto ou serviço, desconhecida antes de sua
introdução no mercado (CDC, art. 10, § 1º). Não está, portanto, também
obrigado, em regra, a promover publicidade com determinado conteúdo. A
legislação tutelar dos consumidores não lhe impõe o dever de subsidiar os
espectadores da publicidade com a transmissão de dados úteis à escolha destes,
no sentido de consumir ou não o produto ou serviço anunciado. Isto é, o dever de
informar prévia, ampla e adequadamente, que a lei prescreve ao fornecedor na
disciplina das relações individuais de consumo, não se concretiza por meio da
promoção publicitária, mas por meio do próprio atendimento dispensado em
concreto a cada consumidor.
A questão referente à enganosidade por omissão insere-se nesse cenário.
Se inexiste obrigação legal voltada especificamente ao conteúdo da mensagem
publicitária, no sentido de circunscrever o teor das informações que os
consumidores têm direito de conhecer, em que medida se pode considerar certa
omissão um fator de enganosidade? A lei menciona o atributo da essencialidade
(CDC, art. 37, § 3º), que se pode concluir apenas mediante análise casuística. Em
termos gerais, se o conhecimento do dado pode influir de forma ponderável na
decisão do espectador, no sentido de adquirir o fornecimento, então se trata de
informação essencial.
Código
de
Defesa
do
Consumidor
Art. 37, § 3º Para os efeitos
deste Código, a publicidade é
enganosa por omissão quando
deixar de informar sobre dado
essencial
serviço.
do
produto
ou
Claro que não basta configurar-se que o consumidor demandante em
particular, caso tivesse tido conhecimento do dado, não teria adquirido o bem ou
comodidade por razões particulares. Novamente, o cálculo empresarial somente
se viabiliza adotando-se, por referência, a noção de consumidor-padrão,
construída a partir do perfil do menos informado dos consumidores habituais do
fornecimento objeto da publicidade. Estando em julgamento questão referente à
enganosidade por omissão, o juiz deve pautar-se no mesmo critério, ou seja,
considerar o conjunto de consumidores habituais do fornecimento em promoção
publicitária, e aferir se o menos informado deles, se tivesse tido conhecimento do
dado omitido na mensagem, teria ou não alterado a sua decisão de adquirir o
bem ou serviço. A enganosidade por omissão, nesse sentido, se caracteriza na
hipótese em que é de tal forma importante o dado omitido, que um consumidorpadrão, assim considerado, deixaria de concretizar o negócio, se dele soubesse
anteriormente.
5. PUBLICIDADE ABUSIVA
A legislação brasileira, a exemplo da vigorante em outros países (como a
Itália e a Espanha), considera ilícita a publicidade abusiva. O legislador não a
conceituou propriamente, mas apenas apresentou hipóteses de sua configuração
no art. 37, § 2º, do CDC. Em inegável elenco exemplificativo, encontram-se
como modalidades desse ilícito a publicidade discriminatória, incitadora da
violência, exploradora de medo ou superstições, aproveitadora da deficiência de
julgamento e experiência das crianças, agressiva a valores ambientais ou
motivadora de condutas prejudiciais à saúde e segurança dos consumidores.
Analise-se, inicialmente, um a um os exemplos legais.
5.1. Abuso por Discriminação
A publicidade é discriminatória quando a mensagem veiculada afirma, ou
simplesmente sugere, a pertinência de tratamento discriminatório às pessoas. A
Constituição Federal assegura a todos, como direito fundamental, o tratamento
isonômico (CF, art. 5 º e incs. I, XLI, XLII), representando ofensa ao texto
constitucional a promoção de produtos ou serviços com desrespeito a esse direito.
Abstraindo-se a intrincadíssima questão do princípio jurídico da igualdade (cf.
Coelho, 1992b:91/98), e tentando construir apenas um critério operacional para a
norma proibitiva de publicidade discriminatória, pode-se afirmar que não é
admitida a promoção explícita de ideias preconceituosas ou mesmo simples
reforço de preconceitos sociais, por via da publicidade.
Exemplo de publicidade abusiva discriminatória pode-se ver na
promovida por um motel carioca, por meio de anúncios publicados em jornais
sob o título “Precisa-se de Secretárias”. A veiculação, ocorrida no próprio dia das
secretárias, descrevia o perfil da pretendente ao cargo ressaltando que deveria
“estar em dia com a academia de ginástica, apreciar música, conhecer bons
uísques e vinhos, ter pressa em agradar o chefe e calma para o resto, voz
parecida a um beijo e pele macia”. E, à semelhança das ofertas de emprego, o
anúncio apresentava rol de benefícios, do qual constava a descrição dos serviços
e equipamentos do motel.
Também são inequivocamente discriminatórios os anúncios que
propagam, ou simplesmente insinuam, qualquer conduta racista. Nesse sentido,
apesar de ressalvar a ausência de dolo na hipótese, o CONAR determinou a
sustação da veiculação de cartazes externos de uma marca de vestuário, a
Benetton, em que eram apresentadas duas meninas, sendo uma loira com rosto
angelical e outra negra com o penteado sugerindo chifres de diabinho.
A caracterização do ilícito do racismo na publicidade independe da
apresentação ou da não apresentação, no anúncio, de modelos de determinada
raça. A abusividade pode existir, por exemplo, na simples transmissão de script
racista contra negros, interpretado por modelo branco. Por outro lado, a só
presença ou a ausência de modelos dessa ou daquela raça não configura
discriminação. Nessa linha de entendimento, o CONAR considerou que o anúncio
apresentando mulher negra com criança branca ao colo, adequado à imagem
institucional do anunciante (Benetton), não infringia a ética publicitária.
Elemento importante ao ponderar a abusividade por discriminação racista,
diz respeito ao contexto, positivo ou negativo, em que se insere no anúncio a
referência a certa raça ou nacionalidade. Por exemplo, promover produtos
eletrônicos, de marca originária do Japão, falando de atributos positivos que a
crença popular costuma relacionar aos japoneses (grande capacidade laborativa,
eficiência, honestidade etc.), não pode ser visto como discriminatório. O mesmo
se pode afirmar da promoção de produtos têxteis, por meio de simpáticos
modelos do Médio Oriente, ainda que se referindo à milenar fama de
negociantes argutos, atribuída aos povos daquela região. Em síntese, o exame do
clima do anúncio é importante, na aferição desse tipo de ilícito, e, em se tratando
de mensagem publicitária desenvolvida de modo positivo, alegre, com elogio aos
costumes e marcas distintivas de certa raça ou nacionalidade, não se verifica a
abusividade discriminatória.
Outro tipo de discriminação comum de se verificar tem por vítima a
mulher. A promoção de produtos de limpeza, alimentos, utilidades domésticas e
supermercados dirige-se, é certo, privilegiadamente ao público feminino e
costuma apresentar como modelos mulheres cuidando do lar, dos filhos e do
marido. Nenhuma abusividade discriminatória se pode identificar na publicidade
com esse formato, se não houver reforço à discriminação da mulher, mas
simples reprodução do atual estágio evolutivo das relações de gênero. Claro que o
elogio à submissão, assim como a ridicularização da mulher no desempenho de
papéis profissionais, ou do lar, caracterizam abuso. Nesse contexto, o CONAR já
considerou ofensivo à mulher o anúncio denominado Mude de Posição, veiculado
por fabricante de eletrodoméstico em cartazes externos e revistas, que
apresentava uma modelo “de quatro”.
A deficiência física de qualquer espécie também deve receber dos
criadores de publicidade o tratamento adequado não discriminatório. Já foram
condenados os filmes Gago, referente a venda de baterias, e Vesgo, referente a
balanceamento de pneus, em razão de veicularem discriminação dessa natureza.
5.2. Abuso por Incitação à Violência
A publicidade incitadora da violência também é considerada abusiva.
Nessa modalidade, inserir-se-ia, por exemplo, hipotético anúncio referente a
armas de fogo, que apresentasse notícias verídicas sobre crimes não reprimidos
pelo aparato estatal, e promovesse a ideia de justiça pelas próprias mãos. O
CBAP dedica à publicidade de armas de fogo uma disciplina detalhada (Anexo
S), que pode servir de subsídio à aplicação do CDC. Desse modo, entre outros
ditames, veda-se o clima emocional na produção do anúncio, que deve se
resumir à apresentação do produto, suas características, preço e, também,
informar o consumidor sobre a exigência de registro pela autoridade competente,
nunca a mencionando como mera formalidade. Além disso, deve evidenciar que
o uso da arma pressupõe treinamento específico, equilíbrio emocional e a
observância de rigorosas cautelas para a sua guarda. Nenhum anúncio sobre
armas de fogo deve ser veiculado em publicação dirigida ao público
infantojuvenil ou pela TV antes das 23 horas.
A publicidade pode ser abusiva por incitação à violência
independentemente da natureza do produto ou serviço em promoção. Anúncio
sobre moda pode descrever situações ou comportamentos violentos, sem a
devida crítica, hipótese em que se caracteriza o ilícito; como no filme Três
feticheiros, por exemplo, em que o homem arranca à força a peça de roupa
íntima da mulher e a mastiga.
5.3. Abuso por Exploração do Medo e Superstição
A referência, na publicidade, ao medo e à superstição das pessoas deve
ser feita com critério, para se evitar sua exploração. Isso quer dizer que a
publicidade pode versar sobre crendices populares, apresentar modelos com
condutas supersticiosas ou com medos infundados, apoiar-se em crenças etc. O
que se encontra vedado na norma é a exploração do medo e da superstição do
consumidor. É necessário, para caracterização da abusividade, que o clima do
anúncio sugira a pertinência do medo infundado ou da superstição, em tom sério
ou pseudocientífico. Exemplo típico desse gênero de ilícito encontra-se no
anúncio de amuletos, poções, guias astrológicos etc., nos quais se assegura, sem a
devida sustentação científica, eficiência na busca do amor, da felicidade, da
previsão do futuro ou da sorte. Claro que a publicidade de qualquer tipo de
fornecimento pode ser, criativamente, elaborada a partir das crendices
populares, que integram o cotidiano de grande parte dos consumidores. Assim,
promover seguro de vida, falando das superstições sobre a morte, não infringe o
CDC, mas anunciar amuletos poderosos tratando as crendices como dado de
realidade infringe.
5.4. Abuso na Publicidade Dirigida a Crianças
O legislador deveria ter prestado mais atenção na disciplina da publicidade
destinada à criança. Lamentavelmente, a única e ligeiríssima referência ao tema
encontra-se na exemplificação legal da abusividade, em que insere o
aproveitamento da deficiência de julgamento e experiência das crianças (CDC,
art. 37, § 2º). O sistema de autorregulação publicitária disciplina a questão de
forma mais adequada e pormenorizada (art. 37 do CBAP), condenando, por
exemplo, a publicidade que transmite ao público infantojuvenil sensação de
inferioridade, por não consumir o produto ou serviço em promoção. Nesse
sentido, em 1992, órgãos de proteção ao consumidor do Rio Grande do Sul
consideraram abusivo o anúncio publicitário de tesouras infantis Zivi, cujo filme
de TV apresentava crianças com o referido produto repetindo eufórica e
debochadamente para a tela: “eu tenho, você não tem”.
Na publicidade dirigida ao
público infantojuvenil, não se
pode
incutir
qualquer
sentimento de inferioridade nos
que não consomem o produto
ou serviço anunciado.
Acerca da abusividade contra crianças, deve-se fazer referência ainda a
dois filmes da Nestlé que, submetidos ao Poder Judiciário por ação civil pública,
promovida por associação de proteção ao consumidor, foram considerados
abusivos e proibidos de veiculação pública (Direito do Consumidor, n. 1, p.
222/228). No primeiro filme, chamado Armazém, meninos invadem
furtivamente, e à noite, um estabelecimento empresarial para se apropriar e
comer guloseimas da marca em promoção, quando são surpreendidos pelo
guarda; que, no entanto, escorrega em bolinhas de gude adrede preparadas para
a cobertura da fuga. No segundo filme, chamado Perereca, meninos armados
com nojentas pererecas entram na casa de meninas suas vizinhas e, para
conseguir as guloseimas da marca em promoção que se encontram na geladeira,
ameaçam-nas com os pegajosos anfíbios. Fossem os agentes imputáveis, tais
ações tipificariam inequívocos furto e roubo qualificados. Ora, apresentar, em
filme publicitário de extraordinária penetração, crianças envolvidas em ações
condenáveis como se fossem normais, importa não só claro aproveitamento da
inexperiência dos espectadores menores, como também séria deturpação de
valores sociais.
Registre-se, no entanto, que curiosamente esses mesmos filmes da Nestlé,
submetidos ao julgamento do CONAR, foram considerados adequados à
disciplina da autorregulação.
5.5. Abuso por Desrespeito aos Valores Ambientais
O abuso por desrespeito a valores ambientais se caracteriza pela
veiculação de mensagem agressiva ao meio ambiente. Aqui está-se diante de
hipótese de dificílima concretização. Com efeito, ao fabricante de armas pode se
revelar realmente vantajoso promover seu fornecimento mesmo desrespeitando
os valores relativos à paz nas relações humanas, assim como ao de brinquedos
pode ocorrer de usufruir vantagem econômica ridicularizando, em sua
publicidade, atitudes de lealdade entre adultos e crianças. Em suma, em
determinadas situações, o empresário pode vislumbrar uma alternativa
economicamente adequada que tipifica, no entanto, abuso do direito de anunciar.
Promove, portanto, a publicidade, apostando eventualmente na inércia dos órgãos
de proteção aos consumidores ou na demora das ações judiciais. Existe, no
entanto, a perspectiva de retorno econômico enquanto o anúncio for veiculado, a
despeito da abusividade mais ou menos patente. Contudo, a produção ou
veiculação de anúncio agressivo aos valores ambientais, hoje em dia, se mostra
uma alternativa economicamente inconsistente, em razão do extraordinário apelo
de que se reveste a questão ecológica. Nenhuma publicidade de aparelhos de ar
condicionado irá lembrar a suspeita de danos provocados pelo clorofluorcarbono
(CFC), liberado pelo produto, à camada de ozônio da atmosfera. De qualquer
modo, a norma do CDC ajuda a prevenir tal forma de abusividade e, em seu
limitado âmbito de incidência, colabora com a preservação do meio ambiente.
Para se tipificar a publicidade abusiva agressora de valores ambientais,
não é suficiente a mera apresentação de situações comumente verificadas, em
que pessoas adotam comportamentos incompatíveis com a consciência
ecológica. O ilícito se verifica se há a promoção, ainda que implícita, do
desrespeito à natureza ou ao meio ambiente. Assim, a utilização da imagem da
garrafa vindo ter à praia com mensagem de náufrago, na produção de filme
publicitário sobre refrigerantes armazenados em latas, não caracteriza estímulo à
poluição do litoral, conforme já decidiu o CONAR.
5.6. Abuso por Indução a Conduta Nociva à Saúde ou Segurança do Consumidor
Por fim, menciona a lei o abuso por indução a conduta nociva à saúde ou
segurança dos consumidores. De imediato, associa-se a essa parte do dispositivo
legal em questão (CDC, art. 37, § 2º) a publicidade de cigarros, produto
comprovadamente danoso à saúde das pessoas. Da definição, pelo CDC, de
abuso nas mensagens publicitárias indutoras de comportamentos nocivos à saúde
do consumidor, poder-se-ia concluir a proibição absoluta dos anúncios de
cigarro? Penso que a resposta a tal indagação é negativa, na medida em que a
própria Constituição Federal assegura, indiretamente, aos fabricantes de tabaco, o
direito de anunciar seu produto.
O art. 220, § 4º, do texto fundamental submete a propaganda comercial de
tabaco e de outros produtos às restrições que a lei federal estabelecer com vistas
a garantir à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem dela (Lei n.
9.294/96). Estipula, também, que a publicidade conterá, sempre que necessário,
advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso. Ora, desse dispositivo
constitucional pode-se, de um lado, concluir a tutela dos interesses dos
consumidores, no sentido de serem alertados sobre a periculosidade do consumo
de cigarros; mas, de outro, pode-se concluir também o reconhecimento aos
fabricantes do tabaco do direito constitucional de anunciar o seu produto. A lei
ordinária que proibisse, em qualquer circunstância, a veiculação de anúncios de
cigarros afrontaria a Constituição Federal. De acordo com os lineamentos fixados
pelo constituinte na matéria, a lei ordinária pode, no máximo, restringir esse tipo
de publicidade, mas não a pode proibir.
Se assim é, a definição de publicidade abusiva por indução a conduta
nociva à saúde dos consumidores, constante do CDC, não pode ser interpretada
como extensiva ao tabaco, bebidas alcoólicas e demais produtos citados pelo art.
220, § 4º, da CF cuja publicidade é constitucionalmente garantida.
Forma típica de publicidade abusiva por induzir o consumidor a condutas
nocivas à sua saúde e segurança é a de remédios assentada na ideia de
automedicação. Fortemente enraizado na cultura popular brasileira, o hábito de
consumir medicamentos sem a devida prescrição do médico é causa de graves
riscos à saúde dos consumidores. Os empresários da indústria farmacêutica só
podem promover publicidade destinada aos usuários dos medicamentos anódinos
e de venda livre, ou seja, dos comercializáveis independentemente de receita
médica (“sem tarja”); dos demais, a publicidade só pode ser feita em
publicações especializadas dirigidas direta e especificamente a profissionais e
instituições de saúde (Lei n. 9.294/96, art. 7º). Mesmo no caso dos medicamentos
cuja publicidade aos pacientes é legalmente autorizada, a mensagem publicitária
não pode ser prejudicial à saúde dos consumidores. Se, por exemplo, incentivar
ou sugerir a automedicação, ela é abusiva, nos termos do art. 37, § 2º, do CDC.
5.7. Caracterização da Publicidade Abusiva
Encerrada a análise das formas de publicidade abusiva expressamente
tipificadas pelo legislador, importa retomar, como se afirmou anteriormente, o
nítido caráter exemplificativo do elenco apresentado pelo art. 37, § 2º, do CDC.
Não se esgotam, com ênfase, nas hipóteses nele apresentadas, os tipos de
publicidade abusiva, salvo, por evidente, no tocante às consequências na órbita da
repressão penal, em razão do princípio da reserva legal. Mas, se se trata de mera
exemplificação e se o legislador se omitiu na conceituação da abusividade, à
doutrina cabe pesquisar o critério que possibilite nortear a aplicação da norma
em referência às hipóteses do ilícito não explicitamente mencionadas. Em outros
termos, é necessário identificar o elemento comum aos exemplos de publicidade
abusiva, que possibilite a formulação de conceito doutrinário geral, a amparar a
configuração do ilícito em anúncios não referidos pelo legislador.
Código
de
Defesa
do
Consumidor
Art. 37, § 2º É abusiva, dentre
outras,
a
publicidade
discriminatória de qualquer
natureza, a que incite à
violência, explore o medo ou a
superstição, se aproveite da
deficiência de julgamento e
experiência
da
criança,
desrespeita valores ambientais,
ou que seja capaz de induzir o
consumidor a se comportar de
forma prejudicial ou perigosa à
sua saúde ou segurança.
Nesse contexto, pode-se afirmar que os empresários têm,
reconhecidamente, direito de anunciar os seus produtos ou serviços. Mas, como
ocorre em relação ao exercício de qualquer direito, devem fazê-lo de modo
regular. O abuso de direito se verifica quando o seu titular, podendo optar por
diferentes meios para o exercer, elege a alternativa mais onerosa a outras
pessoas, sem nítido proveito para si. É o que se dá na configuração da publicidade
abusiva. O fornecedor pode promover seu fornecimento de muitos modos (talvez
infinitos, em função da inesgotável capacidade criativa do meio publicitário).
Assim, se possui alternativas diversas para exercer o direito de anunciar de que é
titular, deve optar por aquela em que não agride os valores incorporados por
espectadores da mensagem publicitária.
Em outros termos, o critério de identificação da publicidade abusiva é o da
agressão aos valores sociais. Encontra-se essa, em alguma medida, manifesta
em todos os exemplos lembrados pelo legislador (incitação à violência,
exploração da criança, agressão ao meio ambiente etc.). Sempre que o
anunciante, para promover comercialmente os seus produtos e serviços, apela
para mensagem agressiva aos valores da sociedade, então ele incorre em prática
abusiva, porque poderia perfeitamente produzir sua publicidade sem se valer de
tal recurso.
O critério não se apresenta, no entanto, absolutamente isento de
problemas. Ao contrário, é fonte de sérias e complexas questões, que, não
obstante, devem ser enfrentadas pela doutrina. Em primeiro lugar, a atinente à
natureza dos valores agredidos pela peça publicitária (item 5.8.). Em segundo, a
distinção entre valores sociais e problemas pessoais (item 5.9.).
5.8. Agressão aos Valores da Sociedade
Deve-se, de início, atentar para o fato de que os valores agredidos pela
publicidade abusiva não são necessariamente os do consumidor do produto ou
serviço em promoção, mas sim os da sociedade em geral. Com efeito, não há
grande eficácia promocional no anúncio ofensivo ao próprio consumidor do
fornecimento, já que o espectador negativamente atingido pela mensagem
publicitária tende a adotar postura antipática em relação ao anunciante e aos seus
produtos e serviços. Em geral, aquela parcela das pessoas expostas à publicidade
abusiva que efetivamente consome o bem em promoção tende a não se sentir
realmente agredida. Os criadores, inclusive, desenvolvem sensibilidade suficiente
para conceber peças e campanhas de publicidade empáticas ao consumidor
habitual do fornecimento anunciado.
Anunciar armas de fogo, propagandeando a ideia de justiça pelas próprias
mãos, pode representar um meio atraente de promover esse produto aos olhos de
seus consumidores habituais. Para as outras pessoas, no entanto, que têm legítimo
interesse na preservação da ordem estatal, e que não querem se ver ameaçadas
por mensagens de apologia da violência, das quais podem inclusive vir a ser
vítimas, para essas tal formato de publicidade representa séria ofensa. Assim, se
a análise da publicidade enganosa deve ser feita a partir do universo restrito dos
consumidores habituais do fornecimento anunciado, a da abusiva deve considerar
a sociedade em geral.
A análise da publicidade
enganosa deve partir das
condições de discernimento dos
consumidores específicos do
produto ou serviço anunciado.
Já a análise da publicidade
abusiva deve levar em conta os
valores disseminados pela
sociedade em geral, deixando
de lado os dos consumidores do
produto ou serviço anunciado.
A definição de quais são os valores prestigiados pela sociedade, objeto da
proteção jurídica decorrente da vedação de publicidade abusiva, representa um
problema à parte. Isso porque, realisticamente, falar-se de valores da sociedade
pressupõe essa como um todo monolítico e homogêneo. Na sociedade, no
entanto, há classes, agrupamentos, ideologias e muitas outras segmentações que
lhe conferem colorido plural, diversificado, dialético. Não existem, a rigor,
valores universais e atemporais, acerca de cujos limites estejam todos em
perfeito acordo. O valor da preservação da vida humana, que se poderia
imaginar absoluto e eterno, é altamente controverso quando se debatem temas
como pena de morte, eutanásia ou aborto.
A norma jurídica coibidora da publicidade enganosa reclama, no entanto,
operacionalização e, apesar da natureza aporética da discussão sobre valores, ao
intérprete é necessário encontrar o padrão, o mais próximo possível da realidade
dos fatos culturais, para delinear os contornos de sua incidência. Em outras
palavras, é tarefa da doutrina construir o conceito tecnológico de valores da
sociedade, apesar das infindáveis e interessantes questões suscitadas pela riqueza
do tema.
Nesse sentido, pode-se afirmar, como ideia introdutória, que a veiculação
em publicidade de condutas tipificadas como ilícito penal, travestidas estas de
aceitáveis, toleráveis ou inofensivas, indica a presença de abusividade. Se o
anunciante promove seu negócio com referências positivas, elogiosas ou
simplesmente simpáticas a comportamentos criminosos ou contravencionais, há
inequívoca abusividade. Esse é um critério objetivo e seguro para dar solução
jurídica a boa parte do problema. Contudo, é insuficiente, pois há abuso no direito
de anunciar mesmo na apresentação de comportamentos não típicos para o
direito penal, mas ainda assim ofensivos a valores sociais.
Exemplo de abusividade sem referência a condutas penalmente típicas
encontra-se frequentemente na ambientação de filmes publicitários em sala de
aula, em geral para promover fornecimentos destinados ao público
infantojuvenil. Sempre o professor é apresentado como pessoa autoritária ou
chata; algumas vezes, inclusive, é corruptível, tolo ou incompetente. Isto é, o
criador aproveita os ingredientes do imaginário (não necessariamente justo) de
parte das crianças e jovens brasileiros em idade escolar e, dando-lhe formato
espirituoso, consegue atrair a atenção e, por vezes, a simpatia do seu público para
o produto anunciado. A publicidade aproveita a generalizada concepção de
buscar vantagem a todo momento e a traduz na ideia de que nada de muito
interessante pode ser dito por um professor e nada de muito importante pode
acontecer em uma sala de aula. Sob o ponto de vista da eficácia publicitária, essa
caricatura do docente e da escola representa solução adequada, porque se
estabelece forte empatia entre a mensagem e a parcela de espectadores que se
veem identificados, compreendidos e prestigiados pelo anunciante. Em uma
palavra, o produto vinga o indefeso aluno que o consumidor traz dentro de si.
Muitas vezes, porém, essa solução publicitariamente eficaz reforça
preconceitos e contribui para agravar o triste quadro da educação brasileira,
podendo, de acordo com as circunstâncias específicas da peça publicitária em
exame, caracterizar o ilícito da abusividade. Por exemplo, antes da vigência do
CDC, o Plenário do CONAR, em recurso extraordinário, confirmou a sustação do
filme Reencontro. Nele, a diretora de estabelecimento escolar chama à sua
presença os pais de dois alunos para tratar de algum peraltismo banal dos filhos.
Os pais se reconhecem como velhos colegas de escola e, após a reunião, vão
comemorar o reencontro na lanchonete do anunciante. Durante todo o filme, pais
e filhos ostentam indisfarçável desprezo pela diretora e suas queixas. Ora, se a
repreensão não tinha mesmo fundamento, a conduta saudável e educativa dos
pais não é, certamente, a de ridicularizá-la, mas a de contestá-la com firmeza, a
partir de fatos e argumentos em defesa dos filhos. Persistindo a diretora em sua
atitude despropositada, os pais devem simplesmente procurar outra escola e
encerrarem a questão. Nada impediria, por outro lado, independentemente do
resultado da reunião com a direção da escola, a comemoração do reencontro dos
velhos amigos no estabelecimento do anunciante.
Assim, mesmo com a apresentação de condutas não tipificadas
penalmente, pode-se incorrer em publicidade abusiva, ao se distorcerem valores
da sociedade. Nessa hipótese, porém, é mais difícil fixarem-se critérios tão
objetivos e seguros, como na da abusividade por reprodução acrítica de crimes e
contravenções.
5.9. Valores Sociais e Q uestões Individuais
Outro aspecto relevante na precisão do ilícito por abuso do direito de
anunciar diz respeito aos limites entre os valores da sociedade e preconceitos e
problemas individuais do intérprete. Impõe-se a cautela de não tomar esses por
aqueles. De fato, a tendência do intérprete da norma é, naturalmente, a de
privilegiar aspectos das relações sociais que lhe são particularmente mais
significativos. Contudo, nesse privilegiamento, pode ocorrer interferência dos
seus problemas individuais, de modo a considerar abusiva a mensagem que, a
rigor, apenas o incomoda, e ao segmento de espectadores de perfil psicológico
semelhante. Convenhamos que a ninguém é confortável ver, pela TV, a
ridicularização de personagem com traços idênticos aos seus. Isso, no entanto,
não pode comprometer o esforço de isenção do aplicador do direito.
Acentue-se que o desconforto de parcelas dos espectadores, diante de
determinado anúncio publicitário, não configura, por si só, o ilícito da
abusividade. A nenhum esportista agradaria ver a associação entre a prática de
esporte e limitação intelectual insinuada em publicidade. Disso, contudo, não se
pode concluir ofensa à atividade esportiva como um valor social. Da mesma
forma, nenhuma pessoa dedicada aos estudos apreciaria anúncio em que a
personagem com esse traço fosse apresentada como chata, sem graça e
assexuada. Nem por isso, se poderia pretender o desrespeito ao valor social da
educação. Em outros termos, apenas o desconforto provocado no espectador em
função da agressão a valor da sociedade em geral pode ser considerado na
aferição da abusividade. O provocado em determinados segmentos dos
espectadores em decorrência apenas de preconceitos ou problemas pessoais,
intimamente relacionados com o perfil psicológico deles, não caracteriza o ilícito.
Essa cautela na distinção entre valores sociais e questões individuais deve
ser adotada pelo intérprete especialmente na análise da eventual abusividade em
anúncios que veiculam cenas de nudez, erotismo ou com uso de baixo calão.
Certamente, sempre haverá numerosos espectadores desconfortáveis com
qualquer filme publicitário de TV de que participem modelos nus, mesmo na
promoção de produtos que ninguém usa vestido (chuveiro, por exemplo). O sexo,
por outro lado, nada tem de imoral ou agressivo. Muito pelo contrário, pode ser
sadiamente aproveitado na concepção e produção de anúncios publicitários, o
que não irá impedir o desconforto de inúmeros espectadores. O baixo calão, por
sua vez, também não é confortável para muitas pessoas, que preferem ouvi-lo
somente no escuro de uma plateia no teatro. Contudo, não é porque segmentos de
consumidores se sentem perturbados com certos fatos da vida, que outras pessoas
devem ser privadas de seus direitos.
O descompasso entre perturbações individuais e ofensa a valores da
sociedade se pode nitidamente perceber a partir de reflexões acerca da ementa
do julgamento proferido pelo CONAR, em 1991, assim formulada: “a Câmara
entendeu inconcebível que, em sã consciência, o comercial, exibindo dois bebês
situados com naturalidade numa cama, pudesse sugerir, provocar ou transmitir a
mais remota ideia de sensualidade”. Ora, se houve representação ao órgão de
autorregulação publicitária nesse caso, é porque alguém se sentiu perturbado pela
veiculação de anúncios com bebês dividindo a mesma cama. Trata-se, no
entanto, de distúrbio de âmbito pessoal, que não pode ser alçado a questão de
interesse geral.
Se o anúncio mostra casal de namorados apreciando o vinho em
promoção, na sala do apartamento de um deles, a descontração e intimidade
desse momento é plenamente compatível com a apresentação de modelos
semidespidos. A publicidade de lingerie pode ser licitamente associada a cenas
de erotismo. Torcedores falando palavrões no estádio pode ser aproveitado em
peças publicitárias de assinatura de transmissão televisiva de campeonatos de
futebol, por exemplo. Já a reprodução, elogiosa ou simplesmente acrítica, de
nudez em conduta delituosa, ou de cena erótica reproduzindo estupro, ou ainda de
pessoa dirigindo impropérios de baixo calão contra autoridade legalmente
investida de competência, são exemplos de publicidade abusiva, em virtude da
agressão a valores sociais nela transmitida.
O ilícito da abusividade não
se caracteriza se o desconforto
dos espectadores decorre de
aspectos próprios ao seu perfil
psicológico. É necessário que
um valor social seja agredido.
Considerar suficiente à abusividade o simples desconforto de parcelas de
espectadores, ignorando suas causas específicas e confundindo problemas e
preconceitos individuais com questões gerais de interesse da sociedade, é,
também, impossibilitar o cálculo empresarial, que se deve pautar em padrões
discerníveis. Pode haver contingentes de pessoas perturbadas por publicidades de
formatos mais complexos, mas isso não será abusivo, se não estiver em foco um
valor prestigiado pela sociedade; um valor que a agência e o empresário, antes
da produção do anúncio, e o juiz, após a sua veiculação, possam, com relativo
grau de certeza, distinguir como geral.
No tema da publicidade abusiva, é natural que se verifique certa distância
entre as conclusões alcançadas no âmbito do sistema de autorregulação
publicitária e as decorrentes do preceituado no Código de Defesa do Consumidor.
Os agentes da atividade econômica publicitária dispensam atenção especial para
toda a sorte de efeitos antipáticos, que possam decorrer dos anúncios. O baixo
calão é expressamente vedado pelo CBAP, e o CONAR tem atuado firmemente
contra o que considera exageros no uso de modelos nus nas peças publicitárias.
Pois, se segmentos quantitativamente não desprezíveis de espectadores
desgostam de publicidade com determinados elementos, então a sua adequação
às finalidades da própria atividade publicitária é discutível. Já o direito positivo de
tutela dos consumidores restringe o seu âmbito de incidência aos ilícitos da
simulação, enganosidade e abusividade, não se ocupando dos anúncios
ineficientes, infelizes, grotescos ou meramente provocativos.
6. “PUBLICITY”
Certas campanhas publicitárias preveem a estimulação de eventos de
repercussão jornalística em torno da própria publicidade, como um instrumento a
mais de promoção do produto ou serviço anunciado. Assim, filmes publicitários
de formato sofisticado são apresentados a personalidades, em concorridíssimas
avant-premières, sendo tratados como verdadeiras obras-primas da arte
cinematográfica. No desfile de Escolas de Samba do Rio de Janeiro, nas
competições automobilísticas de Fórmula 1 ou em shows de famosos artistas
organizam-se camarotes especiais sob o patrocínio da marca em promoção.
Fatos pitorescos envolvendo os modelos ou a produção do anúncio são veiculados
pela imprensa. Essa técnica de promoção de eventos em torno da publicidade se
denomina publicity.
A publicity é expressamente excluída do âmbito do sistema de
autorregulação (CBAP, art. 10) e o Código de Defesa do Consumidor nem sequer
a menciona. Contudo, muitas vezes, a simulação, a enganosidade e a abusividade
podem se manifestar, também, por meio dos eventos promocionais da própria
campanha publicitária. Por isso, impõe--se considerar, para fins jurídicos, a
publicity como um tipo específico de publicidade, sujeitando-a à mesma
disciplina.
A simulação, enganosidade ou
abusividade
podem
estar
presentes também nos eventos
organizados para a divulgação
de
campanha publicitária
(publicity).
Na estruturação dos eventos promocionais de campanha, devem a
agência e o anunciante cuidar para que não ocorra dissimulação de seu caráter
publicitário. A natureza promocional da publicity deve ser pronta e facilmente
identificada pelos seus destinatários. Claro que a agência e o anunciante não
respondem por dissimulação, em razão do modo pelo qual a imprensa noticia o
evento, posto que não exercem total controle sobre esse desdobramento da
utilização da técnica da publicity. Mas na organização do evento, no quanto
depender da atuação profissional da agência e das definições do anunciante,
devem se apresentar suficientemente explícitos os objetivos publicitários, para
que os consumidores possam adotar postura adequada em relação ao noticiário
correspondente.
Nos eventos da publicity, tal como na própria mensagem a que se
referem, não pode existir enganosidade. A matéria de fato cuja divulgação
jornalística é suscitada pelos eventos promocionais da campanha não pode
induzir os espectadores em erro. Aqui, como na questão da enganosidade da
mensagem publicitária propriamente dita, admite-se a mobilização do imaginário
dos espectadores pela transmissão de ideias fantasiosas (e portanto falsas), desde
que o consumidor-padrão possa perceber, por sua experiência de vida ou por
elementos da própria publicity, a sua natureza fantástica.
Também não podem ser organizados eventos promocionais de campanha
que transgridam a vedação da publicidade abusiva. Se, por exemplo, explorar a
deficiência de julgamento das crianças na organização da publicity, ou incorrer
em qualquer outra modalidade de abuso do direito de anunciar, terá o empresário
a mesma responsabilidade de quem veicula anúncio abusivo.
A publicidade propriamente dita e a publicity guardam, juridicamente,
certa autonomia. Pode se verificar a situação em que o anúncio em si é lícito,
não transgredindo as regras do CDC, mas os eventos promocionais que o cercam
não o são. Nessa hipótese, o juiz deve isolar os eventos da peça publicitária e,
tomando-os por espécie de publicidade, coibir a publicity que se mostrar
simulada, enganosa ou abusiva.
Finalmente, ressalte-se que, após a criação do sistema de autorregulação
publicitária e da entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, pode
ocorrer o aproveitamento da própria repressão à publicidade antiética ou ilícita
como publicity. Trata-se da produção de anúncios propositadamente
transgressores das normas disciplinares da publicidade, com o claro intuito de
provocar a atuação do CONAR ou mesmo do Judiciário, dando ensejo à
cobertura jornalística correspondente. Claro que essa alternativa apresenta seus
riscos, como a possibilidade de condenação pelos órgãos de aplicação das
referidas normas, mas pode também gerar polêmica e divulgação jornalística
suficientes para garantir maior exposição do produto.
Esse gênero de publicity, provocadora da atuação dos órgãos repressores
da publicidade antiética ou ilícita, configura, por sua vez, inequívoco abuso do
direito de anunciar. É, em suma, uma forma de publicidade abusiva. Assim,
caracterizada a específica intenção de desobedecer à legislação tutelar dos
consumidores e de mover a máquina judiciária com vistas a gerar fatos
jornalísticos sobre a campanha publicitária, deve o juiz ser particularmente
rigoroso com o empresário, impondo-lhe condenação não apenas em função do
ilícito perpetrado pelo anúncio, mas acrescentando-lhe também outra específica
pela publicity abusiva. Ou seja, a indenização civil deverá compreender parcela
relativa aos dois ilícitos, o da peça publicitária simulada, enganosa ou abusiva e o
da publicity abusiva. A contrapropaganda deve ser imposta, também, para as
duas modalidades de ilicitude, compreendendo a veiculação de alguns anúncios
desfazendo a enganosidade ou a abusividade decorrente da peça publicitária
propriamente dita e de outros desfazendo a abusividade da publicity. Por fim,
deve ser considerada a presença de agravante na hipótese de condenação penal
(CDC, art. 76, II).
7. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ANUNCIANTE
O ilícito da enganosidade e da abusividade dão ensejo à responsabilização
do anunciante em três níveis: civil, administrativo e penal. A sanção civil consiste
na indenização dos danos, materiais e morais, decorrentes da veiculação ilícita; a
consequência administrativa é a imposição de contrapropaganda; e a
responsabilidade penal decorre da tipificação como crime da conduta de
promover publicidade enganosa ou abusiva.
A publicidade enganosa e a
abusiva são sancionadas nos
três níveis do direito: civil,
penal e administrativo.
No tocante à responsabilidade civil, a definição da ilicitude da publicidade
enganosa pelo art. 37, § 1º, do CDC nada acrescenta à tutela liberada
individualmente aos consumidores pela disciplina do fornecimento viciado (CDC,
arts. 18 a 20). Definiu o legislador, como vício, a disparidade entre a realidade do
produto ou serviço e as indicações constantes de mensagem publicitária. Desse
modo, sob a ótica da tutela dos interesses individuais, simples ou homogêneos,
diante de enganosidade na publicidade, têm os consumidores o direito de optar
pela ação executória específica, pela redibitória ou pela estimatória, sempre
acompanhada da correspondente indenização por perdas e danos.
O âmbito de incidência próprio da definição de ilicitude pelo art. 37, § 1º,
do CDC é o da tutela dos interesses coletivos ou difusos. Se não houvesse o
legislador previsto a proibição da publicidade enganosa de modo expresso, os
interesses individuais de consumidores vitimados por enganosidade em anúncios
publicitários estariam devidamente resguardados pela disciplina do fornecimento
viciado, mas seria bastante difícil a proteção dos interesses transindividuais.
No que diz respeito à publicidade abusiva, a definição do ilícito pelo art.
37, § 2º, do CDC também tem o sentido de tutelar interesses transindividuais. Por
certo, não existe hipótese de abusividade lesiva a interesse individual, simples ou
homogêneo, pois essa ideia contradiz o próprio conceito de publicidade abusiva,
que se caracteriza apenas com a ofensa a valor social.
O Chefe do Executivo, ao sancionar o projeto de lei do Código de Defesa
do Consumidor aprovado pelo Legislativo, apôs veto ao § 4º do art. 37, que
estabelecia especificamente a responsabilidade civil por perdas e danos do
fornecedor que promovesse publicidade enganosa ou abusiva. Da
fundamentação do veto, percebe-se que a intenção primeira foi a de afastar a
possibilidade de imposição de contrapropaganda pelo Judiciário. O ato
presidencial envolveu, no entanto, também a questão relativa à responsabilidade
civil, somente em função da exigência constitucional de os vetos parciais
abrangerem todo o dispositivo (CF, art. 66, § 2 º). Não há, de fato, na motivação
do veto, qualquer elemento contrário à responsabilização civil do empresário que
promove publicidade enganosa ou abusiva.
A primeira impressão decorrente do veto, portanto, seria a de que a
responsabilidade civil por publicidade enganosa e abusiva, a exemplo do que se
verifica quanto à simulada, fundar-se-ia somente na previsão geral do art. 927 do
Código Civil. E, consequentemente, estaria submetida ao princípio da
culpabilidade, a exigir a presença de intenção dolosa do anunciante na
caracterização do ilícito civil. Esse, inclusive, foi o meu entendimento inicial
acerca da matéria (cf. Coelho, 1991:161). Melhor analisando a questão, no
entanto, não há como insistir na tese da indispensabilidade da culpa. Ou seja, a
tipificação da publicidade enganosa ou abusiva, para fins de responsabilização
civil, independe de qualquer apreciação subjetiva, das intenções do fornecedor.
Mesmo na hipótese de não ter o empresário agido com o intuito de enganar os
consumidores ou de ofender valor social, responde pelos danos advindos de
publicidade enganosa ou abusiva.
A responsabilidade civil do
anunciante pelos danos que
causa
com
publicidade
enganosa ou abusiva é
objetiva, independe de culpa ou
dolo.
A afirmação da natureza objetiva da responsabilidade do fornecedor, por
enganosidade ou abusividade em mensagens publicitárias, decorre, inclusive, da
interpretação sistemática do Código de Defesa do Consumidor. Pois, se o seu art.
37 nada acrescenta, no plano da proteção individual, ao que já havia previsto o
legislador nos arts. 18 a 20, e na solução do fornecimento viciado, a regra é a da
responsabilidade objetiva, então, no plano da proteção transindividual, não se
poderia liberar tutela de menor abrangência. Não haveria sentido, lógico ou
jurídico, em preceituar para o consumidor individual a proteção da
responsabilidade objetiva, reservando-se à coletividade dos consumidores as
dificuldades relacionadas à responsabilidade subjetiva. A interpretação
sistemática da legislação tutelar dos consumidores, portanto, dá bases à
responsabilização civil dos empresários por promoção de publicidade enganosa
ou abusiva, independentemente da intenção subjetiva deles.
Estabeleceu o Código de Defesa do Consumidor a inversão do ônus de
prova da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária,
atribuindo-o ao fornecedor (CDC, art. 38). Desse modo, o consumidor, ou o
legitimado a agir em nome da coletividade de consumidores (CDC, art. 82),
encontra-se dispensado de provar a enganosidade ou abusividade, na ação
indenizatória. Por definição do legislador, no campo do direito civil, cabe ao
demandado demonstrar a inexistência do ilícito na publicidade. Tem o
empresário, portanto, o dever jurídico de manter organizados os dados fáticos,
técnicos e científicos em que embasa sua publicidade, para apresentá-los em
juízo se e quando demandado, sendo a omissão desse dever tipificada como
crime, pelo art. 68 do CDC.
8. RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA DO ANUNCIANTE
O empresário patrocinador de publicidade enganosa ou abusiva está
sujeito à pena administrativa da contrapropaganda. Trata-se de sanção
determinada pelo Poder Executivo, em qualquer nível, pela qual se obriga o
anunciante a divulgar anúncio capaz de desfazer a lesão decorrente da
enganosidade ou da abusividade. O anúncio corretivo deve ter a mesma forma,
frequência e dimensão da publicidade ilícita, e, de preferência, deve ser
transmitido no mesmo veículo, local, espaço e horário. Revela-se a
contrapropaganda a maneira mais eficiente de dar cumprimento à vedação da
publicidade enganosa ou abusiva, pois possibilita a devida informação dos
espectadores acerca da realidade do fornecimento, ou destorce o valor social.
Muitas questões são suscitadas pela figura da contrapropaganda no direito
brasileiro. Em primeiro lugar, a sua natureza exclusivamente administrativa. O
veto presidencial aposto no art. 37, § 4º, do CDC afastou a possibilidade de a
sanção ser determinada pelo juiz, ao fixar a condenação do fornecedor
promovente de publicidade enganosa ou abusiva. Pelo texto legislativo que entrou
em vigor, apenas a Administração Pública tem condições de impor a penalidade
(CDC, arts. 56, XII, e 60).
Em nível federal, os órgãos administrativos competentes para a tutela dos
consumidores, de acordo com o respectivo regulamento, podem, de ofício ou
atendendo a representação de interessado, instaurar procedimento administrativo
para apuração da promoção de publicidade enganosa ou abusiva. Concedendo ao
empresário acusado o mais amplo direito de defesa, pode a autoridade federal
competente, após a conclusão da fase probatória e da apresentação das
alegações finais pelas partes ou por seus advogados, decidir pela imposição da
penalidade ou pelo arquivamento do procedimento. Da decisão, pode a parte
insatisfeita interpor recurso, segundo as normas regulamentares específicas, para
a autoridade hierarquicamente superior, até o encerramento da instância
administrativa, também definida pelas normas regulamentares.
Em nível estadual ou municipal, pode também a autoridade administrativa
competente impor a penalidade de contrapropaganda, observados os mesmos
pressupostos estabelecidos para o nível federal, isto é, o devido procedimento
administrativo e a garantia de ampla defesa. A previsão da competência de todas
as esferas de governo, no tocante à fiscalização e controle da publicidade de
produtos e serviços, é expressa no art. 55, § 1º, do CDC (cf. Denari,
1991:398/399). É, no entanto, indispensável a edição de específica e
correspondente lei estadual ou municipal tutelar dos interesses dos consumidores,
estabelecendo a penalidade e disciplinando a sua imposição. Isso porque as
penas, em virtude da garantia fundamental da legalidade (CF, art. 5 º, II), devem
ser instituídas por lei, e essa, em razão do princípio federativo, deve ser editada
pelo órgão legislativo de cada unidade da Federação determinada a coibir a
publicidade enganosa ou abusiva. Apenas para a autoridade administrativa de
nível federal o requisito já se encontra suficientemente atendido pelo Código de
Defesa do Consumidor.
A pena administrativa da
contrapropaganda pode ser
imposta ao anunciante pelo
Poder Executivo Federal, desde
que assegurados os direitos ao
devido
processo
e
ao
contraditório. Também os
Estados e Municípios podem
aplicar a sanção, se possuírem
leis próprias disciplinando a
matéria.
O Município e o Estado podem impor a contrapropaganda, ainda que a
publicidade ilícita tenha alcance que transponha os limites territoriais da entidade
federativa sancionadora. Contudo, a pena de contrapropaganda, referente à
publicidade de veiculação regional ou nacional, determinada por um Município,
não tem eficácia além dos limites de seu território. Também a pena imposta por
autoridade estadual não ultrapassa os limites do Estado. O fornecedor, nessas
situações, somente está obrigado a promover a divulgação do anúncio corretivo
em veículo de alcance municipal ou estadual, respectivamente.
Os procedimentos concomitantemente instaurados por mais de um ente
governamental não se excluem, devendo o fornecedor defender-se em todos.
Contudo, uma vez realizada a contrapropaganda a nível nacional, em
atendimento a penalidade imposta pelo governo federal, perdem objeto os
procedimentos estaduais e municipais em andamento, os quais devem ser
arquivados. Na mesma medida, realizada a contrapropaganda com alcance
estadual, em cumprimento de sanção definida pelo Poder Público estadual,
perdem objeto os procedimentos em andamento instaurados pelos Municípios
pertencentes ao referido Estado. Ainda sobre o tema, o atendimento de
penalidade de contrapropaganda determinada por Município ou Estado dispensa o
fornecedor de veicular nova contrapropaganda nos respectivos limites territoriais
desses entes federativos, caso venha a ser condenado também em nível federal.
O arquivamento do procedimento administrativo instaurado por um dos
entes da federação, por ter a correspondente autoridade chegado à conclusão de
inexistência de irregularidade na mensagem publicitária, não inibe a instauração
ou o prosseguimento de procedimentos administrativos por outros entes
governamentais acerca da mesma publicidade. Pelo contrário, o princípio
federativo garante a autonomia das decisões administrativas de cada nível de
governo. Assim, mesmo que a autoridade federal ou estadual tenha arquivado o
procedimento administrativo acerca da enganosidade ou abusividade de certa
publicidade, pode o Município instaurar ou dar prosseguimento ao seu próprio
procedimento e, uma vez concluindo pela irregularidade, impor a sanção da
contrapropaganda.
Cuidando-se a contrapropaganda de medida administrativa, tem o Poder
Público competência para sancionar os fornecedores independentemente de
ordem judicial, após o regular procedimento. Claro que esse ato administrativo
está, como os demais, sujeito ao controle jurisdicional e poderá o apenado
pleitear em juízo a sua desconstituição, provando eventual nulidade.
8.1. Efetividade da Contrapropaganda
Questão de suma importância diz respeito à efetividade da sanção de
contrapropaganda. Em outros termos, se o fornecedor simplesmente não divulgar
o anúncio corretivo, como deve proceder o Poder Público que lhe impôs a
sanção? O projeto de Código de Defesa do Consumidor aprovado pelo Legislativo
previa a proibição da publicidade de todos os produtos e serviços do fornecedor,
enquanto ele não desse cabal cumprimento à pena. Essa previsão, porém, foi
vetada pelo Chefe do Executivo, de sorte que o texto em vigor deixou de estipular
expressamente qualquer mecanismo de efetivação da contrapropaganda.
Acerca do tema, propõe Mônica Caggiano que o Poder Público pode
produzir e divulgar, ele próprio, o anúncio corretivo, ressarcindo--se em seguida
dos respectivos custos junto ao fornecedor apenado. Isso em virtude da regra
constitucional que atribui ao estado o dever de promover a defesa do consumidor
(CF, art. 5 º, XXXII), a qual tem o significado de lhe impor atuações concretas
direcionadas à coibição de condutas nocivas à sociedade (1991:62). O
entendimento busca diretamente no texto constitucional a base de sua sustentação
e aponta para adequado mecanismo de efetivação da medida administrativa de
imposição de contrapropaganda. Deve, portanto, a autoridade competente fixar,
em sua decisão condenatória, prazo razoável para que o fornecedor providencie
a veiculação do anúncio corretivo, sob pena de promovê-lo diretamente o Poder
Público (evidentemente a expensas do infrator que deverá, oportunamente,
ressarcir o erário).
Dificuldade que pode surgir na imposição da contrapropaganda é a
avaliação do cumprimento da pena. A lei não pode sujeitar o fornecedor à
aprovação prévia do anúncio corretivo pela autoridade administrativa, porque
haveria no caso censura à liberdade de expressão, inadmissível pela ordem
constitucional vigente (CF, art. 5º, IX). Desse modo, pode ocorrer de a autoridade
apenadora não se sentir satisfeita com a divulgação do anúncio corretivo. Pode
entender, com efeito, que os consumidores não foram suficientemente
informados, ou que o valor ofendido não foi convenientemente restaurado, de
modo a permanecer, ainda que parcialmente, a enganosidade ou a abusividade
que deram ensejo à penalização. A autoridade administrativa pode, inclusive,
considerar que a irregularidade recrudesceu, tendo havido no próprio anúncio
corretivo nova publicidade enganosa ou abusiva.
No caso de a autoridade administrativa reputar o anúncio corretivo
divulgado pelo fornecedor insuficiente ao atendimento da pena que lhe foi
imposta, é necessária a instauração de outro procedimento, para a garantia do
direito de ampla defesa. No novo procedimento, que poderá seguir rito sumário
de acordo com o regulamento próprio, o fornecedor encaminha as razões por
que entende cumprida a sanção, e a autoridade administrativa aprecia a questão
levando em conta esses argumentos. Convencida de que não se verificou o exato
atendimento da penalidade, deve a autoridade competente fixar novo prazo para
a divulgação de anúncio corretivo adequado. Persistindo a insuficiência, o Poder
Público, dispensado de ouvir mais uma vez as alegações de defesa do infrator,
pode promover diretamente a contrapropaganda, dele cobrando em regresso o
respectivo custo de produção e veiculação.
Para se acautelar e evitar maiores gastos, o empresário apenado com
contrapropaganda, por sua própria iniciativa, poderá submeter à autoridade
administrativa o projeto de anúncio corretivo, elaborado por ele ou pela sua
agência, formulando consulta a respeito da respectiva adequação ao atendimento
da penalidade imposta. Não poderá a Administração negar-se a atender à
consulta, em razão do direito constitucional de petição assegurado aos
particulares (CF, art. 5º, XXXIV, a). O fornecedor, diante de resposta afirmativa
da adequabilidade do projeto e uma vez executando o anúncio corretivo tal como
submetido à apreciação do Poder Público, tem o direito de ver reconhecido o
integral cumprimento da penalidade.
8.2. Natureza da Responsabilidade Administrativa do Anunciante
Em relação às consequências de direito administrativo, a responsabilidade
do empresário pela veiculação de publicidade enganosa ou abusiva independe
também de culpa ou dolo. A intenção que movia o fornecedor ao produzir o
anúncio ilícito é totalmente irrelevante para a autoridade administrativa decidir
pela imposição ou não da penalidade de contrapropaganda.
Recorde-se, por fim, que a contrapropaganda só tem cabimento na
coibição de enganosidade ou abusividade veiculada em publicidade inserida em
relação de consumo. Não há previsão legal de imposição da medida contra, por
exemplo, o empregador anunciante de oferta de emprego, os partidos políticos, o
particular revendendo produtos usados ou o vendedor de bens ou serviços de
insumo.
9. RESPONSABILIDADE PENAL DO ANUNCIANTE
A moderna doutrina do direito penal ressalta que a acentuada
fragmentação desse ramo jurídico acaba retirando-lhe a esperada eficiência na
repressão de condutas socialmente indesejadas. A custosa e lenta máquina
judiciária e a problemática administração dos presídios são dados de realidade
que recomendam, cada dia mais, a revisão de todo o aparato normativo de tipos
penais, de modo a otimizar o aproveitamento dos recursos estatais destinando-os
à repressão apenas dos comportamentos mais seriamente ofensivos à vida em
sociedade. O princípio da intervenção mínima do estado recomenda que se deve
reservar à sanção pelo direito penal apenas as infrações mais graves, valendo-se
o legislador de medidas administrativas ou meramente indenizatórias, sempre
que isso se revelar suficiente à tutela dos interesses jurídicos lesados. Claro que a
redução da intervenção penal do estado deve ter o sentido de propiciar melhorias
na repressão aos grandes crimes, especialmente os organizados, aproveitando os
recursos hoje consumidos pela coibição à criminalidade de bagatela. O princípio
da intervenção mínima não pode, com efeito, servir de pretexto à impunidade
das classes socialmente abastadas (cf. Flávio Gomes, 1992:88/95).
Na análise de muitos dos tipos penais construídos pelo legislador no Código
de Defesa do Consumidor, em especial os referentes à promoção de publicidade
enganosa ou abusiva, a doutrina penalista tem dedicado referências à
desconsideração da tendência sintetizada pelo princípio da intervenção mínima
do estado (cf. Toron, 1990:70/71). Em Portugal, por exemplo, o Código da
Publicidade considera a desobediência à proibição de publicidade enganosa não
crime, mas como contraordenação, submetendo os infratores a coimas de
valores diferenciados para as pessoas físicas e jurídicas.
A melhor alternativa para a coibição da enganosidade ou abusividade na
publicidade, parece-me, seria a introdução no Brasil da experiência do direito de
mera ordenação social. Isto é, a conduta consistente em enganar consumidores
ou ofender valores sociais por meio da atividade publicitária não seria tipificada
como crime, mas como contraordenação, cabendo por sanção o pagamento de
multa imposta pelo Poder Executivo. O legislador, no entanto, adotou solução
típica de nossa tradição jurídica e definiu como crime a ação de fazer ou
promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva (CDC,
art. 67), reservando pena mais grave à abusividade por indução a conduta
prejudicial ou perigosa à saúde ou segurança do consumidor (CDC, art. 68).
Originariamente, o projeto aprovado pelo Legislativo previa também a tipicidade
penal da publicidade simulada, mas nessa parte foi objeto de veto presidencial.
9.1. Elementos do Tipo do Art. 67 do CDC
A relação de consumo, tal como definida pelos arts. 2º e 3º do CDC,
integra o tipo do crime de promoção de publicidade enganosa ou abusiva (CDC,
art. 67). Para que se consuma o ilícito penal, é necessário que o anúncio
veiculador da enganosidade ou abusividade tenha sido produzido e divulgado a
expensas de pessoa determinável como fornecedora (CDC, art. 3º) e seja
destinado a espectadores enquadráveis como consumidores (CDC, art. 2º), pelo
menos em potencial (CDC, art. 29). A vítima, no crime de promoção de
publicidade abusiva, não é necessariamente consumidor, mas o corpo de delito
deve ser forçosamente um anúncio dirigido aos consumidores. A enganosidade
ou abusividade veiculadas em peças publicitárias insertas em relações jurídicas
não caracterizáveis como de consumo, como por exemplo, a de oferta de
emprego (relação de direito do trabalho), a de propaganda eleitoral (relação de
direito público), a de bens ou serviços de insumo (relação de direito comercial)
ou a de revenda de produtos usados (relação de direito civil), não dão ensejo à
tipificação do crime do art. 67 do CDC. Em outros termos, adotando-se a
designação sugerida por Benjamin, trata-se de crime de consumo próprio
(1992:115).
Promover
publicidade
enganosa ou abusiva é praticar
crime de consumo próprio; ou
seja, apenas se caracteriza o
ilícito penal, se o anúncio é
feito por fornecedor e dirigido
a consumidor.
Na configuração da publicidade enganosa ou abusiva para fins penais, ao
contrário do que se verifica no âmbito das repercussões de direito civil e
administrativo, é imprescindível a presença do dolo na ação do empresário.
Conforme acentua Damásio, em lição fundada na filiação do direito penal
brasileiro ao sistema da descrição específica dos crimes culposos, o tipo do art.
67 do CDC trata exclusivamente de conduta dolosa. Mesmo na parte em que se
reporta à enganosidade ou abusividade que o agente deveria saber, o legislador
não criou tipo penal culposo, mas fez referência ao dolo eventual. Poderá haver
posição divergente na doutrina, considerando na hipótese a previsão de presunção
de culpa. Mas como lembra Damásio, é essa presunção incompatível com o
princípio constitucional do estado de inocência, de modo que o entendimento
mais acertado é o de que o crime de promoção de publicidade enganosa ou
abusiva é sempre doloso (1992:100/102).
9.2. Crime Formal e Crime Material de Publicidade Enganosa
Questão interessante acerca da tipicidade do crime de promoção de
publicidade enganosa resulta da entrada em vigor, ainda durante a vacatio legis
do Código de Defesa do Consumidor, da Lei n. 8.137/90, que introduziu novos
tipos penais tutelares das relações de consumo. No inciso VII do art. 7º dessa lei,
prescreveu o legislador pena a quem induzir o consumidor em erro, mediante
indicação ou afirmação falsa ou enganosa sobre a natureza ou qualidade de bem
ou serviço, utilizando-se de divulgação publicitária. A discussão gravita em torno
da eventual revogação da menção à publicidade enganosa contida no art. 67 do
CDC.
A solução mais ajustada, segundo os penalistas, é a de considerar o crime
do art. 67 do CDC como formal, posto que não integra o tipo qualquer resultado
decorrente da ação de fazer ou promover publicidade enganosa; e interpretar o
do art. 7º, VII, da Lei n. 8.137/90 como crime material, uma vez que a ação de
induzir consumidor em erro pressupõe um resultado concreto da divulgação
publicitária (cf. Benjamin, 1991:198; Costa Jr., 1991:397). Isto é, se o empresário
promove publicidade com potencial enganoso, mas o resultado concretamente
não se verifica e nenhum consumidor é especificamente ludibriado pelo anúncio,
então trata-se de crime apenado com detenção de três meses a um ano, e multa
(CDC, art. 67). Mas se o consumidor é concretamente enganado pela mensagem
publicitária, e adquire produto ou serviço em decorrência disso, então a pena
reservada ao empresário é a de detenção de dois a cinco anos ou multa (Lei n.
8.137/90, art. 7º, VII).
A rigor, cuida o art. 67 do CDC de crime de mera conduta. Com efeito,
diferem-se as hipóteses de descrição típica de conduta sem resultado, em que o
crime se encerra na mera ação do agente (por exemplo, a violação do domicílio)
e a de descrição típica de conduta com vistas a um determinado resultado, sem
que a verificação desse seja imprescindível à configuração do crime (por
exemplo, a extorsão). A doutrina, por vezes, reúne ambas as situações sob a
rubrica de crimes formais (cf. Noronha, 1978:118); adotando-se, porém, a
distinção proposta por Damásio, baseado nas lições em Grispigni (1977:185),
pode--se classificar com maior precisão o crime de promoção de publicidade
enganosa do Código de Defesa do Consumidor como sendo de mera conduta, e o
do art. 7º, VII, da Lei n. 8.137/90, como crime material, por ser necessário à sua
consumação o resultado concreto da indução em erro do consumidor.
Há outra distinção possível de se estabelecer entre o crime do art. 67 do
CDC e o do art. 7º, VII, da Lei n. 8.137/90. Naquele, delineou o legislador
hipótese de crime de consumo próprio, em que a relação jurídica de consumo,
tal como preceituada por lei (CDC, arts. 2º e 3º), integra o tipo. Não se pode
pretender a sua incidência em relação jurídica interempresarial, ou disciplinada
pelo direito civil, por exemplo. Já o tipo do art. 7º, VII, da Lei n. 8.137/90
estabelece crime de consumo impróprio, ou seja, pertinente às publicidades
insertas em relações jurídicas de qualquer natureza (cf. Benjamin,
1992:114/115).
O crime de consumo do art.
67 do CDC é de mera conduta e
próprio, ao passo que o do art.
7º, VII, da Lei n. 8.137/90 é
material e impróprio.
Desse modo, o empresário que veicula publicidade enganosa dirigida aos
destinatários finais de seus produtos ou serviços incorre em prática criminosa,
ainda que, concretamente, nenhum espectador tenha sido realmente enganado,
ficando sujeito às penas do art. 67 do CDC. Por outro lado, a pessoa anunciando a
venda de seu carro usado, o veículo de propaganda divulgando a sua eficiência
comunicacional, o atacadista fazendo publicidade aos varejistas e o empregador
oferecendo vagas em sua empresa, somente cometem crime se a enganosidade
da mensagem publicitária efetivamente induzir em erro a pessoa com quem
vierem a contratar. Submetem-se, em decorrência, às penas do art. 7º, VII, da
Lei n. 8.137/90.
10. RESPONSABILIDADE DA AGÊNCIA DE PROPAGANDA E DO
VEÍCULO DE COMUNICAÇÃO
De início, assente-se que a agência e o veículo respondem pela
publicidade de seus próprios serviços dirigida aos seus próprios consumidores, tal
como os demais fornecedores. Quanto a isso, inexistem especificidades a
justificar maiores indagações. Ou seja, na promoção de seu próprio
fornecimento, a agência e o veículo são tratados, pela lei, do mesmo modo que
os demais exercentes de atividades econômicas direcionadas ao mercado
consumidor. A questão controvertível diz respeito à responsabilidade da agência
pela criação, e a do veículo pela transmissão, de publicidade enganosa ou abusiva
referente a produtos ou serviços fornecidos por outro empresário, seu
contratante.
Nesse contexto, a agência de propaganda não tem responsabilidade civil
ou administrativa pela concepção, produção ou intermediação na veiculação de
publicidade enganosa ou abusiva pertinente a fornecimento alheio. As
repercussões, em nível civil e administrativo, envolvem unicamente o
empresário anunciante. Ele é quem define os objetivos e alguns dos contornos
básicos da publicidade, ao elaborar o briefing, e, em última instância, aprova a
proposta de campanha e os filmes, anúncios e peças publicitárias
correspondentes. Nada é feito pela agência de propaganda sem o conhecimento,
a orientação e a aprovação do anunciante, que por tudo assume integral
responsabilidade. Por essa razão, o Código de Defesa do Consumidor não prevê
qualquer responsabilidade da agência, no tocante à indenização por perdas e
danos e à produção e veiculação de anúncio corretivo, quando a publicidade de
seu contratante é considerada enganosa ou abusiva.
Para alguns doutrinadores, se houver culpa ou dolo da agência, no
desenvolvimento de seu trabalho, pode ela ser responsabilizada civilmente
(Benjamin, 1991:214). Entendo, contudo, que somente seria cabível tal
responsabilização em regresso, perante o anunciante condenado e, ainda assim,
em virtude de inexecução de contrato. Ou seja, para ter direito de ser ressarcido,
o empresário deve provar que a agência de propaganda deixou de atender às
suas orientações específicas, ou ao deliberado em reuniões mantidas com ela, e
que, em decorrência de tal atitude, sobreveio-lhe condenação por publicidade
enganosa ou abusiva. Em outras palavras, cabe-lhe demonstrar o
descumprimento do contrato por parte da agência. Cuida-se, portanto, de matéria
disciplinada pelo direito civil, submetida à teoria da responsabilidade contratual e
ao princípio da culpabilidade.
O veículo também não responde civil ou administrativamente pela
transmissão de mensagem publicitária alheia julgada enganosa ou abusiva, uma
vez que não exerce e não pode exercer qualquer controle sobre o respectivo
conteúdo. O seu dever resume-se a informar a identificação do anunciante a
quem demonstre ter legítimo interesse em sabê-lo.
A agência de propaganda e o
veículo
não
têm
responsabilidade
civil
ou
administrativa pelo anúncio
enganoso ou abusivo. Poderá,
no entanto, caracterizar-se a
responsabilidade penal de
pessoas envolvidas com o
processo de criação do
anúncio.
Preceituou, porém, a lei tutelar dos consumidores a responsabilidade penal
dos profissionais de criação contratados pela agência de publicidade. Da
conjugação dos arts. 67 e 75 do CDC, conclui-se a imputação das mesmas penas
definidas para o fornecedor à pessoa que, de qualquer forma, concorre para a
consumação do crime de promoção de publicidade enganosa ou abusiva. Ora, os
profissionais de criação envolvidos na concepção da publicidade, por evidente,
concorrem diretamente para a definição do seu conteúdo, formato e das ideias,
valores e contravalores expressados. Assim, encontram-se sujeitos às mesmas
penalidades reservadas ao empresário anunciante, se tipificada a enganosidade
ou abusividade. Cada um dos membros da equipe de criação, bem como da
gerência e diretoria da agência envolvidos especificamente com o trabalho de
concepção do anúncio ilícito, responderá na medida da respectiva culpa.
Os outros profissionais contratados pela agência, envolvidos apenas
indiretamente com a concepção, ou mesmo diretamente com a execução das
peças publicitárias, não podem ser responsabilizados penalmente. Assim, o
pessoal de apoio administrativo, modelos, diretor de cena, responsáveis pela
iluminação, cenários, maquiagem, elenco, continuismo e todas as demais pessoas
de cujo trabalho depende a produção do anúncio não são tidas, em princípio,
como sujeitas ao art. 75 do CDC. A melhor exegese desse dispositivo é a
restritiva, de modo a aplicar-se apenas àqueles diretamente responsáveis pela
enganosidade ou abusividade transmitida pelo anúncio.
Por essa mesma razão, os responsáveis pelo veículo nunca podem ser
responsabilizados penalmente por terem transmitido publicidade enganosa ou
abusiva. Claro que sem o concurso de algum veículo de comunicação, não há
como consumar-se materialmente o ilícito. Contudo, a atuação de muitos outros
agentes econômicos também é materialmente imprescindível para a
concretização do crime, mas a ninguém parece plausível imputar-lhes
responsabilidade; por exemplo, o jornaleiro, o fabricante do televisor ou do
aparelho de rádio, o locador do imóvel com espaço para outdoor etc. Por outro
lado, não se pode conceder ao veículo de comunicação poderes de julgar os
anúncios que lhe são apresentados, ou, mais grave ainda, impor-lhes o dever de
censura. Em suma, a tentativa de se atribuir responsabilidade às empresas
jornalísticas, ao rádio, TV e outros veículos pressupõe interpretação que conduz a
resultados juridicamente absurdos e, assim, deve ser afastada.
11. PUBLICIDADE COMPARATIVA
Uma importante e eficaz técnica de publicidade consiste na comparação
entre o produto ou serviço do anunciante e de seu concorrente. É a publicidade
comparativa, em que se vê a inserção de informações de produtos ou serviços
tanto do anunciante como da concorrência, destacando que os primeiros são de
alguma forma superiores aos últimos. Há ordens jurídicas que tratam
especificamente da publicidade comparativa. O direito espanhol, por exemplo,
reputa-a publicidade desleal quando não apoiada em características essenciais,
afins e objetivamente demonstráveis, ou se compara produto ou serviço com
outros não similares, desconhecidos ou de presença reduzida no mercado. O
Code de la Consommation francês contempla disposição semelhante. Na lei de
tutela dos consumidores uruguaia, admite-se expressamente a comparação,
desde que objetiva e passível de comprovação. No direito brasileiro, não existem
normas jurídicas específicas sobre o tema. Mas, ainda que claramente
identificado o concorrente (ou concorrentes) e suas marcas, a técnica da
publicidade comparativa não pode ser, em princípio, considerada ilícita.
Como no Brasil, conforme já acentuado, a disciplina da atividade
publicitária se insere no direito de proteção aos consumidores, não existe norma
jurídica proibindo ou limitando a publicidade comparativa, em termos
específicos. Isto porque, sob a perspectiva do consumidor, a publicidade
comparativa costuma ser altamente proveitosa, na medida em que possibilita o
acesso a informações sobre as diferenças entre os produtos e serviços oferecidos
no mercado. Para a legislação consumerista, apenas se caracterizaria o ilícito, na
hipótese de veiculação de informações enganosas ou de ocorrência de
abusividade. Quer dizer, nesses casos, a publicidade comparativa será sancionada
não porque é comparativa, mas sim porque pode enganar os consumidores, ou
agredir valores sociais. Nada há, em outros termos, de específico na publicidade
comparativa, que pudesse representar, por si só, ofensa a direito de consumidor.
Por outro lado, dois aspectos não relacionados diretamente aos direitos dos
consumidores têm sido também destacados, no exame da publicidade
comparativa. Em primeiro lugar, a possibilidade de se verificar concorrência
desleal; segundo, a de ofensa a direito marcário do concorrente. O critério a se
considerar, de novo, é o da enganosidade. Se não houver, na comparação
veiculada pelo anúncio, a possibilidade de o destinatário vir a ser enganado, não
se verifica nem a concorrência desleal, nem o desrespeito à marca do
concorrente. Se são verídicas as informações levadas ao destinatário da
mensagem publicitária — ou, sendo falsas, não são apresentadas como verídicas
—, então não há enganosidade, elemento indispensável à configuração daqueles
ilícitos.
No que diz respeito à concorrência desleal, conforme estudado (Cap. 7), o
que caracteriza a irregularidade da prática concorrencial é o meio utilizado e não
as motivações, ou os objetivos do empresário — sempre iguais aos da
concorrência leal, isto é, a conquista de clientela. Ao promover publicidade
comparativa, o empresário possui sempre o objetivo de conquistar fatias dos
consumidores de um ou mais concorrentes, especialmente os mencionados no
anúncio. Possui este objetivo, tanto na hipótese de comparação lícita, como na
desleal. O que distingue uma de outra situação é a veiculação de informações
falsas em detrimento de concorrente, em prejuízo da imagem dele junto aos
consumidores. Ou seja, a inidoneidade do meio empregado é o fator decisivo
para que a publicidade comparativa deixe de ser lícita, para os fins da disciplina
jurídica da concorrência.
Note-se que a publicidade comparativa pode transmitir informações
falsas, mas nem por isso caracterizar-se como enganosa e desleal. Certa vez, o
fabricante de refrigerantes Pepsi veiculou um engraçado anúncio, no qual
afirmava que cientistas haviam realizado pesquisa com dois macacos, dando a
um deles a sua bebida, e ao outro Coca--cola. Após um mês, o símio que
consumira o refrigerante concorrente apresentava melhoras consideráveis em
sua coordenação motora, enquanto o alimentado com Pepsi havia desaparecido.
A cena seguinte mostrava o animal dirigindo um bug, na praia, acompanhado de
lindas mulheres. Um terceiro fabricante de refrigerantes aproveitou-se da
oportunidade, e veiculou anúncio mostrando o macaco, também acompanhado
de belas modelos, estacionando seu bug numa barraca da praia, para beber
guaraná Antártica. Não há como negar que esses anúncios apresentam
informações totalmente falsas. Não houve pesquisa alguma, macaco nenhum
melhora coordenação motora por consumir refrigerantes, nem muito menos
conquista garotas ou conduz automóveis. Como visto acima (item 4), a
veiculação de informações falsas não caracteriza, por si só, a publicidade
enganosa vedada pelo CDC. É necessário que a falsidade seja ocultada do
consumidor; em outras palavras, que as informações falsas sejam apresentadas
como verdadeiras. A questão ganha contornos um tanto diversos, quando se trata
de concorrência desleal. Neste caso, a lei reputa ilícita a veiculação de
“afirmação falsa em detrimento de concorrente” (LPI, art. 195, I). Quer dizer,
mesmo que não exista enganosidade, e, portanto, não haja infração ao CDC, a
veiculação de informação falsa poderá significar concorrência desleal, caso a
falsidade se refira ao produto ou serviço concorrente, prejudicando sua imagem
junto aos consumidores. Em conclusão: se há, na publicidade comparativa,
informação falsa, mas a falsidade é incapaz, de um lado, de induzir o consumidor
em erro e, de outro, de prejudicar a imagem de concorrente, então é lícita a
comparação (como ocorreu, aliás, no exemplo acima).
Finalmente, em relação aos direitos industriais do concorrente citado na
publicidade comparativa, não existe lesão de qualquer natureza pela simples
menção da marca registrada que ele titulariza. É certo que parte da doutrina
condena a publicidade comparativa, como lesiva aos direitos marcários do
empresário. Para José Roberto Gusmão (1989), por exemplo, é irregular —
verdadeira contrafação — a simples menção da marca do concorrente, em
anúncios, se não autorizada pelo titular do registro, ainda que referida menção
seja elogiosa. A propósito, o direito francês, com o intuito de coibir o parasitismo
comercial, proíbe a comparação, se o objetivo principal é o de tirar vantagem da
notoriedade de marca alheia (Pizzio, 1996:137/139).
No Brasil, a rigor, irregularidade na publicidade comparativa, frente ao
direito industrial, somente existe em duas hipóteses: 1ª) se, ao mencionar a marca
ou marcas da concorrência, o empresário anunciante as imita em seus produtos
ou serviços ou, de qualquer forma, induz em confusão os destinatários da
mensagem (esta é, inclusive, a conduta tipificada como “crime contra a marca”:
LPI, art. 189, I); 2ª) se a publicidade comparativa pode contribuir para a
degenerescência da marca (LPI, arts. 130, III, e 131; Cap. 6, item 7.3). Se não
ocorrem tais circunstâncias, porém, a comparação não ofende direito de
propriedade industrial.
A publicidade comparativa
não é proibida. Ela, no entanto,
como
qualquer
outra
publicidade, deverá atender às
regras da Lei da Proprie-dade
Industrial e do Código de
Defesa do Consumidor, para
que
não
se
caracterize
concorrência
desleal,
usurpação de marca ou lesão a
direito do consumidor.
A comparação na publicidade, em si mesma considerada, não é, portanto,
irregular. Aliás, a concorrência desleal e a ofensa a direito industrial podem
ocorrer por meio de anúncios publicitários, mesmo que não possuam natureza
comparativa. O empresário incorre em prática concorrencial ilícita, se promove
publicidade em que veicula falsa afirmação em detrimento de concorrente,
ainda que não apresente qualquer comparação com o seu produto ou serviço. A
seu turno, mesmo sem a apresentação de qualquer informação de cunho
comparativo, ocorre lesão a direito marcário se o anunciante exibe seu produto
ostentando marca que imita a de concorrente, ou a reproduz indevidamente. Em
outros termos, o ilícito reside na concorrência desleal ou na usurpação da marca,
e nunca na comparação.
Sob o ponto de vista da ética publicitária, a publicidade comparativa
também é admitida, desde que observados alguns princípios (CBAP, art. 32).
Assim, o principal objetivo dos anúncios que apresentam a comparação entre
produtos e serviços de concorrentes deve ser o esclarecimento do consumidor.
Claro que a primazia dada a este aspecto da mensagem não pode significar a
desnaturação da própria atividade publicitária. Quero dizer, a razão fundamental
a motivar o anunciante é, ainda e sempre, o aumento de suas vendas. O que se
considera antiética é a mensagem que compara produtos ou serviços, sem
objetividade, apenas ressaltando aspectos exclusivamente valorativos ou de
cunho emocional. A apresentação de depoimentos de consumidores colhidos
aleatoriamente nas ruas, em que é dito preferirem a mercadoria do anunciante a
outra, especificamente identificada, inobserva a regra da autorregulação, porque
a comparação não é objetiva. Note-se que uma publicidade comparativa lícita
(segundo o direito nacional vigente) poderá ser condenável sob o ponto de vista
da ética publicitária. A hipótese referida exemplifica o caso: não há, na
comparação subjetiva, ofensa a direito do consumidor, ao direito industrial ou à
disciplina da concorrência; mas desobediência a princípios da ética publicitária.
A publicidade comparativa, portanto, é permitida. Se, contudo, a
comparação for enganosa (no sentido de possibilitar a indução em erro dos
consumidores e destinatários da mensagem), ela transgride a legislação tutelar
dos consumidores; se, por outro lado, a comparação veicular informação falsa
em detrimento do concorrente, caracteriza concorrência desleal; se não distinguir
de modo claro as marcas exibidas, dando ensejo a confusão entre os destinatários
da mensagem, ou contribuir para a degenerescência de marca notória, há lesão a
direito industrial de concorrente. Não se verificando nenhuma destas três
hipóteses, no entanto, a publicidade que compara produtos ou serviços do
anunciante e da concorrência será absolutamente legal, jurídica; observando-se
apenas que, para atender aos preceitos éticos, ela deve pautar-se em critérios de
objetividade.
Segunda Parte
TÍTULOS DE CRÉDITO
Capítulo 10
TEORIA GERAL DOS TÍTULOS DE CRÉDITO
1. CONCEITO DE TÍTULOS DE CRÉDITO
Título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito,
literal e autônomo, nele mencionado. Esse conceito, formulado por Vivante e
aceito pela unanimidade da doutrina comercialista, sintetiza com clareza os
elementos principais da matéria cambial. Nele se encontram, ademais,
referências aos princípios básicos da disciplina do documento (cartularidade,
literalidade e autonomia), de forma que o seu detalhamento permite a
apresentação da teoria geral do direito cambiário. É uma alternativa para o
estudo do tema, mas a doutrina costuma iniciar a abordagem desse ramo do
direito comercial, com uma referência ao conceito de crédito, destacando que
ele se funda numa relação de confiança entre dois sujeitos: o que o concede
(credor) e o que dele se beneficia (devedor). Refere-se, comumente, à
importância da circulação do crédito para a economia e introduz os títulos de
crédito como seu principal instrumento (cf. Requião, 1971, 2:297; Martins, 1972;
Borges, 1971).
“Título de crédito é o
documento necessário para o
exercício do direito, literal e
autônomo, nele mencionado”
(Vivante).
Proponho um caminho algo diferente, que parte do conceito apresentado
acima: título de crédito é um documento. Como documento, ele reporta um fato,
ele diz que alguma coisa existe. Em outros termos, o título prova a existência de
uma relação jurídica, especificamente duma relação de crédito; ele constitui a
prova de que certa pessoa é credora de outra; ou de que duas ou mais pessoas são
credoras de outras. Se alguém assina um cheque e o entrega a mim, o título
documenta que sou credor daquela pessoa. A nota promissória, letra de câmbio,
duplicata ou qualquer outro título de crédito também possuem o mesmo
significado, também representam obrigação creditícia.
O título de crédito não é o único documento disciplinado pelo direito. Há
outros, que também reportam fatos, que provam que certo sujeito é titular de um
direito perante outro, ou perante qualquer um. O instrumento escrito de contrato
de locação documenta, entre outras obrigações, que o locador é credor dos
aluguéis devidos pelo locatário. A escritura pública de compra e venda de imóvel
prova a existência do negócio de aquisição do bem e discrimina as obrigações
assumidas pelas partes. A notificação de lançamento fiscal relata que o
contribuinte é obrigado a pagar o tributo ao estado. A sentença judicial
condenatória representa o dever imposto à parte vencida de satisfazer o direito
reconhecido à vencedora. Além desses, muitos outros documentos têm a sua
elaboração e seus efeitos dispostos na lei ou em regulamentos: livros mercantis,
nota fiscal, fatura, certificado de registro de marca, apólice de seguro, diploma
de curso superior etc.
O título de crédito se distingue dos demais documentos representativos de
direitos e obrigações, em três aspectos. Em primeiro lugar, ele se refere
unicamente a relações creditícias. Não se documenta num título de crédito
nenhuma outra obrigação, de dar, fazer ou não fazer. Apenas o crédito
titularizado por um ou mais sujeitos, perante outro ou outros, consta de um
instrumento cambial. O contrato de locação empresarial, por exemplo, além de
assegurar o crédito ao aluguel, representa o dever de o locador respeitar a posse
do locatário sobre o imóvel, ou de suportar a renovação compulsória do vínculo,
na forma da lei. Alguns dos títulos de crédito impróprios asseguram direitos não
creditícios ao seu portador: o warrant e o conhecimento de depósito, por exemplo,
unidos, representam a propriedade de mercadorias depositadas em Armazéns
Gerais. A característica de representar exclusivamente direitos creditórios, por si
só, não é suficiente para distinguir os títulos de crédito dos demais documentos
representativos de obrigação. A apólice de seguro, por exemplo, também
representa apenas o crédito eventual do segurado ou do terceiro beneficiário,
perante a seguradora, e não se pode considerar título de crédito.
A segunda diferença entre o título de crédito e muitos dos demais
documentos representativos de obrigação está ligada à facilidade na cobrança do
crédito em juízo. Ele é definido pela lei processual como título executivo
extrajudicial (CPC, art. 585, I); possui executividade, quer dizer, dá ao credor o
direito de promover a execução judicial do seu direito. Nem todos os
instrumentos escritos que documentam obrigações creditícias apresentam essa
característica. Se o credor não dispuser de documento a que a lei processual
atribua natureza executória, a cobrança do crédito representado deverá ser feita
por meio de ação de conhecimento (ou monitória), normalmente mais morosa
que a execução. Esse atributo dos títulos de crédito — convém ressaltar —
também não é exclusivo; diversos outros documentos representativos de
obrigação são também títulos executivos (sentença judicial, contrato revestido de
certas formalidades, apólice de seguro de vida etc.).
Em terceiro lugar, o título de crédito ostenta o atributo da negociabilidade,
ou seja, está sujeito a certa disciplina jurídica, que torna mais fácil a circulação
do crédito, a negociação do direito nele mencionado. A fundamental diferença
entre o regime cambiário e a disciplina dos demais documentos representativos
de obrigação (que será chamada, aqui, de regime civil) é relacionada aos
preceitos que facilitam, ao credor, encontrar terceiros interessados em anteciparlhe o valor da obrigação (ou parte deste), em troca da titularidade do crédito. Em
outros termos, se o credor tem o seu direito representado por um título de crédito
(por exemplo, uma nota promissória, duplicata ou cheque pós-datado), ele pode
facilmente descontá-lo junto ao banco de que é cliente. Na operação de desconto
bancário, o credor do título de crédito (descontário) transfere a titularidade do seu
direito ao banco (descontador) e recebe deste, adiantado, uma parte do valor do
crédito. No vencimento, o banco irá cobrar o devedor, lucrando com a diferença
entre o valor facial do título e o montante antecipado ao credor originário. Nem
todos os documentos representativos de obrigação, contudo, são descontáveis
pelos bancos. Documentos sujeitos ao regime civil de circulação não despertam
o mesmo interesse de instituições financeiras, porque elas ficam em situação
mais vulnerável quanto ao recebimento do crédito. A negociabilidade dos títulos
de crédito é decorrência do regime jurídico-cambial, que estabelece regras que
dão à pessoa para quem o crédito é transferido maiores garantias do que as do
regime civil. Compreende-se melhor essa diferença, após o exame dos princípios
do direito cambiário.
2. PRINCÍPIOS DO DIREITO CAMBIÁRIO
Do regime jurídico disciplinador dos títulos de crédito, podem-se extrair
três princípios: cartularidade, literalidade e autonomia das obrigações cambiais.
Como o atributo característico dos títulos de crédito — o elemento que o distingue
mais acentuadamente dos demais documentos representativos de obrigações — é
a negociabilidade, a facilidade da circulação do crédito documentado; e como
esse atributo deriva do regime jurídico a que se submetem, não é incorreto
apresentar os seus princípios informadores como os fatores essenciais de
caracterização dos títulos de crédito, como fazem, por exemplo, Fran Martins
(1972:9/15), Rubens Requião (1971, 2:299/300) e Newton de Lucca (1979:47/65).
2.1. Cartularidade
Título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito,
literal e autônomo, nele mencionado. Desse adjetivo do conceito se pode extrair
a referência ao princípio da cartularidade, segundo o qual o exercício dos direitos
representados por um título de crédito pressupõe a sua posse. Somente quem
exibe a cártula (isto é, o papel em que se lançaram os atos cambiários
constitutivos de crédito) pode pretender a satisfação de uma pretensão
relativamente ao direito documentado pelo título. Quem não se encontra com o
título em sua posse, não se presume credor. Um exemplo concreto de
observância desse princípio é a exigência de exibição do original do título de
crédito na instrução da petição inicial de execução. Não basta a apresentação de
cópia autêntica do título, porque o crédito pode ter sido transferido a outra pessoa
e apenas o possuidor do documento será legítimo titular do direito creditício.
Como o título de crédito se revela, essencialmente, um instrumento de
circulação do crédito representado, o princípio da cartularidade é a garantia de
que o sujeito que postula a satisfação do direito é mesmo o seu titular. Cópias
autênticas não conferem a mesma garantia, porque quem as apresenta não se
encontra necessariamente na posse do documento original, e pode já tê-lo
transferido a terceiros. A cartularidade é, desse modo, o postulado que evita
enriquecimento indevido de quem, tendo sido credor de um título de crédito, o
negociou com terceiros (descontou num banco, por exemplo). Em virtude dela,
quem paga o título deve, cautelarmente, exigir que ele lhe seja entregue. Em
primeiro lugar, para evitar que a cambial, embora paga, seja ainda negociada
com terceiros de boa-fé, que terão direito de exigir novo pagamento; em
segundo, para que o pagador possa exercer, contra outros devedores, o direito de
regresso (quando for o caso).
Pelo
princípio
da
cartularidade, o credor do
título de crédito deve provar
que se encontra na posse do
documento para exercer o
direito nele mencionado.
O princípio da cartularidade não se aplica, no direito brasileiro,
inteiramente à duplicata mercantil ou de prestação de serviços. Há hipóteses em
que a lei franqueia ao credor desses títulos o exercício de direitos cambiários,
mesmo que não se encontre na posse do documento. Assim, prevê o protesto por
indicações (LD, art. 13, § 1º, in fine), meio pelo qual o credor da duplicata retida
pelo devedor pode protestá-la, apenas fornecendo ao cartório os elementos que a
individualizam (nome do devedor, quantia devida, fatura originária, vencimento
etc.); prevê a lei, também, a possibilidade de execução judicial da duplicata
mercantil não restituída pelo devedor, desde que protestada por indicações e
acompanhada do comprovante da entrega e recebimento das mercadorias (LD,
art. 15, II). Em suma, o princípio da cartularidade é excepcionado, em parte, em
relação às duplicatas.
Alguns doutrinadores preferem se referir à cartularidade por meio do
conceito de “incorporação”, noção que sugere o amálgama entre documento e
direito de crédito (Borges, 1971:12/13). Dizem que o título incorpora de tal forma
o direito creditício mencionado, que a sua entrega a outra pessoa significa a
transferência da titularidade do crédito e o exercício das faculdades derivadas
dessa não se pode pretender sem a posse do documento. As duas consequências
da cartularidade se explicariam, assim, por meio da imagem da incorporação.
Trata-se, a rigor, apenas de uma outra via, para a explicação e compreensão do
regime jurídico-cambial.
Para encerrar, registre-se que Newton de Lucca, sustentando-se na
doutrina italiana, considera os títulos de crédito inseridos na classe dos
documentos dispositivos. Para ele, a teoria geral dos documentos deve distinguir
entre os meramente probatórios, que cumprem a função processual de atestar a
existência de uma relação jurídica autônoma; os constitutivos, que são essenciais
para o nascimento do direito, embora possam tornar-se dispensáveis no momento
seguinte (o exemplo é o da escritura de compra e venda de imóvel); e,
finalmente, os dispositivos, que são sempre necessários para o exercício do
direito nele mencionado (1979:23/24). Em razão do princípio da cartularidade, os
títulos de crédito somente se podem enquadrar na última categoria.
2.2. LITERALIDADE
Título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito,
literal e autônomo, nele mencionado. Nessa passagem, o conceito de Vivante se
refere ao princípio da literalidade, segundo o qual somente produzem efeitos
jurídico-cambiais os atos lançados no próprio título de crédito. Atos
documentados em instrumentos apartados, ainda que válidos e eficazes entre os
sujeitos diretamente envolvidos, não produzirão efeitos perante o portador do
título. O exemplo mais apropriado de observância do princípio está na quitação
dada em recibo separado. Quem paga parcialmente um título de crédito deve
pedir a quitação na própria cártula, pois não poderá se exonerar de pagar o valor
total, se ela vier a ser transferida a terceiro de boa-fé. Outro exemplo de
aplicação do princípio da literalidade se encontra na inexistência do aval, quando
o pretenso avalista apenas se obrigou em instrumento apartado. Se do título não
consta a assinatura da pessoa de quem se pretendia o aval, a garantia
simplesmente não existe, em razão do princípio da literalidade.
“O direito decorrente do
título é literal no sentido de
que, quanto ao conteúdo, à
extensão e às modalidades
desse direito, é decisivo
exclusivamente o teor do
título” (Messineo).
O princípio da literalidade projeta consequências favoráveis e contrárias,
tanto para o credor, como para o devedor. De um lado, nenhum credor pode
pleitear mais direitos do que os resultantes exclusivamente do conteúdo do título
de crédito; isso corresponde, para o devedor, a garantia de que não será obrigado
a mais do que o mencionado no documento. De outro lado, o titular do crédito
pode exigir todas as obrigações decorrentes das assinaturas constantes da
cambial; o que representa, para os obrigados, o dever de as satisfazer na exata
extensão mencionada no título (Borges, 1971:13). Se alguém deve mais do que a
quantia escrita na cambial, só poderá ser cobrado, com base no título, pelo valor
do documento; se deve menos, não poderá exonerar-se de pagar todo o montante
registrado (Martins, 1972:10). Esses aspectos da literalidade são os responsáveis
pela facilitação na circulação do crédito documentado em título de crédito. O
terceiro descontador tende a concordar com a operação de desconto — ou seja,
tem maior interesse em adiantar parte do valor do título, para posteriormente
cobrar a totalidade do devedor — porque pode, sem outra providência além da
leitura do documento, certificar-se da existência e extensão do crédito
transacionado.
O princípio da literalidade, a exemplo do da cartularidade, não se aplica
inteiramente à disciplina da duplicata, cuja quitação pode ser dada, pelo legítimo
portador do título, em documento em separado (LD, art. 9º, § 1º).
2.3. Autonomia
Título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito,
literal e autônomo, nele mencionado. Agora a referência do conceito de Vivante
alcança o mais importante dos princípios do direito cambial, que é o da
autonomia das obrigações documentadas no título de crédito. Segundo esse
princípio, quando um único título documenta mais de uma obrigação, a eventual
invalidade de qualquer delas não prejudica as demais.
Pelo princípio da autonomia
das obrigações cambiais, os
vícios que comprometem a
validade de uma relação
jurídica, documentada em
título de crédito, não se
estendem às demais relações
abrangidas
no
mesmo
documento.
Para exemplificar a observância do princípio, imagine-se um negócio
qualquer, de que tenha originado crédito, documentado numa nota promissória:
Antonio vende a Benedito o seu automóvel usado, consentindo receber metade do
preço no prazo de 60 (sessenta) dias. Nesse caso, a nota representa a obrigação
do comprador, na compra e venda do automóvel. O ato de compra será
chamado de “relação fundamental” ou “negócio originário”, porque o título foi
emitido com o propósito inicial de o documentar. Imagine-se, então, que Antonio
é devedor de Carlos, em importância próxima ao valor facial da nota
promissória. Se Carlos concordar, o débito de Antonio poderá ser satisfeito com a
transferência do crédito que titulariza em razão da nota (esse ato de transferência
é o endosso). Nessa hipótese, o título que representava, originariamente, apenas a
obrigação de Benedito pagar a Antonio o saldo devedor do valor do automóvel,
passou a representar duas outras relações jurídicas: a de Antonio satisfazendo sua
dívida junto a Carlos; e a de Benedito devedor do título agora em mãos de Carlos.
São três relações jurídicas documentadas numa única nota promissória. Como as
obrigações correspondentes são autônomas, umas das outras, eventuais vícios que
venham a comprometer qualquer delas não contagiam as demais. Quer dizer, se
o automóvel adquirido por Benedito possui vício redibitório, isso não o exonera de
satisfazer a obrigação cambial perante Carlos. Os problemas relacionados com a
compra e venda do automóvel usado podem influir na relação jurídica entre os
participantes da relação originária do título (isto é, Antonio e Benedito), mas não
interferem minimamente com os direitos dos terceiros de boa-fé para quem o
mesmo título foi transferido.
As implicações do princípio da autonomia representam a garantia efetiva
de circulabilidade do título de crédito. O terceiro descontador não precisa
investigar as condições em que o crédito transacionado teve origem, pois ainda
que haja irregularidade, invalidade ou ineficácia na relação fundamental, ele não
terá o seu direito maculado. No exemplo acima, Benedito deve pagar a nota
promissória a Carlos e, depois, demandar Antonio, para receber o ressarcimento
do valor despendido, bem como a indenização correspondente aos danos que
sofreu. Note-se que ninguém está obrigado, juridicamente, a documentar sua
obrigação por meio de nota promissória; se aceita fazê-lo, assume todas as
consequências desse ato, inclusive as relacionadas com a circulação cambial do
crédito.
Em decorrência do princípio da autonomia, quem transaciona o crédito
com possuidor ilegítimo do título (aquisição a non domino) tem sua boa-fé
tutelada pelo direito cambiário. Se há notícia do desapossamento da cambial —
furto, roubo ou extravio, quando se encontrava nas mãos de seu legítimo titular
—, o exequente terá direito ao recebimento, se demonstrar que, sob o ponto de
vista formal, os atos cambiais lançados no documento poderiam validamente terlhe transferido o direito creditício. O executado apenas se exonera da obrigação
se provar que o portador agiu de má-fé ou cometeu falta grave, deixando de
adotar as cautelas minimamente recomendáveis no comércio de títulos (LU, art.
16).
O princípio da autonomia das obrigações cambiais se desdobra em dois
outros subprincípios, o da abstração e o da inoponibilidade das exceções pessoais
aos terceiros de boa-fé. Qualifico-os de subprincípios porque, na verdade, nada
acrescentam ao que já se encontra determinado pelo princípio da autonomia. A
abstração e a inoponibilidade correspondem a modos diferentes de se reproduzir
o preceito da independência entre as obrigações documentadas no mesmo título
de crédito.
2.3.1. Abstração
Pelo subprincípio da abstração, o título de crédito, quando posto em
circulação, se desvincula da relação fundamental que lhe deu origem. Note-se
que a abstração tem por pressuposto a circulação do título de crédito. Entre os
sujeitos que participaram do negócio originário, o título não se considera
desvinculado deste. No exemplo imaginado para a elucidação do princípio da
autonomia das obrigações cambiais, se Antonio não transfere o crédito para
Carlos, e procura Benedito para reclamar o pagamento da parcela devida pela
compra do automóvel, por evidente, esse último pode se liberar da obrigação
(atente-se: o comprador pode rescindir a compra e venda civil, em razão de
vícios na coisa adquirida, desde que o faça no prazo decadencial de 6 meses,
fixado no art. 445 do CC; Benedito não será obrigado a pagar a nota promissória
para Antonio, apenas se tomou a cautela de exercer tempestivamente o seu
direito).
A abstração, então, somente se verifica se o título circula. Em outros
termos, só quando é transferido para terceiros de boa-fé, opera--se o
desligamento entre o documento cambial e a relação em que teve origem. A
consequência disso é a impossibilidade de o devedor exonerar-se de suas
obrigações cambiárias, perante terceiros de boa-fé, em razão de irregularidades,
nulidades ou vícios de qualquer ordem que contaminem a relação fundamental.
E ele não se exonera exatamente porque o título perdeu seus vínculos com tal
relação. Ora, se assim é, confirma-se que a abstração não acrescenta nenhuma
consequência de relevo às decorrentes do princípio da autonomia. Daí seu
estatuto de subprincípio.
Quando o título de crédito é
posto em circulação, diz-se que
se opera a abstração, isto é, a
desvinculação do ato ou
negócio jurídico que deu ensejo
à sua criação.
Abstração é conceito ambíguo, na doutrina de direito cambiário. De um
lado, se refere ao desligamento da cambial em relação ao negócio originário,
numa descrição alternativa às relações jurídicas derivadas da autonomia das
obrigações documentadas num único título; de outro lado, diz respeito aos títulos
de crédito cuja emissão não está condicionada a determinadas causas (os
abstratos, em contraposição aos causais). Para superar a ambiguidade, a
expressão será usada, neste Curso, apenas com o primeiro significado, de
desvinculação do instrumento cambiário do ato jurídico que originariamente
representava, motivada pela sua circulação.
2.3.2. Inoponibilidade
Pelo subprincípio da inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros
de boa-fé, o executado em virtude de um título de crédito não pode alegar, em
seus embargos, matéria de defesa estranha à sua relação direta com o
exequente, salvo provando a má-fé dele. São, em outros termos, inoponíveis aos
terceiros defesas (exceções) não fundadas no título. Ainda no exemplo criado
para o princípio da autonomia, nos embargos de Benedito, interpostos na
execução judicial da nota promissória, a matéria de defesa fica circunscrita
apenas à relação jurídica que mantém com o exequente, Carlos. Que relação é
esta? Simples: Benedito é o devedor de uma nota promissória, de que é credor
Carlos. Nada mais. Assim, as exceções admitidas, na execução, dizem respeito
somente a tal relação, ou seja, à nota promissória. Por exemplo: a prescrição do
título, a nulidade da nota por não preencher os requisitos da lei, falsificação etc.
(cf. Lucca, 1979:97/103). Não podem ser levantadas, nos embargos de Benedito,
questões relativas ao vício no automóvel adquirido de Antonio, porque essas são
exceções pessoais contra o vendedor do bem, em virtude das quais Carlos não
pode ser responsabilizado nem prejudicado. Como se vê, novamente se retorna
ao ponto a que conduz o princípio da autonomia das obrigações cambiais,
justificando a qualificação da inoponibilidade como subprincípio.
Lei Uniforme
Art. 17. As pessoas acionadas
em virtude de uma letra não
podem opor ao portador
exceções fundadas sobre as
relações pessoais delas com o
sacador ou com os portadores
anteriores, a menos que o
portador ao adquirir a letra
tenha
procedido
conscientemente em detrimento
do devedor.
O simples conhecimento, pelo terceiro, da existência de fato oponível ao
credor anterior do título já é suficiente para caracterizar a má-fé. Não se exige,
para o afastamento da presunção de boa-fé, a prova da ocorrência de conluio
entre o exequente e o credor originário da cambial. Basta a ciência do fato
oponível, previamente à circulação do título. Ainda no exemplo adotado, se
Carlos sabe que Benedito, no prazo da lei civil, notificou Antonio de sua intenção
de rescindir a compra do automóvel, em razão da descoberta dos vícios, e
mesmo assim concorda em negociar a nota promissória, sujeita-se à discussão,
em juízo, da procedência do reclamo do executado. Será seu encargo judicial
demonstrar que não existia vício oculto no bem que Antonio vendeu a Benedito.
Note-se que o conhecimento pelo terceiro, da insatisfação do devedor cambial,
em relação ao negócio originário, não é causa desconstitutiva do direito
creditício. Apenas amplia os limites da matéria admitida à discussão em juízo. Se
o devedor cambial não tem razão em suas alegações, ele deve pagar o portador
do título, ainda que o último tivesse, ao tempo da circulação, conhecimento da
insatisfação dele com a relação fundamental.
3. NATUREZA DA OBRIGAÇÃO CAMBIAL
Diz-se que os devedores de um título de crédito são solidários. Há,
inclusive, quem identifique na solidariedade entre os obrigados cambiais um
postulado fundamental da disciplina jurídica dos títulos de crédito (Miranda, 1956,
34:151). Por outro lado, a própria lei preceitua que o sacador, aceitante,
endossantes ou avalistas são solidaria-mente responsáveis pelo pagamento da
letra de câmbio (LU, art. 47). Mas é necessário tomar cuidado com essa noção,
porque a solidariedade cambial apresenta particularidades (cf. Martins, 1972:164,
nota de rodapé).
Define-se a solidariedade passiva pela existência de mais de um devedor
obrigado pela dívida toda (CC, art. 264). Se duas ou mais pessoas são obrigadas
perante um sujeito, haverá solidariedade entre elas se o credor puder exigir a
totalidade da obrigação de qualquer uma. Por esse conceito, é correto afirmar-se
a existência da solidariedade entre os devedores do título de crédito, porque
realmente o credor cambiário pode, atendidos determinados pressupostos, exigir
de qualquer um deles o pagamento do valor total da obrigação. Mas a
semelhança entre a situação dos devedores cambiários e os solidários cessa nesse
ponto; quer dizer, de comum entre o regime cambial e a disciplina civil da
solidariedade existe apenas o fato de o credor poder exercer seu direito, pelo
valor total, contra qualquer um dos devedores. Quando se trata de discutir a
composição, em regresso, dos interesses desses devedores, a regra aplicável do
direito cambial é diferente da pertinente à solidariedade passiva.
É incorreta a afirmação de
que os devedores de um título
de crédito são solidários.
O devedor solidário que paga ao credor a totalidade da dívida pode exigir,
em regresso, dos demais devedores a quota-parte cabível a cada um (CC, art.
283). Se são três os obrigados, aquele que adimpliu a obrigação junto ao titular do
crédito, pode cobrar a terça parte do valor pago, de cada um dos outros dois
codevedores. É o regresso típico da solidariedade passiva, que, no entanto, não se
verifica entre devedores cambiais. Em primeiro lugar, nem todos têm direito de
regresso: o aceitante da letra de câmbio ou o subscritor da nota promissória, por
exemplo, após pagarem o título não poderão cobrá-lo de ninguém mais. Em
segundo, nem todos os codevedores respondem regressivamente perante os
demais: os devedores anteriores respondem perante os posteriores, mas esses não
podem ser acionados por aqueles. Em terceiro lugar, em regra o regresso
cambiário se exerce pela totalidade e não pela quota-parte do valor da obrigação:
apenas excepcionalmente, como na hipótese de avais simultâneos, é que se
verifica, entre os coavalistas, a partição proporcional da obrigação.
São tão significativas as diferenças, no momento do regresso, entre os
devedores cambiais e os solidários, que considero mais correto afastar-se o
paralelo. A natureza da obrigação cambiária lembra a solidariedade passiva
apenas no aspecto externo (a possibilidade de cobrança judicial da dívida por
inteiro, de qualquer um dos devedores), e, por isso, revela-se mais adequado
estudar o tema por uma perspectiva própria; quer dizer, abstraindo-se totalmente
o regime da solidariedade civil. O art. 285 do CC não se aplica às obrigações
cambiais, posto que ela interessa a todos os devedores.
O aspecto mais importante a se ressaltar, no tratamento da natureza da
obrigação cambial, é a existência de hierarquia entre os devedores de um
mesmo título de crédito. Em relação a cada título, a lei irá escolher um para a
situação jurídica de devedor principal, reservando aos demais a de codevedores.
Assim, são devedores principais, na letra de câmbio, o aceitante; na nota
promissória e no cheque, o emitente; na duplicata, o sacado. Endossantes e
avalistas são, em todos os títulos, codevedores. Importantes diferenças decorrem
dessa hierarquia, entre as quais se pode citar a antecipação do vencimento do
título só na falência do devedor principal, a necessidade do protesto para a
cobrança dos codevedores, e sua facultatividade para a execução contra o
devedor principal etc. Mais: há uma ordem (de anterioridade e posteridade) entre
os devedores de um mesmo título, que define quem tem direito de regresso
contra quem. Os posteriores podem regredir contra os anteriores, mas não viceversa. Por exemplo, o avalista pode cobrar em regresso de seu avalizado, mas o
inverso não se admite; o endossante de letra de câmbio pode cobrá-la do sacador,
mas este não tem ação contra aquele.
Os devedores de título de crédito não são, portanto, propriamente
solidários. Eles se submetem, ao contrário, a um complexo sistema de
regressividade, que é exclusivo da obrigação de natureza cambial.
4. CLASSIFICAÇÃO DOS TÍTULOS DE CRÉDITO
Classificam-se os títulos de crédito segundo quatro critérios: a) quanto ao
modelo; b) quanto à estrutura; c) quanto às hipóteses de emissão; d) quanto à
circulação.
Quanto ao modelo, os títulos podem ser vinculados ou livres. No primeiro
caso, somente produzem efeitos cambiais os documentos que atendem ao padrão
exigido. É o caso do cheque e da duplicata. Neles, o emitente não é livre para
escolher a disposição formal dos elementos essenciais à criação do título. O
emitente do cheque deve necessariamente fazer uso do papel fornecido pelo
banco sacado, fornecido em talões, via de regra. Os empresários que emitem
duplicata, por sua vez, devem confeccioná-las obedecendo às normas de
padronização formal definidas pelo Conselho Monetário Nacional (LD, art. 27).
Já os títulos de modelo livre são aqueles em que, por não existir padrão de
utilização obrigatória, o emitente pode dispor à vontade os elementos essenciais
do título. Pertencem a essa categoria a letra de câmbio e a nota promissória.
Assim, qualquer papel, independentemente da forma adotada, será nota
promissória, desde que atendidos os requisitos que a lei estabeleceu para esse
título de crédito. São inteiramente dispensáveis, portanto, os formulários
impressos que se costumam vender nas papelarias.
Há títulos de crédito que
podem adotar qualquer forma,
desde que atendidos os
requisitos da lei (são os de
modelo livre), e há os que
devem atender a um padrão
obrigatório (os de modelo
vinculado).
Quanto à estrutura, os títulos de crédito se classificam em ordem de
pagamento e promessa de pagamento. As ordens de pagamento geram, no
momento do saque, três situações jurídicas distintas: a do sacador, que ordenou a
realização do pagamento; a do sacado, para quem a ordem foi dirigida e que irá
cumpri-la, se atendidas as condições para tanto; e a do tomador, que é o
beneficiário da ordem, a pessoa em favor de quem ela foi passada. O cheque, a
duplicata e a letra de câmbio são títulos dotados dessa estrutura. Quando assino
um cheque, dou ordem ao banco em que tenho conta, para que proceda ao
pagamento de determinada importância à pessoa para quem entrego o título. De
outro lado, a emissão de promessa de pagamento dá ensejo apenas a duas
situações jurídicas, a do promitente, que assume a obrigação de pagar, e a do
beneficiário da promessa. A nota promissória — o próprio nome o revela — é
título pertencente a essa categoria. Por ela, o subscritor promete pagar a certo
sujeito, ou a quem ele repassar o direito, a importância assinalada.
Na ordem, o sacador do título
de crédito manda que o sacado
pague
determinada
importância; na promessa, o
sacador assume o compromisso
de pagar o valor do título.
Pelo terceiro critério de classificação, que leva em conta as hipóteses de
emissão, os títulos podem ser causais, limitados e não causais (ou abstratos). São
títulos causais os que somente podem ser emitidos nas hipóteses autorizadas por
lei. A duplicata mercantil, por exemplo, apenas pode ser gerada para a
documentação de crédito oriundo de compra e venda mercantil. Os títulos
limitados são os que não podem ser emitidos em algumas hipóteses circunscritas
pela lei. A letra de câmbio, por exemplo, não pode ser sacada pelo comerciante,
para documentar o crédito nascido da compra e venda mercantil; a lei das
duplicatas o proíbe (LD, art. 2º). Por sua vez, os títulos não causais podem ser
criados em qualquer hipótese. São dessa categoria o cheque e a nota promissória.
Atente-se que essa classificação não está relacionada a diferentes formas de
aplicação do regime de circulação cambial. Títulos causais e limitados circulam,
rigorosamente falando, sob o mesmo regime que os abstratos (isto é, sujeitam-se
à cartularidade, literalidade e autonomia das obrigações cambiais).
Há títulos que só podem ser
emitidos em determinadas
hipóteses autorizadas por lei
(causais), há os que não podem
ser emitidos em certos casos
(limitados) e, finalmente, os
que podem ser emitidos em
qualquer
situação
(não
causais).
De acordo com o derradeiro critério, classificam-se os títulos de crédito
em três categorias: a) ao portador; b) nominativos à ordem; c) nominativos não à
ordem. A diferença entre elas reside no ato que opera a circulação do crédito. Os
títulos ao portador não ostentam o nome do credor e, por isso, circulam por mera
tradição; isto é, basta a entrega do documento, para que a titularidade do crédito
se transfira do antigo detentor da cártula para o novo. Os nominativos à ordem
identificam o titular do crédito e se transferem por endosso, que é o ato típico da
circulação cambiária. Os nominativos não à ordem, que também identificam o
credor, circulam por cessão civil de crédito.
Registro que a classificação aqui apresentada, relativa à circulação, não
coincide com a que se encontra na doutrina em geral. De fato, usualmente se
distinguem os títulos à ordem dos nominativos, embora com a ressalva de que os
dois ostentam o nome do credor. Para a doutrina tradicional, repetindo lições de
Vivante, os nominativos circulariam por meio de documento de transferência ou
registro em livro do emitente. Seria o caso das ações das sociedades anônimas
(cf. Martins, 1972:20/21; Requião, 1971, 2:308/309; Borges, 1971:32/33). A
solução de Vivante é aplicável ao direito italiano, tendo em vista que o Codice
Civile a adota de forma expressa. Para o direito brasileiro, entretanto, não faz
sentido. Rejeito esse modo de organizar a matéria, portanto, até mesmo porque a
classificação, para ser precisa, além de se limitar aos títulos de crédito próprios
(isto é, cuja disciplina se exaure no direito cambiário), deve incluir também a
alternativa dos títulos com a cláusula “não à ordem”.
Quanto à circulação, os
títulos são ao portador ou
nominativos, subdividindo-se
estes em “à ordem” e “não à
ordem”.
Por fim, quero deixar assente que os títulos de crédito impróprios
(categoria que engloba o conhecimento de transporte, os títulos de Armazéns
Gerais, as cédulas de crédito e outros) não devem ser lembrados na apresentação
da classificação dos títulos de crédito. Por definição, aqueles títulos estão sujeitos
a regime jurídico próximo ao cambial. Ou seja, trata-se de documentos que
apenas em parte se submetem ao direito cambiário. Daí a ideia de
impropriedade na sua identificação. Ora, como não se encontram totalmente
regidos pelo direito cambial, não são títulos de crédito, não se classificam como
tais.
5. TÍTULOS DE CRÉDITO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
O Código Civil de 2002 contém normas sobre os títulos de crédito (arts.
887 a 926) que se aplicam apenas quando compatíveis com as disposições
constantes de lei especial ou se inexistentes estas (art. 903). De modo sumário,
são normas de aplicação supletiva, que se destinam a suprir lacunas em
regramentos jurídicos específicos. De qualquer modo, as normas do Código Civil
não revogam nem afastam a incidência do disposto na Lei Uniforme de
Genebra, Lei do Cheque, Lei das Duplicatas, Decreto n. 1.103/1902 (sobre
warrant e conhecimento de depósito) e demais diplomas legislativos que
disciplinam algum título particular (próprio ou impróprio). Apenas quando a lei
cria um novo título de crédito e não o disciplina exaustivamente, nem elege outra
legislação cambial como fonte supletiva de regência da matéria, tem aplicação o
previsto pelo Código Civil.
As normas sobre títulos de
crédito do Código Civil só se
aplicam quando a lei especial
(LUG, LC, LD etc.) disciplina o
assunto de igual modo. Se esta
contiver
dispositivo
com
comando diverso, não se aplica
o Código Civil.
A disciplina estabelecida pelo Código Civil seria também aplicável,
segundo alguma doutrina, aos títulos de crédito inominados ou atípicos, isto é, os
criados pelos próprios agentes econômicos independentemente de previsão legal
(por todos, ver Penteado, 1995). De qualquer forma, é incontroverso que o estudo
dos principais títulos de crédito (letra de câmbio, nota promissória, cheque,
duplicata, warrant, cédula de crédito bancário etc.) prescinde, por completo, do
exame das disposições contidas no Código Civil, já que a eles não se aplicam em
nenhuma hipótese.
Voltarei a esse tema mais à frente (Cap. 15), oportunidade em que serão
tratados com mais vagar os títulos de crédito não regulados e os inominados.
6. A INFORMÁTICA E O FUTURO DO DIREITO CAMBIÁRIO
Os títulos de crédito surgiram na Idade Média, como instrumentos
destinados à facilitação da circulação do crédito comercial. Após terem
cumprido satisfatoriamente a sua função, ao longo dos séculos, sobrevivendo às
mais variadas mudanças nos sistemas econômicos, esses documentos entram
agora em período de decadência, que poderá levar até mesmo ao seu fim como
instituto jurídico. No mínimo, importantes transformações, já em curso, alterarão
a substância do direito cambiário. O quadro é provocado pelo extraordinário
progresso no tratamento eletrônico das informações, o crescente uso dos recursos
da informática no cotidiano da atividade de administração do crédito. De fato, o
meio eletrônico vem substituindo paulatina e decisivamente o meio papel como
suporte de informações. O registro da concessão, cobrança e cumprimento do
crédito comercial não fica, por evidente, à margem desse processo, ao qual se
refere a doutrina pela noção de desmaterialização do título de crédito. Quer dizer,
os empresários, ao venderem seus produtos ou serviços a prazo, cada vez mais
não têm se valido do documento escrito para o registro da operação. Procedem,
na verdade, à apropriação das informações, acerca do crédito concedido,
exclusivamente em meio eletrônico, e apenas por esse meio as mesmas
informações são transmitidas ao banco para fins de desconto, caução de
empréstimos ou controle e cobrança do cumprimento da obrigação pelo devedor.
Os elementos identificadores do crédito concedido, na hipótese de
inadimplemento, são repassados pelos bancos aos cartórios de protesto apenas
em meio eletrônico.
É certo que as informações arquivadas em banco de dados eletrônico são
a base para a expedição de alguns documentos (em papel) relativos à operação.
Os bancos emitem, a partir delas, o instrumento para a quitação da dívida, em
qualquer agência de qualquer instituição financeira no país (a “guia de
compensação bancária”); os cartórios de protesto dos grandes centros geram a
intimação do devedor, e lavram o instrumento de protesto, igualmente a partir
das informações que lhes são transmitidas em meio eletrônico. Nenhum desses
papéis, contudo, é título de crédito. Assim, quando a obrigação registrada por
processo informatizado vem a ser satisfatoriamente cumprida, em seu
vencimento, ela não chega jamais a ser materializada num título escrito. A sua
emissão não se verifica sequer na hipótese de descumprimento do dever pelo
adquirente das mercadorias ou serviços, tendo em vista a executividade da
duplicata eletrônica (Cap. 14).
Diante do quadro da desmaterialização dos títulos de crédito, vale a pena
repassar rapidamente os princípios do direito cambiário, com vistas a conferir se
eles ainda têm atualidade. Quer dizer, do que se está falando, hoje em dia, na
referência à cartularidade, literalidade e autonomia das obrigações cambiais? O
primeiro estabelece que o exercício dos direitos cambiais pressupõe a posse do
título. Ora, se o documento nem sequer é emitido, não há sentido algum em se
condicionar a cobrança do crédito à posse de um papel inexistente. Representa
uma dispensável formalidade exigir-se a confecção do título em papel, se as
relações entre credor e devedor documentaram-se todas independentemente
dele. O princípio da literalidade, por sua vez, preceitua que apenas geram efeitos
cambiais os atos expressamente lançados na cártula. Novamente, não se pode
prestigiar absolutamente o postulado fundamental do direito cambiário, na
medida em que não existe mais o papel, a limitar fisicamente os atos de eficácia
cambial. Pode-se, contudo, falar num princípio de literalidade adaptado ao meio
eletrônico: “o que não está no arquivo eletrônico, não está no mundo”. O fim do
papel também põe em questão algumas outras passagens da doutrina cambial,
como, por exemplo, a distinção entre endosso em branco e em preto, a
localização apropriada do aval (no verso ou anverso do documento), a existência
de títulos ao portador etc.
O registro da concessão e
circulação do crédito em meio
eletrônico tornou obsoletos os
preceitos do direito cambiário
intrinsecamente ligados à
condição de documento dos
títulos
de
crédito.
Cartularidade, literalidade (em
certa medida), distinção entre
atos “em branco” e “em preto”
representam
aspectos
da
disciplina cambial desprovidos
de sentido, no ambiente
informatizado.
O único dos três princípios da matéria que não apresenta
incompatibilidade intrínseca com o processo de desmaterialização dos títulos de
crédito é o da autonomia das obrigações cambiais, e os seus desdobramentos no
da abstração e inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé.
Será a partir dele que o direito poderá reconstruir a disciplina da ágil circulação
do crédito, quando não existirem mais registros de sua concessão em papel. O
próprio conceito de título de crédito, que Vivante enunciou há quase um século
(item 1), está atualmente defasado, em razão da difusão do suporte eletrônico.
Título de crédito não pode mais ser conceituado como o “documento necessário
para o exercício do direito literal e autônomo nele mencionado”, mas sim o
“documento, cartular ou eletrônico, que contempla a cláusula cambial, pela qual
os coobrigados expressam a concordância com a circulação do crédito nele
mencionado de modo literal e autônomo”.
Esse Curso, embora ainda se debruce sobre o estudo dos títulos de crédito
em sua feição tradicional — útil, sem dúvida, para a completa formação do
estudante —, não ignora a extrema desatualidade desse capítulo da doutrina
comercialista.
Capítulo 11
CONSTITUIÇÃO E EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO CAMBIÁRIO
1. INTRODUÇÃO
No estudo da teoria geral dos atos cambiários, deve-se eleger um dos
títulos de crédito para servir de referência. E o mais apropriado, para essa
finalidade, é a letra de câmbio, cuja estrutura possibilita o exame de todos os
aspectos relevantes dos atos de constituição e exigibilidade do crédito cambial. É
esta a melhor alternativa, sob o ponto de vista didático, para o desenvolvimento
da matéria (todos os autores, aliás, a adotam: cf., por exemplo, Bulgarelli,
1979b). A opção apresenta apenas um inconveniente: no Brasil, quase não existe
a letra de câmbio. Como o direito brasileiro criou um título de crédito mais
operacional — a duplicata mercantil —, a letra de câmbio deixou de ser utilizada
pelos comerciantes, e, hoje, é até mesmo proibida a sua emissão, na compra e
venda mercantil e na prestação de serviços. O estudo do direito cambiário fica,
assim, forçosamente um tanto defasado com a realidade, porque se inicia por —
e se detém no detalhamento de — um título de pouquíssima utilização, mas que
serve, melhor que qualquer outro, à completa apresentação dos institutos
jurídico-cambiários.
A origem histórica da letra de câmbio situa-se na península itálica, durante
a Idade Média. Como se sabe, o sistema europeu de organização política, naquele
tempo, era o feudal, caracterizado pela descentralização do poder — o estado
central e forte é criação da Era Moderna. Sendo o poder espalhado e pontual,
cada feudo ou burgo possuía, sob o domínio de um nobre, sua organização
política relativamente autônoma, o que, via de regra, se traduzia na adoção de
uma moeda própria. Os comerciantes necessitavam, assim, de um instrumento
que possibilitasse a troca de diferentes moedas, quando, com o intuito de realizar
negócios, deslocavam-se de um lugar para outro. Criou-se, então, a seguinte
sistemática: o banqueiro recebia, em depósito, as moedas com circulação no
burgo de seu estabelecimento, e escrevia uma carta ao banqueiro estabelecido no
local de destino do mercador depositante. Nessa carta, ele dizia ao colega que
pagasse ao comerciante, ou a quem ele indicasse, em moeda local, o equivalente
ao montante depositado. Posteriormente, os banqueiros faziam o encontro de
contas das cartas emitidas e recebidas. Dessa carta (em italiano, lettera), que
viabilizava o câmbio de moedas, originou-se a letra de câmbio.
Distinguem-se, usualmente, três períodos na história do título: o italiano,
em que a letra está associada ao deslocamento do titular do crédito e à troca de
moedas diferentes (até o último terço do século XVII); o francês, em que é
exigida uma provisão de recursos do emitente junto ao destinatário (de 1673,
com a “ordenança do comércio terrestre”, em França, até o transcorrer do
século XIX); e o alemão, em que a letra adota as características atuais de
instrumento suficiente de garantia de direito creditício, independente de outras
relações jurídicas entre as partes (desde 1848, com a edição da Allgemeine
Deutsche Wechselordnung, a lei da União Aduaneira Alemã). A importância do
título para o desenvolvimento do comércio internacional, por outro lado, deu
ensejo, no início do século XX, a iniciativas diplomáticas que redundaram, em
1930, na assinatura da Convenção de Genebra para a adoção de uma lei
uniforme sobre letra de câmbio e nota promissória. Diversos países, na
oportunidade, assumiram o compromisso recíproco de inserirem, nos respectivos
direitos, uma legislação que reproduzisse a lei uniforme proposta pela Convenção
(Alemanha, Áustria, Bélgica, Brasil, Colômbia, Dinamarca, Equador, Espanha,
Finlândia, França, Grécia, Hungria, Itália, Iugoslávia, Japão, Luxemburgo,
Noruega, Holanda, Polônia, Portugal, Suécia, Suíça, Tchecoslováquia e Turquia).
Uniformizando-se o direito sobre a matéria cambial, os acordos comerciais entre
empresas sediadas em países diferentes podiam ser concluídos com maior
facilidade. Embora a importância da uniformização para o comércio
internacional seja, hoje, reduzida, em razão da globalização do sistema
financeiro e do desenvolvimento de outros instrumentos creditícios mais
aperfeiçoados — como, por exemplo, o crédito documentário —, é indiscutível a
sua relevância para o direito.
A disciplina da constituição e
exigibilidade
do
crédito
cambiário
é
objeto
da
Convenção de Genebra, que
prevê a sua uniformização nos
direitos dos países signatários,
entre os quais o Brasil.
O Brasil, quando participou da Convenção de Genebra, já possuía um
direito cambiário bastante evoluído, representado pelo Decreto n. 2.044, de 1908.
Nesse diploma legislativo de alta qualidade técnica, encontram-se as
características da letra de câmbio introduzidas na Europa, menos de meio século
antes (no início do período alemão). Ou seja, o decreto (recepcionado como lei
ordinária, nas ordens constitucionais subsequentes) disciplina-a como título de
crédito de emissão independente de prévio contrato específico, entre as partes
envolvidas. A existência de provisão entre o emitente do título e o seu destinatário
não é condição para o saque. Talvez em razão de contar com aparato legislativo
atualizado, o Brasil acabou retardando o cumprimento da Convenção de
Genebra. Apenas em 1966, foi editada norma com intuito de atender ao
compromisso internacional assumido em 1930: o Decreto n. 57.663, que
“promulga as Convenções para adoção de uma Lei Uniforme em matéria de
letras de câmbio e notas promissórias”.
Mas a via escolhida, em 1966, para fazer valer a Convenção de Genebra
no direito brasileiro, não era tecnicamente a correta. O Decreto n. 2.044/08
possui estatuto de lei ordinária, e sua revogação não pode ocorrer por meio de
simples decreto do Poder Executivo, mas apenas por outra lei. O meio adequado
de atender ao compromisso internacional teria sido, assim, o envio de um projeto
de lei ao Poder Legislativo, que reproduzisse o texto uniforme. Após a regular
tramitação, aprovação e sanção, o projeto tornar-se-ia lei vigente, revogando a
norma de 1908.
A partir do início dos anos 1970, a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal se firmou no sentido de que a lei uniforme de Genebra, malgrado a
ausência de apuro técnico no ato que a introduziu no direito brasileiro, estava em
vigor. Porém, a questão não se resolve tão facilmente assim. A Convenção de
Genebra permite que o país, ao aderir, se reserve à faculdade de fazer algumas
pequenas mudanças no texto uniforme, ao introduzi-lo em seu ordenamento.
Essas mudanças somente podem ser as previstas pela mesma Convenção, para
fins de se garantir o propósito fundamental da uniformidade. Pela sistemática
adotada, agregaram-se à Convenção dois anexos: o texto da lei uniforme (Anexo
I) e as reservas admitidas (Anexo II). Como o Brasil assinalou 13 reservas, a lei
uniforme não vigora inteiramente entre nós. Nas matérias reservadas,
permanecem em vigor as normas correspondentes do Decreto n. 2.044/08 — que
compõem a chamada lei cambial interna. Por outro lado, como não se operou
revogação expressa desse decreto, por força do art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução
às normas do Direito Brasileiro, os dispositivos correspondentes à matéria não
disciplinada pela lei uniforme continuam vigentes.
Em suma, para a delimitação do direito positivo brasileiro sobre letra de
câmbio e nota promissória, devem-se adotar os seguintes critérios: a) em
princípio, vigora a lei uniforme de Genebra (Anexo I da Convenção de 1930); b)
em virtude de reservas assinaladas pelo Brasil, não vigoram da lei uniforme os
arts. 10 (reserva do art. 3º do Anexo II), 41, terceira alínea (reserva do art. 7º do
Anexo II), 43, números 2 e 3 (reserva do art. 10 do Anexo II), e 44, quinta e
sexta alíneas (reserva do art. 10 do Anexo II); c) o art. 38 da lei uniforme deve
ser completado nos termos do art. 5º do Anexo II, ou seja, as letras de câmbio
pagáveis no Brasil devem ser apresentadas ao aceitante no próprio dia do
vencimento; d) a taxa de juros moratórios não é a constante dos arts. 48 e 49 da
lei uniforme, mas a autorizada pelo direito brasileiro para as operações cíveis ou
bancárias em geral (reserva do art. 13 do Anexo II); e) permanecem em vigor
do Decreto n. 2.044/08 os arts. 3º (relativo aos títulos sacados incompletos), 10
(sobre a pluralidade de sacados), 14 (quanto à possibilidade de aval antecipado),
19, II (em decorrência da reserva ao art. 10 do Anexo II), 20 (salvo quanto às
consequências da inobservância do prazo), 36 (pertinente à ação de anulação de
títulos), 48 (quanto à ação cabível, após a prescrição da execução da letra) e 54, I
(referente à denominação “nota promissória”).
O exato alcance das reservas assinaladas e, em decorrência, a lista de
dispositivos vigentes da lei cambial interna suscitam, na doutrina, algumas
divergências (cf. Martins, 1972: 60/77; Mercado Jr., 1966:133/139). Nenhuma de
repercussão prática relevante.
2. SAQ UE DA LETRA DE CÂMBIO
Como se trata de uma ordem de pagamento, a letra de câmbio, ao ser
emitida, dá ensejo a três situações jurídicas distintas: a do sacador, a do sacado e
a do tomador. Ressalte-se que se fala em situações jurídicas e não em sujeitos de
direito. Quer dizer, a mesma pessoa pode ocupar simultaneamente mais de uma
situação: a lei uniforme, no art. 3º, autoriza o saque da letra à ordem do próprio
sacador (nesse caso, a mesma pessoa ocupa as situações de sacador e tomador)
ou sobre ele (hipótese em que ocupa as situações de sacador e sacado). Essas são
as situações jurídicas correspondentes ao saque da letra, que lembram as
posições em que se encontravam, na Idade Média, o banqueiro que escrevia a
carta, o banqueiro destinatário da carta e o comerciante que depositava seu
dinheiro junto ao primeiro para receber, em moeda local, do segundo.
O sacador da letra de câmbio é a pessoa que dá a ordem de pagamento; o
sacado, a pessoa para quem a ordem é dada; e o tomador, o beneficiário da
ordem. A letra de câmbio, assim, é a ordem que o sacador dá ao sacado, no
sentido de pagar determinada importância ao tomador. A redação do título, desse
modo, será algo como: “aos trinta e um dias do mês de janeiro de ..., pagará V. S ª
(sacado) por essa única via de letra de câmbio, a importância de $ 100 a Fulano
(tomador). Local, data e assinatura (do sacador)”. Emitido pelo sacador, o título é
entregue ao tomador, que deverá procurar o sacado, normalmente duas vezes: a
primeira, para consultá-lo sobre se aceita ou não cumprir a ordem; caso aceite, a
segunda, para receber o pagamento.
O saque da letra, portanto, é o ato de criação do título de crédito. É por
meio dele que o sacador dá nascimento à letra de câmbio. A doutrina
comercialista tradicionalmente distingue entre criação e emissão, ensinando que
o primeiro ato corresponde à confecção material do documento, que se conclui
com a aposição da assinatura do sacador no papel; enquanto o último é a entrega
do documento ao tomador, ato pelo qual o título efetivamente ganha importância
econômica e passa a gerar direitos (cf., por todos, Borges, 1971:21/24). A única
consequência da distinção entre esses dois momentos, contudo, diz respeito à
situação em que o título já se encontra materialmente confeccionado,
representando a declaração unilateral do sacador no sentido de favorecer o
tomador com a ordem de pagamento, mas a entrega do documento a este é feita
contra a sua vontade. Em outros termos, a distinção é útil para dispor sobre o
tratamento jurídico da situação em que o sacador, após assinar a letra, ainda não
está completamente convencido da pertinência do ato praticado, e quer refletir
melhor; mas, por furto, desvio ou simples desencontro, a letra é entregue ao
tomador. Somente nesse caso é relevante a distinção proposta.
Para mim, se a questão no passado despertava algum interesse,
especialmente diante da incoerência do Código Civil brasileiro (cf. Lucca,
1979:89/94), ela perdeu toda a atualidade, com a entrada em vigor da lei
uniforme de Genebra, cujo art. 16 disciplina a matéria, assegurando ao portador
de boa-fé o recebimento do crédito. Distinguir criação e emissão fica, pois,
irrelevante, na medida em que, uma vez confeccionada a cártula, a mesma
regra incide na hipótese de posse do tomador, seja legítima ou ilegítima: se ele
estava de boa-fé, terá direito ao crédito. Portanto, nesse Curso, criação e emissão
são sinônimos; designam ambas expressões o mesmo ato cambiário, o saque do
título de crédito.
2.1. Requisitos da Letra de Câmbio
Para que um documento produza os efeitos de letra de câmbio, ele deve
atender a determinados requisitos legais. Sem o atendimento desses, o escrito
poderá eventualmente servir à tutela de direitos, no âmbito civil (quer dizer,
como simples instrumento de prova da existência da obrigação, numa ação de
conhecimento), mas não poderá circular, ser protestada ou executada como uma
cambial. Assim, a letra de câmbio é considerada um documento formal, no
sentido de que deve ostentar certos elementos para fundamentar a aplicação do
regime jurídico- -cambial. São eles (LU, arts. 1º e 2º): a) as palavras “letra de
câmbio”, insertas no próprio texto do título, na língua empregada para a sua
redação; b) uma ordem incondicional de pagar quantia determinada; c) o nome
da pessoa que deve pagar (sacado); d) o nome da pessoa a quem, ou à ordem de
quem, deve ser feito o pagamento (tomador); e) a assinatura de quem dá a
ordem (sacador); f) data do saque; g) lugar do pagamento ou a menção de um
lugar ao lado do nome do sacado; h) lugar do saque ou a menção de um lugar ao
lado do nome do sacador.
O documento para produzir os
efeitos da letra de câmbio deve
atender
aos
requisitos
essenciais estabelecidos em lei.
Examine-se cada um dos requisitos.
O primeiro (a) se convencionou chamar de “cláusula cambiária”, e é a
identificação do tipo de título de crédito que se pretende gerar, com a confecção
daquele documento escrito, em particular. Em outros termos, se o documento se
apresenta como uma letra de câmbio, é dispensável que ostente a cláusula à
ordem, para permitir a circulação cambial. No caso de o instrumento escrito
atender a essa formalidade, presumem-se concordes as partes quanto à sua
circulação, seguindo as regras do direito cambiário. A menção das expressões
identificadoras do título de crédito faz presumir a inserção da cláusula à ordem e,
consequentemente, sua transferibilidade mediante endosso.
Note-se que, em Portugal, o título é denominado simplesmente “letra”, e a
tradução do texto da lei uniforme, adotada pelo decreto que a mandou aplicar no
Brasil, corresponde à da lei portuguesa. Por esse motivo, não menciona o
dispositivo legal vigente, como deveria, a denominação brasileira do título, que é
“letra de câmbio”. Para Fran Martins, a utilização da palavra “letra” como
abreviatura da designação correta do título, no Brasil, não se poderia admitir, em
razão do rigor próprio ao direito cambial (1972:107/108). Não entendo assim,
contudo. Se a lei exige que o título seja identificado pela forma apropriada,
segundo o idioma de sua redação, então é cambiariamente eficaz, tanto o
documento denominado “letra de câmbio”, como o que se apresenta
simplesmente como “letra”, desde que o restante do título esteja em português.
Em relação ao segundo requisito (b), é importante salientar que a letra de
câmbio não se caracteriza na hipótese de ordem condicional de pagamento. O
cumprimento da obrigação materializada no título de crédito não pode ficar
sujeito, pelo saque, ao implemento de qualquer condição, suspensiva ou mesmo
resolutiva. Não é letra de câmbio, portanto, um documento redigido da seguinte
forma: “aos trinta e um de janeiro de ...., pagará V. S ª, desde que lhe sejam
entregues as mercadorias solicitadas, por esta única via de letra de câmbio, a
importância de (etc.)”. O destinatário da ordem, se entende que somente deverá
pagar a letra, caso sobrevindas determinadas circunstâncias, deverá
simplesmente recusá-la. Se introduzir a condição para os fins de pagamento,
considera-se operada a recusa parcial, embora se possa exigir do sacado o
cumprimento da obrigação, nos termos do aceite modificativo (item 3.1).
A incondicionalidade do pagamento é pressuposto necessário da
circulação do título de crédito. O documento que materializa obrigação sujeita ao
implemento de condição não presta à negociação do crédito, porque o seu
descontador não se garante quanto à exigibilidade, posto que dependente da
verificação de fato que não pode ser por ele conhecido. Mesmo nos países em
que a disciplina jurídica da matéria não segue o direito uniforme genebrino,
vincula-se a negociabilidade do crédito à incondicionalidade do pagamento. É,
por exemplo, o caso dos Estados Unidos, em que o Uniform Commercial Code
considera a promessa ou ordem incondicional de pagamento um dos requisitos
dos instrumentos negociáveis (cf. Stone, 1984:174; White-Summers,
1972:544/546).
Quanto ao valor do título, admite-se sempre a cláusula de correção
monetária e, se a letra é à vista ou a certo termo da vista, também a fluência de
juros entre as datas do saque e da apresentação a pagamento (LU, art. 5º). Nas
demais modalidades de letra de câmbio (em data certa e a certo termo da data),
os juros somente podem ser cobrados, a partir do vencimento, caso se verifique o
inadimplemento da obrigação. Por outro lado, se são discrepantes as menções
em algarismos e por extenso da quantia devida, prevalece a última (LU, art. 6º).
Em razão do terceiro requisito (c), a pessoa para quem a ordem é
endereçada deve ser identificada no texto do título. O sacado da letra de câmbio,
convém ressaltar, não está obrigado ao pagamento senão depois de praticar ato
manifestando sua concordância com o atendimento à ordem recebida (aceite).
Assim, embora a lei mencione “a pessoa que deve pagar”, isto não pode ser
entendido como impositivo de qualquer obrigação (Martins, 1972:112). Para o
atendimento completo às formalidades exigidas em lei, deve o sacado da letra de
câmbio identificar-se pelo número da Cédula de Identidade, inscrição no
Cadastro de Pessoa Física (CPF), do Título de Eleitor ou da Carteira Profissional
(Lei n. 6.268/75, art. 3º).
O quarto requisito (d) exige a identificação do tomador, a pessoa para
quem o título será pago. Não produz, em decorrência, os efeitos de letra de
câmbio o documento emitido “ao portador”, ainda que presentes os demais
requisitos da lei. Claro que, uma vez emitido na forma nominativa, o título poderá
tornar-se ao portador, por meio do endosso em branco. Mas a falta de menção do
credor originário do documento causa sua total ineficácia, para o direito
cambiário. De se registrar, também, que do fato de a lei se referir à “pessoa à
ordem de quem deve a letra ser paga”, não se segue a proibição de inserção, no
documento, da cláusula não à ordem, no momento do saque. Pelo contrário,
admite a lei uniforme que o sacador, em querendo evitar a circulação da letra
pelo regime cambiário, saque-a com essa cláusula expressa no texto do título
(LU, art. 11, segunda alínea).
Outro requisito essencial da letra de câmbio (e) é a assinatura do sacador,
geralmente acompanhada de seu nome. Dessa assinatura decorre a constituição
do crédito cambiário, porque o sacador torna-se, com o saque, codevedor da
letra. Lembre-se, como a letra de câmbio é ordem de pagamento, o sacador do
título está ordenando que o seu destinatário pague a terceiro a importância
assinalada no documento. Desse modo, o devedor principal do título não será ele,
sacador, mas sim o sacado, caso venha a praticar o aceite. Isto é, o sacador
garante, em princípio, a aceitação e o pagamento da letra de câmbio (LU, art.
9º). Se o sacado não aceitar a ordem que lhe foi dirigida ou, tendo-a aceito, não a
cumprir no vencimento, o credor poderá cobrar o sacador, uma vez atendidas as
condições próprias do regime cambial.
A data do saque (f) é, também, requisito essencial para a eficácia
cambiária do documento. É farta a jurisprudência que nega executividade aos
títulos de crédito que desatende a esse pressuposto (por exemplo, em relação à
nota promissória: RT, 653/138, 664/175, 676/163, 681/123 e 711/183), muitas
vezes omitido pelo exequente, em vista de sua aparente desimportância.
A letra deve informar o lugar do pagamento ou, pelo menos, mencionar
um lugar ao lado do nome do sacado (g), requisitos que a lei considera
equivalentes. Similarmente, o título deve trazer a identificação do lugar do saque
ou, senão, a menção de um lugar ao lado do nome do sacador (h), elementos
também equivalentes. Deve-se acentuar que, faltando ambos os dados da
equivalência, o documento não é uma letra de câmbio. A essencialidade desses
requisitos, portanto, é a mesma da dos anteriores. Contudo, importa registrar que
a doutrina tradicionalmente classifica o lugar do pagamento e o lugar do saque
como requisitos não essenciais da letra de câmbio (assim, por exemplo, Fran
Martins, 1972:127/130). Não se justifica, contudo, essa solução, na medida em
que a consequência para a sua falta e a do equivalente é, tal como em relação
aos demais requisitos até aqui examinados, a inexistência de documento
cambiário. Na verdade, o único elemento referido na lei como requisito não
essencial é a época do pagamento, cuja falta não tem o mesmo alcance; de fato,
se a letra de câmbio não especificar o momento em que poderá ser exigida a sua
paga, reputar--se-á emitida à vista (LU, arts. 1º, n. 4, e 2º, segunda alínea).
2.2. Cláusula-mandato
O saque (assim como os demais atos cambiários) pode ser praticado por
procurador, com poderes especiais. A lei uniforme admite expressamente a
hipótese, inclusive para disciplinar a exorbitância dos poderes pelo mandatário
(LU, art. 8º). Desse modo, é plenamente jurídico que a pessoa se obrigue, em
decorrência de ato cambial, por meio de procurador. Com base nisso,
disseminou-se a prática de se inserir, principalmente nos contratos bancários,
uma cláusula pela qual o devedor nomeava a própria instituição financeira
credora (ou empresa coligada) como sua mandatária, para os fins de sacar, na
hipótese de inadimplemento, um título de crédito representativo da obrigação.
Em outros termos, o mutuário (devedor) constituía o mutuante (credor) seu
procurador, para que ele emitisse um título (nota promissória, em geral) em
nome do primeiro e em seu próprio favor. Essa autorização contratual foi
denominada “cláusula-mandato”.
A sistemática decorrente da cláusula-mandato é, no meu modo de
entender, plenamente válida, e representa, também, a forma mais eficiente de se
tutelarem os direitos dos credores. Imagine-se o contrato de abertura de crédito
(cheque especial), em que o mutuário pode utilizar, no todo ou em parte, recursos
que o banco disponibiliza em sua conta de depósito. Nesse caso, não é possível
definir previamente o valor da obrigação, na hipótese de eventual
inadimplemento. Fica, assim, afastada a possibilidade de o mútuo se fazer
documentar, desde o início, por um título líquido. Ora, por meio da cláusulamandato, o banco credor (por si ou por empresa coligada), agindo em nome do
devedor, emitia um título representativo de seu crédito, para fins de protesto e
execução.
“É nula a obrigação cambial
assumida por procurador do
mutuário
vinculado
ao
mutuante,
no
exclusivo
interesse deste” (Súmula 60 do
STJ).
Quando ainda detinha competência para matéria infraconstitucional, o
Supremo Tribunal Federal pronunciou-se pela validade da cláusula (RTJ,
116/749), mas o Superior Tribunal de Justiça acabou firmando entendimento
exatamente oposto (Súmula 60), inclusive em decorrência do art. 51, VIII, do
Código de Defesa do Consumidor. A bem da verdade, no entanto, não existem os
problemas que se costumam identificar na cláusula-mandato, pois se o banco
abusar da sua condição de procurador, e emitir, por exemplo, título por valor
superior ao seu crédito, é evidente que a cambial será inválida e desprovida de
liquidez. Se houver protesto e execução do documento, a instituição mandatária,
além de suportar os ônus de sucumbência da execução, responderá pelos danos
patrimoniais e morais, decorrentes do exercício irregular dos poderes de
procurador. O melhor, para a disciplina da matéria, seria a revisão do
entendimento jurisprudencial e a revogação do dispositivo do CDC, acima
referido.
2.3. Título em Branco ou Incompleto
A letra de câmbio (e qualquer outro título de crédito) pode ser emitida e
circular validamente, em branco ou incompleta. Quer dizer, os requisitos
essenciais da lei não precisam estar totalmente atendidos no momento em que o
sacador assina o documento, ou o entrega ao tomador (cf. Correia,
1973:481/487). Ele, tomador, e a pessoa a quem transferir o direito creditício
reputam-se mandatários do devedor do título. A natureza da relação se aclara
quando é considerado o cheque, título largamente utilizado no Brasil. Quer dizer,
se eu passo um cheque em branco e o entrego a pessoa da minha confiança, que
irá oportunamente preencher o seu valor, investi-a de poderes para, em meu
nome, completar o título. Quem, em outros termos, assina título de crédito em
branco ou incompleto, outorga ao portador mandato para o seu oportuno
preenchimento. Note-se que o portador somente se considera mandatário do
devedor, enquanto age de boa-fé. Caso venha a exorbitar as instruções recebidas,
ou lance dado inverídico (por exemplo, a data incorreta do saque), não poderá
executar o título de crédito.
A validade da emissão e circulação do título em branco ou incompleto é
fundada na lei (Dec. n. 2.044/08, art. 3º) e admitida pela jurisprudência (Súmula
387 do STF). A letra de câmbio deve estar perfeita, no sentido de atender aos
respectivos requisitos legais, no momento que antecede ao protesto ou à cobrança
judicial. Quer dizer, o cartório não pode receber, para protesto, cambial
incompleta; e é nula a execução do título não preenchido na forma da lei.
“A cambial emitida ou aceita
com omissões ou em branco,
pode ser completada pelo
credor de boa-fé antes da
cobrança ou do protesto”
(Súmula 387 do STF).
3. ACEITE DA LETRA DE CÂMBIO
A letra de câmbio é uma ordem de pagamento que o sacador endereça ao
sacado. Este não se encontra obrigado a cumprir a ordem contra a sua vontade.
Pelo contrário, enquanto não manifesta sua concordância, por meio de ato
lançado no próprio título, o sacado não tem nenhuma obrigação cambial. Esse ato
é o aceite. Por meio dele, o sacado se vincula ao pagamento da letra de câmbio e
se torna o seu devedor principal. Apenas se ele não pagar, no dia do vencimento,
é que os codevedores poderão ser acionados. Assim, ao receber das mãos do
sacador a letra de câmbio, o tomador deve procurar o sacado para apresentarlhe a letra e consultá-lo sobre a aceitação da ordem. O aceite introduz, na letra de
câmbio, uma nova situação jurídica, a do aceitante; situação em que se encontra
o sacado, após expressar sua concordância com a ordem de pagamento que o
sacador lhe endereçou.
Na letra de câmbio, o aceite é facultativo. Quer dizer, em nenhuma
hipótese o sacado é obrigado a aceitar o título. Mesmo que ele seja devedor do
sacador, ou do tomador, em razão de negócio ou ato jurídico que os vincule, o
sacado não está obrigado a documentar sua dívida por um título de crédito.
Suponha-se que Antonio envolveu-se com Benedito em um acidente de trânsito,
por culpa deste último. Mesmo que Benedito reconheça a responsabilidade, e o
dever de ressarcir os danos que causou, ele pode se recusar, validamente, a
documentar sua obrigação por meio da letra que Antonio resolva sacar e lhe
endereçar. Não há meios jurídicos que possam vincular o sacado ao pagamento
da letra de câmbio, contrariamente à sua vontade.
Na letra de câmbio, o aceite é
sempre
facultativo.
Isso
significa que, mesmo na
hipótese de o sacado ser
devedor do sacador ou
tomador, ele não está obrigado
a representar essa sua dívida
por um título de crédito, isto é,
por um documento com
circulação
cambial.
Na
duplicata, a regra é diferente.
O aceite decorre da assinatura do sacado no anverso da letra de câmbio.
No Brasil, a praxe era lançá-la à esquerda do documento, no sentido vertical.
Admite-se também o aceite no verso do documento, desde que identificada a
natureza do ato praticado pela expressão “aceito”, ou outra equivalente (LU, art.
25). De qualquer forma, só é aceite o ato praticado no instrumento cambial, em
razão do princípio da literalidade. Se o sacado havia transmitido, por outro meio
escrito, ao sacador ou ao portador a sua intenção de aceitar a obrigação
cambiária e, depois, se recusa a assinar o título, não se pode considerar que ele o
aceitou, exatamente porque o ato de aceite não foi lançado na própria letra de
câmbio. Contudo, o sacado responde, como se tivesse aceito, perante a pessoa
para quem eventualmente ele comunicara a sua intenção primeira, de aceite
(LU, art. 29).
Na letra de câmbio, como o aceite é sempre facultativo, a recusa do
sacado é ato plenamente válido, nada podendo reclamar contra ela o sacador, o
tomador ou os demais envolvidos com o título. Opera-se, contudo, o vencimento
antecipado do título. Quer dizer, se Antonio saca, em dois de julho, letra de
câmbio contra Benedito, em favor de Carlos, com vencimento para trinta de
novembro do mesmo ano, a recusa do aceite torna o título exigível de imediato.
Por evidente, Carlos somente poderá cobrar a letra de Antonio, que, sendo
sacador, é codevedor do título. Benedito, que recusou o aceite, não assumiu
nenhuma obrigação cambial. Em suma, a recusa do aceite significa que a ordem
de pagamento dada pelo sacador não foi devidamente prestigiada. Reconhece-se ao tomador, então, o direito de exigir prontamente do sacador a garantia pela
ordem que ele havia emitido. Em relação ao sacado da letra de câmbio, a recusa
do aceite não opera nenhum efeito.
3.1. Recusa Parcial do Aceite
Se o sacado pode recusar totalmente o aceite, pode fazê-lo também de
forma parcial. Quem pode o mais, pode o menos, afirma postulado tradicional da
argumentação jurídica pseudológica. Disciplina a lei duas espécies de recusa
parcial: a) o aceite limitativo; b) o aceite modificativo. Pelo primeiro, o sacado
reduz o valor da obrigação que ele assume. O sacador havia lhe ordenado o
pagamento de $ 100 e ele, ao assinar a letra, escreve “aceito até $ 80”. Pelo
segundo, o sacado introduz mudanças nas condições de pagamento da letra de
câmbio, postergando o seu vencimento por exemplo, ou alterando a praça em
que deve realizá-lo (esta última hipótese é também denominada aceite
domiciliado).
Tanto na hipótese do aceite limitativo, como na do modificativo, opera-se
a recusa parcial do aceite. Se o sacado concorda em atender parte do valor da
ordem, isso significa que ele se recusa a atender a outra parte; se ele anui pagar o
título no vencimento posterior, ele não aceitou pagá-lo no vencimento
preordenado pelo sacador. Desse modo, opera-se, com o aceite limitativo ou
modificativo, o vencimento antecipado do título, podendo o tomador executá-lo,
de imediato e pela totalidade, contra o sacador (cuja ordem desprestigiada ele
precisa garantir). Mas, ressalte-se, o sacado se vincula ao pagamento da letra de
câmbio, nos termos do seu aceite (LU, art. 26). Isto é, o sacador deve honrar o
cumprimento do título junto ao tomador (ou outro portador), mas poderá depois
cobrá-lo, em regresso, do aceitante parcial. Por exemplo, se Benedito, ao aceitar
a ordem de $ 100 que Antonio lhe havia endereçado, limitou seu aceite a $ 80, o
tomador Carlos pode, de imediato, exigir o valor total do sacador. Mas, no
vencimento previsto no título, Antonio poderá cobrar de Benedito o valor aceito.
A recusa parcial do aceite
manifesta-se na hipótese em
que o sacado concorda em
obrigar-se por uma parte do
valor da letra de câmbio
(aceite limitativo), ou introduz
condições
de
pagamento
diversas da estabelecida pelo
sacador (aceite modificativo).
Nas duas hipóteses, dá-se o
vencimento antecipado do
título, e o aceitante se vincula,
nos termos do seu aceite.
O sacado pode, também, sujeitar a sua obrigação a condição suspensiva
ou resolutiva, o que também representa uma espécie de aceite modificativo. Viuse que a letra de câmbio, no saque, não pode veicular ordem de pagamento
condicional. Se o sacador, desse modo, sujeita o pagamento a condição de
qualquer natureza, o documento simplesmente não produz os efeitos de título de
crédito. Mas o sacado, que não está obrigado a nada antes do aceite, pode
perfeitamente introduzir uma condição de pagamento. Opera-se, nesse caso, o
vencimento antecipado do título contra o sacador e também a vinculação do
aceitante nos termos do seu aceite. Quer dizer, o sacador deve, de imediato,
cumprir a obrigação cambial perante o titular do crédito e somente poderá atuar
em regresso contra o aceitante, se implementada a condição constante do aceite.
3.2. Cláusula Não Aceitável
A recusa do aceite, total ou parcial, produz efeitos contrários ao sacador (e
aos demais codevedores da letra de câmbio, se houver). Ele se sujeita a pagar o
título imediatamente após a recusa, mesmo que o vencimento preestabelecido
seja posterior. Para evitar a antecipação, provocada pela recusa do aceite, a lei
possibilita ao sacador a introdução da cláusula na letra de câmbio, proibindo a sua
apresentação ao sacado antes do vencimento (LU, art. 22). É a chamada cláusula
“não aceitável”. A letra terá, assim, uma redação como a seguinte: “aos trinta e
um de janeiro de ...., pagará V. S ª por esta única via de letra de câmbio não
aceitável, a importância etc.”. Inserida a cláusula, o tomador (ou o portador)
somente poderá apresentar o título ao sacado na data designada para o seu
vencimento. Ora, essa limitação protege o sacador contra a antecipação da
exigibilidade da obrigação, porque a recusa do aceite somente poderá ocorrer
depois de vencida a letra. Note-se que a cláusula “não aceitável” não é
exonerativa da responsabilidade do sacador (este sempre responde pela ordem
que expediu), mas apenas evita o vencimento antecipado.
Pela cláusula não aceitável, o
sacador proíbe a apresentação
da letra de câmbio ao sacado
antes do dia designado para o
seu vencimento. Sua utilidade é
preservar os coobrigados do
título contra a antecipação do
vencimento, que decorreria de
eventual recusa do aceite.
A lei uniforme também autoriza que o sacador fixe, na letra, uma data
limite, antes da qual a sua apresentação ao sacado é vedada. Trata-se de variante
da cláusula não aceitável, e o objetivo é o de evitar a antecipação do vencimento
aquém da data fixada.
A inobservância da cláusula não aceitável não prejudica os interesses do
sacador. Quer dizer, se a letra não aceitável é apresentada ao sacado antes do
vencimento (ou antes da data limite fixada pelo sacador), da eventual recusa do
aceite não se segue a possibilidade de cobrança imediata do sacador. Para exigir
o pagamento do sacador, deverá o tomador aguardar o vencimento preordenado
da letra, ou o termo a quo nela fixado para a apresentação.
4. ENDOSSO DA LETRA DE CÂMBIO
O título de crédito é, essencialmente, um documento que facilita a
circulação do crédito nele representado. E facilita, na medida em que o ato
responsável pela transferência do crédito a outro sujeito de direito é objeto de
disciplina jurídica específica, que o resguarda nas hipóteses de insolvência do
devedor originário ou de eventuais vícios anteriores, na criação e circulação do
documento. Esse ato é o endosso, pelo qual o credor de um título de crédito com
a cláusula à ordem transmite os seus direitos a outra pessoa. O endosso introduz,
na letra de câmbio, duas novas situações jurídicas: a do endossante e a do
endossatário. Na primeira, encontra-se o credor do título que resolve transferi-lo
a outra pessoa; na segunda situação jurídica, essa última, para quem o crédito foi
passado. Em outros termos, pelo endosso, o endossante deixa de ser o credor do
título de crédito, que passa às mãos do endossatário. Logicamente, não se cuida
de ato gratuito: o endossante irá receber do endossatário pelo menos uma parte
do valor do título de crédito.
O primeiro endossante da letra de câmbio será sempre o tomador, porque
a ordem de pagamento é sacada em seu benefício.
O endosso é ato típico de circulação cambial e apenas não se admite na
hipótese da letra com a cláusula não à ordem. De fato, se o título apresenta essa
cláusula, que pode ser inserida pelo sacador (LU, art. 11) ou mesmo por
endossante (LU, art. 15, segunda alínea), sua circulação não estará sujeita ao
regime jurídico-cambial, mas ao direito civil. O ato de transferência do título
nominativo não à ordem não é o endosso, mas a cessão civil de crédito. As
diferenças entre as duas formas de circulação serão discriminadas mais à frente
(item 4.2.); por enquanto, importa ressaltar que a cláusula à ordem é implícita nos
títulos de crédito. Ao chamar o documento representativo de obrigação por “letra
de câmbio”, o emitente já está autorizando a circulação mediante endosso,
mesmo que não o explicite. Para que o documento não possa circular sob o
regime do direito cambiário, é necessária expressa menção à cláusula não à
ordem.
Os títulos de crédito possuem,
implícita, a cláusula “à
ordem”, em virtude da qual se
admite a circulação sujeita à
disciplina do direito cambiário.
A cláusula “não à ordem”, que
deve ser expressa, não impede
a circulação do crédito, apenas
altera o regime jurídico
aplicável.
O endosso normalmente produz dois efeitos: transfere o título ao
endossatário e vincula o endossante ao seu pagamento. Isto é, enquanto o
endossatário se torna o novo credor da letra de câmbio, o endossante passa a ser
um de seus codevedores. No exemplo de sempre: se Antonio (sacador) saca letra
contra Benedito (aceitante), em favor de Carlos (tomador), este último pode,
antes do vencimento, negociar o crédito nela representado, e de que é titular,
junto a Darcy. Ao transferir o título — e, com isto, o próprio crédito —, Carlos se
identifica como endossante, e Darcy como endossatário. A partir de então, a letra
de câmbio documenta crédito titularizado por Darcy, do qual são devedores
Benedito (devedor principal), Antonio e Carlos (codevedores).
Se não for intuito do endossante assumir a responsabilidade pelo
pagamento do título, e com isso concordar o endossatário, operar-se-á a
exoneração da responsabilidade pela cláusula “sem garantia”, que apenas o
endosso admite. Desse modo, se Carlos assinar a letra de câmbio, sob a
expressão “pague-se, sem garantia, a Darcy ”, o título terá apenas dois
devedores, o aceitante Benedito e o sacador Antonio.
Não se aplica à letra de câmbio o art. 914 do Código Civil. Esse dispositivo,
que isenta, em regra, o endossante de garantir o pagamento do título, só é
aplicável aos títulos de crédito não regulados (Cap. 15, item 2.1). Como a letra de
câmbio é exaustivamente disciplinada na lei, que inclusive estabelece a regra da
responsabilidade do endossante pela solvência do devedor principal (LU, art. 15,
primeira parte), não se submete às disposições do Código Civil sobre matéria
cambial.
O endosso pode ser em branco, ou em preto. No primeiro caso, o ato de
transferência da titularidade do crédito não identifica o endossatário; no segundo,
identifica. Em outros termos, o endosso pode ser praticado por três formas
diferentes: 1ª) a simples assinatura do credor no verso do título; 2ª) a assinatura do
credor, no verso ou no anverso, sob a expressão “pague-se”, ou outra
equivalente; 3ª) a assinatura do credor, no verso ou no anverso, sob a expressão
“pague-se a Darcy ”. Nas duas primeiras, caracteriza-se o endosso em branco,
posto não identificada a pessoa para quem o pagamento deve ser feito, ou seja,
para quem o crédito foi transferido. Na última forma, o endosso se considera em
preto, porque o endossatário está plenamente identificado: é Darcy. Observo,
também, que a simples assinatura do credor não pode ser, a título de endosso,
lançada no anverso da letra de câmbio, porque, nesse caso, ela produziria os
efeitos de aval em branco (LU, arts. 13 e 31).
Com o endosso em branco, a letra de câmbio se torna um título ao
portador e passa, por essa razão, a circular por simples tradição. O portador de
uma letra endossada em branco, portanto, pode transferi-la a outras pessoas, sem
assiná-la; ou seja, sem se tornar responsável pelo cumprimento da obrigação
creditícia nela documentada (item 4.3). Na verdade, são cinco as alternativas que
possui o portador de uma letra de câmbio endossada em branco: a) inserir o seu
nome no endosso, para cobrança do crédito; b) inserir o nome de outra pessoa no
endosso, transferindo-lhe o crédito sem assumir responsabilidade cambiária; c)
endossar a letra em preto; d) endossá-la em branco; e) entregar o título,
simplesmente, a outra pessoa (cf. Holzhammer 1989:275).
4.1. Endosso Impróprio
Um dos efeitos normais do endosso é a transferência da titularidade do
crédito ao endossatário. Trata-se, como visto, do ato de circulação do crédito
representado por título de crédito à ordem. Há, contudo, hipóteses em que se faz
necessário legitimar a posse que determinada pessoa exerce sobre o documento,
sem, contudo, transferir-lhe o crédito. Pelo princípio da cartularidade, somente
pode exercer o direito creditício decorrente da cambial o possuidor do respectivo
documento. Uma de suas decorrências é a de que o portador do título presume-se
o seu credor, a menos que o contrário resulte da cadeia de endossos constantes do
mesmo título (LU, art. 16). Por essa razão, a transferência da posse do
documento, normalmente, acompanha a transferência da titularidade do crédito.
Quando é necessário dissociar--se uma da outra, no sentido de legitimar a posse
de alguém sobre o título, sem torná-lo o seu credor, deve-se praticar ato que
expresse claramente esta circunstância. Por outro lado, em razão do princípio da
literalidade, esse ato deve forçosamente se praticar no próprio título de crédito. O
endosso impróprio serve para atender esses aspectos do regime cambiário.
Por meio do endosso impróprio, lança-se na cambial um ato que torna
legítima a posse do endossatário sobre o documento, sem que ele se torne credor.
Chama-se impróprio o endosso, nesse caso, exatamente porque um de seus
efeitos normais — a transferência da titularidade do crédito — não se opera.
Existem duas modalidades dessa categoria de ato cambial: o endosso-mandato e
o endosso-caução. Pelo primeiro, o endossatário é investido na condição de
mandatário do endossante (LU, art. 18); pelo outro, é investido na de credor
pignoratício do endossante (LU, art. 19).
O
“endosso
impróprio”
destina-se a legitimar a posse
de certa pessoa sobre um título
de crédito, sem lhe transferir o
direito creditício. Admite duas
modalidades:
o
endossomandato e o endosso-caução.
O endosso-mandato é o ato apropriado para o endossante imputar a outra
pessoa a tarefa de proceder à cobrança do crédito representado pelo título.
Imagine-se que o credor não possa, no dia do vencimento, procurar o devedor da
letra de câmbio, para receber o pagamento. Poderá, naturalmente, encarregar
um empregado de sua confiança de fazê-lo. Deve, no entanto, praticar na própria
letra um ato, pelo qual se legitime a posse do título por esse empregado. Se o
título não ostentar um ato com tal sentido, o devedor poderá recusar-se a pagá-lo,
sob a alegação de que nada o autoriza a crer que o portador da letra representa
realmente o credor. De fato, o devedor somente estaria validamente desobrigado
se pagasse o título a quem se pudesse considerar credor, de acordo com os
endossos constantes da letra. O endosso--mandato se expressa pela assinatura do
endossante-mandante sob a expressão “pague-se, por procuração, a Darcy ”, ou
outra equivalente.
Já o endosso-caução é o instrumento adequado para a instituição de
penhor sobre o título de crédito. Imagine-se que Carlos, tomador da letra,
pretende contrair empréstimo junto a Darcy, que exige, para isso, uma garantia
real. Essa garantia pode recair, se as partes concordarem, sobre bens móveis
(caso em que se denomina penhor), entre os quais se consideram os títulos de
crédito. Como a garantia pignoratícia se constitui, via de regra, pela efetiva
tradição da coisa empenhada (CC, art. 1.431), faz-se necessária a entrega da
letra de câmbio ao credor (caucionado), sem que se transfira a titularidade do
crédito representado pela cambial. O ato que viabiliza a constituição da garantia é
o endosso-caução, praticado pelo endossante-caucionário em favor do
endossatário-caucionado. Expressa-se pela fórmula “pague-se, em garantia, a
Darcy ”, ou outra equivalente, escrita sobre a assinatura do credor da letra de
câmbio.
O endossatário, no endosso-impróprio, pode exercer todos os direitos
emergentes da letra de câmbio, exceto o de transferir a titularidade do crédito
(LU, arts. 18 e 19). Assim, o procurador do credor poderá protestar o título,
executá-lo ou mesmo constituir outro mandatário por meio de novo endossomandato. Note-se que o executado, nesse caso, poderá opor ao endossatáriomandatário as exceções que tiver contra o endossante-mandante, na medida em
que aquele o aciona em nome deste. Do mesmo modo, o endossatário por
endosso--caução, para fins de promover a efetivação de sua garantia
pignoratícia, pode protestar e cobrar judicialmente a letra de câmbio. O
executado, contudo, nessa hipótese (e ao contrário da relativa à execução
ajuizada pelo endossatário-mandatário), não poderá opor ao endossatáriocaucionado as exceções pessoais que tiver contra o endossante-caucionário, salvo
provando a má-fé deles. Aplica-se, portanto, ao endosso--caução, mas não
inteiramente ao endosso-mandato, o subprincípio da inoponibilidade das exceções
pessoais aos terceiros de boa-fé.
O portador da letra em decorrência de endosso impróprio, na medida em
que não é investido na condição de credor do título, não o pode transferir a outra
pessoa. Assim, se vier a endossá-la, o seu ato terá, por força da lei, a natureza de
mero endosso-mandato, e, portanto, não produzirá nenhum efeito translativo da
titularidade do crédito.
O endossatário, no endosso
impróprio, pode exercer todos
os direitos emergentes da letra
de câmbio, exceto o de
transferir a titularidade do
crédito, que remanesce nas
mãos do endossante-mandante
ou caucionário.
Nas relações entre os empresários e os bancos, as três modalidades de
endosso podem existir. Em primeiro lugar, o empresário pode descontar os títulos
de crédito que possui junto ao banco, recebendo o valor deles (ou parte)
antecipadamente. Nessa hipótese os títulos se transferem mediante endosso
próprio (por vezes, a lei o chama de endosso translativo). Em segundo lugar, o
empresário pode contratar do banco os serviços de cobrança de títulos. A
instituição financeira, aqui, atua como simples representante do credor e a posse
dela sobre o título se deve a um endosso-mandato. Por último, se o empresário
tomou dinheiro emprestado do banco, é possível a constituição de garantia do
cumprimento de suas obrigações por meio do penhor de títulos de crédito, caso
em que se pratica o endosso-caução. Importa ressaltar que, na prática bancária,
muitas vezes apenas se colhe a assinatura do credor no verso do título de crédito,
sem a identificação da natureza específica do endosso praticado. Por outro lado,
quando utilizado o meio eletrônico como suporte do título, não se pode exigir
sequer a assinatura manual do empresário. Desse modo, a definição do tipo de
endosso realizado (se próprio ou impróprio; se mandato ou caução), bem como
da condição em que se encontra o banco, ao procurar o devedor do título,
dependerá do exame do contrato escrito que deu base à operação, ou senão das
relações entre ele e o seu cliente (o empresário).
4.2. Endosso e Cessão Civil de Crédito
O endosso é o ato de transferência do título de crédito à ordem. Essa
cláusula, como já acentuado anteriormente, é implícita nas cambiais. Quer dizer,
se o sacador omite qualquer referência à forma de circulação do crédito, do
simples fato de ter denominado o documento pela expressão “letra de câmbio”,
já decorre a admissibilidade de seu endosso. Para que o título não possa circular
sob as regras do direito cambiário, é necessária a inclusão expressa da cláusula
não à ordem.
A cláusula obstativa da circulação cambial pode ser inserida pelo sacador
ou pelo endossante. No primeiro caso, desde o início, a letra não poderá ser
endossada; no segundo, proíbe-se a circulação cambial a partir do endosso que a
inseriu. Se Darcy, ao endossar o título a Evaristo, pretende impedir novos
endossos, deve inserir no seu ato a cláusula de proibição; quer dizer, deve assinar
o documento sob a fórmula “pague-se a Evaristo, não à ordem”. O ato praticado
por Carlos, porque foi anterior à introdução à cláusula não à ordem, tem a
natureza jurídica de endosso. Também é endosso o ato de Darcy. Contudo, se
Evaristo pretender negociar o seu crédito com outra pessoa, não poderá fazê-lo
por endosso.
É importante ressaltar que a cláusula não à ordem não impede,
propriamente, a circulação do crédito. O que ela opera é a mudança do regime
jurídico aplicável à circulação. Se o título não contempla essa cláusula, sua
circulação é regida pelo direito cambiário; se a contempla, a circulação terá o
tratamento do direito civil. Em outros termos, enquanto o título à ordem se
transfere por endosso, o não à ordem transfere-se por cessão civil de crédito. São
duas as diferenças entre uma e outra forma de o crédito circular: a) enquanto o
endossante, em regra, responde pela solvência do devedor, o cedente, em regra,
responde apenas pela existência do crédito; b) o devedor não pode alegar contra
o endossatário de boa-fé exceções pessoais, mas as pode alegar contra o
cessionário.
A cláusula “à ordem”,
expressa ou implícita no título,
define
como
cambial
a
circulação do crédito. Já se o
título contém expressamente a
cláusula “não à ordem”, isso
significa que será civil o
regime de transferência da
titularidade
do
crédito
mencionado.
Entre a circulação cambial e
a civil existem duas diferenças:
enquanto o endossante, em
regra, responde pela solvência
do
devedor,
o
cedente
geralmente responde apenas
pela existência do crédito; o
devedor não pode alegar
contra o endossatário de boa-fé
exceções pessoais, mas pode
suscitá-las
contra
o
cessionário.
Essas diferenças são derivadas da aplicação dos princípios do direito
cambiário à circulação do crédito por endosso. Assim, diga-se que Carlos vendeu
um automóvel a Antonio, e este o revendeu a Benedito. Para documentar a
transação, Antonio sacou letra de câmbio, em favor de Carlos, contra Benedito,
que a aceitou. Posteriormente, o tomador, Carlos, transferiu o seu crédito a
Darcy. Se, no vencimento, o aceitante está insolvente, não tem patrimônio para
responder por sua obrigação, Darcy poderá acionar Carlos, para reclamar o
pagamento da obrigação? Depende, se recebeu o título por endosso, poderá fazê-lo, porque o endossante (salvo na hipótese de cláusula sem garantia) responde
pela solvência do devedor. Mas se recebeu a letra por cessão civil de crédito,
Darcy não poderá cobrá-la de Carlos, porque o cedente só responde pela
existência do crédito. Quer dizer, para executar Carlos, Darcy deve provar que
lhe foi transmitido um direito inexistente, simulado. Por outro lado, se Benedito
não é insolvente, mas, nos prazos da lei, havia rescindido o contrato de compra e
venda do automóvel, feito com Antonio, em razão de vícios ocultos manifestados
na coisa, estará ele obrigado a honrar o título junto a Darcy? De novo, depende
da natureza do ato translativo do crédito. Se a circulação se deu por endosso, será
inoponível a exceção contra o credor do título; se se deu por cessão civil de
crédito, os vícios no automóvel poderão servir à defesa de Benedito contra
Darcy.
Em suma, no exemplo acima, se a letra havia sido emitida com a cláusula
não à ordem, a transferência do crédito, de Carlos para Darcy, é ato sujeito ao
direito civil, e a circulação não desvincula o título do seu negócio originário (no
caso, as transações do veículo). Já se a letra foi sacada com a cláusula à ordem,
aquela transferência é endosso, e se submete ao direito cambiário. Com a
circulação, nesse último caso, o título se desvincula do negócio originário.
Para concluir, deve-se lembrar que, em duas situações, o endosso produz
os efeitos de cessão civil de crédito: a) quando praticado após o protesto por falta
de pagamento, ou depois de expirado o prazo para a sua efetivação (LU, art. 20);
b) quando praticado em título em que se inseriu a cláusula não à ordem (LU, art.
15).
4.3. Circulação Cambial e o Plano Collor
No conjunto de diplomas normativos relacionados com o combate à
inflação, adotado pelo Presidente Collor, já no dia 15 de março de 1990, quando
tomou posse, encontrava-se a Medida Provisória n. 165, posteriormente
convertida, com pequeníssima alteração, na Lei n. 8.021/90. Por tais diplomas, o
legislador adotou uma série de vedações relativamente a alguns documentos
representativos de obrigações creditícias, com o objetivo de identificar o seu
titular. A preocupação era a de evitar a sonegação de tributos. Duas dessas
vedações interferiram com a circulação cambial: a) a proibição de emissão de
títulos ao portador ou nominativo-endossáveis (art. 2º, II); b) a obrigatoriedade de
identificação do beneficiário do pagamento dos títulos (art. 1º). Nasceu, com
essas normas, a questão relativa à sua aplicabilidade à letra de câmbio e, em
decorrência, por se sujeitarem ao mesmo regime jurídico, à nota promissória e à
duplicata.
Como mencionado, a disciplina legal da letra de câmbio em vigor no
Brasil decorre de sua adesão à Convenção de Genebra. Claro que o estado
participante da Convenção não precisa incorporar o texto da lei uniforme em sua
versão integral, podendo adaptá-lo às suas particularidades. Contudo, as
adaptações não podem ultrapassar as possibilidades autorizadas pelo Anexo II da
Convenção, vale dizer, não podem ferir os limites definidos pelas reservas
assinaladas. O estado que adote, em sua legislação, normas incompatíveis com a
essência da lei uniforme, está, a rigor, denunciando a Convenção. No passado,
quando institui-se no direito brasileiro o registro das cambiais, como condição de
sua executividade, a jurisprudência entendeu que, embora não previsto pela
Convenção de Genebra, o requisito, na verdade, era plenamente conciliável com
a disciplina internacional do instituto. As disposições do Plano Collor, contudo,
inserem-se em contexto bem diverso, porque a aplicação do art. 2º, II, da Lei n.
8.021/90 aos títulos de crédito próprios importaria a completa descaracterização
da circulação de efeitos cambiários.
Note-se que a letra de câmbio (LU, art. 1º, n. 6), a nota promissória (LU,
art. 75, n. 5) e a duplicata (LD, art. 2º, § 1º, V) já não admitiam, no saque, a
forma ao portador. Aquele dispositivo da lei do Plano Collor, portanto, apenas
inovaria na proibição da forma nominativo-endossável. Em outros termos, ao se
admitir sua aplicação aos títulos cambiais, estaria eliminada a cláusula à ordem
do direito brasileiro. A letra de câmbio, a nota promissória e a duplicata somente
se poderiam emitir com a cláusula não à ordem. Com isto, não se estaria vedando
a circulação desses títulos, mas, apenas o endosso. A negociação do crédito
documentado em título de crédito submeter-se-ia, assim, aos preceitos do direito
civil sobre a cessão. As consequências desse entendimento são claras: quem
aceitasse negociar o título, não estaria mais albergado pela inoponibilidade das
exceções pessoais e não poderia se voltar contra quem lhe transferiu o crédito, na
hipótese de insolvência do devedor. Em suma, sem o endosso, o título de crédito
se desnatura; perde muito de seu atributo exclusivo, que é a negociabilidade e
passa a ser, apenas, um instrumento a mais entre os representativos de obrigação,
sem nenhuma especificidade que o possa distinguir.
A aplicação, aos títulos de crédito próprios, das normas do Plano Collor
acima destacadas conduziria, a rigor, ao fim do direito cambiário, como um
regime específico de disciplina da circulação do crédito. Uma transformação
dessa monta no regramento jurídico brasileiro equivaleria à denúncia da
Convenção de Genebra. Como esta não foi — nem convém que seja — feita, a
melhor interpretação é a de que o art. 2º, II, da Lei n. 8.021/90 não se aplica à
letra de câmbio, nota promissória e duplicata. Trata-se de norma destinada aos
títulos de crédito impróprios de investimento.
Em relação à vedação de pagamento de títulos a beneficiários não
identificados, constante do art. 1º, caput, da mesma lei, a solução é outra. Como a
sua aplicação às letras de câmbio é compatível com a essência da convenção
internacional que a disciplina, não há como se entrever, nesta aplicação, qualquer
efeito equivalente à denúncia do acordado em Genebra. A regra em questão
pode ser plenamente integrada ao regime jurídico cambial, sem o
descaracterizar. Assim, nada impede que se pratique o endosso em branco,
aquele que não identifica o endossatário e que transforma a letra de câmbio em
título ao portador; nada obsta, também, que a letra circule, a partir de então, por
mera tradição, que é o ato próprio de circulação dos títulos ao portador. Contudo,
para obedecer ao ditame legal de identificação da pessoa para quem o título é
pago, o endosso em branco deve necessariamente ser convertido em endosso em
preto, no vencimento. Esse procedimento é inteiramente harmonizado com o
previsto pela lei uniforme (LU, art. 14), com a lei cambial interna (Dec. n.
2.044/08, art. 3º), o art. 19 da Lei n. 8.088/90 e a Súmula 387 do STF, além de se
traduzir num mecanismo que atende aos objetivos de controle fiscal da lei do
Plano Collor.
5. AVAL DA LETRA DE CÂMBIO
O aval é o ato cambiário pelo qual uma pessoa (avalista) se compromete
a pagar título de crédito, nas mesmas condições que um devedor desse título
(avalizado). Em geral, quando o credor não se considera inteiramente garantido
frente a determinado devedor — porque este não possui situação econômica
estável ou patrimônio suficiente à satisfação da dívida —, é comum a exigência
de uma garantia suplementar, representada pela obrigação assumida por outra
pessoa. Se o devedor é sociedade limitada, de micro, pequeno ou médio porte, o
credor normalmente exige que o seu sócio majoritário se comprometa
pessoalmente com o pagamento da dívida. Assim, além do patrimônio da pessoa
jurídica, também o do sócio garante o cumprimento da obrigação. Nessas
hipóteses, se o crédito é documentado numa letra de câmbio, o ato pelo qual a
garantia suplementar se viabiliza é o aval. Usualmente, o avalista garante todo o
valor do título, mas a lei admite o aval parcial (LU, art. 30).
O avalizado será sempre um devedor da letra de câmbio (sacador,
aceitante ou endossante). A propósito, cabe lembrar que a lei cambial interna
autoriza o aval antecipado, isto é, dado antes do aceite ou do endosso do título
(Dec. n. 2.044/08, art. 14). Assim, o tomador que não conhece o sacado, ou tem
dúvidas sobre a aceitação do título, pode exigir que o sacador, antes de lhe
entregar a letra, encontre quem esteja disposto a garantir o seu pagamento, como
avalista do devedor principal.
Duas são as características principais do aval, em relação à obrigação
avalizada: de um lado, a autonomia; de outro, a equivalência. O avalista assume,
perante o credor do título, uma obrigação autônoma, mas equivalente à do
avalizado. Ou, para dizer o mesmo, por termos diversos, o aval é dotado de
autonomia substancial e acessoriedade formal (cf. Holzhammer, 1989:289;
Gonçalves Neto, 1987).
O aval representa garantia
dada em favor de devedor da
letra de câmbio. Ele é
autônomo e equivalente
obrigação do avalizado.
à
Da autonomia do aval seguem-se importantes consequências. Em
primeiro lugar, a sua existência, validade e eficácia não estão condicionadas à da
obrigação avalizada. Desse modo, se o credor não puder exercer, por qualquer
razão, o direito contra o avalizado, isto não compromete a obrigação do avalista.
Por exemplo, se o devedor em favor de quem o aval é prestado era incapaz (e
não foi devidamente representado ou assistido no momento da assunção da
obrigação cambial), ou se a assinatura dele no título foi falsificada, esses fatos
não desconstituem nem alteram a extensão da obrigação do avalista. Por outro
lado, eventuais direitos que beneficiam o avalizado não se estendem ao avalista.
Se o primeiro obtém, numa recuperação judicial, o direito de postergar o
pagamento da letra de câmbio, o seu avalista não pode se furtar ao cumprimento
da obrigação, no vencimento constante do título. Também em decorrência da
autonomia do aval, não pode o avalista, quando executado em virtude do título de
crédito, valer-se das exceções pessoais do avalizado, mas apenas as suas próprias
exceções (por exemplo, pagamento parcial da letra, falta de requisito essencial
etc.).
A equivalência do aval, em relação à obrigação avalizada, significa que o
avalista é devedor do título “na mesma maneira que a pessoa por ele afiançada”
(LU, art. 32). Note-se que da definição legal da equivalência não decorre a
absoluta identidade de condições entre a obrigação do avalista e do avalizado,
sentido que comprometeria o caráter autônomo dos atos cambiais
correspondentes. Quando a lei preceitua que são iguais as “maneiras” de o
avalista e de o avalizado responderem pelo título, ela apenas estabelece uma
posição na cadeia de regresso. Ou seja, todos os que podem exercer o seu direito
de crédito contra determinado devedor do título também podem fazê-lo contra o
avalista dele; assim como todos os que podem ser acionados por determinado
devedor, em regresso, também o podem ser pelo respectivo avalista. Da
equivalência decorrem unicamente definições de anterioridade ou posteridade,
na cadeia de regresso, e nunca efeitos incompatíveis com o princípio da
autonomia das obrigações cambiais. Se o avalista é devedor equiparado ao
avalizado, isso não quer dizer que suas respectivas obrigações perderam a
independência característica dos atos cambiários.
Da equiparação do aval à obrigação avalizada não se segue a mesma
extensão da obrigação. Quer dizer, o avalista pode vir a ser obrigado, perante o
credor do título, por montante superior àquele que, em regresso, recuperará junto
ao avalizado. É, por exemplo, a situação em que se encontra o avalista de
empresário beneficiado com a recuperação judicial. De fato, se o avalizado
obtém, de acordo com o plano de recuperação aprovado em juízo, a remissão
parcial de suas obrigações (isto é, a redução do montante das dívidas), o credor
da cambial poderá executar o avalista pela integralidade do seu valor, mas esse
somente poderá exercer o seu direito creditício na recuperação judicial,
recebendo o pagamento pelo valor a menor (cf. Lucca, 1984).
O aval se pratica por uma das seguintes formas: 1ª) a assinatura do
avalista, lançada no anverso do título; 2ª) a assinatura do avalista, no verso ou
anverso, sob a expressão “por aval”, ou outra de mesmo sentido; 3ª) a assinatura
do avalista, no verso ou anverso, sob a expressão “por aval de Benedito”, ou
equivalente. A simples assinatura do avalista não pode ser lançada no verso da
letra de câmbio, porque este é, por definição, o local apropriado para o endosso.
Registre-se, também, que nas duas primeiras formas, como o avalizado não é
identificado, reputa--se o aval em branco. Já na última, o aval é considerado em
preto, porque nele se encontra a identificação do avalizado (Benedito). Quando o
avalista não define o devedor em favor de quem está prestando a garantia,
caberá à lei estabelecer o critério de identificação. Assim, para cada título de
crédito, o legislador estabelecerá qual devedor é o beneficiado pelo aval dado
nessas circunstâncias. No caso da letra de câmbio, o avalizado no aval em branco
é o sacador (LU, art. 31).
5.1. Avais Simultâneos
O devedor cambial pode ter a sua obrigação garantida por mais de um
avalista. É a hipótese de avais simultâneos, ou coavais. Se o anverso da letra de
câmbio apresenta, além da assinatura do sacador e do aceitante, também a de
outras pessoas, define-se que essas praticaram aval em branco. Outra hipótese é
a existência de mais de um aval em preto, em favor do mesmo avalizado. Nos
dois casos, os avalistas são simultâneos, no sentido de que garantem
solidariamente o cumprimento da obrigação avalizada.
Lembre-se que a obrigação cambiária em geral (a do sacador, aceitante,
endossantes e qualquer avalista) é, muitas vezes, conceituada como solidária,
porque o credor pode exigir a totalidade do valor do título de qualquer um dos
devedores. Contudo, deve-se acentuar que essa noção doutrinária não é
apropriada, tendo em vista que o exercício do direito de regresso não segue, no
direito cambiário, as regras da solidariedade passiva do direito civil. De fato, se a
letra de câmbio é cobrada, por seu valor integral, de um endossante, este poderá
voltar-se contra o aceitante, sacador ou respectivos avalistas, e dele receber
também, em regresso, a totalidade da obrigação cambial. Na solidariedade
passiva não ocorre assim, já que o devedor, após satisfazer a obrigação por
inteiro junto ao credor, tem direito de cobrar, em regresso, a quota-parte de cada
um dos demais solidários (CC, art. 283). Em conclusão, os devedores cambiais
não são, em regra, solidários (Cap. 10, item 3).
Apenas se verifica a solidariedade, entre os devedores de um título de
crédito, em hipóteses excepcionais, quando mais de uma pessoa se encontra na
mesma situação jurídica. Por exemplo, se são dois os sacadores da letra de
câmbio, haverá solidariedade entre eles; se um dos cossacadores é cobrado pela
totalidade do valor do título, ele pode cobrar do outro cossacador, em regresso, a
metade do montante despendido ou optar por cobrar todo o título, também em
regresso, do aceitante. A mesma solidariedade existirá entre coaceitantes,
coendossantes e coavalistas.
Nesse contexto, devem-se distinguir os avais simultâneos dos sucessivos.
No primeiro caso, mais de um avalista assumem responsabilidade solidária
(entre eles) em favor do mesmo devedor. Serão co-avalistas do sacador, do
aceitante ou do endossante. Para exemplificar, considere-se que Fabrício e
Germano prestam aval em branco na mesma letra de câmbio. São ambos
avalistas do sacador Antonio. Se um deles pagar a totalidade do valor do título ao
endossatário Evaristo, poderá, regressivamente, cobrar do outro a metade do
título, ou de Antonio o montante integral. No segundo caso (avais sucessivos), o
avalista garante o pagamento do título em favor de um devedor, e tem a sua
própria obrigação garantida também por aval. Assim, se Fabrício é o avalista de
Benedito, aceitante da letra, ele se torna devedor do título. Como devedor, pode
ter a sua obrigação também garantida por aval de Germano. Nessa hipótese,
Fabrício é avalista do aceitante e Germano, avalista de avalista, e não existe entre
eles nenhuma solidariedade. Quer dizer, se Germano cumpre a obrigação
cambial, ele pode, em regresso, responsabilizar seu avalizado, que é Fabrício,
exigindo o total da letra. Fabrício, por sua vez, não tem direito algum contra
Germano, seu avalista, e somente poderá exercer o regresso contra o seu
avalizado, Benedito.
“Avais
em
branco
e
superpostos
consideram-se
simultâneos e não sucessivos”
(Súmula 189 do STF).
Pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, os “avais em branco e
superpostos consideram-se simultâneos e não sucessivos” (Súmula 189). Devese, contudo, anotar que, a partir da vigência da lei uniforme, não tem mais
aplicação esse preceito em relação à letra de câmbio, posto que ela define
especificamente o devedor avalizado no aval em branco (isto é, o sacador). Em
decorrência disso, todo e qualquer avalista em branco da letra de câmbio
somente pode ser considerado coavalista do mesmo avalizado. Não há mais a
possibilidade de outro entendimento, a exigir definições jurisprudenciais. O
mesmo se verifica, por outro lado, em relação à nota promissória e ao cheque,
para os quais a lei também estabelece com clareza quem é o avalizado, na
hipótese de aval em branco (LU, art. 77; LC, art. 30, parágrafo único). Apenas
em relação à duplicata ainda é pertinente a Súmula 189 do STF, tendo em vista o
critério complexo de definição do beneficiário do aval em branco, constante da
lei disciplinar desse título (LD, art. 12), segundo o qual o avalizado é, em
princípio, o devedor cuja assinatura se encontra acima da do avalista. Esse
critério pode, com efeito, gerar a dúvida sobre a sucessividade ou simultaneidade
dos avais em branco; dúvida que se resolve, como visto, pela última alternativa.
5.2. Aval e Fiança
O ato civil de garantia correspondente ao aval é a fiança e são duas as
diferenças existentes entre eles. Em primeiro lugar — a mais importante —, o
aval é autônomo em relação à obrigação avalizada, ao passo que a fiança é
obrigação acessória. Desse modo, se a obrigação do avalizado, por qualquer
razão, não puder ser exigida pelo credor, isto não prejudicará os seus direitos em
relação ao avalista. Já, se a obrigação afiançada é inexigível, a causa da
inexigibilidade macula igualmente a fiança, que, sendo acessória, tem a sorte da
principal. Outra consequência da autonomia do aval é a inoponibilidade, pelo
avalista, das exceções que aproveitariam ao avalizado, sendo certo que o fiador,
em geral, pode alegar contra o credor, as exceções do afiançado (CC, art. 837).
A segunda diferença diz respeito ao benefício de ordem, que pode ser
invocado pelo fiador, mas não pelo avalista. O benefício de ordem é a
exoneração da responsabilidade do prestador da garantia suplementar, em razão
da prova da solvência do devedor garantido. O avalista, mesmo que o avalizado
tenha bens suficientes ao integral cumprimento da obrigação cambiária, deve
honrar o título junto ao credor, se acionado, e, depois, cobrá-lo em regresso
daquele. O fiador, ao contrário, poderá indicar bens do afiançado, situados no
mesmo Município, livres, desembaraçados e suficientes à solução da dívida, e,
com isto, liberar-se da obrigação assumida. Essa diferença entre o aval e a
fiança costuma não apresentar desdobramentos concretos, na medida em que o
credor costuma condicionar a aceitação da fiança à renúncia, pelo fiador, do
benefício de ordem.
5.3. Aval e Garantias Extracartulares
Os bancos, ao emprestarem ou disponibilizarem dinheiro aos seus clientes,
normalmente, formalizam a relação creditícia por meio de dois documentos: de
um lado, o instrumento de contrato de mútuo; de outro, um título de crédito (nota
promissória, CCB). O mesmo crédito, portanto, encontra-se representado em dois
diferentes escritos. Na verdade, bastaria qualquer um deles para o adequado e
seguro registro das obrigações do mutuário; contudo adota-se esse procedimento
para que, no contrato, se detalhem melhor as condições do negócio, e, pelo título,
possa-se protestar o devedor, no caso de inadimplência. Nesse contexto, também
é comum a existência de um avalista do mutuário, na cambial, que assina,
igualmente, o instrumento de contrato. Isso desperta algumas questões.
Em primeiro lugar, é necessário esclarecer que os problemas decorrentes
da duplicidade de instrumentos para a representação da mesma obrigação, a de
garantia do mútuo, não guarda nenhuma pertinência com os princípios gerais do
direito cambiário. Alguns autores ligam a questão à da autonomia das obrigações
cambiais, procurando explorar a noção de que o aval não se poderia alargar pelo
constante do contrato, em razão da independência característica do regime
cambiário. A rigor, não existe liame nenhum entre os temas. A autonomia é
postulado, cujas implicações pressupõem a circulação do crédito. Ou seja, a sua
importância diz respeito à impossibilidade de o devedor cambial furtar-se ao
cumprimento da obrigação, perante terceiro de boa-fé. Se o título não entra em
circulação, não cabe invocar-se a autonomia. Ora, a discussão da extensão das
obrigações do avalista, na hipótese de o contrato estabelecer encargos não
previstos no título, independe desse pressuposto; quer dizer, cabe mesmo se a
cambial não circulou.
Segundo, o avalista, que se obrigou no título de crédito, responderá pelos
encargos estabelecidos no instrumento contratual, apenas se também o assinou.
Cuida-se, aqui, de discutir a existência de obrigação do avalista por certos
pagamentos (tais como juros, comissão de permanência, multas etc.), não
constantes do título de crédito, mas expressos no contrato de mútuo subjacente.
Caso se verifique que o avalista assinou só a cambial, a previsão de encargos no
contrato não o poderá alcançar. A definição da inextensão das cláusulas
contratuais ao devedor cambiário não obrigado pelo contrato se reflete na
jurisprudência (Súmula 26 do STJ).
“O avalista do título de
crédito vinculado a contrato de
mútuo também responde pelas
obrigações pactuadas, quando
no contrato figurar como
devedor solidário” (Súmula 26
do STJ).
Em segundo lugar, deve-se considerar a hipótese de a obrigação contraída
no instrumento contratual vir a ser denominada formalmente por “aval”. Ocorre,
por exemplo, em contratos de financiamento outorgado a sociedade empresária,
em que se estipula cláusula pela qual o sócio majoritário da sociedade garante,
com o seu patrimônio pessoal, as obrigações da pessoa jurídica, na qualidade de
“avalista”. Trata-se, no entanto, de uma impropriedade técnica. Aval é ato
exclusivo de títulos de crédito e não pode ser firmado senão nos documentos
dessa natureza. Na verdade, a obrigação que o sócio assumiu, na oportunidade,
foi a de uma verdadeira fiança, e o nome correto a adotar seria “fiador” ou
“devedor solidário” (cf. Bulgarelli, 1991). Por essa razão, malgrado a
denominação utilizada, o regime jurídico a se aplicar deve ser o do direito civil.
Daí decorrem o benefício de ordem e a acessoriedade da garantia. Havendo, em
decorrência, no contrato, obrigações não mencionadas no título de crédito, a elas
se aplicam as regras da fiança, ainda que usada a expressão “aval” no
instrumento.
6. VENCIMENTO
O saque, aceite, endosso e aval são os atos de constituição do crédito
cambiário. Por meio de sua prática, criam-se vínculos jurídicos, pelos quais um
sujeito se torna credor de outro, e esse devedor daquele. O crédito assim
constituído será exigível, quando atendidos determinados pressupostos. O
primeiro deles é o vencimento.
O vencimento da letra de câmbio, assim, se define como o fato jurídico
que torna exigível o crédito cambiário nela mencionado. Distingue-se o
vencimento ordinário do extraordinário. O primeiro, normalmente, se verifica
com o decurso do tempo. Se o título diz “aos trinta e um de janeiro de ...., pagará
V.Sª por essa única via de letra de câmbio, etc.”, o que tornará exigível do
devedor o montante referido é o suceder dos dias. O fluir do tempo é o fato a que
o direito positivo atribui a qualidade de pressuposto para a cobrança do crédito
documentado na cambial. Mas há, também, outra hipótese de vencimento
ordinário, que diz respeito aos títulos à vista. Neles, o fato que torna exigível a
obrigação cambiária é a apresentação da letra de câmbio ao sacado. Se ele,
diante da ordem que lhe dirigiu o sacador, assente em cumpri-la, deve fazê-lo de
imediato. Se não aceita a ordem, o título se torna igualmente exigível desde
então, porque o tomador pode cobrá-lo do sacador.
O vencimento extraordinário da letra de câmbio se dá em duas
oportunidades: no caso de recusa do aceite pelo sacado (LU, art. 43) e na
falência do aceitante (Dec. 2.044/08, art. 19, II). Em relação à primeira, lembrese que o sacado, na letra de câmbio, não tem nenhuma obrigação cambial se não
praticar o ato de manifestação de sua concordância com a ordem que o sacador
lhe endereça. Seu aceite é sempre facultativo, de forma que a eventualidade da
recusa está presente em qualquer letra. Opera-se a antecipação do vencimento,
no caso, a menos que o título tenha sido emitido com a cláusula “não aceitável”,
ou se trate de letra à vista.
Na segunda circunstância em que ocorre o vencimento extraordinário da
letra de câmbio, a da falência do aceitante, a exigibilidade antecipada é garantia
dos credores. Note-se que é efeito de qualquer falência a antecipação do
vencimento de todas as obrigações do falido (LF, art. 77). Há, no entanto, uma
grande diferença entre a quebra do devedor principal do título de crédito e a de
codevedor. Quando falir o aceitante da letra, vencerá antecipadamente o título,
de modo que o credor poderá optar entre habilitar seu crédito na massa falida do
devedor principal ou cobrá-lo, de imediato, de qualquer codevedor; enquanto,
falindo o sacador ou endossante, o credor pode se habilitar no processo de
falência do codevedor, mas não poderá executar o título contra os demais
obrigados, nem mesmo o devedor principal. E isso porque, na última hipótese, o
título não venceu antecipadamente, mas apenas a obrigação do falido, nele
mencionada. A falência do sacador, endossante e avalista, portanto, não são
casos de vencimento extraordinário.
Quando se opera o vencimento antecipado da letra de câmbio, o seu valor
se reduz, de acordo com as taxas bancárias vigentes no local do domicílio do
credor (LU, art. 48, in fine).
Classificam-se as letras, segundo o vencimento, em quatro espécies: a)
letra com vencimento em dia certo; b) letra à vista; c) letra a certo termo da
vista; d) letra a certo termo da data. A letra de câmbio em dia certo é aquela em
que o sacador escolhe uma data (futura em relação à do saque) para defini-la
como vencimento. Corresponde à modalidade mais usual de título de crédito e se
expressa da seguinte forma: “aos trinta e um de janeiro de ..., pagará V.S ª por
essa única via de letra de câmbio, a importância de $ 100 a fulano etc.”. A letra
de câmbio à vista vence com a apresentação do título ao sacado, e adota texto
como o seguinte: “À vista dessa única via de letra de câmbio, pagará V.S ª a
importância de etc.”. Por sua vez, a letra de câmbio a certo termo da vista tem o
seu vencimento definido pelo transcurso de um prazo, fixado pelo sacador, que se
inicia na data do aceite do título. Sua redação é, por exemplo: “três meses após o
aceite, pagará V.Sª por essa única via de letra de câmbio etc.”. Finalmente, a letra
de câmbio a certo termo da data é a que vence com o transcurso de prazo,
igualmente fixado pelo sacador, que começa a fluir da data do saque. Seu texto
será algo como: “seis meses desta data, pagará V.Sª por essa única via de letra de
câmbio a fulano, a importância de $ 100. São Paulo, 31 de janeiro de ... etc.”.
7. PAGAMENTO
O pagamento da letra de câmbio extingue uma, algumas ou todas as
obrigações cambiais nela mencionadas, dependendo de quem paga.
Se o devedor principal paga a letra, o ato jurídico correspondente extingue
todas as obrigações documentadas no título. Se o pagamento é realizado pelo
aceitante, assim, opera-se a desconstituição da totalidade dos vínculos creditícios,
liberando-se sacador, endossantes e avalistas da letra.
Se, contudo, é o codevedor que paga, o pagamento extingue a obrigação
de quem pagou e a dos devedores posteriores, e aquele que pagou pode exercer,
em regresso, o direito creditício contra os devedores anteriores.
O pagamento de título de
crédito extingue uma, algumas
ou todas as obrigações nele
mencionadas, dependendo de
quem o realiza.
Na verdade, a liberação dos devedores cambiários segue uma única
regra, que é a de desfazimento das obrigações posteriores à do devedor que
cumpriu a obrigação documentada no título. Como o devedor principal é o
primeiro dos devedores, não há nenhum anterior a ele. Desse modo, o seu
pagamento extingue a totalidade das obrigações porque todos os demais
devedores são posteriores.
A cadeia de anterioridade-posteridade dos devedores cambiais se organiza
a partir de três critérios: a) o devedor principal é o primeiro; b) sacador e
endossantes se localizam, pelo critério cronológico; c) o avalista é o devedor
imediatamente posterior ao seu avalizado. Desse modo, se Antonio saca letra de
câmbio contra Benedito (que a aceita), em favor de Carlos, e esse a endossa a
Darcy, que a endossa a Evaristo; e, além disso, se Fabrício presta aval em branco
(que beneficia, como visto, o sacador), Germano avaliza Benedito, Hebe dá aval
a Carlos e Irene a Darcy, então teremos uma letra de câmbio com 7 devedores:
o aceitante Benedito, o sacador Antonio, os endossantes Carlos e Darcy e os
avalistas Fabrício, Germano, Hebe e Irene.
A cadeia de anterioridade-posteridade, no caso exemplificado, seguindose os critérios acima, resulta: Benedito-Germano-Antonio--Fabrício-CarlosHebe-Darcy-Irene.
O credor Evaristo, no vencimento, deve procurar o devedor principal,
para dele obter o pagamento da letra de câmbio. Se o aceitante paga, todos os
devedores são liberados de suas obrigações. Se não paga, surge daí o direito de
cobrança dos codevedores. Deve-se ressaltar que a apresentação da letra ao
devedor principal, para fins de pagamento, é condição inafastável para a
exigibilidade do crédito contra os codevedores. Se o credor não tentou o
recebimento do crédito, amigavelmente, do principal devedor do título, ele não
tem, no direito cambiário, condições de ajuizar ação contra os codevedores. A
tentativa de cobrança extrajudicial do devedor principal é condição sine qua non
da exigibilidade do crédito cambial contra os codevedores; ou, como diz Eunápio
Borges, a apresentação da letra ao aceitante é ato preliminar e obrigatório, a que
se encontra condicionado por lei o pagamento do título (1971:99).
Apresentada a letra para pagamento ao aceitante, se ele não pagar, o
credor (depois de providenciar o protesto do título, conforme se examina à frente)
pode escolher qualquer um dos codevedores para, amigável ou judicialmente,
exigir o valor do crédito. Se Evaristo escolhe, no exemplo acima, Carlos, o
pagamento da letra opera a desobrigação dos codevedores posteriores (Hebe,
Darcy e Irene); e Carlos poderá cobrar, em regresso, os anteriores (Benedito,
Germano, Antonio e Fabrício). Caso opte por proceder à cobrança de Fabrício, o
pagamento desse importa apenas a extinção de sua própria obrigação, já que
nenhum codevedor se localiza entre ele e Carlos. Por sua vez, ao pagar a letra,
Fabrício passa a titular do crédito, contra os devedores anteriores (Benedito,
Germano e Antonio), podendo exercer seu direito contra qualquer um deles.
7.1. Prazo para Apresentação
A letra deve ser apresentada, ao aceitante, para pagamento, no dia do
vencimento. Se o título vence num dia não útil, a apresentação deve ser feita no
primeiro dia útil seguinte (Dec. 2.044/08, art. 20). Para o direito comercial, útil é
o dia com expediente bancário regular. Se é feriado, ou se as autoridades com
competência para o ato suspendem o atendimento bancário, o dia não se
considera útil para todos os efeitos da legislação comercialista. Também
compromete a utilidade do dia, para o direito comercial, a anormalidade do
expediente, provocada por greve dos bancários ou qualquer outra razão (Lei n.
9.492/97, art. 12, § 2º).
A regra de apresentação da letra ao aceitante no dia do vencimento é
aplicável aos títulos pagáveis no Brasil. Nesse caso, somente se admite a
apresentação no primeiro dia útil seguinte, se o vencimento recai em dia não útil.
Caso o pagamento deva se realizar no exterior, a regra é diferente, porque se
admite a apresentação feita também nos dois dias úteis seguintes ao vencimento,
independentemente de ter esse recaído em dia útil ou não (LU, art. 38).
A inobservância do prazo de apresentação a pagamento, por si só, não traz
nenhuma consequência de relevo ao portador da letra de câmbio. A lei o
estabelece, na verdade, para disciplinar o início da fluência do prazo para o
protesto, cuja desobediência — esta sim — pode ser prejudicial aos direitos do
credor. Apenas se a letra contém cláusula sem despesas, que dispensa o protesto,
a inobservância do prazo de apresentação a pagamento redunda na perda do
direito de cobrança (LU, art. 53). Quando não há essa cláusula, o prazo de
apresentação para pagamento apenas serve para definir o de protesto por falta de
pagamento. Com efeito, se inadimplida a obrigação cambiária pelo devedor
principal, o credor da letra em dia certo deve encaminhá-la ao cartório de
protesto nos dois dias úteis seguintes ao que ela é pagável. Ora, a letra é pagável,
no Brasil, no dia do seu vencimento, ou, se não útil esse, no primeiro dia útil
seguinte.
Existe, na lei, autorização a qualquer devedor da letra, para depositar o seu
valor, na hipótese de não apresentação tempestiva do título a pagamento (LU, art.
42). Quer dizer, se o endossatário desobedece o prazo de apresentação a
pagamento, o aceitante ou o codevedor podem proceder ao depósito judicial do
valor da cambial, à custa do credor. Corresponde a previsão legal a circunstância
difícil de se verificar, e a possibilidade do depósito não pode ser propriamente
entendida como sanção ao credor negligente.
Note-se, por fim, que sobre as consequências da inobservância do prazo
de apresentação a pagamento, e mesmo sobre a sua extensão, diverge a doutrina,
tendo em conta o entendimento acerca do conteúdo das reservas assinaladas pelo
Brasil, ao texto da Lei Uniforme de Genebra. Mercado Jr. e Fran Martins, por
exemplo, reputam revogado o art. 20 do Decreto 2.044/08, e consideram que
vigora, em sua inteireza, o art. 38 da LU, enquanto não houver lei disciplinando a
matéria. Para eles, a letra de câmbio, tanto a pagável no Brasil, como no
exterior, devem ser apresentadas ao aceitante no dia do vencimento ou nos dois
dias úteis seguintes (Mercado Jr., 1966:135; Martins, 1972:248/249).
7.2. Cautelas no Pagamento
A doutrina recomenda cautelas para quem paga título de crédito (Requião,
1971, 2:358/359). Em primeiro lugar, em razão do princípio da literalidade, devese exigir a quitação no próprio título, já que não produz efeitos jurídico-cambiais
o ato lançado em instrumento à parte. A outra cautela decorre do princípio da
cartularidade, e consiste em exigir a entrega do título, indispensável para o
exercício do direito de regresso ou, pelo menos, para impedir que o documento
seja transferido a terceiro de boa-fé. Também cabe, por fim, registrar a
conferência da regularidade dos endossos como medida de cautela no
pagamento dos títulos de crédito (LU, art. 40).
Atualmente, essas cautelas não se podem exigir mais, em especial dos
consumidores, porque a desmaterialização dos títulos de crédito criou uma nova
realidade, em que se mostram desprovidos de sentido essas noções tradicionais
do direito cambiário. O instrumento que o devedor do título de crédito recebe, da
rede bancária, para quitar a obrigação, é a “guia de compensação”. Por meio
dela o pagamento poderá ser realizado em qualquer agência, de qualquer banco.
Ora, não cabe imaginar que o devedor poderia, nesse sistema, adotar as cautelas
recomendadas pela doutrina comercialista. Exatamente para que o pagamento se
possa realizar em qualquer agência bancária do país, possibilidade aberta em
benefício do devedor, inclusive, não se pode minimamente cogitar de
contraentrega do título de crédito, devidamente quitado pelo credor.
Conclui-se, dessa maneira, que a inobservância das cautelas
tradicionalmente apontadas, para o pagamento de um título de crédito, não pode
prejudicar o devedor, se o credor se utilizou do sistema financeiro para a
cobrança. Mesmo se o pagamento é feito diretamente ao credor, sem a
intermediação da rede bancária, cabe relativizar a inobservância das cautelas
próprias do direito cambiário, se o devedor é tutelado pelo Código de Defesa do
Consumidor.
8. PROTESTO
O protesto — define a lei — é “ato formal e solene pelo qual se prova a
inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros
documentos de dívida” (Lei n. 9.492/97, art. 1º). Esse conceito de protesto,
embora legal, não é o correto. Há protestos que nele não se podem enquadrar,
como o de falta de aceite da letra de câmbio. Como visto, o sacado desse título
(ao contrário do que se verifica em relação à duplicata) não está obrigado a
aceitar a ordem de pagamento que lhe é dirigida. Ao recusar o aceite, ele não
descumpre obrigação nenhuma, e, ainda assim, caberá o protesto por falta de
aceite, como condição indispensável ao vencimento antecipado da letra.
Na verdade, o protesto deve-se definir como ato praticado pelo credor,
perante o competente cartório, para fins de incorporar ao título de crédito a prova
de fato relevante para as relações cambiais. Note-se que é o credor quem
protesta; o cartório apenas reduz a termo a vontade expressa pelo titular do
crédito. Por meio desse ato, por outro lado, o credor formaliza a prova de fato
jurídico, cuja ocorrência traz implicações às relações creditícias representadas
pela cambial. Exemplificando: se o tomador da letra procura o sacador, antes do
vencimento, e lhe exibe o título sem a assinatura do sacado, exigindo, sob a
alegação de recusa do aceite, que a dívida seja imediatamente satisfeita, como
poderá o mesmo sacador certificar-se da veracidade desse fato? Note-se que
somente se opera o vencimento antecipado da obrigação, se o título foi
apresentado realmente ao sacado e esse o recusou. Ora, a prova da falta de
aceite é o protesto da letra. Outro exemplo: se o endossatário, após o vencimento
do título, procura o endossante, para dele exigir o pagamento, como poderá o
codevedor certificar-se de que o devedor principal foi, realmente, procurado no
prazo, para a tentativa amigável de solução da obrigação? Sabe-se que sem tal
pressuposto, não existe a obrigação do codevedor. É o protesto por falta de
pagamento que o provará.
Protesto é o ato praticado
pelo
credor,
perante
o
competente cartório, para fins
de incorporar ao título de
crédito a prova de fato
relevante para as relações
cambiais, como, por exemplo, a
falta de aceite ou de pagamento
da letra de câmbio.
Em relação à letra de câmbio, além desses dois tipos (falta de aceite e
falta de pagamento), há, ainda, o protesto por falta de data de aceite. Diz respeito
à letra a certo termo da vista, em que o sacado aceita o título, mas se esquece de
mencionar a data em que pratica o ato. Como a letra dessa categoria tem o seu
vencimento definido a partir da aceitação da ordem pelo sacado, o portador pode
protestá-la para suprir a falta do termo inicial do respectivo prazo. Por evidente, a
necessidade do protesto existirá apenas se o aceitante, procurado para escrever a
data do aceite no título, recusar-se a fazê-lo. Nesse caso, ele será intimado para
comparecer a cartório e datar o ato, sob pena de protesto. Importa destacar que o
protesto por falta de data de aceite da letra de câmbio a certo termo da vista é
hipótese raríssima, até mesmo porque o credor tem duas outras alternativas de
iguais efeitos jurídicos: a) preencher, ele mesmo, a letra, datando o aceite
(Súmula 387 do STF); b) considerar o aceite praticado no último dia do prazo de
apresentação da letra (LU, art. 35).
A jurisprudência, atenta à facultatividade do aceite da letra de câmbio,
tem considerado incabível o protesto por falta de aceite deste título, como forma
de preservar a pessoa do sacado dos efeitos negativos que este ato projeta,
mesmo quando não se destina a provar a falta de pagamento (TJSP, Embargos
Infringentes 991.06.019980-6, relatados pelo des. Alexandre Lazzarini).
8.1. Protesto por Falta de Pagamento
Se o aceitante não paga a letra de câmbio, no vencimento, o credor deve
protestá-la por falta de pagamento. Quando se trata de título com vencimento em
dia certo, a providência deve ser adotada nos 2 dias úteis seguintes àquele em que
é pagável (LU, art. 44). Para as demais categorias de letra de câmbio, variam os
prazos pouca coisa. Concentre-se a atenção, contudo, na hipótese mais
corriqueira, de título com vencimento em dia certo.
Se o credor perde o prazo para a efetivação do protesto (isto é, para a
entrega da cambial no cartório), a consequência será a inexigibilidade do crédito
mencionado na letra, contra os codevedores e seus avalistas. Se o endossatário,
assim, não obedece ao prazo legal para o protesto por falta de pagamento, ele
não poderá cobrar a letra do sacador, endossante e seus avalistas (LU, art. 53).
Continua, é certo, com o direito creditício contra o aceitante e o avalista do
aceitante, devedores perante os quais o desatendimento do prazo não produz
efeitos.
Em razão das consequências que a lei estabelece para o descumprimento
do prazo para protesto por falta de pagamento da letra de câmbio, costuma a
doutrina distinguir entre o protesto necessário e o facultativo. No primeiro caso,
destaca que a formalização do ato deve ser providenciada dentro do prazo, para
fins de conservação do direito creditício contra os codevedores (sacador e
endossantes) e respectivos avalistas. No segundo, dá relevo ao fato de que a
cobrança judicial do devedor principal (aceitante) e respectivo avalista
independe de protesto. No exemplo mencionado (item 7), se Evaristo perde o
prazo da lei, e encaminha o título ao cartório de protesto, depois de transcorridos
dois dias úteis daquele em que era pagável, ou mesmo se ele deixa de protestar a
letra, somente poderá cobrá-la de Benedito e Germano. A falta de observância
do prazo é irrelevante, porque o protesto é facultativo contra esses devedores. Em
relação aos demais, contudo, ficam liberados de suas obrigações cambiais,
porque contra os codevedores é necessário o protesto.
O protesto da letra de câmbio
dentro do prazo da lei é
condição necessária para a
cobrança contra o sacador,
endossantes e seus avalistas,
mas não contra o aceitante e
respectivo avalista.
Anote-se que a letra pode ser sacada com a cláusula “sem despesas”
(também chamada “sem protesto”). Se o caso, o credor está dispensado do
protesto cambial, contra quaisquer devedores. Por outro lado, o endossante e o
avalista também podem incluir, nos respectivos atos, a mesma cláusula e, assim,
dispensar o credor da efetivação tempestiva do protesto por falta de pagamento,
para fins de conservação do direito creditício contra eles. No exemplo de
sempre, se Carlos, ao endossar a letra, escreve “pague-se, sem despesas, a
Darcy ”, e Fabrício assina sob “por aval, sem despesas”, então o credor Evaristo,
perdendo o prazo legal para o protesto por falta de pagamento, poderá ainda
cobrar o título de Benedito (aceitante), Germano (avalista de aceitante), Fabrício
(avalista “sem despesas”) e Carlos (endossante “sem despesas”).
8.2. Pagamento em Cartório
A partir do vencimento do título, incidem juros de mora e correção
monetária. Por isso, o pagamento da letra de câmbio em cartório, para fins de
evitar a efetivação do protesto, deve compreender esses encargos, além do valor
do título. Também será devido, na hipótese, o re embolso das despesas e custas
incorridas pelo credor, na tentativa de protestar a cambial.
No passado, adotava-se o entendimento de que os juros somente eram
devidos a partir do protesto da cambial, porque o direito comercial brasileiro, ao
contrário do civil, não consagrava o princípio dies interpellat pro homine. Em
outros termos, o Código Comercial, de 1850, era mais formal na caracterização
da mora dos devedores que o Código Civil, de 1916: enquanto esse a reputava
caracterizada pelo simples inadimplemento, aquele a condicionava à
interpelação judicial. Com a vigência da lei uniforme, contudo, não mais é
possível sustentar-se tal distinção, na medida em que o art. 48 assegura ao
portador da cambial o direito aos juros “desde a data do vencimento” (cf.
Martins, 1972:287). Em relação à letra de câmbio — e também à nota
promissória — a incidência de juros não depende do protesto.
A correção monetária, por sua vez, é devida em decorrência do previsto
na Lei n. 6.899/81, que a assegura, a partir do vencimento, nas execuções de
títulos extrajudiciais. Ora, se o credor pode exigir, em juízo, a atualização
monetária, ele também a pode cobrar do devedor, no âmbito extrajudicial, ainda
que não exista expressa menção no texto do documento creditício. A propósito,
quando é esse o caso, o credor deve, ao encaminhar o título ao cartório de
protesto, apresentar também o demonstrativo do valor atualizado e do critério de
atualização (Lei n. 9.492/97, art. 11).
8.3. Cancelamento do Protesto
O protesto, em seus lineamentos conceituais, é ato do credor, para a prova
da ocorrência de fato relevante às relações creditícias. Como ato unilateral do
titular do crédito, não deveria, em princípio, afetar os direitos do devedor. Quem
soubesse do protesto de título contra Benedito, não estaria, rigorosamente falando,
autorizado a formular conceito negativo dele. O protesto indicaria, ao contrário,
apenas que Evaristo manifestou sua contrariedade à falta de pagamento da letra,
para não perder o direito de a exigir do sacador, endossantes e seus avalistas.
Mas, sabemos todos, não é assim a reação dos que tomam conhecimento da
existência do ato. O protesto, de fato, passou a cumprir a função de índice de
pontualidade de certo sujeito, no cumprimento de suas obrigações. Quem figura
como protestado tem reais dificuldades de acesso a crédito, porque, no meio
bancário e empresarial, a certidão positiva de protesto de títulos é prova de
inidoneidade dos que nela figuram como devedores.
Mais do que ato de conservação de direitos creditícios, o protesto é hoje
instrumento extrajudicial de cobrança. Por essa razão, a lei autoriza o seu
cancelamento, quando o devedor paga o título, após o protesto (Lei n. 9.492/97,
art. 26).
O cancelamento do protesto
do título cabe na hipótese de o
devedor
vir
a
pagá-lo
posteriormente.
Procede-se ao cancelamento do protesto por meio de pedido formulado
pelo devedor, ou terceiro interessado (por exemplo, o sucessor), perante o
Tabelionato de Protesto de Títulos. O pedido deverá vir instruído pelo próprio
título protestado ou por declaração de anuência do credor. Na primeira hipótese,
o pagamento é presumido pela posse da cambial, em decorrência do princípio da
cartularidade. De fato, se o devedor se encontra com a letra de câmbio
protestada em suas mãos, a presunção é a de que o credor recebeu o que lhe era
devido. Caso contrário, não teria se desapossado do documento. Na outra
hipótese, a anuência supre a exibição do título de crédito objeto de protesto. Se a
letra de câmbio não havia circulado, ela é dada pelo tomador (que é o “credor
originário”, a que se reporta o texto legal); se circulou, caberá ao endossatário
anuir com o cancelamento. Note-se que, na hipótese de endosso impróprio, o
credor do título ainda é o endossante, e cabe exclusivamente a ele — e não ao
endossatário — a declaração para o cancelamento.
Por evidente, se o crédito foi registrado em meio magnético, a baixa do
protesto dependerá da declaração de anuência do credor, já que não existe o
título protestado.
9. AÇÃO CAMBIAL
Ação cambial é a de cobrança do direito creditício mencionado em título
de crédito. Ela se diferencia das demais ações de cobrança unicamente porque
apresenta a particularidade de limitar as matérias de defesa do devedor, quando
o credor é terceiro de boa-fé. Nenhuma outra diferença existe, quer em termos
de pressupostos, condições da ação, procedimento ou demais aspectos de direito
processual civil. Em outros termos, a ação é cambial se o demandante, se
terceiro de boa-fé, tem o direito de invocar a inoponibilidade de exceções
pessoais, para postular a desconsideração, pelo juiz, de matérias de defesa
estranhas à sua relação com a parte demandada. Quando admitida essa
desconsideração, a ação é cambial.
Cobram-se, normalmente, os títulos de crédito por execução, já que a lei
processual os define como títulos executivos extrajudiciais (CPC, art. 585, I). E,
nesse caso, os embargos à execução submetem-se aos limites decorrentes do
princípio da inoponibilidade. Cabe ressaltar que, sendo o executado codevedor ou
avalista de codevedor, o título de crédito somente apresenta força executiva, se
acompanhado de instrumento de protesto que ateste ter sido protocolizado no
prazo legal, junto ao cartório do lugar do pagamento. Caso não preenchida a
condição, não disporá o portador da letra de título hábil à propositura da medida
judicial satisfativa. Qualquer direito que pretenda invocar contra o sacador,
endossante e seus avalistas, dependerá de ação de conhecimento, sem a natureza
cambial. Contra o aceitante e seu avalista, a simples exibição da letra de câmbio,
com ou sem protesto, é suficiente para instaurar-se a execução.
O credor pode executar o título de crédito contra todos os devedores,
identificando como executados, em sua petição inicial, o devedor principal, os
codevedores e avalistas da letra. A ordem de anterioridade-posteridade dos
devedores cambiais só interessa, para fins de cobrança amigável ou para o
exercício de direito de regresso. Normalmente, após obter sucesso na cobrança
do crédito contra um dos executados, o credor deve desistir dos demais, ou pedir
a suspensão da execução contra eles, de forma a se evitar o enriquecimento
indevido.
A ação cambial é a execução,
porque os títulos de crédito são
definidos,
na
legislação
processual (CPC, art. 585, I),
como
títulos
executivos
extrajudiciais. Verificando-se,
contudo, a prescrição fixada na
legislação cambiária, caberá a
ação causal, de natureza
cognitiva.
Para a ação cambial, fixou a lei uniforme o prazo prescricional (LU, art.
70). A execução da letra de câmbio, assim, deve ser ajuizada contra o devedor
principal e seu avalista, em 3 anos, a contar do vencimento; contra os
codevedores, em 1 ano, contado do protesto (ou do vencimento, no caso de
cláusula “sem despesas”); para o exercício de direito de regresso contra
codevedor, em 6 meses, a partir do pagamento ou do ajuizamento da execução.
Como prazos prescricionais, operam--se, em relação à sua fluência, os fatores de
suspensão e interrupção prescritos pelo direito civil, não existindo nenhuma regra
específica do direito cambiário para a matéria.
Prescrita a execução, ninguém poderá ser acionado em virtude da letra de
câmbio. No entanto, se a obrigação que se encontrava representada pelo título de
crédito tinha origem extracambial, seu devedor poderá ser demandado por ação
de conhecimento (Dec. n. 2.044/08, art. 48) ou por monitória, nas quais a letra
serve, apenas, como elemento probatório. Essas ações são chamadas de
“causais”, porque discutem a causa da obrigação e não o seu documento. O
devedor cuja obrigação tenha se originado exclusivamente no título de crédito —
como é, em geral, o caso do avalista —, após a prescrição da execução cambial,
não poderá ser responsabilizado em nenhuma hipótese perante o seu credor, já
que não há causa subjacente a fundamentar qualquer pretensão ao recebimento
do crédito. Por outro lado, como a ação causal não é cambial, são admitidas
quaisquer matérias de defesa por parte do demandado.
A ação causal (seja de conhecimento ou monitória) prescreve, por sua
vez, de acordo com o disposto na legislação aplicável ao vínculo extracambiário
que une as partes da demanda: por exemplo, o contrato de compra e venda que
deu origem ao título, o mútuo que foi cumprido por meio do endosso etc. Se
inexistir regra específica, prescreverão, em 5 anos, contados da data em que
poderiam ter sido propostas (CC, art. 205, § 5º, I). O termo inicial de prescrição
da ação causal, portanto, não é o exaurimento do prazo prescricional da ação
cambial, mas a data — que pode mesmo ser até anterior à do saque do título de
crédito — em que a medida poderia ter sido ajuizada.
Capítulo 12
NOTA PROMISSÓRIA
1. REQ UISITOS DA NOTA PROMISSÓRIA
A nota promissória é uma promessa de pagamento. Seu saque gera, em
decorrência, duas situações jurídicas distintas: a de quem, ao praticar o saque,
promete pagar; e a do beneficiário da promessa. O primeiro é referido, na lei
uniforme, por subscritor (embora não esteja incorreto chamá-lo sacador,
emitente ou promitente); e o segundo é o tomador (por vezes chamado também
de sacado). Pela nota promissória, o subscritor assume o dever de pagar quantia
determinada ao tomador, ou a quem esse ordenar.
O devedor principal da nota promissória é o seu subscritor, aquele que,
mediante o saque, concorda em representar sua dívida perante o tomador, por
meio de um documento de efeitos cambiários. Ao manifestar tal vontade, anui o
emitente com a negociação, pelo tomador, do seu crédito junto a terceiros, os
quais passam a titularizar direito creditício autônomo à relação jurídica primária,
de que havia se originado a dívida. Quem concorda em se obrigar por uma nota
promissória, está assentindo com a circulação do crédito correspondente,
segundo o regime cambiário. Ninguém está obrigado ao saque da nota
promissória, e o credor não pode impor ao devedor essa específica alternativa de
documentação da relação jurídica que os vincula (salvo se o obrigado houvera
assumido o compromisso de sacar a nota, em contrato).
A nota promissória é uma
promessa do subscritor de
pagar quantia determinada ao
tomador, ou à pessoa a quem
esse transferir o título.
Para que produza os efeitos de uma nota promissória, o documento deve
atender a determinados requisitos. Somente se revestido da formalidade prescrita
por lei, o instrumento escrito poderá ser transferido e cobrado, sob o regime do
direito cambiário. Caso não atenda aos requisitos que lhe conferem natureza
cambial, o documento produzirá apenas efeitos civis, quer dizer, sua
transferência se opera por cessão civil de crédito e sua cobrança não se beneficia
da inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé. São os seguintes
os requisitos da nota promissória (LU, arts. 75 e 76): a) a expressão “nota
promissória”, inserta no texto do título, na mesma língua utilizada para a sua
redação; b) a promessa incondicional de pagar quantia determinada; c) nome do
tomador; d) data do saque; e) assinatura do subscritor; f) lugar do saque, ou
menção de um lugar ao lado do nome do subscritor.
Em vista da relação dos elementos indispensáveis a essa espécie de título
de crédito, pode-se concluir, a exemplo do mencionado em relação à letra de
câmbio, que não produzirá efeitos cambiais a nota promissória emitida ao
portador, já que o nome do tomador é exigido. Também não poderá ser
considerada nota o título que sem indicação de valor líquido, ou que sujeite a
exigibilidade da promessa a qualquer sorte de condição, suspensiva ou resolutiva.
Uma nota, portanto, redige-se assim: “aos trinta e um de janeiro de ..., pagarei,
por essa única via de nota promissória, a fulano ou à sua ordem, a importância de
$ 100. Local e data do saque, assinatura do subscritor”.
Deve-se registrar que, além dos requisitos necessários à nota promissória,
a referência à época e lugar do pagamento também convém ser feita. A falta de
menção a esses elementos, contudo, não desnatura o documento como nota
promissória, na medida em que, faltando época do pagamento, reputa-se o título
à vista; e, faltando o lugar, considera-se pagável no local do saque ou no
mencionado ao lado do nome do subscritor.
2. REGIME JURÍDICO DA NOTA PROMISSÓRIA
A nota promissória está disciplinada pelo mesmo regime jurídico
aplicável às letras de câmbio. Todos os aspectos examinados anteriormente (Cap.
11), relativos à constituição e exigibilidade do crédito cambiário, compõem, em
princípio, o quadro jurídico de regência da nota promissória. Apenas se
justificam quatro observações, de modo a ajustar o regime definido para a letra
de câmbio às particularidades desse outro título.
O regime da nota promissória
é o da letra de câmbio, com
quatro ajustes.
Em primeiro lugar, não se aplicam às notas promissórias as regras da letra
de câmbio incompatíveis com a natureza de promessa de pagamento
apresentada por aquelas. Como já assentado, as letras são ordens de pagamento
e, em razão disso, há dispositivos na legislação referente àquelas que não podem
incidir sobre a nota, exatamente porque possui natureza de promessa, e não de
ordem de pagamento. Em geral, são os regradores da apresentação do título ao
sacado, para aceite, e das consequências das condutas derivadas do ato (recusa,
total ou parcial, ou aceitação da ordem). Por exemplo, as normas sobre cláusula
“não aceitável”, prazos de apresentação ao sacado, prazo de respiro, forma do
aceite, recusa parcial, vencimento antecipado e outras são insuscetíveis de
aplicação às notas promissórias. Da própria natureza de promessa de pagamento
segue-se a inoperância dos comandos normativos correspondentes.
Em segundo lugar, define a lei que se aplica ao subscritor da nota
promissória as regras do aceitante da letra de câmbio (LU, art. 78). A
equiparação decorre do fato de serem ambos os devedores principais dos
respectivos títulos. Desse modo, a prescrição da execução da nota contra o
subscritor é igual à da execução da letra contra o aceitante (quer dizer, 3 anos,
nos termos do art. 70 da LU); outro exemplo, o protesto do título é facultativo
contra o subscritor da nota promissória, porque assim é em relação ao aceitante
da letra; também, a falência do subscritor antecipa o vencimento da nota
promissória, já que a do aceitante produz o mesmo efeito em relação ao da letra
de câmbio (Dec. n. 2.044/08, art. 19, II).
A terceira observação, relacionada ao ajustamento do regime da letra à
disciplina das notas, diz respeito à figura do avalizado, no aval em branco.
Conforme esclarece o legislador, na nota, o subscritor é o beneficiário do aval
desse tipo. Assim, se o avalista não identifica o devedor em favor do qual está
prestando a garantia, considera-se que foi ao subscritor da nota que se pretendeu
beneficiar (LU, art. 77, in fine).
Por fim, cabe ressalvar que a nota promissória admite a modalidade “a
certo termo da vista”, por expressa previsão legal (LU, art. 78). De fato, a partir
da regra assentada na primeira observação acima — isto é, a de que não se
aplicam à nota as disposições relativas à letra, incompatíveis com a sua natureza
de promessa de pagamento —, decorreria a conclusão da impossibilidade de
saque daquele tipo de nota promissória. Com efeito, a letra de câmbio a certo
termo da vista tem o início da fluência do prazo de vencimento condicionado ao
aceite. Ora, como o aceite simplesmente não existe na nota promissória, não se
poderia transpor o mesmo mecanismo a esse título de crédito. Contudo, na
medida em que a lei disciplinou a figura, tais obstáculos são superados. Funciona
assim: o subscritor promete pagar quantia determinada, ao término de prazo por
ele definido e cujo início se opera a partir do visto, a ser oportunamente dado na
nota (“trinta dias após o visto, pagarei por essa única via de nota promissória
etc.”). O portador da cambial, no caso, tem o prazo de um ano, a contar do
saque, para apresentá-la ao visto do subscritor. Praticado o ato, começa a fluir o
termo mencionado no título, e, consumado esse, dá-se o vencimento. Se, por
outro lado, o visto é negado pelo subscritor, caberá ao portador protestar a nota,
correndo o prazo de vencimento a partir da data do protesto.
As quatro observações acima — a) inaplicabilidade das regras
incompatíveis com a natureza de promessa de pagamento da nota; b)
equiparação do subscritor da nota ao aceitante da letra; c) subscritor da nota é o
avalizado, no aval em branco; d) a nota promissória a certo termo da vista vence
depois de decorrido o prazo nela mencionado, a partir do visto —, ajustam o
regime da letra de câmbio ao da nota. No tocante ao saque, endosso, aval,
vencimento, pagamento, protesto, ação cambial e prescrição são idênticas as
normas aplicáveis aos dois títulos.
Capítulo 13
CHEQUE
1. CONCEITO DE CHEQ UE
Cheque é ordem de pagamento à vista, emitida contra um banco, em
razão de provisão que o emitente possui junto ao sacado, proveniente essa de
contrato de depósito bancário ou de abertura de crédito. Para parte da doutrina
comercialista, trata-se de título de crédito impróprio, mais bem definido como
meio de pagamento do que como instrumento de circulação creditícia. É o
entendimento, por exemplo, de Fran Martins, que conclui da necessidade da
provisão de fundos, do emitente junto ao sacado, a descaracterização do crédito
em abstrato (1986:11). Também Pontes de Miranda nega ao cheque,
expressamente, a condição de título de crédito, afirmando tratar-se de
instrumento de apresentação e resgate, de perfil cambiariforme (1956, 37:10). A
maioria dos autores brasileiros, no entanto, afirma a sua natureza de título de
crédito próprio, isto é, sujeito às regras de circulação e cobrança do direito
cambiário (Bulgarelli, 1979:257/258; Borges, 1971:161; Requião, 1971, 2:397). Da
discussão não se seguem consequências de relevo, porque a legislação disciplinar
do cheque é satisfatoriamente detalhada (LC: Lei n. 7.357/85). Se ela fosse
lacunosa, aí sim poderiam existir dúvidas sobre a constituição e circulação do
documento — se cambial ou civil —, cabendo, então, o aprofundamento da
discussão sobre a sua natureza, como modo de solucioná-las.
O cheque é título de crédito de modelo vinculado, só podendo ser
eficazmente emitido no papel fornecido pelo banco sacado (em talão ou avulso).
Por essa razão, não costuma gerar incertezas a eficácia chéquica de certo
documento. Quero dizer, a nota promissória pode ser lançada em qualquer papel,
apresentando os mais variados padrões, já que é título de modelo livre. Assim,
por vezes, discute-se se um documento em particular, a que se denominou “nota
promissória”, efetivamente produz os efeitos cambiários de uma. A superação do
problema depende, no caso, da análise do atendimento aos requisitos legais
relativos à promessa (LU, arts. 75 e 76). Mas o mesmo quadro raramente se
encontra, na hipótese de crédito documentado em cheque, devido a sua qualidade
de título de modelo vinculado. De qualquer forma, para se definir se determinado
papel, que, embora atenda aos parâmetros regulamentares de padronização do
cheque, teve sua eficácia cambial posta em questão, o critério será a aferição do
atendimento aos requisitos legais do título.
Cheque é a ordem de
pagamento à vista, emitida
contra um banco, em razão de
fundos que o emitente possui
junto ao sacado.
Nesse sentido, são essenciais ao cheque (LC, arts. 1º e 2º): a) a palavra
“cheque”, escrita no texto do título, na língua empregada para a sua redação; b) a
ordem incondicional de pagar quantia determinada; c) o nome do banco a quem
a ordem é dirigida (sacado); d) data do saque; e) lugar do saque ou menção de
um lugar junto ao nome do emitente; f) assinatura do emitente (sacador).
O primeiro requisito (a) corresponde à “cláusula cambial”, isto é, à
manifestação da vontade do emitente, no sentido de se obrigar por título cuja
circulação e cobrança seguem o regime próprio do direito cambiário. Quando
alguém assina um cheque, expressa sua concordância com a negociação do
crédito, pelo sacado, junto a terceiros desconhecidos, perante os quais não
poderão ser opostas exceções fundadas na relação originária do título. Todo o
complexo normativo decorrente dos princípios da cartularidade, literalidade e
autonomia das obrigações cambiais, e demais regras próprias aos títulos de
crédito são, desse modo, aceitas pelo emitente, no momento do saque. Ninguém
está obrigado a documentar sua dívida por cheque; se o faz, concorda em vir a
pagar, eventualmente, o valor do título a terceiro portador de boa--fé, mesmo
que tenha razões juridicamente válidas para questionar a existência ou extensão
da dívida, perante o credor originário. Não se trata, assim, de mera formalidade,
encerrada em si mesma, a exigência da palavra “cheque” no texto do
documento.
No atendimento ao segundo requisito (b), o cheque precisa o valor que o
banco sacado deve pagar ao credor do título. Entre a indicação por extenso e em
algarismos, a primeira prevalece em caso de divergência (LC, art. 12). Por outro
lado, é proibida a previsão de juros, para cobrir o lapso entre o saque do cheque e
o dia de sua liquidação pelo sacado (LC, art. 10); os juros somente poderão ser
exigidos na cobrança judicial do cheque não liquidado, quando incidem a partir
da data da entrega do título ao banco sacado (LC, art. 53, II).
O nome do banco a quem a ordem de pagamento é dirigida deve constar
também do título (c), sendo comum a designação de uma agência da instituição
financeira sacada, em que se encontra centralizada a administração dos fundos
titularizados pelo emitente do cheque.
A data do saque (d) deve ser expressa pelo dia, mês e ano em que o
sacador preencheu o cheque. Como se trata de ordem de pagamento à vista, não
caberia, em princípio, a inserção de qualquer outra data no instrumento.
Desenvolveu-se, no Brasil, no entanto, a prática de utilizar o cheque como meio
de documentar a concessão de crédito ao consumidor, com a indicação de data
futura no campo próprio do título (pós-datação), representando o acordo das
partes quanto ao momento em que o título deve ser liquidado (item 2). O direito
brasileiro já contemplou norma obrigando que o mês se indicasse por extenso no
cheque. Era o Dec. n. 22.393/33, que alguns autores ainda reputam em vigor
(Martins, 1986:40). De qualquer forma, é da conveniência do sacador que o mês
se escreva extensivamente, e não em algarismos, para que se reduzam as
possibilidades de adulteração da data.
O lugar do saque (e) é aquele em que se encontra o sacador, no momento
em que preenche o cheque. Sua importância é fundamental, porque o prazo para
a apresentação do título ao banco sacado varia de acordo com a coincidência, ou
não, entre o município do local do saque e o da agência pagadora. Quando
coincidentes, o cheque se considera da mesma praça e deve ser apresentado ao
sacado nos 30 dias seguintes ao da emissão; se incoincidentes, ele é de praças
diferentes, e o prazo de apresentação se alarga para 60 dias. Note-se que o
sacador deve informar o lugar em que ele se encontra, quando expede a ordem
de pagamento. A força do hábito, no entanto, faz com que a maioria de nós
lancemos, como local de emissão, o município de nossa residência, ainda que
estejamos em viagem pelo país. A segurança das relações jurídicas importa a
presunção absoluta de que o escrito é verdadeiro; quer dizer, não interessa onde
de fato se encontrava o sacador, no momento do saque, mas exclusivamente o
constante do título. O credor, ao receber sem oposição o cheque, manifestou sua
concordância com a redução do prazo de apresentação.
Também é requisito essencial do cheque a assinatura do emitente ( f), que
pode ser mecânica, ou por processo equivalente, por exemplo eletrônico (LC, art.
2º, parágrafo único). O sacador deve estar, por outro lado, identificado no
cheque, por meio de seu nome e do número de inscrição no Cadastro de Pessoas
Físicas (CPF), em razão do disposto no art. 3º da Lei n. 6.268/75, e da disciplina
regulamentar do Banco Central.
Há, ainda, um requisito essencial do direito brasileiro, para os cheques
superiores a R$ 100,00, que é a identificação do tomador, da pessoa em favor de
quem é passada a ordem de pagamento. Cheques ao portador somente são
liquidados se o valor é de até R$ 100,00, inclusive (Lei n. 9.069/95, art. 69). Além
dos requisitos acima listados, indispensáveis à eficácia chéquica do documento,
convém ao título mencionar o lugar do pagamento, ou indicar um local ao lado
do nome do sacado, para essa finalidade. Caso não se encontre essa menção no
cheque, reputa-se pagável no lugar da emissão, ou no designado ao lado do nome
do emitente (LC, art. 2º, I).
1.1. Circulação do Cheque
O cheque tem implícita a cláusula “à ordem”, significa dizer que se
transmite normalmente mediante endosso. O endossante, é claro, torna-se
codevedor do título e está sujeito à execução, caso o cheque seja devolvido pelo
banco sacado por insuficiência de fundos. O endosso do cheque admite a cláusula
“sem garantia”, pela qual o endossante não assume, em relação ao título,
nenhuma responsabilidade cambial. Cabe, também, no cheque, o endossomandato, em que o endossatário se investe na condição de mandatário do
endossante e não se torna o titular do crédito (LC, art. 26).
Poderá o emitente inserir no cheque a cláusula “não à ordem”, hipótese
em que a sua circulação será regida pelo direito civil. Lembrem--se as duas
diferenças entre o endosso e a cessão civil de crédito: o transmitente responde
pela solvência do devedor quando endossante (LC, art. 21), mas não responde se
é cedente; o recebedor está imunizado perante exceções pessoais se endossatário
(LC, art. 25), mas não está quando é cessionário do crédito. Importa registrar que
não se confundem o cheque “não à ordem” e o “não transmissível”, que a
legislação uniforme de Genebra, de 1931, prevê (Anexo II, art. 7º). O primeiro,
como se disse, circula de acordo com o regime do direito civil, mas a sua
transmissão e negociação não é vedada. Já o cheque “não transmissível” ostenta
cláusula obstativa de qualquer ato de circulação do crédito, definindo-se, no
momento do saque, a única pessoa em favor da qual o cheque poderá ser
liquidado. O Brasil, ao aderir à Convenção de uniformização da lei do cheque,
em 1942, assinalou a reserva que o autoriza a introduzir, em sua legislação, a
cláusula de intransmissibilidade do cheque. Como, no entanto, não cuidou o
legislador de contemplar a hipótese, em 1985, conclui-se que, por enquanto, o
direito brasileiro não admite o cheque “não transmissível”. Qualquer cláusula
inserida no cheque, para impedir a sua negociação, é inválida e ineficaz,
reputando-se, no caso, o título plenamente negociável mediante endosso.
O cheque “não à ordem” é
transferível mediante cessão
civil de crédito. Não se
confunde com o cheque “não
transmissível”,
que
não
circula.
Sobre a circulação do cheque, importa registrar, finalmente, que a
legislação tributária, quando elege a movimentação financeira como fato
imponível de imposto, costuma limitar o número de endosso que o cheque pode
receber, com o objetivo de forçar a verificação da hipótese de incidência, isto é,
a constituição da obrigação de pagar o tributo. De constitucionalidade
questionável, essas limitações impedem que o cheque tenha mais de um endosso.
Da vedação de mais de um endosso, surgem, inclusive, problemas para
atividades de fomento mercantil, que geralmente faturizam cheques pós-datados.
Pois bem, nos períodos de incidência de norma tributária limitativa de endosso,
nenhum problema há na transferência do crédito documentado pelo cheque, por
meio de cessão civil. Assim, desde que o tomador, ao transmiti-lo para o
endossatário (primeiro e único endosso), insira a cláusula “não à ordem” no seu
ato translativo (LC, art. 21, parágrafo único), o cheque passa a circular por
cessão civil, ato não limitado pela lei tributária. A transmissão do crédito pode se
multiplicar, sem qualquer limitação quantitativa, sob o regime do direito civil. O
banco sacado não pode se recusar a liquidar o cheque, que circulou dessa forma,
não interessando o número de cedentes e cessionários.
1.2. Modalidades
Há quatro modalidades de cheque: a) visado; b) administrativo; c)
cruzado; d) para se levar em conta.
O cheque visado é aquele em que o banco sacado, a pedido do emitente
ou do portador legítimo, lança e assina, no verso, declaração confirmando a
existência de fundos suficientes para a liquidação do título (LC, art. 7º). Somente
pode receber visamento o cheque nominativo ainda não endossado.
Ao visar o cheque, o banco sacado deve reservar, da conta de depósito do
emitente, numerário bastante para o pagamento do título, realizando o
lançamento de débito correspondente. Os efeitos do visamento estão limitados ao
prazo de apresentação do cheque, de modo que, após o seu transcurso, caso o
cheque não lhe tenha sido apresentado, o banco estorna a reserva, lançando o
respectivo crédito na conta de depósito do emitente. A mesma operação deve ser
feita, se o cheque visado é apresentado ao banco sacado para inutilização.
O visto do cheque não exonera o emitente, endossantes e demais
devedores, e não importa nenhuma obrigação cambial do banco sacado. Em
decorrência, sendo o cheque visado apresentado ao sacado, para liquidação,
depois de vencido o prazo de apresentação, e não havendo suficiente provisão de
fundos, ele será restituído ao apresentante, que não poderá responsabilizar o
banco pelo cheque. A instituição financeira somente poderá ser responsabilizada,
se deixou de proceder à reserva que a lei determina, mas isso não em
decorrência do direito cambiário, mas sim pelas normas gerais de
responsabilidade civil, por ato culposo. Aliás, no direito brasileiro anterior a 1985,
havia o cheque marcado, em que o banco, em vez de liquidar prontamente o
título, podia designar outra data para o pagamento, tornando-se, nesse caso,
codevedor da obrigação cambial do emitente. O cheque marcado não existe
mais no direito brasileiro, é incompatível com a legislação uniforme do assunto.
É certo, portanto, que o visamento não produz efeitos iguais aos da marcação,
restando ao credor do cheque visado sem fundo apenas a alternativa de executar
o emitente ou eventuais endossantes e avalistas.
As modalidades de cheque são
quatro: visado, administrativo,
cruzado e para se levar em
conta.
O cheque administrativo é o emitido pelo banco sacado, para liquidação
por uma de suas agências. Nele, emitente e sacado são a mesma pessoa (LC, art.
9º, III); ou seja, a instituição financeira ocupa, simultaneamente, a situação
jurídica de quem dá a ordem de pagamento e a de seu destinatário. O
pressuposto do cheque administrativo, também chamado bancário, é a
nominatividade. Se a lei admitisse sua emissão “ao portador”, poderia o título de
uma instituição financeira conceituada acabar substituindo o papel-moeda. Serve
essa modalidade de cheque ao aumento da segurança no ato de recebimento de
valores. O vendedor de imóvel, ao outorgar a escritura ao comprador, em
negócio à vista, normalmente exige o pagamento em cheque administrativo de
banco de primeira linha, porque a probabilidade de esse título não ter fundos é
remotíssima.
A terceira modalidade é a do cheque cruzado. O cruzamento se realiza
pela aposição, no anverso do cheque, de dois traços transversais e paralelos.
Tanto o emitente como qualquer portador podem cruzar o título (LC, art. 44). Há
duas espécies de cruzamento: o geral (ou “em branco”), que não identifica
nenhum banco no interior dos dois traços; e o especial (ou “em preto”), em que
certo banco é identificado, por seu nome ou número no sistema financeiro, entre
os mesmos traços. O cruzamento se destina a tornar segura a liquidação de
cheques ao portador, já que, uma vez cruzado o título, sempre seria possível, a
partir de consulta aos assentamentos do banco, saber em favor de que pessoa ele
foi liquidado. O cheque não cruzado ao portador pode ser pago diretamente no
caixa da agência sacada, hipótese em que não se poderá conhecer a pessoa que
recebeu o correspondente valor. Claro que a utilidade do cruzamento é reduzida,
no direito brasileiro, em razão da obrigatoriedade da forma nominativa dos
cheques superiores a R$ 100,00.
O cheque com cruzamento geral somente pode ser pago a um banco.
Desse modo, se o tomador concordou em receber cheque cruzado, ou ele próprio
o cruzou, deverá encaminhá-lo ao banco no qual mantém conta de depósito, para
que esse cobre o título do sacado. Já, se for especial o cruzamento, o cheque
somente poderá ser pago ao banco mencionado no interior dos dois traços; e,
assim, o tomador deverá procurar exatamente a instituição financeira designada
no cruzamento e contratar dela os serviços de recebimento do respectivo valor.
Se não possui conta no banco referido no cruzamento especial, o tomador (ou o
endossatário) deveria ter-se recusado a receber o cheque, porque somente
poderá liquidá-lo após contratar depósito bancário com aquela específica
instituição. O pagamento do cheque cruzado se realiza por lançamento na conta
de depósito titularizada pelo credor do título, se o banco encarregado da cobrança
é também o sacado.
Por derradeiro, o cheque para se levar em conta é aquele em que o
emitente ou o portador proíbem o pagamento do título em dinheiro. A cláusula
“para ser creditado em conta” deve constar do anverso do cheque, na
transversal. A praxe é inseri-la no cruzamento, com expressa menção do número
da conta de depósito do credor. Nessa modalidade, o pagamento do cheque se
reveste de grande segurança, na medida em que ou será liquidado na conta
referida pela cláusula especial, ou não se prestará a nenhuma outra finalidade.
1.3. Prazo de Apresentação
O cheque deve ser apresentado, pelo credor, ao banco sacado, para
liquidação, dentro do prazo assinalado pela lei (LC, art. 33). Para os “da mesma
praça”, o prazo é de 30 dias; para os “de praças diferentes”, 60, sempre a contar
do saque. Como referido acima, a definição de uma ou outra categoria de
cheque é feita pela comparação entre o município que consta como local de
emissão e o da agência pagadora. Se coincidentes, o cheque é considerado “da
mesma praça”; caso contrário, de “praças diferentes”. É irrelevante, para os fins
de definição do prazo de apresentação do cheque, se os municípios — do local do
saque e do estabelecimento bancário pagador — integram a mesma câmara de
compensação (art. 11 da Res. n. 1.682/90 do Banco Central).
O
cheque
deve
ser
apresentado ao banco sacado
em 30 dias, se da mesma praça,
e em 60, se de praças
diferentes.
A inobservância do prazo de apresentação acarreta a perda do direito de
executar os endossantes do cheque, e seus avalistas, se o título é devolvido por
insuficiência de fundos (LC, art. 47, II). Em princípio, o credor conserva o direito
de executar o emitente, e seus avalistas, mesmo que não tenha apresentado o
cheque no prazo. Trata-se de possibilidade reconhecida pela jurisprudência,
inclusive em razão da Súmula 600 do STF, que diz: “cabe ação executiva contra o
emitente e seus avalistas, ainda que não apresentado o cheque ao sacado no prazo
legal, desde que não prescrita a ação cambiária”. O tomador (ou endossatário)
perderá, no entanto, o direito à execução contra o emitente numa hipótese
particular. Se havia fundos na conta de depósito correspondente, durante o prazo
de apresentação, e estes deixaram de existir, por ato não imputável ao emitente,
o credor não dispõe mais da execução para receber o valor do título (LC, art. 47,
§ 3º). Imagine-se, por exemplo, que o cheque foi emitido por um dos titulares de
conta bancária conjunta, e o tomador negligenciou na apresentação tempestiva
do cheque ao sacado. Posteriormente, o outro titular da conta retirou todo o
dinheiro nela depositado. Nesse caso, a inobservância do prazo da lei importa a
impossibilidade de executar o emitente do cheque.
Contra o avalista do emitente, a falta de apresentação do título ao sacado
no prazo prescrito em lei não gera nenhuma consequência.
Ressalte-se, outrossim, que o cheque, mesmo após o transcurso dos 30 ou
60 dias da lei, ainda poderá ser apresentado ao banco sacado, para fins de
liquidação. Apenas depois de prescrita a execução — quer dizer, ultrapassados 6
meses do término do prazo de apresentação —, o sacado não poderá mais
receber e processar o cheque (LC, art. 35, parágrafo único, in fine).
2. CHEQ UE PÓS-DATADO
O cheque tem se revelado, no mercado consumidor brasileiro, o
instrumento mais ágil e apropriado à documentação do crédito concedido pelos
empresários, fornecedores de mercadorias e serviços. Ao se parcelar o preço do
fornecimento em duas ou mais vezes, tem-se preferido geralmente, para
comodidade de ambas as partes, a entrega pelo consumidor de tantos cheques
quantas forem as parcelas, emitidos com data futura (o cheque pós-datado que,
além dos círculos dos cultores do direito cambiário, todos conhecem por cheque
pré-datado). O crescente uso desse tipo de cheque representa, sem dúvida, um
certo desvio da natureza do título, criado para instrumentalizar pagamentos à
vista. A lei checária fulmina com a ineficácia absoluta a inserção, no título, de
qualquer menção contrária ao seu pagamento à vista (LC, art. 32). Ou seja, o
banco sacado deve pagar o cheque de que conste data posterior ao da
apresentação, atendidos evidentemente os demais pressupostos da liquidação
(regularidade de assinatura, existência de fundos etc.).
O cheque pós-datado é
importante instrumento de
concessão de crédito ao
consumidor. Embora a pósdatação não produza efeitos
perante o banco sacado, na
hipótese de apresentação para
liquidação, ela representa um
acordo entre tomador e
emitente.
A
apresentação
precipitada do cheque significa
o descumprimento do acordo.
O consumidor que emite e entrega cheques pós-datados, correspondentes
às prestações em que se dividiu o preço do fornecimento, corre o risco de os ver
apresentados ao sacado, antes da data estabelecida de comum acordo com o
fornecedor. Não poderá, com efeito, o banco, nessa hipótese, negar-se a liquidar
os cheques se houver, em conta, fundos bastantes ou recursos disponíveis
provenientes de contrato de abertura de crédito (conhecido como cheque
especial). O consumidor terá, contudo, direito de demandar contra o fornecedor
os prejuízos que sofrer em decorrência da quebra do contratado entre eles. É
plenamente lícito ao emitente e ao credor do cheque definirem, de comum
acordo, prazo mínimo para a apresentação do título à liquidação. A combinação,
segundo o disposto na lei, não gera nenhum efeito perante a instituição financeira
sacada, que tem o dever de simplesmente ignorar qualquer menção que torne o
cheque título de pagamento a prazo. No entanto, como em qualquer outra
hipótese de descumprimento de obrigação contratual, o fornecedor que não
observa os termos de seu acordo com o consumidor, deve indenizar as perdas
provocadas. Trata-se de mera aplicação de princípio mais que assente na teoria
da responsabilidade contratual.
Se o cheque pós-datado, portanto, apresentado ao sacado antes da data
combinada entre consumidor (emitente) e fornecedor (tomador), for liquidado,
cabe a indenização pela inadimplência da obrigação de não fazer,
contratualmente assumida — por via oral ou escrita, por meio de publicidade
(CDC, art. 30) ou de outro meio — pelo credor. A indenização corresponderá à
perda do consumidor em virtude da antecipação do desembolso, e será medida
pelos padrões gerais de remuneração de capital no período, ou pelos juros e
encargos derivados da utilização do crédito aberto pelo sacado (isto é, pelo uso do
limite do cheque especial), ou, ainda, pela não remuneração de recursos do
correntista alocados em aplicações financeiras (fundos de investimento geridos
pelo banco sacado), com ou sem cláusula de resgate automático.
Por outro lado, se o cheque pós-datado apresentado em data anterior à
combinada retornar ao empresário fornecedor, em razão de insuficiência de
fundos, uma vez promovida a sua execução judicial, terá o consumidor o direito
de, nos embargos, exigir a redução proporcional do valor da cobrança, para
compensação dos prejuízos que sofreu, em particular com o pagamento da taxa
do serviço de compensação bancária e demais encargos contratuais. Além disso,
deve o fornecedor suportar integralmente os ônus da sucumbência, prosseguindo
a execução pelo saldo remanescente, se houver. Na verdade, o ideal seria a
legislação consumerista disciplinar as relações entre o consumidor e o
fornecedor marcadas pela adoção de cheques pós-datados, de modo a retirar a
liquidez do título apresentado anteriormente à data que consta como de sua
emissão. Desse modo, tutelar-se-ia o consumidor sem se comprometer a
coerência interna da lei checária e os compromissos internacionais brasileiros. À
falta de disciplina na lei, deve-se adotar a redução proporcional acima aventada,
como meio de se prestigiar, ainda que em termos relativos, a vontade
manifestada pelas partes no contrato de consumo.
Além da responsabilidade pelos danos materiais experimentados pelo
consumidor, cabe a condenação do credor do cheque pós-datado de
apresentação precipitada, pelos danos morais que o emitente sofre na hipótese de
devolução por insuficiência de fundos. A comunicação aos bancos de dados
mantidos pelo empresariado, para a proteção do crédito (SERASA, Telecheque
etc.) ou a inscrição no Cadastro de Emitentes de Cheques Sem Fundos (CCF)
envolve, normalmente, o consumidor em situações de extremo constrangimento.
Pessoas honestas, que nunca passaram cheque sem fundos, veem dificultado ou
mesmo bloqueado o acesso ao crédito, em diversos estabelecimentos
empresariais, em decorrência na verdade do descumprimento, pelo fornecedor,
da obrigação que havia assumido de não apresentar o cheque à liquidação, antes
de certa data. Tais constrangimentos justificam a condenação do tomador do
cheque pós-datado, no pagamento de indenização moral.
Deve ser particularmente agravada a condenação, se o credor protestar o
cheque pós-datado apresentado precipitadamente e devolvido sem fundos.
Em suma, quem concorda em documentar o crédito concedido por
cheque pós-datado deve zelar pela estrita observância do acordo oral feito com o
emitente, quanto à oportunidade da apresentação à liquidação do título. Afinal, foi
no interesse de ambas as partes que se adotou essa alternativa de documentação
do crédito, preferindo-a ao saque de nota promissória ou duplicata, uso de cartão
de crédito e outras existentes.
Sobre a pós-datação, cabe, por fim, considerar alguns desdobramentos da
definição do cheque como título “bancável”. Explique-se: as instituições
financeiras, no desenvolvimento de suas atividades típicas, descontam títulos de
crédito (duplicatas e notas promissórias, fundamentalmente), antecipando ao seu
credor o valor do crédito a se realizar em data futura — na verdade, parte desse
valor, para lucrar com a diferença — e recebendo-os por endosso. Em princípio,
o cheque, no rigor de seu perfil tradicional de ordem de pagamento à vista, não
se presta ao desconto. Contudo, o larguíssimo uso da pós-datação como forma de
documentar a concessão do crédito ao consumidor, e a aceitação desse
instrumento por empresas de fomento mercantil (factoring), forçou as
autoridades monetárias a autorizarem aos bancos o desconto de cheques pósdatados, como a de qualquer outro título de crédito.
O cheque pós-datado pode
servir de título negociável,
para fins de desconto bancário
ou cessão para empresa de
fomento mercantil (factoring).
Em decorrência, se o empresário concede crédito ao consumidor,
propondo documentar a operação por meio do recebimento de cheques pósdatados, é cabível o desconto desse título, evidentemente antes da data que consta
como de emissão, junto a qualquer instituição financeira, inclusive o banco
sacado. Assim, é necessário diferenciarem-se duas situações, em que o portador
do cheque pós-datado apresenta o título ao banco sacado, antes da data que
consta como de sua emissão: a apresentação para fins de liquidação e a
apresentação para fins de desconto. Somente na primeira hipótese verifica-se o
descumprimento da obrigação de não fazer contratada com o emitente do
cheque. Na outra, o cheque é mero título bancável e o processamento da
liquidação terá início apenas na pós-data.
Importa, nesse contexto, ressaltar que, sendo o banco descontador do
cheque pós-datado também o sacado, será dele a responsabilidade pelos danos
experimentados pelo consumidor emitente, se o processamento da liquidação do
título se iniciar antes da data que consta como de emissão. Ele se encontra, aqui,
na mesma situação do banco descontador não sacado que apresenta
precipitadamente, para fins de liquidação, ao sacado o cheque pós-datado. Quer
dizer, está respondendo pelo mal funcionamento dos serviços bancários.
3. SUSTAÇÃO DO CHEQ UE
O pagamento do cheque pode ser sustado pelo emitente em duas
hipóteses: a) revogação, também chamada contraordem (LC, art. 35); b)
oposição (LC, art. 36). Em ambas, o objetivo é impedir a liquidação do cheque,
pelo banco sacado; pressupõem, portanto, não tenha essa se realizado à data da
sustação. Cheque regularmente processado e pago não pode ser, por evidente,
objeto de revogação ou oposição.
Ao banco sacado não cabe apreciar as razões do ato. Se pessoa
legalmente autorizada à sua prática, revoga o cheque ou se opõe ao seu
pagamento, o sacado deve apenas adotar os procedimentos administrativos
internos, aptos a atender a vontade dela. Se a sustação é, no caso em particular,
medida justa ou abuso de direito, isso não é coisa com que se deva preocupar o
banco. Sua função resume-se a simplesmente garantir a eficácia ao ato unilateral
do emitente. A validade ou invalidade da sustação somente pode ser determinada
pelo juiz, cabendo ao prejudicado demandar o emitente e provar o abuso no
exercício do direito.
Autorizam, em geral, a sustação os fatos de desapossamento indevido do
talão de cheques ou do título já emitido (assim a perda, o roubo, furto,
apropriação indébita etc.). Note-se que a infundada sustação do pagamento do
cheque tem os mesmos efeitos penais da emissão de cheque sem fundos; isto é,
caracteriza crime de estelionato (CP, art. 171, § 2º, VI). O emitente que a realiza,
portanto, deve ter consistentes razões jurídicas para tanto, posto que, não as tendo,
incorre em conduta típica. Convém, nesse sentido, esclarecer que não autoriza a
sustação o descumprimento da obrigação pelo portador do cheque. Imagine-se
que o prestador de serviços não finalize convenientemente a tarefa contratada, a
despeito de ter já em mãos o pagamento, representado por cheque do
consumidor. Ora, o emitente não pode sustar a liquidação do título, a pretexto de
preservar seus direitos contratuais e forçar a terminação dos serviços. Até
mesmo porque o cheque pode ter sido transferido, por endosso, a terceiro de boafé, que se encontra amparado pelo direito cambiário. Ao consumidor, no caso,
resta apenas as ações cíveis de responsabilização do empresário inadimplente.
Quem emite cheque, pratica ato de vontade, ao qual nunca está obrigado. Se o
faz, concorda com a circulação do crédito, segundo o regime de direito
cambiário. Portanto, submete-se, por sua própria vontade, a ter que satisfazer o
crédito perante terceiro de boa-fé para, depois, demandar quem se enriqueceu
indevidamente, às suas custas.
Ao banco sacado não cabe
julgar da relevância da razão
apresentada pelo interessado,
no ato de sustação de cheque
(revogação ou oposição).
O banco geralmente cobra tarifas consideráveis para acolher a sustação,
tendo em vista os custos e a dificuldade de sua operacionalização. Desde que
compatíveis com os parâmetros do mercado, não há nenhuma irregularidade na
cobrança. Irregular, porque não respaldado na lei, é a exigência, feita por muitos
bancos, de exibição, pelo emitente, do simulacro de prova do desapossamento
indevido, o Boletim de Ocorrência Policial. Se ao banco não cabe adentrar as
razões do ato de sustação, não é possível condicionar a revogação ou oposição à
apresentação de qualquer documento. Basta, com efeito, a comunicação escrita
do emitente.
As duas formas de sustação do cheque apresentam pequenas diferenças.
De um lado, a revogação é ato exclusivo do emitente, enquanto a oposição pode
também ser efetivada pelo portador legitimado. De outro, o ato revogatório
somente produz efeitos a partir do término do prazo de apresentação, caso essa
não se verifique, enquanto os da oposição são imediatos. Dessa última distinção
decorre que a contra-ordem, a rigor, é apenas o ato cambiário pelo qual o
emitente pode limitar a eficácia chéquica do título aos 30 ou 60 dias, seguintes à
emissão.
4. CHEQ UE SEM FUNDOS
Verificando o banco sacado, no procedimento de liquidação do cheque,
não possuir o emitente fundos suficientes em sua conta de depósito, deve restituir
o título a quem lho apresentara, com a declaração correspondente. Anote-se que
o banco deve pagar os cheques seguindo a ordem de apresentação. Quando dois
ou mais cheques são apresentados simultaneamente, não havendo fundos
suficientes para o pagamento, o sacado deve dar preferência aos de data de
emissão mais antiga. Se coincidentes as datas de emissão, prevalece o número
inferior (LC, art. 40).
Por norma regulamentar do Banco Central, cada cheque comporta apenas
duas apresentações, mas o credor não se encontra obrigado a realizá-las, em
nenhum caso. Ou seja, devolvido o cheque sem fundos, pode o credor promover
a cobrança judicial de imediato, sem a segunda apresentação.
Estabelece a lei que o cheque sem fundos deve ser protestado durante o
prazo de apresentação. Desse modo, se é título da mesma praça, o credor deve
encaminhá-lo ao cartório de protesto, nos 30 dias seguintes ao saque; se de praças
diferentes, nos 60. A inobservância do prazo para o protesto do cheque é,
contudo, inócua, já que a lei confere os mesmos efeitos conservativos do direito
de cobrança à declaração do sacado ou de Câmara de Compensação, atestando a
insuficiência de fundos. Quer dizer, se o cheque é sem fundos, ele foi
apresentado à liquidação perante o sacado e por esse devolvido com a respectiva
declaração (firmada por ele mesmo, ou por Câmara de Compensação). Caso
isso se tenha verificado no prazo de apresentação, a realização ou não do
protesto, dentro ou além desse prazo, não terá mais nenhum efeito cambiário, já
que está assegurada a execução contra endossantes e seus avalistas (LC, art. 47,
II).
A declaração de insuficiência de fundos, do banco sacado ou da Câmara
de Compensação, não supre o protesto para fins extracambiais. Somente para a
conservação do direito de execução contra codevedores e respectivos avalistas,
opera-se a equiparação de efeitos entre os dois atos. Assim, para fins de instrução
do pedido de falência, com base na impontualidade injustificada do devedor
comerciante, representada pela emissão de cheque sem fundos, é indispensável o
protesto do título, não bastando a declaração.
4.1. Ações Cambiais
A ação cambial é aquela em que o demandado não pode arguir, em sua
defesa, matérias estranhas à sua relação com o demandante, em razão do
princípio da inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé. A
generalidade dos títulos de crédito comporta uma única ação cambial, que é a
cobrança por meio de execução. Em relação ao cheque, o legislador prevê duas;
além da execução, cabe também a ação de enriquecimento indevido (LC, art.
61).
A execução do cheque prescreve em 6 meses, a contar do término do
prazo de apresentação. É, em princípio, irrelevante a data em que o cheque foi
apresentado ao banco sacado, e a de sua devolução. O termo inicial do prazo de
prescrição será considerado o fim do prazo de apresentação, inclusive se a
apresentação e devolução ocorrem fora desse prazo. Por exemplo, cheque de
mesma praça emitido em 2 de março prescreve em 1º de outubro do mesmo
ano. Assim é, se o cheque foi apresentado ao sacado em 5 de março (dentro do
prazo de apresentação, portanto) ou em 5 de abril (além do prazo) e
independentemente das datas em que o banco restituiu o documento ao credor.
Lembre-se, a propósito, que, para fins cambiais, os dias se contam pelos
dias (LU, art. 36). Não é correto, portanto, considerar prescrito o cheque de
mesma praça em 7 meses e o de praças diferentes em 8. A exata aplicação da
lei impõe a contagem dos 30 ou 60 dias correspondentes ao prazo de
apresentação, dia a dia, e, em seguida, a soma de 6 meses ao mês do término do
prazo. Em outros termos não se podem contar meses por dias, nem esses por
aqueles.
A regra de contagem do prazo prescricional a partir do término do de
apresentação comporta exceção unicamente no caso de cheque pós-datado, se
apresentado à liquidação antes da data de emissão nele escrita. A aplicação da
regra geral, nesse caso, de fato importaria benefício ao credor que descumpriu a
obrigação de não fazer assumida perante o emitente — isto é, a de não liquidar o
cheque antes da data acertada de comum acordo entre eles. Os 6 meses
prescricionais, na hipótese de apresentação precipitada de cheque pós-datado,
contam-se como se o saque tivesse sido realizado na data da primeira
apresentação ao sacado. Desse modo, se cheque de mesma praça, que ostenta o
dia 2 de abril como data de emissão, é apresentado ao sacado em 15 de março,
deve-se reputar prescrita a execução em 14 de outubro do mesmo ano, último
dia em que o credor ainda a pode ajuizar.
As ações cambiais do cheque
são duas: a execução, que
prescreve
nos
6
meses
seguintes ao término do prazo
de apresentação; e a de
enriquecimento indevido, que
tem natureza cognitiva e pode
ser proposta nos 2 anos
seguintes à prescrição da
execução.
Nas duas, operam-se os
princípios do direito cambiário
e, assim, o demandado não
pode arguir, na defesa, matéria
estranha à sua relação com o
demandante.
Prescrita a execução, o portador do cheque sem fundos poderá, nos 2 anos
seguintes, promover a ação de enriquecimento indevido contra o emitente,
endossantes e avalistas (LC, art. 61). Trata-se de modalidade de ação cambial, de
natureza não executiva. O portador do cheque, por meio de processo de
conhecimento, pede a condenação judicial de qualquer devedor cambiário no
pagamento do valor do título, sob o fundamento de que se operou o
enriquecimento indevido. De fato, se o cheque está sem fundos, o demandado
locupletou-se sem causa lícita, em prejuízo do demandante, e é essa, em
princípio, a matéria de discussão na ação.
Como a ação de enriquecimento indevido é cambial, se o demandante é o
endossatário do cheque e o demandado é o emitente, não poderá esse último, na
contestação, suscitar matérias pertinentes ao negócio originário do título, matérias
que, perante terceiros de boa-fé, não são oponíveis, no regime de direito
cambiário. Frise-se, entretanto, que se a demanda é promovida pelo tomador
contra o emitente, será lícito ao réu contestar o pleito discutindo a relação
jurídica originária do título. Exemplo: se Antonio tomou dinheiro emprestado de
Benedito — agiota que cobra juros usurários —, e procedeu ao pagamento do
devido por cheques, que foram regularmente endossados a Carlos, terceiro de
boa-fé, na ação de enriquecimento indevido que o último promover contra aquele
não será cabível contestar a pretensão, discutindo a limitação legal dos juros. Mas
se o cheque não circulou, na ação de enriquecimento indevido que Benedito
aforar contra Antonio, será perfeitamente discutível o excesso de juros.
Após a prescrição das ações cambiais, será ainda possível ao portador do
cheque sem fundos promover a ação causal (LC, art. 62), para fins de discutir as
obrigações decorrentes da relação originária. Claro que a admissão é
condicionada à existência de relação extracambial entre os litigantes, que é o
objeto da lide. No exemplo acima, entre Carlos e Antonio não existe nenhuma
outra relação jurídica, a não ser o próprio cheque; por essa razão, o primeiro,
depois de prescritas as ações cambiais, não é mais titular de qualquer direito
contra o segundo. Poderá apenas intentar algum processo contra Benedito, para
discutir a relação jurídica que havia justificado a transferência do título de
crédito (mútuo, responsabilidade civil etc.).
4.2. Encargos do Emitente
O emitente de cheque sem fundos é devedor do valor do cheque,
acrescido de juros, desde a data da apresentação ao banco sacado (e não do
protesto), correção monetária e reembolso das despesas em que incorreu o
credor (LC, art. 52). Desse modo, as taxas que o portador do cheque
eventualmente pagou para o seu banco, pelo frustrado serviço de compensação,
as custas desembolsadas no cartório de protesto, além das judiciais, são cobráveis
do emitente.
4.3. Repressão ao Uso de Cheque sem Fundos
O direito francês, desde 1991, quando a lei despenalizou a conduta de
emissão de cheque sem fundos, tem prestigiado um mecanismo administrativo
de sanção, chamado “interdição bancária”. De acordo com a sistemática então
adotada, os cheques de até 100 F (cem francos) são obrigatoriamente pagos pelos
bancos. A lei estabelece a presunção de crédito irrevogável para esses títulos. Em
ocorrendo, no entanto, emissão de cheque sem fundos de valor superior, o banco
requisita do cliente a restituição dos formulários ainda não utilizados e comunica
a ocorrência às demais instituições financeiras em que o emitente possui conta de
depósito, para que procedam à mesma requisição (Larguier--Larguier,
1994:147/148).
No Brasil, contudo, em que a teoria do estado mínimo em matéria penal
ainda não germinou, tipifica-se como crime de estelionato a emissão de cheques
sem a suficiente provisão de fundos (CP, art. 171, § 2 º, VI). Como estelionato, a
conduta apenas é típica se dolosa, fraudulenta e danosa. Quem emite cheque sem
fundos, por culpa (por exemplo, por negligenciar no controle do saldo), não
incorre em crime, e pode, até o recebimento da denúncia, pagar o cheque e,
com isso, obstar a ação penal (Súmula 554 do STF: “o pagamento de cheque
emitido sem provisão de fundos, após o recebimento da denúncia, não obsta ao
prosseguimento da ação penal”). No mesmo diapasão, quem age sem fraude na
emissão de cheques sem fundos não comete estelionato nem outro crime. Assim,
no caso de emissão de cheque sem fundos pós- -datado, entende-se não existir
crime pela ausência de indução do tomador em erro (Súmula 246 do STF:
“comprovado não ter havido fraude, não se configura o crime de emissão de
cheques sem fundos”). Por fim, se a emissão do título não importou prejuízo
patrimonial ao credor, também não se caracteriza o ilícito penal. O pagamento
de aluguel por cheque sem fundos não é crime porque o locador, antes e depois
do recebimento do título, conserva rigorosamente o mesmo direito, representado
pelo crédito do locativo. Quem paga duplicata com cheque sem fundos não
comete crime porque o credor continua titularizando os mesmos direitos
creditícios, após o pagamento. Há conduta típica na hipótese, por exemplo, de
aquisição de bem, por meio de cheque sem fundos: o vendedor sofre o prejuízo
patrimonial porque a propriedade da coisa se transmitiu ao emitente, pela
tradição.
A emissão de cheque sem
fundos é punida, no Brasil,
como crime. Além disso, o
emitente está sujeito a sanções
de natureza administrativa.
No âmbito administrativo, cabe ao Banco Central disciplinar a repressão
ao uso do cheque sem fundos. A sistemática vigente prevê, em suma, duas
sanções: a inscrição no CCF (Cadastro de Emitentes de Cheques Sem Fundos) e o
pagamento da taxa do Serviço de Compensação de Cheques e Outros Papéis. A
primeira é aplicável na segunda devolução do mesmo cheque, e dela decorre a
rescisão do contrato de depósito bancário e a proibição para novos contratos
desse gênero, com qualquer banco (exceto se a conta se destina ao recebimento
de salário, a ser movimentada unicamente por cheques avulsos).
A segunda sanção se aplica a cada devolução do cheque sem fundos. Ela
é conhecida, na praxe bancária, como “multa”, mas, em termos precisos e
jurídicos, representa a perda da gratuidade do serviço de compensação. De fato,
as instituições financeiras põem à disposição dos correntistas o serviço de
compensação de cheque e outros papéis, que permite a liquidação dos títulos por
meio do depósito em conta. O credor do cheque (não cruzado), ao invés de se
dirigir à agência pagadora para receber o numerário correspondente, entrega-o
ao banco no qual mantém contrato de depósito e ele se encarrega do
recebimento do valor junto ao sacado. O serviço tem sido gratuito para os
cheques com fundo, mas deve ser pago na hipótese de insuficiência de fundos. A
tarifação da compensação frustrada por falta de provisão é expressamente
autorizada pelo Banco Central, como medida repressora dos cheques sem fundos
(Res. 1.682/90). Note-se que a taxa do serviço de compensação pode ser cobrada
tanto do emitente do cheque, como do apresentante, que preferiu se utilizar dos
serviços prestados pelo seu banco a se deslocar até a agência pagadora do banco
sacado, ganhando com isso tempo e segurança na operação.
Capítulo 14
DUPLICATA
1. INTRODUÇÃO
A duplicata é título de crédito criado pelo direito brasileiro. Sua origem se
encontra no Código Comercial de 1850, que impunha aos comerciantes
atacadistas, na venda aos retalhistas, a emissão da fatura ou conta — isto é, a
relação por escrito das mercadorias entregues. O instrumento devia ser emitido
em duas vias (“por duplicado”, dizia a lei), as quais, assinadas pelas partes,
ficariam uma em poder do comprador, e outra do vendedor. A conta assinada
pelo comprador, por sua vez, era equiparada aos títulos de crédito, inclusive para
fins de cobrança judicial. A sistemática do Código, no entanto, parece não ter
sido largamente aplicada, havendo quem atribua a ineficácia da norma à
honestidade no cumprimento das obrigações, que existiria no passado entre
comerciantes (Borges, 1971:204). Não se deve, contudo, esquecer que o baixo
grau de alfabetização no Brasil da era imperial deve ter contribuído para a
informalidade das transações, ou seja, para a impossibilidade de disseminação da
prática de documentação escrita das obrigações contratadas.
Com a legislação cambiária de 1908, foi revogada a norma que atribuía à
conta assinada os efeitos de título de crédito, permanecendo em vigor, mas ainda
ineficaz, a obrigatoriedade da fatura em duas vias, nas operações entre
comerciantes. Anota a doutrina, também, que o comércio resistiu à adoção da
letra de câmbio e da nota promissória (Requião, 1971, 2:438), continuando, ao
que tudo indica, a prevalecer a informalidade nas transações. A sistemática
criada pelos elaboradores do Código Comercial de 1850 somente foi resgatada,
para atender a necessidade de ordem fiscal. Em 1915, o governo tentou tornar
obrigatória a emissão das faturas, para fins de controlar a incidência do imposto
do selo. Nos anos 1920, o I Congresso das Associações Comerciais sugeriu a
criação, por lei, de um título — a “duplicata da fatura” — que atendesse às
exigências do fisco e possibilitasse a circulação do crédito. A ideia concretizou-se
em lei na década seguinte, quando o comércio passou a se utilizar do novo título.
A duplicata é título de crédito
criado pelo direito brasileiro.
À sua larga utilização deve-se
a quase inexistência da letra de
câmbio no comércio nacional.
A duplicata, assim, é título nascido como instrumento de controle de
incidência de tributos. Os comerciantes, ao realizarem operações de venda,
estavam obrigados a emitir a duplicata e, ao assiná-las, deveriam inutilizar
estampilhas previamente adquiridas nas repartições fiscais (colando-as no título e
lançando sobre elas a assinatura). Provavelmente deve-se à ligação com o
procedimento tributário a vulgarização do instituto e o larguíssimo uso da
duplicata entre os comerciantes, no Brasil. De fato, e ao contrário do que se
verifica nos países aos quais nosso direito tradicionalmente se vincula, as letras de
câmbio e notas promissórias têm presença insignificante, na documentação do
crédito comercial nas operações de comércio nacional, graças à intensa
utilização do título príncipe do direito brasileiro (assim o chamou Tullio Ascarelli;
Martins, 1980:174).
No fim dos anos 1960, já completamente extinta a vetusta prática de
controle de incidência de tributos por inutilização de estampilhas, a disciplina
jurídica da duplicata passou por nova mudança, com a edição da Lei n. 5.474/68
(LD) e do Decreto-Lei n. 436/69, que a alterou parcialmente. A partir de então, o
título passa a ter funções de exclusiva natureza comercial, relacionadas à
constituição, circulação e cobrança do crédito nascido de operações mercantis ou
de contratos de prestação de serviços, desvencilhando-se dos aspectos fiscais que
o cercavam.
A diferença essencial entre a letra de câmbio e a duplicata reside no
regime aplicável ao aceite. De fato, enquanto o ato de vinculação do sacado à
cambial é sempre facultativo (quer dizer, mesmo que devedor, o sacado não se
encontra obrigado a documentar sua dívida pela letra), no título brasileiro, a sua
vinculação é obrigatória (ou seja, o sacado, quando devedor do sacador, se
obriga ao pagamento da duplicata, ainda que não a assine). É irresistível tentar
relacionar o regime jurídico do aceite da duplicata e alguns traços próprios da
cultura brasileira: numa terra em que muitos não consideram imoral ou vexatório
o inadimplemento de dívidas, o crédito não poderia ser documentado em título de
eficácia condicionada a formalidades do devedor. De qualquer forma, é a figura
do aceite obrigatório — e não a causa ligada a operações mercantis, como
entende parte da doutrina (cf. Zortéa, 1983) — a particularidade característica da
invenção jurídica nacional. Nesse sentido, somente se pode reputar produto da
influência do direito brasileiro o título de crédito que, a exemplo da factura
conformada argentina, comporta execução mesmo sem a assinatura do devedor.
O extracto de fatura português, a desusada facture protestable, que o direito
francês criou em 1967 e aboliu em 1981, e a trade acceptance norte-americana
não podem, por tal motivo, ser entendidos como expansão do título brasileiro.
Por outro lado, é sobretudo importante registrar que a nossa lei da década
de 1960, ao aprimorar a disciplina de institutos típicos da duplicata, como o aceite
obrigatório (LD, art. 8º), o protesto por indicações (LD, art. 13, § 1º) e a execução
do título não assinado (LD, art. 15, I), acabou criando — sem o querer,
evidentemente — as condições necessárias ao desenvolvimento dos meios
informatizados de registro, circulação e cobrança do crédito. Nos outros países, a
desmaterialização dos títulos de crédito exigem mudanças no direito positivo. No
Brasil, graças à duplicata e ao seu regime jurídico específico, tais mudanças são
por tudo desnecessárias, porque o arcabouço jurídico do título é plenamente
compatível com a nova realidade do registro do crédito comercial.
São duas as duplicatas: a mercantil e a de prestação de serviços. Por
razões de ordem exclusivamente didáticas, tratarei, a partir de agora, apenas da
primeira. Da duplicata de prestação de serviços cuido no item 6, juntamente com
a conta de serviços.
2. CAUSALIDADE DA DUPLICATA MERCANTIL
A duplicata mercantil é título causal, no sentido de que a sua emissão
somente se pode dar para a documentação de crédito nascido de compra e venda
mercantil. A consequência imediata da causalidade é, portanto, a insubsistência
da duplicata originada de ato ou negócio jurídico diverso. Assim, se o mutuante
saca duplicata, para representar crédito concedido ao mutuário, o documento não
pode ser tratado como tal, malgrado atender aos requisitos formais da lei. Outro
exemplo: se o locador de veículos emite duplicata para cobrar o devido pelo
locatário, o ato extrapola a autorização da lei, que não alcança a atividade de
locação. Claro que, sendo endossado a terceiro de boa-fé, em razão do regime
cambiário aplicável à circulação do título (LD, art. 25), a falta de causa legítima
não poderá ser oposta pelo sacado perante o endossatário. A ineficácia do título
como duplicata, em função da irregularidade do saque, somente pode ser
invocada contra o sacador, o endossatário-mandatário ou terceiros de má-fé
(quer dizer, os que conhecem o vício na emissão do título).
Da causalidade da duplicata, note-se bem, não é correto concluir qualquer
limitação ou outra característica atinente à negociação do crédito registrado pelo
título. A duplicata mercantil circula como qualquer outro título de crédito, sujeita
ao regime do direito cambiário. Isso significa, em concreto, que ela comporta
endosso, que o endossante responde pela solvência do devedor, que o executado
não pode opor contra terceiros de boa-fé exceções pessoais, que as obrigações
dos avalistas são autônomas em relação às dos avalizados etc. Não é jurídico
pretender vinculação entre a duplicata e a compra e venda mercantil, que lhe
deu ensejo, maior do que a existente entre a letra de câmbio, a nota promissória
ou o cheque e as respectivas relações originárias. Pontes de Miranda (1956,
36:16) e até mesmo Tullio Ascarelli (1946) se preocupam, especialmente, em
esclarecer a questão: a circulação da duplicata se opera segundo o princípio da
abstração.
A duplicata mercantil é título
causal no sentido de que a sua
emissão somente pode ocorrer
na hipótese autorizada pela lei:
a documentação de crédito
nascido da compra e venda
mercantil.
No Brasil, o comerciante somente pode emitir a duplicata para
documentar o crédito nascido da compra e venda mercantil. A lei proíbe
qualquer outro título sacado pelo vendedor das mercadorias (LD, art. 2º), em
dispositivo que exclui apenas a juridicidade da letra de câmbio. Com efeito, a
nota promissória e o cheque pós-datado são plenamente admissíveis, no registro
do crédito oriundo de compra e venda mercantil, porque são sacados pelo
comprador, escapando assim à proibição da lei.
Até 1968, a emissão da duplicata era obrigatória nas operações a prazo.
Hoje vigora a facultatividade. Em nenhuma situação, o comerciante tem dever
de sacá-la, mesmo quando costuma se utilizar do título, para os negócios em
geral. Desse modo, e considerando-se a proibição de saque de qualquer outro
documento cambiário, pode-se dizer que o comerciante tem duas opções: emitir
a duplicata ou não emitir título nenhum. De se notar, também, que a lei impõe ao
empresário que opta pelo saque da duplicata o dever de escriturar um livro
obrigatório, o Livro de Registro de Duplicatas (LD, art. 19). A falência de
emitente do título, sem a devida escrituração, caracteriza crime falimentar (LF,
art. 178), mesmo quando o sacador é microempresário ou empresário de
pequeno porte.
O Código Penal, até 1990, para proteger o crédito comercial e reprimir o
uso de títulos simulados para obtenção de financiamento bancário, considerava
crime a emissão e o aceite de duplicata não correspondente a efetiva compra e
venda mercantil ou prestação de serviços. A mudança na redação do tipo do art.
172, operada pela Lei n. 8.137/90, porém, substituiu o bem jurídico protegido. A
partir dela, crime passou a ser expedir duplicata em desacordo com a mercadoria
vendida. Desse modo, a tutela penal redirecionou-se, para amparar não mais o
crédito, e sim os consumidores. Emitir duplicata sem causa, desde então, não é
mais conduta típica (Coelho, 1996).
3. ACEITE DA DUPLICATA MERCANTIL
De acordo com a sistemática prevista pela lei — que, hoje, se encontra
parcialmente em desuso —, o comerciante, ao realizar qualquer venda de
mercadorias, deve extrair a fatura ou a nota fiscal-fatura. Nos dois casos, ele
elabora documento escrito e numerado, em que discrimina as mercadorias
vendidas, informando quantidade, preço unitário e total. A duplicata será emitida
com base nesse instrumento. Para o direito comercial, é irrelevante se o
documento básico será a fatura ou a nota fiscal-fatura, servindo ambas à
finalidade de preparar a criação da duplicata. Diferenças há, entre uma e outra
forma, apenas para o direito tributário. Esse procedimento deve ser adotado,
tanto para as vendas à vista, como a prazo (LD, arts. 1º e 3º, § 2º).
Emitida a fatura, no mesmo ato poderá ser extraída a duplicata, obedecido
o padrão fixado pelo Conselho Monetário Nacional (LD, art. 27; Res. BC n.
102/68) e atendidos os seguintes elementos: a) a denominação “duplicata” e a
cláusula “à ordem”, autorizando a circulação do título por endosso; b) data de
emissão, que deve ser igual à da fatura; c) os números da fatura e da duplicata,
que podem ou não coincidir tendo em vista a obrigatoriedade da primeira e a
facultatividade da segunda; d) data de vencimento ou cláusula à vista, sendo
vedadas as modalidades de vencimento a certo termo; e) nome e domicílio do
vendedor (sacador); f) nome, domicílio e número de inscrição no Cadastro de
Contribuintes do comprador (sacado); g) importância a pagar, em algarismos e
por extenso; h) local de pagamento; i) declaração de concordância, para ser
assinada pelo sacado; j) assinatura do sacador (LD, art. 2º, § 1º).
Nos 30 dias seguintes à emissão, o sacador deve remeter a duplicata ao
sacado. Se o título é emitido à vista, o comprador, ao recebê-lo, deve proceder ao
pagamento da importância devida; se a prazo, ele deve assinar a duplicata, no
campo próprio para o aceite, e restituí-la ao sacador, em 10 dias. Isto, por
evidente, se não existirem motivos para a recusa do aceite, hipótese em que a
duplicata é devolvida ao vendedor acompanhada da exposição deles (LD, art. 7º
e § 1º).
Ressalte-se, contudo, que a recusa do aceite da duplicata não pode ocorrer
por simples vontade do sacado. Quem recebe, como destinatário da ordem de
pagamento, uma letra de câmbio para aceite, pode recusar-se a assumir a
obrigação cambial, ainda que o emitente do título seja seu incontestável credor.
Quer dizer, o sacado da letra de câmbio pode negar-se a documentar sua dívida
por título de circulação cambial, simplesmente porque não quer se ver obrigado
perante terceiros de boa-fé. A mesma prerrogativa não é dada ao destinatário da
duplicata, já que circunscreve a lei as hipóteses únicas em que a recusa do aceite
é admissível. Fora delas a vinculação do sacado ao título de crédito independe de
sua vontade, posto que previamente definida pelo direito.
Dispõe o art. 8º da lei das duplicatas que a recusa só pode ocorrer nos
seguintes casos: a) avaria ou não recebimento das mercadorias, quando
transportadas por conta e risco do vendedor; b) vícios, defeitos e diferenças na
qualidade ou na quantidade; c) divergência nos prazos ou preços combinados. Em
suma, se o comprador das mercadorias é devedor do preço correspondente —
porque o vendedor cumpriu com as suas obrigações, na execução do contrato de
compra e venda —, então ele não pode se recusar a ver sua dívida documentada
por um título de efeitos cambiários, a duplicata.
O aceite da duplicata é
obrigatório porque, se não há
motivos para a recusa das
mercadorias enviadas pelo
sacador, o sacado se encontra
vinculado ao pagamento do
título, mesmo que não o assine.
Aceite obrigatório, portanto, não é o mesmo que irrecusável. Quando o
vendedor não cumpriu satisfatoriamente suas obrigações, o comprador pode se
exonerar do cumprimento das suas. A recusa do aceite cabe nessa situação. Mas,
se houve satisfatória execução do contrato pelo vendedor, a emissão da duplicata
é suficiente para vincular o comprador ao seu pagamento, dispensando-se a sua
assinatura no título, para a formalização do aceite.
Em razão da obrigatoriedade do ato de vinculação do sacado à duplicata,
podem-se divisar, em relação a esse título, três modalidades de aceite: ordinário,
por presunção e por comunicação.
A primeira espécie de aceite da duplicata (ordinário) resulta da assinatura
do devedor no campo próprio do documento, isto é, no canto esquerdo inferior do
título, segundo o padrão do CMN. Essa forma de vincular o sacado ao pagamento
da duplicata somente cabe na hipótese de utilização do suporte papel. Se a
duplicata é emitida em meio eletrônico, não é materializável a assinatura de
próprio punho.
A duplicata que ostenta o aceite ordinário torna-se título de crédito sem
nenhuma especificidade. Aplicam-se-lhe integralmente, nesse caso, as regras do
direito cambiário, inclusive no tocante à facultatividade do protesto contra o
devedor principal e responsabilidade dos codevedores. Ou seja, a duplicata com
aceite ordinário é título executivo extrajudicial contra o sacado e seu avalista,
independentemente de se encontrar protestada, ou não (LD, art. 15, I).
Na execução de duplicata com aceite ordinário, justificam-se maiores
cautelas na constatação de sua causa. Como atualmente o crédito comercial é
registrado em meio eletrônico, na maioria das vezes, torna-se inusual a assinatura
da duplicata pelo devedor para obrigar-se por crédito oriundo de compra e venda
mercantil. Assim, os embargos do aceitante, no sentido de se tratar a duplicata
excutida de documento simulado, assinado sob coação, para assegurar o
recebimento de juros usurários, devem ser cuidadosamente apreciados pelo juiz,
porque são, com muita chance, verdadeiros.
O aceite por presunção decorre do recebimento das mercadorias pelo
comprador, quando inexistente recusa formal. Trata-se da forma mais
corriqueira de se vincular o sacado ao pagamento da duplicata. Caracteriza-se o
aceite presumido, mesmo que o comprador tenha retido ou inutilizado a
duplicata, ou a tenha restituído sem assinatura. Desde que recebidas as
mercadorias, sem a manifestação formal de recusa, é o comprador devedor
cambiário, independentemente da atitude que adota em relação ao documento
que lhe foi enviado.
Com a utilização do meio eletrônico para fins de registro do crédito, o
aceite por presunção tende a substituir definitivamente o ordinário, até mesmo
porque a duplicata não se materializa mais num documento escrito, passível de
remessa ao comprador.
Por fim, cabe mencionar-se o aceite por comunicação, introduzido em
1968. Essa modalidade é, das três, a menos usual, de existência praticamente
nenhuma. Opera-se — desde que a instituição financeira descontadora,
mandatária ou caucionada o autorize — mediante a retenção da duplicata pelo
comprador e envio de comunicação escrita ao vendedor, transmitindo seu aceite.
O instrumento da comunicação, necessariamente em suporte papel, pode ser
carta, telegrama ou telecópia (fax), não se admitindo mensagens transmitidas e
arquivadas em meio eletrônico (E-mail). O documento, em que o comprador
comunicou ao vendedor o aceite, substitui a duplicata para fins de protesto e
execução (LD, art. 7º, § 2º). A figura está condenada à breve extinção, na
medida em que se choca de frente com o processo de despapelização do registro
do crédito.
4. PROTESTO DA DUPLICATA MERCANTIL
A duplicata, diz a lei, é protestável por falta de aceite, devolução ou
pagamento (LD, art. 13). Na verdade, o título de crédito comporta protesto único,
que será de uma dessas categorias, de acordo com a circunstância em que for
efetivado. Em outros termos, a duplicata recusada, retida e impaga será
protestada uma só vez; pouco importa o tipo de protesto, porque os seus efeitos
são idênticos, em qualquer hipótese.
Assim, se o credor encaminha a cartório a duplicata sem a assinatura do
devedor, antes do vencimento, o protesto será por falta de aceite. Se encaminha a
triplicata não assinada ou as indicações relativas à duplicata retida, também antes
do vencimento, o protesto será tirado por falta de devolução. Finalmente, se
encaminha a duplicata ou triplicata, assinadas ou não, ou apresenta as indicações
da duplicata, depois de vencido o título, o protesto será necessariamente por falta
de pagamento (Lei n. 9.492/97, art. 21, §§ 1º e 2º). São as circunstâncias em que o
título é apresentado ao cartório que definem a natureza do protesto.
O lugar do pagamento é também o do protesto (LD, art. 13, § 3º). Os
cartórios devem, por isso, recusar a protocolização quando verificada — no
exame formal prévio, de caráter indispensável — a discrepância entre a base
territorial de sua competência e o constante na duplicata. Caso protocolizem o
título e realizem o protesto, responderão por perdas e danos, se o credor não
conseguir executá-lo contra o sacado, endossante ou avalista (Lei n. 9.492/97, art.
33).
O protesto deve ser providenciado, pelo credor, no prazo de 30 dias,
seguintes ao vencimento da duplicata, sob pena de perda do direito creditício
contra os codevedores do título e seus avalistas (LD, art. 13, § 4º). Deve-se,
entretanto, evitar, em relação à duplicata mercantil, a classificação do protesto
em necessário ou facultativo, para fins de conservação do direito cambiário,
porque ela somente tem pertinência quando praticado o aceite ordinário ou por
comunicação. Se o aceite é presumido, o protesto é indispensável (LD, art. 15,
II).
4.1. Protesto por Indicações
A retenção da duplicata pelo comprador impede, por óbvio, a sua
apresentação pelo vendedor ao cartório de protesto. Para a efetivação do ato
formal, nesse caso, a lei admite que o credor indique ao cartório os elementos
que identificam a duplicata em mãos do sacado. A partir dos dados escriturados
no Livro de Registro de Duplicatas, que o emitente desse título é obrigado a
possuir, extrai-se boleto, com todas as informações exigidas para o protesto
(nome e domicílio do devedor, valor do título, número da fatura e da duplicata
etc.). Esse boleto é enviado ao cartório para processamento do protesto.
Se o sacador desvirtua as indicações da duplicata, aumentando o seu valor
por exemplo, ele responderá pelos danos decorrentes. Não se esqueça que o
protesto é ato praticado pelo credor, e o cartório apenas o reduz a termo, após a
observância das formalidades legais.
O protesto da duplicata pode
ser feito, em qualquer caso,
mediante simples indicações do
credor, dispensada a exibição
do título ao cartório.
Com a desmaterialização do título de crédito, tornaram-se as indicações a
forma mais comum de protesto. A duplicata, hoje em dia, não é documentada
em meio papel. O registro dos elementos que a caracterizam é feito
exclusivamente em meio eletrônico e assim são enviados ao banco, para fins de
desconto, caução ou cobrança. O banco, por sua vez, expede um papel,
denominado “guia de compensação”, que permite ao sacado honrar a obrigação
em qualquer agência, de qualquer instituição no país. Se não ocorrer o
pagamento, atendendo às instruções do sacador, o próprio banco remete, ainda
em meio eletrônico, ao cartório, as indicações para o protesto (nas comarcas
mais bem aparelhadas). Com base nessas informações, opera-se a expedição da
intimação do devedor. Se não for realizado o pagamento no prazo, emite-se o
instrumento de protesto por indicações, em meio papel. De posse desse
documento, e do comprovante da entrega das mercadorias, o credor poderá
executar o devedor. Ou seja, a duplicata em suporte papel é plenamente
dispensável, para a documentação, circulação e cobrança do crédito, no direito
brasileiro, em virtude exatamente do instituto do protesto por indicações.
4.2. Triplicata
As indicações, conforme acentuado no subitem anterior, correspondem à
forma mais utilizada, hoje em dia, para protesto da duplicata. Mas ainda ocorre
de o comerciante expedir, na retenção da duplicata, uma triplicata, para envio ao
cartório. Trata-se não de novo título, mas apenas da segunda via da duplicata,
extraída a partir dos dados escriturados no livro próprio.
A rigor, a lei autoriza o saque da triplicata apenas nas hipóteses de perda
ou extravio (LD, art. 23). Mas embora a retenção da duplicata não corresponda a
nenhuma das situações previstas legalmente, não existe prejuízo para as partes na
emissão da triplicata também nesse caso. Em outros termos, na medida em que o
credor pode remeter ao cartório de protesto o boleto com as indicações que
individualizam a duplicata retida, também se admite que a triplicata veicule tais
informações, tendo em conta inclusive que a fonte é a mesma: a escrituração
mercantil do vendedor.
5. EXECUÇÃO DA DUPLICATA MERCANTIL
A duplicata constitui-se título executivo extrajudicial (CPC, art. 585, I).
Em alguns casos, contudo, ela se reveste de natureza complexa, isto é, depende a
sua executividade da reunião de mais de um instrumento. O tema deve ser
analisado de acordo com o devedor contra o qual se direciona a execução.
Para a cobrança do sacado, o devedor principal da duplicata, importa
identificar o tipo de aceite praticado. A complexidade do título executivo é
função, no caso, do ato que vinculou o executado à obrigação cambial. Quer
dizer, se a duplicata ostenta o aceite ordinário (a assinatura do sacado), a sua
exibição é suficiente para o ajuizamento da execução, não se exigindo o protesto.
O mesmo critério é adotado, na hipótese de o aceite ordinário ter sido lançado na
triplicata (LD, art. 15, I). Mas se o aceite é presumido, o título executivo se
constitui pela duplicata (ou triplicata) protestada (ou pelo instrumento de protesto
por indicações), acompanhada do comprovante do recebimento das mercadorias
(LD, art. 15, II).
Quer dizer, se o sacado restituiu ao sacador a duplicata assinada, basta
esse documento para o ingresso da execução. Se o sacado a devolveu sem a
assinatura, a execução depende de 3 documentos: a duplicata, o instrumento de
protesto e o comprovante do recebimento das mercadorias. Se reteve a duplicata,
e o sacador optou pela emissão da triplicata, a execução depende das mesmas
condições, isto é, da exibição da triplicata, do instrumento do seu protesto e da
prova do recebimento das mercadorias. Finalmente, se, diante da retenção da
duplicata, procedeu o sacador ao protesto por indicações, o título executivo será
composto por 2 documentos: o instrumento de protesto por indicações e o
comprovante da entrega das mercadorias.
A propósito dessa última hipótese, prevista no art. 15, § 2º, da LD, deve-se
criticar a exigência, feita por alguns juízes, de exibição da duplicata, mesmo
quando o protesto se efetivou por indicações do credor. Na verdade, trata-se de
mera formalidade, por tudo dispensável. A emissão da duplicata em papel,
apenas para ser juntada aos autos da execução, quando já apresentado o
instrumento de protesto por indicações e o comprovante do recebimento das
mercadorias, não tem nenhum sentido. Claro que os comerciantes, frente à
exigência, têm optado por expedir o documento escrito unilateral — que nada
lhes custa — a orientar seus advogados no sentido de discutirem a juridicidade do
despacho judicial.
A execução da duplicata
contra o sacado depende da
modalidade
de
aceite
praticado. Se ordinário, basta
a exibição do título; se
presumido, é necessário o
protesto e a comprovação da
entrega das mercadorias.
Se a execução se dirige contra o avalista do sacado, o credor deve exibir o
título (duplicata ou triplicata) de que consta o aval, sendo dispensável o protesto.
Por fim, se o executado é endossante ou avalista de endossante, o título executivo
se constitui também com a exibição do título (duplicata ou triplicata), em que foi
praticado o ato cambiário de endosso ou aval, acompanhado do instrumento de
protesto que ateste a protocolização no cartório, antes de transcorridos mais de 30
dias do vencimento. Nesse caso, vige o disposto no art. 13, § 4º, da LD, que
condiciona o exercício do direito creditício, mencionado na duplicata, à
efetivação do protesto no prazo legal apenas contra “endossantes e respectivos
avalistas”. Quer dizer, contra o avalista do sacado, o protesto não é condição de
executividade da duplicata ou triplicata.
Prescreve a execução da duplicata em 3 anos, a contar do vencimento,
contra o sacado e seu avalista; em 1 ano, contado do protesto, contra os
endossantes e seus avalistas; e em 1 ano, a partir do pagamento, para o exercício
de direito de regresso contra codevedor (LD, art. 18).
5.1. Juros e Correção Monetária
Ao contrário do que se verifica com os demais títulos de crédito próprios,
os juros, em relação à duplicata, não incidem a partir do vencimento, mas sim do
protesto do título. O art. 40 da Lei n. 9.492/97, em incompreensível descompasso
com o princípio do dies interpellat pro homine, estabeleceu que “não havendo
prazo assinalado, a data do registro do protesto é o termo inicial de incidência de
juros”. O dispositivo não se aplica à letra de câmbio e à nota promissória, porque
o art. 48 da LU assegura ao credor o direito aos juros desde o vencimento do
título; e não se aplica ao cheque, já que o art. 52, II, da LC refere-se à data da
apresentação ao sacado como o início da sua fluência. Porém, como não há, na
lei, nenhum prazo assinalado para o cômputo dos juros da duplicata, vigora o
critério geral de incidência a partir do protesto. Não é essa a sistemática ideal,
posto inexistirem razões plausíveis para a distinção.
Em relação à correção monetária, a solução é diferente. Embora o
dispositivo acima (Lei n. 9.492/97, art. 40) também condicione ao protesto o
início da incidência da atualização, ele não é aplicável aos títulos executivos. Para
esses, há disposição legal assinalando o vencimento do título como termo inicial
da correção da expressão monetária do devido (Lei n. 6.899/81). A duplicata,
como título executivo extrajudicial, deve ter o seu valor corrigido integralmente,
a partir do vencimento, quando objeto de cobrança judicial.
5.2. Executividade da Duplicata em Meio Eletrônico
O registro do crédito em meio eletrônico (processo que se chama, às
vezes, desmaterialização dos títulos de crédito, numa referência ao abandono do
papel como suporte) tem despertado diversas questões para o direito cambiário.
Algumas essenciais, em que a própria sobrevivência do regime jurídico, ou pelo
menos de seus princípios da cartularidade e literalidade, é posta em dúvida (Cap.
10; cf. Abrão, 1975; Frontini, 1996).
Outra ordem de questões despertada pela desmaterialização dos títulos de
crédito diz respeito às alterações, no ordenamento jurídico, necessárias à
disciplina da nova realidade. O direito francês talvez tenha sido o primeiro a se
preocupar com o assunto, em 1965, quando a Comissão Gilet formulou proposta
de modernização do sistema de desconto de créditos comerciais, que tentou
reunir a agilidade do processamento eletrônico de dados com a segurança do
direito cambiário, por meio de instrumentos como a fatura protestável. O
sistema, implantado em 1967, foi aperfeiçoado com a introdução, em 1973, da
cambial-extrato (lettre de change-relevé), sacáveis em suporte papel ou em
meio eletrônico (Ripert-Roblot, 1947, 2:136/137). Newton de Lucca, pioneiro do
tratamento do tema na doutrina brasileira, propugnou pela edição de disciplina
legal da duplicata-extrato, com o aproveitamento da experiência francesa
(1985).
A questão que proponho aqui, no entanto, é diversa. Para mim, o direito
positivo brasileiro, graças à extraordinária invenção da duplicata, encontra-se
suficientemente aparelhado para, sem alteração legislativa, conferir
executividade ao crédito registrado e negociado apenas em suporte eletrônico.
Precisem-se bem os termos da proposição: o processo judicial, embora já
autorizada sua digitalização pela Lei n. 11.419/2006, ainda costuma ser, na Justiça
Cível, totalmente papelizado, ou seja, desenvolve-se apenas em suporte papel. Os
autos materializam o processo pela reunião cronológica e formal de petições,
documentos, decisões e outros escritos. Assim, o título executivo será
forçosamente exibido em juízo como documento ou documentos em suporte
papel, não há outro jeito. Para a execução de título eletrônico, desmaterializado,
será necessária a alteração legislativa, com certeza. O direito em vigor dá
sustentação, contudo, à execução da duplicata eletrônica, porque não exige
especificamente a sua exibição em papel, como requisito para liberar a
prestação jurisdicional satisfativa. Institutos assentes no direito cambiário
nacional, como são o aceite por presunção, o protesto por indicações e a
execução da duplicata não assinada, permitem que o empresário, no Brasil, possa
informatizar por completo a administração do crédito concedido.
Ao admitir o pagamento a prazo de uma venda, o empresário não precisa
registrar em papel o crédito concedido; pode fazê-lo exclusivamente na fita
magnética de seu microcomputador. A constituição do crédito cambiário, por
meio do saque da duplicata eletrônica, se reveste, assim, de plena juridicidade.
Na verdade, o único instrumento que, pelas normas vigentes, deverá ser
suportado em papel, nesse momento, é o Livro de Registro de Duplicatas. A sua
falta, contudo, só traz maiores consequências jurídicas, caso decretada a falência
do empresário. No cotidiano da empresa, portanto, não representa providência
inadiável.
O crédito registrado em meio eletrônico será descontado junto ao banco,
muitas vezes em tempo real, também sem a necessidade de papelização. Pela
internete, os dados são remetidos aos computadores da instituição financeira, que
credita — abatidos os juros contratados — o seu valor na conta de depósito do
empresário. Nesse momento, expede-se a guia de compensação bancária que,
por correio, é remetida ao devedor da duplicata eletrônica. De posse desse
boleto, o sacado procede ao pagamento da dívida, em qualquer agência de
qualquer banco no país. Em alguns casos, quando o devedor tem o seu
microcomputador interligado ao sistema da instituição descontadora, já se
dispensa a papelização da guia, realizando-se o pagamento por transferência
bancária eletrônica.
Se a obrigação não é cumprida no vencimento, os dados pertinentes à
duplicata eletrônica seguem, em meio eletrônico, ao cartório de protesto (Lei n.
9.492/97, art. 8º, parágrafo único). Trata-se do protesto por indicações, instituto
típico do direito cambiário brasileiro, criado inicialmente para tutelar os
interesses do sacador, na hipótese de retenção indevida da duplicata pelo sacado.
Não há, na lei, nenhuma obrigatoriedade do papel como veículo de transmissão
das indicações para o protesto, de modo que também é plenamente jurídica a
utilização dos meios informáticos para a realizar.
O instrumento de protesto da duplicata, realizado por indicações, quando
acompanhado do comprovante da entrega das mercadorias, é título executivo
extrajudicial. É inteiramente dispensável a exibição da duplicata, para aparelhar
a execução, quando o protesto é feito por indicações do credor (LD, art. 15, § 2º).
O registro eletrônico do título, portanto, é amparado no direito em vigor, posto
que o empresário tem plenas condições para o protestar e executar. Em juízo,
basta a apresentação de dois papéis: o instrumento de protesto por indicações e o
comprovante da entrega das mercadorias.
A duplicata é título executivo
extrajudicial, mesmo que seu
suporte seja exclusivamente
meios informatizados.
Mas a completa despapelização da administração do crédito concedido
pressupõe mais uma providência: a eliminação do comprovante da entrega das
mercadorias em suporte papel. De fato, a racionalização dos procedimentos
exige também o registro da entrega em meio eletrônico, e isso desperta mais
uma questão para a doutrina do direito comercial: perde executividade a
duplicata eletrônica protestada por indicações, se a prova da entrega das
mercadorias é feita por relatórios (em papel) produzidos por sistemas eletrônicos
de registro do seu recebimento pelo comprador?
Penso que é esta uma questão de fato, a ser resolvida em embargos, caso
questionada a validade da prova da entrega das mercadorias.
Em outros termos, o vendedor pode desenvolver sistema informatizado,
contratando com seus compradores, antes de vender as mercadorias, a
possibilidade de utilização de “assinatura eletrônica”. O emprego das chaves
públicas validadas pela ICP-Brasil, com base na criptografia assimétrica, garante
que determinado registro eletrônico somente pode ser feito se certa pessoa, a
única a conhecer senhas e códigos próprios, manifestou a vontade de o gerar.
Quer dizer, é possível a emissão de relatórios pelo sistema do vendedor que
pressupõem um específico ato de vontade do comprador.
É jurídica, portanto, a execução de duplicata eletrônica (isto é, nunca
papelizada), com a exibição em juízo do instrumento de protesto por indicações e
do relatório do sistema do credor, que comprova o recebimento das mercadorias
pelo sacado. A veracidade do relatório pode, ou não, tornar-se matéria
controversa, dependendo das alegações dos embargos. Nesse caso, por meio das
perícias judiciais competentes, restará esclarecido se o registro eletrônico do
recebimento das mercadorias somente poderia ter sido gerado com a necessária
manifestação de vontade do comprador, no sentido de que recebera a coisa
vendida.
Também pode ser eletrônico o
registro do recebimento das
mercadorias,
servindo
o
relatório do sistema mantido
pelo vendedor de documento
para a execução da duplicata
eletrônica.
A rigor, está-se diante de questão muito singela. Imagine-se, para o
demonstrar, que a petição inicial da execução é instruída pelo instrumento de
protesto por indicações, acompanhado do canhoto da nota fiscal, em que o
recebimento das mercadorias é firmado por rubrica ilegível e falsa. Ora, esses
dois papéis seriam já suficientes para o processamento da execução, cabendo ao
executado opor a falsificação da assinatura no comprovante da entrega das
mercadorias. A falsificação é matéria de prova a ser elucidada nos embargos,
normalmente por perícia. Ora, esse é o mesmo quadro que se verifica na
hipótese de exibição de relatório do sistema do vendedor, registrando o
recebimento das mercadorias pelo comprador. Quer dizer, ou o comprador,
usando de suas senhas e códigos, realmente confirmou o recebimento, ou não. Se
resta provado que o sistema do vendedor somente pode expedir relatório, dando
conta do recebimento das mercadorias, na hipótese de o comprador ter acionado
suas senhas e códigos (isto é, ter “firmado a assinatura eletrônica”), então não há
dúvidas de que o documento exibido pelo exequente é hábil para provar o
recebimento das mercadorias, para os fins do art. 15, II, b, da LD.
Conclui-se, então, que o direito brasileiro, independentemente de qualquer
alteração legislativa, já ampara a executividade de duplicata eletrônica, isto é, de
título constituído, negociado e protestado exclusivamente em meios eletrônicos.
6. TÍTULOS DE CRÉDITO POR PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
O crédito do prestador de serviços, segundo a sua natureza empresarial ou
profissional, pode ser documentado por dois títulos diferentes: a duplicata de
prestação de serviços (LD, arts. 20 e 21) e a conta de serviços (LD, art. 22). A
duplicata de prestação de serviços pode ser emitida por sociedades empresárias
cuja atividade são serviços. A pessoa física também pode emiti-la, desde que
desenvolva empresarialmente a atividade econômica de fornecedora de serviços
ao mercado, mas essa hipótese é raríssima. A conta, por sua vez, é título para os
profissionais liberais e prestador de serviços eventuais. Cuida-se de título pouco
utilizado, já que o cheque pós-datado o substitui com extraordinárias vantagens.
A duplicata de prestação de serviços está sujeita ao mesmo regime
jurídico da duplicata mercantil. Apenas duas especificidades devem ser
destacadas: a) a causa que autoriza sua emissão não é a compra e venda
mercantil, mas a prestação de serviços; b) o protesto por indicações depende da
apresentação, pelo credor, de documento comprobatório da existência do vínculo
contratual e da efetiva prestação dos serviços. Em razão do regime comum
desses títulos, encontra-se a sociedade empresária prestadora de serviços
obrigada à escrituração do Livro de Registro de Duplicatas, à emissão da fatura
ou nota fiscal-fatura discriminatória dos serviços contratados etc.
Aplicam-se, além disso, as regras sobre aceite, circulação, protesto e
execução previstas para a duplicata mercantil. Quer dizer, também a duplicata
de prestação de serviços é título de aceite obrigatório, vinculando-se o sacado ao
pagamento da cambial, a menos que presente causa justificativa para a recusa.
A lei as menciona: a) incorrespondência entre o título e os serviços efetivamente
prestados; b) vícios ou defeitos na qualidade dos serviços; c) divergência em
prazos ou preços (LD, art. 21). Quando não se verificam tais circunstâncias, o
sacado da duplicata de prestação de serviços é devedor do título e expõe-se à
execução, mesmo que não o tenha assinado.
Como os regimes são os mesmos, não há dúvidas de que a duplicata de
prestação de serviços admite, tal como a mercantil, registro exclusivo em meio
eletrônico. Observa-se apenas que os elementos mencionados em lei, para fins
de permitir o protesto por indicações (LD, art. 21, § 3º, in fine: efetiva prestação
dos serviços e do vínculo contratual que a autorizou) podem ser provados por
relatórios do sistema do prestador de serviços, cuja geração depende do
acionamento, pelo adquirente, de suas senhas e códigos. Aliás, há tempos os
empresários, bancos e cartórios de protestos não diferenciam o processamento
das informações de um ou outro tipo de duplicata.
A duplicata de prestação de
serviços também admite
suporte eletrônico.
o
A conta de serviços, por sua vez, é título emitido pelo profissional liberal
ou pelo prestador de serviços de natureza eventual. Nesse caso, não se exige
qualquer escrituração, devendo o credor emitir a conta, discriminando os
serviços prestados por sua natureza e valor, além de mencionar a data e o local
de pagamento e o vínculo contratual que originou o crédito. Não há padrão de
observância obrigatória, para o documento, que, uma vez emitido, deve ser
levado ao Cartório de Títulos e Documentos, para registro e entrega ao
adquirente dos serviços. Não realizado o pagamento, o credor pode protestar a
conta e executá-la. Constitui título executivo extrajudicial a conta de serviços
registrada, enviada ao devedor, protestada e acompanhada de comprovação do
vínculo contratual e da efetiva prestação dos serviços (LD, art. 22, § 4º).
Capítulo 15
OUTROS TÍTULOS DE CRÉDITO
1. TÍTULOS DE CRÉDITO IMPRÓPRIOS
Embora os princípios característicos do direito cambiário (cartularidade,
literalidade e autonomia das obrigações cambiais) estejam passando por um
processo de revisão, provocado em muito pelo desenvolvimento da informática,
o certo é que, por enquanto, eles ainda se aplicam aos títulos de crédito. A própria
conceituação do instituto gravita em torno deles. Por isso, pode-se afirmar que
título de crédito é o documento representativo de obrigação pecuniária sujeito a
regime informado por tais princípios. Por outro lado, há alguns instrumentos
jurídicos sujeitos a disciplina legal que aproveitam, em parte, os elementos do
regime jurídico-cambial. Tais instrumentos não podem ser considerados títulos
de crédito exatamente porque a eles não se aplicam, na totalidade, os princípios e
normas do direito cambiário. Esses instrumentos são normalmente referidos
como “títulos de crédito impróprios”.
Alguns autores adotam conceito mais elástico de título de crédito
impróprio, incluindo nessa categoria o cheque, por se tratar de ordem de
pagamento à vista, e, portanto, não representar operação de crédito, assim como
todos os títulos causais, como as duplicatas. Segundo esse entendimento, apenas a
letra de câmbio e a nota promissória seriam, rigorosamente, títulos de crédito
“próprios” (Martins, 1972:26/28).
1.1. Categorias de Títulos de Crédito Impróprios
São quatro as categorias dos títulos de crédito impróprios:
a) Títulos de legitimação. São títulos que asseguram ao seu portador a
prestação de um serviço ou acesso a prêmios em certame promocional ou
oficial. Por exemplo: o bilhete do Metrô, passe de ônibus, ingresso de cinema,
cupões premiados do tipo “Achou, ganhou”, volante sorteado da loteria numérica
etc. A esses instrumentos se aplicam os princípios da cartularidade (só pode
reclamar o serviço ou o prêmio aquele que estiver na posse do título de
legitimação), da literalidade (o serviço ou prêmio assegurados pelo título são os
previstos no documento e nenhum outro) e da autonomia (se houver vícios na
negociação desses títulos, eles não se transmitem aos novos possuidores). Os
títulos de legitimação, porém, não são títulos executivos e, por isso, não se
enquadram inteiramente na disciplina do regime jurídico cambial; eles não são,
em outras palavras, documentos suficientes para o exercício do direito nele
mencionado.
Títulos de crédito impróprios
são os instrumentos creditícios
que se submetem a regime
jurídico semelhante ao do
direito
cambiário,
sem
sujeitarem-se a todas as
normas deste. São quatro suas
categorias:
títulos
de
legitimação, de investimento,
de
financiamento
e
representativos.
b) Títulos de investimento. Os instrumentos jurídicos dessa categoria de
título de crédito impróprio se destinam à captação de recursos pelo emitente.
Representam, pode-se dizer, a parcela de um contrato de mútuo celebrado entre
o sacador do título e os seus portadores. Para estes últimos, a aquisição do título
tem o sentido de um investimento, emprego de capital no desenvolvimento de
certa atividade econômica com intuito lucrativo. Entre os títulos de investimento,
podem ser lembrados: as letras imobiliárias (Lei n. 4.380/64), emitidas pelos
agentes do Sistema Financeiro da Habitação, com vistas à obtenção de recursos
para o financiamento da aquisição da casa própria; a letra de câmbio financeira
ou cambial financeira (Lei n. 4.728/65), emitida ou aceita por sociedades de fins
econômicos, inclusive instituições financeiras; os certificados de depósito
bancário (CDB) (Lei n. 4.728/65), emitidos pelos bancos de investimento de
natureza privada, para depósitos com prazo superior a 18 meses; o certificado de
recebíveis imobiliários (CRI), emitidos pelas companhias securitizadoras de
créditos imobiliários (Lei n. 9.514/97, art. 6º); a letra de crédito imobiliário (LCI),
emitida por bancos, com lastro em créditos imobiliários (Lei n. 10.931/2004, art.
12); a Letra de Arrendamento Mercantil (LAM), de emissão de sociedades de
leasing (Lei n. 11.882/2008, art. 2º).
Note-se que existem alguns tipos de títulos com esse perfil econômico
(captação e investimento), mas enquadrados em conceito jurídico distinto. São as
debêntures emitidas por sociedades anônimas, em geral para obter recursos junto
ao mercado aberto de capitais, a custo inferior ao do financiamento bancário. A
qualificação jurídica apropriada para as debêntures não tem sido mais a de título
de crédito, embora a doutrina antigamente as estudasse como tais. Elas são
consideradas espécie de valor mobiliário (Cap. 20, item 2).
c) Títulos de financiamento. Há alguns instrumentos cedulares
representativos de crédito decorrente de financiamento aberto por uma
instituição financeira. Se houver garantia de direito real do pagamento do valor
financiado, por parte do mutuário, ela é constituída no próprio título,
independentemente de qualquer outro instrumento jurídico. Costumam chamarse “cédulas de crédito”, quando o pagamento do financiamento a que se referem
é garantido por hipoteca ou penhor. Inexistindo garantia de direito real, o título é,
comumente, denominado “nota de crédito”.
Os títulos de financiamento não se enquadram, completamente, no regime
jurídico-cambial por força de algumas peculiaridades, como a possibilidade de
endosso parcial, mas, principalmente, em razão do princípio da cedularidade,
estranho ao direito cambiário. Por esse princípio, a constituição dos direitos reais
de garantia se faz no próprio instrumento de crédito, na própria cédula. Podem
ser destinados ao financiamento da aquisição da casa própria ou de atividade
econômica. No primeiro caso encontra-se a “cédula hipotecária” (Dec.-Lei n.
70/66), que os adquirentes de casa pelo SFH outorgam ao agente financeiro. Dos
títulos de financiamento de atividade econômica trato mais à frente (item 2.1).
d) Títulos representativos. Sob essa denominação costuma-se designar o
instrumento jurídico que representa a titularidade de mercadorias custodiadas,
vale dizer, que se encontram sob os cuidados de terceiro (não proprietário).
Podem tais instrumentos exercer, além dessa função meramente documental, a
de título de crédito, na medida em que possibilitam ao proprietário da mercadoria
custodiada a negociação dela, sem prejuízo da custódia. Os títulos representativos
não se encontram inteiramente sujeitos ao regime jurídico-cambial, porque
possuem finalidade originária diversa da dos títulos de crédito. Estes se destinam
a representar obrigação pecuniária; já os títulos representativos têm por objeto
mercadorias custodiadas. Somente em caráter secundário é que os títulos
representativos podem referir-se a obrigações pecuniárias.
Exemplo típico desse título de crédito é o conhecimento de frete (Dec. n.
19.473/30). Sua emissão cabe às empresas de transporte por água, terra ou ar. A
finalidade originária desse instrumento é a prova do recebimento da mercadoria,
pela empresa transportadora, e da obrigação que ela assume de entregá-la
incólume em certo destino. O conhecimento de frete tem, no entanto, função
subsidiária, na medida em que possibilita ao depositante, proprietário da
mercadoria despachada, negociá-la mediante endosso do título. Em certas
circunstâncias, no entanto, a lei veda a negociabilidade do conhecimento de frete
(por exemplo, se o título é “não à ordem”, se a mercadoria transportada é
perigosa ou se destinada a armazém-geral — Dec. n. 51.813/63, art. 91). Em se
tratando, contudo, de conhecimento de frete negociável, o seu endosso transfere
a propriedade da mercadoria transportada, que deverá ser entregue, no destino,
ao endossatário ou portador legitimado do título.
Outros importantes exemplos de título representativo são os de emissão
dos armazéns-gerais, denominados títulos armazeneiros: o warrant e o
conhecimento de depósito, (item 1.2).
1.2. Títulos Armazeneiros
O contrato de depósito de mercadorias em armazém-geral prova-se com o “recibo” emitido pelo depositário. A devolução das mercadorias será
feita mediante a exibição desse documento. Havendo devoluções parciais, estas
serão anotadas no verso. A pedido do depositante, contudo, o armazém-geral
pode substituir o recibo por títulos de sua emissão exclusiva: o warrant e o
conhecimento de depósito. São os títulos armazeneiros representativos tanto das
mercadorias depositadas num armazém-geral como das obrigações assumidas
por este em razão do contrato de depósito.
Os títulos de emissão dos armazéns-gerais são criados necessariamente
juntos. Se o depositante não pretender negociar ou dar em garantia as
mercadorias durante o prazo em que se encontram armazenadas, deverá
contentar-se com o recibo, documento suficiente para o exercício de seus
direitos. Se, entretanto, puder interessar-lhe sua comercialização ou penhor,
deverá solicitar ao armazém depositário a substituição do recibo pelo warrant e
pelo conhecimento de depósito. Nesse caso, emitidos os títulos armazeneiros, a
mercadoria depositada somente poderá ser entregue, em princípio, a quem exiba
ambos os documentos. A devolução das mercadorias a quem porte apenas o
warrant ou o conhecimento de depósito será cabível unicamente em situações
excepcionais, adiante referidas.
Embora tenham origem e finalidade comuns, o conhecimento de depósito
e o warrant podem circular juntos ou em separado (Martins, 1980, 2:298/303).
Desse modo, a propriedade plena da mercadoria depositada — com os atributos
correspondentes da livre disponibilidade e onerabilidade — aliena-se pela
transferência ao comprador dos dois títulos unidos. O endossatário apenas do
conhecimento de depósito (em separado do warrant) é proprietário da
mercadoria depositada, mas sua propriedade é limitada, porque falta-lhe o
atributo da onerabilidade. Quer dizer, ele pode dispor da mercadoria depositada
e, em geral, exercer todos os direitos de proprietário, exceto o de dá-la como
garantia pignoratícia. Já o endosso do warrant em separado do conhecimento de
depósito importa a constituição de direito real de garantia (penhor) em favor do
endossatário. Se o empresário depositante (ou o endossatário dos dois títulos)
necessita, por exemplo, de recursos para o giro de seu negócio e toma dinheiro
emprestado de banco, as mercadorias armazenadas podem servir de garantia ao
pagamento desse mútuo. As mercadorias depositadas não se transferem ao
endossatário do warrant, mas são empenhadas em favor deste.
O primeiro endosso do warrant deve ser mencionado no conhecimento de
depósito (cf. Borges, 1971:251/252). Essa providência é exigida em lei para que o
futuro endossatário do conhecimento de depósito saiba que está adquirindo
mercadoria onerada, dada em garantia pignoratícia de obrigação assumida pelo
endossante, junto a terceiro (o portador do warrant).
O armazém-geral depositário, se emitiu esses títulos representativos, só
poderá entregar as mercadorias, em princípio, ao legítimo portador dos dois
documentos, o warrant e o conhecimento de depósito. A regra admite duas
exceções. Primeira, a entrega ao titular do conhecimento de depósito endossado
em separado, antes do vencimento da obrigação garantida pelo endosso do
warrant, desde que o portador deposite, no armazém-geral, o valor dessa
obrigação. Se o endossatário do warrant precisar executar a garantia, será
satisfeito com esse dinheiro, e se o endossante pagar o mútuo e resgatar o
warrant, receberá o mesmo dinheiro. Segunda, a execução da garantia
pignoratícia, após o protesto do warrant, por meio de venda em leilão realizado no
próprio armazém-geral. O saldo do produto da venda — após a dedução do
devido a título de impostos, das despesas com a realização do leilão, preço e
encargos da armazenagem e do pagamento ao titular do warrant — permanece
no armazém-geral aguardando o portador do conhecimento de depósito por 8
dias; em seguida, caso não reclamado, o valor deverá ser depositado em juízo.
2. TÍTULOS DE CRÉDITO SUJEITOS AO CÓDIGO CIVIL
Vozes lúcidas, como a de Fábio Konder Comparato (1978:549/550), não
foram ouvidas e o Código Civil acabou disciplinando os títulos de crédito (arts.
887 a 926). Aliás, minha impressão pessoal, após examinar os poucos elementos
legados, é a de que os responsáveis por essa parte do anteprojeto não tinham
muita clareza quanto aos objetivos a serem alcançados com aquela disciplina da
matéria. Inspiraram-se em normas do Código Civil da Itália, cuja consistência
era já fortemente questionada pela doutrina daquele país (Ascarelli,
1959:165/184). Por resultado, temos hoje, na codificação civil, um conjunto de
preceitos de direito cambiário de importância nenhuma. Elas tendem a não ser
aplicadas, porque tratam de situações raríssimas. Teria sido muito mais
proveitoso se o legislador lembrasse de incorporar ao direito interno as normas da
Lei Uniforme de Genebra sobre Letra de Câmbio e Nota Promissória, dando,
enfim, cumprimento à Convenção assinada pelo Brasil nos anos 1930. Em vez
disso, preferiu contemplar a disciplina geral para os títulos de crédito não
regulados em lei específica, objeto que decididamente não reclamava — como
ainda não reclama — prioritária disciplina legal.
As disposições sobre direito cambiário constantes do Código Reale
representam o regime geral dos títulos de crédito não regulados por lei específica
(item 2.1). Além disso, para alguns tecnólogos, encontram--se nelas a disciplina
dos títulos de crédito inominados (item 2.2).
2.1. Títulos de Crédito Não Regulados
A natureza de regime geral dos preceitos sobre títulos de crédito do Código
Civil decorre do disposto no seu art. 903, que estabelece: “Salvo disposição
diversa em lei especial, regem-se os títulos de crédito pelo disposto neste
Código”. Desse modo, se a lei especial estabeleceu, diretamente ou por remissão,
o regime jurídico aplicável ao título de crédito por ela cuidado, o Código Civil não
se aplica. Ou só se aplica no caso de serem idênticas as normas constantes dele e
da lei especial (Bezerra Filho, 2002:108). Os dispositivos sobre títulos de crédito
constantes do Código Civil somente se aplicarão, enquanto regras gerais do
instituto, se uma lei vier a criar, no futuro, um novo título de crédito, mas não o
disciplinar, seja diretamente, seja por meio de remissões legislativas a outras leis
cambiais.
O Código Civil não revogou, portanto, as normas legais existentes
disciplinadoras da letra de câmbio, nota promissória, cheque, duplicata, cédula e
nota de crédito e todos os demais títulos regulados pela lei (Fiuza, 2002:788). Cada
um desses títulos continua disciplinado pelas respectivas normas, e não pelas da
codificação.
Por enquanto, os únicos títulos de crédito sujeitos à disciplina geral do
Código Civil são os títulos do agronegócio criados pela Lei n. 11.076/2004 — o
Warrant Agropecuário (WA) e o Conhecimento de Depósito Agropecuário
(CDA). Quando o art. 2º dessa lei estabelece que se aplicam ao WA e ao CDA as
normas de direito cambial, sem fazer específica remissão à LU, deve-se concluir
pela sujeição desses títulos às contidas no Código Civil, com a ressalva das
disposições específicas.
As normas sobre títulos de
crédito encontradas no Código
Civil aplicam-se apenas aos
títulos que não possuírem, na
lei específica, a definição das
regras a aplicar (art. 903).
Atualmente, os únicos títulos
que se encontram nessa
situação são os pertinentes à
armazenagem de produtos do
agronegócio:
Warrant
Agropecuário
(WA)
e
Conhecimento de Depósito
Agropecuário
(CDA),
nos
termos do art. 2º da Lei
n. 11.076/2004.
O exame das disposições do Código Civil sobre matéria cambial, tendo em
vista seu âmbito de aplicação, pode ser didaticamente feito a partir das
diferenças em relação ao regime da letra de câmbio. Em outros termos,
conhecendo-se o regime da letra de câmbio (Cap. 11) e apontando-se os
preceitos do Código Civil que não coincidem com os desse regime,
circunscrevem-se as normas próprias aos títulos de crédito que vierem, no futuro,
a se submeter à legislação codificada.
São as seguintes tais diferenças:
a) Cláusulas ilegais. Os títulos de crédito que vierem a se submeter à
disciplina do Código Civil não poderão conter cláusula de juros, cláusula “não à
ordem” ou cláusula que dispense o devedor do pagamento das despesas (CC, art.
890). Se as partes convencionarem o pagamento de juros, estes não serão
devidos. Se proibirem o endosso do título, isto será ineficaz, podendo o titular do
crédito transferi-lo cambiariamente. Por fim, nenhum dos devedores pode ser
exonerado de sua responsabilidade pelas despesas com a circulação ou cobrança
do título (custas do protesto, por exemplo).
b) Títulos ao portador. A letra de câmbio não pode ser emitida sem a
identificação do beneficiário da ordem de pagamento. Desse modo, ela é sacada
necessariamene na forma nominativa e só pode tornar-se um título ao portador
mediante endosso em branco. Os títulos de crédito que vierem a se submeter ao
Código Civil poderão ser emitidos desde logo na forma ao portador se a lei
específica o autorizar (CC, art. 907). Não se aplica a eles a proibição de
pagamento a beneficiário não identificado (Lei n. 8.021/90, art. 1º), já que sua
apresentação ao devedor basta para exigir-se a prestação neles indicada (art.
905).
c) Responsabilidade do endossante. No endosso dos títulos de crédito que
vierem a ser submetidos ao Código Civil, o endossante não responderá, em regra,
pela solvência do devedor. Para que o endossante desses títulos possa ser
cobrado, na hipótese de insolvência do devedor, será necessária expressa
cláusula de responsabilidade no ato do endosso. Fórmulas como “pague-se com
garantia” ou “transfiro a X, assumindo a responsabilidade pelo pagamento” ou
outras equivalentes devem ser exigidas do endossante caso o endossatário queira
contar com a responsabilidade dele (CC, art. 914).
As normas do Código Civil
sobre títulos de crédito
diferem-se das aplicáveis às
letras de câmbio quanto a
quatro aspectos: 1) proibição
das cláusulas de juros, “não à
ordem” e exoneração de
despesas; 2) admissibilidade de
títulos
ao
portador,
se
autorizado pela lei específica;
3)
não
vinculação
do
endossante ao pagamento do
título como regra; 4) forma
nominativa de transferência de
titularidade.
d) Aval parcial. Os títulos sujeitos à disciplina do Código Civil comportam
aval, mas ele não pode ser parcial (CC, art. 897, parágrafo único). O avalista
desses títulos só pode garantir seu valor total. Na letra de câmbio, ao contrário, o
aval parcial é admissível (LU, art. 30), embora raramente utilizado.
e) Títulos nominativos. São títulos nominativos, segundo o Código Civil, os
emitidos em favor de pessoa cujo nome conste no registro do emitente (art. 921).
Não se cuida, portanto, de identificação do credor no próprio documento cartular,
mas sim em assentamentos externos à cártula, que o emitente possui (isto é, em
livros apropriados a essa finalidade). A titularidade da prestação contida nesse
tipo de título transfere-se mediante termo nos registros do emitente (art. 922), ou
por endosso em preto a ser oportunamente averbado a tais registros (art. 923).
Não há nada equivalente a essa forma de circulação do crédito no regime
jurídico da letra de câmbio e dos demais títulos de crédito próprios. Nestes,
nominativo é o título que ostenta o nome do credor, transmissível por endosso (se
contiver a cláusula “à ordem”) ou por cessão civil (claúsula “não à ordem”).
2.2. Títulos de Crédito Atípicos (ou Inominados)
Aponta a doutrina como segunda hipótese de aplicação das regras do
Código Reale sobre títulos de crédito os chamados títulos atípicos ou inominados,
isto é, os que não se encontram disciplinados em nenhuma lei específica. A
discussão sobre os títulos de crédito inominados é, por vezes, enraizada na
fundamentação que Carvalho de Mendonça apresentava, no início do século
passado, para os títulos à ordem civis (1938:98/99, em nota de rodapé). Embora
não haja necessária correlação entre as matérias, autores como Antonio
Mercado Jr. mencionam a posição de Carvalho de Mendonça como a defesa dos
títulos de crédito inominados (1973).
De qualquer forma, há elementos indicando que teria sido intenção de
Mauro Brandão Lopes, autor da versão inicial dessa parte do anteprojeto, a
introdução no direito positivo brasileiro dos títulos de crédito atípicos, isto é,
criados exclusivamente pelas partes, independentemente de previsão legal
(Penteado, 1995:33). A presumida intenção de introduzir no direito cambiário
brasileiro a figura do título inominado transpareceria em diversos dispositivos do
Código Reale. Antonio Mercado Jr., tendo à frente o anteprojeto, apontava três:
a) a previsão dos contratos atípicos (afirmando inexistir razão para que a
atipicidade também não se verificasse com os títulos de crédito); b) a limitação
aos títulos ao portador da exigência de autorização legal; c) a definição de título
de crédito, conjugando-se com o dispositivo em que os requisitos deste são
estabelecidos (para Mercado Jr., o escrito enquadrado na definição legal e que
preenchesse os requisitos seria título de crédito, mesmo que não previsto em lei)
(1973).
Com a admissão, pelo Código Civil, da atipicidade dos títulos de crédito,
estaria claramente rompida a tradição do direito brasileiro de circunscrevê-los
aos tipos especificamente previstos pela lei (numerus clausus) (Boiteux,
2002:26/28).
Os argumentos colecionados em favor da tese da admissibilidade, pelo
direito positivo brasileiro, dos títulos de crédito atípicos ou inominados não são,
porém, aceitos pela unanimidade da doutrina. Partindo exatamente do mesmo
dispositivo que menciona a necessidade de o título atender aos requisitos da lei
(letra c do argumento de Mercado Jr.), pelo menos um autor contesta a
introdução, entre nós, dos títulos criados pelos próprios interessados e não pela lei
(Bulgarelli, 1979b:65). Frágeis, portanto, são tanto a defesa como o
questionamento da inovação (ver também Lucca, 1979:121/127).
A maior dificuldade que a tese da introdução dos títulos atípicos no direito
positivo nacional enfrenta é a da identificação desses títulos. Como saber, diante
de uma declaração de vontade de pagar quantia líquida, se o instrumento que a
materializa é um título de crédito atípico ou um contrato atípico? Bastaria, como
mencionado no art. 889 do Código Civil, que o documento contivesse data,
indicação precisa dos direitos que confere e assinatura do emitente para que
fosse considerado título de crédito inominado? Como examinado anteriormente,
um dos requisitos de validade dos títulos próprios é a cláusula cambiária (Cap. 11,
item 2.1), que representa uma formalidade plena de consequências jurídicas.
Uma ordem de pagamento só é letra de câmbio se a expressão “letra de
câmbio” constar do teor do documento; igualmente, uma promessa de
pagamento só tem os efeitos jurídicos de uma nota promissória se dela constar a
expressão “nota promissória”, e assim por diante. A cláusula cambiária identifica
o documento como título de crédito, nomeando-o. Mas, para os títulos de crédito
inominados, é evidente que não se pode estabelecer uma formalidade
equivalente, porque eles costumam surgir de hábitos informais na prática
cotidiana dos negócios.
Títulos de crédito inominados
ou atípicos são os criados
pelos
particulares
independentemente
de
específica previsão na lei. O
melhor exemplo talvez seja o
FICA, instrumento creditício de
largo emprego nos negócios
pecuários do Centro-Oeste. No
meu entender, o Código Civil
não introduziu no direito
positivo brasileiro a disciplina
dos
títulos
de
crédito
inominados. Estes continuam
regidos
pelas
respectivas
normas consuetudinárias.
Penso que não há elementos seguros, no Código Civil, para a doutrina
aceitar ou rejeitar a tese dos títulos de crédito atípicos. O texto da lei não permite
nenhuma conclusão sustentável em argumentos consistentes. Se a intenção do
legislador era tratar da matéria, fê-lo imprecisamente. E penso também que,
enquanto não houver clara previsão legal de aplicação das normas do Código
Civil aos títulos de crédito inominados, deve-se considerá-los não sujeitos a elas.
Em outros termos, os títulos de crédito inominados, no meu entendimento, não
estão disciplinados no novo Código Civil. Isto, porém, não significa que eles
sejam irregulares, ou que não possam ser criados. Explico-me: talvez o melhor
exemplo de título de crédito inominado, no Brasil, seja o FICA ou “vaca-papel”,
instrumento creditório largamente utilizado pelo negócio pecuário do CentroOeste. É assim conhecido em razão da primeira palavra empregada em sua
redação, que sugere ter o costume consagrado algo de função próxima à das
cláusulas cambiárias: “Fica em meu poder x vacas da raça y, pertencentes a
fulano, obrigando-me a entregar-lhe as referidas vacas quando por ele me forem
exigidas” (sobre o assunto ver Lima, 1971). Mesmo antes do advento do Código
Civil e de seu regramento sobre a matéria cambial, FICAs foram emitidos,
negociados e judicialmente cobrados, valendo--se os juízes do critério de
colmatação de lacunas pelos costumes (LINDB, art. 4º). Quando esse título foi
considerado insubsistente ou inválido em juízo, era porque ocultava a prática de
usura. Sustento, em suma, que o Código Civil não disciplina os títulos de crédito
inominados, que continuam sendo produto exclusivo dos costumes que os criam.
3. TÍTULOS BANCÁRIOS
A atividade típica dos bancos consiste na intermediação de crédito. O
banco, de um modo esquemático, capta dinheiro das pessoas que o têm
disponível, para fornecê-lo a quem dele precisa. Essa atividade, por sua
fundamental importância para a economia, é fiscalizada e controlada pelos
governos dos diversos países. Nos Estados Unidos, por exemplo, assuntos como
capitalização e reservas das instituições financeiras são objeto de
regulamentação estatal desde 1863, quando, em plena Guerra Civil, baixou-se o
The National Banking Act (Lovett, 1997:11/13). No Brasil, é crime punido com
reclusão de 1 a 4 anos e multa explorar atividade de intermediação de crédito
sem autorização do Banco Central (Lei n. 7.492/86, art. 16).
Costuma-se classificar as operações bancárias em duas categorias. De um
lado, as passivas, em que o banco se torna devedor do cliente. Representa a
captação de dinheiro, traduzida esquematicamente em crédito concedido ao
banco. Quando uma pessoa deposita seu dinheiro na instituição financeira,
adquire certificados de depósito bancário (CDB) ou faz aplicação num fundo de
investimento, torna-se credora de obrigação pecuniária ou pelo menos duma
prestação de serviços da instituição financeira. De outro lado, encontram-se as
operações ativas, em que o banco é credor do cliente. Trata-se do fornecimento
de dinheiro, isto é, de crédito concedido pelo banco. Quando o trabalhador contrai
financiamento para aquisição de casa própria, o comerciante desconta suas
duplicatas ou o exportador tem antecipado o valor de contrato de câmbio, passam
a ser devedores da instituição financeira (Cap. 39).
A atividade bancária definese pela intermediação do
crédito. Os bancos captam
dinheiro dos clientes que o
possuem disponível (operações
passivas) para emprestá-lo aos
que dele necessitam (operações
ativas). Os títulos de crédito
representam,
por
isso,
importante instrumento na
exploração
da
atividade
bancária.
Como a intermediação do crédito é a essência da atividade bancária, os
títulos de crédito naturalmente desempenham função instrumental de relevo,
mormente nas operações ativas. É comum o mútuo bancário documentar-se por
contrato e também por nota promissória. O desconto, por sua vez, é operação
financeira necessariamente lastreada em títulos bancários (duplicata eletrônica,
cheque pós-datado etc.). Pois bem, ao lado dos títulos de crédito, pode o crédito
dos bancos nas operações ativas instrumentalizar-se em títulos exclusivos deles,
isto é, títulos cuja emissão somente está autorizada pela lei para documentar
direito creditício de banco. São os títulos bancários, conceito que abrange as
cédulas de crédito para financiamento de atividade econômica (item 2.1) e a
cédula de crédito bancário (item 2.2).
3.1. Títulos de Financiamento de Atividade Econômica
A implantação e exploração de atividades econômicas depende de tal
forma de acesso regular ao crédito bancário que a ordem jurídica brasileira,
além de contemplar mecanismos que procuram assegurar o financiamento às
atividades empresariais, desenvolve instrumentos negociais próprios para
atendimento às peculiaridades de cada setor da economia. Para ilustrar a
relevância conferida pela ordem jurídica brasileira à obtenção de crédito
bancário como condição de desenvolvimento das empresas, basta lembrar que os
microempresários e empresários de pequeno porte titularizam direito, de alicerce
constitucional (CF, art. 179), de acesso facilitado ao crédito bancário, com o
objetivo de assegurar o fortalecimento de sua presença na economia e
desenvolvimento nacionais (LC n. 123/2006, arts. 57 a 61). No plano dos
instrumentos negociais, criado pelo direito para viabilizar o fomento de atividades
econômicas, cabe destacar os diversos títulos de financiamento, introduzidos ou
redisciplinados pela lei no contexto das reformas desenvolvimentistas
implementadas a partir da segunda metade dos anos 1960.
Os primeiros desses instrumentos financeiros remodelados foram as
cédulas de crédito rural, redisciplinadas pelo Decreto-Lei n. 167/67, com o
objetivo de vocacioná-las ao atendimento, de um lado, das necessidades de
garantia das instituições financiadoras das culturas rurais, e, de outro, das
peculiaridades do empreendimento rural fomentado (cf. Ferreira, 1962,
10:477/478; Bulgarelli, 1979b:492; Rizzardo, 1990:213/249). Seguiram-se às
cédulas de crédito rurais outros instrumentos creditícios. Assim, em 1969, foram
criadas as cédulas de crédito industriais, destinadas ao fomento da atividade
industrial (Dec.-Lei n. 413/69); em 1975, as cédulas de crédito à exportação,
representativas de operações de financiamento à exportação ou à produção de
bens para exportação, ou apoio e complementação integrantes e fundamentais da
exportação (Lei n. 6.313/75); e, finalmente, em 1980, surgiram as cédulas de
crédito comerciais, relacionadas ao financiamento de atividade comercial ou de
prestação de serviços (Lei n. 6.840/80).
Financiamento é espécie de mútuo bancário, em que o mutuário está
obrigado a dar certa destinação ao dinheiro mutuado. No financiamento, o
tomador dos recursos não é inteiramente livre para os usar onde e como quiser,
devendo, ao contrário, ater-se à finalidade declarada da operação financeira.
Desse modo, se a sociedade empresária agrária toma dinheiro emprestado num
banco para financiar o plantio de girassóis com vistas à produção de óleo, deve
necessariamente empregar o dinheiro nessa específica atividade. Ela não pode
custear ou investir em outros negócios, ainda que rurais e mais rentáveis. Por
isso, pela vinculação entre os recursos mutuados e os objetivos do financiamento,
a concessão depende, por vezes, de projeto de aplicação consentâneo com a
linha de crédito correspondente; também por isso, o banco financiador está
investido de poderes de fiscalização (Decs.-Leis
n. 167/67 ou 413/69, art. 6º).
Os
títulos
bancários
de
financiamento da atividade
econômica são as cédulas e
notas
de
crédito
rural,
industrial, à exportação e
comercial. São documentos
representativos das obrigações
e garantias relacionadas à
concessão de financiamento
bancário a empresários desses
segmentos econômicos.
Vale destacar os seguintes aspectos do regime jurídico dos títulos
bancários de financiamento da atividade econômica: a) as cédulas de crédito
autorizam a capitalização de juros, no montante de 1% ao ano (Decs.-Leis n.
167/67 ou 413/69, art. 5º; Súmula 93 do STJ); b) nos financiamentos com garantia
real (pignoratícia ou hipotecária), a cédula é instrumento suficiente para registro
da oneração do bem; c) nos financiamentos sem garantia real, o título bancário
costuma denominar-se nota de crédito; d) as cédulas e notas de crédito devem ser levadas a registro
no Cartório de Imóveis, para produzir efeitos perante terceiros; e) vacila a
jurisprudência sobre as normas regentes da execução judicial do título,
concluindo alguns julgados que a regulamentação processual dos Decretos-Leis
n. 167/67 e 413/69 não foi revogada pelo Código de Processo Civil de 1973.
3.2. Cédula de Crédito Bancário
Em muitas operações de crédito bancário, não é possível calcular
previamente o valor da obrigação devida pelo cliente do banco. Considere o
contrato de abertura de crédito (“cheque especial”) em que a instituição
financeira se compromete a manter dinheiro disponível em conta de depósito,
dentro de certo limite. Como o cliente pode ou não utilizar, no todo ou em parte,
por mais ou menos tempo, os recursos monetários disponibilizados, não há como
computar a exata extensão do débito do correntista, caso não cumpra no prazo
contratado a obrigação de restituir ao banco o dinheiro utilizado. Considere,
ademais, que alguns financiamentos são remunerados com base em taxas de
juros variáveis de acordo com o mercado. Como ninguém consegue antecipar o
valor de taxas pós-fixadas, por definição, o montante exato do débito do cliente só
se pode calcular após o inadimplemento da obrigação.
A impossibilidade de antecipar o valor do crédito do banco apresenta uma
dificuldade na hora da cobrança judicial. Como o instrumento de contrato
bancário não podia conter o valor certo da obrigação, falta-lhe a liquidez
característica dos títulos executivos. Abre-se, em decorrência, às instituições
financeiras credoras apenas a via da ação de conhecimento, mais demorada e
ineficiente que a execução. A dificuldade foi contornada, inicialmente, pela
cláusula-mandato. Por meio desse mecanismo contratual, o devedor outorgava
ao banco credor (ou à sociedade do mesmo grupo empresarial), no contrato de
mútuo ou de abertura de crédito, procuração para, em nome dele, emitir nota
promissória, caso verificado o inadimplemento da obrigação creditícia. A
apuração do exato valor do devido é feita quando da emissão do título de crédito,
no qual o mutuante pratica o ato cambiário de emissão, em nome do mutuário e
em seu próprio favor. Esse expediente, não obstante sua eficiência e
legitimidade, foi considerado irregular pela jurisprudência e pelo Código de
Defesa do Consumidor (Cap. 11, item 2.2).
Outro mecanismo de que se têm valido os bancos para recuperar o
dinheiro emprestado é a emissão de extrato da posição devedora, que,
acompanhado do instrumento contratual de mútuo ou de abertura de crédito,
constituiria título executivo extrajudicial. Parte da jurisprudência tem acolhido a
tese da executividade desses documentos, mas o assunto ainda não está
pacificado nos Tribunais. Acerca do contrato de abertura de crédito, aliás, o STJ
tem entendimento sumulado contrário à natureza de título executivo (Súmula
233), mas admitindo a cobrança por ação monitória (Súmula 247). O STJ tem
entendido também que perde a executividade a própria nota promissória
vinculada ao contrato de abertura de crédito (Súmula 258).
As
cédulas
de
crédito
bancário são promessas de
pagamento
em
dinheiro
emitidas pelo cliente mutuante
em favor de banco mutuário,
cuja liquidez pode decorrer da
emissão, pelo credor, de
extrato de conta corrente ou
planilha de cálculo. Além de
facilitar e baratear o acesso ao
crédito bancário, esses títulos
dão ensejo à execução judicial
em caso de inadimplemento.
Em outubro de 1999, o Presidente da República editou Medida Provisória
introduzindo no direito brasileiro a cédula de crédito bancário. Atualmente, o
título é disciplinado nos arts. 26 e seguintes da Lei n. 10.931/2004. Trata-se de
promessa de pagamento em dinheiro, emitida em favor de instituição financeira,
representativa de qualquer modalidade de operação bancária ativa (abertura de
crédito, mútuo, financiamento, desconto etc.). A liquidez que embasa a
executividade do título decorre tanto da menção de valor certo no próprio
documento como de extrato de conta corrente bancária ou planilha de cálculo
emitidos pelo banco credor após o inadimplemento da promessa.
Os juros remuneratórios de obrigações documentadas em cédula de
crédito bancário podem ser livremente estipulados e capitalizados, não incidindo
limite legal nenhum na mensuração da taxa e na capitalização dos juros. Além
disso, o próprio instrumento cedular basta para a constituição e registro de
garantias reais, inclusive sobre bens imóveis, eficácia jurídica que simplifica e
barateia o acesso ao crédito bancário. O protesto independe do encaminhamento
do original da cédula ao cartório, desde que o banco declare encontrar-se a única
via negociável em seu poder. Por fim, as instituições financeiras podem
descontar e redescontar as cédulas de sua titularidade, ou usá-las como lastro
para a securitização mediante a emissão de CCB (Certificado de Cédulas de
Crédito Bancário).
4. TÍTULOS DO AGRONEGÓCIO
O conceito de “agronegócio” é originário do saber econômico. A partir
dos estudos de John Davis e Ray Goldberg, da Universidade de Harvard,
iniciados no fim da década de 1950, e da abordagem temática das “cadeias de
produção” (filières), proposta pelos economistas franceses, afastou-se o
tradicional modelo de segmentação da economia em três grandes setores
(primário: agricultura, pecuária, extrativismo etc.; secundário: indústria; terciário:
comércio e serviços) e buscou-se a construção de outro parâmetro conceitual,
que abrangesse, como um sistema, todas as atividades econômicas ligadas aos
produtos agrícolas (produção de insumos, cultivo, armazenagem, financiamento,
certificação, industrialização, comercialização etc.).
Esta forma de abordar o tema pode ser transposta para o campo do saber
jurídico. O direito do agronegócio — capítulo do direito comercial que reclama
cada vez mais atenção e pesquisa — não coincide, assim, com o direito agrário
empresarial, cujo foco repousa sobre a atividade de produção no campo, um dos
elos da cadeia. Desse modo, se as particularidades derivadas dos riscos
associados ao ciclo biológico, que conferem substrato ao conceito jurídico de
agrariedade
(Scaff, 1997:19/22), estão, sem dúvida, presentes no objeto circunscrito pela
noção de agronegócio, nesta acomodam-se muitas outras questões,
impermeáveis a tal especialidade. Aproximando-se do montante da cadeia de
produção do agronegócio, os riscos do ciclo biológico eventualmente também se
expressam, mas na produção de insumos, transporte, armazenagem,
industrialização, exportação e comercialização, bem como nos financiamentos
respectivos, os riscos empresariais em jogo são bem diversos.
O Brasil é uma potência do agronegócio. Nossa agricultura e pecuária
estão plenamente integradas ao processo econômico mais amplo de
industrialização, comercialização e exportação de commodities agropecuárias,
característico de uma consistente cadeia de produção. Se a agricultura familiar
ainda tem alguma presença na economia nacional, isto se deve, cada vez mais,
às nuanças das políticas públicas. Nos desdobramentos do direito do agronegócio,
tem especial relevância o tratamento dos títulos, especificamente criados pela lei
ou pelo regulamento administrativo, para a mobilização do crédito ou de capitais
neste recorte da economia. Desde que o estado brasileiro, nos anos 1990, preferiu
estimular o financiamento privado do setor, estes instrumentos passaram a ter
crescente importância.
“Agronegócio” é um conceito
da economia que pode ser
aproveitado pela tecnologia
jurídica como referência ao
direito aplicável à cadeia
econômica
de
produtos
agrícolas
e
pecuários,
envolvendo todas as atividades
nela inseridas, desde a
produção de insumos até a
comercialização
ou
exportação,
incluindo
o
transporte,
logística,
financiamento e investimento.
A lei criou diversos títulos de
crédito do agronegócio, sendo
alguns
referenciados
em
produtos agrícolas e pecuários
(CPR, CDA e WA) e outros
destinados a instrumentalizar o
refinanciamento
e
a
securitização dos direitos
creditórios oriundos desta
cadeia econômica (CDCA, LCA
e CDA). Além desses títulos,
cabe
menção
ao
valor
mobiliário específico para a
agroindústria captar recursos
no mercado de capitais (NCA).
Após o exame da questão do suporte papelizado ou eletrônico (item 4.1),
cuida-se dos títulos referenciados a produtos agrícolas ou pecuários (itens 4.2 e
4.3). Por referenciados a produtos do agronegócio proponho que se entendam os
títulos que documentam direitos cujo objeto é, direta ou indiretamente, uma
“commodity agropecuária”. Nesta categoria, o título não assegura
necessariamente um crédito por obrigação pecuniária, desvinculado do contexto
econômico de que se originou, mas eventualmente um direito que pode até
mesmo não ser obrigacional, mas real. São quatro os títulos referenciados a
produtos do agronegócio: Cédula de Produto Rural (CPR), simples ou financeira,
Warrant Agropecuário (WA) e Certificado de Depósito Agropecuário (CDA). A
particularidade destes títulos está na referência à
“commodity agropecuária”, que pode servir de: a) objeto da prestação a que se
obriga o seu emitente (CPR-física); b) critério de mensuração de obrigação
pecuniária (CPR-financeira); c) objeto da titularidade do portador (CDA); ou d)
garantia real (WA).
Em seguida, cuida-se dos títulos de refinanciamento e securitização dos
direitos creditórios do agronegócio (item 4.4); por fim, embora não seja
propriamente um título de crédito, mas valor mobiliário, a Nota Comercial do
Agronegócio (NCA) é objeto de atenção aqui, por razões didáticas (item 4.5).
4.1. O Suporte dos Títulos do Agronegócio
Os títulos de crédito e os valores mobiliários podem ter dois tipos de
suporte: o papel e o eletrônico (ou escritural). As informações contidas em
documento impresso ou em arquivo eletrônico são as exigidas pela lei ou
regulamento administrativo para a caracterização do título ou valor mobiliário.
Não há nenhuma diferença, no que diz respeito à validade, eficácia ou
executividade do título ou valor mobiliário que decorra do suporte adotado. Se o
título ou valor mobiliário é válido, eficaz e executável, será por tudo indiferente o
tipo de suporte adotado, se papel ou meio eletrônico.
Rigorosamente as mesmas funções exercidas pelo papel, como suporte de
um instrumento negocial, são também cumpridas pelo suporte eletrônico, se
adotada tecnologia da informação fundada em criptografia assimétrica (Covas,
2006:469) ou de segurança equivalente que venha a ser desenvolvida no futuro.
Em vista desta equivalência de funções, o direito tem construído um princípio
geral, já insculpido nas leis de muitos países (Cingapura, Estados Unidos,
Austrália e mais 22 outros), que veda a discriminação do negócio documentado
eletronicamente. O princípio da equivalência funcional aplica-se ao direito
brasileiro, em razão da lacuna legal existente sobre os negócios eletrônicos e a
sua colmatação nos termos indicados pelo art. 4º da LINDB (“quando a lei for
omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os
princípios gerais de direito”).
Interessante constatar que o título de crédito pode ser emitido num suporte
e migrar para o outro. A transmutação de suporte se verifica, por exemplo, na
sua admissão, para fins de negociação entre investidores, em mercado de balcão
organizado (MBO), como, por exemplo, a Cetip S.A. Balcão Organizado de
Ativos e Derivativos (CETIP) ou a Bolsa Brasileira de Mercadorias (BBM). O
título pode ter sido documentado, em sua emissão, em papel, e, enquanto não
registrado num MBO, esta cártula será o seu único suporte. Quer dizer, se houver
alguma negociação do crédito documentado, deve-se formalizá-la por meio de
endosso lançado e assinado de punho naquele pedaço de papel. Uma vez levado a
registro num MBO, porém, a cártula deve ficar guardada (custodiada) numa
instituição financeira. Ela deixa de ser o suporte do título de crédito, temporária
ou definitivamente. Não terá sentido de ato cambiário (embora possa
eventualmente produzir efeitos civis) qualquer negócio documentado no papel
enquanto for o eletrônico o suporte do título respectivo. Após a admissão à
negociação no MBO, e antes de sua “baixa escritural”, somente produzirão
efeitos cambiários os atos registrados no sistema correspondente.
Os títulos do agronegócio
admitem dois suportes: o papel
e o meio eletrônico. Enquanto
não admitido num mercado de
balcão organizado (MBO),
para fins de negociação entre
investidores, o suporte é o
papel; após a admissão (isto é,
o registro no MBO), o suporte
do título passa a ser o
eletrônico. Pode voltar a ser o
papel, se for necessário à sua
execução, extrajudicial ou
judicial.
Enquanto o suporte do título é o meio eletrônico, todos os atos
concernentes à sua negociação e liquidação devem ser formalizados no sistema
do MBO em que estiver admitido. Se for regularmente pago no vencimento, ele
não retornará ao suporte originário. Tanto a cártula, quanto o arquivo eletrônico
já não terão mais qualquer função representativa de crédito, já que este se
extinguiu com o pagamento. Mas se o devedor não adimplir a obrigação cambial,
talvez seja necessária nova transmutação de suporte: o documento eletrônico
pode retornar ao suporte impresso para instruir a ação de cobrança. Esta nova
migração tende a desaparecer com a disseminação do processo judicial
eletrônico.
4.2. Cédula de Produto Rural (CPR)
A Cédula de Produto Rural, disciplinada na Lei n. 8.929/94, é um título
extremamente versátil, no sentido de que se presta a diversas finalidades:
aquisição de insumos, financiamento da produção junto a trading companies ou
instituições financeiras, prestação de garantia, instrumentalização da venda do
produto agrícola ou pecuário, investimento especulativo, documento
assecuratório do domínio e posse de commodities etc. Foi introduzido no direito
brasileiro em meados dos anos 1990, no contexto do exaurimento da capacidade
do estado brasileiro de financiar as atividades rurais.
Trata-se de um título de crédito regido, obviamente, pelas normas do
direito cambial. No Brasil, observe-se, o “regime cambiário” atualmente é
dúplice: pode ser o da Lei Uniforme de Genebra sobre Letra de Câmbio e Nota
Promissória (LU) ou o Código Civil (CC, arts. 887 a 926). Como a introdução da
CPR na lei é anterior à entrada em vigor do CC, deve-se considerar que ela não
se sujeita às disposições genéricas deste diploma (art. 903), mas às da LU.
São três, por outro lado, as regras de direito cambiário específicas deste
título (Lei n. 8.929/94, art. 10), aplicáveis evidentemente em detrimento das
previsões da LU sobre a matéria.
1ª) A CPR não admite endosso em branco. Sempre que o título for
negociado, por meio de endosso lançado na cártula ou por registro eletrônico,
deve ser completamente identificado o novo titular do direito de receber o
produto rural (CPR-física) ou ao pagamento referenciado em cotação do preço de
um produto rural (CPR-financeira).
2ª) Os endossantes não respondem pelo cumprimento da obrigação de
entregar o produto rural, mas apenas por sua existência. Quem deve entregar a
commodity agrícola ou pecuária ao titular da CPR é invariavelmente o produtor
rural emitente do título. Se ele negociou a CPR com uma instituição financeira e
esta a endossou a uma trading company, por exemplo, a endossatária não pode
exigir da endossante a entrega do produto rural referido no título. A
responsabilidade da instituição financeira, como endossante, se verifica, por
exemplo, na hipótese de inexistência de atividade produtiva rural apta a servir de
“lastro” à emissão da CPR.
3ª) O protesto não é necessário para assegurar ao credor originário ou
endossatário o direito de cobrar a CPR de avalistas. A norma cambiária
específica aplica-se ao caso de avalista de endossante, já que, em relação ao do
emitente (devedor principal), a facultatividade do protesto para assegurar o
direito de regresso decorre diretamente da aplicação dos arts. 32 e 53 da LU.
A Cédula de Produto Rural
(CPR)
é
um
título
extremamente versátil que se
presta à aquisição de insumos,
financiamento da produção,
concessão
de
garantias,
documentação da titularidade
do
produto,
investimento
especulativo etc.
A Cédula de Produto Rural é título de crédito que documenta a “promessa
de entrega de produtos rurais” feita por seu emitente. Nela, é especificada
determinada quantidade e qualidade de um produto rural, sem fazer qualquer
menção ao seu preço. Este título só pode ser emitido por um produtor rural,
cooperativa ou outra associação de produtores rurais (Lei n. 8.929/94, art. 2º).
Dependendo das características do título em sua emissão, ele pode ou não admitir
a liquidação financeira, isto é, o pagamento em dinheiro em vez da entrega do
produto rural. Se não admite a liquidação por esta via, mas apenas por meio da
entrega do produto ao credor ou endossatário do título, é chamada de CPR-física
(item 4.2.1); se admite, CPR-financeira (item 4.2.2).
4.2.1. Cédula de Produto Rural Física
O emitente assume, pela CPR-física, a obrigação de entregar produto
rural, na quantidade e qualidade discriminadas no título. A promessa de entrega é
incondicional, não podendo ficar sujeita à prévia verificação de nenhum ato ou
fato, como o pagamento ou outra contrapartida do credor.
A CPR pode ser emitida em qualquer negócio jurídico em que o produtor
rural assume a obrigação de entregar seu produto a outrem. A primeira hipótese
a considerar é a compra e venda, contrato em que o vendedor assume a
obrigação de entregar ao comprador o objeto negociado. O pecuarista, por
exemplo, vende ao frigorífico determinada quantidade de bois, prometendo
entregá-los em 4 (quatro) meses; assume, assim, obrigação possível de ser
documentada numa CPR, se assim for da conveniência das partes. Não é
essencial à existência, validade e eficácia do título algum pagamento prévio do
credor ao emitente. Não há esta exigência na lei, e ela seria mesmo incompatível
com a extrema versatilidade da CPR.
Mas não somente na compra e venda o produtor rural assume a obrigação
de entregar seu produto. Também no contexto da outorga de garantias ao
financiamento de sua atividade, pode o produtor rural contrair esta obrigação. O
pecuarista que dá em penhor ao banco determinada quantidade de cabeças de
gado, assume a obrigação de entregá-las caso seja necessária a execução da
garantia.
Além de instrumento para documentar a obrigação do produtor rural
como vendedor ou devedor pignoratício, também tem servido a CPR de meio de
financiamento da produção. O produtor de soja, por exemplo, adquire os insumos
emitindo, em favor do vendedor (de adubo, sementes etc.) uma CPR referente à
parte da produção projetada. Não desembolsa dinheiro para pagar seus
fornecedores, mas obriga-se a entregar-lhes determinada quantidade do que
pretende cultivar e colher. O comerciante de insumos, normalmente, não se
interessa pelo produto em si, mas, por meio do endosso da CPR em favor de uma
trading company, por exemplo, recebe em dinheiro o que considerou ajustado
aos seus interesses na operação.
O art. 11 da Lei n. 8.929/94 imputa ao emitente da CPR a responsabilidade
por evicção e preceitua não poder ele invocar, em seu benefício, o caso fortuito
ou de força maior. Esta regra, que visa conferir ao título segurança de extensa
envergadura, incide tanto antes, como depois da concentração (isto é, do ato de
escolha que transforma a obrigação de dar coisa incerta na de dar coisa certa —
Coelho, 2003, 2:52/54). Quer dizer, optando o produtor rural por documentar sua
obrigação de dar coisa incerta numa CPR, mesmo após a individuação do
produto e enquanto não cumprir a obrigação de entrega, o emitente responde
pela perda, inclusive se não teve culpa.
Por produto rural deve-se entender um conceito amplo, ajustado ao de
“agronegócio”. Desse modo, não somente a entrega de produto agrícola ou
pecuário in natura pode ser objeto de CPR, mas também os beneficiados ou
industrializados, como açúcar ou farelo de soja (Buranello, 2009:338). Sendo o
agronegócio um complexo de atividades que se estende desde o fornecimento de
insumos até a comercialização ou exportação, seria incompatível com a
abrangência deste conceito a restrição das hipóteses de emissão de CPR aos
produtos in natura.
O titular de uma CPR, seja credor originário ou por endosso, tem o direito
de, no vencimento definido no próprio título (“data da entrega” — art. 3º, II),
exigir do emitente o produto, na quantidade e qualidade nela discriminadas. Se às
partes convier o adimplemento parcial da obrigação, faz-se a anotação, no verso
da CPR, do saldo ainda exigível (art. 4º e parágrafo único).
A promessa do emitente de entregar produtos rurais incorporada numa
CPR pode ser cedularmente garantida. Isso significa que nenhum outro
instrumento, além da própria cártula, é necessário para formalizar a constituição
da garantia. Dispensa-se, por exemplo, a escritura de outorga de hipoteca, para
registro do ônus no Registro de Imóveis, bastando, para tanto, a exibição da CPR
em que o imóvel rural ou urbano hipotecado está identificado. As garantias
podem ser, além da hipoteca, o penhor e a alienação fiduciária de bens ou
direitos do próprio emitente, ou de terceiros.
4.2.2. Cédula de Produto Rural Financeira
Para admitir a liquidação financeira, a CPR deve cumprir as condições
estabelecidas no art. 4º-A da Lei n. 8.929/94.
Em primeiro lugar, devem constar do teor do título de crédito os
elementos indispensáveis à perfeita precificação da obrigação do emitente: “a
instituição responsável por sua apuração ou divulgação, a praça ou o mercado de
formação do preço e o nome do índice”. Nunca conterá a CPR, mesmo a sua
versão financeira, a obrigação de pagar quantia em reais, já definida de
antemão. Pelo contrário, sempre constará do título a discriminação de um
produto rural, sua quantidade e qualidade. Na CPR-financeira, será explicitado
como se calcula o preço ou se identifica o índice de preço a ser considerado na
liquidação, a partir dos valores praticados num determinado mercado
relacionado a este produto. Por exemplo, o emitente pode se obrigar a entregar
determinada quantidade de cana-de-açúcar ou pagar em dinheiro o seu preço, de
acordo com a cotação do Consecana-SP. No dia do vencimento, multiplic a-se a
quantidade do produto pelo preço cotado nesta entidade para calcular o quanto
deverá o emitente desembolsar para liquidar financeiramente a CPR.
Por outro lado, apenas podem ser nomeadas instituições idôneas e de
credibilidade, segundo avaliação das partes envolvidas no negócio, que
promovam a divulgação periódica (preferencialmente diária) de cotação dos
preços do produto rural objeto da CPR. Emitente, credor originário e
endossatários devem ter ampla facilidade de acesso a esses dados, para que seja
certa a extensão da obrigação documentada na CPR.
Por fim, é indispensável que a cláusula cambial, vale dizer, a
denominação “Cédula de Produto Rural” (Lei n. 8.929/94, art. 3º, I), contemple
também a expressão “financeira”.
4.2.3. CPR como Instrumento de Investimento
Como a CPR não tem valor em reais e apenas discrimina a quantidade e
qualidade de certo produto rural, ela se presta, também, a servir de instrumento
de investimento. Quem deseja especular com a variação do preço de uma
commodity agrícola pode adquirir CPRs correspondentes, com o objetivo de
ganhar com a diferença das cotações (que ele aposta seja positiva) entre o dia
em que comprou e o dia em que vier a vender o título. Para bem servir como
instrumento de investimento, a CPR é negociável em mercado de balcão
organizado (MBO), como, por exemplo, a CETIP ou a BBM. Quem tomar a
iniciativa de promover o registro da CPR no MBO deve manter em custódia a
cártula, pois, a partir de então, o título passa a ter exclusivamente o suporte
eletrônico.
Para conferir maior segurança ao investidor, a CPR oferecida ao
mercado como alternativa de investimento pode contar com o aval de uma
instituição financeira ou seguradora. Neste caso, o produtor rural emite o título
em favor do próprio avalista e lhe confere, por meio de endosso-mandato,
poderes para negociá-lo, custodiá-lo e registrá-lo em MBO (art. 19, § 4º).
Evidentemente, em se aproximando o título do vencimento (quando se torna
exigível a obrigação de entrega do produto em referência), cada vez menos
especuladores se interessarão por adquiri-lo e crescerá o interesse por parte de
empresários dedicados ao agronegócio, principalmente as trading companies. Os
investidores querem ganhar com as variações de preço das commodities, mas,
em geral, não têm interesse na liquidação física da CPR; ao contrário, as trading
companies querem o produto, para poder comercializá-lo ou exportá-lo.
Tanto a CPR-física quanto a CPR-financeira podem servir de instrumento
de investimento.
4.3. Certificado de Depósito Agropecuário (CDA) e Warrant Agropecuário
(WA)
Os títulos armazeneiros só podem ser emitidos por um armazém, a pedido
do depositário, e são necessariamente referenciados a mercadorias nele
depositadas. Até 2000, não havia, no direito brasileiro, senão um único e mesmo
regime jurídico para todos os tipos de armazéns. Independentemente do gênero
de produtos em que podia se especializar o estabelecimento armazeneiro, as
normas aplicáveis à relação jurídica entre as partes do contrato de depósito e aos
títulos representativos das mercadorias depositadas estavam todas reunidas no
Dec. n. 1.102/1903. Naquele ano, com o advento da Lei n. 9.973/2000, que
instituiu o Sistema de Armazenagem de Produtos Agropecuários, passou o direito
nacional a discriminar uma espécie de armazém, para submetê-lo a regime
jurídico específico.
Consentaneamente com a noção de agronegócio como um sistema
complexo reunindo diversas atividades ligadas à produção, distribuição e
financiamento de produtos agrícolas e pecuários, os armazéns atuantes nesta
cadeia econômica foram destacados dos demais, pela lei, com vistas a submetêlos ao regulamento administrativo específico baixado pelo Ministério da
Agricultura e do Abastecimento. Em outros termos, qualquer armazém só pode
receber em depósito produtos agropecuários, seus derivados, subprodutos e
resíduos, se estiver devidamente aparelhado e funcionando conforme este
regulamento administrativo. Chamemos tais estabelecimentos empresariais de
armazéns de agronegócio, para distingui-los dos restantes, os armazéns-gerais.
Dois são os objetivos da lei em tratar separadamente os armazéns de
agronegócio. O primeiro está relacionado ao padrão de qualidade dos serviços de
armazenagem, que deve ser compatível com a inserção do Brasil na economia
globalizada. O segundo diz respeito à especialização desse tipo de armazém, que
fica dispensado de atividades um tanto estranhas ao seu objeto específico, como
as de manter a sala de “vendas públicas” ou administrar valores consignados
(reservadas pela lei aos armazéns-gerais).
Os títulos armazeneiros de emissão dos armazéns-gerais são o
Conhecimento de Depósito e o Warrant, disciplinados no referido Dec. n.
1.102/1903 (Cap. 15, item 1.2). Já os específicos de emissão de armazéns de
agronegócio são o Conhecimento de Depósito Agropecuário (CDA) e o Warrant
Agropecuário (WA), criados pela Lei n. 11.076/2004. Eles possuem a mesma
estrutura e finalidade. Diferenciam-se, basicamente, quanto ao gênero de produto em que podem ser referenciados
e à admissibilidade de sua negociação em mercado de balcão organizado
(MBO). Somente o CDA e o WA podem representar produtos agrícolas e
pecuários armazenados e são negociáveis em MBO.
Os dois títulos são emitidos pelo armazém de agronegócio
necessariamente juntos (sempre a pedido do depositante), mas podem circular
separados, dependendo dos negócios que vierem a ser celebrados tendo os
produtos depositados por referência. Enquanto o CDA e o WA permanecerem
sob a mesma titularidade (e, depois de separados, sempre que voltarem a esta
condição), asseguram ao titular a plena propriedade da mercadoria depositada no
armazém de agronegócio.
Os títulos serão emitidos pelo armazém de agronegócio em duas vias,
sendo as primeiras (vias negociáveis do CDA e do WA) do depositante e as
segundas (na qual colherá o recibo) do emitente (Lei n. 11.076/2004, art. 8º). As
primeiras vias dos títulos podem ser negociadas por meio de endosso com
assinatura de punho, mas, em geral, o depositante terá interesse em ambientar a
negociação num MBO, onde os títulos tendem a ter maior liquidez. Neste caso, as
primeiras vias ficam custodiadas na entidade que promover o registro no MBO,
transmutando-se o suporte do CDA e do WA para o eletrônico.
O endosso do WA separado do CDA investe o endossatário na condição de
credor pignoratício do endossante, recaindo o penhor sobre o produto
armazenado. Esta operação tem lugar, por exemplo, quando o empresário dono
das mercadorias depositadas no armazém de agronegócio não deseja negociá-la
no momento (aguarda condições de mercado mais favoráveis, segundo seu
julgamento), mas precisa de capital de giro e o obtém junto aos bancos, dando
em garantia do empréstimo o penhor sobre elas. Na primeira negociação do WA
em separado, serão registrados no sistema do MBO o valor de negociação deste
título, taxa de juros, vencimento e outras informações que permitam aos
interessados mensurar a extensão do ônus que recai sobre o produto armazenado
(Lei n. 11.076/2004, art. 17).
Por sua vez, o endosso do CDA em separado do WA investe o
endossatário na condição de titular da propriedade das mercadorias
armazenadas, menos um de seus atributos: o da onerabilidade. Quer dizer, o
titular do CDA pode negociar os produtos armazenados, mas não os pode dar em
penhor. Evidentemente, não encontrará no mercado ninguém interessado em
pagar-lhe pelo CDA o mesmo valor que pagaria por produtos livres e
desembaraçados. Normalmente, quem adquire o CDA em separado do WA
abate do preço o equivalente à obrigação garantida por este último título. É na
negociação do CDA, isoladamente ou em conjunto com o WA, que se verifica o
emprego desses títulos armazeneiros como instrumento de investimento ou
especulação.
A pedido do depositante, o
armazém de agronegócio deve
emitir dois títulos de crédito
(CDA e WA), que, embora sejam
criados
necessariamente
juntos, podem circular em
separado. A circulação em
separado do WA importa a
constituição de penhor sobre a
mercadoria depositada, sendo
o endossatário investido na
condição
de
credor
pignoratício do endossante. Já
a circulação em separado do
CDA importa a transferência
ao endossatário da titularidade
da mercadoria depositada,
exceto um de seus atributos: o
da onerabilidade.
Em princípio, o armazém de agronegócio só pode entregar o produto
agrícola ou pecuário nele depositado a quem lhe exibir as primeiras vias dos dois
títulos (além de pagar pelos serviços de armazenagem). O credor do CDA e do
WA que tiver o interesse em levantar a mercadoria do armazém deve, assim,
solicitar a sua “baixa escritural” no MBO e pedir à entidade registradora a
entrega das cártulas (primeiras vias) que, durante a circulação em meio
eletrônico, ficaram nela custodiadas.
O titular apenas do CDA que deseja levantar o produto depositado tem,
assim, duas alternativas: a primeira é resgatar o WA das mãos de quem o titula,
pagando a obrigação garantida pelo penhor e reunindo os dois títulos; a segunda é
consignar o valor do WA (principal e juros) junto à entidade custodiante,
recebendo desta um documento comprobatório da consignação. Na segunda
hipótese, providenciada a “baixa escritural” dos títulos, o sujeito se dirige ao
armazém de agronegócio, onde, exibindo a primeira via do CDA e o documento
comprobatório da consignação e pagando as despesas de armazenagem, pode
levantar o produto agrícola ou pecuário ali depositado. De sua parte, a entidade
custodiante pagará ao titular do WA, com os recursos nela consignados para esta
finalidade (Lei n. 11.076/2004, art. 21, § 1º, II e §§ 2º e 4º a 6º).
O titular apenas do WA, como visto, é credor pignoratício do primeiro
endossante deste título. Se a obrigação garantida não for honrada no vencimento,
abrem-se-lhe as seguintes alternativas: 1ª) se o titular do CDA havia consignado o
valor deste título junto à entidade custodiante, o credor do WA deve procurá-la
para receber seu pagamento; 2ª) se não houve a consignação, ele pode promover
a execução da garantia pignoratícia. Esta execução pode recair diretamente
sobre o produto depositado, hipótese em que será vendido em leilão promovido
em bolsa de mercadoria, ou sobre o CDA correspondente, expropriando-se
judicialmente o título de quem o detenha para ser, em seguida, negociado,
juntamente com o WA, em bolsa de mercadoria ou de futuros ou em MBO. Nas
duas alternativas, o produto da venda é empregado, sucessivamente, na
liquidação da obrigação garantida pelo WA, pagamento das despesas de
armazenagem e entrega do saldo remanescente ao credor do CDA (Lei n.
11.076/2004, art. 17, §§ 2º e 3º).
O regime cambial do CDA e do WA é o do Código Civil. Quando os títulos
foram instituídos, em 2004, já estava em vigor o art. 903 do CC. Desse modo,
enquanto o Conhecimento de Depósito e o Warrant emitidos por armazéns-gerais
continuam regidos pelas normas e preceitos genéricos da LU, o CDA e o WA
submetem-se, em matéria cambial, ao CC. Ademais, a Lei n. 11.076/2004 fixou
três regras cambiais específicas para estes títulos. A exemplo das CPRs, também
no caso do CDA e WA, o endosso deve ser completo e não importa a obrigação
do endossante pela entrega do produto, mas somente pela existência da
obrigação; além disso, o protesto não é necessário para conservação do direito
contra endossantes e seus avalistas.
4.4. Refinanciamento do Agronegócio e Securitização
O refinanciamento e a securitização são meios de o financiador de uma
atividade econômica, negociando com instituição financeira ou investidores,
“antecipar” a realização de valor financiado, com o objetivo de dispor de
recursos para promover novos financiamentos. O que diferencia a securitização
do refinanciamento é a segregação dos riscos numa sociedade de propósito
específico (a companhia de securitização).
No que diz respeito ao refinanciamento e à securitização no contexto do
agronegócio, a lei criou três títulos: o Certificado de Direitos Creditórios do
Agronegócio (CDCA), a Letra de Crédito do Agronegócio (LCA) e o Certificado
de Recebíveis do Agronegócio (CRA). A principal diferença entre eles diz
respeito ao emissor: o CDCA só pode ser emitido por cooperativas ou
empresários do agronegócio, a LCA somente por instituições financeiras e o
CRA, por companhia securitizadora de recebíveis do agronegócio. A disciplina
desses títulos se abriga, também, na Lei n. 11.076/2004.
São títulos de crédito sujeitos à regência supletiva do Código Civil (art.
903) e, também, a duas normas específicas: 1ª) o endosso deve ser completo, não
se admitindo os títulos ao portador; 2ª) o protesto é facultativo para a cobrança
contra os coobrigados, isto é, dos endossantes e seus avalistas (Lei n. 11.076/2004,
art. 44). Eles podem servir de instrumento de investimento, facultando a lei sua
negociação em bolsa de valores, de mercadorias e futuros e em MBO.
Os títulos de refinanciamento
e securitização do agronegócio
são lastreados em direitos
creditórios
oriundos
de
atividades
empresariais
exploradas
nesta
cadeia
econômica. Variam conforme
os sujeitos autorizados por lei
para emiti-los: os empresários
ou cooperativas emitem o
CDCA,
as
instituições
financeiras, o LCA, e a
companhia de securitização de
recebíveis do agronegócio, o
CDA.
Os títulos de refinanciamento e securitização do agronegócio devem
necessariamente lastrear-se em créditos originados de negócios jurídicos
entabulados entre os agentes da cadeia de agribusiness. Nenhum crédito
constituído em operação econômica estranha ao agronegócio pode ser
empregado como lastro desses títulos. Nos termos da lei, os direitos creditórios
em questão devem ser “originários de negócios realizados entre produtores
rurais, ou suas cooperativas, e terceiros, inclusive financiamentos ou
empréstimos, relacionados com a produção, comercialização, beneficiamento ou
industrialização de produtos ou insumos agropecuários ou de máquinas e
implementos utilizados na atividade agropecuária” (Lei n. 11.076/2004, art. 23,
parágrafo único). Este conceito legal circunscreve os direitos creditórios do
agronegócio.
4.4.1. Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio (CDCA)
O CDCA pode ser emitido exclusivamente por cooperativas de produtores
rurais ou por sociedades empresárias que exploram atividade de
comercialização, beneficiamento ou industrialização de produtos ou insumos
agropecuários, bem como de máquinas e implementos utilizados na produção
agropecuária (Lei n. 11.076/2004, art. 24, parágrafo único). Imagine que uma
indústria vende tratores a prazo aos produtores rurais. Os créditos derivados
destas operações de venda podem servir de lastro para a emissão de um CDCA
pela indústria de tratores, para colocação junto a investidores.
Os direitos creditórios do agronegócio vinculados à CDCA podem estar
documentados numa variada gama de instrumentos jurídicos, como a Duplicata
Mercantil, a Nota Promissória Rural, CPR, CDA e WA. Os créditos oriundos de
contratos mercantis podem também lastrear o CDCA, mas isso não tem sido
usual em razão de dificuldades operacionais derivadas da falta de padronização
(Buranello, 2009:371).
Para servirem de lastro à emissão do CDCA, os direitos creditórios do
agronegócio devem estar registrados no MBO e seus respectivos documentos
custodiados numa instituição financeira (ou outra entidade autorizada pela CVM a
prestar serviço de custódia de valores mobiliários). Caberá à instituição
custodiante, além da guarda da documentação, realizar a liquidação dos direitos
creditórios vinculados ao CDCA. Para isso, ela deve ser investida em poderes de
mandatária do emitente para cobrar e receber os créditos que lastreiam o título.
A emissão do CDCA implica a constituição de penhor legal sobre os
créditos vinculados. Estes, ademais, são insuscetíveis de qualquer constrição
judicial para cobrança de outras obrigações do emitente do título. Garantias
convencionais, como aval, hipoteca ou alienação fiduciária sobre outros bens do
emitente ou de terceiros, podem ser adicionadas ao penhor legal, com o objetivo
de tornar o título mais atraente aos olhos dos potenciais investidores.
O CDCA pode ser emitido em suporte exclusivamente eletrônico,
mediante registro em MBO (Lei n. 11.076/2004, art. 35).
4.4.2. Letra de Crédito do Agronegócio (LCA)
A Letra de Crédito do Agronegócio (LCA) somente pode ser emitida por
instituições financeiras, também tendo por lastro créditos decorrentes de
operações de financiamento entabuladas com agentes do agronegócio. Colocada
junto a investidores, a LCA viabiliza a captação de recursos para possibilitar à
instituição financeira emitente a realização de novos financiamentos às atividades
econômicas ou outra operação própria a seu objeto.
Tal como no caso do CDCA, os direitos creditórios vinculados à LCA
devem estar registrados em MBO e seus documentos custodiados numa
instituição autorizada a prestar este serviço. Também se estendem aos direitos
creditórios que fornecem o lastro à LCA o penhor legal instituído em favor dos
investidores adquirentes do título e a impossibilidade de qualquer constrição
judicial por outras obrigações do emitente. São igualmente aplicáveis à LCA as
regras do CDCA atinentes à admissibilidade de garantias convencionais
adicionais e a emissão, circulação e liquidação exclusivamente em suporte
eletrônico.
4.4.3. Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA)
Os Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA) só podem ser
emitidos por companhias securitizadoras de direitos creditórios do agronegócio.
Elas são sociedades anônimas dedicadas à aquisição de créditos dessa natureza
(isto é, apenas os mencionados no parágrafo único do art. 23 da Lei n.
11.076/2004), especificamente com o objetivo de utilizá-los como lastro para a
emissão do CRA, que será, como o CDCA e a LCA, colocado junto a
investidores.
A emissão do CRA pode ser feita sob regime fiduciário ou não, a
depender unicamente da declaração de vontade da companhia securitizadora,
expressa no Termo de Securitização. No primeiro caso, constituir-se-á um
patrimônio separado, integrado, de um lado, pelos direitos creditórios do
agronegócio adquiridos (ativos separados), e, de outro, pela obrigação de resgate
do CRA (passivo separado). No regime fiduciário, nenhuma outra obrigação da
companhia securitizadora (à exceção das dívidas trabalhistas e fiscais — art. 76
da Medida Provisória n. 2.158-35/2001) pode ser executada sobre os direitos
creditórios de agronegócio vinculados à CRA, nem mesmo em caso de falência
(LF, art. 119, IX). No segundo, sendo a emissão feita fora do regime fiduciário,
não há a constituição de patrimônio separado, e qualquer credor da companhia
securitizadora, mesmo que não seja titular de CRA, pode buscar a satisfação de
seu crédito mediante expropriação judicial dos direitos creditórios de
agronegócio. Evidentemente, a companhia securitizadora decidirá se institui ou
não o regime fiduciário em cada série de emissão, em função das condições de
mercado, levando em conta que a constituição do patrimônio separado sempre
implicará maiores garantias aos investidores e, portanto, maior atratividade ao
CRA.
4.5. Nota Comercial do Agronegócio (NCA)
Qualquer sociedade empresária atuante no agronegócio pode, uma vez
cumpridas as condições legais e regulamentares aplicáveis, captar recursos no
mercado de valores mobiliários, mediante a emissão de ações ou debêntures.
Nesses casos, não há nenhuma especificidade derivada de seu objeto: ela se
submeterá ao mesmo regime jurídico das companhias abertas (Cap. 19 e 20,
item 2). Quando se trata, contudo, de captar recursos a curto e médio prazos, em
vez do commercial paper posto à disposição das companhias abertas em geral
(Cap. 20, item 5), a sociedade empresária dedicada a agronegócio terá ao
alcance um valor mobiliário específico: a Nota Comercial do Agronegócio
(NCA). Este valor mobiliário está disciplinado na Instrução CVM n. 422, de 20 de
setembro de 2005.
A NCA é uma nota promissória que admite emissão pública, para fins de
captação, pelo seu emitente, de recursos junto ao mercado de valores
mobiliários. Seu vencimento é de no máximo 360 dias (art. 5º), revelando-se,
assim, um instrumento mais apropriado à captação de recursos para custeio do
agronegócio. Além de companhias abertas, também as fechadas e até mesmo as
sociedades limitadas e cooperativas podem se valer, dentro de certos limites,
deste instrumento de captação de recursos. De acordo com o regulamento da
CVM, a emissora deve se dedicar à atividade de “produção, comercialização,
beneficiamento ou industrialização de produtos ou insumos agropecuários, ou de
máquinas e implementos utilizados na atividade agropecuária” (art. 2º). A
captadora que não for sociedade anônima aberta deve requerer o registro como
emissora de NCA (salvo se o prazo de resgate for de até 270 dias, quando estará
dispensada desta formalidade).
Para emitir NCA, deve-se atender aos mesmos procedimentos e cautelas
que a CVM exige dos demais agentes captadores de recursos no mercado de
valores mobiliários, destinados a garantir ampla transparência e segurança ao
investidor, tais como a contratação de uma instituição financeira intermediária, a
divulgação do prospecto, prestação de contas periódicas à autarquia e ao
mercado etc.
ÍNDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO
(O primeiro número refere-se ao capítulo e o segundo, ao item ou subitem.)
Abstração
— subprincípio da: 10:2.3.1
Abuso do poder econômico
Ver Infração da ordem econômica
Accessio temporis
— noção: 5:4.1
Aceite
— cláusula não aceitável: 11:3.2
— conceito: 11:3
— domiciliado: 11:3.1
— duplicata: 14:3
— limitativo: 11:3.1
— modificativo: 11:3.1
— recusa parcial: 11:3.1
Agronegócio
Ver Títulos do agronegócio
— Definição: 15:4
Análise econômica do direito
— e as externalidades: 1:10
— responsabilidade contratual: 1:12
Atividade inventiva
— e adição de invenção: 6:2
— noção: 6:4.2
Atos cambiais
— aceite: 11:3
— aval: 11:5
— endosso: 11:4
— e o Plano Collor: 11:4.3
— saque: 11:2
Atos de comércio
— teoria dos: 1:4
Autonomia cambial
— princípio da: 10:2.3
Aval
— conceito: 11:5
— e fiança: 11:5.2
— e garantias extracartulares: 11:5.3
— simultâneos: 11:5.1
Aviamento
— clientela: 5:1
— noção: 5:1
CADE
— competência: 7:3.2
— natureza: 3:4.2; 7:3.2
— noção: 7:3.1
Cartularidade
— princípio da: 10:2.1
Cédula de crédito
— à exportação: 15:3.1
— bancário: 15:3.2
— comercial: 15:3.1
— de produto rural: 15:4.2
— industrial: 15:3.1
— rural: 15:3.1
Cessão civil de crédito
— e endosso: 11:4.2
Cheque
— administrativo: 13:2.1
— circulação: 13:1.1
— conceito: 13:1
— cruzado: 13:2.1
— modalidades: 13:1.2
— para se levar em conta: 13:1.2
— pós-datado: 13:2
— prazo de apresentação: 13:1.3
— pré-datado: 13:2
— sem fundos: 13:4
— sustação: 13:3
— visado: 13:1.2
Ciência do direito
— noção: 1:9
Competição
Ver Concorrência
CONAR
— abrangência: 9:2.1
— referência: 9:2
— sanções: 9:2.2
Concentração econômica
— conclusão: 7:4
— controle preventivo: 7:7
Concorrência
Ver também Concorrência desleal
— autofágica: 7:9
— direito-custo: 1:12
— disciplina contratual: 7:9
— e o Mercosul: 3:4.2
— ilícita: 7:8
— não restabelecimento: 5:6.3
— prejuízo à livre: 7:4.2
— vantagem competitiva: 3:1
Concorrência desleal
— classificação: 7:2.1
— e impedimentos à patenteabilidade: 6:4.4
— específica: 7:2.2
— noção: 7:2
— publicidade comparativa: 9:11
— repressão civil: 7:2.3
— segredo de empresa: 6:2.1
— usurpação de nome empresarial: 6:9.2
— usurpação de título de estabelecimento: 6:10
Conhecimento de depósito
— do agronegócio: 15:4.3
— título armazeneiro: 15:1.2
Constituição econômica
— conceito: 7:3
— perfil neoliberal: 7:1, 3
Consumidor
— conceito: 9:1
— direito-custo: 1:12
— e o Mercosul: 3:4.2
— informação: 8:5, 5.1, 5.2; 9:4.4
— pagamento de título de crédito: 11:7.2
— qualidade de bens e serviços: 8
— vícios no fornecimento: 3:4.2; 8:9
Conta de serviços
— noção: 14:6
Controle
— direitos do consumidor: 8:10.6
Correção monetária
— cheque: 13:4.2
— duplicata: 14:5.1
— pagamento em cartório: 11:8.2
Culpa
— comerciante: 8:7.3
— e infração da ordem econômica: 7:4.1
— harmonização do direito: 3:4.2
— profissionais liberais: 8:7.5
— publicidade: 9:7
— qualidade de produtos e serviços: 8:2
— sistema no fault: 8:2
Demonstrações contábeis
— balanço de determinação: 4:6
— noção geral: 4:6
— periodicidade: 4:6
Denominação
— formação: 6:9.2
— noção: 6:9.1
Desenho industrial
— e obra de arte: 6:3.2
— noção: 6:2
— originalidade: 6:5.1
— pedido de registro: 6:6.2
— registro: 6:5.1
Design
Ver Desenho industrial
Direito ambiental
— direito-custo: 1:11
— externalidades: 1:10
Direito antitruste
— noção: 7:3
Direito autoral
— e direito industrial: 6:3.1
— obra de arte: 6:3.2
Direito cambiário
— cláusula-mandato: 11:2.2
— constituição do crédito cambiário: 11:1 a 5
— e a informática: 10:5
— natureza da obrigação cambial: 10:3
— princípios: 10:2
Direito comercial
— direito-custo: 1:12
— e o direito empresarial: 1:8
— e o Mercosul: 3:4.2
Direito comparado
— Alemanha: 5:6.1; 6:1, 6; 11:1
— Argentina: 3:4.2; 4:5.1, 5.5; 5:6.1; 6:1, 9; 14:1
— Espanha: 6:1, 4.2; 7:1; 9:1, 11
— EUA: 3:4.2; 5:7, 7.1; 6:1, 2.1, 4.2, 6, 7.3; 7:1, 3.2; 8:1.2, 2, 3, 5.2; 9:1, 4.5;
11:2.1; 14:1
— Europa: 7:3.2; 8:6.1
— França: 1:4, 5; 5:6.1; 6:2.1, 4.2, 6; 7:1, 2.4; 9:1, 11; 13:4.3; 14:1, 5.2
— harmonização: 3:4.1
— Itália: 1:5; 5:6.1, 6.3; 6:6, 7.3; 7:1; 9:1, 2.2; 10:4
— Portugal: 7:1; 9:1; 14:1
— Reino Unido: 6:6; 8:3
— Suíça: 6:6
— Uruguai: 3:4.2; 9:11
Direito-custo
— acidente de trabalho: 1:12
— definição: 1:11
— direito comercial: 1:12
— Mercosul: 4:1
— recuperação de crédito: 1:12
Direito industrial
Ver também Propriedade industrial
— caducidade: 6:8
— cessão de: 6:7.2
— contrafação: 6:5.2
— e direito autoral: 6:3.1
— extinção: 6:8
— licença de: 6:7.1; 8:10.3, 10.4
— período de graça: 6:4.1, 5.1
Direito penal
— cheque sem fundos: 13:4.3
— concorrência desleal: 7:2.4
— duplicata simulada: 14:2
— publicidade enganosa ou abusiva: 9:9
Direito privado
— autonomia da vontade: 1:3
— e o direito público: 1:3
Direito público
— e o direito privado: 1:3
Domínio público
— direito industrial: 6:8
Dumping
— e concorrência: 7:5.s
— social: 3:4.1
Duplicata
— aceite: 14:3
— causalidade: 14:2
— conceito: 14:1
— de prestação de serviços: 14:6
— execução: 14:5
— meio eletrônico: 14:5.2
— protesto: 14:4
— registro de duplicatas: 4:5.1
— triplicata: 14:4.2
Economia
— e direito: 1:10 a 12
— informal: 4:3
— liberalismo: 7:1
— neoliberalismo: 7:1
Empresa
Ver também Microempresário
— e empresário: 4:1
— elemento de: 8:7.5
— inatividade: 4:4.6; 6:9.3
— no direito brasileiro: 1:7
— princípio da preservação: 6:7
— relações interempresariais e consumidor: 8:10
— segredo de: 6:2.1, 6.1; 7:2.2, 2.3, 2.4
— teoria da: 1:5
— teoria da empresa em si: 5:1
Empresário
— como fornecedor: 8:7.1
— conceito: 4:1
— de pequeno porte: ver Microempresário
— individual: 6:9.1
— obrigações gerais: 4:3
— rural: 4:4.5
— sociedade empresária: 4:2
Endosso
— caução: 11:4.1
— conceito: 11:4
— e cessão civil de crédito: 11:4.2
— espécies: 11:4
— impróprio: 11:4.1
— mandato: 11:4.1
Escrituração
— falta de escrituração: 4:5.7
— funções: 4:5
— livros: 4:5.1
— processos: 4:5.3
— registro de duplicata: 14:2
— regularidade: 4:5.2
Espionagem econômica
— referência: 7:2.2
Estabelecimento
Ver também Aviamento, Fundo de comércio e Ponto
— alienação: 5:6; 6:9.2
— conceito: 5:1
— elementos: 5:3
— natureza: 5:5.1
— shopping center: 5:5
— sucessão: 5:6.1; 8:10.2
— título de: 6:10
Estado
— capitalista: 1:2; 1:9
— do bem-estar social: 1:2; 1:9; 7:1
— liberal: 1:3
— socialista: 1:2
Estado da arte
— dever de pesquisar: 8:6.1
— noção: 8:6.2
Estado da técnica
— e design: 6:5.1
— e estado da arte: 8:6.2
— noção: 6:4.1
Execução específica
— direito-custo: 1:12
Externalidades
— internalização das:1:10
— noção: 1:10
Falência
— crime falimentar: 4:5.5, 6
— e teoria da empresa: 1:7
— irregularidade da sociedade: 4:4.4
— trespasse irregular: 5:6.1
Fatura
— noção: 14:3
Fiança
— caracterização: 11:5.3
— e aval: 11:5.2
Firma
— formação: 6:9.2
— noção: 6:9.1
Franquia
— circular de oferta: 5:7.1
— e concorrência: 7:5.k
— e relações de consumo: 8:10.5
— noção: 5:7
— registro: 5:7.2
Fundo de comércio
Ver Estabelecimento
Globalização
— cláusula social: 3:3
— integração econômica: 3:4
Hacking
— crime: 7:2.4
— referência: 7:2.2
História do direito comercial
— brasileiro: 1:6
— direito cambiário: 11:1
— direito industrial: 6:1, 4.4, 10
— escrituração: 4:5, 5.3
— períodos: 1:4
— registro do comércio: 4:4
— Tribunais do Comércio: 4:4
Informática
— duplicata eletrônica: 14:5.2
— e escrituração mercantil: 4:5.3
— e o direito cambiário: 10:3
— espionagem: 7:2.2, 2.3
— prova judiciária: 4:5.5
Infração da ordem econômica
— abuso de posição dominante: 7:4.5
— aumento arbitrário de lucros: 7:4.4
— caracterização: 7:4
— colusão: 7:4
— compromisso de desempenho: 7:3.2
— condutas infracionais: 7:5
— discriminação: 7:5.1
— noção: 7:3
— recusa de fornecimento: 7:5.m
— sanções: 7:6
— venda casada: 7:5.e, w
Inoponibilidade
— subprincípio da: 10:2.3.2
INPI
Ver também Direito industrial
— exame prévio: 6:6
— livre concessão: 6:6, 6.2
— processo administrativo: 6:6
— referência: 6:2
— registro da franquia: 5:7.2
INSS
— acesso aos livros do empresário: 4:5.5
Joias
— proteção pelo direito industrial: 6:3.2
Junta comercial
— competência: 4:4.1, 4.2
— estrutura: 4:4.1
— história: 4:4
Juros
— cheque: 13:4.2
— duplicata: 14:5.1
Letra de câmbio
— requisitos: 11:2.1
Literalidade
— princípio da: 10:2.2
Livre-iniciativa econômica
— e livre concorrência: 7:4.2
— prejuízo: 7:4.2
— princípio constitucional: 7:1
Livros
— classificação: 4:5.1
— Código Brasileiro de Trânsito: 4:5
— exibição judicial: 4:5.5
— extravio ou perda: 4:5.4
— princípio do sigilo: 4:5.5
Locação empresarial
— e teoria da empresa: 1:7
— e trespasse: 5:6.2
— locação-gerência: 5:4.2, 4.4
— requisitos: 5:4.1
— retomada: 5:4.2
Lucros
— aumento arbitrário: 7:4.4
Marca
— alto renome: 6:5.2
— caducidade: 6:8
— cessão: 6:7.2
— coletivas: 6:2.2
— de certificação: 6:2.2
— e nome empresarial: 6:9.3
— licença: 5:7; 6:7.1
— noção: 6:2
— pedido de registro: 6:6.3
— registro: 6:5.2
— sonora: 6:2
Marca notória
— contrafação: 6:5.2
— degeneração: 6:7.3
— noção: 6:5.2
— publicidade comparativa: 9:11
Mercado
— de competição perfeita: 1:10
— divisão de: 7:5.c
— em causa: 7:4.3
— limitar o acesso ao: 7:5.d
— regulação: 7:5.j
— relevante: 7:4.3
Merchandising
— publicidade simulada: 9:3
— responsabilidade perante o consumidor: 8:10.4
Mercosul
— harmonização do direito: 3:4.1
— noção geral: 3:4
Microempresário
— Estatutos: 4:5.1
— pequeno empresário: 4:4.5
— SIMPLES: 4:5.1
Nome empresarial
— elemento fantasia: 6:9.1
— e marca: 6:9.3
— espécies: 6:9.1
— formação: 6:9.2
— noção: 6:9
— proteção: 6:9.2
— razão social: 6:9.1
Nota fiscal-fatura
— noção: 14:3
Nota promissória
— regime: 12:2
— requisitos: 12:1
Obrigação cambial
— natureza: 10:3
Pagamento de título de crédito
— cautelas: 11:7.2
— em cartório: 11:8.2
— prazo para apresentação: 11:7.1
Patente
— atividade inventiva: 6:4.2
— caducidade: 6:8
— cessão: 6:7.2
— defesa nacional: 6:6.1
— desimpedimento: 6:4.4
— industriabilidade: 6:4.3
— licença: 6:7.1
— novidade: 6:4.1
— originalidade: 5:4.1
— patenteabilidade: 6:4
— pedido: 6:6.1
— reivindicações: 6:6.1
Planos econômicos
— Plano Collor: 11:4.3
Ponto
— indenização pela perda: 5:4.4
— noção: 5:4
— trespasse: 5:6, 6.2
Prazos
— apresentação do cheque: 13:1, 1.3
— caducidade: 6:8
— duração do direito industrial: 6:8
— guarda dos livros: 4:5.5
— inatividade: 4:4.5
— licença compulsória: 6:7.1
— pedido de exame: 6:6.1
— período de graça: 6:4.1, 5.1
— prescrição cambial: 11:9; 13:4.1; 14:5
— prioridade: 6:6.4
— publicação de pedido no INPI: 6:2.1, 6.1
— registro na Junta: 4:4.3
— renovatória: 5:4.3
— saneamento de vícios: 8:9.1
— vícios: 8:9.3
Preços
— combinados em licitação pública: 7:5.h
— concertados: 7:5.a
— de revenda: 7:5.k
— excessivos: 7:5.x
— oscilação artificial: 7:5.i
— predatório: 7:5.r
Princípios
— do direito comercial internacional: 3:2
Processo civil
— ação cambial: 11:9
— ação renovatória: 5:4.3
— ações cambiais do cheque: 13:4.1
— direito-custo: 1:12
— execução da duplicata: 14:5
— exibição judicial dos livros: 4:5.5
— inoponibilidade: 10:2.3.2
— prova judicial: 4:5.6
Produtos e serviços
— alta periculosidade: 8:4.2
— defeituosos: 8:1.2, 7
— perigosos: 8:1.1, 4
— riscos normais: 8:4.1
— viciados: 8:1.3, 8, 9
Programa de computador
— proteção: 6:3
— registro: 6:3.1
Propaganda
Ver também Publicidade
— política: 9:1
Propriedade comercial
Ver também Ponto
— noção: 5:4
Propriedade industrial
— adição de invenção: 6:2
— bens da: 6:2
— direito-custo: 1:12
— e propriedade intelectual: 6:3
— exploração: 6:7
— invenção: 6:2
— modelo de utilidade: 6:2
— prioridade: 6:6.4
— segredo de empresa: 6:2.1
— transferência: 6:7.2
Propriedade intelectual
— açambarque: 7:5.p
— noção: 6:3
Protesto
— cancelamento: 11:8.3
— conceito: 11:8
— falta de pagamento: 11:8.1
— pagamento em cartório: 11:8.2
— por indicações: 10:2.1; 14:4.1
Publicidade
Ver também Publicidade abusiva, Publicidade comparativa e Publicidade
enganosa
— abusiva: 9:5
— agência de propaganda: 9:10
— autorregulação publicitária: 9:2
— consumidor: 9:1
— contrapropaganda: 9:8.1
— enganosa: 9:4
— enganosidade por omissão: 9:4.5
— exclusividade de: 7:5.g
— Publicity: 9:6
— simulada: 9:3
Publicidade abusiva
— caracterização: 9:5.7, 5.8, 5.9
— discriminação: 9:5.1
— e crianças: 9:5.4
— incitação à violência: 9:5.2
— nocividade à saúde e segurança: 9:5.6
— superstição: 9:5.3
— tabaco: 9:5.6
— valores ambientais: 9:5.5
Publicidade comparativa
— e concorrência desleal: 9:11
— e degeneração de marca notória: 6:7.3
— e direitos do consumidor: 9:11
Publicidade enganosa
— consumidor-padrão: 9:4.3
— enganosidade por omissão: 9:4.5
— falsidade: 9:4.1
— princípio da transparência: 9:4.5
— princípio da veracidade: 9:4.5
— teaser: 9:4.4
Registro de empresas
— atos: 4:4.2
— e teoria da empresa: 1:7
— falta do registro: 4:4.4
— órgãos: 4:4.1
— procedimentos: 4:4.3
— regimes: 4:4.3
Relação de consumo
— referência: 9:1
Responsabilidade administrativa
— anunciante: 9:8, 8.2
— cheque sem fundos: 13:4.3
Responsabilidade civil
— anunciante: 9:7
— comerciante: 8:7.3
— concorrência desleal: 7:2.3
— direito-custo: 1:12
— fabricante, produtor, construtor e importador: 8:7.2
— infração da ordem econômica: 7:6
— objetiva: 1:12; 3:4.2; 7:4.1
— por risco de desenvolvimento: 8:6, 6.1
— prestador de serviços: 8:7.4
— profissionais liberais: 8:7.5
— vícios: 8:8.3
Responsabilidade contratual
— direito-custo: 1:12
— disciplina da concorrência: 7:9
— princípio da relatividade: 3:4.2; 8:3
Riscos
— de desenvolvimento: 8:6
— excludente: 8:7.2
— informações sobre: 8:5.2
— normais e previsíveis: 8:4.1
SDE
— referência: 7:3.1
Seres vivos
— impedimento à patenteabilidade: 6:4.4
Shopping center
— cláusula de não restabelecimento: 5:6.3
— concorrência autofágica: 7:9
— noção: 5:5
— renovação da locação: 5:5
Socialismo
— marxismo: 1:1, 2
Sociedades
— consorciadas: 8:10.6
— controladas e coligadas: 8:10.6
— empresárias: 4:2
— grupo de: 8:10.6
— irregulares: 4:4.4
Software
Ver Programa de computador
Solidariedade
— e o direito cambiário: 10:3
Sucessão
— alienação do estabelecimento: 5:6.1
— consumidor: 8:10.2
— direito à renovação: 5:6.2
— dívidas fiscais: 5:6.1
— dívidas trabalhistas: 5:6.1
— firma: 6:9.2
Súmulas
— STF, 189: 11:5.1
— STF, 246: 13:4.3
— STF, 387: 11:2.3
— STF, 439: 4:5.5
— STF, 554: 13:4.3
— STJ, 26: 11:5.3
— STJ, 60: 11:2.2
Tarifa externa comum
— noção: 3:4
Tecnologia jurídica
— comunidade jurídica do Mercosul: 3:4.2
— noção: 1:9
Teoria da alavanca
— vendas casadas: 7:5.w
Títulos de crédito
Ver também Direito cambiário
— abstração: 10:2.3.1
— ação cambial: 11:9
— atípicos: 15:2.2
— autonomia: 10:2.3
— cartularidade: 10:2.1
— classificação: 10:4
— conceito: 10:1
— conta de serviços: 14:6
— em branco ou incompleto: 11:2.3
— impróprios: 15:1
— inominados: 15:2.2
— inoponibilidade: 10:2.3.2
— literalidade: 10:2.2
— não regulados: 15:2.1
— pagamento: 11:7
— sujeitos ao Código Civil: 15:3
— vencimento: 11:6
Títulos do Agronegócio
— CDA: 15:4.3
— CDCA: 15:4.4.1
— CPR: 15:4.2
— CRA: 15:4.4.3
— Espécies: 15:4
— LCA: 15:4.4.2
— NCA: 4.5
— Suporte: 15:4.1
— WA: 15:4.3
Trespasse
Ver Ponto
Triplicata
— noção: 14:4.2
União aduaneira
— noção: 3:4
União de Paris
— concorrência desleal: 7:2.2
— e a marca notória: 6:5.2
— noção: 6:1
— prioridade: 6:6.4
Warrant
— do agronegócio: 15:4.3
— título armazeneiro: 15:1.2
Zona de Livre Comércio
— NAFTA: 3:4
— noção: 3:4
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