O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM
ENCÍCLICA LAUDATO SI
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Reitor
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Vice-reitor
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Pró-Reitora de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação
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Pró-Reitor de Missão, Identidade e Extensão
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Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito
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Coordenação científica
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Organização
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Manuel Munhoz Caleiro
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Manuel Munhoz Caleiro
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Milka Castro Lucic
Priscila Lini
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S729c Souza Filho, Carlos Frederico Marés et al.
O direito e o cuidado da casa comum: Encíclica Laudato Si/Carlos Frederico Marés de
Souza Filho, Fernanda Letícia Soares Pinheiro (coord.); Amanda Ferraz da Silveira, Bruna
Balbi Gonçalves, Manuel Munhoz Caleiro (org.). – Curitiba: CEPEDIS, 2019.
312 p. 20cm.
ISBN: 978-85-94360-11-3
1. Direito. I. Carlos Frederico Marés de Souza Filho. II. Fernanda Letícia Soares Pinheiro. III. Amanda Ferraz da Silveira. IV. Bruna Balbi Gonçalves. V. Manuel Munhoz Caleiro
VI. Título.
CDD 340
CDU 349
SUMÁRIO
PREFÁCIO
Danielle de Ouro Mamed e Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega ................................ 7
A PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE, O PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO
NO DIREITO AMBIENTAL E A PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL (PEC) No 65/2012
Marina Batisti Soares Pinto ..................................................................................................... 15
CRISE ALIMENTAR E A LAUDATO SI: O CASO DO AUMENTO DOS PREÇOS DOS ALIMENTOS
Ener Vaneski Filho .................................................................................................................... 29
CRISE SOCIOAMBIENTAL E SOCIEDADE DE RISCO: UMA ANÁLISE A
PARTIR DA ENCÍCLICA LAUDATO SI
Dayla Barbosa Pinto
Danielle de Ouro Mamed
Luciana Rodrigues Pinto ......................................................................................................... 43
DIREITO AO REFÚGIO: A LACUNA JURÍDICA SOBRE OS DESLOCADOS
POR DESASTRES AMBIENTAIS
Karoline Strapasson
Amanda Carolina Buttendorff R. Beckers ........................................................................... 59
ENCÍCLICA LAUDATO SI: A RELAÇÃO ENTRE O CAPITALISMO, NATUREZA E O DIREITO SOCIOAMBIENTAL
Flávia Thomaz Soccol
João Guilherme Holzmann Duarte ....................................................................................... 77
“ESTA TERRA É MINHA!”: A QUESTÃO TERRITORIAL E SUAS IMPLICAÇÕES CONFLITUOSAS NA SOCIEDADE MOÇAMBICANA
Azarias Maluzane Chunguane ............................................................................................... 95
O CUIDADO COM A CIDADE: JUSTIÇA AMBIENTAL, ESPAÇOS, PROCESSOS E RELAÇÕES DE VULNERABILIDADE AMBIENTAL EM SANTA
CRUZ DO SUL (RS)
Ana Flávia Marques
Tábata Aline Bublitz .............................................................................................................. 115
O DANO MORAL COLETIVO À COMUNIDADE REMANEJADA DE
MUTUM-PARANÁ EM RONDÔNIA E A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO
DE SEU RESSARCIMENTO EM PATRIMÔNIO HISTÓRICO
Rosimery do Vale Silva Ripke
Breno Azevedo Lima ............................................................................................................. 135
O DIREITO E O CUIDADO COM A CASA COMUM: A CRISE ECOLÓGICA E OS CAMINHOS DO DESENVOLVIMENTO
Gisele Jabur
Juliana de Oliveira Sales......................................................................................................... 159
O LIXO E OS RESIDUOS: IMPRESSOES ECOLOGICAS E CULTURAIS NO
TRATO DA CASA COMUM
Fábia Ribeiro Carvalho de Carvalho
Robéria Silva Santos ............................................................................................................... 179
O PODER NA EPISTEMOLOGIA SOCIOAMBIENTAL DA ECOLOGIA
POLÍTICA: IDENTIFICAÇÃO DAS POSSIBILIDADES TRANSFORMATIVAS NO CAMPO JURÍDICO-INSTITUCIONAL
Ana Lizete Farias
Nathalia Lima Barreto ........................................................................................................... 199
OS SINTOMAS DA VIDA “AGORISTA” NA SOCIEDADE DE CONSUMO:
A QUESTÃO DOS RESÍDUOS SÓLIDOS E A LAUDATO SI
Luiz Guilherme Natalio de Mello ....................................................................................... 217
REFLEXÕES SOBRE AS PERSPECTIVAS DE PROTEÇÃO DO DIREITO
FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE
Flora Regina Camargos Pereira ............................................................................................ 235
SOCIEDADE DE RISCO E O IMPERATIVO ECOLÓGICO EM HANS
JONAS E NA ENCÍCLICA LAUDATO SI: POSSÍVEIS PERSPECTIVAS AO
DIREITO PARA O ENFRENTAMENTO DA CRISE ECOLÓGICA
Rudinei Jose Ortigara ............................................................................................................ 255
UM DIÁLOGO ENTRE O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E A ENCÍCLICA LAUDATO SI: PARA ALÉM DO DISCURSO
HEGEMÔNICO DO DIREITO
Daniel Gonçalves de Oliveira
Fabiana Ferreira Novaes
Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega .............................................................................. 281
UMA ANÁLISE DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE URBANAS
A PARTIR DA LEI 11.977/2009
Luiza de Araujo Furiatti ........................................................................................................ 297
PREFÁCIO
Os problemas que o planeta vem enfrentando diante de uma incontestável crise do ser humano frente a seu entorno, conformam uma realidade difícil de contestar. A perda das características dos ecossistemas,
da biodiversidade, da qualidade das águas e do ar, a poluição em todas as
suas formas e um notável desrespeito às diversas sociedades, caracterizam,
tristemente, os dias atuais.
A questão ambiental, antes de ser uma crise da natureza, é parte
de uma crise civilizacional sem precedentes, diante da qual, perplexa, a
humanidade observa com certa naturalidade, apesar do desconforto latente
que bate à porta todos os dias. O distanciamento entre o humano e o
natural, fruto de uma modernidade que objetifica a natureza, traz como
consequência a transformação radical do mundo natural em mercadoria,
deixando de lado a qualidade de vida humana e de todas as demais formas
de vida que compõem a biosfera.
É bem verdade que desde meados do Século XX, a humanidade
vem se preocupando de maneira mais contundente com os problemas
ambientais. No entanto, não há como negar que as medidas tomadas,
embora importantes e pertinentes, não têm sido suficientes para combater
os problemas a que se referem. Normas ambientais, tratados internacionais,
ações da sociedade civil e o engajamento de todos os setores sociais são
medidas fundamentais, mas parecem necessitar algo além.
Nesse sentido, apresentamos nesta obra, reflexões acerca de uma
iniciativa no campo teológico: No dia 24 de maio de 2015, foi divulgada
a encíclica papal denominada “Laudato Si”. Um importante documento
formulado pelo Papa Francisco, atual pontífice, de origem latino-americana por sua nacionalidade argentina, e conhecido mundialmente por
sua postura de humildade e de preocupação para com as populações mais
vulneráveis.
Diferentemente do que se espera tradicionalmente de um documento pontifício, a Laudato Si surpreendeu por abordar o tema da questão
socioambiental de forma tão precisa, sensível e contundente, apontando
para os modelos econômicos adotados como a fonte primeira de todas as
negatividades experimentadas pela sociedade atual em sua relação com a
natureza.
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PREFÁCIO
A conscientização, as palavras de alerta e o chamamento papal a
uma nova postura, na Encíclica, são de tamanha importância, a ponto
de que aqueles que se preocupam com a temática do meio ambiente não
poderiam se furtar de analisar o texto e de se deleitar com a sua profundidade e sensatez... Mesmo aqueles mais céticos e desvinculados a uma fé
religiosa, cristã e católica.
Para fundamentar o chamado que Francisco faz à humanidade, a
Encíclica contém informações acerca do depauperamento dos recursos
naturais, dos desequilíbrios ambientais em geral, facilmente validáveis nos
mais diversos estudos científicos sobre o tema, dando visibilidade a esta
situação de degradação e conclamando a humanidade a tomar uma atitude
frente a ela. Algumas dessas informações são trabalhadas pelos autores
deste livro, demonstrando como as palavras contidas no documento se
refletem em temas socioambientais específicos.
Não obstante se tratar de um texto de matriz religiosa, a grata surpresa da Encíclica reside em uma abordagem humanista da crise ambiental, tratando não apenas da fragilidade dos ecossistemas diante das ações
humanas, mas, em especial, traz com sensibilidade os problemas que as
populações mais vulneráveis sofrem em razão de dita crise. Diante disso, o
Pontífice convida a humanidade a caminhar lado a lado: “irmãs e irmãos”,
“homens e mulheres”.
Deste modo, a Encíclica papal chamou a atenção dos estudiosos no
âmbito acadêmico para as questões socioambientais pela coerência das
suas observações e pelo apelo de suas palavras à conscientização da humanidade a respeito da degradação ambiental em curso e das consequências
dramáticas para os povos. Nesse sentido, destaca-se o esforço da realização
desta obra, que busca reunir análises de diversos pesquisadores que se
dedicam à questão socioambiental, com o objetivo de estudar as valiosas
contribuições da encíclica aos problemas dessa natureza.
Como primeira contribuição à análise proposta, Marina Batisti
Soares Pinto, traz o texto “A proteção do meio ambiente, o princípio da
prevenção no direito ambiental e a Proposta de Emenda Constitucional
(PEC) Nº 65/2012”. A questão trazida pelo artigo refere-se à proposta de
acrescentar o § 7º ao art. 225 da Constituição Federal, criando um suporte
legal para assegurar a continuidade de obras públicas após a apresentação
do Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA), fragilizando-se as demais
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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exigências posteriores que a legislação impõe. A autora aborda o tema na
perspectiva de que devem ser evitados retrocessos na legislação já consolidada, de modo que medidas desta natureza vão contra todos os esforços
que se tem despendido para a proteção ambiental.
Por sua vez, Ener Vaneski Filho trata do tema “Segurança alimentar
e Laudato Si: o caso do aumento dos preços dos alimentos”, trazendo questões sobre a crise civilizacional com enfoque às consequências negativas
suportadas pelos mais pobres e apontando a questão do aumento nos
preços dos alimentos em razão de problemas socioambientais. O autor
traz como estudo de caso o aumento no preço do feijão, especificamente,
frente às crises econômicas e aos problemas ambientais, dando ênfase à
questão das mudanças climáticas.
Dayla Barbosa Pinto, Danielle de Ouro Mamed e Luciana Rodrigues Pinto, apresentam o trabalho “Crise socioambiental e sociedade de
risco: uma análise a partir da Encíclica Laudato Si”. No texto, as autoras
trazem elementos da relação entre humanidade e natureza, convidando
à saída do antropocentrismo em direção ao cuidado comum defendido
pela Encíclica. As análises trazidas buscam relacionar a proposta do papa
à Teoria da Sociedade de Risco, de Ulrich Beck, que, embora tenha suas
limitações, traz interessantes aportes a respeito da opção social, imposta
pelas forças econômicas e políticas, de absorver os riscos da modernidade
em nome de um progresso, ainda acarrete em problemas ambientais a
serem suportados por todos, indistintamente.
Também contribuem com a análise da questão, Karoline Strapasson
e Amanda Carolina Buttendorff Beckers, com texto intitulado “Direito
ao refúgio: a lacuna jurídica sobre os deslocados por desastres ambientais”, tratando da necessidade de defesa do refúgio, no campo do direito
internacional, como instituto de grande valia no caso de deslocados por
razões ambientais. As autoras defendem a ideia como direito humano,
cuja observância é imperiosa diante das catástrofes ambientais que vem
se disseminando e as consequências sociais correlatas. A vinculação entre
direitos humanos e questão ambiental também é algo presente nos discursos do Papa Francisco, que tem buscado dar maior ênfase àqueles que
são deslocados de seus lares por algum motivo.
Por seu turno, Flávia Thomaz Soccol e João Guilherme Holzmann
Duarte, enfrentam o espinhoso tema das incongruências do modelo
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PREFÁCIO
capitalista frente à natureza no texto “Encíclica Laudato Si: a relação entre
o capitalismo, natureza e o direito socioambiental”, analisando a questão
sob o viés das contribuições da Encíclica papal sobre a crise ambiental,
relacionando-as à teoria da sociedade do risco. Os autores destacam que
o Papa Francisco optou por utilizar de sua influência papal ao escrever a
carta chamando a atenção para um tema tão sensível, visando servir de
norte na disseminação de que o planeta Terra é um bem comum, de todos
e para todos.
Com uma análise de caso internacional, contribui Azarias Maluzane
Chunguane com o trabalho ‘“Esta terra é minha!”: a questão territorial
e suas implicações conflituosas na sociedade moçambicana’. A proposta
apresentada estuda as diferentes situações vividas em Moçambique no
que se refere ao uso e aproveitamento de terra em razão dos conflitos
socioambientais naquele país.
Ana Flávia Marques e Tábata Aline Bublitz também trazem um interessante estudo de caráter local, demonstrando como a crise ambiental
traz danos nesse contexto. Com o texto “O cuidado com a cidade: justiça
ambiental, espaços, processos e relações de vulnerabilidade ambiental em
Santa Cruz do Sul (RS)”, as autoras observam que as parcelas da população urbana detentoras de rendas mais baixas ou que fazem parte de
grupos sociais excluídos estão sujeitas a maior carga de danos causados
por impactos ambientais negativos, desenvolvendo a questão da justiça
ambiental no contexto local. Os resultados obtidos em suas pesquisas
até o momento evidenciaram uma ligação entre a ocorrência de conflitos
socioambientais e a estruturação da sociedade, devendo ser consideradas
a exploração comercial, industrial e imobiliária como fatores de um papel
importante nos mecanismos de destinação de cargas de danos ambientais
a essas populações.
Já Rosimery do Vale Silva Ripke e Breno Azevedo Lima, trazem o
texto “O dano moral coletivo à comunidade remanejada de mutum-paraná
em Rondônia e a possibilidade de aplicação de seu ressarcimento em patrimônio histórico”, observando conflitos em face do meio ambiente cultural
através de um estudo de caso, qual seja, o dano moral coletivo atribuível à
comunidade de Mutum-Paraná, em Rondônia, devido à degradação ocorrida em razão do remanejamento populacional decorrente da construção
da Usina de Jirau no Rio Madeira.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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Na sequência, tem-se o trabalho de Gisele Jabur e Juliana de Oliveira
Sales, que tratam da sensível questão do desenvolvimento e seus choques
com a necessária preservação do meio ambiente. Com o texto “O direito
e o cuidado com a casa comum: a crise ecológica e os caminhos do desenvolvimento”, as autoras analisam o tema, considerando as denúncias contidas na Encíclica no sentido de apontar os problemas ambientais como
resultado do padrão de desenvolvimento adotado pelas sociedades. O
texto foi desenvolvido de forma extremamente pertinente ao adotar uma
proposta epistemológica do pensamento decolonial, permitindo examinar
a realidade através da ótica da teoria dos sistemas-mundo e da colonialidade do poder.
Já Fábia Ribeiro Carvalho de Carvalho e Robéria Silva Santos trazem o texto “O lixo e os resíduos: impressões ecológicas e culturais no
trato da casa comum”, analisando o tema dos resíduos sólidos sob a ótica
da Encíclica. As autoras discutem acerca da regulamentação do tema na
medida em que os resíduos são produzidos no universo diuturnamente nas
interações humanas e da biosfera, gerando inúmeros conflitos e patologias
sociais. Na ótica das autoras, esses problemas não vem sendo devidamente
enfrentados pela Política Nacional de Resíduos Sólidos.
No texto de Ana Lizete Farias e Nathalia Lima Barreto, “O poder
na epistemologia socioambiental da ecologia política: identificação das
possibilidades transformativas no campo jurídico-institucional”, as autoras
se debruçam sobre o estudo das relações de poder na
ecologia política e nos potenciais na transformação da realidade no
campo jurídico-institucional diante das questões centrais que envolvem a
questão socioambiental, com enfoque na sua construção epistemológica.
Por sua vez, Luiz Guilherme Natalio de Mello busca contribuir
com o debate da Encíclica através do texto intitulado “Os sintomas da
vida “agorista” na sociedade de consumo: a questão dos resíduos sólidos
e a Laudato Si”. O autor faz uma interessante relação entre as análises de
Zygmunt Bauman, acerca do imediatismo da sociedade atual e a cultura
do descarte evidenciada no texto papal, sinalizando para a necessidade de
uma profunda reflexão acerca do modo de vida consumista e destrutivo
que tem sido desenvolvido.
Trazendo uma discussão a partir da importância dos direitos
fundamentais, Flora Regina Camargos Pereira contribui com o texto
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PREFÁCIO
“Reflexões sobre as perspectivas de proteção do direito fundamental ao
meio ambiente”. A autora traz aportes basilares para a compreensão do
direito ao meio ambiente como um dos pontos-chave para a observação
do que se entende como direitos fundamentais, destacando o papel de
um meio ambiente saudável para uma sociedade livre, justa e solidária.
Por seu turno, Rudinei Jose Ortigara traz sua contribuição com o
texto “Sociedade de risco e o imperativo ecológico em Hans Jonas na encíclica Laudato Si: possíveis perspectivas ao direito para o enfrentamento
da crise ecológica”. Em sua análise, o autor realizou uma relação entre os
imperativos ecológicos de Hans Jonas, o princípio Responsabilidade, e as
disposições apresentadas pelo Papa Francisco, através da Encíclica.
Outra contribuição interessante é apresentada por Daniel Gonçalves
de Oliveira, Fabiana Ferreira Novaes e Maria Cristina Vidotte Blanco
Tárrega através do artigo “Um diálogo entre o novo constitucionalismo
latino-americano e a Encíclica Laudato Si: para além do discurso hegemônico do direito”. Os autores abordam o tema da crise ambiental por meio
de uma proposta de ruptura paradigmática do Direito para repensar a
América Latina, criticando as teorias jurídicas clássicas e eurocêntricas para
pensar uma epistemologia, contextual e conceitual. Os autores apresentam
o diálogo possível entre o Novo Constitucionalismo Latino-Americano
e a Encíclica Laudato Si, utilizando-se da proposta de uma nova racionalidade ambiental de Enrique Leff, aliada à ideia de sustentabilidade de
Leonardo Boff.
Finalmente, Luiza de Araujo Furiatti, analisa as disposições da Encíclica, relacionando-a à necessária observância do direito à moradia. No
texto intitulado “Uma análise das áreas de preservação permanente urbanas a partir da lei 11.977/2009”, a autora defende a aproximação entre as
discussões sobre preservação do meio ambiente e direito à moradia, trazendo alguns conflitos nesse sentido, que fundamentam o seu argumento.
Segundo a autora, a proposta é evidenciada na Encíclica.
Como é possível observar das contribuições postas, há que se reconhecer um movimento cada vez mais profundo em relação à preocupação
das diversas sociedades diante da causa socioambiental. Sob infinitos pontos de vista, a luta por um meio ambiente saudável, includente e afeito à
diversidade cultural que nos caracteriza, deve ser constante e precisa ser
orientada em valores plurais, voltados à dignidade da pessoa humana, à
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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observância dos direitos inerentes a cada indivíduo e às coletividades, com
todas as suas cores.
O texto presenteado à humanidade pelo Papa Francisco é, nada mais
nada menos, que um convite à reflexão sobre o caos que tem permeado
nossos dias e sobre as necessárias atitudes que precisam ser tomadas diante
desta realidade. Trata-se da indicação de um ponto de vista humano, preocupado com o bem-estar de todos, mas principalmente orientando-se
às nefastas consequências de um modelo ilimitado de desenvolvimento
para os mais vulneráveis. Afinal, do ponto de vista econômico, as mazelas
suportadas por essas parcelas da sociedade serão sempre as últimas a serem
consideradas, como parte de um histórico processo de invisibilização que
os mais pobres e marginalizados sempre sofreram nas engrenagens sociais.
Resta, então, o compromisso daqueles que possuem o privilégio do
acesso à informação e ao conhecimento científico de tomarem alguma
atitude frente ao diagnóstico da crise civilizacional hodierna, buscando
maneiras de refletir sobre os problemas postos e, na medida do possível,
colaborar para a produção de soluções. A Encíclica papal constitui uma
dessas atitudes louváveis, vindo de alguém de notável influência mundial,
porém, dono de um carisma e consciência social inegáveis. Dar o devido
destaque a este texto e analisá-lo em diversas nuances é realizar a justiça
esperada à temática e disseminar, como bons ventos, as sábias palavras de
Francisco.
Danielle de Ouro Mamed
Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega
A PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE, O PRINCÍPIO DA
PREVENÇÃO NO DIREITO AMBIENTAL E A PROPOSTA
DE EMENDA CONSTITUCIONAL (PEC) Nº 65/2012
THE ENVIROMENT PROTECTION, THE PREVETION
PRINCIPLE ON THE ENVIROMENTAL LAW AND THE
PROPOSED CONSTITUCIONAL AMENDMENT Nº 65/2012
Marina Batisti Soares Pinto1
RESUMO: A preservação do meio ambiente é uma das grandes questões
do Século XVI e voltou a ser priorizada por diversos setores da sociedade
atual, tendo em vista os diversos problemas ambientais decorrentes da
ação humana, os quais vem se mostrando cada vez mais evidentes nas
últimas décadas. Por último, o mais alto escalão da Igreja Católica Apostólica Romana se posicionou definitivamente pela importância das questões ambientais e do cuidado com o planeta, através da divulgação da
Encíclica Laudato Si’, escrita pelo Papa Francisco, na qual ele enfatiza as
questões ambientais. Em contraposição a isto, está tramitando no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição nº 65/2012, que
tem por objetivo acrescentar o § 7º ao art. 225 da Constituição Federal,
criando um suporte legal que assegura a continuidade de obras públicas
após a apresentação do Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA), de
modo que, a partir do momento em que for apresentado o EIA relativo ao
empreendimento, as obras deste somente poderão ser suspensas ou canceladas por fato superveniente. Sendo assim, verifica-se que caso seja efetivada essa alteração constitucional, o meio ambiente poderá sofrer grandes
consequências já que o mecanismo legal de controle ambiental, no caso
o licenciamento ambiental, se encontrará totalmente fragilizado diante
desta relativização do sistema que a referida PEC pretende instituir. Ademais, nesta seara, insurge também o problema jurídico-constitucional que
nos faz concluir a respeito da incompatibilidade material desta Proposta
de Emenda à Constituição, que encontra flagrante violação as Cláusulas
1 Graduanda do 8º período do Curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica do
Paraná – PUC/PR; estagiária no Setor de Direito Ambiental e Urbanístico do Escritório
RBGV Advogados.
Contato: marina.batisti@hotmail.com
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A PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE, O PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO NO DIREITO AMBIENTAL E A
PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL (PEC) Nº 65/2012
Pétreas, aos princípios constitucionais explícitos e a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil diante da comunidade internacional.
PALAVRAS-CHAVE: PEC, Encíclica, Meio Ambiente, Constituição.
ABSTRACT: Preservation of the environment is one of the big issues of the
sixteenth century and returned to be prioritized by various sectors of today
society in view of the various environmental problems caused by human
action, which are becoming increasingly evident in the last few decades.
Finally, the highest-ranking Roman Catholic Church definitely stood the
importance of environmental issues and the care of the planet, by the publication of the Encyclical Laudato Si’, wrote by Pope Francisco, where he
emphases this environmental questions . In contrast to this, transacts in the
National Congress the Proposed Amendment to the Constitution nº 65/2012,
which aims to add to § 7º art. 225 of the Federal Constitution, creating a
legal support that ensures the continuity of public works after the presentation
of the prior environmental impact study (called EIA in portuguese), so that,
presented the EIA of the project, the works may only be suspended or canceled by fact supervening. Thus, it appears that if this constitutional change
becomes made, the environment could suffer major consequences, since the
environmental control mechanism, in case the environmental licensing, finds
its system relativization on the terms of this Constitutional Amendment. In
addition, this field may also raise a legal constitutional problem that makes
us conclude about the material incompatibility of this Proposed Amendment
to the Constitution, which is flagrant violation of the foundation stones of
the Constitution, the explicit constitutional principles and the international
commitments made by Brazil on the international community.
KEY WORDS: Constitutional Amendment, Encyclical, Environment,
Constitution.
INTRODUÇÃO
O Supremo Tribunal Federal, em análise do disposto no caput do
art. 225 da Constituição, conceituou o direito ao meio ambiente a que
se refere o artigo como sendo “um típico direito de terceira geração que
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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assiste, de modo subjetivamente indeterminado, a todo o gênero humano,
circunstância essa que justifica a especial obrigação – que incube ao Estado
e à própria coletividade – de defendê-lo e de preservá-lo em benefício das
presentes e futuras gerações”.2
Sendo assim, a Constituição definiu a natureza jurídica do meio
ambiente como sendo um “bem de uso comum do povo”. Esta natureza
jurídica confere um caráter público específico aos bens desta natureza, de
modo que não se pode falar em “propriedade” dos bens de uso comum
do povo, inclusive porque, como apontado por José Alfredo de Oliveira
Baracho Júnior3, “o próprio serviço prestado pela Administração Pública
tem a característica de bem de uso comum do povo. Neste sentido é, logicamente, insuscetível de apropriação”.
Portanto, pela característica de bem coletivo conferida ao meio
ambiente, compete a todos a busca pela sua preservação e conservação.
Nesta seara, novamente Baracho Júnior pontua brilhantemente:
“É, portanto, o meio ambiente ecologicamente equilibrado um bem
de livre uso e fruição a todos os cidadãos, agindo o Poder Público no
sentido de Administrar a manutenção de sua integridade, exercendo
a vigilância necessária para tal”.4
Desta forma, diante de todos os problemas ambientais surgidos nas
últimas décadas, torna-se cada vez mais importante o cuidado e atenção
com o meio ambiente, de modo que tanto a coletividade, mas principalmente a Administração Pública, deve se valer de todos os mecanismos que
estejam a sua disposição para evitar prejuízos ambientais.
Ainda, a discussão ambiental chegou a tal ponto na atualidade, que
a própria Igreja Católica, através do mais alto clero, ousou manifestar-se
em prol da preservação do meio ambiente, conforme trecho da Encíclica
escrita pelo Papa Francisco:
“Torna-se indispensável criar um sistema normativo que inclua limites
invioláveis e assegure a proteção dos ecossistemas, antes que as novas formas
de poder derivadas do paradigma tecno-económico acabem por arrasá-los
2 STF, MS 22164-0 (SP), Relator: Ministro Celso de Mello, julgamento 30/10/1995,
DJU 17/11/1995.
3 BARACHO JÚNIOR, 2008, Pág. 84.
4 BARACHO JÚNIOR, 2008, Pág. 85.
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A PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE, O PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO NO DIREITO AMBIENTAL E A
PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL (PEC) Nº 65/2012
não só com a política, mas também com a liberdade e a justiça”.5
Ainda que nossa Constituição já contemple esta proteção jurídica
ao meio ambiente, ainda temos um longo caminho a percorrer, principalmente, pois ocorrem diversas tentativas de afrouxar o sistema jurídico
brasileiro de proteção ambiental, como é o caso da proposta de emenda
à Constituição nº 65/2012, que acaba por relativizar terminantemente o
sistema de licenciamento ambiental, que é o principal mecanismo jurídico de proteção ao meio ambiente diante das ações humanas, conforme
passaremos a demonstrar.
O PROJETO DE EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 65/2012 E
SUA FLAGRANTE VIOLAÇÃO CONSTITUCIONAL NO QUE
TANGE ÀS CLÁUSULAS PÉTREAS
Encontra-se em processo legislativo a Proposta de Emenda Constitucional nº 65/2012 que tem por objetivo acrescentar o §7º ao art. 225 da
Constituição Federal, dotando-a com a seguinte redação: “A apresentação
do estudo prévio de impacto ambiental importa autorização para a execução
da obra, que não poderá ser suspensa ou cancelada pelas mesmas razões a não
ser em face de fato superveniente”.
A modificação legislativa que a referida PEC pretende instituir fere
gravemente diversos preceitos constitucionais estabelecidos pelo poder
constituinte de 1988. Nas palavras do parecer nº 31/2016 emitido pelo
Instituto dos Advogados Brasileiros6 para os autos da referida PEC, tem-se
que este projeto de emenda “inicialmente institui que o simples protocolo de
um documento, o Estudo de Impacto Ambiental, seja convertido em licença.
A seguir, reveste esta licença de imutabilidade, salvo, na ocorrência de fatos
supervenientes”.
Sabe-se que o procedimento de licenciamento ambiental é um instrumento complexo, constituído por várias etapas que objetivam garantir
5 SANTO PADRE (PAPA) FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato Si’. Publicada em
24/05/2015. Acesso em 09/08/2016. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/
francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.
html>
6 AGRELLI, Vanusa Murta. Parecer Referente à indicação 31/2016 – PEC 65/2012. Rio
de Janeiro, 25 de maio de 2016. Disponível em: <http://www.senado.leg.br/atividade/
rotinas/materia/getPDF.asp?t=197850&tp=1>. Acesso em 11/08/2016.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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a segurança ambiental do local onde se encontra o empreendimento a ser
licenciado. Neste ponto, importante relembrar a divisão do Licenciamento
Ambiental, que ocorre em três fases distintas e insuprimíveis, as quais são
a outorga da Licença Prévia (LP), sucedida pela concessão da Licença de
Instalação (LI), e por fim da Licença de Operação (LO).
Com nomes sugestivos, cada licença possui um propósito específico,
não sendo permitido, por exemplo, iniciar as produções em uma fábrica, se
no andamento do seu licenciamento só se foi concedida a licença de instalação, que permite apenas a construção do empreendimento e nada mais,
sob pena do licenciado incorrer em infrações administrativas ambientais
definidas no Decreto 6514/20097.
Portanto, resta claro que o licenciamento ambiental envolve todo
um complexo trâmite, que analisa fase a fase os impactos que poderão ser
causados ao meio ambiente ao longo de todo o tempo de sua operação, não
somente durante o período em que perdurarem a instalação ou as obras.
Assim, podemos extrair do texto da emenda constitucional em
discussão, que em termos práticos, a apresentação do EIA irá equivaler
à própria licença ambiental, culminando assim na anulação de todo o
delicado processo de licenciamento, que se tornará despido de quaisquer
propósitos, uma vez que a simples apresentação do Estudo de Impacto
Ambiental impedirá que as obras em questão sejam paralisadas por qualquer irregularidade existente.
Ademais, importante ressaltar que apresentação do Estudo de
Impacto Ambiental e respectivo Relatório de Impacto Ambiental (EIA/
RIMA), bem como a realização da audiência pública obrigatória, são pré-requisitos para subsidiar apenas a etapa da Licença Prévia (LP), ou seja, a
apresentação do EIA/RIMA não é garantia nem da concessão da primeira
etapa do licenciamento ambiental, pois ainda, após apresentados, estes
estudos ainda seguiram pela análise do órgão ambiental, conforme art.
5º da Resolução do Conama8.
Sendo assim, além de infringir claramente o devido processo do
7 Importante também relembrar, que se o caso em questão ensejar danos ambientais específicos e tangíveis à fauna e a flora, poderá o licenciado incorrer além da infração administrativa, sofrer pena pelos crimes ambientais previstos na Lei 9605/1998.
8 Art. 5º da Resolução 9/87 do CONAMA: “a ata da(s) audiência(s) pública(s) e seus
anexos servirão de base, juntamente com o RIMA, para a análise e parecer final do licenciador, quando à aprovação ou não do projeto”.
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A PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE, O PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO NO DIREITO AMBIENTAL E A
PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL (PEC) Nº 65/2012
licenciamento ambiental, cumpre-nos analisar constitucionalmente a PEC,
tendo em vista que o texto legislativo em questão que encontra diversas
inconstitucionalidades.
Primeiramente, cumpre tratar da violação da referida PEC no que
tange às cláusulas pétreas. Conforme doutrina de José Afonso da Silva9,
afirma-se que as Constituições da República sempre tiveram em seus
conteúdos um núcleo imodificável, e no caso da Constituição de 1988,
este núcleo foi descrito no art. 60, § 4º que claramente determina “que
não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a
forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico,
a separação dos Poderes, os direitos e garantias individuais”.
As cláusulas pétreas são, portanto, as disposições constitucionais
imutáveis e intangíveis, as quais não serão passíveis de alterações restritivas
ou extintivas pelo poder constituinte derivado ou secundário.
Sendo assim, passaremos a demonstrar como a tutela ambiental se
insere no contexto das cláusulas pétreas, tornando-se garantias protegidas
pela égide do poder constituinte originário de 1988.
Existe uma relação entre o sistema de salvaguarda ambiental e o sistema de direitos humanos, que vem sendo pontuado desde a Declaração
de Estocolmo10, que reconheceu que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado está inserido entre os direitos fundamentais e entre
os direitos sociais do homem11.
Desta forma, a Declaração de Estocolmo, que foi pioneira em delimitar esta correlação, mas também outros documentos internacionais posteriores que inspiraram a criação do capítulo relacionado ao meio ambiente
na Constituição de 1988, buscam trazer um “humanismo ecológico”, como
bem pontua José Afonso da Silva12:
“O que é importante – escrevemos de outra feita – é que se tenha a consciência que o direito à vida, como matriz de todos os demais direitos
9 SILVA, 1995, Pág. 69.
10 Documento oriundo da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente,
ocorrida na cidade de Estocolmo no ano de 1972.
11 Muitas das referências internacionais relacionadas à proteção do meio ambiente, surgiram a partir da ECO-92 (Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e
Desenvolvimento). A conferência culminou na elaboração alguns documentos importantes
como o programa de ação denominado Agenda 21; uma declaração sobre meio ambiente
e desenvolvimento, e duas convenções a respeito de mudanças climáticas e biodiversidade.
12 SILVA, 1994, Pág. 44.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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fundamentais do homem é que há de orientar todas as formas de atuação
no campo da tutela do meio ambiente. Cumpre compreender que ele é
um fator preponderante, que há de estar acima de quaisquer outras considerações como as de desenvolvimento, como as de respeito e direito à
propriedade, como as da iniciativa privada. Também estes são garantidos
no texto constitucional, mas a toda evidência, não podem primar sobre o
direito fundamental à vida, que está em jogo quando se discute a tutela da
qualidade do meio ambiente. É que a tutela da qualidade do meio ambiente
é instrumental no sentido de que, através dela, o que se protege é um valor
maior: a qualidade da vida”.
Portanto, a partir da análise deste relevantíssimo ensinamento do
grande constitucionalista Prof. José Afonso da Silva, fica evidente que as
questões ambientais se inserem dentro do âmbito protegido pelas cláusulas
pétreas, pois ao ferir-se à garantia ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, colocar-se-á em voga o próprio direito à vida, que é amplamente
salvaguardado pela constituição, de modo que é evidente que o direito
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado se encontra dentro das
garantias individuais, que são insuscetíveis de supressão pelo legislador.
Ainda nesta seara, cumpre ressaltar o entendimento do Ministério
Público Federal, que proferiu parecer contrário à PEC 65/2012, confirme
brilhante explanação colacionada abaixo:
“Portanto, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito
fundamental, indisponível, que encontra seu núcleo normativo no Capítulo
VI do Título VIII da CF, que só contém o art. 225, com seus parágrafos
e incisos. Pertence a todos, incluindo aí as gerações presentes e as futuras,
sejam brasileiros ou estrangeiros. O dever de defender o meio ambiente
e preservá-lo, no entanto, é imputado ao Poder Público e à coletividade,
coletividade esta que inclui toda a sociedade brasileira, inclusive as comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas, etc.), que têm o direito de
ser consultados e de participar ativamente dos processos de controle da
qualidade ambiental, que possam a vir ter repercussão sobre sua qualidade
de vida, sob pena de ofensa, inclusive, aos tratados internacionais, tais como
a Convenção 169 da OIT, Pacto dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais da ONU, Convenção Americana dos Direitos Humanos, entre outros
que o Brasil se obrigou a observar.
Consideradas tais premissas, todas elas fundamentadas no direito interno e
no direito internacional dos direitos humanos, pode-se concluir, sem sombra de dúvida, que a Proposta de Emenda Constitucional 65/2012 subverte
a um só tempo, a função de um dos instrumentos mais importantes de
atuação administrativa na defesa do meio ambiente – O Estudo Prévio de
Impacto Ambiental – EIA, bem como fulmina a estrutura técnico jurídica
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A PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE, O PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO NO DIREITO AMBIENTAL E A
PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL (PEC) Nº 65/2012
em que se fundamenta o devido processo de licenciamento ambiental, com
suas indispensáveis etapas (viabilidade ambiental, instalação e operação)
para obras com significativo impacto ambiental, justamente aquelas para
as quais a Constituição Federal expressamente exige o Estudo Prévio de
Impacto Ambiental, ao qual se deve dar publicidade.”13
Assim, não podemos negar a clara inconstitucionalidade da PEC, que
não só entra em conflito material a legislação internacional abraçada pelo
Brasil, mas com os próprios termos e fundamentos da própria Constituição
Federal de 1988, bem como a toda a legislação infraconstitucional que
delimita os procedimentos do licenciamento ambiental.
O LICENCIAMENTO AMBIENTAL COMO UM DOS MEIOS
DE EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA
PREVENÇÃO
A concessão de licenças ou autorizações ambientais para empreendimentos que tenham como objeto atividades potencialmente poluidoras
é um dos mecanismos utilizados pela legislação para efetivar a proteção
ambiental.
Ou seja, através da apresentação dos estudos técnicos ambientais14
verifica-se previamente se a implantação de determinada atividade econômica ou a execução de determinada obra em um local específico irá causar
impactos ambientais, quais serão os níveis desses impactos e o que pode
ser feito para mitigá-los. Neste sentido, leciona o professor Celso Antônio
Pacheco Fiorillo15 a respeito do ‘Estudo Prévio de Impacto Ambiental
(EIA/RIMA)’:
13 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL – Grupo de Trabalho Intercameral (4ª Câmara
de Coordenação e Revisão; 6ª Câmara de Coordenação e Revisão; Procuradoria Federal
dos Direitos do Cidadão). Nota Técnica – A PEC 65/2012 e as cláusulas pétreas. Brasília,
3 de maio de 2016. Disponível em <http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/nota-tecnica-pec-65-2012/>. Acesso em 26.08.2016.
14 O artigo 3ª da Resolução 237/97 do CONAMA (Conselho Nacional do Meio
Ambiente) dispõe que: “a licença ambiental para empreendimentos e atividades consideradas efetiva ou potencialmente causadoras de significativa degradação do meio dependerá
de prévio Estudo de Impacto Ambiental e respectivo Relatório de Impacto Ambiental
sobre o meio ambiente (EIA/RIMA), ao qual dar-se-á publicidade, garantida a realização
de audiências públicas, quando couber, de acordo com a regulamentação.”
15 FIORILLO, 2014, Pág. 247.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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“Evidenciada sua existência no princípio da prevenção do dano ambiental,
o EIA/RIMA constitui um dos mais importantes instrumentos de proteção
do meio ambiente. A sua essência é preventiva e pode compor uma das
etapas do licenciamento ambiental.”
Portanto, através da análise destes estudos durante o processo de
licenciamento ambiental, faz-se uma prévia checagem de possíveis danos
ambientais antes da instauração da atividade ou do empreendimento em
determinado local.
Sendo assim, através do procedimento de licenciamento ambiental,
temos a consolidação do princípio da prevenção tendo em vista que depois
de realizada a análise dos estudos, se constatado que ocorrerão demasiados
impactos ao meio ambiente, que a área em questão pode sofrer danos
ambientais irreversíveis, ou até mesmo que o empreendimento será inviável
do ponto de vista ecológico16, podendo-se inibir a implantação do objeto
potencialmente causador de danos ambientais através do não licenciamento do projeto. A respeito do assunto, explica o professor Édis Milaré:
“Confinando a discricionariedade administrativa, o EIA tem o condão de,
pela via transversa, ampliar o controle judicial (e popular) dos atos administrativos ambientais. (...) Diante de um determinado EIA que, entre suas
recomendações, rejeite o projeto ou sugira uma determinada alternativa,
em detrimento daquela apresentada pelo proponente, o administrador tem
duas opções: a) aceita a solução proposta e, por exemplo, não licencia o
projeto; b) rejeita a solução apontada, e, por exemplo, licencia o projeto.
Em ambos os casos deve motivas sua decisão, mais ainda no último, já que
rejeita as conclusões cientificamente embasadas de um estudo técnico”.17
Portanto, nota-se que a discricionariedade Administrativa para licenciar ou não o projeto se torna vinculada aos termos do Estudo Prévio de
Impacto Ambiental, uma vez que este é elemento científico de análise
ambiental, não podendo o poder público, injustificadamente, permitir
a emissão das licenças ambientais para um objeto cujo EIA disponha a
respeito de graves riscos ambientais.
16 Neste sentido “Um exemplo típico da atuação preventiva é o instrumento do Estudo
Prévio de Impacto Ambiental, que tem por objetivo evitar a implementação de projeto
de desenvolvimento tecnicamente inviável do ponto de vista ecológico. Desta forma, a
prevenção, necessariamente implica em um mecanismo antecipatório do modo de desenvolvimento da atividade econômica, mitigando e avaliando os aspectos ambientais negativos.”
LEITE; AYALA, 2010, Págs. 54-55.
17 MILARÉ; BENJAMIN, 1993, Pág. 69.
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A PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE, O PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO NO DIREITO AMBIENTAL E A
PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL (PEC) Nº 65/2012
Desta forma, resta demonstrada uma das nuances da responsabilidade estatal diante da preservação do meio ambiente, neste caso através
dos mecanismos jurídicos de controle e preservação ambiental como o
licenciamento ambiental, conforme explicita o Professor Celso Antônio
Pacheco Fiorillo18:
“Sob o prisma da Administração, encontramos a aplicabilidade do princípio
da prevenção por intermédio das licenças, das sanções administrativas, da
fiscalização e das autorizações, entre outros tantos atos do poder Público,
determinantes da sua função ambiental de tutela do meio ambiente.”
Ainda, conforme explica Fernando Alves Correa19, as atuações
ambientais devem ser pautadas em consonância com o princípio constitucional da prevenção, que deve servir como norte para a realização de
políticas ambientais pela Administração Pública:
“O princípio da prevenção pode ser visto como um quadro orientador
de qualquer política moderna do meio ambiente. Significa que deve ser
dada prioridade às medidas que evitam o nascimento de atentados ao meio
ambiente.”
Assim, a Carta Magna delimita o dever da Administração Pública
em contribuir para a efetivação dos preceitos constitucionais a favor do
meio ambiente, positivando-se o texto constitucional a obrigação estatal
de cooperar e adotar medidas para a preservação do meio ambiente, juntamente com a observância do princípio da prevenção, que deverá conduzir
a conduta do poder público.
Neste âmbito, explica José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior20 a
respeito da obrigação estatal para com a preservação do meio ambiente,
bem como pela efetividade do princípio da prevenção nestes casos:
“As normas inscritas nos incisos I a VII do §1º do art. 225 da Constituição
refletem este princípio. Foi atribuído ao poder público o encargo de principal agente responsável pelo controle, recuperação melhoria da qualidade
ambiental, devendo tais fins serem atingidos, primordialmente, através da
prevenção ao dano.”
18 FIORILLO, 2014, Pág. 123.
19 CORREIA, 1989, Pág. 80.
20 BARACHO JÚNIOR, 2008, Pág. 99-100.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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Resta demonstrada assim, a importância do princípio da prevenção
para preservação do meio ambiente, de modo que a Constituição Federal
de 1988 concedeu status Constitucional a este princípio através de sua
consolidação no art. 225, §1º, sendo necessária a observância deste pela
Administração Pública durante suas condutas administrativas em favor
do meio ambiente.
Aqui encontramos um dos pontos centrais pelo qual se mostra inconcebível a aprovação da PEC 65/2012. Demonstrada a responsabilidade
da Administração Pública para com a preservação do meio ambiente e
pela efetivação do princípio da prevenção, não há como admitir no texto
constitucional uma disposição que infira tamanha arbitrariedade para a
execução de empreendimentos que sejam potencialmente poluidores.
A PEC 65/2012, ao delimitar que após a apresentação do Estudo
de Impacto Ambiental as obras estarão com seu seguimento garantido
exceto por fato superveniente, praticamente dispensa que os empreendimentos passem por todo o complexo crivo do licenciamento ambiental,
procedimento este que será o principal mecanismo para que se garanta
de maneira preventiva que o meio ambiente permaneça em seu estado
ecológico esperado.
CONCLUSÃO
Conforme exposto, resta claro que a PEC 65/2012 se mostra totalmente dissonante dos termos da nossa legislação, principalmente no que
tange ao devido processo de licenciamento ambiental, pois acaba por
determinar que apenas o protocolo do Estudo de Impacto ambiental, irá
equivaler como se o empreendimento possuísse a própria Licença Prévia e
a Licença de Instalação, sem ter passado por qualquer dos procedimentos
necessários para tal.
Ainda, demonstrou-se que a PEC 65/2012 encontra flagrante violação constitucional no que se refere às cláusulas pétreas, pois o direito
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado se insere dentro dos das
garantias individuais que não poderão ser suprimidas pelo legislador, pois
um ambiente saudável está intimamente ligado ao próprio direito à vida,
de modo que ao permitir a execução de obras nos termos desta PEC sem o
devido processo de licenciamento, ficaremos suscetíveis de sofrer grandes
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A PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE, O PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO NO DIREITO AMBIENTAL E A
PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL (PEC) Nº 65/2012
desastres ambientais, que poderão afetar diretamente a saúde e a qualidade
de vida das pessoas envolvidas.
E ainda, na questão ambiental é sumamente importante primar
pela prevenção do dano, pois uma vez ocorrido, raramente se conseguirá
estabelecer o status quo do meio ambiente, contanto que se positivou o
princípio da prevenção na Constituição Federal, de modo que esta PEC
infere claramente a ideia deste princípio, pois garante a execução de um
empreendimento a despeito de suas inviabilidades ambientais.
Ademais, salutar pontuar o problema que caso está PEC seja aprovada trará no âmbito do Poder Judiciário, que terá sua atuação altamente
limitada no que se refere à proteção ambiental, pois ao magistrado, ao ter
nas mãos uma demanda ambiental, não terá poderes para interromper
obras que sejam suscetíveis de causar qualquer degradação ambiental,
uma vez que se terá determinação constitucional expressa que impedirá
a paralização das obras.
Portanto, em linhas gerais, demonstra-se os principais pontos em
que Proposta de Emenda à Constituição 65/2012 encontra violações
legais, sendo inconcebível que tais termos sejam incorporados ao texto
constitucional, sob pena de incorrermos em graves problemas ambientais
decorrentes da desídia com o mecanismo do licenciamento ambiental
instituído por esta PEC.
REFERÊNCIAS
BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Proteção do Meio
Ambiente na Constituição da República. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
CORREIA, Fernando Alves. O plano Urbanístico e o princípio da
igualdade. Coimbra: Almedina, 1989.
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 15ª ed. São Paulo: Saraiva: 2014. Pág. 123.
LEITE, José Rubens Morato; AYALA Patryck de Araújo. Dano Ambiental. Do individual ao coletivo extrapatrimonial. Teoria e Prática. 3ª ed.
rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 15ª
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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ed., rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Malheiros, 2007.
MILARÉ, Édis; BENJAMIN, Antônio Herman V. Estudo prévio de
impacto ambiental: teoria, prática e legislação. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1993.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 10ª
ed. nos termos da Revisão Constitucional de 1994. São Paulo: Malheiros,
1995.
SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo:
Malheiros, 1994.
CRISE ALIMENTAR E A LAUDATO SI: O CASO DO
AUMENTO DOS PREÇOS DOS ALIMENTOS
FOOD CRISIS AND LAUDATO SI: THE
CASE OF RISING FOOD PRICES
Ener Vaneski Filho1
RESUMO: Vivemos uma crise multidimensional. Alguns apontam que
estamos diante de uma crise civilizacional, onde diversas crises se entrelaçam e se retroalimentam: (desmatamento, erosão, desertificação, escassez
de água, mudança climática desigual em suas múltiplas escalas geográfica),
crise energética, crise alimentar, crise migratória, crise da urbanização
(cidades entrópicas e entropizantes), crise política (democracias débeis),
crise sanitária (enfermidades de pobres, enfermidades de ricos, pandemias,
ebola, gripe aviária, vaca louca, gripe suína), crise militar (guerras por todo
lado), crise econômica. Nessa conjuntura que surge a Encíclica Papal, a
Laudato Si, sobre o cuidado da casa comum. Pretendemos nesse artigo dar
atenção ao problema da segurança alimentar, mais precisamente a soberania alimentar no Brasil utilizando-se do olhar Encíclica Papal sobre meio
ambiente e sociedades. Para isso escolhemos um tema atual, que contêm
em suas sementes a história recente do problema da alimentação: os preços dos alimentos, no caso, o feijão. Depois da crise do capital em 2008 e
com a perda de liquidez nos negócios, muitos investidores migraram seus
investimentos para o setor da comida, que se tornou o “maior negocio do
planeta”. Em 2014, ano em que a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) declarou como ano da agricultura familiar,
se chamava a atenção para a quinta maior cultura do país e a necessidade
da estruturação da cadeia produtiva do feijão. Em 2016 sob a alegação de
problemas climáticos e com o advento da crise econômica-social-politica-midiática no Brasil o preço disparou e os mais afetados foram os pobres.
Em 2015 a encíclica chamava a atenção que o processo de aumento de
preços e perda da qualidade de vida estava que se agravava rapidamente.
Percebemos que ela estava correta ao vermos agora os preços dos alimentos
aumentando, tanto produto da especulação financeira, como produto das
mudanças climáticas. A análise e a prática dos caminhos indicados pelo
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CRISE ALIMENTAR E A LAUDATO SI: O CASO DO AUMENTO DOS PREÇOS DOS ALIMENTOS
Papa Francisco ainda pode evitar as “Guerras da fome”.
PALAVRAS-CHAVE: crise alimentar; guerras da fome; sementes; feijão.
ABSTRACT: We live in a multi-dimensional crisis. Some people point we
are in front of a crisis of civilization where other several crises relate and provide feedback: deforestation, erosion, desertification, water scarcity, climate
change, energy crisis, food crisis, migration crisis, crisis urbanization (entropic
cities), political crisis (weak democracies) health crisis (poor infirmities, rich
illness, pandemics, ebola, H1N1, BSE, swine flu), military crisis (wars all
over the place) and economic crisis. At this conjuncture it appears the Papal
Encyclical, the Laudato Si, on the care of the common home. We intend in
this article to give attention to the problem of food security, specifically food
sovereignty in Brazil using the alert of Papal Encyclical on the environment
and societies. For this choose a current topic, which contain in their seeds the
recent history of the food problem: food prices, in case the beans. After the
crisis of capital in 2008 and the loss of liquidity in business, many investors
have migrated their investments to the food sector, which has become the
“biggest business on the planet”. In 2014, the Food and Agriculture Organization (FAO) declared as year of family farming, he drew attention to the
fifth largest crop in the country and the need for structuring productive bean
chain. In 2016 on the grounds of climate problems and with the advent
of the economic-social-political-media crisis in Brazil the price skyrocketed
and the most affected were the poor. In 2015 the encyclical called attention
to the process of price increases and loss of quality of life was that worsened
quickly. We realized that it was correct to now seeing food prices increasing
both product of financial speculation, as a product of climate change. The
analysis and the practice of the paths indicated by Pope Francis can still avoid
the “Hunger Wars”.
KEYWORDS: food crisis; hunger wars; seeds; bean
INTRODUÇÃO
Este trabalho pretende ser um ensaio de aproximação com a questão
da alta dos alimentos, o que entendemos ser parte de uma Crise Alimentar, contida em uma crise maior: uma Crise Civilizacional. A encíclica
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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Laudato Si chamava a nossa atenção para o risco da piora da qualidade de
vida, afetando os mais pobres principalmente, notamos que o aumento do
preço de alimentos básicos como o feijão reflete a preocupação da encíclica.
A fase atual do capitalismo é marcada pela acumulação por espoliação
(HARVEY, 2004), e nela o capital tenta controlar em primeiro lugar as
terras e águas para controlar o “negócio da comida”. Duas variáveis inflexíveis, levando às “guerras da fome”, onde explorando como uma renda
qualquer, se joga com a escassez, sem contar a crise climática que vivemos,
sendo agravada gradativamente com a dominação territorial pelo modelo
do agronegócio que, como solução à crise que causa, oferece modelos de
pagamentos por serviços ambientais que privam ainda mais as populações
locais de suas formas de vida. A ideia é sempre criar mais consumidores.
O empobrecimento do campesinato não é natural, ele é processual, a
negação da cultura (incluída a economia) se faz de forma violenta. Objetivamente se faz pela dominação dos mercados onde os agricultores necessitem comprar ou vender e, subjetivamente, pela disseminação de que eles
seriam atrasados perante uma cultura e valores urbanos.
O ALERTA DA LAUDATO SI
O meu apelo
13. O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação
de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar. O Criador não
nos abandona, nunca recua no seu projeto de amor, nem Se arrepende de
nos ter criado. A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na
construção da nossa casa comum. Desejo agradecer, encorajar e manifestar
apreço a quantos, nos mais variados sectores da atividade humana, estão a
trabalhar para garantir a proteção da casa que partilhamos. Uma especial
gratidão é devida àqueles que lutam, com vigor, por resolver as dramáticas consequências da degradação ambiental na vida dos mais pobres do
mundo. Os jovens exigem de nós uma mudança; interrogam-se como se
pode pretender construir um futuro melhor, sem pensar na crise do meio
ambiente e nos sofrimentos dos excluídos (LAUDATO SI, 2015, p. 13).
O Papa Francisco em 2015 publica um importante documento onde
mostra sua preocupação com a “Casa comum”, nela o Sumo Pontífice
chama a reflexão toda a humanidade e dentre as suas preocupações estão
a alimentação adequada.
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CRISE ALIMENTAR E A LAUDATO SI: O CASO DO AUMENTO DOS PREÇOS DOS ALIMENTOS
No mundo 800 milhões de pessoas não tem acesso adequado à
comida, havendo, ainda, um bilhão de pessoas com outro tipo de fome,
a nutricional. Temos um bilhão de pessoas que comem, mas estão desnutridas, ou seja, quase um terço da humanidade está mal nutrida. Silvia
Ribeiro, pesquisadora do grupo ETC2 argumenta que os números são
ainda piores, ela sustenta que a metade da humanidade tem problemas
com a alimentação, 800 milhões com fome, 2 bilhões mal nutridos e 1
bilhão com sobrepeso (RIBEIRO, 2016).
A perda do conhecimento tradicional é o triunfo do sistema industrial, a ruína agrária é o alicerce do agronegócio. Isso faz parte de uma constatação, a objetividade são os dados, a subjetividade como os encaramos, e
elas têm sido formados pelo poder do monopólio radical da modernidade
canalha. O barco “afunda e a banda continua tocando” (BARTRA, 2014).
A insegurança alimentar só foi reconhecida no final dos anos 80 e
não tinha origem na oferta, mas na pobreza que inviabilizava o acesso aos
alimentos. Foi nessa década que o conceito passou a envolver também os
aspectos nutricionais e sanitários, passando a ser denominada segurança
alimentar e nutricional. Chegou-se, então, ao conceito de segurança alimentar caracterizada pela situação em que todos têm acesso físico e econômico à alimentação adequada, sem risco de desabastecimento.
O conceito de segurança alimentar evoluiu significativamente ao
longo do tempo. A definição utilizada no presente trabalho é a formulada
na Cúpula Mundial da Alimentação, realizada em Roma, Itália, em 1996.
Segundo esta definição, existe segurança alimentar quando todas as pessoas, em todos os momentos, têm acesso físico e econômico a alimentos
seguros, nutritivos e suficientes que atendam suas necessidades dietéticas
e preferências alimentares para uma vida ativa e saudável (FAO, 1996).
Já em 1949 o artigo vinte e cinco da Declaração Universal dos Direitos Humanos, quando diz que “Toda pessoa tem direito a um padrão de
vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação” (ONU, 1948, p.76), declara a alimentação como um dos direitos fundamentais no encalço da garantia da dignidade da pessoa humana.
Tal documento, aprovado na Assembleia Geral das Nações Unidas em
1948, é o primeiro a reconhecer na jurisdição internacional o direito à
alimentação como obrigação imperativa de todos os Estados diante de
2 Grupo de Ação sobre Erosão, Tecnologia e Concentração (ETC Group).
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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seus nacionais e da comunidade de Estados nação.
O direito à alimentação adequada realiza-se quando cada homem, mulher
e criança, sozinho ou em companhia de outros, tem acesso físico e econômico, ininterruptamente, à alimentação adequada ou aos meios para sua
obtenção (ONU, 1999, p. 3).
Há que se destacar, ainda, as várias dimensões que a obrigação do
direito à alimentação toca. A primeira deles: direito de autodeterminação
dos povos, sendo a disponibilidade e o acesso ao alimento peças chave na
construção da soberania cultural.
A encíclica chama a atenção para a raiz climática da crise, no caso o
uso da água, já que a agropecuária é uma das atividades humanas que mais
usam recursos hídricos:
Uma maior escassez de água provocará o aumento do custo dos alimentos e
de vários produtos que dependem do seu uso. Alguns estudos assinalaram
o risco de sofrer uma aguda escassez de água dentro de poucas décadas, se
não forem tomadas medidas urgentes. Os impactos ambientais poderiam
afectar milhares de milhões de pessoas, sendo previsível que o controle da
água por grandes empresas mundiais se transforme numa das principais
fontes de conflitos deste século (LAUDATO SI, 2015, p. 27).
Porém crises alimentares podem ser produtos de um evento natural,
mas também e principalmente são resultado de vários fatores combinados,
segundo a Fundação das Nações Unidas para Alimentação (FAO).
Crises alimentares são comumente vistas erroneamente como consequências de influência climática. Na verdade, elas representam muito mais que
isso, possuem causas em setores diferenciados e podem ter sua origem em
fatores naturais, porém a permanência do estado de crise pode ser causada
pela má estruturação do país, sem condição de responder às necessidades para a reabilitação da economia e para o abastecimento da população
(FAO, 1996).
A FAO fez um alerta sobre a necessidade de medidas urgentes para
proteger as populações pobres diante do aumento dos preços dos alimentos. O documento da FAO ressalta que a segurança alimentar está
sendo adversamente afetada pela escalada dos preços dos alimentos básicos decorrente de estoques baixos devido às secas, inundações, mudanças
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CRISE ALIMENTAR E A LAUDATO SI: O CASO DO AUMENTO DOS PREÇOS DOS ALIMENTOS
climáticas, preço elevado do petróleo e demanda crescente para biocombustíveis (FAO, 1996).
No ano de 2008 a crise econômica que começou nos EUA com o
super endividamento das famílias no crédito imobiliário, fez com muitos capitais migrassem para fundos de investimentos e assim o preço dos
alimentos começaram a subir em todo o mundo.
Figura 1 – Índice de Preços dos Alimentos
Fonte: FAO. http://www.fao.org/worldfoodsituation/FoodPricesIndex/en/
AUMENTO DO PREÇO DOS ALIMENTOS
Em 2007 dezenas de milhares de pessoas protestaram na Cidade do
México contra a forte alta das tortilhas, de US$ 5,00 um ano antes para
até US$ 20,00 em algumas regiões, pedindo redução do preço e mudanças na política econômica e o presidente da República, Felipe Calderón,
recém-empossado, enfrentou diversos protestos semelhantes pelo país
(NAVARRO, 2007).
Segundo Thomaz e Carvalho 2011:
A crise das tortilhas expôs um problema de segurança alimentar no México,
e situações semelhantes se repetiram nos anos seguintes em diversos países:
oscilações de preços de alimentos muito acentuadas, em um contexto de
abertura comercial e de definição de políticas de produção e oferta doméstica de alimentos com base apenas em preços (THOMAZ; CARVALHO
2011, p. 84).
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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O agravamento da crise financeira nos EUA, em setembro de 2008,
derrubou a atividade econômica e os preços das commodities pelo mundo,
afetando de outra forma países produtores de alimentos (MAYER, 2010,
p. 74).
O exemplo do México chamava atenção para a especulação atingir justamente a base alimentar, os costumes e a cultura do povo local.
O povo mexicano tem uma história, ou melhor, sua cultura, associada
com a comida, um conhecimento milenar. Não existe como pensar no
homem de maiz sem imaginar sua comida. O país que já foi um país autossuficiente (segurança alimentar) e inclusive exportou alguns produtos
como o trigo, berço da revolução verde, hoje importa 50% de sua comida,
comida chatarra3 e vê destruída sua soberania alimentar ao ter os índices de sobrepeso da ordem de 70% (EL AGRÁRIO MEXICANO: IN;
CICLO DE CONFERENCIAS, 2014). O México assinou o acordo de
livre comércio em 1994, o país abriu suas fronteiras para os produtos dos
EUA e do Canadá, ao troco ofereceu sua mão de obra barata e camponesa
nas maquilas e nas fronteiras, mesmo sem perder sua identidade, como no
caso de organizações binacionais como a FIOB4.
A imagem do agricultor com botas, atrás de arado ou em um trator praticamente não existe mais, pelo menos no agronegócio, conforme
podemos observar em um evento recente na capital paranaense sobre o
agronegócio.
3 Chatarra é o mesmo que junk food, são as comidas ultra processadas, ricas e açucares,
saís e condimentos. O resultado dessa alimentação é que a pessoa tende a ficar obesa ao
mesmo tempo em que está desnutrida. Norman Borlaug considerado o pai da revolução
verde, desenvolveu pesquisas no México a partir dos anos 50 do século passado, com
apoio da fundação Ford os seus trabalhos resultaras na variedade de trigo anão. Com isso
a produção do país aumentou, tornando-se exportador, esse é considerado o marco inicial
do que ficou conhecida a revolução verde.
4 São empresas instaladas em países com mão de obra barata, o produto final é exportado
ao país de origem do capital ou a outros, mas não consumido pelo produtor. Depois de 1994
com a assinatura do NAFTA o México foi destino de muitas maquiladoras americanas.
Hoje observamos esse fenômeno no Paraguai com relação a empresas de capital brasileiro.
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CRISE ALIMENTAR E A LAUDATO SI: O CASO DO AUMENTO DOS PREÇOS DOS ALIMENTOS
Fonte: Gazeta do Povo
Fonte: Paraná Cooperativo
A comida, agora cada vez mais controlada pelo agronegócio traz uma
série de ameaças, já que o agronegócio se caracteriza por:
Um pacto de poder entre os grandes proprietários, o capital financeiro e
as multinacionais, que recebe fortes incentivos dos governos e dos grandes meios de comunicação, se caracteriza por: latifúndio, monocultivos,
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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maquinaria pesada, insumos químicos, venenos, sementes geneticamente
modificadas. E traz como consequência: desequilíbrio ambiental, pragas
mais resistentes, dependência de créditos e insumos, contaminação por
venenos, concentração de renda e riqueza, exclusão social, uso desordenado
de recursos naturais como terra e água, e a monocultura, que provocam
sérias perdas na biodiversidade (SILVA, 2015).
O sistema alimentar agroindustrial somente chega a 30% da população mundial, mas usa 75-80% da terra, 70% da água de uso agrícola,
80% de combustíveis fósseis na agricultura. De 33 a 40 % do que se produz, processa e vende é desperdiçado (ETC Group, 2014). O resultado
desse arranjo é a especulação, e a especulação leva ao aumento dos preços
dos alimentos básicos, e os alimentos básicos são o sustento primeiro das
famílias mais pobres, justamente aquelas que um dia foram expulsas da
terra por um modelo excludente. O ano de 2016 no Brasil foi marcado
por altas consideráveis nos alimentos, e um dos mais significativos foi o
do feijão, mas afinal, quais as explicações para isso?
PREÇO DO FEIJÃO
Nas últimas semanas, fomos bombardeados pelas notícias sobre a alta
no preço do feijão. O povo, chocado em ver o quilo passando de R$10,
ouviu as mais diversas explicações dos analistas: geada e muita chuva no
sul, falta de chuva em outras regiões, e até o boato de que uma pequena
doação para Cuba feita em outubro de 2015 teria sido a causa da escassez.
A solução apresentada pelo ministro interino da agricultura, o Rei da Soja,
foi zerar a taxa de importação para facilitar a entrada de feijão estrangeiro:
O que estranhamente não saiu em lugar nenhum foi um elemento muito
simples: o agronegócio brasileiro não se preocupa em produzir alimentos
para o Brasil. E isso fica muito claro quando olhamos a mudança na utilização das terras no país. Nos últimos 25 anos, houve uma diminuição
profunda na área destinada à plantação dos alimentos básicos do nosso cardápio. A área de produção de arroz reduziu 44% (quase metade a menos),
e a mandioca recuou 20% (BRASIL DE FATO, 2016).
Com uma agricultura que cada vez mais depende de combustíveis
fósseis era de se esperar uma baixa no preço dos alimentos, uma vez que
o petróleo vem baixando significativamente nos últimos anos, como se
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CRISE ALIMENTAR E A LAUDATO SI: O CASO DO AUMENTO DOS PREÇOS DOS ALIMENTOS
pode observar no gráfico abaixo:
Fonte: London School of Economics and Political Science
Ao comparar os preços do petróleo com os preços dos alimentos
em uma série histórica de 2000 a 2010 percebe-se um “descolamento”
do preço dos alimentos pós crise de 2007/08, justamente onde os fundos
de investimento migram suas ações para esse mercado cativo da comida.
Fonte: Oilprice.com
Assim o preço do pacote de feijão carioquinha continua pesando
no bolso do consumidor. O quilo é encontrado por até R$ 16,45 nas
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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prateleiras dos supermercados. Entre julho e agosto, o produto ficou 19%
mais caro, segundo pesquisa realizada pelo Nepes (Núcleo de Estudos e
Pesquisas Econômicas e Sociais da Uniderp). Cabe então pesquisar em
uma perspectiva histórica levando em consideração a pressão que sofre essa
cultura em relação a outras culturas mais rentáveis para capital.
A área plantada com feijão, o vilão do momento, diminuiu 36%
desde 1990, enquanto a população aumentou 41%. Apesar de ter havido
um aumento na produtividade, a diminuição da área deixa a colheita mais
vulnerável e suscetível a variações como estamos vendo agora.
No mesmo período em que a área plantada de arroz e feijão caiu 44% e
36%, respectivamente, a área de soja aumentou 161%, enquanto o milho
aumentou 31% e a cana, 142%. Somados os três produtos, temos 72%
da área agricultável do Brasil com apenas 3 culturas. São 57 milhões de
hectares que ignoram a cultura alimentar e a diversidade nutricional do
nosso país em favor de um modelo de monocultura, que só funciona com
muito fertilizante químico, semente modificada e veneno, muito veneno
(BRASIL DE FATO, 2016).
A explicação dada pelos meios de comunicação é que a doação de
625 toneladas de feijão a Cuba e a faixa de Gaza foram as responsáveis
pelo aumento, e inclusive circulou via internet essa informação.
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CRISE ALIMENTAR E A LAUDATO SI: O CASO DO AUMENTO DOS PREÇOS DOS ALIMENTOS
Fonte: Diario Regional
Outra explicação para a subida dos preços, mais honesta e ligada
ao alerta da encíclica é a questão climática, seria ela o gatilho para uma
escassez inicial. O Brasil consome praticamente toda a produção, e uma
variação climática em uma colheita pode afetar os preços.
O Paraná que é o maior produtor do país teve as lavouras afetadas
pela chuva e pelo frio, dados encontrados na nossa pesquisa apontam que
entre abril e maio houve uma redução de cerca de 20% na produção, o
segundo maior produtor que é o estado de Minas Gerais também sofreu
com o aumento da umidade ( JORNAL O TEMPO, 2016).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A causa do aumento dos preços do feijão é o resultado de pelo menos
dois fatores que se complementam: o primeiro é pressão que outras culturas exercem sobre as culturas de subsistência, no caso do Brasil podemos
citar o da soja que por estar envolvida em uma “cadeia longa” de insumos
e transporte e atrelada ao mercado internacional, incentiva a alienação
de territórios que antes se produziam feijão e assim colocando em risco a
segurança e a soberania alimentar. Esse primeiro não aparece claramente na
encíclica, como bem lembrou o professor Eduardo Viveiros de Castro na
conferência de abertura, que por se tratar de um documento diplomático
cada palavra, cada expressão leva muito cuidado em sua redação.
O segundo é o fator que a encíclica aborda com mais de uma dezena
de menções: a questão do clima ou das mudanças climáticas. O preço
do feijão subiu ao se combinar o primeiro fator que abordamos com o
segundo; variações climáticas. O aumento das chuvas e do frio, fatores
que impactam diretamente as culturas agrícolas, fez com que a produção
menor, frente a uma demanda crescente em uma sociedade cada vez mais
urbanizada colocasse o alimento básico em uma condição de especulação
via escassez.
O caminho para enfrentar as diversas crises que atravessamos pode
ser a reforma agrária, desde que a distribuição da terra seja feita visando a
produção de comida, de gêneros básicos. A reforma agrária como é feita
atualmente no Brasil não representa uma direção clara para esse caminho,
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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primeiramente porque em 30 anos de reforma agrária a propriedade da
terra não mudou o índice de concentração, e em segundo lugar as políticas
para comercialização tem sido alvo de ações repressoras, assim a nenhuma
mudança estrutural é sentida. O contrato natural com a terra como base e
produtora da materialidade da vida continua sendo usada na modernidade
como algo a ser dominado e não a convivencialidade, acreditamos que o
alerta da encíclica se insere nesse caminho, o da re-existência.
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CICLO DE CONFERENCIAS. El agrario mexicano. Ciudad de
Mexico. 2014.
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HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo: Edições Loyola,
2004.
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CRISE ALIMENTAR E A LAUDATO SI: O CASO DO AUMENTO DOS PREÇOS DOS ALIMENTOS
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LSE. Falling oil prices should help Europe’s ailing economies, but the
wider implications of the price drop remain to be seen. Disponível
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2. ago. 2011.
CRISE SOCIOAMBIENTAL E SOCIEDADE DE RISCO:
UMA ANÁLISE A PARTIR DA ENCÍCLICA LAUDATO SI
ENVIRONMENTAL CRISIS AND RISK SOCIETY: AN
ANALYSIS FROM ENCYCLICAL LAUDATO SI
Dayla Barbosa Pinto1
Danielle de Ouro Mamed2
Luciana Rodrigues Pinto3
RESUMO: Seja na narrativa encontrada nos escritos bíblicos – de que
o homem fora criado do pó da terra –, ou até mesmo na sua antagônica
teoria, a da evolução, vê-se a pujante relação homem-natureza. Inicialmente essa interação se dava de modo consciente e voltado tão somente ao
interesse de manutenção da vida humana e não de exploração da natureza
como um produto. Acontece que com o ritmo imposto pelo capitalismo
e sua sociedade de risco, percebeu-se o aparecimento de um pensamento
generalizado de possuir, consumir, descartar, explorar, o que evidentemente
trouxe impactos alarmantes ao meio ambiente, bem como promoveu a
utilização indiscriminada dos recursos naturais disponíveis. O fato é que
notoriamente observa-se instaurada uma verdadeira crise socioambiental,
que tem suporte nas mazelas oriundas da sociedade de consumo e sua
performance, razão pela qual revela-se urgente a necessidade de repensar
a dinâmica da sociedade moderna e os possíveis desdobramentos socioambientais da atual rotina de consumo por ela adotada. Nesse contexto, a
Carta Encíclica Laudato Si apresenta importantes reflexões sobre a necessidade de proteção da casa comum e da busca por um modelo de desenvolvimento sustentável que atenda aos interesses das presentes e futuras
gerações – motivo pela qual tal documento será utilizado como plano de
fundo deste artigo. Dessa forma, a fim de produzir os efeitos desejados
com a elaboração do presente estudo, utilizou-se o método exploratório
do tema proposto, longe da pretensão de esgotar tal temática, mas, com o
compromisso de corroborar com as pesquisas existentes, que ressaltam a
necessidade de proteção do planeta – casa comum na qual residem todas
as gentes.
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CRISE SOCIOAMBIENTAL E SOCIEDADE DE RISCO: UMA ANÁLISE A PARTIR DA ENCÍCLICA
LAUDATO SI
PALAVRAS-CHAVE: Direito socioambiental; Crise socioambiental;
Sociedade de Risco; Laudato Si.
ABSTRACT: Be the narrative found in biblical writings - that man was
created from dust - or even the antagonistic theory, evolution, we see the
powerful man-nature relationship. Initially this interaction was given consciously and focused solely the interest of maintaining human life and no
exploitation of nature as a product. It turns out that with the pace imposed
by capitalism and its risk society, noticed the appearance of a general thought
to possess, consume, drop, explore, which of course brought alarming environmental impacts, as well as promoted the indiscriminate use of resources
natural available. The fact is famously observed brought a real environmental
crisis, which supports the ills arising from the consumer society and its performance, which is why it is revealed an urgent need to rethink the dynamics of
modern society and the possible social and environmental consequences of the
current routine consumption for her adopted. In this context, the Encyclical
Laudato Si presents important reflections on the need for common home and
seek protection for a model of sustainable development that meets the interests
of present and future generations - reason why this document will be used
as the background of this article. Thus, in order to produce the desired effect
with the preparation of this study, we used the exploratory method proposed
theme, far from intending to exhaust this theme, but with a commitment
to corroborate the existing research, which highlight the need to protect the
planet - common house in which live all nations.
KEYWORDS: Environmental law; Environmental crisis; Risk Society;
Laudato Si.
INTRODUÇÃO
A história da humanidade é também a história de degradação do
meio ambiente e sua subjugação aos interesses humanos. Pelos registros
históricos existentes nota-se que nos primeiros anos da história, a humanidade mantinha um contato pessoal e interdependente com o ambiente
físico natural, entretanto, tal concepção foi sendo pouco a pouco esmagada
pelos novos interesses do ser humano, de mercantilização da natureza e de
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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todas as formas de vida e pelo ritmo de consumo imposto pela sociedade
moderna.
Nesse sentido, superada uma primeira concepção da natureza e de
sua relação com o ser humano, testemunhou-se um verdadeiro massacre
dos recursos naturais e a sua utilização descomedida em prol do alegado
benefício e interesse econômico.
Certamente, no estágio atual, a sociedade moderna deu-se conta de
que seus modos de produção, seu estilo de vida consumista e sua cultura
do descartável não foram as melhores opções para prover o desenvolvimento econômico e ao mesmo tempo resguardar a qualidade de vida do
ser humano.
Na verdade, o ritmo de consumo imposto pelo capitalismo no seio
da sociedade de risco ensejou numa ruptura da relação homem-natureza
trazendo consequências devastadoras para o ser humano e para o ambiente
físico natural que o circunda.
Por essa razão, o presente estudo se propôs a analisar o contexto da
crise socioambiental, avaliando o desenrolar da relação homem-natureza,
partindo do antropocentrismo ao cuidado da casa comum.
Tal reflexão advém principalmente da necessidade de reformulação
dos meios de produção atualmente adotados pela sociedade de consumo, a
fim de que não haja o esgotamento dos recursos naturais disponíveis, bem
como para promoção da qualidade de vida do ser humano, daí o aspecto
socioambiental de tal discussão.
Buscou-se, ainda, estabelecer a relação existente entre sociedade de
risco e injustiça ambiental, ressaltando os aspectos que apontam para a
existência de uma distribuição desigual dos riscos e ameaças gerados pela
sociedade de consumo que, frequentemente, atingem as populações mais
frágeis do ponto de vista econômico.
A este respeito, é feita uma análise da sociedade moderna como
causadora de injustiça ambiental, sendo esse um dos motivos pelos quais
a reflexão trazida pela Encíclica Laudato Si demonstra-se tão oportuna.
Além disso, tomando como ponto de partida o teor da Encíclica Laudato Si, buscou-se trazer à reflexão a necessária proposta de reconstrução
de uma cidadania planetária que rompa com o antigo modo de pensar,
instaurando uma nova ideologia planetária, mais sustentável, baseada na
relação consciente do ser humano com o ambiente físico natural, já que
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CRISE SOCIOAMBIENTAL E SOCIEDADE DE RISCO: UMA ANÁLISE A PARTIR DA ENCÍCLICA
LAUDATO SI
incontestavelmente os modos de produção impostos pelo sistema capitalista e pelo modo de vida consumista demonstram-se insustentáveis.
Para a elaboração do presente estudo utilizou-se o método exploratório e a técnica de pesquisa bibliográfica, para sincronização da teoria da
sociedade de risco e sua relação com a Encílica Laudato Si no panorama
das outras discussões apresentadas, não se pretendendo esgotar a temática debatida, mas, tão somente, visando contribuir com as discussões já
existentes a respeito do referido conteúdo.
Assim, considerando o alerta trazido pela Encíclica Laudato Si - de
conclamação ao cuidado para com a casa comum –, vê-se que a ponderação
das questões trazidas à lume no presente artigo se demonstram inadiáveis, vez que inadiável é a própria reformulação dos modos de produção
adotados pela sociedade de risco, do estilo de vida consumista, da cultura
do descartável, a fim de que seja possível o amadurecimento de possíveis
alternativas para a reconstrução planetária de um modo de pensar mais
sustentável.
1 CRISE SOCIOAMBIENTAL: DO ANTROPOCENTRISMO
AO CUIDADO DA CASA COMUM
O problema para o qual se tem voltado grande parte das atenções
da sociedade atualmente remete à chamada crise socioambiental. Não
obstante haver na literatura grande parte dos autores referindo-se a este
fenômeno como ‘crise ambiental’ ou ‘crise do meio ambiente’, reputa-se
importante promover a utilização do termo ‘socioambiental’, pela sua
maior abrangência e ênfase ao fato de que não é possível separar os fatos
sociais dos ambientais.
A causa para dita crise reside, conforme será possível observar, no
modo pelo qual a humanidade tem estabelecido suas relações com a natureza no intuito de suprir suas necessidades, sejam elas realmente necessárias ou apenas expressão da vontade humana de transformar a natureza e
construir bens para uma acumulação interminável.
É certo que o ser humano, desde que surgiu no planeta, é causador de
impactos ao meio que o circunda. No entanto, o grau de interferência das
atividades humanas nos ciclos naturais, notadamente, tem um considerável incremento a partir do momento em que a tecnologia atinge maiores
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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patamares. O maior marco nesse sentido é o nascimento e desenvolvimento
do sistema capitalista de produção, quando é possível produzir excedentes
que formarão produtos para comercialização, acumulando-se os capitais.
Segundo Santos (1983, p. 14), antes do capitalismo, o desenvolvimento da tecnologia era uma constante na humanidade, porém num
ritmo mais lento do que após o advento deste modo de produção. No
entanto, pela necessidade de tornar possível o aumento do lucro visado
pelo capital, a ciência teve de acompanhar a pressão exercida pelos objetivos econômicos.
Não se pretende, no entanto, por estas constatações, invalidar a
importância das conquistas científicas e tecnológicas para a humanidade,
posto que por meio delas foi que se melhorou a condição humana pelo
acesso a novos produtos e tecnologias. Não obstante, não se pode ignorar
os efeitos colaterais, especialmente os desequilíbrios socioambientais que
tais mudanças ocasionaram.
A primeira grande consequência gerada por este novo modo de
lidar com a natureza é a separação desta e do ser humano. A este respeito,
Fiorillo (2015, p. 52) traz o relevante questionamento “a quem o direito
ambiental serve? [...] ao homem ou a toda e qualquer outra forma de
vida?”. O autor continua discorrendo acerca das teorias pelas quais se pode
obter resposta a tal ponderação, concedendo ênfase especial a ideia do
antropocentrismo, segundo o qual a humanidade encontra-se no centro e
todo o meio ambiente está voltado à servi-la, a satisfazer suas necessidades
(FIORILLO, 2015, p. 53).
Ainda segundo o doutrinador, “o direito ambiental possui uma
necessária visão antropocêntrica, porquanto o único animal racional é o
homem, cabendo a este a preservação das espécies, incluindo a sua própria”
(FIORILLO, 2015, p. 53).
De fato, constata-se que em decorrência das inúmeras alterações
ocorridas no contexto social, a relação homem-natureza sofreu significativa mudança ao longo do tempo, especialmente se considerada a maneira
como o ser humano passou a enxergar o mundo, indo da visão espiritualizada e teológica para a predominante visão do mundo como uma máquina
– já na era moderna (CAPRA, 2006, p. 34) –, sendo a natureza colocada
em segundo plano para atender unicamente aos interesses econômicos
do ser humano.
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CRISE SOCIOAMBIENTAL E SOCIEDADE DE RISCO: UMA ANÁLISE A PARTIR DA ENCÍCLICA
LAUDATO SI
O fato é que a racionalidade instaurada com a modernidade, nesse
sentido, exerceu grande influência na determinação destas relações, uma
vez que, sendo o ser humano racional e estando a natureza sujeita à sua análise, tendeu-se ao tratamento das questões relativas à natureza de maneira
positivista, encarando-se esta como uma máquina passível de subjugação à
vontade humana, suplantando a ideia de interdependência antes existente.
Nesse sentido, pode-se certamente afirmar que o principal fator histórico a marcar essa mudança na relação homem-natureza foi justamente
o surgimento da indústria, por meio da qual a maquinaria revolucionou
a produção industrial e, concomitantemente, fez suplantar a manufatura
(MARX, 2015, p. 6-7). Evidentemente com o surgimento e avanço da
indústria, ciência e tecnologia passou a ser acessível ao ser humano uma
fonte inesgotável de mecanismos para dissecar os (finitos) recursos naturais existentes.
Vê-se, neste ponto, um lamentável passo da mercantilização da
natureza: a sua consideração como provedora de recursos e depositária
de resíduos. Deste modo:
A oposição entre natureza e sociedade é uma construção do século XIX,
que serve ao duplo propósito de controlar e ignorar a natureza. A natureza
foi subjugada e explorada no final do século XX e, assim, transformada
de fenômeno predeterminado em fabricado. Ao longo de sua transformação tecnológico-industrial e de sua comercialização global, a natureza
foi absorvida pelo sistema industrial. Dessa forma, ela se converteu, ao
mesmo tempo, em pré-requisito indispensável do modo de vida no sistema
industrial. (BECK, 2010, p. 9)
Como resultado desta noção de natureza subjugada às necessidades humanas, advém um patente desequilíbrio das funções ambientais.
Segundo Ramonet (2009, p. 96), o padrão de consumo dos países mais
abastados tem sido algo tratado como padrão a ser buscado por todos.
No entanto, adverte o autor que, se todos os seres humanos atingissem
tal padrão, o planeta somente seria capaz de satisfazer as necessidades de
600 milhões de pessoas (excluindo o restante das aproximadas 6 bilhões
de pessoas que conformam a população mundial).
A gravidade da visão errônea de desenvolvimento com base neste
padrão inatingível reside no saque e devastação impostos à flora, fauna,
solos, águas e atmosfera. Juntamente com o desperdício energético,
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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urbanização desenfreada, desmatamento das florestas, poluição hídrica
e outros desequilíbrios, nota-se que está em curso um processo perigoso
para o futuro da humanidade (RAMONET, 2009, p. 96).
Ou seja, de um lado, a modernidade trouxe inovações, na ciência
e tecnologia, que atualmente se demonstram indispensáveis, entretanto,
juntamente com isso, impôs um ritmo frenético que conduz o ser humano
à destruição da natureza e produz graves consequências ambientais:
O contraponto do progresso se encontra na ameaça nuclear e na degradação
ambiental com os perigos da poluição industrial, desertificação, destruição
da flora e da fauna, efeito estufa, buraco na camada de ozônio. São exemplos
do que os filósofos frankfurtianos chamam de sofrimento da natureza,
infligido pelo homem, incapaz de reconhecer que a natureza não é uma
realidade a ser dominada. Não por acaso, segundo Horkheimer, “a história
dos esforços humanos para subjugar a natureza é também a história da
subjugação do homem pelo homem” (ARANHA, 1996, p. 237).
Por essa razão, tem-se que é necessário adotar uma postura reflexiva
acerca dos modos de produção atualmente utilizados, bem como da própria relação homem-natureza, a fim de melhor gerir os recursos naturais
existentes.
Em relação a isso, Leonardo Boff (2009, p. 132) traz a acertada declaração de que “A realidade é que o ser humano faz parte do meio ambiente.
Ele é um ser da natureza, com capacidade de modificar a si mesmo e a
ela, e assim fazer cultura. Pode intervir na natureza potenciando-a, bem
como agredindo-a”.
Percebendo a insustentabilidade e fragilidade do pensamento antropocêntrico puro/radical, Nogueira (2012, p. 44-45) defende o que chama
de antropocentrismo alargado4, segundo o qual aquela antiga ideologia
do ser humano como centro de tudo deve ser substituída pela consciência
de que o homem é, na verdade, um “tutor ambiental, guardião do planeta”,
abandonando-se a ideia de domínio e submissão da natureza, buscando-se
a integração entre ambos, ser humano e natureza. Obviamente que esse (re)
pensar não adveio de altruísmo humano, mas, tão somente da percebida
necessidade de melhor gerir os recursos ambientais, para garantir a própria
existência da espécie humana (NOGUEIRA, 2012, p. 45).
Embalada por tal preocupação a Encíclica Laudato Si5 (IGREJA
5 Trata-se de uma carta circular escrita pelo Papa Francisco (líder mundial da Igreja
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CATÓLICA, 2015, p. 33) traz em seu bojo um capítulo dedicado à questão do antropocentrismo e suas consequências.
Sob tal ótica, a Encíclica aponta a existência de uma verdadeira crise
do antropocentrismo, que se revela na falta de preocupação do ser humano
para com a natureza, no seu desinteresse em “escutar os gritos da própria
natureza”.
Interessante observar que a carta supramencionada apresenta, ainda,
uma severa crítica à equivocada compreensão da ideia de antropocentrismo contida no texto bíblico. Ora com a devida análise, tem-se que
o antropocentrismo apoiado nos escritos religiosos apregoa o domínio
humano por sobre todos os seres viventes, contudo, a Encíclica alerta que
“a interpretação correcta do conceito de ser humano como senhor do
universo é entendê-lo no sentido de administrador responsável” (IGREJA
CATÓLICA, 2015, p. 32), o que certamente se apresenta como entendimento mais acertado.
De igual modo, pode-se destacar a ponderação trazida por Nogueira
(2012, p. 22), em sua visão crítica cristã sobre a Bíblia, qual seja: “Não se
pode entender que o objeto de Deus, ao fazer o homem à sua semelhança,
seja para exercer domínio de pavor e sofrimento sobre as demais espécies.
Ao contrário, ao dar ao homem certa superioridade racional, ele se torna
o responsável no dever de cuidado para com os seres racionais”.
Assim, pode-se afirmar que não deve o ser humano conduzir-se com
tirana dominação sobre a natureza, mas, é seu papel (como ser racional)
zelar pela manutenção de todas as formas de vida, respeitando seus respectivos ciclos, sistemas e limites naturais. Partindo de tais pressupostos e a
partir de uma visão amplificada do antropocentrismo, deve o ser humano
esmerar-se na busca do efetivo e pleno cuidado da casa comum, terra, na
qual residem todas as gentes, da qual todos fazem parte, a fim de garantir
sua própria subsistência e a manutenção dos recursos naturais existentes.
2 SOCIEDADE DE RISCO E INJUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL
A teoria de Ulrich Beck indica a existência de uma configuração
social baseada no risco e nos efeitos colaterais decorrentes da modernização (BECK, 2010, p. 16). Segundo Beck (2000), os avanços científicos
Católica) e publicada em 24 de maio de 2015.
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e tecnológicos, além das vantagens que proporcionaram à humanidade,
geraram também uma série de riscos que aparecem como efeito direto do
modo de produção capitalista que se desenvolveu.
Para o autor, Estado e setores produtivos, deliberadamente, trabalham para que a sociedade assuma os riscos, tornando menos aparente a
sua gravidade, a fim de que não haja oposição aos efeitos negativos que
surgem do processo produtivo.
A esta postura consciente Beck denomina ‘irresponsabilidade organizada’, uma vez que pressupõe a assunção desses riscos sem que ninguém,
ao fim das contas, se encarregue de lidar com os problemas advindos desta
lógica. Há, portanto, um deliberado ocultamento das origens e consequências dos riscos produzidos (BECK, 2000).
Não obstante a esta tentativa de ocultar os riscos e problemas concretos advindos das relações produtivas da humanidade, indubitavelmente
esses aparecerão sob a forma de reais problemas e conflitos de natureza
socioambiental. No entanto, os maiores problemas observados acabam
não recebendo a atenção devida por conta de outro processo trágico que
acompanha os riscos: a sua desigual distribuição.
A distribuição física dos problemas socioambientais refere-se às áreas
afetadas por tais problemas, enquanto que a distribuição social se refere
à parcela da população que os suportam, tanto que Beck (2010, p. 31)
afirma que “Riscos, assim como riquezas, são objeto de distribuição”. A
desigualdade desta distribuição é objeto da discussão acerca da justiça (ou
injustiça) ambiental.
Beck (2010, p. 41 e 49) constata que a distribuição dos riscos se dá
de maneira desigual e que tal desigualdade acompanha a próprio quadro
de desigualdade social e econômica presentes na sociedade moderna, de
maneira que seguindo o mesmo “esquema de classes”, “as riquezas acumulam-se em cima, os riscos em baixo”.
Sob tal premissa, as indústrias que produzem extremos riscos foram
transferidas para os países do Terceiro Mundo, cumprindo a “sistemática
“força de atração” entre pobreza extrema e riscos extremos”.
Faz-se mister ponderar que essa “força de atração” à qual se refere
Beck nada mais é que uma verdadeira imposição silenciosa por parte dos
países ricos e desenvolvidos, que exercem certa supremacia em relação aos
países em desenvolvimento em razão do poder político e econômico que
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CRISE SOCIOAMBIENTAL E SOCIEDADE DE RISCO: UMA ANÁLISE A PARTIR DA ENCÍCLICA
LAUDATO SI
possuem no contexto internacional.
O fato é que aqueles que efetivamente suportam os riscos produzidos
pelas grandes indústrias são justamente os moradores de determinadas
cidades ou países que se encontram em maior situação de pobreza, posto
que dificilmente possuem recursos suficientes para esquivar-se dos riscos
que lhe são impostos e na maioria das vezes enxergam a chegada de uma
grande indústria como oportunidade de crescimento econômico para a
comunidade local, sem ter o devido esclarecimento acerca dos desdobramentos e possíveis danos ambientais advindos das atividades industriais de
tais empresas. A esse respeito, percebe-se que para os países pobres receber
“as complexas instalações das indústrias químicas, com seus imponentes
tubos e tanques, são símbolos caros do sucesso” (BECK, 2010, p. 50)
Indiscutivelmente, quanto mais abastada for a situação de determinado país, mais facilmente serão contornados, ou transferidos para países
em desenvolvimento, os riscos da produção, daí o motivo de se dizer que
os riscos são distribuídos de maneira desigual.
Quanto a isso, deve-se mencionar que predominantemente pertencem aos países desenvolvidos grande parte das grandes indústrias que são
responsáveis pela poluição (e porque não dizer) e destruição dos países
subdesenvolvidos. Nesse sentido, percebe-se que os riscos são distribuídos
de forma desigual, não sendo rara, como já dito, a transferência de “indústrias de risco” para os países periféricos.
A sociedade de consumo baseia-se nos riscos e pelo que se vê, também
na distribuição desigual de tais riscos, ensejando em verdadeira injustiça
ambiental, injustiça essa que é imposta tanto em razão de questões econômicas quanto sociais.
Contudo, acredita-se que é possível a superação dos riscos existentes,
mediante uma “visão geral, uma cooperação que atravesse todas as fronteiras cuidadosamente estabelecidas e mantidas” (BECK, 2010, p. 85),
para que enfim se concretize a esperança propagada por Leonardo Boff,
da construção do ideal do “bem viver comunitário” (BOFF, 2010, p. 1).
Assim, repensar as práticas de tal modelo de sociedade (de risco)
demonstra-se etapa essencial no processo de rompimento da criação de
novos riscos e injustiças ambientais, rumo à construção de uma consciência
planetária mais sustentável, como se verá adiante.
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3 A PROPOSTA DA ENCÍCLICA LAUDATO SI: PELA (RE)
CONSTRUÇÃO DE UMA CIDADANIA PLANETÁRIA
A Encíclica Laudato Si constitui verdadeiro convite à humanidade,
para que a mesma tome consciência de sua decadente condição e, consequentemente, faça significativas mudanças em seu estilo de vida, modos
de produção e propagada cultura de consumo.
Essa ruptura com o antigo modo de pensar e a instauração de uma
ideologia universal mais sustentável certamente revela-se um dos maiores desafios que o ser humano precisa enfrentar (se não o maior deles),
enquanto comunidade global, isto porque os modos de produção capitalista e a cultura do consumo encontram-se tão arraigados na sociedade
de risco que por vezes aparenta impossível a superação de tais obstáculos
para a construção de uma sociedade sustentável.
Na facilitação da busca por alternativas para resolução dessa problemática, Aranha (1996, p. 229) defende que:
Se vivemos hoje o mal-estar da modernidade, em decorrência das promessas
abortadas da racionalidade expressa na ciência, na técnica, na ilusão do
progresso, à qual se contrapõem de maneira cruel duas guerras mundiais,
Auschwitz, Hiroshima, o desequilíbrio ecológico e a ameaça de aniquilação
atômica, não há por que se refugiar no irracionalismo. Por isso, contestar a
modernidade não significa necessariamente recusá-la, mas sim repensá-la
[...] Mais do que sucumbir à desrazão, cumpre denunciar os desvios da
razão enlouquecida.
Na mesma esteira, Cristiane Derani (2003, p. 66) sustenta que a
proteção do meio ambiente e a “construção de uma política de conservação das bases naturais”, ambos, devem ser “buscados e encontrados no
interior sociedade industrial-tecnológica moderna, reformulando seus
pressupostos, num processo de conscientização”. Realmente, se a crise
socioambiental e os problemas advindos em decorrência da modernidade
encontram nascedouro na sociedade de risco, acertado se demonstra o
entendimento de que a solução – ou possível solução – para suas mazelas
será encontrada no próprio núcleo da sociedade de consumo.
A verdade é que urgente e necessária se demonstra uma reconfiguração dos meios de produção atualmente adotados pela sociedade
industrial, capazes de garantir o enfrentamento da crise socioambiental e
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a reformulação do vínculo homem-natureza. É evidente e indiscutível o
desgaste decorrente da exacerbada exploração da natureza e, ainda, o fato
de que tal degradação ambiental advém do ritmo de vida imposto pela
modernidade, por isso, pensar a modernidade em si e seus desdobramentos
pode significar um passo para mais perto da resolução desta problemática.
Ademais, não somente a reformulação dos alicerces da sociedade de
consumo pode servir de saída de emergência ao caos atual, mas, a própria
(re)formulação de uma consciência coletiva ambiental. A esse respeito, a
Encíclica Laudato Si (IGREJA CATÓLICA, 2015, p. 45-46) apregoa o
seguinte:
Desde meados do século passado e superando muitas dificuldades, foi-se
consolidando a tendência de conceber o planeta como pátria e a humanidade como povo que habita uma casa comum. Um mundo interdependente não significa unicamente compreender que as consequências danosas
dos estilos de vida, produção e consumo afetam a todos, mas principalmente
procurar que as soluções sejam propostas a partir duma perspectiva global e
não apenas para defesa dos interesses de alguns países. A interdependência
obriga-nos a pensar num único mundo, num projecto comum. Mas, a
mesma inteligência que foi utilizada para um enorme desenvolvimento
tecnológico não consegue encontrar formas eficazes de gestão internacional
para resolver as graves dificuldades ambientais e sociais. Para enfrentar os
problemas de fundo, que não se podem resolver com acções de países isolados, torna-se indispensável um consenso mundial que leve, por exemplo, a
programar uma agricultura sustentável e diversificada, desenvolver formas
de energia renováveis e pouco poluidoras, fomentar uma maior eficiência
energética, promover uma gestão mais adequada dos recursos florestais e
marinhos, garantir a todos o acesso à água potável. [Grifo Nosso]
Partindo de tal pressuposto, nota-se que a (re)construção de uma
consciência ambiental coletiva é ponto fundamental para se alcançar a
superação do atual modelo da sociedade de consumo, dos seus modos
de produção, da cultura do descartável, do substituível, da obsolescência
programada e de tantas outras problemáticas advindas do ritmo frenético
da sociedade de risco.
Segundo Gadotti (2000, p. 133), a cidadania refere-se à consciência de direitos e deveres por parte do cidadão. Partindo-se da concepção
de que a terra constitui uma sociedade mundial pode-se defender que o
indivíduo não somente é cidadão da comunidade na qual está inserido,
mas, também, é cidadão mundial (cidadania planetária).
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Ante tal constatação pode-se questionar porque a consciência planetária ou ainda a construção de uma cidadania planetária é fundamental
para a superação do atual modelo de exploração indiscriminada dos recursos naturais? Justamente porque a partir da construção de uma consciência
planetária o indivíduo será capaz de compreender que sua conduta local
pode afetar o planeta e, ainda, que como cidadão do mundo, deve resguardar uma postura de plena observância de seus deveres globais (políticos,
civis, sociais e, porque não dizer, ambientais).
Em relação a isto, Gadotti (2000, p. 135) afirma que “A noção de
cidadania planetária (mundial) sustenta-se na visão unificadora do planeta
e de uma sociedade mundial”. O doutrinador esclarece, ainda, que:
A cidadania planetária deverá ter como foco a superação da desigualdade,
a eliminação das sangrentas diferenças econômicas e a integração da diversidade cultural da humanidade e a eliminação das diferenças econômicas.
Não se pode falar em cidadania planetária ou global sem uma efetiva cidadania na esfera local e nacional. Uma cidadania planetária é por essência
uma cidadania integral, portanto, uma cidadania ativa e plena não apenas
nos direitos sociais, políticos, culturais e institucionais, mas também econômico-financeiros [...] Uma educação para a cidadania planetária deveria nos levar à construção de uma cultura da sustentabilidade, isto é, uma
biocultura, uma cultura da vida, da convivência harmônica entre os seres
humanos e entre estes e a natureza (equilíbrio dinâmico). (GADOTTI,
2001, p. 117-118)
Igualmente, a Encíclica Laudato Si (IGREJA CATÓLICA, 2015,
p. 48) insiste na necessidade de adoção de uma conjunção global para
resolução dos problemas sociais e ambientais que afligem o planeta – o que
certamente se apresentará possível principalmente por meio da construção
de uma cidadania planetária:
A lógica que dificulta a tomada de decisões drásticas para inverter a tendência ao aquecimento global é a mesma que não permite cumprir o objectivo
de erradicar a pobreza. Precisamos duma reacção global mais responsável,
que implique enfrentar, contemporaneamente, a redução da poluição e o
desenvolvimento dos países e regiões pobres.
Notadamente, a (re)construção de uma cidadania planetária apresenta-se como instrumento por meio do qual é possível alcançar a consciência ambiental global, entretanto, para tal faz-se necessário o empenho de
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CRISE SOCIOAMBIENTAL E SOCIEDADE DE RISCO: UMA ANÁLISE A PARTIR DA ENCÍCLICA
LAUDATO SI
todos os Estados, a fim de que haja o efetivo enfrentamento das questões
e problemáticas socioambientais.
Nesse sentido é que a Encíclica Laudato Si apela a toda a humanidade
no sentido de convidá-la a repensar seus modos de produção, seu sistema
de produção de riquezas, sua relação com a natureza, seu ritmo frenético
e estilo consumista, bem como pensar alternativas para o caos no qual
encontra-se mergulhada a sociedade de risco.
Dessa forma, como documento de cunho cristão e ao mesmo tempo
com abordagem técnico-científica, a Encíclica Laudato Si apresenta-se
como instrumento relevante e esclarecedor quanto a situação atual do
ser humano e as problemáticas sociais e ambientais por ele enfrentadas,
e, ainda, revela-se como aclarador de possíveis alternativas a serem perseguidas para o efetivo cuidado da casa comum, destacando-se dentre elas a
construção de uma cidadania planetária capaz de despertar nos indivíduos
o compromisso para com a Terra, a casa comum de todos os povos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do esgotamento dos recursos naturais e em meio à decadência
ética na qual a Terra encontra-se submersa, torna-se urgente apontar as
possíveis alternativas existentes para driblar tal situação de caos instaurada
pelo modo de vida da sociedade de consumo. A primeira delas remete à
necessidade de restabelecer os vínculos do ser humano com a natureza que
o rodeia, permitindo enxergar a Terra como irmã, da forma proposta pela
Encíclica papal e não mais como um substrato sobre o qual está autorizada
a degradação como pressuposto para o incremento da economia humana.
Já não resta dúvidas de que a sociedade moderna e seu modo de produção e consumo insustentáveis são, em grande medida, os responsáveis
pela crise socioambiental enfrentada pela sociedade hodierna. Ou seja,
para se pensar em alguma solução para o problema de caos ambiental e
mesmo da indisponibilidade dos recursos naturais para o equilíbrio da
vida humana, é necessário enfrentar tal causa do problema e não apenas
pensar em soluções paliativas, que não possuam o poder de gerar efeitos
necessários à mitigação ou reversão de tal situação.
Além disso, é necessário compreender que a questão do meio
ambiente não deve ser apartada das questões sociais, razão pela qual
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pugna-se pela concepção socioambiental na qual as sociedades estão
incluídas como parte do complexo sistema que forma a vida.
A Encíclica Laudato Si busca chamar a atenção da humanidade para
a necessidade impostergável de cuidar da casa comum, alertando para os
riscos e danos que o modo de ser da sociedade implementaram.
Para tornar possível a superação das graves questões que se tem suportado, é necessário, portanto, resgatar o reconhecimento do ser humano
como parte do ambiente, além de pensar a cidadania como algo que não
deve reconhecer limites, mas ser desenvolvida em escala planetária, visando
harmonizar, o tanto quanto possível, a complicada relação entre sociedades
e natureza.
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ampl. São Paulo: Moderna, 1996.
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LAUDATO SI
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 16a Ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
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RAMONET, Ignacio. La catástrofe perfecta. Barcelona: Diário Público/
Icaria, 2009.
SANTOS, Theotonio. Revolução técnico-científica e capitalismo contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 1983.
DIREITO AO REFÚGIO: A LACUNA JURÍDICA SOBRE
OS DESLOCADOS POR DESASTRES AMBIENTAIS
DERECHO AL REFUGIO: EL VACÍO JURÍDICO SOBRE
LOS DESPLAZADOS POR DESASTRES AMBIENTALES
Karoline Strapasson1
Amanda Carolina Buttendorff R. Beckers 2
RESUMO: O presente trabalho parte da mesma premissa norteadora
da Encíclica ‘Laudato si’ – o cuidado da casa comum, qual seja, o de que
as alterações climáticas são um problema global com implicações graves:
ambientais, sociais, econômicas, políticas e de distribuição de riqueza,
representando hoje um dos principais desafios para a humanidade. Dentre
os quais se destaca, a premente questão dos ‘refugiados ambientais’, que
por questões climáticas são forçados a deixar suas casas ou perecer diante
da fúria da natureza. A Convenção de Genebra de 1951, entretanto, ao
conceituar o termo ‘refugiado’ acabou por impor requisitos objetivos para
o enquadramento em tal categoria, como perseguição de ordem racial,
religiosa, política e outras, que não albergam a motivação ambiental, dificultando sobremaneira as tratativas sobre esta categoria de refúgio diante
do direito e das relações internacionais. Documentos internacionais posteriores, advindos principalmente após a realização do Relatório Brundtland,
que reforçou a preocupação dos países com a questão da salvaguarda ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado para as gerações presentes e
as do porvir, têm procurado dar respostas a esta situação fática cada vez
mais recorrente, buscando de fato, fazer do planeta ‘uma casa comum’.
Diante disto, o presente trabalho, tem como objetivo analisar a questão
dos refugiados ambientais, partindo do pressuposto do direito ao refúgio
como direito humano fundamental.
PALAVRAS-CHAVE: direitos humanos; refugiados ambientais.
RESUMEN: Esta obra tiene la premisa de la Encíclica si ‘Laudato Si’ - el
cuidado del hogar común, que es, que el cambio climático es un problema
mundial con graves consecuencias: distribución ambiental, social, económico,
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DIREITO AO REFÚGIO: A LACUNA JURÍDICA SOBRE OS DESLOCADOS POR DESASTRES AMBIENTAIS
político y de la riqueza, lo que representa hoy en día un gran desafío para
la humanidad. Entre los que destaca la apremiante cuestión de “refugiados
ambientales”, que las cuestiones climáticas se ven obligados a abandonar sus
hogares o perecer ante la furia de la naturaleza. La Convención de Ginebra de 1951, sin embargo, para conceptualizar el término “refugiado” se ha
impuesto requisitos objetivos para la clasificación en esta categoría, como
la búsqueda de la discriminación racial, religiosa, política y otros, que no
albergan la motivación del medio ambiente, lo que dificulta en gran medida
la negociaciones sobre este remanso de categoría ante la ley y las relaciones
internacionales. Documentos internacionales posteriores, derivados principalmente después de la finalización del Informe Brundtland, que reforzó la
preocupación de los países con el tema de la protección del medio ambiente
ecológicamente equilibrado para la generación actual y de los próximos, han
tratado de responder a esta situación de hecho cada vez solicitante, en busca
de hecho que el mundo sea um “hogar común”. Por lo tanto, el presente estudio
tiene como objetivo analizar la cuestión de los refugiados ambientales, basada
en el supuesto derecho a la vivienda como un derecho humano fundamental.
PALABRAS CLAVE: derechos humanos; refugiados ambientales.
INTRODUÇÃO
A evolução da tecnologia tanto na indústria como na comunicação,
permitiu o advento de diversos benefícios para a vida social. A intervenção
humana por meio do desenvolvimento tecnológico impactou não apenas
a economia e as sociedades, mas trouxe também consequências nefastas
para o meio ambiente, por meio do uso de reservas naturais não renováveis
e acúmulo de resíduos não reaproveitados.
Essas ingerências ocasionam um desequilíbrio na relação entre o
ser humano e o meio ambiente. Apesar da natureza e seus recursos serem
compreendidos como objetos a ser dominado pela técnica humana, ou
seja, pelo sujeito, a sobrevivência de toda a humanidade depende da manutenção das condições para a vida. Deste modo, o consumo desenfreado, a
emissão de gases poluentes, o uso de fertilizantes, agrotóxicos dentre outros
produtos nocivos, terminam por limitar a continuidade das espécies sobre
a terra, inclusive o homo sapiens.
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A alteração do meio ambiente e o desequilíbrio climático exigiram o
deslocamento forçado de milhões de pessoas, em virtude da fome, desastres ambientais, desabastecimento dentre outros fatores. Os Estados e
os organismos internacionais por diversas vezes se reuniram para tratar
acerca do desequilíbrio ambiental. Questões urgentes que exigem ações
afirmativas para a proteção do ser humano, independente da nacionalidade,
tendo em vista que a degradação do meio ambiente não conhece barreiras
ou limites geográficos.
Este trabalho busca colacionar importantes documentos internacionais acerca da proteção ao meio ambiente, e, aos refugiados, correlacionando com a situação dos deslocados por questões ambientais. Quais
limites conceituais são impostos a esse grupo vulnerável, bem como quais
são os apelos feitos pela Carta Encíclica ‘Laudato Si’ do romano pontífice
acerca do cuidado com a casa comum. O método de abordagem empregado para a execução deste trabalho é o dedutivo, e as ferramentas de
pesquisa utilizadas são livros, artigos e periódicos acerca do tema.
Apesar dos esforços da comunidade internacional em elaborar
metas para a diminuição da emissão de gases poluentes e do impacto
ambiental na produção de bens de consumo, tal atuação depende da colaboração dos Estados Nacionais, para alcançar patamares significativos.
Enquanto isso, milhões de pessoas são vítimas de desastres ambientais,
e se veem sem opções de permanecer em suas localidades. Não obstante
a violação aos direitos humanos dos deslocados ambientais, e da possível analogia com a situação de refúgio, este reconhecimento ainda não
foi oficializado pelos organismos internacionais, permanecendo a lacuna
jurídica.
BREVE HISTÓRICO SOBRE OS DOCUMENTOS INTERNACIONAIS E O MEIO AMBIENTE
Desde a Revolução Industrial o meio ambiente veio sendo utilizado
irracional e despropositadamente pelo homem. A ânsia por crescimento
econômico e expansão industrial trouxeram graves prejuízos à humanidade
como um todo, visto que quando se fala em dano ambiental, aquele que
sofre as consequências, nem sempre – e geralmente não é – aquele que
deu causa.
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DIREITO AO REFÚGIO: A LACUNA JURÍDICA SOBRE OS DESLOCADOS POR DESASTRES AMBIENTAIS
O período pós Segunda-Guerra Mundial trouxe verdadeira revolução no que tange ao modo como os Estados se portavam diante das
demandas transindividuais, aí inseridos os direitos humanos e o direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado. Nesta esteira, tomou corpo o
fenômeno da internacionalização destes direitos de preocupação global.
Com o advento de um novo cenário mundial, galgado pela globalização, pela reconstrução do modelo de Estado e pela internacionalização
de direitos de interesse global, a temática do meio ambiente se mostrou
cada vez mais latente no cenário internacional.
A preocupação com os impactos da referida globalização começou
a ganhar destaque em meados do século passado, quando os impactos do
boom industrial e da total despreocupação governamental com o meio
ambiente impactaram o mundo. O desastre de Chernobyl, a poluição da
baía de Minamata no Japão, a chuva ácida que surpreendeu a Europa, o
chamado fenômeno Smog na Inglaterra e outros desastres trouxeram à
baila a temática ambiental.
Em 1972, as Nações Unidas – ONU realizaram a Conferência das
Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, também chamada Conferência de Estocolmo, por ter sido realizada na cidade de mesmo nome,
que visava, dentre outras pautas não menos importantes: (i) analisar a
questão qualitativa e quantitativa da água do planeta; (ii) correlacionar o
crescimento econômico desenfreado com os desastres ambientais a fim de
evita-los; (iii) discutir a questão da chuva ácida e poluição do Mar Báltico.
(PRESTRE, 2000, p. 156).
Houve uma cisão de opiniões entre os países desenvolvidos, que pregavam, em sua maioria, redução do ritmo de industrialização para frear a
degradação ambiental, e entre os países então chamados em desenvolvimento, aos quais não interessava assumir o compromisso citado em detrimento de seu crescimento econômico.
Como resultados principais do encontro tem-se a criação do
PNUMA – Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e a elaboração da Declaração das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano,
também conhecida como Declaração de Estocolmo, cujo principal aspecto
era proclamar a questão da proteção e melhoramento do meio ambiente
humano, como aspecto fundamental ao bem estar de todos os povos e ao
desenvolvimento econômico, e principalmente colocar a questão como
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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sendo de interesse e responsabilidade de todos os Estados (ONU, 2016).
Foi em seu texto que se consagrou a necessidade de proteger o
ambiente, não só para todos hoje existentes, mas também para as gerações
futuras, trazendo um reflexo das discussões acerca da questão do desenvolvimento, primando em suas ponderações sobre as ações devidas pelos
Estados na salvaguarda do meio ambiente, na cooperação internacional.
No intuito de efetivar o disposto na Declaração, a ONU criou e
1983, após uma avaliação dos avanços na área na década desde a Declaração
de Estocolmo, a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, nomeando a então primeira ministra da Noruega Gro Harlem
Brundtland como líder do órgão. Em 1987, a Comissão apresentou um
documento intitulado ‘Nosso Futuro Comum’, também conhecido como
Relatório Brundtland.
O documento trouxe a definição do conceito de ‘desenvolvimento
sustentável’: “Em essência, o desenvolvimento sustentável é um processo
de transformação no qual a exploração dos recursos, a direção dos investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a mudança institucional se harmonizam e reforçam o potencial presente e futuro, a fim
de atender às necessidades e aspirações humanas” (ONU, 1987).
Ressalta-se a incompatibilidade apontada no relatório entre os
padrões de produção e consumo da época e a necessidade premente de
desenvolvimento sustentável, levando a uma mudança de foco no tocante
a industrialização, promovendo o desenvolvimento em consonância com
as questões ambientais e sociais, em detrimento de um crescimento econômico desordenado.
Dentre os pontos que mereceram destaque no documento, os perigos do aquecimento global e da destruição da camada de ozônio, em uma
velocidade maior que a capacidade da comunidade cientifica em detectá-las, preveni-las ou ainda restaurá-las, e o texto chama de ‘circulo vicioso
da pobreza’, que aponta que onde já há desenvolvimento econômico, e
consequentemente baixo índice de pobreza, a conservação tende a ser
maior, enquanto onde há alto índice de pobreza, a preocupação ambiental
é secundária, aumentando os riscos de degradação e catástrofes ecológicas
e ambientais.
Em 1992 a ONU organizou nova Conferência sobre o tema, conhecida como ECO 92, realizada no Rio de Janeiro, contou com a presença
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DIREITO AO REFÚGIO: A LACUNA JURÍDICA SOBRE OS DESLOCADOS POR DESASTRES AMBIENTAIS
de vários chefes de Estado, e visava consolidar definitivamente a ideia de
desenvolvimento sustentável no modelo de crescimento econômico global,
adequando-o à salvaguarda do equilíbrio ecológico.
Do evento resultaram importantes documentos sobre a temática,
dentre os quais: a Convenção sobre Diversidade Biológica, primando
pela conservação da diversidade biológica mundial, e prevendo partilha
de custos entre os Estados para atingimento da meta; a Declaração do Rio
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, que reafirmou os compromissos
estabelecidos em Estocolmo, e suas diretrizes para preservação ambiental; a Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação e
Mitigação dos efeitos da seca.
Destaque para a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre
Mudança do Clima, cujo objetivo central era firmar as bases de cooperação internacional sobre as questões ligadas ao clima. Também chamada
Agenda 21, firmava o compromisso dos países em cooperar e refletir local
e globalmente sobre as soluções dos problemas socioambientais, sendo tida
como um verdadeiro plano de ação visava nortear a atuação dos Estados e
da sociedade civil na proteção ao ambiente.
Em 1997, a ONU realizou em Quito, no Japão, novo encontro voltado às questões climáticas, que cada vez mais davam mostras de preocupação. Referida Convenção resultou no Protocolo de Quioto, aberto
para assinatura dos países em março do ano seguinte. Ao aderirem ao
documento, os Estados se comprometem a reduzir suas emissões de gases
causadores do efeito estufa (em princípio até 2012), em percentuais e metas
não homogêneos, havendo índices diferenciados para os participantes
considerados os maiores emissores.
Em 2002, dez anos após a ECO 92, a ONU voltou a reunir os Estados na discussão sobre as questões ambientais, no evento Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável em Johanesburgo, também
conhecida como Rio + 10. Do encontro adveio a chamada Declaração
de Johanesburgo sobre Desenvolvimento Sustentável, cujo teor, dentre
outros itens, trazia o pleito de alívio da dívida externa dos países em desenvolvimento e o fomento financeiro mundial aos países com alto índice de
pobreza, considerando que o desequilíbrio financeiro e a má-distribuição
de renda estavam no centro do desenvolvimento insutentado, reconhecendo assim, que não haviam sido atingidos os objetivos traçados na ECO
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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92.
Há que se destacar a intensa atuação do PNUMA no inicio do século
XXI com a elaboração de estudos e diretrizes na temática ambiental, tais
como o Guia da ONU para a Neutralidade Climática, que propõe medidas de redução de gases poluentes; o relatório ‘Recycling – from e-waste to
resources’ que visa dar destinação adequada ao lixo eletrônico altamente
poluente; relatório Adaptando para uma economia verde sobre a questão
climática; relatório Perspectiva Global sobre Consumo Sustentável; e
outros.
Em 2012, ano simbólico, eis que terminaria o prazo para as medidas pontuadas no Protocolo de Quioto, a ONU reuniu novamente seus
Estados membros em torna da temática ambiental na Conferência das
Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável ou simplesmente Rio
+ 20, da qual adveio o Relatório ‘O Futuro que Queremos’, documento
que combinou sugestões e propostas enviadas pelos países e discutidas
no evento. No mesmo ano, na 18ª Conferência das Nações Unidas sobre
Mudanças Climáticas em Doha, o Protocolo de Quioto teve suas metas
prorrogadas para 2020.
Apesar dos esforços internacionais em reforçar tratados e pactos em
prol da proteção ao meio ambiente, as negociações internacionais ainda são
incipientes frente o número de deslocados em virtude de alterações climáticas. Entre os anos de 2008 e 2015 cerca de 26,4 milhões de pessoas foram
obrigadas a deixar seus lares em função de desastres naturais associados aos
desajustes do clima, de acordo com dados do Centro de Monitoramento
de Deslocados Internos (Internal Displacement Monitoring Centre, 2015).
OS DOCUMENTOS INTERNACIONAIS SOBRE A QUESTÃO
DO REFÚGIO
A preocupação internacional sobre a questão do refúgio remonta à
Liga das Nações, que embora não tivesse sido criada com este fim específico, não pôde se furtar a tratar da temática, diante do quadro sangrento
do Pós Primeira Guerra Mundial, tendo como primeira medida efetiva
a criação em 1921 do Alto Comissariado para Refugiados Russos, sendo
considerado este o primeiro órgão internacional oficial de garantia aos
refugiados ( JUBILUT, 2007, p. 74).
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DIREITO AO REFÚGIO: A LACUNA JURÍDICA SOBRE OS DESLOCADOS POR DESASTRES AMBIENTAIS
Por não se tratar de sua função precípua, e por estar empenhada em
manter a paz no conturbado período subsequente, foi criada nova entidade
para atuar nesta temática, o chamado Escritório Nansen, criado em 1930,
que se dedicava com exclusividade as questões dos refugiados, de onde
adveio a Convenção Relativa ao Estatuto Internacional dos Refugiados
em 1933, que previu um sistema permanente de amparo aos refugiados,
ainda que atuante em situações pontuais. Em 1938 foi criado o Comitê
Intergovernamental para Refugiados, que passou a coordenar os estudos
na área, até que a temática passou a ser definitivamente albergada pela
Organização das Nações Unidas.
Com o término da Segunda Guerra Mundial, e suas consequências
devastadoras para a humanidade, a ONU voltou suas atenções à temática
daqueles que não mais estavam em seus países de origem, fugidos dos
horrores da guerra, sem condições de retorno a seus Estados de origem,
sem direitos assegurados nos Estados em que se encontravam.
Criou então, em 1950, o Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados – ACNUR, “para proteger e assistir às vítimas de perseguição, da violência e da intolerância”. (ACNUR, 2015). O órgão que atua
exclusivamente na temática, e conta com agências por todo o mundo, já
atendeu milhões de refugiados e visa atender aqueles enquadrados pela
ONU como refugiados.
A Assembleia Geral, convocada pela Resolução 429 (V), realizou-se
em Genebra em 1951, da qual resultou verdadeiro marco jurídico internacional sobre a temática. A Convenção das Nações Unidas Relativa ao
Estatuto dos Refugiados, ou simplesmente Convenção de Genebra de
1951, visou consolidar os prévios e esparsos instrumentos legais acerca
do assunto, uniformizando a codificação internacional a respeito. Em seu
artigo primeiro, a Convenção define o conceito de ‘refugiado’:
Que, em conseqüência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro
de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua
nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se
da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra
fora do país no qual tinha sua residência habitual em conseqüência de tais
acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar
a ele. (ONU, 1951).
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Inicialmente, só se enquadravam no disposto no documento aqueles
que tivessem sido objeto de perseguição decorrente dos acontecimentos
prévios a sua elaboração, restrição que não perdurou muito tempo. Diante
de novas e crescentes situações geradoras de conflitos, novos grupos necessitavam de refúgio, tendo a ONU elaborado um Protocolo relativo ao
Estatuto dos Refugiados, que pela Resolução 2198 (XXI) foi assinado
em 1967, passando a vigorar desde então, e possibilitando a aplicação das
previsões da Convenção a todos os refugiados que se enquadrassem conceito disposto no artigo 1º. Ou seja, aquele que esteja sendo ou temendo
ser perseguido pro motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social
ou opiniões políticas.
A Convenção deve ser aplicada sem discriminação por raça, religião, sexo
e país de origem. Além disso, estabelece cláusulas consideradas essenciais
às quais nenhuma objeção deve ser feita. Entre essas cláusulas, incluem-se
a definição do termo “refugiado” e o chamado princípio de non-refoulement (“não-devolução”), o qual define que nenhum país deve expulsar
ou “devolver” (refouler) um refugiado, contra a vontade do mesmo, em
quaisquer ocasiões, para um território onde ele ou ela sofra perseguição.
Ainda, estabelece providências para a disponibilização de documentos,
incluindo documentos de viagem específicos para refugiados na forma de
um “passaporte”. (ACNUR, 2015)
Embora traga avanços louváveis na normatização da questão do refúgio, a Convenção de Genebra de 1951, ao conceituar o termo ‘refugiado’,
acabou por impor requisitos objetivos para o enquadramento em tal categoria, rol expresso, que não alberga a motivação ambiental, dificultando
sobremaneira as tratativas sobre esta categoria de refúgio diante do direito e
das relações internacionais, o que na atualidade não pode prevalecer, diante
do fenômeno das mudanças climáticas e suas devastadoras consequências.
Posteriormente, outros documentos internacionais importantes na
temática do refugio surgiram, dentre os quais se destacam como a Declaração de Cartagena, com aplicação aos refugiados na América Central e
a Convenção da Organização da Unidade Africana que norteia a questão
dos refugiados no continente, e desde sua aprovação em 1969 trouxe um
conceito mais amplo da condição de refugiados.
O termo refugiado aplica-se a qualquer pessoa que, receando com razão, ser
perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo
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DIREITO AO REFÚGIO: A LACUNA JURÍDICA SOBRE OS DESLOCADOS POR DESASTRES AMBIENTAIS
grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontra fora do país da sua
nacionalidade e não possa, ou em virtude daquele receio, não queira requerer a protecção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora
do país da sua anterior residência habitual após aqueles acontecimentos,
não possa ou, em virtude desse receio, não queira lá voltar. (OUA, 1969)
Embora localmente, no âmbito dos continentes haja preocupação em
alargar o conceito de refugiados, além de tais definições não se aplicarem a
nível global, há que se ponderar que não pontuam expressamente a questão
do refúgio fundado em questões ambientais, fenômeno crescentes a cada
dia e com um futuro bastante intenso e crescente, a contar pela situação
climática mundial.
Um dos impactos mais dramáticos das mudanças climáticas e do aquecimento global é a perspectiva de que em um futuro não muito distante
o território de países inteiros desaparecerá ou se tornará inabitável. Essa
ameaça diz respeito aos Microestados insulares – países como as Maldivas,
Kiribati, Tuvalu e Ilhas Marshall – que, pela elevação do nível do mar ou
por fenômenos como tsunamis ou tufões, poderão ser os primeiros Estados
do globo a esvanecerem pelo naufrágio de seu território. (SIQUEIRA,
2015, p. 64).
Não obstante, parece claro que no que tange aos refugiados ambientais, o que há que se verificar são os elementos que possibilitam a condição
de refúgio, e não o enquadramento na modalidade de perseguição sofrida.
Pois, se assim não fosse, estar-se-ia relegando parcela importante e cada vez
mais crescente da humanidade, à margem do direito humano ao refúgio,
e a própria proteção jurídica internacional.
A questão da extraterritorialidade é sem dúvida a de mais fácil verificação, vez que basta ao indivíduo solicitante de refúgio estar fora de seu
território de origem. No que tange o fundado temor, adentra-se na seara
subjetiva, sendo de mais difícil averiguação, mas não impossível, eis que
a existência de recorrentes catástrofes ambientais e situações ecológicas
extremas que dificultam e até impossibilitam a vida humana evidentemente
causam temor aos moradores locais.
O cerne da controvérsia sobre o uso do termo ‘refugiados ambientais’
está no elemento ‘perseguição’. “Há que se falar na existência de perseguição quando se está defronte da possibilidade de lesão à vida ou à liberdade
individual, isto é, qualquer ameaça aos direitos que compõe a proteção da
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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dignidade da pessoa humana” (RAIOL, 2010, p.89).
Desta análise, não se pode negar que as catástrofes ambientais, a
desertificação, a submersão de territórios inteiros antes vastamente habitados não privam a liberdade de seus então moradores, impossibilitando
muitas vezes a própria vida no local. Trata-se de elemento objetivo, de
viável averiguação, a impossibilidade de permanência de vida digna no
local, que tem sido entendida por parte da doutrina como passível de se
encaixar no conceito de perseguição.
Não há, tampouco, no quadro normativo ou doutrinário, nem mesmo um
consenso acerca da correta terminologia para se definir as pessoas obrigadas a deixar seus locais de origem em decorrência de desastres naturais,
mudanças climáticas ou quaisquer outros fatores de origem ambiental.
Em decorrência disso, ao longo dos anos, esse grupo recebeu uma série de
nomenclaturas, tais como refugiados ambientais, refugiados climáticos,
ecomigrantes ou migrantes ambientais. (COUTINHO, 2015, p.82).
A própria ONU, via ACNUR, não reconhece o termo ‘refugiados
ambientais’ e utiliza ‘deslocados ambientais’, embora admita que diante
do quadro atual é necessária atuação nesta temática. Independentemente
da nomenclatura utilizada, é fato que se trata de população que necessita
com urgência de proteção e de um posicionamento mais firme e claro da
comunidade internacional sobre sua situação.
É sabido que o termo ‘refugiado’ trás uma responsabilidade dos
Estados frente ao direito internacional. Os cidadãos assim enquadrados
têm seus direitos assegurados pela legislação internacional, razão pela qual,
classificar este grupo que sai de local de origem em razão de mudanças
ambientais como ‘refugiados ambientais’ é impor à ordem internacional
obrigações para com eles. De outra parte, se chamados de ‘migrantes’, são
as legislações internas dos países que deve dar conta de sua proteção, sendo
que parte da doutrina tem utilizado o termo ‘deslocados’ a fim de tentar
esquivar-se de um posicionamento mais claro em relação a este cada vez
maior grupo de cidadãos desamparados.
Há que se ponderar ainda, que a saída compulsória destas pessoas de
seus locais de origem, tem um motivo de ordem ambiental, e que a seara
ambiental, em sendo o meio ambiente bem da humanidade, direito de
ordem transindividual, todos os Estados são responsáveis pela sua salvaguarda do meio ambiente.
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DIREITO AO REFÚGIO: A LACUNA JURÍDICA SOBRE OS DESLOCADOS POR DESASTRES AMBIENTAIS
Via de consequência, em raciocínio contínuo, seriam também todos
responsáveis pelos ‘refugiados, migrantes, deslocados’, enfim, todos aqueles
que são expulsos de seu local de origem pela fúria da natureza causada pelos
próprios homens, devem ser acolhidos pelos Estados, eis que a natureza,
mãe terra, gaia, é a ‘casa comum’, quando um cidadão solicita refúgio por
razões ambientais, toda a humanidade sofre com ele.
De acordo com Lévinas (2004, p.143) a identidade própria é construída a partir da identidade do outro, essa dualidade exige a responsabilidade pessoal sobre o destino do outro. A compreensão dos direitos
humanos se relaciona a condição pessoal independente de força física,
intelectual, moral ou virtudes, um marco essencial da consciência ocidental. Estes direitos se tornam uma obrigação moral de poupar o próximo da
dependência, dos constrangimentos e humilhações, da miséria, da dor, e
da tortura, dos fenômenos naturais, físicos ou psicológicos, da violência
e da crueldade das más inclinações, inclusive da omissão internacional.
O DESAFIO DAS QUESTÕES ECONÔMICAS E SOCIAMBIENTAIS À LUZ DA CARTA-ENCÍCLICA “LADAUTO SI”´
O Papa Francisco em sua Carta Encíclica Laudato Si parte de uma
das primeiras menções à relação entre o ser humano e a terra descrita no
livro do Gênesis, cuja linguagem simbólica descreve o surgimento da existência humana. No primeiro capítulo, versículo 28 do Gênesis é descrito o
mandato divino ao homem: de “dominar” a terra. Todavia, segundo para o
pontífice o real significado do que seria “dominar” não é devastar a terra,
mas sim cuidar e guardar o jardim do mundo, ou seja, proteger, preservar,
velar, em um elo de reciprocidade entre o ser humano e a natureza.
A compreensão da natureza como objeto e propriedade parte da
capacidade do ser humano em alterar o seu habitat. Para John Locke (1994,
p. 108) a produtividade da terra era o lastro da propriedade. Deste modo,
apesar da natureza ser dada em comum para todos os homens, quando um
homem - que é proprietário do próprio corpo e do próprio trabalho - aplicasse tal esforço na natureza seria permitido alcançar a propriedade dos
bens naturais, de tal modo que: “(...) à medida que as invenções e as artes
aperfeiçoaram as condições de vida, era absolutamente sua propriedade,
não pertencendo em comum aos outros.”
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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A compreensão da natureza como um objeto, e a dissociação do ser
humano do meio ambiente permitiu o desenvolvimento da tecnologia na
indústria, e, posteriormente, a revolução da tecnologia da informação e
comunicação. A racionalidade desenvolvida pelo ser humano terminou
por desencadear processos em que os resultados são imprevisíveis. O uso
de fertilizantes, agrotóxicos, pesticidas, resíduos de produtos químicos e
sua acumulação nos biomas ilustram a potencialidade do ser humano em
alterar de modo definitivo e irreversível o seu habitat, em prol da eficiência
na produção econômica. Convive-se com a insegurança, possíveis falhas,
e ameaças à segurança dos seres vivos, em uma sociedade de risco na qual
a busca por soluções racionais são questionáveis (DE GIORGI, 1994);
(BECK, 2002).
No entanto, as principais vítimas dessas alterações são as pessoas
com menos recursos, ou ainda aquelas alojadas em áreas de risco. Papa
Francisco ao tratar do tema, reconhecendo que as mudanças climáticas
afetam os recursos produtivos dos mais pobres, e os força a emigrar com
grande incerteza sobre seu futuro. Ele critica a falta de responsabilidade
os entes internacionais: “É trágico o aumento de emigrantes em fuga da
miséria agravada pela degradação ambiental, que, não sendo reconhecidos
como refugiados nas convenções internacionais, carregam o peso da sua
vida abandonada sem qualquer tutela normativa.”
Zygmunt Bauman (2005) descreve o tratamento dado aos mais
vulneráveis e em processos de deslocamento: a redundância social. Considerados extranumerários, são vistos como pessoas sem uso por aqueles
que elegem os critérios de utilidade, e acabam por compartilhar o espaço
semântico do lixo. Papa Francisco (2015) denomina esse fenômeno como
“cultura do descarte” capaz de afetar tanto as pessoas como as coisas.
Segundo o pontífice não se pode buscar apenas um ganho econômico
rápido e fácil, sem dimensionar os danos provocados, pois seus valores
excedem todo e qualquer cálculo.
Essas práticas excludentes se alicerçam em falsas premissas de um
crescimento econômico ilimitado. Enquanto o funcionamento dos ecossistemas é cíclico – a exemplo da cadeia alimentar – o ciclo de produção,
circulação e consumo é incapaz de absorver ou reutilizar seus resíduos
com baixo impacto ao meio ambiente.
Para romper com essa compreensão errônea não se pode esquecer
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DIREITO AO REFÚGIO: A LACUNA JURÍDICA SOBRE OS DESLOCADOS POR DESASTRES AMBIENTAIS
de se equacionar às questões econômicas uma abordagem sistêmica
incluindo a perspectiva social e ecológica. Tanto as questões econômicas
como ambientais estão conectadas, a primeira em razão da dependência
econômica entre os países e da necessidade dos recursos ambientais, já a
segunda pelo fato de que os limites geográficos não são barreiras para as
consequências do desequilíbrio ambiental. O crescimento econômico
dissociado de outros aspectos não é capaz de suprir as dificuldades sociais,
psíquicas e morais, relegando ao esquecimento esferas como a identidade,
comunidade, solidariedade e cultura (MORIN; KERN, 2003, p.91).
Frente a estes desafios Papa Francisco (2015) busca reforçar de que
não existem fronteiras ou limites políticos que permitam o isolamento,
não havendo espaço para se globalizar a indiferença. Não se pode se deixar
enganar pelo torpor ou pela irresponsabilidade de se ignorar as graves condições atuais, por meio do adiamento de ações em prol dos desfavorecidos
pelas consequências desastrosas do pouco cuidado com a casa comum.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O cuidado com a casa comum prescrito por Papa Francisco serve
como um norte para a alteração entre as relações entre o meio ambiente
e o ser humano. No entanto, essa mudança paradigmática exige das instituições privadas, Estados e entes internacionais ações efetivas para que o
crescimento econômico não seja a única matriz nos esforços para o desenvolvimento da humanidade.
O equilíbrio entre o desenvolvimento econômico aliado a preservação ambiental e o alcance de padrões sociais equânimes se revelam como
fórmula necessária para a preservação das espécies e para a manutenção das
condições de vida. A preponderância do vetor econômico se revela como
uma postura ilógica frente percepção de que os parâmetros de consumo de
parte da população mundial, podem colocar em risco o desenvolvimento
da vida em todo planeta.
É indefensável um ganho econômico imediato e momentâneo
que incita um comportamento de consumo irracional, tendo em vista a
crescente degradação ambiental e suas as consequências sociais. Para esta
equação não há possibilidade de ressarcimento pecuniário, frente ao uso
de recursos não renováveis e os resultados desastrosos do desequilíbrio
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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ambiental.
Os deslocados ambientais são vítimas das implicações de um uso
contínuo, prolongado e despreocupado dos recursos naturais por toda a
humanidade ao longo da História. Sofrem aqueles que não deram causa
direta a degradação. Apesar do reconhecimento como direito humano ao
meio ambiente para as presentes e futuras gerações, a materialidade deste
direito fica limitada a álea de que a localidade a que se pertença não seja
objeto da fúria da natureza.
Deste modo, apesar dos esforços internacionais, poucos resultados são colhidos para a preservação ambiental, tendo em vista que é
necessário o engajamento dos Estados Nacionais frente as metas de redução
da emissão de poluentes. Enquanto metas são prorrogadas, j milhões de
pessoas já sofrem as consequências da crise climática. Não se pode negar
que dos direitos humanos dos deslocados ambientais são violados, ainda
que permaneça a responsabilidade moral de proteção, da qual todos somos
solidários.
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ENCÍCLICA LAUDATO SI: A RELAÇÃO
ENTRE O CAPITALISMO, NATUREZA E
O DIREITO SOCIOAMBIENTAL
ENCYCLICAL LAUDATO SI: THE RELATION
BETWEEN CAPITALISM, NATURE AND
THE SOCIO-ENVIRONMENTAL LAW
Flávia Thomaz Soccol1
João Guilherme Holzmann Duarte2
RESUMO: O artigo abordará o capitalismo, suas incongruências que contribuem para a crise ambiental e o surgimento consequente da sociedade
de risco. Essa sociedade tem como característica a incapacidade de prever
e de mensurar os riscos gerados desde o advento da sociedade industrial.
O artigo avaliará as razões pelas quais o Direito Constitucional e as políticas públicas e governamentais são ineficazes no que tange a proteção
ambiental. Será analisado o caso da construção da usina de Belo Monte,
caso ao qual será verificado a hipótese se na ausência de dissociação entre os
entes privados e públicos imperaria apenas o interesse econômico, prejudicando as populações tradicionais que tem sua subsistência baseada no que
a natureza lhes fornece. O Direito Socioambiental é baseado na mudança
da concepção antropocêntrica para a ideia do “bem viver” constituído sob
uma ética da suficiência e do mínimo existencial para toda a comunidade,
e não apenas para um indivíduo; compreendendo o universo em uma visão
abrangente e integradora do ser humano, inserido “na casa comum” de
todas as espécies e formas de vida. Essa visão é tida como uma das possíveis ferramentas para o enfrentamento do colapso do sistema capitalista
e da sua consequente crise ecológica atual que é mero reflexo do modo de
1 Mestranda em Direito Socioambiental e Sustentabilidade pela Pontifícia Católica do
Paraná – PUC/PR, Especialista em Direito Civil e Empresarial pela Pontifícia Católica
do Paraná -PUC/PR, Bacharel em Direito pela UniCuritiba, Bacharel em Administração
pela FAE Centro Universitário, Advogada.
Contato: soccolflavia@gmail.com
2 Mestrando em Direito Econômico e Desenvolvimento pela Pontifícia Católica do Paraná
– PUC/PR; Especialista em Direito Tributário Empresarial e Processual Tributário pela
Pontifícia Católica do Paraná – PUC/PR, Bacharel em Direito pela FAE Centro Universitário, Advogado.
Contato: joaoduartex@hotmail.com
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ENCÍCLICA LAUDATO SI: A RELAÇÃO ENTRE O CAPITALISMO, NATUREZA E O DIREITO
SOCIOAMBIENTAL
produção capitalista e do modo de vida contemporâneo. O Papa Francisco
utiliza de sua influência papal em sua Carta Encíclica Sobre o Cuidado
da Casa Comum, para dar um norte na discussão que o planeta Terra é
um bem comum, de todos e para todos. Ao estudar a Carta Encíclica do
Papa Francisco Sobre o Cuidado da Casa Comum é possível estabelecer
uma relação entre a natureza e a sociedade que a habita.
PALAVRAS-CHAVE: Capitalismo; Direito Socioambiental; Meio
Ambiente; Carta Encíclica. Sociedade de Risco;
ABSTRACT: This article will aboard the capitalism and their incongruities
that contributes to the environmental crisis and the consequent emergence
of the society risk. This society is characterized by the inability to predict and
measure the risks generated from the industrial society. The article measure
the reasons why the constitutional law and public and government policies
are ineffective when it comes to environmental protection. It will analyze the
case of the construction of the Belo Monte dam, if which will be verified the
hypothesis in the absence of separation between private and public entities
reigning only economic interests, undermining the traditional populations
that have their livelihoods based on the nature them provides. The Environmental Law is based on the change of the anthropocentric conception, aiming
the idea of “living well” built on an ethic of sufficiency and the existential
minimum for the entire community, not just for an individual; comprising
the universe in a comprehensive and integrated vision of the human being
inserted “in the common home” of all kinds and forms of life. This view
regarded as one of the possible tools to deal with the capitalist system collapse
and its consequent ecological crisis, which is a mere reflection of the capitalist
mode of production and the contemporary way of life. The Pope Francis uses
his papal influence in his Encyclical Letter about Care Common House, to
give a North in the discussion that the planet Earth is a common good of all
and for all. By studying the Encyclical Letter of Pope Francisco about Care
Common House you can establish a relationship between nature and society
that inhabits it.
KEYWORDS: Capitalism; Socio-Environmental Law; Environmental;
Encyclical Letter; Society Risk;
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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INTRODUÇÃO
Os problemas ambientais tem sido uma grande preocupação da
sociedade atual, a necessidade do cuidado com o meio ambiente, ou a casa
comum, tem sido enormemente discutida e apresentada como prioridade
da sociedade moderna, já que é necessária a compreensão de que vivemos
em um planeta terra de recursos finitos.
A concepção capitalista de desenvolvimento se pauta no crescimento
econômico, tendo como alicerces o consumo e a produção de maneira
irrestrita e infinita. Tal ideia é absolutamente contrária ao desenvolvimento
real de uma nação, que deveria se pautar em políticas inclusivas que se
preocupassem com o bem-estar geral e com a preservação da natureza.
Entretanto, o modelo capitalista ainda segue seus princípios ignorando a crise ambiental que vivenciamos e os riscos incalculáveis gerados
pelos empreendimentos e obras humanas. A construção da Usina de Belo
Monte, traz exatamente essa ausência de consciência governamental e dos
empreendedores privados, que no caso se confundem em busca de um
suposto bem “coletivo”, que de fato só leva em conta o viés econômico,
acreditando em um desenvolvimento apenas econômico como objetivo
e necessidade da nação, ignorando por completo a legislação ambiental e
os direitos humanos.
INCROGUÊNCIAS DO CAPITALISMO
O capitalismo é um modo de produção no qual a luta de classes
implica cedo ou tarde aumento do consumo, o que realimenta, sucessivamente, pelo lado da demanda, o mecanismo de acumulação.
É útil capitular brevemente o histórico de êxito do capitalismo, de
modo a traçar um panorama com a realidade cultural e ambiental atual.
Na Idade Contemporânea o capitalismo foi capaz de oferecer à sociedade
europeia a resposta mais eficaz aos perenes problemas da própria escassez
e da hostilidade da natureza. De acordo com MARQUES essa resposta
consistiu:
Na generalização de um modo de produção capaz de fazer da maximização do lucro pela acumulação contínua de excedente com o menor custo
possível a razão de ser da atividade econômica e de redistribuir parte do
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ENCÍCLICA LAUDATO SI: A RELAÇÃO ENTRE O CAPITALISMO, NATUREZA E O DIREITO
SOCIOAMBIENTAL
excedente produzido na forma de renda e salários (MARQUES, 2015,
p.513).
A ideia de que o capitalismo pode se tornar ambientalmente “sustentável” é uma lógica impossível, e deriva da própria ideia do modus operandi do capitalismo. Alguns aspectos do modus operandi capitalista
que afirmam a impossibilidade de um capitalismo sustentável, entre eles,
o discurso impraticável de uma economia circular baseada na reciclagem
e reutilização de resíduos e a ideia de uma autorregulação capitalista –
alguma forma de autocontenção com o objetivo de não ultrapassar os
limites da sustentabilidade – não é aplicável ao capitalismo.
De acordo com MARQUES (2015, p. 513) duas ilusões nutrem o
capitalismo “a de que o crescimento do excedente é ainda um bem para as
sociedades, ou seja, quanto mais excedente material e energético for produzido, mais segura e feliz será a existência humana e a ilusão antropocêntrica”.
Para Marx (1995, p.169) existe uma interação metabólica entre o
homem e a natureza que será rompida pelo capitalismo. A propriedade
privada, instaurando a divisão do trabalho, separa o camponês da terra,
de uma relação íntima e tradicional com o solo, provocando uma “falha
metabólica” incontornável no modo de produção capitalista e, por consequência, a relação predatória com a natureza, vista tão somente enquanto
repositório de lucros em potencial. No capitalismo, portanto, o homem
se aliena da natureza.
O capitalismo se define por um ordenamento jurídico fundado na
propriedade privada do capital e, além disso, por uma lógica econômica
segundo a qual os recursos naturais e as forças produtivas sociais são alocados e organizados com vistas à reprodução ampliada e à máxima remuneração do capital. O capitalismo é um sistema intrinsicamente expansivo, que
se torna tanto mais ambientalmente destrutivo quanto mais dificuldade
encontra para se expandir.
A CRISE AMBIENTAL
À medida que o século se aproxima do fim, as preocupações com o
meio ambiente adquirem suprema importância. Atualmente, uma série
de problemas globais estão danificando a biosfera e a vida humana de uma
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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maneira alarmante, e que pode logo se tornar irreversível. Há soluções
para os principais problemas de nosso tempo, algumas delas até mesmo
simples. Mas requerem uma mudança radical em nossas percepções, no
nosso pensamento e nos nossos valores.
De acordo com CAPRA (XXXX, p,16) “a percepção ecológica profunda reconhece a interdependência fundamental de todos os fenômenos, e o
fato de que, enquanto indivíduos e sociedades, estamos todos encaixados nos
processos cíclicos da natureza”.
A teoria de uma “ecologia integral” aproxima-se muito de uma das
visões da conhecida “ecologia profunda”. Nesta não se segrega os seres
humanos ou qualquer outro elemento da natureza, tudo pertence ao meio
ambiente natural. A ecologia profunda “vê o mundo não como uma coleção
de objetos isolados, mas como uma rede de fenômenos que estão fundamentalmente interconectados e são interdependentes” (CAPRA, 1996, p. 26). O
ser humano é apenas um fio particular na teia da vida. Há uma proposta de
mudança de consciência, de abandono ao antropocentrismo desmedido
e irresponsável que se alastrou pelo mundo.
Boff (2006) manifesta que:
Vivemos, hoje, a crise do projeto humano: sentimos a falta clamorosa de
cuidado em toda parte. Suas ressonâncias negativas se mostram pela má
qualidade de vida, pela penalização da maioria empobrecida da humanidade, pela degradação ecológica e pela exploração exacerbada da violência. Que o cuidado aflore em todos os âmbitos, que penetre na atmosfera
humana e que prevaleça em todas as relações! O cuidado salvará a vida,
fará justiça ao empobrecido e resgatará a Terra como pátria e mátria de
todos (BOFF, 2006, p.191.).
A referida crise tem como um dos tópicos de origem os esgotamentos, sem qualquer preocupação com a continuidade e/ou manutenção, dos
recursos naturais. Essa falta de preocupação com os efeitos na natureza
e no homem é uma visão ultrapassada de que os recursos naturais eram
infinitos, quando, na verdade, sabemos que não são. Mais que uma visão
de infinitude dos recursos naturais, a forma de pensar e agir do homem
sustentou-se pela filosófica de Platão, que afirmava que a “a natureza está
para servir o homem”.
Considerando que os recursos naturais são finitos e, considerando
que a ganancia do homem é infinita, não há compatibilidade entre estes
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ENCÍCLICA LAUDATO SI: A RELAÇÃO ENTRE O CAPITALISMO, NATUREZA E O DIREITO
SOCIOAMBIENTAL
dois elementos, ou seja, é inevitável um choque entre as necessidades
humanas e os recursos naturais. Este desequilíbrio entre as necessidades
humanas e os recursos naturais está representado no fornecimento de
alimentos – vegetais, animais e peixe, na água doce, na agricultura, na
pecuária, no desequilíbrio do meio ambiente e no aquecimento terrestre.
Dessa forma, a crise ambiental afeta, como consequência, a condição
de vida das pessoas, ou seja, menos alimentos, aparecimento de doenças
consideradas erradicadas e de novas doenças.
A sociedade capitalista atual necessita em urgência de uma consciência ambiental potencializada pela educação ambiental, ou seja, de
uma Ética Ambiental que requer inicialmente a estruturação de uma nova
consciência através da educação ambiental.
O SURGIMENTO DA SOCIEDADE DE RISCO
O conceito de sociedade de risco se cruza diretamente com o de globalização: os riscos são democráticos, afetando nações e classes sociais sem
respeitar fronteiras de nenhum tipo. Os processos que passam a delinear-se
a partir dessas transformações são ambíguos, coexistindo maior pobreza
em massa, crescimento de nacionalismo, fundamentalismos religiosos,
crises econômicas, possíveis guerras e catástrofes ecológicas e tecnológicas.
O termo “risco” é adotado para indicar indício de uma ameaça ou
perigo. Através das noções de probabilidade, de incerteza e de futuro é
possível entender o significado de risco. Ao lado da probabilidade, da
incerteza e do futuro, Ulrich Beck, diz que o risco é resultado das decisões tomadas no presente. O acontecimento é provável, porém, incerto.
O risco possui uma natureza complexa, só permitindo ser observado por
uma perspectiva abrangente e inclusiva.
Beck divide em quatro pilares de risco os mega-perigos nucleares,
químicos, genéticos e ecológicos: em primeiro, há o dano global, muitas
vezes irreparável e que não se consegue limitar, por isso, fala-se em indenização dos danos; em segundo, há medidas paliativas, incluindo aqui
o conceito de seguridade do controle antecipativo dos resultados; em
terceiro lugar, o acidente perde a sua delimitação no tempo e no espaço, e,
assim, o seu significado. Torna-se um evento com um início mas não tem
fim: um festival aberto de ondas progressivas, a destruição desenfreada
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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e dissimulado. O que isto significa é a abolição dos padrões normais de
procedimentos de avaliação e, portanto, a base de cálculo dos perigos;
entidades incomparáveis são comparados e cálculo torna-se ofuscação.
Os riscos e riscos podem ser divididos em dois grupos, os previsíveis
e calculáveis e os imprevisíveis e incalculáveis (também chamados de riscos
abstratos). À sociedade de risco origina-se quando os riscos oriundos das
ações e decisões humanas rompem os pilares da certeza estabelecida pela
sociedade industrial.
A transição da sociedade industrial para a sociedade de risco força o
confronto com os limites do desenvolvimento capitalista.
CASO DA USINA BELO MONTE
É notório que desde o início da humanidade nunca se degradou
tanto o meio ambiente quanto no século 21. Esse século de extinção
em massa, injustiças sociais, guerras e horrores dos mais variados tipos
coincidiu também com o auge do sistema capitalista, do consumismo
exacerbado, da desconexão do homem com a natureza e da luta individual
pelo lucro. O interesse simples e puro pelo lucro faz com que o ser humano
ignore as consequências de suas obras para o mundo e especialmente para
as gerações futuras.
Os problemas são ainda maiores já que o Estado não busca a proteção
do bem maior que é a natureza e o bem estar, autorizando grandes danos
ambientais, que muitas vezes não apresentam sequer os estudos de impacto
necessários devido ao interesse econômico envolvido.
Para este estudo, é imprescindível analisar o caso da Usina de Belo
Monte, que é um exemplo claro desta realidade: uma confusão enorme
entre entes públicos e privados permeia um cenário de destruição ambiental autorizada pelo poder público em busca de desenvolvimento, pautado
exclusivamente no conceito de desenvolvimento vinculado aos ganhos
econômicos, dissociado de qualquer preocupação com a fauna, a flora, e
a população que ali habita.
A total falta de planejamento e investimento no setor elétrico nacional durante anos provocou, no início da década passada, a chamada “crise
do apagão”, que atingiu todo o território brasileiro e causou inúmeros
blecautes contínuos em quase todos os municípios brasileiros.
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ENCÍCLICA LAUDATO SI: A RELAÇÃO ENTRE O CAPITALISMO, NATUREZA E O DIREITO
SOCIOAMBIENTAL
Partindo deste lamentável episódio, o governo iniciou uma busca
desenfreada para evitar que a “crise do apagão” se prolongasse por mais
tempo, ou ainda, que os blecautes se tornassem mais frequentes com o
passar do tempo e da inércia do poder público.
Após anos de estudos, o governo federal criou em 2007 o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), que veio a se tornar um pacote de
medidas político-econômicas com o intuito de acelerar o crescimento
nacional, o qual previa investimento em diversas áreas deficitárias no Brasil,
tais como infraestrutura, energia, saneamento, transporte, dentre outros.
Impulsionado pelo plano governamental criado em 2007 - em que
pesem as críticas de ambientalistas e do próprio IBAMA - em 2010, foi
aberta licença para construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, tendo
como vencedor do leilão o consórcio Norte Energia – ora apelado - cujas
obras se iniciaram em 2011.
A construção de uma Usina Hidrelétrica, especialmente do porte
de Belo Monte, além de modificar o cenário socioeconômico da região
do entorno da obra, acabou por afetar diretamente toda fauna e flora
interligada ao ecossistema presente na região.
O distrito pleiteado para a construção da UHEBM ainda possui
uma das maiores biodiversidades de fauna e flora do planeta. São inúmeras
espécies de peixes e outros animais que buscam refúgio às margens de rios
e igarapés da área afetada pela Usina, que deixaram de existir.
Com efeito, na ânsia desenfreada de construir a UHEBM, tanto as
empresas privadas, quanto o Governo Federal, foram condescendentes em
ignorar as críticas e estudos formulados ao longo de décadas por especialistas de renome quanto aos irreparáveis danos ambientais e sociais que
estão sendo causados ao ecossistema e à população local pela construção
da Usina.
Analisando o EIA/RIMA, elaborado pelo próprio consórcio construtor, resta cristalino que os danos ambientais, que já vem sendo causados
pela construção da barragem, afetam diretamente a população indígena e
a população tradicional.
No mês de dezembro de 2010, o IBAMA (Instituto Brasileiro de
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) concedeu a Licença
Prévia (LP) da obra e no início de 2011 foi concedida a Licença de Instalação e a posterior construção da Usina. Contudo, sua o início de sua
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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construção foi autorizada sem cumprir 40 condicionantes ambientais e
26 condicionantes relacionadas a população indígena, sem esquecermos
de mencionar, que sequer foram determinadas condicionantes quanto à
população ribeirinha, diretamente atingida pelos impactos ambientais
de Belo Monte.
Verificamos no caso de Belo Monte o descumprimento claro do
artigo Art. 4º da Resolução CONAMA 06, de 16 de setembro de 1987,
que determina a concessão de licenças de funcionamento no caso das usinas hidrelétricas:
Na hipótese dos empreendimentos de aproveitamento hidroelétrico, respeitadas as peculiaridades de cada caso, a Licença Prévia (LP) deverá ser
requerida no início do estudo de viabilidade da Usina; a Licença de Instalação (LI) deverá ser obtida antes da realização da Licitação para construção
do empreendimento e a Licença de Operação (LO) deverá ser obtida antes
do fechamento da barragem.
A grande justificativa para a obra é o suposto interesse público, e além
desse suposto interesse público, insiste-se na utilização do argumento de
que para a geração de energia através da água, e da construção de hidrelétricas, é em todos os casos, uma forma sustentável e que gera menor prejuízo
ao meio ambiente.
Porém, de acordo com o Painel Intergovernamental de Mudanças
do Clima (IPCC), usinas hidrelétricas emitem metano, um gás de efeito
estufa com 25 vezes mais impacto sobre o aquecimento global por tonelada
de gás do que o gás carbônico.
Assim, claramente verifica-se que o licenciamento para construção
da usina de Belo Monte jamais poderia ter sido concedido, e as obras não
poderiam ter sido autorizadas da maneira que foram. Os próprios estudos
de viabilidade do empreendimento demonstraram inúmeras incongruências, e vem sendo questionados pelo Ministério Público, por especialistas
de diferentes áreas, pela população, movimentos sociais e organizações
não governamentais.
No ano de 2009, especialistas de todo o Brasil analisaram a viabilidade do projeto da usina, e identificaram omissões e falhas no Estudo
de Impacto Ambiental (EIA), e constataram que os impactos ambientais e sociais na região seriam massivos, e que tais consequências foram
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ENCÍCLICA LAUDATO SI: A RELAÇÃO ENTRE O CAPITALISMO, NATUREZA E O DIREITO
SOCIOAMBIENTAL
simplesmente ignoradas pela empresa Norte Energia e pelo poder público.
Pelo princípio da precaução, existindo incertezas científicas do
impacto sobre o meio ambiente que pode trazer a construção de um
empreendimento, esse não poderia ser autorizado.
No estudo citado, concluiu-se que a construção da Usina de Belo
Monte geraria impactos sobre os mais diversos aspectos da vida da região,
tais como, impactos negativos sobre a ictiofauna, a fauna, a flora, a emissão
de gases prejudiciais ao meio ambiente, além dos impactos sociais negativos
sobre a região.
Ignorando todos os apelos, protestos, estudos, o Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) concedeu uma licença parcial de funcionamento ao empreendimento, inexistente na legislação brasileira, vez que as licenças apenas são concedidas
quando vinculadas ao cumprimento das condicionantes, contrariando
os interesses maiores do meio ambiente e da casa comum, desde o mês
de março de 2016, a usina de Belo Monte iniciou seu funcionamento,
apresentando denúncias da mortandade de mais de 16 toneladas de peixes.
Ao longo da história brasileira, verifica-se o estabelecimento de um
padrão de políticas públicas que envolvem a construção e funcionamento
de usinas hidrelétricas, que na grande maioria dos casos, com autorização
ou até participação do poder público, desrespeitam por completo a legislação ambiental brasileira e os direitos das populações tradicionais direta
ou indiretamente atingidas pela obra, que por hábito são consideradas
empecilhos para o desenvolvimento econômico. (MORAN, 1990).
Para Hernández e Magalhães (2013):
Vivemos em uma quadra histórica em que a democracia liberal apresenta
seus limites. Paradoxalmente, elementos constituídos a partir dela, como
a própria legislação ambiental, a consolidação dos direitos indígenas e de
povos tradicionais, conquistados no âmbito da constituição de 1988 e
regulamentações posteriores aparecem como fatores insuportáveis, quando
terras ribeirinhas, rios, florestas são identificados como jazidas de megawatts. Instaura-se um campo de disputa, no qual os recursos políticos são
desiguais, principalmente quando se faz sucumbir Ciência, cientistas e
democracia desfigurada: o caso Belo Monte os parâmetros de igualdade,
ainda que insuficientes, assegurados pelas leis. Neste contexto, emerge a
orquestração e proliferação de chavões da estirpe de “a democracia não
pode ser um estorvo ao desenvolvimento”, “forças demoníacas se opõem
ao progresso”, “temos que vencer os entraves, ambientais, indígenas e dos
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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tribunais de contas”.
Percebe-se que o conceito de desenvolvimento no caso das políticas
públicas, ainda se encontra atrelado ao entendimento de evolução com
base nos moldes capitalistas, pautado no crescimento econômico, sem levar
em consideração outros aspectos, e entendendo as populações tradicionais,
no caso os ribeirinhos e indígenas como excluídos da modernidade, e
consequentemente impedimentos ao “desenvolvimento”.
Importante apenas avaliarmos, quão prejudicial vem a ser essa visão
de conceito de desenvolvimento, já que busca-se mundialmente a modificação dos padrões e do entendimento de desenvolvimento fixado exclusivamente na questão econômica, em detrimento do meio ambiente natural e
social. O conceito de desenvolvimento necessita de uma visão mais ampla,
que retorna as visões das comunidades tradicionais, de desenvolvimento
pautado na sustentabilidade e no vínculo com a natureza, e especialmente
o respeito por ela. (FLEURY, ALMEIDA, 2013.)
Desde a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente
e Desenvolvimento, no ano de 1992, vem sendo discutida a necessidade
clara da alteração da visão destrutiva de exploração, advinda das sociedades industriais e a sociedade atual capitalista, trazendo a importância
da conservação do meio ambiente e a melhoria na qualidade de vida de
forma igualitária, porém ainda verifica-se em casos como o da Usina de
Belo Monte a desconsideração das populações locais tradicionais, e especialmente o descaso com o meio ambiente, mantendo o entendimento
equivocado de que em busca do desenvolvimento econômico, tudo é permitido, já que este deve estar acima de todos os outros interesses e bens.
Claramente verificamos a clara confusão entre público e privado, já
que a própria Norte Energia é formada por entes públicos empresas estatais, a Eletrobras, a Chesf e a Eletronorte em conjunto com as empresas
privadas Vale, J. Malucelli Energia e com fundos de pensão e de investimentos públicos Petros, Funcef, Caixa FIP Cevix e ainda sociedades de
propósito específico (Belo Monte S/A e Amazônia – Cemig e Light),
assim com o falso argumento de melhor “interesse público” verificamos
no caso concreto, a flexibilização ou até a desconsideração dos direitos
ambientais e dos direitos humanos e sociais, já que preceitos fundamentais são descumpridos como os presentes no artigo 225 da Constituição
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ENCÍCLICA LAUDATO SI: A RELAÇÃO ENTRE O CAPITALISMO, NATUREZA E O DIREITO
SOCIOAMBIENTAL
Federal que estabelece que:” Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever
de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.”, com
pretextos desenvolvimentistas exclusivamente econômicos.
Assim, se traduzem as escolhas públicas que não levam em conta as
consequências futuras, e segue os modelos de uma sociedade de risco, que
cria problemas ecológicos globais, decorrentes de uma crise institucional da
própria sociedade industrial e capitalista, onde o poder público é obrigado
a tomar decisões em busca do desenvolvimento, mas não possui certezas
científicas dos impactos ambientais e mundiais que terão tais decisões que
podem afetar a sobrevivência mínima e a casa comum, que é
de direito de todos, sem base em qualquer fundamento mínimo que
paute suas decisões.
É notório o fato que o sistema capitalista em si estreita as relações
entre o público e o particular, das mais variadas formas. O caso da Usina
de Belo Monte figura um claro exemplo de que a relação entre Estado e
Empresas podem gerar danos irreparáveis a natureza e a população tradicional, e como o poder econômico se sobrepões a interesses coletivos.
A Encíclica Laudato si elucida o desafio e propõe soluções ao demostrar
que, independe de quem somos, se nossos interesses são nobres ou não,
todos habitamos a “Casa Comum”, e, portanto, devemos trabalhar solidariamente para preservá-la.
ENCICLICA LAUDATO SI: UMA RELAÇÃO ENTRE A NATUREZA E A SOCIEDADE
A Encíclica “Louvado Sejas sobre o cuidado da casa comum” (“Laudato si”), editada pelo Papa Francisco, apresenta a questão ambiental e a
grandeza do desafio que se impõe para a geração presente no que tange à
mudança nos parâmetros de utilização da natureza, que hoje é objeto para
a satisfação de suas necessidades impostas por uma produção desenfreada.
O Papa Francisco mostra, na carta encíclica, um dos motivos da
escolha do nome que assumiu para o exercício do seu pontificado. Ele utiliza-se do nome de São Francisco de Assis, conhecido por sua preocupação
e tentativa de proteção à natureza, assim como pelo compromisso com a
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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fraternidade e o reconhecimento da alteridade entre os homens e entre
os seres humanos e a natureza. A sua filosofia, de maneira resumida e simplista, apresenta a visão de que todos têm direito ao meio ambiente sadio,
sendo idêntica ao conteúdo da norma constitucional vigente no Brasil.
Tal realidade leva o Papa Francisco, autor da encíclica, a suscitar algumas indagações, entre as quais se destacam: “que tipo de mundo queremos
deixar a quem vai suceder-nos, às crianças que estão nascendo? Com que
finalidade passamos por este mundo? Para que vivemos esta vida? Para que
trabalhamos e lutamos? Que necessidade tem de nós esta terra? ” (FRANCISCO, 2015, p.96). Estas questões fazem-se presentes no cenário mundial quando se observa a degradação da natureza, a dignidade da geração
presente perante as futuras e a necessidade de deixar um “planeta habitável
para a humanidade que vai nos suceder” (FRANCISCO, 2015, p. 96).
Na Carta Encíclica, o Papa Francisco explica que o problema fundamental é o modo como a humanidade assumiu a tecnologia e o seu desenvolvimento juntamente com um paradigma homogéneo e unidimensional.
A ideia de um crescimento infinito ou ilimitado supõe a mentira da
disponibilidade infinita dos bens do planeta, que leva a espremê-lo até ao
limite e para além do mesmo. Trata-se do falso pressuposto de que “existe
uma quantidade ilimitada de energia e de recursos a serem utilizados, que
a sua regeneração é possível de imediato e que os efeitos negativos das manipulações da ordem natural podem ser facilmente absorvidos”.
A concepção contida na encíclica é denominada pelo Papa de “ecologia integral”, a qual será “vivida com alegria e autenticidade” (FRANCISCO, 2015, p. 14), em que tudo está relacionado e em que todos são
corresponsáveis.
Atendendo à vertente exposta, da maior proteção possível, inclusive
para a geração futura (concepturos), não seria uma utopia pensar-se em
uma equidade pautada em um Estado de Bem-Estar Ecológico, no qual o
Poder Público pelo poder social a ele conferido protegerá o ambiente para a
geração presente e para as futuras que ainda não podem se manifestar, mas
que têm direito de encontrar um meio ambiente apto para se desenvolver
de maneira sadia (MACHADO, 2008, p. 108)
A humanidade entrou numa nova era, em que o poder da tecnologia nos põe diante de uma encruzilhada. Somos herdeiros de séculos de
ondas enormes de mudanças: a máquina a vapor, a ferrovia, o telégrafo,
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ENCÍCLICA LAUDATO SI: A RELAÇÃO ENTRE O CAPITALISMO, NATUREZA E O DIREITO
SOCIOAMBIENTAL
a eletricidade, o automóvel, o avião, as indústrias químicas, a medicina
moderna, a informática e, mais recentemente, a revolução digital, a robótica, as biotecnologias e as nanotecnologias.
Para o Papa Francisco, a relação íntima entre os pobres e a fragilidade
do planeta, a convicção de que tudo está estreitamente interligado no
mundo, a crítica do novo paradigma e das formas de poder que derivam
da tecnologia, o convite a procurar outras maneiras de entender a economia e o progresso, o valor próprio de cada criatura, o sentido humano da
ecologia, a necessidade de debates sinceros e honestos, a grave responsabilidade da política internacional e local, a cultura do descarte e a proposta
dum novo estilo de vida; tudo isso é possível melhorar, pois somos parte
de um todo.
A encíclica e a Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, tem como objetivo em comum, a busca por uma vida sustentável,
pois “viver de forma sustentável – em equilíbrio com o meio ambiente
– não é uma questão de estilo, mas de sobrevivência” (TRIGUEIRO,
2012, p. 362).
O Papa Francisco ao falar de meio ambiente o faz sob as quatro principais vertentes – meio ambiente natural, artificial, do trabalho e cultural.
Adota a mesma visão global do ordenamento jurídico brasileiro, pois a
visão deve ser ampla para que se tenha uma proteção mais abrangente.
O Papa Francisco, cônscio da importância do meio ambiente para
a garantia da vida e da existência de todos, alerta para o egoísmo, para
ausência de alteridade e a sua repercussão ética – “o meio ambiente é um
bem coletivo, patrimônio de toda a humanidade e responsabilidade de
todos”. (FRANCISCO, 2015, p. 61).
A ideia de superioridade do ser humano pela não percepção da alteridade ocasionou o uso desmedido dos bens naturais e desencadeou a
crise ambiental atual com degradação e esgotamento de recursos naturais
renováveis e não renováveis. O meio ambiente, consequentemente, começa
a mostrar os reflexos dos abusos sofridos pelos atos da humanidade.
O meio ambiente é transnacional, intergeracional, multidimensional
e transdisciplinar. Por esta razão, a principiologia contida na alteridade,
na visão do outro e das outras dimensões de abrangência, são tão significativas. O reconhecimento da alteridade é a chave para o aprimoramento individual e social diante das complexidades impostas pelo mundo
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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contemporâneo (MOLAR, p. 1444).
A alteridade é a relação de um ser com o outro e é saudável quando
há sustentabilidade e uso consciente dos bens ambientais, evitando-se a
sua esgotabilidade. Uma sociedade sustentável é “aquela que satisfaz suas
necessidades sem diminuir as perspectivas das gerações futuras” (CAPRA,
1996, p. 24).
Esta é a visão apresentada na encíclica papal e normatizada pelo
ordenamento jurídico brasileiro, além de ser programa de ação no âmbito
internacional exposto em diversos Tratados, Convenções e Acordos multilaterais entre os Estados soberanos.
CONCLUSÃO
Quando paramos para analisar sobre a conexão entre meio ambiente
e homem, deve-se considerar um discurso e um exercício ético que sustentem e alterem tal relação. Entretanto, o sistema vigente, o capitalismo, que
determina os processos de produção e o trabalho na economia moderna
necessita ser reformulado, a partir de valores e princípios que vão além
do mero consumismo.
Busca-se, então, de uma nova racionalidade ambiental. O exercício científico deve ser exercido de forma ética constituída pelo direito
ambiental. Nesse sentido, é essencial que a sociedade capitalista imponha
regras ao crescimento, à exploração e à distribuição dos recursos de modo a
garantir a qualidade de vida e saúde da presente e futuras gerações. A sociedade capitalista atual necessita em urgência de uma consciência ambiental
potencializada pela educação ambiental, ou seja, de uma Ética Ambiental
que requer inicialmente a estruturação de uma nova consciência através
da educação ambiental.
Ainda vemos como no caso da Usina de Belo Monte, a busca incessante pelo desenvolvimento pautado apenas no aspecto econômico,
levando a equivocadas decisões e políticas públicas que geram riscos incalculáveis, desconhecidos, ao planeta terra, nossa casa comum.
A confusão entre o público e o privado, e a suposta busca pelo interesse coletivo do desenvolvimento, acaba “autorizando” empreendimentos maléficos ao meio ambienta e a sociedade, ignorando as legislações
ambientais e as defesas sociais.
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ENCÍCLICA LAUDATO SI: A RELAÇÃO ENTRE O CAPITALISMO, NATUREZA E O DIREITO
SOCIOAMBIENTAL
Verificamos a necessidade urgente de conscientização e a proibição
de flexibilizações quanto à proteção do meio ambiente, devido ao colapso
ambiental que vivemos.
Paralelamente à necessidade da Ética Ambiental, verifica-se que é
igualmente imperativo o desenvolvimento de um novo sistema econômico,
que inclua os recursos naturais e enfaticamente humanos. Tal economia
há de ser uma economia ecológica e sustentável, que desenvolva práticas
para o equilíbrio das necessidades humanas e os recursos naturais, não
comprometendo os sistemas ecológicos e promovendo uma distribuição
equitativa dos bens.
Deste modo, necessitamos de um pensamento, e mais, uma ação
coletiva, onde a sociedade, o setor privado e o Estado trabalhem em conjunto para reverter, conter e conservar os bens naturais, de maneira que
suas contribuições ao bem-estar, saúde e qualidade de vida sejam suficientes
para um desenvolvimento humano sustentável.
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“ESTA TERRA É MINHA!”: A QUESTÃO TERRITORIAL
E SUAS IMPLICAÇÕES CONFLITUOSAS
NA SOCIEDADE MOÇAMBICANA
“THIS LAND IS MINE! “: THE TERRITORIAL ISSUE
AND THEIR CONFLICTING IMPLICATIONS
IN MOZAMBICAN SOCIETY
Azarias Maluzane Chunguane1
RESUMO: A terra é um dos mais importantes recursos naturais que
Moçambique dispõe, visto que é a partir dela que se produz e se retira
grande parte da riqueza dos países e dos seus habitantes. O presente trabalho pretende abordar as diferentes situações vividas em Moçambique
no que concerne ao uso e aproveitamento de terra, tema incontornável
no dia-a-dia dos moçambicanos, dado os grandes conflitos existentes por
causa desta preciosa riqueza. Ainda, se debruçará sobre o que diz a lei de
terra moçambicana no que diz respeito ao seu uso e aproveitamento, as
realidades urbana e rural sobre a questão da terra, razões dos conflitos
existentes e possíveis soluções para resolver tais conflitos, visando identificar os diversos fatores que contribuem para a proliferação de conflitos de
terra em Moçambique, nos meios rural e urbano, buscando problematizar
acerca de possíveis soluções para o conflito de terra, analisando os conflitos
que têm ocorrido e observando os atores inseridos nos conflitos de terra.
Nosso trabalho teve corpus documental o Documento de Apresentação
Na Reunião Nacional Sobre Delimitação De Terras Comunitárias e o
Estudo sobre Conflito de Interesses na Gestão e Exploração da Terra em
Moçambique (Os Casos dos Distritos de Massinga, Zavala, Macomia e
Mecufi), ambos da Associação Rural de Ajuda Mútua (ORAM), além do
documento intitulado Senhores da Terra – Análise Preliminar do Fenómeno de Usurpação de terras em Moçambique Casos de Estudo Justiça
Ambiental e União Nacional de Camponeses. Nossas análises demonstraram que tais questões perpassam os seguintes fatores como principais
desencadeadores dos conflitos territoriais: o desconhecimento da lei de
1 Mestrando em Direito, bolsista do CNPq e Oficial da Polícia da República de
Moçambique.
Contato: malu.negro@yahoo.com
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“ESTA TERRA É MINHA!”: A QUESTÃO TERRITORIAL E SUAS IMPLICAÇÕES CONFLITUOSAS NA
SOCIEDADE MOÇAMBICANA
terra por parte das comunidades (população); a corrupção; o conflito de
interesses e a falta de informação relativa aos requisitos necessários para a
obtenção do título de propriedade.
PALAVRAS-CHAVE: Terra; Conflito, Comunidade; Estado; Setor
privado.
SUMMARY: The land is one of the most important natural resources that
Mozambique has, since it is from it that is produced and removes much of
the wealth of the country and its inhabitants. This paper aims to address
the different situations in Mozambique regarding the use and enjoyment
of land, unavoidable topic in day-to-day lives of Mozambicans, given the
major conflicts because of this precious wealth. Also will look at what it says
Mozambican land law in regard to its use and utilization, urban and rural
realities on the land issue, reasons of conflicts and possible solutions to resolve
such conflicts, to identify the various factors that contribute to the proliferation of land conflicts in Mozambique, in rural and urban areas, seeking to
discuss about possible solutions to the conflict of land, analyzing the conflicts
that have taken place and watching the actors inserted in land conflicts.
Our work was documentary corpus Presentation Document At the National Meeting On Delimitation Of Community Land and Study on Conflict
of Interest in Management and Land Exploration in Mozambique (The
Cases of Massinga Districts Zavala, Macomia and Mecufi), both of Associção
Rural de Ajuda Mútua (ORAM), and the document entitled Lords of the
Earth - Phenomenon of the Preliminary Analysis of Encroachment of land in
Mozambique Environmental Case Studies Justice and the National Farmers
Union. Our analyzes showed that these issues cut across the following factors as
the main trigger territorial conflicts: the lack of land law by the communities
(population); the corruption; the conflict of interest and lack of information
on the requirements for obtaining the property title.
KEYWORDS: Land; Conflict, Community; State; Private sector.
INTRODUÇÃO
A terra é um dos mais importantes recursos naturais que um país
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 97
dispõe, visto que é a partir dela que se produz e se retira grande parte da
riqueza dos países e dos seus habitantes. Em Moçambique, a questão territorial tem sido tratada com especial atenção, na tentativa de conciliar a
necessidade de desenvolvimento econômico e a forma mais adequada de
responder às questões sociais a ela ligadas.
Lira apud Costa (2014) classifica o solo como incomensurável em
seu valor, tanto para os particulares, como para o povo em seu conjunto.
Nele se radicam a fonte de alimentação das gentes, as riquezas criadoras dos
instrumentos elementares para a satisfação das incontáveis necessidades
vitais, e todo o sistema habitacional dos seres humanos. Dele se extraem as
substâncias curativas e de fortalecimento, as possibilidades inesgotáveis de
recreio e lazer, e, sobretudo, nele se exerce basicamente a liberdade essencial do homem de ir e vir. O solo é toda hipótese e possibilidade de vida.
Nas últimas duas décadas, o Estado tem vindo a recuperar as áreas de
conservação, quase todas elas já ocupadas por grande número de famílias
que se estendem das comunidades locais rurais, e a criar novas, a medida
que as avaliações do potencial ecológico dessas áreas o justificam.2 A par
desse processo, o Estado tem igualmente a necessidade de responder a
demanda do chamado grande investimento privado, sobretudo de origem
internacional, mas também nacional, nas áreas do turismo, da agricultura,
das florestas, da cinegética, dos minerais, etc., de modo a promover um
desenvolvimento econômico maior e mais célere do país.3
A estabilidade política, social e econômica que vem caracterizando
o Estado moçambicano há mais de 40 anos tem sido um inquestionável
atrativo para o investimento econômico nacional e internacional, grande
parte do qual baseado na exploração da terra e outros recursos naturais. A
pressão por esses recursos tem sido desencadeada pelos diferentes atores
econômicos, designadamente, o Estado, o Setor Privado, as Comunidades Locais e as Organizações da Sociedade Civil, cada um com objetivos
próprios, apesar das plataformas políticas e legais construídas a luz de um
objetivo também comum, que é a busca do desenvolvimento sustentável
e equitativo.4
2 ORAM, 2010. Estudo sobre Conflito de Interesses na Gestão e Exploração da Terra em
Moçambique (Os Casos dos Distritos de Massinga, Zavala, Macomia e Mecufi). Maputo,
Maio de 2010.
3 Idem.
4 Idem.
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“ESTA TERRA É MINHA!”: A QUESTÃO TERRITORIAL E SUAS IMPLICAÇÕES CONFLITUOSAS NA
SOCIEDADE MOÇAMBICANA
O setor privado do grande investimento, como seria óbvio crer, surge
como parte congênita da lógica da busca desenfreada do lucro. Os projetos
de investimento turístico, florestal, mineiro, agrícola, cinegético, etc.. têm
mostrado necessidade de extensões de terra que ocupam ilhas inteiras e
outros territórios, incluindo concessões cujas áreas totais envolvem até
sedes distritais ou parte delas, nos quais se podem identificar incidência
clara de direitos adquiridos de uso e aproveitamento da terra das comunidades locais, tornando-se assim fontes reais e/ou potenciais de grandes
conflitos.5
Á este grupo junta-se o dos atores privados individuais, auto
representados como sendo “a burguesia nacional”, sem capital de
investimento propriamente dito, mas afetados pela febre da necessidade
real e psicológica de reserva de terra para investimento futuro,
programaticamente com base em parcerias com o grande investimento.
Este grupo de atores, normalmente bem esclarecido sobre o valor da terra e
dos recursos naturais, tem lançado mãos das mais diversificadas estratégias
para a aquisição e manutenção de grandes extensões de terras, mesmo sem
capacidade real de implementação dos propostos planos de exploração.
Este pode ser considerado um grupo especial no contexto do fenômeno
do conflito de interesses devido ao seu posicionamento “estratégico” no
mercado nacional: fazem parte dele indivíduos de influência política,
jovens formados e informados e da administração pública, sobretudo,
ligada a gestão dos recursos naturais.6
As comunidades locais, por sua vez, desenvolvem o modelo costumeiro de ocupação do espaço, cuja lógica implica a disponibilidade de
grandes extensões territoriais, como se pode depreender da própria definição jurídico-legal, tais como áreas habitacionais, áreas agrícolas, cultivadas
ou em pousio, florestas, sítios de importância cultural, pastagens, fontes
de água e áreas de expansão. Seja como for, o fato atesta a existência de
uma notável preocupação sobre a questão da dimensão das Comunidades
Locais, uma vez que, em alguma hipótese, o conceito jurídico pode levar a
sugerir a inexistência de “áreas livres e sem ocupantes” a nível do território
nacional. Logicamente, tal fato, implicaria o reconhecimento prévio dos
direitos adquiridos das comunidades locais em face a qualquer pedido de
5 Idem.
6 Idem.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 99
investimento sobre uma “área nova”, o que pode servir de base de contraparte econômica destas, e de algum modo inibir o fluxo do investimento
dependente do aceso e uso dos recursos naturais.7
O cenário produziu acesos debates durante os últimos anos, período
em que aumenta a demanda dos grandes investidores, nacionais e internacionais, pela terra e outros recursos naturais, principalmente, devido a
crise mundial na produção dos combustíveis fósseis e a possibilidade da
sua superação com a produção dos biocombustíveis. Enquanto a visão do
setor público nacional tende para o confinamento das áreas comunitárias
aos limites do espaço visivelmente ocupado pelas residências, pastagens
e culturas agrícolas destas, a opinião das organizações da sociedade civil,
com exceção, sobretudo, daquelas de caris ambientalista, dado o dilema
conservação versus uso (insustentável) dos recursos, tende para inclusão
dos espaços contíguos conforme a interpretação mais literal da definição.
Por um lado, as exigências “acrescidas” para a autorização dos pedidos de
delimitação das áreas das Comunidades Locais (tendo em vista a titulação
dos direitos destas), com base na alteração do artigo 35 do Regulamento
da Lei de Terras e, por outro, o reconhecimento dos direitos de uso e aproveitamento da terra das Comunidades Locais adquiridos por ocupação
costumeira e a possibilidade do seu empenho em parcerias econômicas
com os requerentes de “grandes extensões de terra”, com base nos princípios
plasmados na resolução 70/2008, de 30 de Dezembro, parecem espelhar
com alguma fidelidade a pressão que a terra e outros recursos naturais
atualmente sofrem em Moçambique.8
O presente artigo pretende abordar sobre as diferentes situações
vividas em Moçambique no que concerne ao uso e aproveitamento de
terra, tema incontornável no dia-a-dia dos moçambicanos, dado os grandes
conflitos existentes por causa desta preciosa riqueza. Este conflito é muito
mais frequente dentro das zonas urbanas, por diversas razões como localização estratégica, em termos econômicos, transitabilidade ou mesmo a
vista panorâmica. Contudo, até mesmo nas zonas rurais, e apesar de existir
um controle mais cerrado, os conflitos existem por razões sentimentais ou
costumes que se chocam com a questão econômica. Nesse sentido, o Estado
tem se mostrado uma entidade com a necessidade de assegurar reservas de
7 Idem.
8 Idem.
TERRA É MINHA!”: A QUESTÃO TERRITORIAL E SUAS IMPLICAÇÕES CONFLITUOSAS NA
100 | “ESTA
SOCIEDADE MOÇAMBICANA
terra e outros recursos para fins de exploração econômica direta e indireta
e criação de áreas de conservação de acordo com a atual demanda ecológica
internacional pela manutenção da biodiversidade e pelo desenvolvimento
sustentável.
Daí, que o presente artigo se debruçará sobre o que diz a lei de terra
moçambicana no que diz respeito ao seu uso e aproveitamento, as realidades urbana e rural sobre a questão da terra, razões dos conflitos existentes
e possíveis soluções para resolver tais conflitos. A aquisição de terra é um
assunto complexo na maioria das jurisdições e Moçambique não é exceção.
Nosso objetivo é identificar os diversos fatores que contribuem para a proliferação de conflitos de terra em Moçambique, nos meios rural e urbano,
buscando problematizar acerca de possíveis soluções para o conflito de
terra, analisando os conflitos que têm ocorrido e observando os atores
inseridos nos conflitos de terra.
Partimos da premissa que tais questões perpassam as seguintes hipóteses: desconhecimento da lei de terra por parte das comunidades (população); corrupção; conflito de interesses; falta de informação relativa aos
requisitos necessários para a obtenção do título de propriedade.
BREVE HISTÓRICO DOS PRINCÍPIOS GERAIS QUE REGEM
A LEGISLAÇÃO SOBRE TERRAS EM MOÇAMBIQUE
A primeira Lei de Terras em vigor em Moçambique, após a sua independência nacional, em 1975, foi a aprovada pela Lei n.º 6/79, de 3 de
Julho. O respectivo regulamento foi aprovado pelo Decreto n.º 16/87, de
15 de Julho. Estes instrumentos para além de tratarem do novo regime de
acesso à terra em Moçambique, dispuseram sobre o processo de validação
dos direitos relativos à terra adquiridos no período anterior à independência nacional.9
Em 1995, foi aprovada a Política Nacional de Terra e a Estratégia de
Implementação, que foi o marco para as alterações à legislação de terras
que se seguiram. A Política Nacional de Terras, aprovada pela Resolução
n.º 10/95, de 17 de Outubro, define o seguinte princípio orientador para
a legislação sobre a terra em Moçambique: “assegurar os direitos do povo
9 Quadro Legal para a Obtenção de Direitos sobre a Terra nas Zonas Rurais em Moçambique. Um Guia para a Legalização da Ocupação, Edição III, Agosto de 2012.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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moçambicano sobre a terra e outros recursos naturais, assim como promover
o investimento e o uso sustentável e equitativo destes recursos”. A Política
Nacional de Terras também orienta para o reconhecimento dos direitos
costumeiros sobre a terra como base para a legislação atual que descreve
o processo de formalização dos direitos à terra.10
Em 1997, através da Lei n.º 19/97, de 1 de Outubro, foi aprovada
a atual Lei de Terras (adiante, a “Lei de Terras”). O Regulamento da Lei
de Terras aplicáveis às “zonas não abrangidas pelas áreas sob jurisdição dos
Municípios que possuam Serviços Municipais de Cadastro” foi aprovado em
1998, através do Decreto n.º 66/98, de 8 de Dezembro (adiante, o “Regulamento da Lei de Terras”). O regulamento aplicável às “áreas de cidade
e vila legalmente existentes e nos assentamentos humanos ou aglomerados
populacionais organizados por um plano de urbanização” fora aprovado
através do Decreto n.º 60/2006, de 26 de Dezembro (adiante, o “Regulamento do Solo Urbano”). A Lei de Terras aplica-se tanto à terra urbana
como à rural.11
A definição do regime da terra sempre teve tratamento, também
ao nível da própria Constituição. Atualmente, encontra-se em vigor a
Constituição da República de Moçambique de 2004. Antecederam a
atual Constituição, a Constituição de 1975 e a Constituição de 1990. A
Constituição da República em vigor estabelece os seguintes princípios a
respeito da terra12:
•
•
•
•
Em Moçambique a terra é propriedade exclusiva do Estado;
A terra não deve ser vendida, hipotecada, penhorada ou de qualquer outra forma alienada;
Como meio universal de criação da riqueza e do bem-estar
social, o uso e aproveitamento da terra é direito de todo o povo
moçambicano;
O Estado confere o direito de uso e aproveitamento da terra, e
determina as condições para tal uso.
O artigo 4 da Constituição da República em vigor em Moçambique
10 Idem.
11 Idem.
12 Constituição da República de Moçambique de 2004, artigos 109 e 110.
TERRA É MINHA!”: A QUESTÃO TERRITORIAL E SUAS IMPLICAÇÕES CONFLITUOSAS NA
102 | “ESTA
SOCIEDADE MOÇAMBICANA
prevê o pluralismo jurídico ao consagrar que o estado reconhece os vários
sistemas normativos e de resolução de conflitos que coexistem na sociedade
moçambicana, na medida em que não contrariem os valores e os princípios
fundamentais da Constituição. Por este artigo entende-se que os conflitos
de terra podem ser dirigidos por via formal, através dos Tribunais Judiciais,
e por via informal através de outras instâncias não judiciais de resolução
de conflitos.
No plano extrajudicial, onde é resolvida a maior dos conflitos, pode-se recorrer às seguintes instâncias:
• As comunidades locais: Segundo a alínea b) do número 1 do
artigo 24 da Lei de Terras, nas zonas rurais, as comunidades
participam na resolução de conflitos, utilizando, entre outras,
as normas e práticas costumeiras.
• Aos tribunais comunitários, criados pela Lei nº 4/92, de 6 de
Maio, são parte integrante do direito e da justiça oficiais, mas,
por outro lado, a lei refere que eles operam fora da organização
judiciária. Estes se localizam nas comunidades, os juízes comunitários fazem parte da comunidade e julgam com base nos usos
e costumes, tendo em conta a diversidade étnica e cultural da
sociedade.13
• As associações não governamentais (Liga dos Direitos Humanos, Centro de Práticas Jurídicas, Associação das Mulheres
de Carreira Jurídica, Associações de Médicos Tradicionais e,
outras), entidades religiosas, as autoridades tradicionais (régulos, curandeiros, chefes religiosos e outros), a polícia, os órgãos
administrativos locais, funcionam como instâncias de resolução
de litígios. Estas instâncias não judiciais tem recorrido a conciliação e a mediação, com vista a encontrar uma solução por mútuo
acordo de qualquer litígio, métodos estes que foram objeto da
Lei nº 11/99, de 8 de Julho (Lei da Arbitragem, Conciliação e
Mediação).14
• No plano judicial, em caso de conflito os cidadãos podem recorrer: aos tribunais Administrativos, quando o conflito ocorre
13 OS SENHORES DA TERRA. Análise Preliminar do Fenómeno de Usurpação de
terras em Moçambique Casos de Estudo Justiça Ambiental e União Nacional de Camponeses, Maputo, Moçambique, 2011.
14 Idem.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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entre Estado e particular, ou por outra, se tem origem numa
decisão das entidades competentes para autorização dos pedidos, revogação da autorização provisória ou extinção do direito,
o tribunal competente é o Tribunal Administrativo, o qual já
se pronunciou sobre vários conflitos relacionados com a terra.
Nos Tribunais comuns têm igualmente apreciado e julgado um
grande número de casos relativos a conflitos entre particulares
sobre direitos à terra.
A QUE STÃO DA TERR A NA ATUAL SO CIEDADE
MOÇAMBICANA
Moçambique é considerado um dos países mais pobres do mundo,
o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) na sua edição de 2014
classifica o país na 178ª posição, entre 182 países considerados, com um
IDH de 0,402.39. A esperança média de vida da população é de apenas
52 anos. Apesar da redução da pobreza em Moçambique, com a possibilidade de alcançar as Metas de Desenvolvimento do Milénio (MDM) de
reduzir pela metade, até 2015, o número de pessoas que vivem abaixo da
linha de pobreza, 45% da população moçambicana continua a viver com
menos que USD 1 por dia e não têm acesso a serviços básicos, como água
potável, escolas e instalações médicas.15
A pobreza está altamente condicionada pela história de colonização
e de guerra civil do país. Além disso, em 1991-1992, Moçambique foi
afetado por uma das mais severas secas do século 20, tornando a população ainda mais vulnerável. Apesar do desenvolvimento e crescimento
económico que se tem verificado desde então, o País continua dependente
de fundos internacionais, sendo que cerca de 50% do Orçamento Geral
do Estado provêm de ajudas externas.16
A nova lei de terra em Moçambique surgiu em 1997 e desde então
um número significativo de comunidades rurais reforçou o seu direito de
uso e aproveitamento da terra. Segundo relato pela ONG ORAM, no
documento de apresentação da reunião nacional sobre delimitação de
terras comunitárias, realizada em 2010, na cidade de Maputo, esta é uma
15 Idem.
16 Idem.
TERRA É MINHA!”: A QUESTÃO TERRITORIAL E SUAS IMPLICAÇÕES CONFLITUOSAS NA
104 | “ESTA
SOCIEDADE MOÇAMBICANA
vitória, um marco social e histórico, digno de registo e apreciação, jamais
visto na história contemporânea, desde a Conferência de Berlim, quando
o continente africano foi divido para melhor ocupar e governar.17
Apesar deste progresso em Moçambique, o desenvolvimento rural
não tem sido um processo pacífico. O conceito atual tem atribuído o
papel de liderança ao setor privado que tem ocupado lugares-chave na
agricultura empresarial de escala, onde se apoia a economia rural. Camponeses, comunidades locais e a população rural em geral são vistos como
fornecedores de mão-de-obra e parceiro para ter acesso a terra, recursos
naturais e excedentes da produção agrícola. Este ambiente tem criado
tendência de implantação de uma relação de cima para baixo nos projetos e programas privados desenhados a nível nacional sem a participação
verdadeira das pessoas no local. Estas características muitas vezes não são
compatíveis para assegurarem a construção duma parceria genuína, ficando
a população rural sem espaço para decidir sobre o seu próprio futuro em
condições favoráveis para ela.18
Conforme afirma Godinho (2000), dentre os diversos problemas que
surgem para o estudioso de Direito neste final de século, situa-se a análise
da função social a propriedade imóvel e, por consequente, a realização dos
direitos humanos elementares, como o de ter uma moradia ou o de possuir
um mínimo de solo fértil para prover o seu sustento e o de sua família.19
A apropriação do solo, seja urbano, seja rural, para fins meramente
especulativos, acaba por gerar um quadro de instabilidade social, violência, criminalidade e poluição, além de contribuir decisivamente para a
concentração de riqueza e distribuição de miséria.20
Indo ao encontro das palavras de Gondinho (2000), tenho de concordar que a questão da usurpação ou a apropriação da terra por parte
“daqueles” que têm poder econômico em detrimento das populações
pobres e muitas vezes “donos” da terra por questões de herança ou vivência tem sido o grande foco de conflito, sem esquecer a venda e atribuição
de terra a dois ou mais indivíduos, pois muitas vezes a questão econômica
17 ORAM - Documento De Apresentação Na Reunião Nacional Sobre Delimitação De
Terras Comunitárias, Maputo, Março de 2010
18 Idem.
19 GONDINHO, André Osório. Função Social da Propriedade. IN: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil – Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
20 Idem.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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tem feito que se esqueçam dos valores costumeiros, embora estes estejam
protegidos por lei.
O fenômeno de usurpação de terra ocorre em Moçambique e é facilitado pelas inúmeras falhas em todo o processo de atribuição do Direito
de Uso e Aproveitamento de terra, beneficiando os investidores em detrimento das comunidades rurais. Constituem fatores que contribuem para o
fenômeno de usurpação de terra, o pouco conhecimento das comunidades
sobre os seus direitos e lei de terras, a fraqueza institucional dos governos locais, a corrupção de autoridades e líderes comunitários e a falta de
consciência sobre os benefícios dos processos formais de posse de terra.
O maior agravante neste fenômeno é a vulnerabilidade resultante das
inúmeras carências características da pobreza a que estas comunidades
estão sujeitas, o que corrobora para estas serem facilmente ludibriadas
com promessas de melhoria de condições básicas de vida.21
Um dos requisitos para a atribuição do direito de uso e aproveitamento de terra é a realização de consulta pública, verificando-se que ocorre
com falhas e de forma imprópria, atentando gravemente contra o direito à
informação e à participação pública, pela manipulação das comunidades
por parte dos investidores, muitas vezes através das estruturas de poder
locais, com falsas promessas. Muitos dos conflitos atualmente existentes
entre as comunidades e as empresas são resultado do incumprimento das
promessas feitas no processo de consulta pública, da invasão de terras
comunitárias e do reassentamento em condições e locais impróprios.22
Vários são os indicadores sociais que ilustram a vulnerabilidade da
população moçambicana, entre estes importa salientar a taxa de mortalidade, onde cerca de 56% dos óbitos no país é causado por epidemias como
a Malária (29%) e HIV-SIDA (27%), estimando-se ainda que a percentagem de população com HIV (entre jovens e adultos) tenha aumentado de
8,3% em 1998 para 16% em 2007. Estes valores são ainda mais impressionantes quando se refere ao gênero, uma vez que a incidência de infecção
nas mulheres é três vezes maior que nos homens.23
O desenvolvimento de Moçambique está profundamente ligado ao
21 OS SENHORES DA TERRA. Análise Preliminar do Fenómeno de Usurpação de
terras em Moçambique Casos de Estudo Justiça Ambiental e União Nacional de Camponeses, Maputo, Moçambique, 2011.
22 Idem.
23 Idem.
TERRA É MINHA!”: A QUESTÃO TERRITORIAL E SUAS IMPLICAÇÕES CONFLITUOSAS NA
106 | “ESTA
SOCIEDADE MOÇAMBICANA
setor agrícola com cerca de 64% da população na área rural e 55% desta
vive abaixo da linha da pobreza. Nas áreas rurais, a agricultura é a principal
fonte de renda, mas, com a baixa produtividade preponderante, as famílias
dificilmente conseguem satisfazer as suas necessidades nutricionais, além
de estarem vulneráveis às intempéries climáticas. Em face de inundações
ou secas, os agricultores estão entre os grupos mais expostos à insegurança
alimentar, uma vez que eles têm poucas alternativas de geração de renda
para além da agricultura.24Testemunho de tal situação, é o relato de um
agricultor, citado no documento “Senhores da terra”:
Quem arranca a terra arranca tudo: a nossa vida, o nosso futuro e dos nossos
filhos. Já não iremos ter acesso as nossas mangas, bananas, capim para cobrir
as nossas casas. Para andarmos é preciso autorização da empresa e é por
isso que nos temos medo da Chikwetii e não o queremos. Temos medo e
muitas vezes nos questionamos como a nossa vida será? Estão a derrubar as
árvores e de tudo o que há nas nossas terras. Quando as nossas mulheres e
filhos vão apanhar a lenha são proibidas, afinal a terra não é nossa? Será que
neste país apenas Cahora Bassa é que é nossa? Mas nós estamos dispostos a
tudo para salvaguardar os nossos direitos. As pessoas não estão livres, estão
a sofrer por causa do Chikwetii. Nós lutamos pela independência e durante
a guerra de 16 anos, somos antigos combatentes, não recebemos dinheiro e
agora estamos a ser arrancados a terra, afinal porque é que lutamos ao longo
de todo esses anos? Nós queremos e exigimos que o projecto da Chikwetii
seja cancelado, abandone as nossas machambas e terras.
Comunidade de Micoco, Niassa (Norte de Moçambique)
A Comunidade de Micoco é um dos vários exemplos de usurpação
de terra em Moçambique, tendo em conta que neste caso a população não
teve nenhum benefício, apesar das suas terras terem lhe sido tiradas. A falta
de experiência com processos jurídicos da sociedade civil e o desconhecimento geral dos seus direitos por parte das comunidades locais contribuem
para isto. Além destes obstáculos, podem se encontrar entraves legais para
levar estes casos ao tribunal. O Artigo 81 da Constituição prevê o direito à
“ação popular” e dá a indivíduos e a grupos de cidadãos o direito de exigir
indenização e de agir em defesa da saúde pública, direitos do consumidor,
preservação do meio ambiente, patrimônio cultural e bens públicos.
FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE COMO MEIO DE
24 Idem.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 107
DISTRIBUIÇÃO DA TERRA EM MOÇAMBIQUE
Por volta do século XVIII, no chamado Estado Liberal, com a
distinção entre a esfera das relações econômicas e a esfera das relações
políticas, entre sociedade civil e Estado, havia nítida dicotomia entre o
direito público e o direito privado. Aquele era um direito eminentemente
governativo, que, através de Constituições liberais que eram verdadeiros
códigos de direito público, disciplinava o Estado, sua estruturação e funcionamento, com confusão entre interesses do Governo e interesse da
Administração, enquanto o direito privado, consubstanciado em código
de direito privado redigido para regular a vida social como documento
completo e único, era o ramo do direito que disciplinava a sociedade civil,
as relações jurídicas entre os cidadãos e o mundo econômico, sob a concepção do individualismo, do liberalismo econômico e da propriedade
privada absoluta, com exclusão de qualquer intervenção estatal. A passagem do Estado Liberal para o Estado Social se deu com o reconhecimento
da ocorrência da ampliação das desigualdades sociais e a necessidade de
garantir os direitos individuais e os direitos sociais aos cidadãos. O Estado,
antes voltado a conferir eficácia à liberdade econômica, teve de assumir
funções de regular as relações subjetivas e passou a intervir no processo
econômico para estabelecer relações sociais mais justas, quer de forma
direta, assumindo a gestão de determinados serviços sociais, quer de forma
indireta, através da disciplina das relações privadas relacionadas ao comércio e de outras relações intersubjetivas que antes eram deixadas à livre
autonomia privada. Ao contrário da não-intervenção, reclamada pelos
direitos individuais absolutos consagrados no Estado Liberal, ao Estado
Social incumbe atuação pró-ativa no sentido de assegurar a fruição dos
direitos individuais e sociais pelos destinatários, diante da qualificação
de direitos prestacionais, que exigem, mais que a abstenção necessária ao
respeito dos direitos-liberdade, também prestações estatais positivas para
sua concretização.25
A luta pela terra, seja ela rural ou urbana não é coisa recente, afinal
é da terra que o homem tira seu sustento, cria a família, a sociedade, o
25 JELINEK, Rochelle. O Princípio Da Função Social Da Propriedade E Sua Repercussão Sobre O Sistema Do Código Civil. Porto Alegre,
2006.
TERRA É MINHA!”: A QUESTÃO TERRITORIAL E SUAS IMPLICAÇÕES CONFLITUOSAS NA
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SOCIEDADE MOÇAMBICANA
Estado. A terra une o homem em comunidades visando um bem-estar
social e comunitário, mas a necessidade de sentir-se seguro, instalado em
determinado lugar é, grande parte das vezes, frustrada pelas normas governamentais que controlam a sociedade visando a obtenção de lucro, seja
este financeiro ou político.26
Como justificar o direito de propriedade atendendo uma função
social estipulada pela ideologia da soberania do Estado frente à interpretação absoluta de que somente este último define seus parâmetros de
ocupação? Como imaginar uma sociedade, uma nação sem terra, sem
bem-estar, sem seu próprio sustento? Sem dignidade! A função social da
propriedade é princípio que deriva da evolução do ordenamento jurídico
pátrio e ecoa como uma das grandes conquistas sociais.
André Osorio Gondinho informa que a função social não é um fardo
pesado, pelo contrário, melhora o exercício do direito de propriedade:
A função social da propriedade, embora represente um freio ao exercício
antissocial da propriedade, não lhe retira todo o seu gozo e exercício, pelo
contrário, muitas vezes é ela a mola impulsionadora do exercício da senhoria, pois representa uma reação contra os desperdícios da potencialidade da
mesma. (...) O proprietário continua com as prerrogativas de usar, gozar,
fruir e dispor da coisa, bem como persegui-la contra quem injustamente
a detenha. (...) A função social não significa, assim, uma derrogação da
propriedade privada, que continua existindo (e prestigiada), mas um instrumento de garantia da própria propriedade, uma vez que representa a defesa
contra qualquer tentativa de socialização sem prévia e justa indenização.27
Tendo em conta esta afirmação, Gondinho ressalta um ponto que
tem criado discórdias e conflitos em Moçambique no que concerne à terra:
a justa indenização.
Temos assistido vários casos nos órgãos de comunicação social de
cidadãos, como o caso reportado pelo jornal @verdade do dia 05 de
Dezembro de 2013 envolvendo a Portucel Moçambique e algumas comunidades das Províncias de Manica e Zambézia (Centro de Moçambique,
que foram expropriados sua propriedade ou suas propriedades para dar
lugar a empreendimentos que irão ou iriam beneficiar imensamente a
comunidade, mas sem direito a indenizações justas, o que criou e ainda
26 COSTA, André Luiz. Aspectos Cronológicos Da Função Social Da Propriedade.
27 GONDINHO, André Osório. Função social da propriedade. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 109
continua criar problemas muito sérios, e também violência, pois os “lesados” ou expropriados não ficaram satisfeitos com as indenizações oferecidas, pois muitas vezes não tem havido discussão em torno do valor ou
valores a pagar ou mesmo condições para que estes possam habitar num
outro espaço, caso seja necessário.
Para destacar esse problema vamos falar de dois projetos de grande
envergadura social e econômica que para a sua implementação foi necessário expropriar alguns terrenos a particulares com vista a que os mesmos
tivessem lugar, falo do Projeto Circular de Maputo e a Mineradora Vale,
na Província de Tete, Centro de Moçambique.
No Projeto Circular de Maputo (capital de Moçambique) algumas
famílias consideram injusta a compensação dada pelo Concelho Municipal da Cidade da Matola para a exumação de restos mortais dos seus
familiares, cujos cemitérios estão afetados pelas obras da estrada circular
de Maputo, na zona de Matlemele, Posto Administrativo da Machava, e
exigem aumento dos valores alocados pela edilidade. O projeto de construção da estrada circular do Maputo visa aliviar o intenso tráfego a que
estão mergulhadas hoje as cidades de Maputo e Matola.28
Segundo as famílias, o Conselho Municipal aloca indiscriminadamente 18 mil meticais (cerca de 1600 reais) para a exumação dos cadáveres
e não tem em conta o número de campas que cada família possui, o que de
certo modo torna a recompensa injusta e não segue procedimentos que
assegurem interesses das famílias afetadas.29
Arcanjo Tchemane, um dos afetados diz que:
A compensação que o Concelho Municipal quer pagar às nossas famílias é
injusta, pois 18 mil meticais não conferem com o número de campas que
nós possuímos. Nós não concordamos que todas as famílias sejam compensadas pelo mesmo valor, mesmo quando há diferenças sobre o número
de campas entre as famílias.”30
A indignação em relação à compensação apresentada pela autarquia
da Matola não se limita apenas às famílias de Matlemele. Comunidades
de Mualazi, no Posto Administrativo de Infulene, também estão revoltadas com a proposta da edilidade. Outro problema que os moradores de
28 Jornal @Verdade, edição de 26 de Março de 2013.
29 Idem.
30 Idem.
TERRA É MINHA!”: A QUESTÃO TERRITORIAL E SUAS IMPLICAÇÕES CONFLITUOSAS NA
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SOCIEDADE MOÇAMBICANA
Matlemele reclamam é a falta de transparência e clareza das autoridades
administrativas locais sobre o valor que cada família tem de receber e o
local onde será erguido o reassentamento.31
Mais destaque teve a insatisfação dos habitantes de Cateme, Província de Tete. Segundo relatos da imprensa nacional e que tiveram larga
difusão internacional, o conflito degenerou na paralisação, por parte das
populações manifestantes, do comboio que transportava o carvão da
Vale pelo Corredor da Beira. Cerca de quinhentas pessoas barricaram e
obstruíram as vias de acesso ferroviária e rodoviário na zona de Cateme,
exigindo do Governo e da empresa Vale o cumprimento de uma série
de promessas do pacote de reassentamento, relacionadas com o acesso à
água, terra fértil, saúde, energia e habitação melhor do que à oferecida por
aquela multinacional. Na essência, as populações de Cateme protestavam
contra a expropriação dos seus meios de vida e a compensação não justa
oferecida pelo Vale Moçambique. A expropriação das suas terras deu lugar
à lucrativa exploração do carvão em Moatize.32
Se me permitisse, eu prefiro voltar a Mitete porque aqui não estou a ver
nada de melhor. Passo fome com os meus filhos e família, não tenho
emprego e estou a sofrer. Desde o mês de Dezembro estou a comer farelo.
Em Mitete eu fazia carvão e vendia em Moatize para alimentar os meus
filhos e toda a minha família. Agora já não posso fazer nada. Daqui a Moatize é muito longe e eu não tenho bicicleta que pudesse me facilitar no
processo de transporte e venda da lenha e de carvão na Vila de Moatize.
Estas casas não foram bem construídas. Não tem fundação e base de sustentação. Já apresentam muitas rachas. Quando chove, a água penetra na
minha casa e passamos noite sem dormir e em pé. A campanha agrícola
já foi aberta e nós ainda não temos as sementes. Tinham nos prometido
que distribuiriam sementes hoje dia 3 de Novembro, mas como pode ver
ninguém está aqui. A Vale nos prometeu ainda que receberíamos comida
até a próxima colheita agrícola. Mas até agora recebemos apenas uma vez
em Março deste ano um cabaz de 7 sacos de milho de 2,5 latas, 1 saco de
feijão, 1 saco de amendoim e 10 litros de óleo”.33 Comunidade de Cateme,
Moatize, Província de Tete.
31 Idem.
32 CENTRO DE INTEGRIDADE PÚBLICA (CIP). Boa Governação, Transparência
e Integridade. Cateme: As razões do conflito entre famílias reassentadas e a Vale Moçambique. Maputo-Moçambique, 2010.
33 OS SENHORES DA TERRA. Análise Preliminar do Fenómeno de Usurpação de
terras em Moçambique Casos de Estudo Justiça Ambiental e União Nacional de Camponeses, Maputo, Moçambique, 2011.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 111
Como os exemplos demonstram, em Moçambique a função social
da propriedade não tem respeitado os seus preceitos, o direito do privado,
o direito do proprietário da propriedade, porque as formas de indenização ou os valores das indenizações, os locais de reassentamento, não têm
sido do agrado ou de acordo com a propriedade que os lesados tinham.
Quem não vê as coisas por esse prisma positivo são as organizações não
governamentais (ONG) e a sociedade civil do país, que têm tecido duras
críticas à empresa brasileira pela forma como participou no reassentamento de cerca de 750 famílias. O processo de reassentamento tem sido
crítico nas vertentes de infraestruturas habitacionais, falta de provisão
de produtos alimentares e ausência de diálogo com as comunidades. No
entanto, as casas foram mal construídas e não correspondem ao modelo
de casa anteriormente apresentado e acordado entre a Vale Moçambique e
as comunidades. Diversas infraestruturas já apresentam fissuras e quando
chove a água entra nas casas. No distrito de Moatize, os membros da comunidade de Cateme demonstraram arrependimento por ter permitido que
a Vale ocupasse as suas terras. A população da região afirma haver falta de
cumprimento das promessas e acordos iniciais estabelecidos, durante as
reuniões de consulta pública, com destaque para as zonas indicadas para
o reassentamento, fragmentação de famílias e da comunidade, a restrição
nos locais de cultivo, de pesca e de cultos tradicionais, a atitude arrogante
dos funcionários da Vale, acidentes de viação envolvendo crianças e alunos,
entre outros distúrbios de vária ordem.34
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante as informações apresentadas, notamos que o fenômeno de
usurpação da terra existente em Moçambique é facilitado pelas inúmeras
falhas em todo o processo de atribuição do Direito de Uso e Aproveitamento de terra, beneficiando os investidores em detrimento das comunidades rurais.
Como alguns dos principais fatores que contribuem para o fenômeno de usurpação de terra, observamos o incipiente conhecimento das
comunidades sobre os seus direitos e lei de terras; a fraqueza institucional
dos governos locais; a corrupção de autoridades e líderes comunitários e a
34 Idem.
TERRA É MINHA!”: A QUESTÃO TERRITORIAL E SUAS IMPLICAÇÕES CONFLITUOSAS NA
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SOCIEDADE MOÇAMBICANA
falta de consciência sobre os benefícios dos processos formais de posse de
terra. Além dos mencionados, vale destacar que o maior agravante neste
fenômeno é a vulnerabilidade resultante das inúmeras carências características da pobreza a que estas comunidades estão sujeitas, as quais são
facilmente ludibriadas por promessas de melhoria de condições básicas
de vida.
Os processos de consulta pública ocorrem com falhas e de forma
imprópria, atentando gravemente contra o direito à informação e à participação pública, ocorrendo manipulação das comunidades por parte
dos investidores, muitas vezes através das estruturas de poder locais, com
falsas promessas. Muitos dos conflitos existentes entre as comunidades
e as empresas são resultados do incumprimento das promessas feitas no
processo de consulta pública.
Os principais motivos de conflito são a invasão de terras comunitárias e o reassentamento em condições e locais impróprios.
As comunidades não estão na posse das atas das reuniões de consulta
pública, de modo a que se possa identificar e avaliar o tipo de informação
partilhada e discutida.
Moçambique não está institucionalmente capaz de gerir os inúmeros pedidos de Direito de Uso e Aproveitamento da Terra, a fraqueza na
análise de propostas e tomada de decisões é evidente, levando a conflitos
que as instituições governamentais até ao momento não têm sido capazes de gerir. O fato de os investidores estrangeiros não estarem sujeitos
a obrigações diretas sob a lei internacional não exclui a possibilidade de
mantê-los diretamente responsáveis a nível nacional.
Os mecanismos de responsabilidade civil só funcionam onde os
Estados têm efetivamente implementado a legislação dando seguimento
ao seu dever de proteger os direitos humanos, o que não tem acontecido
em Moçambique, devido à falta de vontade política que se estende para
o Poder Judiciário.
Urge consciencializar e capacitar as comunidades locais em matéria
de lei de terra, processos de consulta pública, detalhando o tipo de informação que deve ser incluída nestes processos, os seus direitos e deveres
como detentores do direito de uso e aproveitamento de terra segundo as
práticas costumeiras, sobre a importância do obter o título de Direito
de Uso e Aproveitamento de Terra (DUAT) devido à atual situação de
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 113
demanda de terra. Acreditamos, assim, que este processo de consciencialização e capacitação deve incluir informação chave como as diferentes
instituições responsáveis pelas questões de terra, bem como detalhar os
passos a seguir em situações de conflitos.
É importante também que sejam capacitadas as autoridades
governamentais locais e juízes comunitários em matéria da lei de terra
e o Governo deve assegurar o desenvolvimento econômico e social
das comunidades reassentadas, e o seu bem-estar deve estar acima da
maximização dos lucros das multinacionais e de seus aliados nacionais.
REFERÊNCIAS
CENTRO DE INTEGRIDADE PÚBLICA (CIP). Boa Governação,
Transparência e Integridade. Cateme: As razões do conflito entre famílias
reassentadas e a Vale Moçambique. Maputo-Moçambique, 2010; Disponível em: http://www.cip.org.mz/cipdoc%5C109_Nota%20de%20
Imprensa_Cateme%20as%20razões%20do%20Conflito.pdf Acesso:
Outubro de 2015
Constituição da República de Moçambique de 2004, artigos 109 e 110;
COSTA, André Luiz. Aspectos Cronológicos Da Função Social Da
Propriedade; Instituto de Ensino Superior de Rondônia/Faculdades
Associadas de Ariquemes (IESUR/FAAr) – Ariquemes (RO) – Brasil;
v. 2, n. 2, p. 91-117, maio de 2014;
GONDINHO, André Osório. Função Social da Propriedade. IN: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil – Constitucional.
Rio de Janeiro: Renovar, 2000;
JELINEK, Rochelle. O Princípio da Função Social da Propriedade e
sua Repercussão sobre o Sistema do Código Civil. Porto Alegre, 2006;
Jornal @Verdade, edições de 26 de Março e 05 de Dezembro de 2013;
ORAM - Documento De Apresentação Na Reunião Nacional Sobre Delimitação De Terras Comunitárias, Maputo, Março de 2010; Disponível
em: http://docplayer.com.br/13335056-Documento-de-apresentacao-na-reuniao-nacional-sobre-delimitacao-de-terras-comunitarias.html Acesso
em: Agosto de 2015
ORAM, 2010. Estudo sobre Conflito de Interesses na Gestão e Exploração
TERRA É MINHA!”: A QUESTÃO TERRITORIAL E SUAS IMPLICAÇÕES CONFLITUOSAS NA
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SOCIEDADE MOÇAMBICANA
da Terra em Moçambique (Os Casos dos Distritos de Massinga, Zavala,
Macomia e Mecufi). Maputo, Maio de 2010; Disponível em: http://www.
oram.co.mz/pdf/Confito%20de%20Interesses%20na%20Administracao%20da%20T_.pdf Acesso em: Novembro de 2015
OS SENHORES DA TERRA. Análise Preliminar do Fenómeno de
Usurpação de terras em Moçambique Casos de Estudo Justiça Ambiental e
União Nacional de Camponeses, Maputo, Moçambique, 2011; Disponível
em: http://docplayer.com.br/9306101-Os-senhores-da-terra-analise-preliminar-do-fenomeno-de-usurpacao-os-senhores-da-terra-justica-ambiental-e-uniao-nacional-de-camponeses.html Acesso em: Setembro de 2015
Quadro Legal para a Obtenção de Direitos sobre a Terra nas Zonas
Rurais em Moçambique. Um Guia para a Legalização da Ocupação,
Edição III, Agosto de 2012. Disponível em: http://www.salcaldeira.com/
index.php/pt/publicacoes/livros-manuais/doc_download/378-o-quadro-legal-para-reconhecimento-e-obtencao-de-direitos-de-terra-edicao-iii
Acesso em: 10 de Outubro de 2015.
O CUIDADO COM A CIDADE: JUSTIÇA
AMBIENTAL, ESPAÇOS, PROCESSOS
E RELAÇÕES DE VULNERABILIDADE
AMBIENTAL EM SANTA CRUZ DO SUL (RS)
CARE WITH THE CITY: ENVIRONMENTAL JUSTICE,
SPACES, PROCESSES AND ENVIRONMENTAL
VULNERABILITY RELATIONS IN SANTA CRUZ DO SUL (RS)
Ana Flávia Marques1
Tábata Aline Bublitz2
RESUMO: Historicamente as cidades constituem-se em territórios marcados por conflitos de distintas ordens, oriundos de políticas públicas
frágeis e do choque de interesses entre diferentes atores sociais. Na cidade
de Santa Cruz do Sul (RS) observa-se que a parcela da população urbana
detentora de rendas mais baixas ou que faz parte de grupos sociais excluídos está sujeita a maior carga de danos causados por impactos ambientais
negativos. Com o intuito de compreender o contexto de formação destes
fenômenos e sua espacialização na área urbana, além de fornecer instrumentos para o desenvolvimento de tecnologias sociais capazes de levar
as populações vitimizadas à superação do contexto, é que se desenvolve
a pesquisa que deu origem ao presente artigo. Utilizando os métodos
de abordagem e o arcabouço teórico do campo da Justiça Ambiental, a
pesquisa procedeu à identificação das áreas de risco existentes na cidade,
bem como ao diagnóstico, análise e classificação dos potenciais conflitos
de ordem socioambiental ocorridos em um período de dez anos (2004 a
2014). Os resultados obtidos até o momento evidenciaram uma ligação
entre a ocorrência de conflitos socioambientais e os diversos processos
envolvidos na estruturação da sociedade, tais como a exploração comercial,
industrial e imobiliária - estes mostraram papel importante nos mecanismos de destinação de cargas de danos ambientais à população. Somados
1 Doutora em Ciências (UFSCar/SP); professora pesquisadora do Departamento de
Ciências Administrativas (UNISC/RS).
Contato: afmarques@unisc.br
2 Bacharela em Administração (UNISC/RS); bolsista de Iniciação Científica.
Contato: tab.aline88@gmail.com
CUIDADO COM A CIDADE: JUSTIÇA AMBIENTAL, ESPAÇOS, PROCESSOS E RELAÇÕES DE
116 | OVULNERABILIDADE
AMBIENTAL EM SANTA CRUZ DO SUL (RS)
os processos descritos às fragilidades naturais do solo em áreas de risco e
aos aspectos socioculturais de formação da cidade, percebe-se uma relação
destes com o modo como se estruturaram os conflitos. Para além disso,
percebe-se a fraqueza política dos atores sociais sobre os quais incidem
as injustiças ambientais, o que resulta em maior vulnerabilidade. Após a
conclusão da pesquisa, prevista para dezembro de 2016, a mesma deverá
dar origem a um projeto de extensão voltado ao desenvolvimento de tecnologias sociais e à capacitação de populações vitimizadas no intuito de
que se formem grupos de trabalho capazes de se mobilizar por maior
proteção ambiental e menos exposição aos perigos resultantes de processos e políticas que prezam a valorização do capital em detrimento das
necessidades da população.
PALAVRAS-CHAVE: justiça ambiental; conflitos socioambientais;
tecnologias sociais.
ABSTRACT: Historically, cities are in areas marked by conflicts of different orders coming from fragile public policies and interests clash between
different social actors. In the city of Santa Cruz do Sul (RS) is observed that
the share of urban population holds lower incomes or part of excluded social
groups are subject to higher load damage caused by negative environmental
impacts. In order to understand the formation of the context of these phenomena and their spatial distribution in urban areas, and provide tools
for the development of social technologies that get victimized populations to
overcome the context it is that develops the research that led to this article.
Using the methods of approach and the theoretical framework of the field of
environmental justice, research has identified existing risk areas in the city
as well as the diagnosis, analysis and classification of potential conflicts of
environmental order that occurred in a period of ten years (2004-2014).
The results so far have shown a link between the occurrence of environmental
conflicts and the various processes involved in the structuring of society, such
as the commercial, industrial and real estate - these showed important role in
allocation mechanisms charges of environmental damage to the population .
Combined with the processes described to natural soil weaknesses in areas of
risk and the socio-cultural aspects of formation of the city, you can see a list of
these with the way they have structured the conflict. Furthermore, we see the
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 117
political weakness of the social actors which bear environmental injustices,
resulting in increased vulnerability. Upon completion of the survey, scheduled for December 2016, it should lead to an extension project focused on
the development of social technologies and the training of people victimized
in order that to form working groups able to mobilize for greater protection
environmental and less exposure to the dangers of processes and policies that
value capital growth at the expense of the population’s needs.
KEYWORDS: environmental justice; environmental conflicts; social
technologies.
INTRODUÇÃO
O município de Santa Cruz do Sul (SCS) está localizado na porção
central do estado do Rio Grande do Sul, no Vale do Rio Pardo. Apresenta
uma população estimada de 125.353 habitantes (IBGE, 2014). O Senso
Demográfico em 2010 apontava um total de 118.374 habitantes, sendo
que destes, 105.190 residiam na área urbana, o que representava 88% do
total3. Além disso é preciso considerar a existência de uma massa populacional flutuante que aflui à cidade por tempo determinado em razão da
busca por instituições de ensino superior (Universidade de Santa Cruz do
Sul, UNISC e Universidade do Estado do Rio Grande do Sul, UERGS,
prioritariamente). Esses dados caracterizam um munícipio com um adensamento da população urbana, o que por si só, já apresenta riscos potenciais
de sobrecarga nos serviços urbanos e mesmo nos serviços de sustentação
da vida oferecidos pelos ecossistemas.
As condições naturais da cidade de SCS, como a presença de encostas
com colúvios e zonas de inundação do Rio Pardinho4, somadas à densificação da população urbana5 e a decisões político-econômicas ligadas
3 As estimativas populacionais para os anos de 2011 e 2012 não podem ser utilizadas,
uma vez que não consideram o domicílio (rural ou urbano) da população. Os números
populacionais referentes ao Censo 2000 foram recalculados conforme a divisão territorial
atual (2001).
4 A cidade é conhecida pelos problemas de instabilidade de encostas e inundações desde
a década de 1970 (GREHS, 1976; BRESSANI et al., 2008).
5 População urbana de Santa Cruz do Sul em 2000: 93.786; em 2010: 105.190 habitantes
(dados FEE, 2010), o que reflete um incremento de mais de 10 mil habitantes em 10 anos.
CUIDADO COM A CIDADE: JUSTIÇA AMBIENTAL, ESPAÇOS, PROCESSOS E RELAÇÕES DE
118 | OVULNERABILIDADE
AMBIENTAL EM SANTA CRUZ DO SUL (RS)
principalmente ao desenvolvimento de atividades produtivas e pressão
imobiliária (PINHEIRO, R. J. B.; NUMMER, A. V. & BRESSANI, L.
A., 2012), têm exposto a população urbana com menor renda a situações
de risco e conflitos socioambientais.
Refletir sobre os riscos e conflitos socioambientais originários deste
contexto remete diretamente ao conceito de Justiça Ambiental, caracterizado por Henri Acselrad (2004) como decorrente da percepção de que
depósitos de lixos químicos e radioativos ou de indústrias com efluentes
poluentes concentram-se desproporcionalmente na vizinhança das áreas
habitadas pelos grupos urbanos com menores rendas.
Dessa forma, por justiça ambiental, passou-se a entender o conjunto de
princípios que asseguram que nenhum grupo de pessoas, sejam grupos
étnicos, raciais ou de classe, suporte uma parcela desproporcional de degradação do espaço coletivo. Complementarmente, entende-se por justiça
ambiental a condição de existência coletiva própria a sociedades desiguais
onde operam mecanismos sociopolíticos que destinam a maior carga de
danos ambientais do desenvolvimento a grupos sociais de trabalhadores,
populações de baixa renda, segmentos raciais discriminados, parcelas marginalizadas e mais vulneráveis da cidadania. (ACSELRAD, 2004-a, p. 09-10).
Pensar em justiça ambiental aplicada à cidade de SCS implica compreender de forma espacializada os próprios conceitos de crescimento e
desenvolvimento que foram/são adotados nas políticas urbanas, bem como
o conceito de sustentabilidade (não apenas econômica, mas socioambiental) ao longo do tempo. Para tanto, é preciso que sejam conhecidas, identificadas e categorizadas as situações de risco ou os conflitos socioambientais.
A investigação que deu origem a este artigo se propôs, portanto, a
identificar as zonas de risco existentes na área urbana de SCS, bem como
os conflitos socioambientais ocorridos no intervalo de tempo de 2004 a
2014, compreendendo 10 anos no total, através de levantamentos junto ao
jornal local (Gazeta do Sul)6 apresentando denúncias feitas em sua origem
por membros de populações de baixa renda ou situações de potencial conflito socioambiental envolvendo estes contingentes. Foram considerados
6 Além da classificação feita a partir das notícias do jornal local, a pesquisa objetivava
a busca de dados sobre conflitos registrados no Ministério Público, porém o acesso aos
dados, por serem sigilosos, foi negado às pesquisadoras. Na reta final da pesquisa (segundo
semestre de 2016) estão sendo levantados dados complementares junto aos Núcleos de
Defesa Civil e ao Corpo e Bombeiros.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 119
de caráter socioambiental – conforme conceituação sugerida por Acselrad (2004-b) - os conflitos desencadeados quando certas atividades ou
instalações afetam a estabilidade de outras formas de ocupação em espaços conexos, sejam estes ambientes residenciais ou de trabalho, mediante
impactos indesejáveis transmitidos pelo ar, água ou solo.
Os conflitos identificados foram categorizados em situações-problema, de acordo com sua influência e áreas de risco identificadas:
(i) Destinação de resíduos sólidos urbanos e disposição inadequada de lixo;
(ii) Poluição do solo, ar e água;
(ii) Convivência de pessoas com valões;
(iv) Enchentes;
(v) Loteamentos em áreas de proteção ambiental/deslizamentos;
(vi) Moradias em áreas inadequadas;
(vii) Especulações imobiliárias e privatização de áreas verdes;
(viii) Desastres naturais e residências frágeis;
(ix) Populações atingidas pela poluição industrial;
(x) Problemas de saneamento (falta de água, problemas na rede de esgoto,
etc.).
Estas situações foram agrupadas em classes específicas segundo a
natureza do fato desencadeante (Classe 1: Disposição de lixo/resíduos;
Classe 2: Loteamentos em Áreas de Risco/áreas protegidas; Classe 3: Atividades Industriais; Classe 4: Ausência de Saneamento).
Além disso, buscou-se relacionar os conflitos mais frequentes a
grandes processos que possam marcar as políticas urbanas, tais como (i)
enfraquecimento ou ausência da capacidade de controle ambiental por
parte das agências públicas (insuficiência das atividades de fiscalização, de
vistoria dos empreendimentos licenciados e de controle dos lançamentos
clandestinos de lixo e ou esgoto); (ii) expansão das atividades imobiliárias;
dentre outros identificados.
As informações coletadas e sistematizadas, quando do término da
pesquisa, serão disponibilizadas a grupos sociais organizados, a Universidades, bem como a órgãos públicos, desta forma contribuindo para com a
formação de atores sociais preocupados com a crescente exclusão social, a
precarização das condições de sustentação da vida, a violação dos direitos
CUIDADO COM A CIDADE: JUSTIÇA AMBIENTAL, ESPAÇOS, PROCESSOS E RELAÇÕES DE
120 | OVULNERABILIDADE
AMBIENTAL EM SANTA CRUZ DO SUL (RS)
humanos, as injustiças socioambientais e também a constatação acerca dos
limites da atual política de ciência e tecnologia no país.
Esta pesquisa contribui para que as populações fragilizadas do ponto
de vista socioambiental percebam a importância da ação cidadã no que
se refere a minimização dos riscos a que se encontram sujeitas e, a partir
desta percepção, possam desenvolver Tecnologias Sociais (TSs) capazes
de contribuir para a superação dos problemas. Dentre os fatores que estão
implicados na construção e no desenvolvimento de uma TS encontra-se a
sustentabilidade socioambiental e econômica – preceitos que permeiam as
investigações acerca da justiça ambiental, tema da presente pesquisa -, cujos
atributos de construção influenciam na transformação social; participação direta da população; inclusão social; melhoria das condições de vida;
atendimento às necessidades sociais; inovação, organização, sistematização, acessibilidade e apropriação das tecnologias; diálogo entre diferentes
saberes (acadêmicos e populares); difusão e ação educativa; construção
da cidadania e de processos democráticos e busca de soluções coletivas.
RESULTADOS E DISCUSSÕES (DESENVOLVIMENTO)
O levantamento feito para os 10 anos da pesquisa (2004-2014) permitiu a identificação de 376 registros de conflitos, os quais foram categorizados nas quatro classes apresentadas na Tabela 1. Cabe ressaltar que deste
número total de conflitos, 149 se enquadraram em mais de uma classe (por
exemplo: alguns conflitos oriundos de problemas de saneamento também
apresentam relação com problemas originários da incorreta disposição de
resíduos).
Tabela 1: Classificação dos Conflitos
Socioambientais Urbanos em SCS (2014-2014)
Classe
Situação-problema
Disposição de Destinação de resíduos sólidos /disposição inadelixo/resíduos
quada de lixo
Poluição do solo, ar e água
Registros
77
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
Classe
Situação-problema
Loteamentos Enchentes
em Áreas de
Loteamentos em áreas de proteção ambiental/
risco/Áreas
deslizamentos
protegidas
Moradias em áreas inadequadas
Registros
112
49
97
Especulações imobiliárias e privatização de áreas
verdes
21
Desastres naturais e residências frágeis
34
A t i v i d a d e s Populações atingidas pela poluição industrial
Industriais
Ausência de Problemas de saneamento (falta de água, problemas
Saneamento
na rede de esgoto)
Fonte: Dados da pesquisa
| 121
8
89
Para uma melhor compreensão espacial da distribuição das áreas
de fragilidades socioambientais apresenta-se duas cartas temáticas com
objetivo meramente ilustrativo. A Figura 1 mostra espacialização de informações disponíveis no Plano Diretor de Santa Cruz do Sul (2014) sobre
áreas de conflitos socioambientais.
Figura 1: Localização de Áreas de
Conflitos Socioambientais Urbanos em SCS
Fonte: KLEIN, P. a partir de dados da pesquisa (2015)
CUIDADO COM A CIDADE: JUSTIÇA AMBIENTAL, ESPAÇOS, PROCESSOS E RELAÇÕES DE
122 | OVULNERABILIDADE
AMBIENTAL EM SANTA CRUZ DO SUL (RS)
APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS CONFLITOS: (RE)
CONHECENDO A CIDADE
A seguir apresenta-se uma breve discussão sobre o contexto de cada
classe de conflitos expondo os interesses em disputa, os agentes sociais
envolvidos, as áreas de maior incidência dos mesmos e os possíveis caminhos sociais para sua abordagem.
O desenvolvimento rápido e desordenado da área urbana de SCS
se deu em função do seu papel de relevância no complexo agroindustrial
do fumo, o qual se inicia na década de 1970, levando à atração de grandes
empresas de tabaco para a região. A imigração em massa resultante do
aumento da oferta de empregos resultou em um processo acelerado de
ocupação dos entornos da Zona Industrial o qual, aliado à impossibilidade
de pleno emprego nas atividades econômicas oferecidas, fez com que nas
últimas décadas aumentasse consideravelmente o nível de pobreza urbana,
principalmente nos bairros periféricos.
Deste modo, o primeiro conjunto de conflitos analisado está associado à formação clandestina de lixões e à poluição de arroios (poluição
advinda ou não de atividades industriais) Os bairros afetados em geral
fazem parte da zona Sul e Oeste e integram, em alguns casos, a Área de
Risco de Alagamento e a Zona Industrial7, sendo eles: Zona Industrial,
Faxinal Menino Deus, Santa Vitória e Bom Jesus. O núcleo central também é atingido pela poluição, porém sem a formação de lixões.
As pressões sociais pela maior fiscalização nas zonas periféricas do
perímetro urbano chocam-se com a opção do poder público de voltar seus
esforços a ambientes mais visados pelos interesses do setor imobiliário,
como a região central. As comunidades localizadas nestas áreas convivem
diariamente com ambientes degradados pelo acúmulo de resíduos, mau
cheirosos, com infestação de agentes patogênicos e poluição visual.
Somente em dezembro de 2013 foi implementado o primeiro Plano
Municipal de Gestão de Resíduos Sólidos, com objetivos específicos como
“o aprimoramento à prestação dos serviços de manejo de resíduos sólidos
7 A Área de Alagamento consiste em um perímetro a oeste do núcleo central e ao longo
das margens do rio Pardinho e de seus afluentes, sujeito a inundações e a Zona Industrial
está localizada ao sul do núcleo central, e é destinada à instalação de atividades industriais
de qualquer porte e natureza, onde a construção de unidades residenciais unifamiliares é
vetada (SANTA CRUZ DO SUL, 1998).
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 123
urbanos a toda a população” e instituíram-se métodos como a Coleta
Seletiva Solidária8 em nove bairros do município (Centro, Higienópolis,
Goiás, Avenida, Independência, Universitário, Várzea, Renascença e Santo
Inácio) e a Coleta Robotizada9, apenas na região central. Os demais bairros,
porém, ainda contam somente com a Coleta Convencional, ineficiente em
locais que não podem ser acessados por caminhões (encostas de morro,
como por exemplo em alguns locais do Bairro Margarida).
Outro ponto conflitivo resultante da segregação urbana refere-se à
exposição de comunidades inteiras às fragilidades de áreas de risco (deslizamentos e enchentes; fenômenos climáticos) e à ausência ou ineficiência de políticas públicas de moradias inclusivas. Questões relacionadas à
crise da moradia são atuais alvos de denúncia pelo movimento de Justiça
Ambiental, pois tratam da “transformação do solo urbano em mercadoria,
sujeito à valorização exagerada que empurra aqueles que não conseguem
acesso aos imóveis formais para áreas sujeitas a riscos ambientais e ecologicamente sensíveis”
Em SCS este é um dos problemas mais evidentes quando se fala em
vulnerabilidade urbana. Em dez anos de registros, despontam conflitos
relacionados à grande exposição de comunidades às consequências de
alagamentos, e também a fragilidades de moradias mediante desmoronamentos. Estes fatos, em diversos aspectos aparecem desencadeados por
um terceiro tipo de conflito: o estabelecimento de moradias em áreas de
proteção ambiental e de risco. Durante o período estudado houve uma
grande concentração destes problemas em bairros integrantes de áreas de
risco, como Bairro Várzea e Santa Vitória (Área de Alagamento), Santo
Inácio, Margarida, Belvedere e Arroio Grande (Área de Escorregamento/
Cinturão Verde)10.
Estas zonas vitimam famílias com desastres envolvendo casas
8 Sistema de recolhimento dos materiais recicláveis nas residências, empresas, comércio e
instituições em geral, feitos pelos catadores da COOMCAT – Cooperativa dos Catadores
e Recicladores de Santa Cruz do Sul (SANTA CRUZ DO SUL, 2013).
9 O serviço de coleta robotizada é feito por um caminhão compactador equipado com
um sistema de braços robotizados que elevam o contêiner, despejando os resíduos em um
grande compartimento compactador. Este contêiner deve receber apenas lixo orgânico e
rejeito (SANTA CRUZ DO SUL, 2013).
10 Segundo demarcação especificada pelo Plano Diretor municipal, estas três zonas especiais (ou de risco) recebem esse nome devido às suas características de topografia, geologia
e cobertura florestal, além de necessitar de proteção e regulamentação especial (SANTA
CRUZ DO SUL, 1998).
CUIDADO COM A CIDADE: JUSTIÇA AMBIENTAL, ESPAÇOS, PROCESSOS E RELAÇÕES DE
124 | OVULNERABILIDADE
AMBIENTAL EM SANTA CRUZ DO SUL (RS)
invadidas pela água, muros derrubados e paredes e alicerces com estruturas ameaçadas. A maioria vive em casas autoconstruídas, sem estrutura
suficiente para suportar os eventuais movimentos de massa das encostas
de morro11 ou vendavais de forte intensidade, não possuem acesso a serviços de água encanada ou energia elétrica e estão estabelecidos em grande
número, em solos impermeabilizáveis e áreas baixas, propícias a alagamentos. Ainda que saibam da condição frágil das áreas ocupadas, fatores como
a incapacidade financeira de alugar ou adquirir um imóvel em locais mais
seguros e, eventualmente regularizados, os fazem permanecer. Em 2005,
segundo dados da Secretaria de Habitação, 1.852 famílias em um total
de 27 pontos da área urbana, viviam de forma irregular, sendo o principal
deles, o Bairro Bom Jesus.
O governo municipal iniciou em 2011 uma série de obras por meio
do Pró Moradia (Programa de Aceleração do Crescimento) (PAC, 2011),
porém questiona-se a sua efetividade, uma vez que os loteamentos sorteados para as famílias de baixa renda que se enquadram nos requisitos do
Governo Federal para concorrerem às moradias estão sendo construídos
em bairros da zona sul12 e em zonas alagáveis (COSTA; BRAGA, 2004, p.
200), fato que reforça a negligência do poder público em relação ao direito
comum de acesso a recursos de promoção da qualidade de vida e bem-estar,
além dos serviços básicos de saneamento. Com essa prática, os programas
federais e municipais dificilmente conseguem eliminar o problema da
irregularidade. Com o remanejamento das famílias em questão, surge
um mercado ilegal de moradias sobre o qual é difícil ter controle13. Cabe
ressaltar que este fato também advém da falta de renda dos beneficiários
dos projetos habitacionais para arcar com as despesas dos serviços básicos
11 Estudos apontam que diversas partes do entorno do Cinturão Verde apresentam evidências de movimentos de encostas com danos severos em residências (EISENBERGER;
BRESSANI; FILHO, 2003). “Pode-se inferir que o deslocamento total observado na
encosta entre os anos 1997 e 2002 foi de aproximadamente 40 cm na direção horizontal
e 20 cm na direção vertical” (BRESSANI, 2004, p. 80).
12 O loteamento Santa Maria está sendo construído em uma faixa de terra próxima ao
Arroio das Pedras, próximo à divisa do Bairro Santa Vitória, enquanto o Loteamento
Mãe de Deus está localizado no Bairro Santuário, extremamente próximo à várzea do rio
Pardinho, ambas as áreas consideradas potencialmente alagáveis (MENEZES, 2014).
13 “Um levantamento feito pela Secretaria de Habitação aponta que, desde 1992, 746
pessoas que foram contempladas com casas ou terrenos por meio dos programas habitacionais do município acabaram vendendo ou trocando suas moradias de forma ilícita”
(SETÚBAL, 2004).
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 125
que recebem as novas moradias. O que acaba ocorrendo é que, de modo a
desocupar uma área de risco, as populações da área urbana de Santa Cruz
do Sul são direcionadas a outros locais também frágeis, porém com gastos
maiores de manutenção.
Pontos que contribuem para a situação de ocorrência de enchentes
referem-se às canalizações e desvios realizados desde o início da urbanização da cidade. Ainda em meados de 1970, foram canalizados o Arroio
Jucuri e o Arroio Preto, e foi retilinizada a área mais baixa do Arroio
Lajeado, destacando-se o núcleo central como alvo da maioria das intervenções. “A ocupação foi se dando sob perspectiva de certo ordenamento
e planejamento, principalmente nos bairros centrais, o que possibilitou
e promoveu a sua ocupação perante ações corretivas, onde as medidas
estruturais14 atenuam a vulnerabilidade e minimizam danos”. Estas intervenções recondicionam o perigo para áreas próximas ou ainda, à jusante
das mesmas, tendo-se o incremento de maiores volumes de água em menos
tempo em função da retilinização das drenagens e da presença de densas
infraestruturas urbanas impermeabilizadas no núcleo central. Em registros
identificados durante a investigação, surgiram queixas envolvendo inclusive
o “surgimento” de sangas como uma consequência de desvios efetuados
em cursos d’água a montante desses bairros.
Poucas medidas estruturais foram implementadas com vistas a mitigar os danos das inundações. Durante a pesquisa verificou-se apenas a
incorporação de algumas medidas não estruturais, como o zoneamento
de usos do solo, a demarcação das áreas de risco e a criação de programas
comunitários. Registros apontam que em 2007 houve uma tentativa de
minimização das enchentes no Bairro Várzea por parte da Prefeitura, em
que diques de contenção e canos escoariam a água acumulada em direção
ao Arroio Preto. No entanto, a validade do empreendimento, primeiramente questionada pelos moradores locais se mostrou, posteriormente,
uma solução mal planejada.
Conforme verificação nos registros levantados, as obras teriam iniciado em janeiro de 2007 e, em setembro uma “enxurrada fez com que
parte das barreiras desmoronasse”.
Outro aspecto importante em relação à segregação habitacional
14 “As medidas estruturais correspondem às obras que podem ser implantadas visando à
correção e/ou prevenção dos problemas decorrentes de enchentes” (CANHOLI, 2014)
CUIDADO COM A CIDADE: JUSTIÇA AMBIENTAL, ESPAÇOS, PROCESSOS E RELAÇÕES DE
126 | OVULNERABILIDADE
AMBIENTAL EM SANTA CRUZ DO SUL (RS)
refere-se as burocracias impeditivas aos processos de regularização fundiária das áreas ilegalmente ocupadas. Ao mesmo tempo em que o Estado
não oferece opções seguras de habitação, falha em criar mecanismos de
acesso aos direitos individuais.
No lado oposto ao processo de áreas frágeis do ponto de vista
ambiental ilegalmente ocupadas, observa-se o processo de privatização
de áreas públicas no espaço urbano, para uso da parcela da população
urbana que busca segurança, isolamento, homogeneidade, equipamentos
de lazer e prestação de serviços, todos relacionados à vida segregada dos
condomínios fechados (CAMPOS, 2014). Fenômenos como estes, em
Santa Cruz do Sul, desencadeiam um investimento cada vez maior na
especulação imobiliária visando a ocupação de áreas como o Cinturão
Verde, uma Área de Preservação regulamentada pelo Plano Diretor e que
acaba sendo usada para a venda de um local bucólico para a moradia, sem
a interferência do restante da cidade. Essa dinâmica produz uma série de
conflitos em relação ao uso e ocupação do solo, e foi identificada como
um dos maiores problemas envolvendo a segregação espacial na cidade.
O que se torna mais grave nesse caso, segundo Palma, Rodrigues e
Bozzetti, é a “apropriação de recursos naturais que se encontram no interior dessas áreas e deveriam ser acessíveis a toda a população”. Em busca
da sua parcela de direito sobre esses recursos, os atores sociais, sem posse
de ferramentas eficazes para lutar, acabam se manifestando por meio da
ocupação ilegal das encostas.
Apesar de ciente dos prejuízos da privatização de áreas da floresta, a
Secretaria Municipal de Meio Ambiente percebe a transformação do lugar
em área de preservação privada como uma alternativa à indisponibilidade
de fiscais para o controle rigoroso necessário caso se constituísse em área
pública, ainda que biólogos da cidade manifestem opiniões contrárias à
prática.
Os mesmos problemas acontecem com a supervalorização das áreas
centrais da cidade, bastante visadas para a instalação de grandes empreendimentos imobiliários sob forma de complexos habitacionais de alto custo.
Como exemplo, é possível citar o megaprojeto residencial e comercial
atualmente em andamento na área central15. Engenheiros questionam os
15 München Open Mall Residence – construção planejada para a Rua Ernesto Alves,
Bairro Centro, Santa Cruz do Sul (288 apartamentos e 43 espaços comerciais previstos).
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 127
impactos que a construção de tal empreendimento causará na área central, pois segundo eles, Santa Cruz do Sul não possui estruturas de água
e esgoto capazes de atender a um contingente tão grande de pessoas que
virão habitar o residencial.
Com relação ao saneamento urbano, atualmente apenas 1% dos
500 litros de esgoto produzidos por segundo na cidade de Santa Cruz
do Sul, são tratados. O restante deságua no Rio Pardinho, por meio dos
arroios que recebem os dejetos e os levam até o ponto de deságue. Muitas
residências possuem o tradicional sistema de fossas sépticas que realizam
um tratamento primário do esgoto retirando pelo menos 50 % da matéria
orgânica. Apesar disso, o Plano Nacional de Saneamento Básico considera
o método adequado somente quando utilizado corretamente – ou seja,
quando é feita manutenção e limpeza anual.
De acordo com informações do Plano Municipal de Saneamento
de Santa Cruz do Sul, há aproximadamente 47 km de rede coletora no
perímetro urbano, sendo que, destes, 21 km, presentes na área central,
foram instalados em 1952 e o restante implantado após a elaboração do
projeto existente. Com isso, apenas o quadrilátero central e algumas ruas
no entorno possuem acesso aos serviços de coleta. A maioria das demais
residências têm sistemas individuais de tratamento, e as restantes, nem
isso. Há muitos casos, como no Bairro Arroio Grande, em que os dejetos
são depositados diretamente em arroios.
Essa situação representa um risco grave à saúde das famílias ribeirinhas. A ocorrência de doenças infectocontagiosas, o mau cheiro das ruas
após uma enxurrada e os repetitivos alagamentos de vias devido ao entupimento de bueiros demonstram o preço de uma conta que o santa-cruzense paga sem perceber, devido à fragilidade dos serviços de saneamento.
Na conflitualização destes processos, entram em cena agentes do poder
público responsáveis pela regularização das moradias e eventual investimento em estruturas de coleta de esgoto com canalização dos arroios e as
populações de baixa renda habitantes de áreas irregulares.
A localização espacial da população envolvida condiz com a acessibilidade que seu nível de renda propicia. Nas áreas onde o esgoto é tratado,
a conta aumenta em 70% para custear o volume consumido em água no
seu tratamento. Por outro lado, a instalação de um sistema de fossa séptica
individual também se torna custoso em relação ao investimento financeiro.
CUIDADO COM A CIDADE: JUSTIÇA AMBIENTAL, ESPAÇOS, PROCESSOS E RELAÇÕES DE
128 | OVULNERABILIDADE
AMBIENTAL EM SANTA CRUZ DO SUL (RS)
A cidade possui, há 15 anos, uma ETE16 capaz de tratar todo o esgoto da
zona urbana durante 30 anos, mas que opera muito aquém disso. Ou seja,
possui um local para tratar seu esgoto, mas carece de uma rede coletora
abrangente e eficaz.
A rede de abastecimento de água da área urbana também é alvo de
críticas em relação a problemas de abastecimento (principalmente) na
zona sul da cidade. Nota-se que os discursos apresentados pela empresa
de saneamento local não buscam sequer justificativas, uma vez que os
problemas estruturais resultantes da falta de investimento são visíveis.
A rede distribuidora, segundo a Companhia Rio-grandense de Saneamento - CORSAN (empresa responsável pelos serviços de saneamento),
é antiga e frágil17 e seus constantes rompimentos juntamente com fatores
geográficos ocasionam a presença de bolsões de ar na tubulação, levando
a problemas de abastecimento.
Sendo uma cidade composta por grandes declividades e alguns bairros estarem localizados em partes altas, de fato, pode ocorrer uma perda da
carga piezométrica18, que, segundo Mello e Farias resulta de uma demanda
maior que a capacidade instalada do sistema de distribuição, e a falta de
água resultante dessa deficiência faz com que o ar flua para os pontos de
menor pressão (as moradias) preenchendo os espaços deixados pela água
através dos equipamentos controladores.
Ainda que a área urbana conte com o Lago Dourado (reservatório
artificial que capta água do rio Pardinho para ser utilizada no abastecimento da cidade), a CORSAN afirma que a sua capacidade de acumulação
não condiz com o divulgado, devido à profundidade inicial projetada para
o Lago não ter sido obtida na construção, revelando que a real capacidade
de reserva é metade do que poderia ser.
No período pesquisado predominaram problemas relacionados
a vazamentos da rede pluvial e cloacal central e consequentes períodos
16 A Estação de Tratamento de Esgoto Pindorama consiste em lagoas construídas para
o tratamento de efluentes domésticos, localizadas na região da Várzea do Rio Pardinho
(SANTA CRUZ DO SUL, 2010).
17 Hoje existem em torno de 120 km de redes de fibrocimento e ferro fundido na cidade
(SANTA CRUZ DO SUL, 2010), as quais tendem a ter mais rachaduras e, consequentemente, causar falta de água (ELLWANGER, 2012).
18 Representa a pressão neutra da água em um determinado ponto, expressa em altura da
água na tubulação. Para que haja fluxo de água entre dois pontos é necessário que a energia
total em cada ponto seja diferente. A água fluirá sempre de um ponto de maior energia
para o ponto de menor energia total (MARANGON).
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 129
marcados pelo desabastecimento de água e alagamentos, mas notam-se
problemas também nos bairros periféricos em relação ao despejo de esgoto
e bairros de maior altitude, em relação à falta de água.
APROPRIAÇÃO DAS INFORMAÇÕES: REDESENHANDO A
CIDADE, CONSTRUINDO O SONHO COLETIVO
Amartya Sen (2011), discutindo a ideia de Justiça, conceito que
perpassa e conduz a pesquisa que origina este artigo, provoca uma análise
profunda sobre as assimetrias que produzem as injustiças na vida das pessoas reais. Sen provoca a discussão sobre a justiça a partir do emprego conceitual de duas palavras do sânscrito oriundas da antiga ciência indiana do
direito, ambas significando em sentido amplo ‘justiça’, porém claramente
diferentes para os eruditos hindus: niti, denotando adequação organizacional e nyaya, referindo-se à vida que as pessoas são realmente capazes
de levar ou à justiça realizada.
Os resultados da observação dos conflitos socioambientais urbanos e
dos riscos aos quais são expostos os cidadãos que ocupam a faixa de renda
menos privilegiada da cidade permitem pensar em uma ‘urbe oficial’, justa
no sentido do termo sânscrito niti, e em outra cidade, aquela para a qual
não há nyaya ou justiça real.
Neste sentido, a construção de caminhos para a justiça ambiental
urbana real parece passar obrigatoriamente pela compreensão dos processos que levam à injustiça; processos históricos, culturais, econômicos e
políticos oriundos de decisões tomadas por apenas uma parcela da população. Aquela parcela que tem voz.
Para que a outra parcela conquiste sua voz é preciso se valer de
conhecimento, organização social e planejamento. E é neste sentido que
a próxima etapa desta pesquisa refere-se a levar informações, através de um
trabalho de extensão multidisciplinar, às populações vulneráveis reconhecidas pelo levantamento de dados da pesquisa, visando a produção de tecnologias sociais que as fortaleçam para a busca da superação das injustiças.
O repensar e redimensionar as ações reais que possam criar uma
cidade para todos os seus cidadãos significa abordar de forma assertiva os
conflitos na construção de territórios onde a justiça não seja apenas um
conceito de igualdade, voltado aos iguais (quem são os iguais?), aos pares,
CUIDADO COM A CIDADE: JUSTIÇA AMBIENTAL, ESPAÇOS, PROCESSOS E RELAÇÕES DE
130 | OVULNERABILIDADE
AMBIENTAL EM SANTA CRUZ DO SUL (RS)
aos que têm direito de escolha.
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O DANO MORAL COLETIVO À COMUNIDADE
REMANEJADA DE MUTUM-PARANÁ EM RONDÔNIA
E A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DE SEU
RESSARCIMENTO EM PATRIMÔNIO HISTÓRICO
THE COLLECTIVE MORAL DAMAGES TO THE
COMMUNITY OF MUTUM-PARANÁ REALLOCATED IN
RONDÔNIA AND THE POSSIBILITY OF ITS REFUND
APPLICATION AS HISTORICAL HERITAGE
Rosimery do Vale Silva Ripke1
Breno Azevedo Lima2
RESUMO: O Dano Moral Coletivo à comunidade de Mutum-Paraná, em
Rondônia, ocorreu em face ao Meio Ambiente Cultural não observado e
degradado no remanejamento decorrente da construção da Usina de Jirau
no Rio Madeira. Essa comunidade não foi tratada como comunidade,
como um núcleo. Não houve a preocupação de efetuar a transferência
dos habitantes em conjunto para um local o mais semelhante possível do
habitat existente, ocasionando, assim, a dispersão e com isso a extinção da
comunidade tradicional e do modus vivendi. Várias famílias remanejadas,
indenizadas ou não, mudaram-se para Vila Jirau (local mais próximo da
antiga moradia), localidade que possui um posto de abastecimento da
Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Como não havia condições de renda
suficiente no local, muitas das famílias efetivaram nova mudança, ocorrendo, de certa forma, um segundo êxodo. E aqui habita o nexo causal
para a aplicação do dano moral coletivo, porque nessa localidade reside
hoje parte dos moradores da antiga comunidade, e outros, oriundos do
mesmo local, já tentaram morar em Vila Jirau; dessa forma, se houver
investimento voltado ao benefício local, o que é possivel, nesse caso, através do ressarcimento depositado no Fundo de Direito Difuso (FDD),
1 MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas do RJ. Acadêmica do 10º
período do Curso de Direito da Faculdade Católica de Rondônia.
Contato: rvripke@uol.com.br
2 Mestre pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e titular
das cadeiras de Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade Católica de Rondônia (FCR).
Contato: brenoazevedomestre@gmail.com
DANO MORAL COLETIVO À COMUNIDADE REMANEJADA DE MUTUM-PARANÁ EM RONDÔNIA E
136 | OA POSSIBILIDADE
DE APLICAÇÃO DE SEU RESSARCIMENTO EM PATRIMÔNIO HISTÓRICO
abre-se a possibilidade de que ocorra um reagrupamento voluntário, em
que a busca natural por seus pares fixe o homem num meio social, o mais
parecido com o original.
PALAVRAS-CHAVES: Mutum-paraná. Vila Jirau. Dano Moral Coletivo. Patrimônio Histórico. Meio Ambiente Cultural.
ABSTRACT: The collective Moral Damage to Mutum-Paraná community,
in Rondônia, occurred in the face of Cultural Environment unobserved and
degraded in the relocation due to construction of the Jirau hydropower plant
on the Madeira river . This community was not treated as a community, as
a nucleous. There was a concern to make the transfer of people together for the
most similar possible location of the existing habitat, thus causing the dispersion
and thereby the extinction of traditional community and of the modus vivendi.
Several families resettled, compensated or not, moved to Vila Jirau village (nearest
site of the old house), this town has a station of the Madeira-Mamoré Railway.
As there was not enough income conditions at the site, many of the families they
conducted a new change by themselves, occurring in a way, a second exodus.
Here resides the causal link for the application of collective moral damage, because
in that locality, reside today part of the residents of the old community, and others, come from the same place, that have already tried to live in Vila Jirau village,
therefore, if returned investment to local benefit, which is possible in this case,
through the compensation deposited in Diffuse Right Fund (FDD), opens the
possibility that occurs voluntary reunification, where the natural search for their
pairs set the man in a social environment, the most like with the original one.
KEYWORDS: Mutum-Paraná. Vila Jirau village. Collective Moral Damage. Historical Heritage. Cultural Environment.
INTRODUÇÃO
A indenização aos antigos habitantes do distrito de Mutum-Paraná
– hoje parte do lago da Usina Hidroelétrica de Jirau –, município de Porto
Velho, estado de Rondônia, é decorrente do alagamento ocorrido pela
instalação da referida usina, no Rio Madeira. Essa indenização ocorreu
de forma individual, sendo que cada família recebeu o seu quinhão e foi
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 137
remanejada conforme acordos individuais.
Vila Jirau – local próximo à antiga comunidade – é um posto de
abastecimento de água e lenha desativado da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Esse posto possuiu seis casas – duas delas em ruínas – e uma caixa
d’água que abastecia a locomotiva, além de parte dos trilhos da referida
estrada e da linha telegráfica, todos em péssimo estado de conservação.
Este estudo pretende demonstrar que houve um dano moral coletivo
para com a comunidade de Mutum-Paraná, assim como verificar a possibilidade de aplicação de seu ressarcimento na restauração do patrimônio
histórico da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré – EFMM, dentro das
nuances que envolvem esse tipo de projeto.
A TUTELA JURISDICIONAL EM FACE AO MEIO AMBIENTE
CULTURAL
É fato que o meio ambiente cultural é um direito social que se reflete
difusamente, sendo amparado pela Constituição da República Federativa
do Brasil, de 1988 (doravante chamada de CF/88), e que em muitos casos
não é observado. Ele é amparado, ainda, pela Declaração Universal dos
Direitos Humanos, com referências analógicas à Convenção de Genebra
quando se trata de refugiados ambientais, visto que estes ainda não têm
um acordo protetivo.
Nesse raciocínio, vê-se a gravidade da extinção da Comunidade de
Mutum-Paraná – devido à formação do lago da Usina Hidroelétrica de
Jirau –, o que acarreta num dano moral coletivo, visto a inobservância
do status comunidade no remanejamento e seu reflexo para as futuras
gerações. A CF/88, em seu artigo 5º, parágrafo 1º, também dá ênfase
à aplicabilidade imediata às regras definidoras dos direitos e garantias
fundamentais.
Isso significa uma viabilidade instantânea derivada da própria constituição, com a presunção de norma pronta, acabada, perfeita e autossuficiente. Ainda, no artigo 5º, § 2º, da Carta Magna, temos que “Os direitos
e garantias expressos nesta constituição não excluem outros decorrentes
do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil seja parte”. Logo, sob esse
prisma, tudo deve estar concatenado e em harmonia, o que, no caso em
DANO MORAL COLETIVO À COMUNIDADE REMANEJADA DE MUTUM-PARANÁ EM RONDÔNIA E
138 | OA POSSIBILIDADE
DE APLICAÇÃO DE SEU RESSARCIMENTO EM PATRIMÔNIO HISTÓRICO
tela, significa progresso associado ao respeito e não simples pecúnia.
As comunidades tradicionais, caso de Mutum-Paraná, regulamentadas pelo Decreto nº 6.040/2007, quanto ao meio ambiente cultural,
assim como qualquer modus vivendi, fazem parte das pequenas partículas existenciais no mundo. Isso forma a diversidade cultural incrível que
habita o planeta e, nesse caso particular, da Amazônia. Cada vez que uma
dessas células se perde, perde-se também o respeito, a referência e a própria
humanidade, visto que nenhuma pessoa gostaria de ser desalojada de seu
núcleo de vivência.
O artigo 216 da CF/88 prevê o meio ambiente cultural, assim como
o patrimônio histórico, delimitando-o da seguinte forma:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores
de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados
às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (BRASIL, 1988).
Ressalta o professor José Afonso da Silva que o meio ambiente cultural “é integrado pelo patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico, turístico, que embora artificial em regra, como obra do homem,
difere do anterior (que também é cultural) pelo sentido de valor especial”
(SILVA, 2013, 03)3.
Celso Antonio Pacheco Fiorillo explica: “O bem que compõe o chamado patrimônio cultural traduz a história de um povo, a sua formação,
cultura e, portanto, os próprios elementos identificadores de sua cidadania,
que constitui princípio fundamental norteador da República Federativa
do Brasil”. E ainda ratifica o Meio Ambiente Cultural como “todo bem
referente à nossa cultura, identidade, memória etc., uma vez reconhecido
como patrimônio cultural, integra a categoria de bem ambiental e, em
3 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 2. ed. São Paulo: Malheiros,
1997, p. 03.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 139
decorrência disso, difuso” (FIORILLO, 2010, 72)4.
Seguindo esse raciocínio, fica evidente a importância que há em zelar
pela história de um povo, preservando assim as raízes que formam a identidade da Nação. Sabemos que não há como frear o progresso que, por
um lado, é vital à existência humana e, por outro, degrada a mesma, isso
porque desse progredir decorrem explorações que muitas vezes colidem
com os bens juridicamente tutelados. O liame é muito estreito, por isso
mesmo, qualquer inobservância pode gerar uma invasão no existir de outros
seres humanos que, como pontuado pelos doutrinadores supracitados, não
se pode esquecer: são elementos fundadores da cultura, identificadores de
cidadania e da história de um povo.
Ainda nesse contexto, não se pode deixar de observar a existencia da
função social da propriedade que é vista e aceita pelo nosso ordenamento,
como um princípio a ser seguido disposto no art. 170, III, CF/88:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano
e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...]
III - função social da propriedade (BRASIL, 1988).
É fato que o bem comum irá prevalecer sobre o bem individual,
obviamente pelo bem estar da coletividade. Sacrifícios são impostos e
até aceitos, porém, é imperativo que seus efeitos sejam minimizados ao
máximo, por uma questão de atender a outro princípio basilar de todo o
sistema legal pátrio, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, disposto
no artigo 1º, III, da CF/88.
Nesse ponto, quando os efeitos decorrentes do atendimento à função
social da propriedade afetarem outros bens jurídicos tutelados, usa-se a
frase “os fins justificam os meios”, atribuída a Nicolau Machiavel (2005),
por sua obra O Príncipe:
[...] nas ações de todos os homens, em especial dos príncipes, onde não
existe tribunal a que recorrer o que importa é o sucesso das mesmas. Procure, pois, um príncipe, vencer e manter o Estado: os meios serão sempre
julgados honrosos e por todos louvados, porque o vulgo sempre se deixa
levar pelas aparências e pelos resultados, e no mundo não existe senão o
4 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 11. ed.
São Paulo: Saraiva, 2010, p. 72.
DANO MORAL COLETIVO À COMUNIDADE REMANEJADA DE MUTUM-PARANÁ EM RONDÔNIA E
140 | OA POSSIBILIDADE
DE APLICAÇÃO DE SEU RESSARCIMENTO EM PATRIMÔNIO HISTÓRICO
vulgo [...] (MAQUIAVEL, 2005, Cap. XVIII)5.
Tal posição não cabe em uma sociedade democrática de direito, que
recepcionou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual dispõe,
em seu artigo 8º, a busca pelos direitos legalmente constituidos: “Toda a
pessoa tem direito a recurso efectivo para as jurisdições nacionais competentes contra os actos que violem os direitos fundamentais reconhecidos
pela Constituição ou pela lei” (ONU, 1948).
Nesse diapasão, o que se busca é demonstrar que, mesmo que as
mudanças sejam necessárias, que as empresas visem ao lucro, que o progresso pulse, o respeito ao ser humano e às minorias deve ser observado,
justamente para que não percamos a humanidade em nós como essência.
DO PERFIL DOS MORADORES DE VILA JIRAU E REMANESCENTES DE MUTUM-PARANÁ
Para maior segurança do presente estudo, foi realizada uma pesquisa6
junto aos moradores de Vila Jirau, em que as perguntas foram segmentadas
em questionamento amplo a todos os entrevistados, e uma parte específica
do questionário foi destinada àqueles que residiram em Mutum-Paraná à
época do remanejamento.
Não há dados específicos do IBGE quanto à quantidade de habitantes que vivem atualmente em Vila Jirau, e também não cabia na pesquisa
identificar a quantidade de moradores, visto que a pesquisa não seria, então,
por amostragem. O que se tem são informações coletadas na conversa
informal durante abordagem junto aos moradores locais, que disseram que
residem hoje em Vila Jirau entre 400 e 500 pessoas e, pelo que se observou
in loco, é o que realmente aparenta.
Das casas construídas, muitas estão fechadas, podendo-se afirmar
que de cada 10 casas, 05 estão fechadas, não de fato abandonadas, porém
fechadas, como se aguardassem o retorno de seus donos.
A pesquisa apontou que 50% das famílias remanejadas de Mutum-Paraná escolheram Vila Jirau para morar desde o início e 33% mudaram-se
inicialmente para Nova Mutum-Paraná e hoje habitam o local pesquisado.
5 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, ed. Martin Claret, 2005, Cap. XVIII.
6 Pesquisa realizada em 07 de maio de 2016, em Vila Jirau, com aplicação de questionário
de pesquisa, os quais resultaram nos gráficos (ambos em anexo).
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 141
Segundo os entrevistados, a maioria dos indenizados que morou inicialmente em Vila Jirau e mudou-se desse local, o fez pela falta de condições
de trabalho, o que justifica as casas fechadas.
Os entrevistados apontaram que a falta de rendimento acarretou
num segundo êxodo, de seus vizinhos, ou seja, mais um agravante no modo
de viver das pessoas, mais um sofrimento, o que fortalece, ainda mais,
o cabimento do dano moral coletivo, visto a não observância do meio
ambiente cultural.
No local, há cinco igrejas, uma escola municipal, porém não há posto
de saúde e sequer uma farmácia.
Alguns moradores têm barraquinhas à margem da BR-364, onde
vendem caldo-de-cana, abacaxi, tapioca, em geral, produtos produzidos
no fundo do quintal ou adquiridos na região para revenda. Como ficam
à margem da BR, o DNIT já os notificou para se retirarem, fato que certamente vai afetar mais ainda a renda local.
Foram aplicados 40 (quarenta) questionários, perfazendo uma amostragem de 8% a 10% por cento desse universo de pessoas, baseando-se no
total de pessoas moradoras apontadas pelos próprios entrevistados.
Dos entrevistados, a maioria declarou-se como trabalhador autônomo, afirmando que fazem o que for preciso para viver, isso incluindo
pequenos fretes, serviços na construção e outros. Em segundo lugar declararam-se agricultores.
Outro dado apontado foi que 65% das pessoas têm o ensino fundamental incompleto, sendo que três delas disseram ser analfabetas. Esses
dados são importantes para destacar a simplicidade e a vulnerabilidade
dessas pessoas.
Na pesquisa buscou-se comprovar o dano moral coletivo e a opinião
dos moradores sobre a sua aplicação no patrimônio histórico, para que
fosse possível prosseguir com o estudo.
Evidenciou-se então que 88% dos entrevistados, tanto os que habitaram Mutum-Paraná, quanto os que não moraram lá, acreditam que as
pessoas, mesmo indenizadas financeiramente, sofreram ao ter que deixar
o local originário, ou seja, foram atingidas por um dano moral; 63% disseram conhecer a história da EFMM; 90% sabem que Vila Jirau tem uma
parte significativa da história da ferrovia; 98% gostariam que esse local
fosse restaurado e todos os entrevistados afirmaram que gostariam que
DANO MORAL COLETIVO À COMUNIDADE REMANEJADA DE MUTUM-PARANÁ EM RONDÔNIA E
142 | OA POSSIBILIDADE
DE APLICAÇÃO DE SEU RESSARCIMENTO EM PATRIMÔNIO HISTÓRICO
essa restauração propriciasse renda para a comunidade.
Ainda, 33% das pessoas afirmaram que a escolha para morar em
Vila Jirau foi em virtude da proximidade do rio e metade delas disse que
foi por causa da proximidade do antigo local de moradia, reforçando aí
a busca por manter sua essência; e, quando quentionados sobre o que a
mudança afetou em suas vidas, 44% delas disseram que foram afetadas,
após a mudança, pelo choque cultural e a mudança na vida comunitária.
Desses dados extrai-se o nexo que evidencia o Dano Moral Coletivo e abre
leque para sua aplicação no patrimônio histórico local, haja vista que não
há como aplicar o valor numa comunidade extinta, mas sim num fundo
específico que tenha conexão com a antiga comunidade.
Ora, se a comunidade dissipou-se, tentou reagrupar-se por conta
em risco e não teve como permanecer por falta de renda, aplicar um ressarcimento através do dano moral coletivo ocorrido nesse patrimônio
histórico é uma maneira de dar humanidade ao ocorrido, aliando a isso a
recuperação histórica.
Além disso, esse feito pode ser associado a uma possibilidade de
rentabilidade local, o que possibilitaria o retorno dos que se mudaram, por
não terem como sobreviver, devido a falta de renda, assim como também
abre um leque para que haja um reagrupamento voluntário.
O DANO MORAL COLETIVO E A RESPONSABILIDADE
CIVIL OBJETIVA
Se o ser humano é um ser social, parte de um núcleo cultural, a
desconstituição do seu meio ambiente cultural acarreta na perda de suas
referências, as quais constituem a riqueza e diversidade cultural de um
povo. Uma vez extinta a comunidade, a responsabilidade deve ser vislumbrada com foco a minimizar a dor dos ofendidos. Observa-se que não
estamos falando tão somente do meio ambiente cultural, que por si já tem
o agravante do dano. Estamos falando de seres humanos, de núcleos que,
em era de preservação, são extintos.
O consórcio construtor das Usinas seguiu todo o procedimento legal
na construção da obra, atendendo, ao que se sabe, às condicionantes das licenças ambientais pertinentes. No tocante à comunidade de Mutum-Paraná
foram providenciadas as indenizações e remanejamentos das famílias que
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 143
lá habitavam.
Porém, dado o porte da obra e tudo que isso envolve, houve um lapso:
a não observância de que se tratava de um Meio Ambiente Cultural, cuja
ação de defesa individual já vem tipificada na Carta Magna pátria em seu
artigo 5ª, LXXIII, CF/88, que assim dispõe:
[...] qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise
a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado
participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio
histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de
custas judiciais e do ônus da sucumbência (BRASIL, 1988).
Como também, estando muito bem conceituado, reitera o art. 216,
II, § 4º, do mesmo dispositivo legal que define o meio ambiente cultural
supracitado e ainda prevê a punição em caso de sua não observância.
Art. 216. Constitui patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se
incluem: [...]
II - os modos de criar, fazer e viver; [...]
§ 4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma
da lei. (BRASIL, 1988).
Ainda na seara constitucional, o art. 225 da CF/88 chama todos à
responsabilidade na defesa do meio ambiente, ficando evidente que o meio
ambiente cultural é uma parte essencial da vida humana e, como tal, deve
ser protegido para as futuras gerações, visto que “meio ambiente” é um
termo bastante abrangente, uma vez que se trata do meio em que se vive, o
meio em que a vida acontece e acontecerá. Por isso mesmo, é inadmissível
alterá-lo significativamente sem atentar-se a todas as nuances que envolvem
a sua existência, sob risco de extinção da própria história. Sendo essa uma
obrigação estatal e da coletividade, isso nada mais é que responsabilizar a
todos, de fato, pela preservação, como bem disposto pela Carta Magna:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo
para as presentes e futuras gerações (BRASIL, 1988).
DANO MORAL COLETIVO À COMUNIDADE REMANEJADA DE MUTUM-PARANÁ EM RONDÔNIA E
144 | OA POSSIBILIDADE
DE APLICAÇÃO DE SEU RESSARCIMENTO EM PATRIMÔNIO HISTÓRICO
Logo, se não há observância e/ou respeito a esse modo de viver e
sentir de uma comunidade, culminando em sua extinção, há um dano
moral coletivo, definido na visão de Marco Antônio Marcondes Pereira:
Dano moral coletivo é o resultado de toda ação ou omissão lesiva significante, praticada por qualquer pessoa contra o patrimônio da coletividade,
considerada esta as gerações presentes e futuras, que suportam um sentimento de repulsa por um fato danoso irreversível, de difícil reparação, ou
de consequências históricas (PEREIRA, 2007, 1)7.
Nessa linha de raciocínio, a não observância quanto ao meio
ambiente cultural, ao modus vivendi da comunidade, caracteriza o dano
moral coletivo, afetando diretamente o patrimônio público e social, enfatizado nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet:
[...] o fato de todos os direitos fundamentais (e não apenas os sociais) terem
uma dimensão transindividual (coletiva ou difusa) em momento algum
lhes retira a condição de serem, em primeira linha, direitos fundamentais
de cada pessoa, ainda mais quando a própria dignidade é sempre da pessoa
concretamente considerada (SARLET, 2013, 39).8
O patrimônio, público e social, foi incluído pela Lei nº 13.004, de
2014, na Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, a qual disciplina a ação
civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao
consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico
e dá outras providências, assim dispondo em seu art. 1º e incisos:
Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular,
as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:
l - ao meio-ambiente; [...]
IV - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo; [...]
VII – à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos;
VIII – ao patrimônio público e social (BRASIL, 1985).
Embora esse seja um tema tortuoso, ainda pouco enfrentado pela
7 PEREIRA, Marco Antônio Marcondes. Dano moral contra a coletividade: ocorrências
na ordem urbanística. Dano Moral e sua Quantificação. Caxias do Sul: Plenum, 2007.1
CD-ROM. ISBN 978-85-88512-18-4).
8 SARLET, Ingo Wolfgang e TIMM, Luciano Benetti. Direitos Fundamentais Orçamento
E Reserva Do Possível, 2ª ed. ISBN: 857348673. Porto Alegre: Livraria Do Advogado
Editora. 2013, p. 39.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 145
doutrina especializada, o dano moral coletivo e difuso tem encontrado
guarida na jurisprudência, vide as várias ações que são enfrentadas pelos
tribunais e que focam interesses coletivos e difusos. A dificuldade parece
morar no fato de que desses, ninguém é titular, ao mesmo tempo em que
todos, ou todos os membros de um determinado grupo, classe, ou categoria, são seus titulares.
No tocante ao dano moral coletivo, podemos destacar a jurisprudência no entendimento avançado de nossos magistrados, quando veem
a evolução social no cuidado ao patrimônio cultural abrigado no meio
ambiente. De acordo com a ministra Nancy Andrighi, do STJ, “o Código
de Defesa do Consumidor – CDC foi um divisor de águas no enfrentamento do tema”. No julgamento do Recurso Especial – REsp 636.021 –
RJ, ela afirmou que “o artigo 81 do código do consumidor rompeu com
a tradição jurídica clássica, de que só indivíduos seriam titulares de um
interesse juridicamente tutelado ou de uma vontade protegida pelo ordenamento”. Ainda para a ministra, a evolução legislativa acerca do dano moral
coletivo reconhece a lesão a um bem difuso ou coletivo correspondendo a
um dano não patrimonial. De acordo com Cavalieri Filho (2015, 143) 9:
“criam-se direitos cujo sujeito é uma coletividade difusa, indeterminada,
que não goza de personalidade jurídica e cuja pretensão só pode ser satisfeita quando deduzida em juízo por representantes adequados”.
Em contraponto à Turma, a ministra reafirmou seu entendimento
de que a vítima do dano moral deve ser, necessariamente, uma pessoa.
“Não existe ‘dano moral ao meio ambiente’. Muito menos ofensa moral
aos mares, rios, à Mata Atlântica ou mesmo agressão moral a uma coletividade ou a um grupo de pessoas não identificadas. A ofensa moral sempre
se dirige à pessoa enquanto portadora de individualidade própria; de um
vultus singular e único”, no Resp. 598.281-MG:
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANO AO MEIO AMBIENTE. DANO
MATERIAL E MORAL. ART. 1º DA LEI 7347⁄85. (...) 2. O meio
ambiente ostenta na modernidade valor inestimável para a humanidade,
tendo por isso alcançado a eminência de garantia constitucional. 3. O
advento do novel ordenamento constitucional - no que concerne à proteção ao dano moral - possibilitou ultrapassar a barreira do indivíduo para
abranger o dano extrapatrimonial à pessoa jurídica e à coletividade. 4. No
9 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 12ª ed. São Paulo:
Atlas, 2015, p. 143.
DANO MORAL COLETIVO À COMUNIDADE REMANEJADA DE MUTUM-PARANÁ EM RONDÔNIA E
146 | OA POSSIBILIDADE
DE APLICAÇÃO DE SEU RESSARCIMENTO EM PATRIMÔNIO HISTÓRICO
que pertine a possibilidade de reparação por dano moral a interesses difusos
como sói ser o meio ambiente amparam-na o art. 1º da Lei da Ação Civil
Pública e o art. 6º, VI, do CDC. 5. (...)”. Neste julgamento o Min. José
Delgado acompanhou o Min. Luiz Fux (relator), todavia, ao final, veio
a prevalecer entendimento diverso, assim ementado: “PROCESSUAL
CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANO AMBIENTAL. DANO
MORAL COLETIVO. Necessária vinculação do dano moral à noção de
dor, de sofrimento psíquico, de caráter individual. Incompatibilidade com
a noção de transindividualidade (indeterminabilidade do sujeito passivo e
indivisibilidade da ofensa e da reparação). Recurso especial improvido” (1ª
Turma do STJ. Votação por maioria – 3 x 2 –. DJ 01.06.2006).
Veja-se que ambos os posicionamentos se adequam à realidade
corrente, visto que além de todo o arcabouço, quando se trata de meio
ambiente cultural, especificamente de uma comunidade tradicional,
estamos falando de uma coletividade definida, embora hoje dispersa em
decorrência do mesmo ato danoso, ou seja, o não tratamento adequado
da comunidade como núcleo existencial.
Assim, mostra-se cristalino que o respeito à força normativa da constituição perpassa pela vinculação dos fatos que provam a responsabilidade
objetiva do dano, uma vez que se fala em meio ambiente cultural, portanto,
ao dano de uma coletividade delimitada e, por consequência, pela ampla
aceitação da concepção acerca dos danos morais coletivos, tendo em vista
que a teoria do dano moral individual, alicerçada na dor psíquica, deve
ceder espaço a um sentimento maior, o de perda de valores essenciais que
afetam negativa e indistintamente toda uma coletividade; e não esqueçamos que o âmago da questão são as pessoas, pessoas essas que às vezes nem
têm a consciência da imensurável perda ocorrida.
Reforçando o dano moral em face à responsabilidade objetiva acima
citada, quando se trata de danos ao meio ambiente, seja ele qual for, a
Lei nº. 6.938/81 sobre a política nacional do meio ambiente adotou o
princípio da responsabilidade objetiva, que está claramente disposto em
seu art. 14, § 1º:
Art. 14 - Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal,
estadual e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à preservação
ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade
ambiental sujeitará os transgressores: [...]
§ 1º Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo,
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 147
é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a
indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros,
afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados
terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal,
por danos causados ao meio ambiente (BRASIL, 1981).
Nas palavras de Sergio Cavalieri Filho:
O dano moral coletivo é a última etapa da evolução doutrinária e jurisprudencial do dano moral. O tema está intimamente relacionado com os
direitos e interesses difusos e coletivos, cuja tutela só tornou-se possível a
partir do momento em que o nosso ordenamento jurídico reconheceu a
coletividade de pessoas, como sujeito de direito, mesmo não sendo pessoa jurídica nos moldes clássicos concebidos pelo Direito. (CAVALIERI
FILHO, 2014, 158)10.
Dessa forma, independentemente de culpa provada, o dano moral
deve ser reparado, visto a ofensa impossível de se mensurar, de fato, o
prejuízo a essa comunidade.
O dano moral coletivo é aquele decorrente de mácula à dignidade
coletiva, e o legislativo pátrio elegeu os valores de nossa sociedade, positivando-os na nossa Carta Magna. Assim, ao ocorrer uma lesão a essa
camada axiológica, a sociedade estará apta a exigir a reparação da ofensa,
por meio do dano moral coletivo.
Nesse raciocínio, Carlos Alberto Bittar Filho alinha-se ao nosso
pensamento quando afirma que:
[…] chega-se à conclusão de que o dano moral coletivo é a injusta lesão da
esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de
um determinado círculo de valores coletivos. Quando se fala em dano moral
coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo
de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerado, foi
agredido de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico;
quer isso dizer, em última instância, que se feriu a própria cultura, em seu
aspecto imaterial. Tal como se dá na seara do dano moral individual, aqui
também não há que se cogitar de prova da culpa, devendo-se responsabilizar o agente pelo simples fato da violação (damnum in reipsa) (BITTAR
FILHO, 1994, 44-45)11.
10 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 11ª ed. São Paulo:
Atlas, 2014, p. 158.
11 BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do Dano Moral Coletivo no Atual Contexto Jurídico Brasileiro (Revista de Direito do Consumidor, volume 12, outubro – dezembro de
DANO MORAL COLETIVO À COMUNIDADE REMANEJADA DE MUTUM-PARANÁ EM RONDÔNIA E
148 | OA POSSIBILIDADE
DE APLICAÇÃO DE SEU RESSARCIMENTO EM PATRIMÔNIO HISTÓRICO
O dano moral coletivo se firma como categoria independente na
teoria do dano, ao ter por sujeito ativo a coletividade lesada, por sujeito
passivo a pessoa física, jurídica ou os próprios membros da coletividade que
violam a sua própria dignidade, e o objeto consiste na tutela da dignidade
coletiva, a qual não pode ser ignorada, notadamente, por meio da ofensa
dos direitos coletivos lato sensu.
Esse entendimento também ficou consubstanciado na V Jornada de
Direito Civil, no enunciado n. 456, assim disposto: “A expressão “dano”
no art. 944 abrange não só os danos individuais, materiais ou imateriais,
mas também dos danos sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos a serem reclamados pelos legitimados para propor ações coletivas”
(CNJ, 2011).
De fato, a abrangência e a correta concepção do dano moral coletivo ocorreram no REsp. 1.057.274, cuja ementa coloca em destaque os
seguintes preceitos:
1. O dano moral coletivo, assim entendido o que
é transindividual e atinge uma classe específica ou
não de pessoas, é passível de comprovação pela
presença de prejuízo à imagem e à moral coletiva
dos indivíduos enquanto síntese das individualidades percebidas como segmento, derivado de
uma mesma relação jurídica-base.
2. O dano extrapatrimonial coletivo prescinde
da comprovação de dor, de sofrimento e de abalo
psicológico, suscetíveis de apreciação na esfera do
indivíduo, mas inaplicável aos interesses difusos e
coletivos (STJ, 2008).
Verificou-se então que a proteção da dignidade coletiva e, até mesmo,
da tutela coletiva, ficaria vazia sem o reconhecimento de uma camada de
valores inerente à sociedade brasileira, traduzida por meio dos direitos
coletivos, e passível de condenação ao sujeito que a violasse; dessa forma,
sedimentou-se o reconhecimento pelos Tribunais Superiores do dano
moral coletivo.
Após o entendimento pacificado, restou a mais difícil e tortuosa
1994, p. 44-45.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 149
tarefa aos Tribunais: o quantum a ser fixado pelo juiz a título de dano
moral coletivo. Definiu-se, então, que se deve considerar, por força do
artigo 944, Código Civil de 2002, a extensão do dano, a possibilidade
de sua reversão (fato que é impossível de se aplicar ao caso estudado), ou
não, a situação que ocasionou a ofensa à dignidade coletiva. Além disso,
o preceito violado é de fundamental importância, a fim de determinar o
grau de ofensa aos valores sociais, como ensina Xisto Tiago de Medeiros
Neto (2012, 22) 12:
[...] em síntese, a lesão a interesses coletivos, à vista do nosso ordenamento
jurídico, enseja reação e resposta equivalente a uma reparação adequada
à tutela almejada, traduzida essencialmente por uma condenação pecuniária, a ser arbitrada pelo juiz – orientado pela função sancionatória e
pedagógica dessa responsabilização –, a qual terá destinação específica em
prol da coletividade.
Observado isso, em analogia ao Enunciado n. 455 da V Jornada de
Direito Civil, reafirma-se que as circunstâncias do caso concreto devem
ser ponderadas, a fim de que se respeite, em conjunto, a natureza sancionatória, preventiva e educativa dessa espécie de dano.
455) Art. 944. Embora o reconhecimento dos danos morais se dê, independentemente de prova (in re ipsa), para a sua adequada quantificação,
deve o juiz investigar, sempre que entender necessário, as circunstâncias
do caso concreto, inclusive por intermédio da produção de depoimento
pessoal e da prova testemunhal em audiência (CNJ, 2011).
Portanto, será competência de o magistrado destinar os recursos
oriundos dessas compensações para os fundos dos direitos coletivos correspondentes, a fim de que haja medidas preventivas ao combate da lesão à
dignidade coletiva e fomento desses valores sociais para toda a comunidade
política pátria, a fim de incutir-lhe a ideia de pertencimento.
Mas ainda é imperativo observar duas questões. Uma trata-se da
destinação do dano moral coletivo, e outra é o tipo de responsabilidade,
e destaca-se que são situações também já definidas.
O valor deverá se reverter ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos
12 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano moral coletivo, Tribunal Regional do
Trabalho 9ª Região Curitiba – PR, Escola Judicial, Edição temática, Periodicidade Mensal
Ano IV – 2015 – n. 38, p. 22.
DANO MORAL COLETIVO À COMUNIDADE REMANEJADA DE MUTUM-PARANÁ EM RONDÔNIA E
150 | OA POSSIBILIDADE
DE APLICAÇÃO DE SEU RESSARCIMENTO EM PATRIMÔNIO HISTÓRICO
– FDD, criado pelo art. 13 da Lei nº 7.347/1985, o qual é gerido por um
Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e os representantes da comunidade. A
regulamentação desse fundo encontra-se também positivado no Decreto
Federal nº 1306/1994 e na Lei nº 9008/1985, sendo seus recursos destinados aos bens lesados.
Já em face ao tipo de responsabilidade, não há dúvidas de que se trata
de responsabilidade objetiva. O dano moral coletivo decorre normalmente
do exercício da atividade de risco inerente, o qual, amparado na teoria do
risco, gera a responsabilidade objetiva, quer pelo artigo 927, Parágrafo
Único, do Código Civil de 2002, quer pelos artigos 12 e 14 do Código
de Defesa do Consumidor e, reforçando o já disposto, o artigo 225, § 3º,
da Constituição da República.
A HIPÓTESE DE CABIMENTO DO DANO MORAL COLETIVO NA RESTAURAÇÃO DO PATRIMÓNIO HISTÓRICO
LOCAL
Observar e reconhecer que houve esse dano moral coletivo e aplicá-lo
ao patrimônio histórico local é, acima de tudo, marcar de forma humanizada esse episódio da história do país, deixando claro que mesmo que
mudanças sejam necessárias, a essência humana ainda prevalece.
Observados os requesitos da responsabilidade civil quanto à lesão
ocorrida, evidencia-se que a mesma afeta bens coletivos juridicamente
tutelados, uma vez que a perda do referencial comunitário e da própria
comunidade tem o condão de causar dor e sentimento de desapreço que
atingiu a coletividade, num sentimento coletivo de comoção. Esses sentimentos são o cerne do Dano Moral Coletivo, que ocorreu por inobservância ao regramento pátrio, principalmente no quesito principiológico.
Em que pese somente parte da ferrovia estar sobre o manto protetivo do patrimônio histórico, toda a sua extensão é de importância histórica, podendo haver dano através do uso acentuado do local por novos
moradores, sendo que nem todos entendem que ruínas podem ser foco
de preservação.
O patrimônio histórico em questão não foi atingido diretamente
pelo lago da usina. Porém, há o impacto indireto sobre essa parte do
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 151
patrimônio histórico da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, visto que
houve mudança de várias pessoas remanescentes de Mutum-Paraná para
o local em estudo, fortalecendo, assim, a hipótese de aplicação do Dano
Moral Coletivo, ressarcido, nesse local.
No que tange à proteção do patrimônio histórico, não se pode
deixar de citar o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, cuja criação anterior obedece a um princípio normativo,
atualmente contemplado pelo artigo 216 da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988. Nesse quesito observa-se no referido artigo
e, na existência do instituto, o reforço a todo arcabouço legal elencado
até aqui.
Também é oportuno tecer maiores considerações acerca do Decreto-Lei nº 25/1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e
artístico nacional. A referida norma estabelece que o patrimônio histórico
e artístico nacional é o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no
país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação
a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor
arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.
Nesse tocante, não se discute que o local é de fato de interesse
público, e que o patrimônio da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré faz
parte inconteste da história do país.
Entre os objetivos do Instituto está a melhoria e a adequação das
condições de habitação e uso das edificações existentes, manutenção da
população residente e dos usos tradicionais, além da viabilização de geração
de renda a partir da adaptação física do bem para o comércio nos centros
históricos, desde que sejam preservados os valores expressos nos processos
de tombamento.
Veja-se, então, que nada é mais adequado para o caso em estudo,
logo, os interesses podem perfeitamente harmonizar-se, visto que haverá
a restauração, a preservação e a valorização de uma comunidade, conforme
a afirmativa dos moradores demonstradas na pesquisa supracitada.
Ora, se a preservação e a manutenção da população são objetivos,
nada mais adequado que resgatar e devolver à população um ponto histórico que, por si, é também turístico, o qual poderá gerar renda ao povo
atingido e à população local.
Acredita-se, baseando-se nos questionamentos da pesquisa, que uma
DANO MORAL COLETIVO À COMUNIDADE REMANEJADA DE MUTUM-PARANÁ EM RONDÔNIA E
152 | OA POSSIBILIDADE
DE APLICAÇÃO DE SEU RESSARCIMENTO EM PATRIMÔNIO HISTÓRICO
vez que haja condições de renda, as famílias começarão a se reagrupar de
forma voluntária, haja vista que já tentaram fazer isso, e nada é mais digno
que deixar o homem agir no seu habitat e ter condições de viver dentro
do universo que conhece.
Como se verifica, o mal já ocorreu, seria utopia pensar em desfazer
o ocorrido e pensar que todos terão a mesma vida de antes. Porém não é
impossível verificar o que ocorreu e minimizar no que for possível a dor
ocasionada, fortalecendo vínculos do passado com o presente, vislumbrando ainda que aqui a ação positiva do Estado seria de muita coerência,
consertando também parte de sua omissão para com as pessoas na busca
do bem comum.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em todo o conjunto estudado, verifica-se que apesar da indenização
individual ocorrida, não houve uma preocupação para com a comunidade
tradicional que ali habitava; assim, não se atentou para o meio ambiente
cultural, e como consequência, isso causou um impacto no modus vivendi
daqueles habitantes, acarretando na dispersão da vida comunitária.
Dentro de todo o contexto exposto, não resta dúvidas de que houve
um Dano Moral Coletivo em face do Meio Ambiente Cultural degradado,
o qual culminou na extinção da comunidade tradicional de Mutum-Paraná.
Não há dúvidas, também, quanto ao cabimento de uma Ação Civil
Pública, uma vez que é o instrumento processual adequado, conferido ao
Ministério Público, para o exercício do controle popular sobre os atos do
poder público, e ninguém duvida que a construção da Usina de Jirau foi
um ato do poder público.
O dano moral coletivo – evidenciado nesse estudo – para com a
comunidade de Mutum-Paraná pode gerar um ressarcimento em face
à comunidade que foi drasticamente extinta, porém, se as reparações
de danos morais coletivos são indenizadas ao Fundo de Direito Difuso
(FDD) e devem ser aplicadas no bem juridicamente tutelado afetado,
como aplicar em algo que não existe mais?
A pesquisa respondeu a essa pergunta demonstrando a possibilidade da aplicação do ressarcimento na restauração do ponto histórico
da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, visto que, se o Fundo de Direito
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 153
Difuso – FDD visa à aplicação em face ao que foi degradado, e se muitos
desses antigos moradores tentaram ou moram no local em tela, estaria
então se aplicando o valor à parte da comunidade extinta, e mais: como
muitos foram morar inicialmente no local, abre-se a possibilidade de um
reagrupamento voluntário, efetivando assim a restauração social, histórica
e patrominal, beneficiando refletivamente a todos.
O que se buscou aqui foi evidenciar e provar o cabimento de uma
Ação de Dano Moral Coletivo e a aplicação de seu ressarcimento em local
histórico, o que ficou comprovado.
Frise-se que essa deve ser a ultima ratio, visto que, tanto o CPC/2015
como a Lei nº 13.140/2015, que são recentes, têm buscado resolver os
conflitos de fato, uma vez que as lides judiciais não solucionam problemas,
deixando sempre uma ou as duas partes frustradas.
Ainda pontuando, vivemos em era de sustentabilidade, é de interesse
das empresas manter a imagem junto ao público nacional e internacional.
Um projeto desse porte nada mais será do que um cartão de visitas impecável para qualquer empresa, trazendo beneficífios a todos.
Vê-se que, embora não havendo observância com relação à comunidade tradicional, ao meio ambiente cultural, esse lapso no projeto das
obras pode ser perfeitamente sanado, visto que os habitantes podem voltar
a se reagrupar naturalmente, transformando a mudança drástica no modus
vivendi em algo positivo.
Além de resgatar a história e minimizar o dano moral coletivo ocorrido – pois sabemos que um ressarcimento total seria utopia – se tentará
fomentar, mesmo que tardiamente, uma comunidade mais parecida com
a original, fato que não se observou.
Em todo o conjunto, desde a responsabilidade do Estado, ao não
observar a importância das comunidades tradicionais, quando aprovou as
licenças para a construção/ instalação e operação da usina, e do próprio consórcio, que ao fazer o levantamento não observou esse importante quesito,
fica evidente a falabilidade humana, uma vez que o processo de remanejamento e construção continha pessoas interagindo e que os responsáveis não
se atentaram para a gravossidade de tal dano.
O mal já está feito, mas apesar dessa falabilidade, se houver humanidade e boa vontade na preservação do meio, esse lapso pode tornar-se
um ícone de renovação e conservação, servindo de referência para outras
DANO MORAL COLETIVO À COMUNIDADE REMANEJADA DE MUTUM-PARANÁ EM RONDÔNIA E
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DE APLICAÇÃO DE SEU RESSARCIMENTO EM PATRIMÔNIO HISTÓRICO
obras, visto que, em face do progresso, há dores, mas que podem, sim, ser
minimizadas quando a função social atingir de fato todos os envolvidos,
humanizando de fato a nossa evolução e preservando as futuras gerações.
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DE APLICAÇÃO DE SEU RESSARCIMENTO EM PATRIMÔNIO HISTÓRICO
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O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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Paulo: Malheiros, 1997.
O DIREITO E O CUIDADO COM A CASA
COMUM: A CRISE ECOLÓGICA E OS
CAMINHOS DO DESENVOLVIMENTO
EL DERECHO Y EL CUIDADO CON LA CASA COMÚN: LA
CRISIS ECOLÓGICA Y LOS SENDEROS DEL DESARROLLO
Gisele Jabur1
Juliana de Oliveira Sales2
RESUMO: A Encíclica Laudato Si’, sobre o cuidado da Casa Comum,
publicada pelo Papa Francisco em 2015, além de evidenciar a necessidade
da mudança dos hábitos de consumo, se concentra na urgência de discutir
o modelo de produção globalmente assumido, pautado na exploração
desmoderada da Natureza. A manifestação do pontífice denuncia como
a poluição, as mudanças climáticas, a perda da biodiversidade e a deterioração da qualidade de vida humana estão relacionadas ao padrão de desenvolvimento adotado, o qual está baseado no uso de combustíveis fósseis
e no uso indiscriminado da terra para fins agrícolas, acarretando na crise
ecológica global. As discussões acerca do conceito do desenvolvimento
remetem à década de 1970, quando se passa a abandonar a ideia restrita de
crescimento econômico. Neste artigo há a retomada de tal discussão, no
qual o conceito de desenvolvimento é questionado à luz da Constituição
Federal brasileira de 1988, relacionando-o com o sistema de dominação de
uma sociedade sobre outras. Busca-se analisar o modelo desenvolvimentista
importado pelo Brasil e seus mecanismos de interação com o meio natural,
a fim de demonstrar como a réplica do paradigma eurocêntrico mostra-se
ineficaz socioambientalmente, para então, através de uma perspectiva
decolonial, apresentar algumas linhas de ação e orientação. A proposta
epistemológica do pensamento decolonial permite examinar a realidade,
ciente da configuração do sistema-mundo e das relações de colonialidade
1 Mestra em Meio Ambiente e Desenvolvimento (MADE/UFPR). Bacharel em Direito
(PUCPR).
Contato: giselejabur@gmail.com
2 Doutoranda em Direito Socioambiental e Sustentabilidade (PUCPR). Mestra em Meio
Ambiente e Desenvolvimento (MADE/UFPR). Bacharel em Direito (PUCPR).
Contato: juusales@gmail.com
DIREITO E O CUIDADO COM A CASA COMUM: A CRISE ECOLÓGICA E OS CAMINHOS DO
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do poder, saber e do ser historicamente travadas, tornando-se pano de
fundo para o presente debate. Na busca por um modelo compatível com
o bem comum, os esforços voltados a encontrar alternativas se apresentam
como meio de resistência ao eurocentrismo. Assim, em decorrência das
especificidades no território brasileiro faz-se necessário a ruptura com as
relações de colonialidade, para repensar os padrões de progresso e economia, com o intuito de estimular o diálogo para novas políticas nacionais
nos âmbitos socioambiental, cultural, político e econômico.
PALAVRAS-CHAVE: crise ecológica; desenvolvimento; decolonialidade; direito socioambiental
RESÚMEN: La Encíclica Laudato Si’, sobre el cuidado de la casa Común,
publicado por el Papa Francisco en 2015, destaca la necesidad de cambio
en los hábitos de consumo y la urgente necesidad de discutir el modelo de
producción, basado en la explotación de la naturaleza. La manifestación
del Papa denuncia como la contaminación, el cambio climático, la pérdida
de biodiversidad y el deterioro de la calidad de la vida humana están relacionados con el modelo de desarrollo adoptado. Dicho modelo está basado en
el uso de combustibles fósiles y el uso indiscriminado de la tierra para fines
agrícolas, lo que resulta en la crisis ecológica global. Las discusiones sobre el
concepto de desarrollo se refieren a los años 1970, cuando se adopta la idea
de crecimiento económico restricto. En este artículo, el concepto de desarrollo
es cuestionado a la luz de la Constitución Federal brasileña de 1988, y relacionado al sistema de dominación de la sociedad sobre los demás. El objetivo
es analizar el modelo de desarrollo importado por Brasil y sus mecanismos
de interacción con el entorno natural con el fin de demostrar cómo la réplica
del paradigma eurocéntrico muestra su ineficacia socioambiental, y luego, a
través de una perspectiva colonialista, presentase algunas líneas de acción y
orientación. La propuesta epistemológica del pensamiento colonialista nos
permite examinar la realidad, consciente de la configuración y la colonialidad
del sistema mundial de relaciones de poder, el conocimiento y ser combatido
históricamente, convirtiéndose en fondo de este debate. En la búsqueda de
un modelo compatible con el bien común, los esfuerzos encaminados para
alternativas se presentan como un medio de resistencia al eurocentrismo. Por
lo tanto, debido a las especificidades de Brasil, es necesario romper con las
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relaciones de colonialidad, para repensar los padrones de progreso y economía,
con el fin de estimular el diálogo hacia nuevas políticas nacionales y locales
en los medios socioambiental, cultural, político y económico.
PALABRAS-CLAVE: crisis ecológica; desenvolvimiento; derecho socioambiental; decolonialidad.
INTRODUÇÃO
A crise ecológica abordada pela Encíclica Papal Laudato Si’ é objeto
de estudo complexo em suas causas, pois constituída por um feixe de
situações que afetam diretamente a vida na Terra. Ela se verifica de
diversos modos, seja na crise da produção alimentar e na manutenção
dos problemas de subnutrição e fome em escala global, nas mudanças
climáticas e aquecimento global ou ainda no desmatamento e na redução
da biodiversidade, entre tantos outros.
A manifestação do Pontífice alerta sobre o uso irresponsável dos
recursos naturais e seu padrão de exploração, bem como sua relação com a
injustiça social e a pobreza. À título exemplificativo, tem-se a exploração do
solo nas práticas agrícolas predominantes, consistentes em extensas monoculturas, com o uso indiscriminado de agrotóxicos, ou ainda a exploração
do bem água, essencial às cadeias produtivas, utilizada de forma irracional
e ostensivamente poluída.
Estes dois exemplos se relacionam diretamente com o padrão de
produção atual. A produção agrícola, por um lado, se dá em grande escala,
voltadas aos interesses mercantis implicados na produção e exportação
de commodities. De outro lado, a produção industrial, de modo geral, ao
produzir rejeitos libera-os no meio natural, não raro, nos cursos hídricos.
Dentre os principais pontos abordados no documento apostólico,
que traz a indissociabilidade das questões sociais e ambientais, está a necessidade de se lançar novas propostas de economia e progresso – que verdadeiramente atendam aos interesses do homem e da natureza, entendidos
como peças de um mesmo organismo/sistema.
Neste sentido, em busca de estudar alternativas de modos de produção e de desenvolvimento, toma-se como base epistemológica a perspectiva
latino-americana do pensamento decolonial, discutindo as relações de
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colonialidade e também a Modernidade eurocêntrica, responsável pelo
modo de vida e de desenvolvimento difundido globalmente.
O PENSAMENTO DECOLONIAL E A PERSPECTIVA DE
ANÁLISE
A Encíclica Laudato Si’: Sobre o Cuidado com a Casa Comum,
publicada na data de 24 de maio de 2015, pelo Papa Francisco em seu
terceiro Pontificado, faz um apelo de unir toda a família humana na busca
de um desenvolvimento sustentável e integral, com o intuito de combater
a deterioração da biodiversidade e da qualidade de vida de grande parte
da humanidade.
O modelo de desenvolvimento adotado está baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis e na prática crescente de mudar a utilização
do solo, principalmente com o desflorestamento para finalidade agrícola
e pecuária. Tais práticas culminaram com a crise ecológica global, sendo
as mudanças climáticas um problema com graves implicações ambientais,
sociais, econômicas, distributivas e políticas, constituindo atualmente um
dos principais desafios para a humanidade, em especial no que concerne
aos países em vias de desenvolvimento.
Parte-se do pressuposto de que o ser humano também é uma criatura
deste mundo e, por isso, tem direito a viver e ser feliz. Sob a ótica dos
princípios da Constituição Federal brasileira outorgada em 1988, como
a Dignidade da Pessoa Humana, não podemos deixar de considerar os
efeitos da degradação ambiental, do modelo atual de desenvolvimento e
da cultura do descarte sobre a vida das pessoas.
Portanto, imperioso o desenvolvimento de políticas capazes de reduzir drasticamente a poluição e a degradação socioambiental, acompanhados do desenvolvimento de fontes de energia renovável, tendo em vista o
esgotamento dos recursos naturais.
Neste sentido, a Encíclica Papal denuncia o modelo de desenvolvimento hegemônico e expõe suas consequências nefastas para a sociobiodiversidade do planeta. Aponta que a resistência deve ser um olhar diferente,
um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e
uma espiritualidade que se oponha ao avanço do paradigma tecnocrático.
Como alternatividades ao sistema hegemônico capitalista, é
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demonstrado a possibilidade de um desenvolvimento humano e social
mais saudável, baseado em teorias e políticas decolonialistas que rompam
com o eurocentrismo e as relações de colonialidade de poder que perduram
no tempo principalmente nas sociedades do Sul.
Com a invasão europeia dos atuais países latino-americanos, todas
estas sociedades enfrentaram ciclos de colonização, nos quais lhes era
forçado intensas imposições socioculturais, em razão de profunda discriminação racial, étnica e antropológica, produto da dominação da própria
estrutura colonial. Através de guerras, genocídios e escravagismo inaugurou-se junto à Modernidade o projeto de desenvolvimento econômico
desenfreado baseado no colonialismo e suas relações de poder.
Durante os ciclos de colonização no continente latino-americano, foi estabelecida uma relação de dominação direta política,
social e cultural sobre os conquistados, sendo esta relação denominada colonialismo (QUIJANO, 1992, p. 11). Neste sentido, o
colonialismo seguiu historicamente sendo um modelo de desenvolvimento, no qual os países europeus e estadounidense exploravam a natureza e as gentes dos países africanos e latinoamericanos em
condições que afrontavam com os princípios de Soberania e Dignidade
da Pessoa Humana.
Ignorando e violando a diversidade de cosmovisões, as três principais linhas de classificação que constituíram a formação do capitalismo
mundial colonial moderno no século XVI foram raça, gênero e trabalho
(QUIJANO, 2000, p. 342.
Estandares de desenvolvimento eram estabelecidos focado nas tendências ditadas pelo continente europeu e a grande totalidade da concentração dos recursos naturais do mundo estavam no controle e benefício de
uma minoria europeia e estadounidense, inaugurando, assim, o período
chamado imperialismo, no sentido de um sistema de dominação política
formal de umas sociedades sobre as outras, onde os explorados e dominados da América Latina e África são as principais vítimas (QUIJANO,
1992, p. 11).
Mesmo depois dos processos emancipatórios e de independência
de ditos países latino-americanos, a relação da cultura europeia para
com as outras culturas ainda é uma relação de dominação colonial com a
negação da alteridade e colonização de outras culturas. Dita colonização
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não se opera no âmbito político, mas sim no imaginário social dos países
explorados, sendo a relação de colonização do imaginário dos dominados
(QUIJANO, 1992). Portanto, na concepção de Quijano, as relações de
colonialidade política, econômica e administrativa não findam com o
término do colonialismo, senão que perduram no tempo até os dias de
hoje mediante relações de dominação através do controle dos meios de
produção e circulação de bens, dos recursos naturais, da europeização
sociocultural, com o genocídio dos povos originários.
Segundo Aníbal Quijano (1992, p. 12), a relação de colonialidade
eurocêntrica se deu nos modos de conhecer, de produzir conhecimento,
de produzir perspectivas, imagens e sistemas de imagens, símbolos, modos
de significação; sobre os recursos, padrões e instrumentos de expressão
formalizada e objetivada, intelectual ou visual, seguida da imposição do
uso dos próprios padrões de expressão dos dominantes, como meios de
controle social e cultural, a fim de impedir a produção cultural das sociedades e dos povos dominados. Desta maneira, o eurocentrismo e o colonialismo são as duas faces da mesma moeda, haja vista o eurocentrismo
ser uma lógica fundamental para a reprodução da colonialidade do saber
(BALLESTRIN, 2013, p. 103).
A cultura eurocêntrica passa a ser um modelo universal de desenvolvimento a ser seguido e implantado nos países sulistas, entretanto,
sem levar em consideração as especificidades de cada lugar. A repressão
cultural e a colonização do imaginário foram acompanhadas de um massivo e gigantesco extermínio dos povos originários, principalmente pelo
uso da mão de obra escrava, ademais da violência e das enfermidades.
Essa destruição da sociedade originária e de sua cultura constituem
os ciclos de colonização, que desde a invasão europeia vêm sendo redesenhados e reformulados sob novas roupagens e novos discursos.
Para Quijano (1992, p. 13), a América Latina é, sem dúvida, o caso
extremo da colonização cultural pela Europa, em decorrência de seu poder
político-militar e tecnológico, o qual impõe sua própria imagem paradigmática e seus elementos cognitivos, como norma orientadora de todo
desenvolvimento cultural, especialmente intelectual e artístico europeizado. Despojados de legitimidade e reconhecimento na ordem cultural
mundial, dominada pelos padrões europeus de desenvolvimento, as sociedades latino-americana encontram-se em situação de dominação, na qual
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a colonialidade, em consequência, é ainda o modo geral de dominação do
mundo atual, uma vez que o colonialismo como ordem político explícito
foi destruído.
Através de uma visão reducionista, a colonialidade possibilitou a
construção do paradigma europeu da racionalidade Modernidade, consolidando a relação de dominação colonial europeia mediante a construção
do conhecimento como produto de uma relação sujeito objeto. Nesta
perspectiva, a noção de sujeito está relacionada ao caráter individualista,
segundo a qual a cultura europeia racional é a única que pode conceber
sujeitos. Em contrapartida, a noção de objeto está marcada pela ausência
de identidade, haja vista as outras culturas serem vistas como diferentes,
no sentido de desiguais, inferiores e, portanto, só podem ser objetos de
conhecimento e práticas de dominação.
Apresentando-se como alternatividade ao modelo imposto, o “giro
decolonial”, termo originalmente cunhado por Nelson Maldonado Torres
em 2005, surge como movimento de resistência teórico e prático, político e
epistemológico, à lógica da dualidade: modernidade e colonialidade, sendo
a decolonialidade o elemento suplementar desta relação, para autores como
Walter Mignolo. Em paralelo, Mignolo (2007, p. 52) elabora o denominado “pensamento fronteiriço”, o qual faz resistência à cinco ideologias da
Modernidade, Cristianismo, Liberalismo, Marxismo, Conservadorismo
e Colonialismo, respectivamente.
Mignolo, desenvolve ao longo de seu trabalho que o pensamento
decolonial é então o pensamento que se desprende e se abre da visão eurocêntrica, inclusive se diferencia dos estudos e da teoria pós colonial ao
romper com os autores do pós estruturalismo francês (Foucault, Lacan e
Derrida). A emergência do pensamento decolonial é, portanto, um giro
epistêmico decolonial trazendo em si mesmo sua própria genealogia, consequência da formação e instauração da matriz colonial de poder (MIGNOLO, 2007, p. 28).
É preciso desprender-se das vinculações da racionalidade moderna e
como alternatividade aos ciclos de colonização se faz necessário destruir a
colonialidade do poder mundial (QUIJANO, 1992, p. 437) como consequente mudança, adaptação e novas modalidades de colonialidade desde
as expansões imperiais.
Para Ballestrin (2003, p. 106), é de suma importância autores de
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no contexto da modernidade eurocêntrica denunciaram o sofrimento
humano, como Las Casas e Marx. Sendo Bartolomé de Las Casas responsável por inúmeros relatos da interação europeia com os povos originários
do Sul, e Karl Marx o autor de inúmeras obras descrevendo as condições
de vida do proletariado oprimido europeu. Em razão destas denúncias é
que foi possível uma longa construção sociopolítica e cultural na conquista
por Direitos Humanos Fundamentais, em defesa de uma vida digna para
todas os seres humanos.
Ainda, conforme Quijano (1992, p. 16), a colonialidade da estrutura de poder hegemônica é expressada através do paradigma europeu de
conhecimento racional, o qual foi elaborado com o intuito de ser parte
de uma estrutura de poder que implica na dominação colonial. E, desta
maneira, é colocada a contra cultura de resistência ao poder hegemônico
capitalista, com ênfase na emancipação dos povos originários, baseado
em tratados internacionais ratificados por inúmeros países, inclusive o
Brasil, e que, todavia, não são cumpridos na realidade jurídica, tampouco
na realidade empírica. E é neste sentido, que a Encíclica Laudato Si, busca
conceber a sociedade latinoamericana e afriacana como um macro sujeito
histórico, onde a alternatividade possível é a destruição da estrutura de
dominação da colonialidade do poder mundial.
Para tanto, através da Encíclica Papal é denunciado as relações de colonialidade presentes até os dias de hoje na grande maioria
dos países africanos, asiáticos e latinoamericanos, as quais mantêm e
reproduzem discriminações étnicas, de gênero e de classe, impossibilitando e suprimindo qualquer manifestação de diversidade cultural. Segundo o Papa Francisco, é necessário denunciar e resisitir à essas relações de colonialidade, a fim de assegurar direitos já
consagrados e reconhecidos internacionalmente, como o direito à Livre
Determinação, à Identidade, ao Território, à Dignidade da Pessoa Humana,
ao Meio Ambiente sadio e equilibrado não só para as presentes, mas também para as futuras gerações.
Na busca por uma outra racionalidade que possa legitimar as relações, com suas diversas orientações culturais, a América Latina encontra-se em processo de liberação social de todo poder organizado como
desigualdade, como discriminação, como exploração e como dominação
(QUIJANO, 1992, p. 17). Para tanto, o “giro decolonial”, proposto por
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Luciana Ballestrin, defende a “opção decolonial” epistêmica, teórica e
política das sociedades colonizadas, através da identificação e da superação
da colonialidade do poder, do saber e do ser.
O pós colonialismo surge a partir da identificação de uma relação
antagônica por excelência, entre colonizado e colonizador. Faz referência
a um período histórico posterior aos processos de descolonização do chamado “terceiro mundo” ou países subdesenvolvidos, a partir da metade do
século XX. Temporalmente, tal ideia refere-se, portanto, à independência,
libertação e emancipação das sociedades exploradas pelo imperalismo e
neocolonialismo, com a superação das relações de colonização, colonialismo e colonialidade (BALLESTRIN, 2013, p. 90).
No entendimento de BALLESTRIN (2013, P. 91), a relação
colonial é uma relação antagônica, a qual foi profundamente combatida por movimentos epistêmico, intelectuais e políticos, como por
exemplo o Grupo de Estudos Subalternos, formado em 1970 no sul
asiático, sob a liderança de Ranajit Guha e, posteriormente, difundida ao redor do mundo na sociedade acadêmica, literária, artística, civil e em movimentos sociais em defesa dos direitos daqueles
invisibilizados e postos à margem da sociedade. Através da construção de
um novo paradigma epistêmico, teorias pós coloniais e decoloniais surgem
com o intuito de romper com a reprodução dos padrões eurocêntricos de
colonialidade.
Rompendo com a tradição eurocêntrica, a própria noção de colonialidade está assentada na denúncia ao capitalismo e à lógica da colonialidade e da Modernidade, porém, a questão não está em abandonar os
aportes dos países do Norte obtidos até os dias de hoje, senão de respeitar
os princípios de Soberania e Livre Determinação dos povos originários,
a fim de que estes possam escolher livremente o seu próprio desenho de
desenvolvimento, independentemente do viés econômico dado por uma
sociedade hegemômonica, ocidental e capitalista.
Elaborar projetos e políticas públicas voltadas para os países do Sul
e desta maneira combater as relações de colonialidade apresentadas na
atualidade sob a forma de trabalhos em condições análogas à escravidão,
destruição dos recursos naturais, genocídio dos povos originários e suas
identidades, de seus territórios ancestrais e cosmovisões próprias.
A Encíclica denuncia como a poluição, as mudanças climáticas, a
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perda da biodiversidade e a deterioração da qualidade de vida humana estão
relacionadas ao padrão de desenvolvimento adotado, o qual está baseado
no uso desenfreado de combustíveis fósseis, bem como no uso indiscriminado da terra para fins agrícolas, acarretando na crise ecológica global.
As mudanças climáticas, o derretimento das calotas polares, o desflorestamento, a extinção da fauna e da flora, o genocídio dos povos tradicionais, são tristes realidades decorrentes da herança colonial e do modelo
de desenvolvimento global que é imposto desde os países do Norte para
os países do Sul, constituíndo a dialética dos opressores e oprimidos, as
quais ao longo dos séculos vêm sendo reformuladas em novos discursos e
novas justificativas para as mesmas explorações desenfreadas e desmedidas
para com a natureza, violando inúmeros Direitos e Princípios consagrados em normativas jurídicoadmnistrativas por organismos internacionais
e diversos Estados que ratificaram tais instrumentos internacionais, em
defesa dos Direitos Humanos Fundamentais, positivado na Constituição
Federal Brasilera de 1988.
Conforme o Direito Comparado, tomando como exemplo o caso
da Constituição Federal do Equador e da legislação da Bolívia, a Natureza é uma extensão dos seres humanos por ser em si parte da Criação, e
portanto, na racionalidade jurídica é plenamente cabível a Natureza ser
em si um sujeito de direitos perante o Estado Democrático, fazendo com
que o Estado seja não apenas plurinacional juridicamente, mas interculturalmente reconhecido.
Nesta perspectiva, a Encíclica Laudato Sí apresenta a crise ecológica
atual como uma denúncia ao modelo de desenvolvimento econômico hegemônico capitalista, o qual promove a extinção da fauna, flora, poluição dos
recursos hídricos, e inúmeras violações aos direitos humanos, ratificados
em Tratados Internacionais por diversos países, sendo um deles o Brasil.
Por fim, o Papa Francisco demonstra através da Encíclica que há
alternatividades possíveis para o modelo em vigência, como o desenvolvimento sustentável, saudável e humano, voltado para a decolonização dos
padrões eurocêntricos impostos às sociedades latinoamericanas, africanas e
asiáticas desde os primeiros ciclos do colonialismo. As teorias e os estudos
decoloniais rompem com o eurocentrismo e visam superar as sequelas
do desenvolvimento econômico, apresentando alternatividades possíveis
como novos rumos decoloniais para o desenvolvimento de cada território.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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O DISCURSO DO DESENVOLVIMENTO E OS RUMOS
DECOLONIAIS
Discutir desenvolvimento implica identificar seu conteúdo e as práticas sociais e políticas a fim de alcançá-lo. Neste sentido, é possível remontar
historicamente a construção do conceito e a modificação contínua de
sua substância, desde um desenvolvimento entendido estritamente como
crescimento econômico, perpassando um desenvolvimento viável ou sustentável até teorias dependentistas e pós-desenvolvimentistas.
Aponta-se como marco importante para esse debate, o discurso do
presidente norte-americano Harry Truman em 1949, em que houve a menção pela primeira vez da ideia de subdesenvolvimento, ao se referir a “áreas
subdesenvolvidas”, as quais deveriam fazer parte de um novo programa
de expansão, que as beneficiasse com os avanços científicos e o progresso
industrial dos “países desenvolvidos”, coincidentes com os países do norte
do globo (ESCOBAR, 2014, p. 25), (GUDYNAS, 2011, p. 22).
Neste discurso se nota o raciocínio que estabelece o desenvolvimento
como correspondente ao progresso industrial e avanços científicos, terminando o nível de desenvolvimento de um país com base em seu crescimento
econômico.
Assim, em um primeiro momento, o desenvolvimento é relacionado
a um processo de evolução linear e “essencialmente económico, mediado
por la apropriación de recursos naturales, guiado por diferentes versiones de
eficiencia y rentabilidade económica, y orientado a emular el estilo de vida
occidental” (GUDYNAS, 2011, p. 23).
Opera-se daí em diante a alteração discursiva desse padrão de desenvolvimento, que foi localizado por Escobar no seio da teoria da modernização, gestada nos anos 50 e 60 e que acreditava nos benefícios inevitáveis
do capital, da ciência e da tecnologia (ESCOBAR, 2014, p.26).
Posteriormente, nos anos 60 e 70, a partir do pensamento de teóricos latino-americanos, ligados à CEPAL, como Raúl Prebisch, se dá
início às teorias dependentistas. A teoria da dependência trata o subdesenvolvimento como resultado do crescimento econômico baseado no
colonialismo e no imperialismo dos países desenvolvidos (GUDYNAS,
2011, p. 24). Ela se volta, portanto, criticamente à exploração econômica
realizada sobre os países periféricos
DIREITO E O CUIDADO COM A CASA COMUM: A CRISE ECOLÓGICA E OS CAMINHOS DO
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Escobar (2014, p.27-28) tece críticas à teoria da dependência, anotando que sob este ponto de vista o problema não se põe no desenvolvimento, que até então não tem seu conteúdo questionado, mas sim no
capitalismo – a demonstrar, assim, a forte tendência de propostas desenvolvimentistas socialistas como solução à situação dos países periféricos
amarrados às potências econômicas, sem refutar, contudo, a relação do
progresso com o engrandecimento econômico.
Nota-se que o debate travado sobre os rumos do desenvolvimento
até este momento não conjuga a variável ambiental, se prostrando apenas
diante de fatores econômicos e, quando muito, das consequências sociais
do fenômeno do crescimento.
Apenas nos anos 70 é que surge a discussão sobre os limites do crescimento. Na conferência de 1972 em Estolcomo se passa a questionar
e rediscutir os padrões de desenvolvimento, com resultados formalizados em 1987 por meio do relatório da Comissão Mundial sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento - chamado de Relatório Bruntland sobre o
Nosso Futuro Comum. Esse Relatório é que formula as bases do conceito
de desenvolvimento sustentável, consistente na satisfação dos interesses
das presentes gerações sem comprometer as necessidades das gerações
ainda por vir - numa ideia de fraternidade intergeracional (HACON,
LOUREIRO, 2014, p. 60).
No entanto, é possível perceber que o discurso do desenvolvimento
sustentável pode ser interpretado por viés de cunho tão só mercadológico,
onde há a busca por compatibilizar os interesses da produção do capital
com a manutenção da natureza, que é a sua fonte de matéria-prima e de
exploração, além de ter sido formulado sob o contexto da confluência de
poderes e preocupações dos países do norte, tido como desenvolvidos, em
sua origem colonizadores e imperialistas – o que importa na essência do
desenvolvimento sustentável ter relação direta com as relações de colonialidade, pois fruto de interesses ocidentalizadores.
É nesse sentido que Mignolo (1998) trata o desenvolvimento como
um projeto ocidentalizador, da mesma forma do que antes já foi proposto
com os fenômenos chamados de “cristianização” e “missão civilizadora”.
O desenvolvimento, inclusive o chamado sustentável, parte da Europa e
dos países tidos por “desenvolvidos”, portanto.
Quijano (2005, p. 107) aponta que o padrão de poder mundial,
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exercido por meio das relações de colonialidade, se fundamentam na lógica
mercantil e em torno do capital e do mercado mundial, ou seja, no modo
de produção capitalista, pautado na exploração do trabalho.
Desse modo, a fim de demonstrar a importância do pensamento
decolonial, importa acentuar que o suporte jurídico e toda a estrutura em
que se funda o Direito, foi também importado dos colonizadores.
Conforme pontua Quijano (2005, p. 113) o padrão mundial de
poder se expressa nos âmbitos da existência social, se fazendo presente e
controlando as relações sociais correspondentes. Assim, no controle das
relações de trabalho, de produção de recursos e produtos, tem-se a empresa
capitalista; quanto ao sexo, há a família burguesa; para as relações de autoridade há o Estado-nação; e na intersubjetividade, impera o eurocentrismo.
Desse modo, nota-se que o Estado-nação não teve uma criação natural e difusa sobre o globo, mas foi transposto pelos europeus aos colonizados. Do mesmo modo, o Direito se fundamenta em criações estranhas
aos povos nativos da América, pois se pauta fundamentalmente no direito
de propriedade – fenômeno da modernidade e que adquire sentido mais
bem definido na Europa do século XVI (SOUZA FILHO, 2003, p. 17).
Por isso, esse Direito, como construção fundada na propriedade
privada e no contrato, se apresenta como modelo sobreposto à realidade
latino-americana – que desconhecia tais institutos até a chegada europeia.
Neste sentido é que trabalha Souza Filho (2011, p. 27-47) ao revelar a
invisibilidade de direitos coletivos para o mundo jurídico, já que este é
fundado por um modelo essencialmente individualista e que se fundamenta na propriedade privada em prol do capital.
Com isso em mente, é possível analisar a inserção do desenvolvimento no seio da normativa constitucional brasileira, de modo a perceber
o crescente espaço que ocupa a natureza no ordenamento jurídico.
Toma-se que o tema do desenvolvimento não pode ser compreendido
por um raciocínio disciplinar, pois consiste em fenômeno complexo de
ordem ideológica, jurídica e política (FOLLONI, 2014, p. 64). Diante
disso é que Folloni aponta ter a discussão sobre o desenvolvimento base
ideológica, sendo que com a promulgação da Consituição Federal de 1988,
que seria a primeira constituição “fortemente desenvolvimentista”, a temática passa a ter caráter também jurídico.
Nesse sentido é que Folloni identifica de que forma o desenvolvimento
DIREITO E O CUIDADO COM A CASA COMUM: A CRISE ECOLÓGICA E OS CAMINHOS DO
172 | ODESENVOLVIMENTO
é tratado no documento constitucional de 1988, no qual há a quebra da
noção prevalente nas constituições anteriores, que davam conta do desenvolvimento econômico. A partir de 1988 fala-se em um desenvolvimento
não mais adjetivado, sem a qualificação de desenvolvimento econômico,
como se percebe no texto do art. 3º da Constituição. Contudo, tal qualificação se mostra em detalhes no decorrer do texto normativo, no qual
assume caráter amplo, de cunho social e voltado à sustentabilidade (FOLLONI, 2014, p. 64).
No entanto, para este autor, a conclusão de que o crescimento econômico foi dissociado do desenvolvimento prescrito na Constituição é
errôneo, já que ela apenas ampliou o leque de possibilidades de fomento e
desenvolvimento, estendendo sua atenção à parte negligenciada de conteúdos até então, como a natureza e o meio ambiente como direitos difusos
(FOLLONI, 2014, p. 80).
Há um exemplo em que o acima exposto se mostra evidente. De
fato, a Constituição da República garante mecanismos para o funcionamento e o fomento da economia, com vistas ao crescimento econômico
e enriquecimento, como se percebe no capítulo sobre a ordem econômica
e financeira (art. 170 e seguintes) quando se menciona a livre iniciativa e
põe como princípios a livre concorrência e a propriedade privada.
Isso não é tudo, no entanto. No mesmo passo em que promove o
funcionamento do sistema econômico, a Constituição reconhece em diversos momentos a promoção de valores como o ambiente ecologicamente
equilibrado (como no art. 225) e a necessidade de observância de direitos
sociais (art. 6º), em busca da justiça social, o que é perceptível explicitamente no caput do art. 170, sobre a ordem econômica, que dá conta da
valorização do trabalho e da existência digna.
Vê-se que avanços são notáveis na Constituição Federal no que diz
respeito às suas predecessoras. Ela se abre à necessidade de repensar o
modelo de desenvolvimento meramente econômico e põe em pauta a
questão ambiental e a busca pela justiça social – ponto-chaves naquilo
que enuncia o Sumo Pontífice na Encíclica Laudato Si’ – todavia, ainda
não representa em plenitude a percepção de seu povo, no sentido de que
reflete os padrões estabelecidos pela colonialidade, como ocorre com toda
estrutura do Estado-nação e da lei – notando-se que as constituições da
Bolívia e Equador representam um afastamento significativamente maior
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 173
do que é observado no Brasil.
Para além do discurso do desenvolvimento sustentável, existem alternativas ditas pós-desenvolvimentistas e não eurocentradas. Dentre estas
estão os sistemas comunais, relacionados à propriedade e gestão coletiva
do espaço e dos recursos naturais por parte de grupos sociais específicos,
com lógicas divergentes da ideia de desenvolvimento, em que se busca
substituir progressivamente a economia capitalista e a democracia liberal
representativa por formas de economias comunitárias, pelo autogoverno
e pelo pluralismo cultural (ESCOBAR, 2014, p. 51).
Também, são alternativas que fogem à noção de desenvolvimento
original os chamados quadros comunitários e sociedades em movimento,
que levam em conta a existência de uma pluralidade de sociedades, uma
pluralidade de mundos, que buscam se organizar de formas diferentes, mas
que se relacionam, tendo em conta auto-organizações e formas de poder
não estatais, com uma territorialidade alternativa à do Estado; e o feminismo comunitário, que busca a despatriarcalização da vida, consistente
na crítica ao capital neoliberal e ao feminismo ocidental, construindo um
novo conceito para gênero, como categoria de denúncia (ESCOBAR,
2014, p. 52-56).
Por fim, a alternativa que vai no sentido perceptível da quebra com o
eurocentrismo e com o padrão das relações de colonialidade é a das ontologias relacionais e o pluriverso, que se pauta na existência das entidades
como realmente são no mundo, com o rompimento de dualismos criados
na modernidade mas que buscam integrar os sistemas duais (como por
exemplo, cultura versus natureza).
Segundo Escobar a globalização constante acarretou na imposição
do léxico individualista e a proposta das ontologias relacionais disso se
difere, e traz, por exemplo, a forma como se relacionam as comunidades
não inseridas na racionalidade moderna dualista e individualista, tais como
os territórios tradicionais, em que as comunidades se relacionam com a
terra observando-a como espaço-vital, ou seja, em constante relação com
o mundo natural. A fórmula do pluriverso pode ser dada pelos zapatistas
como “um mundo em que quepan muchos mundos” (ESCOBAR, 2014,
p. 59).
É possível perceber que o eurocentrismo é a perspectiva de
pensamento que perpassa o discurso desenvolvimentista e que também
DIREITO E O CUIDADO COM A CASA COMUM: A CRISE ECOLÓGICA E OS CAMINHOS DO
174 | ODESENVOLVIMENTO
está presente na construção do Direito, erigido sobre institutos frutos da
racionalidade moderna - à parte disso, ele ainda representa instrumento
de mudança social, capaz alterar a racionalidade do Estado em relação aos
seus povos e à sua natureza.
De todo modo, o desenvolvimento presente nos diplomas legais goza
de dupla adequação no padrão eurocentrado de poder – primeiro porque
o discurso desenvolvimentista pode ser entendido como retórica colonizadora e também porque se sedimenta na construção legal de base europeia.
De(s)colonizar o pensamento, dessa forma, significa promover a
discussão de alternativas ao desenvolvimento insustentado, que aparta de
si a natureza, tratando-a como subsídio para a manutenção do sistema de
mercado, e que ignora a existência de outras formas de desenvolvimento
que não conjugam qualquer fator econômico, mas prezam pela vida, pela
natureza e pela cultura, tratados como conjunto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da constatação de que a Encíclica Laudato Sí: Sobre o Cuidado com a Casa Comum, denuncia o modelo de desenvolvimento atual,
em razão de suas consequências nefastas para a sociobiodiversidade global,
além de evidenciar a necessidade da mudança dos hábitos de consumo,
se concentra na urgência de discutir o modelo de produção globalmente
assumido, pautado na exploração desmoderada da Natureza.
A manifestação do Pontífice denuncia como a poluição, as mudanças
climáticas, a perda da biodiversidade e a deterioração da qualidade de vida
humana estão relacionadas ao padrão de desenvolvimento adotado, o qual
está baseado no uso de combustíveis fósseis e no uso indiscriminado da
terra para fins agrícolas, acarretando assim na crise ecológica global.
Neste artigo houve a retomada de tal discussão, no qual o conceito de
desenvolvimento foi questionado à luz da Constituição Federal brasileira
de 1988, relacionando-o com o sistema de dominação de uma sociedade
sobre outras. Buscou-se analisar o modelo desenvolvimentista importado
pelo Brasil e seus mecanismos de interação com o meio natural, a fim de
demonstrar como a réplica do paradigma eurocêntrico mostra-se ineficaz
socioambientalmente, para então, através de uma perspectiva decolonial,
apresentar algumas linhas de ação e orientação.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 175
A proposta epistemológica do pensamento decolonial permite examinar a realidade ciente da configuração do sistema-mundo e das relações de colonialidade do poder, saber e do ser historicamente travadas,
tornando-se pano de fundo para o presente debate. Na busca por um
modelo compatível com o bem comum, os esforços voltados a encontrar
alternativas se apresentam como meio de resistência ao eurocentrismo.
Assim como a Encíclica Papal, o Direito tem o condão de denunciar
as injustiças socioambientais, mapear os conflitos de desigualdades e opor
resistência ao modelo de desenvolvimento hegemônico, propondo possíveis alternatividades baseadas em um desenvolvimento sáudavel e humano,
sustentável e integral, a partir de estudos decoloniais latinoamericanos.
O Direito, através das construções historicopolíticosociais, positivou
os Direitos Humanos em instrumentos jurídico normativos internacionais,
tais como a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho;
a Declaração das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, bem como
Sobre os Direitos dos Povos Indígenas e Tribais; a recente Declaração
Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada na data de 15
de junho de 2016, em Santo Domingo, capital da República Dominicana,
dentre outros.
Os Direitos Humanos foram recepcionados nas Constituições Federais de diversos países, inclusive o Brasil, e elevados à categoria de Direitos
Fundamentais e princípios constitucionais, a fim de assegurar que não haja
retrocesso historico na conquista desses direitos é que está dirigido o apelo
do Papa Francisco, para que seja revisto o modelo de desenvolvimento e
superada a crise ecológica para o cuidado com a Casa Comum.
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DIREITO E O CUIDADO COM A CASA COMUM: A CRISE ECOLÓGICA E OS CAMINHOS DO
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O LIXO E OS RESIDUOS: IMPRESSOES ECOLOGICAS
E CULTURAIS NO TRATO DA CASA COMUM
BASURA Y DESECHOS: LIGERO VÍAS ECOLÓGICAS
Y CULTURALES DE CASA COMÚN
Fábia Ribeiro Carvalho de Carvalho1
Robéria Silva Santos 2
RESUMO: O termo ‘ecologia profunda’ foi cunhado por Arne Naes e
definia-se por intermédio do fundamento de uma consciência ecológica
profunda em substituição de uma mera concepção ecológica científica.
Nessa linha de pensamento, as vidas humana e não humana possuem
valores intrínsecos independentes do utilitarismo, ressaltando que os
humanos não teriam o direito de reduzir a biodiversidade exceto para
satisfazer as necessidades vitais, requerendo, assim, o estabelecimento
de políticas que alterem as estruturas econômicas e ideológicas. A Lei
nº 12.305, de 2 de agosto de 2010 que instituiu a Política Nacional dos
Resíduos Sólidos constitui no ordenamento jurídico um marco legal que
ao mesmo tempo fixa normas gerais para a atuação do poder público e
da sociedade no campo dos resíduos sólidos. A política em questão inaugura uma concepção retorica que está entre a inclusão social e a defesa
de instrumentos econômicos com mecanismo de proteção do ambiente
substituindo a nomenclatura ‘lixo’ por ‘resíduos’, sem, no entanto, rever
os pressupostos ecológicos de proteção do ambiente. O presente artigo
tem como objetivo analisar a inserção da Política Nacional de Resíduos
Sólidos e sua localização como política pública de cunho ambiental no
Brasil seus mecanismos concretos de operação e seu impacto, bem como
a inexistência de pressupostos ecológicos e culturais a nortear sua aplicação. Nesse contexto objetiva-se demonstrar que os resíduos sólidos então
passam a ser alvo de regulamentação na medida em que são produzidos no
universo das interações humanas e da biosfera, gerando inúmeros conflitos
e patologias sociais, que não são devidamente enfrentadas pela Política
nacional de resíduos sólidos.
PALAVRAS-CHAVE: cultura; ecologia; lixo; resíduos.
180 | O LIXO E OS RESIDUOS: IMPRESSOES ECOLOGICAS E CULTURAIS NO TRATO DA CASA COMUM
RESUMEN: El término “ecología profunda” fue acuñado por Naciones Arne
y esbozó través de la fundación de una conciencia ecológica profunda en lugar
de un simple diseño ecológico científica. En esta línea de pensamiento, las
vidas humanas y no humanas tienen valores intrínsecos independientes del
utilitarismo, señalando que los seres humanos no tienen derecho a reducir la
biodiversidad, salvo para satisfacer necesidades vitales, por lo que requiere el
establecimiento de políticas que cambian las estructuras económicas e ideológico. Ley N ° 12.305, de 2 de agosto, de 2010, que estableció la Política
Nacional de Residuos Sólidos está en la ley de un marco legal, al mismo
tiempo establece las normas generales para la realización del gobierno y la
sociedad en el campo de los residuos sólidos. La política en cuestión se abre una
concepción retórica que se encuentra entre la inclusión social y la defensa de los
instrumentos económicos para la protección del medio ambiente mecanismo de
sustitución de “residuo” la nomenclatura de «residuos», sin que, sin embargo,
se revisan las hipótesis ecológicas protección del medio ambient. Este artículo
tiene como objetivo analizar la inclusión de la Política Nacional de Residuos
Sólidos y su ubicación como una política pública de carácter ambiental en
Brasil sus mecanismos concretos de la operación y sus efectos, así como la falta
de hipótesis ecológicas y culturales para orientar su aplicación. Que el objetivo
es demostrar que el contexto de residuos sólidos luego se convierten en objetivo
regulatorio en que se producen en el universo de las interacciones humanas
y la biosfera, provocando numerosos conflictos y las condiciones sociales, que
no se abordan adecuadamente por la política nacional de residuos sólidos.
PALABRAS CLAVE: la cultura; ecología; residuos; residuos.
INTRODUÇÃO
O universo do consumo se apresenta em meio a discrepâncias qualitativas fundamentais que demandam análise de seu contexto originário
bem como de sua normatização. O consumo como característica predominante da sociedade atual possui padrões, limitações e restrições que, no
entanto surgem de modo alheio às implicações existenciais e ambientais.
Tais implicações funcionam como vetores necessários dessa avaliação do
consumo enquanto objeto, cotejando o cenário consumerista bem como
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 181
de seu personagem principal, qual seja, o consumidor.
O consumo se apresentaria em escalas de intensidade consistindo
tal tarefa em um mecanismo importante na definição do que é consumo,
bem como na validade de um consumo inicial qualitativamente configurado como não-consumo, tanto quanto na representação dos níveis de
consumo e na polarização da sociedade a partir da figura dos produtores
e consumidores.
Avalia-se o consumo como uma atividade paradoxal, por ser um
meio pelo qual se busca satisfazer as necessidades humanas, bem como
por ser uma atividade que não logra êxito sem trazer consigo um conjunto
de comportamentos nefastos ao indivíduo-consumidor. Antes origina
uma série de atos encadeados que se guardam estreita coerência com o
modo de produção capitalista, seu ambiente confortável, provocando uma
visualização utópica da sociedade de consumo pautada na abundancia e
do consumidor no seu ângulo difuso.
Assim, propoe-se uma análise do homem como componente de uma
comunidade, como importante ator social, e destaca a importância do
consumo minimamente sustentável que se revela por razões utilitárias.
Assevera haver possibilidade de ambientar o consumo imprimindo-lhe
características comunitárias avessas aos excessos, mas dependente de uma
tomada de decisão que mescla em simbiose indivíduo e meio ambiente.
O cenário da globalização por vezes mascara as possibilidades reais
de efetivação do consumo sustentável que é mais factível no contexto local,
e é compatível com o cotidiano das populações tradicionais. Entretanto,
vislumbra-se que o custo bem como o ritmo da promoção do consumo nos
moldes da sustentabilidade é inverso às analises da relação custo-benefício
sob o aspecto exclusivamente econômico.
Impõe-se, assim, ao Estado a função de regular e promover mudanças
no contexto produtivo, disciplinar as práticas mercadológicas e a promoção de alterações no comportamento predatório das grandes empresas. Em
contrapartida, a conscientização e educação da sociedade para o consumo
consciente, com a capacidade de reação diante da pressão desenvolvida por
estes na direção necessária.
Várias são as consequências das mediações simbólicas do mercado de
consumo decorrentes das relações sociais e da promoção de uma cultura.
A cultura do consumo em detrimento das demais ou ainda dos efeitos
182 | O LIXO E OS RESIDUOS: IMPRESSOES ECOLOGICAS E CULTURAIS NO TRATO DA CASA COMUM
destrutivos do consumismo no desaparecimento das culturas tradicionais
que na conformidade atual tendem a desaparecer, por serem insignificantes para o mercado de consumo. Denota-se, assim que a representação
do consumidor se dá ora como sujeito ora como objeto, decorrentes das
restrições impostas à identidade.
Objetiva-se delinear a possibilidade de alteração nos padrões do
consumo de modo a que este se amolde ao uso sustentável dos recursos
em substituição ao consumo patológico. E ainda considerar como comportamento adequado ao paradigma da sustentabilidade a existência de
uma sociedade de consumo que, no entanto, não se guie meramente por
ponderações imediatistas voltadas apenas as satisfações das necessidades,
mas, principalmente para diversidade social. Assim apresenta estratégias de
consumo possíveis que se estribam em comportamento proativo voltado
para beneficiar o indivíduo e sua relação com o meio, ambientando-o.
Assevera ainda acerca da Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010 que
instituiu a Política Nacional dos Resíduos Sólidos é referencial legal, de
aspecto inovador para o qual convergem os instrumentais necessários ao
trato da problemática da geração de resíduos sólidos no Brasil. Trata-se de
política pública que congrega princípios, metas, objetivos e instrumentos
vários dos quais dispõem o poder público e demais sujeitos para a realização de preservação do ambiente.
No entanto, considerando-se como posto o seu caráter eminentemente inovador e referencial resta averiguar quais os seus pressupostos
de forma enquanto política ambiental. Nesse passo destacam-se alguns
elementos que se pretende averiguar a saber, a sustentabilidade, o desenvolvimento sustentável e a biodiversidade analisando-se qual o espaço de
interlocução de tais elementares com os objetivos propostos na Política
Nacional de Resíduos Sólidos.
A Política Nacional Resíduos Sólidos contém menção a sustentabilidade no seu art. 3º inciso XI, quando indica que suas dimensões devem
servir de parâmetro para ações que visem estabelecer condutas tendentes
a solucionar os problemas existentes pertinentes à temática dos resíduos
sólidos no Brasil. No inciso XIII do mesmo artigo, no art. 7º inciso III e
XI, alínea b, destaca-se ainda que a produção e o consumo devem se pautar
em padrões sustentáveis. No artigo 6º, inciso III da referida Política a visão
sistêmica aparece como um critério balizador da gestão de resíduos sendo
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 183
alçado à condição de princípio.
O desenvolvimento sustentável indicado no inciso IV do art. 6º da
Lei 12. 305 de 2010 constitui elemento por meio do qual se deve nortear
a atuação de todos os sujeitos que se envolvem no processo de geração de
resíduos ou dos que desenvolvem ações relativas à gestão integrada ou ao
gerenciamento dos resíduos sólidos.
Por fim tem-se que a carta encíclica “Lautado Si” uma carta destinada
a humanidade pelo Papa Francisco revoluciona a compreensão ambiental,
até mesmo o que há de mais moderno no conhecimento cientifico sobre
o meio ambiente.
O texto se inicia dirigindo-se à humanidade, conferindo a tônica
universal, por meio de um paradigma que se opõe ao racismo ambiental,
ao raciocínio ecológico baseado em mitos tal como prega.
No entanto, a proeminência da encíclica sobreleva-se elencando
valores que denotam partes do todo que traduz a biodiversidade, entre
os quais: os valores ecológicos, social, econômico, científico, cultural e
estético da diversidade biológica, destacando principalmente seu valor
intrínseco.
DO “LIXO” AOS “RESIDUOS”: CONSUMO, SUSTENTABILIDADE E O CUIDADO COM A CASA COMUM
Na declaração universal dos direitos da mãe terra, identifica-se a terra
como uma comunidade e indivisível e auto-regulada de seres inter-relacionados, afirmando-se que cada ser define a si mesmo a partir das suas
relações como parte integrante do todo. Identifica-se uma subjetivização
da terra, que decorre de ter ela mesma a substancia com que se forma os
demais seres, tal qual o ser humano. Estabelece nesse contexto uma relação
de responsabilização entre os seres que habitam e a terra, relação que cria
obrigações reciprocas (BRASIL, 2009)
De igual forma a carta da terra identifica a humanidade como parte
de um vasto universo em evolução, que se constitui em matéria viva com
uma comunidade de vida única. Ressalta que a capacidade de recuperação da comunidade da vida e o bem-estar da humanidade dependem da
preservação de uma biosfera saudável com todos seus sistemas ecológicos.
Destacando que o meio ambiente global com seus recursos finitos é uma
184 | O LIXO E OS RESIDUOS: IMPRESSOES ECOLOGICAS E CULTURAIS NO TRATO DA CASA COMUM
preocupação comum de todas as pessoas (BRASIL, 2000)
A carta encíclica Laudato Si, refunda a relação entre seres, os inserindo em nível importância igualitário, destacando ainda uma relação
simbiótica, entre a terra e demais seres que dela surgem a quem ela materna.
Destaca o texto mencionado que os seres humanos são terra, porquanto
seus corpos são constituídos pelos elementos do planeta posto que o seu ar
permite a respiração e a sua água vivifica e restaura. Francisco ressalta que
o ser humano precisa se dar conta de significados outros do seu ambiente
natural, para além daqueles que servem somente para os fins de um uso ou
consumo imediatos, sublinhando a necessidade de que o home se integre
em uma conversão ecológica global. A destruição do ambiente humano é
um fato muito grave porque a própria vida humana é um dom que deve ser
protegido de várias formas de degradação. Assim deve haver uma mudança
profunda nos estilos de vida, nos modelos de produção e de consumo, nas
estruturas consolidadas de poder, que hoje regem as sociedades. (FRANCISCO, 2015)
O texto da Encíclica destaca que Bartolomeu considerou as raízes
éticas e espirituais dos problemas ambientais, indicando a necessidade de
mudança do ser humano sob pena de não gerar alteração substancial no
processo de degradação e apenas nos sintomas. Propôs-nos passar do consumo ao sacrifício, da avidez à generosidade, do desperdício à capacidade
de partilha pautando a relação entre terra e seres humanos na concepção
da entrega daquele em face desta num movimento de reciprocidade e recuperação da relação predatória (FRANCISCO, 2015)
As questões ambientais relacionadas à conservação da natureza estão
entre as mais críticas para a humanidade neste início de milênio, pois afetam as condições de sobrevivência da vida sobre a terra e as relações entre
grupos sociais e sociedades. De tais relações emergem questões afeitas
a atuação do homem sobre objetos que resvala na sua atuação sobre si
mesmo.
Nesse contexto relacional destaca-se a regulamentação da Lei 12.305
de 2 de agosto de 2010 que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos
que emerge como um repositório de princípios, diretrizes, metas e instrumentos voltados para a identificação de processos que se desenvolvam
sobre objetos denominados como resíduos sólidos o que conceitua em
seu artigo 3º inciso XVI indicando que se trata de material, substancia,
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 185
objeto ou bem descartado resultante das atividades humanas em sociedade.
A identificação de objetos em vias de descarte pela Política Nacional
de Resíduos Sólidos confere uma nova qualificação para o lixo, que ocorreu
a partir do crescente conhecimento das implicações sobre o ambiente bem
como em função do aumento do volume de resíduos a serem dispostos,
agregado ao aumento da consciência ambiental. (DEMAJOROVIC,
1995, p.89)
A regulamentação contida na Lei 12.305 de 2010 objetiva induzir
um processo de alteração na consciência ambiental de forma a produzir
um comportamento menos impactante e mais responsável no trato do
ambiente natural e social. A atuação do homem sobre tais materiais está
explicitada na lei desde o espaço privado até o espaço público. Jacques
Demajorovic explica que por meio de condutas consistentes na coleta,
tratamento e disposição adequada dos subprodutos e produtos finais do
sistema econômico visa-se o estabelecimento de novas prioridades de gestão de resíduos bem como a redução da produção. (1995, p.90)
O consumo sustentável origina-se na escolha de produtos que reduziram a utilização de recursos naturais em sua produção bem como que
garantiram o emprego consistindo ainda em bens de reciclagem facilitada.
As facetas do consumo qualificado pela sustentabilidade se expressam por
meio do consumo consciente, consumo verde e do consumo responsável
(BRASIL, 2016).
Os excessos do consumo são combatidos quando se considera uma
tomada de decisão ambiental que a seu turno introduz teorias que não
raro situam-se na melhoria da interação homem - ambiente e homem –
homem (MORAN, 2011).
O futuro do meio-ambiente é gênero que situa no futuro do indivíduo comunitário a sua mais visível espécie haja vista os efeitos da imensa
gama de catástrofes ambientais como úteis a deflagrar a conscientização
da coletividade sobre os problemas ambientais (PORTILHO, 2010).
Assim conscientiza-se o indivíduo como meio de realizar a proteção
ambiental universal de modo sustentável. Parte-se da correção das pequenas idiossincrasias consumistas locais como meio de alcançar a sustentabilidade do planeta.
A compreensão das dificuldades, contudo, existentes acerca da
questão ambiental emergem num contexto macro e sob a perspectiva
186 | O LIXO E OS RESIDUOS: IMPRESSOES ECOLOGICAS E CULTURAIS NO TRATO DA CASA COMUM
globalizada muito mais do que a partir das necessidades localizadas,
embora estas também se façam sentir e ademais surjam não só num cenário
pós-catástrofes como reação coletiva, mas, sobretudo, de modo homeopático e contínuo ante a percepção das deficiências gradativas resultantes
num quadro de escassez generalizada.
As atividades dos indivíduos e das unidades domésticas têm um
impacto profundo sobre o ambiente, os comportamentos individuais
causam impacto significativo e direto no agregado em áreas como transporte, habitação, consumo de energia, resíduos sólidos, água e alimentos
(MORAN, 2011).
A atuação dos indivíduos, isolada ou coletivamente, reflete significativamente sobre o ambiente natural ocasionando resultados que emergem
efetiva e imediatamente bem como se propagam ao longo prazo inexistindo conduta que não produza alteração no ambiente.
A conduta ambiental sob o prisma qualitativo se revela eminentemente enviesado pelas implicações econômicas assumindo o seu modo de
operar em ritmo acelerado bem como suas determinações quantitativas
situadas na busca da produção em larga escala, da otimização dos lucros,
na constante realimentação da produção a partir dos insumos, da padronização da relação custo-benefício alheando-se das abordagens ambientais
por razões que se explicam no efeito temporal das decisões ambientais que
costumeiramente ocorrem de modo longo.
O ambiente traduz com exatidão os benefícios e malefícios do consumo posto que é espaço onde há o acesso aberto sendo difícil impedir as
pessoas de usá-lo ou poluí-lo pondo o recurso em risco de uso exagerado
ou de consumo desmedido e sem o devido cuidado. Tem-se em análise que
a avaliação da deterioração dos recursos naturais requer o uso de métodos
que se adequem ao estado de desconhecimento da extensão dos danos
ambientais tais como a avaliação do custo-benefício (MORAN, 2011).
Parece que a logística da relação que há entre o custo e o benefício é o
inverso, se se tomar como parâmetro a esfera ambiental e sucessivamente a
esfera econômica, esta, exageradamente ampla do ponto de vista do acesso
em contrapartida há necessidade de que a tomada de decisão se desenvolva
de modo acelerado ao menos no seu início (MORAN, 2011).
Ao atender a proteção ao meio ambiente a urgência é visível no
momento exato da tomada de decisão, decisão, inclusive, que não pode ser
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 187
postergada, muito embora, na maioria das vezes se manifeste por meio de
planos de ação que se estendem no tempo. A ação tem ainda que ser compatível com a natureza evolutiva do sistema ambiental desenvolvendo-se
por meio de métodos que requerem flexibilidade com o fito de adequar-se
e readequar-se de modo permanente.
Segundo Hans Michael Van Bellen há destaque especial na promoção
de equilíbrio entre as dimensões econômicas, ambiental e social informando que o ponto central do teorema do desenvolvimento sustentável é
o arranjo entre as dimensões social e ecológica, e ainda fatores econômicos,
dos recursos vivos e não-vivos bem como as vantagens de curto e longo
prazo de ações alternativas (BELLEN, 2006).
Em termos de custo-benefício avaliações possíveis ou devem primar
pela abordagem econômica ou puramente ecológica, ou pela análise a
partir da economia política. Assim como aquilatar os ônus quantitativos
advindos da proteção à saúde e ao meio ambiente por meio de difusão
de práticas de consumo que visem controlar os desastres ambientais, tais
como, aquecimento global, escassez da água.
Para Emílio F. Moran os economistas criam preços artificiais para
quantificar benefícios à saúde e ao ambiente avaliando o quanto as pessoas estariam dispostas a pagar, salientando que existiriam ainda custos
advindos da própria implementação de uma política ecológica (MORAN,
2011).
A intervenção humana necessariamente impõe ao ambiente, inúmeras alterações além de produzir externalidades que afetam o ecossistema
como um todo, tal conduta quando dirigida pelo consumo demanda que
sejam analisadas as estruturas das técnicas da produção.
Nessa esteira de ideias está o consumo verde comportamento
empreendido pelo ‘consumidor verde’ que surgiu a partir da conjugação de
três fatores inter-relacionados, quais sejam: o ambientalismo público que se
detecta pelas preferencias públicas pela qualidade ambiental; a ambientalização do setor empresarial quando o setor empresarial se apropria de parte
do ideário ecológico por meio de inovações tecnológicas e a emergência
este último surge em meio a preocupação com o impacto ambiental de
estilos de vida e consumo das sociedades afluentes (PORTILHO, 2010).
O consumo deve ser revisto num contexto de definição que perpasse as diferenças existentes entre uso enquanto possibilidade de auferir
188 | O LIXO E OS RESIDUOS: IMPRESSOES ECOLOGICAS E CULTURAIS NO TRATO DA CASA COMUM
os préstimos produzidos pela coisa, e consumo, enquanto circunstância
que denota reiteração tanto quanto um desequilíbrio inicial e final como
característica preponderante desse vínculo.
O teor das considerações não raro situa-se nos modos de consumo,
quais os padrões do consumo coletivo e em que medida a conduta identifica a finitude dos recursos naturais. As estratégias comumente apresentadas ora dizem respeito a educação dos indivíduos enquanto vetores dessa
alteração substancial no panorama do consumo, ora nos mecanismos de
produção dos serviços e do produto alcançando ainda alterações no contexto dos instrumentos de participação do indivíduo no contexto político,
por meio da adoção de políticas públicas.
A adoção de medidas técnicas adequadas seria de eficiência parcial
e de curto prazo na solução de problemas ambientais posto que ao longo
prazo os efeitos dos níveis de consumo cada vez mais altos neutralizariam
as vitórias obtidas com a adoção de tecnologias mais eficientes (PORTILHO, 2010).
Ao consumidor a par da disponibilidade e efetivação de toda principiologia consumerista cabe proceder a mudanças comportamentais a nível
individual e coletivo de âmbito interno. Ademais não se ignora haver um
uso desigual dos recursos naturais numa escala mundial que em primeira
instância obstaculiza a revisão dos procedimentos de consumo, denotando
a necessidade de primeiramente equilibrar essa balança.
Se, no entanto, o equilíbrio numa escala ambiental macro dependa
de variáveis de difícil implementação a exemplo das questões culturais
e da globalização e seus efeitos, bem como das coalizões que se formam
no âmbito internacional, no contexto geográfico local há muito espaço a
ser preenchido apto a ser ocupado por todos, indivíduos e organizações
governamentais e não-governamentais.
Segundo Fátima Portilho (2010) o termo produção sustentável emergiu quando se cotejaram estratégias voltadas para uma ecologia industrial
haja vista considerar-se que os problemas ambientais se acentuam no contexto da esfera de produção.
Assevera ainda que o Relatório de Desenvolvimento Humano da
Organização das Nações Unidas publicado em 1998 prevê dirimentes para
o consumo que apregoa seja ele repartido numa distribuição equitativa
assegurando as necessidades básicas de todos e socialmente responsável
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 189
e sustentável, comprometido então com a presente e, futuras gerações.
Ora a sustentabilidade do consumo é reducionista, ou seja, os indivíduos devem consumir apenas para lhes possibilitar a existência básica o
que se afigura compatível com a conceituação internacional do consumo
esboçada no Relatório mencionado acima, fazendo supor então que esse
nível de consumo não é inadequado e garante mais do que a subsistência
bem como possibilita que uma proteção ampla uma vez que difusa que se
volta para todos indistintamente, abarcando locais e globais, tanto quanto
prevê uma titularidade efetiva e potencial a gerações presentes e futuras
respectivamente.
O consumo então se diferencia e se personaliza embora deva quanto
à sustentabilidade atender ao piso mínimo de modo indistinto quer em
âmbito nacional ou internacional, e local.
Há, portanto possibilidades de consumo que quando associadas ao
multiculturalismo e a identidade plural tendem a se amoldar com maior
facilidade às metas sustentáveis, haja vista que a estruturação interna das
comunidades é quase sempre se monta sobre a interação entre seus territórios, recursos naturais e conhecimentos.
O consumo se ambienta quando se efetiva por meio de técnicas de
manejo tradicional que incluem segundo Antônio Carlos Diegues domesticação e manipulação de espécies de fauna e flora, vinculadas às atividades
relacionadas à agricultura itinerantes, a introdução de espécies de árvores
frutíferas, a caça de subsistência, às técnicas de pesca e á utilização de
atividades que reúnem coleta e cultivo (2000). Consome-se menos e, no
entanto, há plena satisfação, consome-se e ao consumir se preserva porque
dessa prática sustentável depende a própria sobrevivência.
O consumo é então ambientado quando se localiza e o ambiente
não mais é apenas externo ou objeto, mas, antes é meio pelo qual se reproduz conhecimento, ressaltando-se como bem faz Juliana Santilli (2005) a
continuidade da produção desses conhecimentos depende de condições
que assegurem a sobrevivência física e cultural dos povos tradicionais
(DERANI, 2008).
TEORIAS ECOLOGICAS E ECOLOGIA INTEGRAL
A encíclica inaugura uma concepção baseada na ecologia integral
190 | O LIXO E OS RESIDUOS: IMPRESSOES ECOLOGICAS E CULTURAIS NO TRATO DA CASA COMUM
requer abertura para categorias que transcendem a linguagem das ciências exatas ou da biologia e nos põem em contato com a essência do ser
humano. Destaca a necessidade de que se desenvolva uma comunicação
com toda a criação, que ultrapasse uma mera avaliação intelectual ou um
cálculo económico, despertando-se para o cuidado com tudo o que existe.
(FRANCISCO, 2015)
O meio ambiente ecologicamente equilibrado é conclamado em
importante documento jurídico como bem de uso comum, constante do
rol de direitos que devem ser assegurados indistintamente a todos, consoante o art. 225 da Constituição Federal de 1988, destacando ainda que
tanto agentes da esfera pública quanto da esfera privada possuem responsabilidades quanto à sua preservação para as presentes e futuras gerações.
Estatui-se o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como
responsabilidade do Poder Público e da coletividade, aquele possuindo,
conforme Ferreira (2010), deveres específicos que deverão ser cumpridos
em um espaço de democracia ambiental.
Ao perscrutar os deveres constitucionais, tem-se o dever de preservar
e restaurar os processos ecológicos essenciais e de prover o manejo ecológico das espécies e dos ecossistemas, significando a garantia de proteção dos
processos vitais que tornam possíveis as inter-relações entre os seres vivos e
o meio ambiente, porquanto um ser vivo não pode ser visto isoladamente
como mero representante de sua espécie, devendo antes ser considerado
parte de um conjunto de relações que se articulam em todas as direções.
Em relação ao encargo do manejo ecológico, há a outorga ao Poder
Público da gestão planejada da biodiversidade, restando inclusa nesse
conceito a diversidade de espécies, genes e ecossistemas como elementos
que devem figurar conjuntamente, sob pena de esvaziamento parcial do
conceito de biodiversidade. O tratamento constitucional das partes que
compõem a biodiversidade de modo integrado denota estreita relação
entre os deveres ambientais do Estado, bem como a indivisibilidade do
bem ambiental (FERREIRA, 2010).
O ecologismo ou ambientalismo se expandiu como uma reação ao
crescimento econômico, de modo a ser possível distinguir algumas correntes principais que pertencem todas ao movimento ambientalista e em
maior ou menor medida se tocam em pontos específicos, como o “culto
ao silvestre”, o “evangelho da ecoeficiência” e o “ecologismo dos pobres”
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 191
(ALIER, 2012).
A defesa da natureza intocada, o amor aos bosques primários e aos
cursos d’água e a sacralidade da natureza fundada na incomensurabilidade
dos valores são concepções que denotam o culto ao silvestre, representado por Jonh Muir. Tal concepção foi posteriormente ampliada por Aldo
Leopold, que destacava não só a beleza do meio ambiente, mas também a
ciência da ecologia na qual se inseria a atribuição de funções várias para as
florestas, a saber, o uso econômico e a preservação da natureza (ALIER,
2012).
No âmbito da corrente que cultua o silvestre, houve espaço, embora
em tempos mais modernos, para o movimento da “ecologia profunda”, que,
representado no ativismo ocidental, propugna uma atitude biocêntrica
ante a natureza, contrastando com a postura antropocêntrica superficial
cuja principal proposta política consiste em manter reservas naturais, denominadas parques nacionais ou naturais livres da interferência humana,
suportando ainda gradações a respeito das proporções que as áreas protegidas toleram em termos da presença humana, que vão da exclusão total
até o manejo promovido pelas populações locais (DEVAL; SESSONS
apud ALIER, 2012).
As escolas atuais de pensamento ecológico, cronologicamente situadas nos anos 1960, contribuíram para o surgimento de um novo ecologismo, situando-se espacialmente nos Estados Unidos e na Europa e
remodelando as concepções biológicas acerca da proteção à natureza, de
forma a agregar uma crítica à sociedade tecnológico-industrial carecedora
de liberdades individuais e destruidora da natureza (DIEGUES, 2001).
Trata-se da ecologia profunda, da ecologia social e do ecossocialismo/
marxismo. Tais escolas de pensamento inspiraram-se em Henry D. Thoreau
e Gray Snyder, para quem as árvores e as águas eram classes tão exploradas quanto o proletariado, em Barry Commoner, que responsabilizava a
tecnologia moderna pela crise ambiental, e ainda em Rachel Carson, que
denunciava o uso dos biocidas (DIEGUES, 2001).
O novo ecologismo foi ainda marcado pela futurologia, que continha
previsões alarmistas acerca do futuro incerto do planeta e do esgotamento
de recursos naturais, tecendo contrapropostas que se dirigiam a privilegiar a formação de uma sociedade libertária constituída de pequenas
comunidades autossuficientes, utilizando uma ciência, um trabalho e uma
192 | O LIXO E OS RESIDUOS: IMPRESSOES ECOLOGICAS E CULTURAIS NO TRATO DA CASA COMUM
tecnologia não alienante, em contraposição a um Estado centralizador
(DIEGUES, 2001).
O termo ‘ecologia profunda’ foi cunhado por Arne Naes e definia-se
por intermédio do fundamento de uma consciência ecológica profunda em
substituição de uma mera concepção ecológica científica. Nessa linha de
pensamento, as vidas humana e não humana possuem valores intrínsecos
independentes do utilitarismo, ressaltando que os humanos não teriam o
direito de reduzir a biodiversidade exceto para satisfazer as necessidades
vitais, requerendo, assim, o estabelecimento de políticas que alterem as
estruturas econômicas e ideológicas (DIEGUES, 2001).
A ecologia social, termo cunhado por Murray Bookchin, liga a degradação ambiental diretamente aos imperativos do capitalismo e identifica na
acumulação capitalista o cerne da devastação do planeta. Entende que os
seres humanos são seres sociais e não uma espécie diferenciada, propondo,
ainda, a construção de uma sociedade baseada na propriedade comunal
(DIEGUES, 2001).
Tem-se, também, o ecomarxismo, baseado numa visão estática da
natureza manejável pelo homem e sua ação transformadora, configurando a
natureza como simples mercadoria (DIEGUES, 2001). Avalia-se que existe
um embate entre as forças produtivas históricas e as forças naturais, que,
segundo Marx (2013), informava haver uma falha na interação metabólica
entre o homem e a terra por meio do roubo dos elementos constitutivos
do solo, exigindo a sua restauração sistemática (FOSTER, 2011).
A respeito do evangelho da ecoeficiência, este se preocupa com os
efeitos do crescimento econômico não só nas áreas de natureza original,
mas, sobretudo, na economia industrial, agrícola e urbana, os quais são
geradores de riscos à saúde e ao ambiente. Tal corrente de pensamento
aceita a boa utilização dos recursos e o manejo sustentável, coadunando-se com a visão da eficiência técnica desprovida da noção do sagrado
(ALIER, 2012).
A justiça ambiental aparece como corrente de pensamento enviesada
pela concepção do racismo ambiental. Traduz um interesse material pelo
meio ambiente como fonte de condição para a subsistência, não em razão
de uma preocupação relacionada com os direitos das demais espécies e das
futuras gerações de humanos, mas com os humanos de hoje. Avalia-se que
perigos ambientais concentram-se em bairros pobres ou habitados por
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 193
minorias raciais. Os conflitos ecológicos distributivos redundariam em que
alguns grupos da geração atual são privados do acesso aos recursos e serviços ambientais, embora sofram em maior escala os riscos (ALIER, 2012).
A gestão do meio ambiente está deslocada no espaço pelo conceito
atual de sustentabilidade, uma vez que ora consiste em qualificadora do
uso presente e futuro, ora aparece substantivada e assumindo contornos de
meta a ser alcançada, para a qual devem se voltar todos os sistemas sociais.
A sustentabilidade pode ser cunhada na perspectiva econômica e
como tal não prescinde de atender a alguns objetivos da questão econômica, como alocação, distribuição e escala. A alocação fixa-se na disponibilização de recursos em função das preferências individuais, a distribuição se
relaciona à divisão dos recursos entre as pessoas, ao passo que a escala trata
do fluxo de matéria e energia retiradas no ambiente em forma de matéria
bruta e devolvidas a ele como resíduo. Especificamente no que tange à
escala, residem problemas como a infinitude dos recursos obtidos do meio
ambiente e sua capacidade de constituir-se em depósito de resíduos. Para
que haja uma sustentabilidade econômica, deve haver alocação e distribuição de recursos eficientes dentro de uma escala apropriada, porém o
problema da sustentabilidade se refere à manutenção do capital em todas
as suas formas (VAN BELLEN, 2006).
Há, nesse contexto, os conceitos de sustentabilidade fraca e forte,
que se fundam na necessidade universal de preservar capital para as futuras
gerações. No conceito de sustentabilidade forte, todos os níveis de recursos naturais, renováveis ou não, e a biodiversidade devem ser mantidos,
já a sustentabilidade fraca admite que haja troca entre os diferentes tipos
de capital, a saber, o capital natural e o capital monetário, desde que se
mantenha constante o seu estoque (VAN BELLEN, 2006).
Sob a perspectiva social, a sustentabilidade se volta a conferir relevância à condição do homem no planeta para a preservação do capital social e
humano, que, em última instância, significaria a própria geração de lucro,
produzindo, ainda, um contexto de crescimento estável com distribuição
equitativa de renda (VAN BELLEN, 2006).
Há, ainda, que se considerar a sustentabilidade em seu terreno, mais
promissora e amena dependendo do ambiente. A sustentabilidade ambiental se preocupa com os impactos das atividades humanas sobre o meio, o
que significa ampliar a capacidade do planeta pela utilização do potencial
194 | O LIXO E OS RESIDUOS: IMPRESSOES ECOLOGICAS E CULTURAIS NO TRATO DA CASA COMUM
encontrado nos diversos ecossistemas, ao mesmo tempo mantendo a sua
deterioração em um nível mínimo (VAN BELLEN, 2006).
A sustentabilidade ecoa em outros paradigmas e cria diversas
dimensões, como a sustentabilidade geográfica vetorizada por meio de
uma melhor distribuição dos assentamentos humanos e a sustentabilidade cultural, que está relacionada ao caminho da modernização, sem
o rompimento da identidade cultural (VAN BELLEN, 2006). De toda
forma, a sustentabilidade demanda ação humana, que deve por vezes ser
moderada, quando representar uma conduta desenvolvida sobre o meio,
ou enérgica, quando representar o sobrestamento de práticas que interfiram no funcionamento equilibrado no meio, dependendo de condições
geográficas, culturais e biológicas que deverão definir o meio adequado
em que se execute uma atuação sustentável.
Avalia-se, nesse contexto, a previsão contida no mencionado Decreto
n. 4.339, de 22 de agosto de 2002, em seu art. 4º, inciso V, que apresenta
como diretriz a sustentabilidade da utilização de componentes da biodiversidade, que deve ser determinada do ponto de vista econômico, social e
ambiental. Há a fragmentação da sustentabilidade como alternativa viável
à melhor definição de suas peculiaridades, destacando em quais frentes
deve haver uma abordagem calcada na sustentabilidade que alcance de
modo eficaz todo o universo de atuação humana. Não que a sustentabilidade se fracione, mas, mantendo-se íntegra, se dilata em maior ou menor
amplitude nos vários setores em que se faz presente (econômico, social e
ambiental), de modo que, permeando em igual medida tais áreas, proporcione o pretendido equilíbrio no uso da biodiversidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ato de consumir enquanto comportamento que se volta apenas à
aquisição de produtos e serviços em um contexto de produtividade apresenta-se distorcido embora seja constante e amplamente justificado pelo
ordenamento jurídico. A normatização consagra em nível principiológico
a proteção ao consumidor suposto sujeito da relação de consumo embora
o faça de modo insatisfatório haja vista que se pauta nas razões mercadológicas e patrimoniais.
Emerge o consumo como conduta desenvolvida em ambiente
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 195
artificialmente criado pelas necessidades virtuais e não reais, de
modo estanque ignorando as determinantes ambientais e a necessária interação do indivíduo com o meio. Passa ao largo das dirimentes
da sustentabilidade que por sua vez propõe uma atitude adequada
de consumo para presente e para as futuras gerações.
As práticas de consumo devem então ser reformuladas na
medida em que atendam demandas de sustentabilidade, cotejando-se nesse processo o custo e o benefício, que há um só tempo
conglobem ambientalidades públicas e privadas. Faz-se necessária a
adoção de medidas que se perfaçam de modo coerente com o ritmo
das alterações sentidas no meio ambiente, quer no meio biótico e
abiótico a partir de uma tomada de decisão que precifique práticas
de consumo sustentáveis.
E ainda o consumo desenvolvido em comunidade enquanto
ente local onde o consumo está enviesado à reprodução social e,
portanto, tem-se expurgada toda índole nefasta que redundaria no
consumismo é a uma, diverso na prática do consumidor a duas,
ideologicamente ambientado e sustentável econômica e socialmente.
Por fim verifica-se haver um hiato entre a causa e o efeito da vontade
humana de consumir que é intensamente preenchido pelas correlações
consumeristas das frivolidades vendidas como necessidade e que, inexplicavelmente, ou ao menos sem uma explicação palatável justifique as
responsabilidades atribuídas ao indivíduo subjetivizado.
Identifica-se no consumo sustentável um comportamento adequado
à regeneração do meio ambiente e aos padrões de reprodução social evidenciados nas populações tradicionais posto que compatível com eliminação
das desigualdades nas relações de consumo.
Ao propor uma reconstrução da relação entre o homem e o ambiente,
como que revisitando um novo marco regulatório entre o biocetrismo e
o antropocentrismo, a carta Encíclica argumenta a meio caminho entre
a sensibilidade e a coragem: a natureza subjetiva do ambiente, nessa linguagem a natureza é ao mesmo tempo: uma casa, uma irmã, uma mãe, que
geme, que sofre e sente dores.
REFERÊNCIAS
196 | O LIXO E OS RESIDUOS: IMPRESSOES ECOLOGICAS E CULTURAIS NO TRATO DA CASA COMUM
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O PODER NA EPISTEMOLOGIA SOCIOAMBIENTAL
DA ECOLOGIA POLÍTICA: IDENTIFICAÇÃO
DAS POSSIBILIDADES TRANSFORMATIVAS
NO CAMPO JURÍDICO-INSTITUCIONAL
POWER IN THE SOCIOENVIRONMENTAL
EPISTEMOLOGY OF POLITICAL ECOLOGY:
IDENTIFICATION OF TRANSFORMATIVE POSSIBILITIES
IN THE INSTITUTIONAL-LEGAL FIELD
Ana Lizete Farias1
Nathalia Lima Barreto2
RESUMO: O trabalho realiza uma leitura da problemática das relações de
poder no meio ambiente, a partir do referencial teórico desenvolvido pela
ecologia política. Tem-se como objetivo a exposição das formas pelas quais
as ciências sociais, notadamente a sociologia socioambiental e o direito
socioambiental, podem abordar interdisciplinariamente a questão do
poder de modo a identificar possibilidades de ações e medidas transformativas no campo jurídico-institucional. Para enfrentamento da questão do
poder, o trabalho abordará dois aspectos principais: a) o estudo do poder
na ecologia política; b) potenciais na transformação da realidade no campo
jurídico-institucional. A relevância da temática é vislumbrada tanto sob
o ponto de vista teórico – ante a necessidade permanente de abordagens
analíticas, críticas e propositivas, dos problemas de assimetria de poderes,
déficit democrático e violação de direitos socioambientais decorrentes
das relações de poder –, quanto à prática daqueles engajados nas ações e
construção de medidas transformativas no campo jurídico-institucional.
PALAVRAS-CHAVE: Epistemologia Socioambiental; Sociologia
Socioambiental; Direito Socioambiental; Ecologia Política.
1 Doutoranda no Programa de Meio Ambiente e Desenvolvimento da UFPR. Mestre em
Geologia Ambiental pela UFPR. Bacharel em Geologia pela UFRS.
Contato: analizete@gmail.com
2 Doutoranda no Prog rama de Meio Ambiente e Desenvolvimento
da UFPR . Mestre em Direito do Estado pela UFPR . Especialista em
Direito Socioambiental pela PUC/PR . Bacharel em Direito pela UFPR .
Contato: nathalia.barreto@gmail.com
PODER NA EPISTEMOLOGIA SOCIOAMBIENTAL DA ECOLOGIA POLÍTICA: IDENTIFICAÇÃO DAS
200 | OPOSSIBILIDADES
TRANSFORMATIVAS NO CAMPO JURÍDICO-INSTITUCIONAL
ABSTRACT: The work aims to problematize power relations in the environment, from the theoretical framework developed by political ecology. The
objective is to expose ways in which the social sciences, notably environmental
sociology and environmental law, can develop a interdisciplinary approach
to the question of power in order to identify possibilities for transformative
actions and measures in the legal and institutional field. To face the question
of power, the work will address two main aspects: a) the study of power in
political ecology; b) the potential to transform reality in the legal-institutional field. The relevance of the theme is envisioned both from the theoretical
point of view - at the continuing need for analytical, critical and purposeful
approaches, the asymmetry of power problems, democratic deficit and violation of environmental rights arising from power relations - as the practice
those engaged in actions and building transformative measures in the legal-institutional field.
KEYWORDS: Epistemology Environmental; Environmental Sociology;
Environmental Law; Political Ecology.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo propor, para além do discurso
da militância dos movimentos socioambientais, o reconhecimento e visibilização teóricos da problemática do poder no campo jurídico-institucional, a partir do aprofundamento da corrente da ecologia política, na
sua construção latino-americana.
Para tal empreita, a primeira parte do trabalho é dedicada a identificar os aspectos epistemológicos comuns do que se pode denominar como
ecologia política latino-americana, quais seriam seus objetos de estudo,
assim como as principais lacunas ou potenciais de desenvolvimento.
A partir do estabelecimento do que seria o escopo da ecologia política latino-americana, o estudo passa a situar o campo jurídico-institucional como espaço fundamental para compreensão das relações de poder da
problemática socioambiental e construção de estratégias transformativas
para a concretização de direitos socioambientais.
A etapa final da reflexão consiste num exercício de exemplificação da proposta, mediante estudo de um problema específico brasileiro,
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 201
consistente na identificação de qual seria o caráter político e grau de
influência política das decisões aparentemente técnicas dos órgãos ambientais nacionais, e, por outro lado, a necessidade de seu fortalecimento
político a fim de assegurar maior autonomia e emponderamento de suas
decisões, num quadro de crescente esfacelamento e precarização estatal.
Dessa maneira, propõe-se dotar de cientificidade teórica a introdução
do estudo das relações de poder, negando-se o discurso que limita ou reduz
tal análise a uma posição retórico-discursiva ou político-partidária. Mais
especificamente, no cenário brasileiro, mostra-se essencial o desvelamento
do caráter político, e seus potenciais de aplicação, na esfera dos órgãos
administrativos ambientais.
O ESTUDO DO PODER NA ECOLOGIA POLÍTICA
LATINO-AMERICANA
Em Political Ecology: a Latin American Perspective, Enrique Leff
remonta a ideia de ecologia política ao materialismo histórico-dialético de
Karl Marx e Friedrich Engels, no tocante a sua crítica às relações de poder
hierárquicas e estruturas de classes exercidas nos processos de produção e
apropriação social da natureza.
É certo que como ramo específico, a ecologia política pode ser
caracterizada como forma teórica de investigação, de pesquisa científica,
bem como de atuação política. Como for, a disciplina se desenvolve a
partir da denominada crise socioambiental das décadas de 60 e 70, sendo
caracterizada como o campo de estudo das relações de poder exercidas
no meio ambiente, fundada numa crítica neomarxista radical à política
econômica (LEFF,2015).
Para o autor, a ecologia política é o estudo das relações de poder e
conflitos políticos sobre a distribuição ecológica, a apropriação da natureza, a relação entre a humanidade e a natureza, a submissão de culturas à
lógica da exploração capitalista e à racionalidade do sistema-mundo, bem
como as estratégias geopolíticas de poder do desenvolvimento sustentável
e da racionalidade ambiental (LEFF, 2015, p. 33).
Assim, pode-se dizer que a ecologia política propõe a identificação,
crítica e definição de propostas e estratégias políticas no tocante à forma
desigual distribuição do poder sobre o processo decisório e qualificação
PODER NA EPISTEMOLOGIA SOCIOAMBIENTAL DA ECOLOGIA POLÍTICA: IDENTIFICAÇÃO DAS
202 | OPOSSIBILIDADES
TRANSFORMATIVAS NO CAMPO JURÍDICO-INSTITUCIONAL
do meio ambiente e suas relações socioambientais.
Em termos simples e diretos, pergunta-se o que é essa sustentabilidade ou o que está por trás dos processos de degradação? Quem são os
verdadeiros tomadores de decisão? Quem serão os beneficiários? Quem
serão os prejudicados? Quais os interesses envolvidos? Tais interesses refletem o bem comum?
Tabela 1. Questionamentos fundamentais da ecologia política
Como é feita a distribuição (formal e informal, estatal e não estatal) de poder no processo decisório?
Quem são os tomadores de decisão?
Quais as concepções ideológicas socioambientais envolvidas no processo decisório?
Quem serão os principais beneficiários e prejudicados no processo decisório?
Quais as estratégias de poder que podem ser desenvolvidas? Como o poder é expandido
ou negociado?
Sob a leitura teórica, a crítica política aos limites desse desenvolvimento produtivo e seus impactos no meio ambiente tem como percursores
os estudos pós-modernos de Herbert Marcuse, na sua crítica aos perigos do
desenvolvimento tecnológico, Lévi-Strausse, na sua reflexão sobre a cultura
de destruição a partir das leis da entropia, e, ainda, Michel Foucault, no
seu estudo sobre as relações de poder.
Destarte, como primeiras publicações específicas sobre a temática,
Leff referencia Eric Wolf (“Ownershipe and Political Ecology”), Hans
Magnus (“A Critique of Political Ecology”) e André Gorz (“Écologie et
politique”).
Na América Latina, a ecologia política pode ser vislumbrada como
um movimento e uma rede de pensadores e pesquisadores com grande
enfoque para a realidade dos conflitos ou situações de injustiças socioambientais nas escalas locais, regionais, nacionais e globais, passando por
abordagens decoloniais e alternativas à epistemologia europeia.
Como ressalta Leff, entretanto, seu status científico e abordagens
de pesquisa ainda estão sendo debatidos e definidos, assim como suas
fronteiras, alianças com outras disciplinas, perspectivas epistemológicas
e estratégias práticas (LEFF, 2015, p.34). De acordo com o pensador:
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O estabelecimento do ramo da ecologia política na geografia do conhecimento é uma empreitada mais complexa que apenas delimitar as fronteiras
paradigmáticas entre disciplinas, unir tradições acadêmicas, formando
cluesters de tópicos de pesquisas, desenhando tipologias das naturezas das
ontologias, tematizando áreas problemáticas de intervenção e mapeando o
pensamento ambiental. Isso implica desconstruir ramos teóricos, ressignificar conceitos e mobilizar estratégias discursivas para forjar a identidade
desse novo território epistêmico na configuração de uma racionalidade
ambiental e na construção do futuro sustentável .(LEFF, 2015, p. 34, tradução livre)
Na mesma linha, leciona Héctor Alimonda, para quem:
Nesse sentido, gostaria de poder essa ecologia política como uma elaboração
político-intelectual de vanguarda, que intenta com angústia responder aos
tremendos desafios que a época apresenta para os povos de nosso continente, reconhecendo a necessidade de criticar os pressupostos civilizatórios
da modernidade e do desenvolvimento convencional. Para fazê-lo, deve ter
a mão todos os recursos possíveis que passam em grande parte pela tarefa
paradigmática de atualizar seus repertórios de ação e de pensamento, ao
mesmo tempo que deve intentar recuperar a pluralidade de heranças populares e críticas que a precederam.(ALIMONDA, 2015, 167, tradução livre)
Diante da amplitude temática que envolve o termo, Leff promove
uma tentativa de sistematização dos aspectos comuns, e já acolhidos, que
permeariam a ecologia política latino-americana, os quais incluiriam:
•
•
•
Incorporação da epistemologia ecológica e da racionalidade
ambiental, no tocante ao pensamento complexo, métodos interdisciplinares, teorias sistêmicas, convergências de teorias da ecologia radical e incorporação da temática de conflitos ambientais;
Redefinição e politização de conceitos – tais como de diversidade, território, autonomia, identidade, desenvolvimento – e
incorporação de novas fontes de conhecimento, transcendendo
o papel da ciência para a realidade de estratégias de poder e
reapropriação da natureza pelos movimentos socioambientais;
Interrelação com a economia política, no tocante às reflexões
quanto aos limites do crescimento, injusta distribuição dos custos econômicos no meio ambiente. Aludido aspecto reforça a
ecologia política como um ramo da ética política e das estratégias
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204 | OPOSSIBILIDADES
TRANSFORMATIVAS NO CAMPO JURÍDICO-INSTITUCIONAL
•
•
•
•
de poder utilizadas nos processos de expropriação da natureza
e de culturas;
Reconstrução ontológica da natureza a fim de reforçar o caráter
político e social que envolvem as relações entre humanidade e
natureza, no âmbito dos processos de produção de discursos,
comportamentos e ações envolvendo o meio ambiente;
Incorporação da temática das políticas das diferenças culturais
ou do outro, com o fito de reconhecer os diferentes significados
culturais atribuídos à natureza e diversidade cultural associada,
em contraposição a um sistema hegemônico homogenizador.
Sob esse aspecto, sobressairiam os debates acerca das resistências,
múltiplos mundos e pluralismo cultural;
Problemática da consciência ambiental na humanidade e estabelecimento de políticas de conhecimento para sua disseminação;
Ecofeminismo, assim caracterizado pela desconstrução das estruturas sociais e teóricas forjadas pelo homem que propiciam a
dominação do poder;
É certo que a ecologia política propõe uma nova ética emancipatória,
congregando diversas pautas epistemológicas socioambientais, e
promovendo certo balizamento acadêmico, o qual, certamente, deve ser
difundido, na linha até mesmo das estratégias de poder do conhecimento
e de fortalecimento de uma consciência ecológica, acima delineados.
Entretanto, mostra-se totalmente relevante questionar se, a despeito
do seu potencial libertário e sua visão politizada da problemática socioambiental, as abordagens da ecologia política – acima sintetizadas – dão conta
da travessia para a realidade das relações de poder existentes, sobretudo
no contexto brasileiro.
Tal questionamento decorre precipuamente da constatação das
lacunas nas tratativas sobre as práticas e estratégias políticas para transformação da realidade criticada, isto é, a tradução da preocupação teórica
para as práticas e processos políticos específicos de grupos hegemônicos
e contra-hegemônicos.
Nessa exata linha de raciocínio, Peter A. Walker suscita problemas
interessantes, porém surpreendentemente lacunosos da ecologia política,
tais como a necessidade de desenvolver maneiras para aplicar métodos e
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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conclusões de pesquisa na realidade, qual a diferença prática que a ecologia
política realmente faz, e quais os obstáculos para uma ecologia política
mais comprometida com a política. Nas suas palavras:
Parece um consenso geral de que o “potencial libertário” deste campo é,
em grande medida, a sua raison d’etre – mesmo que ele não seja plenamente
realizado na prática. Neste caso, mesmo a possibilidade de que a ecologia
política, com todas as suas enormes passadas intelectuais, possa ser em
grande parte inativa e, no fim das contas, apolítica e impotente, na prática
essas questões merecem ser levadas a sério. São necessárias diretrizes claras
para o que constitui as práticas e o poder de uma ecologia política ética.
(WALKER, 2012, p. 90)
De acordo com o autor, a ecologia política carece de um maior
esforço para tratar dos programas e instituições formas de gestão ambiental,
seus mecanismos e processos nos quais o poder é expandido e negociado.
Nesse viés, o autor alerta para a necessidade de maior destaque à ecologia política popular a qual “associa a pesquisa diretamente aos esforços dos
ativistas para melhorar o bem-estar humano e a sustentabilidade ambiental
por intermédio de várias formas de ativismo e organizações populares locais”
(WALKER, 2012, p. 90).
Prossegue afirmando que muitos ecologistas políticos colocam suas
ideias em ação, porém com trabalhos muitas vezes invisíveis dentro das
instituições acadêmicas. E, ainda que hajam trabalhos com o objetivo de
transformação política, persiste o caráter hermético da pesquisa acadêmica
da ecologia política, chegando até mesmo a criticar a irresponsabilidade
de muitos pesquisadores para com as comunidades pesquisadas, ou seja,
a própria ética levantada pelo grupo da ecologia política3.
3 O autor é feroz na sua crítica: “Apesar destas realizações, há, contudo, uma ampla preocupação entre os ecologistas políticos de que o campo como um todo permaneça em grande
medida voltado para dentro, confinado às publicações acadêmicas que são indisponíveis
ou ininteligíveis àqueles que poderiam se beneficiar da pesquisa e restrito às conferências
e seminários frequentados quase que exclusivamente por elites acadêmicas privilegiadas e
que pensam de forma parecida, que não experimentam diretamente elas próprias a fome, a
doença, a pobreza, os riscos e a degradação ambiental sobre os quais elas estudam, escrevem
e falam. [...] Por exemplo, para muitos sujeitos de pesquisa, especialmente nas sociedades menos desenvolvidas, o tempo gasto em entrevistas, discussões de grupo e assim por
diante resulta num custo significativo para as atividades produtivas vitais, muitas vezes com
poucos benefícios tangíveis em troca. Como reclamou um eminente ecologista político,
“pesquisadores irresponsáveis tiram o máximo e dão o mínimo em troca – eu vi colegas
dedicarem-se ao trabalho de campo por três semanas, publicarem três ou quatro papers
como único autor e nunca mais voltarem” (WALKER, 2012, p. 91).
PODER NA EPISTEMOLOGIA SOCIOAMBIENTAL DA ECOLOGIA POLÍTICA: IDENTIFICAÇÃO DAS
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TRANSFORMATIVAS NO CAMPO JURÍDICO-INSTITUCIONAL
É precisamente nesse debate que se insere a problemática dos
potenciais de transformação dos esforços da ecologia política na realidade
do campo jurídico-institucional, um tema de dificílimo trato, ante o
caráter hegemônico do direito e das instituições estatais.
A ECOLO GI A P OLÍTIC A E O S P OTENCI AIS DE
TR ANSF OR M AÇ ÃO DA RE ALIDADE NO C A MP O
JURÍDICO-INSTITUCIONAL
Uma forte tradição marxista acompanha as percepções teóricas da
ecologia política sobre o Estado, como uma estrutura de reprodução e
perpetuação dos interesses econômicos dominantes e dominação de classes, com impactos negativos diretos na natureza (mediante processos
expropriatórios e degradadores), nos sujeitos marginalizados (mediante
processos de repressão e subjugação).
E, não sem fundadas razões, faz-se uma crítica radical à utilização do
Estado como estratégia de poder, precisamente para se evitar a legitimação
de seus processos, discursos e demais mecanismos de reprodução do status
quo. A partir dessa ideia são desenvolvidos trabalhos e práticas afetos às
alternativas dos modelos de desenvolvimento, espaços de resistências,
pensamento decolonial, etc4.
Porém, para compreensão dos potenciais transformativos da ecologia
política, com implantação e desenvolvimento de maneiras de aplicação
de seus métodos e conclusões críticas, torna-se fundamental produzir
conhecimento sobre o que Bourdieu denomina como o lugar de excelência
de concentração e do exercício do poder simbólico, qual seja, o Estado.
E, nessa seara, é inegável que a construção de modelos pontuais de
resistência não é apta a conter um conjunto de regras, processos, discursos
e instituições hegemônicos responsáveis pelo planejamento e gestão de
um modelo vertical de desenvolvimento prejudicial ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado e à justiça socioambiental.
Assim sendo, propõe-se a utilização da noção de campo, desenvolvida
pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, assim compreendido como uma
configuração onde vigem relações objetivas de posições, com agentes em
4 Uma sistematização dessas vertentes pode ser encontrada em: ESCOBAR, Arturo. Sentipensar con la tierra. Nuevas lecturas sobre desarrollo, territorio y diferencia. Ediciones
UNAULA, Medellin, 2014.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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concorrência/disputa pelo poder e regras/lógicas específicas. De acordo
com o autor:
A teoria geral da economia dos campos permite descrever e definir a forma
específica de que se revestem, em cada campo, os mecanismos e os conceitos
mais gerais (capital, investimento, ganho), evitando assim todas as espécies
de reducionismo, a começar pelo economicismo, que nada mais conhece
além do interesse material e a busca da maximização do lucro monetário.
Compreender a gênese social de um campo, e apreender aquilo que faz a
necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que
nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram,
é explicar, tornar necessário, subtrair ao absurdo do arbitrário e do não-motivado os actos dos produtores e as obras por eles produzidas e não,
como geralmente se julga, reduzir ou destruir. (BOURDIEU, 1989, p. 69)
O campo jurídico-institucional obedece aos requisitos de campo
de Bourdieu, para quem, a caracterização de campo deve envolver: a) a
relativa autonomia em relação a outros campos, com uma dinâmica própria e fronteiras que estabeleçam seus limites; b) o reconhecimento de
objetos de disputa; c) a existência de regras específicas, as quais, por sua
vez, igualmente serão objeto de luta permanente.
A identificação de possibilidades transformativas no campo jurídico-institucional, como espaço de dominação e disputa, apresenta potenciais relevantes de transformações práticas nessa realidade, acentuando a
necessidade do exercício político tanto do pesquisador, quanto da coletividade. Nesse sentido, interessante o comentário de Rodrigo Ghiringhelli
de Azevedo, para quem:
A atenção de Bourdieu aos aspectos sociais e históricos do Direito, ou a
consideração sociológica dos interesses vinculados à interpretação jurídica, conduz a caracterização de sua metodologia como antiformalista. No
entanto, esse antiformalismo metodológico de Bourdieu não implica depreciar o Direito e o trabalho jurídico. É, nesse sentido, necessário diferenciar
uma postura metodológica sobre o Direito, que nos permita compreender
o Direito e o Estado, e uma postura política, que nos permita apostar no
e sobre o Direito e o Estado. (AZEVEDO, 2011)
Sobretudo por se encarregar de efetivar sucessivas violações aos parâmetros ambientais defendidos pela ecologia política, torna-se fundamental
não se afastar o potencial de estratégias transformativas no âmbito do
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campo jurídico-institucional, assim entendido como campo de produção
de normas, organização estatal e elaboração de medidas, projetos, programas, planos e políticas públicas passíveis de enfrentamento socioambiental.
Como bem ponderado por Carlos Frederico B. Loureiro:
É verdade que há muitas discussões recentes em torno da centralidade ou
não do Estado na política em um contexto de globalização do capitalismo,
em que o poder se diversifica e se exerce em várias dimensões. Para uns, a
expansão da tecnologia e da comunicação cria outras formas de ação política
fora do Estado; para outros, esta nova dinâmica não afeta a centralidade
do Estado na reprodução dos interesses do mercado, das formas de
dominação internacionais e, contraditoriamente, para a garantia do acesso
e universalização de direitos considerados básicos para a dignidade humana
e para a preservação ambiental, sendo um espaço estratégico para as lutas
e conquistas sociais. Seja como for, o que interessa aqui é entender que há,
de fato, uma ´refuncionalização´ do Estado nas últimas três décadas e que,
para além da discussão sobre sua centralidade ou não, junto a outras formas
de fazer política este continua a ter indiscutível relevância para a organização da vida social, e, portanto, para a prática política nas mais diferentes
escalas (Castelles, 1999; Chesnais, 1996). Ou seja, o que defendo não é
um esvaziamento das estratégias de ocupação e superação do Estado, mas
a complexificação da política, incorporando novos elementos e práticas em
relação ou não com o Estado, dependendo do objetivo da ação. O fato concreto é que quando pensamos em mudanças estruturais e universalizantes,
o Estado não pode ser ignorado; quando pensamos em ações localizadas e
de efeito estritamente no cotidiano, o Estado pode ser secundarizado, mas
não esquecidos. (LOUREIRO, 2013, p. 27)
Especificamente na ecologia política, está a se falar da crítica da atuação estatal em relação aos mais diversos problemas socioambientais, tais
como segregação espaciais, injustiça socioambientais, degradação e exploração do meio ambiente, qualidade e bem estar social, etc. Na realidade
brasileira, por exemplo, merece atenção os projetos de desenvolvimento
verticais de grande impactos ambientais, processos legislativos e normativos com retrocessos socioambientais, assimetria democrática dos processos
decisórios e enfraquecimento dos órgãos e agentes de proteção ambiental.
Associados a tais problemas, existem desenhos jurídico-institucionais
consubstanciados em normas, procedimentos, formas de organização e
atuação, os quais exigem estudos analíticos detalhados, críticos e propositivos, como também o pensar e o atuar de formas políticas de enfrentamento.
Portanto, por um lado, tem-se a premência de construção de práticas
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e estratégias políticas, envolvendo inclusive o desenvolvimento de novas
possibilidades de diálogos e negociações políticas, devidamente contextualizados para as realidades expropriatórias latino-americanas. Por outro
lado, verifica-se que as análises socioambientais oficiais (seja em estudos
de impactos ambientais, projetos de leis, justificativas e procedimentos
público-governamentais de elaboração e execução de projetos, programas,
planos e políticas públicas), buscam sempre se dissociar do aspecto político, como algo não técnico e não fundamental para a medida que se quer
implantar ou políticas com impactos socioambientais. É sobre ambos os
aspectos que se mostra necessário revelar a política da ecologia política.
Em melhores termos, uma das preocupações teóricas da ecologia
política deve abarcar a tradução das críticas epistemológicas para tal campo
jurídico-institucional e a definição de possibilidades, estratégicas e formas
de implantação de transformações visando justamente consolidar essa
finalidade libertária e emancipatória da ecologia política.
Tabela 2. Potenciais transformativos da
ecologia política no campo jurídico-institucional
DISCURSOS
Desconstrução de conjuntos de discursos e concepções
embasadores de agentes e processos decisórios que representam degradação ecológica e desigualdade nas relações
socioambientais;
Desenvolvimento de estratégias de comunicação social de
novos discursos emancipatórios;
Identificação de normas não efetivas e alteração do quadro
de insuficiências normativas para concretização de direitos
socioambientais;
NORMATIVIDADE Questionamentos de normas prejudiciais no tocante aos
processos decisórios e méritos das decisões com reflexos
socioambientais;
Dotar a normatividade de conteúdo político emancipatório;
INSTITUIÇÕES
Fortalecimento das instituições públicas e civis de defesa
socioambiental;
Alteração do quadro de precarização das instituições de defesa
socioambiental, inclusive mediante questionamento da situação de marginalização dos órgãos ambientais no orçamento
e nas políticas públicas estatais;
Dotar as decisões aparentemente técnicas de conteúdo
político;
Por conseguinte, a partir da noção de campo social, desenvolvida
PODER NA EPISTEMOLOGIA SOCIOAMBIENTAL DA ECOLOGIA POLÍTICA: IDENTIFICAÇÃO DAS
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TRANSFORMATIVAS NO CAMPO JURÍDICO-INSTITUCIONAL
por Pierre Bordieu, verifica-se a necessidade de maior enfoque: a) na
construção de práticas e estratégias políticas, envolvendo inclusive o
desenvolvimento de novas possibilidades de diálogos e negociações políticas, devidamente contextualizados para as realidades expropriatórias
latino-americanas; b) na necessidade de revelação do político nas análises
socioambientais oficiais (seja em estudos de impactos ambientais, projetos
de leis, justificativas e procedimentos público-governamentais de elaboração e execução de projetos, programas, planos e políticas públicas), as quais
buscam sempre se dissociar do aspecto político, como algo não técnico e
não fundamental para a medida que se quer implantar ou políticas com
impactos socioambientais.
Cabe aqui também acrescentar que são raros trabalhos dessa ordem
na academia jurídica, o que é agravado pela crise do próprio Estado. Como
expõe Gabardo:
A crença compartilhada de que o Estado não é mais capaz de normatizar
a vida de forma a melhorar sua qualidade, mas é apenas um organismo
ineficiente e ultrapassado, acaba se tornando uma profecia auto-realizante,
mediante a submissão dos valores éticos à economia, o retorno da preferência pelo individuo e a própria destruição da responsabilidade coletiva
por uma vida melhor. (GABARDO, 2009, p. 125)
Isso foi também observado no estudo do IPEA, intitulado “Brasil em desenvolvimento: Estado, planejamento e políticas públicas”, no
qual consta que a partir dos anos 90, a função do planejamento, em
geral, vem passando por um processo de desvalorização. Nos termos
do referido estudo, a estrutura e a forma do planejamento governamental contemporâneo brasileiro estão essencialmente esvaziadas de
conteúdo político, robustecidas de ingredientes técnico-operacionais e
de controles físico-financeiros de ações difusas, diluídas pelos diversos
níveis e instâncias de governo, cujo sentido de conjunto e movimento,
ainda que no nível setorial, não é nem fácil nem rápido de identificar
(CARDOSO JUNIOR, 2009, p. XXIV).
Em suma, verifica-se como limite ou potencial de pesquisa fundamental, na linha da crítica de Walker, a necessidade de desenvolver maneiras para aplicar métodos e conclusões de pesquisa na realidade, qual a
diferença prática que a ecologia política realmente faz, e quais os obstáculos
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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para uma ecologia política mais comprometida com a política.
ECOLOGIA POLÍTICA APLICADA NO CAMPO JURÍDICO-INSTITUCIONAL: A REALIDADE BRASILEIRA DOS
ÓRGÃOS ADMINISTRATIVOS PROTETORES DO MEIO
AMBIENTE
A aplicação da ecologia política no âmbito da administração pública
se apresenta como uma contraposição aos tradicionais e comuns estudos
jurídicos tradicionais, usualmente focados na leitura crítica de normas
ou na identificação de possibilidades de controle jurisdicional de atos
administrativos.
É dizer, não é produtiva para a resolução, de maneira certeira, dos
problemas socioambientais, a discussão do controle judicial de atos
governamentais ou administrativos, ou apresentar propostas teóricas de
invalidação de atos administrativos, se não se reconhece a importância do
fenômeno social da administração pública que antecede.
A discussão jurídica não pode se limitar às possibilidades jurídicas
de controle jurisdicional, dada a insuficiência do Poder Judiciário em lidar
com a magnitude dos problemas socioambientais territoriais.
Assim sendo, urge o desenvolvimento jurídico da matéria de forma
criativa no que tange à sistematização dos processos decisórios, tratamento
de seus conflitos de conteúdo e forma, princípios jurídicos incidentes, bem
como mudanças e aprofundamentos normativos centrados nas formas institucionais capazes de, no próprio âmbito estatal, melhor as formas de realização das práticas socioambientais. Nesse sentido, a crítica de Bercovici:
Este é um dos grandes problemas dos estudos jurídicos e constitucionais
do Brasil na atualidade: a falta de uma reflexão mais aprofundada sobe o
Estado. É necessário que os juristas retomem a pesquisa sobre o Estado,
voltem a se preocupar com uma Teoria do Estado. Isto se reveste de maior
importância no caso do Brasil, pois toda reflexão sobre a política de desenvolvimento exige que se refira ao Estado. Sem compreender o Estado brasileiro, em toda sua especificidade de Estado periférico, sem buscar sair do
impasse em que nos encontramos, não há como pensar em planejamento.
A crise do planejamento no Brasil, apesar da Constituição de 1988 só
será superada com a reestruturação (para não dizer restauração) do Estado
brasileiro, o contexto do tão necessário e adiado projeto nacional de desenvolvimento. (BERCOVICI, 2003, p. 328)
PODER NA EPISTEMOLOGIA SOCIOAMBIENTAL DA ECOLOGIA POLÍTICA: IDENTIFICAÇÃO DAS
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TRANSFORMATIVAS NO CAMPO JURÍDICO-INSTITUCIONAL
Nesse cenário, estudos analíticos, críticos e propositivos da realidade
nacional dos órgãos ambientais e sua forma de autação parece central para
a construção de uma leitura efetivamente brasileira não só das instituições,
mas como forma de compreensão dos problemas socioambientais do país.
Como parte desta reflexão, emergem duas questões fundamentais diretamente conectadas com os potenciais transformativos da
ecologia política no campo jurídico institucional, conforme abordado
anteriormente.
Em primeiro lugar, merece um maior aprofundamento o estado
de precarização dos órgãos ambientais, cuja realidade vem sendo cada
vez mais denunciada pelos próprios integrantes dos órgãos ambientais.
Nesse viés, merecem destaques os manifestos já realizados por servidores
do IBAMA e do ICMBio do Espírito Santo5 e do Rio de Janeiro6, dos
técnicos da Secretaria Municipal do Meio Ambiente de Porto Alegre7 e
a Nota Pública redigida por entidades e movimentos socioambientais do
Estado de Minas Gerais8.
Como pontos em comuns destas notas, manifestos e cartas abertas estão a denúncia de escassez de pessoal qualificado, precarização de
vínculos de trabalhos, carência de equipamentos para monitoramento
e fiscalização ambientais, cortes sistemáticos de recursos, intervenções
políticas no setor de licenciamentos ambientais, salários e planos de carreiras defesados, etc.
Nesse quadro, parece fundamental a introdução da perspectiva da
ecologia política a fim de compreender os processos pelos quais ocorre a
precarização dos órgãos ambientais brasileiros, quem são os tomadores
de decisão, bem como entendimento da concepção ideológica e política
de tais decisões.
Por outro lado, parece emergir uma situação de identificação e
5 Disponível em: http://www.ascemanacional.org.br/manifesto-dos-servidores-do-ibama-e-do-icmbio-do-espirito-santo/. Acesso em: 25 de agosto de 2016.
6 Disponível em: https://www.ecodebate.com.br/2015/08/05/carta-aberta-dos-servidores-federais-da-area-ambiental-no-rio-de-janeiro-o-meio-ambiente-pede-socorro/.
Acesso em: 25 de agosto de 2016.
7 Disponível em: http://www.ecoagencia.com.br/?open=noticias&id=VZlSXRVVONlYHZEUXxmVaNGbKVVVB1TP. Acesso em: 25 de agosto de 2016.
8 Disponível em>: http://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/noticias/nota-publica-redigida-por-entidades-e-movimentos-socioambientais-da-sociedade-civil-de-minas-gerais-no-dia-internacional-do-meio-ambiente/. Acesso em: 25 de agosto de 2016.
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reunião política dos quadros de pessoal destes órgãos a fim de assegurar
maior autonomia financeira e de decisões, evitando-se interferências do
poder econômico e político, e maior fortalecimentos das estruturas básicas
para que sejam realizadas devidamente as atividades de monitoramento,
fiscalização e construção de políticas ambientais adequadas.
CONCLUSÕES
A temática do poder pode ser vislumbrada a partir de diversas abordagens e finalidades por parte das ciências sociais, tendo, todavia, como
pressupostos basilares, o reconhecimento das viradas epistemológicas no
que tange à superação da transposição do positivismo mecânico do século
XIX, à abertura das ciências sociais aos enfoques sistêmicos e complexos,
e à virada descolonial dos saberes.
As ciências sociais desenvolvem um papel fundamental analítico,
crítico e propositivo à produção do conhecimento, ao sistema hegemônico
e às formas de transformação da realidade política, econômica, cultural,
socioambiental e jurídica. É a partir dessas perspectivas epistemológicas
das ciências sociais que interessa um maior aprofundamento do referencial
da ecologia política.
A ecologia política congrega diversas facetas da nova epistemologia socioambiental, com grande enfoque para a realidade dos conflitos
ou situações de injustiças socioambientais nas escalas locais, nacionais,
regionais e globais, passando por abordagens descoloniais e alternativas
à epistemologia europeia.
Entretanto, é pertinente a crítica quanto à carência de um maior
detalhamento sobre a maneira específica pela qual o poder é expandido
e negociado, quais seriam as formas de aplicar métodos e conclusões de
pesquisa na realidade, qual a diferença prática que a ecologia política realmente faz, e quais os obstáculos para uma ecologia política mais comprometida com a política.
Nessa toada, mostra-se pertinente o estudo do campo jurídico-institucional, assim entendido como campo de produção de normas, organização estatal e elaboração de medidas, projetos, programas, planos e políticas
públicas passíveis de enfrentamento socioambiental. Como espaço de
dominação e disputa, o campo jurídico-institucional apresenta potenciais
PODER NA EPISTEMOLOGIA SOCIOAMBIENTAL DA ECOLOGIA POLÍTICA: IDENTIFICAÇÃO DAS
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TRANSFORMATIVAS NO CAMPO JURÍDICO-INSTITUCIONAL
relevantes de transformações práticas nessa realidade, acentuando a necessidade do exercício político tanto do pesquisador, quanto da coletividade.
Por conseguinte, a partir da noção de campo social, desenvolvida
por Pierre Bourdieu, verifica-se a necessidade de maior enfoque: a) na
construção de práticas e estratégias políticas, envolvendo inclusive o desenvolvimento de novas possibilidades de diálogos e negociações políticas,
devidamente contextualizados para as realidades expropriatórias latino-americanas; b) na necessidade de revelação do político nas análises socioambientais oficiais (seja em estudos de impactos ambientais, projetos de leis,
justificativas e procedimentos público-governamentais de elaboração e
execução de projetos, programas, planos e políticas públicas), as quais
buscam sempre se dissociar do aspecto político, como algo não técnico e
não fundamental para a medida que se quer implantar ou políticas com
impactos socioambientais.
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OS SINTOMAS DA VIDA “AGORISTA” NA
SOCIEDADE DE CONSUMO: A QUESTÃO DOS
RESÍDUOS SÓLIDOS E A LAUDATO SI
THE SYMPTOMS OF LIFE “NOWIST” IN
CONSUMER SOCIETY: THE QUESTION OF
SOLID WASTE AND LAUDATO SI
Luiz Guilherme Natalio de Mello1
RESUMO: A tendência da vida “agorista”, de acordo com o aforismo
do sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, advém de uma sociedade cuja
configuração se baseia no anseio de permanecer consumindo de modo
demasiado. Tal conduta está alicerçada sob o excesso de ofertas, de maneira
que o impulso pelo consumo está vinculado de modo intrínseco com a
contínua insatisfação pelas pessoas em consumir, culminando no descarte
do lixo. Outrossim, o excesso de ofertas descortina a guinada da sociedade
ao desperdício, posto que consumir continuamente tornou-se sinônimo
de status social, de modo que o impulso em seguir as novas tendências é
congruente com o ato de descartar as antigas ofertas de bens que já não
atraem mais o público a quem se dirigem. A par destes fatos, o Papa Francisco sob uma retórica tão contemporânea quanto pedagógica, escreveu
um documento cujo conteúdo erigiu-se como um lampejo para a comunidade mundial. Destarte, a Encíclica Laudato Si – Sobre O Cuidado da
Casa Comum não se dirige apenas aos católicos, mas sim para todas as
pessoas, visto que, como realçado no subtítulo da Encíclica, a tutela ao
meio ambiente significa o “cuidado com a nossa casa”. Neste contexto, a
presente pesquisa almeja delinear a problemática do consumo e do descarte
de resíduos sólidos, utilizando como base o primeiro capítulo da Encíclica,
sob o título O que está a Acontecer à nossa Casa, enfatizando as vertentes
da “cultura do descarte”. Sob esta égide, pertinente trazer estes impasses
ao âmbito do direito brasileiro ao analisar como a Encíclica está relacionada com a Lei nº 12.305, da Política Nacional de Resíduos Sólidos, e de
quais maneiras o documento poderá ensejar a efetivação da mencionada
1 Graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Contato: luizgndm@gmail com
SINTOMAS DA VIDA “AGORISTA” NA SOCIEDADE DE CONSUMO: A QUESTÃO DOS RESÍDUOS
218 | OS
SÓLIDOS E A LAUDATO SI
Lei. Ainda de acordo com a Lei, o manejo dos resíduos sólidos detém um
relevante cunho social, devendo-se abarcar o importante trabalho dos
catadores de materiais recicláveis para que a Terra não se transforme em
um real depósito de lixo.
PALAVRAS-CHAVE: Consumismo; Descarte; Encíclica Laudato Si;
Política Nacional de Resíduos Sólidos.
ABSTRACT: The trend of life “nowist”, according to the aphorism of the
Polish sociologist Zygmunt Bauman, comes from a society whose configuration
is based on the desire to keep consuming overly. Such conduct is based on the
excess of offerings, so that the impulse for consumption is linked to intrinsic
mode with continuous dissatisfaction for people to consume, resulting in waste
disposal. Furthermore, excess offerings reveal the shift of society to waste,
since consuming continually became synonymous with social status, so that
the impulse to follow the new trends is consistent with the act of discarding
the old offers of goods which already do not attract more the public to whom
they were once addressed. Alongside these facts, the Pope Francisco in rhetoric
as contemporary as pedagogical, wrote a document whose content came as a
glimpse into the world community. Thus, the Encyclical Laudato Si - About
The Care of the Common House is not addressed only to Catholics, but to all
people, since, as highlighted in the subtitle of the Encyclical, safeguarding the
environment means “care of our home”. In this context, this research aims to
outline the problem of consumption and disposal of solid waste, using as a
basis the first chapter of the Encyclical, entitled What is Happening to our
house, emphasizing the aspects of “culture disposal”. Taking this into consideration, it is appropriate to bring these impasses the scope of Brazilian law
to analyze how the Encyclical is related to Law No. 12.305, the National
Solid Waste Policy, and in what ways the document may give rise to the realization of the mentioned Law. Also according to the law, the management
of solid waste has an important social aspect, and one should encompass the
important work of waste pickers so that the earth does not become a real dump.
KEYWORDS: Consumerism; disposal; Encyclical Laudato Si; National
Policy on Solid Waste.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 219
INTRODUÇÃO
Ao escrever “Admirável Novo Mundo”, o escritor britânico, Aldous
Huxley, vislumbrou uma sociedade consumista o qual reúne características similares com a nossa sociedade, sobretudo ao usufruir da literatura
distópica para escrever a sua obra.
A emergência que será abordada no presente trabalho é fecundada
a partir da crise ambiental, que se insere de maneira cada vez mais vertiginosa no cotidiano das pessoas. Para tanto, basta lembrar-se da teoria da
sociedade de risco elaborada pelo sociólogo Ulrich Beck, o qual adverte
que os riscos concretos estão se tornando abstratos, de modo que é difícil
mensurá-los, podendo culminar em danos ambientais extensíveis a todos,
prolongando-se até as futuras gerações.
Diante disto, percebe-se que a temática atinente aos resíduos sólidos
é algo que divide a atenção de diversos setores da sociedade. Isto ocorre
em decorrência da proximidade entre a problemática concernente ao consumismo com o consequente aumento do descarte de bens.
É digno de se mencionar os ensinamentos trazidos pelo Papa
Francisco através da Encíclica Laudato Si, documento que aborda o
consumismo e a geração de lixo mediante o que intitulou de “cultura do
descarte”.
Ainda, e como corolário disso, a vida “agorista” na sociedade de consumo em que se privilegia o consumidor “obediente” evidencia-se como
uma obstrução cuja transposição é difícil.
Tal consumidor segue continuamente as novas tendências ofertadas de modo constante pelo marketing, descartando bens mais arcaicos,
fato que se traduz em um obstáculo em face de leis e políticas ambientais
tendentes a amenizar os impactos ao meio ambiente ocasionados pelo
consumo desenfreado.
Outrossim, é forçosa a alusão ao artigo 225 da Constituição Federal,
ao Código de Defesa do Consumidor e, sobretudo, à Lei 12.305/2010
que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos.
A Lei almeja fornecer ferramentas e métodos para a gestão e o gerenciamento de resíduos sólidos, objetivando e sensibilizando diferentes setores da sociedade, quais sejam, a coletividade, os empresários e o poder
público, para uma atuação conjunta dirigida à resolução da crítica questão
SINTOMAS DA VIDA “AGORISTA” NA SOCIEDADE DE CONSUMO: A QUESTÃO DOS RESÍDUOS
220 | OS
SÓLIDOS E A LAUDATO SI
relativa ao consumo incessante e pelo decorrente aumento exponencial do
depósito de lixo, apresentando importantes aspectos sociais concernentes
aos catadores de materiais recicláveis e reutilizáveis.
A ESSÊNCIA DA VIDA “AGORISTA” NA SOCIEDADE DE
CONSUMO
Em vista da crise ambiental presente na contemporaneidade, é primordial visualizar que o consumo está vinculado de maneira íntima com
a produção de resíduos sólidos, afinal nota-se uma preponderância do
consumismo somada com o crescente descarte em face de uma ética voltada
para a conscientização ambiental focada na reciclagem e no reaproveitamento de bens.
Desde o capitalismo industrial, quando se inaugurou a massificação
da produção e do consumo, houve um aumento gradativo da extração de
recursos naturais para o fornecimento contínuo de matéria-prima para as
indústrias (EFING; SEERAGLIO, 2016, p. 226).
Todavia, de início, importa destacar como se desenvolve o consumismo na sociedade de consumo. Para tanto, relevante recordar o aforismo
do filósofo francês, Gilles Lipovetsky (GILLES, 2007, p.31), quem afirma
que a massificação do consumo foi obtida sob o alicerce dos shopping centers, dado que assim houve a ascensão de um meio eficiente pelo qual seria
possível seduzir os consumidores para a compra de bens.
Destarte, em uma sociedade embasada no consumo em massa, o
dinamismo dos bens ou a economia consumista é consoante com a vida
“agorista”, como define o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2008, p.
50). Logo, é plausível se admitir que a sociedade de consumo se orienta sob
este estandarte que realça o cotidiano “agorista”, no qual consiste em uma
vida “apressada”, sob a égide de que novas ofertas surgem abruptamente
e devem ser aproveitadas de maneira instantânea, algo que movimenta o
consumismo (BAUMAN, 2008, p. 50).
É possível constatar este fato, ao visualizar o modo como se
desenvolve o marketing que fomenta a contínua geração de novas ofertas
destinadas aos consumidores. A promessa da satisfação advinda pela compra de bens tem como elementos o impulso de adquirir e juntar (BAUMAN, 2008, p. 50). Todavia, os motivos latentes para a constância da vida
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 221
“agorista” se dão pelos sentimentos de descarte e substituição (BAUMAN,
2008, p. 50):
Sim, é verdade que na vida “agorista” dos cidadãos da era consumista o
motivo da pressa é, em parte, o impulso de adquirir e juntar. Mas o motivo
mais premente que torna a pressa de fato imperativa é a necessidade de
descartar e substituir. Estar sobrecarregado com uma bagagem pesada,
em particular o tipo de bagagem pesada que se hesita em abandonar por
apego sentimental ou um imprudente juramento de lealdade, reduziria a
zero as chances de sucesso. “Não se deve chorar sobre o lei derramado”, é
a mensagem latente por trás de cada comercial que promete uma nova e
inexplorada oportunidade de felicidade.
Isto ocorre pelo fácil desapego aos bens antigos e, sobretudo, pelo
sentimento hedonista que o consumidor detém. O consumo é dinâmico e
os bens anunciados pelas ofertas necessitam ser renovados constantemente
para a manutenção do consumismo. Os bens antigos ou que falharam em
proporcionar a satisfação de quem os adquiriu, devem ser rapidamente
descartados a fim de que outros bens possam ser colocados em seu lugar
(BAUMAN, 2008, p. 51).
A vida “agorista” é congruente ao consumismo, visto que quando
um bem não atende as expectativas de quem o comprou, deverá ser rapidamente descartado como uma tentativa do indivíduo esquecer-se do
seu “fracasso” enquanto consumidor a fim de que possa usufruir de novas
“promessas de felicidade” que as ofertas consumistas propõem (BAUMAN, 2008, p. 51).
Logo, paulatinamente o consumo passou a influenciar o campo cultural, tornando o consumo pelo consumo em um consumo que vise atender
signos e valores culturais (EFING; SEERAGLIO, 2016, p. 230). Como
afirmam Antônio Carlos Efing e Diogo Andreola Serraglio, a cultura do
consumo é sinônima da cultura da acumulação material (2016, p. 230).
É certo que o consumismo é eivado de uma justificativa focada em
conduzir os consumidores a uma vida feliz (BAUMAN, 2008, p. 51). A
felicidade é prometida de maneira tão contínua quanto os produtos são
comprados e sucessivamente descartados. Logo, como defende Zygmunt
Bauman, existe uma vertiginosa associação entre o marketing da sociedade
de consumo e a felicidade, dado que aquela promete esta de modo instantâneo, isto é, a felicidade “agorista” e duradoura (BAUMAN, 2008, p. 60).
SINTOMAS DA VIDA “AGORISTA” NA SOCIEDADE DE CONSUMO: A QUESTÃO DOS RESÍDUOS
222 | OS
SÓLIDOS E A LAUDATO SI
No tocante aos sentimentos envoltos do consumismo, importa analisar que o individualismo surge como um meio para destacar-se em meio da
figura do “outro”. Em outras palavras, recorda-se do “outro” como alguém
a ser superado e, por conseguinte, “atirado para baixo”, como elucida Bauman (2011, p. 43). Os consumidores travam uma “rivalidade” entre si,
disputando quem está mais apto a consumir e, por consequência, ser mais
adepto à sociedade de consumo.
Desta forma, o “agorismo” é este estilo de vida presente na sociedade
de consumo com o objetivo de separar os consumidores legítimos que
seguem as novas tendências da moda, dos que não as seguem, sendo estes
últimos isolados do mercado de consumo e vislumbrados como “consumidores fracassados”, estigmatizados na sociedade de consumo.
O marketing exerce uma função ímpar para a manutenção deste
cenário. Como explica Maristela Marques de Souza (SOUZA, 2014, p.
131), a publicidade muitas vezes, desfrutando de uma retórica que realça
a importância da sustentabilidade, faz com os consumidores adquiram
o produto que está sendo anunciado, fazendo-os pensar que estão assim
contribuindo com o meio ambiente quando em verdade não estão.
É pertinente estar atento com estas adversidades no mercado de
consumo, dado o seu forte impacto no âmbito ambiental. Sendo assim, o
artigo 225, caput, da Constituição Federal estabelece que toda a coletividade não só detém o direito ao meio ambiente, como o dever, juntamente
com o poder público de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações. A proteção ambiental tornou-se verdadeiramente um direito
fundamental da pessoa humana (SILVA, 2013, p. 58).
Importa enfatizar que o crescente incentivo ao consumismo vem
culminando na consolidação de danos ambientais. Entretanto, um dos
motivos pelos quais não tem se dado relevante importância aos efeitos
dos impactos no ambiente, se deve ao fato que muitas das consequências
destas ações humanas afetarão de modo mais visível os indivíduos das
próximas gerações da Terra.
Com isto, Bauman tece a sua crítica voltada à nossa moralidade que
representa uma herança dos tempos pré-modernos, sendo tal moralidade
direcionada à proximidade, incabível em uma sociedade globalizada, em
que as ações produzem impactos que surtem efeitos mesmo naqueles que
ainda ocuparão a Terra (BAUMAN, 1997, p. 247).
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 223
Compartilhando de uma compreensão bastante similar, escreve o
filósofo Hans Jonas, ao tratar do que intitulou de Princípio da Responsabilidade, que os seres humanos possuem a responsabilidade em tutelar
pelo bem-estar daqueles que ainda viverão na Terra (2006, p. 72).
A dificuldade que o filósofo alemão vislumbra se refere ao fato de
que tendo em vista esta distância em termos de tempo entre os indivíduos
da atual geração e das próximas, os problemas que permearão a Terra no
futuro não nos motivam a realizar mudanças, visto que não nos influenciam substancialmente (Hans Jonas, p. 72).
Esta indiferença, aplicada em um panorama internacional, permite
deslindar a problemática ambiental em diversos países com base no aforismo de Ulrich Beck.
Elucida o sociólogo alemão que o desemprego em massa que permeia
os países correspondentes ao intitulado “terceiro mundo” somado aos
países outrora comunistas, acaba por “impor” aos governos destes países
a obrigação de adotarem políticas econômicas direcionadas à exportação,
mesmo que padeçam ao respeito pelos valores sociais e ambientais (BECK,
1999, p. 206).
Tal situação se configura em cenários em que as condições de trabalho são precárias e, em grande parte dos casos, o meio ambiente sofre de
práticas extrativistas para a retirada da matéria-prima. Como afirma Ulrich
Beck (1999, p. 207), os países desenvolvidos fazem uso deste quadro a fim
de usufruir do baixo custo da mão-de-obra.
Isto se dá em razão de que em muitos casos, a pobreza e o desrespeito ao meio ambiente descortinam-se na vida real de maneira conjunta,
compartilhando-se do mesmo espaço e afetando as mesmas pessoas. Por
consequência disto, nota-se a importância destinada ao bem-estar social
quando se discute matérias ambientais, mediante, por exemplo, a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, documento elaborado em meio da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente
e Desenvolvimento, evento realizado no Rio de Janeiro em 1992.
Dentre os princípios elaborados, faz jus elencar os princípios 1, 3 e 5,
os quais descrevem, respectivamente: a importância do desenvolvimento
sustentável e da vida saudável e produtiva; que o direito ao desenvolvimento deve atender as necessidades do próprio desenvolvimento e também
do meio ambiente das atuais e futuras gerações e por fim, que o Estado e
SINTOMAS DA VIDA “AGORISTA” NA SOCIEDADE DE CONSUMO: A QUESTÃO DOS RESÍDUOS
224 | OS
SÓLIDOS E A LAUDATO SI
cada indivíduo, a fim de se desenvolverem sustentavelmente, atuarão em
conjunto para eliminar a pobreza (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS, 2012).
Ao se tratar da vida “agorista” na sociedade de consumo, importante analisar também a relação entre o consumo e a economia. Destarte,
descreve Ricardo Abramovay, professor de economia da Universidade de
São Paulo, que o extrativismo de recursos naturais exercido em âmbito
global aumentou em oito vezes no decorrer do século XX (ABRAMOVAY, 2012, p. 20).
Na medida em que o aumento do consumo demanda um óbvio incremento da contínua extração de recursos naturais, Ricardo Abramovay,
citando dentre outros dados, como o de que um estadunidense consome
aproximadamente 3,4 toneladas por ano de carvão mineral, explica que
o nível de recursos naturais utilizados pelo homem deve diminuir para
haver uma melhoria nas questões ambientais (ABRAMOVAY, 2012, p.
20). Desta maneira, esclarece que esta mudança será promovida somente
com a união entre encontrar os limites da produção e consumo e a inovação relativa a meios mais sustentáveis de produção (ABRAMOVAY,
2012, p. 20).
Neste contexto, prossegue o economista ao afirmar que deverá existir uma nova economia moldada sob as premissas de almejar a redução
do uso do carbono como fonte energética e na fabricação de bens, bem
como de assegurar a permanência e a regeneração dos recursos naturais
(ABRAMOVAY, 2012, p. 21).
Sob esta vertente, Ricardo Abramovay afirma que esta nova economia deverá possuir um metabolismo industrial que não seja um focado
meramente na produção e consumo em níveis incessantes (ABRAMOVAY, 2012, p. 21).
Ao se tratar do consumo em excesso, há de se falar de como se
desenvolvem as relações de consumo sob a ótica da legislação brasileira,
dado que o consumidor é um dos protagonistas dos temas relativos à
sustentabilidade.
O Código de Defesa do Consumidor foi elaborado, em síntese, com
a finalidade de conceituar as figuras do consumidor e do fornecedor, além
de regular as relações de consumo.
A relação de consumo é aquela cujos sujeitos por ela abrangidos
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 225
sejam consumidor e fornecedor, consistindo no objeto desta relação o
liame jurídico estabelecido entre tais personagens que poderá envolver
um produto ou uma prestação de serviço (EFING, 2004, p. 46).
Descrever a figura dos consumidores significa abordar a coletividade
de pessoas, motivo pelo qual o Código de Defesa do Consumidor tutela
esta coletividade de condutas existentes das relações de consumo, como,
por exemplo, as práticas comerciais abusivas, fraudes na oferta e publicidade e outras (EFING, 2004, p. 53).
Como já destacado anteriormente, o consumismo usufrui da publicidade a fim de manter continuamente o consumo em excesso. Como a
conscientização é imprescindível para mostrar à coletividade o forte vínculo entre o consumismo e a geração de resíduos sólidos, os consumidores
dispõem para a sua proteção dos artigos 4º, 6º e 7º, ambos do Código de
Defesa do Consumidor.
O artigo 4º destaca que a Política Nacional das Relações de Consumo
busca atender, dentre outros elementos, as necessidades do consumidor, o
respeito à sua dignidade e a transparência das relações de consumo. Ademais, o artigo 6º, inciso III, que integra o capítulo III destinado a definir os
direitos básicos do consumidor torna ainda mais claro esta proteção contra
a publicidade enganosa e abusiva ao fixar como direito básico tal tutela.
Para a conscientização dos consumidores, deve-se agregar na legislação consumerista a importância da educação ambiental, haja vista que o
seu fomento recebeu a atenção do constituinte, como expresso no artigo
225, parágrafo 1º, inciso VI, da Constituição Federal.
Nesta conjuntura, constata-se que a coletividade dispõe de uma série
de ferramentas cuja principal essência é a de asseverar o desenvolvimento
sustentável.
Contudo, a plena sustentabilidade, ora na produção, ora no consumo, só pode ser alcançada ao se entender a relação entre o consumismo
e o descarte de bens, para que, enfim, possa se assegurar uma vida adequada
para as atuais e futuras gerações.
A POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS E A “CULTURA DO DESCARTE”
Ao tratar da vida “agorista” na sociedade de consumo, é imperioso
SINTOMAS DA VIDA “AGORISTA” NA SOCIEDADE DE CONSUMO: A QUESTÃO DOS RESÍDUOS
226 | OS
SÓLIDOS E A LAUDATO SI
observar o consumidor inconsciente. Este consome em demasia ora em
decorrência da publicidade pouco transparente que se colide diretamente
com quaisquer premissas de educação ambiental para a conscientização,
que o faz acreditar que está consumindo bens sustentáveis, ora devido à
“liquidez” que caracteriza a própria vida “agorista”.
Consumidores e fornecedores não estão em lados opostos, dado que
estes últimos também são consumidores em parte majoritária dos casos.
O que é forçoso de se fazer é uma reflexão somada com uma atuação com
vistas a reduzir a “liquidez” presente nas relações de consumo.
Percebe-se um crescente “individualismo” e a “liquidez” das relações.
Com isto, afirma Zygmunt Bauman que os consumidores acabam por
perseguir tendências, de modo que quando uma nova surge, a antiga é
facilmente descartada e até repudiada, afinal na sociedade de consumo
não se surgem vínculos deveras sólidos, portanto, em decorrência disto as
relações são como “líquidos” que mudam de estado rapidamente (BAUMAN, 2008, p. 101).
A geração dos resíduos sólidos é congruente à expansão do consumismo. Deste modo, o excesso de ofertas pressupõe um aumento no
depósito de resíduos (que por vezes é realizado até em locais inapropriados
para tanto).
Empreender esforços a fim de viabilizar a conscientização da proximidade entre a vida “agorista” e a “cultura do descarte”, é vislumbrar que
a publicidade enganosa exerce uma opulenta influência no consumismo,
que por sua vez dirime as possibilidades de um consumo sustentável.
Com isto, faz jus a exposição da Lei 12.305/2010, da Política Nacional de Resíduos Sólidos, mostrando a sua proximidade com a encíclica
Laudato Si.
Trata-se de uma das legislações mais modernas no país em âmbito
ambiental, trazendo diversos termos, disposições e debates, como o da
responsabilidade pós-consumo, logística reversa e até dos catadores de
materiais reutilizáveis e recicláveis.
No tocante à Carta Encíclica, tal é um documento escrito pontifício,
dirigido aos bispos, e, desse modo, aos fiéis de todo o mundo.
A despeito de existir esta tradição em ser destinada aos católicos, a
Carta Encíclica Laudato Si diferencia-se por ser um documento dirigido
a todas as pessoas do mundo, católicas ou não, dado que trata do meio
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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ambiente, tema que interessa toda a coletividade.
O Capítulo I da Encíclica, intitulada “O Que Está a Acontecer à
Nossa Casa?”, conduz ao leitor uma indagação acerca das mudanças no
meio ambiente que estão ocorrendo na Terra, sobretudo, ao tratar de temas
ambientais que nos trazem expressiva preocupação.
Outrossim, como já citado anteriormente neste trabalho sobre o
Princípio da Responsabilidade de Hans Jonas, e elencado na Encíclica, há a
importante lembrança das futuras gerações. Isto porque, o Papa Francisco
escreve que ainda não se conseguiu engendrar um modelo de produção
pelo qual se assegure recursos para as próximas gerações (IGREJA CATÓLICA, 2015).
Além disto, afirma o Papa que os bens na “cultura do descarte” se
transformam rapidamente em lixo, por serem descartáveis, de maneira
que o sistema industrial ainda não conseguiu elaborar um meio capaz de
absorver e reutilizar os resíduos (IGREJA CATÓLICA, 2015).
A Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos advém de debates
de vários setores da sociedade, de modo que para a sua elaboração fora
realizado um levantamento sobre a geração e a disposição do lixo no Brasil,
esboçando-se então quais eram as exigências para melhorar o cenário do
depósito de lixo (VIEGAS, 2013, p. 404).
O debate surgiu em 1991, mediante o Projeto de Lei 203 que dispunha sobre a disposição dos resíduos de serviços da saúde (MINISTÉRIO
DO MEIO AMBIENTE, 2014). Em 2005, houve o encaminhamento ao
Congresso Nacional do anteprojeto de lei da Política Nacional de Resíduos
Sólidos. Neste mesmo ano, foi realizada a II Conferência Nacional de Meio
Ambiente a fim de encorajar a elaboração de políticas ambientais, sendo
que o tema dos resíduos sólidos recebeu prioridade (MINISTÉRIO DO
MEIO AMBIENTE, 2014).
Em 2007, o texto é finalizado e remetido à Casa Civil, porém, apesar
dos resíduos sólidos serem algo intrínseco às mais diversas sociedades
ao longo da história, somente em 2010 foi sancionada a lei que criou
a Política Nacional de Resíduos Sólidos (MINISTÉRIO DO MEIO
AMBIENTE, 2014).
Percebe-se que a lei abarca diversos setores da sociedade, aos quais
é possível se separar entre a coletividade, empresários e o poder público,
conforme o expresso no artigo 25 da Lei 12.305/2010. De acordo com o
SINTOMAS DA VIDA “AGORISTA” NA SOCIEDADE DE CONSUMO: A QUESTÃO DOS RESÍDUOS
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SÓLIDOS E A LAUDATO SI
dispositivo, todos são responsáveis para a efetivação da Política Nacional
de Resíduos Sólidos.
Tão importante quanto atribuir as responsabilidades, foram as definições e os princípios elencados nos artigos 3º e 6º, respectivamente, ambos
da Lei. Portanto, dentre outros conceitos oriundos da Lei, destaca-se o
de destinação e disposição ambientalmente adequadas, conceituados nos
incisos VII e VIII, ambos do artigo 3º, sendo que a primeira comporta os
resíduos sólidos (artigo 3º, inciso XVI) e a última os rejeitos, os quais são
resíduos sólidos inviáveis de tratamento e recuperação (artigo 3º, inciso
XV).
O inciso XII do artigo 3º dispõe sobre a logística reversa, ferramenta
importante para o desenvolvimento socioeconômico, o qual consiste na
coleta e restituição dos resíduos para reaproveitamento em um novo ciclo
de produção ou outra destinação final2. Certamente, estas embalagens
devem ser fabricadas a partir de materiais que oportunize a reutilização
ou reciclagem (artigo 32, caput).
A responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos
(artigo 3º, inciso XVII) deve ser lida em conjunto com o artigo 6º, inciso
VIII, este que considera o resíduo sólido como bem socioambiental, afastando-se do conceito da res derelictae (coisa abandonada), trazido pelos
direitos reais, que não consagra nenhuma responsabilidade pós-consumo
(LEMOS; MENDES, 2013, p. 43)3.
A responsabilidade pós-consumo é deveras próxima do debate social
em torno da Política Nacional dos Resíduos Sólidos. As notáveis facetas
sociais se dão pela consideração dos resíduos sólidos como bens socioambientais, de acordo com o já mencionado, o encorajamento às medidas
de educação ambiental (artigos 5º e 8º, inciso VIII, da Lei) e mediante as
alusões aos catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis.
2 No tocante à efetividade da logística reversa, relevante destacar o óbice que existe para a
conscientização acerca da coleta de bens e as dificuldades em torno do reaproveitamento
de determinadas embalagens com chances reduzidas de reaproveitamento e outros eletrodomésticos sob a obsolescência programada.
3 Observa-se no artigo 9º, caput, da Lei 12.305/2010 uma espécie de “hierarquia” no que
tange à destinação ambientalmente qualificada dos resíduos e rejeitos, de maneira que é
importante seguir a ordem de prioridade: não geração, redução, reutilização, reciclagem,
tratamento dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente qualificada dos rejeitos. A precedência da não geração ocorre, posto que se trata de um resíduo que sequer
foi fabricado, não existindo qualquer dano ao meio ambiente e, porquanto, sendo uma
ferramenta à favor da diminuição da produção e consumo em excesso.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 229
O prazo de 4 (quatro) anos estabelecido pela Lei para os munícipios
brasileiros reajustarem o modo de realizar a gestão e o gerenciamento
ambientalmente qualificado dos resíduos sólidos não restou cumprido,
havendo uma polêmica discussão para a sua prorrogação (SENADO
FEDERAL, 2014).
Por conseguinte, os lixões ainda são uma realidade no Brasil4. Não
obstante, é considerável lembrar o documentário Ilha das Flores, o qual
mostra não somente o depósito dos resíduos sólidos em lixões, mas sim, e,
sobretudo, a vida das pessoas que dependem do lixo para a sobrevivência.
O documentário aborda uma linha de produção e consumo deveras
comum na sociedade de consumo, utilizando como exemplo o tomate,
mostrando desde o seu colhimento até o momento que se torna rejeito.
Todavia, muito embora o tomate tenha sido descartado, ainda é aproveitado pelos consumidores que vivem em lixões, onde retiram a sua subsistência, vivendo à margem da sociedade de consumo.
O tomate simboliza aqueles bens que não obstante sejam descartados
por dado consumidor, ainda sim não são vislumbrados como plenamente
fora de uso pelos consumidores que se concentram na fase de pós-consumo
dos resíduos.
Sendo assim, é imperiosa a consolidação das premissas sociais da
Política Nacional de Resíduos Sólidos, sublinhando-se a importância dos
catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis que na maioria dos casos
enquadram-se nas classes economicamente mais baixas da sociedade.
Na Encíclica Laudato Si, o Papa Francisco escreve que o problema
do lixo é diretamente relacionado com a “cultura do descarte”, sendo este
problema de expressiva gravidade, tendo como condão a transformação
de fascinantes paisagens em lugares dominados pelo depósito do lixo
(IGREJA CATÓLICA, 2015).
Leonardo Boff compartilha de um posicionamento similar, atribuindo esta situação ao fato de que o “sonho” do crescimento ilimitado
pressupõe a invenção de forças destrutivas (BOFF, 1996, p. 88):
En una perspectiva ecológica, el sueño del crecimiento ilimitado significa
la invención de fuerzas destructivas (en vez de productivas) y la producción
4 Para tanto, basta lembrar um dos maiores e mais conhecidos lixões da América Latina,
o Lixão da Estrutural em Brasília, que comporta lixo em uma área aproximada de 200
hectares.
SINTOMAS DA VIDA “AGORISTA” NA SOCIEDADE DE CONSUMO: A QUESTÃO DOS RESÍDUOS
230 | OS
SÓLIDOS E A LAUDATO SI
histórico-social de la enfermedad y de la muerte de la Tierra, de sus especies
y de todo lo que la compone.
Ademais, completa Leonardo Boff (1996, p. 89), mormente à crise
ambiental, que diante deste ciclo de produção e de consumo, não se visualizam as suas causas e nem os motivos que levam à pobreza (questão bastante próxima das crises ambientais, como já exemplificado na temática
pertinente aos lixões):
No se analizan las causas reales de la pobreza y del deterioro ambiental.
Éstas son precisamente el resultado del tipo de desarrollo que se practica
altamente concentrador, explotador de las personas y de los recursos de la
na-turaleza. En consecuencia, cuanto más intenso sea ese tipo de desarrollo,
para beneficio de algunos, más miseria y degradación producirá para las
grandes mayorías.
As políticas ambientais inerentes à Política Nacional de Resíduos
Sólidos só passarão a ser plenamente sustentáveis quando associarem as
problemáticas do consumismo com a “cultura do descarte”, buscando
contribuir de igual maneira para as questões sociais afetadas pela crise
ambiental.
Neste contexto, o economista indiano e professor da Universidade de
Harvard, Amartya Sen, incorpora a pobreza com a privação de liberdade.
Assim, dadas questões ambientais que impactam na pobreza são evidenciadas por Amartya Sen através do precário acesso ao saneamento básico
ou água tratada (2000, p. 29). Tais problemáticas ocasionam, segundo o
economista, em formas de privação de liberdade (2000, p. 29).
Cuidar de nosso planeta não se limita unicamente em buscar a proteção do meio ambiente, mas também de quem está nele, portanto, neste
ponto, reside a importância impar da face social, seja da Lei 12.305/2010,
seja da Encíclica Laudato Si.
Em vista destes impasses deveras complexos, o jurista Edis Milaré
(2013, p. 104) assente que na pós-modernidade a sociedade se desconexa
com o passado e centraliza as suas atenções às transformações rápidas da
era contemporânea. Em seguida, o jurista indaga em quais alternativas
as pessoas devem estar mais atentas, isto é, se ao antropocentrismo ou ao
ecocentrismo (MILARÉ, 2013, p. 104).
Edis Milaré (2013, p. 106) também faz uma interessante observação
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 231
ao estabelecer o meio ambiente como “patrimônio da humanidade”, uma
vez que deste modo pretende-se sobrepujar a concepção patrimonialista,
impulsionando o entendimento de que a natureza não nos pertence, porque ela possui um valor próprio, valendo-se igualmente para além das
gerações humanas:
Nestes termos, a consagração do meio ambiente como “patrimônio da
humanidade” supera a concepção patrimonialista de cunho material e lhe
confere a verdadeira figura: o valor intrínseco do mundo natural, em verdade, não nos pertence: ele existe in se e a se. A natureza vale sempre, para
além das suas gerações humanas, porque tem valor em si mesma e vale por si.
A acepção do resíduo sólido como bem socioambiental, ao invés
de considerá-lo como coisa abandonada de acordo com os direitos reais,
é um indício veemente de que o ordenamento jurídico vem buscando se
adequar com a atual conjuntura destinada a resolver os problemas gerados
pela crise ambiental.
Percebe-se que existem diversos instrumentos legais para a resolução
da crise ambiental no que atina aos resíduos sólidos. Juntamente com os
esforços destinados à efetivação plena das leis e políticas ambientais, é
imperioso o debate acerca da associação entre o consumismo e a “cultura do
descarte”, e, principalmente, que os consumidores percebam os malefícios
da vida “agorista” bastante presente na sociedade de consumo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho vislumbrou a notável relação entre o aforismo do Papa
Francisco consubstanciado na Encíclica Laudato Si e a Lei 12.305/2010
que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, estando ambas sob
o contexto da sociedade de consumo permeada pelo consumismo e pela
consequente problemática atinente à geração do lixo.
O âmago da crise ambiental é alicerçado sob o “individualismo” e a
vontade de “consumir hoje e agora”, permitindo-se que caia ao ostracismo
o pensamento direcionado à ecologia e ao desenvolvimento sustentável.
Ora, o que se pretende é desencadear um meio pelo qual exista um
desenvolvimento efetivamente sustentável, posto que, muito embora seja
algo de interesse de todos os setores da sociedade, o termo “sustentabilidade”
SINTOMAS DA VIDA “AGORISTA” NA SOCIEDADE DE CONSUMO: A QUESTÃO DOS RESÍDUOS
232 | OS
SÓLIDOS E A LAUDATO SI
aparentemente ainda não foi plenamente compreendido.
Imperioso realizar tal observação, a fim de que sejam balizadas as
medidas, competências e responsabilidades atreladas à efetivação das políticas ambientais pertinentes aos resíduos sólidos. As pessoas, independente
de figurarem como consumidoras ou fornecedoras, devem atuar como
cidadãos, privilegiando um dever de preservar o meio ambiente.
No entanto, embora atualmente esteja recebendo substancial relevo,
a questão ambiental ainda se colide com peculiaridades presentes na sociedade de consumo, como o marketing que encoraja o estilo de vida “agorista”, em que se valoriza o consumo imediato e em excesso, como salienta
Zygmunt Bauman.
A vida “agorista” excede as relações de consumo, influenciando os
consumidores ao estabelecerem novas tendências da moda, fomentando
o consumo de novos produtos e o rejeito dos bens antigos. Por lógica, este
descarte é efetivado para que os produtos antigos deem os seus lugares
aos novos, sendo este fato um elemento para a manutenção da “cultura
do descarte”, como escreveu o Papa Francisco na Encíclica Laudato Si.
A ligação entre o consumismo e a geração de lixo passa-se despercebida aos olhares de muitos consumidores, pelo fato de que ainda é necessário um fomento à educação ambiental com vistas a “repelir” a publicidade
que privilegia o consumismo. Próximo disto é importante dar atenção aos
catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis que cumprem um papel
primordial no reaproveitamento de resíduos sólidos.
Para tanto, o elo entre a Encíclica Laudato Si e a Política Nacional
de Resíduos Sólidos é deveras marcante no que se refere ao modo como se
desenvolve a sociedade na contemporaneidade, que se encontra fortemente
influenciada pela “cultura do descarte”.
Desta maneira, é importante que os traços da vida “agorista” sejam
abandonados, viabilizando o respeito ao meio ambiente para as atuais e
futuras gerações, sob a compreensão de que não é necessário e tampouco
possível um ciclo de produção e de consumo ilimitados.
REFERÊNCIAS
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Paulo: Abril, 2012.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 233
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Tradução de Sebastião Nascimento. 2ª ed. São Paulo: 34, 2011.
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415, out./dez. 2013.
REFLEXÕES SOBRE AS PERSPECTIVAS DE PROTEÇÃO
DO DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE
REFLECTIONS ABOUT THE PERSPECTIVES
OF PROTECTION FOR THE FUNDAMENTAL
RIGHT TO ENVIROMENT
Flora Regina Camargos Pereira1
RESUMO: O presente trabalho tem por escopo verificar em que medida
podem ser aplicadas as proteções de cunho vertical (subjetivo) e horizontal
(objetivo) dos direitos fundamentais ao direito ao meio ambiente, previsto
no art. 225 da Constituição Federal de 1988. Para tanto, inicialmente é
traçado um rápido panorama sobre os direitos fundamentais, seu conceito,
dimensões e formas de proteção. Nesse último tópico, discorre-se sobre
as formas de proteção objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais. A
fim de inserir o direito ao meio ambiente nesse contexto, busca-se uma
conceituação e algumas características relevantes desse importante direito,
incluindo suas formas de proteção no ordenamento jurídico brasileiro. Por
fim, relacionando os temas anteriormente tratados, chega-se a conclusão
de que a proteção do direito ao meio ambiente na perspectiva horizontal
é tão útil e necessária quanto a proteção na perspectiva vertical. Tal viés
de proteção se reveste de inegável relevância, razão pela qual deve ser buscado para garantir a devida proteção ao meio ambiente, o que certamente
garantirá a sobrevivência da espécie humana.
PALAVRAS-CHAVE: Meio Ambiente; Direitos fundamentais; Perspectivas de proteção.
ABSTRACT: This work has the scope to check to what extent can apply
the vertical nature protection (subjective) and horizontal (objective) of the
fundamental rights the right to the environment provided for in art. 225
of the Federal Constitution of 1988. Therefore, it is initially drawn a quick
overview of the fundamental rights, its concept, dimensions and forms of
1 Mestranda em direito constitucional (Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP),
área de concentração Direitos e Garantias Fundamentais.
Contato: floracamargos@yahoo.com.br
SOBRE AS PERSPECTIVAS DE PROTEÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO
236 | REFLEXÕES
AMBIENTE
protection. In the latter topic, it elaborates on the ways of objective and subjective protection of fundamental rights. In order to insert the right to the
environment in this context, we seek a conceptualization and some relevant
characteristics to this important law, including their forms of protection in
the Brazilian legal system. Finally, listing the topics previously treated, one
comes to the conclusion that the protection of the right to the environment in
the horizontal perspective is as useful and necessary as protection in vertical
perspective. Such protection bias is of undeniable importance, reason should
be sought to ensure adequate protection to the environment, which certainly
will ensure the survival of the human species.
KEYWORDS: Environment; Fundamental rights; Protection perspective.
INTRODUÇÃO
Presente no art. 225 da Carta Constitucional vigente, o direito ao
meio ambiente é uma realidade. Contudo, as maneiras pelas quais esse
direito fundamental pode ser protegido e garantido diante de sua amplitude e importância ainda parecem insuficientes.
Apesar dos avanços trazidos pela legislação vigente sobre o tema,
entre os quais se destacam as várias formas de proteção abarcadas pela
própria Constituição de 1988, muito ainda há que ser feito para a efetiva
proteção do direito ao meio ambiente sadio. As pesquisas e avanços que
envolvem o tema, diretamente ligado às inovações da tecnologia, demandam constantemente regramentos novos. Tendo em conta tais demandas
é pertinente a indagação sobre as formas de proteção desse direito.
Considerado direito de terceira geração, o meio ambiente sadio é
direito fundamental e como tal deve ter a mais ampla proteção possível.
Assim, o presente trabalho se presta a investigar em que medida a proteção
ao meio ambiente pode e deve ocorrer nas perspectivas subjetiva e objetiva
de proteção dos direitos fundamentais.
Nesse desiderato, apresenta-se em primeiro lugar um panorama geral
sobre as formas de proteção dos direitos fundamentais, por certo sem a
pretensão de esgotar o tema.
Na sequência, são traçadas algumas linhas sobre o direito ambiental,
especificamente pelo viés de direito fundamental ao meio ambiente sadio.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 237
Por fim, procede-se ao relacionamento dos dois temas anteriores na
busca de uma conclusão que deságue na mais ampla proteção do direito
fundamental em comento.
DIREITOS FUNDAMENTAIS
Inicialmente, é importante que se apresente um conceito aproximado dos direitos fundamentais. Para SILVA (2004, p.178) em razão da
riqueza multifacetária da expressão direitos fundamentais do homem, sua
concretização é tarefa difícil. O mesmo autor segue afirmando que quem
chegou mais perto de um conceito adequado de direitos fundamentais foi
LUÑO (1995, p. 48) quando os identificou
(...)como conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento
histórico, materializam as demandas de dignidade, de liberdade e de igualdade, as quais devem ser positivamente reconhecidas pelos ordenamentos
jurídicos em níveis nacional e internacional.2
Nessa perspectiva, é indispensável frisar que a defesa dos direitos
fundamentais é importante forma de concretizar a dignidade da pessoa
humana, fundamento do Estado Brasileiro (art. 1º, inciso III da Constituição Federal), assim como também é modo indicado a garantir a liberdade
e a igualdade supracitadas.
Diante disso, é possível e recomendável a criação de um estado
socioambiental de direito, como sugere SANTILLI (2007, p. 21) quando
diz:
(...) o socioambientalismo que permeia a Constituição brasileira privilegia e
valoriza as dimensões materiais e imateriais dos bens e direitos socioambientais, a transversalidade das políticas públicas socioambientais e a consolidação de processos democráticos de participação social na gestão ambiental.
Nesse sentido está a redação do art. 2253 que impõe a proteção e a
2 Numa tradução livre de: “como conjunto de faculdades e instituciones que, en cada
momento histórico, concretan las exigencias de la dignidad, la libertad y la igualdad humanas, las cuales deben ser reconocidas positivamente por los ordenamientos jurídicos a nível
nacional e internacional.”
3 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de
uso comum do povo e essencial a sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público
e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
SOBRE AS PERSPECTIVAS DE PROTEÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO
238 | REFLEXÕES
AMBIENTE
preservação do meio ambiente ao Poder Público e à coletividade.
DIMENSÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Os direitos fundamentais são intrínsecos ao ser humano. São o
conjunto de direitos e deveres, em um determinado período de tempo,
que legitimam a dignidade da pessoa humana e garantem a igualdade e a
liberdade. Sua gênese está ligada às lutas contra o Estado absolutista e por
isso suas primeiras manifestações foram direitos de liberdade, ou seja, de
abstenção do Estado frente aos cidadãos.
Com a evolução das sociedades isso se tornou pouco para garantir
a liberdade de modo material, clamada pelas lutas sociais, encabeçadas,
sobretudo, pelas doutrinas de cunho socialistas posteriores à primeira fase
dos direitos fundamentais. Assim, emergiram os direitos sociais.
Na sequência histórica, mais uma vez a evolução social clamou por
uma proteção maior, donde surgiram os direitos relativos à fraternidade,
direitos difusos e de cunho coletivo.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I - preservar
e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e
ecossistemas; II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e
fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem
especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei,
vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua
proteção; IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente
causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V - controlar a produção, a comercialização e o emprego
de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida
e o meio ambiente; VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e
a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; VII - proteger a fauna e
a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica,
provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. § 2º Aquele que
explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo
com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei. § 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas
físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação
de reparar os danos causados. § 4º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a
Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e
sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação
do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. § 5º São indisponíveis
as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à
proteção dos ecossistemas naturais. § 6º As usinas que operem com reator nuclear deverão
ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 239
Todo esse movimento é apresentado com as “dimensões”4 de direitos
fundamentais, que são comparadas ao lema da revolução francesa5 (liberdade, igualdade e fraternidade) na teoria apresentada por Karel Vasak.
BOBBIO (1992, p.5) desenvolve a teoria de Karel Vasak6, para
demonstrar o caráter histórico dos direitos fundamentais, afirmando que
as conquistas no campo dos direitos fundamentais são graduais e que os
direitos não nascem todos de uma vez, nascem quando devem ou podem
nascer.
Assim, a primeira dimensão perfaz direitos individuais, civis e políticos e representa a liberdade. A segunda dimensão é composta por direitos econômicos, sociais e culturais, por exemplo, direito à educação, ao
trabalho, à saúde, à previdência social e representa a igualdade. Por fim,
a terceira dimensão, engloba direitos relativos à evolução do patrimônio
comum da população, como, por exemplo, o meio ambiente, representando a fraternidade.
Há autores que admitem a existência de uma quarta geração de direitos, ligada ao contexto de globalização mundial, tais direitos objetivam
ampliar horizontes do ser humano como um todo. Entre os defensores
dessa vertente teórica, cita-se BONAVIDES (2010, p.571), o qual afirma
4 O termo está entre aspas, pois a terminologia pode ser considerada contraditória, já que
gerações se sucedem e não convivem em um mesmo espaço de tempo, o que não se dá com
os direitos fundamentais, pois novas conquistas não anulam as anteriores. Mesmo assim, há
autores preferem chamar de “gerações de direitos”, outros acham mais adequado os termos
“categorias/espécies” ou ainda “naipes/família”. Optou-se pela terminologia usada por
SARLET (2015),“dimensões”, que dá noção de complementariedade, para evitar a ideia
de descontinuidade contida na expressão “geração”, como se novos direitos superassem os
anteriores, o que não ocorre.
5 A teoria que compara os direitos fundamentais ao lema da revolução francesa advém da
concepção do jurista Karel Vasak, que por ocasião da aula inaugural do Curso do Instituto
Internacional dos Direitos do Homem, em Estraburgo, no ano de 1979, usou pela primeira
vez a expressão “gerações de direitos do homem”.
6 MARMELSTEIN (2008, p. 42) bem esclarece “o jurista tcheco Karel Vasak formulou, em aula inaugural do Curso do Instituto Internacional dos Direitos do Homem,
em Estraburgo, baseando-se na bandeira francesa que simboliza a liberdade, a igualdade
e a fraternidade teorizou sobre ‘as gerações – evolução – dos direitos fundamentais’, da
seguinte forma: a) primeira geração dos direitos seria a dos direitos civis e políticos, fundamentados na liberdade (liberté), que tiveram origem com as revoluções burguesas; b) a
segunda geração, por sua vez, seria a dos direitos econômicos, sociais e culturais, baseados
na igualdade (égalité), impulsionada pela Revolução Industrial e pelos problemas sociais
por ela causados; c) por fim, a última geração seria a dos direitos de solidariedade, em
especial o direito ao desenvolvimento, à paz e ao meio ambiente, coroando a tríade com a
fraternidade (fraternité), que ganhou força após a Segunda Guerra Mundial, especialmente
após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.”
SOBRE AS PERSPECTIVAS DE PROTEÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO
240 | REFLEXÕES
AMBIENTE
que
(...) a globalização política na esfera da normatividade jurídica introduz
os direitos da quarta geração, que, aliás, correspondem à derradeira fase
de institucionalização do Estado social. São direitos de quarta geração o
direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles
depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão
de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano
de todas as relações de convivência.
Há ainda quem fale em direitos de quinta geração. Não se tecerá
maiores comentários sobre os direitos de quarta e quinta dimensões já
que sequer são unânimes na doutrina constitucionalista. Ademais, tais
aprofundamentos fugiriam ao escopo desse trabalho.
Finalmente, ainda no que tange às gerações de direitos fundamentais,
vale trazer à baila a reflexão de BOBBIO (1992, p. 5):
Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender, fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais
fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos de certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades
contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez
e nem de uma vez por todas. O problema – sobre o qual, ao que parece, os
filósofos são convocados a dar seu parecer - do fundamento, até mesmo do
fundamento absoluto, irresistível, inquestionável, dos direitos do homem é
um problema mal formulado: a liberdade religiosa é um efeito das guerras
de religião; as liberdades civis, da luta dos parlamentares contra os soberanos absolutos; a liberdade política e as liberdades sociais, do nascimento,
crescimento e amadurecimento do movimento dos trabalhadores assalariados, dos camponeses com pouca ou nenhuma terra, dos pobres que
exigem dos poderes públicos não só o reconhecimento da liberdade pessoal
e das liberdades negativas, mas também a proteção do trabalho contra o
desemprego, os primeiros rudimentos de instrução contra o analfabetismo,
depois a assistência para a invalidez e a velhice, todas elas carecimentos que
os ricos proprietários podiam satisfazer por si mesmos. Ao lado dos direitos
sociais, que foram chamados de direitos de segunda geração, emergiram
hoje os chamados direitos de terceira geração, que constituem uma categoria
para dizer a verdade, ainda excessivamente heterogênea e vaga, o que nos
impede de compreender do que efetivamente se trata. O mais importante
deles é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver em
um ambiente não poluído.
A fala de BOBBIO (1992), evidencia que o direito ao meio ambiente
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 241
pertence à categoria dos direitos fundamentais de terceira dimensão. Na
mesma toada, Domenico Amirante apud MACHADO (2007, p. 118)
explica que o meio ambiente constitui um bem de desfrute simultaneamente geral e individual, mesmo sendo um bem coletivo. Segue afirmando
que o direito ao meio ambiente é a um só tempo direito de cada um e
também direito “transindividual” e por essa razão está na categoria de
direito difuso, espraiando-se para uma coletividade não determinada.
Para o autor, o direito ao meio ambiente insere-se na “problemática dos
novos direitos, sobretudo a sua característica de direito de maior dimensão”, que engloba tanto a dimensão do indivíduo, quanto a coletiva em
seu conjunto de atividades.
Dessa forma, percebe-se a dupla dimensão do direito ao meio
ambiente, isto é, direito de todos e de cada um. Ainda sob essa mirada
é possível se vislumbrar a ligação do direito ao meio ambiente com o
direito à vida na medida em que não há vida digna sem a garantia de um
meio ambiente sadio. Sem ele, pode nem sequer haver vida. A preservação ambiental correlaciona-se com a dignidade da pessoa humana, pois
a vida digna pressupõe um meio ambiente sadio e equilibrado. Infere-se,
assim, que o direito fundamental trazido pelo art. 225 da Constituição
de 1988 deve ser protegido em todas as perspectivas possíveis, conforme
apresentar-se-á na sequência.
PE R SPE C T I VA S D E PR OT E Ç ÃO D O S D I R E ITO S
FUNDAMENTAIS
As fases de evolução dos direitos fundamentais, tratadas no item
anterior, tiveram como consequência a ampliação das formas de proteção
e valorização crescente desses direitos.
A proteção calculada na primeira fase, isso é, quando se consolidaram
os direitos de primeira dimensão, visava apenas à abstenção do Estado
frente a alguns direitos dos cidadãos, sendo por isso chamada de aplicação
vertical ou subjetiva dos direitos fundamentais. Nesse momento inicial a
relação jurídica de direitos fundamentais teve como titular um indivíduo
e como destinatário o Estado.
Porém, a evolução das dimensões dos direitos fundamentais e da
sociedade fez surgir a necessidade de aplicá-los também nas relações entre
SOBRE AS PERSPECTIVAS DE PROTEÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO
242 | REFLEXÕES
AMBIENTE
particulares. Nessa seara, surgem duas doutrinas uma na Alemanha e outra
nos EUA que dão grande força ao desenvolvimento da ideia de aplicação de
preceitos de direitos fundamentais também às relações entre particulares.
A Doutrina alemã - Drittwirkung der Grundrechte (eficácia entre
terceiros) é percebida a partir da década de 1950. As ideias iniciais são
atribuídas a Hans Carl Nipperdey, teórico do direito do trabalho que
trouxe a indagação em razão das relações entre patrão e empregado. O
autor defendia que os direitos fundamentais também deveriam incidir
para proteger os indivíduos contra os poderes privados ou sociais. Tinha
em vista o contexto da lei fundamental de Bonn de 1949.
A horizontalwirkung, eficácia horizontal7, visava a abranger um
segundo plano de vigência dos direitos fundamentais, o plano horizontal
das relações entre particulares, além do plano vertical das relações entre
indivíduos e Estado. Sobre o assunto VALE (2005, p.59) afirma que:
A ideia de Drittwirkung dos direitos fundamentais é uma criação da ciência
jurídica alemã e representa, de acordo com INGO VON MÜNCH, um
dos conceitos jurídicos mais interessantes dos tempos modernos. Com
essa expressão alemã, denota-se a incidência dos direitos fundamentais nas
relações jurídicas privadas. (...) Posteriormente, a expressão Drittwirkung
chegou a ser substituída por Horizontalwirkung, que possui o significado
de “eficácia horizontal”, justamente para abranger um segundo âmbito de
vigência dos direitos fundamentais, ou seja, ao lado de um plano vertical,
no qual se dá as relações entre indivíduo e Estado, existe um plano horizontal, formado pelas relações entre indivíduos e entes privados entre si. É
dizer, o conceito de vigência horizontal de direitos fundamentais nasce em
oposição ao de vigência vertical, ou seja, de um contraste entre uma relação
de equiparação e outra de subordinação. Como bem coloca ALEXY, ao
tratar a respeito do tema, a relação Estado/cidadão é uma relação entre um
titular de direito fundamental e um não-titular de direito fundamental;
por outro lado, a relação cidadão/cidadão é uma relação entre titulares de
direitos fundamentais.
Em 1958, no Caso Luth8, o tribunal alemão fez uma construção de
7 Há aqueles que criticam essa nomenclatura (eficácia horizontal), alegam que nem sempre as relações entre particulares são horizontais, ou seja, em pé de igualdade. Assim,
seria melhor falar em eficácia entre terceiros. Ademais, alguns defendem que os direitos
fundamentais só deveriam incidir em relações que não são horizontais (como empregado
x empregador, empresário x consumidor).
8 CANARIS (2006, p. 227) comenta sobre o Caso Luth nos seguintes termos:“Uma
sentença do Tribunal Constitucional Federal, que versou sobre uma colisão entre o direito
delitivo (da responsabilidade por atos ilícitos) e a liberdade de opinião, passou a ser de
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 243
linhas de tratamento teórico da questão da eficácia dos direitos fundamentais em relações privadas que foi fonte de inspiração para Espanha, Portugal, Itália, Brasil, entre outros, com grande influência na jurisprudência.
O tribunal alemão pela primeira vez levantou o problema da eficácia dos
direitos fundamentais em plano horizontal, o que já era muito discutido
na doutrina. Isso representou um avanço significativo em relação às ideias
liberais, anteriormente reinantes, que apenas se preocupavam com a não
intervenção do Estado na esfera privada do indivíduo. Ali começava a
visão da dupla dimensão dos direitos fundamentais, ou seja, são direitos
subjetivos dos indivíduos em face do Estado (dimensão subjetiva) e também compõem uma ordem objetiva de valores, um sistema axiológico que
influencia todo o ordenamento jurídico (dimensão objetiva) e que abarca
a aplicação dos direitos nas relações entre os indivíduos.
É com fundamento na irradiação dos direitos fundamentais que todo
o ordenamento jurídico deve ser lido tendo em conta a ordem de valores
externada por eles, os quais impregnam todos os demais ramos do direito
(dimensão objetiva dos direitos fundamentais, ordem objetiva de valores).
O “efeito de radiação” dos direitos fundamentais nos demais ramos do
direito faz valer o conteúdo axiológico da prescrição constitucional, o que
justifica sua aplicação inclusive nas relações entre particulares.
Paralelamente ao Dirtriswirkung alemão, nos EUA, onde os direitos
fundamental importância para o tratamento da relação entre direitos fundamentais e
Direito Privado na Alemanha. No caso em exame, um particular (um cidadão de nome
Lüth, que ingressou por força dessa sentença na história do direito alemão) apelara, em
1950, aos proprietários e frequentadores de salas de cinema ao boicote de um novo filme,
argumentando que o diretor do mesmo rodara um filme antissemita durante o período
nacional-socialista. Os tribunais cíveis consideraram o apelo um ato ilícito, por ofensivo
aos bons costumes no sentido do estabelecido pelo §856 do BGB [Código Civil Alemão]
condenando, por conseguinte, o Sr. Lüth a não repeti-lo..NTRODUÇÃO.nciada na
Encíclica Em resposta ao recurso constitucional impetrado pelo Sr. Lüth, o Tribunal
Constitucional Federal cassou a sentença do tribunal cível, pois este teria, na aplicação do
§826 do BGB, violado o direito fundamental à liberdade de opinião do Sr. Lüth, assegurado
pelo artigo 5°, inciso I, da LF. Aqui o Tribunal Constitucional Federal utilizou-se pela,
primeira vez, da formulação entrementes célebre, de que a Lei Fundamental “erigiu na
seção referente aos direitos fundamentais uma ordem objetiva de valores[...], que deve valer
enquanto decisão fundamental de âmbito constitucional para todas as áreas do Direito”.
Disso seguiria que o sistema de valores dos direitos fundamentais “obviamente também
influi no Direito Civil [e] nenhuma prescrição juscivilista pode estar em contradição com
ele, devendo cada qual ser interpretada à luz do seu espírito [scil. do sistema de valores
- PN]”. Tendo em conta essa jurisprudência, o próprio Tribunal Constitucional Federal
cunhou a expressão, entrementes também célebre, do ‘efeito de irradiação’ dos direitos
fundamentais sobre o Direito Privado(...)”
SOBRE AS PERSPECTIVAS DE PROTEÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO
244 | REFLEXÕES
AMBIENTE
fundamentais eram muito mais ligados à perspectiva do Estado Liberal,
foi construída a state action (ação de estado). Na América do Norte os
direitos eram concebidos como oponíveis contra o Estado.
Na mesma época, na década de 1950, surge nos EUA o problema de
aplicar-se ou não os direitos fundamentais às relações privadas quando um
ato particular tem nuances de atividade pública. A partir disso, a Corte
Constitucional começou a construir uma doutrina de que as atividades
privadas nas quais se pudesse identificar algumas características públicas
também seriam protegidas pelos preceitos dos direitos fundamentais. Essa
jurisprudência começou a ser construída, sobretudo com os casos raciais,
por exemplo, nos white primary cases (casos que foram levados ao Judiciário
para questionar a conduta de alguns partidos políticos que só permitiam
o voto de brancos nas eleições primárias). Os partidos eram privados, mas
ao participar de eleições exerciam função eminentemente pública então
caberia o tratamento isonômico, seria uma relação entre particulares que
teriam que respeitar os direitos fundamentais.
Outro exemplo foram os tresspass cases, casos relativos à entrada e
saída de shoppings centers, que apesar de serem pessoa jurídica de direito
privado, seriam locais públicos e por isso teriam que respeitar certos direitos fundamentais e, desse modo, não se poderia limitar o acesso de algumas
pessoas.
Apesar de apresentarem algumas diferenças entre si, as duas doutrinas
supracitadas, americana e alemã, contribuíram de modo indispensável
para a consolidação da aplicação dos direitos fundamentais às relações
entre particulares.
Visto esse contexto, resta adentrar na questão proposta pelo presente
estudo: se além da perspectiva subjetiva, vertical, de aplicação dos direitos
fundamentais também poderia se vislumbrar a aplicação objetiva, entre
particulares, dos direitos fundamentais no que tange especificamente ao
direito ao meio ambiente.
Antes, porém, é relevante tecer alguns comentários específicos sobre
o direito ao meio ambiente.
MEIO AMBIENTE
O primeiro ponto a ser investigado é o conceito do que seja meio
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 245
ambiente. Tal busca mostra-se uma tarefa difícil, pois se trata de um objeto
complexo que lida com as mais variadas formas de viver.
A Constituição de 1988, no artigo 225, usou a expressão meio
ambiente, fazendo menção ao “bem de uso comum do povo essencial
à sadia qualidade de vida”. Com isso, segundo ROSSIT (2001, p. 26),
foram trazidos em conexão dois objetos: um imediato (meio ambiente
equilibrado) e outro mediato (saúde).
Ainda na procura de um conceito, a Lei Federal nº 6.938/81, que
trata da Política Nacional do meio ambiente, no seu art. 3º, define o meio
ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências e interações
de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em
todas as suas formas”.9
Segundo SILVA (2011) o respeito ao meio ambiente é essencial
à preservação do direito à vida humana. O mesmo autor define o meio
ambiente como a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais
e culturais que proporcionam o desenvolvimento equilibrado da vida em
todas as suas formas.
SILVA (2011, p. 19) também enfatiza o caráter redundante do
termo “meio ambiente”, já que “ambiente” contém a ideia do todo, sendo
a expressão “meio” usada no mesmo sentido. Porém, destaca que usar a
redundância enaltece a expressão, dando a ela maior relevância.
Outra forma de definição igualmente relevante é encontrada nas
palavras de ANTUNES (2008, p. 9), para quem:
Meio ambiente compreende o humano como parte de um conjunto de
relações econômicas, sociais e políticas que se constroem a partir da apropriação dos bens naturais que, por serem submetidos à influência humana,
transformam-se em recursos essenciais para a vida humana em quaisquer
de seus aspectos.
Dessa definição extrai-se que o meio ambiente constitui tudo que
circunda o homem, incluindo ele mesmo, o que ele modificou e o que ele
modificará. Isso explica as diferentes categorias insertas no conceito de
meio ambiente, como o natural, o cultural, o artificial e o do trabalho, já
que todos possuem a mesma gênese.
Consoante já abordado, o direito ao meio ambiente constitui um
9 Artigo 3, inciso I.
SOBRE AS PERSPECTIVAS DE PROTEÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO
246 | REFLEXÕES
AMBIENTE
direito fundamental de terceira dimensão e por isso deverá ser aplicado
na perspectiva mais dilatada possível. Ademais, trata-se de direito difuso
que se destina a proteger, mesmo que mediatamente, a saúde, o bem-estar, a segurança e a vida digna do homem como espécie. Em razão disso,
deve existir um perfil socioambiental que condicione as pessoas ao uso
adequado dos bens ambientais a fim de protegê-los, nem que para tanto
seja necessário o uso de meios coercitivos de responsabilização.
LEITE (2011, p. 215) afirma que o direito ao ambiente equilibrado
pode aparecer positivado de forma objetiva, subjetiva ou ambas. No primeiro caso o direito ao meio ambiente seria protegido como instituição,
isto é, a proteção ambiental, mesmo que ligada ao homem, se dá de modo
autônomo. Já na perspectiva subjetiva, a proteção ao ambiente se dá apenas
com caráter antropocêntrico, o meio ambiente é protegido unicamente
visando o bem-estar humano e não como bem autônomo. Finalmente a
dimensão objetivo-subjetiva se caracteriza como a mais moderna e avançada na medida em que considera a proteção do meio ambiente por meio
do reconhecimento simultâneo da proteção autônoma, independente
do ser humano, e do direito subjetivo do indivíduo. Para o mesmo autor
esta última seria a configuração mais completa. Ainda segundo o citado
autor, a perspectivada de proteção objetivo-subjetiva é a que se encontra
na atual constituição brasileira.
Assim, resta claro que no contexto da busca dessa proteção completa
muito se evoluiu com a edição da Constituição de 1988. Escrita após
a Declaração de meio ambiente de Estocolmo10, a Constituição cidadã
apresentou um viés protetivo buscando envolver tanto o Estado quanto a
sociedade nesse desiderato.
As normas pátrias, sobretudo a Constituição de 1988, preveem a
defesa do meio ambiente como uma obrigação do Estado, mas não somente
dele, como de todos da coletividade. LEITE (2011, p. 218) assevera que o
10 SILVA (2011, p.60) discorre sobre a Declaração do Meio Ambiente de Estocolmo do
seguinte modo: “Esse novo direito fundamental [direito à qualidade do meio ambiente]
foi reconhecido pela Declaração do Meio Ambiente, adotada pela Conferência das Nações
Unidas, em Estocolmo, em junho de 1972, cujos 26 princípios constituem o prolongamento da Declaração Universal dos Direitos do Homem.” Ainda é importante frisar outro
marco histórico internacional na proteção do meio ambiente que ocorreu 20 anos após a
Declaração de Estocolmo, que foi a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente
e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992, que reafirmou os princípios
enunciados em Estocolmo e adicionou outros sobre desenvolvimento sustentável.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 247
caput do art. 225 da Constituição de 1988 traz um dever de preservação
ambiental de titularidade compartilhada entre o Estado e a coletividade
com a previsão de um sistema de responsabilidade solidária e ética que visa
as futuras gerações. No que tange à coletividade, seus deveres se relacionam com outros direitos subjetivos, pois, por vezes, tendem a diminuir
outros direitos, como, por exemplo, o direito de propriedade em prol da
proteção ambiental.
Há que se considerar a dupla natureza do direito ao meio ambiente
equilibrado, ele é ao mesmo tempo o dever de cuidado conjunto da coletividade e do Estado e também o direito do cidadão de exigir do Estado e
dos demais cidadãos a proteção ambiental. Nesse contexto, LEITE (2011,
p.220) afirma que:
(...) o sistema positivo brasileiro institui uma democracia social ambiental,
concedendo ao cidadão legitimidade, a título individual, de exercer a tutela
jurisdicional ambiental (...) É direito subjetivo da personalidade, uma vez
que possibilita a todos os indivíduos pleitear o direito de defesa contra atos
lesivos ao meio ambiente.
O autor se refere na passagem citada à ação popular ambiental. Contudo, vislumbra-se que sua fala pode ser aproveitada para fundamentar
também a proteção do meio ambiente na perspectiva horizontal de proteção dos direitos fundamentais, na medida em que caracteriza o direito
ao meio ambiente sadio como direito subjetivo da personalidade.
Há que se considerar que a proteção ambiental não se esgota nessa
perspectiva de proteção individual, conforme se infere da natureza do
direito ao ambiente equilibrado, não há dúvidas de que também haverá a
possibilidade de sua proteção por instrumentos coletivos. Sobre a dupla
faceta da tutela do bem jurídico ambiental, como objeto de proteção individual e coletiva ao mesmo tempo, lembra CANOTILHO (1998, p. 28)
que o reconhecimento da existência:
(...) de um direito subjetivo ao ambiente não deve fazer esquecer seu caráter
de bem jurídico unitário de toda a coletividade: por outras palavras, a titularidade individual de um direito subjetivo ao ambiente não traz consigo
a subversão do ambiente como bem coletivo.
A par da distinção supracitada, infere-se que talvez seja também
SOBRE AS PERSPECTIVAS DE PROTEÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO
248 | REFLEXÕES
AMBIENTE
cabível a proteção do direito ao meio ambiente na perspectiva objetiva
de proteção dos direitos fundamentais e não só na subjetiva.
FORMAS DE PROTEÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO
MEIO AMBIENTE
Após ter em mente que o direito ao meio ambiente é um direito
fundamental constitucionalmente protegido e que, portanto, encontra-se dentro do escopo das formas de proteção dos direitos fundamentais,
perspectiva objetiva e subjetiva, resta a questão de como essas formas de
proteção podem ser aplicadas para o direito ao meio ambiente sadio.
Consoante já observado, da leitura do caput do art. 225 da Constituição de 1988 evidencia-se que a responsabilidade pelo meio ambiente
não se exaure apenas nas condutas do Estado, pelo contrário, a coletividade
também é abarcada como responsável.
Assim, apesar de não se negar a responsabilidade do Poder Público na
defesa do meio ambiente, tanto por meio de atos administrativos, quanto
legislativos e judiciários, no âmbito de políticas públicas, programas de
ação, de prevenção e de fiscalização que garantam o cumprimento do dever
constitucionalmente imposto, a responsabilidade não se exaure no Poder
Público. O Estado não detém a exclusividade da defesa do meio ambiente,
pelo contrário, pois o próprio art. 225, em sua cabeça, imputa responsabilidades à coletividade nesse campo. Daí deriva o princípio da participação
democrática, segundo o qual deverão somar esforços a sociedade e o Estado
na defesa e preservação do meio ambiente.
Contudo, seguindo na leitura do art. 225 em seus parágrafos, parece
que as responsabilidades e a busca por possíveis sanções restam mormente
legadas ao Poder Público.
Mesmo considerando a já aventada natureza de direito difuso conferida ao direito ao meio ambiente sadio, isto é, direito de todos e de
cada um, os mecanismos existentes para que o cidadão possa cobrar algo
de outro cidadão, pelas condutas individuais que possam ter impactos
negativos sobre o meio ambiente parecem ser ainda insuficientes.
Não se nega a existência de mecanismos de colaboração social. Há
vários instrumentos constitucionalmente previstos pelos quais o cidadão pode buscar a proteção ao meio ambiente, por exemplo, a iniciativa
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 249
popular de lei (art. 61, caput e § 2º); hipóteses de realização de plebiscito
(art. 14, inciso I); e outros que envolvem a atuação do Poder Judiciário,
com o manejo de instrumentos processuais que propiciem uma prestação
jurisdicional protetiva, como, por exemplo, a ação popular (art. 5º,
LXXIII), o mandado de segurança individual ou coletivo (art. 5º, LXIX
e LXX), ou mesmo a ação ordinária de conhecimento, com o fito de fazer
cessar, anular ou reparar danos provocados ao meio ambiente que tenham
como autor o particular ou ele em conjunto com o próprio Estado.
Ocorre que esses mecanismos, legados pelo sistema ao particular, têm
sido usados de maneira diminuta quando se tem em mente a proteção dos
direitos fundamentais na perspectiva horizontal. Um exemplo emblemático disso se dá com relação ao meio ambiente do trabalho, que é abarcado
pelo direito ao meio ambiente equilibrado. No mais das vezes, tal direito
não é cobrado na esfera horizontal de aplicação dos direitos fundamentais.
Presume-se que isso ocorre por argumentos de fundo capitalista, já que,
se o trabalhador cobrasse de algum modo o cumprimento desse direito
fundamental de modo individualizado, poderia sofrer retaliações do patrão
demandado, inclusive, ser demitido. Assim, regra geral, nos casos em que
se demanda pelo meio ambiente do trabalho adequado busca-se apenas
algum tipo de reparação e quase sempre quando o vínculo trabalhista já
foi dissolvido.
Desta feita, é salutar a preocupação não só de se incrementar os
modos de proteção do direito ao meio ambiente na perspectiva da proteção horizontal, mas também de criar a cultura nos cidadãos brasileiros de
que a proteção ambiental também pode e deve ser cobrada de seus iguais.
É de grande importância a proteção do meio ambiente sob o viés não
só subjetivo (vertical), mas também objetivo (horizontal) de proteção, o
que evidencia SARLET (2011,p. 140), quando afirma:
O direito humano e fundamental a um ambiente saudável e ecologicamente
equilibrado é tomado como exemplo paradigmático de um direito-dever
ou o que poderia ser designado de direito da solidariedade, tendo, como
marca característica, um peso maior da sua perspectiva objetiva no que diz
com a conformação normativa de posições jurídicas, em detrimento da sua
perspectiva subjetiva, que neste contexto, poderá até mesmo ter um peso
menor (em relação aos efeitos decorrentes da dimensão objetiva), mas que
também se faz presente.
SOBRE AS PERSPECTIVAS DE PROTEÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO
250 | REFLEXÕES
AMBIENTE
Tal passagem reforça a posição aqui defendida referente à premente necessidade de que se efetivem mecanismos para a proteção do
direito ao meio ambiente na perspectiva objetiva de proteção dos direitos
fundamentais.
Ainda da fala de SARLET (2011), extrai-se a já referida natureza
de “direito-dever” em relação ao meio ambiente, ou seja, os cidadãos são,
a um só tempo, possuidores do dever de proteção e legitimados para exigir dos demais e do Poder Público a mesma proteção. Essa característica
ratifica a necessidade de uma maior participação dos cidadãos segundo a
perspectiva defendida no presente trabalho.
Canotilho apud SARLET (2011, p. 140) ainda esclarece que a distinção entre as perspectivas subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais
pode ser resumida entendendo-se que a perspectiva subjetiva “se refere
ao significado ou relevância da norma consagradora de um direito fundamental para o indivíduo, para os seus interesses, para a sua situação de
vida, para sua liberdade”, enquanto que a perspectiva objetiva da norma
definidora de direito fundamental será identificada “quando se tem em
vista o seu significado para toda a coletividade, para o interesse público,
para a vida comunitária”. Na leitura ora apresentada, parece que a segunda
perspectiva deve ter mais destaque e mais mecanismos de atendimento
que a primeira no que se refere ao direito ao meio ambiente. Isso reforça
a necessidade de criação de mecanismos que propiciem a cada cidadão
cobrar dos demais o respeito e a proteção ao meio ambiente.
Ademais, conclui-se, dos pontos anteriormente abordados, que em
se assegurando o direito ao meio ambiente sadio, logo se estará garantindo
a efetivação de outros direitos fundamentais, como o direito à saúde, à
segurança e à vida, entre outros, confirmando o entendimento de que o
meio ambiente é ao mesmo tempo direito individual e social.
CONCLUSÃO
A inquestionável importância do direito ao meio ambiente sadio,
reconhecido constitucionalmente, leva a crer que sua proteção deve se
dar do modo mais amplo possível. Dessa forma entende-se adequado que
cada cidadão tenha a faculdade de buscar evitar e/ou cessar uma agressão ambiental. Posto que se trata de direito de todos e de cada um, essa
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 251
proteção deve ser garantida não só de modo coletivo, mas também de
modo individual.
A legislação em vigor já tem grandes avanços no campo da proteção.
Porém, quase sempre com a intermediação do Estado. Ademais, os mecanismos direcionados aos particulares não parecem ser ainda suficientes
para garantir a plena efetividade do direito em comento.
Apesar do sistema constitucional brasileiro proporcionar aos cidadãos alguns instrumentos para que possam, de modo coletivo e/ou individual, promover a defesa do meio ambiente, vislumbra-se uma deficiência
na aplicação objetiva do direito fundamental ao meio ambiente sadio, isto
é, horizontalmente, entre os particulares.
Assim, mesmo a par dos instrumentos de proteção jurídica atuais,
entende-se que seria necessária a criação de novos instrumentos que permitam a aplicação do direito ao meio ambiente sadio de forma mais ampla
também na perspectiva horizontal, ou seja, para que um cidadão possa
cobrar do outro o respeito a esse seu direito, que também é seu dever. Assim
também seria de grande valia a mudança de mentalidade dos cidadãos
brasileiros para que entendam que proteção ambiental também pode e
deve ser cobrada de seus pares.
Caso o legislador pátrio reforce os mecanismos já existentes de participação da sociedade e busque a criação de novos mecanismos menos
burocráticos, aliados a já citada mudança de cultura, certamente a proteção
seria mais efetiva. Além disso, talvez se pudesse divisar, à longo prazo, uma
maior conscientização da população como um todo, pois todos seriam
fiscalizadores de todos e não só o Estado, que por vezes pode se achar
distante de algumas realidades concretas.
Alargar a proteção ao direito fundamental ao meio ambiente para
além de uma perspectiva subjetiva de proteção certamente resultará em
maior e melhor qualidade ambiental para todos, o que, ao fim e ao cabo,
garante a própria existência da espécie humana.
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SOCIEDADE DE RISCO E O IMPERATIVO ECOLÓGICO
EM HANS JONAS E NA ENCÍCLICA LAUDATO SI:
POSSÍVEIS PERSPECTIVAS AO DIREITO PARA O
ENFRENTAMENTO DA CRISE ECOLÓGICA
THE RISK SOCIETY AND THE ECOLOGICAL IMPERATIVE
BY HANS JONAS AND LAUDATO SI ENCYCLICAL: POSSIBLE
LAW PERSPECTIVES TO FACE THE ECOLOGICAL CRISIS
Rudinei Jose Ortigara1
RESUMO: A capacidade de intervenção do ser humano nas estruturas
naturais tem se demonstrado ampla na sociedade contemporânea. Através
de novas ferramentas tecnológicas o ser humano aumentou sua capacidade
de extração de bens naturais para atividades industriais, que são orientadas
para obtenção de lucros, fruto do atual sistema capitalista. A ação humana
tem demonstrado ser capaz de alterar drasticamente vários habitats, em
muitos casos de forma irreversível. Esta capacidade vem acompanhada
de reflexos sobre o meio-ambiente e sobre os próprios seres humanos,
sendo um dos fundamentos da atual crise ecológica. Pela amplitude, as
consequências advindas das atividades tecnocientíficas na sociedade de
risco suscitam a inquietação e a manifestação de várias áreas, sobretudo,
em relação à ética e aos possíveis parâmetros e limites sociais e legais destas
atividades, tendo em vista que em sua gênese são perpassadas por riscos
sociais e ambientais que atingem a todos, como alerta Ulrich Beck. Pela
extensão da crise ecológica atual, a solução deve perpassar por vários fatores
e fundamentações; neste sentido, o direito deve ter seu campo de atuação
estendido para além do aspecto estritamente normativo, e se guiar pelas
finalidades ambientais a serem alcançadas, abrindo-se à contribuição de
demais áreas e fontes. Dentre estas fontes que poderão auxiliar na análise
da ação para a manutenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado
para as presentes e futuras gerações (art. 225, CRFB/88) estão os imperativos ecológicos de Hans Jonas, com o “Princípio Responsabilidade”, e
1 Mestrando em Direito na área de Direito Socioambiental e Sustentabilidade do Programa
de Pós-Graduação em Direito da Pontifíia Universidade Católica do Paraná; Pós-Graduado
em Fundamentos de ética pela mesma instituição.
Contato: rudi.ortigara@yahoo.com.br
DE RISCO E O IMPERATIVO ECOLÓGICO EM HANS JONAS E NA ENCÍCLICA LAUDATO
256 | SOCIEDADE
SI: POSSÍVEIS PERSPECTIVAS AO DIREITO PARA O ENFRENTAMENTO DA CRISE ECOLÓGICA
a recente proposta apresentada pelo Papa Francisco, através da Encíclica
“Laudato si”. Ambos fundamentam princípios éticos de ação quando da
relação com o meio ambiente, propondo a redescoberta e o resgate da dignidade própria da natureza, alargando, assim, a compreensão de dignidade
para além da esfera humana. O direito, neste contexto, não deve se fechar
em seu casulo normativo, porém, é convidado a repensar os resultados
de suas decisões, visando a efetivação da proteção socioambiental para o
enfrentamento da crise ecológica, tendo em vista ser esta multifatorial. Para
o desenvolvimento do artigo se utilizará do método descritivo-analítico e
a técnica de pesquisa será a bibliográfica.
PALAVRAS-CHAVE: Sociedade de risco; direito; crise ecológica; imperativo ecológico; socioambientalismo.
ABSTRACT: Human beings’ capacity to intervene in the natural processes
has prevailed in modern societies. The new technological tools have increased
the extraction of natural resources for industrial activities, mostly profit-oriented, a consequence of the current capitalist system. Human interference
has drastically changed several habitats, in many cases in an irreversible
manner. This interference has also affected the environment and the human
beings, representing one of the reasons of the current ecological crisis. Considering its extension, the consequences from the techno-scientific activities in
risk societies have aroused uneasiness and have led to manifestations from
several areas, mainly those related to ethics and the possible social and legal
parameters and limits, considering that these manifestations, in their origin,
have been marked by social and environmental risks which affect us all, as
warned by Ulrich Beck. The solutions to address the extended current ecological crisis must consider several factors and principles. In this regard, the
role of law must be expanded beyond its normative concept, and be guided
by the environmental objectives to be reached, thus contributing to other
areas and sources. Among these sources, which might help analyze the actions
proposed for keeping an ecologically balanced environment to present and
future generations (Art. 225, CRFB/88), are the ecological imperatives by
Hans Jonas, in the “Responsibility Principle”, and the recent proposal by
Pope Francis, in his Encyclical “Laudato si”. Both publications underlie the
ethical principles of action in relation to environment, propose the rediscovery
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 257
and rescue of nature’s own dignity, and thus expand the concept of dignity
beyond the human domain. Law, in such a context, must not confine itself to
its normative role but should re-evaluate the results of its decisions and aim
for socioenvironmental protection to fight the ecological crisis, considering
that it is a multi-faceted one. For the development of the study, a descriptive-analytical method and a bibliographical research technique are used.
KEYWORDS: Risk society; law; ecological crisis; ecological imperative;
socioenvironmentalism.
INTRODUÇÃO
A crise ecológica atual possui múltiplas facetas, podendo ser vislumbrada em variados aspectos, sobretudo aliada à crise sócio-humanitária e econômica. Em que pese a amplitude contemporânea, e das várias
possibilidades de leitura, verifica-se que a gênese da crise surgiu junto ao
nascimento da sociedade moderna, especialmente das razões ideológicas fundantes da mesma. Motivo pelo qual não se pode compreender a
amplitude ou buscar alternativas sem revisitar a cosmologia fundamente
do ideário moderno, o qual ainda predomina no desenvolvimento econômico e organização das principais instituições da sociedade ocidental.
Assim, o presente trabalho busca analisar as origens e os fundamentos
da crise ecológica atual, bem como as consequências atuais desta, sobretudo devido à extensão da capacidade de intenveção do ser humano nas
estruturas naturais através de novas ferramentas tecnológicas, especialmente quando alinhadas para atividades industriais, e orientadas para
obtenção de lucros, fruto do atual sistema capitalista. Esta capacidade vem
acompanhada de reflexos sobre o meio-ambiente e sobre os próprios seres
humanos, sendo um dos fundamentos da atual crise ecológica. Neste caso,
se buscará proceder com a análise da sociedade constatada como de risco,
a partir do empreendimento teórico de Ulrich Beck.
A verificação do quadro atual, bem como as propostas de novas diretivas de fundamentação da relação entre ser humano e natureza se embasarão a partir do pensamento de Hans Jonas, no entendimento do Princípio
Responsabilidade, e da atual Enciclica Laudato Si, do Papa Francisco.
Assim, e a partir do quadro de constatação, se verificará a viabilidade de
DE RISCO E O IMPERATIVO ECOLÓGICO EM HANS JONAS E NA ENCÍCLICA LAUDATO
258 | SOCIEDADE
SI: POSSÍVEIS PERSPECTIVAS AO DIREITO PARA O ENFRENTAMENTO DA CRISE ECOLÓGICA
possíveis perspectivas ao direito para o enfrentamento da crise ecológica,
sobretudo a partir da ampliação de seu campo de atuação, para além do
aspecto estritamente normativo, abrindo-se à contribuição de demais áreas
e fontes para o enfrentamento da crise socioambiental atual.
Para a realização do objetivo proposto, o artigo começa por analisar
o conceito de sociedade de risco, passando a identificar as raízes da atual
crise ecológica para, na sequência buscar novos imperativos ético-ecológicos para a superação e solução da crise, bem como, por fim, discutir o
papel social do Direito nesta empreitada. Assim, se utilizará do método
descritivo-analítico e a técnica de pesquisa será a bibliográfica.
S O C I E DA D E D E R I S C O E C R I S E E C O L Ó G I C A :
CONSTATAÇÕES
É marcante a extensão transformadora da atividade humana sobre
o planeta, impulsionada especialmente por forças econômicas do atual
sistema capitalista, modificando habitats e costumes locais (MARÉS,
1998/2006), de modo que não existe mais lugar que permanece
intocado pela mão humana (HARDING, 2008, p. 227). Este poderio
possui consequências, que na sociedade contemporânea é marcada pelo
descontrole do risco que as atividades industrias podem acarretar sobre o
meio ambiente e a sociedade como um todo. Descontrole, pois as próprias
instituições criadas (como exemplo as políticas e jurídicas) para o controle
do risco não cumprem seu papel de desígnio.
Para Beck, a Sociedade Contemporânea atingiu um estágio tal no
desenvolvimento das atividades industriais de modo que as ações econômicas aparecem associadas a riscos de seu desenvolvimento. A par dos
benefícios materiais produzidos pelo processo de industrialização há sempre o risco a bens ecológicos e sociais, os quais escapam aos instrumentos
tradicionais de controle; é o que ficou conhecido como sociedade de risco.
Segundo Beck, a característica do “risco” imposta à sociedade contemporânea nasceu de sua gênese industrial. A sociedade pré-industrial era
marcada pelo risco natural, provindo de forças externas à ação humana; já
a sociedade industrial conheceu a gênese do risco ligada a suas atividades,
no entanto, este poderia ser controlado por meio de sistemas de calculados,
pela probabilidade e estatística; diferentemente ocorre na terceira fase, na
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 259
sociedade atual, pois os perigos agora produzidos sucumbem aos próprios
sistemas de segurança estabelecidos, fugindo de qualquer previsibilidade
(BECK, 2002, p. 120).
Os riscos na sociedade contemporânea possuem natureza difusa, pois
não podem ser limitados nem quanto ao tempo, nem quanto ao espaço;
são de difícil imputação em relação à responsabilidade conforme as normas
estabelecidas de causalidade, culpa e responsabilidade legal, e, por fim,
são de difícil compensação e proteção contra seus efeitos, especialmente
para os vulneráveis sociais. (BECK, 2002, p. 120). É neste contexto que
os problemas ambientais devem ser observados, pois derivam da própria
gênese da sociedade industrial. Assim, o problema ambiental se converte
em tema e em problema, pois dele são retiradas as matérias primas para
a sobrevivência humana, bem como é dos impactos sobre o mesmo que
emergem os problemas ambientais atuais.
Para além desta característica, o modelo econômico de exploração
das estruturas naturais é globalizado, no entanto, ainda se busca controles e
corretivos localizados das ações de riscos sociais. Ocorre que o risco possui
resultado global, sendo a crise ecológica igualmente global. Ante tal fato,
Beck constata que os métodos de segurança tradicionais não garantem
mais segurança sobre os riscos sociais e ambientais, uma vez que estes se
difundem a todos os setores da sociedade, ultrapassando jurisdições e
fronteiras regionais, de classe, de nação, políticas, jurídicas e científicas
(BECK, 2002, p. 124).
Neste sentido, a característica marcante da sociedade contemporânea, o risco, traz como fundamento a crise do modelo institucional atual2,
especialmente em relação ao controle dos efeitos colaterais das atividades
industriais sobre a sociedade e o meio ambiente, uma vez que os riscos nascem das próprias atividades que as pretendem os controlar, sendo que sua
análise requer novas categorias, teorias e métodos (BECK, 2002, p. 136).
A realidade do risco obriga a humanidade a constantemente preocupar-se com os possíveis perigos e antecipar os resultados provenientes
2 Assim, “el diagnóstico de la sociedad de riesgo mundial sería exactamente el siguiente:
los denominados peligros globales hacen que se resquebrajen los pilares del tradicional
sistema de seguridad. Los daños apenas si se pueden seguir atribuyendo a unos responsables determinados; el principio de causalidad pierde capacidad segregadora. Los daños
tampoco pueden seguir siendo compensados financieramente; no tiene sentido contraer
una póliza de seguro contra los efectos worst case e la espiral mundial del peligro” (BECK,
1998, p. 70).
DE RISCO E O IMPERATIVO ECOLÓGICO EM HANS JONAS E NA ENCÍCLICA LAUDATO
260 | SOCIEDADE
SI: POSSÍVEIS PERSPECTIVAS AO DIREITO PARA O ENFRENTAMENTO DA CRISE ECOLÓGICA
dos riscos. Esse novo contexto, portanto, convida a uma reflexão sobre
possibilidade de prevenção de danos que possam ocorrer no futuro, pois
no contexto do risco há sempre a relação abstrata do porvir, de que as
ações atuais possam ter vários reflexos no futuro, muitos dos quais não
conhecidos. Nesse sentido, além de ter que lidar com os riscos concretos,
a sociedade deve gerir e se precaver dos possíveis riscos abstratos.
Por serem os riscos os reflexos futuros da ação das forças produtivas
técnicas e industriais, é interessante observar que não derivam da ignorância humana, ou do não-saber, e sim do domínio científico e da aplicação
técnica no desenvolvimento de atividades industriais e produtivas3. O
risco, então, é inerente ao desenvolvimento de atividades na sociedade
contemporânea; e mais, ele é ubíquo, pois assume proporções consideráveis
que pode atingir toda humanidade, não respeitando, nesse sentido, fronteiras geográficas e mesmo legais, se estendendo a todas as classes sociais4;
portanto, pode-se dizer que o risco possui na sociedade contemporânea
característica difusa.
Assim, o ser humano alcançou nível tal de intervenção e exploração das estruturas naturais que desenvolveu inúmeros instrumentais para
exploração mais “efetiva”, o que não se traduz por eficiência social e ecológica, vez que a exploração econômica está pautada sobre a égide da capitalização da natureza, a qual transforma esta em mero objeto sem valor em
3 Nesse sentido, e em comparação a períodos anteriores, Beck destaca que “A diferencia
de todas las épocas anteriores (incluída la sociedad industrial), la sociedad de riesgo se
caracteriza esencialmente por una carencia: la imposibilidad de prever externamente las
situaciones de peligro. A diferencia de todas las anteriores culturas y de todas las fases de
desarrollo social, que se enfrentaron de diversos modos con amenazas, la actual sociedad se
encuentra confrontada consigo misma en relación a los riesgos. Los riesgos son el producto
histórico, la imagen refleja de las acciones humanas y de sus omisiones, son la expresión
del gran desarrollo de las fuerzas productivas. De modo que, con la sociedad de riesgo,
la autoproducción de las condiciones de vida social se convierte en problema y tema (en
primera instancia, de modo negativo, por la exigencia de evitación de los peligros). En
aquellos aspectos en que los riesgos preocupan a los hombres ya non se da un peligro
cuyo origen quepa atribuirlo a lo externo, a lo ajeno, a lo extra-humano, sino la capacidad
adquirida históricamente por los hombres de autotransformar, de autoconfigurar y de
autodestruir las condiciones de reproducción de toda la vida sobre la tierra. Pero esto
significa que las fuentes de peligro ya no están en la ignorancia sino en el saber, ni en
un dominio de la naturaleza deficiente, sino en el perfeccionado, ni en la falta de acción
humana, sino precisamente en el sistema de decisiones y restricciones que se estableció en
la época industrial” (1998, p. 237).
4 Quanto ao atingimento das classes sociais, embora os riscos atinjam a todos Beck ressalva
que a pessoas pertencentes às classes superiores conseguem, por possuir maior acesso a
meios econômicos, melhor proteção contra os mesmos (Cf.: BECK, 1998, p. 51).
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 261
si, somente atribuível após a exploração de transformação em mercadoria,
que é orientada para obtenção de lucros, fruto do atual sistema capitalista.
Tal lógica teve início com a mudança de concepção em relação à natureza,
que emerge a partir da modernidade, deixando a mesma de possuir valor
em sí, sendo mero objeto de exploração e de atribuição de valor pelo ser
humano, agora sob a esfera monetária.
RAÍZES DA CRISE ECOLÓGICA: A OBJETIVAÇÃO DA
NATUREZA
A crise ecológica atual não encontra paralelo em precedentes
da história da humanidade. A exploração das estruturas ecológicas é
global, devido ao sistema contemporâneo de produção. Igualmente o
é os riscos e os efeitos advindos da exploração desenfreada. Assim, a
crise ecológica é global e civilizacional, devido suas fundamentações.
Beck identifica como característica da sociedade atual o risco,
datando historicamente os primordios desta junto ao surgimento
da sociedade industrial. É interessante perceber que as raízes da crise
ecológica e social atual provém de antes deste período. Ela surge
no próprio seio do nascimento do modelo da sociedade ocidental,
ou seja, com a fundação do pensamento e da filosofia moderna, no
século XV, da qual se desdobraram os princípios fundantes de todas
as atividades humanas, especialmente as científicas, econômicas,
políticas e jurídicas.
O entendimento teórico da vantagem do poderio do ser humano
e de seu senhorio sobre a natureza, buscando subjugá-la pela ciência e
técnica, foi, assim, desenvolvido juntamente com as raízes da sociedade
moderna, e é filha das razões fundantes desta, sendo elemento indissociável
do pensamento moderno. Esta ideologia, por estar na gênese do modelo
de sociedade moderna, veio a reger todas as instituições sociais.
A modernidade foi marcada por profundas transformações históricas, culturais e sociais, devido as quais “as concepções do mundo mais seguras e mais evidentes são subvertidas” (MORIN, 2003, p. 22). É momento
de grandes descobertas fundamentais, especialmente com a ruptura em
relação ao domínio do pensamento medieval, passando o homem a adotar
as rédeas de seu destino nos campos científicos, políticos e econômicos;
DE RISCO E O IMPERATIVO ECOLÓGICO EM HANS JONAS E NA ENCÍCLICA LAUDATO
262 | SOCIEDADE
SI: POSSÍVEIS PERSPECTIVAS AO DIREITO PARA O ENFRENTAMENTO DA CRISE ECOLÓGICA
e das navegações, com achamento de novas terras, saindo a Europa do
provincialismo para a pretensão de ser senhora do mundo, auxiliada pela
ciência e pela técnica nascentes.
Morin localiza neste período o começo da “era planetária”, com
a expansão de países europeus na conquista e extermínio de civilizações conquistadas, bem como o início da intensiva troca comercial
entre Europa, Ásia e América de produtos vegetais, animais, e até
mesmo de doenças. Ante tal contexto, “as cidades, o capitalismo, o
Estado-nação, depois a indústria e a técnica, ganham um impulso
que nenhuma civilização conheceu ainda” (MORIN, 2003, p. 23).
Em relação ao pensamento teórico fundante, René Descartes,
filósofo francês, é apontado como o “pai da modernidade”. Para o
pensador a realidade deve ser interpretada a partir da dualidade entre
sujeito e objeto (res cogitans e res extensa), sendo aquele portador
da qualidade racional, e este a ser conhecido e estudado, não lhe
cabendo qualquer valor a priori. Ademais, repousa sobre a natureza
a visão mecanicista, que para melhor ser entendida deve ser segmentada (DESCARTES, 2008). Assim, passa a imperar o entendimento da fragmentação em prol do saber especializado, perdendo-se
a noção da complexidade conjuntural e o significado do todo.
Esta dualidade e especialização passa a ser característica marcante da sociedade ocidental, marcando desde as formas de poder5
como as formas de interpretação do mundo, nas quais prevalecem a
razão humana como superiora a todos os demais objetos, os quais são
desprovidos de valor específicos, restando aos mesmos a condição de
5 A divisão entre sujeito e objeto foi tão marcante e extensiva que seu entendimento
se estendeu para vários domínios europeus, inclusive sobre a relação social quando da
conquista das Américas, processo concomitante ao nascimento do ideário cartesiano,
restando estabelecida a divisão entre sujeito, conquistadores, e objetos, conquistados, o
qual contribuiu para naturalizar o ideário de superioridade dos conquistadores em relação
aos conquistados. Sobre isto, Quijano (2005, p. 118) afirma que “historicamente, isso
significou uma nova maneira de legitimar as já antigas idéias e práticas de relações de
superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados. Desde então demonstrou
ser o mais eficaz e durável instrumento de dominação social universal, pois dele passou a
depender outro igualmente universal, no entanto mais antigo, o intersexual ou de gênero:
os povos conquistados e dominados foram postos numa situação natural de inferioridade,
e conseqüentemente também seus traços fenotípicos, bem como suas descobertas mentais e culturais. Desse modo, raça converteu-se no primeiro critério fundamental para a
distribuição da população mundial nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da
nova sociedade. Em outras palavras, no modo básico de classificação social universal da
população mundial”.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 263
exploração incondicionada para dar retorno às pretensões desenvolvimentistas do ser humano. Igual condição se deu com a relação ser
humano e natureza. Emblemático, neste sentido, é o pensamento do
filósofo Francis Bacon, o qual entendia que o homem, pelo conhecimento científico, deveria subjugar totalmente a natureza aos interesses humanos6, pois “o meio natural era visto como mecânico e
predominava o pensamento determinista, sendo a natureza colocada
como condição ou obstáculo para o desenvolvimento de uma determinada sociedade” (BERNARDES; FERREIRA, 2003, p. 27).
Filosóficamente estavam estabelecidas e justificadas as razões
para tomar a natureza como puro objeto, desprovida de qualquer
valor metafísico, e assim tinha que ser em prol do conhecimento,
tendo em vista que o objeto não possui valor em si, mas o é atribuido pelo sujeito do conhecimento. Neste sentido, Com o advento
da modernidade e da racionalidade a natureza foi fraturada e fragmentada; caiu no objetivismo, a ordem do saber da modernidade.
A razão retirou do mundo natural a finalidade7 e o simbólico8 na
ânsia de tornar tudo transparente. A teoria acaba por se emancipar
do real, passando a valer por si só. A análise é deslocada de toda historicidade, causalidade e referencialidade (Cf. LEFF, 2006, p. 124).
Nesta forma de análise, não há espaço para a complexidade, mas
o seu extremo, a hiper-objetivação, que “(…) é a contrapartida do
modelo, da realidade que emerge da tentativa de molda-la e apreende-la mediante o conhecimento objetivo até forçar a identidade
6 Bacon afirma que “devemos subjugar a natureza, pressioná-la para nos entregar seus
segredos, amarrá-la a nosso serviço e fazê-la nossa escrava.” (apud BOFF, 1995, p. 26).
Partindo deste comentário, em obra intitulada “Princípio-Terra: a volta à Terra como pátria
comum”, Leonardo Boff entende que essa visão de mundo e de escravização da natureza
dominou a ciência e as formas de conhecimento nos últimos três séculos; no entanto, a
mesma não dá mais conta de explicar e justificar as novas relações com a natureza diante
do paradigma e dos desafios atuais trazidos pelas novas tecnologias. Portanto, a forma
de se relacionar com a natureza, como queria Bacon, se demonstra ultrapassada em sua
aplicação, uma vez que a mesma está degradando a biodiversidade, o meio ambiente como
um todo e as próprias relações humanas.
7 Para os Gregos, a natureza era comprenndida como um todo, o Cosmos ordenado.
Assim, por exemplo, para Aristóteles, cada elemento possuia seu lugar natural no cosmos
ordenado, e para o mesmo todos os seres possuiam direção de tendência para sua realização
(Cf. ARISTÓTELES. Fisíca I – II. Campinas: Unicamp, 2015 (Edição Digital).
8 Sobre a concepção do aspecto simbólico da natureza, conferir: CAPELLA, Juan Ramón.
Os cidadãos servos. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998, p. 48-49.
DE RISCO E O IMPERATIVO ECOLÓGICO EM HANS JONAS E NA ENCÍCLICA LAUDATO
264 | SOCIEDADE
SI: POSSÍVEIS PERSPECTIVAS AO DIREITO PARA O ENFRENTAMENTO DA CRISE ECOLÓGICA
entre o conceito e o real. O modelo e o real ficam presos dentro de
sua própria ficção” (LEFF, 2006, p. 124).
Procedendo com uma análise da sociedade moderna, o sociólogo
Max Weber igualmente identifica que a objetivação é característica marcante da sociedade ocidental, e é aspecto que a diferencia das demais. O
tipo Ocidental é único por ter alcançado um grau de objetivação superior que ao das demais civilizações, expurgando de seu sistema reacional-científico os meios mágicos de relação com o mundo, movimento que
o pensador denominou de “desencantamento do mundo”. Ainda, e em
relação à vida prática, a segmentação do mundo em tarefas objetivas é razão
fundamente da ciência e economia modernas, as quais o transformam em
mero mecanismo causal (Cf. Weber, 1982, p. 154 a 183). Assim, “(...) o
conhecimento racional empírico funcionou coerentemente através do
desencantamento do mundo e sua transformação num mecanismo causal”
(WEBER, 1982, p. 401).
Tal fundamentação ainda vige na sociedade ocidental, inclusive em
seus aspectos marcantes da fragmentariedade e da objetivação, sobretudo
sustentados pela racionalidade científica e econômica, especialmente nesta
última esfera, e potencializados pela técnica, sobre este aspecto a atual civilização industrial baseou o crescimento econômico qualitativo ilimitado
sobre um planeta que é limitado e finito, atingindo perigosamente a base
natural que fez possível a existência da vida (CAPELLA, 1998, p. 51),
bem como alterando a própria essência humana e sua relação para com as
demais estruturas naturais. Neste sentido, e comentando o pensamento
de Heidegger9 a respeito da técnica, DOMINGUES (2004, p. 163-164)
afirma que
A tecnologia não é um instrumento ou um meio, mas um elemento co-ligador e uma espécie de armadura que molda e instaura
o homem à sua medida e conforme sua necessidade (o técnico ou o
indivíduo tecnológico), e ao mesmo tempo instala a realidade como
instrumento (de acumulação) e como estoque (para consumo). O
resultado é a chamada técnica planetária, que em sua ação desenfreada na modernidade levou à devastação da terra, e (...) levou ao
triunfo do tecno-burocrata capaz de extrair, com seus cálculos e
9 Sobre o pensamento a respeito da técnica no citado Filósofo, sugere-se a leitura de:
HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: Scientle Studia, São Paulo, v. 5, n. 3, p.
375-98, 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ss/v5n3/a05v5n3.pdf. Acesso
em: 26/07/2016.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 265
dispositivos, o máximo de rentabilidade de cada setor da imensa
cadeia de produção tecnológica. Nesse quadro, em que Heidegger
introduz uma verdadeira pirueta na reflexão tradicional, a técnica
não pode mais ser vista como um desdobramento potencializado
das mãos do homem, nem mesmo como um instrumento a serviço
ou à disposição dos indivíduos, mas como algo diferente, como uma
potência ou um poder autônomo, para a qual o homem não passa
de um meio ou de um instrumento, e na qual ele está capturado
como objeto ou matéria-prima ao se instalar na rede de produção
tecnológica do real.
Neste sentido é que “a crise ambiental e a catástrofe de nossos modos
de vida foram provocados pela saturação do sentido e dos sentidos provocados pelo conceito que procura aprisionar e fixar a realidade” (LEFF, 2006,
p. 126), da qual o ser humano ainda está como prisioneiro. Isto se deve ao
fato de que a objetivação do mundo não permite a formação de um pensamento complexo, “que ultrapassa a capacidade de entendimento racional
do sujeito através de uma teoria de sistemas, de um método interdisciplinar,
de uma ética ecológica ou de uma moral solidária” (LEFF, 2006, p. 127).
MUDANÇA DE ENFOQUE: NECESSIDADE DE NOVO IMPERATIVO ECOLÓGICO
Os fundamentos sobre os quais se estabeleceram a racionalidade moderna (separação entre sujeito e objeto) foram os responsáveis pela crise ecológica atual, pois promoveram as razões justificativas da objetivação e fragmentação da natureza, separadas do
ser humano e passíveis de apropriação por este, especialmente para
finalidade econômicas de exploração e transformação em capital,
tirando desta seu valor específico e em si, bem como não reconhecendo que possui complexidade em relação ao todo.
Esta lógica ainda prevalece como fundante na sociedade occidental. “É que nossa educação nos ensinou a separar, a compartimentar, isolar, e não a ligar os conhecimentos, e portanto nos faz
conceber nossa humanidade de forma insular, fora do cosmos que
nos cerca e da matéria física com que somos constituidos” (MORIN,
2003, p. 45 – 46); por isso é que nos custa entender que “a terra é
uma totalidade complexa física/biológica/antropológica, em que a
DE RISCO E O IMPERATIVO ECOLÓGICO EM HANS JONAS E NA ENCÍCLICA LAUDATO
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SI: POSSÍVEIS PERSPECTIVAS AO DIREITO PARA O ENFRENTAMENTO DA CRISE ECOLÓGICA
vida é uma emergência da história da terra, e o homem uma emergência da história da vida terrestre.” (MORIN, 2003, p. 60).
Devido à sociedade, bem como as instituições sociais como um todo,
não compreenderem e não se fundamentarem na complexidade inerente às
estruturas naturais, os impactos da exploração das atividades técnicas sobre
a natureza, para as mais diversas finalidades, são extremamente alarmantes10. Os impactos letais das atividades humanas sobre a biodiversidade são
de ordem de “(...) destruição e fragmentação do habitat, espécies invasivas,
poluição, população e atividade predatória” (HARDING, 2008, p. 255).
Portanto, é urgente e emergente a necessidade de se estabelecer nova relação entre o ser humano e a natureza, especialmente
pautada sobre uma nova racionalidade, que tome a natureza como
ente dotado de valor em si, não separada do ser humano. Os limites
e deficiências, bem como a decorrência do paradigma moderno da
relação homem X natureza vem sendo denunciado na atualidade,
sendo relevantes as considerações feitas por Hans Jonas e, mais
recentemente, pelo Papa Francisco, na Encíclica Laudato Si.
Jonas foi um grande pensador e teórico sobre a relação da sociedade
contemporânea com as tecnologias e seu impacto sobre as estruturas naturais, buscando delimitar o papel da responsabilidade ética do ser humano
diante do desenvolvimento tecnológico em relação ao meio ambiente.
Para ele, a técnica, pelo desenvolvimento da tecnologia contemporânea,
inaugurou um novo agir humano que não se enquadra mais nas relações
tradicionais éticas e sociais entre homem/natureza. Nesse sentido, destaca que a ação e a relação ciência/aplicação devem estar baseadas na responsabilidade, e não na objetividade, a qual coloca o ser humano acima
da natureza. Segundo esse pensador, uma nova relação humana com o
ambiente natural, pautada na ética da responsabilidade, se mostra mais
adequada ao desenvolvimento tecnológico, pois a ação expandida pela
atividade tecnológica extrapola o círculo de relação entre as pessoas e as
estruturas naturais, tanto no espaço quanto no tempo, sendo necessária
uma nova ética que garanta além das relações pessoais contemporâneas
10 Veja-se, por exemplo, o aspecto em relação à destruição e fragmentação de habitats
naturais; antes do advento da racionalidade objetiva, havia grande equilíbrio e um continuum ecológico; “hoje não existe habitat sobre a terra que não tenha sido seriamente
degradado por humanos. Mais de 50% do habitat selvagem foi destruído em 49 dos 61
países tropicais do velho mundo” (HARDING, 2008, p. 256)
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 267
a responsabilidade pela existência futura do ser humano e de todas as
estruturas e formas de vida existentes.
Assim, a reflexão se expande para além dos seres racionais assumindo
todas as formas de vida e suas estruturas de dignidade. Jonas afirma que as
atividades humanas, sobretudo as técno-científicas, especialmente as de
caráter econômico, visto sua capacidade de transformação das estruturas
naturais, devem respeitar o observar um imperativo fundamental, formulado nos seguintes termos: “Aja de modo que os efeitos da tua ação sejam
compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a
terra” ou formulado negativamente “não ponha em perigo as condições
necessárias para a conservação indefinida da humanidade sobre a terra”
(2006, p. 47-48).
O imperativo proposto por Jonas é de ordem coletiva, uma vez que
se embasa em um agir coletivo enquanto bem público para a atual e a
futura gerações, e não apenas para o agir individual e contemporâneo11. A
necessidade deste novo imperativo se deve ao fato do aumento do poder
de mudança na estrutura da natureza pelo domínio atual e historicamente
desenvolvido pela técnica e pelas novas tecnologias12.
Com o advento do pensamento moderno, essa relação humana para
com a natureza mudou. Pouco a pouco passou de relação de dependência
11 Segundo Jonas, o imperativo categórico formulado pelo filósofo alemão Immanuel
Kant, na seguinte formulação: age com base em uma máxima que também possa ter validade como uma lei universal” (KANT, 2005, P. 67), não dá mais conta de regular as relações sociais, vez que apenas formulado para a ação individual. No novo contexto, o meio
ambiente e as estruturas de sustentação da vida no planeta aparecem como portadores de
dignidade, em paridade com os indivíduos, devendo ambos ser preservados e respeitados.
Esta nova postura exige um novo imperativo de ação, conforme o formulado e expresso
pelo pensador.
12 Jonas chamou a atenção para essas mudanças históricas afirmando que inicialmente a
relação humana com a natureza possuía contornos diferentes dos atuais. Assim, “Todas
as concepções eram sustentáveis porque as incursões do homem na natureza, tal como
eram encaradas por ele, eram essencialmente superficiais e impotentes para perturbar o
seu afirmado equilíbrio. Nem há indício, no cora da Antígona ou noutro lado qualquer, de
que isto é apenas o princípio e que maiores cometimentos do engenho e poder humanos
hão de vir – de que o homem embarcou numa infindável rota de conquista. Tão longe
tinha ele ido na eliminação da necessidade, aprendido com a sua agudeza de espírito a tanto
tirar dela para a humanização da sua vida, que por aí podia ficar. O espaço que assim tinha
aberto era preenchido pela cidade dos homens – destinada a conter e não a expandir – e
por intermédio dela um novo equilíbrio se estabelecia no interior do mais vasto equilíbrio
do todo. Todo o bem ou o mal a que em qualquer altura a agudeza do engenho do homem
pode levá-lo fica dentro do enclave humano e não afecta a natureza das coisas. [...] A vida
do homem consumia-se entre a permanência e a mudança: o permanecer da Natureza, o
mudra das suas próprias obras” (1994, p. 31).
DE RISCO E O IMPERATIVO ECOLÓGICO EM HANS JONAS E NA ENCÍCLICA LAUDATO
268 | SOCIEDADE
SI: POSSÍVEIS PERSPECTIVAS AO DIREITO PARA O ENFRENTAMENTO DA CRISE ECOLÓGICA
e submissão para a de agente dominador, capaz de, pelos instrumentos
tecnológicos desenvolvidos, aplicar mudanças significativas nas estruturas vitais. Isso ganhou dimensão tal que o abuso do domínio do homem
sobre a natureza, pelo uso inadequado das tecnologias desenvolvidas, estar
causando sua destruição.
Essas mudanças, por sua vez, deixam registros profundos nas relações
naturais, ou seja, o resultado das ações pode agora ultrapassar gerações.
Estabelece-se, portanto, uma nova forma de relação com a natureza pela
técnica, o que acaba por mudar, também, a natureza ou essência relacional humana. Sem dúvida nenhuma, esse agir da ciência assume grandes
dimensões. Dimensões essas que trazem impactos em várias estruturas
sociais e ambientais, e em todas as esferas de conhecimento, portanto,
traduzindo-se em poder. Esse, maximizado pelo domínio, uso e aplicação
da técnica nunca foi tão grande e extenso.
Dessa forma, Jonas acredita que todo agir humano, por estar perpassado pelo poder, deve ser responsável, uma vez que este poderá definir o
futuro da humanidade e da própria natureza. Portanto, a esfera de dignidade também é estendida à natureza e não apenas ao ser humano, pois ela
também deve ser preservada em sua estrutura essencial, pois possui valor
em si e dependente a humanidade, pois o ser humano não é um ser metafisicamente isolado das demais estruturas naturais. “Isso significaria procurar
não só o bem humano, mas também o bem das coisas extra-humanas, isto
é, ampliar o reconhecimento de ‘fins em si’ para além da esfera do humano
e incluir o cuidado com estes no conceito de bem humano” ( JONAS,
2006, p. 41). Sendo assim, pelo fato de o futuro padecer de ameaça devido
a atuação humana presente é preciso repensar o agir humano, o qual deve
deixar as características puramente objetivantes e incluir nos fundamentos
da atuação presente a responsabilidade ética pelas gerações futuras.
Nenhuma ética anterior vira-se obrigada a considerar a condição global da
vida humana e o futuro distante, inclusive a existência da espécie. O fato
de que hoje eles estejam em jogo exige, numa palavra, uma nova concepção
de direitos e deveres, para a qual nenhuma ética e metafísica antiga pode
sequer oferecer os princípios, quanto mais uma doutrina acabada ( JONAS,
2006, p. 41).
A partir disso, toda ação de interferência tecnológica nas estruturas
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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da vida ou da natureza, deve estar permeada ou balizada por limites de
previsão e responsabilidade pela preservação das estruturas essenciais da
vida para as presentes e futuras gerações, proporcional à extensão da atuação e das consequências do poder tecnológico. Dessa forma, o princípio da
responsabilidade não se prende apenas ao presente, às ações contemporâneas, mas se lança para o futuro, para a responsabilidade da existência da
vida, para as possíveis consequências da atuação atual para com as gerações
futuras, com a preocupação de integridade garantida à biodiversidade e
ao patrimônio genético, inclusive a própria existência da humanidade.
Assim, o princípio responsabilidade se configura enquanto imperativo
ético e ecológico fundamental da ação humana em relação à natureza.
A constatação e os problemas causados pela visão do mundo objetiva e tecnicista é igualmente apontada pelo Papa Francisco, na Encíclica
Laudato Sí, como a origem dos problemas ecológicos atuais. Como a
complexidade da discussão a respeito do problema exige, o Pontífice não se
prende no documento dominical somente à análise religiosa do fenômeno
da crise ambiental atual, porém o faz também a partir da interdisciplinariedade, com elementos científicos, éticos e políticos, demonstrando que
o problema com o “cuidado da casa comum” é complexo e exige atuação
de várias frentes e atores sociais.
O problema não está na técnica em si, mas de que a mesma, sobretudo
em sua essência de poder, se aliou a um modelo econômico exploratório,
de interesse privado e não coletivo, o qual busca transformar as estruturas
naturais em capital. “É preciso reconhecer que os produtos da técnica
não são neutros, porque criam uma trama que acaba por condicionar os
estilos de vida e orientam as possibilidades sociais na linha dos interesses
de determinados grupos de poder” (PAPA FRANCISCO, 2015, p. 68).
O problema fundamental é (...) ainda mais profundo: o modo como realmente a humanidade assumiu a tecnologia e o seu desenvolvimento juntamente com um paradigma homogéneo e unidimensional. Neste paradigma,
sobressai uma concepção do sujeito que progressivamente, no processo
lógico-racional, compreende e assim se apropria do objecto que se encontra fora. Um tal sujeito desenvolve-se ao estabelecer o método científico
com a sua experimentação, que já é explicitamente uma técnica de posse,
domínio e transformação. É como se o sujeito tivesse à sua frente a realidade
informe totalmente disponível para a manipulação. Sempre se verificou a
intervenção do ser humano sobre a natureza, mas durante muito tempo
teve a característica de acompanhar, secundar as possibilidades oferecidas
DE RISCO E O IMPERATIVO ECOLÓGICO EM HANS JONAS E NA ENCÍCLICA LAUDATO
270 | SOCIEDADE
SI: POSSÍVEIS PERSPECTIVAS AO DIREITO PARA O ENFRENTAMENTO DA CRISE ECOLÓGICA
pelas próprias coisas; tratava-se de receber o que a realidade natural por si
permitia, como que estendendo a mão. Mas, agora, o que interessa é extrair
o máximo possível das coisas por imposição da mão humana, que tende a
ignorar ou esquecer a realidade própria do que tem à sua frente. Por isso,
o ser humano e as coisas deixaram de se dar amigavelmente a mão, tornando-se contendentes. Daqui passa-se facilmente à ideia dum crescimento
infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos
da finança e da tecnologia (PAPA FRANCISCO, 2015, p.68).
Este modo, pautado sobre interesses particulares de exploração
cumulativa de lucros privados, é causa das grandes degradações ambientais
atuais. Isto fica especialmente visível no capítulo primeiro da Encíclica, no
qual o Papa Francisco procede, por meio de dados técnicos, com demonstrativo do “que está acontecendo com nossa casa”. São consequências do
atual modelo técnico-científico a desigualdade social, a degradação da
qualidade de vida, os impactos ambientais dos modelos de consumo pautados na cultura do descarte, a crise hídrica e a crescente e perigosa perda
de biodiversidade global.
As consequências da ação humana sobre as estruturas naturais provêm de um processo e consequências do uso da tecnologia dentro de um
sistema econômico de exploração e acumulação indefinida de capital, que
se tornou global em seu processo. Ainda, este processo é acompanhado do
antropocentrismo moderno que coloca o ser humano acima de todas as
outras criaturas, e não ao lado das mesmas, reconhecendo-se como igual.
Assim, a crise é civilizacional, e a salvação não está no modelo atual, o
qual estabelece o livre mercado e acúmulo de capital como valor superior
a todos os demais, pois “o ambiente é um dos bens que os mecanismos
de mercado não estão aptos a defender ou a promover adequadamente”
(PAPA FRANCISCO, 2015, p. 112), e não pode ser assegurada sua preservação com base no cálculo financeiro de custos e benefícios.
Ante tal quadro, o Pontífice chama a atenção ao fato de que urge
a necessidade de um novo imperativo de ação, pautado na incorporação
de uma ecologia integral, que pressupõe princípios da ecologia ambiental, social, cultural, econômica e da vida cotidiana, todos orientados à
realização do bem comum e coletivo. É um todo, no qual as partes não
se sobrepõem, mas busca-se a harmonia integral. Ocorre que diante do
quadro atual, este processo deve ser paulatino, pois, “uma ecologia integral
exige que se dedique algum tempo para recuperar a harmonia serena com
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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a criação, refletir sobre o nosso estilo de vida e os nossos ideais” (PAPA
FRANCISCO, 2015, p. 129), postura esta que “(...) requer abertura para
categorias que transcendem a linguagem das ciências exatas ou da biologia
e nos põem em contato com a essência do ser humano (PAPA FRANCISCO, 2015, p. 14).
Assim, embora “a ciência e a tecnologia não são neutrais, mas podem,
desde o início até ao fim dum processo, envolver diferentes intenções e
possibilidades que se podem configurar de várias maneiras” (PAPA FRANCISCO, 2015, p. 72-73), o que impõe à humanidade uma mudança cultural e de rumos relacionais, que inclua claramente as dimensões humanas e
sociais (PAPA FRANCISCO, 2015, p. 85). E isto não é tarefa impossível,
mas é necessária uma mudança de orientação de fundamentos filosóficos
pelos quais se orientam as ações e sistemas humanos, migrando da racionalidade técnica objetivista e acumuladora, portanto, individualista, para
“(...) a consciência duma origem comum, duma recíproca pertença e dum
futuro partilhado por todos. (PAPA FRANCISCO, 2015, p. 119).
NOVO IMPERATIVO E DIREITO: PERSPECTIVAS PARA O
ENFRENTAMENTO DA CRISE ECOLÓGICA
Ante a crise ecológica que se encontra instalada na sociedade ocidental, é urgente o empreendimento e a busca de soluções possíveis para
seu enfrentamento. Aspecto relevante é o de que a construção ideológica
influencia profundamente as ações e diretrizes adotadas socialmente, o que
perpassa as instituições sociais e o modo de ser da humanidade. Assim,
conforme destaca Capella (1998, p. 48), as imagens que construímos da
natureza são históricas e culturais. A construção conceitual nem sempre
corresponde necessariamente com a realidade. A exemplo da antiguidade
que concebia a natureza a partir de sua essência ameaçadora e aterrorizante;
da modernidade, com o viés de ser a mesma objetivamente dominável pela
vontade humana, erigindo-se à simples matéria para a industrialização; da
atualidade, na qual a vemos agora como enferma e ameaçada.
A ameaça contra a natureza é um problema real, objetivo e concreto,
conforme demostram vários estudos, apontando a problemática futura
das ações presente. Assim, o projeto da sociedade ocidental construído
na modernidade provou ser insuficiente para a manutenção das estruturas
DE RISCO E O IMPERATIVO ECOLÓGICO EM HANS JONAS E NA ENCÍCLICA LAUDATO
272 | SOCIEDADE
SI: POSSÍVEIS PERSPECTIVAS AO DIREITO PARA O ENFRENTAMENTO DA CRISE ECOLÓGICA
naturais, pois em sua própria gênese é causador das degradações, em razão
dos fundamentos filosóficos que o sustentam, os quais objetivam as estruturas naturais, tomando-as simplesmente como matérias prima de produção,
desnudando-as de todo sentidoe de sua complexidade. Neste sentido, a
crise atual é de natureza ecológico-civilizatória (CAPELLA, 1998, p. 49).
Assim, como o problema é complexo, pois o paradigma fragmentário
e objetivista da modernidade se apresenta como o fundamento da crise
ecológica atual, necessário se faz novas perspectivas para o enfrentamento
da crise. Igualmente o direito, como regulador da ordem social e indutor
de condutas, deve partir de novas perspectivas para orientar as condutas
regradas, não só as presentemente próximas, mas convidado a se preocupar
com os reflexos futuros das ações presentes, pois lá passa a ser a morada
teleológica das ações humanas no agora. Tem-se que a visão tradicional
de sistema fechado de normas e bastante a si mesmo (KELSEN, 2009),
característico à sociedade moderna e de risco, encontra limites frente a
esta nova dimensão da ação humana.
Ainda, o direito não é mais agente exclusivo portador da responsabilidade com os reflexos futuros das ações no presente; no entanto, o novo
imperativo conclama nova visão, pautada na responsabilidade coletiva.
Todos os agentes e instituições sociais devem reger suas ações visando os
reflexos futuros, visando à sadia qualidade de vida tanto para as presentes
quanto para as futuras gerações, cabendo a responsabilidade compartilhada
ao Poder Público, privado e à sociedade o dever de defender e preservar
o meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, CF). O direito
como instrumentos indutor pode se tornar instrumento essencial. Porém,
para que a regulamentação de determinada atividade não se torne inócua,
deve ser acompanhada por ações de vários atores e setores; por isto, a
adoção “(...) de uma metodologia transdisciplinar comprometida com
a formação de observações, descrições e ordens que vinculem o futuro”
(CARVALHO, 2007, p. 81) é cada vez mais necessária.
Esta perspectiva também inclui a mudança de concepção dos agentes sociais, públicos e privados, em relação à natureza, que deve passar da
relação estritamente objetiva, encarada simplesmente enquanto matéria-prima, voltada a satisfazer as necessidades e desejos humanos, para
a responsabilidade coletiva, rompendo-se com o paradigma viginte do
individualismo (MARÉS, 2006), e estabelecendo a preocupação para
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 273
com o futuro do todo. Aqui está o novo desafio do resgate metafísico
da natureza enquanto agente e depositária de valor em si mesma, que ao
se manter ecologicamente equilibrada é essencial à sadia qualidade de
vida da coletividade (Art. 225, CF). O desafio está em delimitar que as
ações humanas no presente em relação à interveção técnica nas estruturas
naturais não alcancem dimensão tal a impedir sua perpetuação futura ou
a existência futura da própria humanidade. Assim,
O futuro da humanidade é o primeiro dever do comportamento coletivo
humano na idade da civilização técnica, que se tornou ‘toda poderosa’ no
que tange ao seu potencial de destruição. Esse futuro da humanidade inclui,
obviamente, o futuro da natureza como sua condição sine qua non. Mas,
mesmo independentemente desse fato, este último constitui uma responsabilidade metafísica, na medida em que o homem se tornou perigoso não
só para si, mas todo a biosfera. ( JONAS, 2006, p. 229)
Ante esta nova dinâmica, o Estado não perde seu papel de relevância,
nem o Direito perde sua razão de existir, porém assumem novo papel frente
ao imperativo ecológico. “A crise ambiental torna cada vez mais aparente
a necessidade de reformulação dos pilares de sustentação do Estado. O
que pressupões inevitavelmente a adoção de um modelo de desenvolvimento apto a considerar as gerações futuras” (FERREIRA, 2011, p. 19).
Isto requer uma nova relação paradigmática, pautada não mais na pura
exploração, derivada da visão objetivadora da natureza, mas pressupõe a
integralidade ambiental; assim, o Estado passa a ser orientado pelo viés
ecológico, e tem por fundamento preceitos constitucionais, democráticos,
sociais e ambientais (Cf. FERREIRA, 2011, p.19). É neste sentido que
“a construção do estado do direito ambiental pressupõe a aplicação do
princípio da solidariedade econômica e social como propósito de alcançar
um modelo de desenvolvimento duradouro, orientado para a busca da
igualdade substancial entre os cidadãos mediante o controle jurídico do
uso racional do patrimônio natural.” (FERREIRA, 2011, p. 20).
Aqui o Estado se faz relevante no estabelecimento do novo imperativo ecológico, pautado na integridade, na solidariedade ambiental e
na preocupação intergeracional13. O direito, como instrumento, possui
13 Neste sentido, Ferreira, (2011) afirma que: “Afastando-se do paradigma estritamente
antropocêntrico e ultrapassando a concepção de dignidade como condição limitada a
vida humana, a Constituição Federal de 1988 concebeu o meio ambiente ecologicamente
DE RISCO E O IMPERATIVO ECOLÓGICO EM HANS JONAS E NA ENCÍCLICA LAUDATO
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SI: POSSÍVEIS PERSPECTIVAS AO DIREITO PARA O ENFRENTAMENTO DA CRISE ECOLÓGICA
papel relevante na materialização desta dimensão de preocupação com
os resultados futuros das ações presentes. Isto inclui a participação de
diversos agentes sociais; mas dado que nem sempre isto poderá ser efetivado, cabe à população papel relevante na atuação política da presenrvação
ambiental, pois
Dado que o direito por vezes se mostra insuficiente devido à corrupção,
requer-se uma decisão política sob pressão da população. A sociedade,
através de organismos não-governamentais e associações intermédias, deve
forçar os governos a desenvolver normativas, procedimentos e controles
mais rigorosos. Se os cidadãos não controlam o poder político – nacional,
regional e municipal –, também não é possível combater os danos ambientais. (PAPA FRANCISCO, 2015, p. 106).
Tal diretiva orienta um novo agir político, que pode ser orientado
pelo Direito, possuindo por base e fundamento o interesse comum e coletivo das pessoas e do meio ambiente em primeiro lugar, em detrimento ao
poder econômico. Ademais, exige-se o reconhecimento de que a esfera da
dignidade seja extensível também à questão ambiental, pois cada vez se
demonstra que os aspectos naturais são essenciais para a sadia qualidade
de vida de todos, seres humanos e naturais, possuindo valor em sí. Assim,
Toda a pretensão de cuidar e melhorar o mundo requer mudanças profundas nos estilos de vida, nos modelos de produção e de consumo, nas estruturas consolidadas de poder, que hoje regem as sociedades. O progresso
humano autêntico possui um carácter moral e pressupõe o pleno respeito
pela pessoa humana, mas deve prestar atenção também ao mundo natural
e ter em conta a natureza de cada ser e as ligações mútuas entre todos, num
sistema ordenado (PAPA FRANCISCO, 2015, p. 11).
Assim, o poder deve efetivamente estar orientado ao povo, portanto,
democrático, e visando a fundamentação a que se destina, qual seja o bem
comum e coletivo, o que pressupõe o resgate social e ambiental por parte de
todos os agentes sociais, privados e públicos, e para além de todo ineresse
equilibrado como requisito essencial à sadia qualidade de vida. Não fez, entretanto, qualquer referência específica à vida humana, o que possibilitou a inclusão de todas as formas
de vida como beneficiárias da manutenção do equilíbrio ambiental, um dever atribuído
conjuntamente ao Poder Público e à coletividade. De igual maneira, o constituinte protegeu
as atuais e as futuras gerações, estabelecendo entre elas um compromisso de solidariedade
intergeracional” (p.31-32).
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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puramente privado14.
Daí a necessidade de a aliança se estender à sociedade, a qual, para além
dos grupos e do mercado, deverá assenhorar-se da ciência e da tecnologia,
colocando-as a seu dispor. É então que a ética da ciência e da tecnologia se
revelará como a ética da sociedade, dando ensejo a uma ética comunitária,
fundada em valores socialmente compartilhados, como a liberdade, a justiça
e a responsabilidade (DOMINGUES, 2004, p. 169).
O novo imperativo ecológico exige mundaça global do arranjo social,
inclusive das próprias estruturas governamentais, pois as instituições políticas constituídas em um processo de estado-nação, iniciado a quinhentos
anos, não parecem suficientes para dar efetivamente solução aos problemas atuais da humanidade. Ante tal fato, igualmente a ética necessária é
a do compromisso e da responsabilidade, a qual transcende as barreiras
políticas do estado-nação, visando os problemas da humanidade. “Um
projeto moral, precisamente para ocupar-se de assuntos que transcendem a ética individual, não pode cercear-se artificialmente da política
nem esta é já tolerável sem moralidade. Limitar os problemas éticos a
assuntos domésticos, menores, é ignorar a realidade (CAPELLA, 1998,
p. 46). Portanto, a responsabilidade passa a ser global e pelo bem comum,
e é um projeto que envolve a coletividade, que exige a transmutação da
cegueira dos indivíduos, sobre os quais se pautam os interesses, inclusive
os direitos primordiais (MARÉS, 2006). “Daí a necessidade de a moral
da responsabilidade ou a moral do phrónimos ser redefinida, passando a
ser da alçada não do indivíduo, como acreditava Weber, mas da coletividade, enquanto assunto e responsabilidade de uma inteligência coletiva.
(DOMINGUES, 2004, p. 169).
Desta forma, e como aponta Beck (2002, p. 146), no momento atual
de incerteza e de risco, para além da responsabilidade coletiva há a necessidade de reinventar as instituições políticas e de inventar novas formas de
14 Neste sentido, Capella (1998, p. 56-57) afirma que este regate deve ocorrer o mais
breve possível; no entanto, constata que há na atualidade o problema ético de natureza
ameaçada, e está no fato da “inexistência de vontade social de por em prática as mudanças
nos nossos modos de viver exigidos para fazer frente, efetivamente, à problemática ecológico-civilizatória”. Destaca que a tomada de consciência é muito lenta, pois fragmentária
e intrincada. “Do ponto de vista da ética, essa situação, que pode levar a compreender as
transformações de fundo demasiado tarde, quando algumas das consequências da agressão
a nossa volta sejam definitivamente irreparáveis, põe em questão as bases mesmas de uma
das conquistas culturais maiores dos seres humanos: a ideia de democracia”
DE RISCO E O IMPERATIVO ECOLÓGICO EM HANS JONAS E NA ENCÍCLICA LAUDATO
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SI: POSSÍVEIS PERSPECTIVAS AO DIREITO PARA O ENFRENTAMENTO DA CRISE ECOLÓGICA
exercer a política em lugares sociais que antes se consideravam apolíticos.
Dai o papel da responsabilidade ético-político-jurídico coletiva de todos
os agentes sociais, sejam estes públicos ou privados.
Para além de ecológica, a crise atual gera reflexos e desafios à concepção, papel e entendimento das instituições sociais atuais. Trata-se do
desafio de redescobrir novos papeis e novos arranjos pautados no interesse
comum e coletivo da sociedade, centro do poder, para além do arranjo
atual, pois neste sistema tradicional há separação entre as instituições e
indivíduos, bem como indiferença, tanto do sistema quanto do indivíduo,
em relação aos bens ambientais. Assim, uma possível solução passa pela
responsabilidade ético-ambiental, esta para além da perspectiva moderna, e
isto pressupõe uma nova racionalidade, não mais fragmentária e objetivista,
ou seja, não mais continuar com o apoliticismo dos setores sociais, mas
que para além do Estado e do Direito, a questão ambiental exige posição
política e preocupação até mesmo dos agentes econômicos (BECK, 2002),
porém, sempre tendo em vista a responsabilidade socioambiental.
CONCLUSÃO
A crise ecológica atual é reflexo da crise dos fundamentos de um
modelo civilizacional gestado na modernidade, o qual pressupunha a fragmentariedade da realidade, bem como a divisão entre sujeito e objeto. Por
consequência, todas as esferas de conhecimento, bem como as instituições
sociais, passaram a agir em conformidade com a orientação da especialização, a qual tem por base a fragmentarização e não a complexidade.
Isto acabou por orientar ações de todos os agentes sociais, desde a
política e jurídica até a economia, passando especialmente pela forma de
produzir conhecimentos. Veja-se, por exemplo, a questão do direito, que
em sua estrutura se apresenta como fragmentário, e em muitos casos nem
sempre conversando entre seus ramos distintos para a solução de demandas
sociais e ambientais.
A lógica da objetivação igualmente afastou todo aspecto místico,
transcendente ou metafísico das estruturas naturais e sociais, tomando-as
apenas como algo a ser objetivamente analisado e desprovido de qualquer
valor em si. Isto fez com que não houvesse preocupações com as consequências futuras das ações presentes. Ocorre que isto acabou por gerar
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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diversas consequências socioambientais, as quais perpassam gerações.
Pela extensão da crise ecológica atual, a solução deve envolver nova
lógica e incluir vários fatores, atores e fundamentações, e pressupõe o
resgate da complexidade, inclusive superando-se o próprio paradigma
moderno, pois fragmentário; nesta empreitada, o direito possui papel
relevante e deve ter seu campo de atuação estendido para além do aspecto
estritamente normativo, e se guiar pelas finalidades ambientais e sociais
a serem alcançadas, abrindo-se à contribuição de demais áreas e fontes.
Assim, mais do que o aspecto normativo e individualista que ainda
marca o direito, é necessária a preocupação com os resultados e valores
a serem resguardados pela regulamentação, tendo em vista que as ações,
especialmente as tecno-científicas e econômicas, presentes cada vez mais
ultrapassam a barreira de tempo e espaço e voltam-se a resultados futuros,
ou seja, os impactos serão sentidos por gerações futuras, passando a importar, igualmente, para a solução de demandas os possíveis impactos futuros.
Não só o direito, mas as ações de todos os agentes sociais, públicos e
privados, devem ser orientadas à busca da finalidade última da responsabilidade ambiental e pelo bem comum. Por isso, a ação privada igualmente
passa a ser marcada em sua gênese pelo aspecto político de responsabilidade
pelos resultados. Assim, a ação reveste-se de princípios éticos intergeracionais e de responsabilidade para com a sociedade e o meio ambiente,
não separados, mas unidos em sua gênese, por isso socioambiental, o que
propõe e reconhece a redescoberta e o resgate do valor próprio da dignidade da natureza, ao lado e em conjunto da própria compreensão de
dignidade humana.
Portanto, o direito, neste contexto, não deve se fechar em seu casulo
normativo, porém, é convidado a repensar os resultados de suas decisões,
visando a efetivação da proteção socioambiental para o enfrentamento
da crise ecológica.
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Perú Indígena, n.º 13 (29), 1992, p. 11-20. Disponível em: https://problematicasculturales.files.wordpress.com/2015/04/quijano-colonialidad-y-modernidad-racionalidad.pdf. Acesso em: 14/01/2016.
WEBER. Max. Ensaios de Sociologia. 5. Ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1982.
UM DIÁLOGO ENTRE O NOVO CONSTITUCIONALISMO
LATINO-AMERICANO E A ENCÍCLICA LAUDATO SI:
PARA ALÉM DO DISCURSO HEGEMÔNICO DO DIREITO
UN DIALOGUE ENTRE LE NOUVEAU
CONSTITUTIONNALISMO LATINO-AMÉRICAIN
ET L’ENCYCLIQUE LAUDATO SI: AU-DELÀ DU
DISCOURS HÉGÉMONIQUE AU DROIT
Daniel Gonçalves de Oliveira1
Fabiana Ferreira Novaes2
Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega3
(...)é possível desenvolver uma nova capacidade de sair de si mesmo rumo ao
outro. Sem tal capacidade, não se reconhece às outras criaturas o seu valor,
não se sente interesse em cuidar de algo para os outros, não se consegue
impor limites para evitar o sofrimento ou a degradação do que nos rodeia.
A atitude basilar de se auto-transcender, rompendo com a consciência
isolada e a auto-referencialidade, é a raiz que possibilita todo o cuidado
dos outros e do meio ambiente...
( Papa Francisco, 2015, p. 64)
RESUMO: Urge neste século a necessidade de um romper paradigmático,
um (re)pensar teórico-científico para o Direito. Tal (re)formulação, (re)
invenção, (re)construção - e vários outros adjetivos que caberiam aqui iniciou-se na América Latina a partir do que se (re)conhece como Novo
Constitucionalismo Latino-Americano que, rompendo com às teorias
jurídicas clássicas e eurocêntricas e adotando uma epistemologia, contextual e conceitual, fincada na realidade latino-americana, dentre outras,
propõe uma visão holística e integrada do ser humano e do ambiente que
o abriga, ou seja, rompe o paradoxo cartesiano do Direito que separa natureza e cultura, justificando tal binarismo em uma concepção individualista/
antropocêntrica/utilitarista que lastreia a relação homem/natureza. E,
nesse mesmo sentido, a Encíclica Papal Laudato Si, trouxe para o centro
do debate da Igreja a necessidade do respeito à natureza, reconhecendo-a
como casa comum, portanto de importância vital para todos os seres vivos
que a habitam. A Carta Papal faz clara referência, especialmente, à (inter)
dependência humana da natureza, a fim de provocar uma reflexão sobre o
DIÁLOGO ENTRE O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E A ENCÍCLICA
282 | UM
LAUDATO SI: PARA ALÉM DO DISCURSO HEGEMÔNICO DO DIREITO
direito à vida desta e das futuras gerações, conclamando o respeito universal pela natureza que se esvai pelas mãos impiedosas da ganância humana.
Assim, o presente trabalho debruça-se e referencia-se nesse diálogo possível
entre o Novo Constitucionalismo Latino-Americano e a Encíclica Laudato Si, adotando à proposta de uma ‘nova’ racionalidade ambiental de
Henrique Leff e a ideia de sustentabilidade de Leonardo Boff, objetivando
traçar, embora que sumariamente, o romper paradigmático dos novos
fundamentos epistemológicos da tutela jurídica do ambiente.
PALAVRAS-CHAVE: Novo Constitucionalismo Latino-Americano;
Casa Comum; Racionalidade Ambiental.
RÉSUME: En ce siècle actuel, il urge de constater la nécessité d’une rupture
paradigmatique, d’une repensée théorique et scientifique en ce qui concerne
le Droit en général. Tels reformulations, réinventions, reconstructions et bien
d’autres adjectifs qui conviendraient ici, tous ont connu leur fondement en
Amérique latine sous le nom de Nouveau Constitutionnalisme latino-américain. Ce dernier en s’éloignant radicalement des théories juridiques; classiques
et euro-centriques, adopte une épistémologie, contextuelle et conceptuelle basée
sur la réalité latino-américaine, et entre autres, propose une vision holistique
et intégrée de l’être humain et de l’environnement qui l’abrite. En d’autres
mots, le nouveau constitutionalisme fait l’objet d’une rupture avec le paradoxe
cartésien du concept du Droit que sépare nature et culture, en justifiant ce
binarisme dans une conception individualiste / anthropocentrique / utilitariste que assure la relation entre l’homme et la nature. C’est dans cette optique
que l’Encyclique Pape Laudato Si, a apporté à l’Église le débat sur la nécessité
du respect à la nature, reconnaissant celle-ci comme une maison commune,
dont l’importance est vitale pour tous les êtres vivants qui l’habitent. La lettre
du dit Pape fait particulièrement référence à l’interdépendance humaine
à l’égard de la nature, afin de susciter une réflexion sur le droit à la vie de
l’actuelle génération et de celles à venir, tout en évoquant le respect universel
de la nature dont la destruction se retrouve forgée par l’impitoyable cupidité
humaine. Ainsi, le présent document porte sur le possible dialogue entre le
Nouveau constitutionnalisme latino-américain et l’Encyclique pape Laudato Si, en adoptant d’une part la proposition d’une «nouvelle» rationalité
environnementale de Henrique Leff et d’autre part l’idée de la durabilité de
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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Leonardo Boff, visant à développer, bien que sommairement, le rompement
paradigmatique des nouveaux fondements épistémologiques de la protection
juridique de l’environnement.
MOTS-CLÉS: Nouveau Constitutionnalisme Latino-Américain; Maison
Commune; Rationalité environnementale.
INTRODUÇÃO
Depois do recente e acelerado período industrial, de avanços tecnológicos e científicos que o planeta vivenciou, teve início a propagação de
novas formas de pensar o modo de viver sobre a terra, e de se relacionar
com ela, em face dos episódios de degradação da Terra. Esse novo ponderar se reflete na tentativa de elaboração de arcabouços legais que buscam favorecer a vida consciente das necessidades do meio em que vive a
humanidade. Reconhecer as necessidades desse meio é atender às próprias
necessidades da geração humana presente e das futuras.
Assim, progride uma confluência de diálogos em nível global para
o cuidado com a casa comum e a garantia da qualidade de vida dos seres
humanos, bem como da perpetuação da vida em si como um todo. O
reconhecimento da natureza e sua preservação brotam na mudança de
pensamento. Nas palavras de Méndez (2013, p. 29), a crise ecológica tem
provocado o reconhecimento de que o planeta tem limites e que necessitamos da natureza para nossa sobrevivência. Essa mudança de consciência
provocou não só o nascimento do Direito Ambiental, como dos direitos
das pessoas a um meio ambiente saudável. Assim, progridem os sistemas
de normas internacionais e nacionais que encontram, contudo obstáculos à sua efetivação e mesmo a tendência de que sejam flexibilizados em
benefício do interesse econômico.
E é nesse sentido que a Encíclica papal, Laudato Si, surge muito mais
como documento de alerta e posicionamento político em face da lógica
capitalista/consumista que reina no mundo, do que como documento simplesmente religioso. A carta se dirige a “cada pessoa que habita nesse planeta”4 e não só aos cristãos, trazendo o contraponto ante a gana do modelo de
4 Laudado Si, 2015, p. 1. A ideia de responsabilidade de todos e a preocupação integral
com o planeta encontra-se presente mesmo nas referências bibliográficas. Pela primeira
fez, consta do documento encíclico a citação de um místico do sufismo, Ali Al-Khawwas,
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284 | UM
LAUDATO SI: PARA ALÉM DO DISCURSO HEGEMÔNICO DO DIREITO
produção moderno: ao mesmo tempo em que o mercado precisa do Meio
Ambiente enquanto fonte econômica essencial à sua produção de bens
infindável, o sistema não pode suportar seus próprios efeitos que tendem
ao esgotamento dos bens comuns disponíveis. Assim é imprescindível uma
proteção contra estes efeitos e imposição de limites em respeito à natureza
e à vida. A flexibilização dos mecanismos elaborados para fins de proteção
do Meio Ambiente só pode conduzir a problemáticas ecológicas cada
vez maiores, com uma atividade descontrolada do ser humano, sendo ele
mesmo vítima da degradação (FRANCISCUS, 2015, pg. 1).
A apelação em nível mundial alerta à necessária mudança de comportamento, demonstrando que a rapidez da evolução tecnológica e da
exploração - que visa o acúmulo (e não a satisfação da necessidade) - entra
em descompasso com a lenta evolução biológica natural. Esta não pode
acompanhar a rapidez dos sistemas mundiais. Há uma crítica contundente
à “confiança irracional”5 de que o próprio sistema tecnológico com suas
modernidades poderia trazer soluções, nomeando-a de fé cega na ciência.
Entende-se o “meio ambiente como bem coletivo, patrimônio de toda
a humanidade e responsabilidade de todos”6. No documento, o meio
ambiente é tratado como bem coletivo e patrimônio da humanidade, mas
não para mero uso exploratório e sim como parte de nós mesmos. Atribui
ao ser humano a responsabilidade para com o meio em que vive, no qual
deve se ver como parte, não como dominador.
Nesse intuito busca enfatizar o diálogo entre os diversos campos
científicos como as ciências sociais, biológicas, ambientais, geológicas,
políticas e tantas quantas forem necessárias à elaboração de instrumentos
de normatização e de efetivação que se complementem; que conversem
entre si, evitando incoerência. Estimula-seque os Estados e comunidade
científica e outras voltadas à preservação do planeta desenvolvam estratégias integradas de preservação e proteção da vida e do meio, de modo que
a variedade de olhares segmentados sobre o tema não tem sido suficiente.
Porém a integração desses olhares pode trazer uma contribuição mais
eficaz.
Passando por tópicos desde a poluição, esgotamento de recursos
significando que quando se trata do bem comum deve-se estimular a união e congregação
de todos para sua defesa e perpetuação.
5 Laudado Si, 2015, par. 19.
6 Ibidem
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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naturais e perda de biodiversidade, acesso à agua, até a degradação social,
questões de pobreza e diminuição da qualidade de vida humana, a encíclica
convida a refletir também sobre a desigualdade planetária. Desigualdade
de repartição; de acesso; desigualdade de direitos respeitados. Resta evidente a mensagem geral de que preocupação com a natureza e justiça (para
os pobres em especial) são inseparáveis, bem como o empenhamento da
sociedade global para o alcance destes fins.
De igual modo, o Novo Constitucionalismo Latino-Americano
inaugurou um (re)pensar teórico-científico para o Direito, inclusive
na forma de enxergar a natureza. Tal (re)formulação, (re)invenção, (re)
construção - e vários outros adjetivos que caberiam aqui, rompem com
às teorias jurídicas clássicas e eurocêntricas e adotam uma epistemologia,
contextual e conceitual, fincada na realidade latino-americana, dentre
outras, propondo uma visão holística e integrada do ser humano e do
ambiente que o abriga, ou seja, rompe o paradoxo cartesiano do Direito
que separa natureza e cultura, justificando tal binarismo em uma concepção
individualista/antropocêntrica/utilitarista que lastreia a relação homem/
natureza e tem sua raízes fincadas nos princípios neoliberais, que preconizam a mínima intervenção estatal, desta feita deixando à natureza e as
gentes, especialmente, àquelas portadoras de uma identidade coletiva e/ou
em situação periférica na sociedade, à mercê da própria sorte, ou melhor
do interesses econômicos que exploram tanto seres humanos, quanto à
natureza. Partindo dessa compreensão, tem-se que é que necessário a busca
pela sustentabilidade em seu sentido genuíno e holístico a partir de uma
nova racionalidade.
ENCÍCLICA LAUDATO SI’ UM DESPERTAR PRAGMÁTICO
DA IGREJA PARA A QUESTÃO AMBIENTAL
A Encíclica Laudato Si do Papa Francisco, representa atualmente, o
que a Encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII, representou no século
XIX, o posicionamento da Igreja em questões sociais complexas, com críticas profundas aos sistemas político-econômicos vigentes, reafirmando a
doutrina social da Igreja Católica, porém a Encíclica de Francisco situa-se
em um contexto do que, atualmente, se pode reconhecer como ecologia
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LAUDATO SI: PARA ALÉM DO DISCURSO HEGEMÔNICO DO DIREITO
política78, ou seja, aborda questões sociais e ambientais, condenando o
desgaste gerado pelo capitalismo, que explora tanto o homem, quanto a
natureza, em sua famigerada vontade de lucro.
Nesse sentido, importante destacar que a Encíclica se inicia com
o canto das criaturas, dirigindo-se aos que são sensíveis as terríveis conseqüências da degradação do ambiente, que em menor ou maior grau
afetam a todos, a começar pelos mais pobres, que à margem do sistema
vigente são aqueles que mais sentem o rebuliço das catástrofes ambientais
e da escassez de recursos, sobretudo os que são essenciais à sobrevivência
humana, como bem exorta a carta papal ao tratar em tópico próprio, e em
várias ocasiões ao longo do texto, da questão da água, categoricamente,
afirmando que “(...) o acesso à água potável e segura é um direito humano
essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das
pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos”
(FRANCISCUS, 2015, p. 10).
No contexto de crises sociais, políticas, econômicas e ambientais, a
Laudato Si’ mostra-se pertinente a essa realidade, pois, embora recente,
revestiu-se de uma função importante, de atribuir à questão ambiental uma
relevância pública mundial que transcende o âmbito científico, também,
indo além das polêmicas midiáticas e das barreiras ideológicas da cena
política, significando um importante passo no árduo caminho do (re)
pensar à questão socioambiental.
No enredo da burla papal, dois aspectos se destacam, primeiro a
coincidência histórica entre essa Encíclica e o momento de transição que
vive o mundo contemporâneo e segundo, desveladamente, o destacar da
“raiz humana da crise ecológica”. A humanidade assiste atualmente a passagem de uma sociedade de massa para uma sociedade global, pulverizada
e líquida, que se guia pelos imperativos da modernização capitalista que
7 A ecologia política estuda os conflitos ecológicos distributivos. Por distribuição ecológica
são entendidos os padrões sociais, espaciais e temporais de acesso aos benefícios obtidos dos
recursos naturais e aos serviços proporcionados pelo ambiente como um sistema de suporte
da vida. Os determinantes da distribuição ecológica são em alguns casos naturais, como o
clima, topografia, padrões pluviométricos, jazidas de minerais e a qualidade do solo. No
entanto, também são claramente sociais, culturais, econômicos, políticos e tecnológicos
(MARTÍNEZ-ALIER, 2007, p. 113).
8 A ecologia política estuda conflitos ecológicos distributivos; constitui um campo criado
por geógrafos, antropólogos e sociólogos ambientais. O enfrentamento constante entre
meio ambiente e economia, com suas vicissitudes, suas novas fronteiras, suas urgências
e incertezas, é analisado pela economia ecológica (MARTÍNEZ-ALIER, 2007, p. 15)
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 287
intensifica a relação de apropriação da natureza pelo homem, que se vê
senhor de todas as coisas, impondo essa lógica mercantilista à natureza,
atribuindo a tudo um valor monetário, e sob esse raciocínio, “Toda ideia
de proteção da natureza é, assim, sacrificada sobre o altar da propriedade
e da liberdade econômica” (OST, 1995, p. 61). Logo, a crise desse tempo
e o início de uma nova humanidade ordenada pela técnica, onde o homem
domina a natureza de modo ‘ilimitado’, exercendo toda a tirania de sua
ganância nesse ‘dominar’ sem limites, fazem que tanto a natureza, quanto
o próprio homem, estejam cada vez mais à mercê da imperiosa e impiedosa
pretensão do poder econômico e do poder político que a ele se alinha.
Partindo dessa compreensão, Francisco aborda especificamente o
tema política e economia, onde literalmente não economizou críticas ao
preço das crises imposto à população e conseguintemente, ao ambiente,
entendendo que a política não deve submeter-se à economia, mas que
ambas devem dialogar, atuando conjuntamente a serviço da vida, especialmente da vida humana.
Francisco, traz à reflexão “o que está acontecendo em nossa casa”,
fazendo quase que uma cartografia existencial por meio da análise da crise
ecológica, expondo-a como fruto do desajustamento do ser humano ao
universo, propondo uma solução teórica com base no que chamou de
“Ecologia Integral”9, onde o ser humano deve reconhecer o seu lugar no
universo. E, propõe “algumas diretivas de orientação e ação”, fundados no
diálogo nas diversas instâncias político-econômicas e religiosas.
Em suma, a Encíclica representa um despertar pragmático de outras
instituições que não sejam científicas ou puramente políticas e traz um
desafio importante, conter a destruição da vida por uma espécie de poder
ingovernável, que o Papa Francisco intitulou como “paradigma tecnoeconômico”, onde o homem e o meio ambiente são vistos como objetos e
explorados de modo ilimitado, egoísta e triste (e aqui caberiam inúmeros
outros adjetivos e interjeições que fossem capazes de expressar o lamento
por essa objetificação do homem e da natureza). E, dessa forma, a Encíclica de Francisco demonstra que a crise ecológica é antes de tudo, uma
crise humana, que sob regência do sistema capitalista avança devastando a
“casa comum”, o abrigo de todos os seres humanos e não humanos, sendo
9 Ecologia integral significa pensar a ecologia a partir de uma visão que considera o mundo
todo como uma casa comum. (Disponível em <http://faje.edu.br/periodicos/index.php/
pensar/article/viewFile/3519/3620> Acesso em 28 de ago. 2016)
DIÁLOGO ENTRE O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E A ENCÍCLICA
288 | UM
LAUDATO SI: PARA ALÉM DO DISCURSO HEGEMÔNICO DO DIREITO
necessário uma mudança social, econômica, cultural, pautada no bem
comum e na justiça, inclusive entre gerações, de todos em todos os lugares,
desde os mais ricos até os mais desprovidos, fazendo com que o lugar que
nos possibilita viver seja respeitado por meio da adesão e prática de valores
que ressaltem a indissolúvel relação do homem com a natureza.
De igual modo, o Novo Constitucionalismo Latino-Americano
inaugurou um (re)pensar teórico-científico para o Direito, inclusive
na forma de enxergar a natureza. Tal (re)formulação, (re)invenção, (re)
construção - e vários outros adjetivos que caberiam aqui, rompem com
às teorias jurídicas clássicas e eurocêntricas e adotam uma epistemologia,
contextual e conceitual, fincada na realidade latino-americana, dentre
outras, propondo uma visão holística e integrada do ser humano e do
ambiente que o abriga, ou seja, rompe o paradoxo cartesiano do Direito
que separa natureza e cultura, justificando tal binarismo em uma concepção
individualista/antropocêntrica/utilitarista que lastreia a relação homem/
natureza e tem sua raízes fincadas nos princípios neoliberais, que preconizam a mínima intervenção estatal, desta feita deixando à natureza e as
gentes, especialmente, àquelas portadoras de uma identidade coletiva e/ou
em situação periférica na sociedade, à mercê da própria sorte, ou melhor
do interesses econômicos que exploram tanto seres humanos, quanto à
natureza. Partindo dessa compreensão, tem-se que é que necessário a busca
pela sustentabilidade em seu sentido genuíno e holístico partindo de uma
nova racionalidade ambiental.
DIÁLOGOS POSSÍVEIS ENTRE O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E A ENCÍCLICA LAUDATO SI’
Na América Latina, nas últimas décadas iniciou-se um novo movimento constitucional, denominado de Novo Constitucionalismo Latino-Americano, sobretudo com as constituições do Equador em 2008 e da
Bolívia em 2009. O novo modelo jurídico-constitucional, proposto pelas
Cartas políticas equatoriana e boliviana, consagra uma nova compreensão
da relação com a natureza, afastando-se da separação abismal sujeito/
natureza, sujeito/objeto, cultura/natureza etc. que vigora no pensamento
moderno/colonial que impregna os sistemas jurídicos latino-americanos.
Desse modo, o Novo Constitucionalismo Latino-Americano, também
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 289
chamado de constitucionalismo andino, simboliza o rompimento com o
constitucionalismo clássico de outrora, inspirado nos modelos europeus
e/ou anglo-americanos (WOLKMER; FAGUNDES, 2011, p. 377),
superando assim, a lógica individualista e a concepção de sociedades
homogêneas.
Nesse compreensão, tem-se que a natureza passa de um sentido instrumental/utilitarista nas constituições econômicas próprias do constitucionalismo liberal, à uma vinculação pluralista e intercultural nas recentes
constituições do Equador e da Bolívia (MEDICI, 2016, p.103), representando inovações no campo principiológico e axiológico constitucional e
dos direitos (MEDICI, 2016, p.113), logo, se tratando de um romper epistemológico, pragmático e paradigmático com base nos saberes e relações
que as comunidades originárias, milenarmente, mantém com a natureza
que lhes propicia viver, compreendendo os direitos fundamentais “a partir
da construção e reconstrução de consensos plurais, não hegemônicos,
dialógicos, democráticos, diversos, não hierarquizados e não permanentes,
na tentativa de superar a modernidade europeia” (MAGALHÃES apud
BARROSO, 2012, p. 37-38).
As Constituições equatoriana e boliviana buscam a junção entre
Estado/Sociedade/Natureza, consolidando uma visão biocêntrica em que
a vida e a natureza são eixos centrais da cosmologia andina, que se coloca
como alternativa ao capitalismo competitivo, ao progresso e crescimento
ilimitados, incompatíveis com o equilíbrio da natureza (MORAES apud
BOFF, 2016, p. 157), sendo que a Constituição do Equador é “a primeira e
até agora a única a prever direitos da natureza” e a Constituição da Bolívia
“a primeira e até agora a única a prever direitos dos animais” (STRECK;
OLIVEIRA, 2016, p.131), ambas rompem a via cartesiana de entendimento do Direito, pois garantem “direitos para além da espécie humana”
(STRECK; OLIVEIRA, 2016, p.132), pois nessa perspectiva “(...) todos
los seres vivos tiene el mismo valor ontológico” (ACOSTA, 2011, p.343).
O Novo Constitucionalismo Latino-Americano, traduz uma
mudança teórica-prática e é sintoma do mal-estar cultural contemporâneo, que é ao mesmo tempo uma crise de credibilidade no progresso como
consequência de sua dimensão ecológica. Essa mudança paradigmática em
relação ao homem e o meio ambiente, afeta a imagem do homem que passa
de senhor de todas as coisas à integrante do meio ambiente, desfazendo
DIÁLOGO ENTRE O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E A ENCÍCLICA
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LAUDATO SI: PARA ALÉM DO DISCURSO HEGEMÔNICO DO DIREITO
assim a relação de hierarquia entre homem e natureza e promovendo a
abertura do Estado Constitucional aos problemas ambientais, a conscientização da responsabilidade com as gerações futuras e a consideração com
o patrimônio e herança comum da humanidade (MEDICI, 2016, p. 117).
Nesse sentido, é importante considerar que tanto as novas constituições latino-americanas, sob a égide do constitucionalismo andino, quanto
à Encíclica Laudato Si, representam mudanças significativas em vários
sentidos: teórico, político, cultural, jurídico etc. e influenciam o (re)pensar
da questão socioambiental a partir de novas compreensões da relação ser
humano e natureza, cada qual ao seu modo e em seu espaço, mas com seu
legado teórico e social que marcam de novos significados o viver na “casa
comum”, o se relacionar com a Pacha Mama. Por conclusivo, tem-se que
apesar de se fincarem em bases de pensamento diferentes, há um diálogo
possível, pela proximidade de intenções, entre o Novo Constitucionalismo
Latino-Americano e a Encíclica Laudato Si, pois ambos superam o trivial
e dão à natureza a compreensão e o lugar devidos, esclarecendo que o ser
humano não se desvincula hora alguma do ambiente, do nascer ao morrer,
estará embalado nos braços da Mãe-Terra.
UM DESPERTAR PARA UMA NOVA CONCEPÇÃO TEÓRICO-PRÁTICA DO DIREITO PARA A NATUREZA
A questão ambiental figura no século XXI como uma preocupação
exponencial e global, sendo uma questão de enfrentamento de todos em
todos os lugares e em várias frentes, exigindo mudanças significativas nas
estruturas atuais de pensamento e ação, como condição essencial para
a continuidade da vida na terra, pois as atividades humanas não estão
isentas de consequências, prova disso são os eventos extremos provocados
pelas mudanças climáticas, influenciadas por essa relação destrutiva do
ser humano com o ambiente, que se assenta sobre bases sociais, culturais,
políticas e, principalmente, econômicas, que são avessas a convivência
harmoniosa com a natureza, mesmo conscientes de que a atual insustentabilidade é de ordem socioecológica, onde persiste “um mal-estar cultural
generalizado com a sensação de que imponderáveis catástrofes poderão
acontecer a qualquer momento” (BOFF, 2013, p. 17).
Há “pontos nevrálgicos da insustentabilidade generaliza”, que vai
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 291
desde a insustentabilidade do sistema econômico-financeiro mundial, passando pela insustentabilidade social da humanidade por causa da injustiça
social, dessa forma evidenciando a necessidade de encontrarmos “outra
forma de produzir e assegurar a subsistência da vida humana e da comunidade de vida (animais, florestas e os demais seres orgânicos) ou então
poderemos conhecer um fenomenal fracasso que traz em seu bojo grave
catástrofe social e ambiental” (BOFF, 2013, p. 19).
Talvez, poucas palavras sejam mais usadas hoje do que o substantivo
sustentabilidade e o adjetivo sustentável, que apropriadas pelo sistema
capitalista, tornam-se, meramente, “uma etiqueta que se procura colar
nos produtos e nos processos de sua confecção para agregar-lhes valor”
(BOFF, 2013, p. 09), consistindo em uma falsidade ecológica para ocultar agressões à natureza, a morte por biocidas e apenas vender e lucrar,
na prática resumindo-se apenas a um agir simbólico, tão somente, para
agregar valor aos produtos, serviços ou ações, representando um verdadeiro
greenwashing10. Diante disso, faz-se necessário um “senso crítico e uma
compreensão mais apurada para saber o que é sustentabilidade e o que não
é” (BOFF, 2013, p. 09-10), pois a “crise ambiental é uma crise da razão, do
pensamento, do conhecimento” (LEFF, 2009, p. 18). Nessa vereda, Boff
leciona que o verdadeiro sentido da sustentabilidade, “mais que qualquer
outro valor, deve ser também globalizada” (BOFF, 2013, p.11) e leciona
que a sustentabilidade deve buscar “uma definição holística, vale dizer, a
mais integradora e compreensiva possível”, partindo de uma visão cosmológica, sistêmica, ecocêntrica e biocêntrica11 (BOFF, 2013, p.171).
Corroborando com as colocações de Leonardo Boff sobre sustentabilidade, o conceito desenvolvido por Henrique Leff, denominado de
10 O termo greenwashing, ou “lavagem verde”, vem sendo aos poucos introduzido nas
discussões sobre o marketing da empresas. Pode ser entendido como um recurso usado
quando uma empresa, ONG, ou mesmo o próprio governo, propaga práticas ambientais
positivas e, na verdade, possui atuação contrária aos interesses e bens ambientais. Trata-se
do uso de conceitos ambientais para construção de uma imagem pública confiável, porém
não condizem com a real gestão, negativa e causadora de degradação ambiental. (Disponível
em: < http://www.anppas.org.br/encontro5/cd/artigos/GT8-645-626-20100825115643.
pdf> Acesso em 28 de Ago. 2016)
11 Sustentabilidade é toda ação destinada a manter as condições energéticas, informacionais, físico-químicas que sustentam todos os seres, especialmente a Terra viva, a comunidade de vida, a sociedade e a vida humana, visando sua continuidade e ainda atender as
necessidades da geração presente e das futuras, de tal forma que os bens e serviços naturais
sejam mantidos e enriquecidos em sua capacidade de regeneração, reprodução e coevolução.
(BOFF, 2013, p.107)
DIÁLOGO ENTRE O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E A ENCÍCLICA
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LAUDATO SI: PARA ALÉM DO DISCURSO HEGEMÔNICO DO DIREITO
racionalidade ambiental, ou seja, em um contexto fundado na realidade
evidente, onde nem a eficácia do mercado, nem a norma ecológica, nem
a moral conservacionista, nem uma solução tecnológica são capazes de
reverter a degradação da natureza pelo ser humano, a concentração de
poder e a desigualdade social, ambos gerados pela racionalidade econômica que se coloca como suprema, então é necessário a adoção de outra
racionalidade. Sobre a crise ecológica, Leff, distanciando-a de uma catástrofe, e entendendo-a como uma crise da civilização, da cultura ocidental,
da racionalidade da modernidade, da economia do mundo globalizado,
dando-se na negação do outro, a começar pela negação da natureza, traz
a necessidade da construção de um saber ambiental que servirá de fundamento para essa nova racionalidade12.
No pensamento de Leff, “(...) o conhecimento tem desestruturado os
ecossistemas, degradado o ambiente, desnaturalizado a natureza” (LEFF,
2006, p.17), sendo que a racionalidade estabelecida a partir da ordem econômica, impera sobre a ordem natural das coisas do mundo, igualmente as
formas de produção de riqueza, as normas de intercâmbio de mercadorias
e a mercantilização da natureza (LEFF, 2006, p. 171), ocasionando por
meio do uso belicoso do conhecimento a superexploração da natureza.
Nesse diretiva, “(...) a racionalidade ambiental é um pensamento que
se enraíza na vida, através de uma política do ser e da diferença” (LEFF,
2006, p. 19), consistindo não em um processo evolutivo da natureza,
mas em uma construção social a partir dos saberes, da ação social e pelas
relações de outridade13, assim emergindo da crise ambiental em oposição
12 A crise ambiental é um efeito do conhecido – verdadeiro ou falso do real, da matéria,
do mundo. É uma crise das formas de compreensão do mundo a partir do momento em
que o homem surge como um animal habitado pela linguagem, que faz com que a história
humana se separe da história natural, que seja uma história do significado e do sentido
atribuído pelas palavras às coisas e que gera as estratégias de poder na teoria e no saber que
resolveram o real para forjar o sistema mundo moderno. (LEFF, 2006, p. 16).
13 “[...] ainda desconhecido pelos dicionários – quando quisermos nos referir ao encontro
com o outro – que não se conforma com os sentidos que foram atribuídos pelo discurso
filosófico – do pensamento dialético ao pensamento pós-moderno – e na fala corrente, à
alteridade [...] a relação com o Outro e a ideia (sic) de Infinito desde o tempo do Outro
permitem pensar o saber ambiental o campo de externalidade (o Outro) do conhecimento
científico, e o diálogo de saberes como a relação de outridade que abre a história para um
futuro sustentável. Ali se constrói o campo da racionalidade ambiental na qual as ciências
e a economia se confrontam com esse Outro absoluto que é o Ambiente. Nesse encontro,
vão se constituindo identidades estratégicas que vão dialogando com outros que lhes são
semelhantes enquanto compartilham sua diferenciação com o Mesmo comum (o pensamento único); singularidades que haverão de se situar sempre como um diante do outro,
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 293
à homogeneização do desenvolvimento sustentável. Leff propõe a “reapropriação social da natureza” pelos “movimentos sociais emergentes”,
por isso devendo ser entendida a partir de princípios de sustentabilidade
fundamentados em uma pluralidade de racionalidades culturais, onde
diversas perspectivas de sustentabilidade são construídas14.
Nessa perspectiva, o Direito enquanto “(...) saber teórico e prático
vinculado às culturas humanas” deve se apropriar de novos modelos de
pensamento, situando-se como ciência social aplicada, compreendendo
que o conhecimento jurídico “(...) deve ser um conhecimento que leva
em consideração as necessidades teóricas e práticas de uma determinada
sociedade e de seus indivíduos”. Desse modo, o refletir sobre o Direito,
deve, então, pensar e agir sobre a realidade “(...) e seu resultado deve configurar-se como uma possibilidade de interferência na própria realidade”
(CAMILLOTO, 2016, p. 53)
O romper paradigmático representado pelas Constituições do Equador e da Bolívia, marcam essa transição necessária nas bases do pensamento
jurídico, propondo o “Viver bem” ou Sumak Kawsay com referência nos
povos indígenas a partir de postulados inspirados na cosmovisão desses
povos:
(...) 1. Priorizar a vida; 2. Obter acordos consensuais; 3. Respeitar as diferenças; 4. Viver em complementariedade; 5. Equilíbrio com a natureza;
6. Defender a identidade; 7. Aceitar as diferenças; 8. Priorizar direitos
cósmicos; 9. Saber comer; 10. Saber beber; 11. Saber dançar; 12. Saber
trabalhar; 13. Retomar o Abya Yala; 14. Saber se comunicar; 15. Controle social; 16. Trabalhar em reciprocidade; 17. Não roubar e não mentir;
18. Proteger as sementes; 19. Respeitar a mulher; 20. Viver bem e NÃO
melhor; 21. Recuperar recursos; 22. Exercer a soberania; 23. Aproveitar a
água; 24. Escutar os anciãos; 25. Reincorporar a agricultura. (MORAES,
2016, p. 156)
tornando ética, política e pedagógica sua relação de outridade. Esta é a fecundidade do
diálogo de saberes que, partindo da condição existencial do ser e da ética da outridade, se
desdobra em um campo de diversidades culturais” (LEFF, 2006, p. 15, 373-374)
14 “Se reivindicarmos o direito à existência dos povos e seus processos de reidentificação
através de suas formas de reapropriação da natureza, estas não podem ser pensadas como
uma adaptação e acomodação a uma globalização da economia ecológica, mas como a
construção de novos territórios de vida funcionando dentro de uma nova racionalidade
produtiva, na qual seja possível construir uma coalizão de economias locais sustentáveis e
se contrapor ao predomínio da lógica econômico-ecológica global regida por um mercado
“corrigido” por leis ecológicas, incluindo as normas dos acordos ambientais multilaterais
e das regras ambientais do comércio internacional.” (LEFF, 2010, p. 51-52).
DIÁLOGO ENTRE O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E A ENCÍCLICA
294 | UM
LAUDATO SI: PARA ALÉM DO DISCURSO HEGEMÔNICO DO DIREITO
Assim, a consciência ecológica inspirada na cosmovisão dos povos
indígenas “instaura uma nova revolução paradigmática no campo do
conhecimento científico, a qual na perspectiva do Direito, desloca do
eixo do ser humano, em órbita do qual gravitava e ainda gravita a ideia de
direitos, para (Mãe) Terra, como principal e prioritário titular de sujeito
de direitos” (MORAES, 2016, p. 157), transformando a antiga visão do
homem como medida de todas as coisas, possibilitando uma mudança
de compreensão da relação da espécie humana com o meio ambiente
(MEDICI, 2016, p. 116) estabelecendo uma nova compreensão teórico-prática do Direito para a natureza.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As Constituições forjadas dentro do Novo Constitucionalismo Latino-Americano e a Encíclica Laudato Si’ sustentam-se em pilares teóricos
que ressignificaram a relação do ser humano com a natureza, sobre um viés
integracionista, superando a compreensão de hierarquia entre homem e
natureza e fincando-se no que se pode compreender como sustentabilidade
holística em novas matrizes de racionalidade social acerca da natureza.
Igualmente, significam um romper com as concepções e compreensões do ser humana e da natureza, construídos historicamente sob o lema
da modernidade, focalizando seus sentidos políticos e oferecendo, de passagem, valiosas lições para se compreender a relação da humanidade com
seu planeta, jogando luz sobre um conjunto de conhecimentos esquecidos,
leituras simples e realistas que, em determinado momento, foram desconsideradas pela ‘supremacia’ do conhecimento eurocêntrico ou rechaçadas
pelas demandas da sociedade industrial.
Tal mudança de paradigma nas sociedades e nas ciências, sobretudo
no Direito, marcam a emergência do (re)pensar a questão socioambiental,
referenciando-se em saberes e práticas que sejam sustentáveis não para o
sistema capitalista, mas para os seres vivos (humanos e não humanos),
ao mesmo tempo em que abre espaço para a compreensão do outro, possibilitando a integração dos seres e da natureza. Enfim, trata-se de uma
discussão essencial, atualmente, para a reformulação da relação com a
natureza e a redefinição democrática, pluralista e participativa, adequada
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 295
às necessidades dos povos e da sustentabilidade da vida na Terra.
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UMA ANÁLISE DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO
PERMANENTE URBANAS A PARTIR DA LEI 11.977/2009
AN ANALYSIS OF CONSERVATION AREAS OF
PERMANENT URBAN LAW FROM 11,977/ 2009
Luiza de Araujo Furiatti 1
RESUMO: A população brasileira vem, gradativamente, fixando domicílio em áreas urbanas, perseguindo melhores condições de vida. Porém, via
de regra, isto vem ocorrendo de forma desordenada e disto, consequentemente, surgem os problemas. Um desses problemas é o uso clandestino de
áreas com importância ambiental, como encostas de morros e margens de
rios ou represas. Em 2009 foi editada a Lei 11.977/2009, que dispõe sobre
o programa “Minha Casa, Minha Vida”, visando a regularização fundiária
de assentamentos localizados em áreas urbanas. Trata-se de importante instrumento legal que define as diretrizes da ocupação urbana, devendo conciliar os interesses sociais, ambientais e econômicos. O principal aspecto
do referido diploma legal são as regras para a regularização de interesse
social e de interesse específico, que visam à regularização jurídica da propriedade imobiliária informal que se encontram em áreas com fragilidades
ambientais. A exigência é que a ocupação atenda a critérios urbanísticos
e ambientais. Dentre eles, estão a proteção das áreas de preservação permanente - APP, que em decorrência do disposto no artigo 4º do Código
Florestal, também tem sua proteção assegurada no meio urbano. Todavia, tal proteção é bastante polêmica, porque o próprio Código Florestal
remete a proteção das APPs urbanas aos conceitos e regulamentações da
Lei 11.977/2009. Destaca-se que nenhuma das duas leis disciplinam como
as atividades em APPs urbanas consolidadas devem ser regidas, limitando-se a disciplinar a regularização fundiária. Dessa forma, há uma lacuna legal
na questão das APPs urbanas, lacuna esta que gera insegurança jurídica.
A principal questão é de que forma esses dois instrumentos se relacionam
para definir as regras, tanto para regularização fundiária de interesse social,
quanto para a continuidade das demais atividades nas APPs urbanas. Há
1 Mestranda em Direito Econômico e Socioambiental pela da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná – PUCPR. Advogada.
Contato: luizafuriatti@hotmail.com
298 | UMA ANÁLISE DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE URBANAS A PARTIR DA LEI 11.977/2009
conflito aparente entre a legislação com cunho predominante social (Lei
11.977/2009) e a proteção ambiental a merecer investigação científica.
PALAVRAS-CHAVE: Área de preservação permanente; Ocupação irregular; Problemas sociais e ambientais.
ABSTRACT: The Brazilian population is gradually setting residing in
urban areas, pursuing better living conditions. However, as a rule, this is
occurring in a disorderly manner and that, consequently, the problems arise.
One problem is the illegal use of areas of environmental importance, such
as hillsides and river banks or dams, In 2009 it was enacted Law 11,977 /
2009, which provides for the “Minha Casa, Minha Vida” program, aimed at
the regularization of settlements located in urban areas. It is important legal
instrument that defines the guidelines for urban occupation, must reconcile
the social, environmental and economic interests. The main aspect of the said
law are the rules for the regularization of social interest and specific interest,
aimed at regularization of informal real estate that are in areas with environmental weaknesses. The requirement is that the occupation meets urban
and environmental criteria. Among these are the protection of permanent
preservation areas - APP that due to the provisions of Article 4 of the Forest
Code, also has its protection ensured in urban areas. However, this protection
is very controversial, because the Forest Code itself refers to protection of urban
APPs the concepts and regulations of Law 11,977 / 2009. It is noteworthy
that neither laws governing how activities in consolidated urban PPAs should
be governed, limited-disciplinary land regularization. Thus, there is a legal
gap in the issue of urban PPAs, a gap which creates legal uncertainty. The
main issue is how these two instruments relate to define the rules for both
regularization of social interest, and for the continuity of other activities in
urban PPAs. There is an apparent conflict between the legislation with predominant social nature (Law 11,977 / 2009) and environmental protection
to merit scientific research
KEY WORDS: Permanent preservation area; Irregular occupation; social
and environmental problems.
INTRODUÇÃO
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 299
A urbanização do Brasil é crescente, esse fenômeno se intensificou a
partir da década de 50, quando ocorreu processo de aceleração de industrialização resultado da política do governo Juscelino Kubitscheck.
Atualmente conforme dados recentes da ONU BRASIL (2016),
cerca de 3 milhões de pessoas por semana migram para cidades, principalmente em países em desenvolvimento. O contingente de pessoas morando
em zonas urbanas — 3,4 bilhões de pessoas em 2009 — já representa mais
de 51% da população mundial.
Porém, a forma como essa ocupação ocorreu no passado, e ainda vem
acontecendo, não é uniforme e ordenada. A ausência de regras resulta em
desmatamentos, construções irregulares, falta de saneamento, alta impermeabilização do solo, entre outros fatores que prejudicam a qualidade de
vida nesses espaços.
A principal consequência são os problemas ambientais, essencialmente em relação aos recursos hídricos. Trata-se de um passivo ambiental
causado por um modelo de crescimento econômico baseado em graves
desigualdades, que por muito tempo privilegiou a concentração da renda
e soluções urbanas individualistas, ao mesmo tempo em que não atendeu à demanda básica por habitação para o conjunto de suas populações.
(FERREIRA, FERRARA, 2014.p.11)
Nesse contexto diante das várias problemáticas ambientais urbanas,
importante destacar a ocupação humana em áreas ambientalmente frágeis,
classificadas juridicamente como áreas de preservação permanente. O
foco principal dessa figura legal é a proteção dos recursos hídricos, tanto
que vem sendo protegida na legislação brasileira de 1965 com o antigo
Código Florestal.
Ocorre que a situação dos espaços urbanos não se restringe a proteção ambiental puramente dita, a variável humana ali inserida tem igual
importância e deve também ser objeto da ciência jurídica. Sendo assim,
em 2009 é editada a Lei Federal n. 11.977/2009, que institui o Programa
Minha Casa, Minha Vida – PMCMV, com a finalidade de concretizar o
direito à moradia e dispondo sobre como ocorrerá a regularização fundiária
em áreas de APP.
Em 2012 a legislação florestal é atualizada com a finalidade de regularizar as áreas rurais, contudo a proteção da APP urbana continua a mesma
300 | UMA ANÁLISE DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE URBANAS A PARTIR DA LEI 11.977/2009
isso significa que as metragens de proteção são iguais. A única inovação é a
inserção do conceito de área urbana consolidada, remetendo ao conteúdo
da Lei do PMCMV.
A questão a ser tratada a seguir é como esses espaços são de fato
regulamentados, a legislação ambiental e a lei do PMCMV, com forte
conteúdo social, disciplinam de forma adequada? Além disso, os espaços
urbanos já ocupados e degradados tem regramento definido?
Por fim, o presente artigo apresenta a conclusão dessa análise que
conjuga os elementos existentes nesses dois instrumentos normativos,
visando uma melhor compreensão desse binômio meio ambiente e desenvolvimento social.
A LEI 11.977/2009
A regularização fundiária, entendida especificamente como a instrumentalização do acesso à moradia, é o objetivo de muitas famílias brasileiras. Em parceria com a Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das
Cidades, o Centro de Estatística e Informações da Fundação João Pinheiro
(FJP) elaborou uma pesquisa sobre o déficit habitacional e a inadequação
dos domicílios no Brasil. Os resultados do ano de 2009, revelam que o
déficit habitacional estimado corresponde a 5,998 milhões de domicílios,
dos quais 5,089 milhões, ou 84,8%, estão localizados nas áreas urbanas.
Nas unidades da Federação, os valores absolutos do déficit habitacional
são mais expressivos em São Paulo, único estado cuja necessidade de novas
unidades habitacionais ultrapassa um milhão de moradias, mais especificamente 1,194 milhão, 9,2% dos seus domicílios particulares permanentes.
Esses dados pontuais demonstram o contexto de 2009, evidenciado
o grave déficit habitacional e também comprovando uma estreita ligação
do problema com o meio urbano.
Visando atribuir mecanismos para contornar essa situação é editada
a Lei Federal n. 11.977/2009, que dispõe sobre o Programa Minha Casa,
Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos
localizados em áreas urbanas.
O PMCMV cria incentivos à produção e aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e produção ou
reforma de habitações rurais, para famílias com determinada renda mensal.
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 301
Especificamente o capítulo III prevê as normas para a regularização fundiária de assentamentos urbanos. Essas determinações têm por
finalidade a eliminação das ocupações desordenadas e/ou ilegais com a
concessão de títulos, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno
desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado.
O principal aspecto do referido diploma legal são as regras para
a regularização de interesse social e de interesse específico, que visam à
regularização jurídica da propriedade imobiliária informal que se encontram em áreas com fragilidades ambientais. A exigência é que a ocupação
atenda a critérios urbanísticos e ambientais.
Além da regularização fundiária, o teor da lei tem outros aspectos
interessantes que visa conciliar as questões com a finalidade de proteção
da vida humana. O artigo 3º, III garante a prioridade de atendimento às
famílias residentes em áreas de risco, insalubres, que tenham sido desabrigadas ou que perderam a moradia em razão de enchente, alagamento, transbordamento ou em decorrência de qualquer desastre natural do gênero.
A implantação de empreendimentos no âmbito do Programa Nacional
de Habitação Urbana – PNHU deve observar a adequação ambiental do
projeto (artigo 5º, II). Por fim, assegura condições de sustentabilidade
das construções (artigo 73, III).
Em uma análise perfunctória do texto legal, entende-se que a conciliação dos bens jurídicos ali elencados é algo fácil de ser atingido. Todavia
a realidade fática, demostra o contrário.
As ocupações normalmente estão nos entornos dos rios e de acordo
com a legislação ambiental são APPS.
REGIME JURÍDICO DAS APPS URBANAS
A proteção das APPS no ordenamento jurídico brasileiro não é
recente, pode-se dizer que já no Código Florestal de 1934 havia a intenção
de proteção dessas áreas quando criou conservação perene das florestas
protetoras e remanescentes. Em 1965, com a Lei Federal n. 4771, houve a
consolidação com a denominação de florestas de preservação permanente.
Ao longo do tempo várias alterações ocorreram com as edições das Leis
6.535/78, 7.754/89, 7.511/86, 7.803/89. Porém a mais significativa foi a
302 | UMA ANÁLISE DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE URBANAS A PARTIR DA LEI 11.977/2009
decorrente da Medida Provisória 2.166/2001, que trouxe o conceito mais
parecido com o que se tem hoje na Lei Federal n. 12.651/2012.
Cabe também uma menção as normativas do Conselho Nacional do
Meio Ambiente- CONAMA que abordam o tema e são decorrentes de
disposições da medida provisória. A resolução CONAMA 302/2002 que
versou sobre a APP de reservatórios artificiais, a Resolução CONAMA
303/2002 que tratou da APP de forma ampla, e a Resolução CONAMA
369/2006, que disciplina casos de utilidade pública, interesse social ou
baixo impacto ambiental, a qual será abordada mais detalhamento a frente.
Esses regramentos sempre foram muito questionados, pois tem um
conteúdo normativo robusto, o que faz com que sua legalidade seja frequentemente judicializada. Adicionado a isso, o teor da própria Lei 4771,
exigia atualizações.
Mas isso não fez com que a aprovação da nova lei fosse tranquila, existiram enormes discussões acerca do seu conteúdo. Criou-se uma batalha
entre ambientalistas e ruralistas, que culminou em uma polarização a respeito do conteúdo aprovado pelo Congresso e sancionado pela presidente.
Em relação ao conceito de APP não houveram alterações
significativas:
II - Área de Preservação Permanente - APP: área protegida, coberta ou
não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos
hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar
o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das
populações humanas; (BRASIL,2012, artigo 3º, II )
É claro que o foco do Código Florestal é o meio rural, a maioria dos
dispositivos destinam-se a regularização desse espaço territorial. Porém
a legislação é bastante abrangente, incluído também o ambiente urbano.
(BRASIL, 2012, artigo 4º)
Expressamente há menção do vocábulo “urbano/urbana” em vinte
e sete pontos do texto, sendo que os principais são o artigo 19, que trata
da conversão das áreas de reserva legal, e o conceito de área urbana consolidada in verbis: “XXVI - área urbana consolidada: “aquela de que trata
o inciso II do caput do art. 47 da Lei no 11.977, de 7 de julho de 2009;
e (Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).” (BRASIL, 2012, artigo 3º,
XXVI), ”
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 303
Vale também a transcrição:
II – área urbana consolidada: parcela da área urbana com densidade demográfica superior a 50 (cinquenta) habitantes por hectare e malha viária
implantada e que tenha, no mínimo, 2 (dois) dos seguintes equipamentos
de infraestrutura urbana implantados:
a) drenagem de águas pluviais urbanas;
b) esgotamento sanitário;
c) abastecimento de água potável;
d) distribuição de energia elétrica; ou
e) limpeza urbana, coleta e manejo de resíduos sólidos;
Retornando à Lei Florestal. O regime de proteção das áreas de
preservação permanente é regulamentado na Seção II do Capítulo II. A
regra é a manutenção da vegetação, com a proibição do desmatamento.
As exceções gerais são hipóteses de utilidade pública, interesse social ou
de baixo impacto. Em relação ao meio urbano há a possibilidade de ocupação de áreas de mangue e restinga quando sua função ecológica estiver
comprometida. A finalidade dessa hipótese é a execução de obras habitacionais e de urbanização, inseridas em projetos de regularização fundiária
de interesse social, em áreas urbanas consolidadas ocupadas por população
de baixa renda.
O Capítulo XIII trata das disposições transitórias, aqui residem os
pontos de maior questionamento do Código Florestal. Isso porque, essas
normas visam a regulamentação de situações passadas. São determinações
legais a serem aplicadas em imóveis que em 22 de julho de 2008, possuíam
um passivo ambiental em relação as metragens e porcentagens de APP
e reserva legal vigentes à época (Lei Federal n º 4771/65). Trata-se de
regras diferenciadas que tem por finalidade possibilitar uma recuperação
ambiental, mesmo que seja mínima.
Especificamente em relação as APPS, as regras de recomposição
mínima somente incidem nas áreas rurais. O artigo 61-A é bastante objetivo, dispõe em seus parágrafos que está disciplinando áreas rurais.
A única menção urbana é descrita nos artigos 64 e 65. O primeiro
define que em casos de regularização fundiária de interesse social dos
assentamentos inseridos em área urbana de ocupação consolidada e que
ocupam Áreas de Preservação Permanente, a regularização ambiental será
admitida por meio da aprovação do projeto de regularização fundiária, na
304 | UMA ANÁLISE DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE URBANAS A PARTIR DA LEI 11.977/2009
forma da Lei Federal n º 11.977/2009.
Na regularização fundiária de interesse específico dos assentamentos
inseridos em área urbana consolidada e que ocupam Áreas de Preservação
Permanente não identificadas como áreas de risco, também é exigido a
apresentação de projeto de regularização fundiária. Porém, o §2º disciplina
que ao longo dos rios ou de qualquer curso d’água, será mantida faixa não
edificável com largura mínima de 15 (quinze) metros de cada lado.
Em uma análise superficial, já é possível concluir que esses dispositivos não são suficientes para balizar as questões urbanas que envolvem as
APPS. A Lei não apresenta regras de transição para as atividades urbanas
em APPs consolidadas que não se enquadrem nas situações expostas anteriormente, além das novas ocupações ainda não consolidadas. Não existe a
previsão de permanência nem a de como ocorreria eventual determinação
de retirada. Seguindo esse entendimento, há uma forte insegurança jurídica
em relação a esses pontos.
APARENTE CONFLITO
Como já mencionado anteriormente, os processos de urbanização são
causas relevantes para o aumento dos impactos ambientais. Geralmente, o
crescimento das cidades ocorreu concomitantemente à industrialização,
criando-se aglomerações urbanas próximas a fontes de matéria prima. A
mais abundante e necessária é a água, sendo necessário a viabilização de
instrumentos para a sua proteção.
A necessidade de proteção do entorno das estruturas espaciais nas
margens dos rios urbanos é algo complexo, a função dinâmica da ocupação altera fortemente os processos ecológicos. Em muitos casos, o objeto
que se pretende proteger na legislação não existe mais, restando somente
conflitos nos locais.
Os principais conflitos que envolvem a preservação das APP urbanas, são
motivados pela atribuição de novos valores às áreas das margens dos rios,
pela perda da função ecológica das APP e pela devastação das florestas protegidas por interesses econômicos específicos.” ( SERVILHA, 2007 p.68)
Isso ocorre porque são atribuídas novas funções para os espaços que
deveriam abrigar a proteção da vegetação nativa, deixado de atender a
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
| 305
função protetora prevista, inicialmente desde 1965.
As APPS são espaços em que há uma proibição de modificação dos
seus aspectos naturais. Contudo, com o avanço desordenado aliado ao o
crescimento populacional, a manutenção das funções naturais é praticamente impossível.
A degradação das APPS nas áreas urbanas é algo bastante recorrente, não raro os cursos d`água encontram-se canalizados, com as margens
transformadas em vias expressas ou ainda com edificações, leitos cimentados, vegetação quase inexistente. Ousa-se dizer que a legislação que visa
a proteção das APPS urbanas “não pegou”, isso porque a existência da
norma proibitiva causa pouco ou até mesmo nenhum resultado eficiente
no campo fático.
Mesmo com uma legislação bastante rígida, isso não é o suficiente
para a perpetuação desses espaços. Na verdade, existe um grande descaso
das autoridades e da própria sociedade que não exige e não valoriza a
importância das APPS. Isso demostra que há uma falha na aplicação da
lei, com a falta de fiscalização e interesse social a respeito do tema.
Sendo assim, pode-se afirmar que embora a legislação seja cada vez
mais rigorosa, temos pouca abrangência na responsabilização. (MARCHESAN, 2011, p.2)
O ponto é o porquê ocorreram essas intervenções. Qual a finalidade
da destruição dos espaços naturais?
A resposta mais provável é a necessidade da ocupação humana. Retornam-se aos conceitos iniciais que a necessidade de um espaço para a vida é
uma das mais básicas aspirações de das populações. Aliado a isso, as APPS
geralmente são locais com grande potencial natural que se constituem em
terras baratas ou sem dono. (LIMONAD; ALVES, 2008).
Porém, mesmo sendo a APP uma característica essencial para a
qualidade de vida nos espaços urbanos, vinculada diretamente ao conteúdo do direito fundamental da dignidade humana, são essenciais alguns
regramentos. As normais ambientais são um desses balizamentos, como
já vimos a preocupação ambiental tem um escopo legal que incide nessas
áreas. Primeiro foi a resolução CONAMA 369/2006, que disciplinou
mais do que a competência que lhe fora atribuída. Gerando inúmeras
críticas, tanto pela flexibilidade que acabou violando as determinações
constitucionais oriundas do artigo 225, como critérios extremamente
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rígidos para a regularização fundiária.
Diante dessa repercussão negativa e da urgência que o tema exige, em
2009 a Lei do PMCMV versa expressamente sobre a regularização fundiária de assentamentos urbanos, tentar conciliar os interesses fundiários
sociais com o mínimo da proteção ambiental.
Destaca que o escopo das determinações da regularização fundiária
de assentamentos urbanos é essencialmente social, visando a utilização
dos espaços urbanos como instrumentos para a efetivação de bem-estar.
Nesse sentido, a PMCMV estabelece a regularização fundiária como
o conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que
visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus
ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
Interessante discorrer a respeito do já mencionado conceito de área
urbana consolidada, a ideia que prevalece nesse ponto é criar normas mais
flexíveis para espaços onde a ocupação desordenada se estabeleceu. Todavia, exigem-se infraestruturas mínimas que podem a descaracterizar as
áreas que precisam de maior atenção do Poder Público. Isso porque, os
locais onde ainda eventualmente existem remanescentes de vegetação e
um recurso hídrico não severamente prejudicado, normalmente carecem
desses instrumentos básicos de urbanização, como por exemplo esgoto
sanitário e água tratada. Entende-se que o rigor dos critérios visa que se
evitem novas ocupações, mas o crescimento populacional e a falta de fiscalização enfraquecem esses argumentos. A solução seria planejamento
urbano prévio.
Relevante também mencionar sobre a forma que a regularização
fundiária de interesse social é definida na Lei. O artigo 54, § 1o permite
que o Município admita a regularização fundiária de interesse social em
Áreas de Preservação Permanente, ocupadas até 31 de dezembro de 2007 e
inseridas em área urbana consolidada, desde que estudo técnico comprove
que esta intervenção implica a melhoria das condições ambientais em
relação à situação de ocupação irregular anterior. Estabelecendo o
conteúdo mínimo desse estudo técnico: i) caracterização da situação
ambiental da área a ser regularizada; ii) especificação dos sistemas de
saneamento básico; iii) proposição de intervenções para o controle de
O DIREITO E O CUIDADO DA CASA COMUM: ENCÍCLICA LAUDATO SI
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riscos geotécnicos e de inundações; iv) recuperação de áreas degradadas
e daquelas não passíveis de regularização; v) comprovação da melhoria
das condições de sustentabilidade urbano-ambiental, considerados o uso
adequado dos recursos hídricos e a proteção das unidades de conservação,
quando for o caso; vi) comprovação da melhoria da habitabilidade dos
moradores propiciada pela regularização proposta; e vii) garantia de acesso
público às praias e aos corpos d´água, quando for o caso.
Sendo assim, a lei não define qualquer parâmetro de proteção
mínimo para essas áreas, o que pode resultar na inexistência das APPS
em alguns casos. Esse critério é bastante inseguro. Não há parâmetros de
decisão verdadeiramente ambientais, que remetem ao conceito básico da
APP, que é a proteção dos recursos hídricos. Isso faz com que o processo
da regularização fundiária de interesse social careça de argumentos conservacionistas para uma determinação final.
CONCLUSÕES
A lei do PMCMV vem com o intuito de popularizar o acesso
a moradia, criando mecanismos de incentivo. No ponto específico da
regularização fundiária em áreas urbanas inseriu elementos ambientais
para balizar as condutas.
Normalmente essas ocupações estão inseridas em APPS, que são
áreas com uma rígida proteção ambiental. No novo código Florestal não
existem disposições diferenciadas para áreas urbanas já ocupadas, ou
até mesmo para os locais que as funções ambientais já estão seriamente
comprometidas.
Dessa forma, há uma lacuna legal na forma como as APPs urbanas consolidadas devem ser protegidas, lacuna esta que gera insegurança
jurídica. Isso porque se o texto legal for aplicado sem essa diferenciação
para as áreas consolidadas, grande parte das cidades brasileiras tem muitas
ocupações ilegais, que merecem as sanções legais previstas.
Sendo assim, ambas as leis têm um alto grau de subjetividade,
deixando de apresentar normativas que apontem uma mínima proteção
ambiental a ser seguida. Deixando esse papel para o estudo técnico
ambiental. A dificuldade é a natureza jurídica desse estudo, há uma
vinculação? Se for respeitado há alguma sanção? O órgão ambiental fará
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a análise? O escopo legal é omisso nesses casos.
A primeira conclusão a ser definida é que somente os instrumentos legais existentes não são suficientes para a complexidade do binômio
meio ambiente e ocupação irregular. A legislação apresenta apenas instrumentos genéricos que são de difícil aplicação quando isoladamente
considerados. É muito importante que haja uma harmonização entre a
proibição de uso das APPS, a ocupação irregular existe e a dignidade das
pessoas que ali estão.
Com certeza, o tema é bastante amplo e existem inúmeras outras
variáveis que podem e devem fazer parte dessa análise. Mas a intenção aqui
é somente apresentar os pontos importantes da legislação, considerando
o que deve ser melhorado.
Ainda importante evidenciar que no campo fático pode ser
configurado duas situações base, na primeira a APP é ocupada por pessoas
em situação de vulnerabilidade social e não há cobertura vegetal, nem
qualquer função ambiental atendida. Na segunda hipótese também não
há cobertura vegetal e função ambiental, mas a população que ali habita
desfruta de uma qualidade de vida e existe um bem-estar coletivo que
impera.
Do ponto de vista puramente ambiental, ambas as situações estão
irregulares. De acordo com as determinações legais cabem sanções administrativas, criminais e cíveis, que podem culminar no pagamento de indenizações e demolição das eventuais construções. Como já mencionado
dito, o Novo Código Florestal se limita a ditar normas gerais de proteção,
sem adentrar no mérito efetivo da proteção considerando a existência ou
não das funções ambientais. A única ressalva é para casos de ocupação em
áreas de manguezal, definida no artigo 8º, § 2o, do referido texto legal.
Em relação ao procedimento de regularização fundiária de interesse
social, obviamente só incidiria no primeiro exemplo. Assim, o trâmite a
ser seguido é o definido pela Lei do PMCMV, que exige a apresentação
de estudo técnico com a caracterização da situação ambiental da área a ser
regularizada. Ainda o Novo Código Florestal exige que esse estudo técnico
demonstre a melhoria das condições ambientais em relação à situação
anterior com a adoção das medidas nele preconizadas. Entretanto, não
menciona a hipótese de realização de licenciamento ambiental, como é
previsto para os casos de regularização por interesse específico, que seria
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o caminho adequado para a hipótese do segundo exemplo.
Nesse entendimento, é possível afirmar que embora existam menções
legais sobre a questão ambiental urbana, tudo é muito fragmentado. Há
medidas e reflexões avançadas sobre as moradias em áreas de mananciais,
politicas relacionadas a regularização fundiária e iniciativas que visam a
sustentabilidade. Porém, cada um desses instrumentos age de forma individualizada envolvendo problemas pontuais, isso retira força e efetividade. É
necessária uma ação conjunta, que enfrente as situações de forma integrada.
Sendo assim, a interpretação mais adequada para esses dois instrumentos legais: Lei PMCMV e Novo Código Florestal, é a compatibilização
das normas ambientais, isso coaduna com as características sociais, de
priorização do bem-estar conforme o definido na Constituição Federal.
Nas situações exemplificadas acima, será necessário afastar a incidência das
normas proibitivas, porque não há efetividade em simplesmente aplicá-la.
Cabe mencionar que essa solução é uma tendência atual, muito bem
evidenciada na Encíclica Laudato Si, a carta Ecológica do Papa Francisco. É
necessária uma aproximação entre as questões de cunho ambiental e social,
porque elas estão intimamente ligadas, sendo quase impossível privilegiar
uma em detrimento da outra. O item 4 do texto papal detalha muito bem
a forma como a qualidade de vida no meio urbano tem relação direta com
a proteção ambiental. Em suma, o conceito da ecologia integral descrito no
Capítulo IV, se enquadra perfeitamente no que foi disposto anteriormente.
Tudo está conectado, os problemas ambientais devem ser encarados sob
a perspectiva das dimensões sociais relacionadas.
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Publicação elaborada pela editora do
Centro de Pesquisa e Extensão em Direito Socioambiental
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Ipuvaíva Editora & Laboratório de Textos
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