A CAOLHA
Júlia Lopes de Almeida
A caolha era uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto arqueado,
braços compridos, delgados, largos nos cotovelos, grossos nos pulsos; mãos
grandes, ossudas, estragadas pelo reumatismo e pelo trabalho; unhas grossas,
chatas e cinzentas, cabelo crespo, de uma cor indecisa entre o branco sujo e o
louro grisalho, desse cabelo cujo contato parece dever ser áspero e espinhento;
boca descaída, numa expressão de desprezo, pescoço longo, engelhado, como o
pescoço dos urubus; dentes falhos e cariados.
O seu aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos; não tanto pela sua
altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada tinha um defeito horrível:
haviam lhe extraído o olho esquerdo; a pálpebra descera mirrada, deixando,
contudo, junto ao lacrimal, uma fístula continuamente porejante.
Era essa pinta amarela sobre o fundo denegrido da olheira, era essa destilação
incessante de pus que a tornava repulsiva aos olhos de toda gente.
Morava numa casa pequena, paga pelo filho único, operário numa fábrica de
alfaiate; ela lavava a roupa para os hospitais e dava conta de todo o serviço da
casa inclusive cozinha. O filho, enquanto era pequeno, comia os pobres jantares
feitos por ela, às vezes até no mesmo prato; à proporção que ia crescendo, ia-se a
pouco e pouco manifestando na fisionomia a repugnância por essa comida; até que
um dia, tendo já um ordenadozinho, declarou à mãe que, por conveniência do
negócio, passaria a comer fora...
Ela fingiu não perceber a verdade, e resignou-se.
Daquele filho vinha-lhe todo o bem e todo o mal.
Que lhe importava o desprezo dos outros, se o seu filho adorado lhe pagasse com
um beijo todas as amarguras da existência?
Um beijo dele era melhor que um dia de sol, era a suprema carícia para o triste
coração de mãe! Mas... os beijos foram escasseando também, com o crescimento
do Antonico! Quando criança ele apertava-a nos braços e enchia-lhe a cara de
beijos; depois, passou a beijá-la só na face direita, aquela onde não havia vestígios
de doença; agora, limitava-se a beijar-lhe a mão!
Ela compreendia tudo e calava-se.
O filho não sofria menos.
E na escola, os colegas, que o viam ir e vir com a mãe, começaram a chamá-lo - o
filho da caolha.
Ele respondia:
- Eu tenho nome!.
Na rua, muitas vezes, ele ouvia de uma ou outra janela dizerem: o filho da caolha!
Lá vai o filho da caolha! Lá vem o filho da caolha!
Eram as irmãs dos colegas que, induzidas pelos irmãos, feriam o coração do pobre
Antonico cada vez que o viam passar!
O menino pediu à mãe que não o fosse buscar na escola; e muito vermelho,
contou-lhe a causa; sempre que o viam aparecer à porta do colégio os
companheiros murmuravam injúrias e faziam caretas de náuseas.
A caolha suspirou e nunca mais foi buscar o filho.
Aos onze anos o Antonico saiu da escola e pediu para entrar para uma oficina de
marceneiro. Mas na oficina de marceneiro aprenderam depressa a chamá-lo - o
filho da caolha, a humilhá-lo, como no colégio.
Além de tudo, o serviço era pesado e ele começou a ter vertigens e desmaios.
Arranjou então um lugar de caixeiro de venda: os seus colegas agruparam-se à
porta para insultá-lo. O vendeiro achou prudente mandar Antonico embora.
Depois disso passou um tempo em casa, ocioso, magro, amarelo, deitado pelos
cantos, dormindo às moscas, sempre zangado e sempre bocejante! Evitava sair de
dia e nunca, mas nunca, acompanhava a mãe; esta poupava-o: tinha medo que o
rapaz, num dos desmaios, lhe morresse nos braços, e por isso nem sequer o
repreendia! Aos dezesseis anos, vendo-o mais forte, pediu e obteve-lhe, a caolha,
um lugar numa oficina de alfaiate. A infeliz mulher contou ao mestre toda a história
do filho e suplicou-lhe que não deixasse os aprendizes humilhá-lo; que os fizesse
terem caridade!
Antonico encontrou na oficina uma certa reserva e silêncio da parte dos
companheiros; quando o mestre dizia: sr. Antonico, ele percebia um sorriso mal
oculto nos lábios dos oficiais; mas a pouco e pouco essa suspeita, ou esse sorriso,
se foi desvanecendo, até que principiou a sentir-se bem ali.
Decorreram alguns anos e chegou a vez de Antonico se apaixonar. Até aí, numa ou
outra pretensão de namoro que ele tivera, encontrara sempre uma resistência que o
desanimava, e que o fazia retroceder sem grandes mágoas. Agora, porém, a coisa
era diversa: ele amava! Amava como um louco a linda moreninha da esquina. Uma
rapariguinha adorável, de olhos negros como veludos e boca fresca como um botão
de rosa. O Antonico voltou a ser assíduo em casa e expandia-se mais
carinhosamente com a mãe; um dia, em que viu os olhos da morena fixarem os
seus, entrou como um louco no quarto da caolha e beijou-a mesmo na face
esquerda, num transbordamento de esquecida ternura!
Aquele beijo foi para a infeliz uma inundação de júbilo! Tornara a encontrar o seu
querido filho! Pôs-se a cantar toda a tarde, e nessa noite, ao adormecer, dizia
consigo:
- Sou muito feliz... o meu filho é um anjo!
Entretanto, o Antonico escrevia, num papel fino, a sua declaração de amor à
vizinha. No dia seguinte mandou-lhe cedo a carta. A resposta fez-se esperar.
Durante muitos dias Antonico perdia-se em amarguradas conjecturas.
Pensava: - É o pudor.
Depois começou a desconfiar de outra causa; por fim recebeu uma carta em que a
bela moreninha confessava consentir em ser sua mulher, se ele se separasse
completamente da mãe! Vinham explicações confusas, mal alinhavadas: lembrava
a mudança de bairro; ele ali era muito conhecido por filho da caolha, e bem
compreendia que ela não se poderia sujeitar a ser chamada em breve de - nora da
caolha, ou coisa semelhante!
O Antonico chorou! Não podia crer que a sua casta e gentil moreninha tivesse
pensamentos tão práticos!
Depois o seu rancor se voltou para a mãe.
Ela era a causadora de toda a sua desgraça! Aquela mulher perturbara a sua
infância, quebrara-lhe todas as carreiras, e agora o seu mais brilhante sonho de
futuro sumia-se diante dela! Lamentava-se por ter nascido de mulher tão feia, e
resolveu procurar meio de separar-se dela; iria considerar-se humilhado
continuando sob o mesmo teto; havia de protegê-la de longe, vindo de vez em
quando vê-la à noite, furtivamente...
Salvava assim a responsabilidade do protetor e, ao mesmo tempo, consagraria à
sua amada a felicidade que lhe devia em troca do seu consentimento e amor...
Passou um dia terrível; à noite, voltando para casa levava o seu projeto e a decisão
de o expor à mãe.
A velha, agachada à porta do quintal, lavava umas panelas com um trapo
engordurado. O Antonico pensou: "Ao dizer a verdade eu havia de sujeitar minha
mulher a viver em companhia de... uma tal criatura?" Estas últimas palavras foram
arrastadas pelo seu espírito com verdadeira dor. A caolha levantou para ele o rosto,
e
o
Antonico,
vendo-lhe
o
pus
na
face,
disse:
- Limpe a cara, mãe...
Ela sumiu a cabeça no avental; ele continuou:
- Afinal, nunca me explicou bem a que é devido esse defeito!
- Foi uma doença, - respondeu sufocadamente a mãe - é melhor não lembrar isso!
- E é sempre a sua resposta: é melhor não lembrar isso! Por quê?
- Porque não vale a pena.
- Bem! Agora escute: trago-lhe uma novidade. O patrão exige que eu vá dormir na
vizinhança da loja... já aluguei um quarto; a senhora fica aqui e eu virei todos os
dias saber da sua saúde ou se tem necessidade de alguma coisa... É por força
maior; não temos remédio senão sujeitar-nos!...
A caolha se levantou e, fixando o filho com uma expressão terrível, respondeu com
doloroso desdém:
- Você tem é vergonha de ser meu filho! Saia! Que eu também já sinto vergonha de
ser mãe de semelhante ingrato! Ela o acompanhou, fechou com estrondo a porta, e
vendo-se só, encostou-se cabaleante na parede do corredor e desabafou em
soluços.
O Antonico passou uma tarde e uma noite de angústia.
Providencialmente, lembrou-se da madrinha, única amiga da caolha, mas que,
entretanto, raramente a procurava.
Foi pedir-lhe que interviesse, e contou-lhe sinceramente tudo o que houvera.
A madrinha escutou-o comovida; depois disse:
- Eu previa isso mesmo, quando aconselhava tua mãe a que te dissesse a verdade
inteira; ela não quis, aí está!
- Que verdade, madrinha?
Encontraram a caolha a tirar umas nódoas do fraque do filho - queria mandar-lhe a
roupa limpinha. A infeliz se arrependera das palavras que dissera e tinha passado a
noite à janela, esperando que o Antonico voltasse ou passasse apenas. Quando a
amiga e o filho entraram, ela ficou imóvel: a surpresa e a alegria amarraram-lhe
toda a ação.
A madrinha do Antonico começou logo:
- O teu rapaz foi suplicar-me que te viesse pedir perdão pelo que houve aqui ontem
e eu aproveito a ocasião para, à tua vista, contar-lhe o que já deverias ter-lhe dito!
- Cala-te! - murmurou com voz apagada a caolha.
- Não me calo! Essa pieguice é que te tem prejudicado! Olha, rapaz! Quem cegou a
tua mãe foste tu!
O afilhado tornou-se lívido; e ela concluiu:
- Eras muito pequeno quando, um dia, ao almoço, levantaste na mãozinha um
garfo; ela estava distraída, e antes que eu pudesse evitar a catástrofe, tu o
enterraste pelo olho esquerdo! Ainda tenho no ouvido o grito de dor que ela deu!
O Antonico caiu pesadamente de bruços, com um desmaio; a mãe acercou-se
rapidamente dele, murmurando trêmula:
- Pobre filho! Vês? Era por isto que eu não queria dizer nada!