Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Gaia 2019.1

2019, GAÎA

v. X, n. 1, 2019

GAÎA LABORATÓRIO DE HISTÓRIA ANTIGA DA UFRJ V. X, N. 1, 2019 2019 Universidade Federal do rio de Janeiro Instituto de História | Laboratório de História Antiga Volume 10 | Número 1 | ISSN 1517-8919 Gaîa 2019 — Volume 10 — Número 1 — ISNN: 1517-8919 Copyright © by Deivid Valério Gaia, Fábio de Souza Lessa, Marta Mega de Andrade, Regina Maria da Cunha Bustamante (conselho editorial) et alli, 2019 Direitos desta edição reservados a: Laboratório de História Antiga (LHIA) Largo de São Francisco, no1, sala 211 A - Centro Rio de Janeiro — RJ — CEP: 20051-070 Tel: (21) 2221-0034 ramais 205 — Fax: (021) 2221-4049 www.lhia.historia.ufrj.br revistagaia.ufrj@gmail.com Projeto Gráfico: Felipe Marques / Yvonne Rousso Ilustração da capa: Ilustração em vetor de Yvonne Rousso a partir da kylix "The birth of Erichthonius". Período Clássico (c. 440 a.C.). Antikensammlung Berlin (F2537). Gaîa. Laboratório de História Antiga / UFRJ v. 10, n. 1 Rio de Janeiro: LHIA, 2019 Semestral ISSN: 1517-8919 (versão digital) História Antiga. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Laboratório de História Antiga GAÎA 2019 — Ano 10 — Volume 10 — Número 1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO — UFRJ Reitor: Prof. Dr. Roberto Leher INSTITUTO DE HISTÓRIA — IH Diretora: Profa. Dra. Norma Córtes LABORATÓRIO DE HISTÓRIA ANTIGA — LHIA Coordenador: Prof. Dr. Deivid Valério Gaia GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Equipe editorial Edi t o r C he fe Deivid Valério Gaia (Professor Adjunto – UFRJ) Edi t o res Amanda Lemos Fontes (Mestranda — UFRJ) Amanda Prima Borges (Mestranda – UFRJ) Beatriz Moreira da Costa (Doutoranda – UFF) Fabiana Martins Nascimento (Mestranda — UFRJ) Felipe Marques Maciel (Mestrando – UFRJ) João Pedro Barros Guerra Farias (Graduando – UFRJ) Con selho Ed it o r i a l Camila Alves Jourdan (Professora Substituta – UFRJ) Fábio de Souza Lessa (Professor Titular – UFRJ) Marta Mega de Andrade (Professora Associada – UFRJ) Pedro Vieira da Silva Peixoto (Pós-doutorando – UFRJ) Regina Maria da Cunha Bustamante (Professora Associada – UFRJ) Con selho Ex ec u t i v o Bruna Moraes da Silva (Doutora – UFRJ) Gabriel Paredes Teixeira (Mestre – UFRJ) Con selho C ie n t í f i co Adriene Baron Tacla (UFF) Airan dos Santos Borges de Oliveira (UFRN) Agatha Pitombo Bacelar (UNB) Alexandre Carneiro Cerqueira Lima (UFF) Ana Teresa Marques Gonçalves (UFG) Anderson Martins Esteves (UFRJ) 5 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Carolina Kesser Barcellos Dias (UFPel) Cláudia Beltrão da Rosa (UNIRIO) Fábio Faversani (UFOP) Fábio Vergara Cerqueira (UFPel) Gilberto da Silva Francisco (UNIFESP) Gilvan Ventura da Silva (UFES) Glaydson José da Silva (UNIFESP) Katia Maria Paim Pozzer (UFRGS) Lyvia Vasconcelos Baptista (UFRN) Lolita Guimarães Guerra (UERJ) Luciane Munhoz de Omena (UFG) Márcia Severina Vasques (UFRN) Maria das Graças de Moraes Augusto (UFRJ) Margarida Maria de Carvalho (UNIFESP) Norberto Luiz Guarinello (USP) Pedro Paulo de Abreu Funari (UNICAMP) Renata Senna Garraffoni (UFRPR) Renato Pinto (UFPE) Semírames Corsi Silva (UFSM) Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa (UFMG) Thiago Eustáquio Araújo Mota (UPE) Serviço s Téc nico s Beatriz Moreira da Costa (Doutoranda – UFF) Felipe Marques Maciel (Mestrando – UFRJ) Gabriel Paredes Teixeira (Mestre – UFRJ) João Pedro Barros Guerra Farias (Graduando – UFRJ) Yvonne Rousso 6 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Sumário A pres en tação 11- 13 A ná l i s e de fon tes Héracles-hélios nos didracmas de cós por DA SILVA, Mateus (mestrando, PPGH-UFF) Ríton de cerâmica ática em figuras vermelhas por FERNANDES, Pierre (mestrando, PPGH-UFF) Análise documental: cloelia, aquela que tinha um nome e uma estátua 14- 16 17- 19 20- 25 por GOMES, Mariana (graduanda, UNIRIO) A presença da ausência: uma brevíssima análise da cumbucado cairo por MATIAS, Keidy (graduanda, UFRN). Uma transição conturbada: análise do fragmento de uma carta a um sacerdote, do imperador juliano 26- 31 32- 37 por ZAMPIETRO, Júlio M. (graduando, UNICAMP) Arti gos A concepção aristocrática de mundo e os usos do passado: a apropriação do paganismo indo-europeu pela extrema direita francesa nas páginas revista terre et peuple 38- 53 por BARONE, Victor (graduando, USP) Cristianismo paulino e a moral estoica: o caso da apátheia por BONZE, Ian (graduando, UFRJ) 54- 65 Aspectos performativos e musicais do Ditirambo 2 de píndaro 66- 78 por CAMPOS, Victor (graduando, UnB) 7 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. As Relações Familiares Na Aula De Cláudio: Uma Leitura Dos Anais De Tácito 79- 88 por CARNEIRO, Douglas (doutorando, PPGH/UFG) A utilização da arquitetura por augusto como estratégia de poder durante o principado 89- 103 por DA CUNHA, Macsuelber (doutorando, UFG) A representação da deusa ísis em metamorphoses de apuleio de madaura (ii d.C.): Uma representação híbrida 104- 122 por DOS SANTOS, Ellen (mestranda, UFG) A recepção dos clássicos no movimento paranista: Bento cego, o Homero paranaense 123- 132 por FONSECA, Barbara (graduanda, UFPR) A operação das masculinidades nos discursos do IHGB: passado clássico e presente na primeira república brasileira 133- 145 por FUJIKAWA, Mariana (mestranda, UFPR) “Os guardiões e salvadores da cidade”: a ‘Homilia após o terremoto’ , de João Crisóstomo 146- 155 por FURLANI, João. C. (doutorando, PPGHIS/UFES) A argumentatio de Sêneca nas consolatórias: o uso dos preceitos e os exemplos 156- 171 por GOMES, Erick (doutorando, UFG) Entre a crise política e a crise moral de finais da república romana (i a.C.): Fronteiras entre o discurso e o real 172- 188 por MEDEIROS, Mariana (doutoranda, UFG) Sobre o papel do medo na administração da uilla: uma análise dos tratados agrícolas de Catão, Varrão e Columela 189- 204 por NASCIMENTO, Fabiana (mestranda, PPGHC/UFRJ) A politeía platônica e o deus cego riqueza e felicidade por VALDEZ, Luiza (graduanda, UFRJ) A representação da tirania na tragédia os persas de Ésquilo (472 a.C.) 205- 212 213- 221 por ZANCO, Amabile (graduanda, UNICAMP) 8 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Ferram en tas di gi tai s A utilização de plataformas digitais na pesquisa e no trabalho com fontes numismáticas 222-225 por CERQUEIRA, Filipe (graduando, UFRJ) Limites e possibilidades da digital prosopography of the roman republic para a pesquisa em história antiga 226-231 por LEMOS, Amanda (mestranda, PPGHC/UFRJ) Antiga e conexões: um blog como ferramente para divulgar o mundo antigo on-line por PINTO, André; FONSECA, Barbara; DE SOUZA, Letícia (graduandos, UFPR); DA SILVA, Lorena (doutoranda, PPGHIS/UFPR) 232-235 Pro d utos de hi s tór i a pú b l ic a o u d e e x t e n s ão Projeto de extensão nós, bruxas: mulheres no mito, no cinema e na história 236-241 por BRANCO, Pedro (graduando, UERJ) Tragédia em gotas: relato de uma experiencia por MOSCA, Anna (doutoranda, UFMG) Sapere aude — um podcast sobre a antiguidade da ufop 242-246 por MOURA, Gabriela (graduanda, UFOP) 247-251 Experimentos com a poesia e a performance: a mélica coral grega antiga 252-255 por PESSOA, Matheus; CAMPOS, Victor (graduandos, UnB) Uma roma tropical: gênero e discursos de poder no Palácio do Catete (rio de janeiro) 256-260 por SANTOS, Amanda; BRAGA, Mayan (mestrandas, PPGHC/UFRJ) Aprendendo história antiga seguindo os passos de psique: um relato da criação do material didático “o jogo da imortalidade” por 261-266 soUZa, Maria l (gradUanda, UFrJ). 9 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Pro dutos de s ala de au l a VRBS MIRABILIS: conhecendo a cidade romana através das mídias digitais e tecnologias aplicadas ao ensino de História Antiga 267-271 por SANTOS, Ana B.; Santos, Irlan (graduandos, UPE) 10 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Apresentação Deivid Valério Gaia Editor-chefe da Revista Gaia Professor de História Antiga da UFRJ O início da primavera romana era celebrado por uma festividade chamada Florália (os ludi Florales), em homenagem à deusa ninfa Flora, esposa de Zéfiro. Flora está ligada ao florescer, ao brotar, pois Zéfiro afirmou: “Deusa, és das flores soberana”1. No entanto, não são só flores que ela faz brotar. Ovídio relata que, certa vez, a deusa Juno ficou muito irritada porque Minerva nasceu da cabeça de Júpiter sem a sua ajuda; a deusa, então, preferiu ter seu filho sem qualquer auxílio masculino. Juno, levada pelo seu desejo de independência, procurou várias divindades e prometeu revirar o Tártaro e os mares, mas não logrou sucesso inicial. Até que, depois de procurar, encontrou Flora, de quem recebeu uma singela flor, que somente ao tocá-la, delicadamente, gerou um menino que nasceu de uma mãe casta no florido mês de março, na primavera, sem um toque viril: esse menino era o deus Marte2, e seu nome abre a primavera no hemisfério norte3, primeiro mês do calendário romano. Em homenagem aos poderes de Flora, instituíram-se os ludi Florales. Pelo conjunto de sua representação mitológica, Flora é símbolo auspicioso do Laboratório de História Antiga da UFRJ, cuja imagem, inspirada no afresco pompeiano da Villa Arianna, estampa a parede principal da sala do LHIA no Instituto de História da UFRJ4. É por isso que, na UFRJ, há quase 30 anos, durante todas as primaveras brasileiras, festejamos, ao nosso modo, a Florália, com o Ciclo de Debates em História Antiga, organizado pelo LHIA, que ao longo dos anos — sob a égide de Flora —, consolidou-se como um importante espaço de florescimento e semeação de conhecimento em torno da Antiguidade. Logo, aqui no hemisfério sul, as nossas Florálias tradicionalmente se dão entre setembro e outubro e elas têm como objetivo principal abrir espaço para o florescer de jovens pesquisadores e fomentar o diálogo generoso e profícuo com conceituados especialistas nos ofícios de Clio e de outras musas apolínias, filhas de Mnemósine, a Memória. A preocupação com o conjunto das musas faz de nossas Florálias festas interdisciplinares. 1 Ovid., Fast., 5. 212. “Arbitrium tu, dea, floris habe”. 2 Ovid., Fast., 5. 230-275. 3 Ovid., Fast., 1. 39. Martis erat primus mensis Venerisque secundus. O primeiro mês era de Marte, o segundo o de Vênus. O ano, para os romanos, começava em março, durante a primavera, que simbolizava o nascimento 4 Obra do artista Luiz Badia, de 1997. 11 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Foi com o propósito de fazer brotar, de fazer nascer, que durante as primeiras Florálias do LHIA, há quase 30 anos, nasceu e lançou-se a Revista Phoînix (ISSN: 14135787), que, assim como a força de sua ave homônima, resistiu e ainda resiste às adversidades do tempo e hoje se consagra como uma das mais importantes revistas de História Antiga do Brasil. No final do século XX, no ano 2000, durante a X Florália, cujo tema foi “Por mares nunca d’antes navegados”, um grupo de discentes do LHIA lançou a Revista Gaia (ISSN 1517-8919). Uma das primeiras revistas discentes de História Antiga do país. Na mitologia grega, Gaia é a Mãe-Terra. Ela é apresentada por Hesíodo em sua Teogonia como um elemento primordial de potencialidade criadora5. É dela que tudo nasce e é nela que tudo se transforma no longo fluxo da vida. Gaia era mãe dos titãs, filhos de Urano e também da titânide Mnemósine (a memória, uma deusa importante aos historiadores), que deu à luz as nove musas, inclusive, Clio, a musa da História. Esse conjunto de representações das divindades gregas e romanas é importante à Revista Gaia, pois o nosso trabalho envolve elementos ligados à criação (Gaia), à memória (Mnemósine), à História (Clio), ao saber (Minerva, símbolo da UFRJ), à força e resistência em dias difíceis (Marte) e ao florescer (Flora). Embora, na mitologia grega, Γαία (Gaia) seja mãe, da qual também brotam as sementes do futuro6, aqui, na UFRJ, invertem-se os papeis e ela é, enquanto revista acadêmica, filha da Phoînix. A Revista Gaia, ao longo do tempo, teve suas dificuldades para se manter ativa e acabou, infelizmente, perdendo a sua periodicidade. No entanto, inspirada na ave que renasce das cinzas, hoje é a Gaia que retoma esse papel, graças ao trabalho incansável de um conjunto de alunas e alunos do LHIA. A Revista Gaia, então, renasce e floresce com o importante papel de fomentar a criação e abrir espaço para os estudantes e pesquisadores ainda em formação. É por isso que a Revista Gaia é exclusivamente discente, e os artigos ora lançados são de graduandos, mestrandos e doutorandos. As sementes, as folhas e as flores são a identidade simbólica mais cara da nossa Florália. É por isso que as flores e as sementes plantadas e colhidas na XXIX edição do Ciclo do LHIA, na qual a Revista é relançada, estarão na cornucópia da deusa Flora e certamente florirão nos jardins de Gaia. Os avanços em termos teórico-metodológicos, as descobertas de novos corpora documentais e as inovações historiográficas, aliadas ao crescimento dos programas de pós-graduação e às pesquisas nos cursos de graduação — no quadro da Iniciação Científica e dos Projetos de ensino e extensão —, inspiraram a revitalização da Revista Gaia, que a partir de agora é editada unicamente em formato eletrônico, com periodicidade semestral, com recebimento de artigos em fluxo contínuo. A Revista retorna com uma nova roupagem e ela pretende, primeiramente, abarcar as produções mais tradicionais de um periódico científico, com a publicação de artigos, resenhas e traduções. No entanto, sua grande novidade — que pode ser observada no número que segue — é o espaço que ela abre para outras linguagens contem5 Hes., Teo., 116-133. 6 Segundo Ésquilo em Eumênides v.1-5: “Antes de todos os deuses, eu irei venerar e suplicar à primeira profetisa, Gaia; após ela, Thêmis, que, segundo alguns relatos, sentou-se após sua mãe sobre este trono profético.” 12 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. porâneas que são muito importantes para fomentar e divulgar os estudos sobre a Antiguidade, como relatos de projetos de extensão e de produtos de História Pública, apresentação de entrevistas, estabelecimento de análise de fontes, discussão sobre a prática docente e, também, apresentação de ferramentas digitais sobre a Antiguidade. Como se pode observar, a Revista Gaia retorna ainda mais plural, interdisciplinar, inclusiva e preocupada com as relações intrínsecas entre ensino, pesquisa e extensão e também preocupada, certamente, com as novas linguagens contemporâneas sobre o faire l’Histoire (o fazer História) da Antiguidade. O número em questão procurou abordar as mais diferentes temáticas, temporalidades e espacialidades da Antiguidade e conta com 14 artigos, 3 apresentações de ferramentas digitais, 6 produtos de História Pública e/ou de extensão, 1 produto sobre a prática docente e a Antiguidade e 5 análises de fontes. Esses trabalhos expressam a vivacidade e a qualidade da área de estudos de Antiguidade no Brasil. Portanto, a Revista Gaia retorna para compor os três elementos fundamentais da área de História Antiga da UFRJ — Flora, deidade auspiciosa do LHIA; Phoînix, nossa fonte inspiradora e a própria Gaia, que é relançada no número em questão. Essas três representações mitológicas — sob a égide de Minerva, símbolo da UFRJ e de Clio, musa apolínia da História — ao dar continuidade a um trabalho coletivo, inclusivo e interdisciplinar em tempos cruéis como os nossos, dão provas de resistência e de renovação, como há de ser, para sempre, o conhecimento. Vida longa à Gaia e sucesso aos discentes que a criaram. 13 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Héracles-Hélios nos didracmas de Cós Mateus Mello de Araujo da Silva Mestrando em História (PPGH – UFF) Bolsista CNPq mateusaraujomello@hotmail.com Orientador: Prof. Dr. Alexandre Carneiro Cerqueira Lima (UFF) O Departamento de Moedas, Medalhas e Antiguidades da Biblioteca Nacional da França possui diversas coleções que agrupam moedas gregas da região da Ásia Menor e regiões insulares adjacentes. Entre elas está a coleção de William Henry Waddington (1826–1894), que agrupa, entre numerosas outras emissões monetárias gregas da Antiguidade, exemplares emitidos pela cidade de Cós durante o período helenístico. Por sua vez, há um conjunto de didracmas coanos que chamam a atenção por sua inovação iconográfica. Os exemplares em questão são quatro didracmas do período helenístico, que variam de 6.54 até 6.67 gramas1. Seu tipo numismático pode ser descrito da seguinte forma: Anverso: cabeça masculina em três quartos, virada à direita e com o olhar dirigido ao alto; sobre a cabeça um escalpo de leão com a juba dispersa e irradiando da cabeça. Reverso: caranguejo sobre uma clava; acima, o étnico KOION abaixo, nome do magistrado. Figura 1: Exemplar FRBNF41779737; 1193 do fundo geral (pertencente à coleção Waddington) 1 Essas moedas são aquelas de número 1190, 1192, 1993 e 1194 do fundo geral da biblioteca, que podem ser acessadas através do banco de dados online Gallica. 14 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Esse tipo numismático possui a iconografia do anverso cujos signos permitem sua identificação segura como o herói Héracles. Isso se dá especialmente devido ao escalpo de leão com o qual a cabeça está vestida, característica das representações imagéticas de Héracles não só nas emissões numismáticas, mas em diversos outros suportes. Essa não é a única, sequer a primeira, representação de Héracles no anverso das moedas de Cós, pois sua presença já era tradicional na iconografia numismática da cidade desde o IV século a.C.. Porém, sua representação rompe com grande parte da tradição numismática grega, que segue o padrão de cabeças antropomórficas, especialmente de divindades ou monarcas, em perfil no anverso das moedas. As emissões em questão apresentam o herói em uma posição de três quartos, menos comum nas representações numismáticas gregas, porém uma grande inovação em Cós, rompendo com o posicionamento tradicional da cabeça de Héracles. Seria impossível ao menos não levantar a hipótese de interferência das emissões monetárias de Rodes, cidade localizada na ilha homônima próxima de Cós. As moedas de Rodes, desde sua fundação em 408 a.C., tradicionalmente portavam em seu anverso a representação do deus Hélios com o olhar em três quartos. Além disso, as duas emissões não possuem semelhanças somente no posicionamento da cabeça e olhar do deus e do herói, mas também no próprio cabelo. O deus das emissões ródias era representado com o cabelo distribuído em mechas ao redor da cabeça, como raios de sol a irradiar. As moedas de Cós possuem uma representação similar, pois o escalpo de leão sobre a cabeça de Héracles possui uma juba que irradia, como os cabelos de Hélios. A datação dessa moeda parece sustentar a hipótese de interferência ródia, seja direta ou indireta, nas representações do Héracles coano. Datações mais antigas dos mesmos tipos as colocam como emitidas entre os anos de 190 e 166 a.C., como aquela feita por Barclay V. Head para o catálogo do Museu Britânico, A Catalog of the Greek Coins in the British Museum, Caria, Cos, Rhodes etc., (1897), ou aquela por Einar Munksgaard para a Coleção Real de Moedas e Medalhas do Museu Nacional Dinamarquês, presente no Sylloge Nummorum Graecorum Copenhagen (1947). Porém, a datação mais recente e precisa, presente na tese de doutoramento de Håkon Ingvaldsen, COS — Coinage and Society: The chronology and function of a city-state coinage in the Classical and Hellenistic period, c.390–c. 170 BC (2002), recua sua datação em várias décadas. Ingvaldsen coloca sua emissão entre as décadas de 250 e 240 a.C. Contudo, qualquer que seja a datação adotada, essas moedas de Cós estão inseridas no longo contexto da expansão da hegemonia ródia pela Ásia Menor e regiões insulares adjacentes, do período que vai desde meados do século III a.C. até meados do século seguinte. Logo, a representação do Héracles coano, remetendo ao Hélios ródio, possivelmente não foi uma alteração simplesmente estilística. Essa constatação seria embasada ainda mais ao considerarmos o importante papel que as moedas poderiam ter na construção da identidade de uma pólis, especialmente em casos em que uma tradicional iconografia centenária é consideravelmente alterada. E as emissões do herói com o olhar em três quartos seriam o testemunho iconográfico de uma lenta imposição de uma nova hegemonia. 15 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Ref e r ên c ias Bib l i o g r á f i ca s FRASER, P. M.; BEAN, G. E. The Rhodian Peraea and Islands. Oxford: Oxford University Press, 1954. GABRIELSEN, Vincent. The Naval Aristocracy of Hellenistic Rhodes. Aarhus: Aarhus University Press, 1997. HEAD, Barclay V. A catalogue of the Greek coins in The British Museum (Catalogue of the Greek coins of Caria, Cos, Rhodes, & c.). Londres: The Trustees of British Museum, 1897. INGVALDSEN, Håkon. COS – Coinage and Society: The chronology and function of a city-state coinage in the Classical and Hellenistic period, c.390 – c. 170 BC. Tese (doutorado). Universidade de Oslo – University Museum of Cultural Heritage. Oslo, 2002. ___________________. The function and meaning of personal names on the Coan coinage in the Late Classical and Early Hellenistic period. IN HÖGHAMMAR, Kerstin. The Hellenistic Polis of Kos. State, Economy and Culture. Proceedings of na International Seminar organized by the Departament of Archaeology and Ancient History, Uppsala University, 11 – 13 May, 2000. Uppsala: BOREAS, 2004. MUNKSGAARD, Einar. Sylloge Nummorum Graecorum Copenhagen. The Royal Collection of Coins and Medals. Copenhage: Danish National Museum, 1947. SHERWIN-WHITE, Susan M. Ancient Cos: An historical study from the Dorian settlemet to the Imperial period. Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1978. Recebido em 5/9/2019 e aceito em 2/10/20190. 16 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Ríton de cerâmica ática em figuras vermelhas Pierre Romana Fernandes Mestrando em História Antiga (PPGH – UFF) Bolsista CAPES pierresaxao@gmail.com Orientador: Prof. Dr. Alexandre Santos de Moraes (UFF) Figura 1: A pintura em figuras vermelhas representa homens reclinados num banquete, entre eles, Cécropes, rei mítico de Atenas e o herói ateniense Teseu. Fonte: Rhyton de Figuras Vermelhas em forma de cabeça de um Carneiro. Ática. Grécia. Período Clássico, c. 480 - 460 a.C. Virginia Museum of Fine Arts, Boston. Disponível em: https://www.vmfa.museum/piction/6027262-8532059/. Alguns vasos cônicos definidos como os primeiros rítons foram encontrados em palácios micênicos da Idade do Bronze (HUEBNER, 2002, p. 1-5). Embora esses vasos tenham uma longa tradição na história do Oriente Próximo, especialmente na Pérsia da dinastia Aquemênida, os primeiros modelos de rítons áticos de figuras vermelhas que emulam a forma persa são produzidos após a vitória grega nas Guerras Greco-pérsicas (490 – 479 a.C.). O súbito aparecimento de rítons na região da Ática 17 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. e em Atenas após as guerras sugere uma conexão entre o ríton ático e o persa (HOFFMANN, 1961, p. 21). Baseado na palavra grega rheo (significado de fluir), o ríton ático foi produzido em três formatos: curvado/inclinado, chifre e taça (formato apresentado na imagem) (HOFFMANN, 1961, p. 21-26). Esse vaso possui em sua extremidade a cabeça de um animal. As cabeças de animais parecem ter sido selecionadas por suas qualidades esculturais e decorativas e por associações específicas a cultos e rituais (HOFFMANN, 1989, p.131). As cabeças mais comuns em rítons áticos, entre os exemplos listados por Herbert Hoffmann, são de carneiros e burros; em algumas peças as cabeças são divididas e combinadas como metade de carneiro e metade de burro. Para Lissarrague, essas representações constituem claramente um bestiário dionisíaco (LISSARRAGUE, 2018, p. 6). O hábito de beber em ríton durante os banquetes se espalhou entre as elites locais do Império Persa Aquemênida sinalizando possivelmente fidelidade ao Grande Rei e ao status cultural da Pérsia. As modificações de forma, iconografia e função são visíveis e indicam a adaptação do tipo de ríton ático às necessidades locais relacionadas a banquetes e rituais (EBBINGHAUS, 2005, p. 417). Ateneu, no livro 11 de sua obra intitulada Deipnosophistae, apresenta seu famoso catálogo de vasos de bebida. Ateneu, ao mencionar o nome de Teofrastos, refere-se ao ríton. O autor diz que o vaso se assemelha a um chifre e descreve a maneira pela qual o líquido escoa como um fluído (daí a derivação do termo “fluir”). Na passagem 497 do mesmo livro, novamente de acordo com Teofrastos, o ríton é atribuído exclusivamente aos heróis. Ao mencionar Cameleon e seu relato sobre a bebedeira, Ateneu descreve mais especificamente o ríton. Inicialmente, o foco está em homens de posses e poder que desfrutam do prazer em beber vinho. Afirma que entre esses homens as taças grandes se tornaram populares, mas entre os antigos gregos não era uma tendência o uso dessas taças: estas eram recentemente importadas dos “bárbaros”. Através de algumas evidências, o ríton é tratado como uma exceção entre as taças grandes utilizadas pelos gregos e é atribuído aos heróis. Cameleon admite que a atribuição é intrigante e oferece uma explicação: já que os heróis eram temperamentais e aptos ao combate, eles eram representados bebendo em grandes taças que continham grande quantidade de vinho (11, 497-8). Herbert Hoffmann afirma que, no final do período arcaico e começo do clássico, os cultos a heróis locais começaram a se fundir com o culto de Dioniso. Hoffmann argumenta que tanto os mortos (os heróis) quanto Dioniso (uma divindade considerada “bárbara”) são representados com rítons em relevo votivo e suporte cerâmico. O pesquisador ainda explica que beber em ríton consistia num gesto de audácia que beirava o barbarismo, já que a forma do ríton sinalizava o aspecto “bárbaro” de Dioniso, ao mesmo tempo em que representava o aspecto intempestivo do herói (o morto representado) como um participante do banquete (HOFFMANN, 1989, p. 134). O ríton ático acima pintado por Triptolemos, datado de 480 a.C., nos oferece múltiplas possibilidades de estudo sobre a imagética acerca do culto dos heróis, dos padrões de comportamento nos symposia e as práticas de consumo de vinho. Na pintura, podemos observar as presenças do mítico rei Cécropes e o herói Teseu. 18 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Font e s ATHENAEUS. The Deipnosophists. Book 11. Disponível em: http://attalus.org/old/athenaeus11.html. Acesso em: 23/09/2019, às 22:43. Rhyton de Figuras Vermelhas em forma de cabeça de um Carneiro. Ática. Grécia. Período Clássico, c. 480 - 460 a.C. Virginia Museum of Fine Arts, Boston. Disponível em: https://www.vmfa.museum/piction/6027262-8532059/. Acesso em: 23/09/2019, às 22:14. Ref e r ên c ias Bib l i o g r á f i ca s EBBINGHAUS, S. Prestige Drinking: Rhyta with Animal Foreparts from Persia to Greece. In: CURTIS, John.; SIMPSON, John. The World of Achaemenid Persia. Nova York: I&B Tauris, 2010. HUEBNER, K. The Sanctuary Rhyton. Stockholm: Svenska Institutet I Athen, 2002. HOFFMANN, H. Rhyta and Kantharoi in Greek Ritual. Malibu: J. Paul Getty Museum Press, 1989. ___________________. The Persian origin of Attic Rhyta. Antike Kunst, 4. Jahrg, 1. Pp. 21-26. LISSARRAGUE, F. Identity and Otherness: The case of Attic Head Vases and Plastic Vases. Chicago: University of Chicago Press, 1995. Recebido em 7/9/2019 e aceito em 30/9/2019. 19 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Análise documental: Cloelia, aquela que tinha um nome e uma estátua Mariana de Azevedo Santana Gomes Graduanda em História (UNIRIO) Bolsista de Iniciação Científica da FAPERJ mg290897@gmail.com Orientadora: Profa. Dra. Cláudia Beltrão da Rosa (UNIRIO) Int ro d u ç ão Este texto apresenta uma breve análise de parte do corpus documental da pesquisa de IC que atualmente desenvolvo sob a orientação de Claudia Beltrão (UNIRIO), sobre personagens femininas em Tito Lívio, Ab urbe condita, Livros 1-5. A pesquisa está em sua primeira fase de execução, visando à constituição do corpus, e se insere em um projeto maior, a construção da base de dados digital Eurykleia1, um banco de dados online e gratuito desenvolvido por uma equipe internacional sob a direção geral de Violaine Sebillotte (Paris 1- Panthéon Sorbonne). O objetivo da base é ir além de uma simples identificação dos nomes e das ações atribuídas a mulheres em diversas sociedades antigas, mas especialmente analisar como e em quais contextos o nome e as ações surgem na documentação. Interesso-me especificamente pelas possibilidades para a pesquisa abertas pelos estudos de gênero, e a diferença específica da base Eurykleia é a comparação de diferentes fontes discursivas para, assim, analisar o contexto do nome registrado e como esse registro se liga a valores, crenças e hierarquias que constituem uma dada sociedade, possibilitando assim um estudo de como as construções de gênero se configuram em diferentes tipos de registro documental. Apresento um estudo de caso sobre a personagem Cloélia, em Liv.Ab Urbe.2.13. De um total de cento e quarenta e dois livros, apenas trinta e quatro chegaram aos nossos dias via tradição manuscrita, além de alguns fragmentos. Ainda assim, os livros Ab urbe condita formam a mais extensa obra de historiadores do século I AEC. Ao identificarmos os nomes, preparamos fichas analíticas que alimentam a base de dados, privilegiando o estudo da fonte que produz o nome e a forma da sua enunciação. As principais questões são: por que e por quem um nome foi enunciado? Que dizem os enunciados sobre as mulheres nomeadas? Para responder a essas questões, assinalamos as razões da nomeação (seus atos, seus termos, suas relações 1 Site oficial: https://eurykleia.hypotheses.org/ . 20 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. com outra personagem etc.) e a modalização dessa nomeação e suas razões, com especial interesse nos mecanismos ligados aos processos de produção das fontes, bem como sua seleção e sua transmissão. A preocupação com o uso e a atribuição de certos valores ao corpo das personagens se tornou nosso interesse central Para entender melhor o que pretendia o historiador ao escrever sobre Cloélia estudei o prefácio de sua obra, no qual Lívio explicita que segundo seus recursos, quer “examinar a memória dos grandes feitos do povo mais poderoso do mundo”(Liv. Praef.). Ao dizer isso, Lívio destaca uma característica fundamental da historiografia antiga: a busca de legitimidade do discurso (MARQUES, 2013, p. 23) - equiparando a grandeza da Roma do séc. I AEC à sua origem divina, o que, relacionado com a épica, alinha-se também com a escrita histórica grega2. O co nt e x t o da n o m e ação d e C l o e l i a No primeiro parágrafo do Livro 2, Tito Lívio descreve “a nova liberdade aproveitada pelo povo romano, suas conquistas na paz e na guerra, seus magistrados anuais, e suas leis superiores em autoridades aos homens[...]” (Liv., Ab Urbe., 2,1). Após expulsar os reis de Roma, Bruto ordenou que os bens do rei fossem saqueados e consagrou sua terra a Marte, que foi nomeada Campus Martius. Entretanto, Bruto viu seu amigo, Tarquínio Colatino, ser forçado a abdicar do consulado e se retirar de Roma por conta de sua ligação com a dinastia deposta. Em seu lugar foi eleito Públio Valério. Uma conspiração começou a se formar, que pretendia restaurar a monarquia. Dentre os conspiradores estavam os filhos e o irmão de Bruto. Porém, a conspiração foi delatada por um escravo chamado Vindicio, que recebeu a liberdade depois que aqueles que tramavam a volta dos reis foram mortos. A informação de que a conspiração havia sido descoberta chegou até Tarquínio, que juntou tropas de Veios e Tarquinia, e iniciou uma guerra contra os romanos. Bruto morreu na batalha, junto ao filho do antigo rei, Arrúncio. Mesmo com a perda lastimável, os romanos saíram vitoriosos e em seu lugar foi eleito Marco Horácio Pulvílio. No ano seguinte, foram eleitos como cônsules Públio Valério e Tito Lucrécio. Entretanto, a antiga dinastia não desistiu de tentar reconquistar a cidade e, pedindo ajuda a Porsena, rei de Clumsium, atacaram Roma. Dois grandes heróis mostraram seu valor nesse período, Horácio Cocles e Caio Múcio, o que fez com que Porsena celebrasse um tratado de paz com os romanos. Posteriormente, Tito Lívio narra o ato corajoso de uma das reféns romanas aprisionadas por Porsena, Cloélia, e diz ter sido inspirada pela bravura de Caio Múcio. 2 O contato com os gregos remonta a época arcaica, entretanto é na república que a cultura grega passa a entrar com força em Roma, principalmente, com o círculo dos Cipiões e os trabalhos de Cícero . Aliás, este último, além de ser um entusiasta com as belas letras também propôs um esquema de escrita histórica, no que foi seguido por Tito Lívio (cf. PEREIRA, 2002, 141, 151, 181). 21 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Tra nsc riç ão da f o n t e e rgo ita honorata virtute feminae quoque ad publica decora excitatae, et Cloelia virgo, una ex obsidibus, cum castra Etruscorum forte haud procul ripa Tiberis locata essent, frustrata custodes, dux agminis virginum inter tela hostium Tiberim tranavit sospitesque omnes Romam ad propinquos restituit. quod ubi regi nuntiatum est, primo incensus ira oratores Romam misit ad Cloeliam obsidem deposcendam: alias haud magni facere; deinde in admirationem versus supra Coclites Muciosque dicere id facinus esse, et prae se ferre quemadmodum, si non dedatur obses, pro rupto foedus se habiturum, sic deditam intactam inviolatamque ad suos remissurum. utrimque constitit fides: et Romani pignus pacis ex foedere restituerunt, et apud regem Etruscum non tuta solum sed honorata etiam virtus fuit, laudatamque virginem parte obsidum se donare dixit; ipsa quos vellet legeret. productis omnibus elegisse impubes dicitur, quod et virginitati decorum et consensu obsidum ipsorum probabile erat eam aetatem potissimum liberari ab hoste quae maxime opportuna iniuriae esset. pace redintegrata Romani novam in femina virtutem novo genere honoris, statua equestri, donavere: in summa Sacra via fuit posita virgo insidens equo (Liv., Ab Urbe., 2, 13). Preparan d o a fic h a d o cu m e n ta l A análise da personagem Cloélia, foi feita com base em uma ficha com diferentes entradas, que ajudam a destrinchar e organizar informações sobre a disposição social da personagem. Este verbete estará presente na database Eurykleia, a qual está sendo desenvolvida e estará disponível no fim do ano de 20193 . A primeira categoria é o nome, transliterado no nominativo. Faz-se a identificação prosopográfica da personagem - no caso de Cloélia foi utilizada a base Paulys Realencyclopädie der classischen Altertumswissenschaft (RE)4. Os próximos passos da ficha se referem ao alfabeto e idioma originais, assim como à tipologia documental. Além disso, para fontes textuais, é necessária a identificação do autor da fonte, a ID da BNF5 para os autores latinos. A última categoria desta sessão refere-se à datação da obra. Segue-se a transcrição da fonte, que é também identificada em sua natureza discursiva e, caso haja, quem patrocinou a sua confecção, pois assim ficam mais nítidos os objetivos do autor. O antepenúltimo conjunto de categorias se refere à forma como a mulher é descrita na fonte. São entradas desta sessão a voz enunciativa, a modalização, que se refere ao juízo do autor sobre a personagem e eventuais personagens associados. A ficha requer também a datação do evento reportado, se ela está presente no docu3 http://eurykleia-dev.huma-num.fr/ . Acesso em: 10/09/2019. 4 https://de.m.wikisource.org/wiki/RE:Cloelius_13. Acesso em: 10/09/2019 5 https://catalogue.bnf.fr/index.do . Acesso em: 10/09/2019. 22 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. mento ou foi deduzida pelo pesquisador. As entradas seguintes pedem informações mais específicas sobre a personagem. As categorias são: sobrenome ou apelidos, estatuto social; origem; categoria etária; parceiro; ascendência mencionada; gens; descendência mencionada; personagens no entorno; função social; ações e outras informações. Por último, mas não menos importantes, ficam as considerações daquele que fez a ficha documental. Encontram-se categorias como referências bibliográficas utilizadas para a compreensão do documento, comentários; nome do criador do verbete; e, finalmente, a data de criação. Com e n tário s o b r e a p e r s o n ag e m Cloélia é a primeira mulher a ser nomeada no segundo livro da obra de Tito Lívio. É apresentada como uma das reféns feitas pelo exército etrusco e que, com inspiração nos atos heroicos de Horácio Cocles e Caio Mucio, consegue fugir e levar consigo um grupo de jovens mulheres, em segurança, de volta a Roma. Entretanto, sob a ameaça da eclosão de um novo conflito, ela é devolvida ao rei Porsena, que admirado por seus atos - e considerando-os mais grandiosos do que os de Cocles e Mucio - não a viola e a protege. Além disso, a presenteia com a possibilidade de levar consigo, de volta para sua cidade, metade dos reféns. Ela opta pelos mais jovens meninos, e os romanos a presenteiam, em seu retorno, com uma estátua equestre no alto da Via Sacra. Esta é uma inovadora forma de recompensa, se tratando de uma mulher (STEWART, P. 2003, p. 139). Como uma figura feminina com grande prestígio e equiparada a Lucrécia6 mesmo que por motivos divergentes -, Cloélia não ganha tanto enfoque na narrativa de Lívio. Ainda que relacionada a termos como “patriota” ou tendo como característica um ato grandioso, sua enunciação é feita em terceira pessoa do singular e para ela não é disponibilizada mais que uma passagem na narrativa de Lívio, o que me parece paradoxal por ela ser a única mulher romana a receber a honraria de uma estátua equestre. Sendo assim, decidi enfocar o não dito e analisar as entrelinhas desta passagem tão breve que resume estes acontecimentos inusitados, para tentar compreender as lacunas deixadas por Tito Lívio. Em primeiro lugar, o que me chamou atenção é o começo da passagem, quando o autor fala que a virtute feminae só é encorajada pela honorata virtus dos personagens masculinos, ou seja, que as qualidades morais feminina se inspiram na honrada moralidade masculina. Outro ponto relevante é que o historiador compara os heróis Horácio Cocles e Caio Múcio a Cloélia quando fala da opinião de Porsena sobre qual ato seria mais grandioso. Sendo assim, decidi dividir em cenas os acontecimentos que os fizeram conhecidos. Respectivamente, Cocles tem uma cena de ação, Múcio três e Cloélia também tem três. Entretanto, a diferença na extensão de suas passagens é nítida, principalmente, 6 Lucrécia foi desonrada pelo filho do rei Tarquínio, o soberbo, e posteriormente suicidou-se. Sua ação foi o estopim da revolta que causou o fim da monarquia e o início da república romana (Liv., Ab Urbe., 2, 57-59). 23 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. se observarmos a quantidade de acontecimentos relacionados a cada personagem. O interessante é que após salvar as jovens, Cloélia não tem um reconhecimento explicitado pelos romanos, mas sim por Porsena - um etrusco - e recebe a estátua equestre por ter optado por salvar os meninos reféns. A sociedade etrusca permitia às mulheres uma liberdade maior que a romana (CANTARELLA, 1997, p. 33) e, por esse caminho, talvez seja possível compreender a diferença na valorização das ações de Cloélia. Peter Stewart (2013) qualifica o recebimento de uma estátua equestre como uma das mais altas honras possíveis a uma pessoa na Roma antiga. Contudo, Stewart também diz que essa estátua devia trazer vergonha aos jovens romanos provavelmente por não conseguirem se igualar aos atos de uma mulher, denunciando, assim, um lugar secundário para elas na sociedade (STEWART, 2003, p.139). Entretanto, parece-nos que ele não leva em conta a importância dos exemplos dos maiores - antepassados - e as possibilidades que uma imagem como a de Cloélia em cima de um cavalo poderiam gerar no imaginário feminino. A partir dessas observações, creio que seja possível depreender que Lívio, ao associar a virtude à honra de guerra (PEREIRA, 2002, p. 413), não considera um ato virtuoso a fuga de Cloelia do acampamento de Porsena, pois Cloélia estava tentando salvar sua própria vida e, por consequência, conseguiu ajudar suas companheiras. Entretanto, quando elege os meninos para serem salvos, leva em conta a segurança futura de Roma que, após passar por dois conflitos seguidos, necessitava de força militar para assegurar o bem estar da cidade. Ou seja, essa atitude a faz virtuosa e merecedora de uma honraria voltada, principalmente, para heróis de batalha. Con c lu s ão A utilização de fichas documentais possibilita uma melhor compreensão de trechos das fontes, que podem não ficar nítidos nos momentos de leitura, e por esse motivo são essenciais para a construção do saber historiográfico. Além disso, a relevância das fichas independe da tipologia do corpus documental, servindo tanto para fontes manuscritas, quanto para as fontes da cultura material. Na aplicação dessa metodologia, podemos ver que a partir dos verbetes abrem-se diferentes possibilidades de análise e, consequentemente, temas variados podem ser abordados a partir disso. Aproveitando o exemplo usado neste artigo, o methodos faculta a percepção de que as mulheres são muito mais presentes nas fontes do que era apresentado até o século passado, e assim nos permite identificar as funções atribuídas ao sexo feminino. Li s ta d e Ab r eviat u r a s Liv., Ab Urbe., 2,13 - Titus Livius Ab Urbe Condita, 2,13 (Tito Lívio, A História de Roma, desde a fundação da cidade, 2,13). 24 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Font e s Titus Livius. The History of Rome. Edited and Translated by Benjamin Oliver Foster. URI: http://data.perseus.org/citations/urn:cts:latinLit:phi0914.phi0012.perseus-lat2:13. Acesso em: 10/09/2019. Ref e r ên c ias Bib l i o g r á f i ca s CANTARELLA, E. Pasado Proximo. Catedra: Madrid, 1997. MARQUES, J. B. Tradição e Renovações da Identidade Romana em Tito Lívio e Tácito. Rio de Janeiro: Apicuri, 2013. LÍVIO, T. História de Roma – desde a fundação da cidade. Livro I – A Monarquia. Trad. Mônica Costa Vitorino. Rio de janeiro. Ed. Crisálida, 2008. PEREIRA, M. H. R. Estudos de História da Cultura Clássica, II volume - Cultura Romana. 3° Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. STEWART, P. Statues in Roman Society. Representations and Responses. Oxford: Oxford University Press, 2003. Recebido em 10/9/2019 e aceito em 1/10/2019. 25 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. A presença da ausência: uma brevíssima análise da cumbuca do Cairo Keidy Narelly Costa Matias Graduanda em Filosofia - UFRN. Integrante da Cátedra UNESCO-Archai, da UnB. keidymatias@ufrn.edu.br Orientadora: Profª Dra. Marcia Severina Vasques (UFRN). Neste trabalho, realizamos uma análise de uma carta egípcia dedicada aos mortos, escrita em uma cumbuca 1 de cerâmica contendo comidas e bebidas que, na medida em que atraía o morto aos alimentos, também o fazia ler uma carta contendo petições e reclamações de suas supostas negligências, haja vista ser o ancestral morto um dos responsáveis pela proteção dos seus descendentes no mundo dos vivos. No Egito, as cartas escritas em pequenas cumbucas testemunhavam as preocupações dos vivos na continuação da vida dos seus ancestrais, mas em troca exigiam que os mortos lhes protegessem e os ajudassem a resolver problemas cotidianos (disputas por heranças, por propriedades, questões de doença etc.) causados por mortos maléficos. A egiptóloga francesa Sylvie Donnat (2009, p. 62), ao tratar das cartas aos mortos, pontua que e ste gênero [literário] é, com efeito, atestado desde o fim do Antigo Império até o século VII a.C.; mais de 1500 anos, porém, a maior parte do corpus (10 documentos de 14) abarca um período muito mais curto, entre o final do Antigo Império e o início do Médio Império” (DONNAT, 2009, p. 62). A egiptóloga alemã Louise Gestermann (2006, p. 289) acredita que “nesse período foi adotada uma popularidade especial dessa prática [de envio de cartas aos mortos]”. Ursula Verhoeven (2003, p. 31) sugere que “embora a quantidade de cartas seja pequena, sua dispersão temporal aponta a existência de uma ampla tradição”. Esta ideia é consubstanciada por Gestermann (2009, p. 289), ao defender que “sua dispersão no tempo indica que se tratou de um grande costume, talvez até generalizado”. 1 Denominação cunhada pela autora. 26 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Em acréscimo, podemos interpretar que a considerável quantidade de cartas durante o Primeiro Período Intermediário (2150 - 1994 a.C.) atesta a importância destas em escala nacional, especialmente, quando percebemos a diversidade de locais onde foram encontradas, de modo que seu consequente decréscimo pode sugerir o abandono desse costume. Interessa também destacar que o desenvolvimento das cartas enquanto gênero ocorreu a partir do final do Antigo Império (2575 - 2135 a.C.), quando o acesso ao além ganhou novos caminhos, superando a antiga restrição que o condicionava ao desempenho satisfatório do faraó junto aos deuses. As situações mais cotidianas — quando negativas — eram vistas como impostas por forças do além — geralmente um parente morto era indiretamente responsabilizado por quaisquer situações de desordem na vida cotidiana do requerente, em escala particular ou familiar, na medida em que não estava a exercer sua função protetora, porquanto ser um espírito ancestral. Desse contexto é que resultam correspondências escritas em tom de incompreensão e, às vezes, de ameaça, pois se os vivos ofereciam libações aos mortos é porque precisavam de uma contrapartida: o garante de uma vida tranquila no mundo dos vivos, onde os problemas cotidianos pudessem ser resolvidos sem a necessidade de influências externas do mundo dos mortos. Por outro lado, podemos assegurar que, quando a possibilidade de resolução dos problemas somente podia ser advinda do mundo dos mortos era porque, igualmente, acreditava-se que os problemas haviam sido criados por um morto maléfico. Com o objetivo de demonstrar o conteúdo dessas cartas, escolhemos como exemplo a Cumbuca do Cairo, datada do Primeiro Período Intermediário, da XI ou XII Dinastia. O conteúdo desta carta é o resultado de uma das percepções que tinham os egípcios, ao considerarem ser os “encantamentos mágicos ou orações aos deuses [como] métodos usuais de afastar doenças [causadas por maus espíritos]. [...] As cartas aos parentes mortos poderiam ser empregadas para este mesmo fim” (GARDINER; SETHE, 1928, p. 8). Conforme as versões de Gardiner e Sethe (1928) e de Jan Assmann (2005), elaboramos a seguinte tradução para essa fonte, considerando a grafia dos nomes próprios conforme a publicação de 1928: P resenteada por Dedi ao sacerdote Antef, nascido de Iwnakht. Quanto a esta serva Imiu, que está doente, nem de dia e nem de noite tu (= o akh) lutas por ela contra todo homem que está fazendo mal a ela e toda mulher que está fazendo mal a ela. Porque tu desejas a desolação da sua casa (= dela)? Luta por ela hoje como (se fosse algo) novo (?), para que a sua casa (= dela) possa ser estabelecida, e para que libações possam ser feitas a ti. Se não houver qualquer (ajuda) tua, então a tua casa estará destruída. Será (?) que não reconheces que é esta serva que faz a tua casa entre (?) os homens? Luta por [ela]! Cuida dela! Protege-a de todos os homens e mulheres que lhe estão fazendo mal! Assim, a tua casa e os teus filhos serão estabelecidos. Que escutes bem! 27 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Desenho detalhado das inscrições da Cumbuca do Cairo (interior e exterior): Figura 1. Representação das inscrições da Cumbuca do Cairo. GARDINER, Alan Henderson; SETHE, Kurt. Egyptian Letters to the Dead. London: The Egypt Exploration Society, 1928. p. 55. Com base no teor da carta, elaboramos a seguinte classificação: Remetente/requerente: Dedi; Destinatário/requerido: Antef; Personagens: Dedi, Antef, Imiu e Iwnakht, mãe de Antef. Assunto: Imiu, a serva da casa, está doente. Supostos culpados: o Akh de um homem ou de uma mulher morta (culpa direta). Akh de Antef, que negligencia ajuda (culpa indireta). Recompensa: preservação da antiga casa do morto, no mundo dos vivos. A Cumbuca do Cairo, nomeadamente, por meio da tradução realizada por Jan Assmann, permite-nos sugerir que os mortos destinatários das cartas eram espíritos akh. Interessa destacar que a clássica obra de Gardiner e Sethe (1928) — a primeira 28 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. a traduzir as cartas — e uma tradução de Janet Richards que, assim como àquela de Assmann, é datada de 2005, não utilizam a palavra akh para se referir ao espírito do morto receptor da carta. A versão de Assmann demarca Antef, o sacerdote a quem é destinada a composição, como um akh. A importância da função desempenhada por Antef — um sacerdote — é delineada já na primeira linha da composição, mas Dedi, a remetente, escreve-o também na condição de sua esposa: Presenteada por Dedi ao sacerdote Antef, nascido de Iwnakht. Esta viúva estava a se sentir bastante preocupada com o andamento de seu lar após a morte do marido e a doença que afligia à serva da família, chamada Imiu, o cerne da manutenção da casa. A s viúvas escreviam aos seus maridos mortos, nomeadamente, visando o bem estar dos outros; seja o mau tratamento reservado a sua filha [ou ao seu filho] ou o destino reservado às suas crianças e a elas próprias, [como no caso] de uma mulher que escreve ao seu marido em decorrência da doença que afligia a serva de sua antiga casa (VERHOEVEN, 2003, p. 36). Do fato de Imiu ocupar a centralidade nesta carta, sendo o alvo dos apelos pedidos por Dedi, depreendemos duas possibilidades: a) a serva ocupava uma posição de certo prestígio, talvez motivada pela relação de apego à família na medida em que estava em seu convívio desde quando Antef estava vivo: Porque tu desejas a desolação da sua casa (= dela)? Luta por ela hoje como (se fosse algo) novo (?), para que a sua casa (= dela) possa ser estabelecida. b) trata-se de uma família que, embora com algumas posses — a julgar pelo fato de contar com a ajuda de uma serva nos trabalhos domésticos — não tinha como repor a mão-de-obra exercida por Imiu. Essas duas hipóteses podem ser percebidas a partir do discurso de Dedi, que mostra uma completa dependência em relação aos serviços de Imiu para o bom andamento de sua casa: Será (?) que não reconheces que é esta serva que faz a tua casa entre (?) os homens? O destinatário da carta não é o culpado direto pelas mazelas incididas no mundo dos vivos, mas se torna culpado na medida em que, aparentemente, negligencia ajuda e, por conseguinte, quebra o laço de troca estabelecido entre vivos e mortos: aos vivos cabia prestar oferendas e orações; aos mortos cabia o desempenhar de uma função protetora — nesse sentido, os ancestrais eram cultuados em escala doméstica. Quanto a esta serva Imiu, que está doente, nem de dia e nem de noite tu (= o akh) lutas por ela contra todo homem que está fazendo mal a ela e toda mulher que está fazendo mal a ela. “A carta parece ao mesmo tempo testemunhar a indignação de Dedi sobre a indiferença de Antef a sua serva, [assim como] a incompreensão da autora quanto à atitude do sacerdote que, assim, põe em perigo a sua casa” (LORAND, 2010, p. 89). 29 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. P erguntas retóricas e sentenças gerais intimam o destinatário a agir em favor de Imiu, sob pena de seus parentes vivos sofrerem às consequências dos tormentos [da serva]. Dedi relembra os deveres de um chefe de família, mesmo morto, para com aqueles que compõem a sua casa. Lutar contra aquele que aflige Imiu é o único meio disponível para Antef assegurar a serenidade de sua família e, consequentemente, permitir-lhes manter [a realização] de seu culto funerário (LORAND, 2010, p. 89). Nesse sentido é que Dedi ameaça romper sua obrigação, evidenciando que a serva também poderia lhe prestar ou não culto; tudo estava a depender do desempenho de Antef: (Luta por ela) para que libações possam ser feitas a ti. A negligência de Antef poderia resultar na dissolução de sua casa, ou seja, de sua família; a proteção desempenhada como marido, pai e patrão, consolidada quando Antef estava vivo, precisava ser restabelecida — algo que dependia apenas dele, na medida em que “o papel de um espírito ancestral era de um advogado e de um correquerente no real outro mundo” (ASSMANN, 2005, p. 161); é neste sentido que a viúva repreende Antef: Se não houver qualquer (ajuda) tua, então a tua casa estará destruída. De acordo com Rita Lucarelli, o s inimigos a serem afastados podiam ser tanto humanos quanto sobrenaturais; sobre estes últimos, outros demônios portadores de doenças e desastres eram também os próprios mortos. Por esta razão era frequente, da parte do remetente, a declaração de ter tratado o homem adequadamente na Terra e de ter cuidado de sua sepultura e do culto após sua morte (LUCARELLI, 2008, p. 151-152). Dedi ressalta que Imiu esteve sempre a cuidar da casa da família e, por isso, não entende a injustiça que Antef comete ao não lutar para que a serva continue no convívio da casa, cuidado da esposa e dos filhos do sacerdote: Luta por [ela]! Cuida dela! Protege-a de todos os homens e mulheres que lhe estão fazendo mal! Assim, a tua casa e os teus filhos serão estabelecidos. Que escutes bem! Não se sabe exatamente de quem é a culpa pelo mal causado, mas se trata de uma ou mais pessoas que habitam a mesma cidade que Antef, i.e., o mundo dos mortos, por isto é que o sacerdote pode intervir. Conforme ressalta Assmann (2005, p. 161), “a doença de que a serva sofre não é atribuída à influência do espírito ancestral [para quem se destinou] esta carta. Ele é meramente reprovado por não a ajudar”. Neste sentido é que se depreende que poderia existir alguma possibilidade de contato entre os mortos benéficos e os espíritos maléficos, na medida em que cabia a Antef atuar no combate aos causadores do mal que atingiam os seus descendentes. A indignação de Dedi em relação a Antef também evidencia que não era necessário apenas lutar, mas vencer quaisquer batalhas, com vistas ao garante da estabi- 30 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. lidade familiar do morto — posto que não havia fiança de que o morto se esquivava de sua luta ou função. O que podemos concluir é que o insucesso do morto em sua jornada contra os maus espíritos resultava, no mundo dos vivos, no semelhante fracasso de sua casa. Ref e r ên c ias Bib l i o g r á f i ca s ASSMANN, Jan. Death and Salvation in Ancient Egypt. Translated from the German by David Lorton. Ithaca/London: Cornell University Press, 2005. DONNAT, Sylvie. Le rite comme seul référent dans les lettres aux morts. Nouvelle interprétation du début du Cairo Text on Linen. BIFAO 109, 2009. p. 61-93. GARDINER, Alan Henderson; SETHE, Kurt. Egyptian Letters to the Dead. London: The Egypt Exploration Society, 1928. GESTERMANN, Louise. IV. Ägyptische Briefe: Briefe in das Jenseits. In: JANKOWSKI, Bernd; WILHELM, Gernot (Hg.). Briefe (Texte aus der Umwelt des Alten Testaments. Neue Folge 3), Gütersloh, 2006. p. 289-306. LORAND, David. « Quand les vivants en appellent aux morts. Les « Lettres aux Morts » en Égypte ancienne », dans C. Cannuyer, A. Tourovets (éd.), Varia aegyptiaca et orientalia. Luc Limme in honorem (Acta Orientalia Belgica XXIII), Bruxelles, 2010, p. 77-93. LUCARELLI, Rita. Le Lettere ai morti e le manifestazioni dei defunti sulla Terra nell’antico Egitto. Torino: Studi Tanatologici (Fondazione Ariodante Fabretti), 4, 2008. p. 149-162. RICHARDS, Janet. Society and Death in Ancient Egypt: mortuary landscapes of the Middle Kingdom. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. VERHOEVEN, Ursula. Post ins Jenseits: Formular und Funktion altägyptischer Briefe an Tote. In: WAGNER, Andreas (Hrsg.). Bote und Brief. Sprachliche Systeme derInformationsübermittlung im Spannungsfeld von Mündlichkeit und Schriftlichkeit,Nordostafrikanisch/Westasiatische Studien 4, Frankfurt/M, 2003. p. 31-51. Recebido em 11/9/2019 e aceito em 4/10/2019. 31 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Uma transição conturbada: análise do fragmento de uma carta a um sacerdote, do imperador Juliano Júlio Matzenbacher Zampietro Graduando em História (UNICAMP) Bolsista de iniciação científica pela FAPESP juliomzampietro@hotmail.com Orientador: Prof. Dr. Pedro Paulo Funari (UNICAMP) O presente ensaio analisa uma carta redigida pelo imperador romano Juliano (r. 361-363 EC), datada de 362 CE e cujo destinatário era um sacerdote romano. A carta ocupa em torno de vinte páginas modernas, e não se encontra completa: tanto seu início quanto sua porção final foram perdidas ou suprimidas com o tempo. Seu tradutor teoriza que a seção final teria sido apagada por monges copistas de modo proposital, visto que neste trecho o imperador parece estar prestes a elaborar sua afirmação de que as práticas cristãs haviam levado muitos ao ateísmo no Império Romano. (Jul., Fr. Ep., 305D) A carta foi escrita em um período crítico para o Império Romano, em um século que viu imperadores se tornarem cristãos e, eventualmente, a transformação do Cristianismo em religião oficial do império. Dentre as mudanças que este processo acarretou, cabe destacar uma: a disseminação da filantropia de matizes cristãs como valor social, em substituição ao costume do euergetismo cívico. O euergetismo cívico era realizado a partir de doações feitas por notáveis a comunidades cívicas inteiras, em geral cidades e seus cidadãos. Estas doações poderiam tomar a forma de espetáculos gladiatoriais, distribuição de alimentos, e construção de monumentos públicos. (VEYNE, 1990, p. 5-11) Um exemplo tardio deste costume, que demonstra sua prevalência ainda no século IV, é encontrado em Símaco (345-402 EC), nobre romano que iniciou seu filho na vida política ao realizar espetáculos na última década do século IV e primeira do século V. Nestes espetáculos, Símaco gastou algo em torno de 1,3 vezes sua renda anual para uma semana de jogos de gladiadores. (BROWN, 2012, p. 93-100, 114-116) Isso indica não só a continuidade da importância deste tipo de ação no período como também uma esperança de que a política permaneceria sendo realizada do modo como havia sido nos séculos anteriores. Por outro lado, no mesmo século já é possível observar modificações importantes nesse costume, acompanhadas pelo crescimento da importância do bispo cristão 32 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. como figura pública. É nesse período que o evergetismo muda de ênfase: ao invés de ter como destinatário comunidades de cidadãos, as doações de notáveis romanos e mesmo de imperadores incluíam agora uma preocupação com os pobres (BROWN, 2002, p. 1-3; FERNGREN, 2009, p. 122). Isto porque a ideia de imago dei, de que o ser humano havia sido criado à imagem de Deus, teve em sua disseminação consequências importantes, entre elas o argumento de que assim como Deus ama os humanos, os próprios humanos devem amar a seus irmãos, em especial os pobres (FERNGREN, 2009, p. 98-103). Esta transição é um ponto central do reinado de Juliano, que não apenas foi o último imperador pagão, como renegou seu cristianismo anterior quando de sua ascensão ao poder, tornando-se pagão (Soz., H. E., 5.1-2). Havia aqueles que acreditavam que Juliano planejava reverter o avanço do Cristianismo no Império Romano, em particular através da apropriação de elementos cristãos ao paganismo, (Soz., H. E., 5.16) inserindo-se em um contexto de crescente tensão entre as duas religiões. (SALZMAN, 2007, p. 110) A carta a ser analisada possui três pontos que demonstram esta transição, e que nos permitem, respectivamente: deduzir um clima de tensões sociais que levou seu autor a escrever o que escreveu; compreender a resposta de Juliano a estas tensões, na forma de uma nova doutrina para o paganismo; e tornar claras as propostas do imperador para uma reestruturação organizacional do paganismo. O primeiro ponto feito por Juliano no fragmento é a alegação de que demônios maus têm levado homens que não veneram os deuses a desejar uma morte violenta em busca do paraíso. Estes ‘ateus’, nas palavras do imperador, são influenciados por esses maus demônios a se colocar contra a natureza social do ser humano, se isolando em locais desertos e fugindo de cidades. (FERNGREN, 2009, p. 297) Levando-se em conta estas duas informações é possível chegar à conclusão de que este ateísmo a que se refere Juliano é na verdade a religião cristã, que neste período já possuía mártires e que encontrava parte de seus adeptos vivendo de modo deliberado em locais distantes dos grandes centros. A Vida de Santo Antônio foi escrita por Santo Atanásio neste mesmo período, e retrata este ascetismo no deserto (Ath., V. Ant.). Em resposta a esta disseminação do ‘ateísmo’, afirma-se que o exercício da filantropia pelo sacerdote levará à boa vontade dos deuses. Assim como escravos que possuem amizades e ambições mais próximas aos de seus mestres são bem tratados, Deus, que naturalmente ama os seres humanos, terá mais bondade para com aqueles que amam seus irmãos. (Jul., Fr. Ep., 289A-B) É notável, portanto, que Juliano não excluía o Deus cristão de seu panteão, usando-o mesmo para fortalecer seus argumentos1 . Em um segundo ponto, que se desenvolve sobre o primeiro, o imperador afirma que a pobreza dos muitos não pode ser atribuída aos deuses, mas sim à ganância 1 Há três possíveis explicações para o uso da palavra ‘Deus’ neste trecho, ao invés de ‘deuses’: 1) um erro de tradução; 2) Juliano se refere ao Deus cristão; 3) Juliano se refere ao deus Sol, que ele via como o deus supremo, acima dos demais deuses, como apontado por Salzman (2007, p. 114). Dado o que é dito por Juliano deste Deus, em um argumento semelhante ao descrito acima em relação ao imago dei, pensamos que a segunda possibilidade é a mais plausível dentre as três. 33 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. dos homens. Em resposta a esta característica humana, Juliano defende que deve-se doar seus bens, em particular para os pobres. Ainda coloca que ninguém jamais se tornou pobre por doar ao próximo, e que a doação seria sempre retribuída pela vontade divina (Jul., Fr. Ep., 290A-C). É notável que nesta linha de raciocínio o imperador une a filantropia cristã, direcionada aos pobres, com as doações realizadas ao longo do período clássico, que tinham como beneficiárias pessoas que poderiam retribuir o favor em algum momento (FERNGREN, 2009, p. 87-88). Este amálgama reforça a ideia de que Juliano se encontrava na fronteira entre dois mundos, unindo aspectos de ambos em uma tentativa de retomar valores mais antigos. Outro sinal de amálgama, ainda com relação à doutrina pregada por Juliano, é a ênfase dada pelo imperador à vida após a morte. Afirma ele que os deuses possuem grandes planos para os homens, e que uma vida após a morte é vivida pela alma depois de seu desprendimento do corpo. Os deuses garantirão que esta será uma vida em que todos os conflitos estarão reconciliados. (Jul., Fr. Ep., 298D-299A) Dois pontos chamam a atenção nestas afirmações: o primeiro é o contraste com o início do documento, em que Juliano enfatiza que aqueles que buscam esta vida paradisíaca após a morte estão influenciados por maus demônios; o segundo é o fato de que a ideia de uma boa vida após a morte é considerada como um dos fatores mais importantes para a disseminação do Cristianismo ao longo da Antiguidade Tardia. (DODDS, 1965, p. 135-136) É provável que Juliano tenha percebido o poder atrativo que esta ideia possui, e tentou utilizá-la como ferramenta de disseminação do paganismo. O terceiro ponto a ser abordado, que complementa o esforço de mudança do paganismo, Juliano mostra em sua carta tentativas de reformar os costumes e organização pagãos, uma tendência observada também em outros documentos (SALZMAN, 2007, p. 119). Na carta analisada, é notável a crítica a pagãos que não seguem os próprios preceitos, como aqueles que cultuam Zeus, o deus dos estrangeiros, e ao mesmo tempo não oferecem ajuda a estrangeiros reais (Jul., Fr. Ep., 291B-C) 2. Juliano também enfatiza, na carta analisada, que a conduta humana deve ser baseada nas virtudes morais. Essas incluem ações como benevolência para com os homens e uma reverência para com os deuses que faria o fiel cair em suas graças (Jul., Fr. Ep., p. 292D-293D). Já com relação à organização pagã propriamente dita, Juliano é mais claro: os sacerdotes que se dedicassem à oração e aos sacrifícios deveriam receber mais honra que os magistrados, enquanto que aqueles que falhassem em suas tarefas deveriam ser desonrados. (Jul., Fr. Ep., p. 296B-297D) Isto é corroborado por Sozomeno, que afirma que Juliano retornou os sacerdotes ao seu status social anterior. (Soz., H. E., 5.3) Além disso, sacerdotes deveriam ler apenas os filósofos que baseiam 2 É possível argumentar que a carta contida na História Eclesiástica de Sozomeno (5.16) que Juliano teria enviado ao alto sacerdote da Galácia, contém a mesma crítica. Por outro lado, Nuffelen (2002, p. 136-144) argumenta de modo plausível que esta carta é falsa, um resultado de uma adaptação do Fragmento aqui analisado com a cultura cristã da primeira metade do século V, escrita por Sozomeno com objetivo de criticar Juliano. Por conta desta crítica uma menção à carta contida em Sozomeno não cabe no corpo do texto. 34 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. seus escritos nos deuses, como Platão e Aristóteles, pois estes escritos ensinam não apenas que os deuses existem como também que eles não fazem mal nem à humanidade e nem uns aos outros. (Jul., Fr. Ep, p. 300D-301B) Esta visão é contrastante, em particular, com o Deus representado no Antigo Testamento e suas ações diretas no mundo, que via de regra incluíam a punição de algum fiel. É provável que esta seja a razão pela qual Juliano proíbe, neste mesmo trecho, a leitura não só de poetas, mas também de escritos de judeus, que se desviam dos princípios que ele toma como fundamentais. (Jul., Fr. Ep., 300D-301B) Por fim, o imperador afirma que a rotina dos sacerdotes deveria incluir sacrifícios e purificações diários. O sacerdote deveria usar suas melhores roupas apenas dentro do templo, e roupas mais simples em seu exterior, para que as melhores roupas não se tornassem impuras pelo contato com o mundo exterior. (Jul., Fr. Ep., 302A-304D) Juliano também explica como deveriam ser escolhidos os sacerdotes: primeiro dentre aqueles que se mostraram mais devotos aos deuses, e segundo entre aqueles que se mostraram mais benevolentes para com os homens. Este segundo ponto é importante, pois o imperador acreditava que a negligência dos sacerdotes abriu espaço para que os ‘galileus’, palavra usada em tom pejorativo por Juliano para se referir aos cristãos, (Soz., H. E., 5.4) praticassem a filantropia e deste modo obtivessem mais seguidores. Retomando o início do fragmento, o imperador afirma que estes galileus estariam levando muitos para o ateísmo. (Jul., Fr. Ep., 305D) Con sid er açõ es f i n a i s Como esperamos ter demonstrado acima, a carta de Juliano surge em um contexto de mudanças sociais drásticas, e as proposições nela contidas foram a forma pela qual o último imperador pagão tentou reverter este cenário. Em nossa análise, houve um esforço consciente de encontrar características do imperador através de sua carta, e não por meio de escritos sobre sua pessoa. Isto porque os escritos de Sozomeno e Gregório de Nazianzo, por exemplo, são enviesados contra o imperador pagão,3 enquanto os escritos de Libânio possuem o viés contrário4. Acreditamos que a ênfase nos documentos do próprio Juliano é importante para nos aproximarmos mais desta figura, apesar de não argumentarmos por um abandono das demais evidências, que, se tratadas de forma adequada, nos fornecem informações relevan3 Ambos insistem, em tom de crítica, que apesar de ter se convertido ao paganismo, o imperador ainda contava com as proteções que o sinal da cruz lhe conferia em momentos de medo, demonstrando mais confiança no credo que perseguia do que em sua nova religião. (Greg. Naz., Or. IV, 55-56; Sozomeno, Ecclesiastical History, 5.2) Além disso, Sozomeno enfatiza que Juliano era rápido em utilizar de violência física para conseguir o que queria. (Sozomeno, Ecclesiastical History, 5.15-17) 4 Libânio afirma, em contraste com Sozomeno, que Juliano sabia que a persuasão é a principal ferramenta de conversão, e que a violência não geraria uma verdadeira conversão. (Lib., Or. XVIII, p. 159) Além disso, é notável que Libânio deixe de lado a maior parte das questões religiosas pertinentes ao reinado de Juliano. O autor sabia que esta era uma questão importante, visto que desconfiava que Juliano havia morrido pelas mãos de alguém motivado pela preferência dada pelo imperador a templos pagãos, (Lib., Or. XVIII, p. 208) mas acaba por contorná-la em grande parte de sua oração. 35 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. tes quanto ao período e à vida desta figura tão debatida pela historiografia. Li s ta d e ab r eviat u r a s Ath. V. Ant. – Vita S. Antoni (Athanasius) Greg. Naz. Or. IV – Oratio IV (Gregorius Nazianzenus) Jul. Fr. Ep. – Fragmentum Epistolae (Iulianus) Lib. Or. XVIII – Oratio XVIII (Libanius) Soz. H. E. – Historia Ecclesiastica (Sozomenus) Font e s ATANÁSIO. Life of Antony. In: Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Volume IV. Trans. by Archibald Robertson. Edinburgh: T&T Clark, 1891, p. 194-221. GREGÓRIO DE NAZIANZO. Oration 4: First Invective Against Julian. In: Julian the Emperor. Trans. by C. W. King. Londres: George Bell & Co., 1888, p. 1-85. JULIANO. Fragment of a letter to a priest. In: The Works of the Emperor Julian. Vol. II. (ed. T. E. Page and W. H. D. Rouse) With an English translation by Wilmer Cave Wright. New York: The Macmillan Co., 1913, p. 297-340. (The Loeb Classical Library) LIBÂNIO. Funeral Oration of Julian the Apostate. In: Julian the Emperor. Trans. by C. W. King. Londres: George Bell & Co., 1888, p. 122-218. SOZOMENO. Ecclesiastical History. In: Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Volume II. Trans. by Chester Hartranft. Edinburgh: T&T Clark, 1888, p. 179427. Ref e r ên c ias Bib l i o g r á f i ca s BROWN, Peter. Poverty and Leadership in the Later Roman Empire. Hanover and London: Brandeis University Press, 2002. _____. Through the Eye of a Needle. Princeton: Princeton University Press, 2012. DODDS, Eric R. Pagan and Christian in an Age of Anxiety. Cambridge: Cambridge University Press, 1965. FERNGREN, Gary. Medicine & Health Care in Early Christianity. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2009. NUFFELEN, Peter van. Deus fausses lettres de Julien l’Apostat (La lettre aux juifs, Ep. 51 [Wright], et la lettre à Arsacius, Ep. 84 [Bidez]). Vigiliae Christianae, vol. 56, no. 2, p. 131-150. 36 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. SALZMAN, Michele Renee. Religious Koine and Religious Dissent in the Fourth Century. In: RUPKE, Jorg. (ed.) A Companion to Roman Religion. Oxford: Blackwell Publishing, 2007, p. 109-125. VEYNE, Paul. Bread and Circuses. Historical Sociology and Political Pluralism. Abridged with an introduction by Oswyn Murray. Trans. by Brian Pearce. London: Penguin Books Ltd., 1990 [1976]. Recebido em 18/9/2019 e aceito em 2/10/2019. 37 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. A Concepção Aristocrática De Mundo E Os Usos Do Passado: A Apropriação Do Paganismo Indo-Europeu Pela Extrema Direita Francesa Nas Páginas Revista Terre Et Peuple. Victor Barone Graduando em História (FFLCH – USP) Bolsista de Iniciação Científica - FAPESP victor2.barone@usp.br Orientador: Prof. Dr. Glaydson José da Silva (UNIFESP) Res u mo O presente artigo, que é parte de uma pesquisa de iniciação cientifica, visa investigar os usos e abusos do passado, especialmente da Antiguidade, levados a cabo por um grupo que integra e chamada Nouvelle Droite, ou nova direita francesa. O grupo ora analisado se manifesta por meio de publicações acadêmicas ou de vulgarização na revista trimestral Terre et Peuple (Terra e Povo), se valendo fortemente de uma concepção de História Antiga que se mescla com as ideias de identidade nacional e supranacional, de modo a fomentar a mobilização do paganismo indo-europeu como herança legitimamente europeia a ser rememorada. Como veremos, essa apropriação do passado não é desnudada de interesses políticos e nem poderia sê-lo; ela firma raízes e ganha potência em momentos sociais e econômicos muito particulares. Pa lav r as - chav e Terre et Peuple; neopaganismo; extrema-direita; fascismo; usos do passado. Abs t rac t This article, which is part of a research of scientific initiation, aims to investigate the uses and abuses of the past, especially of Antiquity, carried out by a group that is member of the Nouvelle Droite, or the new French right. The group now analyzed manifests itself through academical publications or of vulgarization in the quarterly 38 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. journal Terre et Peuple (Earth and People), drawing heavily on a conception of Ancient History that blends the ideas of national and supranational identity in order to foster the mobilization of Indo-European paganism as a legitimately European heritage to be recollected. As we shall see, this appropriation of the past is not stripped of political interests and could not be so; It takes root and gains power in very particular social and economic moments. Key w or ds Terre et Peuple; neopaganism; right-wing; fascism; uses of past. “ Não é necessário recuperar nem inventar tradições quando os velhos usos ainda se conservam” (HOBSBAWM, 1984) Int ro d u ç ão O grupo francês de extrema-direita Terre et Peuple integra um conjunto de pequenos grupos e organizações marcados pela radicalização política, manifesta-se particularmente, por meio de publicações de vulgarização e de caráter acadêmico em sua revista trimestral de igual nome – Terre et Peuple (Terra e Povo), representativa do ideário intelectual sobre história, política e cultura do pequeno círculo. A fim de justificar intelectualmente sua concepção aristocrática de mundo e seus ideais racistas e xenofóbicos, o grupo se vale fortemente da História Antiga (entendida como história nacional) para fomentar a construção espiritual de uma identidade francesa. Nesse sentido, enaltece a sua terra e seu povo, em oposição à modernidade, à globalização e, principalmente, ao cristianismo, que é encarado como o precursor da concepção democrática de mundo. Nesse sentido, o objetivo fundamental desta investigação foi analisar, a partir das páginas da revista Terre et Peuple, entre os anos de 1997 a 2015, de que maneira o neopaganismo, como mobilização histórica da Antiguidade e atrelado a uma concepção aristocrática de mundo, é utilizado como viés de ação política e cultural pela Nouvelle Droite (Nova Direita francesa). Ou seja, quais os sentidos ideológicos dessa mobilização do paganismo e da memória indo-europeia? À vista disso, captar a doutrina do grupo e as suas raízes sociais proporciona também a apreensão do movimento da Nouvelle Droite, uma dinâmica política e cultural herdeira do fascismo alemão em muitos aspectos (como na forma da mobilização do passado), embora não se configure o seu renascimento genuíno. Essa apreensão da performance reacionária atual e dos usos e abusos que se faz da história é de fundamental importância, pois, no cenário não só europeu, mas mundial, nota-se uma ofensiva das forças sociais e políticas de extrema-direita, aquelas que, sob o esquivo de novas máscaras, trazem à baila ideias antigas e perigosas que há tempos ruminam no submundo. O racismo, a xenofobia, o ódio à democracia, o irracionalismo, a aver39 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. são ao progresso e ao avanço, a concepção aristocrática de mundo, respondem aos brados da nem tão nova extrema-direita, e voltam a ocupar os campos da política, os universos intelectuais e culturais. É nesse domínio que se inserem as mobilizações da Antiguidade que tomamos como objetos de estudo e são neste artigo demonstradas. O grupúsculo Terre et Peuple, cuja principal bandeira empunhada é a do que se denomina “resistência identitária”, que engloba uma luta por uma sociedade neopagã, aristocrática e de identidade absoluta, integra o universo da extrema-direita francesa atual, ou Nouvelle Droite1, e se manifesta através de revistas de publicação trimestral, que tem como temas questões que dizem respeito à História Antiga, arqueologia, política, imigração, globalização, cultural local, mitos nacionais e regionais, e outras frentes. Nesse sentido, o seu principal objetivo, que advém desta produção intelectual como atividade basilar, é “conscientização do povo francês” para o que é designado de uma “Guerra Étnica”. Esta conscientização, por sua vez, se dá através da metapolítica2, isto é, da batalha de ideias para a obtenção de uma hegemonia cultural e de um consenso em torno da ideia de nação e de sobrevivência étnica, uma verdadeira Guerra Cultural com o intuito fundamental de que, através da religião neopagã, estruture-se o que seria o reestabelecimento de uma sociedade nos moldes das organizações sociais do mundo Antigo. Tendo em vista que “os eventos passados não mudam” e o que muda, contudo, é a “nossa compreensão sobre eles” (SILVA, 2019, p. 07) ou a aproximação sobre o movimento do objeto real que se consegue levar a efeito, faz-se imperativo denotar que essa mobilização da história pela extrema-direita é o campo metodológico pelo qual circunda nosso objeto. O passado indo-europeu, gaulês, romano, grego, e galo romano é instrumentalizado de forma inerente na construção dos ideários de ação de diversas seitas e partidos políticos de extrema-direita, e também “um dos grandes pilares de sustentação da legitimidade das propostas xenofóbicas e racistas de diferentes grupos. ” (SILVA, 2019, p. 07). Além disso, o uso da História do mundo Antigo fundida à concepção de História nacional, como legitimadora da ideia de povo e terra, em uma relação intrínseca de ancestralidade, é instrumento essencial para a construção do discurso do grupo e para a sua manifestação intelectual, como o foi para as ideologias fascista e nazista. Desse modo, apreender a história do grupo, partindo da revista e de seu contexto social de produção, e também das intenções e dos usos que fazem da Antiguidade, é de grande importância para a História, tanto como contribuição científica, assim como crítica do presente, uma vez que “temos uma responsabilidade pelos 1 A expressão “Nouvelle Droite” é utilizada na França a partir de 1978 para designar o GRECE - Groupement de Recherche et d’Étude pour la Civilisation Européenne -, mas, por extensão, para se referir, desde 1979, ao conjunto formado pelo GRECE e pelo Club de l’Horloge. Cf. TAGUIEFF, Pierre-André. Sur la Nouvelle Droite. Paris: Descartes e Cie, 1994, p.9). Contudo, um uso pouco recorrente, mas, que conheceu uma certa difusão, é aquele que designa, por esse nome, as direitas francesas do pós Segunda Guerra. Cf. SILVA, G. J. da. História Antiga e usos do passado: um estudo de apropriações da Antiguidade sob o Regime de Vichy (1940-1944). São Paulo: Annablume, 2007 2 Metapolítica aqui deve ser entendida como os espaços exógenos à política de fato. Isto é, se referem aos campos de ação política externos ao campo eleitoral e à máquina estatal: universidades, escolas, igrejas, periódicos, instituições comunitárias, etc. 40 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. fatos históricos em geral e pela crítica do abuso político-ideológico da história em particular.” (HOBSBAWM, 1998, p.20). Gêne s e e His t ó ri a da N o va D i r e i ta F r a nces a, o u N o u vell e D ro i t e : o G re c e , Te r re e t Peu p l e e P i er re Vi al A Nouvelle Droite, e aqui se inclui o grupo Terre et Peuple, se mostra em progressivo avanço no cenário político e cultural, não só europeu, mas mundial, como por exemplo na França, onde “o ressurgimento do Front National está ligado ao colapso do modelo econômico e social fordista. ” (GOODLIFE, 2013, p.97) e a uma crise de valores, uma crise social, baseada no ódio à democracia3, na crise da razão e do humanismo. Esta guinada mundial à direita não é fruto somente dos embates entre os antagônicos campos políticos; pelo contrário, ela deriva do campo econômico, definidor, em última instância, dos devires políticos. A proletarização de camadas médias, o desemprego e os empregos informais e precarizados, o desmonte e falência do estado de bem-estar social e a crise da democracia representativa, que se alastraram na Europa nas últimas décadas, implicam na desesperança e decepção de grupos pequeno-burgueses que encontram espaço em doutrinas direitistas e xenofóbicas, como o Front National. No entanto, esta guinada europeia à direita não se configura um acidente histórico sem razão social e econômica, e também, não é mero produto da atualidade globalizada, pelo contrário, ela vem sendo gestada constantemente desde o pós-Guerra e hoje encontra terreno social fértil para germinar. Foi nesse sentido que surgiu em 1969, em Nice, o GRECE4 (Groupement de Recherche et d’Études pour la Civilisation Européenne), como fruto dos esforços de Venner, Alain de Benoist, Jean Haudry e Pierre Vial. Constituído essencialmente por intelectuais, oriundos em sua maioria do Europe-Action, o grupo tem por principais meios de atuação um conjunto de publicações acadêmicas e a organização de colóquios, fundamentados mormente nas áreas da História Antiga, Arqueologia e Filologia. O GRECE se faz o embrião mais fundamental do espectro novo-direitista europeu no campo das ideias, estando “no coração da alquimia da Nova Direita” (DURANTON-CRABOL, 1989, p. 39), e sua sina é fundamentar e defender historicamente uma identidade única para o velho continente, através de uma “revolução cultural, antimarxista, antiamericana e demarcada pela diferença biológica e étnica” (DURANTON-CRABOL, 1989, p. 39). Isto é, buscar, através da arqueologia, da história e da filologia, reviver e enaltecer o antecedente branco indo-europeu, a fim de erigir, às custas de pressupostos irracionalistas e axiomas raciais falsos, uma pedra angular para a 3 RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. Trad. Mariana Echalar, Editora Boitempo: São Paulo, 2014. 4 Segundo Silva, “A sigla do grupo remete não só à antiguidade, fazendo referência à Grécia Antiga, mas à própria ideia de um patrimônio intelectual europeu, o que se conjuga facilmente com os ideais que persegue.” (SILVA, 2019, p.11) 41 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. construção da ideia de nação europeia, radicalmente enaltecida, e de um ancestral branco e “puro” em comum que deve ser preservado. No entanto, de modo peculiar no universo direitista, o grupo rompe com o catolicismo e o elege como ideologia negativa, precursora dos ideais de igualdade e, de modo paradoxal, de aspirações autoritárias, por seu caráter monoteísta e absoluto (MILZA, 2002, p.201). Nesse sentido, nas palavras de Tristan Leoni, a “Nova Direita se caracteriza sobretudo por sua fibra paganista e sua hostilidade ao cristianismo, responsável, através do universalismo e do igualitarismo, pela decadência europeia. ” (LEONI, 2018, p.06). Esse sentimento anticristão e essa fibra pagã ocuparão daí em diante a centralidade lógico-argumentativa do discurso desses grupos. Todos os seus pressupostos e axiomas girarão em torno da concepção essencialista de raça, povo e terra, leis eternas ligadas ab origine à suposta ancestralidade indo-europeia. Para estear sua ideologia extremada e radical, o grupo se vale de uma chave de interpretação da História Antiga e da arqueologia do mundo antigo, elegendo-as como instâncias constitutivas e legitimadoras de uma longínqua história Nacional. Nesse sentido, a teoria da tripartição sócio funcional, de George Dumézil (DUMÉZIL, 1985, p. 985-989) acerca dos indo-europeus se faz elementar ao grupo, que considera esse povo como o primeiro e mais puro representante do homem branco europeu; dele descenderiam os romanos, gauleses, gregos, e galo romanos, os francos, e os celtas, os antepassados fartamente mobilizados por seus “descendentes”. A recuperação, manutenção e a articulação, no presente, desta identidade ancorada no passado se desdobra na aversão aos imigrantes, em sua maioria muçulmanos advindos do oriente e do norte da África; estes são encarados, primeiramente, como responsáveis por todas as mazelas sociais e por problemáticas da ordem econômica e, em seguida, como ameaça à “pureza” dessa sagrada identidade oriunda do homem branco indo-europeu. “O medo e a agressividade em relação aos ‘outgroup’, como se sabe, não tem nada de novo como ingredientes de síndromes de extrema-direita” (PIERUCCI, 1999, p. 59). A teoria de Dumézil sobre a tripartição sócio funcional das sociedades indo-europeias traz como corolário a ideia de ancestral, língua e herança comuns entre os europeus, logo, de uma cultura compartilhada, o que, a partir de sua manipulação por muitos grupos direitistas como o GRECE, justificaria a união de povos europeus em torno de ideias que lhe são próprias, como bem ilustra a mobilização da teoria de Dumézil pelo Nazismo (GINZBURG, 1985, p.695-715). Dessa forma, segundo a ideologia da Nouvelle Droite, “é clara a existência de uma cultura indo-europeia, que transcende os estados-nações, biologicamente determinada” (BENOIT, 1981, p.251 apud SILVA, 2019, p.12). Esse apelo aos indo-europeus eclode não só numa rememoração e instrumentalização das cargas culturais, biológica e, principalmente, religiosa, mas, também, no modo de interpretar e articular a sociedade estruturalmente, ou seja, “isso também implica uma visão hierárquica e aristocrática de sociedade” (FLOOD, 2000, p.256). Dessa forma, reproduz-se algumas primazias nazifascistas: o culto ao líder e o corporativismo baseados numa hierarquia racial estabelecida historicamente, como resposta à crise entendida como cultural, uma inversão de valores propriamente dita. 42 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. “A Nova Direita prima por diagnosticar a crise geral do mundo contemporâneo como uma crise primeiramente cultural, uma crise de valores, de maneiras, crise moral.” (PIERUCCI, 1999, p. 59). Produto de uma cisão entre membros do GRECE, dentre eles Pierre Vial, surge o pequeno grupo Terre et Peuple, que tem como foco de militância política e cultural a resistência identitária face a uma ameaça vinda tanto do exterior como do interior: a globalização, ou mundialização, e os imigrantes muçulmanos são os principais adversários do grupo, sendo encarados como inimigos externo e interno, respectivamente. O grupo conta com um periódico de mesmo nome, através do qual realiza-se intelectualmente no campo cultural, produzindo publicações sobre a história nacional francesa, regional e europeia, que visam preservar uma identidade étnica entendida em risco de extinção e fomentar uma reorganização social e política na Europa, que leve em conta as raízes culturais e étnicas de cada povo europeu firmado em seu território por direito histórico. Uma concepção aristocrática de mundo, baseada nas etnias ou povos “legitimamente europeus” que devem se firmar cada qual em sua terra, como mostra sua apropriação da História Antiga. O círculo direitista conta com filiais não só em diversas regiões da França, como na Ilha de França, Bretanha e Alsacia, por exemplo, como também em outras nações do continente europeu, como Espanha, Portugal, Bélgica, Suíça, Luxemburgo e outros países. As manifestações político-culturais resumem-se, mormente, em visitas a sítios arqueológicos, acampamentos, mesas redondas, assembleias comunitárias aonde se decidem os rumos de ação política e também festas organizadas em função de eventos de um calendário pagão organizado pelo grupo. Essas práticas militantes se dão mormente em locais que ocupam um importante papel na história e na memória nacionais e regionais, e as temáticas das festas e encontros estão sempre relacionadas à Antiguidade entendida como a gênese da nação e o reduto da identidade. Através dessas atividades e da sua considerável produção intelectual, Terre et Peuple intenta empreitar um combate metapolítico contra o desenraizamento e a dissolução étnica e cultural do povo francês e europeu. Esse embate, entretanto, se dá a serviço de uma agenda política e cultural xenofóbica, racista e violenta, tendo como pilar uma releitura falseada e intencionada do passado indo-europeu, ou gaulês no caso específico da França. Nesse sentido, Terre et Peuple anuncia, categoricamente, ter por eixo basilar de ação a conscientização do povo francês para o que designa de uma Guerra Étnica, e face a este evento objetiva preparar os seus leitores e militantes para um peremptório e decisivo evento, em que se resolverão os conflitos étnicos entre povos em luta racial. A respeito do conceito de Guerra étnica, Pierre Vial dirá: N ós caminhamos para uma guerra étnica e esta guerra será total. (...) é necessário, então, preparar mental, psicológica, moral e psiquicamente o maior número possível de nossos compatriotas nesta perspectiva, afim de que eles vivam neste desafio o menor mal possível, ou seja, dando a si mesmos o máximo de chances de sobreviver. Este imperativo dá todo seu sentido a nossas atividades: organizando pas- 43 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. seios, visitas de sítios e exposições, conferências, estágios de formação, nós queremos colocar em alerta os homens e as mulheres de nosso povo sobre o sentido dos afrontamentos que se preparam e forjar sua determinação face a isso (VIAL, 1997, p. 04) Vial, fundador e editor chefe de T.P, se mostra como figura medular do grupo, tanto no que diz respeito à militância política quanto à produção intelectual, de modo que ambas as categorias (teoria e prática) se encontram fundidas na personalidade condutora. Professor aposentado de História Medieval da Universidade de Lyon III, Vial nasceu em meio à Segunda Guerra Mundial, em 1942, e desde jovem militou em movimentos à extrema-direita. Segundo Christopher Flood, “desde 1958 até se juntar ao Front National em 1988, ele [Vial] pertenceu a uma série de partidos neofascistas de curta vida.” (FLOOD, 2000, p. 251). Como professor universitário se mostrou “figura de liderança no fortemente controverso Instituto de Estudos Indo-europeus, o qual promoveu um ponto de convergência para a extrema-direita universitária” (FLOOD, 2000, p. 251). O instituto, de uma vertente fascista de tendência pagã, visava, primeiramente, aferir aparências cientificas ao GRECE na construção de um elo entre História Antiga e história nacional. De forma inusitada, o IEIE foi erigido na Universidade de Lyon III, ou Jean Moulin,; “a mesma universidade que leva o nome do herói da resistência francesa se constituiu em um verdadeiro polo da extrema-direita” (SILVA, 2019, p.04). O Instituto de Estudos Indo-europeus fechou as portas em 1999, “após uma sindicância conduzida pelo Ministério da Educação Nacional para apurar casos de racismo e negacionismo” (SILVA, 2019, p.04). O ne o pagan ismo e a co n ce p ção a r i s t o cr áti ca d e mu n d o O grupo lê o momento atual como uma era de iminente conflito étnico entre povos europeus e não-europeus, um conflito motivado pela crença de que dois povos não podem naturalmente ocupar um mesmo território. Entendem que uma terra está ligada umbilicalmente a um povo e, por consequência lógica, só este povo tem o direito espiritual e histórico de habitá-la. A sua leitura do mundo moderno é de uma inexorável Guerra Étnica, uma interpretação de conjuntura tipicamente fascista, ligada às teorias do racialismo científico de Chamberlain, Gobineau e Hitler. Nesse sentido, encaram como principais inimigos os imigrantes que ocupam o espaço vital não só francês, mas europeu como um todo. Esse diagnóstico da sociedade atual divide espaço com uma proposta de futuro, uma solução que advém tanto do pensamento quanto da ação. Na visão do grupo, a melhor forma de vencer o combate étnico que se aproxima é a partir de uma guerra cultural - a ação metapolítica visando a conquista da hegemonia - que fertilizará terreno para o sucesso no campo político. A sua estratégia, nesse sentido, é a pratica neopagã e a negação sumária do cristianismo. Para isso, 44 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. no entanto, o grupo articula uma leitura própria do passado para construir espiritualmente sua identidade, orientando seus diagnósticos do presente e seus projetos de futuro. Segundo Flood: O passado, e especialmente o passado primordial, deve ser entendido como um repositório de sabedoria, valores e lições. É uma fonte de autoconhecimento para o indivíduo e para a comunidade. Ilumina o presente. Orienta a concepção de metas para o futuro e os cursos de ação para alcança-los. (FLOOD, 2000, p.254) É nesse sentido que o grupo mobiliza a História Antiga - fundida à história nacional, como se fossem uma mesma tradição - e dados arqueológicos para encontrar nos povos indo-europeus e seus sucessores uma herança cultural e étnica em comum. Esse indo-europeísmo, dessa forma, S erve de base para reclamar a etnicidade francesa, que pode ser representada como uma notável síntese da linhagem celta dos gauleses, a linhagem latina dos romanos, e a linhagem germânica dos francos, todas complementares porque derivam da mesma raiz comum, e compartilhando características culturais e temperamentais, as quais são implicitamente vistas como superiores às dos outros povos. (FLOOD, 2000, p.256) Terre et Peuple “promove uma ampla visão de histórias nacional e local, de volta aos tempos mais remotos, incluindo mitos e lendas” (FLOOD, 2000, p.244), e busca assimilar para si uma ligação com a linhagem branca. Nesse sentido, Vial irá dizer que: “Nosso paganismo é uma herança que vêm do fundo das eras e para qual nós entendemos sermos fiéis.” (VIAL, 2013, p.31). Desse modo, entende que a verdadeira religião europeia é aquela mesma dos povos indo-europeus, e para defender sua identidade, sua etnicidade, a introjeta e a coloca em prática, utilizando-a como instrumento de resistência cultural frente a um peremptório combate étnico. Sobre isso, Vial irá dizer: “A sociedade em que vivemos está doente. Ela está atormentada por uma AIDS mental que é a inversão de valores, mãe das contradições internas que vão fatalmente eclodir cedo ou tarde em uma implosão, porque não desafiamos, impunemente, as leis da natureza, as leias da vida.” (VIAL, 1997, p.02). Segundo Hobsbawm, este processo de reinventar e continuar tradições rompidas é natural no curso da história humana, pois, M uitas instituições políticas, movimentos ideológicos e grupos inclusive o nacionalismo - sem antecessores tornaram necessária a invenção de uma continuidade histórica, por exemplo, através da criação de um passado antigo que extrapole a continuidade histórica real seja pela lenda (Boadicéia, Vercingetórix, Armínio, o Querusco) ou 45 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. pela invenção (Ossian, manuscritos medievais tchecos). (HOBSBAWM, 1984, p.15) Contudo, a recuperação das tradições não deixa de ser um processo para o qual os historiadores, e cientistas sociais num geral, têm de olhar com acentuada atenção, pois, “pode-se dizer que as tradições inventadas são sintomas importantes e, portanto, indicadores de problemas que de outra forma poderiam não ser detectados nem localizados no tempo.” (HOBSBAWM, 1984, p.20). Os usos do passado antigo pelo grupo Terre et Peuple são sintomas de uma tentativa - levada a efeito por um círculo de intelectuais e estudantes de extrema-direita - de primeiro, diagnosticar os problemas atuais, para em seguida, apresentar uma profilaxia e, por fim, construir uma imaginação de futuro. Como vimos, um projeto em curso desde o Pós-Guerra que ganha força em momentos de crise econômica do capitalismo e crise dos valores democráticos. Num escrito de 1946 denominado Concepção aristocrática e concepção democrática de mundo, György Lukács, filósofo marxista húngaro, em decorrência do fim da segunda guerra e de um sentimento de otimismo quanto ao futuro, acredita que para “erradicar as raízes espirituais e morais do fascismo” que restavam após a destruição bélica da doutrina era necessária uma aliança antifascista em escala mundial, tendo como base a construção de uma nova democracia (LUKÁCS, 2009, p.25). Lukács concebe o fascismo não como uma “manifestação mórbida e historicamente isolada” de barbárie repentina na Europa, e sim como uma concepção de mundo irracionalista nos domínios epistemológicos, e aristocrática no plano social e moral, que ganha espaço em momentos de crise econômica seguida da crise de quatro valores: crise da democracia, crise da ideia de progresso, crise da confiança na razão e crise do humanismo (LUKÁCS, 2009, p.26). Nestes momentos de crise econômica e crise de valores, surgem grupos e círculos onde é fermentado intelectualmente o pensamento reacionário e fascista. Grupos de extrema-direita, como o nosso objeto de investigação, constroem para si uma concepção de mundo amparada em uma apropriação da história. À vista disso, é precipitado afirmar que as formas de aparição desse discurso se configuram devaneios e especulações de indivíduos isolados e irados com a democracia, com a razão, com o humanismo e o progresso; antes de tudo, esses argumentos reacionários “têm origem no ser social da nossa época”. O discurso desses grupúsculos conservadores, como Terre et Peuple, refletem espiritualmente necessidades, questionamentos e sofrimentos reais de um determinado grupo ou classe, ainda que de forma distorcida e falseada, fundado essencialmente em uma concepção aristocrática de mundo. “Como diria Marx, [esses argumentos / discursos] não saltam dos livros para a vida, antes vão desta para aqueles” (LUKÁCS, 2009, p. 26). Em última instância, é o ser social que determina a consciência, e não o oposto. Nesse sentido, pode-se denotar que Terre et Peuple, embora busque continuar uma tradição ancorada no passado, é um produto social do trauma moderno, buscando dar soluções a problemas reais que afligem seus integrantes, sentidos primeiramente no campo econômico e, em seguida, desdobrados para o plano dos valores 46 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. morais e identitários. A sua concepção do movimento humano, fundada na ideia de desigualdade natural como lei eterna e na ideia de raça e povo (Volkisch) é essencialmente uma concepção aristocrática de mundo. Essa percepção de mundo aparece também no campo religioso. Terre et Peuple, como um aparelho ideológico que integra o universo da Nouvelle Droite, engaja uma leitura peculiar do cristianismo. Essa religião é vista como uma religião não-europeia, isto é, - como diria Hitler - não compatível com o “gênio inerente ao povo europeu”, pois os eixos que condicionam essa doutrina são diametralmente opostos daqueles pregados pelo grupo e a sua origem remete ao oriente. Por esse motivo, os intelectuais da Nouvelle Droite tentam “associar tanto quanto possível o cristianismo ao judaísmo, isto é, empurrá-lo ao mundo do oriente Médio, e excluí-lo simbolicamente da Europa” (MOOS, 2003, p.45). O seu sentimento anticristão se dá, primeiramente, por encararem o cristianismo como o precursor do igualitarismo, do universalismo, de valores democráticos e, contraditoriamente, de valores totalitários (por seu caráter monoteísta e absolutizante). Assim, “a crítica novo direitista se atém prioritariamente ao monoteísmo e ao universalismo cristão” (MOOS, 2003, p.43). Desse modo, “no que concerne à religião, a nova direita se caracteriza sobretudo por sua fibra paganista e sua hostilidade ao cristianismo, responsável, através do universalismo e do igualitarismo, pela decadência europeia. ” (LEONI, 2018, p.06). A nova direita prima por justificar a desigualdade natural, eixo metafísico a que deve toda sua estrutura lógico-argumentativa, e para isso se vale de uma leitura do paganismo antigo que rememore não somente aos rituais, mas também, e principalmente, a uma organização social hierárquica e aristocrática, segundo a teoria de Georges Dumézil sobre a tripartição sócio funcional das sociedades indo-europeias. Segundo Leoni, S ua descendência indo-europeia e o paganismo (verdadeira religião europeia) são um remédio e um modelo, e isso não significa advogar um retorno às cerimonias e sacrifícios rituais, mas sim de reencontrar-se com um modo de vida [organização social], uma outra relação com a natureza, com os ancestrais e a tribo, isto é, a etnia. (LEONI, 2018, p.06). É nesse sentido que “o cristianismo [para Terre et Peuple] se tornou um Bolchevismo da Antiguidade. ” (FRANÇOIS, 2005, p.13), segundo a leitura do grupo, de modo a articulá-lo como uma grande de empresa de aculturação, miscigenação e dissolução da etnia europeia (MILZA, 2002, p.202). Segundo Pierre Vial, o mundo moderno, palco da globalização e de séculos de influência cristã, é o ápice de um processo tanto físico (Guerra Étnica / imigração) quanto espiritual (desencantamento do mundo) que, através da imigração e do cristianismo, respectivamente, tem como eixo a ofensiva às identidades étnicas europeias. 47 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Nas palavras do fundador do grupo, o mundo moderno É o culminar de um longo processo de desencantamento com o mundo, que teve e sempre tem o propósito de desenraizar o ser humano, de cortar o cordão umbilical que o conecta ao cosmos, de sufocar nele aquela centelha divina que lhe permite se conectar ao sagrado. (VIAL, 1997, p.02) Segundo Olivier Moos, que defendeu uma tese sobre as relações entre os intelectuais da nova direita e a religião, a Nouvelle Droite e a sua fibra paganista encaram o cristianismo como uma doença que assola a Europa e a sua identidade, isto é, “como um novo germe viral, o cristianismo introduziu na Europa uma ruptura identitária, tanto coletiva como individual, que entorpeceu os corpos pagãos sem, contudo, atingi-los completamente. ” (MOOS, 2003, p.47). Nesse sentido, na primeira edição da revista, em 1997, o líder Vial estabelece que “no alvorecer do novo milênio, a ideia de ‘reencantar o mundo’ vem a ser um ‘leitmotiv’ (VIAL, 1997, p.06). Esse fomento ao reencantamento de um mundo desencantado espiritualmente pelo cristianismo e fisicamente pela globalização/imigração deve se realizar concretamente através da rememoração, ou melhor, da “reativação de uma consciência identitária” (DELHELME, 1997, p. 06) intimamente ligada à “verdadeira religião europeia”, partindo do pressuposto de que “mitos e lendas estão em ressonância com a alma de um povo” (DELHELME, 1997, p. 06). Mas, afinal, o que seria concretamente “reencantar o mundo através do neopaganismo” e qual é o tipo de ação que o grupo empreende para tal processo? A fim de responder a esses questionamentos, nos dividiremos aqui em três planos de práticas neopagãs exercidas pelo grupo: a) produção artesanal e intelectual b) produção espiritual e c) ação combativa. A ação combativa não será destrinchada nesse artigo por uma questão de espaço e de tema, mas sua manifestação se dá no plano físico combativo, isto é, membros do grupo que partem para manifestações, protestos, a militância prática. Antes de se embrenhar pela revisitação de mitos e lendas, é importante notar que essa organização dos planos de ação neopagã dizem respeito certamente à organização hierárquica do próprio grupo. Ou seja, há aqueles que representam o plano de produção artesanal (mulheres e crianças) e aqueles que condicionam a produção intelectual (personalidades fundadoras - Pierre Vial, Alain de Benoist e Jean-Haudry, principalmente), há os responsáveis pela atividade espiritual (condução de rituais – Vial e outros antigos membros), e, por fim, há aqueles dispostos ao combate étnico físico e espiritual (homens jovens e adultos que participam de manifestações e protestos)5. Essa forma de organização interna do grupo remete, certamente, à mo5 Essa composição hierárquica do grupo pode ser notada a partir de três prismas: a) da autoria de sua produção intelectual (revista onde mormente homens membros antigos escrevem – principais figuras intelectuais) e de escritos (roteiros) para a produção artesanal, direcionados, principalmente, a mulheres e crianças; b) fotos de rituais como o solstício de verão, onde se nota a participação ativa de todos os membros, e a condução se dá pelas figuras de liderança; c) e, por fim, fotos de manifestações 48 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. bilização da teoria de Georges Dumézil pelo nazismo (GINZBURG, 1985, p.695-715), em relação à tripartição sócio-funcional das sociedades indo-europeias. Essa teoria traz como corolário a ideia de uma herança ancestral em comum entre os europeus no que diz respeito à língua e à cultura originalmente indo-europeias. Isso implica, contudo, em uma adaptação da organização social das comunidades supostamente ancestrais às condições modernas, isto é, fomentar uma reorganização social em torno de três figuras centrais nessa hierarquia: aqueles responsáveis pela produção artesanal e intelectual, aqueles pelo trabalho espiritual (sacerdócio) e aqueles dispostos ao combate (guerreiros)6. Essa forma de organização interna se reflete, por exemplo, na composição das cores da bandeira de Terre et Peuple (Figura 01), constituída pelas cores da bandeira francesa tripartida em escalas diferentes (o que remete à tripartição sócio funcional das sociedades indo-europeias) tendo em seu centro o símbolo de uma flor alpina chamada Edelweiss. Segundo Flood, o emblema do grupo “é a Edelweiss, uma flor alpina branca que é lida como evocadora de pureza, soberania e coragem para conquistar a dependência mutua e o esforço de superação [...] finalmente, a flor pode ser vista como reflexo da North Star7, que tem um significado espiritual para o grupo.” (FLOOD, 2000, p.254). Os campos de atuação neopagã que se referem à a) produção artesanal/intelectual e b) produção espiritual, ações culturais engendradas pelos membros do grupo, fazem frente à globalização e ao cristianismo compõe o que se denomina resistência identitária. A produção intelectual versada no sentido do neopaganismo é extremamente vasta, e é através dela que se engendra também a produção artesanal. Isto é, a partir da guias e roteiros presentes nas edições da revista, com o suporte de um calendário de festejos pagãos, é fomentada a confecção de itens decorativos, o festejo de datas comemorativas, etc. Na décima edição da revista, por exemplo, pode-se encontrar um guia para a decorar um tronco no solstício de verão (talvez a data mais importante para o grupo): “Faça um esboço das decorações desejadas: símbolos solares, iniciais de sua casa, coloque rubas, velas, ramos de azevinho [pinheiro natalino], etc.” (2001, p. 11). Em todas as edições da revista há uma ou duas páginas destinadas a promoe agitações públicas das quais participam essencialmente homens jovens e adultos, portando bandeiras e toda uma simbologia pagã. 6 Essa ideia de que o grupo encarna em si a tripartição sócio funcional das sociedades indo-europeias (teoria de Dumézil) se encontra originalmente em um artigo de uma jornalista francesa para o jornal Le Monde (des religions), publicado dia 23 de junho de 2014. O artigo chama-se As duas vertentes do neopaganismo francês, de autoria de Léa Ducré, em que a autora elabora uma diferenciação sobre os neopaganismo racistas de extrema-direita e aqueles espiritualistas e meramente religiosos de esquerda, encarando Terre et Peuple como um exemplo de neopaganismo etnicista / racista, que prega a superioridade dos povos herdeiros dos indo-europeus. Online em: http://www.lemondedesreligions.fr/ savoir/les-deux-visages-du-neopaganisme-francais-26-03-2014-3797_110.php. Acesso em 22/08/2019, às 12:07. 7 North Star, ou Estrela Polar é um astro sempre utilizado para a localização geográfica na Terra, uma vez que se encontra quase inteiramente alinhado ao eixo terrestre. Essa estrela firma ligações com o fenômeno dos equinócios, muito importante para o grupo. 49 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. ver uma nova receita culinária supostamente de origens indo-europeias, além de também roteiros para a preparação para rituais e a produção artesanal de artigos necessários à época festiva em questão. Essa disseminação sistemática de cultura “tipicamente europeia”, interligada a uma data importante para o calendário pagão se dá devido à periodicidade da revista, uma vez que são produzidas quatro ao ano e lançadas em consonância com o ritmo sazonal. Na edição 50, datando de 2011, pode-se notar uma página muito recorrente de todas as edições da revista, com o tema direcionado às tradições culinárias europeias. No título pode-se ler: “Os fornos de Épona” e a receita indicada é “ganso assado e legumes crocantes”. Os gansos têm, segundo o artigo, raízes helênicas e fazem parte da história europeia ancorada num passado longínquo. Pode-se ler, por exemplo, que “os gansos do capitólio avisaram os romanos da chegada dos guerreiros gauleses”. A fusão, ou confusão, entre História Antiga e história nacional aqui é nítida. (2011, p.08). Em relação ao campo da produção intelectual neopagã engajada em fazer frente ao cristianismo pode-se citar, por exemplo, uma pratica recorrente nas edições da revista: a tarefa auto incumbida de reencantar criaturas que a doutrina cristã (ou melhor, a instituição igreja católica) demonizou. O discurso do grupo no que se refere ao sentimento anticristão gira em torno da ideia de que o cristianismo, além de outras supostas mazelas que causou à Europa, desencantou o mundo, rompeu o elo dos homens com a natureza. Portanto, cabe aos intelectuais de Terre et Peuple a tarefa de religar os povos da Europa com a sua verdadeira religião e, consequentemente, com a sua verdadeira cultura, de maneira a reencantar o mundo. É nesse sentido que em inúmeras edições da revista o grupo tenta destruir os sentidos dados pelo cristianismo a criaturas supostamente sagradas. Por exemplo, “o cristianismo tomou o corvo de um jeito ruim, associando-o ao mundo da feitiçaria, dos espíritos malignos e das trevas. Ele é o trapaceiro do mal e o companheiro de satanás” (MARILLIER, 2002, p. 09). Contudo, segundo o autor deste artigo da 13ª edição, o corvo, na acepção pagã, é o símbolo da esperança, do sol nascente. Por esse motivo, engendra-se, em basicamente todas as edições, uma tarefa de restituir o sentido sagrado às criaturas europeias, reencantá-las. Esse é um tipo do que se pode chamar de produção intelectual. Quanto à produção espiritual, isto é, as práticas e rituais neopagãos, pode-se citar, principalmente, as celebrações dos solstícios de inverno e verão, por exemplo. Os membros do grupo se reúnem em clareiras na floresta, acendem uma pira de chamas e realizam banquetes com comidas típicas (indicadas por intelectuais como Jean-Haudry, especialista na vida pagã) (Figura 02). Segundo Flood: V ial e outros membros da revista se embasam num neopaganismo que celebra o sol e as estrelas, os solstícios e equinócios, as regiões polares e outros locais que são tomados como reposições do sagrado, a redescoberta da espiritualidade em contato com o mundo natural é tomada como essencial para a cura do materialismo da moderna, urbana e consumista civilização (FLOOD, 2000, p.244). 50 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Haudry, autor de obras sobre as linhagens dos povos indo-europeus e suas manifestações religiosas, fornece na edição 26 um guia para aqueles que irão celebrar o solstício de inverno daquele ano (2005). Segundo ele, P ara aqueles que celebram em conjunto, o solstício de inverno é uma celebração alegre, onde carnes e vinhos são acompanhados por canções não menos revigorantes. Para aqueles que celebram em isolamento, é também o tempo de silêncio e reflexão, a preparação mental para o cruzamento de um inverno que pode ser longo e rigoroso. (HAUDRY, 2005, p.07) A manifestação neopagã, segundo Vial, “não é um jogo, uma distração, mas um modo de vida, uma razão de viver”. (VIAL, 2013, p.31). Isso implica, contudo, em propor um projeto de mundo, ideias para um futuro imaginado fundamentado em comunidades étnicas, regradas pela eterna lei do sangue, do povo e da terra. Comunidades organizadas de acordo com os regionalismos (ligado à suposta herança indo-europeia) e hierarquizadas com base na tripartição sócio funcional de Dumézil. O neopaganismo, como mobilização da Antiguidade, não é neutro e nem poderia sê-lo. Nenhuma apropriação se constrói desnudada de interesses sociais; como nos alertou Hobsbawm, só se recupera uma tradição quando seus usos já não vigoram mais ou se encontram ameaçados (HOBSBAWM, 1984, p. 16). No caso de Terre et Peuple o neopaganismo é mobilizado com olhares para uma agenda que responde a anseios e necessidades reais de seus mais fiéis enunciadores e militantes, membros fervorosos da Nouvelle Droite, que buscam soluções para momentos de crise social e econômica na Europa. Dessa maneira, o neopaganismo como arma cultural, política por outros meios, face à iminente Guerra Étnica anunciada pelo grupo, está ligado umbilicalmente àquilo que György Lukács chamou em 1946 de concepção aristocrática de mundo, uma forma antidemocrática, anti-humanista e racialista de conceber o movimento histórico humano e dirigi-lo a alguma direção reacionária. O neopaganismo, nesse sentido, é utilizado como forma de oposição espiritual ao cristianismo, lido pelo grupo como o precursor da concepção democrática de mundo. Fi g u ras Figura 1: Bandeira do grupo Terre et Peuple. Fonte: Foto retirada da página do Facebook de Terre et Peuple. Disponível em: https://www.facebook.com/terreetpeuple/?epa=SEARCH_BOX. Acesso em: 01/10/2019. 51 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Figura 02: Membros de Lyon celebrando o solstício de verão. Fonte: Foto retirada da página do Facebook de Terre et Peuple. Disponível em: https://www.facebook.com/terreetpeuple/?epa=SEARCH_BOX. Acesso em: 01/10/2019. Font e s FACEBOOK. Página Terre et Peuple. https://www.facebook.com/terreetpeuple/?epa=SEARCH_BOX. Acesso em: 01/10/2019 às 18:20. ROUSSO, H. Rapport sur le négationnisme et le racisme à l’université Lyon 3. In : Le dossier Lyon III – Le rapport sur le racisme et le négationnisme à l’Université Jean-Moulin. Lyon: Conseil Lyonnais pour le respect des Droits, 2002. TERRE ET PEUPLE (revista): as edições são lançadas quadrimestralmente, e o período em análise está compreendido entre 1997 e 2015; Edições utilizadas neste artigo: edição 01, 1997; edição 10, 2001; edição 13, 2002; edição 26, 2005; edição 42, 2009; edição 46, 2010; edição 50, 2011; edição 56, 2013. TERRE ET PEUPLE (site). https://www.terreetpeuple.com/terre-et-peuple-magazine-communaute-6/596-terre-et-peuple-magazine-n-79-printemps-2019.html. Acesso em 01/10/2019 às 18:20. Ref e r ên c ias b ib l i o g r á f i ca s DUMÉZIL, G. Science et politique: response à Carlo Ginzburg. In: Annales. Economies, sociétés, civilisations. v. 40, n. 5, p. 985-989, 1985. DURANTON-CRABOL, A-M. La « nouvelle droite » entre printemps et automne (19681986). In: Vingtième Siècle, revue d’histoire, n°17, janvier-mars, p. 39-50, 1988. DURANTON-CRABOL, A.-M. Visages de la Nouvelle Droite: Le GRECE et son histoire. France, Presses de Sciences Po, 1988. FLOOD, C. The cultural struggle of the extreme right and the case of Terre et Peuple. In: Contemporary French Civilization, v. 24, n. 2, p. 241-266, 2000. 52 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. FRANÇOIS, S. Les paganismes de la Nouvelle Droite (1980-2004). Science politique. Université du Droit et de la Santé - Lille II, Francais, 2005. FRANÇOIS, S. La Nouvelle Droite et l’éclogie: une écologie népaïenne? In : Revue d’Histoire Politique, v.12, n.2, p. 132-143, 2009. GOODLIFE, G. Globalization, Class crisis and the extreme-right in France in the new century. In: Varieties of Right-wing extremism in Europe. Edites by Andrea Mammone, Emmanuel Godin and Brian Jenkins. UK, editora Routledge. 2013. GUINZBURG, C. Mythologie germanique et nazisme. Sur un livre ancien de Georges Dumézil. In: Annales. Economies, sociétés, civilisations. v. 40, n. 4, p. 695-715, 1985. HOBSBAWM, E. A invenção das tradições (Introdução). In: HOBSBAWM, Eric J., RANGER, Terence (Orgs). A invenção das tradições. Tradução de Celina Cardim de Cavalcante. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 09-23, 1984. HOBSBAWM, Eric. Sobre História. Tradução Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia da Letras, 2013. LEONI, T. Race et Nouvelle Droite. Artigo disponível em: www.ddt21.noblogs.org, 2018. Acesso em: 03/01/2019, às 20:06. LUKÁCS, G. Concepção aristocrática e concepção democrática de mundo. In: LUKÁCS, G. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Trad. Org. Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009. MILZA, P. L’europe en chemise noire: les extrêmes droites européennes de 1945 à aujourd’hui. Paris: Fayard, 2002. MOOS, O. Les intellectuels de la Nouvelle Droite e la religion: Histoire et idéologie d’um antichristianisme de droite (1968-2001). Mémoire présenté à l’Université de Fribourg (Suisse), 2003. PIERUCCI, F. A. Ciladas da diferença. São Paulo: Editora 34, 1999. SILVA, G. J. da; SILVA, J. da B. Identidade, diferença e racismo. In: Política da promoção da igualdade racial na escola. SILVA, José Carlos Gomes da; ARAÚJO, Melvina Afra Mendes de; SOUSA, Flávia Alves de (orgs.). São Paulo: Unifesp, 2017. SILVA, G. Um estudo de apropriações da Antiguidade sob o Regime de Vichy (1940-1944). São Paulo, FAPESP. 2007. SILVA, G. Guerra Étnica, Guerra Cultural, Guerra Total: a interpretação de dados históricos e arqueológicos sobre a Antiguidade pela revista de extrema direita francesa Terre et Peuple (1999 – 2016). Revista Phoînix, UFRJ. v.25, n.01, 2019 (no prêlo). TAGUIEFF, P-A. Sur la Nouvelle Droite. Paris: Descartes e Cie, 1994. Recebido em 10/9/2019 e aceito em 3/10/2019. 53 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Cristianismo paulino e a moral estoica: o caso da apátheia Ian Ferreira Bonze Graduando em História (UFRJ) Bolsista de Iniciação Científica do CNPq ian_bonze@hotmail.com Orientador: Prof. Dr. Deivid Valério Gaia (UFRJ) Res u mo Um tema característico da filosofia estoica é a perseverança perante as tribulações e o sofrimento, consideradas como paixões. Os estoicos, entretanto, buscavam uma vida marcada pela apátheia, isto é, a ausência de paixões. Tendo maior proeminência no século I d.C., o estoicismo se tornou a principal filosofia do Império Romano, sendo reconhecido pela sua moralidade. O Mediterrâneo antigo era, neste período, marcado por uma ampla rede de conexões que se estendeu por toda a extensão territorial, rearticulando as fronteiras internas e externas, garantindo um fluxo de bens, pessoas, credos, filosofias etc.. Imerso nesse novo sistema, o cristianismo paulino surge enquanto novo movimento filosófico-religioso, expandindo-se para além das fronteiras externas da Palestina judaica e se estabelecendo ao longo das regiões banhadas pelo mar Mediterrânico. Com base na teoria da História Comparada, desenvolvida por Marc Bloch, o objetivo desse artigo é analisar a moral presente em ambas as manifestações culturais, à luz do fenômeno de integração do século I d.C., a fim de compreender o impacto do estoicismo imperial sobre o cristianismo paulino. Tal estudo parte da análise da Carta de Paulo aos Romanos e das Cartas de Sêneca a Lucílio, tendo como foco principal a apátheia. Pa lav r as - chav e cristianismo; estoicismo; apátheia; Mediterrâneo antigo; Império Romano. Abs t r ac t A characteristic theme of Stoic philosophy is perseverance in the face of tribulation and suffering, considered as passions. The Stoics, however, sought a life marked by apátheia, that is, the absence of passions. Most prominent in the first century AD, Stoicism became the main philosophy of the Roman Empire, being recognized for its 54 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. morality. The ancient Mediterranean was, in this period, marked by a wide network that extended throughout the territorial extension, rearticulating the internal and external borders, ensuring a flow of goods, people, creeds, philosophies etc. Immersed in this new system, Pauline Christianity emerges as a new philosophical-religious movement, expanding beyond the external borders of Jewish Palestine and settling along the regions bordering the Mediterranean Sea. Based on the theory of Comparative History, developed by Marc Bloch, the aim of this paper is to analyze the morality present in both cultural manifestations, in the light of the first century AD integration phenomenon, in order to understand the impact of imperial stoicism on the Pauline Christianity. This study is based on the analysis of Paul’s Letter to the Romans and the Seneca’s Moral Letters to Lucilius, focusing on apátheia. Key w or ds Christianity; stoicism; apátheia; ancient Mediterranean; Roman Empire. Um tópos importante na filosofia estoica é a relação virtude versus paixão. Pertencente ao campo da moral, esta relação se torna fundamental para que possamos compreender todos os aspectos relacionados à vida prática dentro deste sistema filosófico. Diversas correntes filosóficas também apresentam esta dualidade; entretanto, o que diferenciava o estoicismo, em sua especificidade, comparando-o às demais filosofias do período greco-romano, era seu caráter naturalista. A própria moralidade era compreendida como um fenômeno natural. Dessa forma, ter uma ação moral não era a realização de uma luta contra a própria natureza, mas o seu desenvolvimento integral (BENATOÏL, 2013, p. 117). A moral estoica, portanto, deveria ser pensada a partir do seu ponto de partida – o impulso (hormé) –, que explica os próprios movimentos dos seres. Esse impulso faz com que, mesmo os bebês e/ ou animais, possam ser atraídos pelo que lhes parece apropriado (oikeîon) – como o alimento – e os faz fugir do que lhes parece estranho – como os predadores. Isso não lhes é ensinado, vem pela própria natureza, por meio de uma apropriação (oikeíosis) em relação a si mesmos1. Esse desejo de conservar a si mesmo é a primeira noção entre o que seriam as “coisas naturais”, que os conservam, e as coisas “contra a natureza”, que os prejudicam. O fator diferencial entre os seres humanos e os animais é, no entanto, a capacidade do uso da razão (lógos), que surge como moderadora desses impulsos, dividindo-os entre convenientes (kathêkon) e inconvenientes. Somente a razão pode fazer com que o homem alcance a virtude, pois o fará selecionar, entre as coisas naturais, o que é conveniente. Vale ressaltar que o sistema moral estoico era dividido em três campos: a virtude, a paixão e os indiferentes. A paixão (páthos) é, nesse sentido, um impulso irracional, gerado a partir de uma falsa opinião, que toma como bem aquilo que deveria ser tratado como indiferente. A paixão é uma perversão da razão (BENATOÏL, 2013, p. 124). 1 Sêneca trata sobre essa relação entre os animais e a oikeíosis em Sen. Ep. 121. 55 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Se todas as coisas são naturais no estoicismo e a virtude é a capacidade do homem escolher, racionalmente, pelas coisas naturais, parece que os homens jamais poderiam escolher algo que fosse contrário à natureza. Entretanto, na área dos indiferentes, os homens podem cometer erros e acertos, uma vez que não é a ação em si que tem valor moral nesse sistema, mas ela pode ser preferível, ou não. Um indiferente seria, portanto, aquilo que não é bom (virtude), nem mal (paixão) em si mesmo. Dessa maneira, seguindo seu impulso, o homem seria levado a escolher sempre a vida, segundo a natureza, pois a sobrevivência é um impulso natural. Todavia, o sistema moral estoico prevê que, em alguns casos, a morte pode se tornar preferível. Os indiferentes formam uma instância que é independente dos bens e males e, por isso, são delimitados pela escolha do sujeito através do uso da razão (GAZOLLA, 1999, p. 103). A partir do século I d.C., o estoicismo já não era mais uma escola filosófica, como em tempos precedentes, mas diversos autores elaboraram tratados com base em sua doutrina moral, tais como Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio. Segundo Long, por ser uma visão de mundo ampla, o estoicismo se tornou um sistema de pensamento no qual os indivíduos tinham a liberdade para impor a sua própria marca (LONG, 2013, p. 199). Ao refletirmos acerca dessa corrente filosófica no período imperial romano, em que os nomes supracitados são considerados os mais importantes, podemos verificar a diferença no que seria a moralidade para cada um deles. Em Sêneca, o sistema moral pressupunha a relação de um sujeito para com os outros, como se fossem suficientemente aparentados entre si, não havendo lugar para tensões significativas entre o egoísmo e o altruísmo. A apropriação (oikeíosis) mencionada no início desse artigo, para Sêneca, está sempre acompanhada da apropriação (oikeíosis) em relação ao outro, aos “lações naturais” entre os sujeitos. Na perspectiva de Long, esses “lações naturais” devem ser compreendidos a partir de um sentido normativo, isto é, torna-se necessário para a constituição do ser humano o cuidar do bem do outro, tanto quanto do próprio bem, além de não buscar o próprio interesse à custa do outro (LONG, 2013, p. 200). A primeira identidade do sujeito, enquanto participante da natureza, torna-se, em primeiro lugar, a participação do Todo, o sujeito tem sua inteireza como uma polis; e, secundariamente, como a parte de uma comunidade local. Assim, tanto o mestre quanto o aluno estoicos seriam capazes de se adaptarem socialmente à maioria das ocasiões em que se encontrassem, uma vez que os valores fundamentais do estoicismo estavam baseados na virtude do caráter, o que não depende de acontecimentos externos, nem de funções oficiais que o sujeito possa exercer. Há, então, uma originalidade que se pode verificar no estoicismo imperial, embora ligado ao debate antigo da moralidade, que é a noção de moral prática, ou aplicada. O aconselhamento prático estaria centrado na determinação de que algumas ações seriam “apropriadas”, bem como no estabelecimento, na vida dos sujeitos, da relação correta entre ter vantagens “preferíveis” e agir de maneira virtuosa, ou fazer progressos em relação à virtude. A paixão (páthos) passa a ser tratada como uma doença que pode ser curada por meio da análise de sua origem e de sua própria natureza, o que ocorre por meio do aconselhamento (GILL, 2006, p. 44). O homem 56 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. virtuoso seria aquele que realiza, em relação ao que é virtuoso, uma “escolha de vida”. O sujeito passa a implicar toda a sua existência na realização incondicional pelo que é desejável e por aquilo que possui mérito em si próprio. Em sua vida dedicada ao bem, há situações em que ele obtém ou recusa um indiferente (BENATOÏL, 2013, p. 133). As paixões, por isso, são juízos errôneos. O ideal da moralidade é, então, uma vida de apátheia, ou seja, ausente de paixões. A finalidade é viver de acordo com a natureza, que seria viver de acordo com a virtude e, consequentemente, alcançar a felicidade. O século I d.C. foi um momento decisivo para a expansão dos ideais estoicos pelo território do Império Romano. A partir das Guerras Púnicas (264 a.C. – 146 a.C.), o Mediterrâneo antigo vivenciou um amplo processo de integração em que houve articulações das fronteiras internas de cada comunidade local, bem como de suas fronteiras externas. Com o passar dos séculos, segundo Guarinello, as localidades ao longo do Mediterrâneo transformaram-se constantemente; tais localidades foram construindo relações cada vez mais concretas, redes de conexões mais sofisticadas, que se acumularam (GUARINELLO, 2014, p. 53). Quando Roma conquistou a região oriental do mar mediterrânico e, por fim, configurou-se enquanto mare nostrum, o resultado foi uma integração de todas as terras dominadas. As fronteiras políticas e sociais das mais diferentes partes se uniformizaram paulatinamente, o que possibilitou o trânsito de informações, de bens, de técnicas e de pessoas, sem precedentes (GUARINELLO, 2010, p. 119). Roma, nesse sentido, construiu uma integração pelo poder, tendo tornado, nesta nova configuração, todos os poderes locais como dependentes do poder central, o que implicava diretamente em novas formas de inclusão e exclusão sociais. Embora essa característica tenha origem na República romana, é essa mentalidade que se tornou a identidade da sociedade romana no século I d.C.. Ainda, a partir do encontro entre a cultura romana e a cultura helenística, na parte oriental do Mediterrâneo, um movimento geral de trocas entre ambas as culturas se estabeleceu. É nesse processo que o estoicismo foi abrangido pelo Império Romano. O fluxo de novidades que estava se abrindo no Império, entretanto, era comandado também pelo poder central. Segundo Hadrill, a expansão de Roma foi um processo duplo. Os valores da cultura grega foram absorvidos pelos romanos – processo de helenização de Roma – ao passo que, por meio da conquista romana no Mediterrâneo, tais valores foram sendo difundidos com características romanas, num processo de romanização (HADRILL, 2008, p. 10). A bacia mediterrânica se tornou um grande espaço de trocas, uma ampla fronteira em que ocorria uma enorme troca multilateral, com influências vindas de todos os lugares e, a partir de Roma, fluíam para todos os lugares. Hadrill defende que essas culturas sobreviviam na pluralidade ao lado de outras, podendo ser discrepantes, paralelas, coexistentes ou exercerem influências umas sobre as outras (HADRILL, 2008, p. 13). Os sistemas sociais, a possibilidade de manutenção das identidades locais, as mudanças nas fronteiras internas e externas de cada comunidade etc., tornaram-se fatores essenciais para o desenvolvimento do estoicismo imperial e, também, para o surgimento de novos fenômenos culturais, os quais, imersos nessa realidade integrada, foram igualmente por ela afetados. 57 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Um fenômeno muito importante que surge no século I d.C. é o que hoje conhecemos como cristianismo. Embora tendo origem na região da Palestina judaica, mais precisamente no reino-cliente da Judeia, a partir das pregações de Jesus de Nazaré, esse novo movimento filosófico-religioso superou as fronteiras externas, arraigando-se, desde logo, nas relações existentes no século I d.C., na Ásia Menor, dominada, principalmente, pela cultura helenística. Paulo de Tarso se torna a figura-chave para compreendermos esse processo. Nascido em Tarso da Cilícia (At., 21), Paulo teve contato, desde cedo, com a cultura helenística. Sua cidade natal, segundo o geógrafo Estrabão, tinha os seus cidadãos como superiores aos alexandrinos e atenienses nas suas escolas e ensinos dos filósofos (Str., 14.5.12-15). Atenodoro, professor do imperador Augusto, por exemplo, era oriundo de Tarso. Embora nascido fora da Palestina, o apóstolo era, sem dúvidas, judeu; mais especificadamente, da linhagem de Benjamin. Além disso, sua formação judaica estava ligada à corrente farisaica da interpretação da lei (Fp., 3.4-6), o que lhe confere um caráter moralista, revestindo-o de certa legitimidade pessoal para perseguir os primeiros cristãos (SEGAL, 2005, p. 160). Paulo era, então, um fariseu na diáspora e, por isso, havia vivenciado dois ambientes simultaneamente; aprendeu a ler e escrever o grego e desenvolveu seu ministério apostólico pregando nas comunidades judaicas da diáspora na Grécia e na Ásia Menor, onde fundou suas comunidades cristãs. Assim, ao escrever suas cartas, Paulo manteve uma dupla mentalidade: o judaísmo e o helenismo. Dessa forma, o conteúdo presente nas cartas escritas pelo apóstolo e que foram endereçadas às comunidades cristãs do século I d.C., fundadas por ele, ou não2, trazem consigo diversos elementos de sua dupla formação. Um desses elementos é a moral. Ao analisar essa moralidade do cristianismo paulino à luz dos fenômenos de integração do Mediterrâneo romano, percebemos que há uma similaridade entre esta manifestação cultural e o estoicismo imperial. Embora Paulo de Tarso e Sêneca tenham pertencido a camadas sociais distintas, além do fato do cristianismo paulino ter se desenvolvido, em sua maior parte, na Ásia Menor, ao passo que o estoicismo senequiano estivesse circunscrito a Roma, tais fenômenos históricos e culturais são frutos de sociedades vizinhas e contemporâneas. Não obstante o Império Romano tivesse estendido seu poder hegemônico sobre toda bacia mediterrânica, as localidades mantinham suas características e sua identidade cultural. Dessa maneira, buscamos compreender a relação entre a moral paulina e a moral estoica, sobretudo senequiana, à luz da teoria da História Comparada, tal como desenvolveu o historiador Marc Bloch. Para este, a comparação na História se dá a partir do estudo de fenômenos cujo desenvolvimento está submetido às influências mútuas, causadas pela proximidade e pelo sincronismo entre ambos. Assim, para que possa ser realizada uma análise em termos da História Comparada, torna-se necessário que se satisfaça duas condições essenciais: a primeira, precisa haver semelhança entre os fenômenos que estão sendo observados no processo analítico; segundo, é necessário que haja dissemelhança entre os meios em que tais fenômenos ocorreram (BLOCH, 1998, p. 120, 121). Para comparar, portanto, a moral estoica senequiana e a moral 2 Um exemplo disso é a própria Carta aos Romanos que foi escrita para uma comunidade cristã que Paulo não conhecia, o que implica em afirmar que Paulo não havia sido seu fundador. 58 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. paulina, analisaremos as Cartas de Sêneca a Lucílio e da Carta de Paulo aos Romanos. Escritas nos anos finais da vida de Sêneca – entre 62 d.C. e 65 d.C. – as Cartas de Sêneca a Lucílio são consideradas sua obra principal, pois foi a responsável, segundo Inwood, por relacionar a sua figura à de moralista, sobretudo a partir do intenso interesse de Michel Foucault e Pierre Hadot, que transformaram não somente a figura de Sêneca, mas a própria compreensão do estoicismo durante o período imperial romano, caracterizando-o como mais moralista do que os demais períodos desta filosofia (INWOOD, 2007, p. 133). Esse corpus é uma coleção de cartas que teria como destinatário um amigo do filósofo chamado Lucílio, o qual, a princípio, encontrava-se na Sicília, exercendo atividades relacionadas ao funcionalismo imperial, e que, posteriormente, ao se desvencilhar dos cargos públicos, ora residiu na Sicília, ora em outros lugares não determinados. Sêneca, entretanto, seria um ancião que teria abandonado todos os cargos, vivendo retirado e dedicando o restante de sua vida ao estudo e à meditação. Dessa forma, o filósofo surge como um guia espiritual, não somente para Lucílio, mas para os leitores de suas cartas, que, sem dúvidas, haviam sido escritas para publicação. Sêneca assume em suas cartas a missão de fazer-se, continuamente, de guia moral para o leitor em busca da virtude. Sua reflexão moral, caracterizada pela noção de moral prática, relaciona-se sempre com a experiência cotidiana. A Carta de Paulo aos Romanos, por sua vez, foi escrita durante a estadia do apóstolo em Corinto, no inverno de 55-56 d.C., marcando o final de sua missão na região do mar Egeu. Esse momento seria marcado pelo fortalecimento das comunidades cristãs que já haviam sido fundadas por Paulo, pela organização da entrega de uma coleta realizada entre as comunidades a fim de ajudar a que estava situada em Jerusalém, e, depois, pela preparação para sua viagem ao ocidente, conforme era o seu desejo (KOESTER, 2016, p. 151-153). Além de ser a carta cujo destinatário é o mais distante geograficamente, essa correspondência é a que traz o maior esforço paulino no que se refere à composição e argumentação do seu evangelho, o que nos mostra maior maturidade argumentativa por parte do apóstolo ao compararmos com as demais cartas. Ademais, a Carta de Paulo aos Romanos é importante para demonstrar o quão extensa se tornou a rede de influências estabelecida por Paulo em direção ao ocidente do Mediterrâneo antigo, local que Paulo ainda não havia explorado (CARVALHO, 2017, p. 58). Com relação ao seu conteúdo, sua peculiaridade reside no fato de não estar restringido à resolução de problemas internos da comunidade cristã. Paulo não conhecia a comunidade de Roma (Rm., 15.22-24), pelo que esta carta se tornou um tipo de carta de recomendação do apóstolo acerca de si mesmo. Há diversas analogias possíveis entre o conteúdo da Carta de Paulo aos Romanos e o estoicismo imperial presente nas Cartas de Sêneca a Lucílio, pelo que, devido ao limitado espaço do presente artigo, focalizaremos no tema da apátheia estoica, discutida acima. A apátheia, que seria o ideal estoico, passa também a ser o ideal cristão, na correspondência paulina. A paixão, que para os estoicos é um mal, o contrário da virtude, para Paulo também o é. No início da própria Carta de Paulo aos Romanos, o autor relaciona a noção estoica de paixão com a noção judaico-cristã de pecado: “Por isso, Deus os entregou a paixões aviltantes [...]” (Rm., 1.26). A partir disso, Paulo 59 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. elabora uma conhecida lista de paixões (Rm., 1.28-31), referindo-se, também, a elas com base no sistema moral da tradição estoica. Conforme apresentado acima, o estoicismo identificava a paixão, no período imperial, como uma doença, aquilo que é contrário à natureza e, portanto, como uma deformação da razão. Uma vez que a razão escolhe sempre o que lhe é conveniente, o que é segundo a natureza, sua escolha será sempre virtuosa. Entretanto, quando racionalmente o sujeito escolhe pelo inconveniente, então sua ação é uma paixão. O apóstolo inicia essa lista de paixões argumentando que: “[...] como não julgaram bem ter o conhecimento de Deus, Deus os entregou à sua mente incapaz de julgar, para fazerem o que não convém (tà mè kathékonta)” (Rm., 1.28). Essa paixão tem sua origem, na argumentação da carta, em uma insuficiente ou equivocada apreciação de Deus. Segundo Engberg-Pedersen, mesmo na lista de paixões apresentada pelo autor, não se trata somente de ações ou tipos de ações, mas de estados mentais, indicando que Paulo não estava se referindo a pessoas que são viciadas (ENGBERG-PEDERSEN, 2008, p. 554). O desejo (epithéymias) que leva à impureza (akatharsían), em Paulo, passa a ser, portanto, fruto do pecado em que o corpo do cristão estava sujeito, conforme se observa: “Portanto, que o pecado não impere mais em vosso corpo mortal, sujeitando-vos às suas paixões (epithéymias)” (Rm., 6.12). Dessa maneira, uma vida marcada pela ausência de paixões seria uma vida correta diante do divino, o que se coaduna com o pensamento estoico. Segundo Friedrickson, nenhum outro texto demonstra melhor a familiaridade de Paulo com o discurso estoico referente às tribulações e sofrimento do que Rm., 5.1-11 e 8.18-39 (FRIEDRICKSON, 2008, p. 163). Havia na filosofia estoica o ensinamento de que a razão ou a virtude seria a solução para o problema do sofrimento. Paulo, porém, apresenta a ideia de um sofrimento compartilhado. A moral estoica também compreendia a noção de que os amigos compartilhavam tudo, tanto a alegria, quanto o sofrimento e até a morte3. Paulo desenvolve esse raciocínio, expandindo-o radicalmente, até que possam estar inclusos tanto Deus, Jesus e o Espírito Santo, quanto toda a criação, conforme se observa: P ois sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores de parto até o presente. E não somente ela. Mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos interiormente, suspirando pela redenção do nosso corpo [...] Assim também o Espírito socorre a nossa fraqueza. Pois não sabemos o que pedir como convém; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis (Rm., 8.22-26). A grande novidade paulina dentro das listas de tribulações do capítulo oitavo é justamente situá-las no contexto da amizade. O intuito seria demonstrar como elas não podem separar o homem do amor de Deus. Afinal, mesmo no sistema filosófico estoico, a separação seria o maior problema que uma amizade poderia enfrentar (Sen. Ep 55.8-11; 63.3), e Paulo a cita duas vezes, uma no versículo 35 e outra no 3 Para a noção do compartilhamento entre amigos, cf. Sen. Ep. 6.2; 48.2-4. 60 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. versículo 39. Se o sofrimento era o momento em que a virtude seria treinada ou demonstrada no sistema filosófico, Paulo vai além e apresenta as tribulações não somente como formadoras do caráter, mas também como algo que não impede a amizade entre Deus e os homens, conforme se observa: E não é só. Nós nos gloriamos também nas tribulações, sabendo que a tribulação produz a perseverança, a perseverança a virtude comprovada, a virtude comprovada a esperança. E a esperança não decepciona porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado. (Rm., 5.3-5). O clímax da tentativa paulina em reconstruir o tema da amizade como ponto de partida para a explicação da questão das tribulações e sofrimento se dá, então, em Rm 8.18-34, em que Paulo defende em tom conclusivo o poder da simpatia – no sentido de sofrer junto – de um amigo ao consolar o sofredor. Na perspectiva de Friedrickson, Paulo estaria comentando a consolação da amizade como uma alternativa ao método filosófico de lidar com o sofrimento a partir do controle racional (FRIEDRICKSON, 2008, p. 167), sobretudo porque a construção paulina apresenta quatro agentes que partilham de todo o sofrimento da humanidade, a saber, a criação, o Espírito, Deus, Cristo. A relação amistosa entre a criação e os seres humanos, entretanto, também era um tema comum na tradição filosófica estoica, em que a própria natureza se sujeita à futilidade. Sêneca escreve acerca de Catão ter perdido o cargo de pretor: D e resto, porque razão não havia ele de encarar com coragem e equanimidade esta transformação da república? Há alguma coisa que esteja isenta do perigo da mudança? Não o está a terra, nem o céu, nem toda esta máquina do universo, embora se mova por ação da divindade; o mundo não conservará sempre a ordem atual, um dia virá que o há-de desviar do presente curso [...] A natureza, embora as respectivas durações sejam diferentes, destina ao mesmo fim todos os seres: o que é, deixará de ser, não porque seja aniquilado, mas porque se transforma. (Sen., Ep., 71. 12-13). As aflições, tribulações e sofrimentos passam a ter um novo tom na perspectiva tanto paulina quanto senequiana. O que para alguns poderia ser motivo de tristeza, para estes passa a ter um caráter de encorajamento se o sofredor passasse a compreender que todas as coisas que existem devem necessariamente sofrer e perecer, que nada é eterno. Paulo realiza conexões com o pensamento filosófico, aproveitando-se das nuances de cada lugar comum estabelecido. Outro exemplo que facilita a compreensão, em que parece que o apóstolo está desafiando a tradição filosófica, é o emprego da expressão “somos mais do que vencedores” (hypernikômen). Friedrickson argumenta que o motivo da vitória era uma metáfora popular característica da superioridade do sábio sobre as tribulações, pois este é invencível, e, por isso, 61 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. também vence as tribulações; as almas inferiores, porém, são vencidas pelo destino (FRIEDRICKSON, 2008, p. 166). O apóstolo está, nesse sentido, afirmando a confiança do cristão na razão – equiparando-o ao sábio da filosofia – ao trazer, para a sua discussão acerca dos sofrimentos e tribulações, o tema da vitória. Sêneca termina um discurso sobre o sofrimento da seguinte maneira: Q uando nos será dada a faculdade de dominar todas as paixões, de submetê-las à nossa vontade, de poder enfim dizer esta palavra: “venci!”? Perguntas-me quem é que eu pretendo vencer? Não são os Persas, nem as últimas tribos da Média, nem os povos guerreiros que porventura existam para além da Dácia, mas sim a avidez, a ambição e o medo da morte – que até dos grandes conquistadores do mundo saiu vencedor! (Sen., Ep., 71.37). A vitória sobre as coisas terrenas surge como algo que deve brotar dentro do próprio sujeito. Cada um tem dentro de si a capacidade suficiente para a apátheia por meio do uso da razão. Paulo, entretanto, não estabelece assim sua argumentação. Embora todos os cristãos possam ser considerados “mais do que vencedores” sobre todas as coisas, essa vitória não é mérito individual. Cada um só pode ser vencedor por conta da sua amizade com Deus: “Mas em tudo isto somos mais que vencedores, graças àquele que nos amou” (Rm., 8.37). Friedrickson indica que, para a tradição filosófica, parece ridículo e até mesmo um insulto à providência divina considerar que a vitória pode ser alcançada por outro meio, uma vez que dentro de cada alma humana existe um fragmento da razão divina (FRIEDRICKSON, 2008, p. 167). Dessa maneira, embora inicialmente pareça que Paulo estaria afastando sua argumentação da tradição moral estoica, há uma aproximação por vias diferentes. Seu pensamento acerca das tribulações e sofrimentos não se dá a partir da consideração de que é uma ocasião para se treinar a razão humana. O sofrimento passa a ser a confirmação da amizade; nesse caso, a amizade entre o cristão e Deus. Partindo, portanto, do relacionamento entre o sujeito e o divino, a vida poderia ser, para Paulo, uma completa ausência de paixões e, com isso, marcada pela virtude. Somente o exercício racional poderia fazer, então, os cristãos da comunidade de Roma experimentarem a vontade divina (Rm., 12.1-2) e, a partir disso, experimentarem, também, a virtude. Paulo escreve: Q ue vosso amor seja sem hipocrisia, detestando o mal e apegados ao bem; com amor fraterno, tendo carinho uns para com os outros, cada um considerando os outros mais dignos de estima. Sede diligentes, sem preguiça, fervorosos de espírito, servindo ao Senhor, alegrando-vos na esperança, perseverando na tribulação, assíduos na oração, tomando parte nas necessidades dos santos, buscando proporcionar a hospitalidade (Rm., 12.9-13). 62 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. A partir esta exposição das analogias e semelhanças entre ambos os movimentos que se desenvolveram sob o Império Romano, não temos dúvidas de que o cristianismo paulino foi fundamentado em diversos elementos constituintes da tradição moral filosófica estoica. O próprio Império possibilitou a influência do estoicismo sobre o cristianismo, a partir não somente da integração mediterrânica garantida pelo mare nostrum, mas também devido à rearticulação e redefinição das fronteiras internas, desenvolvendo uma ampla rede de contatos. A documentação, sem dúvidas, nos impede de identificarmos a “origem” dessa influência. Ao realizarmos, entretanto, uma análise comparada, levando em consideração que o estoicismo foi uma corrente filosófica que surgiu na Atenas clássica, no século III a.C. e se desenvolveu ao longo dos séculos, ao passo que o cristianismo paulino surgiu somente no século I d.C., podemos concluir que o cristianismo foi influenciado pelo estoicismo. Não ousamos, porém, falar em termos de hibridização, crioulização, aculturação etc. para nos referirmos a este fenômeno, haja vista que o cristianismo paulino não foi uma criação de algo novo a partir do encontro de duas ou mais culturas, mas sim o surgimento de um fenômeno imerso em todas as relações mediterrânicas, e que se desenvolveu paralelamente aos demais fenômenos de seu tempo, coexistindo e sofrendo influências. O Império Romano possuiu uma extensa faixa de terra que reuniu diversas realidades sociais, econômicas, políticas e principalmente culturais. Estas culturas, porém, não participavam da delimitação de fronteiras. Podemos falar de judaísmos fora da Judeia, de estoicismo fora de Atenas e de cristianismo fora da Palestina. Além disso, a necessidade de escrever para alguém que estivesse distante em um território tão plural faz com que a própria argumentação também seja plural, a fim de que o destinatário compreenda bem o conteúdo da correspondência. Utilizar as estradas para entregar a mensagem ou publicar as cartas com o objetivo de que muitos indivíduos pudessem ter acesso ao seu conteúdo, faz com que elas se aproximem da própria proposta do Mediterrâneo integrado, que é a circulação de informações por toda extensão territorial. Um novo caminho para a discussão da integração mediterrânica se abre quando refletimos acerca da influência de uma filosofia sobre um movimento religioso. Assim, outros fenômenos que se encontram no período imperial romano também poderão ser compreendidos, à luz da História Comparada, como participantes desse processo integrador e, por isso, coexistentes, paralelos e causadores de influência uns sobre os outros. O cristianismo paulino surge, assim, como uma manifestação filosófico-religiosa do século I d.C., imerso nas relações de seu tempo, e, por isso, moralmente fundamentado no estoicismo imperial. Todos nós somos fruto do nosso contexto e Paulo certamente não poderia fugir dessa realidade. Li s ta d e ab r eviaçõ e s Sen., Ep., - Seneca, Epistulae (Sêneca, Cartas a Lucílio). Str., - Strabo, Geographus (Estrabão, Geografia). 63 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Rm - Carta de Paulo aos Romanos Fp - Carta de Paulo aos Filipenses At - Atos dos Apóstolos Font e s BÍBLIA. Bíblia de Jerusalém. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2013. NOVUM TESTAMENTUM GRAECE. Based on the work of Eberhard and Erwin Nestle. 28th Revised Edition. Münster/Westphalia: Institute for New Testament Textual Research, 2012. SÊNECA. Cartas a Lucílio. Tradução, prefácio e notas de J.A. Segurado e Campos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014. SENECA. Moral Essays I. (Loeb Classical Library) John W. Basore (ed.), Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1928. STRABO. The Geography of Strabo VI. (Loeb Classical Library) Horace Leonard Jones (ed.), Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1960. Ref e r ên c ias Bib l i o g r á f i ca s BENATOÏL, T.. A virtude, a felicidade e a natureza. In: GOURINAT, J. –B; BARNES, J. Ler os estoicos. São Paulo: Edições Loyola, 2013. p. 117 – 134. BLOCH, M.. Para uma história comparada das sociedades europeias. In: BLOCH, Marc. História e historiadores. Lisboa: Teorema, 1998. p. 119- 150. CARVALHO, A. A formação das primeiras Ekklesiai no Mediterrâneo antigo: fronteiras e integração nas epístolas de Paulo de Tarso. 2017. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Ouro Preto, Minas Gerais. ENGBERG-PEDERSEN, T. Paulo, as virtudes e os vícios. In: SAMPLEY, J. Paul. Paulo no mundo greco-romano. São Paulo: Paulus, 2008. p. 535 – 558. FRIEDRICKSON, D. E. Paulo, as tribulações e o sofrimento. In: SAMPLEY, J. Paul. (org.). Paulo no mundo greco-romano: um compêndio. São Paulo: Paulus, 2008. p. 147 – 170. GAZOLLA, R.. O ofício do filósofo estoico: o duplo registro do discurso da Stoa. São Paulo: Edições Loyola, 1999. GILL, C.. A escola no período imperial romano. In: INWOOD, B. Os estoicos. São Paulo: Odysseus, 2006. p. 35 – 64. GUARINELLO, N.. História Antiga. São Paulo: Contexto, 2014. 64 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. _____________, N.. Ordem, integração e fronteiras no Império Romano: um ensaio. Revista Mare Nostrum, São Paulo, v.1, p. 113 – 117, 2010. KOESTER, H.. Introdução ao Novo Testamento – vol. 2: história e literatura do cristianismo primitivo. São Paulo: Paulus, 2016. LONG, A. A ética: continuidades e inovações. In: GOURINAT, J. –B; BARNES, J. Ler os estoicos. São Paulo: Edições Loyola, 2013. p. 197 – 220. SEGAL, A. F. Paul’s Jewish presuppositions. In: DUNN, J. D. (ed.). The Cambridge Companion to St Paul. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2005. p. 159 – 172. WALLACE-HADRILL, A. Rome’s Cultural Revolution. Reino Unido: Cambridge University Press, 2008 Recebido em 11/9/2019 e aceito em 4/10/2019. 65 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Aspectos performativos e musicais do Ditirambo 2 de Píndaro w Eduardo Souza Campos Graduando em Letras – Português (UnB) victoredusc@gmail.com Orientadora: Doutora Agatha Bacelar (UnB) Res u mo Sabe-se que o ditirambo integrava uma festa em honra de Dioniso. O presente trabalho tem por objetivo apresentar o Ditirambo 2 de Píndaro dedicado a Tebas, mas a festa tebana na qual o poema foi executado é uma questão em aberto. Porém, uma vez que a ocasião de performance participa ativamente das significações do poema, tanto por suas funções pragmáticas quanto por servir de referência enunciativa de seus enunciados, propomos, ainda que hipoteticamente, a identificação da festa tebana para a qual esse ditirambo foi composto, tornando-se um ponto de grande pertinência para a análise de suas significações. Com isso, a problemática do presente trabalho se situa no campo da reconstituição tanto da ocasião de performance do referido fragmento pindárico quanto dos possíveis efeitos de sua sonoridade no grego antigo. Por fim, a pesquisa propõe uma tradução do Ditirambo 2 em português do Brasil considerando os aspectos sonoros do poema. Pa lav r as - chav e Ditirambo; Píndaro; Dioniso; Música; Performance Abs t rac t It is known that the dithyramb was part of festivities in honor of Dionysus. The present work aims at presenting Pindar’s Second-Dithyramb, although the Theban party in which the poem was performed is an open question. However, since the performance occasion actively builds the significations of the poem, both for its pragmatic functions and for serving as an enunciative reference of its statements, we propose, even hypothetically, the identification of the Theban party for which this dithyramb was composed, becoming a point of great relevance for the analysis of its significations. Thus, the problem of the present work lies in the field of the reconstitution both of the performance occasion of the aforementioned Pindaric fragment and of 66 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. the possible effects of its sonority in the ancient Greek. Finally, this research proposes a translation of Pindar’s Second-Dithyramb in brazilian portuguese considering the sound aspects of the poem. Key- w or ds Dithyramb; Pindar; Dionysos; Music; Performance A cultura grega antiga era calcada na oralidade na qual performances eram usuais nas cerimônias religiosas em honra aos deuses. As poesias não eram feitas simplesmente para leituras, não existiam somente em textos, estando distantes do termo ‘poesia’ e mais perto do termo ‘melodia’ (RAGUSA, 2013, p. 13). Kowalzig e Wilson (2013) organizam um volume dedicado ao estudo do ditirambo, reconhecendo o gênero não mais como uma mera ferramenta da crítica literária, mas como evidência de uma “música cultual” localizada em tradições locais, passando por transformações rumo aos espetáculos nos teatros da Atenas clássica. A suposta linearidade na evolução do ditirambo é questionada pelos autores que, por sua vez, iluminam alguns episódios importantes na história do gênero: as inovações narrativas que são incluídas pelo citarista Árion de Metina; a mudança feita por Laso de Hermíone de uma procissão linear para um formato circular, ao mesmo tempo em que instituía o caráter agonístico rumo a “espetacularização” do gênero (KOWALZIG & WILSON, 2013, p. 1-2). Para além de uma mera ferramenta literária, o ditirambo deve ser entendido como um hino cultual. Etimologias antigas da palavra hino (hýmnos) sugerem um sentido conotativo de celebração ou louvor. Já no período clássico, Platão faz uma distinção entre enkômios (ἐγκώμιος) e hýmnos (ὕμνος) – um era dedicado aos homens e o outro, aos deuses: “Quanto à poesia, somente se deve receber na cidade hinos aos deuses e encômios aos varões honestos, e nada mais”1 (Pl., R. 607a). Furley e Bremer (2001a, p. 11) citam outra passagem de Platão (M. 700b.1-5.) em que é fornecida uma taxonomia antiga dos hinos como músicas religiosas dedicadas aos deuses. O autor antigo nomeia os ditirambos, peãs e nómos como gêneros musicais distintos. Ao mencionar o ditirambo, Platão o relaciona com o nascimento do deus Dioniso. Já Proclo, neoplatônico do Séc. V d.C., marca a diferença entre “o hino propriamente dito e outros tipos como o peã e o ditirambo”: para ele, o “hino propriamente dito” compunha um tipo musical de louvor ou prece divina “cantada ao redor do altar do deus”. Com isso, ele localiza esses gêneros num culto a um deus específico. O ditirambo, por exemplo, compunha o conjunto de hinos a Dioniso, o peã, a Apolo (FURLEY & BREMER, 2001a, p.10). Além de apresentarem essa taxonomia de Proclo sobre a poesia lírica, Furley e Bremer (2001a, p.10) mostram outros aspectos salientados pelo autor antigo que são importantes para o estudo dos hinos em geral e do ditirambo em particular: o lugar da música na cerimônia; se acontece durante procissão ou acompanha o sacrifício; a ausência, a presença, ou até mesmo a natu1 Texto estabelecido e traduzido por Nasseti (2000, p. 306). 67 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. reza da coreografia; o tipo ou o modo do acompanhamento musical; as qualidades estéticas do som, a sua distribuição geográfica; a etiologia do culto referido (FURLEY & BREMER, 2001a, p.13). O texto dos poemas ditirâmbicos, segundo Kowalzig e Wilson (2013), é testemunho da “performance multimídia” original em que a poesia vinculada à melodia e à dança integrava o contexto dionisíaco2. Nestes contextos, estão em jogo algumas características performativas – “a idade, o gênero e o status dos cantores; a ocasião social e religiosa específica e a parafernália da performance” – que se perderam na Antiguidade (KOWALZIG e WILSON 2013, p. 4). Apesar disso, temos à mão boas edições de texto e comentários que nos permitem recuperar alguma parte da experiência perdida. Furley e Bremer (2001a, p. 13) fazem conjecturas acerca da classificação empregada pelos alexandrinos que parece seguir as definições de Platão sobre hinos. Na transmissão dos poemas, os Alexandrinos usaram um método de classificação possivelmente baseado em elementos composicionais, possibilitando a compilação desses poemas em livros distintos – tais como o livro de peãs, ditirambos e parteneus –, ficando os hinos em um livro separado que os editores e críticos modernos classificam como uma “miscelânea dos hinos” (FURLEY & BREMER, 2001a, p.11; RAGUSA, 2013, p. 28). Apesar das definições antigas de hino reverberar no possível critério de classificação empregado no período helenístico para os ditirambos de Píndaro e Baquílides, os alexandrinos parecem não ter se valido desse mesmo critério. No período alexandrino, os ditirambos de Píndaro preenchiam dois livros, porém desses nos chegaram apenas dois ditirambos dedicados a Argos, três a Atenas, um provavelmente para Corinto e o ditirambo dedicado a Tebas – apresentado neste trabalho3. O mesmo aconteceu com os poemas de Baquílides. Oliveira (2017, p. 21) nos mostra que os critérios que se serviram os alexandrinos na classificação em ditirambos dos poemas de Píndaro e Baquílides apresentam “uma série de dificuldades”. O autor ainda destaca a diferença entre a linguagem ritual notada nos ditirambos de Píndaro e a narrativa mítica presente nos ditirambos de Baquílides: no lugar da atmosfera dionisíaca, narrativas míticas sem relação com Dioniso constituem os ditirambos de Baquílides. Oliveira apresenta as hipóteses levantadas por outros autores sobre este tema de que houvesse dois tipos de poesia ditirâmbica: uma com caráter cerimonial (exemplificada pela produção pindárica) e outra com caráter agonístico (como os ditirambos de Simônides); ainda segundo Oliveira, esta hipótese não leva em conta a própria edição dos alexandrinos e o fato de Píndaro ter participado de competições (OLIVEIRA, 2017, p. 19-21). Muitas vezes a poesia de Píndaro foi exemplificada ora como “poesia ritual em 2 O termo “dionisíaco” e sua recepção na modernidade, sobretudo como “abstrações conceituais” em Nietzsche, tende a por em detrimento as “dimensões religiosas e suas manifestações concretas”, aproximando a divindade da humanidade. Bacelar (2018, p. 131) salienta a importância do afastamento entre os deuses e os mortais na religião grega antiga, não cabendo neste trabalho de filologia e literatura grega esse conceito nietszcheano da filosofia. 3 Cf. Kowalzig & Wilson (2013, p.5): Para Argos os ditirambos 2 e 4 (Fr. 70a e Fr. 70d); Para Atenas os Fr. 74a, fr. 75, Fr. 76-(?)8; o Dit. 2 (o presente Fr. 70b) dedicado à Tebas que também nos chegou parte em testemunhos antigos e um possivel ditirambo para Corinto (Dit. 3 = Fr. 70c). 68 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. oposição à poesia literária posterior, ora como uma reação contra essa suposta secularização do ditirambo através de uma restauração da ligação com Dioniso” (OLIVEIRA, 2017, p. 24). A narrativa nos ditirambos de Baquílides – que não possuíam relação com Dioniso – “foi interpretada como o resultado de uma atitude engajada do poeta em algum tipo de renovação” (OLIVEIRA, 2017, p. 24), tendo em conta tragédia em Atenas e o surgimento da Nova Música a seguir. De todo modo, aqui, o que nos interessa é a relação entre Dioniso e o ditirambo. Kowalzig e Wilson (2013, p. 8-9), depois de fazerem o levantamento das cidades4 que proclamaram a “paternidade do ditirambo”, reforçam a importância que o gênero possuía para as comunidades em questão. É percebida a linguagem dionisíaca nessas composições locais, atestando o estabelecimento do culto a Dioniso. Nessas cidades, os chamados “mitos de resistência” exercem um importante papel na etiologia do ditirambo: são mitos que tipicamente envolviam a rejeição a Dioniso pela comunidade. O corpus deste trabalho é um ditirambo composto para a cidade de Tebas que corresponde ao Fragmento 70b5, também conhecido como Ditirambo 2. O poema parece ter sido composto para tais contextos religiosos e sociais relacionados aos cultos de mistério. O espelhamento do rito humano no Olimpo parece situar a celebração em um contexto iniciático com a presença de deuses e deusas. Neste fragmento, observa-se o espelhamento do tíaso – que era uma fanfarra báquica humana – comemorado entre os olímpicos no modo “tal como, junto ao ceptro de Zeus” foram “estabelecidos” esses ritos. No primeiro e no último verso, encontramos respectivamente as palavras ditirambo (dithyrámbōn) e Dioniso (Diónise): ΗΡΑΚΛΕΣ Η ΚΕΡΒΕΡΟΣ – ΘΕΒΑΙΟΙΣ Πρὶν μὲν εἷρπε σχοινοτένειά τ’ἀοιδὰ διθ[υράμβων καὶ τὸ σὰ[ν κίβδηλον ἀνθρώποισιν ἀπὸ στομάτων· διαπέπ[τ]α[νται δὲ νῦν εὐo]μφά[λοῖς κύ]κλοισι νέα[ίαι, εὐ ε]ἰδότες, οἵαν Βρομίου [τελε]τὰν· καὶ παρὰ σκᾶ[πτ]ον Διὸς Οὐρανίδαι ἐν μεγάροις ἵ[στα]ντι. σεμνᾷ μὲν κατάρχει· Ματέρι πὰρ μ[εγ]άλᾳ ῥόμβοι τυπάνων ἐν δὲ κέχλαδ[εν] κρόταλ’ αἰθομένα τε δαῒς ὑπὸ ξαν[θα]ῖσι πεύκαις· ἐν δὲ Ναΐδων ἐρίγδουποι στοναχαί μανίαι τ’ ἀλαλ[αί] τ’ ὀρίνεται ῥιψαύχενι ξὺν κλόνῳ· ἐν δ’ ὁ παγκρατὴς κεραυνὸς ἀμπνέων πῦρ κεκίνη[ται τό τ’] Ἐνυαλίου· ἔγχος, ἀλκάεσσά [τ]ε Παλλάδο[ς] αἰγίς μυρίων φθογγάζεται κλαγγαῖς δρακόντων· ῥίμφα δ’ εἶσιν Ἄρτεμις οἰοπολὰς 4 Dentre as comunidades estão Tebas, Naxos, Tasos, Corinto, Quios e Paros. 5 Cf. Snell & Maehler (1975): Fr. 70b. 5 10 15 69 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. ζεύξαισ’ ἐν ὀργαῖς· Βακχίαις φῦλον λεόντων αγ[ρότερον Βρομίῳ ὁ δὲ κηλεῖται χορευοίσαισι κα[ὶ θηρῶν ἀγέλαις· ἐμὲ δ’ ἐξαίρετο[ν κάρυκα σοφῶν ἐπέων Μοῖσ’ ἀνέστασ’ Ἑλλάδι κα[λ]λ[ιχόρῳ εὐχόμενον βρισαρμάτοις Θ[ήβαις· ἔνθα ποθ’ Ἁρμονίαν [φ]άμα γα[μετάν Κάδμον ὑψη[λαῖ]ς πραπίδεσ[σι λαχεῖν κεδνάν· Δ[ιὸ]ς δ’ ἄκ[ουσεν ὀ]μφᾶν, καὶ τέκ’ εὔδοξο[ν παρ’ ἀνθρώπο[ις γενεάν. Διόνυσ[.] 20 25 HÉRCULES OU CÉRBERO – AOS TEBANOS6 Antes rastejava alinhado o canto dos ditirambos. E o ‘s’ dissonante das bocas aos ouvintes. Agora se espalham jovens em círculos concêntricos. Jovens bem versados na cerimônia do bramidor. Tal como, junto ao ceptro de Zeus, os Olímpicos celebram em seus palácios. Enquanto começam à venerável e grande Mãe o rodopio dos tambores. E nisso cintilam em estalos e tochas sob as resinas douradas. E nisso se excitam os grunhidos estrondosos das Náiades: êxtases e brados com o agito das gargantas estiradas. E nisso o onipotente relâmpago que fogo respira e a lança de Eniálio brandem. E a égide guerreira de Palas ressoa nos silvos estridentes de inúmeras serpentes. Rápido, vem Ártemis, sozinha, após jungir em fúrias báquicas a tribo agreste dos leões para o Bramidor que se encanta até mesmo com o bando de feras dançantes. A Musa a mim elegeu mensageiro de sábios cantos para a Grécia de belos bailados, glorioso por Tebas, de firmes carruagens. Onde certa vez, segundo a fama, Cadmo obteve Harmonia como esposa diligente em elevados sentimentos. E Zeus ouviu a voz e gerou aos homens a aclamada [raça]. Dioniso[.] 5 10 15 20 25 No início do poema, além de ter sido dedicado “aos tebanos” (Thebaiois), lê-se também “Hércules ou Cérbero” (Ērakles ē Kerberos). O começo do título está praticamente perdido, dado o estado fragmentário na transmissão, em que é possível ler 6 FURLEY, W. & BREMER, J. M. 2001b, p. 139-140. Tradução nossa. 70 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. “descida” (kath]odo[s..... k]ata[basis). Porém existe a ressalva de que tais suplementações necessitariam que o substantivo Hércules viesse no caso genitivo (OLIVEIRA, 2017, p. 64). Entretanto, a narrativa mitológica deste ditirambo referida no título – sobre a descida de Hércules ao Hades para capturar Cérbero e obter Dejanira – não nos chegou. Lavecchia relaciona o presente ditirambo com o culto eleusino em Tebas. A respeito da figura de Hércules, o autor o reconhece como herói tebano dionisíaco e primeiro iniciado nos Mistérios de Elêusis. Assim como Dioniso, Hércules passa por uma “katábase” que pode ser considerada uma experiência de morte e renascimento. O autor lembra que, pelo fato de ser iniciado, o herói pode realizar sua ida ao submundo (LAVECCHIA, 2013, p. 68-70). Personagem totalmente utópico por não existir nenhuma sepultura em seu nome, Hércules era objeto de narrativas altamente conhecidas no mundo grego antigo e teve cultos difundidos por toda parte. Os feitos desse herói penetram tanto o mundo superior quanto o mundo inferior. Essa dupla alternância de mundos “é função do xamã: Hércules captura o cão do Hades, Cérbero, trazendo-o do mundo subterâneo, (...) ganhando as maçãs douradas dos jardins dos deuses (...) que podem ser interpretadas como o fruto da imortalidade” (BURKERT, 1993, p. 406-407). Esse herói divino possui um importante papel na religião grega, se tornando uma “força espiritual influente”. Tanto por ser o modelo do soberano que “encontra a sua realização entre os deuses” quanto por ser o modelo para uma pessoa comum que busca “após uma vida de sofrimentos, e justamente através deles, ascender até aos deuses. Hércules quebrou o terror da morte” (BURKERT, 1993, p. 411). Ao se relacionar o contexto de performance do Ditirambo 2 com os mistérios dionisíacos em Tebas que eram acompanhados de narrativas secretas – hieroi lógoi (ἱεροί λόγοι) – é razoável pensar em Hércules como um bom candidato. O próprio poeta (Pi., N., 3.22) nomeia duplamente Hércules como herói e deus “hérōs theós”. Píndaro ainda menciona “tanto Hércules como Dioniso como nomes de que Tebas poderia se orgulhar” (OLIVEIRA, 2017, p. 68), reiterando o estabelecimento dos Mistérios de Elêusis em Tebas. Segundo Lavecchia (2013, p. 69), no Ditirambo 2, Dioniso é apresentado em transe pela sua própria epifania: ele é a própria origem e manifestação do ditirambo. A menção a Bromios – um epíteto de Dioniso – no início da antístrofe parece estabelecer um paralelo entre o deus e o poeta (ho dè... emé dè). Com o próprio poeta iniciado, ele está habilitado a ser o arauto portador do conhecimento conforme os mistérios da poesia ditirâmbica. Deste modo, quando Píndaro afirma que a Musa o proclama mensageiro de sábios cantos, pode-se sugerir uma alusão aos mistérios de Elêusis no qual o arauto (κῆρυξ) possui uma importante função. Nesse sentido, o auxílio da Musa ajuda-o a atualizar os mitos da cidade homenageada – como o Hércules do título – e os mitos de Dioniso em seu ditirambo (OLIVEIRA, 2017, p. 29). Com isso, é possível vincular o Fr. 346 do próprio Píndaro – que menciona Deméter, Perséfone, Elêusis e Hércules como o “primeiro” iniciado – com o Ditirambo 2 (BURKERT, 1993, p. 546; FURLEY & BREMER, 2001b, p. 148; LAVECCHIA, 2013, p. 69) A tradição mítica que relaciona Dioniso e Tebas é bem forte. Cadmo foi um herói grego que fundou Tebas e teve uma filha, Sêmele. Em Tebas, o nascimento do 71 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. deus é contado da seguinte maneira: Zeus amava a filha de Cadmo, Sêmele, então o ciúmes de Hera faz com que Zeus a fulmine com seu raio. Mas Zeus se sensibiliza com Sêmele e seu filho: ele a transforma num ser divino e o gera em sua coxa. Quando Dioniso nasce, Hermes o leva para Nisa, onde as Mênades cuidam dele até que tenha idade para assumir seus poderes divinos. Outra versão conta que Hera alimentou a incerteza de Zeus quanto a paternidade e o deus, por sua vez, concedeu-a um desejo: que a bela jovem Sêmele fosse fulminada pelo seu raio (BURKERT, 1993, p. 321-324). Lavecchia (2013, p. 61) relaciona a história do nascimento do deus com o momento ritual de transformação no contexto dos mistérios. Segundo o autor, a dupla natureza do deus está no centro da experiência dionisíaca e iniciática. Da mesma forma que Sêmele é fulminada pelo raio de Zeus, Arquíloco afirma que sabe liderar um ditirambo com a mente fulminada pelo vinho7. É estabelecido aqui um paralelo interessante entre o mito do nascimento do deus e a própria poética do ditirambo. Ressalte-se, ainda, que o nome do gênero poético também é um epíteto do deus. Ao mesmo tempo em que o poeta se aproxima de Sêmele ao dar a luz a Dioniso-Ditirambos, ele parece assimilar-se ao próprio deus uma vez que é atingido pelo raio de Zeus. Lavecchia (2013, p. 62) denomina esse processo como ‘dionisização’. Por este processo, o poeta se ‘ditirambiza’ para que possa produzir um ditirambo legítimo. Deste modo, o autor distingue o ditirambo dos outros gêneros poéticos por se ter “uma presença concreta e imediata do deus”. Essa assimilação ao deus não acontece somente pelo espelhamento de sua natureza, mas por ele próprio inspirar cada participante na performance. Segundo o autor, tornar-se Baco é crucial na experiência iniciática em que são apagadas quaisquer distinções sociais num ritual que transcende o público e o privado, o exotérico e o esotérico. A re-encenação do nascimento do deus pela comunidade acaba por encenar “o nascimento de sua própria identidade dionisíaca”. É neste sentido que Lavecchia fala da transformação inerente à experiência causada pelo ditirambo: a imitação da morte e renascimento do deus ocupa lugar central nos mistérios dionisíacos. É nessa atmosfera da mímese da morte e renascimento e a assimilação ao deus que reside a poética do ditirambo e a natureza de Dioniso (LAVECCHIA, 2013, p. 60-63). A partir do levantamento lexical dos elementos composicionais do Ditirambo 2, uma possível suplementação presente no poema vincularia o contexto de performance ao ritual em honra a Dioniso: a palavra rito, iniciação: teletán. “Sempre existiram cultos secretos e acessíveis exclusivamente através de uma iniciação individual especial: os mistérios” (BURKERT, 1993, p. 527). Como ainda observa Burkert, “a par de festivais dionisíacos públicos emergem mistérios privados em honra de Dioniso, essa iniciação individual é denominada teleté” (BURKERT, 1993, p. 554). Em Ateneu, é atestado que esses ritos eram costumes, e tanto télē (τέλη) como télos (τέλος) são designações de sacrifícios. Com essa explicação, Ateneu (2.12) atesta que teletá (τελετά) eram cerimônias com uma tradição mística nas quais as pessoas podiam gastar (τελεῖν) muito (πολυτελεῖς) ou pouco (εὐτελεῖς), garantindo que a alegria preva- ὡς Διωνύσου ἄνακτος καλὸν ἐξάρξαι μέλος | οἶδα διθύραμβον οἴνωι συγκεραυνωθεὶς φρένας: “Eu sei como liderar o ditirambo do senhor Dioniso com a mente 7 Cf. West Fr. 120: fulminada pelo vinho” (OLIVEIRA, 2017, p. 16). 72 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. lecesse entre todas as pessoas (OLSON, 2007, p. 230-231). Então é possível articular o ditirambo com a religião antiga no contexto “cerimonial da ocasião” nos cultos de mistério. Ao situar o presente ditirambo no contexto de mistérios, alguns elementos cultuais não nos passam despercebidos. As Náiades no tíaso divino podem ser interpretadas como entidades inspiradoras que no contexto iniciático levariam as iniciadas a “manipularem um aparato ritual e musical”, estando presente tal aparato neste ditirambo com o giro dos tambores “tympánōn” e o manuseio das castanhedas “krótalai”. Estes instrumentos faziam parte do símbolo das orgias e dos mistérios (BURKERT, 1993, p. 561). Nesse tíaso divino, as Náiades aparecem em “êxtases e alaridos” (v. 11, μανίαι τ’ ἀλαλαί), elas provavelmente fazem referência ao menadismo. Uma boa definição da manía em um contexto menádico seria aproximada da expressão “estado alterado de consciência” (BACELAR, 2018, p. 150). Em outras palavras, a manía “não é um delírio em consequência da loucura, mas uma intensificação da força espiritual autovivenciada” (BURKERT, 1993, p. 318). Deste modo, o êxtase em cultos menádicos não possuíam caráter patológico já que no transe ritual estariam em jogo “efeitos psicofisiológicos da música, stimuli fóticos e movimentos de dança” (BACELAR, 2018, p. 148). Além de elementos rituais, há também a imagética menádica como a “inclinação do busto, a cabeça jogada para trás” (BACELAR, 2018, p. 153). A manía referida no presente fragmento poderia assumir um sentido de “liberação” dos males da vida mortal integrada no contexto iniciático dos mistérios dionisíacos, nos quais o transe ritual não decorre de uma mania punição como nos cultos menádicos exclusivos de mulheres (BACELAR, 2018, p. 158). Outros elementos cultuais são igualmente percebidos relacionando a performance às divindades olímpicas e à própria ocasião em que se vinculou o ditirambo. As divindades são representadas cultuando o deus Dioniso cada qual ao seu modo, sob a influência que esse culto parecia exercer sobre elas (OLIVEIRA, 2017, p.27). Neste tíaso divino, Píndaro dá ênfase às insígnias sagradas dos deuses e aos seus respectivos sons – a lança de Eniálio (Ares), os sibilos das inúmeras cobras na égide de Palas Atena, o Onipotente relâmpago de Zeus, os tambores, as tochas e as castanhedas da Grande Mãe8 (FURLEY & BREMER, 2001a, p.198). Outra divindade que chega ‘após jungir em fúrias báquicas a tribo agreste dos leões’ (v. 16-17) é Ártemis trazendo essa alcateia para Dioniso (Βρομίῳ). No v. 23, o pronome relativo retoma Brômios (Dioniso) que se encontra no meio do tíaso em transe como seus adoradores: ele se encanta “até mesmo” com as feras dançantes. As cenas do tíaso em êxtase espelhado no Olimpo, com a presença das Náiades, não deixa de constituir uma referência aos cortejos femininos do deus. Além de cantar êxtases da música e da dança, o poeta clama-se eleito pela Musa como conhecedor de sábias palavras. E por se endereçar aos tebanos, o poeta qualifica sua missão pan-Helênica e reafirma Tebas como sua cidade natal (FURLEY & BREMER, 2001b, p. 147-148). Além disso, as celebrações dionisíacas noturnas eram atestadas em inúmeras cidades gregas na Antiguidade, seja no âmbito das práticas menádicas, 8 Gramaticalmente falando, todos esses elementos aparecem como respectivos sujeitos de seus verbos (Furley & Bremer, 2001a, p. 198). 73 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. dos ritos ligados ao consumo do vinho ou, ainda, dos cultos de mistério, como os de Tebas. A ocasião de performance do poema parece ter sido uma dessas celebrações noturnas, já que é possível pelas “tochas” (δαῒς) depreender o caráter noturno desse rito. Quanto à performance, algumas questões aparecem já nos versos iniciais. Percebe-se com base nos mecanismos de ancoragem enunciativa do poema que Píndaro evidencia, já no primeiro verso, um problema no canto (ἀοιδὰ, v. 1) num momento anterior (Πρὶν μὲν, v. 1) ao modo como os ditirambos se arrastavam (εἷρπε v. 1). No segundo verso, ele elenca as conseqüências da dinâmica anterior que faziam do ‘s’ (σὰν, v. 2) ‘espúrio’ (κίβδηλον, v. 2). Na publicação de The Papyri Oxyrhynchus part 13 foi adotada a interpretação de Ateneu, que considerava o ‘s’ ‘impuro’, tal como consta na definição de Liddel & Scott o adjetivo kíbdēlon: “espúrio, impuro” (GRENFELL & HUNT, 1919, p. 41). Ao mencionar o problema do ‘s’ ‘espúrio’ (σὰν κίβδηλον), Ateneu fala da alternativa de Laso de Hermíone: o experimento assigmático. Laso foi o primeiro a escrever sobre música na antiguidade, se tornando um teórico musical da Grécia antiga e atribuindo um caráter agonístico ao ditirambo (CORRÊA, 2002, p. 31). No início do Ditirambo 2, Píndaro quando menciona ‘antes [...] os homens’ (Πρὶν μὲν [...] ἀνθρώποις), o advérbio temporal (Πρὶν) é muito genérico para se referir somente aos ditirambos de Laso, e nem os ditirambos do mentor de Píndaro eram todos alvos do experimento assigmático (D’ANGOUR, 1997, p. 333). A análise em que a solução para um ‘s’ solto seria pura e simplesmente lipogramática desconsidera a referência ao canto assigmático em Píndaro, que não se sustenta, já que, no próprio fragmento e em outras composições suas, o ‘s’ permanece em evidência (D’ANGOUR, 1997, p. 334). O termo ‘adulterado’, ‘espúrio’, ‘falso’ (κίβδηλον) se fosse acompanhado por essa interpretação da solução “lipogramática” a partir dos experimentos de Laso, poderia sugerir certa subversão ao seu mestre. Essas leituras foram influenciadas por Clearco de Soli, filósofo e erudito do séc. IV a. C., que interpretou o canto assigmático como um ‘enigma’ (γρῖφος): “O que é que se parece com uma corda e produz muitos sibilos, e que não é serpente, nem cobra, nem dragão?”9 . Por sua vez, este enigma proposto por Clearco requer uma revisão dos termos ‘heirpe’, ‘skoinoténeia’ e ‘san’ na tradição erudita. Ao rever a tradição crítica de eruditos modernos como Pickard-Cambridge e Webster, que seguiam a tradução de kíbdēlon por espúrio, D’Angour considera a leitura de Wilamowitz, que situa o problema não exatamente no fonema /s/, mas sim no modo como seria prununciado: de forma impura (κίβδηλον) (D’ANGOUR, p. 332-334). Acerca do ‘san’, Heródoto marca uma diferenciação no modo como o /s/ era designado nos dialetos em que o san dórico é equivalente ao sigma jônico10. Ao desvincular as possíveis variações dialetais existentes na pronúncia do ‘s’, nos voltamos ao vocábulo schoinoténeia (σχοινοτένεια) no primeiro verso. Embora seja sugerido que o sintagma schoinoténeiá t’aoidà (σχοινοτένειά [τ’] ἀοιδὰ) possa fazer alusão a algum 9 Texto estabelecido e traduzido por D’Angour (1997, p. 342). 10 Cf. Heródoto. 1, 139: Δωριέες μὲν σὰν καλέουσι, Ἴωνες δὲ σίγμα. “Enquanto os dóricos chamam de ‘san’, os jônicos, de ‘sigma’. 74 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. nómos (νόμος11 ) “Schoiníon” relacionado às procissões (CORRÊA, 2002, p. 91; HEDREEN, 2013, p. 171-197), a leitura aqui adotada segue a interpretação de D‘Angour, já que aspectos performáticos são priorizados em sua interpretação. D’Angour propõe as suplementações que foram adotadas nesse trabalho como solução de lacunas textuais com base em aspectos performativos (v.3, διαπέτα[νται δὲ νῦν εὐo]μφα[λοῖς κύ]κλοισι). Nos três primeiros versos, Píndaro contrasta o modo no qual se davam performances corais dos ditirambos num passado vívido em sua memória (Πρὶν μὲν) em que o adjetivo ‘schoinoténeia’ (σχοινοτένεια) remete a uma ‘linha reta’ ou ao canto alinhado dos ditirambos. O termo ‘schoinoténeia’, como sugere Heródoto em seu uso topográfico, qualifica uma corda esticada de um ponto a outro a fim de se obter uma linha reta (Hdt., 1.189.3; 7.23.1). Por sua vez, Willamowitz entende esse adjetivo de modo figurado, significando “lentidão, não-articulado, seja na dicção, na melodia ou na rítmica poética” (WILLAMOWITZ. Ap. D’ANGOUR, 1997, p. 339-340). Já D’Angour privilegia o sentido literal do adjetivo schoinoténeia como uma referência à disposição espacial dos coreutas durante o canto. Píndaro nos v. 1-2 está descrevendo o posicionamento que no passado fazia o canto emergir ‘espúrio’ (κίβδηλον). Com essa abordagem, o sentido remete ao modo como estão dispostos os membros do coro – numa linha reta ou um atrás do outro – sem a garantir clareza vocal e nem a coordenação do canto (D’ANGOUR, 1997, p. 339-340). Interpretações que desconsideram os experimentos de Laso de Hermíone com suas composições assigmáticas acabam por também desconsiderar o próprio caráter pragmático da poesia ditirâmbica, pois também não levam em conta a plasticidade do coro cíclico e a especificidade do ditirambo. O primeiro abrange um vasto repertório, incluindo os ditirambos, o último pode ser mais reservado aos cultos para Dioniso (OLIVEIRA, 2017, p. 22). Seguindo a proposta de D’Angour (1997), centrada nos aspectos performáticos da poesia ditirâmbica que dedica-se à dimensão aural do coro, no segundo verso do poema o dativo ‘anthrōpoisin’ pode ter dupla função sintática e, por conseguinte, dupla interpretação semântica: tanto um dativo de posse ligado sintaticamente a στόμα (“boca dos humanos”), quanto um objeto indireto aludindo à audiência que percebia o ‘san’ (“das bocas aos humanos”). Com essa dupla interpretação sintática de ‘anthrōpoisin’ somada ao conhecimento de que os ditirambos eram performados em coros com uma quantidade significativa de membros, pode-se depreender que o efeito ‘kibdēlon’ do ‘s’ era proveniente da pluralidade de vozes concomitantes emitindo a sibilante causando certa dissonância, já que o fonema /s/ possui um caráter surdo ou não-vozeado (D’ANGOUR, 1997, p. 335). Com essa interpretação, a tradução mais adequada ao adjetivo κίβδηλον nesse contexto passa a ser ‘dissonante’. O ‘s’ final representa uma grande dificuldade em corais, interrompendo fluxo uníssono da melodia vocal. Até hoje essa é uma dificuldade encontrada por regentes de coro nos ensaios, pois se os membros do coro pronunciam o ‘s’ sem sincronia, o efeito aural acaba sendo um sibilo que se arrasta na melodia. Então, a proposta de Laso com os cantos assigmáticos poderia ter sido uma tentativa de se reduzir o impacto do /s/ na má qualidade da enunciação 11 Νόμος: “um tipo ou um modo musical” (LIDDEL & SCOTT, 1996, s.v. νόμος); “Uma espécie de melodia que tem harmonia e ritmo determinados.” (CORRÊA, 2002, p. 85). 75 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. coral (D’ANGOUR, 1997, p. 336). A clareza (λιγύς)12 na fala ou no canto era uma característica valorada pelos gregos, sendo o ‘s’, em alguns contextos, evitado. A proposta de suplementação de D’Angour oferece informações valiosas para responder o enigma proposto por Clearco: “O que é que se parece com uma corda e produz muitos sibilos, e que não é serpente, nem cobra, nem dragão?”13 Ora, o coro cíclico! (κύκλιος χορός). O mecanismo de ancoragem da poesia no momento presente da performance, o ‘agora’ (δὲ νῦν) marca a maneira como estão ‘espalhados’ (διαπέτανται) os jovens: em círculos concêntricos (εὐoμφαλοῖς κύκλοισι). E a nova forma que o coro adquire permite uma melhor sincronização entre os membros do coro, que por sua vez reverbera no espelhamento do “tíaso” humano entre os olímpicos, em que a égide guerreira de Palas Atena, com inúmeras serpentes, reflete a aliteração bem sincronizada dos ‘s’s inclusive no Olimpo. Tivemos a oportunidade de testar a sincronização dessas aliterações na oficina “Experimentos com a poesia em performance: a mélica coral grega antiga”. A oficina foi realizada na Universidade de Brasília nos dias 22, 23 e 24 de maio deste ano com duração de 8 horas, vinculada à disciplina Tragédia Grega, ministrada pela professora Agatha Bacelar, ao projeto de extensão do Departamento de Música, o Canto Coletivo Improvisado coordenado pelos professores Uliana Ferlim e Mário Lima Brasil. O objetivo da oficina foi apresentar a poesia grega, oralizando os poemas trabalhados em nossas pesquisas de iniciação científica orientada pela professora Agatha Bacelar: o terceiro canto coral da Antígona de Sófocles (hino a Eros) trabalhado por Matheus Ely Pessoa e o Ditirambo 2 de Píndaro (Ērakles ē Kerberos) aqui trabalhado. Tal abordagem foi fundamental nessa pesquisa, servindo de apoio às investigações filológicas sobre o metro, o verso, o ritmo e a sintaxe dessas canções. Sem essa abordagem prática, teria sido muito mais difícil falar de performance e refletir sobre as aliterações nos versos 9 (com a presença de oclusivas no verso em que canta sobre o crepitar das tochas) e 14-15 (com muitas sibilantes em referência aos silvos das serpentes no escudo de Palas-Atena). Li s ta d e Ab r eviat u r a s Hdt. – Heródoto (Historicus) Pi. N. – Píndaro (Nemean) Pl. R. – Platão (Respublica) Pl. M. – Platão (Mores) 12 Λιγύς: Claro, som doce, rouxinol, assobio. Necessário para cantores e oradores (Liddel & Scott, 1996, s.v. λίγυς; D’ANGOUR, 1997, p. 335-336). 13 Texto estabelecido e traduzido por D’Angour (1997, p. 342). 76 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Font e s FURLEY, W.; BREMER, J. M. Greek Hymns: Selected Cult Songs from the Archaic to the Hellenistic period. Vol. 2: Greek. Texts and Commentary. Tübingen: Mohr Siebeck, 2001b. OLSON, D. Atheneus: The Learned Banqueters. Vol. 1: Books 1 – 3.106e. Edited and translated by S. Douglas Olson. Loeb Classical Library, 2007. P. GRENFELL, BERNARD; S. HUNT, ARTHUR. The Oxyrhynchus Papyri Part 13. Edited with Translations and Notes. Londres, 1919. PLATÃO. A República. Tradução: NASSETI, PIETRO. 3 ed. São Paulo: Martin Claret, 2000. SNELL, B & MAEHLER, H. Pindari Carmina cum fragmentis Pars 2. Leiden: Teubner, 1975. OLIVEIRA, L. T. Os ditirambos de Píndaro. Introdução, Tradução e Comentário. 2017. 343 f. Dissertação (Mestrado). Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2017. Ref er ên c ias Bib l i o g r á f i ca s BACELAR, A. P. Tragoidíai: cantos de cura? Representações da doença nos cultos dionisíacos e em tragédias de Sófocles: UnB. 2018. BURKERT, W. Religião Grega das épocas Arcaica e Clássica. Tradução: LOUREIRO, M. J. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. CORRÊA, P. de C. Harmonia, mito e música na Grécia antiga, FFLCH-USP: 2002. D’ANGOUR, A. The Classical Quarterly, How the Dithyramb Got its Shape, Vol. 47, N. 2., p. 331-351. 1997. FURLEY, W.; BREMER, J. M. Greek Hymns: Selected Cult Songs from the Archaic to the Hellenistic period. Vol. 1: The Texts in Translation. Tübingen: Mohr Siebeck, 2001a. FURLEY, W.; BREMER, J. M. Greek Hymns: Selected Cult Songs from the Archaic to the Hellenistic period. Vol. 2: Greek. Texts and Commentary. Tübingen: Mohr Siebeck, 2001b. HEDREEN, G. The Semantics of Processional Dithyramb: Pindar’s Second Dithyramb and Archaic Athenian Vase-Painting. In: KOWALZIG, B; WILSON, P. Dithyramb in Context. Oxford: Oxford University Press, 2013. KOWALZIG, B.; WILSON, P. (Org.). Introduction In: KOWALZIG, Barbara; WILSON, Peter. Dithyramb in Context. Oxford: Oxford University Press, 2013. LAVECCHIA, S. Becoming like Dionysos: Dithyramb and Dionysian Initiation. In: KOWALZIG, B.; WILSON, P. Dithyramb in Context. Oxford: Oxford University Press, 2013. 77 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. RAGUSA, G. Mélica grega arcaica: nove poetas e suas canções” Lira Grega. Antologia de poesia arcaica. São Paulo: Hedra, 2013. THOMAS, R. Letramento e Oralidade na Grécia Antiga. Tradução: FIKER, R. São Paulo: Odysseus, 2005. Recebido em 22/9/2019 e aceito em 1/10/2019. 78 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. As relações familiares na aula de Cláudio: uma leitura dos anais de Tácito Douglas de Castro Carneiro Doutorando em História (PPGH/UFG) Bolsista CAPES/FAPEG dogaocarneiro@hotmail.com Orientador: Profª. Dra. Luciane Munhoz de Omena Res u mo O presente trabalho tem como objetivo analisar as relações familiares na aula de Cláudio (41 d.C. - 54 d.C), realizando uma leitura dos livros XI e XII dos Anais de Tácito. O protótipo da família imperial iniciado com Augusto tinha que ser uma referência com os espaços públicos e privados, pois expressava a continuidade e a saúde da sociedade romana em seu conjunto, além de propagar uma imagem por todos os territórios do Império por intermédio de diferentes experiências artísticas e literárias. Os autores romanos (tais como Tácito, Suetônio e Sêneca) consideravam Cláudio inapto, sem condições de assumir o governo, e muitos membros da corte o criticavam. A metodologia utilizada se refere ao estudo dos livros XI e XII, que traçam um panorama da domus claudiana. Sabemos que as obras históricas não se destinavam a um grande público e se dirigiam à corte, em sessões de recitações e círculos literários. Levando esses apontamentos em consideração, entendemos que os Anais podem ser lidos como veículo de construção e comunicação em um discurso de consenso para a elite romana. Concluímos que este estudo se mostra importante para a compreensão de como as relações familiares são apresentadas dentro do contexto da aula imperial. Pa lav r as - chav e Tácito; Família; Anais; Império Romano; Domus Abs t rac t The aim of this article was to investigate the family relationships from Claudius (41 A.D-54 A.D) based on the books XI and XII from the Anals of Tacitus. This kind of family started with Augustus who had to be reference in public and private spaces because it was the continuity as well as the health of the Roman society. The empire images were propagated to all the Roman territories through artistic and literary methods. 79 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Roman authors as (Tacitus, Suetonius and Seneca) figures out Claudius as unable to govern the Empire as well as many members of the court had critical thinking about his abilities to do it. The books XI and XII indicate a panorama of the domus claudiana. We know that historical works were not aimed to ordinary people. They were prepared to achieve the court through sections of reciting and literary circles. Thus, these Anals can be read as the constructive way to communicate the discourse of consensus to achieve the Roman elite. This study is important to understand how family relationships were introduced within Roman Empire class. Key- w or ds Tacitus; Family; Anals; Roman Empire; Domus A concepção de família está relacionada a maneiras importantes e fundamentais do aspecto comportamental da sociedade, como heranças, estratégias de casamento e adoção, ou seja, a família é um fenômeno histórico (SALLER, 1994, p. 15). No mundo romano, a família era concebida dentro de um núcleo parental e raramente se falava em bem-estar de cada um dos seus membros. A casa1 ou linhagem era conceituada como uma entidade de grande importância para além de seus membros, sendo a família romana a primeira unidade de produção, reprodução, integração e transmissão da propriedade (SALLER, 2011, p. 52). Desse modo, os elementos do patria potestas envolvem algumas questões importantes: era o mais antigo ascendente masculino vivo e tinha o poder sobre a vida e a morte dos membros de sua família, desde suas crianças até os filhos de seus filhos. Era direito do pater familias decidir se um recém-nascido seria exposto, assim como decidir no caso de filhos adultos que cometiam crimes e deveriam ser condenados à morte por transgressões cometidas sem consentimento da família (SALLER, 1992, p. 40). Diversos papéis sociais eram desempenhados pela família romana, embora talvez não seja útil definir a família em termos funcionais, pois nem sempre o grupo de parentes exercia o mesmo papel na sociedade (DIXON, 1992, p. 20). O papel da família em nossa sociedade contemporânea se diferencia da família da sociedade romana, uma vez que a primeira incorpora o grupo residencial de pais e filhos, e o agregado familiar romano incluía os escravos e suas famílias. A alteração familiar ocorria principalmente com a questão do matrimônio, já que a nova família romana se mudava para outra casa e havia o surgimento de um novo núcleo familiar (DIXON, 1988, p. 108). Buscamos apresentar, neste artigo, as interpretações sobre a questão da fa1 O idioma geralmente pode ser um indicador de mudanças. Um sinal claro que não era um fenômeno novo, que surge o termo latino aula. Pouco apareceu durante a república e tornou-se comum no Império para referir-se a corte imperial pelo menos depois da metade do primeiro século. Ao redor do imperador cresceu uma série de circulos concêntricos, contendo grupos e indivíduos que ganharam poder e influência pela proximidade com o imperador: a familia imperial (domus), e os amigos (amici) (PATERSON, 2007, p.121-124). 80 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. mília no mundo romano, em especial dentro do principado de Cláudio. Mas qual é a concepção de família no contexto romano? Em termos práticos, o romano poderia usar o termo família para descrever sua família biológica, as pessoas que moravam na mesma casa, que pertenciam ao mesmo clã ou aquelas legalmente definidas pela lei. As noções de família durante a dinastia Júlio-Cláudia foram influenciadas pela legislação vigente, particularmente de Augusto e suas leis relativas ao casamento e adultério (GLOYN, 2017, p. 6). Nessa direção, podemos entender o que Liz Gloyn (2017, p. 4) assinala: O s romanos poderiam se identificar como membros de uma gens ou de um clã que invoca as ressonâncias históricas e étnicas. A associação de uma gens poderia levar a certos direitos herdados ou sacerdócios e na República era a porta de entrada para o status de patrício, quando este ainda mantinha alguma importância funcional. Mas a gens permaneceu como uma forma de definir uma identidade e relacionamentos. Um senso patrimonial poderia ser conectado a um lugar quanto a sua ancestralidade e aqueles elementos de histórias familiares, já que muitas vezes serviam como recursos na política romana. Assim, Gloyn enfatiza a importância do que poderia ser identificado como gens ou clã. Isso acontecia necessariamente com os membros da aristocracia, já que tomavam de empréstimo a ideia de uma ascendência divina. Havia a defesa de uma ascendência de um único princeps e, em seguida, desenvolveram um sentido técnico para os romanos, assim como a conjunção de várias famílias (SMITH, 1996, p. 31). Muitas vezes a temática familiar se tornava central nos testemunhos documentais (e.g. Anais de Tácito, epigrafia sepulcral entre outros), implementando estereótipos referentes à vida familiar e aos comportamentos dos membros familiares (TREGGIARE, 2005, p. 32). O casamento costumava servir como um elo entre duas famílias e os cônjuges eram submetidos ao poderio do pater familias. Havia a forte presença de uma figura paterna, enquanto cabia à mulher oferecer um dote e ter como obrigatoriedade a procriação. Assim, passamos às discussões sobre a Familia Caesaris. Cláudio não pertencia estritamente a Domus de Augusto, mas a seu tio Tibério e seu irmão Druso. Quando Cláudio adotou o nome de César, este não era um nome ligado à família, mas um título. Essas duas famílias (Júlia e Cláudia) se uniram devido ao casamento de Otavio e de Lívia. Foi justamente a política de Cláudio que procurou enfatizar sua conexão com Augusto (BURY, 2010, p. 120). Como sabemos, os governos de Cláudio e de Nero são fartamente documentados por autores dos dois primeiros séculos d.C. Temos, por exemplo, Cornelius Tacitus, que viveu aproximadamente cem anos depois e nos deu indícios sobre o governo de Cláudio. Tácito foi historiador, político e orador, nascido por volta de 56 d.C. na Gália Narbonense. Sua carreira enquanto senador, questor e o consulado coincidem com os cinco anos de governo de Domiciano. Foi cônsul no governo de Nerva, com um 81 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. interlúdio breve com Trajano no poder (SYME, 1997, p. 25). Tácito utiliza de seu cursus honorum sobre os Flávios para afirmar sua isenção como historiador, pretendendo dizer que o fato de ter sido promovido por eles, em especial por Domiciano, não influenciaria sua objetividade ao relatar o período (MARQUES, 2007, p. 320). A influência dos estudos retóricos é evidente em todos os seus escritos, e ele ganhou reputação como orador. Era natural que seu trabalho mais antigo, Dialogis Oratoris, fosse uma investigação das razões da decadência da oratória sobre o Império. Inspirado em Cícero, os trabalhos retóricos mostram a forma e o estilo e os efeitos do estudo do seu autor. A data de publicação do Dialogus de Oratoribus é por volta de 74 d.C. a 75 d.C. e, aparentemente só foi publicado após a morte de Domiciano. Na biografia de Agrícola, escrita por Tácito em 98 d.C., entendemos que ele se utilizou de tradições literárias para construir uma posição política no interior de um ambiente de uma competição intra-aristocrática (JOLY; FAVERSANI, 2014, p. 45). No mesmo ano finalizou Germania, descrevendo as atividades dos povos germânicos, comparando-os aos romanos (ANDRADE, 2011, p. 220). Os Anais são, sem dúvida, a maior obra de Tácito por excelência, além de ampla e conservada. A carreira literária de Tácito é um trabalho maduro, assim como de outros historiadores romanos, homens públicos que se encontravam no otium, o que permite um testemunho escrito de sua própria experiência vital. A cronologia da composição e publicação dos Anais está obscurecida por imprecisões ligadas à vida do autor. A obra foi escrita por volta dos anos 112 d.C. a 114 d.C. na província da Ásia. Parece-nos claro que os Anales consistiam em dezoito livros, distribuídos em três hexágonos – de certa forma, também em tríades – consagrados a períodos unitários. O mesmo princípio parece ter presidido a elaboração das Historias, cujos doze livros completaram o total de trinta, e que São Jerônimo atribui ser a maior obra de Tácito. Sabemos, ainda, que os quarenta capítulos finais foram perdidos do 16º livro dos Anales – o último dos conhecidos – e há a narração dos últimos quatro anos de Nero, aqueles que estavam faltando para levar ao início do já publicado Historias. Do presumido total de dezoito livros dos Anales, a primeira hexada – consagrada a Tibério (14 d.C. a 37 d.C.) – chegou a nós com uma importante lacuna que cobre a maior parte do livro V e parte do VI, de 29 d.C. a 31 d.C. Os livros VII a X foram perdidos, os quais contam a história do reinado de Calígula (37 d.C. a 41 d.C.) e o começo da obra de Cláudio, no ano 46 d.C. Em 47 d.C. começa a parte conservada do livro XI, sua segunda metade. O resto foi preservado do reinado de Cláudio (livro XII) e da primeira tríade da dinastia neroniana (XIII-XV), deixando de fato a obra interrompida até o meio do livro XVI, no ano 66 d.C. (MORALEJO, 1976, p. 220). O primeiro compreende que: L ogicamente que a casa do Princeps estava horrorizada, em especial aqueles que estavam com as mãos no poder e mudavam-se as coisas. Certo que havia desonrado, já que permaneceu longe do pe- 82 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. rigo de sua ruína,agora como mudança, um jovem nobre distinguia-se pela sua beleza com a proximidade do consulado e se prestava com esperança e não era um misterio que não ficava depois do matrimônio. Sem dúvida apoderava-se o medo por considerar Cláudio um inapto submetido a sua esposa Messalina (Tac., Ann.,11,8) Nessa passagem, Tácito descreve algo importante no que tange à relação ao imperador e sua domus, o então imperador Cláudio e a sua esposa. Percebe-se a relevância das mulheres na domus imperial, que desempenhavam na realidade um papel importante, entretanto não definiam o poder real diante de um estatuto jurídico semelhante ao do imperador (HIDALGO DE LA VEGA, 2007, p. 130). O protótipo da família imperial iniciado com Augusto tinha que ser uma referência aos espaços públicos e privados, pois expressava a continuidade e a saúde da sociedade romana em seu conjunto e propagava uma imagem por todos os territórios do Império por intermédio de diferentes experiências artísticas e literárias (HIDALGO DE LA VEGA, 2003, p. 40). Nesse sentido, Tácito aponta os outros elementos relevantes no tocante às relações da família imperial romana: C om o assassinato de Messalina, se transformou a casa do princeps, pois entre os seus libertos surgiu uma disputa sobre quem elegeria para ser a nova esposa do imperador, homem pouco acostumado a vida celibatária e inclinado a deixar-se dominar por uma esposa. E sem menor agrado ardiam as intrigas das damas: cada uma fazia valer sua alcunha, sua beleza, suas riquezas, apresentando-as como dignas de um matrimônio. Mas a maior dúvida estava entre Lólia Paulina, filha do ex-cônsul Marco Lólio e Júlia Agripina, filha de Germânico; e esta apoiava Palante na mudança que favorecia a Elia Petina. Cláudio inclinava-se de um sentido para o outro escutando seu conselheiro, junto aos discordantes e ordena expor suas opiniões de maneira razoável (Tac., Ann., 12, 1). Tácito descreve a relação do assassinato de Messalina por volta de 48 d.C. e as consequências desta relação. Valéria Messalina protagonizou momentos de agitações políticas na corte de Cláudio, isto porque, na ótica de Tácito, pretendia seu lugar, bem como a sucessão de seu filho Britânico (RODRIGUES, 2008, p. 15). Tácito descreve, nos primórdios do livro XII de sua obra, o governo de Cláudio e de sua corte e a relação com os demais membros da domus claudiana. Todavia, não evidencia o motivo de o imperador ter se casado três vezes. A família era a unidade básica na sociedade romana e, como tal, a perpetuação da aristocracia e as possibilidades de mobilidade social dependiam fundamentalmente do comportamento familiar (GARNSEY; SALLER, 2014, p. 37). Segundo essa argumentação, é preciso considerar os problemas morais vinculados a Agripina, conforme a seguinte passagem: 83 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. N o consulado de Caio Pompeu e Quinto Veranio, o casamento de Cláudio e Agripina estava confirmado pela fama e por um amor ilícito; mas, todavia não ousaram celebrar a cerimônia solene que não era procedente de um tio que houvesse tomado como esposa, a filha do seu irmão, incluía temia-se pelo incesto, e que não se reparavam no que resultara como uma calamidade pública (Tac., Ann., 12, 5). Nessas linhas, Tácito descreve o casamento infame do imperador Cláudio com sua sobrinha Agripina, ocorrido em 49 d.C. Nessa situação Agripina teria desfrutado de vários privilégios, como assentos pessoais, os quais eram gradualmente adquiridos por mulheres proeminentes da família imperial (BARRETT, 1996, p. 10). Posto isto, o casamento era uma das instituições fundamentais na sociedade romana e não unia apenas dois indivíduos, mas duas famílias. Nesse âmbito, devemos ter em mente a seguinte questão: N arciso falava de seu antigo matrimônio, de uma filha comum, pois Antônia havia tido de Petina de que nada mudaria em seu lugar e se voltava à esposa já conhecida, com o qual de modo algum olharia com ódio de madrasta de Britânico e Otávia, presentes tão próximos quantos estes. Calisto dizia que ficava excluído por uma longa separação e que a tomava de novo e era cheia de soberba e era muito melhor que desposara Lólia, no qual não havia tido filhos e por isso estaria a margem das rivalidades e seria para eles como uma mãe (Tac., Ann., 12, 2). Podemos observar que o único papel político para qualquer mulher romana da camada mais abastada era fortalecer as alianças familiares por meio do casamento. Filhas e até esposas eram usadas como ferramentas políticas. A falta de iniciativa do imperador é apresentada e enfatizada nos mesmos argumentos do senado, já que Cláudio talvez não tivesse familiarizado com a adoção na família dinástica (GINSBURG, 2005, p. 120). Nesse sentido, podemos entender aquilo que Tácito propôs no Principado de Cláudio: D epois dessa introdução favorável e acolhida, assim que seguiram muitos sinais de aprovação dos senadores, voltando a iniciar que aconselhavam o príncipe a se casar, convinha escolher a uma mulher insigne por sua nobreza, por sua fecundidade e por sua honestidade e que não podia investigar muito para Agripina ia adiante de sua linhagem e por outra parte havia dado prova de sua fecundidade e unia a honestidade de seus costumes. Mas realmente egrégio que era viúva das providências dos deuses, unira-se a um princípio que só conhecia seus matrimônios haviam escutado os seus pais e aqui viviam por eles mesmos – era verdade algo novo entre nós – os casamentos e com as filhas dos irmãos, mas em outras cidades os celebravam solenemente 84 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. e nenhuma lei proibia também o casamento entre irmãos e irmãs, há muitos eram ignorados e o costume acomodava a conveniência e isso tornaria mais habitual (Tac., Ann., 12, 6). Tácito aponta que Cláudio poderia ser eloquente, não diante de um discurso preparado, mas em sua dignidade enquanto princeps (GRIFFIN, 1990, p. 42), uma vez que Agripina tinha determinado sua influência sobre Cláudio e pretendia colocar Nero no poder (MALOCH, 2009, p. 60). As ações claudianas dentro das narrativas de Tácito invertem as expectativas culturais e refletem o mal sobre ele. As esposas imperiais eram peças centrais nas domus, representavam sua face exterior, portanto, eram representações dos valores do próprio Principado. Dominado por suas esposas, Cláudio é demonstrado como ignóbil e sem controle de sua domus. Aponta o historiador latino: O dia do casamento de Silano se deu na morte, porque havia mantido esperanças de viver e porque havia escolhido aquele dia para fazer deles mais odiosos. Sua irmã Calvina foi expulsa da Itália. Cláudio adicionou a ordem que se celebravam os ritos segundo as leis do rei Túlio e uma expiação pelos pontífices no bosque sagrado de Diana em semelhante para a expiação de um incesto. Mas Agripina para não ficar famosa apenas por suas ações ruins. Faz o pedido do perdão do exílio e ao mesmo tempo a pretura de Lúcius Anneus Seneca, pensando que seria um gesto popular em razão do brilho dos seus estudos e para que a infância de Domício desenvolve-se sobre a tutela do professor e aproveitando ambos os conselhos com vistas as suas esperanças de dominação. Sêneca era considerado leal a Agripina pelo registro do bem que fizera e inimigo de Cláudio por ressentimento de uma justiça padecida (Tac., Ann., 12, 8). O historiador romano deixa claro que as relações da corte durante o final do governo de Cláudio começaram a desmoronar. Agripina possuía muita força, conforme descreve o autor, pois teria pedido para que Sêneca fosse o preceptor do seu filho Nero. Em 50 d.C., o imperador Cláudio adotou Lucius Eneobarbos, filho de Agripina, o que dava a possibilidade de este ser seu sucessor. A adoção em outras culturas fornece um pano de fundo para a compreensão do funcionamento da adoção no mundo romano. Essa estratégia teve usos políticos e foi empregada para reorganizar a sucessão da família imperial (LINDSAY, 2009, p. 41). Em 51 d.C. a população sofreu uma escassez de grãos devido a uma colheita ruim em Roma, e as pessoas estavam divididas se Cláudio possuía culpa ou não. A principal resistência aos planos de Agripina para a sucessão do imperador era atribuída ao liberto de Cláudio, Narciso (LEVICK, 2000, p. 10). A hostilidade entre Agripina Menor e Narciso não poderia ser evitada. As aspirações do imperador eram presentes nesse segmento, mas não foi o fim dos assuntos presentes em Roma. Da mesma forma, houve conflitos entre aqueles que sobreviveram antes de Nero assumir o poder, já que Britânico foi assassinado para 85 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. que Nero pudesse assumir o controle do governo (OSGOOD, 2011, p. 49). Podemos perceber, nesse contexto, a importância do governo de Cláudio, e a forma como Tácito trata dessa questão: E ntão Agripina, que há muito tempo estava decidida há muito tempo sobre o crime, aproveitando com presteza a ocasião em que se ofereciam e não faltando servidores para a situação, deliberando sobre o veneno escolhido: um súbito e de efeito precipitado denunciaria o crime: se escolheria um lento que iria minar com ele; era de temer que Cláudio estivesse próximo de sua morte e dando conta do engano voltando ao amor de seu filho. Queria algo especial, que perturbara a mente e dilatara sua morte (Tac., Ann., 12, 67). Após a rápida ascensão de Lucius Enobarbo ou Nero com o auxílio de sua mãe Agripina Menor ao poder, o novo imperador fez um discurso laudatório ao imperador falecido. É preciso enfatizar que Tácito, em seus Anais, nos dá respostas importantes sobre o principado claudiano. Quando estudamos um determinado tema e um determinado período, há necessidade de atribuirmos a eles uma determinada significação. Qual seria o objetivo de Cornelius Tacitus quando escreveu os Anais? Porque a descrição dos livros XI e XII, que descrevem o principado de Cláudio, possui essas características específicas? As respostas para essas indagações se encontram na própria estrutura construída pelo historiador e na historiografia que foi analisada ao longo deste trabalho. Cláudio é criticado por seus contemporâneos, a exemplo de Sêneca, que já que teria sido enviado para o exílio durante seu governo. A historiografia apresenta Cláudio não como um inapto, mas como um imperador que apresentou os pontos positivos. Devemos considerar que o autor não era contemporâneo do personagem. Desta forma, podemos observar que as visões negativas preponderaram aos leitores e autores posteriores. Levando em conta essas considerações, Tácito foi criterioso ao escrever os respectivos livros e apontou as principais relações propostas pelo então imperador. E trouxe a visão particular de um autor que escreveu aproximadamente cem anos depois do ocorrido. Li s ta d e ab r eviat u r a s Tac., Ann., – Tacitus, Annales (Tácito, Anais). Font e s TACITUS. Annales: Libros XI- XVI. Traduccion y notas José L. Moralejo. Madrid: Gredos, 1976. 86 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Ref e r ên c ias b ib l i o g r á f i ca s ANDRADE, M. C. S. A Germânia de Tácito: Traduções e Comentários. Tese (Doutorado em Letras) - Faculdade de Letras, Universidade Estadual de São Paulo, São Paulo, 2011. BARRETT, A. Agrippina: Sex, Power and Politics in the Early Empire. London: Routledge, 1996. BURY, J. B. A History of the Roman Empire from its Fondations to Death of Marcus Aurelius. New York: General Books, 2010. DIXON, S. The Roman Mother. London: Routledge, 1988. DIXON, S. The Roman Family. London: Routledge, 1992. GARNSEY, P.; SALLER, R. The Roman Empire: Economy, Society and Culture. London: Blomsbury, 2014. GINSBURG, J. Representing Agripina: Constructions of Female Power in the Early Roman Empire. Oxford: Oxford Press, 2005. GLOYN, L. The Ethics of Family in Seneca. Cambridge: Cambridge University Press, 2017. GRIFFIN, M. Seneca: A Philosopher in Politics Oxford: Clarendon Press, 1990. JOLY, F. D.; FAVERSANI, F. (Orgs.). As Formas do Império Romano. Mariana: UFOP, 2014. HIDALGO DE LA VEGA, M. J. Las Emperatrices Romanas: Sueños de Purpura y Poder Oculto. Salamanca: Universidade de Salamanca, 2007. HIDALGO DE LA VEGA, M. J. Esposas, hijas y madres imperiales: el poder de la legitimad dinástica. Rome: Latomus, 2003, T. 62, Fasc. 1, p. 47-72. LEVICK, B. Claudius. Boston: Batsford, 2000. LINDSAY, H. The Adoption in the Roman World. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. MALLOCH, S. Hamlet without the prince? The Claudian Annals. In: WOODMAN, A. (Ed.). The Cambridge Companion to Tacitus. Cambridge: Cambridge University Press, 2010, p. 116-126. MARQUES, J. B. Tradições e Renovações da Identidade Romana em Tito Lívio e Tácito. 2007. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. OSGOOD, J. Claudius Caesar: Image and Power in the Early Power. Cambridge: Cambridge University, 2011. RODRIGUES, N. S. Agripina e as outras. Redes femininas de poder nas cortes de Calígula, Cláudio e Nero. Gérion, v. 26, n. 1, p. 281-295, 2008. SALLER, R. “Familia, Domus”, and the Roman Conception of the Family. Phoenix, v. 38, n. 4, p. 336-355, 1994. 87 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. SALLER, R. Patriarchy, property, death in the Roman Family. Cambridge: Cambridge University, 1992. SALLER, R. The Roman Family as productive Unit. In: RAWLSON, Berry. (Ed.). A Companion to Families in the Greek and Roman World. Cambridge: Cambridge University, 2011, p. 116-128. SMITH, C. J. The Roman Clan: The Gens from Ancient Ideology to Modern Antropology. Cambridge: Cambridge University, 1996. SYME, R. Tacitus. Boston: Clarendon Press, 1997. TREGGIARE, S. Putting the Family Across: Cicero on Natural Affection. In: GEORGE, Michele (Ed.). The Roman Family in Empire, Rome and Beyond. Oxford: Oxford Press, 2005, p. 9-36. PATERSON, J. Friends in high places: the creation of the court in Rome Empire: In: SPAWFORTH, A.JS (Ed). The Court and the Court Society in Ancient Monarchies. Cambridge: Cambridge Press,2007,p.121-155. Recebido em 14/9/2019 e aceito em 3/10/2019. 88 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. A utilização da arquitetura por Augusto como estratégia de poder durante o principado Macsuelber de Cássio Barros da Cunha Doutorando em História (UFG) Bolsista da CAPES macsuelber@hotmail.com Orientadora: Profª. Dra. Ana Teresa Marques Gonçalves Res u mo A importância conferida por Augusto à arquitetura foi expressiva, de tal forma que em diversos momentos de seu governo ele demonstrou o interesse que dedicava a este aspecto, bem como foi enaltecido e eternizado por diversos autores que escreveram sobre ele, louvando esta sua atitude de empenho na construção, material e simbólica, de Roma enquanto capital de um vasto império territorial. Neste trabalho, refletimos sobre os precedentes de Augusto quanto à utilização da arquitetura para a perpetuação de uma memória, para a manutenção de poder e prestígio e para o engrandecimento e embelezamento de Roma, bem como tratamos da forma como Augusto se inseriu nesta tradição do uso da arquitetura, superando seus predecessores, de modo que ele foi tomado como o modelo que deveria ser emulado pelos que o sucederam. Pa lav r as - chav e Roma; Augusto; Construções; Arquitetura. Abs t rac t The importance given by Augustus to architecture was expressive, so that at various times of his government he showed his interest in this aspect, as well as was praised and eternalized by several authors who wrote about him, praising his attitude of commitment in the material and symbolic construction of Rome as the capital of a vast territorial empire. In this paper, we reflect on Augustus’ precedents regarding the use of architecture for the perpetuation of memory, the maintenance of power and prestige, and the enhancement and beautification of Rome, as well as the way in which Augustus inserted himself in this tradition of use of architecture, surpassing 89 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. its predecessors, so that he was taken as the model to be emulated by those who succeeded him. Key w or ds Rome; Augustus; Constructions; Architecture. Int ro d u ç ão A arquitetura constituía uma importante ferramenta política na Antiguidade, pois por meio dela poder-se-ia imortalizar o nome e os feitos da pessoa responsável pela construção, na medida em que seu nome ficaria sempre ligado à ela, mesmo após sua morte, principalmente pelo fato de que era dever da família manter, e se fosse preciso, restaurar a obra ao longo do tempo. A arquitetura, portanto, deveria manter vivo, na memória das futuras gerações, o nome de seu idealizador e os fatos relacionados à sua obra arquitetônica. Otávio Augusto, considerado o primeiro imperador de Roma, ao longo de seu governo se utilizou em grande medida de construções e reconstruções de edifícios públicos como uma de suas estratégias políticas. Dando continuidade a esta prática tradicional, ele se utilizou da arquitetura para o engrandecimento, dignificação e monumentalidade de Roma, que passou a ser a capital do mundo conhecido, e junto a isso imortalizou seu nome e seus feitos, sendo visto pela posteridade como aquele que transformou Roma numa cidade de mármore. No imaginário romano cristalizou-se a percepção de que a utilização da arquitetura era extremamente importante não só para a cidade de Roma como para a imagem de seus responsáveis, de modo que os reis do passado e muitos outros importantes personagens da história romana tinham seus nomes relacionados com alguns edifícios públicos que faziam parte da história topográfica de Roma. E Augusto soube se inserir neste costume, dando atenção redobrada à arquitetura, moldando uma nova forma de governo que passaria a ser conhecida como principado, mas também construindo e remodelando o suporte material que daria sustentação e que permitiria o desenvolvimento do principado, bem como de Roma enquanto capital de um amplo império. No entanto, antes de tratarmos sobre a utilização da arquitetura pelo princeps, é necessário que falemos um pouco sobre as importantes figuras que serviram de precedente no que concerne ao afã construtivo, pois, apesar da negligência a que os autores do período de Augusto aludem e à qual teriam sido entregues os templos e outros edifícios públicos, devido às guerras civis, no passado recente do romano de então, Roma tinha servido de palco para o surgimento de importantes obras arquitetônicas que a embelezaram e a engrandeceram, proporcionadas por homens como Sula, Pompeu, César e outros. Recuando um pouco mais, percebemos que o segundo século a.C. presenciou importantes mudanças em Roma. De acordo com Fillipo Coarelli (2007, p. 4-5), nes- 90 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. te período, o desejo de conquistar apoio político do povo romano fez com que famílias importantes buscassem exibir seu poder e prestígio como estratégia política, de modo que o Fórum1, o Capitolino2 e o Campo de Marte3 foram adornados com pórticos, jardins, templos monumentais e complexos de entretenimento; além disso, novas instalações, incluindo um porto, armazéns e aquedutos, contribuíram para o suprimento da cidade. De acordo com este autor, o fenômeno do desenvolvimento urbano baseado na exibição de riqueza e poder é uma característica distintiva do Fórum, do monte Capitolino e do Campo de Marte. Além disso, como nos esclarece Diane Favro: P ara a sociedade romana em particular, as intervenções urbanas foram muitas vezes altamente politizadas. Os patronos antigos buscaram o retorno máximo de seus investimentos usando cada estrutura para transmitir o significado desejado, além de atender a uma função específica. Os edifícios eram ferramentas de autoavaliação, competição política e glorificação do Estado. [...] À medida que a posição de certos indivíduos se inflava no final da República, eles começaram a explorar projetos cada vez maiores como transmissores de status pessoal e propaganda, incluindo paisagens urbanas. Simultaneamente, a população assumiu uma relação proprietária com todos os edifícios dentro da cidade e com suas mensagens codificadas (FAVRO, 2008, p. 10). De acordo com D. Strong (1968, p. 101), Sula foi o primeiro romano da República com a ambição, os recursos e a oportunidade de contemplar a reconstrução de Roma pro maiestate imperii; ele não era apenas um general triunfante a construir em Roma, ele tinha esquemas muito maiores de reconstrução e melhoria, e ele atuava como magistrado no cargo com autoridade especial do Senado para realizar determinadas obras públicas importantes. Para Favro (2008, p. 55-57), os projetos de Sula em Roma revelam uma grandeza de concepção e uma monumentalidade urbana que faltavam em obras republicanas anteriores. Após o incêndio de 83 a.C., que destruiu o Templo de Iupiter Optimus Maximus no Capitólio, Sula iniciou sua reconstrução, na qual planejou substituir a estrutura de estilo etrusco por um templo em mármore; para isso, ele trouxe as enormes colunas do templo inacabado de Zeus Olympieion de Atenas. Com a morte de Sula, Cátulo4 completou a reconstrução, assim como terminou a construção do 1 O Fórum Romano era o coração da Vrbs, centro de destacada importância política, religiosa, econômica e social. 2 Uma das sete colinas de Roma, o Capitolino possuía grande importância simbólica, social, religiosa e política. Era sobre esta colina que estava o templo de Iupiter Optimus Maximus, principal templo de Roma. 3 Região dedicada a Marte. Foi o lugar de discussão de assuntos militares e eleições mantidas nos comitia centuriata (eleição de Cônsules, Pretores e Censores) e mais tarde nos comitia tributa (eleição de Questores, Tribunos e Edis); também era o local onde a cada cinco anos o censo era realizado. 4 Quinto Lutácio Cátulo foi cônsul em 102 a.C., juntamente com Caio Mário. Depois de um desentendimento com este último, Cátulo se aliou a Sula. 91 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Tabularium (Fig. 1), que conferiu uma silhueta equilibrada e monumental na fronteira entre a colina Capitolina e o Fórum Romano. Sula também começou a retrabalhar o Fórum Romano, fazendo uma nova pavimentação de tufo Monte Verde, que elevou a área aberta central do Fórum quase um metro, o que exigiu a reformulação de praticamente todas as estruturas do Fórum, bem como das estradas que levavam às colinas Palatina e Capitolina. Também foi responsável pela reconstrução da Cúria Hostília (Fig. 1). Além de transformar o Capitólio e o Fórum, Sula financiou dois templos para Hércules e realizou melhorias nas estradas em toda a cidade. Para Favro (2008, p. 55-57), Sula conseguiu fazer suas próprias intervenções em Roma e dirigir as de outros e, com seus poderes ditatoriais, ele começou a olhar para os ambientes urbanos como demonstradores de sua elevada posição pessoal. Além disso, as intervenções de Sula na paisagem urbana refletem seus poderes pessoais e sua busca por fama, mas simultaneamente estão na tradição dos magistrados anteriores que financiaram projetos urbanos para melhorar o domínio público. Figura 1: Monte Capitolino e Fórum Romano no tempo de Sula: (A) Templo de Júpiter Capitolino, (B) Tabularium, (C) Templo de Concórdia, (D) Cúria Hostília, (E) Basílica Emília, (F) Templo de Vesta, (G) Templo de Castor e Pólux, (H) Templo de Saturno (STAMPER, 2005, p.83). Entre os anos de 60 e 50 a.C., o cenário construtivo em Roma foi dominado por Pompeu e César. Pompeu construiu o primeiro teatro5 de pedra permanente em 5 Segundo Richardson (1992, p. 380), em Roma, a princípio, as peças eram realizadas em simples palcos de madeira e uma vez que todo o drama era uma forma de observância religiosa, deve ter se tornado costumeiro construir o palco em frente aos degraus do templo e usá-los para permitir aos espectadores obter uma melhor visão dos procedimentos. Com a crescente popularidade do drama e a multiplicação de ocasiões que permitiam os ludi scaenici, os responsáveis por montar teatros construíram teatros cada vez mais belos, mas no início eles eram sempre desmontados no final, já que teatros 92 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Roma com um pórtico adjacente e um local de encontro para o Senado. O teatro foi dedicado em 55 a.C. e no alto da cávea havia um templo para Vênus Victrix; o edifício de Pompeu e a escolha do local teriam influência de longo alcance sobre a história da arquitetura romana. O teatro estabeleceu o modelo a ser seguido em todo o império. César também teve papel atuante na mudança da paisagem arquitetônica de Roma, no entanto, seus planos eram muito mais ambiciosos e muito mais claramente direcionados. Ao contrário de Pompeu, César teve um interesse genuíno no planejamento para apoiar suas atividades. Ele escolheu limitar-se a projetos de utilidade pública que normalmente eram de responsabilidade dos censores, mas seus esquemas eram muito mais onerosos e ambiciosos do que qualquer censor já havia realizado (STRONG, 1968, p. 101-102). A atividade construtiva de César foi enorme e entre as obras atribuídas a ele se encontram a Basílica Júlia6, a Cúria Júlia7 e uma Rostra8, no Fórum Romano e o grandioso Fórum Júlio, considerado o primeiro dos fóruns imperiais, já que serviu de inspiração para os posteriores, sendo constituído de um amplo espaço retangular aberto, cercado por pórticos e com um templo, dedicado a Vênus Genetrix, em lugar de destaque. Além disso, ele planejou a construção de um teatro9, da Saepta Júlia 10, das primeiras bibliotecas públicas em Roma, e teria planejado alterar o curso do rio Tibre11 . Com sua morte, muitos de seus projetos tiveram que ser terminados por Otávio Augusto. D urante o tempo de Pompeu e Júlio César, a arquitetura de templos e fóruns de Roma tornou-se cada vez mais monumental, o uso do mármore como material de construção e a Ordem Coríntia deram uma nova qualidade e grandeza ao desenvolvimento urbano. permanentes eram proibidos em Roma. Em 151 a.C. os Censores se comprometeram a construir um teatro permanente, mas o Senado decretou que o teatro deveria ser desmanchado. Esta proibição não deve ter durado muito tempo, pois antes de 100 a.C., L. Licínio Crasso trouxe colunas de mármore para adornar o teatro que ele construiu. Em 58 a.C., Emílio Escauro construiu um teatro de luxo e com rico adorno, que permaneceu por vários anos. Mas o primeiro teatro permanente em Roma foi o de Pompeu. 6 As basílicas serviam especialmente como salas de negócios, lugares onde os banqueiros montaram suas mesas e coisas do gênero. Local privilegiado para a realização de tribunais. A Basílica Júlia foi iniciada por Júlio César por volta de 54 a.C., com os despojos das guerras Gálicas, e foi dedicada inacabada em 46 a.C., de modo que após a morte de César, Otaviano terminou a construção 7 Edifício no qual se reuniam os Senadores. Tal edifício foi iniciado por César no início de 44 a.C., e concluído por Otaviano, que o inaugurou em 29 a.C. 8 Plataforma de oradores geralmente decorada com rostra, esporões de navios, de onde deriva seu nome. 9 Tal teatro iniciado por Júlio César foi concluído por Augusto em 13 a.C. e recebeu o nome de seu sobrinho Marcelo. 10 A Saepta era um grande recinto retangular que foi iniciada por Júlio César, que a projetou já em 54 a.C. para substituir o antigo local de votação (Ovile) dos romanos nos comitia centuriata e tributa. Foi concluída e dedicada por Agripa em 26 a.C. 11 César teria concebido a ideia de alargar o Campus Martius desviando o Tibre, mas até onde sabemos o projeto nunca foi mais do que uma proposta. 93 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Novas configurações foram planejadas para os templos para fazê-los parecer ainda mais grandiosos. Em um caso, o templo foi colocado no topo da cávea de um teatro; em outro, foi enquadrado por dois longos pórticos. Os templos foram feitos maiores do que os seus homólogos romano-etruscos, sua altura foi atenuada, e seus materiais de construção eram mais bonitos (STAMPER, 2005, p. 84). Além das atividades destas importantes figuras no que concerne à arquitetura dos edifícios públicos em Roma, e que serviram de precedente à atividade construtiva de Augusto, não podemos deixar de tratar aqui, mesmo que rapidamente, do importante papel desempenhado pelos uiri triumphales, que, com o espólio de suas conquistas, dedicaram templos e outros edifícios públicos em Roma. Mesmo porque, como vimos, tais empreendimentos elevavam o prestígio daqueles que propiciavam tais obras para a cidade. No que concerne à construção de templos, de acordo com Eric Orlin (2002, p. 67), os generais, ao os prometerem e os construírem durante a República, poderiam criar a imagem de um indivíduo que colocava os interesses do Estado acima dos interesses próprios, visto que a construção de um templo servia aos “melhores interesses do Estado”. Ainda com relação à construção da moradia dos deuses Adam Ziolkowski (1992, p. 307) ao longo de sua obra demonstra como tal empreendimento foi amplamente utilizado durante a República, em especial a partir do quarto século a.C., pois segundo este autor mais de 50 templos foram construídos entre 396 e 219 a.C. e cerca de 35 foram construídos entre 218 e 50 a.C. Os uiri triumphales seguiram uma prática há muito estabelecida. O costume de comemorar um triunfo com a construção de um edifício público de manubiis12, ou seja, com as riquezas advindas dos espólios de guerra, era um costume não só atestado por frequentes referências a esses edifícios nos registros históricos da República, como também era reconhecido pela tradição como um acompanhamento do triunfo. Com as riquezas advindas do espólio, o general triunfante deveria arcar com o pagamento de seus soldados, com o pagamento das despesas do triunfo, e com a construção de um templo ou edifício público. Quando um general vitorioso se comprometia a fazer tais construções de manubiis, o fazia com prontidão razoável, uma vez que o progresso do edifício era algo que todos podiam ver. Além disso, quando uma grande obra pública de alguma magnitude era atribuída a um general conhecido por ter recebido um triunfo, o edifício tinha maior probabilidade de estar conectado com a vitória e o triunfo, uma vez que a opção de gastar os manubiae em tal edifício criou a condição mais favorável para a construção de um monumento em grande escala (SHIPLEY, 1931, p. 11-12). Vemos com isso, a importância que as construções possuíam com relação à memória. Segundo Catherine Baroin (1997, p. 610), a memória ocupava um lugar central na cultura romana; os antigos atribuíam aos lugares um poder de lembrete e o próprio monumentum era um lembrete, de modo que os lugares onde havia monu12 De acordo com Eric Orlin (2002, p. 117), não há um consenso com relação a uma definição precisa do termo manubiae, de modo que podemos afirmar apenas que o termo se refere aos espólios de guerra e que os generais vitoriosos possuíam a iniciativa de organizar a distribuição de tais espólios. 94 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. menta referentes a homens do passado eram portadores de memória, memória que os sucessores escolheram manter ou suprimir e para o qual eles queriam adicionar ou substituir seus próprios traços. De acordo com Mary Jaeger (1997, p. 18, apud: ORLIN, 2007, p. 83), “o monumento controla e dirige os pensamentos do espectador enquanto se movem do presente ao passado, depois de volta ao presente e ao futuro”. Desta forma, as construções realizadas pelos uiri triumphales, com os espólios de guerra, constituíam verdadeiros monumentos que evocavam o passado e perpetuavam a recordação, mantendo o nome deles vivo na memória da população, mesmo porque, como nos esclarece Geoffrey Sumi (2009, p. 168), para os romanos, grande parte da sua história estava contida nos monumentos que salpicavam a paisagem da cidade, e esses monumentos agiam como uma espécie de dispositivo mnemônico que permitia aos romanos lembrar alguns dos grandes eventos do passado. Seguindo a mesma perspectiva, Favro (2008, p. 48) afirma que: N o primeiro século a.C., quase todos os cantos urbanos evocavam memórias de eventos significativos. O tecido urbano serviu como um recorde histórico. A cada passo, o pedestre encontrava documentação dos grandes residentes da cidade. Inscrições, esculturas, pinturas, relevos e nomes de construções, todos transmitiam informações sobre o passado (FAVRO, 2008, p. 48). E Augusto era ciente da importância da arquitetura com relação à memória e soube utilizá-la para o engrandecimento e monumentalidade da cidade, bem como para a melhoria da infraestrutura romana, o que permitia o desenvolvimento da capital como sede do império. Tanto que, já no período triunviral, ele e Agripa demonstraram bastante preocupação com a manutenção e a construção de edifícios públicos e de outros componentes da infraestrutura básica da cidade, preocupação demonstrada, por exemplo, por meio dos templos iniciados neste período ou por meio das atividades desenvolvidas no ano de 33 a.C.; após a vitória em Ácio, contra Marco Antônio e Cleópatra, também percebemos este interesse de Augusto com relação à utilização da arquitetura na construção de uma imagem positiva de si, não só pelas construções empreendidas em Nicópolis13 , como também pelas intervenções realizadas no Campo de Marte, pelas importantes construções consagradas no Fórum Romano, após seu triplo triunfo, e pelos inúmeros templos restaurados por ele em 28 a.C. Além disso, seu Fórum, juntamente com o templo dedicado a Marte Vingador, foi o projeto que melhor ressaltou sua imagem do triunfador que proporciona obras grandiosas a partir das riquezas advindas dos espólios de guerra, de forma que ele, assim o fazendo, se inseria na tradição dos uiri triumphales. Com relação a sua imagem de triunfador é importante ressaltar que Augusto manipulou cerimônias políticas e explorou a mídia visual de forma a monopolizar tal imagem. Paradoxalmente, uma das formas que ele se utilizou para isso foi evitando 13 Cidade dedicada à Vitória, fundada por Otaviano próximo ao promontório de Ácio. 95 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. procissões triunfais depois de seu magnífico triplo triunfo em 29 a.C., além de conseguir restringir os triunfos de outros generais. Ao mesmo tempo ele fez pleno uso de outras cerimônias, honras, moedas e monumentos que proclamavam sua associação pessoal e contínua com o papel de triunfador (HICKSON, 1991, p. 124). Tal política foi de extrema importância, haja vista que, no que se refere às vitórias militares, o então Otaviano tinha rivais que poderiam competir com ele pela proeminência em Roma. Como nos lembra Rosalinde Kearsley, ao afirmar que Licínio Crasso, cônsul em 30 a.C., caracterizou-se como um potencial rival e o mais indesejado à reivindicação de Otaviano pela liderança militar de Roma após 31 a.C., pois em sua campanha militar como governador da Macedônia, Crasso se distinguiu entre os comandantes romanos de uma maneira extremamente rara, já que ele conseguiu capturar a armadura do rei inimigo em combate singular (2009, p. 148-156). Segundo esta autora, para Otaviano, essa conquista deve ter representado o surgimento de uma ameaça perturbadora para seu próprio desejo de supremacia contínua. Ele não podia permitir que Crasso o superasse devido à importância que a dedicação dos spolia opima tinha no imaginário da época, já que a façanha dos spolia opima tinha sido alcançada por apenas três romanos antes dos 29 a.C., sendo que Rômulo foi o primeiro. Isso deve ter marcado Crasso como o oponente mais perigoso de Otaviano, de modo que Crasso realizou o triunfo, mas não pode dedicar os spolia opima. De acordo com Frances V. Hickson (1991, p. 127-128), a vitória para a qual Crasso recebeu seu triunfo provavelmente desempenhou um papel muito importante na decisão de Augusto de buscar uma política mais restritiva em relação aos triunfos. Certamente ele não gostou de oferecer a um líder militar rival uma oportunidade tão extraordinária de atrair o favor popular em um momento em que ele ainda estava consolidando seu próprio poder. Para este autor, a experiência com Crasso enfatizou a necessidade de lidar com potenciais rivais, que ainda ameaçavam o poder do novo regime, levando Augusto a estabelecer políticas mais restritivas em relação aos triunfos, de modo que, em 27 a.C., Augusto realizou uma reorganização da administração provincial, na qual ele nomeou os legati pro praetore para governar a maioria das províncias onde as campanhas militares eram comuns. Esses legati lutavam sob os auspícios de Augusto e como não possuíam auspicia independente, nenhum desses generais recebeu triunfos por suas vitórias. Nas restantes províncias, o Senado continuou a nomear procônsules possuindo auspicia sua e, portanto, o direito de triunfar. Mas como este autor nos lembra, com exceção da África e da Macedônia, essas províncias não precisavam de presença militar significativa e ofereceu poucas oportunidades para vitórias dignas de triunfos. Percebemos, com isso, como Augusto se utilizou da imagem de triunfador e de seu papel de proporcionar grandes obras arquitetônicas ao povo, para construir uma imagem positiva de si, deixando seu nome, seus feitos e suas obras arquitetônicas inscritos na memória das futuras gerações. A o celebrar apenas o triplo triunfo, Augusto centrou a propaganda triunfal do Principado nesse evento extraordinário. O número três é significativo. Augusto colocou-se firmemente dentro da tradição 96 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. republicana, recusando-se a aceitar novos triunfos. De acordo com os fasti triumphales, apenas três homens haviam excedido esse número; todos eram ditadores. Claramente, essa não era uma imagem que Augusto desejaria promover. Ao limitar-se a três triunfos, no entanto, Augusto identificou-se com um líder cuja imagem ele achou agradável. Os três primeiros triunfos listados nos fasti triumphales pertencem a Rômulo, o primus conditor urbis. Das vitórias de Augusto, evidências monumentais e numismáticas indicam que Ácio foi o principal assunto das imagens de triunfo. Esta foi a vitória pela qual, como a propaganda imperial sublinhou, Augusto preservara a República. Ao não celebrar triunfos repetidos por vitórias menores ou vitórias em que ele desempenhou um papel menor, Augusto protegeu sua imagem como triumphator par excellence (HICKSON, 1991, p. 137). Deste modo, o princeps estava inserido na forma tradicional de embelezar Roma com grandiosas construções, como Sula, Pompeu, César e outros uiri triumphales haviam feito. No entanto, ele levou esta prática a um elevado grau de sofisticação, de modo que, apesar do grande número de construções durante a República, alguns autores defendem que tais empreendimentos não se comparam com os feitos de Augusto durante seu governo. Diane Favro (2007, p. 235), por exemplo, defende que, antes do fim do primeiro século a.C., esforços para o engrandecimento de Roma foram episódicos e mesmo as magníficas obras arquitetônicas erguidas por generais durante o segundo e primeiro séculos a.C. tiveram um impacto coletivo limitado e não conseguiram transformar Roma. “Apenas quando o poder se concentrou sob um homem que a preocupação com a imagem urbana de Roma como um todo começa a ser abordada” (FAVRO, 2007, p. 235). Ao ler o prefácio do primeiro livro do De Architectura 14, no qual Vitrúvio dedica a obra a este governante, podemos perceber por meio da escrita deste arquiteto a importância que Augusto conferiu à arquitetura para o engrandecimento de Roma, bem como podemos perceber a importante relação existente entre a arquitetura e a perpetuação da memória. Vitrúvio inicia sua obra se dirigindo a Augusto nos seguintes termos: H avendo a tua divina mente e a tua grandeza, ó Imperador César, submetido o mundo com Império, prostrados com força invicta todos os inimigos, tendo-se gloriado os cidadãos com a tua vitória e triunfo, dependendo do teu gesto todos os povos submetidos e sendo governados o Povo e o Senado romanos, livres de temor, pelos teus preciosíssimos pensamentos e conselhos, não ousarei, no meio de tantas ocupações, apresentar-te um Tratado sobre Arquitetura, escrito e concluído depois de profundas reflexões, temendo encontrar desagrado no teu espírito, perturbando-o em tempo inoportuno (Vitr. 1. Pr. 1). 14 Único tratado de arquitetura a nos chegar praticamente completo da Antiguidade aos nossos dias. Obra composta por 10 livros, foi escrita por Vitrúvio, que a dedicou a Augusto, tendo publicado sua obra por volta de 27 a.C. 97 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Antes de qualquer coisa, devemos destacar que, no trecho acima, Vitrúvio se dirige ao princeps como Imperator Caesar 15, alusão clara às vitórias e triunfos de Augusto e que lhe conferiram este título. Além disso, tal forma de nomeá-lo permite-nos ter uma noção de quando a obra foi escrita e publicada. Segundo M. Justino Maciel (2007, p. 34-35), a redação e publicação do De Architectura estão inseridas na época que corresponde ao início do governo de Otávio Augusto, embora muito provavelmente os primeiros apontamentos e a preparação da obra seriam anteriores. A redação definitiva deve ter coincidido com o momento no qual se observou em Roma um grande desenvolvimento construtivo sob as ordens de Augusto. Maciel esclarece ainda que as referências da dedicatória e a menção de edifícios da cidade levam a pensar na redação da obra entre 35 e 25 a.C., e que a entrega definitiva ao Imperador pode ter ocorrido mesmo até 20 a.C., embora o mais provável é que tenha ocorrido antes de 27 a.C., pois neste ano o Imperador ganhou o título de Augusto, e Vitrúvio em toda a obra jamais se dirigiu a ele utilizando este título, de modo que sempre usou os termos Imperator, Caesar ou Imperator Caesar16. Também percebemos neste trecho o tom elogioso com o qual Vitrúvio se dirigiu ao imperador, exaltando sua divina mente e grandeza. Esta menção à divina mente de Augusto pode ser vista como uma clara ligação com aspectos divinos do qual o Imperador era portador 17. A menção que Vitrúvio faz ao grande poder de Augusto, que com imperium submeteu o mundo (orbis terrarum) e com força invicta derrotou todos os inimigos, pode associar-se à noção que se tinha à época, na qual Roma era a capital do amplo Império territorial que abrangia praticamente todas as terras existentes, pelo menos como estava expresso materialmente no mapa de Agripa18 e nas diversas moedas que representavam a Vitória sobre o globo. Por meio deste trecho, Vitrúvio expressa também a percepção de que o domínio sobre todo o orbis terrarum se deu após a derrota dos inimigos, ou seja, da paz advinda da guerra. Dentre estes inimigos que 15 Segundo Paulo Martins (2011, p. 50), o título honorífico de imperator “concedido ao general depois de uma campanha vitoriosa implicava não só a habilidade específica na arte de guerrear, mas também a excelência e a capacidade de definição e de compreensão do todo em relação à parte”. De acordo com Frances V. Hickson (1991, p. 132), Otaviano passou a usar o título de imperator como prenome. Para este autor isso era algo incomum, talvez novo, e Dion Cássio estava errado em sua declaração de que Otaviano recebeu esse direito em 29 a.C., já que a evidência epigráfica apoia uma data anterior, talvez já em 38 ou 40. “Seja qual for a conotação mais ampla que possa ter evocado, a imagem do triunfador foi inquestionavelmente presente — um general que, em virtude de seu imperium e proeza, ganhou uma aclamação imperatorial. Ao assumir o nome de Imperator, Otaviano fez desta imagem uma posse pessoal permanente”. 16 Apesar deste importante dado que ajuda a estabelecer a datação da obra, nos deparamos com um problema, pois, como lembra Maciel, Vitrúvio (Vitr. 5. 1. 7) refere-se a um templo de Augusto (aedis Augusti) na basílica de Fano, o que fez com que os pesquisadores acreditem que a escrita do livro 5 é posterior ou que o mesmo tenha sofrido alterações em edições posteriores. 17 Seja por ser o filho de um diuus; seja porque Vitrúvio estivesse sob a influência de cidades helenísticas, nas quais grandes homens, ainda vivos, poderiam ser venerados como deuses; seja, simplesmente, pelo fato de que entre os romanos existia o culto ao genius do pater familias, ou seja, o culto à potencia divina inerente no pater familias. 18 Por volta de 12 a.C. Agripa mandou preparar um grande mapa do mundo, que foi concluído por 98 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Vitrúvio tinha em mente, podemos nos atrever a colocar Cleópatra e Marco Antônio, figuras chave em toda ideologia e propaganda desenvolvida na época e sobre as quais Augusto triunfou em 29 a.C. A ligação deste trecho com a vitória de 31 a.C., em Ácio, fica ainda mais evidente pelo fato de que Vitrúvio fala claramente sobre a glória que Augusto trouxe aos cidadãos por meio de sua vitória e triunfo (tendo-se gloriado os cidadãos com a tua vitória e triunfo. (Vitr. 1. Pr. 1), menção clara ao triplo triunfo de Augusto. Por meio desta vitória e triunfo, o povo e o senado ficaram livres do temor, temor este que pode ser associado aos tumultuosos anos de guerras civis que haviam assolado Roma antes da vitória de Augusto sobre Cleópatra e Marco Antônio. Vitrúvio coloca o poder de Augusto acima de todos os outros, pois do gesto dele dependiam todos os povos submetidos, e o povo e o senado seriam governados por seus conselhos e pensamentos. Além disso, podemos perceber a semelhança entre a linguagem de Vitrúvio e a de Augusto, nas Res Gestae19, pois no prefácio desta , Augusto menciona, assim como Vitrúvio, o fato de ter submetido o mundo, diferindo apenas pelo fato de que Augusto acrescenta que submeteu o mundo ao império do povo romano. Além disso, na parte 5 das Res Gestae, Augusto afirma que livrou toda a comunidade do medo e dos perigos, assim como Vitrúvio ao falar que o povo e o senado romanos estavam livres de temor. No fim deste trecho Vitrúvio esclarece que o tratado foi escrito e concluído após profundas reflexões, exaltando, com isso, o seu próprio trabalho e o valor de seus escritos. Ele afirma também que não ousaria incomodar Augusto, se visse que isso lhe traria algum desagrado. No entanto, no trecho seguinte de seu prefácio, Vitrúvio se torna ainda mais claro ao explicitar o motivo que o fez ousar e apresentar o seu trabalho a Augusto, quando afirma: T endo, porém, notado que não apenas te preocupas com a vida comum de todos e com a ordem do Estado, mas igualmente te empenhas com a oportunidade dos edifícios públicos, porque a Cidade não foi apenas engrandecida, através de ti, com as províncias, mas também a dignidade do Império foi sublinhada pela egrégia autoridade dos edifícios públicos, julguei que não deveria adiar, mas, bem pelo contrário, deveria te apresentar, quanto antes, estes escritos sobre estas coisas [...] (Vitr. 1. Pr. 2). Neste importante trecho, Vitrúvio esclarece que não adiou a publicação de sua obra, pois percebeu a preocupação de Augusto não só com a vida em comum e com a ordem do Estado, mas também com a importância dos edifícios públicos. Vitrúvio mostra que sob o governo de Augusto tanto a cidade quanto as províncias foram Augusto. Tal mapa se localizava no Pórtico Vipsania. Provavelmente deve ter sido desenhado de forma alongada ao longo da parede do pórtico, com dimensões de 30 pés por 60 pés. 19 “Abaixo uma cópia dos feitos do Divino Augusto, pelos quais submeteu o mundo ao império do Povo romano, e dos gastos que fez pela República e pelo Povo romano, registrados em dois pilares de bronze postos em Roma” (Aug. Anc. Pr.). 99 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. engrandecidas com tais construções, de tal forma que a atividade construtiva possibilitou que a dignidade, a majestade do império (maiestas imperii) fosse sublinhada pela egrégia autoridade dos edifícios públicos. De acordo com Lothar Haselberger (2007, p. 52), se César já havia considerado que a aparência de Roma estava muito aquém da dignidade e do atual poder do império, depois da vitória de Otávio Augusto em Ácio e Alexandria, esta paradoxal relação entre a aparência da cidade e a maiestas imperii deve ter parecido bem mais óbvia. Segundo este autor, Vitrúvio, no trecho acima citado, ao tratar sobre o engrandecimento da cidade e das províncias e sobre as mudanças iniciadas por Augusto, não era uma voz solitária neste período (em torno de 27/25 a.C.), pois Roma já estava experimentando um processo de dramática mudança. Vitrúvio, conhecedor do potencial que a arquitetura possuía de conferir grandeza e monumentalidade para as cidades, aproveitou este momento de grande atividade construtiva para apresentar seu trabalho, “escrito e concluído após profundas reflexões” (Vitr. 1. Pr. 1), para o Imperator Caesar. Com isso ele ligava seu nome de modo imorredouro àquele que se orgulhava de ter transformado em mármore a cidade de tijolos que tinha encontrado. Na última parte deste prefácio, Vitrúvio deixa ainda mais evidente o importante papel desempenhado por Augusto na indústria construtiva de Roma, de modo que o princeps figura como sendo o patrono de diversos monumentos espalhados pela cidade. Junto a isso, Vitrúvio expressa a relação entre a arquitetura e a memória ao dizer: “[...] verifiquei que edificaste e edificas no momento presente muitos monumentos e no futuro te preocuparás com edifícios públicos e privados, para que sejam entregues à memória dos vindouros como testemunho dos feitos notáveis” (Vitr. 1. Pr. 3). Este trecho de sua obra é significativo, pois demonstra a relação existente entre a arquitetura e a memória, tanto quanto mostra a preocupação de Vitrúvio e de Augusto com relação a este aspecto. Nele podemos perceber a figura do arquiteto atento, que, conhecedor da importância das grandes obras arquitetônicas para a perpetuação do nome de seu idealizador e de seus grandes feitos, buscou se ligar ainda mais ao seu governante, que edificou, edificava e continuaria edificando muitos monumentos, para que fossem entregues à memória das futuras gerações. D uas memórias complementares estão em ação aqui. Uma delas, a da posteridade, deve ser equipada com edifícios que localizam as realizações do construtor, que, sem tais loci para dar-lhes substância, seria levado ao esquecimento, [...]. A outra memória pertence ao próprio construtor — Augusto. A primeira, a memória da posteridade, Vitrúvio indica, precisa do segundo [...] (MCEWEN, 2003, p. 87). Vemos deste modo o importante papel desempenhado pelos monumentos augustanos de resguardar e imortalizar uma memória modelada por Augusto para atender a seus interesses. O princeps deu continuidade à tradição romana de se utilizar da arquitetura para conquistar maior prestígio e glória ao passo que conferia 100 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. uma grande obra para a cidade. Essa tradição, que vinha dos tempos da realeza, passando pelos grandes generais e pelas famílias aristocráticas da República, foi amplamente desenvolvida por Augusto, de modo que com ele surge uma arquitetura imperial que seria emulada por outras regiões do império, bem como serviria de inspiração e modelo para outros Imperadores depois dele. ugusto foi notável em seu desejo de forjar um vínculo estreito entre seu regime e as antigas tradições de Roma e do Lácio, especialmente aqueles que poderiam servir para legitimar seu governo. Em particular, certas tradições “régias” referentes aos monarcas etruscos e romanos dos séculos VII e VI a.C. [...]. A criação do que podemos caracterizar como arquitetura “imperial” foi, portanto, um produto da competição pelo poder por parte dos homens dominantes da época, de uma tradição manipulada do passado régio de Roma e de uma adaptação de formas arquitetônicas importadas, facilmente encontradas nas terras das recém-conquistadas monarquias helenísticas (NIELSEN, 2014, p. 46). a De acordo com William L. MacDonald (1985, p. 138), as combinações de elementos de design e formas primárias que imediatamente lemos como imperiais surgiram fortemente nos tempos de Augusto. Símbolos arquitetônicos sem os quais nenhuma cidade ou vila em todo o império podia reivindicar adequadamente ser romana tiveram, pela primeira vez, ampla circulação e um conteúdo simbólico apropriado enquanto a própria síntese imperial estava sendo construída. Para este autor, neste período percebem-se duas mudanças principais nos princípios formais de composição: o primeiro é que o grau de complexidade do projeto aumentou substancialmente, resultando em composições mais complexas e articuladas. O segundo é que esse enriquecimento da arquitetura tradicional, essa multiplicação e redistribuição de elementos clássicos de desenho, baseados em parte em invenções helenísticas, se fundiram a formas arquetípicas romanas. Além disso, como esclarece Edmund Thomas (2007, p. 22), tal como acontece com os reis helenísticos no mundo grego, o critério de tamanho enorme, altura e dominação sobre outros edifícios foi uma característica importante da ideologia arquitetônica dos primeiros imperadores romanos, já que edifícios altos incorporavam a autoridade de seus construtores. Assim, o novo regime foi marcado por um aumento na escala dos edifícios públicos, uma das formas de monumentalidade. De acordo com Favro (2008, p. 248-249), Augusto herdou um ambiente no qual a paisagem urbana republicana estava abandonada, era materialmente pobre e desmoralizada. Como resultado, cada enriquecimento, cada melhoria nas condições tornou-se notável. Depois de décadas de confrontos sangrentos e perigo nas ruas, os moradores naturalmente elogiaram a segurança relativa iniciada com Augusto. Dentro do tecido urbano republicano preexistente, os projetos deste princeps formaram um grupo convincente. Para esta autora, a unidade perceptual desses trabalhos resultou, em grande parte, da introdução em grande escala de mármores em uma pai- 101 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. sagem urbana de tijolos, uma transformação material raramente possível na história. “O mais óbvio de tudo, a era augustana foi o fulcro alavancando o estado romano, e sua capital, em direção a um domínio imperial” (FAVRO, 2008, p. 249). Deste modo, a utilização da arquitetura por parte de Augusto se inseriu na antiga tradição que remontava à realeza, passando pelas famílias aristocráticas, pelos uiri triumphales e por importantes personalidades que se destacaram na República Tardia; tradição esta, de conferir importantes construções para a Vrbs, de modo a imortalizar o próprio nome ao passo que engrandecia Roma com a egrégia autoridade dos edifícios públicos. No entanto, Otávio Augusto elevou ainda mais esta prática, desenvolvendo um amplo esforço construtivo e projetos com um alto nível de sofisticação e monumentalidade. A grandiosa Vrbs foi o palco escolhido por Augusto para desenvolver, por meio da arquitetura, um melhoramento da paisagem urbana, de modo que Roma passou a ser não apenas a capital do mundo conhecido, um símbolo de esplendor e grandeza, como também se constituía em uma verdadeira lição visual sobre a história romana, já que cada construção estava ligada a acontecimentos lendários ou históricos, recontando a história de Roma desde suas origens até o momento em que, sob seu governo, Roma alcançava novamente um tempo de paz e prosperidade, de forma que Augusto se tornaria o modelo a ser seguido. Li s ta d e Ab r eviat u r a s Aug. Anc. - Res Gestae Diui Augusti (Título em português: Augusto, Feitos do Divino Augusto). Vitr. - De Architectura (Título em português: Vitrúvio, Tratado de Arquitetura). Font e s Feitos do Divino Augusto. Trad. M. Trevizam; P. S. Vasconcellos; A. M. Rezende. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. VITRÚVIO. Tratado de Arquitetura. Trad. M. Justino Maciel. São Paulo: Martins, 2007. Ref e r ên c ias Bib l i o g r á f i ca s BAROIN, C. Mémoire romaines. École pratique des hautes études, Section des sciences religieuses. Annuaire, Tome 106, p. 609-611, 1997. COARELLI, F. Rome and Environs: An Archaeological Guide. Berkeley – Los Angeles – London: University of California Press, 2007. FAVRO, D. Making Rome a world city. In. GALINSKY, Karl. (Ed.). The Age of Augustus. New York: Cambridge University Press, 2007, p. 234-263. 102 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. FAVRO, D. The Urban Image of Augustan Rome. Los Angeles: Cambridge University Press, 2008. HASELBERGER, L. Urbem Adornare: Rome’s urban metamorphosis under Augustus. Pennsylvania: JRA Supp. 64, 2007. HICKSON, F. V. Augustus “Triumphator”: Manipulation of the Triumphal Theme in the Political Program of Augustus. Latomus, T. 50, Fasc. 1 (JAN.-MAR. 1991), p. 124-138, 1991. KEARSLEY, R. Octavian and Augury: The Years 30-27 B.C. The Classical Quarterly, New Series, v. 59, n. 1, p. 147-166, 2009. MACDONALD, W. L. Empire Imagery in Augustan Architecture. In: WINKES, R. The Age of Augustus: Interdisciplinary Conference Held at Brown University. Louvain-La-Neuve: Universite Catholoque de Louvain, 1985, p. 137-148. MACIEL, M. J. Introdução ao Tratado de Arquitetura. In: VITRÚVIO. Tratado de Arquitetura. Trad. M Justino Maciel. São Paulo: Martins, 2007. MARTINS, P. Imagem e Poder: Considerações sobre a Representação de Otávio Augusto. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011. MCEWEN, I. K. Vitruvius: writing the body of architecture. Massachusetts: Mit Press, 2003. NIELSEN, I. Creating Imperial Architecture. In: ULRICH, Roger B.; QUENEMOEN, Caroline K. (Eds.). A Companion to Roman Architecture. Malden: Blackwell Publishing Ltd, 2014, p. 45-62. ORLIN, E. Augustan Religion and the Reshaping of Roman Memory. Arethusa, 40(1), p. 73-92, 2007. ORLIN, E. Temples, Religion, and Politics in the Roman Republic. Boston: Brill Academic Publishers, 2002. SHIPLEY, F. W. Chronology of the Building Operations in Rome from the Death of Caesar to the Death of Augustus. Memoirs of the American Academy in Rome, v. 9, p. 7-60, 1931. STAMPER, J. W. The Architecture on Roman Temples: The Republic to the Middle Empire. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. STRONG, D. E. The Administration of Public Building in Rome During the Late Republic and Early Empire. Bulletin of the Institute of Classical Studies, n. 15, p. 97-109, 1968. SUMI, G. S. Monuments and Memory: The Aedes Castoris in the Formation of Augustan Ideology. The Classical Quarterly, New Series, v. 59, n. 1, p. 167-186, 2009. THOMAS, E. Monumentality and the Roman Empire: Architecture in the Antonine Age. Oxford: Oxford University Press, 2007. ZIOLKOWSKI, A. The temples of mid-republican Rome and their historical and topographical context. Roma: «L’Erma» di Bretschneider, 1992. Recebido em 9/9/2019 e aceito em 30/9/2019. 103 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. A representação da deusa Ísis em METAMORPHOSES de Apuleio de Madaura (ii d.C.): Uma representação híbrida Ellen Juliane Bueno Dos Santos Mestranda em História (UFG) Bolsista da CAPES ellenjulianebs@gmail.com Orientadora: Profª. Dra. Ana Teresa Marques Gonçalves Res u mo Nos últimos anos os historiadores do Mediterrâneo Antigo vêm debatendo cada vez mais sobre os encontros (culturais, sociais, religiosos...) provocados pela expansão do Império Romano. Mas não apenas os encontros, como os resultados dos mesmos. Uma exemplificação do resultado desses encontros se vê presente na deusa Ísis construída por Apuleio de Madaura, em sua obra Metamorphoses ou O Asno de Ouro, nosso objeto de estudo, escrita na segunda metade do segundo século da nossa era. Assim, o presente artigo visa analisar a representação construída por Apuleio da deusa Ísis em sua obra mais conclamada. A obra apuleiana narra as desventuras de Lúcio, que, por conta da sua curiosidade para com a magia, acaba por ser metamorfoseado em asno após uma prática mágica malfadada. Depois de passar por várias situações problemáticas e clamar por uma intervenção divina à sua desfortuna, Lúcio é salvo pela deusa Ísis, que lhe aparece em sonho. Depois de retomar a forma humana, Lúcio se torna um grande devoto à deusa salvadora e é iniciado no culto de mistério à deusa egípcia. Assim, a partir da imagem construída da deusa Ísis e dos cultos isíacos, no livro XI de Metamorphoses, vê-se uma deusa híbrida, ou seja, capaz de reunir em si as funções de diversos outros deuses, demonstrando grande poder. Isso demonstra a complexidade do fenômeno do encontro cultural e o processo de assimilação entre culturas presente na literatura do segundo século. Pa lav r as - chav e Império Romano; Religião; Hibridismo; Sincretismo; Ísis; Apuleio. Abs t rac t 104 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. In recent years historians of the ancient Mediterranean have been increasingly debating the encounters (cultural, social, religious...) caused by the expansion of the Roman Empire. But not only the encounters, also the results of it. An example of the result of these encounters is present in the goddess Isis built by Apuleius of Madaura, in his work Metamorphoses or The Golden Ass, our object of study, written in the second half of the second century of the common era. Thus, this article aims to analyze the representation constructed by Apuleius of the goddess Isis in his most famous work. The apuleian work chronicles the misadventures of Lucius, who, because of his curiosity about magic, ends up being metamorphosed into a donkey after an ill-fated magic practice. After going through a number of troublesome situations and crying out for divine intervention in his misfortune, Lucius is saved by the goddess Isis, who appears to him in a dream. After returning to human form, Lucius becomes a great devotee of the saving goddess and is initiated into the Egyptian goddess’ mystery cult. Thus, from the constructed image of the goddess Isis and the Isiac cults, in the book XI of the Metamorphoses, one sees a hybrid goddess, that is, able to gather in itself the functions of several other gods, showing great ower. This demonstrates the complexity of the phenomenon of cultural encounter and the process of assimilation between cultures present in second century literature. Key w or ds Roman Empire; Religion; Hybridism; Syncretism; Isis; Apuleius. Int ro d u ç ão Como um lugar de “fronteira”1, o Mediterrâneo é um “entre-lugares” que, a partir de um processo de articulação, é capaz de produzir “novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade” (BHABHA, 1998, p. 20). O que não se pode negar é que esses contatos de diferentes regiões produzem intercâmbios e trocas simbólicas/culturais. Os historiadores têm cada vez mais se dedicado a esses processos de encontro, contato, interação, troca e hibridização cultural, e, como afirma Peter Burke (2003, p. 11), é uma 1 “As fronteiras sempre implicam um nível relacional, evidenciado pela interação de diferenças, sejam elas quais forem. Portanto, se a fronteira existe é porque há uma dimensão membranosa, permeável ou porosa, possibilitando o trânsito de elementos diversos, que traz consigo um caráter marcadamente seletivo, pois é da “natureza” da fronteira que por ela ocorra a passagem, o fluxo ou a interdição. Trata-se assim de diversas formas de fluxos: de pessoas, de ideias (uma esfera comunicacional, com a possibilidade de ruídos), de substâncias, estados de consciência, objetos e, aliado a tal dinamismo, tudo o que isso representa na configuração de mais complexidade ou mesmo de construção e dispersão de sentidos no mundo. Mas se a fronteira, como uma forma de membrana, existe de maneira a permitir ou barrar o trânsito de coisas e ideias ao longo de sua superfície, de sua linha divisória, é porque existe uma polaridade, quiçá, uma ambiguidade, que faz com que o interior e o exterior, o fora e o dentro existam somente como manifestações da diferença que, ao longo da linha demarcatória da fronteira, pode apresentar pontos de contato que se relacionam a uma maior ou menor proximidade entre tais níveis.” (SILVEIRA, 2005, p. 18-9). 105 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. preocupação natural de acordo com as circunstâncias atuais de encontros culturais cada vez mais frequentes e intensos. Nas pesquisas sobre a história do Mediterrâneo Antigo, os historiadores passam a problematizar construções culturais, como “romanização”, e analisar as trocas, interações entre o “centro” e a “periferia”, produzindo comunicações de assimilação de elementos externos em suas culturas, capazes de criar identidades novas a partir de um hibridismo cultural. O termo hibridismo ou hibridização, metáfora emprestada da biologia, ocorre quando diferentes espécies de animais ou plantas se cruzam produzindo algo geneticamente diferente dos progenitores, enquanto mantêm as características de ambos. Porém, o animal ou a planta híbrida são estéreis ou demoram anos para reproduzirem (WALLACE-HADRILL, 2008, p. 7). Em termos dos estudos culturais, hibridização é definida “as in which forms become separated from existing and recombine with new forms in new practices” (ROWE, SCHELLING, 1991, p. 231). Um enfoque importante desse aspecto de intercâmbio cultural no Mediterrâneo Antigo está presente no estudo da religião do Império Romano, politeísta e ritualista, marcado por um sincretismo2 religioso, produto da interação e integração cultural advindas da expansão do Império Romano, isto é, agregação de novos territórios e novas culturas através de certas dinâmicas religiosas. Tal fenômeno de imiscuição cultural poderia produzir difusão ou inibição de determinadas práticas, ritos e cultos. Ou seja, a partir desses produtos, os imperadores e os membros da elite romana poderiam impor limites nas práticas religiosas a fim de proteger a integridade da sua cultura e preservar suas tradições. No entanto, concordamos com Eric Orlin em seu livro Foreign Cults in Rome. Creating a Roman Empire (2010) quando tenta demonstrar que os atos de aceitação ou não das práticas religiosas estrangeiras desde o século V a.C. variavam de acordo com fatores políticos, econômicos e sociais, sendo importante tratá-las individualmente. E esse tratamento mais “aberto”, esse “jeito romano de fazer”, permitiu que se iniciasse uma modulação de uma certa romanidade. Um dos frutos dessa relação de assimilação foi a ampla aceitação (mas não homogênea e constante) ao culto da deusa Ísis por toda a extensão do Império, inclusive na própria Roma (VIEIRA NETO, OLIVEIRA, 2011, p. 255). Ísis também possuía um caráter ambíguo no que dizia respeito a magia3 , capaz de contradizer o discurso de oposição entre religião romana e práticas mágicas. Uma das fontes literárias mais ricas para se estudar sobre a deusa Ísis e seus cultos inseridos no Império Romano 2 O termo “sincretismo” é um dos termos que têm sido revistos nos últimos anos. Na época Moderna o conceito adquiriu uma conotação pejorativa que determinava um julgamento de inautenticidade ou contaminação de uma tradição “pura”, de elementos (simbólicos e semânticos) por outras tradições consideradas menos “puras”. Porém, termo comumente aplicado para caracterizar as religiões helenísticas, nesse caso, possui um sentido positivo, como de mistura e influência recíproca. Utilizaremos o termo “sincretismo”, por falta de outro termo que o substitua. Portanto, entendendo-o como um amálgama de elementos heterogêneos que tendem à construção de algo novo, mesmo mantendo e se reconhecendo os antigos. 3 De forma geral, aplicaremos o conceito de Ramsay MacMullen (1987, p. 119-120) que defende que “a magia é, no seu sentido mais básico, a arte de provocar a intervenção de poderes supra-humanos no mundo material”. Mesmo havendo uma grande presença do fator da magia na obra de Apuleio e a sua relação com a deusa, nesse artigo não exploraremos a fundo assunto para que não fujamos do tema. Como um exemplo recente da relação de Ísis com magia ver May (2018). 106 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. está presente nas Metamorphoses de Apuleio, sendo essa uma fonte de informação religiosa, vendo a Ísis representada na obra não apenas como uma construção literária (GASPARINI, 2011, p. 698-699). Sabe-se que Apuleio 4, filho de uma família aristocrática, nasceu na década do ano 120 d.C., na cidade de Madaura 5, mais precisamente localizada ao sul da província romana da Africa Proconsularis, atual Mdaurush, na Argélia (HARRISON, 2000, p. 04; FANTACUSSI, 2006, p. 42; SILVA, 2006, p. 25; SOARES, 2011, p. 93). Sua obra mais celebrada as Metamorphoses ou O Asno de ouro, foi escrita por volta de 160-170 d.C., no final de sua vida6 . A obra é estruturada em onze livros, e se passa na Grécia, tendo como protagonista e narrador Lúcio, proveniente de Corinto, que narra suas desventuras a partir de sua chegada na Tessália. Chegando lá, mesmo avisado dos perigos provenientes do envolvimento com magia e seus praticantes, Lúcio, movido por sua curiositas, acaba sendo transformado em asno e entrando em diversas desventuras, até que no livro XI — nosso foco de estudo —, após clamar por uma intervenção divina respondida pela deusa Ísis, que promete restitui-lo ao corpo humano se ele se dispor à iniciação dos mistérios de seu culto. A partir disso, cremos que Apuleio constrói, no livro XI de Metamorphoses, uma representação da deusa egípcia Ísis híbrida, ou seja, que abarcasse características de diversas divindades de modo que respondesse às suas necessidades de salvação. Assim, apoiamos o nosso aporte teórico na ideia de Roger Chartier de “representação” que se baseia nas “classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real” (CHARTIER, 2002, p. 17). Assim, se produzem esquemas de significação que dão sentido no presente, variando de acordo com as disposições dos grupos sociais. Ou seja, são discursos, estratégias e práticas arbitrárias, portanto, são construções que, por mais que aspirem à universalidade, são determinadas pelos interesses de grupos que as forjam (CHARTIER, 2002, p. 17). Conscientes de que representação não é uma mimese do real, e sim operam em regimes de verossimilhança, concordamos com Sandra Pesavento (2003, p. 41) quando ela afirma que a potência da representação na capacidade de mobilização é de produzir reconhecimento e legitimidade social. 4 Exímio retórico, Apuleio teve uma educação na paideía grega, escrevia em latim, parecia dominar bem o grego, estudou aritmética, leitura e escrita. Em Cartago, estudou gramática e retórica. Em Atenas, entrou em contato com a filosofia aristotélica e platônica, além de participar de iniciações de mistérios. E, em Roma, estudou direito. Foi filósofo, sofista, orador, romancista, advogado, “pesquisador” e dedicou-se a diversos gêneros artísticos, fazendo diversas viagens como conferencista (HARRISON, 2000, p. 5-8; FANTACUSSI, 2006, p. 42-43; SILVA, 2006, p. 25-27; SOARES, 2011, p. 93-94; LIMA NETO, 2015, p. 53-55). 5 Colônia romana fundada na Numídia por veteranos do exército no período Flaviano (69-96) (LIMA NETO, 2015). 6 Contextualizando a obra e o autor, o papel de Metamorphoses, que tem como público-alvo as camadas mais altas da sociedade, se destaca como um importante documento para analisar o cotidiano dos cidadãos romanos, e a visão de mundo de um filósofo provinciano sobre temas como magia, amor, roubo, morte, aspectos religiosos e morais. Por mais que se ambiente em território grego, considera-se a localidade onde Apuleio nasceu e escreveu a novela como seu real cenário. Por isso, na forma de prosa, Apuleio satiriza, ridiculariza a sociedade em que vive, o Império Romano no período dos Antoninos, mais precisamente a sociedade da Africa Proconsularis (FANTACUSSI, 2006, p. 52). 107 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Quanto a estrutura do artigo, ele se organiza do seguinte modo: primeiramente apresentaremos como a deusa egípcia sofreu uma mudança cultural durante o período assim chamado helenístico, sendo agregada às deusas gregas e posteriormente às deusas romanas; em seguida analisaremos como Apuleio constrói uma representação da deusa Ísis em Metamorphoses. A í sis d o pe r ío d o h e l e n í s t i co Pierre Grimal (2005, p. 254), em seu Dicionário de Mitologia Grega e Romana, ao comentar sobre Ísis, afirma que ela é “um princípio feminino universal: reina sobre o mar, sobre os frutos da terra, sobre os mortos; deusa da magia, preside às transformações das coisas e dos seres, aos elementos etc.”. Ligando a definição de Grimal com a noção greco-romana de Ísis, entendemos que a deusa nem sempre esteve inserida no panteão romano. Sendo uma divindade originalmente egípcia, a deusa possuía características originais, isto é, particularmente egípcias. Depois da conquista de Alexandre, o Grande, a imagem de Ísis sofreu uma releitura pelos gregos, assim se expandindo cada vez mais para outras culturas durante o Período Helenístico. Michel Malaise (2000, p. 1), em seu capítulo Le problème de l’hellénisation d’Isis, comenta que as principais transformações sofridas por Ísis se vêem presentes nas iconografias em que a deusa usa atributos que até então lhes eram desconhecidos, inserida em uma nova estética. O historiador argumenta que esse trabalho de reelaboração da deusa foi feito por círculos sacerdotais de Mênfis, conhecedores da cultura religiosa egípcia e helênica, permitindo uma fluidez nas características da deusa tipicamente egípcia, para assim nascer a “Ísis helenística” (MALAISE, 2000, p. 19). As documentações textuais gregas do Egito costumavam confinar ou assimilar Ísis a deusas gregas, dando a ela novas funções e liturgias. Dentre as fontes disponíveis, duas se destacam para se mensurar o grau de helenização de Ísis: 1) os textos sobre aretologia e hinos e 2) as produções iconográficas. As aretologias e os hinos costumam mostrar as virtudes esplêndidas da deusa, como beneficente, criando um arquétipo de protetora onipotente, salvadora, amante dos elementos e do destino (MALAISE, 2000, p. 3-4). A deusa egípcia, então, é investida de funções agrárias, como criadora das frutas da terra, mas também das leis. É importante lembrar que a aproximação das deusas não quer dizer que houve a absorção de uma pela outra (MALAISE, 2000, p. 7-8). Outra deusa grega com a qual Ísis foi associada foi Afrodite. Tal sincretismo se instaura de modo intermediário entre a relação da deusa com Hator, deusa egípcia das mulheres, do amor e da fecundidade, e aparece como simpática aos problemas das mulheres, ao estabelecimento dos casais e à maternidade (MALAISE, 2000, p. 8). Muitas das vezes representada com uma cornucópia, um leme, que simboliza a 108 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. condução do mundo, o sistro7 e a situla8 , ou, até mesmo, um globo, a Ísis grega também ficaria muito conhecida no Mediterrâneo como a “Senhora do Mar” e mestre dos ventos. A deusa também é associada com Tyche, Fortuna, Nêmeses, Artêmis, Hécate, entre outras (MALAISE, 2000, p. 12). Essa flexibilidade, que já fazia parte das características divinas egípcias (SILVERMAN, 2002, p. 38), foram essenciais nesse momento. A multiplicidade de funções permitiu uma plasticidade de habilidades capaz de enriquecer o capital simbólico. Michel Malaise (2000, p. 13) ainda acrescenta que: E n effet, l’Isis hellenisee qui est reveree hors d’Egypte dans le cadre de la diaspora isiaque est fondamentalement identique a l’image qu’elle presente en Egypte. Tout au plus, peut-on preciser que les epithetes appliquees a la deesse sont plus variees dans les inscriptions de Grece et d’Asie et que certaines prerogatives ont connu une vogue particuliere en dehors de la vallee du Nil, dans le monde proprement grec. Essa miríade de relações já é percebida quando Lúcio, personagem principal e narrador de Metamorphoses, evoca a salvação divina: R egina caeli, sive tu Ceres alma frugum parens originalis, quae, repertu laetata filiae, vetustae glandis ferino remoto pabulo, miti, commonstrato cibo, nune Eleusiniam glebam percolis; seu tu caelestis Venus, quae primis rerum exordiis sexuum diversitatem generato amore sociaste et aeterna subole humano genere propagato nune circumfluo Paphi sacrário coleris; seu Phoebi soror, quae partu fetarum medelis lenientibus recreato populos tantos educasti praeclatrisque nune veneraris delubris Ephesi; seu nocturnis ulutibus horrenda Proserpina triforni facie lavarles impetus comprimens terraque claustra cohibens, lucos diversos inerrans vario cultu propitiaris: ista luce feminea collustrans cuncta moenia et udis ignibus nutriens laeta semina – quoquo nomine, quoquo ritu, quaqua facie te fas est invocare (...) (Apul., Met., 11.2) 9. 7 Antigo instrumento egípcio de percussão, que consistia num pequeno arco metálico atravessado horizontalmente por pequenas hastes também de metal, as quais, agitadas por meio de um cabo, produziam som agudo e prolongado. 8 Vaso de madeira, de forma arredonda. 9 “O blessed queen of heaven, whether Thou be the Dame Ceres which art the original and motherly nurse of all fruiful things in the earth, who, after the finding of Thy daughter Proserpine, through the great joy which Thou didst presently conceive, didst utterly take away and abolish the food of them of old time, the acorn, and madest the barren, and unfruitful ground of Eleusis to be ploughed and sown, and now givest men a more better and milder food; or wheter Thou be celestial Venus, who, in the beginning of the world, didst couple together male and female with an engendered love, and didst so make an eternal propagation of human kind, being now worshipped within the temples of the Ilse Paphos; or whether Thou be the sister of the god Phoebus, who hast saved so many people by lightening and lessening with thy medicines the pangs of travail and art now adored at the sacred places of Ephesus; or whether Thou be called terrible Proserpine, by reason of the deadly howlings which Thou yieldest, that hast power with triple face to stop and put away the invasion of hags and ghosts which appear unto 109 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Nota-se que na oração feita for Lúcio, ele cita várias deusas, mas em nenhum momento ele se refere à deusa Ísis, que será justamente a deusa que irá responder ao seu pedido. Na própria resposta da deusa ela se relacionará com as deusas citadas por Lúcio, entre outras, fortalecendo o caráter universal que à agrega a deusa, além de confirmar seu poder e abrangência em sonho ao pedinte: E n adsum tuis commota, Luci, precibus, rerum naturae parens, elementorum omnium domina, saeculorum progenies initialis, summa numinum, regina manium, prima caelitum, deorum dearumque facies uniformis, quae caeli luminosa culmina, maris salubria flamina, inferum deplorata silentia nutibus meis dispenso: cuius numen unicum multiformi specie, ritu vario, nomine mutiiugo totus veneratur orbis. Inde primigenii Phryges Pessinuntiam deum Matrem, hinc autochthones Attici Ceeropeiam Minervam, illinc fluctuantes Cyprii Paphiam Venerem, Cretes sagittiferi Dictynnam Dianam, Siculi trilingues Stygiam Proserpinam, Eleusini vetustam deam Cererem, Iunonem alii, Bellonam alii, Hecatam isti, Rhamnusiam illi, et qui nascentis dei solis inchoantibus illustrantur radiis Aethiopes utrique priscaque doctrina pollentes Aegyptii, caerimoniis me proppriis percolentes, appellant vero nomine reginam Isidem (Apul, Met, 11.4) 10. Portanto, a popularidade de Ísis no Mundo Antigo fica mais compreensível ao notarmos como a deusa egípcia poderia ser traduzida e apropriada em vários contextos, mas sem perder a associação com o “Egito”. A capacidade de Ísis (e Serápis 11) men, and to keep them down in the closures of the Earth, which dost wander in sundry groves and art worshipped in divers manners; Thou, which dost luminate all the cities of earth by Thy feminine light; Thou, which nourishest all the seeds of the world by Thy damp heat, giving Thy changing light according to the wanderings, near or far, of the sun: by whatsoever name or fashion or shape it is lawful to call upon Thee (...) (Apul, Met, 11.2). 10 “Behold, Lucius, I am come; thy weeping and prayer hath moved me to succour thee. I am she that is the natural mother of all things, mistress and governess of all the elements, the initial progeny of worlds, chief of the powers divine, queen of all that are in hell, the principal of them that dwell in heaven, manifested alone and under one form of all the gods and goddesses. At my will the planets of the sky, the wholesome winds of the seas, and the lamentable silences of the hell be disposed; my name, my divinity is adored throughout all the world, in divers manners, in variable customs, and by many names. For the Phrygians that are the first of all men call me the Mother of the gods at Pessinus; the Athenians, which are sprung from their own soil, Ceeropian Minerva; the Cyprians, which are girt about by the sea, Pahian Venus; the Cretans wich bear arrows, Dictymian Diana; the Sicialians, wich speak thee tongues, infernal Proserpine; the Eleusians their ancient goddess Ceres; some Juno, other Bellona, other Hecate, other Rhamnusia, and principally both sort of the Ethiopians wich dwell in the Orient and are enlightened by the mornining rays of the sun, and the Egyptians, which are excellent in all kind of anccient doctrine, and by their proper ceremonies accustom to worship me, do call me by my true name, Queen Isis (Apul, Met, 11.4). 11 Na tentativa de criar uma deidade, que poderia ser cultuada tanto por egípcios quanto por gregos, capaz de fortalecer seu reino com um deus supremo, Ptolomeu I, entre os séculos IV/III a.C., monta uma comissão de teólogos, formada, principalmente, por Manêton, um sacerdote egípcio, e pelo grego, Timóteo, iniciado em vários mistérios. Eles, de acordo com Plutarco, constroem Serápis, provavelmente montado a partir da junção de Osíris (na tradição egípcia é o deus que domina o submundo, além de 110 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. de reconciliar o Eu (egípcio, grego, romano, madaurense etc.) com o Outro (egípcio, grego, romano, madaurense etc.), pode ter garantido o sucesso do casal divino, que mesmo sofrendo inúmeras traduções, não deixaram de ser o Outro “egípcio”12 . Valentino Gasparini (2011, p. 715) comenta que D emonology, iconography, myth and mystery were the principal aspects introduced or deeply transformed in the Hellenistic Isiac ‘revolution’: these are the roots of the process that reaches maturation and its highest expression with Plutarch’s myth and Apuleius’ novel. Na verdade, a reelaboração helenística do culto isíaco é só mais um aspecto do fenômeno, e seus pilares são mais antigos do que parece, remontando a um Egito faraônico, que já considerava Ísis e Osíris os deuses supremos. Entre as prerrogativas sobre Ísis, que permaneceriam no Período helenístico, seriam as relacionadas aos seus poderes mágicos sobre humanos e deuses. “Deusa de infinitos nomes” (Plu. De Is. Et Os, 53). O epíteto resume bem a polissemia dos referentes imagéticos e lexicais possíveis para designar a deusa Ísis. Oriental, Egípcia, Helenística, Romanizada, várias foram as tentativas de categorizar essa deusa sincrética. Em cada contexto a deusa passava por filtros de interpretação que editavam sua figura para ser capaz de responder a uma demanda (política, social, intelectual, religiosa, individual ou coletiva) dos microcosmos dos diferentes locais, com diferentes religiosidades, práticas variadas, com relações singulares com o sagrado, envoltos em referências sociais e de identidades tradicionais, porém, não fixas, não dogmáticas. Tais leituras feitas da deusa produzem elementos que coabitam, combinam, complementam e até mesclam — característica da lógica cumulativa do politeísmo. Assim, ao estudarmos as representações da deusa Ísis, devemos sempre levar em consideração os contextos multiculturais em que ela foi inserida. Seja em Mênfis, Delos, Alexandria, Roma ou Cartago, a deusa e os praticantes de seu culto não devem ser analisados da mesma maneira, pois, como já dissemos, sofrem transformações não só no tempo, mas também no espaço em que se inserem. Essas várias representações da deusa nas suas mais diversas formas sincréticas permitiram que se reunissem ao seu redor as características de diversas divindades (BEARD, NORTH, PRICE, 2004, p. 281; SANZI, 2006, p. 99). No tópico a seguir analisaremos melhor a Ísis construída por Apuleio. marido e irmão de Ísis) e Ápis, com características também de deuses gregos como, por exemplo, Zeus, Esculápio, além de Dioniso. O que remete a um tipo de bricolagem religiosa. Mas isso não quer dizer que Osíris e Serápis são o mesmo deus, pois apresentavam funções distintas aos olhos egípcios. O primeiro se relacionava com o Nilo e com características funerárias, e o segundo era visto como um deus dinástico, associado à cura e à magia (CUNHA, 2016, p. 99). 12 Emily Teeter discorda da ideia de que permaneça algo de original na Ísis que se instala no Império Romano: “Religious practices of the Isis cults of Italy in the Classical Age are so far removed from the original Egyptian theology that they are not helpful for interpreting the original tradition.” (TEETER, 2013, p. 26). 111 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. A í sis d e Apu le io Poderíamos, então, dizer que Apuleio apresenta dois tipos de representações da deusa no livro XI: (1) a que aparece para ele em sonho, de forma onírica, tomando configuração humana e com características físicas humanas; (2) a simbolizada por uma arca na procissão do festival em sua honra que ocorria na cidade de Corinto. Vejamos cada uma delas. A primeira forma é apresentada a Lúcio pela primeira vez em sonho. Lúcio, ainda metamorfoseado em asno, se purifica no mar, antes de realizar a oração às deusas lunares, para que elas intervenham em favor dele. Em resposta e durante o sono, a deusa Ísis aparece ao asno, saindo do mar e parando diante dele. Lúcio, então, a descreve como: I am primum crines uberrimi prolixique et sensim intorti per divina eolla passive dispersi molliter defluebant. Corona multiformis variis floribus sublimem destrinxerat verticem, cuius media quidem super fr¬ontem plana rotunditas in modum speculi vel immo argumentum lunae candidum lumen emicabat, dextra laevaque suleis insurgentium viperarum eohibita, spicis etiam Cerialibus desuper porrectis Vestis multicolor byssso tenui pertexta, nunc roseo rubore flammida, et, quae longe longeque etiam meum confutabat obtutum, palla nigerrima splendescens atro nitore, quae circumcirca remeans et sub dexterum latus ad humerum laevum recurrens umbonis vicem deiecta parte laciniae multiplici contabulatione dependula ad ultimas oras nodulis funbriarum decoriter confluctuabat. Per intextam extremitatem et in ipsa eius planitie stellae dispersae coruscabant, earunque media semenstris luna flammeos spirabat ignes: quaqua tamen insignis illius pallae perfluebat ambitius, individuo nexu corona totis floribus totisque constructa pomis adhaerebat. Iam gestamina longe diversa: nam dextra quidem ferebat aereum crepitaculum, cuius per angustam laminam in modum baltei recurvatam traiectae mediae paucae virgulae, crispante brachio trigeminos iactus, reddebant argutum sonorem; laevae vero eymbium dependebat aureum, cuius ansulae, qua parte conspicua est, insurgebat aspis caput extollen arduum, cervicibus late tumescentibus. Pedes ambroseos tegebant soleae palmae victricis foliis intextae. Talis ac tanta, spirans Arabiae felicia germina, (...) (Apul., Met., 11.3)13 . 13 “First she had a great abundance of hair, flowing and curling, dispersed and scattered about her divine neck; on the corwn of her head she bare many garlands interlaced with flowers, and in the middle of her forehead was a plain circlet in fashion of a mirror, or rather resembling the moon by the light that it gave forth; and this was borue upon either side by serpentes that seemed to rise form the furrows of the Earth, and above it were blades of corns set out. her vestment was of finest linen yielding divers colours, somwhere White and shining, somewhere rosy red, somewhere flaming; and (which troubled my sight and spirit sore) her cloak was utterly dark and obscure covered with shining black, and being wrapped round her from under her left arm to her right shoulder in manner of a shield, part of it fell down, pleated in most subtle fashion, to the skirts of her garment so that the welts appeared comely. Here and there upon the edge thereof and throughout its surface the stars glimpsed, and in the middle of them was placed the moon in mid-month, which shome loke a flame off fire; and round about the whole lenght of the border of that goodly robe was a crown or garland wreathing unbroken, made with all flowers and 112 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Lúcio/Apuleio descreve a figura de Ísis seguindo uma ordem, da parte superior para a parte inferior do corpo antropomorfizado da deusa. María Cruz Marín Ceballos (1973) se dedica a explicar os significados de cada símbolo descrito com a visão de Lúcio, acreditando que nem Apuleio nem seus contemporâneos entendiam o significado de muitos daqueles símbolos que provinham de uma tradição egípcia antiga, mesmo os que mudaram de significação com o tempo. Para Marín (1973, p. 135), o que Lúcio descreve como víboras sobre a cabeça da deusa, seriam na verdade, chifres da deusa-vaca Hator, entre os chifres estaria um símbolo solar também típico da deusa-vaca, que era tida como uma deusa celeste. A s vestes de Ísis são tingidas de toda a espécie de cores e matizes, porque o seu poder estende-se sobre a matéria que recebe toda a espécie de formas e sofre todas as vicissitudes, já que é susceptível de converter-se em luz, trevas, dia, noite, fogo, água, vida, morte, princípio e fim (Plu. De Is. Et Os. 77). Em relação ao manto escuro, Marín (1973, p. 135) acredita que, como não se vê em nenhuma outra documentação a imagem da deusa com o manto preto, o mesmo deve indicar a sua qualidade como regina caeli. A palla ou “echarpe” que passaria pelos ombros, com o nó que se faz no centro do peito, seria uma forma mais generalizada do uso da vestimenta na época. A grinalda com flores e frutos nos remeteria a Deméter e seu caráter de deusa da agricultura. Lúcio vê com certa estranheza os objetos que a deusa leva as mãos: o sistro, um instrumento musical egípcio, também descrito por Plutarco: O sistro indica também que todos os seres se devem manifestar, nunca devendo deixar de ser movimento, mas também despertá-los e sacudi-los, fazendo-os sair do seu estado de torpeza e marasmo. Os egípcios pretendiam, com efeito, que Tífon é afastado e recusado pela agitação dos sistros, dando-nos a entender que o princípio corruptor trava e detém o curso da natureza, mas que a geração, por meio do movimento, o desprende e restabelece. A parte superior do sistro é de forma arredondada, esta armação contém os quatro culúculos que se cimbram (Plu., De Is. Et Os., 63). Na mão esquerda a deusa leva a sítula, que conteria a água do rio Nilo e seria um símbolo de Osíris. O que se percebe nessa imagem descrita por Lúcio/Apuleio é uma deusa que corresponde à uma representação híbrida que acabou sendo consall fruits. Things quite diverse did she bear: for in her right hand she had a timbrel of brass, a flat piece of metal curved in manner of a girdle, whreein passed not many rods through the perphery of it; and when with her arm she moved these triple chords, they gave forth a shrill and clear sound. In her left hand she bare a cup of gold lie unto a boat, upon the handle whereof, in the upper part which is best seen, na asp lifted up his head with a wide-swelling throat. Her odoriferous feet were covered with shoes interlaced and wrought with victorius palm. Thus the divine shape, breathing out he pleasant spice of fertile Arabia, (...) (Apul, Met, 11.3). 113 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. truída com o tempo, em que se mistura símbolos egípcios com símbolos gregos. Marín (1973, p. 137) ainda soma uma certa “licença poética” de Apuleio ao agregar cores e detalhes estrelares no manto da deusa. A segunda forma em que a deusa se apresenta é aquela que aparece durante a procissão do festival. Essa seria um objeto carregado por um dos sacerdotes, como Lúcio narra: G erebat alius feliei suo gremio summi numinis venerandam effigiem, non pecoris, non avis, non, ferae, ac ne hominis quidem ipsius consimilem, sed sollerti repertu etiam ipsa novitate reverendam altioris uteumque et magno silentio tegendae religionis arugumentum ineffabile, sed ad istum plane modum fulgente auro figuratam: urnula faberrime cavata, fundo quam rotundo, miris extrinsecus simulacris Aegyptiorum effigiata; eius orificium non altiuscule levatum in canalem porrectum longo rivulo prominebat; ex alia vero parte multum recedens spatiosa dilatione adhaerebat ansa, quam contorto nodulo supersedebat aspis squameae cervicis striato tumore sublimis (Apul., Met., 11.11)14 . O valor simbólico da urna foi analisado por Maria José Hidalgo de La Vega (1986), como relacionada à terceira prova imposta a Psique por Vênus, no livro VI, de Metamorphoses, em que a jovem tem que levar à deusa uma garrafa com as águas do rio Estige. Como as águas do Estige, as águas do Nilo, contidas no vaso (ou urna), tem um caráter mágico, um duplo sentido que representariam tanto a vida como a morte. Essa tarefa de Psique seria análoga a uma das tarefas de Lúcio na iniciação dos mistérios 15, para Hidalgo de la Vega (1986, p. 122) seria uma reprodução de uma ação ritual. Em Ísis e Osíris, o grego comenta que, para os egípcios, “Osíris é o Nilo que se une com Ísis, que é a Terra” (Plu. De Is. Et Os. 32), mas “não é somente o Nilo, mas tudo o que é de natureza úmida, por assim dizer, que os sacerdotes consideram como emanação de Osíris; as procissões sagradas celebradas em honra deste deus são precedidas de um copo cheio de água” (Plu. De Is. Et Os. 36). 14 “Another was there that bare in his bosom (thrice happy he!) the venerable figure of the godhead, not formed like any beast, bird, savage thing, or human shape, but made by a new invention, and therefore much to be admired, an emblem ineffable, whereby was signified that such a religion was at once very high and should not be discovered or revealed to any person; thus was it fashioned of shining gold: it was a vessel wrought with a round bottom, and hollowed with wondorous cunning, having on the outside pictures figured like unto the mannerof the Egytians, and the mouth thereof was not very high, but made to jut out like unto a long funnel; on the other side was an car or handle which came far out his swelling and sacly neck, which entwined the whole as in a knot (Apul, Met, 11.11). 15 Para Walter Burkert (1991, p. 20, 22-3), mistérios são “cerimônias de iniciação, cultos onde a admissão e a participação dependem de algum ritual pessoal, a ser executado sobre o iniciante” de forma que sejam “vistos como uma forma especial de culto prestado no contexto mais amplo da prática religiosa”. Ou seja, a inserção nos mistérios era optativa, dependente de uma decisão individual. Sendo assim, o iniciado além de experimentar o sagrado, é integrado em um sistema religioso que poderia proporcionar um destaque a uma posição social e certa segurança emocional (TAKÁCS, 1994, p. 8). 114 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Com riqueza literária, Apuleio é capaz de construir uma imagem de Ísis complexa e múltipla. E é exatamente esse ponto que não se pode perder de vista. A imagem descrita no livro XI de Metamorphoses da deusa Ísis, uma personagem da narrativa, é uma construção a partir do ponto de vista de Apuleio. Uma representação que é resultado da mistura de um trabalho retórico com a descrição de um possível devoto. Uma tentativa válida, já que tem o poder de mostrar, a partir da imaginação, a perspectiva apuleiana de sua noção do divino. Con sid er açõ es F i n a i s Atualmente o espaço e o tempo estão aparentemente “encurtados”, as informações mais velozes, o conhecimento mais acessível, o turismo em alta, juntamente com a individualidade e a liberdade de escolha, seja ela religiosa ou social etc., ou, em poucas palavras: o mundo atual nunca foi tão globalizado. Termo complexo, a “globalização” foi definida por Stuart Hall (2006, p. 67) como “(...) processos, atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e em experiência, mais interconectado”. Por mais que aparente uma tendência à homogeneidade cultural, o que se vê na realidade é um maior interesse à diferença e à alteridade. Assim, Hall propõe que se procure pensar não uma tensão entre o “global” e o “local”, e sim uma articulação: P arece então que a globalização tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as identidades centradas e “fechadas” de uma cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas. Entretanto, seu efeito geral permanece contraditório (HALL, 2006, p. 88). Nos últimos anos, o conceito de globalização vem sendo aplicado também para os estudos sobre o Mediterrâneo Antigo. Pensando o Império Romano, como primeiro império “global”, mesmo que pretensiosamente16 , tais estudos17 se baseiam principalmente nas ênfases entre dois aspectos inter-relacionados da globalização: 16 “It should be noted that, despite its rhetoric, the Roman empire failed to become truly global and it has been suggested that the failure of Rome to incorporate groups on the margins of imperial control into its power structure represents one of the reasons for the ending of imperial expansion” (HINGLEY, 2005, p. 121). 17 “Critique has been raised to apply globalization to the ancient Roman world, addressing the anachronistic approach, the argument that the Roman world was not a global empire, and that this framework offers no new insights or is even a mere fashionable substitute buzz-word for Romanization. (...) questions whether globalization might even serves to legitimize current inequalities, as it may be used as a gloss for neo-colonialism”(VAN; DAVID, 2017, p. 3). 115 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. a perspectiva global e diversidade regional cultural, como nos trabalhos dos historiadores Richard Hingley (2005) e Jörg Rüpke (2014). Assim, após a conquista de Cartago, com as Guerras Púnicas, nos séculos III e II a.C., e a expansão gradual do poder romano, uma série de debates se levantam, como expõe Mary Beard: “A expansão do poder romano suscitou grandes debates e paradoxos sobre o lugar de Roma no mundo, a respeito do que podia ser considerado “romano” quando uma área enorme do Mediterrâneo estava sob controle de Roma e onde se poderia colocar agora o limite entre barbárie e civilização, e de que lado dessa divisão estaria Roma” (BEARD, 2017, p. 177). Ao entrar em contato com as peculiaridades do Norte da África — entre elas, os perigos e as adversidades de um exótico e incógnito território, com grande potencial econômico, e os seus povos de costumes diferentes —, os romanos tentaram reafirmar sua identidade e a superioridade da sua própria cultura, utilizados por ele para justificar o domínio sobre a região (BUSTAMANTE, 2013, p. 135). Nas áreas pacificadas, os sistemas de governo se baseavam em uma colaboração entre os romanos (em menor número) com a elite local, assim demonstrando ser não só uma questão ideológica, mas também uma necessidade (BEARD, 2017, p. 484). Essa elite, por sua parte, compartilhava cada vez mais dos aspectos culturais e políticos romanos, como valores, costumes, religião e o latim, proporcionando, mesmo que parcialmente, uma noção de identidade latina, uma experiência de tornar-se romano. Mesmo a partir dessa identificação com o romano, Beard (2017, p. 487) defende que “em um nível prático, cotidiano, a população urbana mais ou menos bem de vida da província tornou-se agente de sua própria romanização, e não o objeto de uma campanha romana orquestrada de reprogramação cultural ou de missão civilizatória”. Isso nos leva a mais uma problematização conceitual, a do termo “romanização”. De acordo com Regina Maria da Cunha Bustamante (2013), o processo em que os romanos levariam a “civilidade” de sua cultura aos “bárbaros” dominados seria denominado pela historiografia moderna de “romanização”, que justificava a violência e o uso da força cometida pelos romanos para o fim de alcançarem a Pax Romana. Dessa noção “imperialista”, romanização “implica na ideia de transferência de cultura, partindo-se do suposto abandono passivo da identidade nativa pela adoção da imagem romana como um ato positivo” (MENDES, 1999, p. 311). Os humanistas clássicos e pós-clássicos, a partir de uma leitura distorcida da História de Roma, construíram discursos que ajudaram a legitimar o imperialismo europeu na África e na Ásia, a partir de um viés colonial. Os “dominados”, “colonizados”, “conquistados”, permaneceriam, assim, à margem da história vigente, obrigados a se integrar ao Império, “romanizando-se” ou integrando-se pelo comércio. Com o desenvolvimento da historiografia pós-colonial do século XX, o termo “romanização” passa por uma crítica ferrenha, passando-se a enfatizar as culturas e realidades locais, as diversidades populacionais e a busca de uma identidade histórico-cultural africana, resgatando a pluralidade e os dinamismos dos elementos nativos (BUSTAMANTE, 1999, p. 129). Desse modo, “existem diversas formas pelas quais os sujeitos/grupos, em seus comportamentos, práticas, representações, imaginários, coletivamente ou de modo singular, interagem objetivando dominar, hierarquizar, subordinar, agregar, excluir, subsistir, resistir, opor e subverter” (BUSTAMANTE, 2012, p. 3-4). 116 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Quando uma determinada sociedade entra em contato com outra sociedade, seja ela por meios violentos ou não, o que também ocorre é uma dialética de apropriações de bens culturais e traços da cultura podem ser assumidos pelos conquistadores para fins específicos. Cremos que o contato cultural de D ifferent cultures do not simply blend to form a single new entity (fusion18 , hybridization, creolization 19, métissage20), but that the elements can survive in plurality alongside each other, perhaps as ‘discrepant identities’, or even simply as parallel and coexistent ones (WALLACE-HADRILL, 2008, p. 13). Para concluir o assunto, não devemos entender a “cultura romana” como monolítica nem totalizante, já que a troca cultural é bilateral (e muitas das vezes multilateral) e multidirecional, e a complexidade do fenômeno não pode ser maquiada por um discurso de homogeneidade cultural da ficção de sujeito coletivo (MENDES, 1999, p. 323). Porém, diante dos problemas do uso dos termos apresentados acima, a seguinte questão se forma: Se o uso de “romanização” se torna problemático na sua aplicação, qual utilizar? Lima Neto (2015, p. 106) defende que “sua utilização, na falta de um substituto à altura, ainda é operacional”, quando temos a consciência de que foi um processo sociocultural complexo, e não de imposição de valores ou aculturação. Já Richard Hingley (2005, p. 14) crê que a palavra não deve ser utilizado para explicar os processos de mudanças culturais ocorridas no Império Romano, pois “Romanization theory is over-simplistic, focusing attention on the elite of the empire, and conceiving of identity and social change in terms that are both too crude and too concrete”. A partir desses pontos, cremos que o uso do termo “romanização” deva ser utilizado como uma construção cultural moderna de forma contextualizada, mas que não exprime as mudanças culturais ocorridas com os encontros e as mudanças culturais tidas durante o Império Romano. Em movimento contrário a linha da “romanização”, historiadores do começo do século XX defendem que houve durante o mesmo período uma “orientalização” do panteão romano com a agregação de deuses provindos do Oriente, como: Ísis e Osíris egípcios, a Grande Mãe frígia, o Mitra persa e os deuses sírios. O principal funda18 Metáfora tomada da metalurgia, em que dois metais formam uma liga, um metal novo e distinto composto por características de seus componentes, os misturando completamente (WALLACE-HADRILL, 2008, p.7). 19 “Creolisation’ is a specific example of hybridity has been developed in studies of the Caribean and the Southern slave-owning states of America. Its point of departure is linguistic studies: the creation among those of African origin of new language formed from elements both of French and African. As often, language offers a model for study of material-culture, and it has been shown that European forms are reapproppriated into African ritual practices, and that a new formo f religious practice is created by deliberate juxtapositiion of certain Catholic elements with others of African origin. What this model offers is a ‘bottom-up’ view of culture, which allows popular elements of the native to reassert themselves against the ‘top-down’ model implicit in romanisation”. (WALLANCE-HANDRILL, 2008, p. 11) 20 Termo utilizado desde o século XVI para explicar a mistura sanguínea que ocorria sob as circunstâncias coloniais. (WALLACE-HANDRILL, 2008, p. 12). 117 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. mentador dessa ideia foi Franz Cumont, em Les Religiones orientales dans le paganisme romain, publicada pela primeira vez em 1906. Cumont propõe o termo — “religiões orientais” — a partir de um quadro de semelhanças das religiões que possuem sua origem no Oriente. O autor defendia a ideia de que todos esses deuses compartilhavam características capazes de coloca-los em uma “seita” e de estabelecer uma certa homogeneidade dogmática: seus cultos tomaram formas de mistérios, prometiam uma salvação da alma e uma outra vida imortal, praticavam ritos com poderes purificadores e redentores, exigindo dos fiéis submissão, e com sacerdotes detentores da sabedoria dos deuses (CUMONT, 1987, 14-5). Desde a sua formulação, essa categoria desenvolvida por Cumont sofreu severas críticas. Para Beard, North e Price (2004, p. 246-7), esses cultos ditos “orientais” possuem mais características que os separam do que os agrupam em uma única categoria. Eles comentam que cultos como o de Ísis e da Grande Mãe passaram a ser iniciáticos apenas posteriormente, e que, certamente, eram descendentes de iniciação gregos. Ressaltam também que não há evidências indicando que essas religiões compartilhassem o ideal de “salvação” (MACMULLEN, 1987, p. 96; TURCAN, 2001, p. 17). E por fim, é uma suposição moderna que eram precursores e rivais do cristianismo. Vários desses são versões romanas que se diferem substancialmente de seus antepassados originários. E, principalmente, o termo “Oriente” não era uma categoria homogênea como nós imaginamos, ou seja, cultos diferentes vieram de origens religiosas diferentes. Fenômenos religiosos complexos como esses não podem ser simplificados e reduzidos quanto à sua natureza e a seu alcance. Ennio Sanzi (2006), em seu livro Cultos orientais e magia no mundo helenístico-romano: modelos e perspectivas metodológicas, afirma que, ao entrar em contato com a cultura grega e depois romana, esses deuses vão conhecer “uma evolução de seu complexo mitológico e ritual; e isto vale de modo particular para aqueles cultos fundamentados sobre um casal de deuses experimentando vicissitudes caracterizadas pela dor e morte, poderão tornar-se verdadeiros cultos de mistérios” (SANZI, 2006, p. 38). Os vestígios mostram que os traços da presença do culto à deusa Ísis, na região do Norte da África21 , são mais antigos que o Período Helenístico, tanto por influência fenícia quanto pelo longo contato com o Egito. Tanto os deuses egípcios quanto os deuses “egiptianizados22 ” podem ser observados em Cirenaica e nas colônias Fenícias23 . No entanto, a parte ocidental do Norte da África teve contanto com os cultos de Ísis e sua família a partir de outra direção e por outros mediadores: os romanos (NAGEL, 2012, p. 67-68). Por conseguinte, por mais que a presença dos cultos isíacos 21 Quando falamos de Norte da África, referimo-nos à região dos países contemporâneos que se situam na parte setentrional do continente africano, na costa do Mediterrâneo: Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia e Egito. Mas é importante lembrar que os antigos distinguiam o Egito dos outros territórios, separando-se dos mesmos pelo Deserto da Líbia (BUSTAMANTE, 2013, p. 120-121). 22 Ao usarmos o termo ”egiptianizados” nos referimos a elementos de culturas não-egípcias que sofreram influências da cultura egípcia ao entrarem em contato com ela. 23 Bohec, Bricault e Podvin (2002) explicam a presença de Ísis no mundo fenício-púnico por conta do sincretismo inicial da deusa com Astarte, Derketo e, depois, com Deméter. 118 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. em Cartago possam ser atestados desde o III século a.C., de acordo com Laurent Bricault (2005), a maioria dos vestígios24 datam da era imperial. E ainda sustenta que os cultos isíacos tiveram sucesso na Africa Procunsularis como protetores da navegação, provedores de riquezas e curandeiros. A historiadora Svenja Nagel (2012), em seu artigo The cult of Isis and Serapis in North Africa. Local shifts of an Egytian cult under the influence of different cultural traditions, analisa como os cultos sofreram influências diferentes, que dependeram do contexto e de circunstâncias específicas, e por diversas direções ou mediadores. Desse modo, o desenvolvimento das formas externas (iconografias, arquitetura dos templos e aparatos) e internas (formas e funções das divindades, as práticas cultuais) de culto são dependentes da história dos lugares e das relações dos mesmos com o Egito. Isso sem esquecer o poder e os interesses políticos, que podem influenciar, direcionar ou promover os cultos em que todos esses fatores se fundem com as tradições locais. Portanto, mesmo havendo uma gama de materiais similares remanescentes dos cultos isíacos, não devemos exagerar na uniformidade do fenômeno. O mais provável é que cada sociedade atribuísse um sentido particular ao culto nas diferentes partes do Império, dado a imensurável diversidade de religiões locais e de tradições culturais. Como Beard, North e Price (2004, p. 303) atestam que “none of the Isiac hymns is identical with any of the others, although they all share a series of family resemblances”. Uma deusa híbrida, ou seja, capaz de reunir em si as funções de diversos outros deuses, demonstrando grande poder. Apuleio não apenas constrói, mas reforça as qualidades que satisfazem as lacunas presentes nas crenças religiosas do ser humano; com forma física humana e sensível as mazelas humanas mais comuns; sem perder o caráter divino e mítico; não é de se estranhar que o culto à deusa fosse capaz de agregar tantos fiéis por tanto tempo e em diversos locais. Li s ta d e Ab r eviaçõ e s Apul. Met. – Metamorphoses (Título em português: Metamorfoses ou O Asno de Ouro) Plu. De Is. Et Os. – De Iside et Osiride (Título em português: Ísis e Osíris). Font e s APULEIUS. The Golden Ass. Trad. W. Adlington. Londres: The Loeb Classical Library, 1924. 24 Encontram-se lugares de culto a Ísis (e/ou Serápis): na África Proconsular, Lepcis Magna, Sabratha, Bulla Regia e Cartago; pela Numídia, em Thamugadi e Cirta; pela Mauritânia Cesarina, em Caeseréia; e pela Tingitane, em Septem Fratres (BRICAULT, 2005, p. 290). 119 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. PLUTARCO. Ísis e Osíris. Trad. Jorge Fallorca. Lisboa: Editora Fim de Século, 2001. Ref er ên c ias Bib l i o g r á f i ca s BEARD, M.; NORTH, J.; PRICE, S. Religions of Rome. Volume 1: a History. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. BEARD, M. SPQR. São Paulo: Editora Crítica, 2017. BHABHA, H. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. BOHEC, Y., BRICAULT, L., PODVIN, JL. Cultes isiaques en proconsulaire. In: BRICAULT, L (ed.). Isis en Occident. Leiden: Brill, 2002, p. 221-241. BRICAULT, L. Les dieux de l’Orient en Afrique romaine. Pallas, Poitiers, n. 68, p. 289309, 2005. BURKE, P. Hibridismo cultural. São Leopoldo: Editora Unisino, 2010. BURKERT, W. Antigos Cultos de Mistério. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1991. BUSTAMANTE, R. M. da C. Práticas Religiosas nas cidades romano-africanas: Identidade e Alteridade. PHOÎNIX, Rio de Janeiro, 5: 325-348, 1999. ________. África do Norte no Império Romano: representações musivas de identidade e alteridade. In: XV Encontro Regional de História da ANPUH-RIO, 2013, P. 1-15. ________. África do Norte na perspectiva dos antigos romanos. PHOÎNIX, Rio de Janeiro, 19-2: 120-143, 2013. CUMONT, F. Las religiones orientales y el paganismo romano. Madrid: Akal, 1987. FANTACUSSI, V. A. (2006) O culto da deusa Ísis entre os romanos no século II – representações nas Metamorfoses de Apuleio. Dissertação em Mestrado, Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis. GASPARINI, V. Isis and Osiris: Demonology vs. Henotheism? Numen, vol. 58, n 5/6, p. 697-728, 2011. GRIMAL, P. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2005. HARRISON, S. J. Apuleius. A Latin sophist. Nova York: Oxford University Press, 2000. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Editora DP&A, 2006. HIDALGO DE LA VEGA, M. J. La magia y la religión en las obras de Apuleyo. Zephyrus: Revista de prehistoria y arqueología, Salamanca, n. 30-31, p. 223-230, 1979-1980. ________. Sociedad e Ideología en el Imperio Romano: Apuleyo de Madaura. Salamanca: Ediciones Universidad Salamanca, 1986. 120 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. HINGLEY, R. Globalizing Roman Culture. Unity, diversity and empire. Londres: Routledge Taylor: Francis Group, 2005. LIMA NETO, B. M. (2015) Conflito familiar, vida urbana e estigmatização na Africa Proconsularis: o caso de Apuleio de Madura (século II d.C.). Tese de Doutorado. Centro de Ciências Humanas e Naturais, Universidade Federal de Espírito Santo, Vitória. MACMULLEN, R. Le paganisme dans l’Empire Romain. Paris: Presses Universitaires de France, 1987. MALAISE, M. Le problème de l’hellénisation d’Isis. In: Bricault, L. (ed.). De Memphis à Rome. Leiden: Brill, p. 1-19, 2000. MARÍN CEBALLOS, M. La religión de Isis en “Las Metamorfosis” de Apuleyo. Habis, Sevilla, n. 4, p. 127-179, 1973. MAY, R. Magic and Continuity in Apuleius: Isis from witchcraft to Mystery Cults. In: CUEVA, J.; SCHMELING, G., JAMES, P.; MHEALLAIGH, K. N.; Panayptakis, S.; SCHIPPACERCOLA, N. (ed.). Re-Wriring the Ancient Novel. Voleme 2: Roman Novels and other Important Texts. Groningen: Barkhuis & Groningen University Libery, 2018, p. 157-178. MENDES, N. M. Romanização: cultura imperial. PHOÎNIX, Rio de Janeiro, 5: 307-324, 1999. NAGEL, S. The cult of Isis and Serapis in North Africa. Local shifts of an Egyptian cult under the influence of different cultural traditions. Supplemento a Mythos: Rivista di Storia delle Religione, Palermo, n. 3, p. 67-92, 2012. ORLIN, E. Foreign cults in Rome. Creating a Roman Empire. New York: Oxford University Press, 2010. ROWE, W.; Schelling, V. Memory and Modernity: popular culture in Latin America. Londres: Verso, 1991. RÜPKE, J., From Jupiter to Christ. On the History of religion in the Roman Imperial Period. Oxford: Oxford University Press, 2014. SANZI, Ennio. Cultos orientais e magia no mundo helenístico-romano. Modelos e perspectivas metodológicas. Fortaleza: Ed. UECE, 2006. SILVA, S. C. Relações de poder em um processo de magia no século II d.C. Uma análise do discurso Apologia de Apuleio. Dissertação de Mestrado, Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual de São Paulo, Franca, 2006. SILVEIRA, F. L. A. da. As complexidades da noção de fronteira, algumas reflexões. Caderno Pós Ciências Sociais, São Luís, v. 2, n. 3, p. 17-38, 2005. SILVERMAN, D. P. O divino e as divindades no Antigo Egito. In: BAINES, John, Lesko, LEONARD H., SHAFER, Byron E., SILVERMAN, David P. (org.) As religiões no Egito Antigo: deuses, mitos e rituais domésticos. São Paulo: Nova Alexandria, p. 21-107, 2002. SOARES, H. P. Os cultos de Ísis e Atargátis no alto Império Romano: conflito religioso e formação de identidades nas Metamorphoses e De Dea Syria. Dissertação de Mestrado, Centro de Ciências Humanas e Naturais, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2011. 121 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. TAKÁCS, S. A. Isis and Sarapis in the Roman World. Leiden: Brill, 1994. TEETER, E. Egypt. In: SPAETH, Barbette Stanley (ed.) The Cambridge Companion to Ancient Mediterranean Religions. Nova York: Cambridge University Press, p. 13-32, 2013. TURCAN, R. Los cultos orientales en el mundo romano. Madrid: Biblioteca Nueva, 2001. VAN ALTEN, D. C.D. Glocalization and Religious comunication in the Roman Empire: two case studies to reconsider the local and the Global in Religious Material Culture. Religions, 2017. VERNANT, J-P. Entre Mito e Política. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. VIEIRA NETO, I.; OLIVEIRA, R. S. M. Religiosidades romanas e sincretismo helenístico: uma análise sobre os mitos e cultos de mistérios. In: SOUZA, Alice Maria de, GONÇALVES, Ana Teresa Marques, MATA, Gisele Moreira da (org.). Dinâmicas socioculturais na Antiguidade Mediterrânica. Memórias, identidade, imaginários sociais. Goiânia: Editora PUC Goiás, p. 253-276, 2011. WALLACE-HADRILL, A. Rome’s Cultural Revolution. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. Recebido em 16/9/2019 e aceito em 1/10/2019. 122 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. A recepção dos clássicos no movimento Paranista: Bento Cego, o Homero paranaense. Barbara Fonseca Graduanda em História (UFPR) Bolsista de iniciação científica do CNPq barbarafonseca@ufpr.br Orientadora: Profa. Dra. Renata Garraffoni (UFPR) Res u mo No presente artigo analisamos a recepção dos clássicos no Movimento Paranista a partir da personagem Bento Cego, também chamado de Homero Paranaense. Para tanto, tendo a revista Illustração Paranaense, o livro "Bento Cego", escrito em 1902 por Nestor de Castro e os manuscritos de João Turin como fontes, conhecemos a história de Bento Cego e as suas comparações com a personagem grega, visto que ambos seriam cegos, vates, sairiam nas ruas a declamar, mas com a diferença que em vez de lira, o paranaense tocava viola. Assim, entendemos que tanto Bento Cego quanto Homero seriam figuras importantes para os paranistas, e a comparação entre ambos ocorre de acordo com a necessidade do Movimento Paranista em legitimar a identidade que estava sendo construída no momento, visto que o Paraná havia se tornado província a pouco menos de 50 anos. Os clássicos eram, então, considerados um importante modelo ocidental a ser seguido ou como afirmou João Turin, os gregos antigos eram os possuidores das mais belas artes e filosofias do mundo. Pa lav r as chav e Homero; Bento Cego; Homero Paranaense; Revista Illustração Paranaense; Movimento Paranista. Abs t rac t The aim of this paper is to dicuss classical reception in Curitiba taking into account Bento Cego, an importante figure for the Paranista group and also known as Homero Paranaense. Therefore, having as evidence the Illustração Paranaense magazine, the book "Bento Cego" written in 1902 by Nestor Castro and João Turin's manuscripts, one can approach to Bento Cego’s stories and his comparisons with a Greek character, since both were blind. vates and used the streets to claim their verses, but inste123 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. ad of lira, Bento used to play viola. Thus, Bento Cego and Homer as important figures for the Paranista group as they intended to legitimize local identity as Paraná became a province only 50 years before. The classics were considered a Western model to be followed or, as stressed by João Turin, the ancient Greeks owed the finest arts and philosophies in the world. Key w or ds Homer; Bento Cego; Homero Paranaense; Illustração Paranaense; Paranista Movement. Int ro d u ç ão O presente artigo é resultado da iniciação científica realizada com bolsa do CNPq no edital 2017/2018. Intitulada de “A criação da identidade paranaense: a presença dos clássicos na arte de João Turin” tivemos como objeto três obras criadas por Turin presentes na revista Illustração Paranaense, uma de nossas fontes. Duas das obras analisadas na iniciação científica são a Columna Paranaense e a Ânfora Paranaense, nas quais o escultor combinava-as, respectivamente, com pinhões e folhas de erva-mate - símbolos do Paraná no período de criação das obras, o início do século XX. A terceira obra analisada foi o baixo-relevo criado por João Turin da personagem paranaense chamada de Bento Cego ou Homero Paranaense. E é sobre o Homero Paranaense que iremos nos dedicar nas páginas a seguir. O Movimento Paranista, também chamado de Paranismo, foi um movimento regionalista do início do século XX; era formado pela elite e por artistas paranaenses, os quais buscavam criar um sentimento de pertencimento a província. Neste esforço, há criação de símbolos, comemorações, pinturas e periódicos no Paraná com o intuito de forjar e formar a noção de “Ser Paranista”. É importante mencionar que até mesmo a ideia de “paranista” é uma construção do movimento1, visto que o gentílico da região seria “paranaense”. O paranista seria aquele que morava no Paraná e trabalhava para que ele crescesse. Era aquele que amava esta terra, independente se tinha nascido nela ou se era imigrante. As qualidades do paranista seriam, então, as mesmas de seu principal símbolo Pinheiro do Paraná: forte e altivo. Dessa maneira, nossos objetivos para o presente trabalho são conhecer a presença da cultura clássica no Movimento Paranista a partir do Homero Paranaense e analisar de que maneira a recepção dos clássicos contribui para a construção da identidade paranista. Assim, em um primeiro momento discutiremos acerca do Paranismo, em seguida apresentaremos a personagem Bento Cego e, por fim, pensaremos a relação criada pelos paranistas entre a cultura grega e os símbolos regionais. 1 A nomeação do Movimento Paranista é creditada à Romário Martins, historiador e político paranaense, escritor do “Programa Geral do Centro Paranista” e da “Oração Paranista”. 124 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. O Par an ismo e a r e v i s ta I L L U S T R A Ç Ã O P A R A N A ENSE Como enunciado anteriormente, o Paranismo foi um movimento da burguesia paranaense que ascendeu em meados do século XIX com o aumento da venda da erva-mate. Assim, com o início da urbanização na província, que se tornou independente de São Paulo apenas em 1853, essa nova elite passou a buscar uma identidade para um local que anteriormente era considerado de passagem de tropeiros entre Rio Grande do Sul e São Paulo. Além disso, conforme afirma Geraldo Camargo, com a criação do “ser paranista”, a elite curitibana, majoritariamente luso-brasileira, buscou também homogeneizar as etnias presentes na região, uma vez que com a política de embranquecimento o Paraná contava com uma expressiva população de imigrantes que não deixaram de lado seus costumes europeus ao chegar no Brasil (CAMARGO, 2007, p.14). Com efeito, a própria erva-mate tornou-se um dos principais símbolos da região, como também outros aspectos de sua flora: o Pinheiro do Paraná e o pinhão. Para forjar essa nova identidade paranaense, segundo Luis Fernando Lopes Pereira, “na retraída Curitiba, o importante era não retratar a realidade, mas construir uma imagem do real que, por sua força simbólica, se tornaria mais forte que o próprio real.” (PEREIRA, 1998, p.62). Assim, conforme dito, criaram-se símbolos, obras de arte, comemorações, estátuas, e periódicos para veicular e confirmar essas novas ideias entre a elite, e um dos que mais circulavam era a revista Illustração Paranaense, encontrada nos dias atuais na Biblioteca Pública do Paraná e na Casa da Memória de Curitiba. A Illustração Paranaense foi publicada de novembro de 1927 a novembro de 1930 contando com mais uma edição ainda em 1933, totalizando 31 volumes. Conforme conhecemos a partir do trabalho de Luis Afonso Salturi, um dos estudiosos da Illustração Paranaense, seu criador foi João Baptista Groff, pintor, fotógrafo e cineasta paranaense e entre seus autores estão os principais artistas paranaenses do período, como Lange de Morretes e João Turin, maior ilustrador da revista (SALTURI, 2014). Em suas páginas encontramos matérias sobre a urbanização de Curitiba, o lazer e a cultura dessa sociedade, bem como imagens da prática de esportes e comemorações, não só de datas importantes regional e nacionalmente, mas também de casamentos da elite. Além disso, observamos diversas obras de arte com temáticas vinculadas a flora da região e ainda frequentemente lemos contos acerca do passado indígena, do folclore paranaense e da natureza paranaense. B en t o C ego , o Ho m e ro Pa r a n a e n s e . A primeira vez que encontramos Bento Cego na revista é justamente em uma página intitulada de “Folk-lore Paranaense”, na edição nº3 de 1929. Nessa matéria há uma imagem centralizada da escultura do rosto que seria de Bento Cego com a legenda abaixo: “BENTO CEGO – Baixo relevo de Turin, adquirido pelo Dr. Affonso de 125 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Camargo para o Palacio do Governo”. E, em volta dessa (imagem 1), lemos um texto de Nestor de Castro contando um pouco da história de Bento Cego, que seria "o grande vate sertanejo do Paraná, nascido em Antonina em 1821, viveu dez anos no morro do Castrelhano na ex-fronteira Paraná - Rio Grande." E que "O grande vate paranaense ficou logo conhecido em todo o interior daquelle Estado, chegando a sua fama de optimo repentista até a fronteira oriental. Foi sempre vencedor em todas as porfias em que tomou parte.” (CASTRO 2, 1929). Imagem 1: Baixo relevo de Bento Cego feito por João Turin (Revista Illustração Paranaense, edição nº3, 1929). Logo após essa descrição, Nestor de Castro narra uma história acerca da vida de Bento Cego no Rio Grande do Sul; conta que o Cego amava Catharina, "filha litigima de camponeses rio-grandenses" e que os dois passaram cinco anos se amando, até que Catharina morreu e Bento passou a "monodiar" os versos de sua tristeza até decidir se retirar do Rio Grande do Sul e retornar para sua terra natal. Contudo, segundo Nestor de Castro, "a noticia da retirada do Cego causou geral consternação, pois elle era muito estimado e respeitado aqui, onde nada lhe faltava." (CASTRO 2, 1929). Assim, os principais versos do Cego foram guardados para que essa população lembrasse do grande trovador. Nessa matéria, Nestor de Castro expõe a importância da personagem para a sociedade paranaense, visto que o baixo-relevo produzido por João Turin foi encomendado pelo então presidente da província, Afonso Camargo, para ficar no palácio do Governo. Como também para a gaúcha que sentiria falta dos versos do Cego. Nesse primeiro momento conhecemos parte do folclore paranaense, que se constituiria também em outros estados do país, revelando a importância da identidade 126 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. paranaense e de suas tradições em outras regiões do Brasil. Com esses relatos, o Paraná que era considerado apenas um local de passagem de tropeiros entre Rio Grande do Sul e São Paulo, ganha relevância no sul do Brasil. Na edição nº5 – 6 de 1929 nos deparamos com uma segunda matéria sobre Bento Cego, mas agora esse passa a ser intitulado de “O Homero Paranaense”. Nessa história escrita por Ermelino Leão, o irmão de Bento, que era um dos maiores trovadores do Paraná falece e, então, o Homero paranaense assume a "porvia" quando invocaram o nome de seu irmão contra o trovador "Faisqueira". Os primeiros versos dele são: Rouxinol da Faisqueira Que nos vem amedrontar. O Cego também é gente Para contigo cantar. (LEÃO, 1929). Conforme afirma Ermelino de Leão, é nesse momento que "encerrara-se o cyclo obscuro da sua humilde existencia e se lhes abriama as portas de um destino, nem sempre benigno, mas sempre victorioso.". Bento Cego decide abandonar o bairro de Registo em Antonina e percorrer a "terra de Christo" "com o seo bordão e a inseparável viola". (LEÃO, 1929). Na história lemos que nas andanças que Bento vem a realizar, o Homero Paranaense encontra Antonio, famoso trovador de Santa Catarina, que também era cego, mas não de nascença, assim não teria sofrido tanto quanto Bento Cego. Como falam os versos (ILLUSTRAÇÃO PARANSAENSE, 1929): Ahi ves meo soffrimento, Que é mais duro que o teo Eu ignoro as proprias formas, As feições do corpo meo Não pude nunca dizer Tal coisa é feita ou bonita Porque me vejo no abysmo Da escuridão infinita Quem teve vista e perdeo Com razão soffre, não nego Mas não pode soffrer tanto como eu, que nasci cego Não conheço Pae, nem mãe, Só os vejo em pensamentos Esses que comigo choram Minha desgraça e tormentos. 127 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Pesquisamos a verossimilhança da autoria desses versos, bem como se a própria personagem existiu de fato, mas não encontramos nenhum documento de registro de Bento Cego no Arquivo Municipal de Antonina. De todo modo, para além da confirmação se esse encontro com o catarinense realmente ocorreu, a partir dele podemos entender a afirmação do Paraná sobre Santa Catarina. O pano de fundo ultrapassa a simples história de trovadores para as tensões referentes a Guerra do Contestado, ocorrida no início do século XX, com a perda de territórios paranaenses para o estado vizinho. Conforme apontamos no início do artigo, o importante no Movimento Paranista é construir a partir de símbolos a grandeza dessa nova província. Ainda na mesma reportagem, além de duelar com Antonio, é contado que Bento Cego duela com Miguel de Arriola e vence o trovador, conseguindo, assim, relevância em outras regiões do Brasil: "[Arriola] que se deo por vencido e então a fama do Cego, ganhando novos foros transpoz as lindes da Provincia e nas visinhas circumscripções políticas - S. Catharina, Rio Grande, S. Paulo e Minas a sua pessoa foi acclamada e requestada com carinho." (LEÃO, 1929). Até o momento conhecemos a importância de Cego para o paranismo e a consolidação de tradições, mas não encontramos explicações de sua comparação com Homero. Levantamos, então, hipóteses de que o Homero Paranaense era assim chamado, pois conforme o grego, ambos eram cegos e saiam pelas ruas proclamando histórias. Além disso, de acordo com os resultados obtidos ao analisar a participação da Columna e da Ânfora Paranaense na revista, constatamos que a combinação de símbolos antigos com os paranistas apareciam principalmente em páginas da revista em que se explorava a vida da elite curitibana. Valorizando, assim, essas obras, visto que estariam ao lado da camada dirigente da sociedade; ao mesmo tempo em que essas mesmas obras legitimam esse estrato social por apresentarem os elementos clássicos. Um exemplo é a matéria da “Senhorita Curityba”, que visita o ateliê de João Turin e posa para foto junto do autor e da escultura da Columna Paranaense. (imagem 2) Imagem 2: João Turin em seu ateliê com a Senhorita Curityba observando a escultura de Columna paranaense (Revista Illustração Paranaense, edição nº 9, 1928). 128 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Conforme afirma João Turin em um de seus manuscritos, os gregos antigos foram os criadores das mais belas artes e filosofias, logo, comparar-se com os clássicos na sociedade paranaense do início do século XX era amparar-se em um dos maiores modelos de sociedade ocidental que já existira. A terceira revista em que notamos a presença do Homero Paranaense é a nº 6 de 1930. Nessa, Bento Cego ganha o título de “O maior bardo sertanejo do Parará” e mais uma vez no início do texto há suas informações de nascimento e em sequência a história de seu sofrimento por ter nascido cego, mas, ao mesmo tempo, apresenta a sua genialidade ao ser um grandioso trovador mesmo sem nunca ter enxergado as belezas do mundo. Na mesma página há um desenho de Bento Cego feito por João Turin (imagem 3) em que o observamos a sua semelhança com a descrição do grego Homero escrita por Nestor de Castro no Livro “Bento Cego” encontrado no Arquivo Municipal da cidade e Antonina: A compostura varonil do vate: longos cabelos pretos caindo à moda nazarena em toda a extensão nutrida das clavículas; fronte inteiramente esbatida por vivos fluxoz de inspiração ardente; nariz adunco como o de uma perfeita estátua grega, esculturada pelo camartelo de phifias-esta compostura, repetimos realçava em meio dos tufos de verdura lembrando Homero quando evocava o pantheismo das selvas nas lindas praias de Jonia (CASTRO 1, 1902). Imagem 3: Ilustração de Bento Cego por João Turin (Revista Illustração Paranaense, edição nº 6, 1929). 129 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Na página seguinte há ainda outra ilustração de Bento sucumbindo entre seus pares, com a viola na mão. Essa seria a morte do Cego, que até mesmo nesse momento carregava seu símbolo de trovador. Conforme afirma Elizabete Turin, o paranaense seria igual ao Homero, mas em vez de lira, tocava viola. (TURIN, 1998, p.68). A r e c e pç ão d o s cl á s s i co s n a co n s t ru ção da id en t idad e pa r a n i s ta Ao tentar construir sua identidade, o Movimento Paranista buscou maneiras de se legitimar, e assim percebemos a presença dos clássicos para nivelar os símbolos da região conforme um dos principais modelos de sociedade ocidental. O livro de Nestor de Castro é de 1902, cerca de 25 anos antes da primeira publicação da Illustração Paranaense, e nele, como já visto, encontram-se as comparações entre os Homeros. Assim como lemos no livro, Bento Cego foi um importante ícone paranaense para o período em questão, pois expressaria exatamente o que os paranistas procuravam: as origens paranaenses, sustentando a tradição do novo estado emancipado; e a possibilidade de exaltação devido a sua criatividade, talento e superação expressa em seus versos. O comparar com Homero é uma das principais formas de legitimar as tradições dessa sociedade em construção. Com efeito, para compreender a presença da cultura clássica na região, apoiamo-nos no livro "Reception Studies" de Lorna Hardwick, em que a autora desenvolve conceitos de análise de diferentes formas possíveis de recepção dos clássicos. Dessa maneira, entendemos a configuração do Homero Paranaense como uma analogia2, visto que essa personagem possui um aspecto comparável de fonte e recepção (HARDWICK, 2003, p.9). Ou seja, ambas as personagens seriam semelhantes fisicamente, com os cabelos pretos, a postura varonil; eram cegos e também vates segundo os paranistas. E também podemos pensar essa comparação como um diálogo3, pois ambos os símbolos eram considerados relevantes socialmente. (HARDWICK, 2003, p.9). Ou seja, Homero era uma personagem importante na Grécia Antiga e também no contexto paranaense, bem como o Bento Cego era essencial para essa nova sociedade paranaense, ganhando o epíteto de Homero justamente para evidenciar sua grandiosidade. Portanto, com a presente pesquisa, ao conhecermos Bento Cego e a sua relevância para as tradições paranaenses como apresenta a revista Illustração Paranaense, identificamos também a presença dos povos antigos na construção dessa identidade paranista que estava sendo forjada. Com efeito, compreendemos que os paranistas não buscavam uma origem comum nos clássicos, mas sim em seu próprio folclore, que nesse caso passa a ser comparado com os gregos para de se igualar ao nível de uma das personagens antigas mais conhecidas do mundo ocidental. O epíteto “Homero Paranaense” revela então a exaltação de Bento Cego e, consequente2 No inglês “Analogue”. 3 No inglês “Dialogue”. 130 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. mente, de toda a sociedade paranista que com esse exemplo justifica a importância de sua identidade. Con sid er açõ es f i n a i s Analisar a construção do Movimento Paranista a partir dos clássicos abre espaço para novos estudos e entendimentos acerca dessa identidade que foi forjada no início do século XX. No caso, conhecemos alguns dos artifícios usados pela Illustração Paranaense para exaltar as tradições e símbolos do Paraná, e assim entendemos que a “relevância” da cultura paranista também se fez de acordo com a comparação com os gregos antigos. Observamos que não só a modernização ocorrida na Europa naquele período era um modelo a ser seguido pelos paranistas, mas também os antigos foram essenciais para fortalecer essa identidade, que acaba por se fazer presente no imaginário paranaense até os dias de hoje. Bento Cego é nome de rua, tanto na capital paranaense, quanto em Antonina. E ao pesquisarmos no Arquivo Municipal de Antonina, sua cidade natal, juntamente ao livro de Nestor de Castro, nos deparamos com matérias do “Jornal Antoninense” da década de 1970 sobre a personalidade e ainda um cartaz promocional do "1º concurso Bento Cego de Histórias regionais” promovidos pelo Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de Antonina em 1993. Os símbolos criados no início do século XX permanecem vivos na sociedade paranaense mesmo depois do fim do Movimento Paranista. E alguns, como gostariam os paranistas, acabaram por ser incorporados pelas tradições paranaenses como se sempre estivessem presentes na cultura da região. Font e s CASTRO, Nestor. Bento Cego. Arquivo Municipal de Antonina. 1902. CASTRO, Nestor. Folk-Lore Paranaense. Revista Illustração Paranaense, edição nº 1 – 2, 1929. LEÃO, Ermelino. O Homero Paranaense. Revista Illustração Paranaense, edição nº 3, 1929. TURIN, João. Manuscrito. Curitiba. s/d. Arquivo João Turin: Museu Oscar Niemeyer. Doc. nº1994/710. Imagem nº743. TURIN, João. Manuscrito. Curitiba. s/d. Arquivo João Turin: Museu Oscar Niemeyer. Doc. nº1994/376. Imagem nº711. Revista Illustração Paranaense, edição nº 9, 1928. Revista Illustração Paranaense, edição nº 1 – 2, 1929. 131 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Revista Illustração Paranaense, edição nº 3, 1929. Revista Illustração Paranaense, edição nº 5- 6, 1929. Revista Illustração Paranaense, edição nº6, 1930. Ref er ên c ias Bib l i o g r á f i ca s CAMARGO, Geraldo Leão Veiga. Paranismo: arte, ideologia e relações sociais no Paraná: 1853 - 1953. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007. HARDWICK, Lorna. Reception Studies. Greece & Rome, New Surveys in the Classics. nº. 33. Oxford University Press, 2003. PEREIRA, Luis Fernando Lopes. Paranismo: o Paraná inventado: Cultura e imaginário no Paraná da I República. 2. ed. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998. SALTURI, Luís Afonso. Paranismo, movimento artístico do sul do Brasil no início do século XX. Perifèria, Barcelona, n.11, dez. 2009. SALTURI, Luís Afonso. O movimento paranista e a revista Illustração Paranaense. Temáticas, Campinas, n.43, pp. 127-158, fev./jun. 2014. TURIN, Elisabete. A arte de João Turin. Campo Largo: INGRA, 1998. Recebido em 12/9/2019 e aceito em 2/10/2019. 132 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. A operação das masculinidades nos discursos do IHGB: passado clássico e presente na Primeira República brasileira Mariana Fujikawa Mestranda em História (UFPR) Bolsista CNPq mari.fujikawa97@gmail.com Orientadora: Profª Dra. Renata Senna Garraffoni (UFPR) Res u mo Este artigo é resultado de um trabalho realizado para uma disciplina da pós-graduação de História, ministrada pela professora Doutora Ana Paula Vosne Martins. Nesta disciplina deveríamos realizar um trabalho final em que apresentássemos um aprofundamento de algum aspecto que poderia ser melhorado em nossa pesquisa ou de mestrado, ou de doutorado. Neste artigo viso, então, aprofundar teoricamente questões de interesse de minha pesquisa de mestrado, orientado pela professora Doutora Renata Senna Garraffoni. Nesta etapa acadêmica, viso analisar quais as relações feitas pelos membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro sobre o passado greco-romano. Uma hipótese é a de que, ao trazerem aspectos dos clássicos para seus presentes, os intelectuais do Instituto construíam moldes do que seria o ser humano e, mais especificamente, o que seria o modelo do homem. Partindo dessa ideia, consideramos de fundamental importância nos embasarmos teoricamente sobre os estudos de recepção do mundo antigo, aos estudos de gênero e de masculinidade. Nesse sentido, o artigo se configura abordando essas relações, assim como possui uma análise de minha documentação, que são as Revistas do IHGB. Pa lav r as - chav e estudos de recepção; estudos de gênero; masculinidade; mundo clássico. Abs t rac t This paper is the result of an essay written to a class of the master in History, which was given by the PhD Ana Paula Vosne Martins. In this classes, we were supposed to write a paper in which we improved an aspect of our master’s research. In this paper, I aim, then, to theoretically deepen some questions of interest of my Master’s rese133 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. arch, which is oriented by the PhD Renata Senna Garraffoni. In this academic stage, I am to analyze which are the relations made by the members of the Historical and Geographic Institute of Brazil about the Greco-romaine past. One hypothesis is that by bringing aspects of the classics to their presents, the intellectuals of the Institute built an image of what was human and what was an ideal man. Considering this idea, we believe that it is extremely important to be theoretically substantiated with the studies of reception of the ancient world, as well as the gender and masculinities studies. This article is structured to try to approach this themes, and in addition it has an analysis of my documents, the IHGB’s magazines. key w or ds reception studies; gender studies; masculinity; classical world.. Int ro d u ç ão Minha pesquisa, durante o período da graduação, foi fundamentada pela abordagem dos Usos do Passado. Este viés entende que a maneira que observamos a antiguidade clássica –apesar de seu distanciamento temporal - não é neutra e que, pelo contrário, pode ser entendida como um instrumento que serve a lógicas legitimadoras do poder na atualidade (SILVA, 2007, p. 103). Defendo que há relações feitas no presente que se remetem ao passado, sendo este utilizado na construção de identidades nacionais e discursos identitários. A partir dessa abordagem, concentrei-me, enquanto na graduação, nas atas das Sessões Magnas de Aniversário das Revistas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Essas atas eram as transcrições literais de todos os discursos proferidos na sessão que celebrava o aniversário do IHGB, intitulada “Sessão Magna de Aniversário”. Esse trabalho, que resultou em minha monografia, visava analisar as atas e os usos e apropriações dos gregos e romanos presentes nos discursos do Instituto no período da Primeira República. Em minha análise, observei que os gregos e romanos retomados pelo IHGB eram filósofos e nomes renomados no cânone literário bastante específicos, e entendo que essa escolha de retomar certo passado clássico não era neutra, e assim concluí que ao retomarem pensadores greco-romanos e os relacionarem com a atualidade brasileira, os membros do IHGB almejavam construir uma identidade nacional baseada em ideias de razão e intelectualidade. Percebi também que, ao construírem essa nacionalidade, os membros do Instituto ressaltavam principalmente o homem e seu importante papel na nação. A partir disso, para o mestrado, optei por deslocar o foco das questões da História Intelectual para melhor analisar como se deu a construção das masculinidades no IHGB no período da Primeira República e como era a relação dessas construções com os gregos e romanos. De forma semelhante a monografia, mantive o recorte no período de 1889 a 1930 no Brasil, mas expandirei a leitura das fontes. Enquanto na graduação optei por ater-me somente nas atas das Sessões Magnas de Aniversário, 134 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. para o mestrado terei como fontes todos os segundos volumes das Revistas do IHGB publicados na Primeira República. O maior deslocamento, porém, ocorrerá em relação ao foco teórico. Abordarei a relação entre o passado e o presente, no mestrado, a partir da ideia da Recepção. Esses estudos fazem parte do diálogo entre o passado e o presente, e visam analisar o cruzamento entre as diferentes temporalidades, entender essas camadas temporais (HARDWICK, 2003, p. 04). Porém, ressalto que o foco desse artigo 1 que mostra-se importante para a futura dissertação será um outro deslocamento teórico: enquanto antes estudava os gregos e romanos e seu impacto na construção de uma identidade nacional intelectual, no mestrado deslocarei esse foco para as questões de gênero. Considerando essa nova perspectiva de análise, tenho como objetivo, nesse artigo, refletir sobre as relações do gênero e masculinidade. Assim, estruturarei o artigo da seguinte maneira: abordando inicialmente – em um esboço da teoria – importantes nomes e trabalhos sobre as questões de gênero. Posteriormente, apresentarei estudos sobre a masculinidade. Além disso, em um terceiro momento analisarei os impactos das questões de gênero em estudos sobre os estudos de recepção e, por fim, abordarei sobre trabalhos que trataram a temporalidade da Primeira República e a temática de gênero, assim como uma análise da documentação com a qual trabalho. As q u es t õ e s d e G ê n e ro : u m e s b o ço t eó r ic o Mães, esposas e donas de casa. Esse era o papel comumente atribuído às mulheres de classe média alta, da burguesia, principalmente a partir do século XIX (BADINTER, 1980, p. 15). Porém, é importante ressaltar que houve resistência nesse período e muitas mulheres não aceitaram permanecer na esfera privada. Resistência, surgimento do feminismo. Como afirma Roberta Gilchrist (1999, p. 03), “All feminism is characterised by a political commitment to chance existing power relations between men and women”.2 O Feminismo foi e ainda é um movimento social composto principalmente por mulheres, podendo – em algumas correntes – abarcar também homens, objetivando abolir o patriarcado (MANN, 1985, p. 32). O Feminismo não é único e unitário, possui diversas decorrências, vertentes e teorias. Pode-se entender esse movimento a partir de ondas. Como viso trabalhar com os arranjos de gênero, e como o feminismo fez parte dessa história, irei abordar aspectos importantes dessas ondas. A primeira onda tinha por objetivo afirmar que as mulheres eram iguais aos homens e, por isso, deveriam receber os mesmos direitos que eles, tais como o sufrágio. Um marco importante para o início dessa onda é o livro Vindication of the Rights 1 Artigo que é o resultado de um trabalho feito para a disciplina de Seminário I, da pós-graduação em História da UFPR. Disciplina ministrada pela professora Ana Paula Vosne Martins, e trabalho feito sob orientação da professora Renata Senna Garraffoni. 2 Todo feminismo é caracterizado por um compromisso político para mudar as relações de poder existentes entre homens e mulheres. (Tradução livre) 135 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. of Women (1792) de Mary Wollstonecraft (ANDREASEN;CUDD, 2005, p. 35). A segunda onda, por sua vez, afirmou que somente a igualdade política não foi o suficiente para acabar com a desigualdade entre os sexos. Afirmou, também, que a opressão da mulher estava em diversos aspectos da sociedade, tais como a economia, a sexualidade, os hábitos, o cotidiano (GILCHRIST, 1999, p. 03). Um importante marco desse momento da história do feminismo foi a publicação da obra The Second Sex, da Simone de Beauvoir (2005). Nesse sentido, como aponta Miriam Adelman, ao referir-se a Beauvoir, aponta que a Mulher foi construída como o Outro absoluto, aquela que serve para o “referencial”, que seria o homem. Além disso, a mulher – aponta Adelman ao referenciar-se a pensadora francesa – é sexualizada, representada ou como objeto do sexo, ou sendo excluída das criações culturais, da ciência e da literatura. Ademais, Miriam Adelman ressalta que as mulheres lutaram para adentrarem no mundo científico, cultural, mundos aos quais haviam sido inicialmente excluídas (ADELMAN, 2004, p. 89-90). Na década de 60 as mulheres ingressam de forma maciça nas universidades, criando mais conhecimentos de autoria feminina, e que também apontam para novos conhecimentos vinculados à experiência feminina. Com essas mudanças, foi necessário, aponta a doutora em sociologia, ir além das categorias da psicanálise, e da economia de Marx. A terceira onda, fortemente influenciada pelo movimento anterior do feminismo, datada a partir de 1980, afirmou uma maior diversidade da categoria mulher, visando abarcar novos conceitos como raça e classe a essa categoria. Além disso, criticou dicotomias como o público e o privado, desafiando papéis e instituições naturalizadas como o casamento e a maternidade. Questionou, também, a divisão entre sexo e gênero e a ideia de identidades fixas. É principalmente a partir do impacto do feminismo de terceira onda que a questão do termo gênero começa a se solidificar, principalmente no âmbito brasileiro. Como afirma Joana Maria Pedro (2011, p. 273), em 1990 inicia-se a grande divulgação da categoria “gênero”. De acordo com essa autora, apesar de que em 1980 o termo já havia sido empregado em diversas disciplinas - como a antropologia, a literatura, a sociologia, a psicanálise – foi em 1986, com a publicação de Joan Scott, nos Estados Unidos, do artigo “Gênero, uma categoria útil de análise histórica”, que o termo passaria a ser diversas vezes citado. Nesse artigo, Scott afirma que o gênero era utilizado inicialmente como um sinônimo de “mulheres”, mas que, por ter uma conotação mais objetiva, era utilizado para dar legitimidade acadêmica aos estudos feministas nos anos de 1980. Scott, porém, ao tratar do gênero, não desejava falar somente de mulheres. Pelo contrário, ao tratar desse termo como categoria de análise, a autora desejava abordar as relações estabelecidas entre homens e mulheres. Essa relação, afirma Scott, é uma relação de poder, sendo “o gênero um primeiro modo de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 21). Além disso, a História era importante para entender a maneira como os sexos se organizavam e como as tarefas e funções haviam sido divididas sexualmente através dos tempos. Assim, essa disciplina era responsável pela “produção da diferença sexual” e nunca – afirma a autora – seria neutra. A partir disso, ressalta que, quando a história opta por relatar somente esferas em que majoritariamente eram homens que estavam envolvidos - como a esfera da política, do militarismo - ela constrói o gênero no presente, afir136 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. mando que certos papéis pertencem ao masculino e não ao feminino. Dessa forma, a autora desnaturaliza a diferença entre homens e mulheres, afirmando que estas foram construídas historicamente. A maneira de entender o gênero, e também os outros conceitos, como construídos historicamente foi influenciada pelas reflexões pós-estruturalistas, como afirma a pensadora Lourdes Feitosa (2003, p.101-115). Essa autora aponta para a questão de que as discussões das epistemologias sobre o feminino ganharam complexidade a partir do impacto dos pós-estruturalistas. Entender os conceitos “Masculino” ou “Feminino” enquanto essência tornou-se insuficiente para justificar os diferentes comportamentos dos diversos grupos socioculturais. Assim, afirma Feitosa, com a inserção da categoria gênero questiona-se o uso de termos como “homem” e “mulher” como categorias universais e fixas. Além disso, no mesmo sentido que Scott, a autora ressalta que além da crítica às essências, o estudo de gênero considera como importante analisar os significados dos conceitos nos diferentes momentos históricos. Historicizar os conceitos, ou seja, entendê-los como contingentes e transitórios, e construídos historicamente, implica em desnaturalizarmos noções que são vistas como da ordem da natureza, do eterno. Nesse sentido, de acordo com Feitosa, diversas sociedades consideraram o gênero como algo diretamente associado ao sexo biológico. Isso, por muito tempo, foi aceito sem discussão, mas como afirma Sena (1992, p. 13), os atributos que definem o masculino e o feminino nem sempre foram os mesmos. Nesse sentido, uma importante pensadora sobre a desnaturalização do próprio sexo biológico foi a filósofa estadunidense Judith Butler (2015). Esta autora afirma que parte da teoria feminista ressaltou uma identidade fixa feminina. Ela ressalta que isso ocorreu para promover a visibilidade das mulheres, mas, devido a essa imobilidade da categoria mulher, Butler acredita que o movimento feminista identitário estaria fadado ao fracasso. Uma das razões desse fracasso, comenta a filósofa, se daria porque ao criar a categoria “mulher” como estanque, entende-se que a identidade feminina seria uma identidade em comum com todas as mulheres. Algo que, em sua visão, seria impossível devido a multiplicidade e pluralidade das mulheres. Ela afirma que essa busca por uma luta identitária é baseada principalmente na distinção entre sexo e gênero, em que o sexo seria da ordem da natureza, imutável, enquanto o gênero seria culturalmente construído. Porém, Butler critica essa divisão. Aponta ela que, já que se entende que o gênero é construído, talvez o sexo seja construído da mesma forma. Dessa forma, a autora estadunidense não coloca o sexo em um âmbito pré-discursivo. De forma contrária, considera a biologia como construída histórica e linguisticamente. Butler entende que a ideia unitária do sexo, considerar a categoria “Mulher” como universal, foi utilizada como forma de resistência e de luta política. Ainda assim, ela questiona se de fato essa “unidade” – artificialmente construída – é necessária para a ação política efetiva. Isso porque, na visão da filósofa, “certas formas aceitas de fragmentação podem facilitar a ação” (BUTLER, 2015, p.36) e isso seria importante também pelo fato de que, em sua percepção, a unidade da categoria mulheres não é desejada e nem pressuposta. Assim, em Problemas de Gênero (2015), Butler desconstrói o binarismo entre sexo e gênero e, além disso, afirma a impor137 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. tância de desconstruírmos os ideais de identidades fixas e imóveis, sendo que estas mais produzem exclusões e dominações do que libertam e transformam as relações de poder. Nesse mesmo sentido, outra contribuição teórica importante dessa autora foi a questão da “performatividade do gênero”. Ao afirmar esse conceito, Butler destrói a ideia de uma identidade estanque, pois entende que as formas que se dão as relações de gênero são performáticas, transitórias e fluídas, sendo mais performances do que identidades, não sendo resultados do sexo, e sim construções culturais. A partir desse breve esboço teórico, ressalto a importância dos movimentos feministas para transformar a abordagem acadêmica que possibilitou a realização de trabalhos que não tivessem como foco somente os grandes homens, mas que expandissem a visão do que é história para diferentes sujeitos, como as mulheres. Além disso, gostaria de ressaltar a importância do movimento feminista e de como isso foi importante aos estudos de gênero que, impactados pelos estudos pós-estruturalistas, visou entender as relações de poder entre os gêneros como algo construído historicamente, não natural e que – por isso – poderia ser contestado e criticado. Ao entender o gênero e o sexo como discurso, compreende-se que as visões que possuímos são contingentes e podem ser transformadas. Outro aspecto extremamente importante – acredito – que foi trazido pelas questões de gênero, foi a descentralização da mulher como o foco único de estudo e análise. Como afirmou Scott (1995), apesar de que inicialmente o gênero foi visto como sinônimo de mulher, seu foco, assim como o de Butler (2015) e Feitosa (2003), não era o de analisar somente o feminino, e sim o de entender as relações que são produzidas entre os homens e as mulheres. Nesse sentido, considero importante, para esse artigo, analisar também as particularidades de como os estudos de gênero começaram a criar novas perspectivas sobre os estudos da masculinidade. Est u dan d o a mas cu l i n i da d e Anteriormente comentei sobre as ondas feministas. Os estudos da masculinidade inicialmente surgiram, como aponta Joana Maria Pedro (2011), do impacto da segunda onda feminista, nos Estados Unidos. A segunda onda visou questionar o que era o feminino e, com isso, e também com o movimento gay, houve uma desestabilização do que seria o masculino normativo. Como afirma Badinter, “o feminismo ocidental é menos culpado de ter misturado os pontos de referência do que de ter mostrado a nudez do rei” (BADINTER, 1992, p. 06). Dessa forma, certos estudiosos da masculinidade afirmaram que também eram vítimas das opressões. Para contornarem a crise identitária causada pelo feminismo acabaram reforçando ideias de virilidade, criando uma masculinidade hegemônica, sendo que todos os outros modos de vida masculinos foram considerados como inferiores ou inadequados (SILVA, 2015, p. 07). Esses estudos iniciais eram produzidos, para, por e sobre homens. Afirma Natanael Silva que os primeiros estudos sobre os homens consideravam o feminino e o masculino como essências, e que as diferenças entre os sexos seriam inatas. Ainda 138 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. assim, como afirmei, nas últimas duas décadas, impactados pela terceira onda, houve um aumento de trabalhos que estudam a masculinidade, não mais com a perspectiva de ressaltar uma virilidade hegemônica, mas visando entender as construções sobre a masculinidade. Nessa perspectiva, entende-se que a masculinidade, assim como a feminilidade, são constructos sociais. Nesse sentido, como afirma Arnaud Bauberót (2013, p. 191), houve um profundo questionamento do modelo tradicional de virilidade, mas se isso ocorreu, foi porque o modelo viril ainda encontrava-se solidamente estabelecido. Essa nova perspectiva de crítica a virilidade tradicional abriu possibilidades para a desnaturalização da masculinidade hegemônica. De acordo com Michael Kimmel (1998, p. 103), os significados de masculinidade variam entre as diferentes culturas, os diferentes períodos históricos. Assim, a masculinidade não é uma constante universal, uma essência fixa, e sim “um conjunto de significados e comportamentos fluidos e em constante mudança” (KIMMRL, 1998, p. 106). Porém, ressalta o autor que nem todas as masculinidades são construídas da mesma forma. Afirma Kimmel que a masculinidade é questionada e que, devido a isso, deve ser provada constantemente, a todo instante. Assim, comenta que “a busca por uma prova constante, durável, inatingível, torna-se em última instância uma busca tão sem sentido, que ela assume as características, como disse Weber, de um esporte” (KIMMEL, 1998, p. 01). Se certa masculinidade sempre era continuamente provada, Kimmel indaga-se sobre como ela tornara-se hegemônica. A resposta, afirma o autor, é de que a principal maneira que os homens reforçavam sua masculinidade era a partir da negação e desvalorização das outras diferentes formas de ser homem. Michael Kimmel, em Men’s Lives, também comenta sobre a ‘invisibilidade’ do gênero masculino. Ao afirmar isso, Kimmel ressalta que os homens foram fortemente focados e analisados na história. Assim, não foi a falta de estudos sobre os homens que faz com que exista uma ‘invisibilidade’ desse gênero. O que o autor deseja afirmar é que, devido ao fato de que se associa o humano somente com o sexo o masculino, e não com o feminino, consideramos o masculino como a ordem, o padrão, o universal. Assim, afirma ele que “é mais comum tratarmos os homens como se não tivessem gênero, como se sua experiência pessoal do gênero não tivesse importância” (KIMMEL, 1998, p. 03). É importante ressaltar, então, que essas análises de entender a masculinidade hegemônica e a subalterna e de compreender a masculinidade como construção impactaram na historiografia. Assim como Michael Kimmel, outro autor que debruçou-se sobre o tema da masculinidade foi Raewyn Connell, no livro Masculinities (1995). Em seu livro, Connel afirma que as masculinidades são criadas em tempos e lugares particulares, sendo sempre sujeitas a mudança, sendo, dessa forma, históricas. Ao fazer uma retomada histórica das criações da masculinidade no Ocidente, ressalta que a história da masculinidade não é linear, e que, nas complexas relações de gênero, do hegemônico e do subalterno, as relações de poder e as próprias masculinidades se transformam (CONNEL, 1995, p. 3-4). Da mesma maneira que Connel entende as masculinidades como contingentes, Elizabeth Badinter, no livro XY Sobre a Identidade Masculina, questiona a natu139 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. ralidade da virilidade, afirmando que os homens possuem pouca confiança na sua identidade sexual, por isso a todo instante devem provar sua masculinidade. Assim, ressalta que a virilidade não é natural e deve ser “fabricada”. Nesse sentido, Badinter comenta que a preocupação com a própria identidade sexual é recente, datando-se no fim do século XIX. A partir desse momento, construiu-se ideais sobre o que deveria ser o homem: algo que se opõe ao feminino, ao gay, que é viril, violento, másculo. A criação dessa masculinidade hegemônica, porém, criou também masculinidades diferentes, e nem todos os homens estão compartilhando as mesmas vivências e experiências. Como ressalta Connel, raça, diferenças geracionais, classe, marcam diferenças nas construções de subjetividades masculinas. Além disso, como já comentado, essas subjetividades variam temporalmente e espacialmente. Assim, entendo como importante destacar que a masculinidade é histórica, não natural. É um processo incompleto e fluido, e não uma identidade fixa. Com esses apontamentos sobre a masculinidade, acredito que podemos contribuir com a historiografia ao estudar a construção da masculinidade – a partir dos usos do passado – no IHGB da Primeira República. Como afirmei com os estudos de Badinter, Kimmel, Connell, a construção de uma masculinidade hegemônica era permeada por ideias de virilidade e violência. Porém, a partir da leitura de parte do corpus documental, os segundos volumes das Revistas do IHGB publicadas entre 1889 e 1930, indago-me se a formação da masculinidade desse período no Instituto era permeada principalmente pela ideia de virilidade ou se seriam outros os discursos que moldariam o que seria o masculino. Nesse sentido, apresentarei dois breves, mas significantes trechos da documentação: q ue valem as glórias efêmeras e ruidosas, pelas impetuosas paixões de um Alexandre, de Cesar [...] ante as conquistas pacificas e perduráveis da ciência de um Galileu, de um Newton (Cons. H. A. Castro, 58, 1895, p. 400-401). A sabedoria, segundo Cícero, a razão perfeita, ou antes o conhecimento intelectual das coisas divinas e humanas, e toda subjetiva e pressupõe ciência no que exercita para que dos conhecimentos e da experiência derivem os meios de obrar com precisão e acerto (Cons. H. A. Castro, 67, 1904, p. 480). Ambos os trechos valorizam fortemente a inteligência. O primeiro, de 1895, do então presidente do IHGB Sr. Conselheiro Olegário Herculano de Aquino e Castro, apresenta que ainda que a paixão de Alexandre e Cesar possam ser consideradas como glórias, pois perduraram na história, elas merecem muito menos crédito do que o que foi conquistado com a racionalidade, com o intelecto. Quatro homens são citados. Assim, pode-se entender que a feminilidade não está em jogo nessa frase. 140 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Sobre a masculinidade, porém, pode-se inferir que, ao criticarem a efemeridade das conquistas violentas dos clássicos Cesar e Alexandre, Aquino e Castro afirmava um ideal masculino não voltado às paixões e emoções, mas à ciência e a razão. Não é, porém, como se todo homem do mundo clássico devesse ser considerado como efêmero e tentado às emoções. O segundo trecho, também de Aquino e Castro, mas de 1904, apresenta a figura de Cícero, político e filósofo, para retomar a valorização da ciência e da sabedoria. Seguindo nesse mesmo trecho, o presidente do Instituto afirma “o afamado filósofo, que como lembra um profundo observador, por lamentável desvio poderia ter-se abismado no imundo pélago das devassidões dos Claudios e dos Neros” (Cons. H. A. Castro, 67, 1904, p. 481). Assim, imperadores romanos atrelados à força bruta são criticados. Percebo, a partir disso, como certo passado é retomado. Não de forma neutra e apolítica, mas com utilizações que impactam no presente. Nos trechos por mim selecionados, em uma primeira e breve análise das fontes, observo que os gregos e romanos retomados de forma positiva eram os grandes pensadores, o que faz com que se reflita se a masculinidade valorizada pela elite intelectual na Primeira República seria também uma masculinidade atrelada à razão. Esses questionamentos e essas preocupações permanecerão durante a escrita e o afinamento da dissertação, e entendo que os estudos apresentados sobre a teoria dos estudos de gênero e sobre a masculinidade contribuirão para a escrita e preparação do trabalho final do mestrado. Outro aspecto que acredito que irá me auxiliar nesse artigo e na posteridade é o de entender como alguns outros e outras autoras trabalharam com a recepção e com sua relação com as questões de gênero. Pensan d o o impact o d o G ê n e ro n o s e s t udos s o b re o s es t u d o s d e r e ce p ção No século XX, como afirma Tais Belo (2014, p. 13), houve uma ‘crise’ na historiografia antes ancorada em ideais iluministas do século XVIII, tais como o racionalismo e o antropocentrismo. O século XIX incorporou a isso a concepção evolucionista e progressista do mundo e do homem. Ainda assim, ressalta a historiadora, o século XX, com todos os avanços científicos e a exaltação do progresso, mostrou o fracasso do ideário do Iluminismo, que colocou em risco a humanidade, a partir das grandes guerras mundiais, do colonialismo e das bombas atômicas. Dessa forma, houve uma crise dos paradigmas, e o campo da história passou a tentar apresentar uma perspectiva mais democrática e inclusiva. A partir disso, houve o esgotamento da modernidade, a desconfiança nas verdades absolutas e nisso o conceito de homens e mulheres, como apresentamos, também começou a ser questionado e debatido dentro da história. As questões de gênero, impactadas pelos questionamentos à verdade, pelo pós-estruturalismo, influenciaram também a maneira que os e as historiadoras analisavam o passado clássico. Alguns estudos sobre os estudos de recepção, ainda que recentes, mostraram a preocupação de tratarem da relação entre homens e mulhe- 141 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. res e entre mulheres e entre homens. Os trabalhos existentes sobre a temática ainda são poucos, e trabalharei com dois deles – os dois por nos encontrados sobre a relação gênero e recepção. Abordarei nesse artigo a tese de Tais Pagoto Bello (2014) e a tese de Renato Pinto (2011). Considerando a falta de estudos sobre a temática, viso contribuir, em minha pesquisa de mestrado, com essa historiografia, explorando a construção das masculinidades do IHGB. Indago, em minha pesquisa, quais características seriam atreladas aos homens. Outro aspecto é entender se essas construções se atrelavam com identidades nacionais. Entendo que as identidades nunca são fixas, mas fluidas, e viso entender os processos, as formas que o gênero operava dentro desses discursos, abarcando a diversidade e a transitoriedade desses discursos identitários. Considerando esses objetivos, foi de essencial importância analisar os trabalhos feitos com as mesmas perspectivas do que as minhas. Tais Belo analisa como a figura feminina de Boudica – rainha Bretã que liderou um exército contra o Império Romano - foi utilizada como representação feminina para as mulheres de poder na Inglaterra. Ela afirma que a Boudica foi vista como a ‘primeira mulher britânica’, sendo influência para as feministas e para líderes da Inglaterra como Margareth Thatcher e a Rainha Vitória. Nesse sentido, afirma que esta figura foi importante para a legitimação das mulheres enquanto líderes. A autora ressalta que o preconceito com as mulheres em posições de lideranças é algo contemporâneo, mas que é uma pauta importante nos grupos feministas de reivindicação. A partir disso, comenta que a figura de Boudica é vista e rememorada, na Inglaterra, como um símbolo feminino de luta e de força, que não sucumbiu frente às dificuldades, sempre encarando-as de frente. É claro, aponta Belo, que essa visão sobre a guerreira do passado não é neutra e não retoma o passado em si, mas sim uma representação dele. Ela comenta que a figura de Boudica foi reinventada, sendo moldada e reavaliada pelas diferentes sociedades que se utilizaram dela. A construção da memória, como afirma Lowenthal (1985, p. 45), não é uma reflexão banal sobre o passado, e sim reconstruções seletivas. Assim, Belo conclui que Boudica – ao ser utilizada em discursos do presente - é um tema pertinente na atualidade, sobretudo para as feministas. Renato Pinto, de forma semelhante a Belo, também tratou da relação entre os Usos do Passado e o gênero. Em sua tese intitulada Duas Rainhas, um Príncipe e um Eunuco: gênero, sexualidade e as ideologias do masculino e do feminino nos estudos sobre a Bretanha Romana (2011), comenta sobre como fontes da Antiguidade clássica são reinterpretadas para diversos fins do mundo contemporâneo. Afirma o historiador que, ao trabalhar o conceito da recepção do mundo clássico, não entende que os homens e mulheres da modernidade vão ao passado para trazê-lo tal como foi ao mundo atual. Ressalta, assim, que os conceitos, as ideologias, os e as personagens do passado são interpretados pelas pessoas a partir do olhar do presente. A partir dessa abordagem, o autor analisa como personagens da Britânia, tais como a própria rainha Boudica – objeto de Belo – e também o príncipe Carataco, servem como exemplos para a construção de identidades nacionais britânicas. Pinto ressalta que, ao retomarem personagens do passado clássico, o império Britânico, no final do século XIX, visava comparar-se e igualar-se ao império romano. Nesse sentido, persona142 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. gens da antiguidade eram retomados, por sua vez, para reforçarem papéis sexuais, reforçando definições normativas sobre os homens e as mulheres. Dessa forma, com esses dois estudos, pode-se observar como o resgate do passado não é possível, e o que há são retomadas de certos aspectos e trechos sobre o passado. Esses estudos da recepção do mundo clássico na atualidade não são e não se pretendem como neutros, e visam, por sua vez, entender como funcionam as relações entre os discursos da atualidade e do passado. Nesse sentido, enquanto que com a análise de Pinto (2011) o passado clássico foi retomado para fixar divisões sexuais, no trabalho de Belo a figura de Boudica foi utilizada pelas feministas para ressaltar a liderança feminina. Ambos os trabalhos são importantes para compreender a relação de gênero com os estudos da recepção, mas os trabalhos aqui analisados não focam nas particularidades da masculinidade e também não abordam principalmente o território nacional brasileiro. Nesse sentido, viso contribuir nesse aspecto, possibilitando novos olhares sobre a relação entre o passado greco-romano, o Brasil e as questões de gênero. A P rime ira R e púb l i ca e o s e s t u d o s d e g ênero Estudos sobre a Primeira República debruçaram-se, por diversas vezes, na questão da mulher. Afirma Aline Tosla dos Santos (2009, p. 10) por exemplo, que no período do início da República, buscou-se construir um papel para as mulheres. Elas possuiriam importante função no seio da família nuclear. Afirma que, a partir de discursos médicos, juristas, o papel da mulher era cada vez mais reiterado como sendo o de esposa e mãe. Mais escassos, por sua vez, são os estudos que tratam da masculinidade e sua relação com o período de 1889 até 1930. Um importante trabalho sobre essa temática, porém, é o de Richard Miskolci, intitulado O desejo da nação: masculinidade e branquitude no Brasil de fins do XIX (2012). Nesse livro, afirma que havia um projeto político imposto, que era autoritário e conduzido por homens da elite que desejavam construir no Brasil uma população e uma identidade branca e civilizada. Isso, afirma, a partir de pressupostos do masculino, do branco e do heterossexual como dominante. Além disso, ressalta que conjuntamente com esse projeto havia diversos fantasmas: os outros, aqueles que não se inseriam nesse ideal identitário. Seriam esses os negros, os pobres, as mulheres. Contra esse fantasma, a elite buscava controlar e impedir os outros a transitarem pelos espaços hegemônicos. A partir da presença desse conflito entre o projeto de nação e as diferenças, os outros, o livro de Miskolci (2012) se opõe a visão de um Brasil unitário e sem conflitos. Assim, consideramos de fundamental importância esse trabalho. Nossas fontes, como apresentamos, são os discursos presentes nas revistas do IHGB do período da Primeira República. Precisamos observar se o ‘desejo de nação’ apresentado 143 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. por Miskolci não era o discurso hegemônico do Instituto, e como se davam as relações de poder entre o IHGB, seus discursos e seu impacto na nacionalidade e na masculinidade brasileira. Con sid er açõ es f i n a i s Nesse artigo, pretendia tratar sobre importantes trabalhos sobre as questões de gênero, a masculinidade e também sobre como esses aportes teóricos impactaram na escrita de trabalhos sobre os estudos de recepção e também sobre a Primeira República. Embora tenha traçado esses aportes teóricos de forma breve, acredito que essas leituras apresentadas no artigo irão contribuir para a escrita da dissertação. A partir dos impactos do feminismo e dos estudos de gênero, compreendo os discursos do Instituto como algo não neutro, e, além disso, objetivo entender que as relações discursivas do IHGB sobre o gênero são fluidas e contingentes. Nesse mesmo sentido, ao abarcar na terminologia o conceito “gênero”, não viso entendê-lo como sinônimo de mulher, como foi em certo momento histórico feito, mas sim como uma relação que ocorre entre os homens e as mulheres. Assim, ao analisar os discursos dos membros do IHGB, apesar de que – em um sobrevoo sobre as fontes – observo que o foco se dá no masculino, entendo que ao construírem o que deveria ser o homem, cria-se também ideais sobre o que deveria ser a mulher. Essas identidades, como comentado, não são naturais, e sim construídas historicamente e, por isso, possuem capacidade de transformação e mudanças. Ao procurar voltar ao período republicano, pretendo problematizar esses discursos do passado na perspectiva de que não são naturais e assim abrirmos possibilidade para termos modos menos estáticos de se compreender as masculinidades. Font e s REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO. n. 58 e 68. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Imprensa Nacional. Ref e r ên c ias Bib l i o g r á f i ca s ADELMAN, M. A voz e a escuta: Encontros e desencontros entre a teoria feminista e a sociologia contemporânea. 264f. Tese (Doutorado em Interdisciplinar em Ciências Humanas). Centro de filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina, 2004. BADINTER, E. XY sobre a identidade masculina. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1992. 144 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. BÉLO, T. Boudica e as facetas femininas ao longo do tempo: nacionalismo, feminismo, memória e poder. 261f. Tese (Doutorado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2014. BUTLER, J. Problemas de Gênero - Feminismo e Subversão da Identidade. São Paulo: Civilização Brasileira, 2015. CONNELL, R. Masculinities. Los Angeles: University of California Press, 1995. FEITOSA, L. História, gênero, amor e sexualidade: olhares metodológicos. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, n.13, pp. 101-115, 2003. GILCHRIST, R. Gender and Archaeology. Routledge: London, 1999. HARDWICK, Lorn. Reception Studies. Oxford: Oxford University Press, 2003. KIMMEL, M. A produção simultânea de masculinidades hegemônicas e subalternas. Horizontes Antropológicos: Corpo Doença e Saúde, ano 4, n. 9, pp. 103-118, out. 1998. MISKOLCI, R. O desejo da nação: masculinidade e branquitude no Brasil de fins do XIX. São Paulo: Annablume, 2012. PEDRO, J. Relações de gênero como categoria transversal na historiografia contemporânea. Topoi, v. 12, n. 22, p. 270-283, jan-jun 2011. PINTO, R. Duas Rainhas, um Príncipe e um Eunuco: gênero, sexualidade e as ideologias do masculino e do feminino nos estudos sobre a Bretanha Romana. Tese (Doutorado em História) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2011. SANTOS, A. A construção do papel social da mulher na Primeira República. Revista Em Debate. Rio de Janeiro, v. 08, pp. 1-18, 2009. SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Tradução Guacira Lopes Louro. Educação & Realidade, vol. 20, nº 2, p.71-99, Jul./dez. 1995. SILVA, N. Historicizando as masculinidades: considerações e apontamentos à luz de Richard Miskolci e Albuquerque Júnior. História, histórias. Brasília, vol. 1 n. 5, 2015. Recebido em 16/9/2019 e aceito em 4/10/2019. 145 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. “Os guardiões e salvadores da cidade”: a `Homilia após o terremoto`, de João Crisóstomo João Carlos Furlani Doutorando em História Social das Relações Políticas (PPGHIS/UFES) Bolsista da CAPES joao.furlani@gmail.com Orientador: Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva (UFES) Res u mo O cristianismo, ao longo de sua trajetória, se organizou nos termos de uma comunidade que tendeu a atribuir à cultura escrita, em direta relação com a oral, um papel crucial na transmissão e preservação dos preceitos relegados à figura de Jesus. Nesse processo, um dos gêneros literários mais importantes para a expansão do cristianismo foi o das homilias, utilizadas tanto para fins catequéticos, exegéticos, exortativos, laudatórios e pedagógicos. A Antiguidade Tardia viu a ascensão dos Padres da Igreja, tanto nas condições de líderes espirituais quanto por indivíduos influentes em assuntos políticos e sociais das comunidades. Um exemplo claro reside na atuação de João Crisóstomo, um dos maiores pregadores da Igreja e detentor de um extenso número de homilias. Durante o seu episcopado, em Constantinopla, em finais do século IV e início do V, proferiu uma homilia intitulada De terrae motu logo após um abalo sísmico atingir a cidade. E é justamente essa homilia que apresentamos e discutimos aqui. Devido à sua riqueza estrutural e substancial, acreditamos que tal documento é de grande valia, sobretudo, para os estudos que versam sobre a retórica cristã e o processo de cristianização da cidade antiga. Pa lav r as - chav e Antiguidade Tardia; Homilia; João Crisóstomo; Homilia após o terremoto; De terrae motu. Abs t rac t Christianity, along its trajectory, was organized in terms of a community that tended to attribute to written culture, in direct relation to the oral, a crucial role in the transmission and preservation of the precepts relegated to the figure of Jesus. In this process, one of the most important literary genres for the expansion of Christianity 146 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. was homilies, used for catechetical, exegetical, exhortative, laudatory and pedagogical purposes. Late Antiquity saw the rise of the Church Fathers, both as spiritual leaders and as influential individuals in the political and social affairs of communities. A clear example is the performance of John Chrysostom, one of the Church’s greatest preachers and writer of an extensive number of homilies. During his episcopate in Constantinople in the late fourth and early fifth centuries, he delivered a homily entitled De terrae motu shortly after a seismic shock hit the city. And it is precisely this homily that we present, and discuss here. Due to its structural and substantial richness, we believe that such a document is of great value, especially for studies on Christian rhetoric and the Christianization process of the ancient city. key w or ds Late Antiquity; Homilies; John Chrysostom; Homily after the Earthquake; De terrae motu. Int ro d u ç ão A expansão do cristianismo veio acompanhada do enriquecimento da tradição cristã por meio da sua assimilação por diferentes grupos sociais e culturas. Em especial, as memórias a respeito da vida e da obra de Jesus foram aceitas por novos ouvintes em um trânsito que também ocasionou a modificação e adaptação dessa tradição para linguagens, categorias, formas e temas mais compreensíveis aos diferentes contextos dos grupos que aderiram ao credo (KIBUUKA, 2010, p. 2). É fato que os grupos que assimilavam o cristianismo produziam também literaturas influenciadas pela fé. A partir disso, podemos supor que as múltiplas faces da tradição cristã estão ligadas a essa pluralidade sociocultural, na qual as preocupações e finalidades religiosas, políticas, sociais e geográficas são responsáveis pela variedade literária eclesiástica, que inclui evangelhos, biografias, hagiografias, homilias e uma série de outros gêneros a serviço do culto a Jesus1. O cristianismo, nascido em ambiente judaico, se organizou nos termos de uma comunidade textual que tendeu a atribuir à cultura escrita um papel crucial na transmissão e preservação dos preceitos relegados à figura do Messias cristão (SILVA, 2017, p. 214). Não obstante, é preciso lembrar que, no Império Romano, a escrita e a leitura possuíam forte ligação com o código oral. A isso, acrescenta-se a inexistência de uma relação de precedência ou causalidade entre elas, que, em outras palavras, quer dizer que um texto poderia ser lido em voz alta ou em silêncio, sem que o leitor fosse hábil o suficiente para redigir aquilo que estava lendo (LANE FOX, 1998, p. 158; SILVA, 2017, p. 214). Não é nosso interesse nos delongarmos sobre a produção literária cristã na Antiguidade2. Entretanto, julgamos pertinente abordar a problemática da produção 1 Discutimos um pouco mais sobre a relação entre educação, moral e literatura cristã em outra oportunidade. Para mais informações, cf. Furlani (2014). 2 Para mais informações sobre escrita e oralidade no cristianismo, em especial as homilias, reco- 147 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. textual, uma vez que o documento que apresentamos e discutimos aqui, De terrae motu, um sermão de autoria de João Crisóstomo, é fruto desse background e oferece uma gama de possibilidades de análise para os estudos que versam, em especial, sobre a retórica cristã e o processo de cristianização da cidade antiga. João C r isó st o mo Antes de adentrarmos ao objeto propriamente dito deste artigo, faz-se necessário dedicarmos algumas palavras à figura de João Crisóstomo, um dos mais importantes representantes do cristianismo durante seus primeiros séculos. Apesar de ocupar tal posição, a imagem de João é complexa, oscilando entre a aprovação e a reprovação de seus contemporâneos. Parte disso pode ser explicado pela elaboração de acaloradas homilias, nas quais, muitas vezes, havia espaço para denúncias contra políticos ou mesmo membros da hierarquia eclesiástica (LIEBESCHUETZ, 1990, p. 175-176). Além disso, a prática e a defesa do ascetismo se tornaram marcantes nos discursos e na vida de João. A eloquência e o fervor com o qual realizava suas homilias lhe renderam o epíteto Chrysostomos (Χρυσόστομος), que traduzido do grego, pode significar “Boca de ouro”. Todavia, a alcunha de Crisóstomo vingou apenas anos após a sua morte, mais precisamente em 553, pelas palavras do papa Vigílio (BAUER, 2001, p. 888-889). A data de nascimento de João Crisóstomo é estabelecida como sendo 349, apesar de o ano de 347 também aparecer como uma alternativa oficial. Não obstante, é fato que João nasceu em Antioquia, numa família de origem greco-síria. A crença religiosa de seus pais também é incerta, uma vez que, para alguns, sua mãe, Antusa, praticava cultos pagãos (LEWY, 1997), enquanto outros declaram que ela era devota do cristianismo (ALLEN; MAYER, 2000, p. 5). Já o pai de João, Segundo, é apresentado como um militar de influência no exército sírio e detentor do título de illus, assegurando sua posição como ilustre devido a importantes serviços prestados ao Império (Pal., Dial., 5). Após o falecimento do pai, ocorrido pouco tempo após o seu nascimento, João permaneceu aos cuidados da mãe, que continuou em estado de viuvez até a morte (KELLY, 1995, p. 5). João passou parte de seu tempo de formação estudando com Libânio, um reconhecido filósofo e professor de retórica pagão (CAMERON; GARNSEY, 1998, p. 668669). Contudo, João Crisóstomo consagrou seus votos ao cristianismo, sendo batizado por volta de 368 e, em seguida, nomeado lector, o que lhe possibilitou ampliar sua participação nos cultos eclesiásticos (WILKEN, 1983, p. 5-7). A relação entre João Crisóstomo e o cristianismo, aos poucos, se solidificava, motivo que o levou a instruir-se em Teologia com Diodoro, bispo de Tarso, em seu grupo de estudos (GREER, 1997). Crisóstomo, a partir daí, inclinou-se a um estilo de vida ascético. Todavia, João não se isolou prontamente no deserto, ao invés disso, teria se unido a outros jovens em outras práticas do ascetismo, como a castidade, mendamos o trabalho de Silva (2017). 148 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. a simplicidade e as constantes orações. Mais tarde, então, partiu em direção aos Montes Sílpios, onde, de acordo com Sterk (2004, p. 142-144), viveu, provavelmente, como um semi-eremita, na companhia esporádica de outros anacoretas. No entanto, por dois anos, a experiência de João foi em total reclusão, uma vez que teria sido atraído para um isolamento da sociedade, no qual poderia vivenciar a atmosfera de clausura do ascetismo em regiões montanhosas (INGALLS, 2013, p. 11). Entre 378 e 379, João retorna a Antioquia e por volta de 381 é ordenado diácono por Melécio, que, na época, não estava em comunhão com Alexandria e Roma. Mais tarde, em 386, foi ordenado presbítero por Flaviano, sucessor de Melécio. Em Antioquia, num período de doze anos (386-397), João angariou enorme popularidade devido, sobretudo, à eloquência de seus discursos morais, nos quais mostrava-se preocupado com as necessidades dos menos abastados (Soc., Hist. Eccl., 6, 16). A eloquência de João Crisóstomo não se relacionava apenas à sua habilidade discursiva, mas também à interpretação simples e direta dos textos eclesiásticos, o que tornava seus discursos mais acessíveis. A escolha dessa forma de ensinamento contrastava profundamente com os discursos dotados de imagens alegóricas que, amiúde, não pareciam ter impacto significativo sobre o cotidiano dos ouvintes. Assim, encerrando sua participação em Antioquia, no outono de 397, João foi nomeado bispo de Constantinopla, para onde se transferiu rapidamente e sem muito alarde. Amparado pela posição de maior autoridade que o bispo passou a ocupar no período tardo-antigo, a passagem de João Crisóstomo por Constantinopla, em linhas gerais, foi marcada por diversas reformas eclesiásticas, o que, ao mesmo tempo, angariou respeito do povo, bem como antipatia dos demais clérigos (SILVA, 2010, p. 113-115). O clero era alvo constante de João, que proferia duras críticas pelo luxuoso estilo de vida que levava. À medida que o tempo passava na Capital, João prosseguia com sua política de reforma eclesiástica, de reorganização da ordem das viúvas e dos monges, de interferência no cotidiano e espaço citadino, de combate à participação dos cristãos em atividades de entretenimento, como os jogos e os espetáculos teatrais, entre outras ações (Ioa. Chrys., Cont. lud. et th., 272-278). Não é de se estranhar que todas essas intenções sejam facilmente notadas nas homilias do bispo de Constantinopla, instrumentos fundamentais para sua pregação. A 'H o milia apó s o t e r r e m o t o ', d e J oão C r isós t o mo De terrae motu ou, em língua portuguesa, Homilia após o terremoto é um discurso proferido por João Crisóstomo, provavelmente em Constantinopla, em finais do século IV ou no início do século V, quando exercia o cargo episcopal da sé da cidade. Apesar de mais curta que o de costume, João Crisóstomo a elaborou sob a forma de homilia, visando a edificação do público de sua congregação após um terremoto atingir a Capital3. 3 De terrae motu se encontra disponível, em grego e latim, em: CPG (4366) e PG (50, 713-716). 149 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. É importante frisarmos que a palavra grega ομιλια (homilia) e sua equivalente latina sermo (sermão) são frequentemente empregadas para definir qualquer tipo de pregação, seja com propósitos catequéticos, exegéticos, exortativos, laudatórios ou pedagógicos, sendo encontradas desde os primórdios do cristianismo até os dias atuais (BERARDINO, 2002, p. 692). Grosso modo, as homilias versam sobre a interpretação das escrituras sagradas em paralelo com o cotidiano dos ouvintes, o que afirma seu caráter fortemente pedagógico e instrutivo. Todavia, nem sempre as homilias eram proferidas na primeira parte da liturgia, poderiam ocorrer, por exemplo, ao longo das lições ministradas aos catecúmenos e monges, nas vigílias, na recepção de relíquias ou em festividades do calendário cristão (SILVA, 2017, p. 223). Poderiam, ainda, não discorrer sobre uma explicação de um texto sagrado, mas sobre deficiências e situações alarmantes que assolavam a comunidade cristã (CUNNINGHAM; ALLEN, 1998, p. 1). E esse parece ser exatamente o caso da homilia De terrae motu, de João Crisóstomo. A homília foi proferida, ao que tudo indica, após um abalo sísmico atingir a Capital oriental do Império. João Crisóstomo aproveitou o momento de fragilidade e sensibilização da população frente à uma catástrofe natural para realizar seu ofício de pregador da crença em Jesus. O conteúdo da homilia é uma mescla de interpretações de trechos bíblicos com reflexões sobre o conturbado momento que afligiu a cidade. Nela, a preocupação do bispo é muito mais moral do que teológica, assim como de costume em seus sermões proferidos tanto em Antioquia quanto em Constantinopla. João Crisóstomo, de modo enfático, critica os ricos, compreendidos como aqueles pertencentes a uma aristocracia vinculada às tradições clássicas, que incluem os cultos de origem greco-romana, a participação em jogos, teatros e demais espetáculos, além das danças e festividades e o apego ao dinheiro. Em contrapartida, o bispo exalta a sua congregação, que apesar das dificuldades dos últimos dias, estava presente para ouvir palavras de revigoramento espiritual (Ioa. Chrys., De ter. mot., 713). A afirmação da fragilidade do corpo humano, tópico recorrente nos escritos de João, também está presente nesta homilia. Para o bispo, apesar de reconhecer a natureza débil dos indivíduos, os sermões seriam capazes de afastar o cansaço do corpo e permitir a instrução, que é a perfeição e a cura da alma. Fica claro, ainda, que alma deveria ser cuidada com maior atenção, uma vez que, para o bispo, ela é melhor que o corpo (Ioa. Chrys., De ter. mot., 713-714). Para o bispo de Constantinopla, além da destruição da cidade, o terremoto teria gerado bons frutos. Em sua visão, o abalo enriqueceu os pobres, pois, por não conhecer riqueza ou pobreza, acabou com a desigualdade da vida. Enquanto os ricos se lamentavam por seus mantos de seda ou ouro, os pobres iluminavam as noites com vigílias. João afirma que o terremoto durou dois dias, mas a piedade do verdadeiro servo de Deus permanece por todo o tempo e que a angustia desse curto período não se compara à firmeza espiritual que foi produzida (Ioa. Chrys., De ter. mot., 713-715). As críticas de João aos ricos e tudo o que ele considera como pertencente ao seu estilo de vida e a exaltação aos pobres e fiéis servos de Jesus continuam por toda 150 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. a homilia. Além disso, o bispo responsabiliza os próprios ricos pelo abalo ocorrido na Capital. Em suas palavras, foi acordado que, por um lado, devido aos pecados, aos atos de ganância, às injustiças, aos atos de ilegalidade, à arrogância, à busca por prazeres destes a cidade foi castigada. Mas, por outro lado, era evidente que a cidade foi firmada por causa do canto dos salmos, das orações e das vigílias dos pobres. Para o bispo, estes últimos seriam os verdadeiros de “guardiões e salvadores da cidade” (Ioa. Chrys., De ter. mot., 715-516). O cuidado com a separação de espaços considerados puros e impuros parece também preocupar o bispo. Não à toa, ele afirma que os pobres, em vigília e dedicação ao Senhor, foram capazes de purificar a praça do mercado e santificar o ar da cidade; e que já não se ouvia cantos dos teatros e nem mesmo frequentavam simpósios satânicos. Em contrapartida a tais lugares considerados heterotópicos, João Crisósomo aconselha espaços mais amigáveis e indicados aos cristãos, como as casas purificadas e, sobretudo, a igreja, entendida como um porto sem ondas (Ioa. Chrys., De ter. mot., 714-715)4. João Crisóstomo, de modo geral, cria e desenvolve um vasto número de cenários com objetos e atores próprios, como no caso do terremoto e do papel dos ricos e dos pobres. Também utiliza alegorias, como a da glória dos atletas e a dos louros concedidos pela fé cristã, também recorrente em seus discursos (Ioa. Chrys., De ter. mot., 713-716; SAWHILL, 1928). Por meio de sua retórica, retrata situações cotidianas, interações sociais e histórias bíblicas de maneira simples, direta e acessível. Assim como ressalta Stenger (2019, p. 208), a historiografia, em grande parte desatenta à técnica literária de João Crisóstomo, falhou em reconhecer a criação textual de cenários como uma ferramenta essencial em seu ensino moral a serviço da Igreja. É preciso, por fim, ressaltar que a autenticidade da homilia De terrae motu, vez ou outra, é discutida. Mayer (2005, p. 27), uma das maiores especialistas de João Crisóstomo da atualidade, argumenta em favor da autoria do bispo de Constantinopla. Voicu (2016, p. 602-604), por outro lado, não acredita que a homilia seja de autoria de Crisóstomo. Stenger (2019) não parece demonstrar dúvidas quanto a canonicidade do documento. Já nós, mediante o contato travado com diversas homilias de João, acreditamos fortemente na possibilidade de que o bispo seja o seu autor. Um exemplo claro para isso é a menção, em outros documentos contemporâneos, a um terremoto ocorrido em Constantinopla durante o período em que Élia Eudóxia era imperatriz, momento em que João atua na Capital como representante episcopal, além, é claro, de boa parte dos tópicos e argumentos discursivos de João Crisóstomo estarem presentes na homilia. 4 A separação dos espaços ditos puros e impuros para os cristãos e a interferência de João Crisóstomo no cotidiano e no espaço urbano de Constantinopla é tema de nossa pesquisa de doutorado, intitulada “Espaço, conflito e poder na cidade pós-clássica: João Crisóstomo e a cristianização de Constantinopla (397-404)”. Alguns resultados já foram publicados, como se pode conferir em: Furlani (2017; 2018a; 2018b). 151 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Con sid er açõ es f i n a i s O valor de De terrae motu independe da discussão sobre sua autoria. Por meio deste documento, vislumbramos a forte relação entre o social, o político e o religioso na Antiguidade Tardia. É possível enxergarmos ainda a atuação do bispo frente à comunidade, não apenas como um exegeta, mas como líder e instrutor. As analogias, comparações e exemplos do cotidiano citadino relacionadas aos textos sagrados são uma riqueza à parte. A estrutura discursiva, a forma e o uso da retórica revelam as intenções claramente pedagógicas do bispo, o que está perfeitamente em consonância com as considerações a respeito do gênero homilético. Sobre as homilias, de maneira geral, podemos concluir que elas acarretaram numa “revalorização da retórica clássica mediante pregadores inspirados que, instruídos na paideia, podem ser vistos como herdeiros diretos dos oradores pagãos” (SILVA, 2017, p. 227). Isso fica claro nos sermões de João Crisóstomo, fortemente influenciados por atributos retóricos provenientes de sua formação com Libâneo, ainda em Antioquia. E em De terrae motu isso não é diferente. Não podemos perder de vista que, na maioria dos casos, a proclamação de uma homilia pressupunha tanto um proclamador quanto uma audiência. Sob este ângulo, a própria estrutura hierárquica da Igreja se fortalecia durante os sermões, pois a audiência era repartida tanto por gênero quanto por condições socioeconômicas e de prestígio político. Haviam lugares específicos para viúvas, virgens e demais devotas, além de lugares para homens, crianças e, é claro, a família imperial e membros ilustres da congregação (MAYER, 1997, p. 74). A importância dos estudos de homilias tardo-antigas é assinalada por Cameron (2008, p. 704), ao declarar que pregação feita à luz das técnicas da retórica antiga dotou o cristianismo de um alto grau de difusão, e por Silva (2017, p. 227), ao verificar que o teor dos discursos cristãos começa a se tornar menos teológico, investindo-se em temas de natureza disciplinar que envolvem os usos e costumes da congregação. Em outras palavras, o alto grau de difusão das homilias atingiu ainda mais a natureza do cotidiano citadino, que comporta práticas culturais, propagação de símbolos, usos do espaço e do tempo, solidificação de identidades, tradições e memórias. É nesse aspecto que ressaltamos a potência da riqueza em se investigar uma homilia como De terrae motu. Não poderíamos deixar de concluir nossa análise sem assinalar a relação entre os discursos de João, seu projeto de cristianização e sua posição de liderança frente à congregação de Constantinopla. À medida que a cristianização dos espaços urbanos avançava, a influência dos bispos passava a ser exercida também em outros domínios. Ou seja, a figura episcopal passou a ocupar uma posição de autoridade, o que propiciou maior atuação nos espaços urbanos. Nesse sentido, os bispos poderiam mais facilmente exercer funções de reformadores sociais e implementar seus planos de reforma citadina em prol da fé cristã, como no caso de João Crisóstomo em Constantinopla. 152 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Li s ta d e Ab r eviat u r a s CPG – Clavis Patrum Graecorum. Ioa. Chrys., Cont. lud. et th. – Ioannis Chrysostomos, Contra ludos et theatra (João Crisóstomo, Contra os jogos e o teatro). Ioa. Chrys., De ter. mot. – Ioannis Chrysostomos, De terrae motu (João Crisóstomo, Homília após o terremoto). Pal., Dial. – Palladius, Dialogus de vita Joannis Chrysostomi (Paládio, Diálogo sobre a vida de João Crisóstomo). PG – Patrologia graeca (Patrologia grega). Soc., Hist. Eccl. – Socrates, Historia Ecclesiastica (Sócrates, História Eclesiástica). Font e s GEERARD, M. (Ed.). Clavis Patrum Graecorum: Ab Athanasio ad Chrysostomum. Turnhout: Brepols, 1974. v. 2. JOHN CHRYSOSTOM. Homily after the Earthquake. Translated by Bryson Sewell, 2003. Available in: <http://www.tertullian.org/fathers/chrysostom_on_the_earthquake. htm#_ftn1>. Access in: 2 sept. 2019. MIGNE, J.-P. (Ed.). Patrologia Graeca. Paris: Imprimerie Catholique, 1862. t. 50. PALLADIUS. The Dialogue of Palladius concerning the Life of St. John Chrysostom. Translated by H. Moore. London: The Macmillan Company, 1921. SOCRATES SCHOLASTICUS. The Ecclesiastical History. Revised, with Notes, by A. C. Zenos. In: SCHAFF, P. (Ed.). Nicene and post-Nicene fathers, series II. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1996. v. 2. ST. JOHN CHRYSOSTOM. Against the games and theatres. In: MAYER, W.; ALLEN, P. (Ed.). John Chrysostom. London: Routledge, 2000. Ref er ên c ias Bib l i o g r á f i ca s ALLEN, P.; MAYER, W. John Chrysostom. London: Routledge, 2000. BAUER, W. A Greek-English lexicon of the New Testament and other Early Christian literature. Ed. by F. W. Gingrich and F. W. Danker, trans. by W. F. Arndt and F. W. Gingrich. Chicago: University of Chicago Press, 2001. BERARDINO, A. Dicionário patrístico e de Antiguidades Cristãs. São Paulo: Paulus, 2002. CAMERON, A. Education and literary culture. In: CAMERON, A.; GARNSEY, P. (Ed.). The Cambridge Ancient History. Cambridge: Cambridge University Press, p. 665-707, 2008. v. XIII. 153 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. CAMERON, A; GARNSEY, P. Education and literary culture. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. CUNNINGHAM, M. B.; ALLEN, P. Introduction. In: CUNNINGHAM, M. B.; ALLEN, P. (Ed.). Preacher and audience: studies in Early Christian and Byzantine homiletics. Leiden: Brill, p. 1-20, 1998. FURLANI, J. C. Cristianização na cidade pós-clássica: João Crisóstomo e a disputa pelo espaço de Constantinopla. In: SILVA, G. V.; SILVA, E. C. M.; LIMA NETO, B. (Org.). Usos do espaço no Mundo Antigo. Vitória: GM, p. 357-379, 2018a. FURLANI, J. C. O uso dos conceitos de cidade e espaço em História Antiga: João Crisóstomo e a cristianização de Constantinopla como estudo de caso. Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, Vitória, v. 12, p. 86-107, 2018b. FURLANI, J. C. Religião, cotidiano e espaço citadino: João Crisóstomo e as transformações da igreja de Constantinopla. In: SILVA, G. V.; SILVA, E. C. M.; LIMA NETO, B. M. (Org.). Espaços do sagrado na cidade antiga. Vitória: GM, p. 185-196, 2017. FURLANI, J. C. Usos do gênero biográfico na Antiguidade Tardia: educação e moral cristã em Vita Olympiadis. Revista Ágora, Vitória, v. 20, p. 151-165, 2014. GREER, R. A. Diodore of Tarsus. In: FERGUSON, E. (Ed.). The Encyclopedia of Early Christianity. New York: Garland Publishing, 2 v, 1997. INGALLS, M. Golden Mouth, empty pockets: an investigation of the motivations and aims behind John Chrysostom’s theology of wealth and poverty. Portland: George Fox University, 2013. KELLY, J. N. D. Golden Mouth: the story of John Chrysostom – ascetic, preacher, bishop. London: Duckworth, 1995. KIBUUKA, B. G. L. Os gêneros literários biográficos da Antiguidade Tardia e os evangelhos: continuidades e descontinuidades. Alethéia – Revista de estudos sobre Antiguidade e Medievo, Jaguarão, v. 2, n. 2, p. 1-12, 2010. LANE FOX, R. Cultura escrita e poder nos primórdios do cristianismo. In: BOWMAN, A. K.; WOOLF, G. (Org.). Cultura escrita e poder no Mundo Antigo. São Paulo: Ática, p. 154-182, 1998. LEWY, Y. H. John Chrysostom. In: Encyclopaedia Judaica. Ed. by Cecil Roth. Jerusalem: Keter Publishing House, 1997 [CD-ROM edition]. LIEBESCHUETZ, J. H. W. G. Barbarians and bishops: Army, Church, and State in the age of Arcadius and Chrysostom. Oxford: Claredon Press, 1990. MAYER, W. John Chrysostom and his audiences: distinguishing different congregations at Antioch and Constantinople. Studia Patristica, Leuven, v. XXXIII, p. 70-75, 1997. MAYER, W. The homilies of St John Chrysostom: provenance, reshaping the foundations. Roma: Pontificio istituto orientale, 2005. PARRY, K. et al. (Ed.). The Blackwell Dictionary of Eastern Christianity. Oxford: Wiley-Blackwell, 2001. 154 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. SAWHILL, J. A. The use of athletic metaphors in the Biblical homilies of St. John Chrysostom. Princeton: The Princeton University Press, 1928. SILVA, G. V. Cultura escrita e comunicação oral no cristianismo antigo: as homilias como instrumentos de poder. Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, Vitória, n. 9, p. 212-233, 2017. SILVA, G. V. Um bispo para além da crise: João Crisóstomo e a reforma da Igreja de Constantinopla. Phoînix, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 109-127, 2010. STENGER, J. R. Text worlds and imagination in Chrysostom’s pedagogy. In: DE WET, C.; MAYER, W. (Ed.). Revisioning John Chrysostom: new approaches, new perspectives. Leiden: Brill, p. 206-246, 2019. STERK, A. Renouncing the world yet leading the Church: the monk-bishop in Late Antiquity. Cambridge: Harvard University Press, 2004. VOICU, S. J. Un errore di Montfaucon e altre note pseudochrisostomiche. In: BINGGELI, A.; BOUDHORS, A.; MATTHIEU, C. (Éd.). Manuscripta Graeca et Orientalia: Mélanges monastiques et patristiques en l’ honneur de Paul Géhin. Leuven; Paris; Bristol: Peeters, p. 597-614, 2016. WILKEN, R. L. John Chrysostom and the Jews: rhetoric and reality in the late fourth century. Berkeley: University of California Press, 1983. Recebido em 14/9/2019 e aceito em 4/10/2019. 155 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. A ARGUMENTATIO de Sêneca nas Consolatórias: O uso dos preceitos e os exemplos Erick Messias Costa Otto Gomes Doutorando em História (UFG) Bolsista CAPES erick.otto@bol.com.br Orientadora: Profa. Dra. Luciane Munhoz de Omena, UFG Res u mo O texto consolatório tinha por pretensão apaziguar ou extirpar o sofrimento causado por alguma dor (tais como a morte de entes queridos, doença ou desterro) e, para tanto, seus autores se valiam de bons e maus exemplos de indivíduos que passaram por situação parecida, bem como de preceitos filosóficos que fariam o destinatário refletir racionalmente a respeito da dor que os afligiam. Apresentaremos, assim, as três consolatórias de Sêneca, ad Polybium, ad Marciam e ad Heluiam, nas quais o filósofo desenvolveu seus argumentos de modo a incitar os destinatários a agirem de forma socialmente aceita diante de determinada dor. Dessa forma, iremos mostrar, nesse artigo, como Sêneca desenvolve argumentos em suas consolatórias com o objetivo de exortar seus leitores ouvintes a mudarem seus comportamentos. Pa lav r as - chav e Consolatórias; Preceitos; Exemplos; Sêneca; Dor. Abs t rac t The consoling texts were intended to appease or eradicate the suffering caused by some pain (such as death, illness or exile of loved ones) and for this purpose, the authors used good and bad examples of individuals who had a similar situation, as well as philosophical precepts to make the receiver rationally reflect on the pain he was feeling. Thus, we will present the Seneca’s three Consolatory works, ad Polybium, ad Marciam and ad Heluiam, in which the philosopher developed his arguments to incite recipients to act in a socially accepted way in the face of a particular pain. Therefore, in this article we will show how Seneca develops her arguments in the consolations, to urge her readers and listeners to change their behavioars. 156 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Key w or ds Consolations; Precepts; Examples; Seneca; Pain. Int ro d u ç ão : a co n s o la t ó r ia c o m o re m é d io d a alma Ao estudarmos os textos consolatórios de Sêneca, devemos nos remeter às concepções do filósofo acerca das ações dos enlutados, isto é, os comportamentos frente à perda de entes queridos. Nosso olhar para a consolatio nesse artigo diz respeito ao seu conteúdo, ou seja, a construção do argumento do autor com o intuito de convencer seu leitor a combater as dores que o afligiam. Ora, ao pensarmos a narrativa senequiana, sabemos que um conjunto de princípios estoicos conduziu o desenvolvimento de suas exortações. Sob a ótica do estoicismo, o mundo seria governado pela providência de uma divindade benevolente, racional por excelência. Por sua vez, cada pessoa possuía em si um fragmento dessa substância divina, pois “a razão não é outra coisa senão a parcela do espírito divino inserida no corpo do homem” (Sen. Ep. 66.12).1 Com base em tais pressupostos, para Sêneca o objetivo do homem era pôr a razão individual em conformidade com a razão cósmica (CAROÇO, 2011, p. 33). Combater a aegritudo, isto é, o desgosto ou aflição, incluiria três motivos: primeiro, a aflição era uma emoção irracional, portanto, não estava conforme a natureza divina; em segundo lugar, muitas das circunstâncias que eram motivo de tristeza não eram males reais, mas indiferentes, e não deveriam, por si só, provocar uma aegritudo; por fim, deixar-se levar por uma dolor traria consequências não só àquele que se entrega a tal paixão, mas também à toda comunidade. Agir de modo racional, não se deixando levar pelas aflições advindas da dolor, manteria o indivíduo integrado na societas. Se, ao contrário, este fosse tomado pelas paixões, estaria agindo contra a própria natureza, a própria razão cósmica, podendo acarretar um desequilíbrio que afetaria negativamente a comunidade. Compreendemos, com isso, que a aegritudo tornou-se, de fato, a justificativa para a escrita dos textos consolatórios, uma vez que consolar seria exortar o destinatário a eliminar a raiz dessa dor. Para tanto, Sêneca se vale dos remédios adequados a cada situação com o objetivo de eliminar as emoções negativas, perturbationi animi. A este respeito, Cícero nos mostra como as diferentes escolas filosóficas desenvolveram argumentos próprios para remediar as dores da alma: dizer que o dito mal não existe em absoluto; que não se trata de um grande mal; desviar a atenção para os bens; ou mostrar que não se sucedeu nada inesperado (cf. Cic. Tusc. 3.76). Ainda assim, combinar argumentos de diversos tipos parece ser a estratégia mais eficaz, isto porque, 1 “Ratio autem nihil aliud est quam in corpus humanum pars divini spiritus mersa”. 157 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. h á também quem reúne todas as formas de consolação, pois um reage a uma forma e outro a outra, quase do mesmo modo que eu, em minha Consolação, tenho reunido todas as formas em uma só consolação; minha alma estava em realidade inflamada e eu tentei de toda forma curá-la. (Cic. Tusc. 3.76 – Trad. de Bruno Fregni Bassetto).2 Assim como em Cícero, na língua latina, de modo geral, as consolações conservadas revelam que a forma eclética da consolatio é praticamente a única existente (REDONET, 2001, p. 64). Da mesma forma, em Sêneca, podemos observar esse amálgama de argumentos: não importa a duração da vida, mas sua qualidade (Sen. Ep. 93.8); prolongar o luto é inútil (Sen. Pol. 2.1); o exílio é apenas uma mudança de lugar (Sen. Helu. 7.1); o filho de Márcia, ao morrer, se libertou de todos os possíveis males que poderiam o acometer (Sen. Marc. 20.6); se deve procurar motivos para se sentir contente consigo mesmo (Sen. Ep. 78.21); todos os homens são mortais (Sen. Ep. 63.15) e devemos nos preparar para o inevitável (Sen. Ep. 99.8). Por este fato, compreendemos que as consolações latinas são direcionadas, principalmente, para aqueles que lidam com a perda de um ente querido3. Das que sobreviveram, a consolatio mortis é o tipo mais comum de consolatória. No entanto, havia outros tipos de consolações escritas, dentre elas a consolatio exilii (Sen. Helu.) e a consolatio infirmitate (Sen. Ep. 78). Nas Tusculanas, de Cícero, podemos buscar uma referência para a variedade temática da consolatória antiga. De acordo com o autor, M as já lidamos com essa forma de aflição, que é a mais grande (sic) de todas4, de maneira que, uma vez eliminada, pensamos que não devemos nos esforçar em demasia em buscar os remédios para as restantes. Para a pobreza, para a vida isenta de honras e glória, muitas vezes são usados argumentos estereotipados; existem também exposições filosóficas particulares consagradas ao exílio, à destruição da pátria, à escravidão, à fragilidade e à cegueira, a toda circunstância a qual se pode aplicar o nome de calamidade (Cic. Tusc. 3.81 – Trad. de Bruno Fregni Bassetto).5 2 “Sunt etiam qui haec omnia genera consolando colligant — alius enim alio modo movetur —, ut fere nos in Consolatione omnia in consolationem unam coniecimus; erat enim in tumore animus, et omnis in eo temptabatur curatio”. 3 O tema do luto é tratado nas seguintes consolationes em prosa: Sêneca, Marc.; Polyb.; Ep. 63; 93; 99; Plutarco, Ad Apollonium; Ad uxorem. Em verso, temos a Consolatio ad Liuiam e também as Siluae de Estácio (2.1; 2.6; 3.3; 5.1 e 5.5). 4 Aqui, Cícero refere-se à “aflição que implica sofrimento”, isto é, a falta de sabedoria (Cic. Tusc. 3.68)`, O autor parte de uma ideia genuinamente estoica segundo a qual a falta de sabedoria seria a principal causa das aflições para o homem. Critica ainda aos que não lamentam a falta da sabedoria e, ao mesmo tempo, o comportamento dos mesmos ao tratarem os efeitos e não as causas de seu sofrimento. 5 “Tractatum est autem a nobis id genus aegritudinis, quod unum est omnium maxumum, ut eo sublato reliquorum remedia ne magnopere quaerenda arbitraremur. Sunt enim certa, quae de paupertate, certa, quae de vita inhonorata et ingloria dici soleant; separatim certae scholae sunt de exilio, de interitu patriae, de servitute, de debilitate, de caecitate, de omni casu, in quo nomen poni solet calamitatis” (Cic. Tusc. 3.81) 158 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Como podemos observar na carta ciceroniana, os textos consolatórios possuíam uma variedade de remedia, de modo a combater males específicos para cada tipo de sofrimento. Sêneca também partilhava desse conhecimento, uma vez que afirma que “os antigos inventaram os remédios adequados aos males da alma, mas cabe-nos averiguar o modo e a ocasião em que eles devem ser aplicados” (Sen. Ep. 64.8).6 A consolatio mortis, assim, seria apenas um tipo dentre vários outros nos quais filósofos e escritores buscavam consolar aqueles que eram acometidos por quaisquer tipos de aflições. Como nos informa Cícero (Cic. Tusc. 3.81), os gregos possuíam livros particulares para cada uma dessas questões e, tais como os médicos, os filósofos tratavam os males da alma específicos com os respectivos remedia. Apesar dessa variabilidade de temas, as consolatórias de Sêneca possuíam uma estruturação de conteúdo mais ou menos coerente. A consolatio poderia adaptar-se tanto à epístola quanto ao tratado e, em termos gerais, as semelhanças entre as duas formas de consolatio se davam ao nível do exordium e do setor central, havendo maiores diferenças entre o final da carta e a conclusio do tratado (CAROÇO, 2011, p. 30). Novamente, é em Cícero que podemos buscar mais detalhes a respeito da estrutura geral das consolações no que se refere ao seu conteúdo. Citemos in extenso: N as consolações, portanto, o primeiro remédio será demonstrar, ou que não existe nenhum mal ou que é um mal muito pequeno, o segundo consistirá em tratar da condição comum da vida e em particular, se é que tem algo de específico, da condição do que sofre; o terceiro será indicar que é absurdo extremo deixar-se consumir inutilmente pela dor, embora se entenda que nenhum benefício é obtido. (Cic. Tusc. 3.77 – Trad. de Bruno Fregni Bassetto).7 Aqui, notamos três partes distintas da consolatio, apesar de interligadas: primeiramente, intenta demostrar ao leitor que os males que o afligem não existem ou são ínfimos; em segundo lugar, abordar as condições específicas do destinatário para que o remédio possa servir-lhe melhor; e em um terceiro momento, exortar o consolado a deixar de sentir a dor que o aflige. Tais remedia são aplicados por Sêneca ao longo de cada consolação. Em ad Heluiam há uma marcada preeminência da primeira característica, isto é, demonstrar que o desterro não é um mal; em ad Marciam e ad Polybium há uma maior consideração da segunda e terceira característica, respectivamente. Entendemos que as consolações de Sêneca possuem uma disposição semelhante: primeiro, uma introdução na qual o autor anuncia o mal que pretende sanar e o tratamento que vai aplicar; depois, a consolação propriamente dita, a qual se divide geralmente em duas partes, consagrada primeiro ao afligido e, depois, à causa 6 “Animi remedia inventa sunt ab antiquis; quomodo autem admoveantur aut quando nostri operis est quaerere”. 7 “Erit igitur in consolationibus prima medicina docere aut nullum malum esse aut admodum parvum, altera et de communi condicione vitae et proprie, si quid sit de ipsius qui maereat disputandum, tertia summam esse stultitiam frustra confici maerore, cum intellegas nihil posse profici.” 159 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. da aflição; por fim, uma conclusão termina a obra. Apesar desse esquema parecer rígido, as cartas consolatórias de Sêneca trazem características únicas, haja vista a necessidade do destinatário e o contexto político no qual o autor está inserido. Aqui, existe a intenção do filósofo em atingir um público que supera o destinatário propriamente dito e, com isso, transmitir mensagens e comunicar ideias que variam conforme o momento em que cada carta é escrita. Visto deste modo, parece-nos pertinente inferir que as cartas consolatórias, estruturam-se de acordo com o esquema de Cícero, uma vez que Sêneca mostra como os males são indiferentes (e.g. Sen. Ep. 63.13; 78.7; 93.12), sempre trata das condições da aflição do destinatário e, por fim, também os exortam a eliminarem as dores (e.g. Sen. Ep. 78.4; 93.2; 99.16). Guiando-nos pelas perspectivas de Celestino (1998, p. 77-78), consideramos que as características gerais acerca da estrutura da consolatio seriam, pois: 1) um conjunto de tópicos filosóficos de natureza consolatória; 2) um discurso retórico em que se combinam tais tópicos; 3) argumentos teóricos (praecepta) apoiados por exemplos (exempla) a imitar; 4) epístola que é dirigida a uma pessoa afetada por uma adversidade, seja a morte, o desterro ou a doença. Desc riç ão e mpír i ca da s C o n s o l at ó r i a s d e Sên ec a A partir do exposto acima destacamos as características estruturais e de conteúdo presentes em cada consolatio de Sêneca. Sendo assim, a Consolatio ad Marciam foi escrita em ocasião do luto de três anos demonstrado por Márcia em função da perda de seu filho Metílio. Márcia representava uma matrona romana, era filha do historiador Aulo Cremucio Cordo. A morte de seu pai foi instigada por Sejano e decretada pelo imperador Tibério em decorrência do desconforto político gerado a partir de suas ideias republicanas. Logo, Cremucio Cordo representaria a libertas, a qual deveria ser perpetuada ao longo do tempo (Sen. Marc. 1, 4). Sêneca acentua Márcia como uma mulher cuja força lhe permitiu superar as dores e obstáculos da vida. É a partir dessa característica que Sêneca a consola, já que, para o filosofo, a memória daqueles que partem devem ser mantidas e rememoradas. Trata-se aqui, de transformar a dor da perda, de modo a não se tornar alguém atormentado e consumido pela angústia. Nota-se, portanto, que a aflição de Márcia se centrava na não compreensão da natureza humana, uma vez que, ao nascermos, já estaríamos fadados inevitavelmente à morte. Desse modo, vida e morte constituem um ciclo natural. Sendo assim, qual seria, então, o alívio de Márcia? Para Sêneca, Márcia deveria valorizar o filho recordando-o por suas qualidades e não pelo tempo em que ele viveu. Isto é, em suma, o que Sêneca recomenda a Márcia, que chora excessiva e inconvenientemente por seu filho Metílio: moderar o sentimento da dor e dominá-la, porque a dor nada nos retorna. É interessante mencionar que, mesmo sendo um jovem, Metílio cumpriu seus deveres como pai e sacerdote (cito pater (...) cito sacerdos (Sen. Marc. 12, 3), fato que possibilitaria uma possível carreira pública. A morte poderia, assim, representar 160 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. um livramento de todos os malefícios, inclusive aqueles associados ao domínio político (OMENA, 2018, p. 157). Teríamos, com isso, uma mors opportuna (Sen. Marc. 19,2; 19,3). Neste eixo argumentativo, consideramos que a consolatio apresenta a seguinte estrutura temática: Exordio (1): Sêneca escreve à Márcia por conhecer suas qualidades morais e coragem demonstrada após a morte de seu pai; Exempla (2-5): o autor aborda os exemplos de duas mulheres: Otávia, inconsolável pela morte de Marcelo, e Lívia, que superou a morte de seu filho, Druso. Do ponto de vista de sua estrutura textual, divide-se em: preceitos gerais (6-11); situação de Márcia (12-19.3); causas de sua aflição (19.4-25) e conclusio (26). Por sua vez, a Consolatio ad Polybium tem como destinatário o liberto do imperador Cláudio, já que possuía grande influência na corte (CELESTINO, 1998, p. 76). Esta consolação visa confortar Políbio pela morte de seu irmão, cujo nome não é mencionado. Sêneca inicia seu consolo à Políbio ao colocar, em destaque, a natureza perecível de todas as coisas, as quais estariam destinadas a se decompor e sucumbir de acordo com a lei inexorável da natureza (Sen. Pol. 1,1). Como parte deste diálogo, Sêneca menciona que a morte de um ente querido não é mais do que uma antecipação do que necessariamente também alcançará quem, ainda vivo, lamenta sua perda (Sen. Pol. 2,1). Portanto, quem morre não nos abandona, mas nos precede. O filósofo também lembra Políbio que sua dor, de forma prolongada, tornar-se-ia inútil (Sen. Pol. 18, 6). Compreendemos, com isso, que Sêneca exige sensibilidade de Políbio, quer dizer, a atitude pautada em uma mente sensível, não em uma mente perturbada pela dor da perda. Representava um dever controlar a reação emocional exorbitante, isto é, uma aflição excessiva, um choro sem fim. Nesse sentido, parece-nos pertinente inferir que Políbio não deveria ser apenas um exemplo para seus outros irmãos vivos, submetidos à mesma adversidade, mas, sobretudo, deveria ser um exemplo para sua própria esposa e filho. Por outro lado, Sêneca também lembra que ele deve lembrar-se de sua posição pública, por isso não deve ceder aos estímulos da dor (Sen. Pol. 6,1). Assim, compreendemos que a estrutura temática da Consolatio ad Polybium, pode, segundo nosso entendimento, ser apresentada da seguinte forma: 1) a exordio não nos é dada a conhecer, devido a uma lacuna no texto; 2) referência sobre o comportamento de Políbio: neste momento do texto é destacado que Políbio não deve continuar chorando a morte do irmão (1-8), pois a morte é a lei do universo e o choro não serve de nada. A função de Políbio na sociedade o obriga a ser exemplo de integridade. Para tanto, ele deve pensar no imperador e entregar-se às suas funções públicas; 3) sobre a morte, haja vista que está em si não é uma desgraça (9-12): a morte não deve ser motivo de choro. Políbio deve consolar-se pensando no tempo que desfrutou na presença de seu irmão. A morte é inevitável e o motivo máximo de consolo deve ser estar ao serviço do imperador; 4) apresenta-se, nesta sequência, o elogio e a súplica à Cláudio (13-27): prosopopeia do imperador e exemplos de outros grandes personagens a se imitar; 5) por último temos a conclusio (18) do conteúdo da consolatio. Destacaremos também a consolatória à Hélvia, a qual, embora não trate diretamente do luto, contém uma estrutura similar às outras consolações e, além disso, 161 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. compara o desterro à morte, de modo que Sêneca consola sua mãe. Nesta consolatória, Sêneca tem por objetivo abrandar o sofrimento de sua mãe Hélvia em decorrência de seu próprio banimento para a Córsega. Segundo nossas hipóteses, o filósofo ao escrever a Consolatio ad Heluiam matrem teria o intuito de tornar o seu exílio mais tolerável, isto é, continuar presente na memória para não cair no esquecimento ou obter a sua reabilitação para, com isso, regressar à Roma. Nesta direção, Sêneca, ao consolar Hélvia, aconselha-a a incorporar o seu papel de avó; por esse motivo, convida-a à companhia dos netos Marcos e Novatila (Sen. Helu. 18,5-7). Com o intuito de tranquilizá-la e prosseguir com o alívio de seu sofrimento, Sêneca diz à mãe que não sofra, porque a natureza estabeleceu que a vida boa e feliz não requer grandes preparações ou meios excepcionais. Em razão disso, o filósofo afirma que a amargura acentuaria ainda mais a distância ocasionada pelo exílio. Conclui, portanto, que aquilo de bom que um ser humano tem é uma propriedade dele mesmo, não poderia ser retirada com o afastamento/distância. Diríamos, assim, que a mudança de lugar físico não implicaria – nem deveria – uma mudança naquele que possui o espírito virtuoso, a sua memória persiste. Sendo assim, em nosso entendimento, a Consolatio ad Heluiam matrem possui a seguinte estruturação: Exordio (1-3): Sêneca se propõe a consolar sua mãe, triste pelo exílio do filho, recordando todos os infortúnios que ela tem sofrido e, se superou os outros, superará este; a consolatio propriamente dita: 1) Demonstração de que Sêneca não é um exilado (5-13): o exílio nada mais é que uma mudança de lugar e a natureza é a mesma em todas as partes e, ao mudar as moradias, as virtudes acompanham o filósofo; 2) Consolação à Hélvia (14-19): sua dor só poderia ter duas causas, ou a perda do filho, ou a saudade, sendo esta legítima, mas que demonstraria sinal de fraqueza. Hélvia deve mostrar tenacidade, e será de grande ajuda o estudo da filosofia; 3) e por fim, a conclusio (20), neste momento Sêneca, reitera que não é exilado e seu espírito, livre de preocupações, se entrega aos estudos, sobretudo dos fenômenos naturais. O u s o d e prec e it o s e e x e m p l o s n a s Co n s olat ó r ias d e Sên e ca A partir do exposto acima, acerca da estrutura e da descrição empírica das consolationes senequianas, compreendemos que uma discussão que coloque em destaque seu conteúdo torna-se imprescindível. É neste sentido que nos debruçaremos, a partir de agora, na relação intrínseca entre a retórica e a filosofia. A retórica aparece como forma de dispor o conteúdo e articulá-lo, enquanto a filosofia se mostra nos preceitos levados ao leitor-ouvinte. Tendo então visto como se estrutura a consolatio a partir de sua função e sua forma, vejamos, agora, o modo como seu conteúdo é articulado para que o texto atinja seu objetivo principal, qual seja, eliminar a dor do consolado. Como dissemos, o principal objetivo da escrita consolatória seria exortar o destinatário a eliminar a dor que o afligia. Uma dor excessiva pela morte de alguém, pela 162 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. doença ou pela distância de um ente querido era reprovável e dependia apenas da vontade do afligido; desse modo, suportar qualquer infortúnio dependia em grande medida do comprometimento daquele que sofre (REDONET, 2001, p. 283). Como argumentamos, morrer tornava-se, então, uma ação representativa e, como produto social, a escrita senequiana a convertia em dispositivo retórico. Com isso, criava-se debates e diálogos acerca das incoerências sociais, possibilitando reflexões sobre os comportamentos considerados desviantes (KER, 2009, p. 68). Em vista disso, as consolações sempre possuem uma exhortatio à pessoa afligida, incentivando-a a lidar com a dor. A esse respeito, Sêneca, ao exortar Lucílio, ainda destaca a importância da exortação para o processo de eliminar alguma aflição. Em suas palavras: N ão comeces tu a fazer os teus males mais graves do que são e a afligires-te com queixas. Toda a dor é ligeira quando não a julgamos a partir da opinião comum. Se, pelo contrário, começares a exortar-se a ti mesmo e a dizer: “Isto não é nada, ou pelo menos não é nada de importância! O que é preciso é paciência! Isto passa já!” – pelo próprio fato de considerares ligeiras as tuas dores já estás a torná-las de fato ligeiras. (Sen. Ep. 78.13 – Trad. de J. A. Segurado e Campos).8 Em Sêneca, os principais elementos retóricos para exortar o consolado se baseavam em dois aspectos, os exempla e os praecepta. Tais elementos, por sua vez, se dispunham no texto consolatório segundo um topos específico, isto é, primeiro os preceitos, depois os exemplos (Sen. Marc. 1.1). Como nos aponta Cícero, e xaminamos a natureza e a magnitude do fato em si, como fazemos com a pobreza, cujo peso conseguimos aliviar, demonstrando mediante a argumentação o quão escassas são as necessidades naturais e, abandonando as sutilezas da argumentação passamos a tratar dos exemplos (Cic. Tusc. 3.56 – Trad. de Bruno Fregni Bassetto).9 Desse modo, o texto consolatório se desenvolve a partir do problema específico a ser tratado, mas todos os textos argumentam que as circunstâncias sobre as quais o destinatário está sentindo angústia são coisas humanas, uma situação ordinária da vida. Na consolatória à Márcia, Sêneca se vale do mesmo princípio que aparece em Cícero. O autor nos informa que, em geral, os preceitos aparecem primeiro: 8 “Noli mala tua facere tibi ipse graviora et te querelis onerare: levis est dolor si nihil illi opinio adiecerit. Contra si exhortari te coeperis ac dicere ‘nihil est aut certe exiguum est; duremus; iam desinet’, levem illum, dum putas, facies. Omnia ex opinione suspensa sunt; non ambitio tantum ad illam respicit et luxuria et avaritia: ad opinionem dolemus”. 9 Nam aut ipsius rei natura qualis et quanta sit, quaerimus, ut de paupertate non numquam, cuius onus disputando levamus docentes, quam parva et quam pauca sint quae natura desideret, aut a disputando subtilitate orationem ad exempla traducimus”. 163 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. S ei que todos aqueles que desejam exortar alguém começam com preceitos e terminam com exemplos. Convém, de quando em quando, que esse costume seja mudado. É necessário, pois, agir de maneira diversa, segundo as diferentes pessoas: a alguns, a razão conduz; a outros, devem-se apresentar nomes ilustres e uma autoridade que não deixe o espírito livre àqueles que ficam deslumbrados pelas aparências. (Sen. Marc. 2.1 – Trad. de C. F. Mendonça van Raij).10 Neste excerto, Sêneca nos permite compreender como, na tradição textual da consolatio, os preceitos eram comumente apresentados primeiramente para o leitor-ouvinte. No entanto, vemos uma preocupação do autor em modificar tal tradição em função da necessidade específica da destinatária. Como argumentamos, Sêneca acredita que, ao utilizar-se de tal inversão, obterá mais êxito em exortar Márcia e, assim, eliminar sua dor pela perda do filho. É relevante ressaltarmos que em sua epístola 95, Sêneca informa-nos sobre a existência de um grande número de preceitos, os quais são utilizados para construir argumentos. Neste sentido, tal como se formula na referida epístola: s e a ação moral decorre dos preceitos, então os preceitos bastam para atingir a vida feliz; ora a premissa é válida, logo, a conclusão também é. A esta tese nós objetamos: as ações morais decorrem também dos preceitos, mas não dos preceitos exclusivamente. (Sen. Ep. 95.6 – Trad. de J. A. Segurado e Campos).11 A passagem acima coloca em evidência a função de normatizar/orientar as condutas sociais expressas nos preceitos, uma vez que podemos dizer que os praecepta convergem ao campo da instrução do exortado. Compreendemos, dessa forma, uma questão premente: os preceitos reavivam e renovam a memória (praecepta... memoriam renouant, Ep. 94, 21); indicam, segundo nossa opinião, aqueles argumentos de aconselhamento (admonitiones) que devem permanecer na memória social. Como o próprio Sêneca afirma em sua epístola 38 (1-2): A condição dos preceitos, eu diria, é a mesma que a das sementes: produzem muito e são miúdos. Basta, como eu disse, uma mente capacitada apanhá-los e trazê-los para dentro de si. De modo recíproco, não só muito ela própria gerará, como também devolverá mais do que recebeu (Sen. Ep. 38.1-2 – Trad. de J. A. Segurado e Campos).12 10 “Scio a praeceptis incipere omnis qui monere aliquem uolunt, in exemplis desinere. Mutari hunc interim morem expedit; aliter enim cum alio agendum est: quosdam ratio ducit, quibusdam nomina clara opponenda sunt et auctoritas quae liberum non relinquat animum ad speciosa stupentibus”. 11 “ ‘Si honesta’ inquit ‘actio ex praeceptis venit, ad beatam vitam praecepta abunde sunt: atqui est illud, ergo et hoc.’ His respondebimus actiones honestas et praeceptis fieri, non tantum praeceptis”. 12 “Eadem est, inquam, praeceptorum condicio quae seminum: multum efficiunt, et angusta sunt. Tantum, ut dixi, idônea mens rapiat illa et in se trabat; multa invicem et ipsa generabit et plus reddet quam acceperit”. 164 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Logo, como propõe José Eduardo Lohner (2014, p. 21), Sêneca concentrou-se em utilizar meios de expressão capazes de compelir e afetar a alma de seu ouvinte, “de gerar, portanto, um efeito psicagógico, sendo adequada à enunciação de preceitos (praecepta) que levassem à adoção de padrões positivos de pensamento e conduta.”. Contudo, se os preceitos não fossem observados e emulados, cairiam no vazio e é neste sentido que Sêneca alude em seu discurso sobre a importância de se examinar os exempla. A este respeito colocamos em destaque a epístola em que Sêneca instruí Lucílio: D evemos escolher algum homem bom e sempre tê-lo diante dos olhos, para assim vivermos como se ele nos observasse e para empreendermos todas as nossas ações como se ele as estivesse vendo. (...). Elege aquele cuja vida, cuja linguagem e o próprio rosto, onde se estampa sua alma, foi de seu agrado. Exibe-o sempre para ti como um guardião ou como um modelo (exemplum). É preciso, repito, alguém a quem nosso caráter possa ajustar-se (...). (Sen. Ep. 2.9-10 – Trad. de J. A. Segurado e Campos).13 A partir desta narrativa, percebe-se que a proposição de Sêneca é ressaltar os exempla enquanto um recurso, os quais deveriam ser observados e, principalmente, evocados, tendo em vista o esforço para novas condutas e comportamentos. Visto desse modo, compreendemos que a concepção senequiana sobre os usos dos exempla está voltada para a ascese moral, “cujo propósito ia além de simplesmente elevar a qualidade ética da vida humana, mas era motivado, sobretudo, por uma intensa aspiração de promover a ascensão da alma” (LOHNER, 2014, p. 35). Sabemos, pois, que a escrita senequiana não é orientada por uma abordagem teórica da filosofia, pois o autor usa a retórica para construção de sua argumentação racional, o que cria um efeito na ação do leitor-ouvinte. Sobre esse aspecto, Cícero afirma que “essa linha de argumentação não se limita em conhecer em que consiste a condição humana, mas indica que é possível suportar o que os outros já suportaram e estão suportando” (Cic. Tusc. 3.57 – Trad. de Bruno Fregni Bassetto).14 Posto isto, interessa-nos ressaltar que o requisito fundamental para Sêneca foi dispor o público ouvinte ou leitor à transformação de seu estado de ânimo e à busca de um comportamento social elevado. Portanto, consideramos que as consolationes apresentam seu ethos discursivo sob o signo da exemplaridade (CORREA, 2017, p. 100). Os exempla poderiam ser antigos e/ou novos, gregos e/ou romanos, sendo possível elencar exemplos de pessoas conhecidas pelo consolador e consolado (REDONET, 2003, p. 373). Sêneca se vale sobretudo de exemplos romanos, os quais 13 “Aliquis vir bônus nobis diligendus est ac semper ante óculos habendus, ut sic tamquam illo spectante vivamus et omnia tamquam illo vidente faciamus. (...). elige eum cuius tibi placuit et vita et oratio et ipse animum ante se ferens vultus; illum tibi semper ostende vel custodem vel exemplum. Opus est, inquam, aliquo ad quem mores nostri se ipse exigant (...)”. 14 “Huic igitur alteri generi similis est ea ratio consolandi, quae docet humana esse quae acciderint. Non enim id solum continet ea disputatio, ut cognitionem adferat generis humani, sed significat tolerabilia esse, quae et tulerint et ferant ceteri” 165 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. costumavam ser fortes diante dos infortúnios, o que resultaria em continuarem com os deveres públicos mesmo com a morte recente de algum familiar mais próximo. Ademais, a distribuição dos exemplos poderia ser feita agrupando-os em listas, ou seja, acumulando um exemplo atrás do outro, ou de forma individual, conectados com algum tópico consolatório particular. Também poderiam aparecer em pares, no qual seria mostrado um exemplo positivo e outro negativo. Sêneca, de tal modo, escreve consolatórias com características exemplar e especular, e se vale de uma utilização pragmática do passado representada como um repositório de regras para as relações consigo e para as relações com outrem. A história é evocada para orientar a conduta moral e política dos soberanos e dos súditos, por meio dos exemplos ou contraexemplos de ação individual num passado tornado monumental e ilustre (EHRHARDT, 2008, p. 84-85). Um passado que é rememorado constantemente. De acordo com Matthew Roller (2009, p. 81), podemos compreender os exemplas como uma narrativa ou uma referência a alguma ação realizada por um ator social diante de sua comunidade. Tais ações e condutas são, segundo nosso entendimento, julgadas como positivas ou negativas; deste modo, compartilhadas por um determinado público espectador, pois segundo Sêneca, o Velho, o sentido pedagógico dos exemplos consiste em “com frequência [mencionar] essas frases porque tanto é preciso dar exemplos de casos a serem evitados quanto daqueles a serem seguidos” (Sen. Contr. 2, 4 – Trad. do espanhol de Adiego Lajara).15 É neste sentido que os exemplas expressam e indicam uma força normativa (ROLLER, 2009). Sêneca afirma em sua epístola 98 (13-14)16 que “façamos nós também algo que mostre grandeza de alma; sejamos nós também um exemplo”. Compreendemos por estas palavras que os exemplos ilustram e reforçam os preceitos morais apresentados ao público e, assim dão autoridade ao texto e à fala do consolador frente àquele a quem se pretende consolar e orientar. Posto isto, interessa-nos ressaltar que os indivíduos virtuosos, representados na obra de Sêneca, tornaram-se exemplos a serem rememorados e projetados na memória pública, criando, assim, uma imagem de unidade, de pertencimento à cidade. Assim, entendemos que os preceitos e os exemplos destacados na narrativa senequiana foram elaborados e estruturados a partir de estratégias retóricas, que permitiriam, a partir de uma elaboração textual, comunicar a narrativa com uma função social. Vê-se que o uso da retórica na consolatio senequiana tinha o objetivo de persuadir o leitor-ouvinte à mudança, à prática da filosofia. Em outras palavras, a arte retórica foi um mecanismo relevante utilizado na fala e na escrita, tendo um papel vital no espaço público, interferindo na vida social e política de Roma. A palavra articulada na escrita ou na oralidade possui capacidade persuasiva, mas também propriedades terapêuticas e sociais. Para tanto, parafraseamos Sêneca em sua obra De Ira (1, 6), com o intuito de compreendermos a relevância da palavra articulada retoricamente. Citemos in extenso: 15 “Haec autem subinde refero quod aeque vitandarum rerum exempla ponenda sunt quam sequendarum” (Sen. Contr. 2, 4). 16 “nos quoque aliquid et ipsi faciamus animose; simus inter exempla” (Sen. Ep. 98.13-14). 166 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. A ssim, convém que o legislador e o governante de uma cidade, por mais tempo que puder, trate os temperamentos com palavras e com essas medidas mais brandas, para que lhes aconselhe o que deve ser feito e concilie em suas almas o desejo honesto e do justo, provoque o ódio aos vícios, o apreço pelas virtudes. Deve em seguida passar a um discurso mais severo, pelo qual ainda advirta e censure (Sen. Ira, 1.6 – Trad. de J. Eduardo Lohner)17. A partir da argumentação de Sêneca, entendemos que a palavra, a partir dos usos retóricos, produz, em seu ato de comunicação, dois efeitos distintos, mas complementares: “os leitores/ouvintes são cognitivamente convencidos quando aceitam uma afirmação como verdadeira; e são (em seguida), persuadidos se a sua conduta ou motivação é afetada” (ALEXANDRE JÚNIOR, 2008, p. 7). Sabemos, pois, que a escrita deveria perpetuar e transmitir, com distinção, a glória dos indivíduos em um processo repetitivo. Daí considerarmos que a filosofia senequiana se estabelece e se promove por intermédio do exemplo. Em vista destes aspectos, consideramos a consolatória como um texto que apresentava uma escrita que levava o destinatário a refletir racionalmente perante a dor que o acometia. Logo, as consolatórias de Sêneca eram uma espécie de “farmácia moral” (OMENA, 2011, p. 260), nas quais o consolador preocupava-se em socorrer aqueles que sofriam, “mesmo sem serem solicitados, com argumentos prévios e cuidadosamente preparados para combater os males que mais afligiam o homem, como a doença, a velhice, a pobreza, o exílio e, o maior deles, a morte” (VAN RAIJ, 1999, p. 14). A dor foi apresentada como um mal universal, embora tenha trabalhado de forma diferenciada em cada uma das obras (OMENA, 2011, p. 260). Consideramos assim que a consolatio senequiana apresenta em sua estrutura “exortações e admoestações de caráter filosófico, que procuram persuadir o leitor a permanecer num certo estilo de vida ou, ao contrário, adotar normas de conduta diferentes” (ALEXANDRE JÚNIOR, 2008, p. 11). É, pois, no intuito de convencer e aconselhar que Sêneca construiu sua argumentação (GONÇALVES; MESQUITA, 2010, p. 34). Con sid er açõ es f i n a i s Partindo desses elementos, entendemos que a consolatória apresenta em sua composição alguns artifícios retóricos, os quais permitem dar ênfase a um discurso cuja finalidade seria dedicar a alguém argumentos de consolo, os quais reintegrariam o indivíduo à sua vida social; um segundo artifício seria a utilização de exempla no decorrer da narrativa consolatória, com o intuito de significar a consolação por meio de representações de persona cívicas guiadas pela prática da uirtus, mesmo estan17 “Ita legum praesidem ciuitatisque rectorem decet, quam diu potest, uerbis et his mollioribus ingenia curare, ut facienda suadeat cupiditatemque honesti et aequi conciliet animis faciatque uitiorum odium, pretium uirtutium; transeat deinde ad tristiorem orationem, qua moneat adhuc et exprobret; nouissime ad poenas et has adhuc leues”. 167 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. do diante da dor. Segundo as hipóteses de James Ker (2009, p. 91-92), a auctoritas de uma consolatio encontra-se na capacidade de o autor, em sua argumentação, convencer a pessoa em sofrimento de que a dor em estado prolongado o afasta do ideal de comportamento cívico; logo, dada sua posição social, tal conduta excessiva poderia promover prejuízo à Res Publica. Assim, compreendemos que a consolatio poderia reintegrar o destinatário à comunidade cívica, de modo a despertar-lhe a consciência da inevitabilidade da morte e dos males da fortuna e, deste modo, impor fim à tristeza. Como propõe Ker (2009, p. 92), a retórica consolatória acentuava a arte de convencimento e, portanto, poderia remodelar comportamentos sociais frente a situações hostis. Visto assim, Sêneca construiu um discurso que trabalhou e influenciou as emoções de seus destinatários, tendo em vista a busca pela moderação da dor (MANNING, 1974, p. 74-75). Segundo Manning (1974, p. 75), a habilidade de Sêneca em escrever as consolatórias consistia em decidir como e quando aplicar os remedia animi perante a dor de seu destinatário, ou seja, sua argumentatio deveria levar em consideração a posição social do indivíduo, suas relações sociais e o contexto no qual a consolatio é produzida. A partir do exposto, podemos definir, de modo geral, que a consolatória nos leva a reflexões sobre as representações da dor e do modo de conduzir essa dor – luto – uma vez que sua escrita levava o destinatário a refletir racionalmente perante a dor que o acometia. Nesse sentido, o texto consolatório projetava-se na normatização dos papéis sociais, haja vista que as expressões de afeto ou mesmo de dor deveriam ser conduzidas com cuidado e equilíbrio. Li s ta d e ab r eviat u r a s Cic. Tusc. – Tusculanae Disputationes (Cícero, Discussões Tusculanas) Sen. Ep. – Epistulae Morales ad Lucilium (Sêneca, Cartas a Lucílio) Sen. Marc. – Ad Marciam de consolatione (Sêneca, Consolação a Márcia) Sen. Helu. – Ad Helviam matrem de consolatione (Sêneca, Consolação a Hélvia) Sen. Pol. – ad Polybium de consolatione (Sêneca, Consolação a Políbio) Sen. Ira. – Ad Novatum de ira (Sêneca, Sobre a Ira) Font e s CÍCERO, M. T. Discussões Tusculanas. Trad. de Bruno Fregni Bassetto. Uberlânca: UDUFU, 2014. SENECA. Moral Essays I. Tr. by John W. Basore. London: Loeb Classical Library, 1928. SENECA. Moral Essays II. Tr. by Richard M. Gummere. London: Loeb Classical Library, 1920. SENECA. Ad Lucilium Epistulae Morales I. Tr. by Richard M. Gummere. London: Loeb 168 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Classical Library, 1979. SENECA. Ad Lucilium Epistulae Morales II. Tr. by Richard M. Gummere. London: Loeb Classical Library, 1970. SENECA. Ad Lucilium Epistulae Morales III. Tr. by Richard M. Gummere. London: Loeb Classical Library, 1925. SÊNECA. Sobre a Ira. Sobre a tranquilidade da alma. Intr., Trad e notas de J. E. S. Lohner. São Paulo: Cia das Letras, 2014. SÊNECA. Cartas Consolatórias. Trad. de C. F. M. Van Raij. Campinas, SP: Pontes, 1992. SÊNECA. Cartas a Lucílio. Trad., pref. E notas de J. A. Segurado e Campos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014. Ref e r ên c ias Bib l i o g r á f i ca s ALBRECHT, M. von. Historia de la literatura romana desde Andronico hasta Boecio. Vol. II. Barcelona: Herder, 1999. __________. Sobre la lengua y el estilo de Séneca. Myrtia, n. 15, p. 227-245, 2000. __________. Seneca’s Language and Style. In: DAMSCHEN, G.; HEIL, A. (Eds.). Brill’s Companion to Seneca - Philosopher and Dramatist. Boston: Brill, p. 699-744, 2014. ALEXANDRE JUNIOR. M. Eficácia retórica: A palavra e a imagem. Centro de estudos clássicos, faculdade de letras da universidade de Lisboa. Revista Rhêtorikê. n.1, v.0, p.1-26, 2008. ANDRÉ, C. A. Trilhos de evasão: estratégia retórica de Séneca, nas consolações ad helviam e ad polybium. HVMANITAS — v. XLVII, p. 593-615, 1995. CAROÇO, A. F. P. ‘Omnia humana caduca sunt’: A Consolação a Márcia de Séneca. 208f. (Dissertação). Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras. Departamento de Estudos Clássicos. Lisboa, 2011. CELESTINO, M. M. Las Consolationes de Séneca. Estudios humanísticos. n. 20, p. 69-84, 1998. CID LUNA, P. Materia y forma de la consolación senequiana (I). Cuadernos de filología clásica: Estudios latinos, nº 15, p. 231-245, 1998. ________. Materia y forma de la consolación senequiana (II). Cuadernos de filología clásica: Estudios latinos, nº 16, p. 107-140, 1999. CODOÑER, C. El Adversario Ficticio de Séneca. Helmantica: Revista de filología clásica y hebrea, Tomo 34, nº 103-105, p. 131-148, 1983. __________. Introducción. In: Séneca. Diálogos. Ed. C. Codoñer. Madrid: Editora Nacional, p. 7-25, 1984. 169 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. COSTA, C. D. N. (Ed.). Seneca. New York: Routledge, 1974. DAMSCHEN, G.; HEIL, A. (Eds.). Brill’s Companion to Seneca - Philosopher and Dramatist. Boston: Brill, 2014. EHRHARDT, M. L. O arquiteto do social: Sêneca e a construção de modelos para a sociedade romana nos tempos do Principado a partir da História Magistra Vitae. 228f. (Tese). Universidade Federal do Paraná. Pós-Graduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Curitiba, 2008. EVENEPOEL, W. The philosopher Seneca on suicide. Ancient Society, v. 34, p. 217-243, 2004. FERRILL, A. Seneca’s Exile and the Ad Helviam: A Reinterpretation. Classical Philology, Vol. 61, No. 4, p. 253-257, 1966. GLOYN, L. The ethics of the family in Seneca. Cambridge: Cambridge University Press, 2017. GONÇALVES, A. T. M. Entre gregos e romanos: história e literatura no Mundo Clássico. Revista Tempo, v. 20, p. 1-14, 2014. ______________.; MESQUITA, F. D. G. Atividade epistolar no mundo Antigo: relendo as cartas consolatórias de Sêneca. História Revista, Goiânia, v. 15, n. 1, p. 31-53, 2010. GRIFFIN, M. T. Imago Vitae Suae. In: FITCH, J. G. (Ed.). Oxford Readings in Classical Studies - Seneca. Oxford: Oxford University Press, p. 23-58, 2008. _________. Seneca: a philosopher in politics. Oxford: Clarendon Press, 1976. GRIMAL, Pierre. Acción y vida interior en Séneca. Estudios Clásicos, Tomo 24, nº. 85, p. 81-100, 1980. GUNDERSON, E. The sublime Seneca: Ethics, literature, metaphysics. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. HABINEK, T. N. Imago suae vitae: Seneca’s Life and Career. In: DAMSCHEN, G.; HEIL, A. (Eds.). Brill’s Companion to Seneca - Philosopher and Dramatist. Boston: Brill, p. 3-32, 2014. INWOOD, Brad. Reading Seneca. Stoic philosophy at Rome. Oxford: Oxford University Press, 2005. KER, James. The deaths of Seneca. Oxford: Oxford University Press, 2009. Classical Studies, v. 17, nº. 1, p. 49-56, 1992. LARSON, V. T. Seneca and the Schools of Philosophy in Early Imperial Rome. Illinois Classical Studies, v. 17, nº. 1, p. 49-56, 1992. MANNING, C. E. The Consolatory Tradition and Seneca’s Attitude to the Emotions. Greece & Rome, Second Series, Vol. 21, No. 1, p. 71-81, 1974. MAYER, R. G. Roman Historical Exempla in Seneca. In: FITCH, J. G. (Ed.). Oxford Readings in Classical Studies - Seneca. Oxford: Oxford University Press, p. 299-315, 2008. 170 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. OMENA, L. M. de. Os laços entre família e morte nas consolatórias de Sêneca. In: GONÇALVES, A. T. M. & OMENA, L. M. (Org.). Memória e materialidade: interpretações sobre Antiguidade. 1ed.Jundiaí, SP: Paco, v. 1, p. 151-166, 2018. _________. Memória de viagem: a “uirtus” à luz da “Consolatória” de Sêneca. Dimensões, v. 26, p. 256-272, 2011. FUNARI, P. P. A. Memória e esquecimento: narrativa sobre imperador romano e senado. História, v. 31, n. 01, p.163-184, 2012. PETERLINI, A. A. Uma visão senequiana da amizade. Letras Clássicas, n. 3, p. 95-108, 1999. PIERNAVIEJA, P. Epistolografía latina. Estudios clásicos, Tomo 22, Nº 81-82, p. 361-374, 1978. REDONET, F. L. La consolatio de caecitate en la literatura latina. Helmantica: Revista de filología clásica y hebrea, Tomo 54, Nº 164-165, p. 369-390, 2003. _________. Elementos consolatoris en los proemios de obras retóricas y filosóficas de Cicerón (De oratore, Brutus, De amicitia) Helmantica: Revista de filología clásica y hebrea, Tomo 48, Nº 147, p. 341-364, 1997. _________. Palabras contra el dolor. La consolacion filosofica latina de Ciceron a Fronton, Madrid, ed. Clàsicas, 2001. ROLLER, M. The exemplary past in Roman historiography and culture. In: FELDHERR, A. (Ed.). The roman historians. New York: Cambridge University Press, p. 181-194, 2009. SAUER, J. Consolatio ad Marciam. In: DAMSCHEN, G.; HEIL, A. (Eds.). Brill’s Companion to Seneca - Philosopher and Dramatist. Boston: Brill, p. 135-140, 2014. _______. Consolatio ad Polybium. In: DAMSCHEN, G.; HEIL, A. (Eds.). Brill’s Companion to Seneca - Philosopher and Dramatist. Boston: Brill, p. 167-170, 2014. _______. Consolatio ad Helviam. In: DAMSCHEN, G.; HEIL, A. (Eds.). Brill’s Companion to Seneca - Philosopher and Dramatist. Boston: Brill, p. 171-174, 2014. SEITA, Mario. Un’affaire politico-giudiziaria dell’antica Roma: l’attacco di Suillio a Seneca. Latomus, T. 41, Fasc. 2, p. 312-328, 1982. SERRA, J. B. Procedimientos retóricos en Séneca: Ad Lucilium II. Studia Philologica Valentina, Vol. 8, n. 5, p. 11-35, 2005. SETAIOLI, A. Ethics I: Philosophy as Therapy, Self-Transformation, and “Lebensform”. In: DAMSCHEN, G.; HEIL, A. (Eds.). Brill’s Companion to Seneca - Philosopher and Dramatist. Boston: Brill, p. 239-256, 2014. VEYNE, P. Sêneca e o estoicismo. São Paulo: Três Estrelas, 2015. VOLK. K.; WILLIAMS, G. D. (Eds.). Seeing Seneca Whole: Perspectives on Philosophy, Poetry and Politics. Boston: Brill, 2006. Recebido em 16/9/2019 e aceito em 3/10/2019. 171 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Entre a crise política e a crise moral de finais da república romana (I a.c.): fronteiras1 entre o discurso e o real M a r i a n a C a r r i j o M e d e i ro s Doutoranda em História (UFG) Bolsista CAPES marianacarrijomedeiros@gmail.com Orientadora: Profª. Dra. Ana Teresa Marques Gonçalves Res u mo O presente artigo busca realizar uma investigação acerca da crise vivenciada pela Res publica romana em sua passagem para a forma de governo denominada como Principado (I a.C.). Crise esta que, de acordo com a vasta documentação do período e, também proveniente de outras épocas, alcançou cunhos sociais, políticos, bélicos, econômicos, bem como morais. Com base na análise dos discursos trazidos pelas obras de autores como Políbio, Salústio, Plutarco, Tácito, Tito Lívio, Veléio Patérculo, Cícero, Suetônio, Horácio e Propércio, objetivamos trazer à luz novas propostas de interpretação sobre a crise republicana. Crise esta que, experienciada pelos povos antigos, ao ser por nós historicizada pode ser compreendida em sua multiplicidade discursiva. 1 Tal conceito, por nós operacionalizado neste artigo, toma por base a definição realizada pelo historiador Fábio Faversani em seu trabalho intitulado Entre a República e o Império: Apontamentos sobre a amplitude desta fronteira. Para o autor, existe na historiografia contemporânea um lapso temporal entre a República e o Império, em suas palavras: “Esta visão reforça os elementos de ruptura, marcada por mudanças nas formas de articulação e competição política da sua elite, em detrimento da continuidade, quer relativa a estas mesmas formas de articulação e competição da elite quer quando considerados outros aspectos também importantes” (FAVERSANI, 2013, p. 101). A proposta enfatizada pelo autor pauta-se em “[...] pensar a divisão entre República e Império não como uma ruptura, mas como uma fronteira. Sendo fronteira, há separação e ligação entre as várias ‘Repúblicas’ e ‘Impérios’ que podemos construir analiticamente e, ainda mais, os espaços que correspondem a estas fronteiras não podem ser traduzidos por pontos finais, mas sentenças que estão em parte sobrepostas e em parte apartadas” (FAVERSANI, 2013, p. 109). Pensamos também, desta forma, na existência de fronteiras entre o discurso e o real no que se refere à crise republicana concebida a este recorte espaço-temporal específico (I a.C./ I d.C.), haja vista que a percepção de crise, para estes povos antigos, indubitavelmente existiu. Concomitantemente a tal sentimento, temos a existência de uma multiplicidade discursiva – trazida pelos documentos do período – que caracterizaram-se, de forma similar, por campos de conflitos, disputas e domínios políticos, sociais e culturais que devem ser cuidadosamente tratados. 172 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Pa lav r as - chav e Roma; Crise; Res publica; Discurso; Real. Abs t rac t This article aims to conduct an investigation into the crisis experienced by the Roman Res publica in its passage to the form of government called the Principate (1st century B.C.). This crisis, according to the vast documentation of the period and also from other times, reached social, political, warlike, economic as well as moral aspects. Based on the analysis of the discourses brought by the works of authors such as Polybius, Sallust, Plutarch, Tacitus, Livy, Velleius Paterculus, Cicero, Suetonius, Horatius and Propertius, we aim to bring to light new proposals for interpretation of the republican crisis. Crisis which, experienced by the ancient people, being historicized by us, can be understood in its discursive multiplicit. Key w or ds Rome; Crises; Res publica; Discourse; Real. Muitos documentos, sobretudo aqueles contemporâneos e/ou posteriores ao governo de Augusto, se remetem ao momento do assassinato de César e ao que dele decorreu como uma grande ruptura e uma crise dos mores, dos costumes dos ancestrais e da tradição. Ainda que os autores não tenham utilizado tais expressões, o que consta nos discursos por eles construídos diz respeito à percepção de severas mudanças nos diversos âmbitos, seja no político, no social, no cultural ou no que tange às leis. No intuito de olharmos para estes vestígios e fragmentos do passado – que constam nos documentos por nós selecionados para o presente trabalho – com o cuidado de não incorrermos na naturalização dos fatos ali postos, sentimos a necessidade de definirmos o que escritores como Plutarco, Tácito, Veléio Patérculo, Cícero, Suetônio, Horácio e Propércio postularam como a crise por eles sentida. Desta forma, o que pretendemos realizar doravante pauta-se em trazer à luz tais registros como discursos que foram selecionados e que visaram remeter-se a uma unidade e a um todo. Contudo, pelo fato da urbs romana ter se constituído em uma sociedade múltipla e heterogênea, tal sentimento de crise não foi sentido, necessariamente, da mesma forma e com a mesma intensidade por todas as pessoas que ali viviam. Tais representações escritas não podem ser encaradas de forma neutra, é preciso que as historicizemos em seus contextos de produção e veiculação, visto que, como pontuou Roger Chartier: “as representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam” (CHARTIER, 2002, p. 17). Estes vestígios do passado, pertencentes à cultura escrita, são constituídos e 173 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. constituidores dos discursos que versavam sobre uma crise moral e estabelecem, sobretudo, representações. Representações estas que, ao dizerem sobre um mundo social, exprimem posições e interesses confrontados de atores sociais e, “[...] paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse” (CHARTIER, 2002, p. 19). Por este motivo, visamos explicar e interpretar os discursos representativos postos por tais autores por intermédio da relação estabelecida entre o texto e o contexto, da forma como propôs Dominique Maingueneau para se “pensar o dispositivo de enunciação que associa uma organização textual e um lugar social determinados” (MAINGUENEAU, 1997, p. 13). De acordo com Ciro Flamarion Cardoso, a representação não constrói mundos, mas os mundos que a constrói. O mundo existe mesmo que não tenhamos palavras para nomeá-lo2. Tendo em vista tais pressupostos metodológicos, consideramos que toda e qualquer interpretação é relativa, contudo existem indícios que impossibilitam que o discurso elimine os fatos históricos como, por exemplo, o de que a crise republicana estava posta para os antigos. Houve uma severa ruptura constitucional. A República romana, do ponto de vista das instituições, ruía. Existem confrontos com muitas mortes e assassinatos e, neste contexto, muitos autores leram tais rupturas, crises e conflitos de finais da República como decadência e crise dos costumes morais. Ao longo deste artigo visamos, desta forma, compreender em que medida esta crise moral está estabelecida, em que medida estes autores antigos a interpretaram e de que forma visaram corrigi-la na finalidade de acertar os rumos da República. Para isto, propomos um percurso de investigação da crise relatada por escritores que vivenciaram o período que abarca finais da República, o Principado de Augusto, bem como momentos posteriores a este. Intencionamos perceber a mudança de discurso relatada por estes autores ao se referirem às crises de meados do século III a.C., até chegarmos na ênfase daquilo que nomearam como crise dos mores maiorum no século I a.C. De acordo com Jean Carpentier e François Lebrun, houve um sentimento de crise permanente vivenciado pelos romanos iniciado ainda no século III a.C. com as guerras púnicas e com os inúmeros conflitos desencadeados desde então, os quais intensificaram a presença regular das tropas nos territórios, acentuaram as dificuldades econômicas e sociais, a existência de um clima de insegurança e, também, o aumento da pilhagem e da pirataria no século II a.C. devido ao declínio das frotas e do interesse de Roma, cada vez mais crescente, em obter escravos (CARPENTIER; LEBRUN, 2010, p. 78). Plutarco3 narra o aumento da pirataria e a dificuldade em se lidar com ela até meados dos anos 67 a.C., realidade descrita até a expedição de Pompeu: 2 Com efeito, uma representação social é um produto, no sentido de possuir conteúdos, organizar-se em temas e afirmar coisas sobre a realidade; e é simultaneamente um processo, um movimento de apropriação das coisas do mundo. Seu status cognitivo é intermediário entre a percepção e o conceito. Outrossim, é preciso notar que representar algo não é somente duplicá-lo, repeti-lo, reproduzi-lo, é também reconstituí-lo, retocá-lo, mudar-lhe a constituição num sentido que seja funcional para determinados grupos e seus interesses (CARDOSO, 2012, p. 43). 3 Historiador, biógrafo e filósofo grego que vivenciou parte do século I d.C. 174 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. D e fato, a atividade dos piratas, vinda primeiramente da Cicília, após o seu início, em que a sua ousadia passou despercebida, ganhou uma confiança e uma audácia novas durante a guerra de Mitridates, em que esteve ao serviço do rei. Depois, quando os romanos, por ocasião das guerras civis, se voltaram uns contra os outros às portas de Roma, o mar, ficando sem vigilância, atraiu-os pouco a pouco cada vez mais para longe, começando não só a atacar os navegadores, mas também a devastar as ilhas e as cidades costeiras [...]. Os navios dos piratas ultrapassavam o número de mil e as cidades de que se apoderaram eram mais de quatrocentas [...]. Depois de tantos ultrajes infligidos aos romanos, chegaram a praticar pilhagens nas estradas, afastando-se do mar e devastando as propriedades situadas nas margens (Plu. Pomp. 24). O que, deste relato de Plutarco, podemos perceber é que o insucesso romano esteve ligado, para o autor, não somente à pirataria, mas ao fato dos romanos terem se voltado uns contra os outros por decorrência das guerras e conflitos civis e, por este motivo, a pirataria se fez ainda mais presente, o que está conectado de acordo com Greg Woolf, com as disputas do poder devido à volatilidade da política doméstica, disputas estas realizadas na urbs romana que acarretavam em ramificações em todos os centros periféricos dominados (WOOLF, 2017, p. 140). Ainda no período em que Tibério Graco assumiu a magistratura de tribuno da plebe em meados de 133 a.C., em um cenário no qual Cartago, considerada rival naval de Roma, havia sido destruída, Macedônia se tornou província romana e os cargos do Senado estavam nas mãos, sobretudo, de líderes das mais proeminentes famílias aristocráticas. Políbio narrou, sob a ótica grega, este início de hegemonia romana a contar da destruição de Cartago: Q uando contemplou a cidade completamente destruída sendo consumida pelas chamas, diz-se que Cipião derramou lágrimas e lamentou francamente a sorte dos inimigos. Após refletir um pouco, ponderou que todas as cidades, povos e impérios se extinguem, assim como todos os homens têm seu destino. Troia passara por isso, embora tivesse sido uma cidade próspera, além dos impérios Assírio e Meda; Persa, o maior império de seu tempo; e Macedônico, que ainda recentemente fora tão famoso. De forma espontânea ou deliberada, citou os seguintes versos do poeta: “virá o dia em que a Sagrada Ilium perecerá e Príamo e seu povo serão mortos”. E falei com ele pois era seu mestre -, e perguntei aonde pretendia chegar. Sem nenhuma dissimulação, respondeu que estava pensando no próprio país, pelo qual temia quando refletia sobre o destino de todas as coisas mortais (Plb. 39.5). Se, em 146 a.C., como expõe Políbio, as destruições de Cartago e Corinto, bem como a dissolução do reino da Macedônia asseguraram certa estabilidade a urbs romana, em menos de cinquenta anos os romanos submergiram na retirada do con175 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. trole, ainda que temporariamente, dos territórios orientais e de parte dos territórios da Península Itálica. A datar deste fato, inúmeras guerras contra os nomeados e designados inimigos internos e externos no interior da África, Gália, Hispânia e Germânia, concomitantemente com a ocorrência de diversificados entraves internos, ocasionaram uma sequência de guerras civis e assassinatos, culminaram na redução dos poderes atribuídos à Assembleia e ao Senado; Roma sobreviveu a estes episódios até se tornar um Império, mas como pontua Woolf, suas instituições não sobreviveram sem alteração (WOOLF, 2017, p. 137). Caio Salústio Crispo, escritor que viveu em Roma nos finais da República, narrou: “pela nobreza começou a abusar de seu prestígio, e as pessoas sua liberdade. Cada homem estava tomando, apreendendo e roubando para si mesmo. E então tudo foi dividido em dois grupos, e o Estado, que estava no meio, foi dilacerado” (Sal. Jug. 41. 5). E ainda Veléio Patérculo4, em sua obra sobre as Historiae Romanae, argumentou que as guerras civis se iniciaram após as questões dos irmãos Graco e da ruptura da sociedade em dois grupos distintos5 que fundou uma ameaça que, de acordo com o historiador romano, a qualquer momento poderia voltar a acontecer: E ste foi o início da guerra civil e da impunidade das espadas na cidade de Roma. Desde então o direito foi eclipsado pela violência e o mais poderoso foi preferido. As discórdias dos cidadãos que antes se resolviam com acordos, se diminuíram pela força. As guerras se empreenderam não por razões justificadas, senão segundo o dinheiro que se iria obter. Isto não surpreende, pois as ações violentas não se acabavam ali aonde começaram, mas abriram um caminho de ampla expansão por qualquer resquício e, uma vez que se há perdido o caminho reto, se chega ao precipício (Vell. 2. 3. 3-6). Para Mary Beard, o ano de 146 a.C. foi um marco do colapso da Res publica e o prenúncio do século que se seguiria marcado por conflitos, mortes e assassinatos que culminariam no governo autocrático de Augusto (BEARD, 2017, p. 209). Sobre isto, Salústio refletiu que, desde a destruição de Cartago, a sociedade romana começou a passar por uma quebra de consenso entre ricos e pobres devido à concentração de poder em um único grupo, o que, na ótica deste escritor, culminou no fim deste sistema de governo: “Nem a glória, nem o poder geravam disputas entre os cidadãos [até a destruição de Cartago em 146 a.C.], pois o medo do inimigo mantinha a cidade no bom caminho” (Sal. Jug. 41. 2). Tais eventos e características presentes nas linhas e palavras tanto de escritores antigos quanto nas interpretações e análises de historiadores, como Greg Woolf, Mary Beard, Jean Carpentier e François Lebrun, indicam questões que levaram Roma a sucessivos desgastes nas esferas social e, sobretudo, política desde finais do século 4 Historiador que viveu em Roma, durante parte do denominado Principado de Augusto (I a.C.). 5 Estes dois grupos dividem-se nos optimates e nos populares, sendo os primeiros vinculados ao Senado e à manutenção dos privilégios, e o segundo herdeiros dos programas dos irmãos Graco (CARPENTIER; LEBRUN, 2010, p. 84). 176 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. III a.C. até o assassinato de Júlio César. Sobre isto, devemos enfatizar que a visão dos antigos acerca desta crise se difere da nossa devido às metodologias de análise e interpretação aplicadas sobre os documentos. Ainda que sejam indivíduos indicando desgastes contemporâneos a eles ou pertencentes a gerações sucessoras que ainda vislumbravam em seus predecessores referenciais para se embasar – e, sobre eles, apontavam falhas, desvios, erros e acertos –, há que se tomar certo cuidado para não incorrermos e reproduzirmos tais discursos propagados à proporção de verdades únicas e fechadas em si mesmas. Nós, por outro lado, intentamos perceber as construções embutidas nestes discursos, bem como suas respectivas implicações. E, com isso, compreendemos que os romanos, de fato, perceberam a perda de hegemonia delineada de forma mais intensa em finais do século II a.C. e, como propõe Beard, isto pode ser pensado com base na falta de ajuste, por parte dos romanos, da política tradicional e até mesmo das instituições administrativas no vislumbre e na intenção de se lidar com o novo cenário (BEARD, 2017, p. 235). Ainda que possamos perceber tais elementos vinculados aos desgastes sofridos, sentidos e ocasionados pelos fatores mencionados acima, devemos ponderar que tal sentimento nomeado como crise pela historiografia atual muito respeitada, utilizada e debatida no âmbito dos estudos da Antiguidade Clássica, deve ser analisado com cautela. Como por exemplo a ideia defendida por Jürgen von Ungern-Stenberg em seu capítulo de livro intitulado The Crisis of the Republic, no compêndio organizado por Harriet Flower, The Cambridge Companion to the Roman Republic, na qual argumenta que as guerras e assassinatos que se desenrolaram do século II a.C. à morte de César geraram: [...] uma crise sem saída, apesar do fato de nenhum dos lados ter tomado nenhuma ação tecnicamente contra a lei. Na verdade, esse foi o verdadeiro motivo da crise. Roma não tinha uma constituição escrita, mas uma tradicional que tinha ‘desenvolvido ao longo do tempo, segundo o qual todos os participantes trabalharam para um consenso através da cooperação mútua, em vez de fazer uso dos seus plenos poderes legais (UNGERN-STENBERG, 2014, p. 80). [ Esta nomeação reproduz a ideia e as narrativas trazidas pelas documentações, ainda que pelos autores clássicos fossem referenciadas por meio de expressões vinculadas ao declínio dos costumes, da Res publica, da religião e das instituições políticas como o Senado. Ao que nos parece, há uma tentativa enfática em se tentar caracterizar e atribuir causas e efeitos deste e a este sentimento de crise, tal qual os antigos fizeram, quando, na realidade, lidamos apenas com representações e discursos que, embora vastos, se fazem restritos a lugares de fala específicos. Alicerçados por esta ótica das representações e dos discursos que lidamos, de agora em diante, com a outra versão6 acerca da crise que diz respeito à corrupção dos valores morais 6 Esta outra versão acerca da crise com a qual lidamos é proveniente de autores que vivenciaram, da mesma forma, o recorte espaço-temporal da urbs romana de finais da República em sua fronteira com o Império. Sejam escritores contemporâneos a este período, ou sucessores a ele, trazem versões 177 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. e sociais que aparecem nas documentações, sobretudo naquelas que tratam do período de Júlio César e de Augusto. Narrativas como a de Políbio enfatizavam que o domínio romano foi decorrente, sobretudo, do bom funcionamento das instituições ligadas aos costumes morais, aos cultos destinados aos deuses e à forte coesão que isto propiciava: O aspecto mais importante em que a sociedade civil romana supera a de outros Estados me parece ser quanto ao tratamento dos deuses. Penso também que aquilo mesmo que, entre outros povos, é encarado desfavoravelmente é, entre os romanos, uma fonte de coesão: refiro-me ao respeito que eles têm pelos deuses. Pois isso é levado a tão extraordinário limite – tanto nos assuntos privados quanto nos negócios comuns da comunidade – que nada é tratado como mais importante. Esse fato parece espantoso para muita gente (Plb. 6. 56. 6-8). Por outro lado, temos variadas narrativas que se remetem ao desuso e ao declínio de todas essas características enfatizadas acima por Políbio e, com isso, ao caminho traçado para o perecimento da República romana, como aparece em Tácito, senador e historiador romano que vivenciou grande parte do Império Romano, a datar dos governos de Augusto, Tibério e Nero, logo no início de sua obra disserta: A princípio foram os reis que governaram a cidade de Roma. L. Bruto instituiu o consulado e a liberdade. As ditaduras eram temporárias; e o poder dos decênviros não durou mais de dois anos, nem por muito tempo o dos tribunos militares. Foi curta a dominação de Cina, como também a de Sila; e o poder pessoal de Pompeu e Crasso passou logo para César, como também as armas de Lépido e Antônio foram suplantadas pelas de Augusto, que, tomando o título de príncipe assumiu o governo da república já cansada das discórdias civis (Tac. Ann. 1. 1. 1-5). Ou, no momento em que o historiador romano, ainda no primeiro livro de Annales, argumenta que “depois da transformação das instituições, nada ficou dos antigos costumes: desaparecida a igualdade, estavam todos atentos às ordens do príncipe, sem medo para o presente, enquanto Augusto [...] se mantinha e era segurança de sua casa e paz” (Tac. Ann. 1. 4. 1-3). E ainda Tito Lívio, no prefácio de sua obra Ab Vrbe Condita, no momento em que descreve como o declínio da Res publica foi instaurado: [...] o modo de vida e os costumes, o tipo de homens e meios pelo qual boa ordem doméstica e um império no exterior foram conquistados [ que postularam a existência de crise da República romana desde o século III a.C., a qual estava ligada a questões de disputas de terra e de cidadania. Porém, ao tratarem do período Júlio-Claudiano, enfatizaram a existência da crise política pautada em sua vinculação com a ruptura moral e dos costumes dos ancestrais. É esta mudança de discurso acerca deste período que nos interessa no presente artigo. 178 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. e ampliados: depois, quando o declínio se instala, que se reflita sobre como os padrões começaram a decair pouco a pouco, para em seguida a derrocada ser cada vez mais rápida e, enfim, como desmoronaram, até atingirmos a situação atual, em que não podemos suportar nem nossos vícios nem os remédios que eles pedem (Liv. 12-19). E ainda quando Cícero, em sua obra De Republica, ao apontar os problemas que tal sistema de governo estava passando, assinala a importância de se buscar novamente por sua recuperação: N ão é minha intenção instituir novas regras, de minha própria invenção, mas repetir opiniões dos preclaros e sábios varões de que se guarda memória em nossa idade e na nossa República; ainda adolescente, pudemos apreciá-la dos lábios de P. Rutílio Rufo, em Esmirna, que nos referiu uma controvérsia de muitos dias, e na qual julgo não estar omitindo ponto algum de interesse que se possa relacionar com este grande assunto (Cic. Rep. 8. 6-12). Nas narrativas que citamos, percebemos aspectos interligados e em diálogo. Seja com Políbio, quando exalta o engrandecimento de Roma e atribui o bom funcionamento da cidade, bem como as expansões e conquistas por ela empreendidas à valorização e à prática dos cultos e homenagens aos deuses; seja Tácito, ao delimitar quais foram as formas de governo experimentadas por Roma, perpassando pelos reis, pelas breves ditaduras até chegar ao governo de Augusto, colocado como aquele que chegou ao poder em uma cidade já há muito cansada dos conflitos civis; ou Tito Lívio que, assim como Políbio, exalta os modos de vida e os costumes que foram capazes de garantir a ordem doméstica e possibilitar que o imperium conquistasse e expandisse outros territórios até que, pelos vícios, a Res publica iniciou um processo de declínio que parece não permitir o acesso aos remédios necessários para evitar o fim; ou Cícero, que ainda argumentando sobre os percalços que tal instituição passava, a colocava ainda em uma idade jovem e que a solução seria possível caso os varões antecessores, respeitados e exemplares fossem novamente buscados, resguardados e seguidos. Discursos aparentemente contraditórios, mas que partem de um pressuposto próximo: a ênfase no resguardo e na continuidade deste sistema de governo. Se, por um lado, há a menção aos problemas de ordens civis e morais como graves, há também a menção ao bom funcionamento que Roma conseguiu obter e, mais ainda, a apresentação de possíveis soluções para o resguardo da Res publica situada na busca e na volta ao que os predecessores realizaram, instituíram e definiram. A ideia de crise não se tratava, desta forma, da instabilidade diretamente ligada ao fim da República e de todo o sistema de funcionamento que a amparava, mas de um fim que dizia sobre um início, ainda que baseado e salvaguardado pelos pressupostos antecessores. Dizia sobre uma crise que visava à manutenção e à criação do, que viria pouco mais à frente, na qualidade de governos autocráticos sucedidos por inter179 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. médio do título de princeps, como o de Augusto. Há que se lembrar que o período em que os discursos da crise sobre o qual nos debruçamos neste artigo se referem a finais do governo de Júlio César e ao governo de Augusto, quando o exército romano venceu muitas das guerras e conflitos empreendidos, que muitos feitos arquitetônicos foram realizados e que a poesia romana vivenciou um momento de vasta produção. E, ainda assim, os registros traziam muito mais o declínio moral e político do que a visão de glória. Isto tinha relação, pontua Woolf, com o fato de durante a República e ainda em parte do Principado, ser comum atribuir os sucessos obtidos por Roma às virtudes dos líderes que ali estavam e, em contrapartida, tudo aquilo tido como equivalente ao fracasso era atribuído aos vícios e erros cometidos, desta vez, não pelos líderes, mas pela sociedade de forma geral: [...] o resultado disso foi uma retórica moralizante que tingiu tudo o que sobreviveu em termos de discursos, histórias, biografias e inúmeras outras manifestações literárias [...]. Uma rica tradição de veemência no discurso preservou muito mais acusações ao vício que celebração à virtude. A tradição persistiu no período imperial. Salústio, ao escrever nos anos 40 a.C., recordou o antigo hábito de tomar exemplos de homens virtuosos como modelos para a própria conduta (WOOLF, 2017, p. 157-158). Estas características atuaram e proporcionaram, sobretudo, a análise da história coletiva do povo romano, já que muito difundida foi a ideia de que a prosperidade da urbs seria proveniente de governos adequados, bem como de boas relações entre os seres humanos com os deuses, e dos comportamentos morais apropriados. Já em momentos nos quais crises eram sentidas, percebidas e representadas, os antigos realizavam esforços em compreendê-las como indícios de colapsos em todas estas relações (WOOLF, 2017, p. 158). De acordo com Andrew Wallace-Hadrill, podemos perceber nas poesias, nas narrativas de historiadores e nas de diversos outros escritores provenientes de finais da República, contemporâneos e, também, posteriores a Augusto, que “[...] a principal, na verdade a única, teoria romana acerca da queda da República é, em nossos termos, uma questão cultural: a corrupção dos costumes” (WALLACE-HADRILL, 1997, p. 9). Para os romanos do período cesariano e augustano, os mores maiorum diziam respeito à própria natureza e não à cultura; estavam mais ligados a algo intrínseco a eles e, inclusive, estático7. 7 Podemos perceber tal característica nos escritos de Cícero, no momento em que o autor expõe que as leis deveriam ser imutáveis, incontestáveis e cumpridas pelo povo e pelo Senado: “A razão reta, conforme à natureza, gravada em todos os corações, imutável, eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem, afasta do mal que proíbe e, ora com seus mandos, ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmente aos bons, nem fica impotente ante os maus. Essa lei não pode ser contestada, nem derrogada em parte, nem anulada; não podemos ser isentos de seu cumprimento pelo povo nem pelo Senado; não há que procurar para ela outro comentador nem intérprete; não é uma lei em Roma e outra em Atenas, uma antes e outra depois, mas uma, sem piterna e imutável, entre todos os povos e em todos os tempos” (Cic. Rep. 3. 17. 1-14). 180 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Se levarmos em consideração que estes costumes são elementos constituintes da própria cultura, logo podemos perceber que estão sujeitos a mudanças em qualquer sociedade e em qualquer recorte espaço-temporal (WALLACE-HADRILL, 1997, p. 9). O fato de ter-se dito sobre a necessidade de uma busca por imutabilidade das leis e dos costumes já demonstrava que tais códigos e pressupostos recebiam, sofriam e, de forma indireta e também ativa, se desenrolavam em contingências, alterações, rupturas, continuidades e mudanças. Estas mutações sentidas estavam ligadas, também, aos desgastes proporcionados por anos seguidos de guerras civis e disputas de poder que datavam desde os inícios da República, como vimos anteriormente. Em seu artigo Paixão e Desejo na Sociedade Romana: Interpretações Historiográficas, Lourdes Conde Feitosa realiza um balanço das visões da historiografia moderna acerca da documentação de Pompéia e Herculano e, através das considerações realizadas pela autora, podemos perceber que por muitos anos as teses de alguns autores compravam e reproduziam os discursos presentes na documentação escrita. As ideias vinculadas à expansão do Império, ao aumento do luxo e do fluxo de bens conquistados, bem como a influência da cultura helenística e a denominada liberação feminina estariam entre as causas da desmoralização dos costumes romanos do final da República e início do Império (FEITOSA, 2008, p. 86); comumente difundidas ideias que, de acordo com Feitosa, foram muito propagadas por autores como Quignard (1994, p. 21); Gálan (1996, p. 74); Robert (1994, p. 39); Tannahill (1994, p. 102) e Kiefer (2000, p. 86) (FEITOSA, 2008, p. 86). Ainda de acordo com esta autora: N os aspectos gerais, essas teses apoiam-se em uma concepção weberiana da sociedade romana, segundo a qual os comportamentos são definidos e avaliados a partir de uma norma considerada válida para todos os indivíduos da sociedade [...]. Tais nortes teóricos justificam o uso de expressões como “ato sexual normal”, “decadência moral”, “permissividade”, “imoralidade”. Fundamentados em tais princípios, esses autores reputam que o fim dessa “degradação” e a correção e a moralização dos costumes sexuais romanos teriam ocorrido com a influência do estoicismo e, posteriormente, com o cristianismo (Gálan, 1994, p. 261; Robert, 1994, p. 288; Tannahil, 1994, p. 147; Kiefer, 2000, p. 380). (FEITOSA, 2008, p. 86-87). Conforme Semíramis Silva, esta visão da corrupção dos valores e da moral dos ancestrais correspondente aos defeitos da sociedade perpassou as narrativas de muitos poetas da Roma augustana: “Isso mostra que os homens das ordens mais altas, como Horácio e Virgílio, identificavam uma crise nos costumes dos romanos, que eles acreditavam ter como fator as conquistas e a introdução de novos hábitos, sendo que como romanos eles não ficaram indiferentes disso” (SILVA, 2010, p. 16). Por isso a nossa escolha e o nosso cuidado em lidar, ler, analisar e tecer considerações sobre este sentimento de crise afinado aos discursos e representações construídos por intermédio dos documentos escritos. Perante as constatações realizadas pelos antigos acerca da crise vivenciada e 181 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. sentida, houve, para além da confirmação do declínio da Res publica, sua valorização e busca por sua continuidade, bem como a atribuição de tais acontecimentos aos desusos dos valores morais ancestrais em sintonia com as intensas escritas de valorização e de demonstração da importância de elementos que poderiam atuar nessa retomada, como Cícero expõe a necessidade de se elencar tais elementos na finalidade da busca por uma prevenção e, também, uma solução: [...] cujas mudanças devemos estudar desde o começo; porque o que é mais essencial na política, sobre a qual versa nossa exposição, é conhecer a marcha e as alterações dos estados, a fim de que, sabendo para que escolhos cada governo se dirige, se possam reter ou prevenir seus funestos resultados (Cic. Rep. 2. 25. 1-5). [ Como vimos anteriormente, a crise atribuída à República foi relatada em consonância com as intensas guerras civis, assassinatos, questões agrárias e de cidadania restrita até meados do século I a.C. Os relatos trazidos por autores contemporâneos e posteriores aos anos finais desta forma de governo, com a Ditadura de Júlio César, tratam a crise vinculada, sobretudo, aos aspectos morais, como pontua, mais uma vez, Cícero, ao afirmar que o declínio dos mores influenciou diretamente nas falhas de funcionamento do Senado e, sucessivamente, na sociedade: “Nessas condições, pois, manteve o Senado a República, naqueles tempos em que, num povo tão livre, pouco pelo povo e muito pelos costumes e pela autoridade do Senado, ela se regia” (Cic. Rep. 2. 32. 1-3), ou ainda, quando constrói um diálogo entre Cipião e Tuberão – na personagem deste último o político e orador romano exalta o funcionamento da República devido ao bom funcionamento por longo tempo devido aos costumes e às leis: “[...] por outro lado, não nos disseste de que modo essa República, que tanto elogias, pôde constituir-se e conservar-se, com que disciplina, com que costumes ou leis” (Cic. Rep. 2. 38. 7-9). O nascimento de pessoas pertencentes à aristocracia que exerceram fundamental importância na manutenção da Res publica, também se tornou tema-chave de análise para os que se propuseram a discorrer a respeito da crise republicana. Cícero alega: “quando as riquezas ou o nascimento, ou qualquer coisa parecida, fazem predominar na República alguns homens, embora pretendam chamar-se aristocratas, não passam de facciosos” (Cic. Rep. 3. 10. 4-6); ou seja, o nascimento de homens valorosos e capazes de manter a República e suas instituições era necessário C om efeito: sem nossas instituições antigas, sem nossas tradições veneradas, sem nossos singulares heróis, teria sido impossível aos mais ilustres cidadãos fundar e manter, durante tão longo tempo, o império de nossa República. Assim, antes da nossa época, vemos a força dos costumes elevar varões insignes, que por sua parte procuravam perpetuar as tradições dos seus antepassados. [...]. Que direi dos homens? Sua penúria arruinou os costumes; é esse um mal cuja explicação foge ao alcance da nossa inteligência, mas pelo qual somos 182 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. responsáveis como por um crime capital. Nossos vícios, e não outra causa, fizeram que, conservando o nome de República, a tenhamos já perdido por completo (Cic. Rep. 5. 1. 3-18). Os documentos que realizam alusão aos tempos primordiais da República, de diferentes formas, enfatizam a importância delegada aos mores dos antecessores, dos matrimônios e da condenação ao adultério, das constituições familiares em conveniência com os pressupostos políticos e de sucessões no e do poder. Percebemos tais aspectos ainda mais recorrentes e que diziam respeito, ainda que de forma indireta, à linhagem que estava vinculada a finais da República e grande parte do Principado, à gens Iulia8. Autores que escreveram no momento em que Júlio César e Augusto estiveram no poder, bem como aqueles que escreveram em momentos posteriores e a estes governantes se referiam e teciam análises, exaltações e críticas, constantemente dissertaram sobre a forma como a negligência às instituições do matrimônio e da família, tão caras a este mos maiorum, acarretavam em danos prejudiciais e, até mesmo, irreversíveis ao funcionamento das instituições políticas que ali visavam construir, se voltar e realizar inovações dentro da tradição. Tecendo sobre as falhas e sobre a ausência destes valores, ora percorreram sobre modelos ideais e propícios a estes costumes ancestrais, ora sobre a corrupção que os afligia, tornando-os contra-modelos, ou seja, aqueles que deveriam ser repensados e indesejáveis de aplicação. Podemos perceber isto quando Cícero enfatiza o que era considerado útil e necessário para a vida e o bom funcionamento das instituições e dos costumes; a saber, o matrimônio, os filhos considerados legítimos e o culto ao lar doméstico: Q uanto ao que se relaciona com a vida privada, nada há de mais útil e necessário à vida e aos costumes do que o matrimônio legal, os filhos legítimos, o culto do lar doméstico, para que todos tenham assegurado seu bem-estar pessoal no meio da felicidade comum. Em suma, não há felicidade sem uma boa constituição política; não há paz, não há felicidade possível, sem uma sábia e bem organizada República (Cic. Rep. 5. 1-6). E Horácio, poeta que vivenciou o início do governo sucessório de César, o de seu herdeiro Augusto, de forma bem parecida ao que Cícero expõe, ao destacar que o matrimônio e a família haviam sido corrompidos por aquela geração, enfatiza também a importância delegada a ambas instituições. Em sua obra Carmina, escreve: “Gerações em culpa fecunda primeiro poluíram as núpcias, a família, as casas; desta fonte correu a desgraça, que se espalhou pela pátria e pelo povo” (Hor. Carm. 3. 6. 8 A gens Iulia foi construída a partir do nomen da avó materna de Augusto e, sobretudo, a partir dos ancestrais mítico-religiosos, uma vez que se considerava que a gens Iulia pudesse ser descendente de Vênus por intermédio de Enéias e, por consequência, acreditava-se que ela era a transmissora de um gênio divino responsável pela proteção de Roma. A gens Iulia formava, de tal modo, parte indissolúvel da domus Augusta (HIDALGO DE LA VEGA, 2012, p. 23). 183 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. 17-20); ainda Propércio9, em suas Elegiae, ao cantar seu amor por sua amada Cíntia, não deixa de enfatizar os conselhos voltados para o furor e os perigos ocasionado pelo amor e a necessidade de se buscar por um que fosse controlado – e este amor dito controlado, sabemos, dizia sobre o matrimônio o qual, de acordo com o autor, não deveria ser encerrado. Nas palavras do poeta: V ós, aos quais um deus atende com um ouvido favorável, permanecei aqui estejais aos pares num amor controlado. Para mim, nossa Vênus inquieta as noites amargas e o Amor vazio em tempo algum me faz falta. Por isso, advirto, evitai o mal: que cada qual se habitue ao objeto de seu costumeiro amor e que não mude de lugar porque se alguém tiver escutado as advertências com os ouvidos vagarosos, ai! Com que grande dor recordará de minhas palavras (Prop. 1. 32-39). Se este sentimento de crise da República, percebido pelos antigos através da associação aos intensos conflitos internos e externos, às guerras civis e assassinatos, a defasagem da autoridade do Senado foi preponderante nos registros que refletiam sobre os anos republicanos condizentes aos séculos III a.C. até parte do I a.C., como vimos, no recorte espaço-temporal de finais do governo de Júlio César e o de Augusto mudou de configuração e passou a ser explicado por meio de uma crise dos valores morais dos antepassados assente nesta intensa menção ao casamento, ao adultério, às constituições familiares e aos cultos domésticos, como percebemos nas documentações aqui tratadas10. O que entendemos desta mudança de discurso acerca da crise antes pautada nas intensas guerras contra inimigos internos e externos e, a contar deste momento, a configuração voltada para a quebra dos valores morais, nos parece ter a ver, sobretudo, com a mudança do caráter e da justificativa sobre as guerras cada vez mais empreendidas. Devemos levar em consideração, como pontua Joseph Farrell, que o momento de produção das obras de autores inseridos no contexto de início do Principado de Augusto condiz com um período no qual houve um grande esforço e uma intensa propagação do término das guerras civis e da estabilidade11 alcançada 9 Poeta elegíaco romano que vivenciou finais do século I a.C. e início do I d.C. 10 Lembrando que os autores por nós selecionados para o presente trabalho escreveram no momento em que Júlio César e Augusto estiveram no poder, bem como também em momentos posteriores a estes governantes. E sobre estes governos realizavam menções, exaltações, críticas e análises sobre a mudança do sentimento de crise experienciado naquele período. No que se refere a este momento de fronteira, constantemente versaram sobre a forma como a negligência às instituições do matrimônio e da família, tão caras a estes mores maiorum, acarretavam em consequências prejudiciais e, até mesmo, irreversíveis ao funcionamento da Res publica, como referenciado anteriormente neste artigo. 11 Ao longo do período republicano a ênfase foi pautada nas guerras. Já no Império, o que foi enfatizado girou em torno da paz alcançada. De acordo com Hannah Cornwell: “Conceitos de valor político foram negociados, manipulados e redefinidos por indivíduos tentando controlar suas posições durante um período de instabilidade e incerteza. Dentro deste contexto, ideias de paz e, especificamente, o conceito de pax se politizaram: os significados e as aplicações de pax se tornaram um campo de batalha ideológico na luta pelo controle, e a paz se tornou um conceito politizado. Com isso em mente, podemos [...] examinar em detalhes como a pax adquiriu um papel central dentro do discurso imperial 184 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. por este governo. Porém, como pontua o autor, o Princeps continuou promovendo guerras contra os inimigos externos (FARRELL, 2005, p. 44) com a principal finalidade de anexação de outros territórios a Roma. Neste contexto, as guerras começaram a ser cada vez mais justificadas pelo combate à ameaça externa e pela garantia da estabilidade e da pax romana, e o florescimento destes discursos nos diferentes gêneros estilísticos prosperaram, assim como tais guerras, cada vez mais. Veléio Patérculo aponta que, uma vez instaurada a pax romana, o clima de paz e de estabilidade foi retomado, bem como a recuperação das antigas leis e costumes provenientes da Res publica: S e pôs fim às guerras civis depois de vinte anos, se deu fim às campanhas exteriores, retomou a paz; [...] se reestabeleceram as leis em seu antigo vigor. [...]. Aquela inveterada e antiga constituição do estado foi recuperada. Os campos voltaram a cultivar-se, [...], os homens se encontravam de novo seguros [...]. Os homens mais notáveis que recebiam triunfos e grandes honras custearam obras de magnificência para a cidade a instâncias a mando do príncipe (Vell. 2. 89. 3-7). Com isto, muitos historiadores e poetas que vivenciaram e atuaram neste contexto, e também em períodos posteriores, caracterizaram tal governo pela retomada do clima de paz e de estabilidade. Na historiografia ainda podemos encontrar, algumas vezes, certo exagero e reprodução deste ideal propagado sobre o governo de Augusto contido nas documentações, o que possui intenso vínculo com a forma como a historiografia analisa e tece comentários sobre a crise da República Romana, como vimos. Podemos perceber tais traços na obra de Pierre Grimal, quando o autor afirma que “o conjunto do Império permaneceu numa paz profunda e conheceu uma unidade sem precedentes” e que, dentro deste período, “a poesia, por fim, é a linguagem dos deuses; possui uma natureza sobre-humana; [...]. Era natural que o século de Augusto, que viveu a transformação da religião nacional fosse o grande século por excelência da poesia inspirada” (GRIMAL, 1997, p. 10-79). Diante do que viemos traçando ao longo deste artigo, percebemos a construção da crise da República romana e a mudança de caráter assumida na documentação de finais do século III a.C. até chegarem ao governo de Júlio César e de seu herdeiro e sucessor Augusto. Ao mesmo passo em que a César muitas documentações tenham atribuído os desvios e o distanciamento dos mores maiorum, como salienta Suetônio: “Marco Catão deixou dito ‘que César era o único, entre os demais, que tramava, sóbrio, a ruína da República’”, e que “com essa mesma falta de cerimônia e desprezo dos costumes da sua pátria, dispôs das magistraturas durante anos e anos” (Suet. Jul. 53. 2-3; 76. 25-27), tais documentações trazem o vínculo com este mesmo governo uma vez que, ao apontá-lo como solução para a crise, apresentam a necessidade de um sucessor vinculado a César: sobre o período de colapso da República, para se tornar um fator legitimador para Augusto e o eventual estabelecimento do Principado” (CORNWELL, 2017, p. 14); 185 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. D iante disso tudo, enfim, todos começaram a ficar estupefatos e iniciou-se um questionamento sobre até onde chegariam tais manobras, quando então o cônsul Marco Cláudio anunciou, em um édito, que iria se ocupar da salvação da República, uma vez que propusera ao Senado dar, antes mesmo do tempo, um sucessor a César, alegando que a guerra cedera lugar à paz e que, assim sendo, devia ser licenciado o exército vitorioso (Suet. Jul. 26. 8-15). Por estes motivos expostos e desenvolvidos até aqui, compreendemos a crise difundida pelas documentações as quais temos acesso, sem desconsiderar os sentimentos, conflitos e desgastes por essa sociedade vivenciados, como construções discursivas. Compreendemos que os discursos constituem e são constituídos através de um uso restritivo do sistema linguístico, quer dizer, ao serem concebidos por meio da inserção de determinado texto em seu contexto de produção (ADAM, 2008, p. 39), passam a estar submetidos às regras e normas em vigor em dada comunidade ou sociedade (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2016, p. 171), sejam de aspectos mais amplos como os sociais, políticos, culturais, econômicos que perpassam por estruturas mais específicas, como os gêneros estilísticos sobre os quais as diferentes obras são construídas. Estes discursos, construídos em tempos, espaços, por autores, indivíduos e sob a égide de normas e regras específicas de uma dada tradição, não estão isentos dos diversos intertextos e interdiscursos anteriores e, também, presentes em seus próprios momentos de produção, visam chegar a um fim. E, ainda que eles não possam intervir diretamente em um contexto, sobre eles dizem e podem almejar e estabelecer modificações durante o percurso de enunciação (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2016, p. 170). Por fim, gostaríamos de salientar que através desta relação entre texto e contexto, percebemos como as narrativas que versaram sobre os momentos finais da República e sobre o governo de Augusto que pautavam a vulnerabilidade, as mudanças e o enfraquecimento de instituições tão caras aos mores maiorum, como o casamento, os filhos considerados legítimos que constituíam fatores basilares para esta moral, significavam não somente a estrutura nuclear, mas também poder e sucessão; significavam, sobretudo, discursos construídos e propagados. Se ao final da República diziam sobre este enfraquecimento moral e corruptor, no Principado de Augusto nomearam mais especificamente quais eram estes males, bem como as soluções constantemente apontadas para tais questões. Não à toa os títulos recebidos pelo Princeps diziam, também, sobre a busca pela autoridade e sobre a resolução de todos estes problemas apontados pelas documentações, bem como pela retomada da República sob outros vieses e moldes. Isto nos faz perceber tais narrativas em consonância aos discursos que, ainda no seio de instituições republicanas, já diziam e justificavam a sucessão de uma determinada família, tida como exemplar. São discursos que, ora pelo apontamento da crise, ora pelo engrandecimento da República e de suas instituições, se encontravam e dissertavam sobre temas muito próximos e de mensagens propagadas com significantes convergentes. 186 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Li s tas d e Ab r evi at u r a s : Cic. Rep. – De Republica (Título em português: Cícero, Da República). Hor. Carm. – Carmina (Título em português: Horácio, Ode). Liv. – Ab Vrbe Condita (Título em português: Tito Lívio, Historia de Roma). Plb. – Historiae (Título em português: Políbio, Histórias). Plu. Pomp. – Vitae Parallelae, Pompeius (Título em português: Plutarco, Vidas Paralelas, Pompeu). Prop. – Elegiae (Título em português: Propércio,. Elegias). Sal. Jug. – Iugurtha (Título em português: Salústio, Guerra de Jugurta). Suet. Jul. – Iulius (Título em português: Suetônio. A Vida dos Doze Césares, Divo Júlio). Tac. Ann. – Annales (Título em português: Tácito, Anais). Vell. (Título em português: Veléio Patérculo, História Romana). Font e s CICERO. The Republic and the Laws. Trad. Niall Rudd. Nova York: Oxford University Press, 2008. HORÁCIO. Odes. Trad. Pedro Braga Falcão. Lisboa: Livros Cotovia, 2008. PLUTARCH. ‘The Life of Julius Caesar’. In: PLUTARCH. The Parallel Lives. Bernadotte Perrin. London: William Heinemann, 1919. (The Loeb Classical Library) POLYBIUS. History. Trad. W. R. Paton. Harvard: University Press, 1927. (The Loeb Classical Library). PROPERTIUS. Elegies. Trad. G. P. Gold. Harvard: University Press, 1990. (The Loeb Classical Library). SALLUSTE. Catilina. Jugurtha. Fragments des Histoires, texte établi et traduit par Alfred Ernout. Paris: Les Belles Lettres, 1947. SUETONIUS. ‘Life of Julius Caesar’ In: SUETONIUS. Lives of Famous Men. Trad. J. C. Rolfe. London: William Heinemann, 1914. (The Loeb Classical Library). TACITUS. The Annals. Trad. J. Jackson. Harvand: University Press, 1925. (The Loeb Classical Library). TITO LIVIO. Storia di Roma. Dalla sua Fondazione. Volume Primo (Libri I-II). Trad. Mario Scàndola. Milano: Bur Rizzoli, 2010. VELLEIUS PATERCULUS. Roman History. Trad. Frederick W. Shipley. Harvard: University Press, 1966. (The Loeb Classical Library). 187 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Ref e r ên c ias Bib l i o g r á f i ca s ADAM, Jean-Michel. La linguistique textuelle. Introduction à l’analyse textuelle des discours. Paris: A. Colin, 2008. BEARD, M. SPQR: Uma História da Roma Antiga. Trad. Luis Reyes Gil. São Paulo: Planeta, 2017. CARDOSO, C. F. O uso, em história, da noção de representações sociais desenvolvida na psicologia social: um recurso metodológico possível. Psicologia e Saber Social, Rio de Janeiro, v. 1, nº 1, p. 40-52, 2012. CARPENTIER, J.; LEBRUN, F.. História do Mediterrâneo. Lisboa: Editorial Estampa, 2010. CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Editora Contexto, 2016. CHARTIER, R.. História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 2002. CORNWELL, H. Pax and the Politics of Peace: Republic to Principate. Oxford: Oxford University Press, 2017. FARRELL, J. The Augustan Period: 40 bc-ad 14. In: HARRISON, Stephen (ed.). A Companion to Latin Literature. London: Blackwell, 2005, p. 44-54. FAVERSANI, F. Entre a República e o Império: Apontamentos sobre a amplitude desta fronteira. In: Mare Nostrum: Estudos sobre o Mediterrâneo Antigo, nº 4, São Paulo, 2013. FEITOSA, L.M.G.C. Paixão e Desejo na Sociedade Romana: Interpretações Historiográficas. In: FUNARI, Pedro Paulo; SILVA, Glaydson José da; MARTINS, A. L. (orgs.). História Antiga: contribuições brasileiras. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2008, p. 79-92. GRIMAL, P. O Século de Augusto. Lisboa: Edições 70, 1997. HIDALGO DE LA VEGA, M. J. Las Emperatrices Romanas: Sueños de púrpura y poder oculto. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2012. MAINGUENEAU, D. Novas Tendências em Análise do Discurso. Campinas: Pontes, 1997. SILVA, S. C. O Principado Romano sob o Governo de Otávio Augusto e a Política de Conservação dos Costumes. In: Crítica & Debates, v.1, n.1, p. 1-17, jul/dez, 2010. UNGERN-STERNBERG, J.V.. The Crisis of the Republic. In: FLOWER, Harriet I. The Cambridge Companion to the Roman Republic. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. p. 78-100. WALLACE-HADRILL, A.. Mutatio morum: the idea of a cultural revolution. In: HABINEK, T.; SCHIESARO, Al.. The Roman Cultural Revolution. Cambridge: Cambridge University Press, 1997, p. 3-21. WOOLF, G. Roma: A História de um Império. Trad. Mário Molina. São Paulo: Editora Cultrix, 2017. Recebido em 16/9/2019 e aceito em 30/9/2019. 188 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Sobre o papel do medo na administração da UILLA: uma análise dos tratados agrícolas de Catão, Varrão e Columela Fabiana Martins Nascimento Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Hist. Comparada (PPGH-UFRJ) Bolsista CAPES fabianamnm@gmail.com Orientador: Prof. Dr. Deivid Valério Gaia (UFRJ) Res u mo O medo era uma emoção que os romanos não deixaram explícita em seus escritos, salvo em raras exceções. Identificar tal emoção e os motivos para seu silenciamento constitui um desafio necessário para compreender a comunidade emocional que se estabelecia entre os membros das classes dirigentes. O objetivo deste artigo é analisar o medo nos tratados agrícolas escritos por Catão, Varrão e Columela (produzidos no intervalo entre os séculos II a.C. e I d.C) e sua relação com a dinâmica administrativa da uilla. Pa lav r as - chav e Catão; Varrão; Columela; Medo; Comunidades emocionais; Abs t rac t Fear was an emotion that the Romans didn’t made explict in their writings, only in some particular occasions. Identify this emotions and the reasons for their silencing is a necessary challenge for understanding the emotional communities that was established among the members of the Roman elite. The aim of this paper is to analyse the traces of this emotion in the agricultural treaties written by Cato, Varro e Columella (written in the interval between the II BC e I AC centuries) and the relation between fear and the administrative dynamics of the uilla. Key- w or ds Cato; Varro; Columella; Fear; Emotional Communites; 189 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Int ro d u ç ão De modo geral os romanos não deixaram muitos relatos a respeito de suas emoções, ou daquilo que hoje entendemos como emoções. A maioria dos relatos a respeito de rompantes de raiva ou de situações de prazer e felicidade está contida em tratados filosóficos que tem por objetivo ensinar seus leitores a controlar certas emoções que poderiam ser prejudiciais àqueles que as performatizavam. A raiva, mais que o medo, pode ser encontrada com maior frequência na literatura latina. Usualmente sua ocorrência concerne à relação entre senhores e escravos, para demonstrar que a violência deveria ser evitada pelos senhores pois poderia corrompê-los. Já o medo pode ser encontrado de forma explícita quando os latinos se referem às guerras, no entanto, em relatos a respeito de situações cotidianas usualmente é enunciado de forma implícita. Nosso objetivo no presente artigo é discutir a respeito do medo no contexto da uilla a partir da análise dos tratados agrícolas escritos por Catão, Varrão e Columela1. Por constituírem textos de caráter técnico os tratados podem parecer incompatíveis ao estudo de uma emoção. É interessante observar, contudo, que o medo constitui uma emoção com certa particularidade. Isto porque temer algo ou alguém é um importante determinante na vida humana, que acaba por moldar certas atitudes dos sujeitos. Sendo assim, o medo pode estar mais presente nos textos do que pode ser perceptível à primeira vista, sobretudo se considerarmos que a sociedade romana vivia as tensões relativas ao uso em massa da mão de obra escrava. Ainda que Catão, Varrão e Columela estivessem preocupados em abordar aquilo que seria necessário para o bom funcionamento da propriedade agrícola, o medo está presente em suas prescrições, de forma implícita e explícita. É essa a ideia que defenderemos ao longo do presente texto. Estudaremos o medo a partir da ideia desenvolvida por Bárbara Rosenwien de comunidades emocionais. O conceito proposto pela autora pode ser entendido no mesmo sentido que o conceito de discurso proposto Michel Foucault, isto é, formas de comunicação compartilhadas e modos de pensar que tem a função de controlar e disciplinar os indivíduos que compõem o grupo em questão. Além disso, guarda ainda similaridades com o conceito de habitus propostos por Pierre Bourdieu na medida em que a comunidade emocional forma um conjunto de normas que são internalizadas e que determinam a forma como os indivíduos pensam e agem, dependendo do grupo em que pertencem. Portanto, a comunidade emocional é, ao mesmo tempo, determinante e determinada. Rosenwien salienta que dentro de uma comunidade emocional não existem apenas um ou duas emoções, mas sim um grupo, sendo algumas das emoções enfatizadas e outras negligenciadas. A dinâmica que se estabelece dentro de uma comunidade emocional é complexa e está sujeita a constantes mudanças. Não se trata apenas de eleger emoções positivas ou negativas, mas sim de compreender de que forma as emoções são mobilizadas pelo grupo estudado 1 Trabalhamos com a edição bilíngue da Loeb Classic Library, a melhor edição crítica de textos greco-romanos publicados em língua inglesa. 190 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. (ROSENWIEN, 2006, p. 25). Adotaremos ainda alguns pontos da metodologia proposta por Rosenwien para o estudo das emoções, a leitura dos silêncios e a análise do papel social da emoção estudada. A autora salienta que “ler os silêncios” é importante porque “algumas fontes não são nada emocionais em tom e conteúdo. Elas são tão importantes quantos os textos declaradamente emocionais. Comunidades emocionais normalmente evitam algumas emoções, ao mesmo tempo em que ressaltam outras. Ou então elas evitam algumas emoções em contextos específicos” (ROSENWIEN, 2011, p. 32). Esse é um ponto importante para a análise desenvolvida visto que no tratado de Varrão, o medo está implícito e não é enunciado em nenhuma parte do documento. A enunciação do medo nos tratados pode ter sido evitada por uma série de motivos, em virtude do objetivo da obra, dos papéis exercidos por seus autores na sociedade, etc. No entanto, é interessante observar que no caso da obra de Catão e Columela o medo é enunciado em determinadas situações. Trabalhamos, portanto, tanto com o silêncio quanto com a enunciação. Analisaremos também o papel social da emoção estudada, conforme orienta a autora. Essa discussão, que nos debruçaremos na segunda seção do texto, diz respeito aos valores e as questões morais da elite romana e sua relação com a emoção estudada, isto é, o medo. Além disso, Rosenwien aponta ainda a necessidade de analisar as emoções ao longo do tempo, exercício que também nos propomos nesta análise. Considerando que nosso recorte temporal se estende desde o século II a.C. até o século I d.C. é de fundamental importância que levemos em conta as transformações que a sociedade romana sofreu ao longo desse período e suas influências na comunidade emocional estudada. Como pontua a autora, as “comunidades emocionais dominantes podem elas mesmas mudar, ou perderem valor e se tornarem marginais” (ROSENWIEN, 2011, 44-45). Entendamos, portanto, em primeiro lugar o papel do medo na comunidade emocional a que pertenciam os autores dos documentos estudados para em seguida analisá-lo no contexto da administração da uilla. Vi rt u s ve r s u s me d o Considerando que os autores dos tratados agrícolas estudados eram todos membros das classes dirigentes de Roma, a comunidade emocional que nos referimos, portanto, diz respeito a esse grupo de indivíduos. De modo a estudar o papel do medo nessa comunidade emocional é necessário que estabeleçamos um ponto que guie a análise uma vez que tal emoção por si só não é abordada de forma sistemática pelos autores. Sendo assim, o caminho que escolhemos percorrer para analisar o medo é a partir da discussão de seu oposto, a coragem, ou como chamavam os romanos, a virtus2. A partir da compreensão a respeito do lugar da coragem na mentali2 Ênio, poeta épico do período, em uma passagem de sua obra Annales, opõe virtus a metus (medo) conforme aponta McDonnell em MCDONNELL, M. Roman Manliness Virtus And The Roman Republic. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 61. 191 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. dade dos sujeitos podemos determinar o lugar do medo e a forma como ele poderia ser mobilizado. A virtus constituía uma virtude romana que caracterizava o comportamento ideal do homem, é assim que Myles McDonnnell define o conceito de forma geral em seu estudo sobre a masculinidade e a virtus romana (MCDONNELL, 2006, p. 2). O autor afirma que a virtus se modificou ao longo do tempo, ao contrário do que a historiografia costuma afirmar. Durante o período republicano, anterior a Cícero, a virtus era compreendida como sinônimo de coragem. Catão, autor de um dos documentos estudados no presente texto, na obra Origines utiliza a palavra virtus dez vezes, sempre tratando de questões relacionadas à guerra e denotando virtus aos homens que venceram batalhas e protagonizaram atos de bravura (MCDONNELL, 2006, p. 51). O medo, o oposto da coragem, indica a submissão a algo ou a alguém, uma vez que temer algo significa atribuir poder ao outro. No caso da elite romana o medo, ou a performance do medo, se tornava uma emoção incompatível com a virtus e também com suas funções sociais, sobretudo a atividade militar, estando a virtus e o desempenho nas guerras diretamente associados. A desenvoltura no campo de batalha era uma obrigação do sujeito que ocupava as altas fileiras da sociedade romana. Catão, notadamente um figura conservadora e guardiã dos princípios do mos maiorum, isto é, dos valores que compunham a tradição romana, prezava tal desenvoltura – e, ele mesmo, serviu de forma exemplar na Hispania. A conotação “marcial” da virtus em Catão não se limita apenas a situações militares, ganhando sentido diferente em outros documentos. Em um de seus discursos, Catão atribui a virtus o sentido de virtude, em oposição ao vício (MCDONNELL, 2006, p. 55). No De Agri Cultura o autor atribui a terra um fonte de virtus, neste caso entendendo o conceito como glória. McDonnnell defende que Catão advogava um novo modo de exploração da terra e que para tanto era necessário que justificasse sua proposta de mudança e que a alinhasse aos valores da elite romana. Por essa razão associa a agricultura aos valores dos antepassados, bem como associa a virtus a glória e as duas ao lucro – ponto principal de sua nova forma de cultivo intensivo. No entanto, ainda que atribuísse outros significados não marciais a virtus, todos eles estavam, em essência, relacionados à ação militar. É importante ressaltar que Catão afirma que o trabalho na terra fazia dos homens bons soldados. Sendo assim, ao fim e ao cabo, a virtus estava relacionada à guerra e a coragem (MCDONNELL, 2006, p. 57-58). Marcado por diversos conflitos armados, incluindo duas guerras civis, o período de escrita do De Re Rustica de Varrão, datado do final do século I a.C., manteve o sentido de coragem marcial da virtus. Políbio, que escreveu importantes documentos sobre as questões militares do período, associa a virtus àqueles que de forma voluntária e consciente se colocavam em situações de perigo (MCDONNELL, 2006, p. 68). A mentalidade da sociedade romana se voltava, portanto, para questões relacionadas à guerra, mas não apenas isso, a um modo honrado de lutar a guerra. Tal modo se constituía na disposição voluntária de se arriscar, exigindo, portanto, coragem e senão ausência do medo, supressão do mesmo. Tal mentalidade se estendia a todos os homens, no entanto, trazendo a luz o grupo social estudado é preciso apontar que os membros das classes dirigentes serviam de guias aos milhares de 192 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. soldados e a responsabilidade da derrota e/ou os louros da vitória, ainda que divididos entre todos, significavam prestígio social e politico para aqueles que detinham o poder. Logo, aos generais e comandantes cabia o peso de ditar e seguir o comportamento considerado exemplar e corajoso. A virtus no período republicano pode ser compreendida como um amplo conceito, mas que estava, sobretudo, relacionado à coragem marcial. McDonnell aponta que a virtus incluída dois tipos de coragem, uma ofensiva e outra defensiva. Ofensiva no sentido dos generais, comandantes, centuriões e soldados terem coragem e agressividade suficiente para lutarem contra o inimigo e ganhar a guerra e defensiva para, em caso de derrota, ter coragem para resistir aos ataques e a tortura. O autor sintetiza afirmando que a coragem agressiva é a essência da virtus (MCDONNELL, 2006, p. 71). Portanto, havia pouco ou nenhum espaço nessa comunidade emocional, durante a República, para a enunciação do medo3. No século I d.C., período de composição do De Re Rustica de Columela, os romanos experimentavam um novo sistema político. De acordo com Catalina Balmaceda, ainda que o poder se concentrasse nas mãos dos mesmos agentes sociais, os membros das classes dirigentes resignificaram seus valores justamente para preservar seus status na sociedade frente às mudanças políticas que ocorreram e por essa razão a virtus se tornou um ponto fundamental em seus escritos (BALMACEDA, 2017, p. 158). O principado não modificou o sentido da virtus, isto é, o de coragem, mas se no período republicano a coragem estava relacionada à coragem marcial e os generais constituíam os grandes representantes da virtus conquistando vitórias, riqueza material e prestígio politico, no principado a figura do imperador mudou a dinâmica. A competição para ser aquele que mais possuía virtus tinha agora um grande concorrente, o Princeps, figura que naturalmente possuía todos os atributos necessários ao homem romano, inclusive a virtus. Além disso, se no período republicano aquele que buscava a defesa da liberdade civil era considerado como um exemplo de indivíduo provido de virtus, tal realidade se modificara no principado uma vez que esse exercício não era mais reconhecido e nem recompensado (BALMACEDA, 2017, p. 159). A prática da virtus em Tácito, por exemplo, autor contemporâneo a Columela, demonstra que ela variou de acordo com as mudanças na sociedade romana. Balmaceda afirma que, durante o principado, a partir da análise da obra Annales de Tácito, é possível perceber que em alguns casos a constantia e a moderatio substituem o que antes seria a virtus – a constantia se opunha ao metus e a moderato se opunha ao adulatio (BALMACEDA, 2017, p. 172). Se no período republicano a virtus possuía um caráter de ataque demonstrado a partir da bravura em defesa da libertas, no princi3 Cabe destacar ainda que a virtus também estava relacionada às virtudes canônicas da sociedade romana, são elas: prudentia, iustia, temperantia e fortitudo, respectivamente, prudência, justiça, autocontrole e coragem. Essas quatro virtudes eram consideradas como aspectos da virtus. Isto é, a virtus acabava por aglutinar outras virtudes, logo, atribui-la a um indivíduo não significava necessariamente atribuir apenas coragem, mas também prudência, justiça e autocontrole. Essa aglutinação de outras virtudes no conceito de virtus pode ser encontrada nos discursos de Cícero. Tal ideia torna a virtus um valor político, visto que estaria relacionada à excelência individual dos sujeitos, conforme afirma McDonnell em MCDONNELL, M. Roman Manliness Virtus And The Roman Republic. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 14. 193 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. pado a virtus se caracterizava pela resistência, demonstrada a partir de bravamente se posicionar contra o mal através da constantia e moderatio (BALMACEDA, 2017, p. 222). A coragem já não era só demonstrada a partir de grandes feitos nas campanhas militares e a coragem marcial já não constituía uma característica fundamental para que determinado sujeito da elite romana conquistasse prestígio político e social. A virtus adquirira, portanto, uma nova face, a coragem não seria mais medida em combate ou num jogo de forças literal, mas sim figurado. O homem que fosse dotado de grande virtus seria aquele que resistiria aos vícios e ao mal. Para tanto, era necessário que possuísse autocontrole, paciência e resistência. A partir de então era necessário constantia, isto é, firmeza e moderatio, isto é, moderação. Ainda que o conceito de virtus tenha ganhado uma nova face no principado, ainda assim o medo continuava a figurar como uma emoção que se opunha a tal valor, sendo, portanto, negativa. No entanto, a mudanças de algumas características relativas à virtus, como seu afastamento do caráter marcial, pode ter significado mudanças em relação à enunciação do medo, tornando-o mais flexível a partir de então. A importância da virtus na mentalidade romana demonstra como a coragem, sobretudo a coragem marcial, constituía um importante valor para a elite romana. Além da questão relacionada à vitória e a glória militar, a virtus constituía uma espécie de virtude aglutinadora. Logo, aquele dotado de virtus era também dotado de outras virtudes. Nathan Rosenstein em seu estudo a respeito do ethos da aristocracia romana afirma que a virtus servia para qualificar um homem como capaz de governar e beneficiar o estado, a inferioridade moral constituía motivo de censura e até expulsão do senado (ROSENSTEIN, 1990, p. 152). Vale salientar que Catão foi censor e durante sua censura muitos senadores foram punidos por conduta imprópria (KNUST, 2011, p. 88 - 89). É preciso destacar, no entanto, que ainda que a virtus constituísse um valor importante para sociedade de forma geral, ela estava relacionada de forma direta aos homens e, sobretudo, aqueles que possuíam vida política, isto é, aqueles que comandavam a guerra e os assuntos públicos, como explica o autor (ROSENSTEIN, 1990, p. 175). Podemos concluir, portanto, após essa breve discussão a respeito da virtus – coragem – que seu oposto é o medo – metus. Seja o medo no sentido literal, isto é, o medo da morte ou do dano físico, seja o medo enquanto fraqueza moral, isto é, o medo enquanto aquilo que fazia com que os sujeitos canalizassem sua energia para os vícios e não para as virtudes. Independente do que temiam, essa emoção parece ter sido evitada nos escritos romanos e só ganhava espaço, como já apontado, em tratados a respeito de questões filosóficas e morais. Nestes casos, os autores aconselhavam a respeito das condutas e emoções que os homens deveriam evitar e quais deveriam exercitar para que sua existência não se voltasse aos vícios e comprometesse suas obrigações sociais e politicas. Esta seção objetivou demonstrar como a virtus possuía um papel fundamental na mentalidade romana, sobretudo na comunidade emocional estudada, isto é, de homens pertencentes às classes dirigentes de Roma. A consequência de tal dinâmica seria, portanto, a rejeição de emoções que se opunham a coragem, como o medo e também a raiva, por exemplo, visto que uma 194 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. das principais virtudes romanas era a temperantia, isto é, o autocontrole. Nas páginas que se seguem analisaremos os tratados agrícolas de modo a analisar de que forma o medo aparece nos tratados – seu silêncio e enunciação – e sua importância na dinâmica da uilla. O med o n o s t r ata d o s ag r í co l a s d e C atão , Va r r ão e C o lu me l a No De Agri Cultura de Catão a palavra medo aparece duas vezes, uma para se referir a doença que poderia afligir os bois (Cat., Agr., 70.1) e a outra para se referir a uilica (Cat., Agr., 143.1), é essa ocorrência que analisaremos no presente texto. Por outro lado, a palavra virtus aparece em algumas passagens com conotações interessantes. Como apontou McDonnell, Catão afirma, por exemplo, que a terra é uma fonte de riqueza, virtus e glória (Cat., Agr., 3.2). A virtus, de acordo com o historiador, é empregada com o sentido de glória e lucro (MCDONNELL, 2006, p. 58). O motivo de tal associação, prossegue, estaria relacionado ao esforço de Catão em instituir entre seus pares, os membros das classes dirigentes de Roma, uma nova forma de exploração da propriedade fundiária, uma exploração mais intensiva e voltada para a venda dos produtos no mercado. Para tanto, seria preciso torná-la aceitável aos senadores e equestres e a melhor maneira de conseguir atingir esse objetivo seria a partir da associação dessa nova forma de exploração agrícola a uma virtude tradicional (MCDONNELL, 2006, p. 57). O argumento de McDonnell é interessante e concordamos com o autor que é preciso levar em consideração essa nova forma de exploração da terra proposta por Catão para que compreendamos as características do De Agri Cultura. A preocupação principal de Catão é explicitada no proêmio da obra, que constitui a defesa da agricultura como a atividade correta aos membros das classes dirigentes de Roma. O autor do De Agri Cultura afirma que enquanto o comércio era ariscado, a usura era desonesta. Legitimando-se no passado místico em que os grandes homens de Roma ainda habitavam os campos e a usura era punida com maior rigor que o roubo, Catão desenha o perfil do “romano ideal”, ou o “homem bom”. O homem bom era um bom fazendeiro e um agricultor, isto é, além de saber administrar a propriedade, sabia, ele mesmo, cultivar a terra. Ainda que considere o comerciante um homem diligente, e por essa razão digno de respeito, o agricultor não precisava conviver com o risco e o perigo dos negócios. Além disso, a prática agrícola se associava a atividade militar, aqueles que estavam engajados no trabalho da terra teriam sua moral moldada, sendo, por essa razão, mais corajosos (Cat., Agr., Pr., 4). Catão buscou direcionar sua obra para uma compilação mais direta sobre a agricultura, não discorrendo em detalhes, por exemplo, questões relativas à gestão da mão de obra, que poderiam apresentar situações com certa carga emocional. Além disso, como aponta René Martín, a administração proposta por Catão é extremamente racional, prática e não se incomoda com sentimentos (MARTÍN, 1971, 195 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. p. 90). Acrescenta-se a isso seu esforço em demonstrar que a agricultura a partir desse novo modo de exploração da terra que propunha era a atividade ideal e segura para os membros das classes dirigentes romanas se ocuparem, o que significa, a nosso ver, deixar de fora os grandes riscos e problemas que os proprietários poderiam enfrentar. Se quisermos levar ao limite a relação estreita de Catão com os valores romanos e, levando em consideração a associação entre a prática agrícola e a coragem, podemos apontar que, para o autor, agricultura e medo não combinavam. É preciso salientar ainda que o século II a.C. foi um período de prosperidade para a sociedade romana de forma geral e, sobretudo, é claro, para os membros das classes dirigentes, com abundância de terras, espólios de guerra e escravos, não tendo Catão muito o que temer. Um século mais tarde o cenário seria completamente diferente e Varrão faria questão de explicitar seu temor sobre um determinado ponto, ainda que de forma implícita. Como explicar, portanto, a ocorrência da palavra medo no capítulo 143 para se referir à esposa do uilicus? Para compreender essa enunciação do medo é preciso que analisemos os sujeitos envolvidos e a forma como a emoção é mobilizada. No capítulo 143, no qual o autor discorre a respeito das obrigações da uilica, lemos a orientação “Cuida de que a esposa do administrador faça suas obrigações. Se o senhor a der a ti como esposa, contenta-te com ela. Faze com que te tema.”4 – (Cat., Agr., 143. 1). A princípio é difícil definir se Catão orienta que a uilica tema o proprietário ou o uilicus, mas considerando que a segunda frase se dirige ao uilicus concluímos que a orientação se refere a ele. Isto é, o autor orienta que o proprietário ordenasse ao uilicus que estabelecesse uma dinâmica de submissão em relação a sua esposa. Essa enunciação explícita do medo no De Agri Cultura não está em desacordo com as ideias apresentadas acima. Se analisarmos os sujeitos envolvidos temos o uilicus – o escravo administrador da propriedade na ausência do dono – e a uilica – sua esposa e escrava responsável pelas atividades da casa. A preocupação de Catão recai tanto na execução do trabalho no qual essa mulher estava responsável – conforme o autor deixa claro no capítulo 142 – quanto na delimitação de sua ação na propriedade. Essas orientações buscam reforçar a subordinação da uilica ao seu esposo, apesar da alta posição hierárquica que ocupava. O medo nesse caso segue, portanto, a lógica das relações sociais na sociedade romana, uma vez que é mobilizado por um homem que se encontra no topo da cadeia de comando e se direcionada a uma mulher naturalmente inferior a ele e inferior a ele também do ponto de vista da dinâmica administrativa da propriedade. A figura da mulher não tem espaço no De Agri Cultura, Catão só cita com maiores detalhes as obrigações da uilica e no capítulo 83 orienta que as mulheres fossem excluídas dos rituais e oferendas para a saúde dos bois (Cat., Agr., 83). O medo enunciado no capítulo 143 por Catão é mobilizado, portanto, como um instrumento de controle, tanto para regular as ações da uilica enquanto esposa, mas também enquanto peça fundamental para o funcionamento 4 Texto estabelecido e traduzido por Matheus Trevizam em TREVIZAM, M. “Tradução do De Agri Cultura de Catão” e “Tradução do De Re Rustica I” In: TREVIZAM, M. Linguagem e Interpretação na Literatura Agrária Latina. 2006. 518 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, 2006. 196 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. da dinâmica da propriedade. Essa mesma enunciação e mobilização do medo é retomada em Columela quando este se refere ao uilicus e a relação que esse agente deveria estabelecer com os demais escravos na uilla. Diferente do De Agri Cultura, no De Re Rustica de Varrão o medo não aprece de forma de explícita. No capítulo em que o autor se dedica a tratar a respeito dos escravos que compunham a mão de obra da propriedade, é possível identificar um medo implícito, mas latente. O medo que se estabelece no tratado de Varrão diz respeito à relação senhor-escravo, um dos pontos de tensão de qualquer sociedade com escravos – produtor de medo de ambos os lados da relação. No capítulo 17, Varrão alerta sobre uma série de questões a respeito dos escravos na uilla e nas entrelinhas dessas recomendações é possível constatar um medo que Paul Veyne chamou de surdo (VEYNE, 2014, p. 57). A primeira recomendação do autor a respeito dos escravos que deveriam ser escolhidos para o trabalho na propriedade diz respeito a sua personalidade, Varrão afirma que não deveriam ser nem “temerosos” e nem “temerários” (Var., R., 1.17.1). Isto é, deveriam ser providos de coragem, mas tal coragem não poderia significar um risco para o senhor e para os demais escravos. O autor está preocupado, portanto, em estabelecer um ideal de escravo para trabalhar na propriedade, questão que Catão não considerou por necessária abordar. Tal ideal serve, a nosso ver, como uma forma de proteção visto que a coragem do escravo era necessária para garantir a segurança de seu senhor e da propriedade. No entanto, o fato de Varrão apontar que o escravo não deveria ser temerário, indica que o autor considerou necessário apontar a seus pares o perigo que os escravos significavam, sendo preciso, portanto, atentar para sua personalidade como forma de proteção. Ao fim e ao cabo, a proteção do proprietário era prioridade quando se tratava da escolha de escravos. Essa passagem, ainda que não deixe claro que os proprietários deveriam temer seus escravos, deixa nas entrelinhas a tensão que se estabelecia nessa relação vertical. Mais a frente no mesmo capítulo Varrão dá outra instrução que deixa implícito o medo que os senhores sentiam de seus escravos, o autor afirma que o proprietário deveria evitar ter muitos escravos de uma mesma nação visto que isso era uma fonte fértil de problemas domésticos (Var., R., 1.17.5). Isto é, Varrão alerta para o perigo que constituía permitir que escravos que falassem outra língua, que não o latim, é claro, convivessem na propriedade. O medo do autor é justificado uma vez que pouco tempo antes da escrita do De Re Rustica, isto é, no intervalo entre a composição do tratado de Catão e o de Varrão, ocorreram três grandes revoltas de escravos, duas na ilha da Sicília e uma em Cápua, cidade localizada próxima de Roma5. É importante ressaltar que todas essas revoltas envolveram escravos do campo, fato que possivelmente dobrava a atenção dos senhores nas propriedades agrícolas. Ainda que parte da historiografia considere que as revoltas de escravos não trouxeram grandes consequências para a sociedade romana, defendemos que apesar da instituição da escravidão não ter sofrido nenhum abalo após essas três revoltas, a relação entre senhores e escravos se modificou e o medo, implícito ou explícito, contidos nos tratados é um indicativo de tal mudança. 5 A primeira revolta da Sicília ocorreu entre 136 e 132 a.C., a segunda entre 104 e 100 a.C. enquanto a Revolta de Espártaco, já no século I a.C., ocorreu entre 73 e 70 a.C. 197 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Considerando o papel do medo na comunidade emocional estudada, a escolha de Varrão em deixar tais prescrições, mesmo que de forma implícita, é um indicativo de que as revoltas trouxeram mudanças na relação entre senhores e escravos – mudanças essas que tinham por objetivo tornar as relações escravistas sustentáveis e manter a instituição em funcionamento. O medo que Varrão indica não é só o medo pela integridade física, mas uma espécie de “medo econômico”. Isto é, um medo das consequências econômicas que determinadas ações poderiam causar na dinâmica da uilla. Vale ressaltar que a revolta de Espártaco, última a ocorrer no intervalo de escrita dos documentos, desmobilizou o campo, uma vez que muitos escravos empregados nas grandes propriedades e pequenos camponeses empregados sazonalmente nas uillae se juntaram ao exército de escravos liderado por Espártaco (BRADLEY,1989, p.99). As revoltas e o terror que os escravos espalharam tornaram necessário estabelecer uma nova hierarquia de trabalho na uilla, como propõe Varrão, bem como alertar sobre as formas de resistência dos escravos, arriscando deixar claro, ainda que de forma implícita, o medo que amargava entre os senhores. É importante ressaltar que o temor de uma nova sublevação não constituía o único medo dos senhores em relação a seus escravos. É verdade que a revolta era o meio de resistência mais extremo e que poderia causar mais danos aos proprietários, no entanto, existiam outras situações em que os escravos constituíam um risco e causavam medo em seus senhores. Essas formas de resistência constituíam em assassinato, suicídio, fuga, mentiras difamatórias, furtos, entre outras. A resposta dos escravos ao processo de escravização constituía um perigo constante aos senhores, que estavam conscientes disso e buscavam se resguardar. Algumas dessas formas de resistência eram cotidianas, o que tornava o medo ainda mais constante e latente. Varrão prescreve uma gestão do trabalho escravo voltada para certo contentamento social, isto é, o autor está preocupado em satisfazer as necessidades básicas dos escravos e estabelecer, a partir de uma hierarquia de trabalho, recompensas àqueles que se destacassem em suas funções. Essa preocupação com a satisfação dos escravos empregados na uilla, que não aparece em Catão, sugere que o medo das revoltas e de outras formas de resistência tornou necessário a prescrição de um modo diferente de gerenciamento da propriedade. Considerando o lugar do medo nessa comunidade emocional, sobretudo no período republicano, podemos constatar que tal emoção se aflorara de tal forma nesses conturbados anos finais da República que o autor arriscou-se em registrá-la. O caráter implícito do medo nesse caso segue a lógica da comunidade emocional estudada. Ainda que acreditemos que o medo molde as orientações de Varrão a respeito da administração do trabalho na propriedade, ele diz respeito a uma configuração incomum, isto é, o medo que o senhor sente do escravo – o medo causado pelo mais fraco. Logo, sua enunciação de forma explícita não estaria compatível com o lugar dessa emoção na comunidade. No De Re Rustica de Columela duas das passagens em que o autor enuncia o medo tratam a respeito das relações estabelecidas entre a hierarquia de trabalho na uilla, isto é, a relação entre os escravos em postos de comando e os demais. Columela enuncia o medo em seu tratado tanto no sentido comum – do mais forte para o mais fraco – quanto no sentido incomum – do mais fraco para o mais forte. No capítulo 198 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. 8 do livro 1 (Col., 1.8.10), o autor trata a respeito das atividades a serem designadas aos escravos, qual deveria ser designada a cada tipo de escravo e o tipo de relação que o uilicus deveria estabelecer com os demais escravos. A primeira ocorrência da palavra medo – timeant – no capítulo aparece quando Columela discorre a respeito das características do uilicus da propriedade. O autor afirma que esse agente deveria exercer sua autoridade sem relaxamento, mas também sem crueldade, apreciando aqueles que trabalhavam bem ao mesmo tempo em que deveria ser tolerante com aqueles de menor valor – isto é, Columela orienta uma conduta equilibrada, inclusive do ponto de vista emotivo. Essas orientações tinham por objetivo tornar a figura do uilicus temida por sua severidade, mas não detestada por sua crueldade. A organização do trabalho na uilla columeliana se estruturava a partir de uma hierarquia de trabalho bem definida. O uilicus deveria exercer sua autoridade com equilíbrio, com firmeza, mas sem crueldade. A orientação de Columela está de acordo com a ideia de virtus vigente durante o principado, como apontado por Balmaceda (BALMACEDA, 2017, p. 222). Isto é, a virtus era sinônimo de firmeza e moderação. Na dinâmica da uilla, conforme os agronômicos deixam implícito, sobretudo Varrão e Columela (Var., R., 1.17; Col., 1.9; 11), a conduta do proprietário deveria inspirar a conduta do uilicus, enquanto que a conduta do uilicus deveria servir de exemplo aos demais escravos. Por essa razão, a nosso ver, o modelo de conduta proposto por Columela em relação ao uilicus está de acordo com a conduta a ser seguida pelos membros das classes dirigentes de Roma da época. A enunciação do medo nesse caso se justifica porque diz respeito a uma tática administrativa. Isto é, um comportamento adotado por um sujeito em posição de comando (uilicus) com o objetivo de obter o comportamento desejado por parte dos subordinados (os demais escravos). O medo funciona como um instrumento de administração econômica, necessário para manter a cadeia de comando e consequentemente, a ordem de funcionamento da propriedade – assim como em Catão. No entanto, a forma como o medo enquanto instrumento era mobilizado precisava cumprir determinadas regras. Era necessário gerar uma parcela de medo, mas se tal parcela fosse excedida tornava-se crueldade. Alterando o comportamento do uilicus, também se alterava a resposta dos demais escravos. Se temer o uilicus produzia a conduta apropriada, odiá-lo subvertia tal conduta. O ódio, isto é, a raiva ao extremo, não constituía uma emoção desejável entre os escravos porque poderia causar problemas ao funcionamento da propriedade, a partir de respostas ao processo de escravização – Columela compartilha, portanto, os temores de Varrão, ainda que ambos tenham deixado tais temores implícitos. A palavra medo – timendi – aparece uma segunda vez no capítulo 8 do livro 1 também em relação à conduta do uilicus para com os demais escravos da propriedade. O autor orienta que o uilicus não deveria libertar aqueles escravos punidos pelo senhor e nem libertar aqueles que ele mesmo tenha punido antes de levar a situação ao conhecimento do senhor. Columela salienta que o agente deve ser justo com os demais escravos, sobretudo no que dizia respeito a questões materiais, isto é, vestuário, comida e quaisquer outros subsídios. Isso porque, como a dinâmica de organização do trabalho era constituída a partir de uma longa hierarquia, a distância entre o uilicus e o escravo comum era grande, o que poderia submetê-los a injustiças 199 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. por parte dos escravos intermediários. Expostos a injustiças, esses escravos teriam mais propensão de se tornarem temidos (Col., 1.8.16-18). A passagem trata, portanto, de forma explícita a respeito do medo que escravo poderia causar aos senhores e a toda propriedade por consequência da má administração por parte do uilicus. Columela salienta um ponto muito importante nessa passagem, os problemas que a hierarquização do trabalho poderia gerar. A progressiva hierarquização do trabalho na uilla servia ao propósito de estabelecer uma gestão do trabalho baseada num ideal de controle social. Isto é, o autor orienta a hierarquização dos trabalhadores e a divisão de suas funções (Col., 1.9) como forma de organizar o processo produtivo, otimizar o trabalho e criar competitividade entre os escravos, instrumento necessário para que o sistema de recompensas funcionasse – os escravos se esforçariam, competindo entre si, para ganhar a atenção necessária capaz de lhes conceder alguma recompensa ou até mesmo a movimentação na pirâmide hierárquica. Ainda que a hierarquização do trabalho servisse ao papel de organizar e controlar a força de trabalho na uilla, é preciso considerar as diversas variáveis que existiam no processo, exatamente o que Columela atenta no trecho analisado – se adiantando a um problema que suas prescrições poderiam causar. A hierarquização do trabalho criava uma cadeia de comando que tornava a distância entre o escravo comum que arava a terra e o uilicus significativa, existindo entre eles uma série de outros escravos que ocupavam funções intermediárias. Nessa configuração, aponta o autor, punições injustas poderiam ser cometidas, sendo obrigação do uilicus estar a par de todos os casos e leva-os ao conhecimento do proprietário. Assim como Varrão, Columela estava preocupado com as formas de resistência que os escravos se valiam para reagir ao processo de escravização. A diferença entre os dois autores reside no fato de que Varrão deixa o medo provocado pelos escravos implícito enquanto Columela o explicita na passagem em questão. Essa ocorrência da palavra medo se difere da outra até então analisada na obra do autor. A primeira tratava do medo enquanto instrumento, no entanto, na segunda, o autor deixa clara a outra via, o medo que os proprietários estavam submetidos em relação aos escravos – mesma situação que Varrão aborda. A razão para ter deixado explícito tal medo se relaciona em primeiro lugar com a flexibilização da virtus no principado, como já abordado, e em segundo lugar, com a conjuntura do século I d.C. Acreditamos que além das revoltas ainda estarem no imaginário social da época, os contemporâneos de Columela, Tácito e Sêneca, deixaram anedotas que expõem o medo que os senhores sentiam dos escravos e que pairava sobre a sociedade. Tácito (Tac. Ann., 14.42.5), relata que prefeito da cidade de Roma, Pedanius Secundus, foi assassinado por um de seus 400 escravos. Como o escravo que cometeu o crime não assumiu sua culpa a decisão de Nero fez valer o costume, a punição capital para os escravos da casa, todos pagariam pelo preço de um. A justificativa para punição foi de que os outros 399 deveriam ter impedido o assassinato de seu senhor. Independente da veracidade da história, Sandra Joshel aponta que a história serve para alertar sobre o perigo da violência doméstica a que estavam sujeitos os senhores de escravos (JOSHEL, 2011, p. 220). Sêneca (Sen., Cl., 1.24.1) conta de uma proposta feita no senado para que os escravos fossem facilmente reconheci200 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. dos na sociedade a partir da obrigatoriedade de uma vestimenta distinta. No entanto, continua o autor, a ideia foi abandonada quando os senadores perceberam que se essa proposta fosse implementada faria os escravos conscientes de seu número e induzindo-os a uma “causa comum”, como chama Bradley, contra seus senhores (BRADLEY, 2011, p. 366). Essa anedota constitui um forte indício da constante tensão entre senhores e escravos. O medo que os senhores sentiam estava latente no imaginário da elite romana e havia uma necessidade para que estivesse, uma vez que era tal medo que regulava as relações entre escravos e senhores. Portanto, explicitar o medo que os senhores sentiam ou deveriam sentir dos escravos também era uma forma de preservação da ordem social vigente, na medida em que alertava sobre as consequências de subversões na relação estabelecida entre senhor e escravo. A recomendação de Columela na passagem analisada serve de alerta para o uilicus, sua conduta justa é que impedirá que qualquer subversão tome lugar na propriedade. Nas passagens analisadas do De Re Rustica de Columela o medo aparece de forma explícita e implícita. Como instrumento para a administração econômica da uilla e como consequência de uma conduta inapropriada do uilicus. Quando utilizado como instrumento administrativo o medo tem o sentido comum, isto é, vai do mais forte para o mais fraco. No primeiro caso o uilicus em relação aos demais escravos. Nesses casos a enunciação do medo pode ser considerada banal, visto que se refere a seres inferiores – a orientação de que o medo a ser infligido deve seguir algumas regras para que não extrapole seu sentido deixa clara a preocupação do autor em demonstrar que sua orientação não é desprovida de moderatio. A passagem em que o sentido do medo muda, isto é, vai do mais fraco para o mais forte – escravos infligindo medo nos senhores, chama atenção. Columela alerta que a conduta errada do uilicus poderia causar problemas na dinâmica da propriedade e reforça a ideia de que os antigos estavam conscientes de que os escravos constituíam uma massa perigosa. Columela escolhe, portanto, enunciar o medo para tratar de questões importantes para a administração da propriedade. O medo serve como instrumento de boa administração quando em seu sentido comum e como consequência de má administração quando em seu sentido incomum. Con sid er açõ es f i n a i s Como proposto por Boquet e Nagy, as comunidades emocionais definem a identidade dos indivíduos que as formam (BOQUET e NAGY, 2018, p. 247). Sendo assim, como forma de compreender o grupo estudado e considerando o espaço destinado pelos sujeitos desse grupo ao medo, consideramos que seria mais frutífero compreender essa comunidade emocional a partir de seu oposto, isto é, a coragem, ou como os romanos a chamavam, virtus. Ainda que a coragem não seja uma emoção, mas sim um valor, a importância que a comunidade emocional atribuía a ela acabava por determinar o lugar de certas emoções – como o medo. É importante salientar que não apenas a virtus, mas os outros valores que compunham o mos maiorum, isto 201 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. é, o conjunto de valores que regiam a sociedade romana, também influenciavam na forma como as comunidades emocionais de tal sociedade compreendiam as emoções. Tomemos como exemplo a raiva, emoção que significava o oposto da clementia, isto é, a virtude de ser bom e indulgente. Assim como o medo, a raiva também seria compreendida como uma emoção a ser evitada, ou pelo menos, silenciada, uma vez que se opunha a uma virtude fundamental. É importante destacar ainda que não defendemos que o medo (ou a raiva) não era performatizado pela comunidade emocional estudada, mas sim que por sua conotação negativa, seu registro nos documentos está, na maior parte dos casos, implícito. Quando enunciado, o medo possui um objetivo específico e importante. Evitar o medo fazia parte da identidade desses homens que compunham as classes dirigentes de Roma e caso não pudessem evitar, o recomendado seria que não demonstrassem. Aqueles que faziam parte da liderança política, militar, econômica e social não poderiam ser associados a essa emoção. O medo, tanto silenciado quanto enunciado, nos tratados agrícolas analisados cumpre um papel importante. Ele serve de alerta para o senhor a respeito de questões fundamentais do processo administrativo da propriedade, tanto em relação a questões de manutenção do controle da ordem na uilla como em Catão e Columela, quanto relativo à ameaça que os escravos constituíam como em Varrão e Columela. Os autores orientam nas passagens estudadas que o senhor estivesse atento às ações de seus subordinados para que essas situações que causavam temor e, consequentemente, problemas na dinâmica da uilla fossem neutralizadas a partir de uma boa administração. Além disso, o medo servia ainda como instrumento para estabelecer o controle necessário ao funcionamento da propriedade. O estudo do medo possui uma interessante particularidade, pois exige que se analise quem sente e quem provoca essa emoção. Essa particularidade está diretamente relacionada ao fato do medo ser um importante elemento nas relações de poder. A análise do corpus documental trabalhado no presente texto possibilita concluir que a enunciação do medo é um ponto sensível nas obras latinas. No entanto, tal sensibilidade está relaciona a casos em que o medo era performatizado por aqueles que exerciam poder. Quando instrumentalizado nas relações sociais por esses mesmos sujeitos com o objetivo de submeter outros, ainda que tal instrumentalização devesse cumprir certas regras, essa enunciação parece menos problemática. O medo constituía uma emoção importante na comunidade emocional estudada, ainda que fosse silenciado na maior parte dos casos e sua enunciação cumprisse alguns requisitos. Sentir ou causar medo determinava aqueles que estavam no controle das situações. Li s ta d e Ab r eviat u r a s Cat. Agr., – De Agri Cultura (Marco Pórcio Catão) Col., – De Re Rustica (Júnio Moderato Columela) Sen., Cl., – De Clementia (Lúcio Aneu Sêneca) 202 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Tac., Ann., – Annales (Públio Cornélio Tácito) Var., R., – De Re Rustica (Marco Terêncio Varrão) Docu men taç ão CATO, On Agriculture & VARRO, On Agriculture. Translated by Harrison Boyd Ash e Willian Davies Hooper. Loeb Classical Library L 283. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1935. COLUMELLA, On Agriculture. Translated by Harrison Boyd Ash. Loeb Classical Library 361; 407; 408. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1941. TACITUS. Annals: Books 13-16. Translated by John Jackson. Loeb Classical Library 322. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1937. SENECA, THE YOUNGER. Moral Essays, Vol 1. Translated by John W. Basore. Loeb Classical Library 214. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1928. Ref e r ên c ias b ib l i o g r á f i ca BALMACEDA, C. Virtus Romana. Politics and morality in the Roman Historians. Carolina do Norte: The University of North Carolina Press, 2017. BOQUET, D. et NAGY, P. Medieval Sensibilities. A history of Emotions in the Middle Ages. Cambridge: Polity, 2018. BRADLEY, K. Slavery and rebelion in the Roman world, 140 b.C.-70b.C. Indiana: Indiana University Press, 1989. BRADLEY, K. Resisting slavery at Rome. In: BRADLEY, K.; CARTLEDGE, P. The Cambridge World History of Slavery – Vol 1. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 362384. JOSHEL, S. Slavery and roman literary culture. In: BRADLEY, K.; CARTLEDGE, P. The Cambridge World History of Slavery – Vol 1. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 214-240. KNUST, J. E. M. Senhores de escravos senhores da razão: Racionalidade Ideológica e a Villa Escravista na República Romana (séculos II e I a.C.). 2011. 340 f. Dissertação (Mestrado) - Departamento de História Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2011. MARTIN, R. Recherches sur les agronomes latins et leurs conceptions économiques et sociales. Paris: Belles Lettres, 1971. MCDONNNELL, M. Roman Manliness Virtus And The Roman Republic. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. 203 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. ROSENSTEIN, N. S. Imperatores Victi: Military Defeat and Aristocractic Competition in the Middle and Late Republic. Berkeley: University of California Press, 1990. ROSENWEIN, B. Emotional communities in the early Middle Ages. Nova Iorque: Cornell University Press, 2006. ROSENWEIN, B. H., História das emoções: problemas e métodos. SP: Letra e Voz, 2011. TREVIZAM, M. “Tradução do De Agri Cultura de Catão” e “Tradução do De Re Rustica I” In: TREVIZAM, M. Linguagem e Interpretação na Literatura Agrária Latina. 2006. 518 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, 2006. VEYNE, P. (org). História da vida privada. Do império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. Recebido em 15/9/2019 e aceito em 1/10/2019. 204 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. A POLITEÍA platônica e o deus cego: riqueza e felicidade Luiza Fernandes Valdez Graduanda em Filosofia (UFRJ) luiza.valdez@gmail.com Bolsista PIBIC (CNPq) Orientadora: Profa. Dra. Maria das Graças de Moraes Augusto (UFRJ) Res u mo Dentro da Tradição Clássica, é possível perceber pontes, influências e críticas entre autores e gêneros textuais e nesse trabalho em particular, discutiremos a influência que a peça Ploûtos, de Aristófanes, pode ter tido sobre Platão e sua filosofia. O objetivo não parece ser de forma alguma a crítica entre autores, e sim uma continuação e um aprofundamento filosófico no assunto que o riso trouxe à tona, já que os dois estão sim criticando algo, que é a pólis ateniense na qual vivem. Não é possível afirmar com total segurança que essa influência ocorre, mas o objetivo é justamente, através da análise dos textos e de seu conteúdo, encontrar e demonstrar pontos de convergência. Pa lav r as - chav e Platão; Filosofia Antiga; Comédia; Aristófanes; Literatura. Abs t rac t Inside of Classic Tradition, it’s possible to notice bridges, influences and critics in between authors and textual genders and in this particular work, we will discuss the influence that the play Plutus, by Aristophanes, may have had over Plato and his philosophy. The goal doesn’t seem to be, in any way, a critic between autors, but to go deep and continue to explore what laughter has brought to surface, since both are in fact criticizing something that is the Athenian polis in which they live. It’s not possible, however, to accert with complete safety that this influence occured, but the goal is, through the analysis of the original texts and its contents, to find and demonstrate converging points. Key w or ds Plato; Ancient Philosophy; Comedy; Aristophanes; Literature. 205 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Int ro d u ç ão No início do Livro IV da República de Platão, Sócrates e Adimanto discutem sobre a felicidade dos guardiões da Cidade, após terem estabelecido tanto sua educação e seus moldes quanto suas habitações e seus bens. Deverão ser bem-educados e ter as melhores condições para que exerçam sua arte da melhor maneira possível. Mas serão felizes, vivendo dessa forma, sem bens próprios? E também: deve-se ter em consideração a felicidade da cidade como um todo ou de uma só parte? É a partir desse ponto que Sócrates começa a discussão sobre o dinheiro e a corrupção que esse trás para a cidade. O texto e as questões serão analisados em conjunto com a peça Ploûtos, de Aristófanes, onde uma cidade pobre e seus cidadãos se deparam com o deus da Riqueza maltrapilho e cego, impossibilitado de distinguir entre justo e injusto e não podendo, dessa forma, distribuir a riqueza de forma justa. A PÓLIS e a felic i da d e d o s g ua r d i õ e s No Livro III da República Sócrates e seus interlocutores, após discutirem os týpoi e seu estilo, toda a mousiké e a gymnastiké, entre outras coisas como alimentação, dieta e medicina, começam a discutir a necessidade de uma mentira útil (Pl., R., 3, 414-b), cujo objetivo é persuadir não só guardiões e chefes, mas também toda a cidade da utilidade da paidéia que construíram, e de como essa molda os phýlaka para que sejam perfeitos em seu trabalho. Sócrates então descreve o mito fundador, no qual os primeiros homens são moldados e criados na terra, já surgindo completamente prontos e com seus respectivos equipamentos. São todos irmãos, nascidos da mãe-terra e nela moldados pelo deus, que na composição de cada um insere um metal. Aos artífices e lavradores deu ferro e bronze, e aos guardiões e seus chefes deu ouro e prata. Gerarão entre si filhos, que terão (na maioria das vezes) a mesma composição preciosa de seus pais e não é possível para aqueles que possuem ferro ou bronze dentro de si tornarem-se guardiões. Dessa maneira, não terão ouro e prata de maneira nenhuma, seja como salário, decoração ou utensílios, pois já os possuem dentro de si mesmos e não devem poluir os metais preciosos de sua composição. Sócrates ainda argumenta que, se estes possuírem terras, dinheiros ou coisas do tipo, não serão mais guardiões, preocupando-se com seus bens e não com o bem-estar da cidade. Logo, não terão casas próprias e viverão juntos, e não terão salário, recebendo um pagamento proveniente dos outros cidadãos, em forma de alimentação. Já no início do Livro IV, Adimanto interfere, questionando se esses guardiões serão felizes, vivendo dessa maneira, sendo responsáveis pela cidade sem, no entanto, poder usufruir dela e de seus bens ao mesmo tempo que protegem aqueles que possuem casas belíssimas, ouro e prata e tudo aquilo que julga-se constituir a felicidade. Sócrates então afirma que a cidade não foi moldada com o intuito de fazer essa 206 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. classe em especial feliz, e sim a cidade como um todo. Compara-a então à pintura de uma estátua, onde deve-se pintar cada parte como é devido, tendo por objetivo que o todo torne-se belo. Da mesma maneira deve acontecer com a cidade. Se tivermos como objetivo fazer felizes só lavradores, por exemplo, revestindo-os de bens e luxos, esses não mais trabalharão e mexerão com a ordenação da cidade. Porém, se isso acontece justamente com os phýlaka,esponsáveis pela liberdade e bem-estar da cidade, logo toda a cidade se perderá. Se cada um proceder sendo o melhor em seu trabalho, a cidade crescerá ordenada e bem administrada e por conseguinte, feliz. E dessa maneira cada um poderá participar dessa eudaimonía conforme sua própria natureza lhe permite, tendo em vista o próton lógon pronunciado por Sócrates ainda no livro II (Pl., R., 2, 370a-b). P L O Û T O S , o d e u s ce g o A comédia Ploûtos de Aristófanes foi encenada em 388 a.C., e é a última dentre as 11 peças que chegaram até nós, e mostra como, da mesma maneira que a Atenas pós-guerra de Corinto está se restabelecendo e consequentemente mudando, a Comédia também está se renovando, indo em direção à fase conhecida como Comédia Nova. Suas personagens principais Crêmilo, seu escravo Carião e o deus Ploûtos se encontram após o camponês ir consultar Apolo sobre como deve educar seu filho, e ouve dele que não deve deixar escapar o primeiro que passar, persuadindo-o e levando-o até sua casa. Crêmilo e Carião logo encontram um homem cego, sujo e maltrapilho, que é Ploûtos. Esse foi cegado por Zeus para que não conseguisse distinguir entre justos e injustos ao distribuir riquezas, já que tinha prometido só se dirigir aos sábios e justos, e afirma que Zeus tem inveja dos bons. Eles então se tornam responsáveis por levá-lo até o templo de Asclépio, que restabelecerá a visão de Ploûtos, para que esse volte a companhia dos justos. Porém é necessário, primeiramente, persuadi-lo que a recuperação valerá a pena, de que tudo aquilo que existe de belo e agradável só existe graças a ele, e ainda de que é mais poderoso do que o próprio Zeus. Feito isso, cabe a Carião ir buscar o coro da peça, que será formado por camponeses amigos e honestos, enquanto Crêmilo e seu amigo Blepsidemo lidam com a difícil tarefa de expulsar de uma vez por todas a Penía (a Pobreza), que tenta os impedir de levar Ploûtos até Asclépio. No agón, Crêmilo representa o deus Ploûtos contra Penía, que afirma ser a causa de todos os bens, enquanto ele a lembra como essa só causa fome, desconforto e tumulto. Quando ela diz que caso Ploûtos os faça ricos ninguém mais se interessará por sabedoria ou arte, fazendo com que cada um tenha que fazer tudo por si mesmo, ele contra-argumenta lembrando-a da existência de escravos e seu uso. Mas como será possível? Quem venderá criados se não precisa de dinheiro? Seguindo a mesma lógica, quem fabricará, construirá, fará tapeçarias e mantos, se já são ricos e não precisam trabalhar? Quem fará camas, perfumes, quem fará o trabalho manual? 207 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Como existirá uma cidade, dessa maneira? A Pobreza então se proclama a “patroa”, já que força a necessidade do trabalho e da poupança, onde nada sobra e nada falta, fazendo dessa maneira “melhores cidadãos” que Ploûtos, que os faz barrigudos e preguiçosos enquanto a Pobreza os faz magros e mordazes. Posto isto, Penía faz uso de um argumento que antes foi usado pelo próprio deus (Ar., Pl., 108), quando este se recusava a recuperar a visão: mostra como pessoas que aparentam ser justas e de boa índole logo mudam seu jeito de ser quando se tornam ricos. O mesmo afirma a deusa, e Crêmilo concorda mas segue sem aceitar que esta seja melhor que a riqueza, e questiona porque todos querem dela fugir se ela é assim tão melhor. A discussão segue, e o agón termina com a deusa da pobreza sendo expulsa, enquanto proclama “Asseguro que vós ainda me haveis de mandar chamar” (Ar., Pl., 607). Ri q u e z a e a co r ru p ção da ci da d e No agón da peça, a discussão de Penía e Crêmilo e como essa descreve os efeitos da Riqueza sobre os homens e suas vidas faz lembrar a República, onde Sócrates, no passo 421d tenta explicar aos seus interlocutores como tanto excesso quanto falta de dinheiro corrompem os artífices e suas artes, assim mexendo com toda a ordenação da cidade. Segundo seu raciocínio, o trabalho de um artífice é afetado quando este é pobre, de modo que torna-se pior pois não terá bons utensílios e objetos, fará obras ruins e ensinará seus filhos a serem artífices piores também. Da mesma maneira, um artífice que é rico será também ruim, pois será argós kai hamelés (preguiçoso e negligente). Logo, nenhum dos dois extremos será saudável para os cidadãos e para a cidade. Como trabalharão sendo pobres e sem meios? Porque trabalharão, se forem ricos? É necessária uma proporção, deve ter uma medida. Ploûtos e Penía são dois lados de uma mesma moeda ― nenhum dos dois fará bem a uma cidade verdadeiramente justa. É então determinado que os guardiões devem também contra isso guardar a cidade, impedindo a sua corrupção através do dinheiro. Porém, no passo 421b Sócrates afirma que se artífices, como oleiros e sapateiros se estragarem, isso não seria uma completa desgraça para a cidade, mas que se isso acontecesse com os guardiões, a cidade toda estaria destruída. Como a corrupção dos artífices afeta os guardiões? A resposta parece se encontrar ainda no Livro III no passo 401-b, quando Sócrates questiona se só os poetas e suas obras devem ser vigiados. Segundo o raciocínio, da mesma forma que aquilo que é produzido pelos poetas tem efeito sobre o caráter dos phýlaka, artífices ruins com obras ruins também terão, e os guardiões serão corrompidos se no meio desses viverem. Dessa forma, da mesma maneira que o poeta que tem seus versos fora dos moldes pré-estabelecidos seria convidado a se retirar da cidade, um artífice ruim também seria, de forma a não ter influência sobre o caráter dos jovens. Voltando à peça de Aristófanes, após Ploûtos ter sua visão restaurada no tempo de Asclépio, vemos Crêmilo, Carião, sua família e amigos junto com o deus, em 208 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. festa. Carião então sai da casa para descansar os olhos da fumaça dos sacrifícios que estão sendo feitos em homenagem a Ploûtos, e após declarar o quão felizes estão todos e como é bom ser rico sem precisar fazer mal a ninguém, conta sobre a abundância e luxo que agora reside na casa. Logo entra em cena outro homem e seu escravo, levando roupas e sapatos velhos. Esse, quando questionado, diz ser “Um homem que antes era infeliz e agora é afortunado” (Ar., Pl., 825), ao que Carião responde lhe chamando de khréston, algo como “útil” ou até “bom”, o que seria o motivo pelo qual o homem tornou-se afortunado, agora que o deus enxerga plenamente. Entra em cena o Sicofanta, um acusador, que se encontra na posição completamente oposta do Justo: se auto-proclama kakodaímon. Do mesmo jeito que a visão restaurada de Ploûtos tornou rico o Justo, fez com que o Sicofanta perdesse tudo. Ao longo da conversa, descobre-se que não é um lavrador, nem tão pouco aprendeu uma tekhné, uma arte, mas diz que presta serviços à sua cidade, às leis e à justiça, ao que o Justo responde questionando “Com que então meter o nariz na vida alheia é prestar serviços?” (Ar., Pl., 913). Ao ser questionado novamente pelo justo, que o pergunta se não gostaria de uma vida tranquila e sem trabalho, é interessante ver como logo o homem que consideramos desonesto e injusto responde, dizendo que uma vida assim, sem ocupação, é “boa para carneiros” (Ar., Pl., 922). Con sid er açõ es F i n a i s Desse modo voltamos à República, onde, em vários momentos da obra, Sócrates demonstra quão importante é que cada cidadão faça sua parte, conforme sua natureza, aspirando uma cidade bela e justa. Enquanto Pobreza e Riqueza ganham rostos e vozes na peça de Aristófanes, debatendo por si mesmos suas próprias funções e vantagens, Platão não parece precisar disso, retornando ao agón através de uma argumentação certeira, demonstrando seus efeitos na pólis logói e suas respectivas potências para a corrupção da mesma através da corrupção dos artífices. Tanto Ploûtos quanto República descrevem utopias, nas quais homens justos buscam a felicidade. Enquanto a cidade de Platão é construída no lógos, a de Aristófanes é construída através da mímesis e do riso e não deve, porém, ser menos levada a sério por isso. Aristófanes usa-o para construir uma utopia na qual a eudaimonía é trazida aos justos através da Riqueza por um deus, enquanto os cidadãos da pólis lógoi Platônica são diretamente responsáveis por sua própria felicidade através da justiça. Enquanto a utopia de Aristófanes mantém sempre uma parte da cidade pobre e consequentemente infeliz, a de Platão a busca como um todo, deixando claro que não será possível alcançá-la se todos não forem bons e justos. A reflexão acerca da pobreza então nos leva até o Banquete, onde descobrimos, através de Diotima, que Penía é ninguém menos que mãe de Eros. Mas antes disso, após os discursos de Fedro, Pausânias, Erixímaco e Aristófanes vem Agatão, que critica os discursos anteriores por tratarem de Eros sem contudo falar de sua natureza. É necessário explicar sua origem e só então falar sobre seus benefícios. 209 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Eros é o eudaimonéstaton (o mais feliz) dos deuses, o mais belo, e o melhor. E afirma o completo oposto do que Fedro diz em seus discurso, já que para Agatão Eros é o mais jovem deus, fugindo e tendo ódio da velhice e sempre procurando a companhia dos moços, seus semelhantes. É, também, temperante, justo, gracioso e corajoso (Pl., Smp., 196b-e), e por ser o melhor e mais belo dos seres, é também a causa de tais coisas para todos. Quando Agatão finaliza seu discurso, estrondosos aplausos e elogios rompem. Sócrates logo afirma não conhecer esse tipo de elogio, onde não é a verdade sobre o objeto que é dita, e sim tudo de belo e grandioso que seja possível, mesmo que não seja real. O discurso de Agatão, embora grandioso e imponente, não parece ser fundado na verdade, e sim cheio de belos atributos, porém sem fundamentos. E após fazer uma série de questões para Agatão, Sócrates chega a conclusão de que Eros, amando tudo aquilo que é belo e bom, as deseja, e já que só podemos desejar aquilo que não possuímos, Eros carece tanto do que é Bom quanto do que é Belo. Seu interlocutor diz não conseguir lhe contestar, então Sócrates começa a narrar a conversa que teve com Diotima de Mantinéia, alguém muito entendida no assunto, assim criando outro diálogo dentros dos diálogos já existentes. O diálogo com a estrangeira começa justamente onde a discussão com Agatão foi interrompida: Como é possível que Eros não seja nem belo nem bom? Sócrates questiona se ele então é feio e mau. Mas o que não é belo não é necessariamente feio, da mesma forma que aquele que não é sábio, não é necessariamente ignorante. Segundo Diotima, há algo inexplicável no intermediário entre sabedoria e ignorância, que não pode ser demonstrado e nem ignorado, já que atinge o real, sendo chamado de “opinião verdadeira”. Eros, não sendo nem feio nem belo, nem bom nem mau, encontra-se no meio desses extremos. Com isso posto, é o momento do “status” de “grande divindade” (mégas theós) cair por terra. Tendo em mente que os deuses são belos e felizes, e que felizes são aqueles que possuem coisas belas e boas, como seria possível Eros ser deus, já que estabelecemos que não é belo, e que carece de coisas belas e boas, não as possuindo? Voltamos novamente ao intermediário, ou seja: Eros não será mortal nem imortal, nem deus nem humano, e sim um grande demônio (daímon mégas). Responsável por interpretar e levar para os deuses o que vai dos homens e vice-versa, está “entre” permitindo o contato entre mortais e imortais todo o tempo. Sócrates então questiona sobre os pais desse daímon (Pl., Smp., 203a), ao que Diotima responde contando a história de sua geração. No dia do nascimento de Afrodite um banquete foi preparado pelos deuses e entre eles estava Poros, filho de Métis. No fim do banquete chega Penía, com a intenção de mendigar, e vendo Poros embriagado de néctar e adormecido, decide com ele ter um filho e deitando-se ao seu lado, concebe Eros. Esse, por ter sido concebido no dia do nascimento de Afrodite, e sendo Afrodite bela e ele amante das coisas belas, torna-se seu companheiro. Sendo filho de quem é, possui características interessantes e peculiares: além de não ser belo e delicado, como já foi antes estabelecido, é pobre, áspero, esquálido, sem casa, sem agasalho e sem sapatos. Dorme ao ar livre, no chão e sem agasalho. Mas por outro lado, como filho de Poros, é bravo, audaz, excelente caçador, sempre a 210 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. pensar em planos para apanhar tudo que é belo e bom, sagaz, filósofo toda vida (Pl., Smp., 203d), amigo da sabedoria, mágico, feiticeiro terrível e sofista. Diotima ainda oferece uma outra informação, falando novamente sobre como Eros se encontra no meio caminho entre Sabedoria e Ignorância. Sendo a sabedoria o que há de mais belo, e sendo Eros amante do belo, é filósofo. Quem é sábio, já possui a sabedoria, então não se dedica à filosofia. Já aquele que possui ignorância, que não é nem bela nem boa, também não se dedica à filosofia, pois já se considera muito bem-dotado. Tendo em mente todas essas informações sobre a paidéia dos phýlaka, a eudaimonía, e a corrupção da pólis, parece impossível não ver que todas elas dependem justamente daquelas coisas que estão entre dois opostos. Desde a mousiké e a gymnastiké – onde o abuso ou falta pode causar a má formação dos jovens, ou passando por toda a discussão sobre dieta e medicina, passando pela corrupção da cidade através de excesso ou falta de dinheiro e chegando até o consequente efeito disso sobre a eudaimonía e falta de Justiça dessa pólis –, a necessidade de harmonia e temperança se faz presente, deixando claro que não será possível alcançar uma Cidade Justa sem elas. Não seria então Eros uma metáfora interessante para a figura do phýlax? Por isso a história de sua origem, presente no discurso de Diotima, se faz tão importante. Ao ser filho de Penía e Poros, possui as melhores (ou pelo menos, as mais interessantes) características dos dois. A sua pobreza, proveniente da mãe, indica a falta de algo, mas ao mesmo tempo herdou do pai a coragem e vontade de ir atrás daquilo que deseja e de sofrer pelo que deseja, se necessário for. A dualidade herdada por Eros através de sua geração parece um espelho da dualidade que o phýlax precisa aprender e pôr em prática para o bom funcionamento da pólis, para que essa se torne Justa e Feliz. Termino o artigo com uma citação, tida por muitos como de Eurípides, presente na peça Ploûtos na fala de Hermes (Ar., Pl., 1151), quando este pede abrigo e comida para Crêmilo e Carião, tentando desertar dos outros deuses: “Pátria é toda a terra onde alguém é feliz”. Li sta d e Ab r eviat u r a s Ar. Pl. – Aristófanes (Plutus) Pl. Smp. – Platão (Symposium) Pl. R. – Platão (Respublica) Font e s ARISTÓFANES. Pluto (A riqueza). Tradução, introdução e notas de Américo da Costa Ramalho. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. 211 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. ARISTÓFANES. O dinheiro. Tradução do grego, introdução e comentário de Maria de Fátima Sousa e Silva. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015. ARISTOPHANES. The Knights/Peace/The birds/The assemblywomen/Wealth. Translated by David Barret and Alan H. Sommerstein. England, Penguin Books, 1977. ARISTOPHANE. Ploutos. Texte établi par Victor Coulon, Traduit par Hilaire van Daele. Paris, Les Belles Lettres, 1958. PLATÃO. A República. Introdução, tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. 4ªedição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983. PLATÃO. Banquete.Tradução e notas de Carlos Alberto Nunes. 4ªedição. Pará: Editora Editora da Universidade Federal do Pará, 2018. Ref e r ên c ias b ib l i o g r á f i ca s HOOPER, Anthony. The greatest hope of all: Aristophanes on human nature in Platos’s Symposium. The Classical Quarterly, v. 63, n. 02, p 567-579, Dezembro, 2013. LUDWIG, Paul W. Politics and Eros in Aristophanes’ Speech: Symposium 191e-192a and the Comedies. The American Journal of Philology, v. 117, n. 4, p. 537-562, Fevereiro, 1996. NEUMANN, Harry. On the comedy of Plato’s Aristophanes. The American Journal of Philology, v. 87, n. 4, p. 420-426, Outubro, 1966. OLIVEIRA, F. de; SILVA, M. de F. O teatro de Aristófanes. Faculdade de Letras, Coimbra, 1991. SMITH, Nicholas D. Political Activity and Ideal Economics: Two Related Utopian Themes in Aristophanic Comedy. Utopian Studies, V. 3, N. 1, p. 84-94, 1992. Recebido em 16/9/2019 e aceito em 1/10/2019. 212 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. A representação da tirania na tragédia OS PERSAS de ésquilo (472 a.C.) Amabile Helena Zanco Graduanda em História (UNICAMP) Bolsista de iniciação científica da FAPESP mabi_zanco@hotmail.com Orientador: Dr. Pedro Paulo Funari (UNICAMP Res u mo Tendo em foco as Guerras Greco-Pérsicas, conflito que marcou a relação entre gregos e bárbaros no século V a.C., o presente artigo procura analisar a representação da tirania persa na tragédia Os persas de Ésquilo, encenada pela primeira vez em 472 a.C.. Trabalhando com algumas passagens da obra e com a perspectiva da relação de alteridade entre gregos e persas, investigamos o modo como este autor grego representou para si e seus semelhantes a monarquia persa menos de uma década após a Batalha de Salamina (480 a.C.), cuja derrota persa é colocada em foco em seu enredo. Este artigo é um dos desenvolvimentos de nossa pesquisa de iniciação científica, “O persa nas fontes gregas: a alteridade na tragédia Os persas de Ésquilo e nas representações iconográficas”. Pa lav r as - chav e alteridade; persas; gregos; tragédia grega; tirania. Abs t rac t With focus on the Greco-Persian Wars, conflict that marked the relationship between Greeks and barbarians in the fifth century BC, the present article analyses the representation of Persian tyranny in Aeschylus’ Persians, tragedy staged for the first time in 472 BC. Working with some passages of the tragedy and the perspective of otherness between Greeks and Persians, we investigate how the Greek author represented for himself and his similar the Persian monarchy less than a decade after the Battle of Salamis (480 BC), whose Persian defeat is at the heart of the plot. This article is a development of our scientific initiation research, “The Persian in the Greek sources: the otherness in Aeschylus’ Persians tragedy and in the iconographic representations”. 213 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Key w or ds otherness; Persians; Greeks; Greek tragedy; tyranny. Int ro d u ç ão A tragédia Os persas de Ésquilo, encenada pela primeira vez no ano de 472 a.C., é, entre as tragédias que chegaram completas aos nossos dias, a única que apresenta em seu enredo um acontecimento histórico em detrimento do motivo mítico, tão comum ao gênero. Nascido na cidade de Elêusis, entre 525-524 a.C., e falecido no ano de 456 a.C. em Gela, Ésquilo teria escrito entre setenta a noventa tragédias, mas apenas sete sobreviveram à passagem do tempo, sendo além da apresentada neste ensaio: Os sete contra Tebas (467 a.C.), As Suplicantes (463 a.C), Prometeu Acorrentado (462/459 a.C.), Agamêmnon (458 a.C), Coéforas (458 a.C.) e Eumênides (458 a.C.). Em função de sua participação no desenvolvimento do gênero, o autor é tido como “criador da tragédia”. Suas peças com recorrência abordavam temas como conflitos humanos e justiça divina, assim como aspectos sociais, culturais e políticos de sua sociedade. (RODRIGUES, 2011, p. 33-4) A tragédia em discussão tem como tema a derrota persa nas Guerras Greco-Pérsicas, colocando em destaque a Batalha de Salamina, ocorrida em 480 a.C. Com as personagens rainha-mãe Atossa, Grande Rei Xerxes, fantasma de Dario, mensageiro e coro de anciões persas, seu enredo transcorre na cidade de Susa, onde os anciões discutem a falta de notícias de Xerxes e seu exército, que partiram para conquistar a Hélade. A rainha se junta ao grupo e conta-lhes um sonho ambíguo que tivera na noite anterior, que torna ainda mais incerto o destino do rei e de seus homens. Um mensageiro entra em cena e relata a grande derrota dos persas em Salamina e as dificuldades enfrentadas pelos remanescentes em seu retorno à Pérsia. A rainha, então, dirige-se a tumba do rei Dario, cujo fantasma lhe aparece e condena as ações do filho. O Grande Rei Xerxes é apresentado apenas ao final da tragédia, quando de sua chegada a Susa onde, junto ao coro, ele lamenta a derrota do grande império. A escolha de Ésquilo em representar um acontecimento contemporâneo demonstra o impacto que as Guerras Greco-Pérsicas possuíram na Hélade do século V a.C. e a necessidade de manter o conflito vivo no pensamento coletivo da pólis. Ésquilo escolheu a vitória grega como pano de fundo para sua tragédia, a partir da Batalha de Salamina, da qual ele mesmo participou, de maneira que une sua experiência à de seu povo. O fato de Ésquilo utilizar um evento histórico nada mais é que realizar o mesmo processo que outros autores faziam com os eventos míticos, utilizar um tema conhecido do público como suporte para a exposição das problemáticas ético-religiosas e, mais importante, naquele momento, políticas (RODRIGUES, 2011, p. 19). 214 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. No decorrer do presente trabalho, procuramos analisar a representação da tirania persa na obra a partir de alguns trechos selecionados, tendo em mente o fato de esta ser uma representação de origem grega e o contraste construído em relação a democracia ateniense. A t ragé d ia greg a n o s é cu l o V a . C . Para Jean-Pierre Vernant (1999, p.1), a tragédia, gênero que surge ao final do século VI a.C., instaurou um novo tipo de espetáculo, traduzindo a experiência humana de maneira até então inédita. Sua matéria seria o pensamento social da pólis, em especial o jurídico em desenvolvimento. A partir disso, a compreensão desse tipo de fonte deve levar em conta seu contexto mental, do qual se estabelece a comunicação entre o tragediógrafo e seu público (VERNANT, 1999, p. 8). Os dramaturgos da antiga Grécia tinham o mítico em mente ao compor suas obras. Desse modo, em sua análise devemos lembrar que as tragédias gregas giravam em torno dos deuses, dos incidentes e histórias que povoavam o cenário mítico daquela civilização (KURY, 2000, p. 13), ponto a partir do qual Os persas chama a atenção devido a seu fundo histórico. Vernant (1999, p.10) afirma que e sse mundo lendário, para a cidade, constitui o seu passado - um passado bastante longínquo para que, entre as tradições míticas que encarna e as novas formas de pensamento jurídico e político, os contrastes se delineiem claramente, mas bastante próximo para que os conflitos de valor sejam ainda dolorosamente sentidos e a confrontação não cesse de fazer-se (VERNANT, 1999, p. 10). Embora a tragédia possua apenas personagens persas, podem-se constatar problemáticas pertencentes à pólis grega através da análise da configuração ateniense (SOUSA, 2015, p. 25). Rodrigues (2011, p.77) acredita que a encenação de Os persas acompanhava a necessidade de revisar conceitos e refletir sobre os acontecimentos das últimas décadas, de modo que o d rama histórico, além de sua principal finalidade de entreter, era o elemento necessário à comunidade que nascia: guardar na lembrança os feitos de guerra que os aproximavam dos grandes heróis, exaltar a nova era que nascia, mas, por outro lado, recordar sempre os motivos que faziam dos gregos homens livres (RODRIGUES, 2011, p. 77). 215 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. A r e pres en taç ão da t i r a n i a A interpretação mais corrente acerca d’Os persas percebe a tragédia como uma ode à vitória dos helenos. Outra interpretação, porém, coloca como tema a desgraça dos persas decorrente da hybris1 de Xerxes. Para Rodrigues (2011, p.78), a presença do Grande Rei serve para o desenvolvimento do tema da queda do rei, que leva a queda de todo um império, de modo que Xerxes não falaria apenas por si só, mas representaria todo seu povo. Sua hybris consiste na riqueza que excede o limite conhecido pelos gregos, na tirania de um governo injusto e cruel e na blasfêmia de se considerar um deus (RODRIGUES, 2011, p. 78). A partir destes pontos, a imagem do monarca construída por Ésquilo é a de um déspota, responsável pelos males que afligem seu povo. Ao analisar-se a tragédia, extrai-se que a soberba dos persas, mais precisamente, a de Xerxes, é o que os leva à ruína. A lamentação da personagem reforça esta ideia: Mereço apenas comiseração, eu, infeliz, por ter sido o flagelo de minha pátria e de minha raça! (A., Pers., 1221-3) Sousa (2015, p.28) afirma que a tragédia apresenta uma temática cara à sociedade ateniense, na qual “a distinção entre o grego e o bárbaro é bem demarcada, a fim de mostrar que, assim como a ruína da Pérsia trouxe a liberdade para o povo submisso, a ruína de Atenas trará a submissão indesejada para um povo livre” (SOUSA, 2015, p. 28). ATOSSA E que rei e senhor lhes serve de cabeça e comandante de todos os combatentes? CORIFEU Eles não são escravos de ninguém, nem súditos. (A., Pers.,302-4) Entre os muitos temas que podem ser estudados a partir da obra de Ésquilo, destaca-se o contraste apresentado entre a democracia ateniense e a monarquia persa, comparação implícita entre Pérsia e Atenas. Pensando no conceito de liberdade grego, Harrison (2000, p.77) afirma que Os persas apresenta que Atenas sobreviveu e triunfou devido a seus valores democráticos, valores estes que garantiriam seu sucesso futuro. Esses valores democráticos e a liberdade grega contrastam com o modo de vida persa, pautado em uma dominação centralizada no poder real. “Se, 1 ὕϐρις: Conceito grego que pode ser traduzido como excesso, desmedida, orgulho, arrogância, violência, ou qualquer conduta inadequada segundo a moral grega, com frequência atribuído aos persas nas fontes gregas. 216 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. por um lado, os gregos valorizavam a liberdade, os persas eram constantemente oprimidos pelo poder real, pela luta desenfreada por conquistas que, muitas vezes, não tinham fundamento nem mesmo aos próprios persas” (RODRIGUES, 2011, p. 76). E as opulentas cidades da Iônia, cheias de gregos, ele governou impondo-lhes sua própria vontade, firmada no valor de seus soldados e numa multidão heterogênea de auxiliares prontos a servir-lhe! (A., Pers., 1182-7) A imagem do jugo, como uma ideia que remete à opressão associada à escravidão, é no argumento de Nogueira (2011, p.24-25) a mais importante no contexto da tragédia, pois forma metáforas que enfatizam a oposição entre democracia grega e tirania bárbara. Ésquilo a todo o momento usa de metáforas que refletem a ação de homens em atrelar animais por meio do jugo para expressar uma atitude de dominação. A relação entre o jugo e o controle que ele impõe já é um exemplo de como, de maneira figurada, o jugo poderá significar, nos autores gregos, uma opressão gerada por um controle ferrenho ou ainda uma ideia de liberdade quando o contexto remete à ação de sua quebra (NOGUEIRA, 2011, p. 27). nasceu um dia em sua mente a esperança de sujeitar ao jugo o fluxo inalterável do Helésponto sagrado, em cujas águas mora um deus, valendo-se de grilhões humilhantes feitos para afrontar escravos renitentes. Ele tentou modificar aquele estreito e mergulhando nele férreas correntes forjadas a martelo, abriu uma passagem sem óbices a seu exército incontável! (A., Pers., 974-82). Para os antigos gregos, os sonhos possuíam o caráter fundamental de proporcionar informações sobre o futuro (CORREIA, 2015, p. 30). Características do século V a.C., as obras de Ésquilo são marcadas por sonhos episódicos, que são em sua maioria visuais, premonitórios e constantemente trazem inquietação às personagens, como é o caso do sonho que a rainha Atossa descreve aos anciões: 217 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Em pleno sono pareceu-me distinguir duas mulheres de feições muito agradáveis; uma delas vestia-se à maneira persa e a outra usava trajes obviamente dórios; ambas eram mais altas que as mulheres de hoje, e diferiam destas tanto pelo porte como pela beleza sem qualquer defeito. Eram irmãs do mesmo sangue mas moravam em pátrias afastadas, uma lá na Grécia, que lhe coube por sorte, e a outra em terra bárbara. A mim me pareceu que as duas discutiam; meu filho, percebendo o fato, quis contê-las, tentando pôr arreios no pescoço delas. Uma envaidecia-se desses petrechos e oferecia a boca docilmente ao freio, enquanto a outra debatia-se e afinal despedaçava com ambas as mãos o arreio com que Xerxes queria atrelá-la ao carro, tirando-o de si com toda a sua força; pouco tempo depois ela rompeu a brida, partindo finalmente o jugo em dois pedaços. (A., Pers., 212-32). O sonho da rainha retrata duas mulheres que por seu porte e beleza possuem aparência divina. Correia (2015, p.33) apresenta três interpretações para as duas figuras. Elas poderiam representar Ásia e Europa, filhas de Oceano. A primeira mulher poderia representar os gregos da Ásia que aceitaram o jugo persa, enquanto a segunda os gregos da Europa, que o recusaram e se rebelaram. A terceira e mais crível interpretação, segundo a autora, as apresenta respectivamente como representações do povo persa e do povo grego. A ideia de dominação está presente, pois Xerxes impõe às duas mulheres o jugo. A primeira mulher representaria também a forma de governo persa, uma vez que, a partir da perspectiva dos gregos, os persas se submetiam de bom grado ao déspota. O comportamento da outra mulher é o oposto, pois, mesmo atrelada ao carro de Xerxes, ela opõe resistência à submissão, por fim arrebentando os arreios. E ssa mulher não-domesticável representa assim o povo grego e sua forma de governo, baseada na isonomia, na ideia de justiça e na participação de todos os cidadãos no poder, e para o qual a liberdade é um valor tão apreciado, quão temido é o poder concentrado nas mãos de um único homem (CORREIA, 2015, 35). 218 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Ah! Que destino atroz! Ah! Quanto sofrimento invade a minha mente quando ouço falar nestas desgraças! Dói-me mais neste momento pensar nas roupas humilhantes que recobrem o corpo de meu filho. Devo procurar lá no palácio trajes novos para ele. Depois quero encontrá-lo. Nesta hora amarga não trairei a imensa estima por meu filho. (A., Pers., 1133-40). No decorrer da narrativa a rainha Atossa é apresentada em uma posição proeminente, que segundo Harrison (2000, p.77) tinha o intuito de ser uma representação pejorativa, demonstrando uma influência desproporcional e destrutiva feminina nos assuntos políticos. A personagem ainda é caracterizada como egoísta, superficial e petulante, como pode ser observado no trecho acima, preocupada apenas com o bem-estar de seu filho, o que poderia ser também uma afirmação acerca da monarquia persa como um todo (HARRISON, 2000, p. 81). Em frente aos auspícios negativos gerados pelo sonho, a rainha se conforta por saber que mesmo derrotado, Xerxes continuará soberano da Pérsia, visto que o despotismo lhe permite a manutenção do poder. Os anciões persas, por outro lado, acreditam que tal derrota pode colocar em perigo a monarquia: Durante muito tempo, aqui na Ásia homem nenhum irá obedecer às leis dos persas; ninguém pagará tributos decretados pelo império; não mais se cairá ajoelhado na hora de escutar as injunções; o grande rei já não tem força alguma! Não haverá mais restrições no império a qualquer manifestação verbal, pois um povo liberto dos grilhões passa a falar como melhor lhe apraz logo que a força bruta chega ao fim. (A., Pers., 760-71). Schenker (1994, p.283-284) afirma que essas duas perspectivas, pessoal, pois a rainha está preocupada com o bem-estar de seu filho, e nacional, uma vez que os anciões se preocupam com todo o povo persa, coexistem e criam certa tensão, que é liberada ao final da tragédia quando Xerxes, junto ao coro, lamenta a derrota em terras helenas. A relação que Xerxes estabelece com o coro ao final da tragédia, segundo autor, evidencia que os temores dos anciões acerca de um colapso em seu sistema de governo não se concretizaram, que o poder do Grande Rei não é comprometido, assim como o modo de vida persa. 219 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. A s the Elders, the spokesmen throughout the play of the Persian populace, obey their king instead of instructing or even blaming him, it becomes apparent that the fabric of Persian society is still in one piece, that the monarch, even if accountable for his mistakes, is nonetheless still in power (SCHENKER, 1994, p. 293).2 Con s id er açõ es f i n a i s A partir do exposto podemos concluir que Os persas tem como tema a derrota de um grande império, a queda de um Grande Rei trágico, cuja hybris é responsável pelo desastre acometido a seu povo. Esse governante é construído na obra como um tirano, que ao contemplar a derrota entrega-se à lamentação. A distinção entre grego e bárbaro é bastante clara ao longo da tragédia. Os bárbaros persas são submetidos a um déspota, não são livres, o que se apresenta em contraste com a democracia e liberdade grega. É afirmada uma superioridade da democracia grega em relação à monarquia persa, apresentada como algo frágil, propenso a esfacelar-se a menor pressão. Apesar deste aspecto do governo persa, seu modo de vida resiste, algo que pode ser interpretado como inerente a seu povo, característico dos bárbaros. A partir destes aspectos se constrói uma relação de alteridade entre gregos e persas. Além da tirania trabalhada no presente ensaio, a obra ainda apresenta muitos elementos a partir dos quais pode-se pensar a representação do “outro”. Li s ta d e Ab r eviat u r a s A., Pers., — Aeschylus, Persae, ( Ésquilo, Os Persas). Fon t e s ÉSQUILO. Os Persas. 4ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. Refer ên c ias Bib l i o g r a f i ca s CORREIA, B. C. de P. A adivinhação na tragédia de Ésquilo. 416 f. Tese (Doutorado) - 2 “Como os anciões, porta-vozes do povo persa ao longo da tragédia, obedecem o rei ao invès de instruir ou culpá-lo, se torna aparente que a estrutura da sociedade persa continua intacta, que o monarca, mesmo que responsável por seus erros, assim continua no poder” (tradução nossa). 220 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Curso de Letras Clássicas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. HARRISON, T. The Emptiness of Asia. Londres: Duckworth, 2000. NOGUEIRA, R. de S. As metáforas trágicas em Persas de Ésquilo. 216 f. Tese (Doutorado) - Curso de Letras Clássicas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. RODRIGUES, M. A. Nas redes da Até: A hybris de Xerxes em Os persas de Ésquilo. 101 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Estudos Literários, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2011. SCHENKER, D. The Queen and the Chorus in Aeschylus’ Persae. In: Phoenix, Columbia, v. 48, n. 4, p.283-293, inverno. 1994. SOUSA, Renata Cardoso de. A formação discursiva d’Os persas de Ésquilo. Revista Hélade, Niterói, v. 1, n. 2, p.24-29, dez. 2015. VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e Tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva, 1999. Recebido em 12/9/2019 e aceito em 2/10/2019. 221 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. A utilização de plataformas digitais na pesquisa e no trabalho com fontes numismáticas Filipe Ramos Cerqueira Graduando em História (UFRJ) cerqueirafilipe98@hotmail.com Orientador: Prof. Dr. Deivid Valério Gaia (UFRJ) Int ro d u ç ão O campo das Humanidades Digitais, apesar de jovem, vem se desenvolvendo cada vez mais e gerando inúmeras contribuições para a ciência e para a pesquisa. Desde o início da década de 1990, quando se tornou viável a realização desse tipo produção, as Humanidades Digitais têm colaborado nas mais variadas áreas de atuação, sobretudo na História, atuando desde a preservação de documentos por meio de copias digitais até na democratização ao acesso à cultura. Não tardando para que, assim como as bibliotecas digitais, precursoras do campo, os elementos da cultura material também fossem alvo desse tipo de produção cientifica. O presente artigo tem como objetivo a apresentação de uma das principais plataformas de Humanidades Digitais voltadas para a cultura material, o Online Coins of the Roman Empire (OCRE), sendo essa uma plataforma voltada para exemplares numismáticos, moedas e medalhas do período imperial de Roma. Online C o ins o f t h e Ro m a n E m p i r e ( O C RE ) O Online Coins of the Roman Empire (OCRE), é uma plataforma digital de acessibilidade à cultura material, possibilitando o acesso a um diversificado acervo de moedas e medalhas da Antiguidade romana e tendo como objetivos a disseminação de peças catalogadas, o incentivo à pesquisa e o livre acesso à cultura. Esse é um projeto coordenado pela American Numismatic Society1 e pelo Institute for the Study of e Ancient 1 Fundada em 1858, a American Numismatic Society (ANS) é uma associação localizada em Nova York voltada para o estudo e a pesquisa com moedas. 222 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. World2 da New York University, contando com o financiamento da National Endowment for the Humanities3. Estão presentes na plataforma mais de 43 mil exemplares numismáticos digitalizados, que datam desde 31 a.C. até o ano de 491 d.C., para além de links de entrada para exemplares presentes em museus e instituições colaboradoras, tais como o British Museum e Münzkabinett do State Museum of Berlin, que ampliam o número de exemplares para mais de 100 mil. O Online Coins of the Roman Empire é dirigido pelo Dr. Andrew Meadows4 e pelo Professor Roger Bagnall5, contando também com a colaboração de inúmeros outros pesquisadores. O site do OCRE possui a portabilidade para diversos idiomas, contendo traduções dedicadas para cada um deles, sendo possível a sua visualização em mais de 15 línguas diferentes, desde o original, em inglês, até o árabe, porém, até o momento, infelizmente, sem uma versão em língua portuguesa. Tendo em vista o contexto no qual essa plataforma se inscreve, a existência de ferramentas, para além dos exemplares digitalizados, é um de seus pontos altos, uma vez que essas ferramentas são extremamente úteis no auxílio de uma produção acadêmica. Sendo assim, o OCRE conta com funcionalidades que vão desde a criação de gráficos personalizados até o mapeamento dos exemplares numismáticos. Uma das principais ferramentas do site é a aba Browse, que possui mecanismos avançados de busca, permitindo que o usuário faça uma seleção de características específicas tais como tipo de objeto, material de cunhagem, data de cunhagem, região, valor monetário, entre outros. Essa função facilita a seleção de um corpus documental com as características desejadas. A plataforma digital também conta com uma segunda ferramenta de busca, a aba Search, que conta com um mecanismo de busca por meio de palavras-chave. Existe ainda uma terceira ferramenta de busca, a aba Identify a Coin, que, por meio da seleção do material de cunhagem e da pesquisa por inscrições presentes nas moedas, anverso ou reverso, possibilita ao visitante uma outra forma de delimitar o corpus documental desejado. Outra ferramenta presente no site é a aba Maps, uma funcionalidade de busca, nos moldes de especificação da aba Browse, que permite localizar, em um mapa de época, os artefatos nas regiões onde estes foram encontrados ou produzidos. Isso possibilita que o usuário realize um mapeamento de seu corpus documental, ou, até mesmo, um estudo de cunho geográfico sobre as moedas e cunhagens do Império romano. Assim como a ferramenta Maps, a aba Visualize Queries, também tem suas aplicações voltadas para a construção de pesquisas, uma vez que esse mecanismo desenvolve gráficos personalizados de acordo com as características selecionadas pelo 2 O Institute for the Study of the Ancient World (ISAW) é um centro avançado de graduação e pesquisa atuante no campo da Antiguidade. 3 Criada em 1965, a National Endowment for the Humanities (NEH) é uma agência federal independente norte-americana, sendo uma das maiores financiadoras dos programas de humanidades dos Estados Unidos. 4 Professor de História Antiga na Universidade de Oxford. 5 Professor de História Antiga na Universidade de Columbia. 223 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. usuário. Essas características estão entre as mais diversas possíveis, desde a presença de figuras de proeminência, como os imperadores, até a presença de determinada divindade, passando por região de cunhagem, entre outras. Essa aba se subdivide em duas, Typological Analysis e Measurement Analysis. Na ferramenta Typological Analysis é possível a formulação de dois tipos de gráficos, os quantitativos, trabalhando com grupos de números brutos, e os gráficos percentuais, trabalhando com números relativos. Isso permite com que se possa realizar diferentes esquematizações com base no acervo contido no Online Coins of the Roman Empire como, por exemplo, a porcentagem de áureos no governo de Adriano ou a quantidade bruta de moedas produzidas na região do Egito. Já na ferramenta Measurement Analysis, que tem uma empregabilidade menos intuitiva que a da Typological Analysis, é possível produzir, também, dois tipos de gráficos, sendo ambos relacionados a uma quantidade numérica por intervalo de tempo, gerando assim médias. No primeiro tipo, teremos essa média relacionada à variação do peso das moedas ao longo do tempo, enquanto, no segundo, essa média estará relacionada ao diâmetro das moedas ao longo tempo. Sendo assim, torna-se possível traçar a variação, dentro dos quesitos citados, de diferentes tipos de moedas, uma vez que as características como região, material de cunhagem e outras, também são aplicáveis a esta modalidade de gráfico. A média de variação do diâmetro dos áureos no governo de Adriano, ou a média de variação de peso das moedas produzidas no Egito são bons exemplos do que essa aba pode fornecer em termos de informações úteis para uma pesquisa. Por fim, temos a aba Symbols, que apresenta uma seleção prévia de marcas e monogramas6, recorrentes em alguns exemplares distintos de moedas, como, por exemplo, monogramas utilizadas por Teodósio II. Ela pode ser empregada em situações muito especificas de procura. Tendo em vista as múltiplas funcionalidades e ferramentas aqui apresentadas e o enorme contingente de exemplares presentes no acervo do Online Coins of the Roman Empire, podemos classificar essa plataforma digital como uma das mais completas dentro do meio, pois oferece ao pesquisador iniciante um mar de possibilidades e descobertas e, ao pesquisador mais experiente, diversos meios de aprofundamento e de otimização do seu trabalho. Essa base, portanto, comtempla públicos diferentes de acordo com suas necessidades particulares, de maneira gratuita e com fácil acessibilidade. Pa r a além d o On l i n e C o i n s o f t h e Ro m a n Em pir e (OC R E) Visando complementar o projeto encabeçado pelo site Online Coins of the Roman Empire, a American Numismatic Society possui uma segunda plataforma digital 6 Sigla formada por uma ou várias letras, conjuntas ou entrelaçadas, significando um símbolo ou a inicial, ou iniciais, de um nome. 224 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. chamada Coin hoards of the Roman Republic Online (CHRR Online), que apresenta exemplares numismáticos do período republicano de Roma, com um acervo digitalizado que data desde 155 a.C. até o ano 2 d.C., contando principalmente com moedas e medalhas do British Museum. Esse projeto é dirigido pelo Dr. Kris Lockyear7 e está atualmente em uma versão beta disponível somente em língua inglesa, possuindo as ferramentas de busca Browse e Search, assim como no OCRE, além de contar também com a funcionalidade da aba Maps. Essa plataforma digital, bem como a da versão imperial, possui uma aba, chamada Analyze Hoards, dedicada a formulação de gráficos, porém de maneira simplificada, oferecendo somente as possibilidades equivalentes as da ferramenta Typological Analysis. Uma alternativa ao Coin hoards of the Roman Republic Online para o estudo das moedas republicanas romanas é a plataforma digital Coinage of the Roman Republic Online (CRRO), que foi idealizada como sendo uma versão online da publicação Roman Republican Coinage (RRC), de Michael Hewson Crawford8, publicada originalmente em 1974. O site do CRRO conta também com as principais funcionalidades de busca presentes nas plataformas mencionadas anteriormente, as ferramentas Browse e Search, possuindo também a ferramenta Maps, além de, assim como o OCRE e, diferentemente do CHRR, dispor da versão mais elaborada ferramenta de gráficos, a Visualize Queries, e suas subdivisões Typological Analysis e Measurement Analysis. Ref e r ên c ias Bib l i o g r á f i ca s : OCRE – Online Coins of the Roman Empire. Disponível em: <http://numismatics.org/ ocre/>. Acesso em: 21 de setembro de 2019. CHRR Online - Coin hoards of the Roman Republic Online. Disponível em: <http:// numismatics.org/chrr/>. Acesso em: 21 de setembro de 2019. CRRO - Coin hoards of the Roman Republic Online. Disponível em: <http://numismatics.org/crro/>. Acesso em: 21 de setembro de 2019. ANS - American Numismatic Society. Disponível em: <http://numismatics.org/>. Acesso em 21 de setembro de 2019. ISAW - Institute for the Study of the Ancient World. Disponível em: <https://isaw.nyu. edu/>. Acesso em 21 de setembro de 2019. NEH - National Endowment for the Humanities. Disponível em: <https://www.neh. gov/>. Acesso em 21 de setembro de 2019. British Museum. Disponível em: <https://www.britishmuseum.org/>. Acesso em 21 de setembro de 2019. Nomisma. Disponível em: <http://nomisma.org/ >. Acessado em 21 de setembro de 2019. 7 Membro do Institute of Archaeology da University College London. 8 Professor emérito da University College London. Recebido em 9/9/2019 e aceito em 30/9/2019. 225 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Limites e possibilidades da DIGITAL PROSOPOGRAPHY OF THE ROMAN REPUBLIC para a pesquisa em história antiga Amanda Lemos Fontes Mestranda pelo PPGHC - UFRJ Bolsista CAPES amanda_accio@hotmail.com Orientador: Prof. Dr. Deivid Valério Gaia (UFRJ) O q u e é a D igita l P ro s o p o g r a p h y o f t h e Roman R epu b lic ( D P R R) Fundado em 1990, o Departament of Digital Humanities (DDH) do King’s College London (KCL) surge com o intuito de alargar as fronteiras que delimitavam e dificultavam a produção historiográfica ao redor do mundo, assim como democratizar o acesso à informação histórica1. Com o tempo, o departamento veio se expandindo, tendo já publicado mais de 149 projetos digitais2 das mais diversas temporalidades históricas. E é em meio a tais projetos que se situa a Digital Prosopography of the Roman Republic (DPRR), uma plataforma digital de pesquisa prosopográfica estruturada e orientada pelos padrões da Semantic Web e por Linked Open Data (LOD/RDF), sobre a qual aqui nos concentraremos. Tendo sido publicada em 2017, a DPRR é o resultado de um projeto de três anos iniciado em novembro de 2013 e concluído em maio do ano de sua publicação, com o financiamento do Arts and Humanities Research Council (AHRC)3, sob a liderança do Professor Henrik Mouritsen4 e pela Doutora Maggie Robb5. Em seu resumo inicial6 , os organizadores da plataforma afirmaram ser o objetivo principal de seu projeto 1 Informações obtidas em: https://www.kcl.ac.uk/ddh/about/about (acessado em 15/09/2019) 2 Informações obtidas em: https://kclpure.kcl.ac.uk/portal/en/organisations/digital-humanities(b2f7d708-74dd-4fbe-b858-a36f316611dc)/projects.html?period=finished (acessado em 12/09/2019). 3 Fundado em 2005, o AHRC é um conselho de pesquisa britânico, sendo um órgão público não-governamental que oferece apoio à pesquisas e estudos de pós-graduação em artes e humanidades, de idiomas e direito, arqueologia e literatura inglesa, design e artes criativas e performáticas (https:// ahrc.ukri.org/ - acessado em 15/09/2019). 4 Professor de História Romana do Departamento de Clássicas do King’s College London. 5 Pesquisadora visitante de Latim no King’s College London. 6 Disponível em: https://gtr.ukri.org/projects?ref=AH/K007211/1 (acessado em 12/09/2019). 226 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. “aprimorar nossa compreensão da estrutura e dinâmica da elite [romana republicana] por meio do estudo prosopográfico de seus indivíduos atestados, incluindo sua composição familiar, padrões de posse de cargo, hierarquias internas, propriedades e riquezas”. E, para tanto, tendo em vista a já extensa tradição de compilação prosopográfica sobre a época pretendida de estudo, 509 a 31 a.C., os organizadores da DPRR propuseram um desvio do método prosopográfico mais usual. Visando a prática de uma análise compreensível e multifacetada dos membros das elites romanas e, partindo do princípio de que a tecnologia digital desenvolvida pelo DDH do KCL havia já avançado o suficiente para que fosse possível a digitalização comentada semiautomática, a DPRR é baseada em relatos dos compilados e escritos de alguns autores de referência do campo da prosopografia Antiga. A espinha dorsal da base de dados que alimenta a plataforma, então, é a informação levantada por Broughton sobre os magistrados republicanos em The Magistrates of Roman Republic (MRR); além disso, o projeto incorpora diretamente em seu banco de dados o inventário de sacerdotes romanos desenvolvido por Rüpke em Fasti Sacerdotum, a coleção de relações familiares encontradas no trabalho de Zmeskal intitulado Adfinitas e o compilado de Francisco Pina-Polo sobre candidatos derrotados e repulsae. Ainda, apresenta como parte de seu corpus principal os escritos de Brennan sobre o cargo da pretoria e de Nicolet sobre a ordem equestre7. Com o fu n c io na a D P R R Como se trata de uma base de dados que busca facilitar o encontro do pesquisador da Antiguidade com as personagens que viveram na época estudada, a DPRR, uma plataforma abrangente e pesquisável de todos os membros conhecidos dos estratos superiores da sociedade romana republicana, tem um sistema de procura que se baseia na divisão de suas personagens em três páginas de pesquisa com funções diferentes: Person Search, Fasti Search e Senate Search. Cada uma delas apresentando um tipo de informação e com seus próprios filtros de pesquisa, que buscam o resultado mais coeso possível aos desejos do pesquisador. Ao se efetuar uma pesquisa em alguma dessas páginas, o usuário se depara com resultados em formas de listas de pessoas. E, ao se clicar nos nomes de qualquer dessas personagens, abre-se uma página de detalhamento sobre a mesma, que aqui chamaremos de fichas catalográficas e, na plataforma, é identificada pelo título Person Details. Essas fichas contém um resumo da informação retida sobre determinado agente, dividido em 4 seções: status (nobilis, homo novus, patrício ou equestre), Life Dates (acontecimentos importantes da vida), Relationships (relacionamentos como filiação, casamento, divórcio, paternidade e adoção) e Career (carreira). Ademais, é importante notarmos que, por conta da grande variedade do material do qual as informações da base de dados são retiradas, muitas possuem deter7 As obras aqui citadas são indicadas pela própria plataforma, em: romanrepublic.ac.uk/bibliography (acessado em 13/09/2019). 227 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. minado grau de incerteza – o que é indicado visualmente através do uso de pontos de interrogação ou pela utilização de itálicos. Além disso, sempre que possível, nas fichas catalográficas, ao se clicar no botão Expand à direita da tela, são indicadas algumas – mas não todas –referências das fontes primárias à informação ali contida, além de estarem sempre presentes também indicações das obras historiográficas e compilados prosopográficos sobre os quais tal informação se baseia. Ainda, é crucial destacarmos que toda a informação resultante de uma pesquisa, sejam as listas ou as fichas catalográficas, é passível de ser impressa ou salva em formato PDF pelo usuário da plataforma. Pers o n Se arc h A primeira das páginas de pesquisa disponibilizadas pela DPRR, contendo informações a respeito de cerca de 4.876 personagens, é a Person Search. Essa página dá acesso a todos os indivíduos da base de dados, identificados através de códigos pessoais e únicos. Aqui, pessoas podem ser procuradas por datas, por isso a cada indivíduo foi dada uma era de vida – chamada no site de Life Dates – baseada ou em estimativas sobre a duração da vida na Antiguidade ou em datas conhecidas8. É preciso sempre estar atento ao fato de que as Life-Dates abarcam a vida das personagens desde o nascimento até a morte. Desse modo, os resultados obtidos por uma pesquisa utilizando tal filtro mostrarão todas as pessoas que nasceram, se encontravam vivas ou que tenham morrido nesse período. Por isso, os filtros disponíveis para as pesquisas são muitos e visam buscar um resultado mais compatível com o intuito de quem pesquisa, a partir de uma lista o menos abrangente possível. Assim, a Person Search dispõe de três campos de filtros: Name (nome), Personal Data (informações pessoais) e Career (carreira). Em Name, os resultados são filtrados de acordo com o praenomen, o nomen, o pai, o avô, a tribo e as cognomina de determinada personagem, além de ser possível, também, a pesquisa através do código fornecido para os agentes no compêndio Real-Encyclopädie de Pauly-Wissowa. Em Personal Data, além de ser o local onde são inseridas as datas limites da pesquisa (Life Dates), também é possível filtrar os resultados através de dados como gênero, status e alguns Life Events – acontecimentos marcantes das vidas pessoais das personagens, como: adoção, nascimento, morte, morte violenta, exílio, expulsão do Senado, proscrições ou restaurações. Infelizmente, nem todos os Life Events fornecidos nas listas catalográficas das personagens – como casamentos, divórcios e filiações – estão disponíveis como filtros dessa categoria, fazendo com que os padrões de estabelecimento dessas relações só possam ser atestados diretamente pelo pesquisador. Enfim, o filtro correspondente à carreira das personagens, Career, filtra os resultados a partir dos cargos e magistraturas ocupadas pelos homens em conjunto 8 Personagens com datas desconhecidas, se encontram no final das listagens fornecidas. 228 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. com as Life-Dates. Aqui, se têm disponíveis como filtros: Magistracies (magistraturas), Promagistracies (promagistraturas), Priesthoods (sacerdócios) e Lower Offices (postos menores como legado e outras posições militares, papéis jurídicos, comissões especiais, comissões de terras e etc)9. Também, nesse campo se encontram também disponíveis os filtros correspondentes às distinções como triunfos e princeps senatus, além daqueles referentes às localizações geográficas. Fa s t i Searc h A segunda das páginas de pesquisa da DPRR, contendo informações sobre a ocupação de aproximadamente 8.599 cargos e magistraturas, permite a pesquisa através de cargos anuais, com os resultados sendo listados de acordo com a ordem cronológica de ocupação desses cargos10. Além disso, nessa aba de pesquisa, ao contrário das carreiras disponíveis como filtros na Person Search, não se encontram os cargos de sacerdócio e nem a distinção de princeps senatus. Aqui, o campo de Life Dates é substituído nos filtros pelo campo Career Dates, onde serão alocadas as datas limites da pesquisa efetuada pelo usuário. Agora, os resultados obtidos não mais se referirão aos homens que tenham nascido, estavam vivos ou tenham morrido no período indicado, mas sim apenas os homens que se tenham ocupado algum cargo público; facilitando então, a análise dos padrões de carreiras dos homens republicanos – dado que esse tipo de pesquisa resulta numa listagem menos abrangente que aquela fornecida pela Person Search11. A Fasti Search possui dois campos de filtros. O primeiro sendo o campo referente ao nome, que funciona de forma idêntica ao campo Name da Person Search. E o segundo sendo o campo Career, onde se encontram os filtros correspondentes às carreiras dos homens, como: Career-Dates – acima discutidas –, Magistracies, Promagistracies, Triumphs (triunfos) e Lower Offices. Além disso, aqui também se encontra alocada a aba correspondente à pesquisa por localização geográfica e províncias associadas a magistraturas ou outros postos. 9 Numa pesquisa que se concentra nos padrões de ocupação do cargo de tribuno da plebe entre os anos 60 e 20 a.C., por exemplo, além de o usuário ter de indicar tais números na aba de Life Dates, no filtro de Personal Data acima referido, terá de selecionar o filtro tribunus plebis, na aba de Magistracies, para que os resultados obtidos através da pesquisa correspondam a todos os homens que ocuparam o cargo de tribuno e que estavam vivos, que nasceram ou que morreram nos quarenta anos que deseja investigar (sendo a ocupação datada anterior ou posteriormente à data indicada), sejam exibidos. 10 Destacamos que apenas os cargos que podem ser datados com certa precisão são incluídos nos resultados, apresentando uma margem de erro na datação de dois anos a mais ou a menos; enquanto aqueles que possuem datas incertas podem ser encontrados nos finais das listas obtidas pelas pesquisas na Person Search. 11 A pesquisa que busca se concentrar sobre o cargo de tribuno da plebe durante os quarenta anos acima referidos, ou seja, de 60 a 20 a.C., caso seja feita na página da Fasti Search, obterá como resultado não todos os homens que nasceram, viveram e morreram nesses anos e que tenham ocupado tal cargo (sendo a ocupação datada anterior ou posteriormente à data indicada), mas sim todas as personagens que ocuparam o cargo tribunício durante esses anos. 229 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Sen at e Searc h Enfim, na última das páginas de pesquisa, a Senate Search, é possibilitada ao usuário a análise da composição senatorial num determinado ano desde a reforma de 180 até a data limite da base de dados: 31 a.C. É importante destacarmos que os anos que desejam ser pesquisados não são digitados em filtros nos modelos das últimas duas páginas, mas avançam de acordo com o movimento que o usuário da plataforma realiza numa barra cronológica. Além disso, para cada ano estão disponíveis quatro listagens, cada uma com um grau de certeza diferente sobre os membros do Senado, que podem ser selecionadas pelo usuário. A primeira dessas listagens disponíveis por grau de certeza é aquela identifica como Certain. Nela, são mostrados os senadores que ocuparam um cargo que lhes deu acesso ao Senado anteriormente à data estipulada na pesquisa do usuário e que também foram atestados como Senadores posteriormente àquele ano12. Outra dessas listagens, identificada como Uncertain, apresenta o nome de Senadores dos quais não se têm certeza de o serem ou não no ano indicado. Já na listagem nomeada Attested Before estão presentes e visualizados, em ordem decrescente, aqueles homens que ocuparam a cadeira senatorial anteriormente à data pesquisada, mas não posteriormente. Enquanto que na aba intitulada Attested After se encontram aqueles que vieram a compor o corpo senatorial após à datação estipulada pelo usuário mas não anteriormente, onde os resultados são apresentados numa listagem que segue ordem cronológica. 3. Refer ên c ias Bi b l i o g r á f i ca s AHRC, What We Do. Disponível em: https://ahrc.ukri.org/about/what-we-do/. Acessado em 15 de setembro de 2019. KCL, Digital Prosopography of the Roman Republic - DPRR. Disponível em: http://romanrepublic.ac.uk/. Acessado em 15 de setembro de 2019. KCL, Digitizing the Prosopography of the Roman Republic, Disponível em: https://gtr.ukri. org/projects?ref=AH/K007211/1. Acessado em 15 de setembro de 2019. KCL, Arts and Humanities. Disponível em: https://kclpure.kcl.ac.uk/portal/en/organisations/digital-humanities(b2f7d708-74dd-4fbe-b858-a36f316611dc)/projects.html?period=finished. Acessado em 15 de setembro de 2019. 12 De acordo com a própria DPRR, para estipular quais cargos davam ou não acesso às cadeiras do Senado, assume-se (com dado conservadorismo) que questores teriam entrado no Senado no ano posterior à ocupação do cargo, tribunos no terceiro ano após terem segurado o cargo e que ediles e pretores seriam admitidos no corpo senatorial um mínimo de dois anos anteriormente à ocupação de tal posto; além disso, assume-se que cônsules deveriam já ser senadores há pelo menos cinco anos antes de poderem ser eleitos à tal cadeira (disponível em: http://romanrepublic.ac.uk/technical-overview/ - acessado em 15/09/2019). 230 Recebido em 15/9/2019 e aceito em 2/10/2019. GAÎ A: Vol. 10, N. 1. KCL, Department of Digital Humanities. Disponível em: https://www.kcl.ac.uk/ddh/ about/about. Acessado em 15 de setembro de 2019. Recebido em 15/9/2019 e aceito em 2/10/2019. 231 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Antiga e Conexões: um blog como ferramenta para divulgar o mundo antigo online André Sefrin Nascimento Pinto Graduando em História (UFPR) andresefrin@ufpr.br Barbara Fonseca Graduanda em História (UFPR) Bolsista de iniciação científica do CNPq barbarafonseca@ufpr.br Letícia Schevisbisky de Souza Graduanda em História (UFPR) leticia.schevis@ufpr.br Lorena Pantaleão da Silva Doutoranda em História (PPGHIS UFPR) Bolsista de doutorado da CAPES pantaleaolorena@gmail.com Orientadora: Profª. Dra. Renata Senna Garraffoni Ao olharmos para o passado clássico, o fazemos a partir de nossas perspectivas do presente. Nesse sentido, diversos estudos das áreas de recepção e usos do passado têm demonstrado como, mesmo distantes do espaço e tempo em que as sociedades greco-romanas se desenvolveram, as referências a estes povos são abundantes no território brasileiro. Assim, em um mundo que cada vez mais se reconhece como sendo virtual, nos parece interessante considerar o impacto dos discursos propagados na internet no processo de compreensão do mundo antigo. O contato com o passado greco-romano no contexto escolar brasileiro, na disciplina de história, ocorre majoritariamente durante o sexto ano do Ensino Fundamental e no primeiro ano do Ensino Médio, muitas vezes enfatizando a ideia de que seriam povos que deram origem à civilização ocidental, à democracia, ao teatro e 232 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. a outros elementos que os associariam a contemporaneidade, reforçando a ideia de uma suposta continuidade e legado. No entanto, a relação dos indivíduos com o mundo antigo não é exclusivamente escolar e institucional: se dá por meio de instâncias diversas, tais como filmes, séries, videogames e novas formas de discursos presentes no universo virtual. Tendo estes processos em mente, bem como observando o aumento exponencial de discursos permeados por referências ao mundo greco-romano em diferentes espaços na internet, passamos a cultivar a ideia de criarmos um blog com o intuito de aproximar a produção acadêmica a um público mais amplo. Assim, em maio de 2019 foi lançado o blog Antiga e Conexões, elaborado por um grupo de doze estudiosos (docentes, alunos da graduação e pós-graduação) do departamento de História da Universidade Federal do Paraná. Foi a partir das reuniões, originalmente voltadas para a discussão de textos teóricos sobre antiguidade e recepção, que nasceu a ideia de criar um blog voltado para um público mais amplo, não necessariamente formado por historiadores e classicistas. A utilização de blogs como meio de comunicação e registros de atividade já havia sido testada por alguns integrantes do grupo anteriormente – com o projeto de extensão Cultura Material e Gênero (2017-2018). Não temos como objetivo central a divulgação de produção acadêmica em seu sentido mais estrito, mas sim atrair uma audiência diversa – reconhecendo a importância da divulgação da pesquisa científica para além do ambiente universitário. Considerando que o nosso público alvo são pessoas interessadas no passado greco-romano que não estão necessariamente envolvidas profissionalmente na área, buscamos desenvolver um conteúdo que se distancia dos modelos tradicionais de revistas acadêmicas. Considerando a multiplicidade de discursos presentes no universo on-line, compreendemos que um elemento relevante para a sobrevivência e amplitude da área de influência dos dados é a simplicidade com a qual eles são apresentados, bem como a facilidade no acesso a eles. Com estas questões em mente, elaboramos a versão inicial do blog, em que apresentamos dicas de leitura de trabalhos sobre o passado clássico; entrevistas com classicistas e posts com temática sobre a antiguidade. Os posts são elaborados de acordo com uma agenda pré-determinada e, partindo de uma perspectiva igualitária todos (independentemente da titulação) recebem o mesmo espaço para divulgar seus textos. Por fim, temos as postagens sobre assuntos diversos relacionados à Antiguidade Clássica. Enquanto as dicas de leitura têm um caráter mais tradicional, aquelas buscam estabelecer paralelos com a conjuntura sócio-política atual ou mesmo com a cultura pop. Os temas variam entre dados sobre História Antiga e a recepção em filmes, músicas, exposições em museus, jogos, entre outros. Porém, não é só por serem menos formais que eles deixam de ter reflexões sobre como a recepção está atuando nesses casos, ou mesmo sobre métodos de se cativar o gosto pela História Antiga nas pessoas, fugindo do modelo da tradicional aula expositiva e livros escolares. Aqui são feitas problematizações, descobertas e curiosidades sobre assuntos que nem sempre se esperam que tenham relações com a Antiguidade, prévias sobre temas de estudos atuais, além de se manter aberto o espaço para o diálogo com os leitores, sejam eles especialistas ou não. 233 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Com esses três recortes temáticos nas postagens, almejamos conseguir aproximar os pesquisadores do público e mostrar formas de trabalhar com a Antiguidade além do campo historiográfico. Com as dicas de leitura esperamos conseguir apontar caminhos a todas as pessoas que, assim como nós, se interessam por esse campo, bem como trocar referências sobre nossos objetos de estudo. Já as postagens de temas diversos buscam dar um tanto de materialidade e contextualização àquilo que pode muitas vezes parecer teórico demais. O tema da recepção pode soar como secundário frente a uma historiografia mais clássica, ou mesmo nem parecer pertencente à temporalidade correta, mas assim que começamos a atentar para o quanto o passado é recebido, re-imaginado ou reapropriado na Contemporaneidade, o tema perde sua nebulosidade e se torna mais palpável e inteligível. O primeiro post do blog foi realizado no dia 2 de maio de 2019 e, desde então, foram publicadas dez entrevistas, sete dicas de leitura e doze posts com assuntos variados sobre o mundo antigo. Até o dia 20 de setembro deste ano obtivemos um total de 669 visitantes com 1838 visualizações. A maior parte delas são provenientes do Brasil, mas também contamos com acessos estrangeiros, sendo 47 do Reino Unido; 26 dos Estados Unidos; cinco da Alemanha; três da Argentina; três de Portugal; dois da Irlanda; um da Espanha e um da República Tcheca; e uma visualização marcada pelo contador do wordpress como União Europeia. Considerando a especificidade do tema e que o processo de divulgação do blog foi elaborado de forma exclusivamente orgânica, por meio de redes sociais como o Facebook e o Instagram, acreditamos ser um resultado bastante satisfatório para os seis meses iniciais. Dentre os nossos próximos objetivos, pretendemos aumentar o engajamento em nossas redes sociais, bem como melhorar a periodicidade das postagens. Por fim, ainda que não se trate de um projeto acadêmico tradicional, acreditamos na necessidade de ampliar a divulgação de pesquisas sobre o passado clássico com a população, bem como entendemos que existe um público interessado pelo tema e muitos espaços ainda a serem ocupados. Col ab o r ad o r es n o A n t i g a e C o n e xõ e s : Alexandre Cozer (Doutorando em História Antiga no PPGHIS UFPR); André Sefrin Nascimento Pinto (Graduando em História na UFPR); Barbara Fonseca (Graduanda em História na UFPR); Camilla Miranda Martins (Doutoranda em História Antiga no PPGHIS UFPR); Cassiana Sare Maciel (Graduanda em História da UFPR); Ingrid Cristini Kroich Frandji (Doutoranda em História Antiga no PPGHIS UFPR); Leticia Bail (Graduanda em História Memória e Imagem na UFPR); Letícia Schevisbisky de Souza (Graduanda em História na UFPR); Lorena Pantaleão da Silva (Doutoranda em História Antiga na UFPR); Mariana Fujikawa (Mestranda em História na UFPR); 234 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Mikaely Santos (Graduanda em História Memória e Imagem na UFPR) e Renata Senna Garraffoni (Professora de História Antiga no Departamento de História da UFPR). Nosso e-mail para contato é geantiguidadepresenteufpr@gmail.com. Ref e r ên c ias Bib l i o g r á f i ca s ANTIGA E CONEXÕES, 2019. Disponível em: https://antigaeconexoes.wordpress. com/>. Acesso em: 02 out. 2019. CULTURA MATERIAL E GÊNERO: a história das mulheres no Museu Paranaense, 2018. Disponível em: <https://culturamaterialegenero.wordpress.com/>. Acesso em: 02 out. 2019 FACEBOOK, Antiga e conexões. 2019. Disponível em: < https://www.facebook.com/ antigaeconexoes/>. Acesso em: 02 out. 2019. INSTAGRAM, Antiga e conexões. 2019. Disponível em: <https://www.instagram.com/ antigaeconexoes/>. Acesso em: 02 out. 2019. Recebido em 14/9/2019 e aceito em 3/10/2019. 235 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Projeto de extensão nós, bruxas: mulheres no mito, no cinema e na história Pedro Octávio Lima Branco Graduando em Licenciatura de História (UERJ-FFP) Bolsista de iniciação científica do CETREINA pedro.octavio@outlook.com.br Orientadora: Profa. Dra. Lolita Guimarães Guerra (UERJ) Sob re o pro j e t o d e e x t e n s ão O projeto de extensão Nós, Bruxas: mulheres no mito, no cinema e na história1 visa produzir um diálogo entre mito, cinema e história através de cine-debates conduzidos pelos membros de sua equipe e os palestrantes convidados, por meio da análise e questionamento dos estereótipos de gênero, presentes no cinema e no mito. Assim, o projeto visa expor o caráter histórico das representações das mulheres como bruxas, deusas, musas, donzelas, mães, etc. Através do discurso contemporâneo do cinema, são resgatados contextos espaciais e temporais de construção dos estereótipos femininos, em especial os expostos nas mitologias antigas, medievais e modernas. O Nós, Bruxas tem abrangência Estadual com o público-alvo sendo os estudantes graduação e pós-graduação, em especial de toda a Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo (UERJ-FFP), e os docentes da rede pública de ensino, nos níveis fundamental e médio, do Estado do Rio de Janeiro. Com apresentações presentes no meio do calendário letivo, tentamos atingir um bom número de pessoas através de títulos mais alternativos do cinema (muitas vezes presentes em grandes festivais de cinema, mas não nas grandes bilheterias) ou aqueles de maior apelo popular, porém de profundos significados. A maioria dos filmes que são debatidos têm como foco e/ou protagonismo personagens do gênero feminino, ao qual a sua posição social, sexualidade e, até mesmo, divindade são postas em discussão pelo enredo da mídia. Filmes como: Mother!, de Darren Aronofsky (2017), The Babadook, de Jennifer Kent (2014), e Antichrist, de Lars Von Trier (2009), são exemplos de títulos passados nos cine-debates. 1 GUERRA, L. Nós, Bruxas: mulheres no cinema, no mito e na história. Projeto de Extensão. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2018. 236 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. H i s t ó rico d e Eve n t o s d e 2 0 1 8 e 2 0 1 9 Na tabela a seguir, teremos os cine-debates promovidos desde o início de 2018 até a atual publicação desse relatório. Sempre buscando profissionais de outros cursos, áreas de conhecimento e entidades de ensino (público ou privada), os cine-debates contam com a presença da equipe organizadora, coordenada pela Dra. Lolita Guimarães Guerra (professora do departamento de História Antiga da UERJ). PA RT IC IPA N T E S C ON V IDA DOS C I NE -D E BATE DATA Antichrist, Lars Von Trier (2009) 15/03/2018 Vaneza Azevedo (historiadora e psicóloga) Mother!, Darren Aronofsky (2017) 02/05/2018 Realizado pela equipe organizadora. I Love Dick, Sarah Gubbins e Jill Solowa (2016-2017) 27/09/2018 Realizado pela equipe organizadora no evento da 23ª UERJ sem Muros. Troy: Fall of a City, David Farr (2018) 13/11/2018 Fábio Frizzo (UFTM) José Ernesto Knust (IFF - Macaé) Juliana Magalhães (MAE-USP) Iphigenia, Michael Cacoyannis (1977) 12/04/2019 Juliana Magalhães (MAE-USP) The Babadook, Jennifer Kent (2014) 03/07/2019 Cláudia Henschel de Lima (UFF) Verônica Toste Daflon (UFF) The Phantom Tread, Paul Thomas Anderson (2018) 08/08/2019 Marta Mega de Andrade (UFRJ - IH) Medeia, Lars Von Trier (1988) 15/08/2019 Realizado pela equipe organizadora. 237 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Con tat o s d o pú b l i co -a lv o co m o p ro j e t o Antes de me tornar bolsista do projeto, de imediato ao entrar na faculdade tive contato com o cine-debate. Promovido pela professora Dra. Lolita Guerra, criadora e organizadora do projeto, os eventos do Nós, Bruxas são um dos primeiros que os iniciantes da graduação de Licenciatura em História da FFP têm contato. Isso se deve ao fato de que a Dra. Lolita ser a professora de História Antiga do Oriente e do Ocidente, disciplinas obrigatórias no currículo do primeiro semestre do curso. Sendo um projeto extremamente atrativo, pois se trata de apresentação de filmes, os graduandos têm contato com a possibilidade de ouvir e debater suas leituras e interpretações com professores e doutores da área de História Antiga e Medieval. Em especial, filmes com a temática da História Antiga são uma preferência para apresentar aos iniciantes da graduação para que façam contato e assimilação direta com o conteúdo estudado. A multiplicidade de gêneros cinematográficos, como Drama, Romance, Fantasia e, até mesmo, Terror faz com que o Nós, Bruxas seja um dos projetos que mais consegue ter aderência das multiplicidades de cursos da UERJ-FFP. A exemplo de filmes que abordam diretamente narrativas produzidas na Antiguidade, temos o filme Iphigenia, de Michael Cacoyannis (1977), que trouxe em discussão a questão do feminino na dimensão do mito grego. Nele podem-se apresentar os personagens clássicos, o mito, a história e uma apresentação visual para facilitar uma melhor introdução e visualização dos temas. Para um melhor engajamento do público geral, também são apresentados filmes e séries cujos focos seriam para um público mais amplo. Um exemplo é a produção da BBC One: “Troy: Fall of a City”, que trata do mito presente nas narrativas homéricas e trágicas de uma maneira mais próxima ao cânone do que outras produções famosas do cinema, ao mesmo tempo que possui características que se comunica com o grande público. Como o projeto também visa se comunicar e ter presença de alunos das demais graduações da UERJ, assim como ouvintes de outras instituições, filmes da trilha do Oscar, como The Phantom Tread de Paul Thomas Anderson (2018), estão também presentes nos cine-debates. Principalmente nesses filmes é que se fazem uma grande presença e interesse dos ouvintes, em geral. Com o enredo do filme, foi possível conectar na figura mitológica de Circe ao fazer um paralelo entre o envenenamento do protagonista por sua companheira, com semelhanças em relação ao que Circe realizava com Odisseu, na Odisséia (Hom. Od.). É importante dizer que este faz parte de uma categoria de filmes frequente no projeto, ou seja, de narrativas ambientadas em contextos contemporâneos, porém com elementos que remetem a mitos e ideias ligadas às mulheres em uma longa historicidade. O Antichrist, The Babadook e Mother! são obras cinematográficas que também permitiram a aproximação com o mito e da discussão acerca do ideal feminino. O impacto da figura do gênero feminino como mãe, esposa e, até mesmo, com os dizeres de sua sexualidade, se faz presente nos debates. Sendo esses filmes situados nosso contexto social, conseguimos fazer com que os ouvintes tenham um acesso 238 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. as metáforas sobre o tema da maternidade, de onde conseguimos uma ponte com muitos mitos gregos, egípcios e judaico-cristãos. Mi n has ex per iê n ci a s n o p ro j e t o : d e o uv in t e a b o l si st a Antes de ingressar na faculdade, eu já tinha interesse por História Antiga e pelo Cinema, portanto tive um encantamento pela proposta do projeto de imediato, me fazendo frequente em todos os cine-debates ocorridos na universidade. Através dos palestrantes e temas que eu já tinha afinidade e/ou interesse, pude ter uma evolução do meu conhecimento de um “leigo” em História para um conhecimento acadêmico de maneira plural e muito fluida. Através dos debates, tive a oportunidade de trocar pensamentos e leituras com professores de diversas universidades além da minha, o que enriqueceu meu portfólio acadêmico e minha rede de contatos (tanto de conhecer novos professores, quanto outros alunos de outros períodos e cursos). Após esse primeiro contato, me aproximei da área de pesquisa acadêmica, onde consegui me tornar orientando da Dra. Lolita Guerra. Junto a ela, comecei a trabalhar e estudar o conceito de heroísmo grego, principalmente na figura de Jasão d’As Argonáuticas, de Apolônio de Rodes (século III a.C.). Com o maior estudo da temática, mais o conhecimento adquirido com o acompanhamento do projeto, consegui compreender a complexidade de uma personagem crucial da trajetória de Jasão: Medéia. Lendo a antiga peça de Eurípides (E. Med.), consegui traçar um projeto de estudos que tentasse unir as peculiaridades do heroísmo de Jasão com a expressividade e complexidade de Medéia. Com meus estudos e pesquisas tangenciando os tópicos da questão da mulher no mito e na arte, consegui visibilidade e a possibilidade de ingressar no projeto com uma bolsa de estudos. Não obstante, fui incumbido da tarefa de apresentar minhas ideias e estudos através da elaboração de meu próprio cine-debate. No dia 15 de Agosto de 2019, apresentei no miniauditório da UERJ-FFP o filme Medeia do diretor dinamarquês Lars Von Trier, de 1988. Sendo um filme que fora passado diretamente na televisão dinamarquesa, era uma versão que raríssimas pessoas teriam assistido, devido a sua raridade e espectador de um nicho muito específico de cinematografia. Neste especial de TV, Lars Von Trier trouxera à vida, com fidelidade, a peça clássica de Eurípides, com direito a todo peso visual e de roteiro que uma tragédia grega. O filme foi trabalhado com uma visão, produção e interpretação de um homem acerca desse universo feminino tão estigmatizado, o que abriu espaço para que eu como homem pudesse também expressar meu entendimento e interpretação acompanhado de minha orientadora. O debate permitiu um maior engajamento do público masculino ao tema, pois entrava em posição de discussão o quanto que as leituras masculinas do mundo e da história influenciaram na determinação do que é 239 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. ser mulher e a definição de um “ideal” feminino. Então, mostrou-se que a peça clássica de Medéia, mesmo a mais de 2400 anos de sua estreia, é capaz de gerar debate, impressionar e chocar a sociedade. Uma das minhas funções, como participante da equipe e organizador, é a de confeccionar e produzir os cartazes. Antes, o conteúdo dos cartazes era puramente técnico, fornecendo somente informações do filme, data, local, hora e participantes convidados. Depois que iniciei a produção, comecei a utilizar de imagens originais e cartazes alternativos dos filmes para produzir um conteúdo mais chamativo. Os resultados da mudança foram positivos e bem imediatos, porque se somou uma mudança abrupta de estética com uma maior distribuição dos cartazes por toda a FFP. Com isso, o público dos períodos finais do curso de História, ao qual não tiveram a apresentação prévia do projeto, como os alunos dos primeiros períodos, tiveram maior presença, além de maior engajamento dos graduandos dos demais grupos de licenciatura. Li s ta d e Ab r eviat u r a s E. Med. – Eurípedes (Medea) Hom. Od. – Homerus (Odyssea) Fon t es EURÍPIDES. Medéia. Trad. Flávio Ribeiro de Oliveira. São Paulo: Odysseus, 2007. HOMERO. Odisséia. Trad. Carlos Albeto Nunes. 2ª edição. São Paulo: Ediouro, 2009. Refer ên c ias Bib l i o g r á f i ca s ANTICHRIST. Direção: Lars Von Trier. Dinamarca: Zentropa Entertainments, 2009. (108 minutos) GUERRA, L. Nós, Bruxas: mulheres no cinema, no mito e na história. Projeto de Extensão. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2018. IPHIGENIA. Direção: Michael Cacoyannis. Grécia: Greek Film Center, 1977. (127 minutos) I LOVE DICK. Direção: Sarah Gubbins e Jill Solowa. Estados Unidos da América: Amazon Studios, 2016-2017. 8 episódios (32 minutos) MEDEIA. Direção: Lars Von Trier. Dinamarca: Danmarks Radio (DR), 1988. (77 minutos) 240 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. MOTHER! Direção: Darren Aronofsky. Estados Unidos da América: Paramount Pictures, 2017. (121 minutos) TROY: FALL OF A CITY. Direção: David Farr. Reino Unido: British Broadcasting Corporation (BBC), 2018. 8 episódios (60 minutos) THE BABADOOK Direção: Jennifer Kent. Austrália: Screen Australia, 2014. (94 minutos) PHANTOM THREAD. Direção: Paul Thomas Anderson. Reino Unido: Focus Features, 2018. (130 minutos) Recebido em 23/9/2019 e aceito em 1/10/2019. 241 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Tragédia em gotas: relato de uma experiência Anna Mosca Doutoranda em Letras: Estudos Literários (UFMG) anitamosca@hotmail.it Orientadora: Doutora Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa (UFMG) A Truπersa (Trupe de Tradução e Encenação de Teatro Antigo) propõe uma experiência coletiva de tradução e encenação da tragédia ática. A proposta foi iniciada em 2009 na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, pela Professora Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa e vem sendo desenvolvida paulatinamente. Traduzimos e encenamos de Eurípides a Medeia (2012), a Hécuba (2017) e o Orestes (2018). Em 2019 trabalhamos à nova montagem Tragédia em Gotas, com textos de Eurípides (Íon, Electra, Hécuba, Orestes e Medeia). Construímos uma dramaturgia fragmentada e estilhaçada, sem uma linha narrativa, com foco na antiguidade, porém em chave contemporânea, seguindo os pressupostos de Jean-Pierre Sarrazac. De acordo com o teórico francês, poder-se-ia definir a dramaturgia contemporânea como um corpo rapsódico, isto é, uma dramaturgia que reúne o que previamente se despedaçou e, no mesmo instante, despedaça o que acabou de unir (SARRAZAC, 2002, p. 37). Tragédia em Gotas apresenta-se como uma exposição de quadros trágicos pintados no século V a.C. por Eurípides e expostos, como numa galeria onde se escancara o submundo de maldade e crime que habita o recesso familiar. São recortes de textos que tratam de relações afetivas esfaceladas. Personagens em conflito extremo que entram, relatam seus atos passados e planos futuros (matricídios, incestos, traições, estupros, homicídios...) e saem. Suas dores psíquicas, corporais e afetivas podem ser espelhos de traumas vividos por muitos. O horror da cena leva o espectador a refletir sobre os rumos das desmedidas na perspectiva da vítima e do algoz, em cada quadro. A cena de Tragédia em Gotas se abre com a perplexidade do coro diante da grandeza e pequenez da glória humana. Em seguida, Electra entra, descreve os crimes de sua família e disputa com o irmão, Orestes, a autoria do matricídio perpetrado. Condenados, esses dois irmãos, com a ajuda do amigo e amante Pílades, invocam - do reino dos mortos - Agamêmnon, pai assassinado pela esposa Clitemnestra, mãe de ambos. Nada acontece, em lugar de Agamêmnon, surge Medeia, vinda da Cólquida, para vingar a traição de Jasão. Ela planeja o seu famigerado filicídio. Mas 242 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Orestes rouba o espaço e o brilho da neta do sol. Ele e seu amado Pílades resolvem: antes matar que morrer, nesse ínterim, irrompe, Creusa que denuncia Apolo (yes, me too!), o deus devasso, violador de mulheres, deve ficar exposto diante de todos. Sua denúncia, contudo, cai no vazio e Electra, que surge de um passado remoto de antes do espetáculo, planeja com requintes de frieza, o matricídio. Com esse projeto apresentamos em Setembro de 2019 um espetáculo contemporâneo e brasileiro de gotas trágicas, de crimes e violências cotidianas, no XXII Congresso da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, SBEC, em Juiz de Fora, no Salão Nobre do Instituto de História e Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, e no Auditório Macunaíma do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense, UFF. As três ocasiões de encontro com os espectadores se apresentaram entre si muito diferentes, pela tipologia de espaço, pela diversidade do contexto e pela recepção do nosso trabalho. No dia 3 de Setembro de 2019, às 20hs, apresentamos Tragédia em Gotas no Cine Theatro-Central de Juiz de Fora. O espetáculo em geral estava contemplado na programação do XXII Congresso da SBEC. Cerca de 1200 espectadores na noite da apresentação lotaram o grande teatro da cidade do Sul de Minas. O desafio maior para a trupe foi atuar com um “teatro pobre” numa casa de espetáculos majestosa. Um palco grande e uma plateia enorme. Resolver a acústica foi a prioridade. Na montagem técnica, contamos com uma empresa de microfones e, ainda assim, nem sempre conseguimos fazer com que o texto chegasse a contento aos espectadores. Além dos problemas com o retorno no palco, tivemos, igualmente, problemas técnicos com a trilha sonora e com um bloqueio inesperado do equipamento eletrônico durante o espetáculo, que provocou consequentes mudanças significativas na dramaturgia musical. A montagem de luz, pelo contrário, foi muito positiva. O equipamento de luz do grande Cine Theatro-Central proporcionou soluções e imagens surpreendentes, alcançamos efeitos que não tínhamos tido possibilidade de imaginar e, menos ainda, de adotar durante os ensaios, por falta de recursos. O espetáculo foi introduzido por uma breve leitura da sinopse pela Profa. Neiva Ferreira Pinto, membro da SBEC. Não foram distribuídos materiais informativos sobre o espetáculo na plateia, isso, parece, pelos comentários, prejudicou um pouco. Ao final da cerimônia cênica sentimos o fragor de um sincero aplauso, uma troca de energia. Mesmo sem previsão de debate, pelo encontro espontâneo e imediato entre atores e espectadores pudemos recolher diversos comentários de envolvimento, participação, mas também de desorientação e estranhamento. Alguns espectadores comentaram que não tinham conseguido escutar o texto. Outros, que escutaram, mas que não entenderam alguns trechos. Outros, comentaram que não conseguiram acompanhar a proposta por falta de uma linha única narrativa. Ainda assim, percebemos que houve sedimentação. O teatro por meio de seus múltiplos recursos, conseguiu construir imagens que fugiam à racionalização imediata e que necessitavam de decantação para se obter a fruição da experiência artística esperada. Ademais, sabe-se que a experiência de um espetáculo é personalíssima e íntima em seus significados distintos e indistintos, claros e escuros para cada espectador. 243 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Repletos dessa experiência, deixamos Juiz de Fora no dia 4 de Setembro de 2019 rumo ao Rio de Janeiro, e no mesmo dia apresentamos Tragédia em Gotas sob o patrocínio do Laboratório de História Antiga (LHIA) e do Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na UFRJ, Largo de São Francisco de Paula. Para o evento contamos com a coordenação dos Profs. Fabio Lessa e Deivid Valério Gaia. No Instituto de História encontramos uma situação completamente diferente. Tivemos à disposição o belíssimo Salão Nobre, com “cenografia” original em madeira. Usamos a iluminação fixa do Salão Nobre, misturada à luz natural, que chegava das elegantes portas-janelas, postas ao lado direito do salão, para quem entra no espaço. Podíamos utilizar nossa trilha sonora normalmente, graças à disponibilidade do equipamento de som. Apresentamos às 14h30 para a cerca de 30 espectadores, entre os quais professores, estudantes, pesquisadores e classicistas. Sentimo-nos em casa. Percebemos que o nosso público acompanhava a nossa linguagem com familiaridade e que os personagens da peça Tragédia em Gotas procuraram espontaneamente um contato estreito com os espectadores. O espaço e o número dos participantes favoreciam um teatro íntimo. Sobre essa “íntima distância próxima” é proveitoso lembrar, que o ator/atriz em cena é uma criatura que vive em outra dimensão, que não é a reprodução mimética da realidade, mas sim uma dimensão paralela, que nos permite assistir a nós mesmos (com nossas angústias, dores, mediocridades, grandezas, ruindades) como se estivéssemos assistindo à um sonho de olhos abertos. Nesse sentido, o momento pós-teatral poderia ser comparado justamente ao momento em que tentamos lembrar de um sonho. Ao acordar recolhemos imagens confusas, sensações físicas, contudo nem sempre sabemos relatar e entender as cenas sonhadas. Mas, de alguma forma, seja enorme ou pequeno o espaço físico em que o ator/ atriz age, ele/ela é sempre um/a gigante, que não pertence ao terreno. Ele/ela passa da uma postura cotidiana a uma postura estilizada, para a cena, pressuposto para desencadear um novo potencial de energia (BARBA, 1993, p. 20). Foi nessa exata medida que Medeia, Orestes, Electra, Clitemnestra, Creuza, Frígio se materializaram no Salão Nobre do Instituto de História do Rio de Janeiro. Procuraram redesenhar uma nova geometria da cena que desse conta do espaço e do público reais daquele momento. Contudo, nem sempre conseguimos controlar as entradas e saídas de cenas dos atores, nem sempre demos conta de reinventar o desenho cênico. As vezes, ficávamos muito avançados em relação aos espectadores, outras, presentes, quando devíamos nos tornar “invisíveis”, quando precisávamos retirar de nós mesmos o foco da atenção do espectador. Após apresentação seguiu um debate participado entre a Trupe e os espectadores. Nessa ocasião as perguntas, as observações, os comentários se apresentaram de forma entusiasmada e motivada. Dessa vez, a ausência da linha narrativa não causou desconforto. Pelo contrário, a arquitetura dramatúrgica provocou curiosidades e inspirou diversas perguntas sobre os motivos das escolhas adotadas. Sentimos que os nossos espectadores, nesse dia, não estavam preocupados em entender e decodificar a nossa proposta, mas sim interessados em compartilhar um convívio, entender uma metodologia de trabalho, trocar ideias e sensações estimuladas pela 244 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. função teatral apresentada. No dia seguinte, 5 de Setembro de 2019, às 18hs, apresentamos Tragédia em Gotas no Auditório Macunaíma, no Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense UFF, graças ao apoio e a recepção dos professores Susana Kampff Lages, Carolina Paganine, Renata Cazarini de Freitas e Andrea Lombardi (UFRJ), junto com outros colegas da UFF. O Auditório Macunaíma é uma sala de forma retangular, com uma capacidade de 156 lugares, distribuídos em duas plateias de assentos fixos, com dois corredores laterais e um central. O palco frontal se eleva cerca 40 cm de altura, com duas portas laterais. Chegados no espaço, redesenhamos os movimentos cênicos, para tentar de nos apropriar, como artistas, do espaço e quebrar a lógica de destinação de uso do auditório, ou seja, uma sala para conferências e palestras acadêmicas. Redefinimos entradas e saídas de cena e mudamos algumas transições entre um quadro e outro da nossa estrutura dramatúrgica, para viabilizar o novo traçado cênico. Este trabalho foi fundamental e necessário para criar uma sintonia com os espectadores presentes no Auditório Macunaíma. Aqui também usamos apenas nossa trilha sonora, pois a luz disponível era exclusivamente aquela fixa do Auditório. Aproximadamente, 70 pessoas assistiram ao espetáculo participando com reações espontâneas como risos, interjeições de surpresas, espanto, comoção. Quando se abriu o debate, a partir de algumas perguntas e considerações, percebemos que tínhamos despertado uma curiosidade em relação a nossa proposta. Os espectadores colocaram várias questões, abrindo uma troca rica e fecunda entre a Trupe e a plateia. Entre outros assuntos, os espectadores perguntaram sobre a relação da cena da Creuza e o movimento mundial Me too e sobre como se deu a construção da cena. Explicamos que a tradução do Íon, que é objeto de estudo e tradução de uma disciplina ministrada no Programa de Pós-Graduação da FALE/ UFMG pela Profª Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa, está em desenvolvimento. Contudo, optamos por apresentar uma cena específica, a cena em que Creuza decide acusar o Apolo de a ter violentada. Na nossa proposta, a Creuza se desdobra em várias atrizes, as quais, com as palavras de Eurípides de 2500 anos atrás, reescritas e reinventadas em português do Brasil de hoje, denunciam as violências contra as mulheres. Febo, o deus devasso encarna assim, em cena, aquela parte da masculinidade de todos os tempos, que não foi e não é capaz de lidar ainda hoje, de igual para igual, com o outro sexo. A plateia também se interessou por perguntar sobre a concepção da trilha sonora do espetáculo. Explicamos que a dramaturgia musical foi concebida pela nossa colaboradora e consultora cultural Manuela Barbosa, que nos propôs as Sequenze do músico italiano Luciano Berio (1925-2003). Sucessivamente, Guilherme Mello, ator da Trupe, introduziu uma nova proposta, que funcionasse como elemento de ruptura no interno da dramaturgia musical, Kraftwerk com a música Chrono (álbum, Tour de France, 2003). Convivemos, sofremos e aprendemos ao longo da experiência da turnê de Tragédia em Gotas no Rio de Janeiro e no Sul de Minas. E já estamos prontos para novas ocasiões de encontro com o público. Quem é de cena?! 245 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Fi cha t éc nic a Tragédia em Gotas. Textos de Eurípides (Orestes, Íon, Electra, Hécuba e Medeia). Direção de Tradução: Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa. Direção: Anita Mosca. Elenco: Alice Mesquita, Amanda Bruno, Anita Mosca, Beatriz Novaes, Guilherme Mello e Sara Anjos. Trilha Sonora: Manuela Ribeiro e Guilherme Mello. Máscaras: Ronaldo Alves. Arte Gráfica: Bernardo Novaes. Produção Executiva: Alice Mesquita e Anselmo Bandeira. Dramaturgia e Produção: Truπersa. Font e s EURÍPIDES, Electra de Eurípides. Tradução Truπersa. Direção de tradução Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa. São Paulo: Editorial Ateliê, 2015. ___________, Medeia de Eurípides. Tradução Truπersa. Direção de tradução Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa. São Paulo: Editorial Ateliê, 2013. ___________, Orestes de Eurípides. Tradução Truπersa. Direção de tradução Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa. São Paulo: Editorial Ateliê, 2017. Ref e r ên c ias Bib l i o g r á f i ca s BARBA, Eugenio. La canoa di carta. Bologna: Il Mulino, 1993. SARRAZAC, J.P. O Futuro do drama. Tradução de Alexandra Moreira da Silva. Porto, Campos das Letras, 2002. Recebido em 6/9/2019 e aceito em 2/10/2019. 246 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Sapere aude — um podcast sobre a antiguidade da ufop Gabriela Soares de Moura Graduanda em Letras (UFOP) gabriela.moura@aluno.ufop.edu.br Orientadores: Prof. Dr. Artur Costrino (UFOP) e Prof. Dr. Alexandre Agnolon (UFOP) Este texto oferece uma breve notícia sobre um projeto de extensão que vem sendo desenvolvido na Universidade Federal de Ouro Preto pela aluna de graduação Gabriela Soares de Moura, sob a orientação dos professores do departamento de Letras Dr. Artur Costrino e Dr. Alexandre Agnolon. Trata-se do programa Sapere Aude, um podcast sobre a Antiguidade e assuntos afins que busca democratizar o conhecimento de maneira dinâmica e acessível aos diversos públicos ouvintes, sobretudo com o intuito de potencializar e incentivar os estudos acerca da Antiguidade e suas diversas vertentes. O projeto é vinculado ao Laboratório de Estudos sobre o Império Romano — LEIR — e ao Núcleo de Estudos Literários, ambos da UFOP, e conta também com o apoio do Programa de Pós-Graduação em História, do Programa de Pós-Graduação em Letras, do Laboratório de Estudos Medievais — LEME — e da web rádio Plural, do Laboratório de Jornalismo da UFOP. A primeira tentativa de se fazer um programa de rádio envolvendo os interessados em Antiguidade da UFOP surgiu no inicio de 2017 como um projeto do LEIR e do LEME. A proposta oferecida pela rádio UFOP aos pesquisadores consistia na leitura de algum documento de História Antiga ou Medieval, com duração de um a dois minutos, e um comentário sobre o respectivo documento transcrito por um dos professores responsáveis. Chegou-se a gravar um episódio piloto do programa, mas devido ao formato rígido e demasiadamente curto que a rádio exigia, juntamente ao difícil acesso à gravação dos programas, visto que a sede da rádio é em Ouro Preto e o campus do curso de História e Letras é em Mariana, o projeto não seguiu adiante. No ano de 2018, eu, Gabriela Moura, como discente do curso de Letras, cursei a disciplina de Estudos Clássicos, que despertou meu interesse na área. Em contato com a web rádio Plural, tive a ideia de realizar um programa de rádio, inicialmente sobre curiosidades históricas e literárias. Ao relatar a intenção para o prof. Dr. Artur Costrino, fui informada sobre esse interesse prévio que o setor tinha em criar algo semelhante. Assim, começaram as tratativas entre mim, os professores e a rádio Plural, dos alunos de jornalismo do ICSA-UFOP. 247 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. O projeto tomou forma no primeiro semestre de 2019, com a iniciativa dos três apresentadores, os professores Dr. Alexandre Agnolon e Dr. Artur Costrino, juntamente comigo, a graduanda Gabriela Moura, contando com o auxílio da web rádio Plural, no suporte e preparo midiático do podcast. Além dos recursos materiais como microfones, estúdio e computadores, o laboratório de jornalismo ofereceu oficinas de locução, edição e roteiro, para que o conteúdo ficasse adequado aos moldes telecomunicacionais pretendidos por nós. A escolha do nome do programa “Sapere Aude” veio da expressão horaciana presente no livro de epístolas (Hor., Ep. 1. 2. 40). O verso inteiro do poeta romano é Dimidium facti qui coepit habet: sapere aude, que, em tradução livre significa: “aquele que começa tem metade do feito alcançado: ouse saber!”. Como diz o professor Dr. Alexandre Agnolon, desde os antigos, portanto, o dito horaciano ecoa como um convite à vontade e ao desejo de conhecer. O podcast abarca diversas temáticas pertinentes e essenciais aos Estudos Clássicos e suas diversas abordagens, promovendo discussões sobre o conhecimento literário, histórico, filosófico, arqueológico, social, cultural e político antigo. Essa congregação das multidisciplinaridades busca trazer o entendimento do passado por si próprio ou através da permanência que este universo tem na atualidade. Os temas propostos abrangem não somente a comunidade acadêmica, mas principalmente um público amplo, não necessariamente vinculado à universidade. As gravações são realizadas quinzenalmente pelos três apresentadores fixos, contando frequentemente com a participação de especialistas dos Estudos Clássicos e outros convidados. O programa é sempre gravado no estúdio do curso de Jornalismo, que conta com equipamentos mais do que satisfatórios e com a ajuda de um responsável pela gravação. Antes das gravações propriamente, os três apresentadores envolvidos se reuniam e discutiam a pauta do programa seguinte, bem como quais dicas de livros, músicas, filmes e séries seriam dadas ao final do programa. Essa reunião resultava na escrita de um roteiro que era então dividido entre os apresentadores. Esse formato foi alvo de críticas construtivas e repensado para o segundo semestre, como será explicado adiante. Até a escrita deste texto, o programa teve nove episódios concluídos e publicados. Passaremos agora a descrever brevemente cada um deles. SAPERE AUDE 1: nosso programa de estreia foi sobre a domus romana e curiosidades do dia-a-dia de um cidadão comum, como o ritual da salutatio, religião etc. SAPERE AUDE 2: sobre as póleis e suas diversidades e especificidades no mundo grego, como eram suas configurações políticas e culturais. SAPERE AUDE 3: o episódio sobre Escravidão, que contou com a participação do Prof. Dr. Fábio Joly, trouxe um paralelo entre os modelos escravistas da antiguidade e sua relação com a modernidade, contando as principais diferenças e influências do sistema escravocrata moderno. SAPERE AUDE 4: neste episódio tratamos sobre Homero, personagem absolutamente central quando tratamos de Antiguidade, já que tudo passa por ele. O episódio tentou mostrar como os antigos se relacionavam com essa temática e como as 248 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. pesquisas modernas a abordam. SAPERE AUDE 5: nosso quinto episódio tratou sobre o poeta romano Ovídio e as repercussões de suas obras. Para tanto, contamos com a ajuda de dois pesquisadores da UFOP da temática: Ms. Giovani Duarte e Ms. Marice Gonçalves. SAPERE AUDE 6: em nosso sexto episódio, saímos um pouco da Antiguidade e visitamos a Idade Média, ao tratarmos o tema das Universidades. Para isso, convidamos o professor da UFOP Dr. Bruno Salles, da área de História Medieval, e o professor da Universidade Federal Fluminense, Dr. Fábio Cairolli. Discutimos o surgimento das universidades e sua importância. No atual contexto político essa valorização da temática foi de extrema importância. SAPERE AUDE 7: em nosso sétimo episódio, falamos sobre a Biblioteca de Alexandria e sobre alguns de seus incentivadores eruditos. Foi abordada a influência da biblioteca no mundo helenístico e na tradição ocidental do que entendemos como pesquisa, catalogação e estudos filológicos. SAPERE AUDE 8: em nosso oitavo episódio tivemos como tema Virgílio, abordando a relevância das obras do poeta romano desde a antiguidade, e suas influências para a posteridade. Como episódio especial e mediador das novas mudanças do podcast, houve também a entrega de um prêmio simbólico de “Classicista do Sapere Aude” ao Prof. Dr. Alexandre Hasegawa, da Universidade de São Paulo, que ministrou um curso sobre as Bucólicas na UFOP e aceitou o convite de participação especial nesse programa. SAPERE AUDE 9: A importância e a valorização das pesquisas dos Estudos Clássicos foi tema do nosso nono episódio, e também de uma das pautas discutidas no XXII Congresso da SBEC — Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos. Com a participação do Prof. Dr. Fábio Faversani, da UFOP e ex-presidente da SBEC, o episódio informou sobre as diversas áreas que constituem os Estudos Clássicos e como o congresso bienalmente reúne a multidisciplinaridade de pesquisas advindas de todo o Brasil, permitindo o diálogo e a contribuição nas produções acadêmicas. A colaboração frequente de professores e alunos envolvidos nos Estudos Clássicos promove um diálogo amplo a partir de perspectivas distintas dos objetos de pesquisa então tratados. Esta comunicação dinâmica entre as áreas e a vasta gama de assuntos que se interligam permitem fomentar o interesse nos estudos da antiguidade, bem como a divulgação das pesquisas já realizadas na universidade. Durante o primeiro semestre (que compreendeu os programas de 1 a 7), a plataforma utilizada para a postagem do podcast foi o Sound Cloud, feita a divulgação por meio das mídias sociais. Para tanto, criamos páginas no Facebook e Instagram, em que ocorre a maior parte da interação com o público ouvinte, sugestões, críticas e comentários da recepção. Foi por meio dessa comunicação e da respectiva experiência, que os apresentadores perceberam que o tratamento dado a alguns temas estava complexo demais e não estava atingindo o público geral, além de a elocução por vezes parecer menos fluída, transparecendo a leitura do roteiro e certa artificialidade. Com relação à nossa presença no Facebook e Instagram, tornou-se fundamental trazer nesses espaços um conteúdo ainda mais acessível e próximo do público, 249 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. como vídeos de duração máxima de um minuto, contando alguma curiosidade, por exemplo, ou bastidores das gravações. Ademais, em um desses vídeos foi paga uma promoção na página do Facebook, para atingir usuários dos países falantes de língua portuguesa, resultando em uma recepção em geral muito positiva. Contudo, houve alguns comentários negativos que não versavam sobre o conteúdo em si do vídeo, mas tentavam atacar politicamente o espaço. A partir dessas experiências, a produção do podcast tem pensado em maneiras de atingir este público diverso, trazendo assuntos mais amplos em um tom fluido e descontraído, sem um roteiro escrito a ser lido. Então, abandonamos o roteiro e o substituímos por notas, de modo que não há mais falas fixas entre os participantes e o tom conversacional tornou-se ainda mais evidente e natural. Outra mudança recente foi com relação às plataformas de transmissão: agora o podcast está sendo postado no Spotify e no YouTube, facilitando o acesso aos ouvintes. Outra sugestão que adotamos de um ouvinte é a de colocar, na descrição dos programas, sugestões de leitura e referências bibliográficas que utilizamos para tratar dos respectivos temas. Recentemente tivemos a oportunidade de apresentar o Sapere Aude no XXII Congresso da SBEC, na Universidade Federal de Juiz de Fora. A pluralidade do Congresso abriu espaço para a apresentação do Sapere Aude na modalidade “Clássicos em Multimídia”, em que foi relatado como este projeto surgiu, como funciona a dinâmica do programa e como temos feito para impulsionar os Estudos Clássicos não somente no âmbito universitário. A comunicação teve como objetivo, também, encorajar mais colegas da área à participação no projeto. O podcast tem crescido consideravelmente e temos atingido um público cada vez mais diverso, o que sempre foi a finalidade do programa. Paralelamente a isso, nosso programa foi elogiado e tido como exemplo de projeto de extensão pelo MEC em uma reunião entre coordenação de pós-graduações brasileiras, auxiliando, inclusive, em um possível aumento de nota do nosso curso de pós-graduação. Dentre os próximos objetivos do programa, projetamos que as possíveis temáticas a serem pautadas terão caráter mais abrangente, a fim de trazer paralelos com a modernidade e contemporaneidade, partindo de questionamentos que procurem entender o passado em si, e também seus reflexos na atualidade, configurando um novo olhar acerca da antiguidade. O estímulo nas redes sociais com vídeos e imagens que aproximem a comunicação com os ouvintes também se fará mais frequente, visto que o público das mídias tende a aumentar e ser cada vez mais diverso, permitindo assim, instigar a busca no público por mais conhecimento, quer através da audição do podcast, quer acessando outras produções que permitam conhecer mais sobre os temas abordados. Como conclusão, convidamos os classicistas a ouvirem, recomendarem aos alunos e participarem do programa. Seguem abaixo os endereços das plataformas virtuais do Sapere Aude. 250 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Yo ut ub e https://www.youtube.com/channel/UCChyRWeMffEC42zmJBLhBRA S po t i fy https://open.spotify.com/show/2mlo60c2hradn1yHbB4ham?si=Yot8AMg7SvOovcw2qryovA Faceb ook https://www.facebook.com/radiosapereaude/ Instagr am @radiosapereaude Li s ta d e Ab r eviat u r a s Hor., Ep – Horatius (Epistulae) Recebido em 16/9/2019 e aceito em 30/9/2019. 251 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Experimentos com a poesia em performance: a mélica coral grega antiga Matheus Ely Cordeiro de Lima Vieira Pessoa Graduando em Letras – Inglês (UnB) matheusely15@gmail.com Victor Eduardo Souza Campos Graduando em Letras – Português (UnB) victoredusc@gmail.com Orientadora: Profª. Dra. Agatha Pitombo Bacelar (UnB) A cultura grega antiga era permeada por manifestações poéticas, que, em um primeiro momento, sempre eram veiculadas oralmente e somente depois eram preservadas em forma escrita. O intuito primário dessa poesia não era o de ser lida individual e silenciosamente, como o é a poesia nos dias de hoje. Na Grécia Antiga, ela não encontrava sua existência em textos escritos, mas sim “no momento de sua performance, ou seja, de sua apresentação a certa audiência, de certo modo, em certa ocasião”; mais que isso, os próprios termos usados para designá-la (meliké e lyriké, de onde provêm as palavras mélos, “canção”, e lýra, “lira”) são relacionados ao mundo da música (RAGUSA, 2013, p. 13). Tendo em vista o caráter musical e performático da poesia grega, uma oficina foi ministrada pela Profa. Agatha Pitombo Bacelar durante os dias 22, 23 e 24 de maio de 2019: “Experimentos com poesia em performance: a mélica coral grega antiga”. O intuito da oficina — vinculada ao projeto de extensão “Canto Coletivo Improvisado”, coordenado pela Profa. Uliana Dias Campos Ferlim, do Departamento de Música da Universidade de Brasília — foi o de apresentar a poesia clássica grega a um público que não estivesse familiarizado com a língua; um público que, em sua maioria, somente teria acesso à Antígona, de Sófocles, e aos ditirambos de Píndaro por meio de traduções. As experimentações com canto e dança já faziam parte de um projeto de pesquisa elaborado pela Profa. Dra. Agatha Pitombo Bacelar, “Entre festas e ritmos: aspectos pragmáticos, performativos e musicais da mélica grega antiga”, que abarcava os projetos de Iniciação Científica dos autores deste relato, cujas pesquisas giravam em torno dos aspectos performativos e musicais do terceiro estásimo da Antígona, de Sófocles (conhecido como Hino a Eros), e do Ditirambo 2, de Píndaro (Ērakles ē Kerberos). Após um semestre de estudo quase puramente teórico, 252 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. passamos a experimentar aquilo que líamos de forma prática: cantando e dançando, à luz da teoria do acento proposta por David (2006). Com especial atenção às denominações gramaticais dos próprios antigos, entre eles Platão, Aristóteles, Dionísio da Trácia, Glauco de Samos, Aristóxenes, Dionísio de Halicarnasso e Aristófanes de Bizâncio, o autor propõe uma leitura do acento grego, com subidas e descidas de tom, que se alinhe à duração e à variação das sílabas da língua, à maneira da udatta, anudatta e svarita do Sânscrito — algo que, ao menos nos estudos clássicos no Ocidente, se mostra difícil de se conciliar. Segundo ele, deve-se considerar a modulação do tom das vogais acentuadas de maneira diferente a depender cada acento — agudo, grave e circunflexo — e da duração das sílabas, uma vez que uma sílaba breve seria encarada como um único tempo, enquanto uma longa, dois tempos. Se, de um lado, toda subida de tom necessariamente é acompanhada por uma descida, por outro lado, é preciso se ater à duração desta descida, tendo em mente o valor da sílaba seguinte (ALLEN, 1968, p. 106-124; DAVID, 2006, p. 52-93). A partir das considerações de Allen e de David foi possível trabalhar alguma dimensão performática dos poemas: a musicalidade imaginada a partir de hipóteses filológicas. Pudemos cantá-los levando em conta características da língua grega mais facilmente: os acentos e a alternância de sílabas breves e longas. O que restava era a dimensão corporal do poema — aliando canto e dança ritmados. Começamos por Brunet (2015) e sua ideia de passos de dança que se ajustassem ao metro grego. Segundo ele, são “esses princípios de alternância entre pé direito e pé esquerdo, pé levantado e pé abaixado, que formaram a base do trabalho coreográfico”1 (BRUNET, 2015, p. 41). Foi com base nesse princípio que demos início às experimentações de canto e dança de poesia grega, buscando transpor os poemas de um nível puramente textual a um outro, corpóreo, cheio de movimento e música. Empenhamo-nos em treinar, inicialmente, os poemas com passos que iam de um lado para outro, a depender da sequência de sílabas breves e longas de cada verso/estrofe. A priori, pensamos em seguir a proposta de Brunet. Porém, quando colocada em prática durante o preparo das oficinas, dois membros facilitadores e pesquisadores do “Canto Coletivo Improvisado”, Gabriel Melo Soares e Jairo Faria (FAC–UnB), nos sugeriram que fizéssemos as longas com dois passos do pé no chão e as breves com uma palma. Este foi o método utilizado nas oficinas como uma solução ad hoc para a dificuldade na proposta coreográfica de Brunet, servindo de aporte à apresentação da própria natureza do metro grego antigo. Os movimentos do primeiro verso do terceiro estásimo (v. 781, Ἔρως ἀνίκατε μάχαν) foram: palma, pé-pé, palma, pé-pé, pé-pé, palma, palma, pé-pé. Já os movimentos do primeiro verso da primera estrofe do ditirambo pindárico (v. 1, Πρὶν μὲν εἷρπε σχοινοτένειά τ’ἀοιδὰ διθ[υράμβων) ficaram: pé-pé, palma, pé-pé, palma, pé-pé, palma, palma, pé-pé, palma, palma, pé-pé, pé-pé, pé-pé, palma, pé-pé, pé-pé. Isso possibilitou uma “coreografia” mais fluida e rápida, uma vez que não requereria o tanto de equilíbrio que os passos anteriores (como proposto por Brunet) exigiam, e que nos permitiu sentir de forma mais acentuada a 1 “Ce sont ces principes d’alternance entre pied droit et pied gauche, pied levé et pied posé, qui ont constitué la base du travail chorégraphique.” Tradução nossa. 253 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. variação da duração observada na pronúncia das sílabas gregas. A oficina se desenrolou durante três tardes: duas horas no primeiro dia, quatro horas no segundo e mais duas no último, totalizando oito horas de canto e dança. No primeiro dia, fizemos exercícios gerais de ritmo, canto e percussão, em via de preparar os participantes para os poemas. Com o intuito de facilitar a dinâmica, confeccionamos cartões em cores diferentes: cartões rosas equivaliam ao tempo da sílaba longa do grego e cartões verdes, ao tempo da breve. Ainda na primeira tarde, dispusemos os cartões no chão com alguns pés métricos comuns em poesias em grego antigo, como o iambo, o coriambo e o anapesto. Iniciado o treinamento, possibilitamos que os participantes sentissem a duração das sílabas com o ritmo dos pés e das mãos. Feito isso, nós nos dispusemos em círculos ao redor de fichas no chão com as duas primeiras estrofes do terceiro estásimo da Antígona “transliterados”. para que aqueles que não conheciam a língua grega pudessem lê-lo e cantá-lo sem maiores dificuldades, diferenciando a duração de cada sílaba nas cores dos cartões: verde para breves (palma), rosa para longas (pé-pé). No segundo dia, o mesmo foi feito com a primeira estrofe do Ditirambo 2, de Píndaro, durante as duas primeiras horas. Na segunda metade do dia, passamos à parte expositiva da oficina, em que a Profa. Agatha Bacelar ministrou uma breve aula sobre os poemas, suas ocasiões de performance e sobre a cultura mélica grega antiga. O último dia da oficina ocorreu no mesmo horário em que semanalmente o projeto “Canto Coletivo Improvisado” era realizado. A oficina foi finalizada, então, sob a coordenação de Gabriel Melo Soares, com mais exercícios circulares de percussão e ritmo, agora com o auxílio de sons, sílabas individuais e trechos inteiros que pudemos apreender dos poemas trabalhados em língua grega. Já na última hora da oficina, apresentamos aos participantes traduções livres tanto do Hino a Eros quanto do Ditirambo 2 feitas com o propósito de serem de fato cantadas. Por fim, improvisamos uma musicalização livre da tradução do texto2. Uma vez que é objetivo do nosso trabalho apresentar aspectos performativos e musicais, a nossa oficina considerou a dimensão aural de cada poema. O Hino a Eros, por exemplo, apresenta sua polifonia em um aspecto performático, levando em conta as condições heterogêneas que perpassam tanto o universo ficcional da peça como o espaço físico e a ocasião da performance da tragédias (as Grandes Dionisíacas) em que o coro se encontra. No ditirambo Ērakles ē Kerberos, questões musicais e performativas são apresentadas com base no próprio texto ditirâmbico. Por meio da oficina, pôde-se ter contato tanto com o ditirambo e suas aliterações quanto com o coro trágico e sua polifonia coral. Com base na nossa visão do coro, nosso objetivo foi o de tentar despertar nos estudos sobre a poesia grega antiga um olhar e uma preocupação aos seus aspectos pragmáticos, que se perderam com o tempo devido ao modo inevitável de conservação desses textos. Tendo em mente a distância temporal bimilenar dos contextos originais de performance dos poemas, nosso intuito com nossas pesquisas e com 2 Vídeos de alguns dos exercícios feitos durante a oficina estão disponíveis em: https://www.facebook.com/agatha.pitombobacelar/posts/1754914007988298. 254 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. a elaboração da oficina “Experimentos com poesia em performance: a mélica coral grega antiga”, organizada e ministrada pela Profa. Dra. Agatha Pitombo Bacelar, não foi o de propor uma verdade sobre o modo como esses poemas eram cantados e dançados, mas sim o de fomentar mais experimentações não só com as obras de Sófocles e Píndaro, como também com as de todos os grandes poetas clássicos. Sem pretensão alguma de uma reconstituição fidedigna de como esses poemas teriam sido apresentados centenas de anos atrás, podemos dizer que fomos capazes — com nossas pesquisas e com a participação de todos na oficina — tanto de revisitarmos discussões e de trazermos novos questionamentos acerca das ocasiões de performance dos poemas quanto de apresentarmos e de executarmos de maneira prática os efeitos musicais e performativos do grego antigo. Font e s GRIFFITH, M. (ed.) Sophocles. Antigone. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. FURLEY, W.; BREMER, J. M. Greek Hymns: Selected Cult Songs from the Archaic to the Hellenistic period. Vol. 2: Greek. Texts and Commentary. Tübingen: Mohr Siebeck, 2001. Ref er ên c ias Bib l i o g r á f i ca s ALLEN, W. S. Vox Graeca. A guide to the pronunciation of Classical Greek. Cambridge: Cambridge University Press, 1968. BACELAR, A. P. Ἔρως, ἀνίκατε μάχαν. Brasília, 25 de maio de 2019. Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/agatha.pitombobacelar/posts/1754914007988298. Acesso em: 1º de outubro de 2019. BRUNET, P. La philologie à l’épreuve de la scène : métrique et choréographie du grec ancien. VIS – Revista do Programa de Pós-graduação em Arte na UnB, Brasília, v. 13, nº 2, julho-dezembro de 2014 [2015]. DAVID, A. P. The Dance of the Muses. Choral Theory and Ancient Greek Poetics. Oxford: Oxford University Press, 2006. RAGUSA, G. Lira grega: antologia da poesia arcaica. São Paulo: Ed. Hedra, 2006. Recebido em 22/9/2019 e aceito em 4/10/2019. 255 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Uma roma tropical: gênero e discursos de poder no Palácio do Catete (Rio de Janeiro) Amanda Reis dos Santos Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Comparada (UFRJ) Bolsista CAPES ardstoria@gmail.com Mayan Rodrigues Melo Braga Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Comparada (UFRJ) Bolsista CAPES mbraga.xxi@gmail.com Orientadores: Profª Dra. Regina Maria da Cunha Bustamante (UFRJ) e Dr. Deivid Valério Gaia (UFRJ) O presente trabalho tem por objeto o Palacete do Catete, antiga casa aristocrática do Barão de Nova Friburgo localizada no bairro nobre homônimo que, posteriormente, foi também sede do Poder Executivo Federal – entre 1897 e 1960, quando é transferida para Brasília – e atualmente abriga o Museu da República. Resultado de um desdobramento de pesquisas anteriores e inserido no projeto “Viva + Cidade”, institucionalmente ligado e idealizado no escopo dos trabalhos do Laboratório de História Antiga da UFRJ, visamos oferecer uma releitura deste monumento sob a perspectiva de gênero e de poder, seguindo as propostas metodológicas da Educação Patrimonial e da Análise Iconológica (HORTA, 1999; PANOFSKY, 1986). Nesse sentido, atentamos não apenas para os motivos decorativos que, sob um olhar mais atento, revelam os discursos que seus primeiros ocupantes visavam transmitir a transeuntes e convidados que porventura adentrassem no recinto, como também os silêncios ali presentes. Fornece-se, com isso, uma compreensão pedagógica e historicizada do atual Museu em questão, bem como do espaço que o circunda, a fim de criar um repertório que o torne inteligível na contemporaneidade. Afinal, a paisagem citadina possui uma dimensão educativa que não deve ser negligenciada – mas que só ocorre quando aqueles que ocupam seu espaço reconhecem seus simbolismos, alegorias e narrativas latentes. Descobre-se, assim, que o conjunto escultórico simetricamente organizado no hall de entrada – “Teseu matando a Hidra” e a “família de índios atacada por uma víbora” – possuía uma função comunicativa: em primeiro lugar, são as maiores está256 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. tuas ali encontradas; em segundo, estão posicionadas no primeiro local de acesso dos visitantes à residência, cumprindo, pois, um locus de destaque na paisagem do hall. Contudo, o que indicariam? Lendo-as levando em consideração a perspectiva de gênero (SCOTT, 1986), o contexto de interiorização da metrópole (DIAS, 1972), a simetria de ambas as representações e a própria biografia de Antônio Clemente Pinto e Laura Clementina, os moradores do Palácio, é possível constatar que os homens estão ali presentes de forma a proteger as personagens indefesas de um perigo – os ofídios. Teseu e o índio são, assim, os heróis de ambas as cenas, enquanto as mulheres são os agentes passivos, agachadas em segundo plano. O que dizer da decapitada Medusa, outra figura feminina presente na escultura inspirada na mitologia clássica, segurada pelos cabelos pelo grego? É plausível considerar que seja representativa do Caos, tal como a hidra caída, que Teseu logrou em controlar (PEREIRA, 2017). Vale destacar que a presença clássica no Palácio do Catete não é interrompida no hall de entrada: está, pelo contrário, presente desde a arquitetura da própria residência – inspirada na simetria vitruviana e na disposição de seus espaços de sociabilidade, que lembra as domus romanas – até os motivos decorativos de praticamente todos os seus cômodos. Aliás, como observado a partir do conjunto escultórico acima comentado, é deles que emerge uma série de representações que evocam relações entre homens e mulheres – ora parecendo demonstrar concórdia, união, ora evidenciando uma série de violências simbólicas e concretas entre ambos. Casos emblemáticos são os da pintura de Emil Bauch (1867), cujas sutilezas da imagem revelam um Barão repleto de insígnias, símbolos de poder público e de posse (a águia de seu brasão em armas na poltrona onde está sentado, a planta da Estrada de Ferro Cantagalo pendendo de suas mãos, a própria maquete do Palácio à sua esquerda, um quadro representando sua chácara do Chalet no canto superior direito, dentre outros), símbolos estes praticamente ausentes nos quadrantes de Laura Clementina. Do contrário, próximo a ela estão representados somente Niké, a deusa da vitória com sua usual coroa de louros e, dependendo do ponto de vista, o Solar do Gavião, em Cantagalo – uma propriedade compartilhada com o marido, talvez? De seu lado, pois, o que chama atenção é a cortina vermelha, o lenço em suas mãos, o tapete com motivos florais e a supracitada divindade, e uma série de especulações pautadas na divisão de poder e de posse podem ser levantadas a partir destes elementos (MELNIXENCO, 2014, p. 61-65). Do mesmo modo, a cena que adorna o teto do Salão Ministerial, que representa o casamento entre Baco e Ariadne, pode indicar a priori a união entre um casal (de forma semelhante àquelas que evocam o mito de Eros e Psiqué, no Cortile); contudo, em ambos os casos as mulheres são, em determinadas partes do mito, inferiorizadas – abandonadas, rejeitadas ou submetidas a provações – e seu final supostamente feliz termina em casamentos no Olimpo, entre os deuses. Caso ainda mais espantoso das relações entre homens e mulheres está presente no Salão Nobre, onde se pode observar Apolo matando uma mulher. São narrativas, pois, em nada gratuitas, sobretudo se levar em consideração o local se encontram – isto é, em sua maioria, em cômodos de grande circulação de pessoas, como no hall de entrada e no Cortile, ou em espaços de sociabilidade tipicamente masculinos, como nos casos do Salão Ministerial e do Salão Pompeano. Este último, por sua vez, 257 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. carrega um discurso de poder que, mais uma vez, está inscrito nos referenciais clássicos escolhidos a dedo para a composição da decoração do cômodo. Figuras 1 e 2: à esquerda, escultura de Teseu matando a Hidra, presente no Hall de entrada do Palácio do Catete; à direita, pintura decorativa de Ceres segurando um feixe de trigo e uma cornucópia, alegoria representativa da agricultura, atividade exercida pelo Barão de Nova Friburgo. Fontes: Escultura de Perseu e painel de 3º estilo, século XIX. Museu da República, Rio de Janeiro. Fotos: Arquivo do LHIA. No Salão Pompeano, a análise e estudo da decoração parietal revelaram elementos relacionados a um forte discurso identitário por parte do Barão de Nova Friburgo, atribuindo figuras de seu universo pessoal às pinturas clássicas no local. Em primeiro lugar, identificamos a presença dos chamados estilos de decoração romanos; o 1º estilo, ou estilo de Incrustação, está presente em todo baixo nível do salão, através da pintura que simula uma incrustação de mármore ao redor do ambiente. O 2º estilo decorativo pode ser encontrado no nível acima da porta de entrada, rodeando todo o salão; este é caracterizado pela inserção de figuras arquitetônicas e cenas da mitologia clássica ou alegorias dentro destas, com o uso da técnica da pintura em perspectiva. Nas pinturas desse estilo, identificamos representações relacionadas a Apolo, cenas do cotidiano e algumas alegorias que estariam relacionadas a valores morais romanos, como a pietas, a fides e a pax. A inserção destes elementos é um indicativo da preocupação do Barão em também assinalar a relação entre sua imagem e os valores morais de uma elite educada segundo os moldes clássicos. Nos painéis verticais ao longo do salão, encontramos o 3º estilo decorativo, também conhecido como estilo ornamental, decorativo ou augustano, caracterizado pela presença de harmônicas estruturas, como candelabros, dos quais saltam, simetricamente, elementos naturais, como folhas, flores e arabescos. Por fim, todo o salão em si é estruturado no que conhecemos como 4ª estilo de decoração, que se perfaz na junção dos três estilos anteriores, de forma mais ampla e numa escala maior. Nos quatro painéis principais de 3º estilo, encontramos, em cada um, uma ale258 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. goria clássica que remete a uma atividade ligada à vida de Antônio Clemente Pinto. Em um deles, por exemplo, vemos brotar da estrutura principal ornamental, entre diversos elementos, a figura de uma mulher, de pé, em uma estrutura arqueada, com os seios de fora; em sua mão direita segura um feixe de trigo, e, ao redor do braço esquerdo, uma cornucópia. Suas características podem identificá-la como Ceres, deusa romana relacionada à boa colheita (principalmente dos grãos), à fertilidade e ao amor maternal. É a divindade da terra cultivada, especialmente do trigo. A cornucópia simboliza a abundância da terra fecunda. Nesse caso, todo o painel aponta para um discurso acerca da atividade da agricultura, realizada pelo Barão em suas fazendas de café; é importante notar a harmonia entre os elementos humanos e divinos, que constituem um discurso acerca da benção e do beneplácito dos deuses ao homem que se dedica a esta atividade. Em outro painel, temos a figura de um deus, que identificamos, pelos seus atributos como o pétaso alado, o caduceu e uma sacola com moedas, como Mercúrio, deus romano relacionado às atividades comerciais. Acima dele, há um novo quadrinho com fundo vermelho, em cujo interior encontramos a figura de uma balança. A harmonia entre os elementos presentes no painel aponta para um discurso em torno da atividade comercial. Em outros painéis, encontramos alegorias para a atividade metalúrgica, relacionada ao avanço das ferrovias e representante do anseio do barão pelo atrelamento de sua imagem à modernidade e ao avanço da época, e para as ciências náuticas, relacionadas, por sua vez, à atividade da exportação, também importante dentro do universo do Barão e representante de seu status – dentre diversos outros elementos representativos. Dessa forma, entendemos que as escolhas definidas pelo Barão para a composição do Salão Pompeano dialogavam com a necessidade do estabelecimento de um imaginário que versasse acerca de sua trajetória, ascensão e de seu status; vemos, claramente, que um discurso de poder se assentou nas paredes de seu palacete. Tal atitude é notória, aliás, por parte de uma elite oitocentista que seguia o projeto civilizador imperial. Nesse sentido, Eric Hobsbawm (1984) aponta para um modelo que as elites procuravam seguir que está imbuído com o discurso civilizador ocidental, ou seja, as representações neoclássicas aqui estabelecidas, sejam na arquitetura ou em outro tipo de representação artística, na verdade são modelos construídos para que o Império nos trópicos permanecesse com a sua moldura europeia branca; há o interesse, portanto, em se construir uma ponte entre aquele momento do II reinado e a Antiguidade Clássica. Hobsbawm, na introdução do livro A Invenção das Tradições, afirma que tradições inventadas são um conjunto de práticas normalmente reguladas por “regras tácitas ou abertamente aceitas, que visam inculcar certos valores e normas de comportamento por meio da repetição, o que implica automaticamente uma continuidade em relação ao passado” (HOBSBAWN, 1984, p. 9). Para ele, as tradições incentivavam o sentido coletivo de superioridade das elites especialmente quando estas precisavam ser recrutadas entre aqueles que não possuíam esse sentido por nascimento, como o Barão de Nova Friburgo. A brasilidade, como expressão de identidade, sempre irá se mesclar com elementos da cultura latina de forma a estabelecer um liame entre a nova nação e o seu “passado ideal”. Toda a materialidade do Palácio, pois, sugere discursos – logo, nem seus moti259 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. vos decorativos, nem a divisão dos cômodos deve ser naturalizada. Nesse sentido, é possível afirmar que a residência de Antônio Clemente Pinto e de Laura Clementina expressava uma série de discursos concatenados a um modelo civilizacional compartilhado pela elite nobiliárquica fluminense, da qual o Barão fazia parte. Construída segundo os padrões neoclássicos, revelava, portanto, uma gramática particular que dialogava com os anseios de sua geração (SUMMERSON, 2014). Quanto a isso, vale salientar que ambos eram migrantes portugueses e que o Barão logrou em fazer fortuna às custas do trabalho escravo, do plantio de café na região de Cantagalo e das sociedades que criou ao longo de sua carreira, sobretudo, tornando-se um dos indivíduos mais ricos do Segundo Império. Se isto aparece, de certa forma, explícito em motivos artísticos inerentes à agricultura, à tecnologia agrícola e às exportações e no gosto refinado conectado à própria cultura clássica, o mesmo não pode ser dito em relação aos negros. Por que, afinal, a atividade escravagista não está representada nas paredes do Salão Pompeano, já que se constituiu em importante fonte de riqueza e status para o Barão? É, assim, um dos silêncios mais gritantes da residência. Conclui-se, com isso, que uma série de questões relacionadas a discursos de poder e papeis de gênero pode ser levantada a partir a materialidade do Palácio, inclusive através de um viés sócio-racial, levando em consideração os já mencionados silenciamentos – perspectiva esta tão essencial na contemporaneidade. B i b lio gr afia DIAS, M. O. da S. A interiorização da metrópole (1808-1853). In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.). 1822: Dimensões. Coleção “Debates”, nº 9, 76. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. HOBSBAWM, E. Introdução: A Invenção das Tradições. In: HOBSBAWN, E.; RANGER, T. (Org.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984. HORTA, M. de L. P. O que é, afinal, educação patrimonial? In: CUSTÓDIO, L. A. B.; GRUNBERG, E. Guia Básico da Educação Patrimonial. Rio de Janeiro: Museu Imperial/ Deprom – IPHAN – MinC, 1999. MELNIXENCO, V. Friburgo & Filhos: tradições do passado e invenções do futuro (Dissertação de Mestrado em História Social). Rio de Janeiro: UNIRIO, 2014. PANOFSKY, E. Iconografia e Iconologia: uma introdução aos estudos da Renascença. In: Significado das Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1986. PEREIRA, M. A flecha e a espada. In: Revista do professor, Museu da República, nº 6, p. 34-39, 2017; SCOTT, J. A useful category of Historical Analysis. In: The American Historical Review, v. 91, nº 5, december, 1986, p. 1053-1075. SUMMERSON. J. A linguagem clássica da arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 2014. Recebido em 17/9/2019 e aceito em 3/10/2019 260 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Aprendendo história antiga seguindo os passos de Psique: um relato da criação do material didático “o jogo da imortalidade” Maria Luiza Silva Patury e Souza Graduanda (UFRJ) Bolsista de iniciação científica da UFRJ (PIBIC) mlpatury@gmail.com Orientadora: Proª Dra. Maria Regina Bustamante (UFRJ) O objetivo desse relato é discutir a criação de um jogo de tabuleiro didático, denominado Jogo da Imortalidade, construído através de um projeto do Laboratório de História Antiga da UFRJ (LHIA), denominado “Cultura Material na Antiguidade Clássica: os desafios da Educação Patrimonial” e que foi inserido recentemente a outra iniciativa institucional mais abrangente do laboratório denominada “Projeto VIVA+ cidade”. O jogo é fruto de uma pesquisa que buscou analisar o cortile1 do Palácio do Catete, atual Museu da República, construído na segunda metade do século XIX, no Rio de Janeiro, voltando-se para as diversas referências clássicas presentes no cômodo. O enfoque é dado ao aspecto decorativo dominante neste espaço: a narrativa imagética do mito de Cupido e Psique, relatado na obra O Asno de Ouro, de Apuleio (Apul. Met.). Para além disso, compreendendo a reincidência da apropriação da cultura clássica e também da narrativa específica de Cupido e Psique — que também é representada no Palácio Romano Renascentista, a Vila Farnesina, sob a autoria de Rafael Sanzio —, esta pesquisa e, consequentemente, seu produto final atentam para a constante reutilização do referencial clássico e, igualmente, sua funcionalidade no contexto do II Reinado no Brasil (segunda metade do séc. XIX). O Palácio do Catete foi pensado para ser a residência de um rico barão, o barão de Nova Friburgo de nome Antônio Clemente Pinto. O prédio começou a ser construído em 1858 (tendo sido concluído em 1867) e sua grandiosidade era digna do homem que chegou a ser considerado “o homem mais rico do Império Brasileiro”. Sua origem, porém, não era muito nobre; Antônio Clemente Pinto era português e chegou ao Brasil com apenas doze anos, em 1807, acompanhado de seu tio. O futuro barão era descendente de uma família simples de agricultores imigrantes, mas, em pouco tempo, começou a construir uma grande fortuna. Primeiramente, ele come1 Tipo de pátio interno italiano, aberto e cercado de arcadas. 261 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. çou suas atividades como traficante de escravos, o que lhe rendeu muitas riquezas, mas nenhum prestígio. Investiu também na mineração, não sendo tão bem-sucedido. E, finalmente, lançou-se na cafeicultura, o que lhe garantiu não só riquezas, como uma respeitosa situação social e sua entrada oficial na nobreza fluminense: o palácio que mandara construir era, sem dúvida, uma reafirmação dessa posição. A construção do prédio partiu do projeto do arquiteto prussiano Carl Friedrich Gustav Waehneldt e as pinturas decorativas do cortile, que contam a história do amor impossível entre Cupido e Psique, ficaram por conta de Emil Bauch. O mito é contado através das lunetas2 no teto, mas outros detalhes do cômodo fazem também referência ou anunciam a história a exemplo da réplica da estátua de Vênus de Cápua, logo acima do primeiro lance de escada. Nossa hipótese com relação à utilização desse mito pelo barão, logo no hall de entrada palácio, é a de que seja possível traçar uma relação entre a trajetória de Psique, uma humana que se tornou imortal, com a do barão, um homem simples que se tornou um dos mais ricos integrantes da nobreza fluminense. Ou seja, Antônio Clemente Pinto quis chamar atenção para sua história de ascensão social. Partindo deste conteúdo e considerando a relevância de se pensar em novas estratégias para o trabalho com a educação básica, que se mostrem mais de acordo com as demandas atuais, a formulação de um jogo didático surge como uma opção interessante. O material didático é um instrumento indispensável na dinâmica escolar e um aliado muito importante na produção do conhecimento histórico, mesmo fora dos ambientes de educação formal. Atualmente, por meio das possibilidades abertas pela história pública, entre outros fatores, esses produtos tendem para uma configuração mais diferenciada e plural, trabalhando mídias alternativas ao texto escrito e reconhecendo a necessidade de se estreitar os laços entre o conhecimento acadêmico e o grande público. Juntamente com esse debate sobre a história pública, fruto de uma maior preocupação da área com as demandas educacionais e didáticas, ressurge uma questão já descortinada pela historiografia, mas ainda não explorada em toda sua potencialidade dentro do mundo acadêmico e, muito menos, do mundo escolar: a diversidade do tipo de documentação. A educação patrimonial surge neste contexto como uma importante estratégia, capaz de atender uma demanda de desnaturalização da fonte escrita como único documento viável para análise histórica e ainda, assim como a história pública, reivindica para si um papel de formação do cidadão, na medida que também busca promover uma conscientização sócio histórica das diversas referências culturais de modo democrático. Foi por meio desse posicionamento teórico que o Jogo da Imortalidade foi concebido: buscando aliar os conceitos da educação patrimonial e de acessibilidade a um público amplo, defendido especialmente pela história pública. Quanto aos nossos objetivos, estes envolvem: sensibilizar os alunos quanto à relevância da história antiga e sua importância para compreender nossa contemporaneidade e nosso passado próximo; explorar os elementos arquitetônicos e decorativos como documentação histórica; e conscientizar sobre a importância da preservação do patrimônio histórico e cultural. 2 Elemento arquitetônico que se descreve como fenda ou fresta oval ou circular localizada numa parede. 262 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Tendo os objetivos principais do jogo bem traçados, assim como as perspectivas que embasaram a formulação do material, podemos partir para sua explicação: o Jogo da Imortalidade é um jogo de tabuleiro que teve sua dinâmica inspirada pelo muito popular Jogo da Vida3, porém tem como objetivo final levar o participante ao Olimpo para que ele se torne, assim como Psique, um “imortal”. O jogo foi pensado para uma faixa etária que envolve crianças do 6° ao 8° anos do ensino fundamental. No entanto, como já foi colocado, ele não foi construído pensando necessariamente num contexto de sala de aula, mas sim como um desdobramento de uma visita ao Palácio do Catete. A estrutura é a seguinte: é preciso um mediador e são permitidos de 2 a 6 jogadores — para uma turma, o jogador pode ser “coletivo” (um grupo até 4 alunos) — , que lançará um dado comum para determinar seu avanço pelo tabuleiro. Este, conta com o total de quarenta “casas”, das quais oito apresentam algum recuo ou atalho para o jogador e dezessete possuem algum desfio. Estes desafios são cartas com questionamentos sobre três temas: o Mito de Cupido e Psiquê (1); sobre o Palácio do Catete (2) e a identificação de personagens das lunetas do cortile do palácio (3). Tais temas serão indicados no tabuleiro e nas cartas-desafio por três imagens: o Palácio do Catete, para as perguntas relacionadas ao mesmo; o panteão romano, para as perguntas relacionadas ao Mito de Cupido e Psiquê; e uma luneta (instrumento óptico), para os desafios relacionados à identificação dos personagens nas pinturas do palácio. Ao “cair” em uma casa com uma dessas imagens, o jogador deverá responder uma pergunta sobre o respectivo tema ou, no caso da carta com a imagem de uma luneta, identificar um personagem no contexto da luneta sorteada. Ao responder à pergunta aquela ficha deve ser descartada para que não se repita no jogo (com exceção das cartas com as lunetas, que só devem ser descartadas quando todos os personagens possíveis forem identificados pelos jogadores). Acertando a pergunta o jogador “conquista” aquela posição; caso erre, ele deve retornar para a casa de onde veio. No total, o jogo conta com 78 cartas-desafios: 40 relacionadas ao Mito de Cupido e Psique, 30 ao Palácio do Catete e 8 à identificação dos personagens das lunetas. Logo a abaixo, apresentamos um exemplar de cada carta-desafio: Carta desafio categoria (1) Da esquerda para direita: Verso (Fachada do Panteão Romano) e anverso (Claraboia do Panteão Romano) 3 Jogo criado em 1860 por Milton Bradley. Em 1960 foi lançado na forma que conhecemos hoje, com o design de Reuben Klamer. Os direitos autorais pertencem desde 1992 a Hasbro Internacional, Inc., USA., porém no Brasil o jogo se tornou popular com a empresa Brinquedos Estrela. 263 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Carta desafio categoria (2) Da esquerda para direita: Verso (Fachada do Palácio do Catete) e anverso (Claraboia do Palácio do Catete) Carta desafio categoria (3) Da esquerda para direita: Verso (luneta - instrumento óptico) e anverso (luneta do cortile do Palácio do Catete) Após diversas alterações, reflexões e adaptações a partir da orientação da Prof. Dr. Regina Bustamante (orientadora deste projeto), um primeiro protótipo físico do jogo foi produzido e apresentado aos responsáveis dos setores de Pesquisa e Educação do Palácio do Catete (setembro/2019) e, por meio da grande disponibilidade destes — em especial gostaríamos de agradecer ao pesquisador e coordenador Técnico do Museu da República, Marcus Macri, e ao Diretor do Museu, Mário Chagas — , os primeiros acordos para as melhorias técnicas do jogo; que envolvem, por exemplo, um design gráfico profissional, já estão em andamento. A partir deste protótipo, estamos pensando conjuntamente com o palácio em uma versão online do jogo e outra versão física, que teria que passar por adaptações antes de sua impressão. Tais adaptações envolvem basicamente possibilitar a jogabilidade sem um mediador para a leitura das perguntas das carta-desafio, operação que tornaria a realização do jogo mais simples. Todas essas demandas de modificações e alteração de mídia (meio físico para o meio digital) estão sendo trabalhadas neste momento. Como acreditamos que o conhecimento é algo vivo e dinâmico, sabemos que os materiais didáticos devem estar sempre em constante reciclagem e mudança para que continuem se relacionando com as demandas de seu tempo e contribuindo para a construção do pensamento crítico. A seguir, na página seguinte, apresentamos também o tabuleiro do jogo: 264 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Tabuleiro “O Jogo da Imortalidade” 265 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Abr e viaçõ es Apul. Met. – Apuleius (Metamorfoses) Font e s APULEIO. O burro de ouro IV, 28-VI, 24. Lisboa: Cotovia, 2007, p. 107-147. Ref e r ên c ias b ib l i o g r á f i ca s ALMEIDA, J. R.; ROVAI, M. G. de O. (Org.). Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011. HORTA, M. de L. P.; GRUNBERG, E.; MONTEIRO, A. Q. Guia básico de Educação Patrimonial. Brasília, DF: Iphan, 1999. Recebido em 16/9/2019 e aceito em 2/10/2019. 266 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Vrbs mirabilis: conhecendo a cidade romana através das mídias digitais e tecnologias aplicadas ao ensino de história antiga Ana Beatriz de Santana Bandeira Santos Graduanda em História (UPE, Campus Petrolina) anabiiia.absbs@gmail.com Irlan Bruno de Souza Santos Graduando em História (UPE, Campus Petrolina) irlanbruno.alucard@gmail.com Orientador: Prof. Dr. Thiago Eustáquio Araújo Mota Res u mo O presente artigo tem como objetivo divulgar os resultados do nosso projeto de Iniciação Científica vinculado ao Programa de Fomento Acadêmico da Universidade de Pernambuco (PFA/UPE) intitulado: “Mídias digitais e tecnologia aplicada ao ensino de história antiga: a cidade romana em foco”. A pesquisa teve como objetivo geral testar o uso de tecnologias e mídias digitais no ensino de História Antiga, elegendo como recorte histórico-temporal o ambiente da cidade romana. Pa lav r as - chav e Mídias Digitais; Tecnologia; Ensino de História; História Antiga; Cidade Romana Abs t rac t This article aims to disseminate the results of our Scientific Initiation project linked to the Academic Development Program of the University of Pernambuco (PFA / UPE) entitled: “Digital media and technology applied to the teaching of ancient history: the Roman city in focus”. The general objective of the research was to test the use of technologies and digital media in the teaching of Ancient History, choosing the historical-temporal environment of the Roman city. 267 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Key- w or ds Digitals midias; Technology; History teaching; Ancient History; Roman crity O projeto de iniciação científica, intitulado “Mídias Digitais e Tecnologias Aplicadas ao Ensino de História Antiga: a Cidade Romana em Foco”, teve como principal intuito testar vários recursos virtuais, elegendo como recorte histórico-temporal o ambiente da cidade romana. Um dos propósitos do projeto foi construir um banco de dados e fichas técnicas de modelos digitais e aplicativos virtuais correspondentes, bem como identificar os sítios virtuais de centros de excelência em elaboração de mídias digitais e arqueologia digital, como Harvard, Universidade da Califórnia, LARP (USP), entre outros. Encorajamos o professor a abordar diferentes aspectos da Roma antiga, através da tecnologia e estimular reflexões, em sala de aula, sobre estruturas econômicas, sociais, políticas e culturais da Antiguidade. Além disso, ressaltamos a importância da crítica dos discursos sobre a Antiguidade presentes na sociedade contemporânea para despertar no aluno o interesse pela História Antiga e pela produção autônoma do conhecimento. A partir das discussões teóricas utilizando textos sobre o ensino de História Antiga e a cidade romana, conseguimos formular uma base crítica para sugerir caminhos para a utilização destas mídias digitais em sala de aula e, assim, organizar as informações necessárias para a utilização dos mesmos pelos professores e também para a divulgação deste material. No ensino de História persiste uma dependência muito grande do livro didático que, em alguns contextos da educação pública brasileira, se torna a única fonte de pesquisa acessível aos discentes (GONÇALVES; SILVA, 2001, pag. 124). Esse matérial, certamente, tem a sua importância no processo de ensino e aprendizagem, porém outros meios podem e devem ser pensados e experimentados, tendo em vista uma interação mais dinâmica na sala de aula (CUSTODIO, 2010; ALVES, 2015). Uma das formas de conciliar o uso do livro didático com outros materiais é através do uso das mídias digitais. São recursos que, além de captar a atenção dos discentes, podem proporcionar, através da mediação do docente, uma dinâmica comparativa/reflexiva com o conhecimento histórico científico e o saber escolar. As mídias digitais apresentam uma variedade de recursos e um leque de opções a serviço do professor, desde os vídeos de reconstituição e monumentos até os games virtuais; a variedade de temáticas e recursos oferecidos é bastante extensa. Obviamente, estes recursos tecnológicos não devem ser usados sozinhos, sendo indispensável o apoio de textos e outros recursos de pesquisa indicados pelo professor. Como parte do planejamento, se faz necessário analisar se a mídia escolhida é apropriada e se adequa às competências e habilidades almejadas para o plano de ensino. Uma estratégia metodológica no que concerne à utilização de jogos em sala de aula seria explorar as discrepâncias que, muitas vezes, as narrativas dos games apresentam em relação ao conhecimento historiográfico de base documental. Dessa forma, ao docente cabe o papel de estimular o questionamento da mídia pelos alu268 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. nos, tendo em vista a temática e o recorte escolhidos. Como desdobramento do nosso projeto de iniciação científica, realizamos o levantamento de aplicativos e reconstituições 3D que poderiam ser utilizadas pelos docentes da educação básica em sala de aula. Apresentaremos aqui estes aplicativos e seus devidos laboratórios junto a uma breve explanação do funcionamento e sugestões metodológicas de aplicação. Um dos nossos objetivos foi apontar possibilidades didáticas e caminhos metodológicos de forma a romper com a excessiva mecanização no que se refere ao ensino de História Antiga, criando um vínculo entre as Tecnologias de informação e comunicação e a História. Desta maneira, o desenvolvimento tecnológico permite que máquinas, programas e aplicativos sejam instrumentos criativos desde que utilizados com a devida contextualização. De forma suscinta, iremos apresentar aqui algumas destas mídias digitais que foram testadas e divulgadas em nossa página do Facebook intitulada: VRBS Mirabilis — Mídias Digitais Aplicadas ao Ensino de História Antiga, junto a uma proposta de utilização para cada uma delas. O primeiro aplicativo testado foi desenvolvido pela equipe de arqueólogos pesquisadores do Laboratório de Arqueologia Romana Provincial (LARP) do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo. DOMUS REDUX1 é a adaptação do aplicativo-web DOMUS para dispositivos com sistema operacional Android. Com o uso de um tablet ou smartphone é possível navegar por uma domus (casa romana) virtualmente reconstituída, ao mesmo tempo em que o usuário obtém informações sobre os vários espaços da residência, vestibulum, atrium, triclinium, peristilo, entre outros. É uma ferramenta interessante para o docente da educação básica, especialmente do ensino fundamental, pois foge à metodologia tradicional de ensino e utiliza um tipo de tecnologia com a qual os adolescentes estão em constante interação: o sistema operacional Android. O DOMUS VR2 possui a mesma proposta do Domus Redux, porém, com a experiência de imersão através da realidade virtual que, neste caso, possibilita a experiência de trânsito por uma domus romana com a utilização dos óculos de realidade virtual. Trata-se de um aplicativo de fácil utilização pelo Android, junto aos óculos VR que podem ser encontrados em várias modalidades de preço no mercado. O Aplicativo ROMA 3603, também produzido pela equipe de arqueólogos pesquisadores do Laboratório de Arqueologia Romana Provincial (LARP) do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo, tem como proposta ampliar o conhecimento da cidade de Roma ao público em geral. A partir do mapa da cidade de Roma em 3D é possível visualizar a localização de templos, monumentos e outras estruturas urbanas. A escolha da data de 360 d.C oferece um quadro extenso dos diferentes tipos de monumentos imperiais e sua relação urbanística. É um aplicativo de fácil utilização onde o professor tem em suas mãos um mapa em três dimensões da cidade romana que ele pode girar, aproximar ou destacar apenas as construções principais. 1 Disponível em: <http://www.larp.mae.usp.br/rv/domus-redux/>. Acesso em: 13 ago. 2018. 2 Disponível em: <http://www.larp.mae.usp.br/rv/domus-v-r/>. Acesso em: 13 ago. 2018. 3 Disponível em: <http://www.larp.mae.usp.br/rv/roma-360/>. Acesso em : 14 ago. 2018. 269 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Outras possibilidades podem ser levantadas, dentro de um escopo visual, que dialogam com frentes de pesquisa em universidades e seus usos didáticos em salas de aula. Neste sentido, recebe destaque o projeto Digital Roman Forum, desenvolvido pelo Laboratório de Realidade Virtual da Universidade da California (UCLA). É igualmente arrojado e propõe a reconstrução das camadas temporais do Fórum Romano. O sítio virtual da UCLA oferece um elenco minucioso de citações dos monumentos na documentação textual que, em confronto com os vestígios arqueológicos, é utilizada na formulação de modelos virtuais reconstrutivos. Como complemento para a formação docente e aprofundamento na área da arqueologia digital, recomendamos o curso online Rome: A Virtual Tour of The Ancient City, oferecido gratuitamente pela Universidade de Reading e idealizado pelo pesquisador Matthew Nicholls. O próximo dispositivo avaliado consiste em uma reconstituição 3D do evento responsável pela extinção das cidades da Campânia: a erupção do Vesúvio de 79 d.C. Além de abordar a relevância científica dos sítios arqueológicos de Pompéia, Herculano, Estábia e Oplontis, que preservaram inúmeras informações sobre o cotidiano das cidades e vilas das região, o professor poderá explorar os vários espaços da cidade antiga, além de discutir com os alunos sobre o processo de erupção de um vulcão. Esta reconstituição é chamada de “Um dia em Pompeia”4 e fez parte de uma exposição das Obras-primas de Inverno de Melbourne, que foi realizada no Museu de Melbourne, de 26 de junho a 25 de outubro de 2009. O Zero One, uma empresa australiana, criou a animação para uma instalação de teatro 3D imersiva que deu aos visitantes a chance de experimentar o drama e o terror dos cidadãos da cidade nas últimas horas de Pompeia. No que diz respeito ao quesito gráfico e de jogabilidade, os jogos virtuais estão cada vez mais realísticos e a habilidade natural dos jovens do século XXI para com as mídias digitais é algo que precisa ser aproveitado, uma vez que o jogo proporciona uma forma de aprendizado dinâmica e muitas vezes única, exigindo, às vezes um raciocínio rápido e preciso do seu jogador. Assim, segundo a autora Lynn Alves em seu artigo: Aprendizagem mediada pelos jogos digitais: delineando o design investigativo: A memória e a atenção são funções cognitivas também exigidas no percurso do jogo. A construção de conceitos ocorre a partir da ação-reflexão e ação do jogador quando é demandado a realizar suas escolhas a partir de conhecimentos prévios que atuarão como base para a construção de novos conceitos. Assim, os jogadores evoluem de conhecimentos espontâneos para conhecimentos científicos, caracterizando um pensamento metacognitivo no qual a definição lógica de um conceito vêm depois deste ser dominado por intermédio da prática (ALVES, 2015, pag 197). 4 Disponível em: <http://zerooneanimation.com/index.php/projects/pompeii.>. Acesso em: 17 ago. 2018. 270 GAÎ A: Vol. 10, N. 1. Trabalhos promissores do ponto de vista do ensino de história já foram e estão sendo realizados, como é o caso do jogo A Revolta da Cabanagem, desenvolvido pelo Laboratório de Realidade Virtual do Instituto de Tecnologia da UFPA (LARV/UFPA) e o projeto Vipasca Antiga, desenvolvido como produto final da tese de doutorado do pesquisador Alex da Silva Martire intitulada Ciberarqueologia em Vipasca: o uso de tecnologias para a reconstrução-simulação interativa arqueológica (2017). O uso das mídias digitais na educação básica não leva apenas mais um recurso para a sala de aula, mas também um modo de estimular a imersão dos alunos no conteúdo trabalhado. No entanto, cabe um cuidado técnico e abordagem crítica uma vez que as diversas simplificações e adaptações estão sempre presentes na linguagem destes recursos e jogos. O uso das mídias se torna um recurso a mais para o professor, uma ferramenta interessante de se usar em aula estimulando a curiosidade dos discentes sobre o assunto abordado, por meio dos recursos tecnológicos e da mediação do professor. Essa nova inserção das mídias digitais é essencial para uma transformação e potencialização do diálogo com as novas gerações. Unir ferramentas para o aprendizado apenas beneficia tanto a mensagem que o professor deseja passar quanto o entendimento do aluno. Ref e r ên c ias Bib l i o g r á f i ca s ALVES, L. R. G. Aprendizagem mediada pelos jogos digitais: delineando design investigativo. In: SOUZA, C. R.; SAMPAIO, R. R. (Org.). Educação, Tecnologia & Inovação. 1ed. SALVADOR: EDIFBA, 2015, v. 1, p. 187-208. ALVES, L. R. G. Games e educação: desvendando o labirinto da pesquisa. Revista FAEEBA., v.22, p.177-186, 2013. BEARD, M. Pompeia: a vida de uma cidade romana. Rio de Janeiro: Record. 2016. CUSTODIO, C. T. Por outra história da Grécia Antiga nas salas de aula. S.P., Labeca – MAE/USP, 2010. CERRI, L. F. Ensino de História e Consciência Histórica. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011. GONÇALVES, A. T. M.; SILVA, G. V. Algumas Reflexões sobre os Conteúdos de História Antiga nos Livros Didáticos Brasileiros. História & Ensino (UEL), Londrina, v. 7, p. 123-142, 2001. GARRAFFONI, R.S e FUNARI, P.P.A., “História Antiga na sala de aula”, in: Coleção Textos Didáticos, n° 51, IFCH/UNICAMP, Campinas, 2004. GONÇALVES, A. T. M.; SILVA, G. V. Algumas Reflexões sobre os Conteúdos de História Antiga nos Livros Didáticos Brasileiros. História & Ensino (UEL), Londrina, v. 7, p. 123-142, 2001. MOURA, M. J. F. O Ensino de História e as Novas Tecnologias: da reflexão à ação pedagógica. In: XXV Simpósio Nacional de História, 2009, Fortaleza - Ce. Práticas Educativas e Novas Linguagens no Ensino de História, 2009. Recebido em 16/9/2019 e aceito em 3/10/2019. 271