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Tempus Et Machina

2013, III Encontro Internacional de Teoria e Análise Musical

Esta palestra consiste em algumas considerações sobre o processamento do tempo num projeto metodológico de análise da música não tonal a partir do conceito de sonoridade. Neste contexto, o tempo é visto como um momento com início e fim no interior do qual as durações se manifestam em termos relativos ou estatísticos. O método se funda no princípio de dissociação entre forma morfológica e forma cinética, e, por extensão e para retomar as formalizações do compositor Helmut Lachenmann, entre estado e processo. A obra Echo-Andante deste compositor é utilizada como exemplo para ilustrar como os dados sobre o processamento do tempo são obtidos – por meio do auxílio de um programa computacional – e interpretadas para produzir conhecimento sobre estrutura, forma e estética.

 Tempus Et Machina: considerações sobre o processamento do tempo em análise musical com suporte computacional Didier Guigue (UFPB) Resumo: Esta conferência consiste em algumas considerações sobre o processamento do tempo num projeto metodológico de análise da música não tonal a partir do conceito de sonoridade. Neste contexto, o tempo é visto como um momento com início e fim no interior do qual as durações se manifestam em termos relativos ou estatísticos. O método se funda no princípio de dissociação entre forma morfológica e forma cinética, e, por extensão e para retomar as formalizações do compositor Helmut Lachenmann, entre estado e processo. A obra Echo-Andante deste compositor é utilizada como exemplo para ilustrar como os dados sobre o processamento do tempo são obtidos - por meio do auxílio de um programa computacional - e interpretados para produzir conhecimento sobre estrutura, forma e estética. Tempus Et Machina: considérations sur le traitement du temps en analyse musicale assistée par ordinateur Résumé: Cette conférence consiste en un certain nombre de considérations sur le traitement du temps au sein d'un projet méthodologique d'analyse de la musique non tonale à partir du concept de sonorité. Dans ce contexte, le temps est pensé comme un moment, avec début et fin, à l'intérieur duquel les durées se manifestent em termes relatifs ou statistiques. La méthode est fondée sur le principe de dissociation entre forme morphologique et forme cinétique, et, par extension et pour reprendre les formalisations du compositeur Helmut Lachenmann, entre état et processus. L’œuvre Echo-Andante de ce compositeur est utilisée comme exemple pour illustrer comment les données sur le traitement du temps sont obtenues - avec l'aide d'un programme d'ordinateur - et interprétées pour produire des informations sur la structure, la forme et l'esthétique. Morfologias e Tempo A articulação do tempo constitui obviamente a questão central na gestação de uma retórica musical, isto, em qualquer época, gênero ou estética. Não vim traçar aqui um panorama dos debates e da literatura sobre o assunto. É desnecessário dizer que não é possível pretender abarcar qualquer realidade musical fazendo a economia da dimensão tempo. Ao buscar um método de análise da música não tonal a partir do conceito de sonoridade, 1 me deparei, no que diz respeito ao tempo, com a necessidade de verter para o  SOBRENOME, Nome; SOBRENOME, Nome. Título do artigo. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE TEORIA E ANÁLISE MUSICAL, 3., 2013, São Paulo. Anais... São Paulo: ECA-USP, 2013. 1 GUIGUE, D. Estética da Sonoridade. S. Paulo: Perspectiva. Brasília: CNPQ. João Pessoa: Editora UFPB, 2011. 13 III Encontro Internacional de Teoria e Análise Musical campo da hermenêutica problemáticas que tinham sido postas no campo da composição em vários momentos no decorrer do século XX, e com especial acuidade por Boulez, Stockhausen e aqueles compositores que passariam a ser rotulados de "espectralistas". Dentro deste grupo de compositores, as reflexões de Gérard Grisey sobre os diferentes tempos musicais constituem um aporte importante, 2 onde o conceito de processo se torna centralizador. Nas palavras de J.-L. Hervé: " Um processo não é somente um procedimento de anamorfose que permite passar gradualmente de um estado sonoro em direção a outro, ele é sobretudo o rastro na música do tempo que passa." 3 Uma definição que se encaixa de algum modo na visão de Jean LaRue, embora em outro contexto, que afirmou que “a forma musical é a memória do movimento”. 4 A natureza gradual intrinseca ao processo é que coloca o analista diante de um certo paradoxo quando se depara com um sistema de codificação que procede usualmente por passos discretos, por mais microscópicos que possam ser – geralmente mais microscópicos no caso da música produzida por meios eletro-digitais, mais grosseiros no caso da musica instrumental. Driblar este paradoxo por meio de compromissos constitui então o trivial de qualquer metodologia que almeje render conta da lógica dinâmica deste tipo de música. No caso, me conformei, por um lado, em abordar o tempo musical não como uma sucessão de unidades métricas gerando pulsação, mas como um momento com início e fim no interior do qual as durações se manifestam em termos relativos ou estatísticos. 5 Por outro lado, adotei o princípio de dissociação espacio-temporal, já tradicional em teoria musical – considerando que constitui o fundamento da notação bi-dimensional desde a idade média. Richard S. Parks, na exposição da sua abordagem analítica de Debussy, efetua uma distinção entre o que ele chama forma morfológica e forma cinética.6 Segundo ele, a primeira concebe a disposição dos fatos sonoros em termos de metáforas espaciais, o que pressupõe que eles estejam observados como se fossem fixos, estáticos, enquanto a segunda trata da sua disposição por metáforas relacionadas ao movimento. Retomo esta separação metodológica como princípio organizador dos componentes que concorrem na qualificação de uma sonoridade. Assim, um componente é definido como acrônico pelo fato de somente poder ser avaliado após ter feito abstração do fator tempo, isto é, da duração da sonoridade e da posição relativa no tempo dos fatos sonoros. Direi, então, seguindo Parks, que este componente é de ordem morfológica, pois ele fornece uma representação estática da configuração interna da sonoridade. Simetricamente, considero como sendo de ordem cinética os componentes diacrônicos que avaliam as modalidades de distribuição dos fatos sonoros no lapso de tempo que ocupa a sonoridade: são eles que vão informar como o 2 GRISEY, G. Tempus Ex Machina. Revue Entretemps, Paris, n.8, p. 83-120, 1989; ANDERSON, J. A provisional history of spectral music. Contemporary Music Review, [S.l.], vol. 19, parte 2, p. 7-22, 2000. 3 HERVE, J.-L. Passage, temps, trajectoire. L'étincelle, Paris, n. 4, p. 21, 2008. O grifo é meu. 4 LARUE, J. Análisis del estilo musical. Barcelona, Editorial Labor, 1993 [1970], p. 88. O grifo é dele. 5 É o que Boulez definiu como tempo amorfo. BOULEZ, P. Penser la musique aujourd'hui. Gonthier, 1963, p. 100. 6 PARKS, R.S. The Music of Claude Debussy. New Haven & London, Yale University Press, 1989. III Encontro Internacional de Teoria e Análise Musical conteúdo morfológico se transforma em energia. Podemos, então, dizer que os componentes cinéticos modulam os componentes morfológicos.7 Este modelo de descrição demonstra analogias com o binômio matéria/forma de Schaeffer, no sentido em que a matéria é o que poderíamos isolar se pudéssemos imobilizar o som para ouvir o que ele é num dado momento da escuta, enquanto que a forma representa a trajetória que esculpe esta matéria na duração e a faz eventualmente evoluir. 8 Faço também uma aproximação com o conceito dialético de estado e processo elaborado por Lachenmann para descrever as estruturas sonoras que formam as bases da sua música. O compositor alemão elabora uma tipologia das relações do som estruturado com o tempo e a forma, no topo da qual o que ele chama de Klangstruktur representa o caos estruturado em sonoridade ordenada no eixo do tempo, « uma ordem formada de componentes sonoros heterogêneos, produzindo um campo complexo de relações ».9 A Klangstruktur é um som pensado simultaneamente como estado, o qual é função da sua natureza, e como processo, quando este mesmo som é, desta vez, pensado como forma capaz de gerar uma articulação do tempo. Uma Klangstruktur em ação. Eu vou utilizar como demonstração o trecho final da sua obra Echo-Andante para piano solo, de 1962. Interessante, de fato, é ver como este pensamento se põe em ação numa obra para um instrumento que por natureza não favorece o processamento gradual do som. Ao mesmo tempo, obras para piano oferecem justamente o terreno ideal para trabalhar o paradoxo evocado acima. Aproveitarei para mostrar ao mesmo tempo algumas das ferramentas computacionais que eu uso para colher dados sobre o tratamento do tempo10. Trata-se do último "gesto" sonoro, exposto nas duas últimas páginas da partitura, 11 e cuja convenção gráfica (aproximadamente 1 cm = 1s.)12, sugere uma duração de 90s. Na fig. 1, trago deste trecho uma representação em forma de onda (em cima), e um sonograma 7 Mais detalhes sobre a noção de componentes da sonoridade podem ser encontrados em GUIGUE, op. cit., p. 47 et sq. 8 SCHAEFFER, P. Traité des objets musicaux. Paris, Seuil, 1966, p. 275. CHION, M. Guide des objets sonores, Pierre Schaeffer et la recherche musicale. Paris, Buchet/Castel, 1983, p. 116. 9 LACHENMANN, H. « On My Second String Quartet ». Contemporary Music Review Vol. 23 nº 3/4, 2004, p. 67. 10 Essas ferramentas estão disponíveis em formato de uma library para o ambiente OpenMusic, chamada SOAL – SonicObjectAnalysisLibrary, no endereço: www.ccta.ufpb.br/mus3. 11 LACHENMANN, H. Echo-Andante. Wiesbaden, Breitkopf & Härtel, 1980 [1962], p. 16-17, a partir do penúltimo acorde do segundo sistema da p. 16. Esta seção é mostrada e ouvida na palestra. 12 Deduzi esta escala da duração total da peça estimada pelo compositor em doze minutos (cf. p. 2 da partitura). A duração fatual é função das escolhas do intérprete, sendo estas orientadas, em parte, pela curva de extinção dos sons, que muda em função do piano e da sala de concerto. III Encontro Internacional de Teoria e Análise Musical com análise espectral por onset (em baixo) da gravação de referência utilizada13. Nesta gravação, o trecho dura pouco mais de 70s. Fig. 1 - Representação e análise do trecho final de Echo-Andante de H. Lachenmann. O processo, nesta seção conclusiva, consiste em pôr em vibração o acordo de Dó Maior, fff, que é configurado de maneira a garantir sua ressonância durante tudo o restante do tempo da obra, como o confirmam tanto a audição atenta quanto as representações espectrais. Com efeito, a intensidade e o registro são calculados para que ele possa propagar com força suficiente suas vibrações no ar e, portanto, no tempo. No entanto, por mais potente que seja esse efeito, a morfologia do piano, obviamente, implica numa desinência natural deste acorde em prazo relativamente rápido. O que Lachenmann faz aí é substituir ao processo natural um processo artificial de prolongação da extinção por meio de intervenções na matéria, cuja finalidade é realimentar a energia sonora, porém em medidas cada vez mais débeis, de modo que o processo rume sim ao silêncio definitivo, mas a passos lentos. E cada vez mais lentos aliás, pois o que se percebe em primeira instância é o esticamento fantástico das durações, atingindo quase o inexorável nos três derradeiros fatos sonoros. Este alargamento exponencial do tempo é correlato à atenuação hiperbólica da amplitude, por meio das indicações de intensidade, que descem, na partitura, até o pppppppp. Essa programação da extinção dos sons constitui uma variação do timbre no tempo, uma espécie de time-stretching aplicado a um acorde de piano. 13 KELLER, R. Helmut Lachenmann, Klaviermusik, CD Col Legno, 1991. O volume do áudio foi normalizado a 0 dB. A análise foi realizada em Audiosculpt ®, com a função "Average Spectrum by Chord Sequence Analysis". cf. http://support.ircam.fr/forum-ol-doc/audiosculpt/2.9.2/co/as-ug-2_9.html. III Encontro Internacional de Teoria e Análise Musical A fig. 2 traz os histogramas dessas duas dimensões. Relative Span (durações relativas, histogramas mais escuros) proporcionaliza as durações de cada fato sonoro14, em relação àquele de maior duração, que é o último. Nas abscissas, indiquei a duração exata de cada um, em ms, na interpretação de Roland Keller. Relative Intensity (intensidades relativas, histogramas mais claros) , representa as indicações simbólicas de dinâmica, fatorizadas pela mais elevada, que é a primeira (fff). Fig. 2 - Gráfico representando a evolução de duas dimensões no mesmo trecho. Durações versus Intensidades. Apesar do pianista não observar com exato rigor as durações deduzíveis da distribuição espacial das notas na partitura, constatamos, pela progressiva elevação dos histogramas das durações, uma bonita concepção da progressividade do alargamento do tempo, que inclui uma leve exponencialidade. Desenvolvi vários algoritmos para qualificar tais organizações temporais. Um deles é a densidade relativa dos fatos sonoros15, que, a partir da inferência de uma unidade mínima de pulsação, observada pelo algoritmo ou estipulada pelo usuário, conta o número de fatos existindo e o fatoriza pelo maior número possível de fatos que poderiam existir, levada em conta aquela pulsação mínima. No caso, o algoritmo encontra, na análise da gravação do pianista, uma pulsação mínima de 379 ms, donde deduz uma densidade relativa de (0.09), ou 9%, para o trecho. Esta ponderação satisfaz evidentemente a nossa expectativa intuitiva, 14 Fato sonoro corresponde a um número qualquer de notas ou outros elementos compondo a sonoridade, que ocorrem na mesma posição (onset) no tempo. Relative Span e Relative Intensity são duas das funções implementadas em SOAL. 15 Função events-density na biblioteca SOAL. III Encontro Internacional de Teoria e Análise Musical ao considerar que as manipulações de Lachenmann sobre as durações neste final só podiam provocar uma escassez cada vez maior de eventos. Outro componente de análise seria a periodicidade16. Ela qualifica o momento sonoro com base na avaliação dos desvios observados entre os onsets (as posições dos fatos no tempo) em relação ao intervalo de espaçamento que produziria a periodicidade absoluta. Mais regular a periodicidade, mais perto a avaliação de zero, e vice-versa. O trecho que analizo aqui possui uma periodicidade relativa de 46%17. Podemos considerar que este peso, mediano, resulta da existencia de uma curva a grosso modo linear de aumento das durações, como já mostrado na fig. 2, que, de um ponto de vista estatístico, eqüivaleria a um equilíbrio entre periodicidade e aperiodicidade. Por sua vez, o comportamento das intensidades neste trecho revela uma flagrante correlação negativa em relação as durações (cf. fig. 2), que se verifica pelo seu elevado coeficiente (-0,66)18. No entanto, diferentemente das durações, que, conformo vimos, adotam um processo gradual de aumentaçao, a evolução das intensidades é antes dual, pois dividida entre uma primeira parte onde se concentram elevadas intensidades, e uma longa segunda parte onde se organiza o desaparecimento progressivo dos sons. Em suma, concluimos dessas observações que a dinâmica do final da obra é esta: o tempo se imobiliza enquanto os sons somem. Dinâmica que não deixe de traduzir, no campo da manipulação dos timbres, um direcionamemto conclusivo, um fechamento, enfim, uma cadência lato sensu, que dispensa relações funcionais no nível abstrato das alturas. Uma estruturação do tempo em grande escala Quanto ao tratamento do tempo em grande escala, ou seja na obra inteira, uma combinatória de origem aparentemente algorítmica transparece na distribuição das durações relativas dos momentos sonoros. Desvenda-se, com efeito, um mecanismo global de relações proporcionais, representadas de forma aproximada na fig. 3 entre unidades sonoras onde o timbre se destaca pelo uso de Pedal aberto - marcadas na partitura entre colchetes pontílhados - e unidades sonoras que qualificaremos de "secas" , por dispensar o uso do Pedal (ainda que o compositor nelas desenvolva freqüentemente um trabalho de ressonâncias internas com o uso seletivo do pedal sostenuto). Este mecanismo se parece bastante com as estratégias de geração ex abstracto de frames temporais do John Cage de Music of Changes que são baseados em sequências numéricas de proporções obtidas pela aplicação de leis extramusicais. 16 Em SOAL: Time-linearity. 17 O intervalo paradigmático de tempo que provocaria uma distribução regular dos fatos sonoros deste trecho é de 144.99 ms (na gravação de referência). 18 Uma exata simetria contrária das duas curvas teria dado um coeficiente de (-1). A função que utilizo para calcular este coeficiente é aquela proposta pelo aplicativo Excell ®. III Encontro Internacional de Teoria e Análise Musical Fig. 3 - As proporções de durações em Echo-Andante. São indicadas em cm., em valores arredondados ao inteiro mais próximo, seguindo a resolução gráfica adotada na partitura. Por convenção, os valores positivos (histogramas cinza) dizem respeito aos objetos com Pedal, e os negativos (histogramas pretos), aos objetos « secos ». Por motivos de economia de espaço, as durações reais dos objetos muito extensos das páginas 9, 10 e 17, são reduzidos arbitraria e te a 4 ’. Figura extraída de GUIGUE, , op. cit., p. 308. III Encontro Internacional de Teoria e Análise Musical Em poucas palavras: o mecanismo em questão se descreveria, primeiramente, por uma regra. As unidades de categoria P, isto é, com Pedal, são de curta duração e não apresentam diferenças significativas nessas durações. A exceção é a derradeira sonoridade, a qual ocupa, tal como vimos, sozinha, praticamente duas páginas, durando portanto mais de um minuto. Ao contrário, as unidades ditas « secas » — chamamo-las S – são menos numerosas, porém submetidas a fortes variações que varrem um amplo espectro de durações, podendo se estender até quase três minutos entre as páginas 8 e 10.19 Quanto mais as unidades de uma categoria são curtas, tanto mais as unidades da outra são longas — cada uma, no entanto, dentro da faixa de extensão que lhe é reservada — e reciprocamente. O « ritmo » da peça é determinado por uma alternância relativamente equilibrada entre as duas categorias: é aí que se esconde, provavelmente, a pulsação íntima de um movimento que o compositor qualifica como Andante. Em segundo lugar, este mecanismo se define por um processo dinâmico em duas etapas. Num primeiro tempo, isto é, do início até a página 10, a duração das unidades de categoria S aumenta e depois diminui, deixando, então, P se multiplicar num ritmo acelerado (p. 5 e 6). Depois, as primeiras ocupam cada vez mais tempo, até eliminarem totalmente as segundas. Entre as páginas 8 e 11, assistimos a uma espécie de « travessia do deserto », onde, praticamente, nenhuma sonoridade reverberada aparece. Para tanto, o diálogo com o espaço ressonante do piano não é interrompido; apenas se recolhe nas relações minuciosas e muito controladas que algumas alturas, cuja ressonância é prolongada pelo terceiro pedal, mantêm com as demais — em outras palavras, o contrário do efeito genérico e indiscriminado do Pedal. Em seguida, a dinâmica se inverte a partir da página 11, quando os S voltam a ganhar terreno progressivamente. Uma alternância relativamente regular se instala (p. 12-15), durante a qual a regra da proporcionalidade das durações é observada, até que as sonoridades P acabem por ocupar, em seu turno, a totalidade da estrutura temporal, eliminando ou absorvendo completamente as outras. Assim se revela uma estratégia de equilíbrio, que imprime à forma um movimento contraditório em duas grandes fases (p. 3-10 e 11-17), cada qual culminando na interrupção da recursividade P/S em benefício de uma única categoria de sons: S no meio da obra, P no final. Tentei reproduzir esta dinâmica graficamente, na fig. 4. Para tanto, calculei as durações relativas da mesma forma que explicado anteriormente. Depois, esses valores foram colocados numa escala logarítmica, para melhorar a visibilidade. Os histogramas claros representam as durações relativas das unidades de tipo P, os mais escuros, de tipo S. Duas linhas de tendência confirmam a dupla dinâmica dialética de durações que o compositor impõe aos dois tipos de sonoridade. 19 Neste cálculo, desprezo as intervenções pontuais do Pedal nas páginas 8 e 10. Na palestra, ilustram-se este e os exemplos seguintes. III Encontro Internacional de Teoria e Análise Musical Fig. 4 - As mesmas proporções de durações da fig. 3, desta vez dispostas em ordem sequencial no eixo horizontal e numa escala logarítmica nas ordenadas. Em cinza, os valores relativos às unidades da categoria P; em preto, os da categoria S. Figura extraída de GUIGUE, 2011, op. cit., p. 310. O que esta análise quantitativa revela é, portanto, uma bela estruturação formal do tempo. De certa maneira, ela remete a uma estética clássica visando a uma compensação dinâmica dos desequilíbrios temporários. No entanto, ela absorve uma concepção do tempo musical baseada em distribuições proporcionais produzidas por algum algoritmo aritmético. Quanto ao tempo pulsado, vimos que ele se aloja na alternância entre P e S: efeito pouco perceptível na audição, temos de convir. Talvez esta seja uma das razões por não encontrarmos mais este procedimento nas obras pianísticas ulteriores do compositor. Para abrir uma discussão Esta concepção da composição é típica de um período onde se repensa a construção da obra musical em todas as dimensoes, trazendo questões complexas quanto à elaboração e percepção do tempo como suporte para uma retórica musical. Ela obriga inventar estratégias para a sua apreensão analítica, já que almeja superar os modelos convencionais de elaboração temporal baseados na aditividade de pulsos mínimos combinados em estruturas métricas maiores. Essas estratégias, por sua vez, vieram ampliar a "caixa de ferramentas" do musicólogo, num processo permanente de retroalimentação com os desafios postos por novas linguagens e estéticas.