Tempus Et Machina: considerações sobre o processamento do tempo em
análise musical com suporte computacional
Didier Guigue (UFPB)
Resumo: Esta conferência consiste em algumas considerações sobre o
processamento do tempo num projeto metodológico de análise da música não
tonal a partir do conceito de sonoridade. Neste contexto, o tempo é visto como um
momento com início e fim no interior do qual as durações se manifestam em
termos relativos ou estatísticos. O método se funda no princípio de dissociação
entre forma morfológica e forma cinética, e, por extensão e para retomar as
formalizações do compositor Helmut Lachenmann, entre estado e processo. A obra
Echo-Andante deste compositor é utilizada como exemplo para ilustrar como os
dados sobre o processamento do tempo são obtidos - por meio do auxílio de um
programa computacional - e interpretados para produzir conhecimento sobre
estrutura, forma e estética.
Tempus Et Machina: considérations sur le traitement du temps en analyse
musicale assistée par ordinateur
Résumé: Cette conférence consiste en un certain nombre de considérations sur le
traitement du temps au sein d'un projet méthodologique d'analyse de la musique
non tonale à partir du concept de sonorité. Dans ce contexte, le temps est pensé
comme un moment, avec début et fin, à l'intérieur duquel les durées se
manifestent em termes relatifs ou statistiques. La méthode est fondée sur le
principe de dissociation entre forme morphologique et forme cinétique, et, par
extension et pour reprendre les formalisations du compositeur Helmut
Lachenmann, entre état et processus. L’œuvre Echo-Andante de ce compositeur
est utilisée comme exemple pour illustrer comment les données sur le traitement
du temps sont obtenues - avec l'aide d'un programme d'ordinateur - et
interprétées pour produire des informations sur la structure, la forme et
l'esthétique.
Morfologias e Tempo
A articulação do tempo constitui obviamente a questão central na gestação de uma
retórica musical, isto, em qualquer época, gênero ou estética. Não vim traçar aqui um
panorama dos debates e da literatura sobre o assunto. É desnecessário dizer que não é
possível pretender abarcar qualquer realidade musical fazendo a economia da dimensão
tempo.
Ao buscar um método de análise da música não tonal a partir do conceito de
sonoridade, 1 me deparei, no que diz respeito ao tempo, com a necessidade de verter para o
SOBRENOME, Nome; SOBRENOME, Nome. Título do artigo. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE TEORIA E ANÁLISE
MUSICAL, 3., 2013, São Paulo. Anais... São Paulo: ECA-USP, 2013.
1
GUIGUE, D. Estética da Sonoridade. S. Paulo: Perspectiva. Brasília: CNPQ. João Pessoa: Editora UFPB, 2011.
13
III Encontro Internacional de Teoria e Análise Musical
campo da hermenêutica problemáticas que tinham sido postas no campo da composição em
vários momentos no decorrer do século XX, e com especial acuidade por Boulez,
Stockhausen e aqueles compositores que passariam a ser rotulados de "espectralistas".
Dentro deste grupo de compositores, as reflexões de Gérard Grisey sobre os diferentes
tempos musicais constituem um aporte importante, 2 onde o conceito de processo se torna
centralizador. Nas palavras de J.-L. Hervé: " Um processo não é somente um procedimento
de anamorfose que permite passar gradualmente de um estado sonoro em direção a outro,
ele é sobretudo o rastro na música do tempo que passa." 3 Uma definição que se encaixa de
algum modo na visão de Jean LaRue, embora em outro contexto, que afirmou que “a forma
musical é a memória do movimento”. 4
A natureza gradual intrinseca ao processo é que coloca o analista diante de um certo
paradoxo quando se depara com um sistema de codificação que procede usualmente por
passos discretos, por mais microscópicos que possam ser – geralmente mais microscópicos
no caso da música produzida por meios eletro-digitais, mais grosseiros no caso da musica
instrumental. Driblar este paradoxo por meio de compromissos constitui então o trivial de
qualquer metodologia que almeje render conta da lógica dinâmica deste tipo de música.
No caso, me conformei, por um lado, em abordar o tempo musical não como uma
sucessão de unidades métricas gerando pulsação, mas como um momento com início e fim
no interior do qual as durações se manifestam em termos relativos ou estatísticos. 5
Por outro lado, adotei o princípio de dissociação espacio-temporal, já tradicional em
teoria musical – considerando que constitui o fundamento da notação bi-dimensional desde
a idade média. Richard S. Parks, na exposição da sua abordagem analítica de Debussy, efetua
uma distinção entre o que ele chama forma morfológica e forma cinética.6 Segundo ele, a
primeira concebe a disposição dos fatos sonoros em termos de metáforas espaciais, o que
pressupõe que eles estejam observados como se fossem fixos, estáticos, enquanto a
segunda trata da sua disposição por metáforas relacionadas ao movimento. Retomo esta
separação metodológica como princípio organizador dos componentes que concorrem na
qualificação de uma sonoridade. Assim, um componente é definido como acrônico pelo fato
de somente poder ser avaliado após ter feito abstração do fator tempo, isto é, da duração da
sonoridade e da posição relativa no tempo dos fatos sonoros. Direi, então, seguindo Parks,
que este componente é de ordem morfológica, pois ele fornece uma representação estática
da configuração interna da sonoridade. Simetricamente, considero como sendo de ordem
cinética os componentes diacrônicos que avaliam as modalidades de distribuição dos fatos
sonoros no lapso de tempo que ocupa a sonoridade: são eles que vão informar como o
2
GRISEY, G. Tempus Ex Machina. Revue Entretemps, Paris, n.8, p. 83-120, 1989; ANDERSON, J. A provisional
history of spectral music. Contemporary Music Review, [S.l.], vol. 19, parte 2, p. 7-22, 2000.
3
HERVE, J.-L. Passage, temps, trajectoire. L'étincelle, Paris, n. 4, p. 21, 2008. O grifo é meu.
4
LARUE, J. Análisis del estilo musical. Barcelona, Editorial Labor, 1993 [1970], p. 88. O grifo é dele.
5
É o que Boulez definiu como tempo amorfo. BOULEZ, P. Penser la musique aujourd'hui. Gonthier, 1963, p. 100.
6
PARKS, R.S. The Music of Claude Debussy. New Haven & London, Yale University Press, 1989.
III Encontro Internacional de Teoria e Análise Musical
conteúdo morfológico se transforma em energia. Podemos, então, dizer que os
componentes cinéticos modulam os componentes morfológicos.7
Este modelo de descrição demonstra analogias com o binômio matéria/forma de
Schaeffer, no sentido em que a matéria é o que poderíamos isolar se pudéssemos imobilizar
o som para ouvir o que ele é num dado momento da escuta, enquanto que a forma
representa a trajetória que esculpe esta matéria na duração e a faz eventualmente evoluir. 8
Faço também uma aproximação com o conceito dialético de estado e processo
elaborado por Lachenmann para descrever as estruturas sonoras que formam as bases da
sua música. O compositor alemão elabora uma tipologia das relações do som estruturado
com o tempo e a forma, no topo da qual o que ele chama de Klangstruktur representa o
caos estruturado em sonoridade ordenada no eixo do tempo, « uma ordem formada de
componentes sonoros heterogêneos, produzindo um campo complexo de relações ».9 A
Klangstruktur é um som pensado simultaneamente como estado, o qual é função da sua
natureza, e como processo, quando este mesmo som é, desta vez, pensado como forma
capaz de gerar uma articulação do tempo.
Uma Klangstruktur em ação.
Eu vou utilizar como demonstração o trecho final da sua obra Echo-Andante para
piano solo, de 1962. Interessante, de fato, é ver como este pensamento se põe em ação
numa obra para um instrumento que por natureza não favorece o processamento gradual
do som. Ao mesmo tempo, obras para piano oferecem justamente o terreno ideal para
trabalhar o paradoxo evocado acima. Aproveitarei para mostrar ao mesmo tempo algumas
das ferramentas computacionais que eu uso para colher dados sobre o tratamento do
tempo10.
Trata-se do último "gesto" sonoro, exposto nas duas últimas páginas da partitura, 11 e
cuja convenção gráfica (aproximadamente 1 cm = 1s.)12, sugere uma duração de 90s. Na fig.
1, trago deste trecho uma representação em forma de onda (em cima), e um sonograma
7
Mais detalhes sobre a noção de componentes da sonoridade podem ser encontrados em GUIGUE, op. cit., p.
47 et sq.
8
SCHAEFFER, P. Traité des objets musicaux. Paris, Seuil, 1966, p. 275. CHION, M. Guide des objets sonores,
Pierre Schaeffer et la recherche musicale. Paris, Buchet/Castel, 1983, p. 116.
9
LACHENMANN, H. « On My Second String Quartet ». Contemporary Music Review Vol. 23 nº 3/4, 2004, p. 67.
10
Essas ferramentas estão disponíveis em formato de uma library para o ambiente OpenMusic, chamada SOAL
– SonicObjectAnalysisLibrary, no endereço: www.ccta.ufpb.br/mus3.
11
LACHENMANN, H. Echo-Andante. Wiesbaden, Breitkopf & Härtel, 1980 [1962], p. 16-17, a partir do
penúltimo acorde do segundo sistema da p. 16. Esta seção é mostrada e ouvida na palestra.
12
Deduzi esta escala da duração total da peça estimada pelo compositor em doze minutos (cf. p. 2 da
partitura). A duração fatual é função das escolhas do intérprete, sendo estas orientadas, em parte, pela curva
de extinção dos sons, que muda em função do piano e da sala de concerto.
III Encontro Internacional de Teoria e Análise Musical
com análise espectral por onset (em baixo) da gravação de referência utilizada13. Nesta
gravação, o trecho dura pouco mais de 70s.
Fig. 1 - Representação e análise do trecho final de Echo-Andante de H. Lachenmann.
O processo, nesta seção conclusiva, consiste em pôr em vibração o acordo de Dó
Maior, fff, que é configurado de maneira a garantir sua ressonância durante tudo o restante
do tempo da obra, como o confirmam tanto a audição atenta quanto as representações
espectrais. Com efeito, a intensidade e o registro são calculados para que ele possa propagar
com força suficiente suas vibrações no ar e, portanto, no tempo. No entanto, por mais
potente que seja esse efeito, a morfologia do piano, obviamente, implica numa desinência
natural deste acorde em prazo relativamente rápido. O que Lachenmann faz aí é substituir
ao processo natural um processo artificial de prolongação da extinção por meio de
intervenções na matéria, cuja finalidade é realimentar a energia sonora, porém em medidas
cada vez mais débeis, de modo que o processo rume sim ao silêncio definitivo, mas a passos
lentos.
E cada vez mais lentos aliás, pois o que se percebe em primeira instância é o
esticamento fantástico das durações, atingindo quase o inexorável nos três derradeiros fatos
sonoros. Este alargamento exponencial do tempo é correlato à atenuação hiperbólica da
amplitude, por meio das indicações de intensidade, que descem, na partitura, até o
pppppppp. Essa programação da extinção dos sons constitui uma variação do timbre no
tempo, uma espécie de time-stretching aplicado a um acorde de piano.
13
KELLER, R. Helmut Lachenmann, Klaviermusik, CD Col Legno, 1991. O volume do áudio foi normalizado a 0
dB. A análise foi realizada em Audiosculpt ®, com a função "Average Spectrum by Chord Sequence Analysis". cf.
http://support.ircam.fr/forum-ol-doc/audiosculpt/2.9.2/co/as-ug-2_9.html.
III Encontro Internacional de Teoria e Análise Musical
A fig. 2 traz os histogramas dessas duas dimensões. Relative Span (durações relativas,
histogramas mais escuros) proporcionaliza as durações de cada fato sonoro14, em relação
àquele de maior duração, que é o último. Nas abscissas, indiquei a duração exata de cada
um, em ms, na interpretação de Roland Keller. Relative Intensity (intensidades relativas,
histogramas mais claros) , representa as indicações simbólicas de dinâmica, fatorizadas pela
mais elevada, que é a primeira (fff).
Fig. 2 - Gráfico representando a evolução de duas dimensões no mesmo trecho.
Durações versus Intensidades.
Apesar do pianista não observar com exato rigor as durações deduzíveis da
distribuição espacial das notas na partitura, constatamos, pela progressiva elevação dos
histogramas das durações, uma bonita concepção da progressividade do alargamento do
tempo, que inclui uma leve exponencialidade.
Desenvolvi vários algoritmos para qualificar tais organizações temporais. Um deles é
a densidade relativa dos fatos sonoros15, que, a partir da inferência de uma unidade mínima
de pulsação, observada pelo algoritmo ou estipulada pelo usuário, conta o número de fatos
existindo e o fatoriza pelo maior número possível de fatos que poderiam existir, levada em
conta aquela pulsação mínima. No caso, o algoritmo encontra, na análise da gravação do
pianista, uma pulsação mínima de 379 ms, donde deduz uma densidade relativa de (0.09),
ou 9%, para o trecho. Esta ponderação satisfaz evidentemente a nossa expectativa intuitiva,
14
Fato sonoro corresponde a um número qualquer de notas ou outros elementos compondo a sonoridade,
que ocorrem na mesma posição (onset) no tempo. Relative Span e Relative Intensity são duas das funções
implementadas em SOAL.
15
Função events-density na biblioteca SOAL.
III Encontro Internacional de Teoria e Análise Musical
ao considerar que as manipulações de Lachenmann sobre as durações neste final só podiam
provocar uma escassez cada vez maior de eventos.
Outro componente de análise seria a periodicidade16. Ela qualifica o momento sonoro
com base na avaliação dos desvios observados entre os onsets (as posições dos fatos no
tempo) em relação ao intervalo de espaçamento que produziria a periodicidade absoluta.
Mais regular a periodicidade, mais perto a avaliação de zero, e vice-versa. O trecho que
analizo aqui possui uma periodicidade relativa de 46%17. Podemos considerar que este peso,
mediano, resulta da existencia de uma curva a grosso modo linear de aumento das
durações, como já mostrado na fig. 2, que, de um ponto de vista estatístico, eqüivaleria a um
equilíbrio entre periodicidade e aperiodicidade.
Por sua vez, o comportamento das intensidades neste trecho revela uma flagrante
correlação negativa em relação as durações (cf. fig. 2), que se verifica pelo seu elevado
coeficiente (-0,66)18. No entanto, diferentemente das durações, que, conformo vimos,
adotam um processo gradual de aumentaçao, a evolução das intensidades é antes dual, pois
dividida entre uma primeira parte onde se concentram elevadas intensidades, e uma longa
segunda parte onde se organiza o desaparecimento progressivo dos sons.
Em suma, concluimos dessas observações que a dinâmica do final da obra é esta: o
tempo se imobiliza enquanto os sons somem. Dinâmica que não deixe de traduzir, no campo
da manipulação dos timbres, um direcionamemto conclusivo, um fechamento, enfim, uma
cadência lato sensu, que dispensa relações funcionais no nível abstrato das alturas.
Uma estruturação do tempo em grande escala
Quanto ao tratamento do tempo em grande escala, ou seja na obra inteira, uma
combinatória de origem aparentemente algorítmica transparece na distribuição das
durações relativas dos momentos sonoros. Desvenda-se, com efeito, um mecanismo global
de relações proporcionais, representadas de forma aproximada na fig. 3 entre unidades
sonoras onde o timbre se destaca pelo uso de Pedal aberto - marcadas na partitura entre
colchetes pontílhados - e unidades sonoras que qualificaremos de "secas" , por dispensar o
uso do Pedal (ainda que o compositor nelas desenvolva freqüentemente um trabalho de
ressonâncias internas com o uso seletivo do pedal sostenuto). Este mecanismo se parece
bastante com as estratégias de geração ex abstracto de frames temporais do John Cage de
Music of Changes que são baseados em sequências numéricas de proporções obtidas pela
aplicação de leis extramusicais.
16
Em SOAL: Time-linearity.
17
O intervalo paradigmático de tempo que provocaria uma distribução regular dos fatos sonoros deste trecho
é de 144.99 ms (na gravação de referência).
18
Uma exata simetria contrária das duas curvas teria dado um coeficiente de (-1). A função que utilizo para
calcular este coeficiente é aquela proposta pelo aplicativo Excell ®.
III Encontro Internacional de Teoria e Análise Musical
Fig. 3 - As proporções de durações em Echo-Andante. São indicadas em cm., em valores
arredondados ao inteiro mais próximo, seguindo a resolução gráfica adotada na partitura.
Por convenção, os valores positivos (histogramas cinza) dizem respeito aos objetos com
Pedal, e os negativos (histogramas pretos), aos objetos « secos ». Por motivos de economia
de espaço, as durações reais dos objetos muito extensos das páginas 9, 10 e 17, são
reduzidos arbitraria e te a 4 ’. Figura extraída de GUIGUE,
, op. cit., p. 308.
III Encontro Internacional de Teoria e Análise Musical
Em poucas palavras: o mecanismo em questão se descreveria, primeiramente, por
uma regra. As unidades de categoria P, isto é, com Pedal, são de curta duração e não
apresentam diferenças significativas nessas durações. A exceção é a derradeira sonoridade,
a qual ocupa, tal como vimos, sozinha, praticamente duas páginas, durando portanto mais
de um minuto. Ao contrário, as unidades ditas « secas » — chamamo-las S – são menos
numerosas, porém submetidas a fortes variações que varrem um amplo espectro de
durações, podendo se estender até quase três minutos entre as páginas 8 e 10.19 Quanto
mais as unidades de uma categoria são curtas, tanto mais as unidades da outra são longas —
cada uma, no entanto, dentro da faixa de extensão que lhe é reservada — e reciprocamente.
O « ritmo » da peça é determinado por uma alternância relativamente equilibrada entre as
duas categorias: é aí que se esconde, provavelmente, a pulsação íntima de um movimento
que o compositor qualifica como Andante.
Em segundo lugar, este mecanismo se define por um processo dinâmico em duas
etapas. Num primeiro tempo, isto é, do início até a página 10, a duração das unidades de
categoria S aumenta e depois diminui, deixando, então, P se multiplicar num ritmo acelerado
(p. 5 e 6). Depois, as primeiras ocupam cada vez mais tempo, até eliminarem totalmente as
segundas. Entre as páginas 8 e 11, assistimos a uma espécie de « travessia do deserto »,
onde, praticamente, nenhuma sonoridade reverberada aparece. Para tanto, o diálogo com o
espaço ressonante do piano não é interrompido; apenas se recolhe nas relações minuciosas
e muito controladas que algumas alturas, cuja ressonância é prolongada pelo terceiro pedal,
mantêm com as demais — em outras palavras, o contrário do efeito genérico e
indiscriminado do Pedal. Em seguida, a dinâmica se inverte a partir da página 11, quando os
S voltam a ganhar terreno progressivamente. Uma alternância relativamente regular se
instala (p. 12-15), durante a qual a regra da proporcionalidade das durações é observada, até
que as sonoridades P acabem por ocupar, em seu turno, a totalidade da estrutura temporal,
eliminando ou absorvendo completamente as outras.
Assim se revela uma estratégia de equilíbrio, que imprime à forma um movimento
contraditório em duas grandes fases (p. 3-10 e 11-17), cada qual culminando na interrupção
da recursividade P/S em benefício de uma única categoria de sons: S no meio da obra, P no
final. Tentei reproduzir esta dinâmica graficamente, na fig. 4. Para tanto, calculei as durações
relativas da mesma forma que explicado anteriormente. Depois, esses valores foram
colocados numa escala logarítmica, para melhorar a visibilidade. Os histogramas claros
representam as durações relativas das unidades de tipo P, os mais escuros, de tipo S. Duas
linhas de tendência confirmam a dupla dinâmica dialética de durações que o compositor
impõe aos dois tipos de sonoridade.
19
Neste cálculo, desprezo as intervenções pontuais do Pedal nas páginas 8 e 10. Na palestra, ilustram-se este
e os exemplos seguintes.
III Encontro Internacional de Teoria e Análise Musical
Fig. 4 - As mesmas proporções de durações da fig. 3, desta vez dispostas em ordem sequencial no eixo
horizontal e numa escala logarítmica nas ordenadas. Em cinza, os valores relativos às unidades da categoria P;
em preto, os da categoria S. Figura extraída de GUIGUE, 2011, op. cit., p. 310.
O que esta análise quantitativa revela é, portanto, uma bela estruturação formal do
tempo. De certa maneira, ela remete a uma estética clássica visando a uma compensação
dinâmica dos desequilíbrios temporários. No entanto, ela absorve uma concepção do tempo
musical baseada em distribuições proporcionais produzidas por algum algoritmo aritmético.
Quanto ao tempo pulsado, vimos que ele se aloja na alternância entre P e S: efeito pouco
perceptível na audição, temos de convir. Talvez esta seja uma das razões por não
encontrarmos mais este procedimento nas obras pianísticas ulteriores do compositor.
Para abrir uma discussão
Esta concepção da composição é típica de um período onde se repensa a construção
da obra musical em todas as dimensoes, trazendo questões complexas quanto à elaboração
e percepção do tempo como suporte para uma retórica musical. Ela obriga inventar
estratégias para a sua apreensão analítica, já que almeja superar os modelos convencionais
de elaboração temporal baseados na aditividade de pulsos mínimos combinados em
estruturas métricas maiores. Essas estratégias, por sua vez, vieram ampliar a "caixa de
ferramentas" do musicólogo, num processo permanente de retroalimentação com os
desafios postos por novas linguagens e estéticas.