A POLIMORFIA DO SAGRADO EM MACUNAÍMA
A POLIMORFIA DO SAGRADO EM MACUNAÍMA:
as manifestações religiosas indígenas na rapsódia de Mário de Andrade
THE POLYMORPHY OF SACREDNESS IN MACUNAÍMA:
indigenous religious manifestations in Mário de Andrade’s rhapsody
Paula Daniela Silva Marinho (*)
RESUMO
Este trabalho tem o intuito de apresentar o sagrado por meio das manifestações
religiosas índigenas presentes na obra Macunaíma (1928) de Mário de Andrade.
Dentre as três principais matrizes religiosas brasileiras (indígena, africana e cristã), vêse que a religiosidade autóctone apresenta um grande destaque no desenvolvimento da
narrativa de Andrade e pode ser melhor percebida por meio das linguagens (símbolo,
mito e rito) que a compõe e que conferem à obra uma multiplicidade de sentidos que
giram em torno de uma concepção de mundo calcada na religião destes povos, a qual
necessita ser melhor compreendida, interpretada e analisada no contexto da rapsódia
de Andrade.
PALAVRAS-CHAVE: Sagrado. Indígena. Linguagens. Religião. Modernismo.
ABSTR ACT
This paper has the purpose to present sacredness through the religious manifestations present
in the work Macunaíma (1928) by Mário de Andrade. Among the main three cultural
religious sources of Brazil – Indigenous, European and African –it is possible to notice the
importance of native religion (indigenous) through its the languages (symbol, myth, rite)
in the development of the narrative, providing to such work a multiplicity of meanings that
portrait a world conception based, therefore, on religion, which needs to be better understood,
interpreted and analyzed in the context of Andrade´s rhapsody.
KEYWORDS: Sacradness. Indigenous. Languages. Religion. Modernism.
(*)
Mestranda do curso de Ciências da Religião da Universidade do Pará (UEPA.)Licenciada Plena em Letras: Português/Inglês pela Universidade da Amazônia (UNAMA).
E-mail:pdsmarinho@gmail.com
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Paula Daniela Silva Marinho
A RELAÇÃO ENTRE MACUNAÍMA E A RELIGIÃO
NA LITERATURA DE ANDRADE
Sendo uma das obras referenciais do movimento Modernista Brasileiro,
Macunaíma (1928) de Mário de Andrade tem sido objeto de estudo de inúmeros pesquisadores há vários anos. Um dos motivos da importância da obra dá-se pela maneira pela qual a cultura brasileira é apresentada. O Brasil de Mário
de Andrade caracteriza-se pela desregionalização, pela unificação dos mais diversos costumes, tradições, crenças e linguagens em um único território, cujas
fronteiras são inexistentes. Nele, mito e realidade fundem-se harmonicamente.
Por meio do uso de elementos de origens distintas, Mário de Andrade não poderia construir um Brasil mais sincrético. O sincretismo a que me refiro aqui
assume uma conotação bem maior do que aquela a que ele está, geralmente,
associado: a de sincretismo religioso. De fato, sendo as religiões sincréticas,
pode-se concluir que a cultura assim também o é uma vez que a religião é uma
das esferas que a compõe.
Canevacci (1996, p.13) define sincretismo como algo que “atropela,
dissolve e remodela a relação entre os níveis alheios e os familiares, entre os
da elite e os de massa das culturas contemporâneas.” O autor cita Macunaíma
(1928) como um sábio exemplo de antropofagia1, que é, na realidade, uma
das formas pelas quais o sincretismo apresenta-se. O sincretismo andradiano ocorre de maneira geral, pois, perpassa por todas as esferas da cultura,
enquadrando-se, portanto, na definição atribuída por Canevacci. Obviamente,
a religião encontra-se nesse emaranhado de combinações, exclusões e recombinações. E Macunaíma caracteriza-se como um herói sincrético, inclusive, no
próprio quesito religião, já que não está intimamente vinculado a nenhuma
delas, utilizando-se de símbolos e elementos sagrados de variadas crenças e
participando também de rituais diversos.
Telê Porto Ancona Lopez, em Macunaíma: a margem e o texto (1974),
menciona a relação da obra de Andrade ao antropofagismo proposto no movimento modernista. Segundo a autora, ainda que Mário de Andrade não tenha
escrito sua obra com intenções antropofágicas, há elementos coincidentes na
rapsódia, uma vez que apresenta uma postura estética de nacionalismo crítico
1
O Manifesto Antropofágico, lançado na Revista de Antropofagia em 1928 por Oswald de Andrade,
propunha a deglutição e transformação das influencias estrangeiras a fim de que se pudesse
permanecer fiel à raiz nacional, isto é, à raiz primitiva, antropófaga, crítica.
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ao incluir o Brasil numa realidade sul-americana e tropical, filiando-o ao Sol
ou à Vei, valorizando, desse modo, o primitivismo e o lazer.
No anseio modernista de captar um Brasil primitivo, buscando o rústico e o arcaico,
a dimensão do passado e a do mito, Mário lançara-se na leitura dos viajantes e dos
etnógrafos. Encontrando a antropofagia na mitologia do índio, acolhe-a no romance,
dá-lhe função simbólica, mas não a transforma na razão norteadora. (Lopes, p.19)
A conclusão de Lopes (1974) em relação a Macunaíma e a antropofagia
é que esta se dá pela luta entre aquilo que se considera primitivo com o aquilo que considera civilizado. Há diversos pares de dualidades (rural x urbano;
primitivo x civilizado; atual x tradicional) em jogo na narrativa andradiana,
os quais podem ser compreendidos pela esfera e presença da religiosidade na
obra uma vez que esta corrobora de forma essencial para o desenvolvimento do
enredo da narrativa ao configurar-se como um elemento motriz na jornada de
Macunaíma por meio de suas linguagens (símbolo, mito e rito).
O interesse de Mário de Andrade por assuntos vinculados à religião
pode ser visto em suas anotações no texto de O Turista Aprendiz. Durante a sua
estadia em Belém, na primeira fase de sua viagem, o escritor modernista deixa
clara a sua indignação em relação ao desinteresse pela religiosidade da região:
“Tenho me esquecido de falar no Gastão Vieira, médico com intenções de literatura, se acompanheirado comigo desde o primeiro dia, me admira! Informes
vagos, vaguíssimos sobre pajelança, esta gente não se interessa!”2 Como um
estudioso ávido da cultura brasileira, Mário de Andrade buscava compreender
e registrar aspectos que demonstrassem a verdadeira face do Brasil e a religião
não estava fora dessa esfera, constituindo um elemento importante na vida do
povo brasileiro.
Assim sendo, a religião será neste artigo o aspecto mais relevante a ser
considerado na obra andradiana. Ela tem sido, na maior parte das análises até
então feitas, um tanto quanto negligenciada e mal compreendida; contudo,
2
Trecho retirado da dissertação de mestrado da Profª.Ms.Vasti da Silva Araújo, intitulada Notação
de um Turista Aprendiz (2008). Logo abaixo do excerto retirado do texto de Mário de Andrade,
a professora ressalta um fator importante que será, posteriormente, apresentado nas análises
da polimorfia do sagrado presentes em Macunaíma que é aquele relacionado à discriminação,
perseguição sofrida pelas pessoas que frequentavam cultos afro-brasileiros. Daí, talvez, o aparente
desinteresse manifestado pelo médico-literato. No entanto, ao contrário do que a professora
comentara acerca de tal episodio, sabe-se que a pajelança, ainda que apresente elementos oriundos
de religiões africanas ao ser com eles combinada, caracteriza-se ou melhor enquadra-se nas religiões
de matriz indígena brasileira.
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penso que tendo o autor modernista afirmado em uma de suas anotações que
os livros religiosos serviram-lhe de inspiração poética3 para a composição de
Macunaíma, tal fato não pode, então, ser ignorado. O motivo pelo qual cito
esta afirmação deve-se a que toda a estrutura da narrativa modernista gira em
torno de um objeto mágico denominado “muiraquitã”. O talismã perdido de
Macunaíma reúne características que remetem às crenças telúricas indígenas
brasileiras, fazendo parte do universo mítico destes povos. E, ao se falar de mítico, é necessário compreender o mito não apenas enquanto um relato de um
acontecimento originário, no qual os deuses agem, cuja finalidade é a atribuição de sentido à realidade dada pelo homo religiosus; mas, também, enquanto
um conjunto de narrativas que abarcam a vivência dos homens em sua totalidade e que se dá no âmbito do sagrado a partir da interação com seres divinos.
O homo religiosus, segundo Mircea Eliade em O Sagrado e o Profano
(2010), é aquele que habita em um mundo onde há rupturas espaciais e temporais, pois o sagrado ao se manifestar revela uma realidade que se diferencia
daquela pertencente ao nosso mundo, sendo completamente diversa das tidas
como ‘naturais’. As personagens de Macunaíma vivem em um Brasil heterogêneo por excelência e tais características dão-se não apenas pela variedade de
elementos nela presentes, mas pelo simples fato dessa quebra espaço-temporal
ser tão evidente uma vez que o sagrado mescla-se ao chamado mundo concreto,
real. Contudo, de acordo com as teorias de Eliade, para o homem religioso a
realidade por excelência é aquela na qual o sagrado manifesta-se visto estar em
comunicação com o mundo dos deuses, que foram os responsáveis pela fundação deste mundo.
Em Macunaíma é possível perceber que, de fato, a realidade absoluta
do texto é aquela compreendida segundo a visão do homo religiosus, pois o véu
que separa o mundo real do sobrenatural é constantemente suspenso, fazendo com que aspectos relativos à sacralidade revelem-se de forma transparente
para aqueles que neles acreditam. Dentre estes aspectos abordados por Eliade,
observa-se que os elementos por ele destacados referentes à sacralização da
natureza, por exemplo, podem ser claramente observados na obra de Andrade.
O céu, se conceituado segundo as teorias apresentadas em O sagrado e o pro-
3
No segundo prefácio escrito por Mário de Andrade para a obra Macunaíma há a seguinte
referencia por parte do autor: “Empreguei todos os calmantes possíveis: a perífrase, as palavras
indígenas, o cômico e o estilo poético inspirado diretamente nos livros religiosos.” (ANDRADE,
2008, p.228)
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fano (2010), é pertencente direto das forças e seres sobre-humanos e aqueles
que ascendem a esta morada acabam por deixar, de certo modo, a condição
de homem, passando, dessa forma, a integrar o divino e tornando-se, então,
“objeto” de contemplação assim como os deuses que lá residem.
O motivo pelo qual resolvi apresentar a sacralidade celeste dá-se pelo
fato de Macunaíma tornar-se estrela ao final da narrativa, enquadrando-se,
portanto, à concepção de Eliade aqui apresentada. Andrade, em carta à Tristão
de Ataíde, menciona o motivo da escolha da metamorfose do herói modernista
em estrela, o qual ratifica e assemelha-se ao porquê do uso, nesta pesquisa, da
compreensão de Eliade:
[...] estado estático de misticismo (religioso) que terá de ser a contemplação da Divindade, que é minha esperança e que botei no final de Macunaíma, me parecia tão claro
que ninguém percebeu, ‘helás’! Macunaíma vai pro céu conforme o pensamento dele:
procurar ci. Vai, chega lá e seria tão fácil acabar o livro numa apoteose gostosa (pro
público), descrevendo os amores celestes dele com Ci. Mas, chegando no céu, ele nem
pensa mais em Ci e vira brilho inútil (falo cá da terra) de ‘mais uma’ estrela no céu.
Não me parece que tudo isso seja tão vaguíssimo num livro em que tudo é uma segunda
intenção. (Lopez, 1974, p.82)
Dessa forma, vê-se que o mito enquadra-se, portanto, nas linguagens da
experiência religiosa dos homens uma vez que revela em suas entrelinhas aspectos da uma cosmovisão religiosa. A partir daí, pode-se concluir que Mário de
Andrade confere a sua obra um caráter religioso4, pois, ao submeter seu herói
a diversas aventuras em um Brasil onde mito e realidade mesclam-se a fim
de que este possa, assim, recuperar o amuleto que lhe é tão querido, atribui,
portanto, ao romance a grandiosidade das epopéias clássicas, nas quais deuses,
criaturas míticas e homens interagem livremente, expressando, dessa forma, a
relação entre o humano e o sagrado. É importante destacar que Macunaíma
não apresenta apenas elementos de crenças indígenas ameríndias, ela traz também em seu conteúdo componentes da religiosidade cristã e afro-brasileira,
demonstrando, assim, as três principais matrizes religiosas existentes no Brasil.
E é justamente a partir desta aproximação de um mundo onde não há ausência
de deuses, santos, orixás e outras personagens mítico-lendárias que a obra an4
Em anotações para prefácio, no livro Macunaíma: a margem e o texto de Telê Porto Ancona
Lopez, destaca-se esta consideração por parte do autor em relação a sua obra: “Macunaíma:
me servindo aliás sem consciência preestabelecida disso, por instinto, duma alógica sistemática,
embora satírica ou coisa que o valha, o caráter religioso(grifo de minha autoria) do livro ficou
acentuado.” (Idem, p.95)
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dradiana apresenta-se, usando a própria denominação atribuída por Andrade a
sua narrativa, como um coquetel em que elementos das mais distintas origens
e categorias misturam-se, estando o sagrado presente dentre eles de maneira
polimorfa e ativa.
A polimorfia do sagrado poderá ser em Andrade melhor compreendida, não se entenda aqui que tal análise está destinada a ser hermética e reducionista, por meio da obra Tratado de História das Religiões (2010), ainda da
autoria de Mircea Eliade, o qual ao analisar a simbologia das diversas formas
de hierofania nas mais variadas culturas, cede-me possíveis interpretações dos
símbolos e elementos sagrados presentes no romance andradiano. Dentre eles,
destacam-se a lua, a pedra, a água e a terra, que fazem parte da lenda do
muiraquitã e relacionam-se à sacralidade feminina, atestando, mais uma vez,
as diferentes modalidades pelas quais o sagrado manifesta-se na estrutura do
mundo concreto. A interpretação da simbologia dos elementos presentes na
lenda do muiraquitã será apresentada posteriormente ao longo do desenvolvimento desta pesquisa, mostrando ao leitor as respectivas relações estabelecidas
entre estes e o sagrado.
Percebe-se que o herói de Andrade ao transitar por crenças diversas e
ao entrar em contato com simbologias oriundas de culturas distintas ao longo da narrativa, agrega a sua personalidade e conduta características de um
homo religiosus já que, em vários capítulos, interage com o sagrado, recorrendo
ou utilizando-se deste em variadas situações, algo que, para mim, já atesta o
quão imbricada faz-se a religião na obra. Outras personagens, também, estão
intimamente ligadas à religiosidade como é caso do irmão mais velho de Macunaíma, por exemplo, o qual personifica aspectos da pajelança amazônica,
deixando bem claro que a realidade apresentada por Mário de Andrade é aquela na qual a religião faz-se presente. A realidade primeira de Macunaíma é a do
mito, pois, assim ele compreende o mundo a sua volta, assim foi ele concebido.
Desse modo, atesta-se que a inspiração poética a que Mário de Andrade buscava nos livros religiosos e, não apenas neles visto que é evidente e comprovada
a influencia da tradição oral, na qual residem elementos da religiosidade, para
a composição de sua rapsódia era aquela do mito, do símbolo e, por que não
dizer, do rito e, sendo estes linguagens da religião, proporcionaram ao escritor
modernista toda uma gama de elementos que serviram de adorno para a criação de Macunaíma.
Lopez (1974) destaca em sua obra a teoria de Keyserling, a qual apresenta um modelo de civilização que ainda que esteja calcado nas estradas do
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progresso, não abandona a espiritualidade, as crenças e seus deuses. A autora
evidencia que esta era intenção de Mário de Andrade ao escolher um protagonista oriundo da região amazônica. Sendo um homem tropical, Macunaíma
diferenciava-se dos demais por não estar atrelado a uma concepção mecanizada e inteiramente racional de mundo, estando, desse modo, mais próximo da
verdadeira civilização, do Ser. Lopez compreende que por meio dessa valorização do primitivo, Mário de Andrade apresenta um estado de harmonização
com a natureza, um estado primeiro das coisas enquanto algo essencial para
a vida dos homens. Por isso, o uso dos mitos indígenas foram uma forma por
ele encontrada de dar ao Brasil um passado histórico adornado de elementos
sacros, onde deuses e heróis e, até mesmo, anti-heróis, coexistem, servindo aos
homens de base para sua formação. Tal qual os mitos dos índios brasileiros, a
cultura negro-africana também serviu de material de inspiração para a composição da rapsódia de Andrade em virtude de não se distanciar da concepção de
mundo encontrada nos povos autóctones do Brasil.
No entanto, em virtude da força apresentada pelas manifestações religiosas indígenas brasileiras na narrativa, pretendo apresentar de maneira breve
algumas das representações do sagrado a ela pertencentes em função da importância do papel desempenhado por ela ao longo do desenvolvimento do enredo
da narrativa uma vez que estas permeiam a boa parte das ações e eventos presentes na obra andradiana, agregando a esta um caráter religioso significativo
à obra modernista.
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Penso que seja essencial iniciar esta breve análise por meio do objeto
motivador ou, por que não dizer, movente desta narrativa andradiana que é o
muiraquitã. Sabe-se que um dos motivos pelo qual o herói de Andrade abandona o ambiente que lhe era familiar para adentrar em sua famosa jornada Brasil afora dá-se em função da perda deste amuleto que lhe era tão querido uma
vez que este lhe fora dado pela sua amada icamiaba Ci. Tanto o amuleto quanto
Ci são figuras diretamente vinculadas ao sagrado e, portanto, à religiosidade
na rapsódia andradiana. Se analisarmos a suposta origem do muiraquitã, veremos que este está relacionado à lenda das chamadas índias-guerreiras, mais
conhecidas como icamiabas, as quais durante a festa de Iaci (Lua) convidavam
varões da aldeia mais próxima para celebrar com elas. Um dos intuitos da festa
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era a procriação. Conta-se que após o acasalamento, estas mulheres mergulhavam em um rio denominado de Espelho da Lua e retiravam de seu leito o
muiraquitã, ainda por ser moldado. A petrificação do talismã dava-se por meio
do contato da terra com o ar. Em seguida, este era entregue aos homens por
elas escolhidos, conferindo-lhes, assim, prestígio aonde quer que fossem, além
de outros atributos mágicos como boa sorte e cura de doenças.
Mircea Eliade, em Tratado de História das Religiões (2010), ajuda-me a
melhor compreender a maneira pela qual estes elementos da lenda do muiraquitã configuram-se como símbolos religiosos. Para tanto, inicio com o fato
de que a confecção de tal objeto dá-se a partir da retirada deste do leito de um
rio denominado de Espelho da Lua durante a festa de Iaci (deusa indígena
brasileira da lua). A partir de tal noção, pode-se perceber as relações existentes
entre a lua, às águas, a terra e a pedra uma vez que, de acordo com as inúmeras análises feitas por Eliade (2010), tais elementos acabam por integrar-se ao
manifestarem-se conjuntamente. E, ao apresentar a relação existente entre a
lua e as águas, o historiador das religiões demonstra algo interessante: “A lua
está nas águas.” De fato, se levarmos em consideração que as águas refletem a
lua, veremos que a assertiva de Eliade (2010) adéqua-se perfeitamente à lenda
amazônica visto que o amuleto é retirado do leito do rio pouco antes da meia-noite enquanto as águas serenas do rio refletem a lua. De acordo com a obra
de Eliade (2010, p. 132), “todas as divindades lunares conservam, mais ou menos, manifestos atributos ou funções aquáticas.” As águas, assim como a lua,
apresentam características cíclicas, pois, são fontes inesgotáveis de renovação,
de regeneração, de renascimento, estando ambas, desse modo, associadas à fertilidade, características pertencentes à mulher. Em relação a terra, veremos que
esta é representada pelo leito de onde o talismã sagrado é retirado e também
agrega características referentes à sacralidade feminina, estando intimamente
relacionada às águas e à própria lua, por ser fonte inesgotável de criação que,
tal qual a mulher, tem como atributo a fecundidade. A terra é um elemento
vivo já que tudo que é dela proveniente é também dotado de vida – observa-se que as pedras formam juntamente com a terra uma unidade uma vez que
integram uma das variadas hierofanias que se desenvolvem a partir de suas
camadas telúricas.
As pedras conservam a força, o mana, a energia vital tão valorizada pelos homens desde os tempos mais remotos. No entanto, sabe-se que não é toda
e qualquer pedra que é considerada sagrada, apenas aquela que exprime tal
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poder perante o homem, diferenciando-se, desse modo, das demais. Na lenda
do muiraquitã, o formato do amuleto denota o que Eliade (2010) denomina de
animais símbolos ou “presença” da lua e, embora este possa assumir diversas
formas, a rã é a mais comumente encontrada. A rã é um desses animais e evoca
a lua ao inchar, mergulhar e reaparecer na superfície da água. Na lenda amazônica, a forma de sapo/rã é a mais difundida; contudo, na obra de Andrade,
vê-se que o amuleto de Macunaíma apresenta-se em forma de sáurio, ou seja,
de lagarto e fora, posteriormente, engolido por um sapo, demonstrando que
Mário de Andrade reutilizou-se de dados da lenda a fim de adaptá-la a sua
narrativa. A partir desta breve apresentação acerca dos elementos envolvidos
na lenda e em Macunaíma, atesta-se que há toda uma lógica por detrás delas, a
qual engloba valores sagrados, ratificando mais uma vez a presença da religiosidade na confecção do texto de Andrade.
D’Ambrósio (1994), em Mito e Símbolos em Macunaíma, destaca que a
muiraquitã é um elemento relacionado à terra, estando, portanto, vinculado
às crenças telúricas, nas quais o sagrado feminino é o princípio regente. No
entanto, este mesmo amuleto também está relacionado aos elementos água e
ar, acumulando forças antagônicas entre si uma vez que a terra e a água, por
exemplo, são elementos femininos, passivos e descendentes; enquanto que o
ar é dotado de uma força masculina, ativa e espiritual que transita entre o céu
(masculino) e a terra (feminino), fazendo com que este último exerça um poder maior sobre o primeiro, impossibilitando, desse modo, a recuperação do
amuleto pelo herói de Andrade, bem como sua ascensão aos céus junto a Macunaíma. Fora isso, não podemos ignorar o fato de que o muiraquitã é dotado
de uma força/energia vital que auxilia o herói em diversos momentos ao longo
da narrativa. Esta força/energia vital é destacada na tese de doutorado de Dadie
Kacou Christian, Um africano lê Macunaíma: uma interpretação da rapsódia
de Andrade com base em elementos literários e culturais negro-africanos (2007),
como algo capaz de curar moléstias, conferir sorte e, até mesmo, autoridade
ao protagonista de Andrade. A autoridade, neste caso, é segundo Christian
conferida a partir do momento em que Ci presenteia o herói com o amuleto,
tornando-o imperador do Mato-Virgem. Ci, aliás, reúne características de uma
Grande Deusa, pois é mãe, é fértil, é nutridora, concebe e é soberana visto que
ao unir-se carnalmente ao herói modernista transforma-o em imperador do
Mato-Virgem. Aí se tem, então, uma alusão à Deusa e seu consorte. Proença
(apud Souza 2003), em Roteiro de Macunaíma, ao falar de Ci, afirma que esta
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foi uma criação de Mário de Andrade baseada na imagem e semelhança de outras mulheres lendárias do começo do mundo. Este começo de mundo refere-se, portanto, a um tempo primordial, de origem; tempo este que se remete
à ancestralidade do Brasil, no qual a lógica que nele imperava era aquela em
que o sagrado/sobrenatural coexistia lado a lado e ativamente com o mundo
natural/material.
De uma forma ou de outra, o encontro de Ci com Macunaíma e a presença do muiraquitã na narrativa de Andrade podem ser, até mesmo, enquadrados segundo as análises presentes na obra O herói de Mil Faces de Joseph
Campbell (2007) – a jornada empreendida pelo herói brasileiro assemelha-se
àquelas realizadas por heróis das mais variadas culturas e origens. Campbell
(2007) relata dentre as fases pelas quais o herói deve submeter-se, a do encontro
com a deusa. Vê-se que em Macunaíma, tal encontro dá-se por meio da icamiaba Ci, pois ela personifica aspectos, como fora anteriormente mencionado, de
divindade, de sacralidade feminina e, geralmente, é neste encontro que ocorre
aquilo denominado de hierógamos, ou seja, o casamento místico entre o herói e
a deusa. E, ainda segundo o autor, esse casamento místico representa o domínio total da vida por parte do herói; pois a mulher é vida e o herói, seu conhecedor e mestre. (Campbell, 2077, p. 121). E, como a jornada do herói, ocorre
de forma cíclica - separação-iniciação-retorno – o muiraquitã configura-se como
“troféu”, Velocino de Ouro, que Macunaíma deve recuperar a fim de retornar
a seu destino final tal qual os grandes heróis assim o fazem.
Quando ficou bem imóvel, Macunaíma se aproximou e brincou com a Mãe do Mato.
Vieram então muitas jandaias, muitas araras vermelhas tuins coricas periquitos, muitos papagaios saudar Macunaíma, o novo Imperador do Mato-Virgem. (AndrAde,
2007, p.32)
A autora Gilda de Melo e Souza, em sua obra O Tupi e o Alaúde (2003),
apresenta as semelhanças existentes entre as aventuras do herói modernista e
aquelas vivenciadas pelo famoso rei Arthur a partir da comparação entre o
amuleto ameríndio e o Santo Graal. Segundo esta autora, a rapsódia modernista seria a última metamorfose do mito arturiano uma vez dividem características semelhantes. Tal qual os romances de cavalaria, Macunaíma conserva
o caráter dinâmico que lhes pertence uma vez que se estrutura em torno da
busca, da recuperação, da andança e do confronto. Todavia, ao contrário do mito
arturiano, a movimentação progressiva do herói modernista ao longo da narrativa, deve ser lida de trás para frente, pois o texto brasileiro inicia com uma
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busca que logo se converte em perseguição e dá origem a uma sequencia de
fugas, demonstrando um dinamismo simetricamente inverso ao do mito arturiano. Outra semelhança encontra-se nas provas pelas quais o herói deve
passar ao longo de sua trajetória. Assim como os cavaleiros da Távola Redonda, Macunaíma depara-se com um caminho cercado de perigos, no qual
monstros, doenças, tentações e miragens fazem-se presentes. A conduta do
herói brasileiro, no entanto, não pode ser equiparada a dos cavaleiros europeus
uma vez que este é retratado a partir de uma caricatura das qualidades destes
homens, cuja bravura, nobreza e honestidade são exaltadas. Estes traços estão
em Macunaíma atrofiados segundo a autora, pois o herói apresenta-se como
uma personagem vencido-vencedora:
[...] faz da fraqueza a sua força, do medo a sua arma, da astúcia o seu escudo; que,
vivendo num mundo hostil, perseguido, escorraçado, às voltas com a adversidade, acaba
sempre driblando o infortúnio. Neste sentido, seria mais acertado inscrevê-lo na longa
linhagem dos perseguidos vitoriosos da ficção de todos os tempos — literária ou cinematográfica — que abrange desde os personagens do romance picaresco até as figuras
cômicas do cinema. (p.76-77)
Em relação ao espaço em que se dá a narrativa brasileira, vê-se mais
um exemplo de paródia dos romances arturianos, pois estes se ambientam
em lugares de paz, estabilidade e justiça5. O texto de Andrade, de acordo com
Souza (2003), apresenta locais demarcados por carências, privações, disputas
e aventuras eróticas tumultuosas e sangrentas. Após explanar as devidas relações existentes entre o texto andradiano e os romances de cavalaria, as quais
se fazem necessárias para a compreensão da semelhança entre as jornadas empreendidas por Macunaíma e Rei Arthur segue-se, então, para o que realmente interessa-me que é o papel desempenhado pelos amuletos miraculosos em
ambas as narrativas. Gilda de Melo e Souza faz-se o seguinte questionamento
em relação ao Graal e ao muiraquitã: “seria possível identificar com o símbolo
essencialmente cristão o artefato mágico indígena da muiraquitã?” (2003,78)
A conclusão por ela chegada é positiva visto que o Graal pode ser também representado por uma pedra preciosa de cor verde (tal qual o muiraquitã), sendo
dotado de poderes extraordinários. Segundo a autora, a recuperação do Graal
está vinculada à “procura da perfeição terrestre”, a “busca do estado primor5
Acredito que esta paz, ordem e justiça apresentada por Souza é relativa uma vez que sempre há
nas lendas e mitos arturianos um motivo pela busca que se faz atrelado ao reestabelecimento de
algo que é, em geral, esta mesma ordem, paz e justiça por ela mencionada.
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dial” de que o homem havia afastado-se, quanto um mito de iniciação viril à
vida. Porém, o que se aborda em relação a este episódio é o caráter satírico
conferido a essa busca na rapsódia andradiana, pois, embora a obtenção deste
amuleto signifique trazer de volta aspectos que estão intimamente ligados à
identidade nacional e a própria identidade do herói, Mário de Andrade atribui
a esta iniciação viril à vida por parte de Macunaíma características que a tornam contrária àquela vivenciada pelos cavaleiros europeus. Todas estas semelhanças levam a autora a afirmar que o núcleo da obra de Andrade permanece
europeu ou, melhor dizendo, permanece universal.
Complementando as comparações feitas por Souza (2003) entre a jornada de Macunaíma e a do rei celta Arthur, bem como do papel desempenhado
pelo muiraquitã e pelo Graal em ambas narrativas, utilizo-me agora de parte
dos estudos realizados por Cláudio Crow Quintino, em O livro da mitologia
celta (2002), a fim de destacar de forma mais estrita os aspectos sagrados que
circundam o cálice cristão visto que estes coincidem com aqueles presentes no
amuleto do herói brasileiro. De acordo com Quintino, o Graal faz alusão ao
caldeirão mágico dos celtas, o qual representa poderes vinculados à fertilidade,
à fartura da terra, à conquista por merecimento, ao feminino e a Soberania a
ser desposada pelo rei. Ora, se pararmos para refletir, veremos que o muiraquitã reúne características semelhantes ao Graal arturiano, pois é confeccionado
durante uma festa em que se visa à procriação, portanto, a fertilidade faz-se
ali imbricada e esta mesma fertilidade está geralmente relacionada à fartura. O
muiraquitã também não fora facilmente cedido à personagem Macunaíma já
que esta precisou dominar fisicamente a icamiaba Ci para unir-se carnalmente
a ela e tornar-se, portanto, soberano. Daí, vê-se, ainda que implicitamente e
de forma distinta, a questão da conquista e aquisição da Soberania. Contudo,
como já vimos, que a recuperação do amuleto sagrado e, dessa forma, de sua
conquista total por parte de Macunaíma não fora possível, levando-o ao fracasso no final de sua jornada.
Dando continuidade aos aspectos sagrados presentes em Macunaíma,
destaca-se outro elemento que faz alusão à religiosidade indígena na obra, o
qual se faz presente no episodio contido no capítulo intitulado Pauí-pódole.
Nele, Macunaíma desentende-se com um mulato que lhe falava sobre o dia
do Cruzeiro. A explicação que lhe fora cedida pelo mulato a princípio fazia
sentido, no entanto, quando Macunaíma se deu conta de que o Cruzeiro a que
o mulato referia-se era o Cruzeiro do Sul, o Pai do Mutum ou, Pauí-Pódole,
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A POLIMORFIA DO SAGRADO EM MACUNAÍMA
o herói interrompeu-lhe a fala e pôs-se a contar sobre a origem desta constelação. O discurso do herói refletia a compreensão que os índios dotavam do
universo: “Todos os fenômenos do universo do índio possuem o seu ‘pódole’
e alguns deles entram na composição de contos astronômicos, quando os totens se transferem para o ‘ vasto campo do céu’, tornando-se estrelas.” (lopez:
1974, 75)
Para os índios o firmamento é a morada dos “pais”, ou seja, daqueles
que em alguma era já habitaram a terra e deram origem aos demais indivíduos
e seres que nela hoje vivem. O céu era a terra sem mal, lar dos antepassados, lar
de homens de mulheres de grande importância para eles. Isso demonstra uma
das concepções de morte por esses povos adotada. A vida não é finita, pois
jamais se esgota, apenas se renova, assumindo outras formas. Os antepassados
estão sempre presentes e o homem reverencia-os, respeita-os. Lopez (1974,
53), demonstra que “a história de Macunaíma faz o povo participar do cosmos,
integrar-se numa dimensão mágica de vida que é a poiesis6 do primitivo, é o
nacional válido.”
Não é não! Meus senhores e minhas senhoras! Aquelas quatro estrelas lá é o Pai do
Mutum! Juro que é o Pai do Mutum, minha gente, que pára no campo vasto do céu!
... [...] Isso foi no tempo em que os animais já não eram mais homens e sucedeu no
grande mato Fulano. (AndrAde, 2007, p.117)
Este trecho da obra de Andrade pode ser melhor compreendido por
meio da teoria do perspectivismo. Castro apud Christian (2007) defende esta
teoria a partir de uma abordagem endógena a respeito da visão de mundo
dos povos autóctones, a qual o apresenta como aquele habitado por diferentes
espécies, sujeitos ou pessoas (humanas e não-humanas). Segundo este raciocínio, os animais veem-se como seres humanos e são considerados como tais
uma vez que para os índios cada espécie apresenta-se por meio de um tipo de
“roupagem” que esconde a verdadeira forma que lhes cabe, que é a humana; no
entanto, apenas os xamãs conseguem enxergar através dela. A diferença entre
humanos e animas, portanto, estaria na aparência externa, sendo a noção de
“roupa” para Eduardo Castro uma das expressões mais significativas da “metamorfose”, como aponta Christian. Essas transformações fazem-se constante6
“Poiéses era palavra usada pelos gregos, nos tempos da oralidade primária, que designava a criação
verbal, a arte de compor com a palavra, pela narração, pela declamação e pelo canto.” Trecho retirado da obra Na captura da voz – as edições da narrativa oral no Brasil, de Maria Inês de Almeida e
Sônia Queiroz. Belo Horizonte: Autêntica; FALE/UFMG,2004.
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mente presentes na narrativa andradiana, pois o mundo de Macunaíma é um
mundo que se encontra em permanente mudança, assim como as personagens
que nele habitam e por ele transitam, aproximando-o, dessa forma, das realidades apresentadas nos mais variados mitos universais.
Medieros (2002), ao apresentar a obra de Koch-Grünberg sobre as lendas e mitos dos taulipangues e arecunas, na qual constam as aventuras de
Makunaíma, demonstra esta relação entre seres humanos e animais nas sociedades indígenas. Grünberg ressalta que os animais desempenham um papel
importante na vida dos índios, daí o porquê da participação ativa destes nos
mitos desses povos. A visão do viajante alemão não se distancia tanto daquela
mencionada anteriormente no trabalho de Christian.
Os animais são considerados os donos primitivos ou verdadeiros descobridores de valores
culturais, como o fogo, as plantas uteis, as ferramentas ou importantes características
corporais, que os homens depois conquistaram, pacificamente ou pela força. (GrünberG
apud Medeiros, 2002, p.46)
Outro tema bastante recorrente na obra andradiana é o da morte. Pela
morte, é possível demonstrar que a maneira pela qual algumas das personagens a ela reagem, reflete condutas características de um homo religiosus. Dois
exemplos que podem ser aqui citados é o da morte da mãe e do filho do herói.
Em ambos os casos, houve celebrações fúnebres e os mortos em questão metamorfosearam-se em elementos da natureza: um em pedra e o outro em planta
respectivamente. A mãe de Macunaíma é, inclusive, morta pelo próprio herói
ao confundi-la com uma viada uma vez que esta se encontrava transfigurada
em uma, sendo este fato de acordo com Campos (2008) mais um dos interditos violados pelo protagonista de Andrade. O falecimento da figura materna
de Macunaíma é previsto pelo herói por meio de um sonho, no qual aparece
um dente caído. Na tradição indígena, sonhar com dente caído é sinônimo de
morte de parente.
- Mãe, sonhei que caiu meu dente.
- Isso é morte de parente, comentou a velha.
- Bem que sei. A senhora vive mais uma Sol só.
Isso mesmo porque me pariu.
(AndrAde, 2007,p.26)
Como as palavras são dotadas de poder/mana/força vital nas culturas
negro-africanas, Christian (2007) evidencia que durante a rapsódia a palavra é
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A POLIMORFIA DO SAGRADO EM MACUNAÍMA
utilizada pelo herói de forma inadequada. É necessário ter cautela com aquilo
que se diz; no entanto, Macunaíma parece não se importar com tal fato e burla
mais uma vez outra norma das sociedades primitivas. A mãe de Macunaíma é
enterrada debaixo de uma pedra em um local chamado de Pai da Tocandeira.
E do inchaço da barriga da índia morta, surge um cerro macio, ou seja, uma
espécie de colina. Assim, morrer significa integrar-se à natureza, fazer parte
desta e perpetuar-se, portanto, no ventre da terra mãe. É um retorno à origem
da vida. É um modo de fazer-se presente na vida dos vivos, de estar sempre
junto daqueles que lhe são queridos. Vê-se que a morte, no mundo da obra, é
na realidade tida como um retorno a própria vida, é sempre um renascimento.
Quanto ao falecimento do filho de Macunaíma, sabe-se que este também fora fruto de mais um interdito burlado pelo herói, como bem aponta
Campos (2008). Ao ser picada pela Cobra Preta em seu único seio vivo, Ci
acaba por envenenar a criança ao amamentá-la, provocando a sua morte. Assim, organiza-se um funeral para o menino com muitos cantos, danças e pajuari (nome dado a uma espécie de bebiba excitante ultilizada pelos indígenas).
Logo, vê-se por meio deste rito fúnebre, mais um indício de crenças vinculadas
à religiosidade dos índios brasileiros. Os cantos, as danças e a bebiba são meios,
acredito, de encaminhar ou, quem sabe, de homenagear a alma daqueles que já
se foram. A morte, contudo, na obra andradiana, não representa o fim, pois,
no local em que a criança fora enterrada, nasce um pé de guaraná, o que significa dizer que, de certo modo, a alma e vigor do filho do demiurgo modernista
encontram-se nesta planta que será de grande valia e utilidade para o herói no
desenrolar da rapsódia. Mário de Andrade, mais uma vez, utiliza-se de lendas
indígenas, mais especificamente amazônicas, para a composição deste capítulo
ao mencionar a origem da planta do guaraná.
No outro dia quando Macunaíma foi visitar o tumulo do filho viu que nascera do corpo
uma plantinha. Trataram dela com muito cuidado e foi o guaraná. Com as frutinhas
pilads dessa planta é que a gente cura muita doença e se refresca durante os calorões de
Vei, a Sol. (AndrAde, 2007, p.35)
Embora Macunaíma tenha sigo algumas vezes “recussitado” por seu
irmão Maanape, a morte em dado momento o convida para juntar-se definitivamente a ela em seu mundo transcendental. Após empreitar tamanha busca
pela recuperação do muiraquitã, a qual consistiu em perda, obtenção e novamente, perda do amuleto sagrado, o herói modernista mostra-se fatigado ao
final da narrativa e entrega-se ao desgosto que culmina, então, em sua morte.
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Macunaíma era, na realidade, um ser inquieto e angustiado, pois, nada era capaz de suprir o vazio que lhe fora deixado por Ci, a Mãe do Mato, ao subir aos
céus e virar estrela, a Beta do Centauro, após a morte do filho dos dois. Assim
como Ci, Macunaíma metamorfoseia-se em estrela, a Ursa Maior, retornando,
portanto, para um espaço onde a ancestralidade faz-se presente: o céu.
A metamorfose em seres estrelares faz parte da concepção de mundo
dos povos da floresta, cujas histórias apresentam o que Haroldo de Campos
denomina de “happy end frustrado”:
Essas “metamorfoses estelares” providenciam “resoluções” (no sentido musical do termo)
dos impasses morfológicos da ação, seja quando os comparsas, a bem da economia funcional do enredo, devem desaparecer como por alçapões de conveniência, disfarçados no
cenário; seja quando é necessário “sublimar” um happy end frustrado.”(CAMpos, 1973)
O final feliz frustrado faz parte de algumas narrativas indígenas e pode
ser interpretado, de acordo com Medeiros (2002) como uma metáfora onde
a floresta tudo devora e sobre ela resplandece um céu estrelado, cujo brilho
denota desastre, traz a eloqüência da voz dos mortos que responde à mudez da
floresta viva, mas esvaziada de homens.
O interessante é perceber como essa “ascensão” aos céus ocorre na obra
andradiana. As personagens da obra, Macunaíma e Ci, por exemplo, o fizeram
por meio de um cipó. O uso do cipó para se chegar aos céus faz-me pensar
na noção de comunicação entres os níveis cósmicos – terra e céu – a partir da
imagem de uma coluna universal e central, axis mundi, a qual segundo Eliade
(2010) pode ser representada de variadas formas como, por exemplo, escada,
pilares, montanhas, árvores, cipós etc.; e encontra-se no meio, no “umbigo da
Terra”, sendo, portanto, o centro do mundo e tornando tudo aquilo que se
encontra a sua volta sagrado.
Assim, vê-se que o cipó em Macunaíma (1928) está diretamente relacionado à compreensão de que há a necessidade de um meio intermediário para
se atingir um outro nível cósmico, neste caso o céu, por meio da utilização de
algo cujas características manifestem aspectos que remetam à sacralidade de
um tempo primordial, cosmogônico e divino. Desse modo, pode-se chegar ao
“paraíso” e tornar-se, finalmente, imortal. Afinal, o próprio herói de Andrade
afirma no capítulo XVII, “Ursa Maior”, que não veio neste mundo para virar
pedra, preferindo, então, assumir a forma de um ser estrelar e retornar à morada dos deuses e ancestrais.
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A POLIMORFIA DO SAGRADO EM MACUNAÍMA
Essa visão de mundo calcada na inexistência de um véu que separa o
mundo espiritual do mundo material já anteriormente mencionada por Lopez
(1974) ao analisar o episodio do Cruzeiro do Sul como algo característico da
poiesis do primitivo, demonstra que Mário de Andrade buscou destacar, dentre
os inúmeros elementos e eventos que compõe Macunaíma, a harmonização
com a natureza, com o estado primeiro das coisas enquanto algo essencial para
a vida dos homens. Os mitos indígenas foram, portanto, uma forma por ele
encontrada de dar ao Brasil um passado histórico calcado na presença de elementos sacros, onde deuses e heróis e, até mesmo, anti-heróis, coexistem, servindo aos homens de base para sua formação. A Amazônia seria, dessa forma,
este território geograficamente ideal para dar início a essa história visto que se
encontrava – supostamente – distante da presença do progresso, do corrupto.
E o herói modernista apesar de adentrar em lugares pela “civilização” tocados
e deixar-se levar por muitas de suas tentações e oportunidades, retorna, ao
final do romance, para sua terra de origem, pois, é a ela que ele pertence e
identifica-se.
A religiosidade indígena também pode ser encontrada na figura do irmão mais velho de Macunaíma, Maanape. Maanape é definido por Andrade como feiticeiro. O autor utiliza-se, inclusive, de outra nomenclatura para
caracterizá-lo: “catimbozeiro de marca maior”. O sincretismo ou antropofagia andradiana já aparece muito bem evidenciado nesta simples denominação.
Digo isto porque o catimbó caracteriza-se por cultos que mesclam elementos
afro-brasileiros, indígenas e católicos e encontra-se mais especificamente no
Nordeste do Brasil; contudo, não esqueçamos que a narrativa inicia na floresta, no território amazônico, onde as práticas religiosas supostamente estariam
mais vinculadas ao xamanismo amazônico, conhecido como pajelança. No entanto, se levarmos em consideração a teoria de Alceu Maynard Araújo, presente
em artigo escrito conjuntamente por Raymundo Heraldo Maués e Gisela Macambira Villacorta, na obra Encantaria brasileira: o livro dos mestres, caboclos e
encantados, veremos que há semelhanças entre as práticas da pajelança, catimbó
e toré uma vez que estas realizam rituais de cura e reúnem características de
religiões de matriz africana, espirita, indígena e cristã.
Compreende-se o porquê da escolha do emprego do termo catimbozeiro para Maanape. Contudo, creio que Maanape apresenta-se no romance mais
como uma espécie de pajé, pois é dotado de conhecimentos acerca de plantas,
remédios naturais, cultos de cura e ressurreição. E enquanto figura mais velha
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dentre os irmãos, possui um tipo de sabedoria que os demais não dominam.
Geralmente, os pajés são pessoas mais velhas e são, também, conhecidos como
curandeiros ou “cirurgiões da terra”. Maanape, por meio de suas magias, é capaz de trazer o herói andradiano à vida após ser morto algumas vezes ao longo
da narrativa, bem como é capaz de curar Macunaíma de algumas mazelas que
o acometeram.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A importância de se compreender a obra Macunaíma de Mário de Andrade segundo os aspectos sagrados que nela são encontrados, faz-se com intuito de mostrar ao leitor que os elementos religiosos ali presentes não são
mero coadjuvantes na trama modernista uma vez que, como Christian (2007)
mesmo percebera, a realidade retratada por Andrade é aquela na qual o sagrado manifesta-se e a tudo rege. A religião encontra, portanto, na literatura
andradiana e em outras formas de arte um ambiente propício para as representações do sagrado que lhe pertencem. Mário de Andrade utiliza-se de diversos elementos referentes à religiosidade e os ressignifica em Macunaíma,
equiparando a jornada empreendida pelo herói modernista àquelas presentes
nos grandes mitos universais. Além disso, ele também apresenta por meio de
diversos símbolos, elementos musicais, lendas, mitos e ritos, uma miscelânea
de fatores e eventos que delineiam a cultura brasileira. A relação existente entre
Macunaíma e outras personagens da rapsódia com a religião faz-se de forma
bastante clara no texto. Então, por que não reivindicar também à literatura de
Andrade uma abordagem que a repense e a interprete segundo as linguagens
da religião uma vez que estas se manifestam nas mais variadas formas de arte,
sendo o mundo literário, então, um de seus lares? Se, até mesmo, Mário de Andrade justifica que os livros religiosos serviram-lhe de inspiração poética para
a composição de sua rapsódia, por que ignorar tal fato? Por que não buscar,
então, a religiosidade na narrativa andradiana? Por que não verificar de que
maneira o sagrado manifesta-se por meio de seus mitos, símbolos e ritos em
Macunaíma? Por que dentre tantas instabilidades na rapsódia, a religiosidade
– representada por meio de suas linguagens – é um dos únicos, senão, o único
fator a manter-se constante, até mesmo, na conduta do protagonista que é tão
severamente denominado de herói sem nenhum caráter já que seus atos demonstram o quão influente esta se faz em sua jornada?
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A POLIMORFIA DO SAGRADO EM MACUNAÍMA
Verifica-se que interpretar o texto de Macunaíma considerando a estrita
relação entre religião e literatura com base na consulta de teóricos que possam
esclarecer tais questionamentos será de grande valia para a compreensão do
universo mítico indígena criado por Mário de Andrade. Afinal tal análise não
se distancia totalmente daquelas que o consideram sob os olhares da construção identitária e cultural brasileira, uma vez que a religião e suas linguagens
são umas das esferas que lhes compõe, podendo ser também objeto de estudo
na obra literária de Andrade.
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Recebido em 21/09/2012
Aceito em 16/11/2012
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