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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP ANNA MARIA CASORETTI O SURGIMENTO DA ASCÉTICA DA ALMA NA ANTIGUIDADE GREGA ORFISMO E PITAGORISMO MESTRADO EM FILOSOFIA SÃO PAULO 2014 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................... 8 PARTE I - A RELIGIOSIDADE GREGA....................................................... 12 1. DA RELIGIÃO AGRÁRIA À OLÍMPICA................................................... 14 2. AS RELIGIÕES DE MISTÉRIOS .............................................................. 22 Os Mistérios de Elêusis ............................................................................. 25 Os Mistérios de Dioniso ............................................................................ 30 3. O ORFISMO .............................................................................................. 34 As fontes do Orfismo ................................................................................. 35 Orphikós Bíos ............................................................................................ 39 Conteúdo do material órfico ..................................................................... 41 A Teoria da Alma ....................................................................................... 45 4. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA PRIMEIRA PARTE ............................. 56 PARTE II - O PITAGORISMO ........................................................................ 61 1. REFERÊNCIAS DOXOGRÁFICAS ........................................................... 63 Pitágoras, philosophós ou sophós? ........................................................... 66 A Sociedade pitagórica .............................................................................. 70 2. FRAÇÕES DE UMA TEORIA DA ALMA .................................................. 75 Fragmentos e Testemunhos ...................................................................... 76 Anámnesis e Alétheia ................................................................................ 83 Algumas considerações acerca do traçado ................................................ 86 3. AS MATEMÁTICAS .................................................................................. 89 A Cosmologia pitagórica............................................................................ 91 Harmonia: do kósmos, da psyché ............................................................. 98 4. KÓSMOS E PSYCHÉ: INTERPRETAÇÕES E CONSIDERAÇÕES ........ 106 CONSIDERAÇÕES FINAIS: A ASCESE NA RELIGIÃO E NA FILOSOFIA ............................................................................................. 112 Conversão e Áskesis.................................................................................. 114 Conclusão ................................................................................................. 117 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................ 119 8 Aos buscadores do não-esquecido 8 INTRODUÇÃO Durante a Antiguidade grega, floresceram determinados movimentos que convergiram em relação a um tipo de conduta que buscava, através da ascética da alma, alcançar certo fim. Tal comportamento encontrou seu pleno desenvolvimento entre círculos isolados de pessoas que se apartavam das demais, apresentando tendências teológicas ou filosóficas. Este estudo tem por propósito investigar tais movimentos, buscando, primeiramente, suas eventuais sementes em períodos que lhes são anteriores. O título escolhido, ao qual são atribuídas qualidades de “origem”, exige não apenas que se perscrute o terreno circundante ao tema como, também, que se retroceda em busca de tais origens. Não foi possível, ademais, abdicar da exploração do caráter religioso da cultura em questão, mesmo em se tratando de uma pesquisa de cunho filosófico. Uma abordagem que focasse exclusivamente este último âmbito ceifaria as raízes mais profundas do objeto buscado, empobrecendo, definitivamente, os resultados. Por esta razão, uma considerável parte da presente dissertação é dedicada àquela área. Ao percorrer a trilha determinada, avistaremos o germe da questão ascética a despontar em certos momentos das chamadas “Religiões de Mistérios”, vindo a frutificar e alcançar sua assinatura distintiva nas crenças órficas. Prosseguindo, serão encontradas as evidências daquela característica no domínio filosófico, reveladas como peculiaridade das comunidades pitagóricas. Tal especificidade acaba por firmar-se na História da Filosofia como marca “órfico-pitagórica”, influenciando o pensamento de eminentes filósofos da Antiguidade que, por sua vez, exercerão forte ascendência sobre o posterior pensamento medieval. Realizada a primeira tarefa, passa-se ao estudo das ordens em questão: o segundo – e precípuo – propósito estabelecido será inquirir as razões que teriam levado tais grupos a escolherem a ascese anímica como prerrogativa de vida, com todas as implicações que tal escolha impõe. Citar a “forma de vida órfico-pitagórica”, partindo dos pontos de similaridade entre as duas ordens, é prática comum na maioria dos manuais de História da Filosofia. Contudo, pouco se explica acerca dos intrínsecos motivos que norteiam tais movimentos. 9 O trabalho divide-se em duas partes. A primeira parte aborda a contextualização histórica da religião grega, sem a pretensão de apresentar uma análise sobre o tema – pois tal estudo ultrapassaria o limite aqui estabelecido –, mas, sim, objetivando destacar os aspectos relevantes ao escopo demarcado. Para a reconstrução dos elos principais de tal cenário, especialmente de seus períodos mais longínquos, apoiamo-nos no conhecimento de tradicionais historiadores da religião grega, como Martin P. Nilsson, Maria Helena Rocha Pereira, Pierre Lévèque e Andrè Festugière, além de contar com estudiosos da Escola de Paris, como Jean-Pierre Vernant e Louis Gernet. Para o exame das religiões mistéricas, valemo-nos, entre outros, do auxílio especial de Walter Burkert, enquanto, especificamente para o Orfismo, foram adotadas as obras fundamentais de Alberto Bernabé. Foi dedicado um capítulo integral ao estudo desta última ordem, destacando-a, portanto, das demais religiões de mistérios, em virtude de sua proeminência para a temática. Tal pesquisa fundamenta-se nas teogonias e, de forma especial, nas lâminas órficas descobertas nos últimos dois séculos. Para concluir a parte primeira, foram esboçadas algumas considerações referentes ao panorama apresentado, introduzindo breves informações concernentes à questão da imortalidade da alma na esfera cultural grega. A elaboração da segunda parte, dedicada à pesquisa do Pitagorismo, envolveu uma maior complexidade, visto que os poucos fragmentos conservados até os nossos dias mostram-se incompletos e pouco claros. As fontes à disposição incluem antigos testemunhos e, principalmente, as biografias escritas por Diógenes Laércio, Jâmblico e Porfírio, todos florescidos a cerca de sete séculos de distância da origem do movimento. Acrescentam-se a tais problemáticas as substanciais divergências existentes entre os intérpretes, cuja mediação é imprescindível para o bom entendimento dos fragmentos. Em razão de tal quadro, optou-se por recolher apenas as informações efetivamente convergentes, no intuito de minimizar os possíveis equívocos. Após a reconstrução do quadro histórico, no primeiro capítulo, onde são apresentadas as referências doxográficas, ingressa-se no campo propriamente metafísico. Nesse âmbito, buscou-se colher dos ensinamentos pitagóricos sinais de uma possível teoria da alma, com o intuito de relacioná-la ao ascetismo cultivado na ordem. Os fragmentos escolhidos para ensejar o diálogo filosófico foram extraídos de recolhimentos de passagens escritas pelos pitagóricos Alcméon, Arquitas e, em 10 especial modo, Filolau. A contribuição destes ilustres pensadores é utilizada, principalmente, nas discussões relacionadas à cosmologia e às teorias numéricas concebidas no núcleo pitagórico. Como pano de fundo, perceber-se-á o enredo da dualidade a acompanhar todo o texto, tema que será abordado nas considerações à segunda parte. A presença de dualidade na existência humana, enquanto característica cósmica integrante das doutrinas das ordens estudadas, é condição que propicia a escolha consciente de uma mudança de atitude que encontra eco no comportamento que se entende por conversão. Nesse sentido, não há ascese sem uma gradativa transformação daquilo que era para um novo estado de ser. Por conseguinte, ao expor as formas de prática ascética na Antiguidade grega, a presente investigação trará à luz essas duas questões que não poderão ser desprezadas. A trajetória marcada pela busca da ascese da alma entra para a história, tanto da Religião quanto da Filosofia, como categoria verificável nos conteúdos do Orfismo e do Pitagorismo, respectivamente. Cabe salientar que o caminho do asceta não consiste em simples comportamento moral – apesar de este ser prerrogativa para o percurso –, mas numa consciente e real renúncia a determinada forma de existência em detrimento de outra, seu objetivo final. 12 PARTE I A RELIGIOSIDADE GREGA Aqueles, cuja vida deve ser cheia de contentamento e alegria, devem ter participação nos mistérios e perfeitíssima iniciação... pois, estaremos sentados lá em religioso silêncio e com dignidade. De fato, ninguém se lamenta quando é iniciado. (Aristóteles, Sobre a Filosofia) 12 I A RELIGIOSIDADE GREGA Antes de adentrar o período específico de manifestação das ordens protagonistas deste estudo, faz-se necessário retroceder em alguns séculos a fim de averiguar a estrutura mítico-religiosa da Grécia em sua totalidade, na tentativa de encontrar uma eventual semente de tais ordens em épocas antecedentes. Apesar da dificuldade envolvida na reconstituição da religião grega, principalmente pela falta de livros sagrados1 íntegros e de uma classe sacerdotal organizada que deixasse algum legado, dispõe-se, atualmente, de um bom arsenal de informações, graças aos esforços de dedicados estudiosos que têm se debruçado sobre a questão, permitindonos formar uma ideia do conjunto da religiosidade helênica. Cabe esclarecer que, apesar de o uso da palavra “religião”, em contexto da Antiguidade grega, poder suscitar discordâncias, o emprego deste termo é utilizado e reconhecido como válido por vários comentadores 2. A fonte principal da religiosidade grega é praticamente toda a poesia Antiga e, a partir do século V a.C., os escritos históricos de Heródoto e Plutarco, além das obras geográficas de Estrabão e Pausânias. Informa Walter Burkert, em Religião grega na época clássica e arcaica (1993, p.31), que foi mantido, ainda, um conjunto de documentos da práxis religiosa chamados Leis Sagradas que, apesar de mostrar apenas a parte exterior dos cultos, tornou-se uma ferramenta útil para a elucidação de detalhes acerca dos sacerdotes, dos rituais e dos nomes dos deuses. Outros testemunhos evidentes para a reconstrução do caráter religioso daquela cultura são os monumentos da arte grega, os templos e as pinturas, assim como as antigas cerâmicas que serviram, durante séculos, para prover fundamentos sólidos acerca da cronologia das manifestações religiosas. Martin Nilsson, em A History of Greek Religion (1964, p.15), explica que os numerosos exemplares de materiais Os primeiros escritos sagrados surgem apenas no século VI a.C. e pertencem ao âmbito do Orfismo (Burkert, 1993, p.35). 2 Walter Otto, por exemplo, aponta para um “sentimento religioso autêntico” existente nas relações dos gregos com seus deuses (2005, “Prefácio”). Maria Helena Rocha Pereira reconhece a existência de uma “experiência religiosa grega, algo de mais profundo do que aquilo que se lê nos manuais” (1964, p.184). O filólogo André Festugière, em seu capítulo “Aspectos populares da religião grega”, complementa essa concepção ao afirmar que “o Antigo não é irreligioso. O Antigo crê e é piedoso” (1988, p.169). 1 13 encontrados, utilizados pelos estudiosos para realizar tal recomposição – inclusive dos períodos pré-gregos –, não apresentavam qualquer outra utilidade, sendo claramente destinados a finalidades sagradas. Assim, os utensílios para os cultos, a forma dos altares e os recipientes para os rituais constituem marcas que fornecem importantes indicações aos historiadores helenistas. Não existindo documentos de revelação, ao menos nas épocas mais longínquas da Antiguidade grega, as manifestações religiosas se legitimam através da força da tradição que, nas palavras de Burkert (1993, p.35), “se comprova com a força incisiva da persistência que passa de geração em geração”. Contudo, é esperado de uma religião que se propaga por mais de dois milênios, segundo os vários indícios e testemunhos, que apresente, necessariamente, importantes transformações ao longo de sua trajetória. Tais modificações ocorrem em consequência da exclusão e inclusão de elementos ao longo dos séculos. A melhor forma de distinguir os fatores que levaram a essas transformações será abordá-las cronologicamente, acompanhando, assim, as etapas mais relevantes de seu desenvolvimento. No decorrer deste percurso, serão destacados os aspectos pertinentes à temática pesquisada. Uma das questões que merece ser evidenciada, e que é apontada pela maioria dos manuais e intérpretes, refere-se à passagem de uma antiga forma de religião, também denominada agrária, para uma “nova” forma, a intitulada “olímpica” 3, que se tornou símbolo da religiosidade grega. As raízes daquela, entretanto, nunca foram totalmente eliminadas, de forma que seus ramos continuaram a brotar gerando frutos significativos séculos mais tarde, como veremos ao lançar luz sobre os Mistérios. Encontram-se outras denominações para a religião que aqui chamaremos “olímpica” e que variam de acordo com o especialista ou intérprete: pública, homérica, cívica, oficial e tradicional são os termos mais utilizados. 3 60 PARTE II O PITAGORISMO No começo de toda filosofia, é costume dos sábios apelar para um deus; isso vale ainda mais para aquela filosofia que, pelo que parece, leva justamente o nome do divino Pitágoras. Esta, de fato, foi concedida desde o início pelos deuses e não é possível compreendê-la se não com a ajuda deles. Além disso, sua beleza e sua grandeza superam as capacidades humanas, de maneira que é impossível abraçá-la imediatamente e com um único olhar. Portanto, somente se um deus benigno nos guiar será possível aproximar-se lentamente dela e gradativamente apropriar-se de alguma parte. Por todas estas razões, após ter invocado os deuses como nossos guias e confiado a eles nós mesmos e nosso discurso, vamos segui-los aonde nos queiram conduzir. (Jâmblico, proêmio a Vida Pitagórica) 61 II O PITAGORISMO As filosofias que se desenvolveram na Magna Grécia apresentaram, desde o início, uma têmpera diferente daquela dos milésios, como registram Kirk, Raven e Schofield (2008, p.222): segundo os autores, o Sul da Itália e a Sicília foram, desde tempos mais remotos, a pátria dos cultos-mistéricos relacionados com a morte e com a adoração dos deuses do Além, enquanto pouco se ouvia falar dessa espécie de atividade nas cidades costeiras da Jônia. Essa peculiaridade influencia, em maior ou menor grau, as especulações dos filósofos itálicos, revelando-se não apenas em temáticas metafísicas como também religiosas4 – caso do Pitagorismo. Tal opinião é endossada por Louis Gernet (1932, p.511) que considera o Pitagorismo “a filosofia mais religiosa da Antiguidade”, a ponto de alguns comentadores hesitarem em incluir o movimento entre as escolas filosóficas. As descobertas recentes do século XX serviram para evidenciar as relações entre o Orfismo e o Pitagorismo. Pugliese Carratelli, entre uma grande maioria de estudiosos, assinala a profunda conexão entre as duas escolas, apoiando-se, em especial maneira, na análise das lâminas de ouro.5 O autor estima que teria havido uma mescla teórica entre os movimentos, como se os pitagóricos iniciais tivessem operado uma “reforma” no Orfismo, realçando suas temáticas éticas e espirituais e combinando-as ao exercício intelectual da compreensão. Efetivamente, e como indica, ainda, Gernet (ib., p.511), a organização pitagórica assemelhava-se àquela dos órficos e foi, frequentemente, com ela confundida. Malgrado tratar-se de sistemas diferenciados, cujas distinções já foram apontadas por vários especialistas,6 esta parte da presente pesquisa reafirmará suas semelhanças enquanto nelas reside o alvo buscado. O itálico Parmênides formulou proposições metafísicas que rompiam com a crença na “verdadeira e única” existência do mundo físico. Quanto ao Pitagorismo, a maioria dos intérpretes reconhece sua natureza religiosa. 5 Cf. a obra Tra Cadmo e Orfeo – Contributi alla storia civile e religiosa dei Greci d’Occidente, 1990. 6 Alberto Bernabé aponta tais diferenças em seu artigo “Orphics and Pythagoreans: the greek perspective” (Universidad Complutense de Madrid). 4 62 Não existem explicações definitivas para a nascença do movimento.7 Zeller qualifica o Pitagorismo como parte de um “movimento maior de reforma moral e religiosa”, que abraça dentro de si a inteira substância da cultura de seu tempo, compreendendo tanto o elemento religioso quanto o “ético-político e o científico” (1881, p.342). Seja qual for a razão ou origem que levou ao surgimento do Pitagorismo, convém destacar, conforme a colocação de Gabriele Cornelli,8 que o seu advento introduziu, pela primeira vez na história da filosofia ocidental, um grupo de pensadores identificados entre si não pela proximidade geográfica, como foi o caso dos eleatas e jônicos, mas, sim, pela relação com seu fundador: daí o termo pythagoreíoi.9 Sérias dificuldades se apresentaram aos estudiosos do Pitagorismo de todos os tempos, não só por este ter tomado sua forma através do conjunto de diversos pitagóricos, com suas distintas peculiaridades, como pelo fato de o movimento ter atravessado a história do pensamento ocidental em cerca de mil anos, tornando-se, como se poderia prever, multifacetado. Walter Burkert, levando ao extremo a questão da duração do movimento, postula que a principal dificuldade em seu estudo reside no fato de que, diferentemente de outras filosofias, o Pitagorismo nunca morreu.10 Além das modificações sofridas pela extensão de sua duração, tem-se, ainda, a problemática da autenticidade dos escritos atribuídos aos pitagóricos. Os fragmentos e testemunhos que, comprovadamente, podem ser chamados de legítimos, tanto em relação a Pitágoras quanto ao Pitagorismo, são escassos e pouco claros – o que leva o pesquisador a uma busca maior por explicações e interpretações. Afortunadamente, os problemas relatados não impediram que avultassem interpretações de todos os gêneros, de forma que, graças a elas, pode-se hoje navegar com certo direcionamento nesse mar tormentoso. Autores como Burkert (ib. p.11) reconhecem a importância da mediação trazida pelos intérpretes, na medida em que, não sendo possível alcançar diretamente o fenômeno original do Pitagorismo, restará ao interessado apenas Kirk, Raven e Schofield acreditam que o movimento tenha surgido em resposta a um contexto de problemáticas sociais e políticas que emergiam nas “distantes paragens do mundo grego”. Justificam que as guerras entre estados italianos e sicilianos foram muito severas, conduzindo à deportação de populações inteiras e ao arrasamento de seus lares; a destruição de Síbaris, por exemplo, em 510 a.C., foi uma das mais célebres dessas atrocidades. Os autores pretendem sinalizar que as tragédias teriam levado ao recrudescimento da busca pelo divino (2008, p.222). 8 Cf. a obra O Pitagorismo como categoria Historiográfica, Cornelli, 2011, p.102. 9 Cornelli esclarece que em Platão encontram-se os termos anaxagóreioi (Crátilo, 409b) e herakleiteíoi (Teeteto, 179-e), mas estes não passaram para a história como ocorreu com os Πυθαγορείοι (2011, n.p.102). 10 Cf. Lore and Science in Ancient Pythagoreanism, 1972, p.10. 7 63 “interpretar interpretações”. Vejamos, dentre o cabedal de informações transmitidas pelos Antigos, quais a tradição reconheceu como efetivamente confiáveis. 112 CONSIDERAÇÕES FINAIS: A ASCESE NA RELIGIÃO E NA FILOSOFIA A religião e a filosofia foram muito próximas nos assentamentos gregos da Magna Grécia no final do século sexto a.C. Esta relação, entretanto, não foi exclusiva do Sul da Itália. Existiram laços unindo mística e filosofia na Grécia como um todo, já que o próprio misticismo foi um processo helênico que recebeu influências, também, da Grécia Oriental. Por sua vez, os ritos de iniciação tradicionais dos meios religiosos foram substituídos, em campo filosófico, por outros sinais, como uma regra de vida, um caminho de ascese ou uma via de pesquisa que, ao lado das técnicas de argumentação ou dos novos instrumentos mentais como as matemáticas, conservaram em seu lugar antigas práticas divinatórias, além de exercícios espirituais de concentração e de separação do corpo e alma.11 Para Werner Jaeger, a busca filosófica por um princípio primordial – busca esta que norteou as especulações dos primeiros filósofos – indica a presença, no âmago do antigo pensamento grego, do “germe” da teologia, na medida em que não somente era buscado um princípio de unidade e sustentação da realidade como, também, uma explicação racional para a relação entre a natureza e o divino. A teologia – em seu pleno significado de aproximação ao divino ou aos deuses (theoi) por meio do logos – representa, para Jaeger, “uma atitude de espírito caracteristicamente grega, que se relaciona com a grande importância que os pensadores gregos atribuíam ao logos”.12 Nesse sentido, os vários mitos gregos sobre a alma não foram fruto puramente do espírito filosófico que se desenvolvia, mas, em grande medida, da influência do movimento órfico em mescla com a filosofia dos primeiros pensadores. Religião e filosofia coexistiram não apenas no mundo exterior, mas no mundo interior das reflexões dos filósofos pertencentes ao período demarcado. Os grandes pensadores pré-socráticos não tinham, cada um de per si, duas visões distintas do [...] 11 12 Cf. Nock, 1998, pg. 165; Gernet, 1932, pp.145-150; Vernant, 2006, p.63. Cf. Jaeger, La Teologia de los Primeros Filósofos Griegos, 1992, pp.10-12. 117 Conclusão As definições vistas no tópico anterior permitem esboçar algumas considerações referentes à via percorrida através do panorama religioso grego. Algumas das religiões de mistérios não reivindicam a totalidade da vida interior de seus adeptos, admitindo a aceitação de outros cultos e ritos por parte do praticante. A fé e a salvação envolvidas nos mistérios eleusinos e dionisíacos não requerem uma conversão do fiel, mesmo que pressuponham uma mudança de orientação durante os fenômenos estáticos nos quais o deus toma posse dos iniciados. Se tal constatação for aceita, a primeira tarefa estipulada em nossa investigação pode ser considerada concluída. Apurou-se, é certo, a presença de sinais de continuidade de crenças na imortalidade da alma que, manifestas no período micênico, perpassam o período homérico e alcançam o arcaico; todavia, mesmo que essas crenças encerrassem a semente de rituais que viriam a germinar nos Mistérios, não se pode atribuir a tais manifestações as origens do Orfismo. A característica nuclear do Orfismo, equivalente no Pitagorismo, é a busca gradativa da dissolução das afeições ao elemento terreno, através dos exercícios de ascese constantemente renovados. Tal marca não se encontra nos registros concernentes aos demais mistérios. A segunda proposta deste estudo refere-se a perquirir as razões subjetivas que levam à escolha de uma vida ascética. Ora, refazendo o percurso de forma sucinta, tem-se que a alma encontra-se encerrada em um corpo partícipe das formas materiais inferiores. Enquanto permanece atrelada à roda da transmigração, mantém-se, ainda, impura. O processo de purificação da alma, exigência que encontra convergência entre órficos e pitagóricos, tem por finalidade a emancipação de tais vínculos e o retorno da alma à sua origem divina. A razão para inscrever-se em tal processo decorre, em ambos os casos, de um vislumbre que provém seja de revelação seja de esforço dialético: a alma, apesar de seu afastamento do estado original de união com o divino, continua a manter, em si, a centelha espiritual que garante sua suscetibilidade às influências divinas, permitindo seu consequente retorno à unidade. No âmbito do Orfismo, essa certeza é expressa pela sentença “sou filho da terra e do céu estrelado, mas minha estirpe é divina”. No 118 Pitagorismo, as intuições acerca da organização do cosmos e das relações entre limitantes e ilimitados conduzem a tal convicção. Tanto um círculo quanto o outro, por vias diferenciadas, auferem a existência de um plano cósmico dual onde persistem entes sujeitos ao devir em oposição à realidade imutável. Assim, a ascese empreendida pelos adeptos, decorrente de ritos catárticos ou de esforço intelectivo, tem por única meta a passagem do plano de Léthe para o plano de Alétheia. Os órficos, para atingirem tal objetivo, entregam-se, irrestritamente, aos rituais catárticos e ao processo de conversão moral. Os pitagóricos encontram nas especulações intelectuais – mesmo que essas sejam decorrentes de estados que propiciam a revelação – a via ascética. O noûs é a chave que torna possível o processo de verdadeiro conhecimento – não apenas em terreno filosófico – e, como consequência, a purificação e a elevação da alma. Apesar de a alma ser induzida à ignorância e ao esquecimento pela matéria que a encerra, o noûs é incessantemente informado pela constante persuasão do princípio imutável que atua sobre o mesmo. Em outras palavras, o núcleo cognitivo, ao harmonizar-se com o Inteligível, cria o elo que permite ultrapassar as imposições trazidas pelas sensações. O Uno, partindo de si para a multiplicidade, mantém seu princípio limitante nessa realidade. O retorno ao Uno é possibilitado através da presença, na alma, de uma centelha de tal unidade. Esta centelha pode ser ativada através de súbita revelação, como acontecia nas epopteia dos cultos mistéricos; entretanto, seu verdadeiro despertar transcorre das seguidas revelações trazidas por aquelas intuições que, constantemente, impulsionam o ato intelectivo. Através da revelação, o Uno se manifesta no múltiplo; em movimento contrário, através da busca consciente da contemplação da verdade e do esforço ascético intelectual, a alma encerrada no múltiplo pode retornar ao Uno.