TRANSLATIO
Porto Alegre, n. 20, Dezembro de 2020
A PEREGRINAÇÃO DE JERÔNIMO E PAULA
Maria Cristina da Silva Martins 1
Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar a tradução comentada de uma das mais
antigas peregrinações aos Lugares Santos, realizada por Jerônimo e Paula, em 385. Essa
peregrinação está inserida na carta 108 (Ep.108), cuja temática é o elogio fúnebre à Paula.
Abordaremos o contexto das peregrinações iniciadas no século IV, bem como a
contextualização dessa carta, notadamente o envolvimento de São Jerônimo com as nobres
damas romanas do Círculo do Aventino.
Palavras-chave: Tradução, Antiguidade tardia, Peregrinação, São Jerônimo, Santa Paula.
Abstract: This article aims to present the commented translation of one of the oldest
pilgrimages to the Holy Places, made by Jerônimo and Paula, in 385. This pilgrimage is
inserted in letter 108 (Ep.108), whose theme is the eulogy of Paula. We will approach the
context of pilgrimages started in the 4th century, as well as the contextualization of this letter,
notably the involvement of Saint Jerome with the noble Roman ladies of the Aventine Circle.
Keywords: Translation, Late Antiquity, Pilgrimage, Saint Jerome, Saint Paula.
Introdução
Em 30 de setembro de 2020, através de uma carta apostólica, o papa Francisco
enalteceu a importância de São Jerônimo, por ocasião do décimo sexto centenário de sua
morte2. Não economizou elogios ao eminente doutor da Igreja, não só pelo amor a Cristo e
Professora e pesquisadora de latim do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Instituto de Letras –
UFRGS. Agradeço à Michelle Selister pela revisão cuidadosa do texto.
1
“Carta Apostólica Scripturae Sacrae Affectus do Santo Padre Francisco no XVI Centenário da morte de São
Jerônimo”, p.1. Antes de Francisco, outros papas já haviam exaltado a sua figura: Bento XV dedicou-lhe a carta
encíclica Spiritus Paraclitus, de 15 de setembro de 1920, apresentando-o ao mundo como doctor maximus
explanandis Scripturis “doutor eminente na interpretação das Escrituras”.Mais recentemente, Bento XVI exibiu
a personalidade desse santo e mostrou sua importância, em duas catequeses sucessivas: Deus qui beato
Hieronymo presbitero suauem et uiuum Scripturae Sacrae affectum tribuisti, da, ut populus tuus uerbo tuo
uberius alatur et in eo fontem uitae inveniet “Ó Deus, que concedeste ao beato presbítero Jerônimo um doce e
vivo afeto à Sagrada Escritura, faz que o teu povo se alimente cada vez mais com a tua palavra e encontre nela a
fonte da vida” (Oração Coleta da Missa de São Jerônimo, Missale Romanum, editio typica tertia (Cidade do
Vaticano, 2002, apud Carta Apostólica Scripturae Sacrae Affectus do Santo Padre Francisco no XVI Centenário
da
morte
de
São
Jerônimo”,
p.14.
Disponível
em
http://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_letters/documents/papa-francesco-letteraap_20200930_scripturae-sacrae-affectus.html. Acessado em 07/09/2020). Jerônimo foi canonizado pelo papa
Bonifácio VIII, em 20 de setembro de 1295 (Corpus iuris canonici, ed. E. Friedburg . Leipzig, 1879–81, vol. 2,
2
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pela Sagrada Escritura, mas também pelo profundo conhecimento que possuía, que se
ramificava “como um rio em muitos canais”. Jerônimo efetivamente produziu uma obra
imensa e variada3 – epistolografia, biografias, polêmicas, traduções e comentários –, e foi
indiscutivelmente um dos mais prolíficos e versáteis autores da Antiguidade Latina (CAIN,
2009).
A tradução da Bíblia a partir do hebraico, realizada entre 390 e 405, denominada
Vulgata, normalmente é tida como a obra mais importante de sua vida. Porém, as epístolas de
São Jerônimo são consideradas o que há de mais fino na Antiguidade Cristã, mesmo quando
comparadas com as de outros escritores da tradição epistolográfica latina, tanto cristã, quanto
não-cristã (TRAPP, 2003) e são “a parte mais pessoal e mais reveladora da obra literária de
São Jerônimo” (ARNS, 2007, p,89). Sem dúvida, as cartas de São Jerônimo nos permitem
conhecer o ambiente sócio-cultural, religioso e histórico da Antiguidade Tardia, mostrandonos sua própria visão de mundo e sua moralidade. Além disso, revelam-nos sua inteligência e
competência como filólogo, tradutor e exegeta, e profundo conhecedor dos temas bíblicos.
Tendo vivido num período muito conturbado da história do Império Romano, testemunhou as
grandes migrações de povos germânicos, bem como mudanças na sociedade e nos costumes,
e polemizou contra movimentos cismáticos e heréticos da Igreja. Jerônimo está situado em
um contexto de mudança de paradigma, em que a literatura cristã passou de um momento de
elaboração de sua terminologia teológica, como é perceptível no século IV, para uma fase em
que o cristianismo tornou-se uma realidade mais secularizada, na qual se diluiu a distinção
entre cristãos e não cristãos na sociedade.
Não se pode deixar de mencionar a construção pictórica de sua figura. Foi retratado no
Renascimento com uma imagem austera (magro e seminu), como sábio (velho entre livros),
p. 1059. Apud CAIN, Andrew. “Vox Clamantis in deserto”. In: Journal of Theological Studies, NS, vol. 57, Pt
2, Oct., 2006. Disponível em: http://jts.oxfordjournals.org. Acessado em 9 de agosto de 2016.
3
Jerônimo (347-420) nasceu em Estridão, local que ele próprio descreveu assim: In mea enim patria rusticitatis
uernacula deus uenter est, et sanctior est ille, qui ditior est. (Ep. 7,5)“De fato, na minha pátria natal, de
costumes rústicos, deus é o ventre, e é mais santo aquele que é mais rico”. Esta referência à terra natal apresenta
não só uma característica local, mas o contraste entre o que ele era e o que sua pátria produzia, devido à
presença gótica, como ele diz: Hieronymus patre Eusebio natus oppido Stridonis, quod a Gothis eversum (De
Viris Illustribus, 135) “Jerônimo, nascido de Eusébio, na cidade de Estridão, que foi varrida pelos godos”. Na
Apologia contra Rufino (III, 6. P. L., XXIII, c. 537, p. 483), sem falsa modéstia, Jerônimo se proclama filósofo,
mestre em retórica e dialética, gramático, e trilíngue (hebraico, grego e latim): Ego philosophus, rhetor,
grammaticus, dialecticus, Hebraeus, Graecus, Latinus, trilinguis. Disponível em: Hieronymus - Apologia
Adversus Libros Rufini [0347-0420] Full Text at Documenta Catholica Omnia. Acessado em 31/10/2020. Para
uma biografia e apresentação de sua vasta produção literária, editada em português, recomendamos, por
exemplo, Maraval (1998), e Moreno (1992); em inglês, Payne (1952), Kelly (1975), e, em francês, Cavallera
(1922), Henne (2009).
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como ciente da efemeridade da vida (um crânio), como modelo de cardeal (chapéu de cardeal
e tecidos vermelhos), acompanhado de trombetas (juízo final) e muitas vezes acompanhado
de um leão, fruto de uma lenda, na qual ele teria domesticado um leão selvagem, ao curá-lo
de seus ferimentos4. Por seus escritos, influenciou uma série de escritores humanistas no
Renascimento italiano do século XV5, mas não somente esses, notadamente também Erasmo
de Roterdão (Rice, 1988, p. 84-136)6 e, no que diz respeito à língua portuguesa, o Padre
Antônio Vieira7.
Este artigo tem como objetivo apresentar a tradução comentada de uma das mais
antigas peregrinações aos Lugares Santos, realizada por Jerônimo (347-420) e Paula (347404), em 385. Essa peregrinação está inserida na carta 1088 (Ep.108), cuja temática é o elogio
fúnebre à Paula9. Trata-se de uma das maiores cartas de Jerônimo, pleno de referências
bíblicas e de inferências a autores clássicos, como Homero e Virgílio, e à cultura e mitologias
greco-romanas. Percebe-se a vivacidade da narrativa, graças ao estilo retórico de Jerônimo,
embora a peregrinação contida na carta tenha sido realizada quase vinte anos antes da morte
de Paula, ocorrida em 404.
4
Nas artes, São Jerônimo foi muito retratado. Durante o Renascimento, a arte pictórica de Jan van Eyck,
Albrecht Dürer, Leonardo da Vinci, Bernardino Luini, Domenico Ghirlandaio, Tiziano, entre outros, mostram
Jerônimo como santo de duas maneiras: como um estudioso, sereno e amante dos livros, e como uma pessoa
atormentada, sofrida, pecadora. Para uma abordagem sobre a iconografia de São Jerônimo, vejam-se RICE
(1988), MORENO (1992) e WILLIAMS (2006), por exemplo. Para a história de Jerônimo associado ao leão,
vejam-se MARAVAL (1998) e RICE (1988).
5
The grounds of their admiration were as various as their own needs and purposes, as many-sided as patristic
litterature itself “Os motivos de sua admiração eram tão variados quanto suas próprias necessidades e
propósitos, tão multifacetados quanto a própria literatura patrística” (RICE, 1988, p.85).
6
As páginas correspondem ao intervalo dos capítulos 4 “Divus litterarum princeps” e 5 “Hieronymus redivivus:
Erasmus and St. Jerome”.
7
Um dos exemplos que podemos fornecer encontra-se no Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal
contra as de Holanda (1640), no qual usa da autoridade de Jerônimo para justificar o tom de protesto contra
Deus, que parecia não favorecer os católicos portugueses: “O Doutor Máximo São Jerônimo, e depois dele os
outros expositores, dizem que se entende à letra de qualquer reino ou província católica, destruída e assolada por
inimigos da Fé”. Aqui, o padre refere-se ao Salmo XLIII, 23, e a um canto gregoriano criado a partir dele. O
verso inicial do canto é citado no começo do sermão Exurge quare obdormis, Domine? “Desperta, por que
dormes, Senhor?”, e é similar a um trecho de São Jerônimo na epístola 108: Exsurge, ut quid dormis, Domine?
(Agradeço a Lucas Schons pela indicação desta referência).
8
Gostaríamos de poder apresentar aqui a tradução comentada integral da epístola 108, pela sua importância.
Contudo, ela excederia a dimensão de um artigo, pois apresenta 34 capítulos. Na edição publicada pela editora
Les Belles Lettres (Collection des Universités de France) o texto latino desta carta situa-se no intervalo entre as
páginas 159 e 201, ou seja, apresenta 42 páginas. Em breve, esperamos publicá-la em edição bilíngüe e
comentada. A carta 108 é uma das mais extensas de São Jerônimo e mostra que algumas delas são verdadeiros
livretos.
9
Jerônimo escreveu outros elogios fúnebres, notadamente os dedicados à Marcela (Ep. 127), à Blesila (Ep. 39) e
à Paulina (Ep. 66). Em algumas cartas ele se refere à perda de outras nobres senhoras: Léa (Ep.39) e Fabíola
(Ep. 77). A carta 151 (Ep.151), escrita no final de sua vida, em 418, menciona a morte de Eustóquia, filha de
Paula, nesse mesmo ano. Todas essas damas eram participantes do Círculo do Aventino, liderado por Marcela,
que apresentaremos adiante.
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Procuramos apresentar uma tradução equilibrada entre os dois eixos que se costuma
traduzir: nem tivemos a intenção de recriar outro texto, com base na interpretação do original,
tampouco, quisemos traduzir tão literalmente o texto latino a ponto de torná-lo
incompreensível em português. Porém, quando a escolha se fez necessária, seguimos os
passos de São Jerônimo e privilegiamos o conteúdo, antes da forma. Quanto às notas de
tradução, buscamos mais esclarecer o contexto histórico-cultural, geográfico e teológico do
que explicar questões filológico-linguísticas ou tradutórias.
Por fim, estabelecemos o texto latino conforme a edição crítica da Collection des
Universités de France – Les Belles Lettres.
A carta 108
Jerônimo afirma, no final da epístola 108, que a ditou em duas curtas vigílias, com a
mesma dor que Eustóquia, filha de Paula, sentia: (Ep. 108.32: Hunc tibi librum ad duas
lucubratiunculas eodem, quem tu sustines dolore, dictaui “Ditei este livro para ti em duas
curtas vigílias, com a mesma dor que tu carregas”), para consolá-la pela perda de sua mãe, tal
como descrito no começo da carta (Ep. 108.2: Eustochium uirginem, et deuotam Christo
filiam, in cuius consolationem libellus hic cuditur “(...) “em cuja consolação à virgem
Eustóquia, sua filha devota em Cristo, é escrito10 este livreto11”).
O Epitaphium Sanctae Paulae pode ser sintetizado tematicamente em quatro partes:
dos capítulos 1 a 6, Jerônimo descreve a origem nobre de Paula e justifica a sua decisão de
partir de Roma para a Terra Santa; dos capítulos 7 a 14, narra suas viagens como peregrina
em toda a Terra Santa e no Egito. Nesses capítulos, a narrativa é escrita em terceira pessoa,
na maior parte do tempo, mas é entremeada, de tempos em tempos, por uma primeira pessoa,
ele mesmo, que se mostra como guia e partícipe da peregrinação; dos capítulos 15 a 26
descreve a índole de Paula, sua alma bondosa e seu modo de vida genuinamente cristão e
Chamamos a atenção para o verbo usado para “escrever”: cuděre. Esse verbo, em latim clássico, significa
‘malhar’ ou ‘cunhar uma moeda’. Somente por derivação significa ‘escrever’, porque a forma da escrita da
época, em tábuas de cera ou de madeira, e até mesmo em pergaminho, era forjada ou cunhada, como se fosse
uma moeda.
11
Jerônimo refere-se à carta como librum (“livro”) e libellum (“livreto”). Além da carta 108, muitas outras são
consideradas “livros” (libri), mas aqui apontaremos principalmente as seguintes: Ep. Ad Eustoquium, 22, De
virginitate; Ep. Ad Paulam, 39, Super obitu Blaesillae filiae; Ep. Ad Pammachium, 6, De obitu Paulinae, pois
essas têm como assunto as filhas de Paula, Eustóquia (em defesa da virgindade), Blesila (elogio fúnebre) e
Paulina (elogio fúnebre) (ARNS, 2007, p. 93).
10
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ascético; finalmente, dos capítulos 27 a 34, relata a sua morte e tece algumas observações
finais sobre seu obituário.
Esse longuíssimo epitáfio tem sido estudado sob diferentes aspectos, assim como a
peregrinação que nele está contida. Lamprecht (2017, p. 1) resume as seguintes perspectivas
sobre as quais a obra tem sido examinada: como hagiografia, homenagem biográfica
elogiosa, elogio fúnebre, diário de viagem, livro de memórias, relato metafórico da vida de
Paula, peregrinação, e como peça de propaganda ascética, que serviria como uma base textual
para o culto de Paula como santa, mártir e asceta em Belém12.
Assumimos que é possível analisar essa carta (também ‘livro’ ou ‘livreto’) em todas
essas perspectivas. No entanto, não é possível considerá-la isoladamente. Toda a carta pode
ser vista como uma pedagogia da fé, uma vez que a peregrinação serve como um incentivo
para que os cristãos nela se aprofundem. Em todo o caso, a teologia da fé perpassa a obra de
Jerônimo mas, como um homem de contradições que era, nem sempre a peregrinação serviu
de incentivo para estimular a fé. As epístolas 58 e 125 mostram que ele não era exatamente
um promotor das peregrinações, porque, conforme ele, peregrinar como turista não possuía
nenhum valor. Nesse sentido, a peregrinação de Paula é um modelo, pois ela própria é a
representação em mais alto grau da santidade, e como diz Bader (2018, p.351) the benefits of
pilgrimage to the Holy Land were only available for those who lived a life as holy as she (“os
benefícios da peregrinação à Terra Santa estavam disponíveis apenas para aqueles que viviam
uma vida tão sagrada quanto a dela”).
Na Carta Apostólica (2020, p.4), foi destacada a contribuição de São Jerônimo ao
fundar dois mosteiros, colaborando assim com as peregrinações:
“ A importância dada aos Lugares Santos é evidenciada não só pela escolha de morar
na Palestina, de 386 até à morte, mas também pelo serviço a favor das peregrinações.
Precisamente em Belém, lugar privilegiado para ele, junto da gruta da Natividade
funda dois mosteiros «gémeos», masculino e feminino, com hospedarias para o
acolhimento dos peregrinos que vinham ad loca sancta, revelando a sua generosidade
em hospedar as pessoas que chegavam àquela terra para ver e tocar os lugares da
história da salvação, unindo assim a investigação cultural com a espiritual”.
Em várias obras Cain tem defendido que Jerônimo, através de suas cartas, pretendia
ser visto como uma autoridade intelectual e espiritual e, dessa forma, tornar-se imortal
12
No original: Scholars have referred to this letter as a lengthy epitaphium with hagiographic features, a
eulogistic tribute, a biographical eulogy of Paula, a laudatio funebris, a travelogue, a memoir, a metaphorical
account of Paula’s pilgrimage through life, a piece of ascetic propaganda and a textual basis for a Bethlehemcentred Cult of Paula the ascetic martyr-saint (LAMPRECHT, 2017, p.1).
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(CAIN, 2009, p.197). Sobre a epístola 108, especificamente, diz que Paula, sob as lentes de
Jerônimo, torna-se a personificação feminina da ideologia do ascetismo, defendida e
experimentada por ele. Ao mesmo tempo, segundo ele, Jerônimo incorpora-se na narrativa,
como o seu guia espiritual para o ascetismo (CAIN, 2010, p.137). Outro argumento do autor
é que Jerônimo usou uma de suas duas coleções de cartas conhecidas (Epistularum ad
diversos liber) para se apresentar a potenciais patronos cristãos em Roma como um homem
santo ocidental de estilo oriental e, portanto, como um excepcional aspirante a diretor
espiritual (CAIN, 2006).
O Círculo do Aventino, Marcela e Paula
Jerônimo, além de ter desenvolvido uma enorme obra literária, foi um grande viajante.
Desde que saiu de sua cidade natal – Estridão13 – para estudar em Roma, aos doze anos de
idade, viveu em diversos lugares – Roma, Trier, Aquileia, Antioquia (onde foi ordenado
padre), Constantinopla e Belém–, e também passou por muitos outros em viagem, sendo os
mais importantes os territórios da Cilícia, Capadócia, Egito, Grécia e a ilha de Chipre14.
Depois de viver em Trier, no deserto de Cálcis (onde experimentou o ascetismo), Aquileia e
Constantinopla, em 382, voltou a Roma, com os bispos Paulino de Antioquia e Epifânio de
Salamina, por causa da situação crítica da Igreja (Ep. 127,7)15. De 382 a 385 estabeleceu-se
em Roma, onde uma de suas funções foi trabalhar nos escritórios do papa “respondendo às
consultas sinodais do Oriente e do Ocidente” (Ep. 123,9)16. Jerônimo não ficou muito tempo
nessa função burocrática, pois tendo demonstrado ao papa Dâmaso um estilo primoroso em
latim, conhecimento de grego e de hebraico, além do domínio das Escrituras, recebeu um
pedido do supremo pontífice para que fizesse uma nova tradução da Bíblia para o latim. A
competência bíblica, aliada à sua paixão pela vida ascética, Jerônimo colocou a serviço de um
público não menos apaixonado: o das damas aristocráticas romanas (MARAVAL, 1998, p.
41-48).
13
De Viris Illustribus, 135: Hieronymus, patre Eusebio natus, oppido Stridonis, quod, a Gothis euersum,
quondam Dalmatiae Pannoniaeque confinium fuit “Jerônimo, filho de Eusébio, da cidade de Estridão, que fora
destruída pelos godos, outrora ficava na fronteira da Dalmácia e da Panonia”.
14
Para um estudo aprofundado sobre as viagens de São Jerônimo, sua vida e carreira, veja-se BERNARD
(1864). Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k73209s?rk=21459;2. Acessado em 22/10/2020.
15
Denique cum et me Romam cum sanctis Pontificibus Paulino et Epiphanio ecclesiastica traxissetnecessitas
(Ep. 127,7). “Depois, a situação crítica da Igreja me trouxe a Roma com os santos pontífices Paulino e
Epifânio”.
16
Ep. 123,9: (...) Ante annos plurimos, cum in chartis Ecclesiasticis iuuarem Damasum Romanae urbis
Episcopum, et Orientis atque Occidentis synodicis consultationibus responderem (...). “Durante muitos anos, a
ajudar Dâmaso, pontífice da cidade romana, a responder às cartas eclesiásticas em consultas de sínodos do
Oriente e do Ocidente”.
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Assim, além de ter desempenhado um papel de destaque junto ao papa Dâmaso, de
quem foi amigo, conselheiro, secretário particular, comentador e esclarecedor de temas
bíblicos17, teve uma função não menos importante como guia espiritual e instrutor de algumas
damas da aristocracia romana, no chamado “Círculo do Aventino”, onde foi introduzido pelo
próprio papa (HENNE, 2009, p.92).
Marcela, “de família ilustre, descendente de cônsules e prefeitos do pretório” (Ep.
127, 1), logo após sua viuvez, aos sete meses de casamento (Ep. 127, 2), fundou uma espécie
de convento em sua casa, junto com sua mãe Albina. Dedicava-se a obras de caridade e ao
estudo da Bíblia, com grande interesse em lê-la no original hebraico e no grego da
Septuaginta. Nesse círculo de estudos, participavam algumas nobres damas romanas,
solteiras ou viúvas: Léa, Fúria, Fabíola, Asela e, sobretudo, Paula e suas duas filhas, Blesila e
Eustóquia. Todas compartilhavam o interesse pelo aprofundamento nos estudos bíblicos e
eram apaixonadas pelo ascetismo religioso. Essas damas tornar-se-ão destinatárias das cartas
de São Jerônimo, sendo Paula e Eustóquia as mulheres às quais foram dedicadas mais cartas,
pois a elas escrevia quase diariamente18. Alguns contemporâneos de Jerônimo zombaram
dele, por discutir religião com mulheres e lhes dedicar muitos de seus trabalhos (RICE, 1988,
p.97). Sobre isso escreve Jerônimo, no início da epístola 65,1 19, dedicada à Princípia, antes
de explicar o Salmo XLIV, objeto da carta. Disse ele, que se os homens perguntassem sobre
as Sagradas Escrituras, ele não falaria com as mulheres. Em seguida, justifica a importância
das mulheres no Antigo e no Novo Testamento, citando o papel que tiveram Débora, Olda,
Maria Madalena, Rebeca, Ruth, entre outras. Nessa perspectiva, é possível interpretar São
Jerônimo como um feminista, como alguém escolheu como apóstolos as mulheres
(NAVERY, 1866; TURCAN, 1968).
Jerônimo escreveu dezenove cartas à Marcela, embora três dentre essas não estejam
em seu nome, ou não sejam exclusivamente destinadas a ela (Ep. 46, Ep 59 e Ep 97). As
outras dezesseis cartas, ele mesmo as reuniu num livro, cujo nome é Ad Marcelam
17
A correspondência trocada entre Jerônimo e o papa é a seguinte: as Ep.15, Ep. 16, Ep.18 (A e B), Ep. 20, Ep.
21 e Ep. 36 são de Jerônimo ao papa; as Ep. 19 e Ep.35, do papa a Jerônimo.
18
Cf. De Viris Illustribus, 135: Epistolarum autem ad Paulam et Eustochium, quia quotidie scribuntur, incertus
est numerus “O número de cartas escritas a Paula e Eustóquia é incerto, pois são escritas cotidianamente”.
19
Ep. 65,1: Scio me, Principia, in Christo filia, a plerisque reprehendi quod interdum scribam ad mulieres, et
fragioliorem sexum maribus praeferam. Et idcirco debeo primum obtrectatoribus meis respondere, et sic uenire
ad disputatiunculam quam rogasti. Si uiri de scripturis quaererent, mulieribus non loquerer. “Eu sei, Princípia,
filha em Cristo, que sou repreendido por muitos porque, algumas vezes, escreveria às mulheres, e que preferiria
o sexo frágil aos homens. Por isso, devo primeiro responder aos meus detratores, e na sequência vir a esta
questãozinha que perguntaste. Se os homens quisessem saber sobre as Escrituras, não falaria com as mulheres.”
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Epistularum Liber, citado no último capítulo (135) do De uiris illustribus, consagrado à sua
bibliografia. O tema dessas dezesseis cartas é basicamente formado de perguntas pontuais de
Marcela sobre a interpretação da Bíblia. Por exemplo, na Ep. 25, Jerônimo explica o
significado dos dez nomes pelos quais os hebreus designam Deus; na Ep. 26, expõe o
significado dos nomes hebraicos que não foram traduzidos em latim, mas somente
reproduzidos nas Escrituras, como alleluia, amen, maran atha e ephod 20. Para suas respostas,
Jerônimo se apóia na tradução grega de Áquila.
A partir dos ensinamentos que pôde ter com São Jerônimo, aliados à sua própria
inteligência, competência e dedicação aos estudos, Marcela tornou-se professora de seu
próprio círculo (Ep.65,2). Temos testemunho de conselhos dados por Jerônimo sobre o que
ela deveria ensinar às noviças (Ep.37, 4), assim como de que dominava muito bem as
Escrituras (Ep.41,4). Por fim, tal era a confiança que depositava Jerônimo em Marcela, que
ela, assim como Pamáquio – primeiro senador cristão de Roma, esposo de uma das filhas de
Paula – Paulina –, foram os depositários dos escritos de São Jerônimo (Ep. 30,14).
Paula (347-404), de família aristocrata, descendente dos Gracos e dos Cipiões, por
parte de sua mãe, Blesila, e de Agamenon por parte de seu pai, Rogato, conforme relata
Jerônimo (Ep.108,3), ficou viúva aos trinta e dois anos, com quatro filhas e um filho 21. A
partir daí entregou-se ao ascetismo, renunciando ao luxo e transformando sua casa num
verdadeiro mosteiro, onde todos levavam uma vida de oração e de estudo da Bíblia, e
praticavam obras de caridade (HENNE, 2009, p. 93). Participava do Círculo do Aventino e,
tal como Marcela, solicitava a Jerônimo muitos esclarecimentos a respeito da Bíblia,
principalmente sobre o sentido místico dos textos sagrados. Perguntou-lhe, por exemplo,
sobre o sentido simbólico das letras hebraicas presentes no Salmo 118. A resposta de
Jerônimo foi dada na epístola 30, com muitos detalhes, na qual Jerônimo também elogia o
interesse de Paula pelos estudos filológicos. São Jerônimo havia se tornado, pouco a pouco,
um perito ou erudito em assuntos bíblicos e, nesse particular, influenciou Paula e suas
companheiras.
Quase tudo o que sabemos sobre Paula provém das cartas de Jerônimo que foram
endereçadas a ela ou que falaram sobre ela.
20
Ver Furlan, M. (2019) para uma tradução desta pequena carta em edição bilíngue, latim-português.
Toxócio foi o último filho, porque finalmente ela tinha dado à luz a um menino, desejado pelo seu marido
(Ep. 108, 4).
21
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As peregrinações do século IV aos Lugares Santos
A liberdade de culto para o cristianismo, advinda do Édito de Galério, de 311, e
confirmada em Milão, em 313, por Constantino e Licínio, é uma das razões que explicam o
surgimento e o desenvolvimento rápido das peregrinações aos Lugares Santos.
A expressão "Lugares Santos" deve-se a Eusébio de Cesareia, que, no século IV,
cunhou o termo paradesignar os lugares em que se relatam os acontecimentos do Novo e do
Antigo Testamento, onde se conservam os restos mortais de mártires cristãos. Nesses locais
foram edificados santuários para receber relíquias de mártires, os quais, em seguida,
passaram também a servir de habitação para monges e, posteriormente, também abrigaram
seus túmulos (MARTINS, 2014). A obra Onomasticon, de Eusébio de Cesareia, apesar de
não ser nem um diário de viagem, nem uma obra explicitamente composta para os que
pretendiam visitar os lugares santos, serviu de guia a esses últimos. Foi traduzida para o latim
duas vezes, uma delas por São Jerônimo, em 390, sob o título De situ et nominibus locorum
Hebraicorum. Trata-se de um catálogo alfabético dos topônimos bíblicos o qual, segundo as
circunstâncias histórico-geográficas descritas, provavelmente deve ser situado entre 320-325
(MARAVAL, 2004, p.14).
Cronologicamente, os primeiros relatos de peregrinos aos Lugares Santos são os
seguintes: 1) o Itinerarium Burdigalense – O Peregrino de Bordéus (fr. Bordeaux). Trata-se
de uma obra de especial importância, pois foi considerada o guia para as viagens de Bordéus
a Jerusalém. O autor menciona a data exata de sua partida e de seu retorno: ele parte a
Jerusalém em 30 de maio de 333 e retorna em 25 ou 26 de outubro do mesmo ano
(MARAVAL, 2002, p.11); 2) uma carta de Atanásio, bispo de Alexandria (328-373), datada
de cerca de 350,
escrita em siríaco, e endereçada a virgens que haviam feito uma
peregrinação de Belém a Jerusalém (MARAVAL, 2002, p.43); 3) uma carta de Gregório de
Nissa (330-395), Padre da Igreja, escrita em 381, quando foi enviado à província da Arábia, à
leste do Jordão, para tentar resolver problemas que dividiam uma Igreja local; 4) A
Peregrinação de Egéria, uma emocionante narrativa da peregrinação aos Lugares Santos
realizada por uma mulher, de 381 a 384, escrita quase como um diário de viagem, cuja
motivação religiosa é bastante clara22; 5) A peregrinação de Jerônimo e Paula, contida na
epístola 108, objeto deste artigo.
22
Veja-se a edição crítica de MARTINS (2017).
206
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A peregrinação de Jerônimo e Paula
Com a morte do Papa Dâmaso, em dezembro de 384, um grande número de clérigos
romanos criou dificuldades para Jerônimo, inclusive suspeitando e invejando a amizade que
mantinha com a alta dama23. Jerônimo foi forçado, em agosto de 385, a deixar a cidade de
Roma e a voltar a Antioquia, onde estava vinculado ao bispo Paulino. Paula foi ao seu
encontro, após alguns dias e, no final de 385, de lá partiram a Jerusalém e empreenderam a
visita a todos os Lugares Santos da Palestina e do Egito. Na volta, estabeleceram-se em
Belém, onde passariam o resto de suas vidas, no comando de mosteiros (um masculino,
liderado por Jerônimo, outro feminino, por Paula) que tinham fundado com os recursos
patrimoniais de Paula.
As personagens da peregrinação são Paula, Eustóquia, sua filha, uma dama de
companhia das duas mulheres, e Jerônimo, que as acompanha como diretor espiritual. A carta
apresenta aspectos concretos, pelos quais podemos retraçar o itinerário que eles executam,
descendo de Antioquia a Jerusalém, passando por Cesareia, Lida e Emaús. Visitam
Jerusalém, depois Belém e os lugares ao sul desta cidade, chegando até Hebron. Daí,
voltaram a Jerusalém, de onde o grupo partiu em direção a Jericó e os lugares próximos do
rio Jordão, subindo novamente a Samaria e à Galileia. Eles foram, enfim, ao Egito e voltaram
a Belém. Tudo aconteceu em poucos meses, e o retorno à Palestina foi apressado por causa
do grande calor do verão de 386 (cf. MARAVAL, 2002, p.144).
Rigorosamente, a peregrinação compreende o intervalo dos capítulos 7 a 14 da
epístola 108. Decidimos, entretanto, apresentar igualmente os capítulos 6 e 15, a fim de
permitir uma melhor percepção ao leitor do encadeamento da peregrinação na carta. O
capítulo 6, além de outros assuntos, apresenta o desejo de Paula de partir de Roma. Já o
capítulo 15 resume as qualidades morais e cristãs de Paula, que a caracterizam como um
modelo de vida ascética e, consequentemente, como um peregrino ideal. Além disso, nesse
capítulo Jerônimo aproveita para deixar clara a retidão de conduta de Paula que “nunca esteve
com um homem após a morte do marido”, e que ele se preocupava com o fato de que o seu
patrimônio familiar estava se desfazendo: “eu desejava ser mais cauteloso sobre a situação do
patrimônio familiar, mas ela, com sua fé mais ardente, se apegava com toda sua alma ao
23
Lê-se na Ep. 45,2, escrita um pouco antes de sua partida, a defesa que ele próprio fez contra essas calúnias.
Jerônimo foi absolvido pelo tribunal eclesiástico diante do qual fora convocado a depor em julho de 385.
Mesmo tendo sido reconhecida a pureza de suas relações com Paula e, em geral, os seus costumes, Jerônimo foi
intimado a deixar a cidade e a voltar para a sua diocese de origem (MARAVAL, 1998).
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Salvador”. Assim como Cain (2009, p. 132) interpretamos que Jerônimo estivesse tentando
desfazer possíveis suspeitas sobre sua relação com Paula, tanto no plano amoroso quanto
material.
Epístola 108 (Capítulos 6-15)
6. Nec diu potuit excelsi apud saeculum
generis et nobilissimae familiae uisitationes et
frequentiam sustinere. Maerebat honore suo,
et ora laudantium declinare ac fugere
festinabat. Cumque Orientis et Occidentis
episcopos
ob
quasdam
ecclesiarum
dissensiones Romam imperiales litterae
contraxissent,
uidit
admirabiles
uiros,
Christique pontifices, Paulinum Antiochenae
urbis episcopum, Epiphanium Salaminae
Cypri, quae nunc Constantia dicitur; quorum
Epiphanium etiam hospitem habuit, Paulinum
in aliena manentem domu, quasi proprium,
humanitate possedit. Quorum accensa
uirtutibus, per momenta patriam deserere
cogitabat. Non domus, non liberorum, non
familiae, non possessionum, non alicuius rei
quae ad saeculum pertinet, memor, sola (si
dici potest) et incomitata, ad heremum
Antoniorum atque Paulorum pergere gestiebat.
Tandemque exacta hieme, aperto mari,
redeuntibus ad ecclesias suas episcopis, ipsa
uoto cum eis et desiderio nauigabat. Quid ultra
differo? Descendit ad portum, fratre, cognatis,
affinibus, et (quod his maius est), liberis
prosequentibus. Iam carbasa tendebantur, et
remorum ductu nauis in altum protrahebatur.
Paruus Toxotius supplices manus tendebat in
litore. Rufina iam nubilis, ut suas expectaret
nuptias, tacens fletibus obsecrabat. Et tamen
siccos oculos tendebat ad caelum, pietatem in
filios pietate in Deum superans. Nesciebat
matrem, ut Christi probaret ancillam.
6. Não pôde suportar por muito tempo as
frequentes visitas à família nobilíssima, que
eram costume pela sua origem elevada.
Lamentava-se pela sua honra, e apressava-se
para fugir e esquivar-se das bocas daqueles
que a elogiavam. E quando cartas imperiais
convocavam para Roma os bispos do
Oriente e do Ocidente, a fim de resolver
certas divergências entre as igrejas24, ela
encontrava os admiráveis homens e
pontífices de Cristo: Paulino, bispo da
cidade de Antioquia, e Epifânio, bispo de
Salamina de Chipre, que agora se diz
Constância. Teve como hóspede Epifânio, e
ocupou-se com bondade de Paulino, que
ficou na casa de outra pessoa, quase como
se fosse seu próprio hóspede. Inflamada
pelas virtudes dele, por vários momentos ela
cogitava abandonar sua pátria25. Ela não se
apegava à casa, aos filhos, à família, às
posses, ou à qualquer coisa que pertencesse
ao mundo, unicamente (se pode dizer-se) e
desacompanhada desejava ardentemente
encaminhar-se para o deserto dos eremitas
de Antão e de Paulo <de Tebas>. Quando,
enfim, acabado o inverno e estando aberto o
mar à navegação, voltaram os bispos a suas
igrejas; ela própria navegava com eles pelo
seu desejo e aspiração. O que devo eu
prolongar mais? Desceu ao cais do porto,
com seu irmão, seus parentes de sangue e
aparentados, e (o que é mais importante),
com seus filhos que a acompanhavam. Já
Essa reunião aconteceu em 382 por iniciativa de Graciano, para tentar resolver a cisma de Antioquia, na qual
o bispo Paulino, ordenado irregularmente, mas reconhecido por Roma, se opunha ao bispo Flaviano,
reconhecido pela maioria do episcopado oriental (MARAVAL, 2002, p.145).
25
Jerônimo quer dar a impressão de que a decisão de Paula tinha sido tomada sob influência dos bispos do
Oriente, e não sob a sua, para não dar motivo a mais difamações a seu respeito em Roma. As acusações que
sofreu por sua participação no “Círculo do Aventino” e pelo sucesso dos seus ensinamentos sobre o ascetismo
foram referidas na Ep. 45,2.
24
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Torquebantur uiscera, et quasi a suis membris
distraheretur, cum dolore pugnabat: in eo
cunctis admirabilior, quod magnam uinceret
caritatem. Inter hostium manus et captiuitatis
duram necessitatem nihil crudelius est, quam
parentes a liberis separari. Hoc contra iura
naturae plena fides patiebatur, immo gaudens
animus adpetebat, et amorem filiorum maiore
in Deum amore contemnens, in sola
Eustochio, quae et propositi et nauigationis
eius comes erat, adquiescebat. Sulcabat
interim nauis mare, et cunctis qui cum ea
uehebantur litora respicientibus, illa auersos
tenebat oculos, ne uideret quos sine tormento
uidere non poterat. Fateor, nulla sic amauit
filios, quibus antequam proficisceretur, cuncta
largita est, exheredans se in terra, ut
hereditatem inueniret in caelo.
7.Delata ad insulam Pontias, quam clarissimae
memoriae quondam feminarum sub Domitiano
principe pro confessione nominis christiani
Flauiae Domitillae nobilitauit exilium,
uidensque cellulas in quibus illa longum
martyrium
duxerat,
sumptis
alis,
Hierosolymam, sancta loca uidere cupiebat.
Tardi ei erant uenti, omnis pigra velocitas.
Inter Scyllam et Charybdim Adriatico se
credens pelago, quasi per stagnum uenit
Methonen, ibique refocilato paululum
quando as velas eram içadas e o navio era
lançado para o alto mar conduzido pelos
remadores, o pequeno Toxócio estendia suas
mãos suplicantes no porto. Rufina, já noiva,
suplicava, segurando o choro, que esperasse
suas núpcias. Contudo, ela voltava seus
olhos sedentos ao céu, numa piedade a Deus
que supera a piedade em favor dos filhos.
Não se reconhecia como mãe, pois se via
como serva de Cristo. Lutava contra sua dor,
torturando as entranhas, como se lhe
arrancassem os membros: nisso, era mais
admirável que todos os outros juntos,
porque estava conquistando o grande amor
de Cristo. Entre as mãos dos inimigos e a
dura necessidade do cativeiro, não há nada
mais cruel do que os pais serem separados
dos filhos. A fé suportava isso contra os
plenos direitos na natureza, ou melhor, sua
alma desejava isso, julgando mais
importante o amor a Deus do que o amor
aos filhos; somente com Eustóquia, que era
sua companheira de vocação e de viagem,
encontrava consolação. Nesse ínterim, o
navio sulcava o mar, enquanto todos que
estavam sendo transportados olhavam para o
porto, ela desviava os olhos porque não
podia sem tormento ver aqueles que deixara.
Confesso que ninguém amou assim os
filhos, porque antes que os deixasse,
concedeu todas suas posses, deserdando-se
na terra para encontrar uma herança no céu.
7. Foi levada para a ilha de Ponza, que
outrora se tornou conhecida pelo exílio de
Flávia Domitila, uma das mulheres de
história famosíssima, sob o imperador
Domiciano, pela confissão do nome de
cristão: vendo as celas nas quais ela
carregou um longo martírio, tendo assumido
as asas <da fé>, desejava ver Jerusalém e os
lugares santos. Os ventos eram lentos para
ela, a velocidade era toda morosa.
Acreditando que ela própria estava no mar
Adriático, entre Cila e Caríbdis26, quase
26
Cila (Skylla, gr. Σκύλλα,) e Caríbdis (Kharybdis, gr. Χάρυβδις) são duas figuras pertencentes ao universo da
mitologia grega. Ambos são monstros imortais que habitam as águas do estreito de Messina, local descrito pelo
herói Odisseu (Ulisses) em suas viagens (Odisseia, livro XII, 85 e segs). Cila tinha seis cabeças, cada uma com
uma tripla fileira de dentes, e doze pés. Além de aparecer na Odisseia, livro XII, 85 e seg, como imortal e
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corpusculo, “Et sale tabentis artus in litore
ponens”, per Maleam, et Cytheram,
“sparsasque per aequor Cycladas, et crebris...
freta concita terris”, post Rhodum et Lyciam,
tandem uidit Cyprum, ubi sancti et uenerabilis
Epiphanii genibus prouoluta, decem ab eo
diebus retenta est; non in refectionem, ut ille
arbitrabatur, sed in opus Dei, ut rebus
probatum est. Nam omnia illius regionis
lustrans monasteria, prout habere poterat,
refrigeria sumptuum fratribus dereliquit, quos
amor sancti uiri de toto illuc orbe conduxerat.
Inde breui cursu transfretauit Seleuciam, de
qua
ascendens
Antiochiam,
sancti
confessorisque Paulini modicum caritate
detenta, media hieme, calente ardore fidei,
femina nobilis, quae prius eunuchorum
manibus portabatur, asello sedens profecta est.
8. Omitto Syriae Coeles et Phoenicis iter
como se fosse por uma água estagnada
chega a Modon, e aí, restabeleceu um pouco
de seu pequenino corpo, “pondo os seus
membros na água salgada da praia”, passou
pelo Cabo Maleia e Citera, e “pelas
dispersas superfícies planas de Cíclades, e
pelos espessos estreitos efervescentes de
terras”. Depois passou por Rodes e Lícia,
então viu o Chipre, onde caída aos joelhos
do santo e venerável Epifânio, retida por ele
durante dez dias; não para se refazer, como
ele julgava, mas para uma obra de Deus,
como provou-se pelas práticas. Com efeito,
percorrendo todos os monastérios daquela
região, deixou recursos, conforme podia
dispor, aos irmãos vindos de todo mundo,
que o amor do santo homem conduzira até
aquele local. Daí, numa breve viagem por
mar atravessou até Selêucia Piéria27, de
onde subiu para Antioquia, depois de ter
estado brevemente retida por afeição ao
Santo confessor Paulino, no meio do
inverno, aquecida pelo calor da fé, a nobre
mulher que antes era levada pelas mãos dos
eunucos, partiu sentada em um burrinho.
8. Deixo de mencionar a sua viagem à
Celessíria28 e à Fenícia29 (pois decidi não
irresistível, também é citada em Virg. Ecl. 6,75, e em passagens das Metamorfoses de Ovídio (Met. 13, 730 e
segs.; Met. 14, 73). Em Ovídio, encontra-se um pouco sobre sua origem e história (tratava-se de uma mulher,
transformada em monstro por Circe) (HAMMOND; SCULLARD 1972, s.v. “Scylla”, p.968). Caríbdis, por sua
vez, vivia embaixo de uma figueira às margens de uma ilha próxima de Cila. Bebia água desse lugar e revoltava
essa mesma água três vezes por dia, tornando-a mortal para a navegação. Proverbialmente, em Hor. Carm. I, 27,
19, significa um sério perigo. Caríbdis era a personificação de um redemoinho, e o navio de Odisseu por pouco
escapou de suas garras (Od. 12, 432). (HAMMOND; SCULLARD, 1972, s.v. “Charybdis”, p. 228). Ambos,
Cila e Caríbdis, inspiraram a criação da expressão “entre Cila e Caríbdis”, que significa a necessidade de se
escolher entre duas alternativas ruins.
27
Selêucia (Seleucia ou Seleuceia, -ae): gr. Σελεύκεια. No Império Romano, havia várias cidades com esse
nome (MARTINS, 2017, p. 262), mas São Jerônimo refere-se à que foi construída aos pés das montanhas Piéria
por Seleuco I, rei da Síria, por volta de 300 a.C. A cidade consolidou-se como o principal porto de mar da
Antioquia, e era situada próxima da atual cidade turca de Samandağ. Durante as Guerras Sírias, a cidade
adquiriu grande importância estratégica por ser chave para o controle da Síria.
28
A Celessíria (Coelesyria, -ae, simp. Coele, -es ou Syria Coele): no final do séc. II, a província da Síria (gr.
Συρία), que tinha Antioquia como capital e correspondia aos atuais sul da Turquia e norte da Síria, foi dividida
em Syria Magna e Syria Coele (gr. Κοίλη ‘oca’, ‘vazia’), cujo nome, segundo Estrabão (Geografia, XVI, 2, 21,
apud SMITH, 1854, s.v. de 341), da Celessíria se separou a província Augusta Euphratensis (também chamada
Augustophratensis, numa provável forma coloquial, ou simplesmente Euphratensis), que abrangia Comagena,
um antigo e importante distrito da Síria, na porção de terra que costeava o Eufrates a oeste, cuja capital
primeiramente foi Samósata e depois, sob Constantino, passou a ser Hierápolis (MARTINS, 2017, p. 241).
29
Fenícia (Phoenicia, -ae): gr. Φοινίκη. Província romana localizada na região do atual Líbano, cujas cidades
principais eram Tiro, Sidon e Berito (moderna Beirute). Seus habitantes, os fenícios, foram notáveis mercadores,
navegadores e colonizadores do Mediterrâneo durante o primeiro milênio a.C., tendo fundado, entre outras, a
210
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(neque enim odoeporicon eius disposui
scribere); ea tantum loca nominabo, quae
sacris uoluminibus continentur. Beryto,
Romana colonia, et antiqua urbe Sidone
derelicta, in Sareptae litore Heliae est ingressa
turriculam, in qua adorato Domino Saluatore,
per harenas Tyri, in quibus genua Paulus
fixerat, peruenit Accho, quae nunc Ptolomais
dicitur, et per campos Mageddo, Iosiae necis
conscios, intrauit terram Phylisthiim. Mirata
ruinas Dor, urbis quondam potentissimae, et
uersa uice, Stratonis turrem ab Herode rege
Iudaeae in honorem Caesaris Augusti
Caesaream nuncupatam, in qua Cornelii
domum, Christi uidit ecclesiam; et Philippi
aediculas, et cubiculum quattuor uirginum
prophetarum. Dein Antipatrida, semirutum
oppidulum, quod patris ex nomine Herodes
uocauerat; et Lyddam uersam in Diospolim,
Dorcadis, atque Aeneae resurrectione ac
sanitate inclitam. Haut procul ab ea
Arimathiam uiculum Ioseph, qui Dominum
sepeliuit; et Nob urbem quondam sacerdotum,
nunc tumulos occisorum. Ioppen quoque
fugientis portum Ionae; et (ut aliquid
perstringam de fabulis poetarum) religatae ad
saxum
Andromedae
spectatricem.
Repetitoque itinere, Nicopolim, quae prius
Emmaus uocabatur, apud quam in fractione
escrever todas suas viagens); mencionarei
tão somente os lugares que estão contidos
nos livros sagrados. Abandonando Bérito,
colônia romana, e a antiga cidade de Sídon,
entrou na pequena torre de Elias, no litoral
de Sarepta, no qual adorou o Senhor
Salvador, através das areias de Tiro30, nas
quais tinha orado Paulo de joelhos, chegou a
Acre, que agora se chama Ptolomais. Pelos
campos de Megido31, que testemunharam a
morte de Josias, entrou no país dos filisteus.
Admirou-se com as ruínas de Dor, cidade
outrora poderosíssima, certa vez a torre de
Straton, denominada pelo rei Heródes da
Judeia, em honra de César Augusto,
Cesareia32. Nessa cidade, viu a casa de
Cornélio, igreja de Cristo, viu igualmente a
casinha de Felipe e o quarto das quatro
virgens
profetizas.
Depois
visitou
Antipátrida, cidade parcialmente em ruínas,
a qual Heródes havia denominado pelo
nome de seu pai; e foi a Lida, cujo nome foi
trocado para Dióspolis, ilustre pela cura de
Enéias e pela ressurreição de Dorcas.
Visitou Nobe, outrora cidade sacerdotal,
agora túmulo dos que foram mortos, não
longe do povoado de José de Arimateia, o
qual sepultou o Senhor. Igualmente, visitou
Jafa33, o porto de Jonas, o fugitivo; e (para
cidade de Cartago. O alfabeto usado pelos fenícios causou um grande impacto na história da escrita, pois deu
origem a outros importantes sistemas de escrita, como o alfabeto aramaico (do qual provêm principalmente os
alfabetos hebraico, árabe e siríaco) e o grego (que deu origem aos alfabetos latino e cirílico, entre outros)
(MARTINS, 2017, p. 247). No Antigo Testamento era conhecida como Tiro e Sidônia; pertencia à Terra
Prometida, mas jamais foi anexada (Js 13, 4-6). Jesus visitou a região (Mt 15,21) e São Paulo a atravessou (At
15,3, cf. BÍBLIA SAGRADA. Op., cit., p. 1523).
30
Famosa cidade marítima da Fenícia situada numa ilha. Seus navegadores e navios controlavam o comércio e a
navegação no Mediterrâneo (Is 23; Ez 26-28; Mt 11,19-22; 14,37-42, cf. BÍBLIA SAGRADA. Op., cit., p.
1538).
31
Megido, em Israel, é um importante lugar quando falamos em acontecimentos bíblicos. Lá, o faraó Neco
matou o rei Josias, que depois foi transportado e sepultado em Jerusalém. Estudiosos concluem que Megido é o
lugar onde a profecia do livro de Apocalipse terá seu ponto culminante não por acaso, o nome da localidade,
traduzido para o latim é Armageddom. Escavações mostram que mais de 20 cidades diferentes foram erguidas
no mesmo local, uma sobre a outra, por povos diferentes ao longo dos séculos. Hoje, é um dos mais importantes
sítios arqueológicos do mundo.
32
Este é o local onde Pedro batizou o centurião romano Cornélio, o primeiro gentio a se converter ao
cristianismo (At 10). Foi, também, ponto de partida para pregação de Paulo em comunidades de todo o
Mediterrâneo, e onde mais tarde foi preso por dois anos e fez o seu poderoso discurso perante Félix, Festo e o
Rei Agripa (At 12,25-26).
33 Jafa, ou Jope, é um antigo porto na costa mediterrânea da Palestina (Jn 1,3). São Pedro ressuscitou ali Tabita
(At 9,36-43) e teve uma visão que o levou a batizar a família do pagão Cornélio, em Cesareia Marítima (At 1011, cf. BÍBLIA SAGRADA. Op., cit., p. 1526). Jafa foi o principal porto de entrada durante o período turco, por
onde peregrinos e visitantes entravam na Terra Santa.
211
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panis cognitus Dominus, Cleopae domum in
ecclesiam dedicauit. Atque inde proficiscens
ascendit Bethoron inferiorem et superiorem,
urbes a Salomone conditas, et uaria postea
bellorum tempestate deletas; ad dextram
aspiciens Aialon, et Gabaon, ubi Iesus filius
Naue contra quinque reges dimicans, soli
imperauit et lunae; et Gabaonitas ob dolum et
insidias foederis inpetrati, in aquarios
lignariosque damnauit. In Gabaa urbe usque
ad solum diruta paululum substitit, recordata
peccati eius, et concubinae in frusta diuisae, et
tribus Benjamin bis trecentos uiros, propter
Paulum apostolum reseruatos.
9. Quid diu moror? ad laeuam mausoleo
Helenae derelicto, quae Adiabenorum regina
in fame populum frumento iuuerat, ingressa
est Hierosolymam, urbem τριώνυμον, Iebus,
Salem, Ierusalem, quae ab Aelio postea
Hadriano de ruinis et cineribus ciuitatis in
Aeliam suscitata est. Cumque proconsule
Palaestinae, qui familiam eius optime
nouerat, praemissis apparitoribus iussisset
parari praetorium, elegit humilem cellulam,
et cuncta loca tanto ardore ac studio
circumiuit, ut nisi ad reliqua festinaret, a
primis non posset abduci. Prostrataque ante
Crucem, quasi pendentem Dominum
cerneret, adorabat. Ingressa sepulcrum
Resurrectionis, osculabatur lapidem, quem ab
ostio sepulchri amouerat angelus. Et ipsum
ligar com as histórias dos poetas) viu
também Andromeda, amarrada sobre um
rochedo. Retomando seu caminho, foi a
Nicópolis, que antes era chamada Emaús,
junto a qual o Senhor reconhecido na fração
do pão, consagrou a casa de Cléofas em
igreja. E partindo daí, subiu a Bete-Horom –
a parte inferior e superior -, cidades
fundadas por Salomão, e destruídas,
posteriormente, por diversas tempestades,
que foram as várias guerras; à direita via
Aijalon, e Gibeão, onde Josué, filho de
Num, lutando contra os cinco reis comandou
o sol e a lua; depois condenou os gibeonitas
a trabalharem como provedores de água e de
lenha, por causa do ardil e das trapaças no
tratado de aliança que fizeram. Na cidade de
Gibeão, arrasada e em ruínas, ficou um
pouquinho, recordou os pecados da cidade,
da concubina cortada em pedaços, e dos
seiscentos homens da tribo de Benjamin
poupados por causa do apóstolo Paulo.
9. Por que prolongar por muito tempo?
Depois de deixar à esquerda o mausoléu de
Helena, rainha dos adiabenos, que tinha
ajudado o povo <que passava>fome, voltou
para Jerusalém, cidade de três nomes:
Jebus, Salém e Jerusalém, que foi reerguida
por Élio, depois <chamado de> Adriano,
das ruínas e das cinzas da cidade para <se
tornar> Élia34. Quando o procônsul da
Palestina, que conhecia extremamente bem
a família dela, havia dispensado seus
subalternos e preparado o pretório, ela
escolheu uma humilde cela pequena. Ela
percorreu todos os lugares santos com tanto
ardor e zelo, que não podia ser retirada dos
primeiros <locais visitados>, a não ser que
se apressasse para descansar. E, prostrada
diante da cruz, adorava o Senhor como se o
34
O imperador Adriano (117-138) implementou o plano de construção de Élia Capitolina (Aelia Capitolina)
sobre as ruínas de Jerusalém, que havia sido arrasada em 70, na guerra da Judeia. O nome Élia Capitolina
suplantou tão bem o de Jerusalém que um governador pagão de Cesareia, no início do século IV, o ignorou
completamente. A cidade de Jerusalém continuava a ser chamada de Élia Capitolina até o século VII
(MARAVAL, 2002, p.150).
212
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corporis locum in quo Dominus jacuerat,
quasi sitiens desideratas aquas, fide, ore
lambebat. Quid ibi lacrimarum, quantum
gemitum effuderit, testis est cuncta
Hierosolyma; testis ipse Dominus, quem
rogabat. Vnde egrediens ascendit Sion, quae
in “arcem” uel “speculam” uertitur. Hanc
urbem quondam expugnauit et aedificauit
David. De expugnata scribitur: “Vae tibi
ciuitas Ariel”, id est: “leo Dei”, et quondam
fortissima, “quam expugnavit David”. De ea
quae aedificata est, dictum est: “fundamenta
eius in montibus sanctis; diligit Dominus
portas Sion super omnia tabernacula Jacob”.
Non eas portas, quas hodie cernimus in
fauillam et cinerem dissolutas, sed portas,
quibus infernos non praeualet, et per quas
credentium ad Christum ingreditur multitudo.
Ostendebatur illic columna ecclesiae
porticum sustinens, infecta cruore Domini, ad
quam
uinctus
dicitur
flagellatus.
Monstrabatur locus, ubi super centum uiginti
animas Spiritus Sanctus descendisset, ut
Iohelis uaticinium compleretur.
10. Deinde pro facultatula sua, pauperibus
atque conseruis pecunia distributa, perrexit
Bethlem, et in dextra parte itineris stetit ad
sepulcrum Rachel, in quo Beniamin, non ut
mater uocauerat moriens, “Benoni”, hoc est,
“filius doloris mei”: sed ut pater prophetauit in
spiritu, “filium dexterae” procreauit, atque
inde specum Saluatoris ingrediens, postquam
uidit sacrum Virginis diuersorium, et stabulum
contemplasse suspendido. Quando entrou
no Sepulcro da Ressurreição35, beijava a
pedra que o anjo havia removido da porta
do sepulcro. Quanto ao próprio lugar, no
qual o corpo do Senhor jazia, como se
estivesse sedenta de águas desejadas pela
fé, sugava com a boca. O quanto de
lágrimas e de gemidos de dor extravasara,
Jerusalém inteira é testemunha, e
testemunha o próprio Senhor, a quem ela
suplicava. Saindo de lá, subiu o Sião, o
qual se traduz por “cidadela” ou
“observatório”. Outrora, Davi tomou de
assalto esta cidade e a reconstruiu. Sobre a
tomada de assalto está escrito: “Ai de ti,
cidade de Ariel”, isto é, “leão de Deus”,
outrora fortíssima, “a qual Davi tomou de
assalto”. Sobre essa que foi edificada está
escrito: “as suas fundações repousam sobre
montanhas santas; o Senhor considera as
portas de Sião acima de todas as tendas de
Jacó”. Não essas portas, que hoje
percebemos como destruídas em fagulhas e
cinzas, mas as portas nas quais o inferno
não prevalece, e pelas quais entra a
multidão de crentes em Cristo. Aqui se
mostra a coluna da Igreja que sustenta o
pórtico, manchado pelo sangue do Senhor,
no qual foi preso e flagelado. Mostra-se o
local onde havia descido o Espírito Santo
sobre as cento e vinte almas, para que se
cumprisse o vaticínio de Joel.
10. Em seguida, tendo distribuído dinheiro,
por sua capacidade, aos pobres e escravos,
dirigiu-se a Belém. Na parte direita do
caminho, pôs-se junto ao túmulo de
Raquel, no qual Benjamin seria chamado
não como a mãe que morria <queria>,
Benoni, isto é, “filho da minha dor”, mas
como o pai profetizou no espírito, gerou
“filho da direita”. De lá, entrando na gruta
35
Anástase (anastasis, -is), "ressurreição". É a Igreja da Ressurreição, caracterizada por uma majestosa cúpula
que cobria o sepulcro de Cristo, em Jerusalém. Ali era realizado diariamente o ofício divino. Juntamente com a
Cruz, uma pequena capela atrás da Cruz e o Martyrium, a Anástase formava a Basílica do Santo Sepulcro, um
complexo construído em 335 por Constantino e sua mãe (Santa Helena), que é o mais conhecido e venerado dos
Lugares Santos cristãos. Hoje, nada resta dessas suntuosas construções de Constantino, destruídas em 1009 por
ordem do sultão Hakim. A Basílica do Santo Sepulcro atual data de 1149, e sua construção e sobrevivência só
foram possíveis graças a um acordo do Império Bizantino com os muçulmanos e à conquista de Jerusalém pelos
cruzados (MARTINS, 2017, p. 236).
213
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in quo “agnouit bos possessorem suum, et
asinus praesepe Domini sui”; ut inpleretur
illud, quod in eodem propheta scriptum est:
“Beatus qui seminat super aquas, ubi bos et
asinus calcant”. Me audiente iurabat cernere
se fidei oculis infantem pannis inuolutum,
uagientem in praesepe, Deum Magos
adorantes, stellam fulgentem desuper, matrem
Virginem, nutricium sedulum, pastores nocte
uenientes, ut uiderent uerbum quod factum
erat, et iam tunc euangelistae Ioannis
principium dedicarent: “In principio erat
Verbum”, et “Verbum caro factum est”;
paruulos interfectos, Herodem saeuientem,
Ioseph et Mariam fugientes in Aegyptum;
mixtisque gaudio lacrymis, loquebatur: “Salue
Bethlem, domus panis, in qua natus est ille
panis, qui de caelo descendit. Salue Ephrata,
regio uberrima, atque καρποφóρος, cuius
fertilitas Deus est”. De te quondam Michaeas
uaticinatus est: “Et tu Bethleem domus
Ephrata, nonne minima es in milibus Iuda? Ex
te mihi egredietur, qui sit princeps in Israel; et
egressus eius ab initio a diebus aeternis.
Propterea dabis eos usque ad tempus parientis.
Pariet, et reliquiae fratrum eius conuertentur
ad filios Israel”. In te enim natus princeps, qui
ante Luciferum genitus est, cuius de Patre
natiuitas omnem excedit aetatem. Et tam diu
in te Dauitici generis origo permansit, donec
uirgo pareret, et reliquiae populi credentis in
Christum, conuerterentur ad filios Israhel, et
libere praedicarent: “Vobis oportebat primum
loqui uerbum Dei; sed quoniam repellitis, et
indignos uos iudicastis aeternae uitae, ecce
conuertimur ad gentes”. Dixerat enim
Dominus: “Non ueni nisi ad oues perditas
domus Israhel”. Et eo tempore Iacob super eo
uerba conpleta sunt: “Non deficiet princeps ex
Iuda, et dux de femoribus eius, donec ueniat,
cui repositum est, et ipse erit expectatio
gentium”. Bene Dauid iurabat, bene uota
faciebat dicens: “Si introiero in tabernaculum
do Salvador, viu a hospedaria sagrada da
Virgem e o estábulo no qual “o boi
reconheceu o seu proprietário e o burro o
presépio do seu Senhor”, para que isto
fosse cumprido, que foi escrito pelo mesmo
profeta: “Feliz é aquele que semeia sobre
as águas, onde o boi e o asno pisam”. Eu
que escutava, jurava que ela via com os
olhos da fé a criança enrolada nos panos, e
vagando no presépio, os Magos adorando
Deus, a estrela que brilhava em cima, a
Virgem mãe, o pai zeloso, os pastores que
vindos de noite para que vissem a palavra
que havia sido realizada, e então para que
afirmassem o início do evangelho de João:
“No princípio era o Verbo”, e “o Verbo se
fez carne”; as pequenas crianças
massacradas; Heródes na sua raiva; José e
Maria fugindo para o Egito. Misturando
lágrimas à alegria, dizia: “Salve Belém,
casa do pão36, na qual nasceu o famoso pão
que desceu do céu. Salve, Efrata, região
riquíssima, produtora de frutas, cuja
fertilidade é Deus”. De ti outrora Miqueias
profetizou: “E tu, Belém, casa de Efrata,
por acaso és a menor das menores de Judá?
De ti sairá para mim aquele que será o
príncipe em Israel, sua origem é desde o
início, desde os dias eternos. Por causa
disso, tu os entregará até a hora da
parturiente. Ela dará à luz, e o restante de
seus irmãos voltarão para os filhos de
Israel”37. Por que em ti nasceu o príncipe,
gerado antes de Lucífer, cujo nascimento
do Pai ultrapassa todas as épocas. E então,
por muito tempo, permaneceu em ti a
origem da linhagem de Davi, até que a
Virgem desse à luz, e o restante do povo
que crê em Cristo retornassem aos filhos de
Israel e pregassem livremente: “Era
necessário primeiramente dizer a vós a
palavra de Deus; mas porque a repelistes, e
julgastes indigno da vida eterna, eis que
“Belém”, tanto em hebraico ( )בית לחםquanto em árabe ()بيت لحم, se traduz literalmente como ‘Casa do Pão’.
“Mas tu, Belém de Efrata, embora pequena entre clãs de Judá, de ti sairá para mim aquele que deve governar
Israel. Suas origens vêm de tempos antigos, de dias imemoráveis. Por isso ele os abandonará até o tempo em
que a parturiente dará à luz. Então o resto de seus irmãos voltará para os israelitas. De pé ele apascentará pela
força do Senhor, pela glória do nome do Senhor seu Deus. Eles se estabelecerão, porque então ele será grande
até os confins da terra”. (Mq 5,1-3, cf. BÍBLIA SAGRADA, Op., cit., 1985, p. 1143).
36
37
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domus meae, si ascendero in lectum strati mei,
si dedero somnum oculis meis, et palpebris
meis dormitationem, et requiem temporibus
meis, donec inueniam locum Domino,
tabernaculum Deo Jacob”; et statim quid
desideraret
exposuit,
atque
oculis
prophetalibus, quem nos uenisse iam
credimus, ille uenturum esse cernebat: “Ecce
audiuimus illum in Ephrata, inuenimus eum in
campis silvae”. Zoth quippe sermo Hebraicus,
ut te docente didici, non Mariam matrem
Domini, hoc est, αὐτήν, sed ipsum, id est :
αὐτόν significat. Vnde loquitur confidenter:
“introibimus
in
tabernaculum
eius;
adorabimus in loco ubi steterunt pedes eius”.
Et ego misera atque peccatrix, digna sum
iudicata deosculari praesepe, in quo Dominus
paruulus uagiit? Orare in spelunca, in qua
virgo puerpera Dominum fudit infantem?
Haec requies mea, quia Domini mei patria est.
Hic habitabo, quoniam Saluator elegit eam:
“Paraui lucernam Christo meo; anima mea illi
vivet, et semen meum seruiet ipsi”. Haut
procul inde descendit ad turrem Ader, id est
“gregis”, iuxta quam Jacob pauit greges suos,
et pastores nocte uigilantes audire meruerunt:
“Gloria in excelsis Deo, et super terram pax
hominibus bonae voluntatis”. Dumque seruant
oues, inuenerunt Agnum Dei puro et
mundissimo uellere, quod in ariditate totius
terrae caelesti rore conplutum est, et cuius
sanguis tulit peccata mundi, et exterminatorem
Aegypti litus fugauit in postibus.
nós nos voltamos aos povos”. Com efeito,
o Senhor dissera: “Não vim a não ser pelas
ovelhas perdidas da casa de Israel”.
Naquele tempo, as palavras sobre ele foram
completadas por Jacó: “o leão não fará
falta em Judá, nem o comandante de seus
descendentes, até que venha aquele que foi
afastado, e ele próprio será a esperança dos
gentios38. Davi estava correto em jurar, e
estava correto em fazer essas promessas,
quando dizia: “Eu não entrarei na tenda da
minha casa, eu não subirei na minha cama,
nem oferecerei sono aos meus olhos, não
fecharei minhas pálpebras para dormir, e
não descansarei minhas têmporas até que
encontre um lugar para o Senhor, uma
tenda para o Deus de Jacó”; imediatamente
ele expôs o que desejava, e aos olhos dos
profetas ele percebeu a chegada daquele
que nós acreditamos já ter vindo: “Eis que
o ouvimos em Efrata, o encontramos nos
campos de florestas”. A palavra hebraica
“zoth”, assim como eu aprendi do seu
próprio ensinamento, não significa Maria,
mãe de Deus, isto é, αὐτήν, mas ele mesmo
αὐτόν. A partir daí diz com confiança:
“Entraremos na tenda dele, adoraremos no
lugar onde os seus pés estiveram”. E eu,
infeliz e pecadora, fui julgada digna de
beijar o presépio, no qual o Senhor
pequenino vagiu? Rezar na gruta, onde a
virgem Maria no parto pôs no mundo o
Deus menino? Aqui é o meu descanso,
porque é a pátria do meu Senhor. Aqui
habitarei, porque o Salvador a escolheu:
“Preparei uma lucerna para o meu Cristo; a
minha alma vive para ele, e a minha
descendência o servirá”. Não longe de lá,
ela desceu a torre de Eder, isto é, “do
rebanho”, junto a qual Jacó apaziguou seus
rebanhos, e os pastores que faziam vigília à
noite mereceram ouvir: “Glória a Deus nas
38
A citação de São Jerônimo é de fato a que se apresenta na Vulgata (p.74). O trecho tem sido muito discutido
quanto à sua interpretação. Basta ver as diferentes traduções que encontramos em português. Assim, na Bíblia
Sagrada, editada pela editora Vozes (p. 79), lê-se “O cetro não sairá de Judá nem o bastão de comando de seus
pés, até que venha o leão, a quem prestarão obediência os povos”; na Bíblia de Jerusalém (p.99) “O cetro não se
afastará de Judá, nem o bastão de chefe de entre seus pés, até que o tributo lhe seja trazido e que lhe obedeçam
os povos”. Em nota, a Bíblia de Jerusalém esclarece que “até que o tributo lhe seja trazido” é uma conjectura.
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alturas, e paz sobre a terra aos homens de
boa vontade”. Enquanto eles guardavam as
ovelhas, encontraram o cordeiro de Deus,
com uma tosa limpíssima e pura, que foi
encharcado com o orvalho celeste em meio
à aridez de toda a terra, e cujo sangue
tolheu os pecados do mundo, e o litoral do
Egito afugentou o exterminador nas portas.
11. Statimque concito gradu, coepit per uiam
ueterem pergere, quae ducit Gazam, ad
potentiam uel ad diuitias Dei; et tacita secum
uoluere, quomodo eunuchus Aethiops gentium
populos praefigurans mutauerit pellem suam;
et dum uetus relegit instrumentum, fontem
repperit euangelii. Atque inde ad dexteram
transit. A Bethsur uenit Eschol, quae in
botruum uertitur. Vnde in testimonium terrae
fertilissimae, et in typum eius qui dicit:
“Torcular calcaui solus, et de gentibus vir non
fuit mecum”, exploratores botruum mirae
magnitudinis portauerunt. Nec post longum
spatium intrauit Sarrae cellulas, uidens
incunabula Isaac, et uestigia quercus
Abraham, sub qua uidit diem Christi, et
laetatus est. Atque inde consurgens, ascendit
Chebron, haec est Cariath-arbe, id est,
oppidum uirorum quattuor: Abraham, Isaac, et
Iacob, et Adam magni, quem ibi conditum,
iuxta librum Hiesu Hebraei autumant, licet
plerique Chaleb quartum putent, cuius ex
latere memoria demonstratur. Noluit pergere
ad Cariath sepher, id est, uinculum litterarum:
quia contemnens occidentem litteram,
reppererat spiritum uiuificantem. Magisque
mirabatur superiores et inferiores aquas, quas
Gothoniel filius Iephone Cenez pro australi
terra et arida possessione susceperat, et
quarum ductu siccos prioris Instrumenti agros
faciebat inriguos, ut redemptionem ueterum
peccatorum in aquis baptismi repperiret.
Altera die, orto iam sole, stetit in supercilio
11. Imediatamente, com o passo apressado,
começou a caminhar em direção à velha
estrada que conduz a Gaza, para a riqueza e
potência de Deus; como o eunuco etíope,
que prefigura os povos gentios, mudou sua
própria condição: enquanto relia o Velho
Testamento, encontrou a fonte do
Evangelho. Em seguida, ela se desviou para
a direita. De Bete-Zur chegou a Escol, que
se traduz como “cacho-de-uva”. De onde,
para dar testemunho da terra fertilíssima
<do local>, e pela imagem daquele que diz:
“Pisei no lagar sozinho, e nenhum homem,
dentre as nações, esteve comigo”, os espiões
trouxeram um cacho-de-uva de um tamanho
maravilhoso. Um pouco mais longe, entrou
no espaço das células de Sara, viu o berço
de Isaac, e os vestígios do carvalho de
Abraão, sob o qual previu o dia que Cristo
viria, e alegrou-se. E de lá, movimentandose, subiu para Hebrom39, isto é, Kiryat Arba,
cidade dos quatro varões: Abraão, Isaac,
Jacó e o grande Adão, que, conforme
afirmam os hebreus no livro de Josué, ali
está enterrado, embora muitos pensem que o
quarto homem seja Calebe, cujo túmulo se
mostra ao lado e separado dos outros. Não
quis dirigir-se a Quiriate-Sefer, isto é, o
“liame das letras”, porque ao desdenhar a
letra que mata, havia descoberto o espírito
vivificante. Ela admirava, sobretudo, as
águas superiores e inferiores, as quais
Otniel, filho de Quenaz, havia captado em
39
Hebrom ou Hebron é uma antiga cidade de Judá, ao sul de Jerusalém (2Sm 2,1). Foi fundada sete anos antes
de Tânis, teria sido habitada pelos sete gigantes enaquitas (Nm 13,22; Js 11,21-23). Abraão comprou ali um
campo com uma gruta, que se tornou o túmulo dos patriarcas (Gn 23,35,27). Em Hebrom estava o santuário
patriarcal de Mambré (13,18). Mais tarde Hebrom tornou-se cidade de refúgio; Davi reinou ali durante sete
anos, antes de se apoderar de Jerusalém (Js 20,7; 2Sm 5,4-9, cf. BÍBLIA SAGRADA. Op., cit., p. 1525).
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Caphar Baruchae, id est uillae benedictionis:
quem ad locum Abraham Dominum
prosecutus est. Vnde latam despiciens
solitudinem, ac terram quondam Sodomae et
Gomorrhae, Adamae et Seboim, contemplata
est balsami uineas in Engaddi, et Segor,
uitulam conternantem, quae prius Bala
uocabatur; et in Zoaram, id est paruulam, Syro
sermone translata est.Recordabatur speluncae
Lot, et uersa in lacrymas, uirgines socias
admonebat cauendum esse vinum “in quo est
luxuria” cujus opus Moabitae sunt et
Ammonitae.
12. Diu haereo in meridie, ubi sponsa
cubantem repperit sponsum, et Ioseph
inebriatus est cum fratribus suis. Reuertar
Hierosolymam, et per Thecuam atque Amos,
rutilantem montis Oliueti Crucem aspiciam,
de quo Saluator ascendit ad Patrem. In quo
per annos singulos uacca rufa in holocaustum
Domini cremabatur, et cuius cinis expiabat
populum Israel: in quo, iuxta Hiezechiele,
Cherubim
de
templo
transmigrantes,
ecclesiam Domini fundauerunt. Ingressa
sepulcrum Lazari, Mariae et Marthae uidit
hospitium; et Bethfage, uillam sacerdotalium
maxillarum; et locum in quo pullus lasciuiens
gentium,
Domini
frena
suscepit,
apostolorumque stratus uestibus, mollia terga
praebuit ad sedendum. Rectoque itinere
descendebat Hierichum, cogitans illum de
Euangelio uulneratum, et Sacerdotibus ac
Leuitis, mentis feritate praetereuntibus,
clementiam Samaritae, id est: custodis; qui
seminecem suo inpositum iumento, ad
stabulum Ecclesiae deportauit; et locum
Adommim quod interpretur sanguinum, quia
multus in eo sanguis crebris latronum
fundebatur incursibus. Et arborem morum
Zacchei, id est, bona paenitentiae opera,
quibus cruenta dudum et noxia rapinis,
peccata calcabat, excelsumque Dominum de
excelso virtutum intuebatur; et iuxta uiam
favor da terra sul e sua árida característica, e
através desses dutos, irrigava campos secos
do
Antigo
Testamento,
para
que
encontrassem a redenção dos velhos
pecados nas águas do batismo. No outro dia,
desde o nascer do sol, ficou no topo de
Caphar-Barucha, isto é, “a cidade da
benção”, até o lugar o qual Abraão seguiu o
Senhor. Deste lugar via um largo vazio, e
outrora a terra de Sodoma e Gomorra, Admá
e Zeboim, contemplou as vinhas balsâmicas
em Ein Gedi e Segor, “novilho de três
anos”, chamado primeiramente “Bala”; que
se traduz como Zoara, isto é, “pequenina”
na língua síria. Ela se lembrava da caverna
de Ló, e derramando lágrimas, recomendava
às companheiras virgens que tivessem
cuidado com o vinho, “no qual reside a
luxúria”, cujo resultado é os Moabitas e
Amonitas.
12. Fico um tempo parado ao meio-dia,
onde a esposa encontra o marido deitado, e
onde José foi inebriado com seus irmãos.
Eu retornarei a Jerusalém e, por Tecoa e
Amós, contemplarei a cruz reluzente do
Monte das Oliveiras, de onde o Salvador
subiu ao Pai. Nesse lugar, todos os anos,
uma vaca ruiva era cremada no sacríficio
do Senhor, cujas cinzas expiavam os
pecados do povo de Israel, aí, conforme
Ezequiel, os querubins movendo-se de um
lugar para outro no templo, fundaram a
igreja do Senhor. Ela entrou no sepulcro de
Lázaro, viu a pousada de Maria e de Marta,
e Betfagé, “cidade dos maxilares
sacerdotais”: e o lugar no qual um filhote
lascivo <de burro> <representando> os
pagãos, recebeu as rédeas do Senhor, e
coberto as vestimentas dos apóstolos,
ofereceu o lombo macio para o Senhor
sentar-se. Descia em linha reta para Jericó,
pensando sobre aquele atacado [por
ladrões] do Evangelho, e na dureza do
coração dos sacerdotes e dos levitas,
passando à clemência dos Samaritanos, isto
é, dos “guardiões”, que puseram o
semimorto no seu jumento e o carregaram
para a estalagem da igreja. Viu o lugar
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caecorum loca, qui receptis luminibus,
utriusque populi credentis in Dominum
sacramenta
praemiserant.
Ingressa
Hierichum, uidit urbem quam fundauit Ahiel
in Abiram primogenito suo, et cuius portas
posuit in Segub nouissimo filiorum. Intuita
est castra Galgalae, et aceruum praeputiorum,
et secundae circumcisionis mysterium; et
duodecim lapides, qui de Iordanis illuc
translati alueo, duodecim apostolorum
fundamenta firmauerant; et fontem quondam
Legis amarissimum et sterilem, quem uerus
Heliseus sua condiuit sapientia, et in
dulcorem ubertatemque conuertit. Vix nox
pertransierat, feruentissimo aestu uenit ad
Iordanem; stetit in ripa fluminis, et orto sole,
solis iustitiae recordata est; quomodo in
medio amnis alueo sicca sacerdotes posuerint
uestigia; et ad Heliae atque Helisei imperium,
stantibus ex utraque parte aquis, iter unda
praebuerit; pollutasque diluuio aquas, et
totius
humani
generis
interfectione
maculatas,
suo
Dominus
mundarit
baptismate.
13. Longum est, si uelim de ualle Achor
dicere, id est, tumultus atque turbarum, in qua
furtum et auaritia condemnata est; et de
Bethel, Domo Dei, in qua super nudam
humum nudus et pauper dormiuit Iacob; et
posito subter caput lapide, qui in Zaccharia
septem oculos habere describitur et in Isaia
lapis dicitur angularis, uidit scalam tendentem
usque ad caelum in qua Dominus desuper
nitebatur, ascendentibus porrigens manum, et
chamado de Adumim, que se traduz como
“dos sangues”, porque muito sangue era
derramado por causa das frequentes
incursões de ladrões. E o sicômoro de
Zaqueu, isto é, as boas obras da penitência,
através das quais calcava os pecados de
outrora, de derramamento de sangue e de
rapinas criminosas, e contemplava o
elevado Senhor da altura das virtudes;
junto à estrada viu os lugares dos cegos,
que tendo recobrado a visão, prefiguraram
os mistérios de um e de outro povo, crendo
no Senhor. Entrando em Jericó, viu a
cidade que Hiel fundou pelo preço da
morte de Abirão, seu primogênito, e cujas
portas, igualmente, pôs pelo preço da morte
de Segube, o mais novo de seus filhos.
Contemplou os acampamentos de Gilgal, o
acervo dos prepúcios e o mistério da
segunda circuncisão; e as doze pedras que
transportadas de lá, do leito do rio Jordão,
confirmaram os fundamentos dos doze
apóstolos; enfim, a outrora muitíssima
amarga e estéril fonte da lei, que o
verdadeiro Eliseu condimentou com sua
sabedoria e a transformou em uma fonte
doce e fértil. A noite mal havia passado, e
ela, por um calor dos mais ardentes,
chegou ao Jordão; parou em pé na
ribanceira do rio e quando o sol nasceu, se
recordou do sol da justiça e de que modo
os sacerdotes deixaram pegadas secas no
meio do leito do rio; e como as ondas, sob
o comando de Elias e Eliseu, dividiam as
águas em duas partes e abriram um
caminho, como enfim, o Senhor purificou,
pelo seu batismo, as águas poluídas pelo
dilúvio, e manchadas pelo derramamento
de sangue de toda raça humana.
13. Seria longo se eu quisesse falar sobre o
vale de Acór, isto é, “o vale do tumulto e
das desordens”, no qual o furto e a avareza
foram castigados; e de Bethel, casa de
Deus, na qual Jacó dormiu nu e pobre,
sobre a terra nua. Tendo posto sua cabeça
sobre uma pedra, que em Zacarias é
descrita como tendo sete olhos, e é
chamada em Isaias como “a pedra do
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neglegentes de sublimi praecipitans. Sepulchra
quoque in monte Ephraim Hiesu filii Naue, et
Eleazari filii Aaron sacerdotis, e regione
uenerata est: quorum alter conditus est in
Tamnathsare a septentrionali parte montis
Gaas, alter in Gabaath filii sui Finees, satisque
mirata est, quod distributor possessionum sibi
montana et aspera delegisset. Quid narrem
Silo, in qua altare dirutum hodieque
monstratur, et raptum Sabinarum a Romulo
tribus Beniamitica praecucurrit? Transiuit
Sichem, non ut plerique errantes legunt Sichar,
quae nunc Neapolis appellatur, et ex latere
montis Garizim extructam circa puteum Iacob
intrauit ecclesiam; super quo Dominus,
residens sitiensque et esuriens, Samaritanae
fide satiatus est; quae quinque Mosaicorum
uoluminum uiris, sextoque, quem se habere
iactabat, errore Dosithei derelicto, uerum
Messiam, et uerum repperit Saluatorem. Atque
inde deuertens, uidit duodecim patriarcharum
sepulcra, et Sebasten, id est: Samariam, quae
in honorem Augusti ab Herode Graeco
sermone Augusta est nominata. Ibi siti sunt
Heliseus et Abdias Prophetae, et (quo maior
inter natos mulierum non fuit) Baptista
Iohannes. Vbi multis intremuit mirabilibus:
namque cernebat daemones uariis rugire
cruciatibus, et ante sepulchra sanctorum
ululare homines luporum uocibus, latrare
canum, fremere leonum, sibilare serpentum,
ângulo”. Ele viu uma escada que se
estendia até o céu na qual o senhor se
apoiava, estendendo a mão para os que
subiam, mas arremessando do alto os
negligentes. No monte de Efraim40, ela
também venerou os túmulos de Josué, filho
de Navé, e na extremidade contrária o de
Eleazar, filho do sacerdedote Aarão: dos
quais um foi exumado em Timnath-serah,
ao norte da montanha de Gaash, o outro em
Gibeá, do seu filho Finéias. Ela se admirou
que o distribuidor de terras tenha atribuído
a si a posse de terras montanhosas e
ásperas. O que narrarei de Siló41, onde
ainda hoje mostra-se um altar destruído e
onde a tribo de Benjamin antecipou o rapto
das Sabinas por Rômulo. Atravessou o
Siquém, e não como muitos leem
erroneamente, Sychar, que agora se chama
Neapólis. Entrou na igreja na encosta do
Monte Gerizim, construída em volta do
poço de Jacó; sobre o qual o Senhor,
encontrando-se com sede e fome, foi
saciado pela fé de uma samaritana; a qual
após ter abandonado os seus cinco maridos,
simbolizados pelos cinco volumes de
Moisés, e o sexto que ela se vangloriava de
possuir, abandonado pelo erro de Dositeu,
para encontrar o verdadeiro Messias e o
verdadeiro Salvador. Partindo de lá, viu os
túmulos dos doze patriarcas e Samaria42,
40
Nome do segundo filho de José e Asenet (Gn 41,52), que passou também a ser o da tribo de que ele descende.
Junto com Manassés é destacado nas bênçãos de Jacó (Gn 49,22-26) e de Moisés (Dt 33,13-17). Por extensão,
Efraim, sobretudo na linguagem poética, engloba todas as tribos do reino do Norte (Jr 7,15). No Novo
Testamento é também o nome de um vilarejo para onde Jesus se retirou antes de sua paixão (Jo 11,54, cf.
BÍBLIA SAGRADA. Op., cit., p. 1521).
41
Siló ( ) ִֹׁש ֔ילוé uma figura mencionada na Bíblia Hebraica em Gn 49,10 como parte da bênção dada por Jacó ao
seu filho Judá. Jacó afirma que "o cetro não se afastará de Judá até que venha Siló". A tradução e interpretação
deste versículo é sujeito a algumas controvérsias. Os cristãos acreditam que Siló é uma referência a Jesus, porém
outros acreditam ser conectado a Reservatório de Siloé: uma piscina dentro dos muros de Jerusalém, na parte
baixa da cidade, para onde corriam as águas da fonte de Gion, através de um túnel construído pelo rei Ezequias
(2Rs 20,20, cf. BÍBLIA SAGRADA. Op., cit., p. 1537).
42
Fundada em 880 a.C. por Amri (1Rs 11,24), Samaria estava situada 77 km ao norte de Jerusalém, numa colina
de 450 km de altitude e de fácil fortificação, no entroncamento de estradas importantes e no centro do reino de
Israel. Ficou sendo a capital do reino de Israel até a ruína da nação, em 722 a.C. (2Rs 18,9-12), e depois tornouse o centro administrativo da província síria e persa de Samaria. Herodes, o Grande, a reconstruiu
magnificamente, dando-lhe o nome de Sebaste (“Augusta”) em homenagem ao imperador Augusto, nome que
subsiste na designação atual Sebastie. O diácono Filipe pregou ali o Evangelho (At 8,5-9, cf. BÍBLIA
SAGRADA. Op., cit., p. 1536; VINCENT, 1969, p. 448).
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mugire taurorum. Alios rotare caput, et post
tergum terram uertice tangere, suspensisque
pede feminis, uestes non defluere in faciem.
Miserebatur omnium, et per singulos effusis
lacrymis, Christi clementiam deprecabatur. Et
sicut erat inualida, ascendit pedibus montem;
in cuius duabus speluncis, persecutionis et
famis tempore, Abdias propheta centum
prophetas aluit pane et aqua. Cito itinere
percucurrit Nazareth, nutriculam Domini,
Canam et Capharnaum, signorum eius
familiares, lacum Tiberiadis, nauigante
Domino sanctificatum, et solitudinem, in qua
multa populorum millia paucis saturata sunt
panibus, et de reliquis uescentium repleti sunt
cophini duodecim tribuum Israel. Scandebat
montem Thabor, in quo transfiguratus est
Dominus. Aspiciebat procul montes Hermon
et Hermoniim, et campos latissimos Galilaeae,
in quibus Sisara et omnis exercitus eius,
Barach uincente, prostratus est. Torrens Cison
mediam planitiem diuidebat, et oppidum iuxta
Naim, in quo uiduae suscitatus est filius,
monstrabatur. Dies me prius quam sermo
deficiet, si uoluero cuncta percurrere, quae
Paula uenerabilis fide incredibili peruagata est.
que em honra de Augusto foi denominada
Augusta por Heródes, o equivalente a
Sebaste em língua grega. Nesse lugar,
foram sepultados os profetas Eliseu e
Obadias, assim como João Batista, a quem
não houve maior entre os nascidos de
mulheres. Aí ela estremeceu com tantos
milagres, de fato via claramente demônios
rugirem por diversos tipos de tormento, e,
diante dos túmulos dos santos, via os
homens uivando com vozes de lobos,
latindo como cães, rugindo como leões,
sibilando como serpentes, mugindo como
touros. Via outros tocarem a terra com a
cabeça virada para trás, e mulheres
suspensas pelos pés, sem que suas vestes
caíssem na face. Ela tinha piedade de
todos, e pelas lágrimas derramadas por
cada um deles, suplicava a clemência de
Cristo. Mesmo que estivesse enfraquecida,
subiu a pé o monte, de cujas duas cavernas
no tempo de perseguição e de fome o
profeta Obadias alimentou cem profetas
com pão e água. Rapidamente percorreu o
caminho de Nazaré, a nutridora do Senhor,
Caná e Cafarnaum, íntimas dos milagres
dele, o Lago de Tiberíades, santificado pela
navegação do Senhor, e o deserto, no qual
milhares de pessoas foram saciadas com
poucos pães, e as cestas das doze tribos de
Israel foram preenchidas pelas sobras dos
que se alimentavam. Escalava o monte
Tabor, no qual o Senhor foi transfigurado.
Contemplava ao longe os montes Hermon e
Hermonim, e os vastíssimos campos da
Galileia, nos quais Sísera, e todo o exército
dele, foram abatidos pela vitória de
Baraque. O rio Quisom dividia a planície
ao meio, e era posta à vista a cidadela
próxima a Naim, na qual o filho da viúva
foi ressuscitado. O dia me faltará antes da
palavra, se eu quiser enumerar todos os
lugares os quais a venerável Paula, com fé
inacreditável, percorreu.
14. Transibo Aegyptum; et in Soccoth, atque
apud fontem Samson, quem de molari
maxillae dente produxit, subsistam parumper;
14. Atravessarei o Egito e em Sucote,
junto à fonte de Sansão, a qual jorrou a
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et arentia ora conluam, ut refocilatus uideam
Morasthim, sepulchrum quondam Micheae
prophetae, nunc ecclesiam. Et ex latere
derelinquam Chorraeos et Gethaeos, Maresa,
Idumaeam, et Lachis; et per harenas
mollissimas pergentium uestigia subtrahentes,
latamque heremi uastitatem, ueniam ad
Aegypti fluuium Sior, qui interpretatur
“turbidus”, et quinque Aegypti transeam
ciuitates, quae loquuntur lingua Chananitidi; et
terram Gesen et campos Taneos, in quibus
fecit Deus mirabilia. Et urbem Noo, quae
postea uersa est in Alexandriam, et oppidum
Domini Nitriam, in quo purissimo uirtutum
nitro sordes lauantur cotidie plurimorum.
Quod cum uidisset, occurrente sibi sancto et
uenerabili episcopo Isidoro Confessore, et
turbis innumerabilibus monachorum, e quibus
multos Sacerdotalis et Leuiticus sublimabat
gradus, laetabatur quidem ad gloriam Domini,
sed se indignam tanto honore fatebatur. Quid
ego narrem Macharios Arsetes, Sarapionas, et
reliqua columnarum Christi nomina? Cuius
non intrauit cellulam? Quorum non pedibus
aduoluta est? Per singulos sanctos Christum se
uidere credebat; et quidquid in illos contulerat,
contulisse in Dominum laetabatur. Mirus
ardor, et uix in femina credibilis fortitudo!
Oblita sexus et fragilitatis corporeae, inter tot
millia monachorum cum puellis suis habitare
cupiebat.
Et
forsitan
cunctis
eam
suscipientibus, inpetrasset, ni maius sanctorum
locorum retraxisset desiderium. Atque propter
feruentissimos aestus de Pelusio Maiumam
nauigatione perueniens, tanta uelocitate
reversa est, ut auem putares. Nec multo post in
sancta Bethleem mansura perpetuo, angusto
per triennium mansit hospitio, donec
exstrueret cellulas ac monasteria, et
diuersorium
peregrinorum
iuxta
uiam
conderet, quia Maria et Ioseph hospitium non
inuenerant. Huc usque iter eius descriptum sit,
quod multis uirginibus et filia comite
peragrauit.
partir do dente molar do maxilar, pararei
por pouco tempo para que refrescado possa
ver Moreshet-Gath, outrora túmulo do
profeta Michel, agora igreja. Deixarei de
lado as terras ao redor do Monte Seir,
Maressa, Edom43 e Laquis; e pelas areias
muitíssimo macias, que apagam os passos
dos viajantes, e pela larga da vastidão do
deserto, chegarei ao rio Sior do Egito, que
chamam de “turvo”, e atravessarei as cinco
cidades do Egito, que falam a língua dos
canaanitas, e a terra de Gósen, e os campos
de Tânis, nos quais Deus fez milagres. E a
cidade de No, que depois se tornará
Alexandria, e Uádi Natrum, fortaleza do
Senhor, em que cotidianamente as
imundices de um grande número de
pessoas são lavadas pelo puríssimo nitro,
cheio de virtudes. Ela viu correndo ao seu
encontro o santo e venerável bispo Isidoro,
o Confessor, e inúmeras multidões de
monges, dos quais muitos ele tinha elevado
ao grau de sacerdote e de diácono,
alegrava-se de fato pela glória do Senhor,
mas se declarava indigna de tanta honra. O
que direi dos nomes Macário, Arsisii, os
Serapiões, e o resto das colunas de Cristo?
Nas células de quem ela não entrou? Aos
pés de quem ela não correu em direção?
Através de cada um desses santos, ela
acreditava ver Cristo; e tudo aquilo que
estava reunido neles a alegrava, porque
refletia o Senhor. Que ardor maravilhoso,
força e incrível coragem em uma mulher!
Esquecida de seu sexo e da fragilidade
corporal desejava habitar com suas
meninas entre tantos milhares de monges.
E talvez tivesse conseguido ficar, por ser
aceita por todos, se não fosse obrigada a se
retirar pelo desejo maior pelos Lugares
Santos. E por causa do calor ardente, indo
por mar de Pelúsio a Maiuma, voltou com
tanta velocidade que pensarias que era uma
ave. Não muito depois tendo decidido
Edom: Sept. Ἰδουμαία; Vulg. Edom. Reino fundado pelos descendentes de Esaú (também chamado Edom),
localizado entre o Mar Morto e o golfo de Ácada, no atual território de Israel. Sob a liderança de Moisés, os
hebreus pretendiam atravessar Edom para ir a Canaã, mas o rei de Edom negou-lhes passagem, obrigando-os a
contornar suas terras (Nm 20,14-21). Posteriormente, Edom seria conquistada por Davi (2Sm 8,14) (MARTINS,
2017, p. 244).
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permanecer para sempre na santa Belém,
ela residiu por três anos em uma
hospedagem apertada, até que construísse
células e monastérios, e fundasse junto à
estrada um abrigo para peregrinos, porque
Maria e José não encontraram hospedagem.
Que esteja descrito aqui o itinerário dela, o
qual peregrinou em companhia de muitas
virgens e de sua filha.
15. Nunc uirtus latius describatur, quae ipsius
propria est, et in qua exponenda, Deo iudice ac
teste, profiteor me nihil addere, nihil in maius
extollere, more laudantium; sed ne rerum
excedat fidem, multa detrahere; et ne apud
detractores, et “genuino me semper dente
rodentes”, fingere puter, et “cornicem Aesopi”
alienis coloribus adornare. Quae prima
Christianorum uirtus est, tanta se humilitate
deiecit, ut qui eam non uidisset, et pro
celebritate nominis uidere gestisset, ipsam
esse non crederet, sed ancillarum ultimam. Et
cum frequentibus choris uirginum cingeretur,
et ueste et uoce et habitu et incessu minima
omnium erat. Nunquam post uiri mortem
usque ad diem dormitionis suae cum ullo
comedit uiro, quamuis eum sanctum et in
pontificali sciret culmine positum. Balneas,
nisi periclitans, non adiit. Mollia, etiam in
grauissima febri, lectuli strata non habuit, sed
super durissimam humum stratis ciliciolis
quiescebat, si tamen illa quies dicenda est,
quae iugibus paene orationibus dies noctesque
iungebat, illud inplens de Psalterio: “Lauabo
per singulas noctes lectum meum, in lacrimis
meis stratum meum rigabo”. In qua fontes
crederes lacrymarum; ita leuia peccata
plangebat, ut illam grauissimorum criminum
15. Que agora seja descrita a virtude que
era mais amplamente própria dela, e na
qual deve ser exposta, sendo Deus juiz e
testemunha, asseguro que não acrescentarei
nada, que não exagerarei na maior parte
das coisas, à maneira dos bajuladores; para
que meus depreciadores, e aqueles que me
“arrebentam sem parar com os dentes que
roem”, não imaginem que finjo e que
adorno a gralha de Esopo44 com outras
cores. Se entre tais e tantas virtudes, ela
própria entregou-se à humildade, a
primeira virtude dos cristãos, para alguém
que a tivesse visto, ou que desejasse
ardentemente vê-la pela celebridade do
nome não acreditasse ser ela mesma, mas a
última das escravas. E quando se cercava
frequentemente de grupos de virgens,
dentre todas era a menor delas, não só pela
veste, mas pela voz, pelo hábito e pela
maneira de andar. Nunca depois da morte
do marido até o dia de seu sono eterno, não
comeu com nenhum outro homem, ainda
que soubesse que fosse santo e provido de
um grau elevado no episcopado. Não ia aos
banhos a não ser quando estava doente.
Igualmente, mesmo quando tinha febres
fortíssimas não possuía cama macia, mas
A fábula de Esopo que São Jerônimo utiliza nesta parte como metáfora possui muitas versões. Em “A gralha e
os pavões”, segundo Joseph Shafan, Esopo conta a história de uma gralha que pediu aos pavões suas penas
emprestadas. Assim que as obteve, a gralha desprezou suas irmãs e começou a andar apenas com os pavões.
Depois de um tempo, os donos originais das penas as pediram de volta, mas como se estivessem enfiadas no
couro da gralha, bicaram-na até arrancá-las, fazendo com que a gralha ficasse machucada e sem as suas próprias
penas. Nesse estado deplorável, ela voltou a buscar suas irmãs gralhas, que agora lhe diziam: “De nada valeu
rejeitares a tua natureza, querendo ser o que não eras. Agora está aqui pelada, ferida e envergonhada”. Desta
maneira, quando Jerônimo afirma que não “adorna os cornos de Esopo”, diz que não era falsário, nem
mentiroso, como era a gralha vestida com as penas dos pavões. (SHAFAN, J., 2008). As Fábulas de Esopo. A.
José C. Coelho, 2008. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ea000378.pdf.
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crederes ream. Cumque a nobis crebrius
moneretur, ut parceret oculis, et eos seruaret
euangelicae lectioni, aiebat: “Turpanda est
facies, quam contra Dei praeceptum
purpurisso et cerussa et stibio saepe depinxi.
Adfligendum corpus, quod multis uacauit
deliciis. Longus risus perpeti conpensandus est
fletu; mollia linteamina et serica pretiosissima
asperitate cilicii conmutanda. Quae uiro et
saeculo placui, nunc Christo placere
desidero”. Si inter tales tantasque uirtutes
castitatem in illa uoluero praedicare,
superfluus uidear; in qua etiam cum saecularis
esset, omnium Romae matronarum exemplum
fuit; quae ita se gessit, ut nunquam de illa
etiam maledicorum quicquam auderet fama
confingere. Nihil animo eius clementius, nihil
erga humiles blandius fuit. Non adpetebat
potentes, nec tamen superbo et gloriolam
quaerente fastidio despiciebat.Si pauperem
uidebat, sustentabat;
si diuitem, ad
benefaciendum cohortabatur. Liberalitas sola
excedebat modum; et usuras tribuens,
uersuram quoque saepe faciebat, ut nulli
stipem se rogantium denegaret. Fateor errorem
meum: cur in largiendo esset profusior,
arguebam, illud proferens de Apostolo: “Non
ut aliis sit refrigerium, uobis autem tribulatio;
deitava-se sobre o chão duríssimo com
camadas de pelinhos de cabra45, se, porém,
pode-se chamar de repouso os dias e noites
que ela unia quase continuamente em
orações, cumprindo o Saltério46: “lavarei
todas as noites o meu leito, e regarei minha
cama com as minhas lágrimas”.
Acreditarias, então, que ela possuía fontes
de lágrimas; nas quais ela chorava os
pecados de pouca importância, como se
fosse ré de crimes gravíssimos. Quando se
advertia para que contivesse os olhos e os
conservasse para a lição do Evangelho,
dizia: “A face à qual contra a instrução de
Deus eu frequentemente pintei de púrpura,
alvaiade, de e de estíbio47, deve ser
desfigurada. Deve-se destruir o corpo que
se deu a muitos prazeres. O longo riso deve
ser compensado com choro perpétuo. Os
lençóis macios e os preciosíssimos tecidos
de seda, devem ser trocados pela aspereza
do cilício. Procurei agradar a meu marido e
ao mundo; agora é a Cristo que eu desejo
agradar.” Se entre tantas grandes virtudes
eu quisesse elogiar a castidade nela,
pareceria excessivo; de fato, nesse aspecto,
quando ela ainda vivia no mundo, foi um
exemplo dentre todas as matronas de
45
Em outras cartas, São Jerônimo chama a atenção para as vestes das mulheres monásticas, que eram feitas de
cilício. O pano de saco, o cilício, era um tecido grosseiro e resistente, feito a partir de pelos de cabra ou de
camelo. No início era utilizado para armazenar cereais, objetos e alimentos em geral. A fim de que fosse
transformado em vestes, o cilício era devidamente cortado e vestido como uma roupa, podendo ser utilizado
como uma forma de demonstrar luto ou penitência. A expressão “em saco de pano e cinzas” é utilizada na Bíblia
para dizer que alguém está em estado de luto, arrependimento ou contrito.
O Saltério (ou “Salmos” ou “Livro dos Salmos”) é uma coleção de 150 cânticos sacros do povo israelita.
Muitos deles trazem o título hebraico “mizmor”, que os LXX traduziram por “salmo”, palavra de origem grega
que significa ‘cântico sacro’, acompanhado de certo instrumento musical, chamado “saltério”. Nascidos do culto
e para o culto, os Salmos celebram o mistério da salvação, conhecido por experiência interior, mediante a oração
e reflexão teológica sobre a história do povo eleito e de toda humanidade. O salmista, mesmo que exponha
diante do Deus de Israel uma situação particular, sempre fala como membro de uma comunidade religiosa, e seu
hino ou súplica, como celebração de um momento específico da história da salvação, passa assim à liturgia do
templo, como oração comunitária (BÍBLIA SAGRADA, 1985, p. 666). A respeito do Saltério diz Jerônimo: “Há
algum tempo, quando estava estabelecido em Roma, eu emendara o Saltério e, ainda que rapidamente, corrigirao em grande parte, conforme a versão da Septuaginta. O que vedes pela segunda vez, Paula e Eustóquia, foi
corrompido pela falha dos copistas, e vedes ter mais força o erro antigo do que a correção recente” (tradução
nossa). Praefatio in libro Psalmorum: Psalterium Romae dudum positus emendaram, et iuxta Septuaginta
interpretes, licet cursim, magna illud ex parte correxeram. Quod quia rursum videtis, o Paula et Eustochium,
scriptorum vitio depravatum, plusque antiquum errorem, quam novam emendationem valere (BIBLIA SACRA
VULGATA. WEBER; GRYSON (ed), 2007, p.767).
47
Alvaiade, púrpura e estíbio são cosméticos que conferem características de brancura, rubor e brilho à pele,
respectivamente.
46
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sed ex aequalitate in hoc tempore, ut uestra
abundantia sit ad illorum inopiam, ut et
illorum abundantia sit ad uestram inopiam”. Et
hoc de Euangelio Saluatoris: “Qui habet duas
tunicas, det alteram non habenti”. Et
prouidendum esse, ne quod libenter faceret,
semper facere non posset; multaque huiusce
modi, quae illa mira uerecundia, et sermone
parcissimo dissoluebat: testem inuocans
Dominum, se pro illius nomine cuncta facere;
hoc et habere uoti, ut mendicans ipsa
moreretur, ut unum nummum filiae non
dimitteret, et in funere suo aliena sindone
inuolueretur. Ad extremum inferebat: “Ego si
petiero, multos inueniam qui mihi tribuant;
iste mendicans si a me non acceperit, quae ei
possum etiam de alieno tribuere, et mortuus
fuerit, a quo eius anima requiretur?” Ego
cautior in re familiari esse cupiebam; sed illa
ardentior fide, toto Saluatori animo
iungebatur, et pauperem Dominum, pauper
spiritu sequebatur, reddens ei quod acceperat,
pro ipso pauper effecta. Denique consecuta est
quod optabat, et in grandi aere alieno filiam
dereliquit, quod huc usque debens non suis
uiribus, sed Christi se [fidit] fidet misericordia
reddituram.
Roma, se comportava de tal forma que
nunca nenhum caluniador se atreveu a
inventar algo sobre sua honra. Nada de
mais clemente que sua alma, nada de mais
carinhoso para com os humildes. Não
procurava aproximar-se dos poderosos,
nem tampouco desprezava a pequena glória
do que a procura pela soberba e pelo
desdém. Se via um pobre o auxiliava; se
via um rico ela o exortava a fazer o bem.
Isoladamente, sua bondade excedia a
medida. Distribuía dinheiro emprestado
sem juros, e também fazia frequentemente
empréstimos, para que não recusasse a
ninguém que pedisse uma esmola.
Confesso meu erro, porque julgava que ela
fosse excessivamente generosa em seus
atos de caridade, mostrando isto do
apóstolo48: “Não é para que seja um alívio
para os outros e um tormento a vós, mas
para extrair uma igualdade nesta situação,
para que a vossa abundância seja para a
necessidade deles, e que a abundância
deles seja para a vossa necessidade”. E isto
foi retirado do Evangelho do Salvador:
“Aquele que tem duas túnicas, dê uma das
duas a quem não tem”. Devia se precaver
para que não fizesse livremente aquilo que
não pudesse fazer sempre; deste modo,
com uma modéstia maravilhosa, e com
uma fala comedida, ela dissolvia muitas
coisas e de muitas maneiras: invocando o
testemunho do Senhor, ela fazia todas as
coisas no nome dele. O seu voto mais
profundo é que ela própria morresse como
uma mendicante, para que não deixasse
nenhuma moeda para a filha, e que no seu
funeral fosse envolvida por panos de linho
de outra pessoa. Enfim, concluía: “Se eu
pedir, encontrarei muitos doadores; este
mendicante se não tiver recebido de mim, o
que posso dar a ele de outro, e se ele vier a
morrer, a quem a alma dele reclamará?” Eu
desejava ser mais cauteloso sobre a
“Quando, pois, deres esmola, não vás tocando trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e
nas ruas para serem louvados pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam a recompensa”. (Mt 6,2, cf.
BÍBLIA SAGRADA. Op. cit., p. 1184).
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situação do patrimônio familiar, mas ela,
com sua fé mais ardente, se apegava com
toda sua alma ao Salvador. Pobre de
espírito seguia o pobre Senhor, devolvendo
a ele o que recebera, fazia-se pobre pelo
próprio Senhor. Por fim, conseguiu o que
quis, e deixou a sua filha com uma grande
dívida de outrem, a qual ainda está
devendo, mas que haverá de pagar, não
com os seus recursos, mas pela sua fé e
misericórdia em Cristo.
Conclusão
Com esta tradução comentada da pereginação de Jerônimo e Paula, que incluiu uma
breve contextualização histórica, assim como algumas análises – ainda que não exaustivas –,
feitas por pesquisadores da área, tivemos a intenção de disponibilizar essa importante carta,
que contém em si diversas possibilidades de pesquisa e de aprofundamento.
De nossa parte, tivemos em mente, antes de mais nada, disponibilizar ao público
brasileiro essa elogiável produção literária de São Jerônimo, cuja importância não se resume
à peregrinação em si, mas ao relato que faz da vida de Paula e tudo que se prende à descrição
de sua vida. Temos ali o testemunho de seu amor pelas Escrituras e a sua coerência em viver
uma vida totalmente de acordo com o ascetismo cristão. Incluem-se na carta algumas
questões históricas extremamente relevantes, notadamente o papel do Círculo do Aventino e
das nobres damas da sociedade romana em sua vida. Sem elas, o Jerônimo, tradutor da Bíblia,
provavelmente não existiria, pois foi através do patrocínio de Paula que os dois conseguiram
fundar os mosteiros em Belém, onde Jerônimo pôde traduzir a Vulgata, além de escrever,
comentar inúmeras obras e ainda receber peregrinos. O Círculo do Aventino, não foi somente
um lugar de estudo sobre as Escrituras e de exegese bíblica, mas, antes, foi um enorme pólo
de fomento à tradução, ao estudo filológico e à aprendizagem de línguas. Tivemos
oportunidade de ver certos exemplos dessas questões em trechos de cartas.
Como síntese do valor documental da peregrinação de Jerônimo e Paula, podemos dizer que o
retrato que Jerônimo faz de sua amiga, patrona e companheira, é de uma santa, de uma mulher que
possuía todas as virtudes divinas e, nesse sentido, resumia a mulher ascética ideal, servindo,
assim,como um modelo de peregrino. Tornou-se casta, adotou uma vida de pobreza e compartilhou
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com Jerônimo um amor rigoroso pela erudição teológica e pelo estudo de línguas. Como um exemplo
de sua perfeição ascética, veja-se o seguinte trecho do capítulo 15:
“Nunca depois da morte do marido até o dia de seu sono eterno, não comeu
com nenhum outro homem, ainda que soubesse que fosse santo e provido de um grau
elevado no episcopado. Não ia aos banhos, a não ser quando estava doente.
Igualmente, mesmo quando tinha febres fortíssimas não possuía cama macia, mas
deitava-se sobre o chão duríssimo com camadas de pelinhos de cabra, se, porém,
pode-se chamar de repouso os dias e noites que ela unia quase continuamente em
orações, cumprindo o Saltério: “lavarei todas as noites o meu leito, e regarei minha
cama com as minhas lágrimas” (Ep. 108, 15)
Seja ou não uma carta para sua própria promoção pessoal, como Cain interpreta,
Jerônimo sabia da importância do que estava escrevendo, pois estava retratando a trajetória
de vida de uma mulher obediente aos princípios do cristianismo asceta, e esse escrito poderia
servir posteriormente para seu próprio culto.
Na nossa percercepção, essa é uma carta pedagógica, que buscava ensinar a
interpretar a Bíblia a partir dos Lugares Santos, procurando fomentar a fé dos cristãos, através
de uma peregrinação correta, com retidão de conduta e de caráter. Não se pode, contudo,
analisá-la nem isoladamente, nem pragmaticamente: a carta sem dúvida tem um conteúdo
emocional enorme, pois Paula conviveu com Jerônimo durante dezenove anos, e tornou
possível o sonho de ascetismo que os dois alimentavam, assim como a vida de ambos em
Belém, na condução de mosteiros. Kelly (1975, p.278), a nosso ver, estava correto em dizer
que Jerônimo realmente sofreu com a morte de Paula, pela perda de uma das poucas pessoas
no mundo, por quem ele sentia uma real ternura, afeição e admiração.
Paula era a contraparte masculina do Jerônimo asceta e igualmente do Jerônimo uir
trilinguis, como dissemos anteriormente. Os trechos abaixo evidenciam essas afirmações:
Ep. 108, 26: Loquar et aliud, quod forsitan aemulis uideatur incredulum: Hebraeam
linguam, quam ego ab adulescentia multo labore ac sudore ex parte didici, et
infatigabili meditatione non desero ne ipse ab ea deserar, discere uoluit, et consecuta
est ita ut Psalmos hebraeice caneret, et sermonem absque ulla latinae linguae
proprietate resonaret. (...) Ep. 108, 28: Cumque a me interrogaretur cur taceret, cur
nollet respondere inclamanti, an doleret aliquid, Graeco sermone respondit (...):
Ep. 108, 26: “Direi o que para alguém que é invejoso talvez pareça inacreditável: a língua
hebraica, a qual eu estudei, em parte, desde a adolescência com muito trabalho e
suor, e com infatigável contemplação, não a deixo nem sou deixado por ela, desejava
aprender, e seguiu de tal forma que cantava os Salmos em Hebraico, e ressoava os
sermões sem qualquer sotaque de língua latina”. (...) Ep. 108, 28: “quando eu
perguntava por que do silêncio, por que não queria responder ao chamado,
perguntando se sentia alguma dor, respondia em grego (...)”.
Por fim, sobre a importância do seu escrito, com base no famoso verso de Horácio
(Ode 3.30), Jerônimo diz: Exegi monumentum aere perennius, quod nulla destruere possit
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uetustas (Ep. 108, 33) “Ergui um monumento mais duradouro que o bronze, que nem a idade
avançada será capaz de destruir”.
Referências bibliográficas
Edições críticas e dicionários
JÉRÔME, Saint. Correspondance: Tome I, Lettres I-XXII. Texte établi et traduit par Jérôme
Labourt. Paris: Les Belles Lettres, 2002 (première édition 1949).
JÉRÔME, Saint Correspondance: Tome II, Lettres XXIII-LII. Texte établi et traduit par
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