DO CONTRATO SOCIAL
Jean-Jacques Rousseau
ÍNDICE
BIOGRAFIADOAUTOR
LIVRO 1
1- Assunto deste primeiro livro.
II - Das primeiras sociedades.
III-Dodireitodomaisforte.
IV - Da escravidão.
V - É preciso remontar sempre a um primeiro convénio.
VI - Do pacto social.
-VIIDosoberano.
-Doestadocivil.VIII
IX - Do domínio real.
LIVRO II
1 - A soberania é inalienável.
II - A soberania é indivisível.
pode geral errar. vontade A -III
IV - Dos limites do poder soberano.
V - Do direito de vida e morte.
VI-Dalei.
VII - Do legislador.
VIII
IX - Continuação do capítulo precedente.
- Continuação.X
XI - Dos diversos sistemas de legislação.
XII - Divisão das leis.
LIVRO III
1- Do governo em geral.
II - Do princípio que constitui as diversas formas de governo.
III - Divisão dos governos.
-Dademocracia.IV
V - Da aristocracia.
VI - Da monarquia.
VII - Dos governos mistos.
VIII - Nem toda forma de governo é apropriada a todos os países.
IX - Dos sinais de um bom governo.
X
XI - Da morte do corpo político.
XII-Comosemantémaautoridadesoberana.
-Continuação.XIII
-Continuação.XIV
XV
XVI - Quando a instituição do governo não é um contrato.
XVII - Da instituição do governo.
XVIII - Meios de prevenir as usurpações do governo.
LIVRO IV
1 - A vontade geral é indestrutível.
II - Dos sufrágios.
-DasIIIeleições.
-Doscomíciosromanos.IV
V - Do tribunato.
-Daditadura.VI
VIII
IX - Conclusão.
NOTAS
BIOGRAFIA DO AUTOR
~ean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra no ano de 1712 e morreu no de
1778.
Dotado de excepcionais qualidades de inteligência e imaginação, foi ele um dos
maiores escritores e filósofos do seu tempo. Em suas obras, defende a idéia da
volta à natureza, a excelência natural do homem, a necessidade do contrato
social para garantir os direitos da coletividade. Seu estilo, apaixonado e eloqüente,
tornou-se um dos mais poderosos instrumentos de agitação e propaganda das
idéias que haviam de constituir, mais tarde, o imenso cabedal teórico da Grande
Revolução de 1789-93. Ao lado de Diderot, D'Alembert e tantos outros nomes
insignes que elevaram, naquela época, o pensamento científico e literário da
França, foi Rousseau um dos mais preciosos colaboradores do movimento
enciclopedista. Das suas numerosas obras, podem citar-se, dentre as mais
notáveis: Júlia ou A Nova Heloísa (1761), romance epistolar, cheio de grande
sentimentalidade e amor à natureza; 0 Contrato Social (1762), onde a vida social
é considerada sobre a base de um contrato em que cada contratante condiciona
sua liberdade ao bem da comunidade, procurando proceder sempre de acordo
com as aspirações da maioria; Emílio ou Da Educação (1762), romance
filosófico, no qual, partindo do princípio de que "o homem é naturalmente bom" e
má a educação dada pela sociedade, preconiza "uma educação negativa como a
melhor, ou antes, como a única boa"; As Confissões, obra publicada após a morte
do autor (1781-1788), e que é uma autobiografia sob todos os pontos-de-vista
notável.
O CONTRATO SOCIAL
LIVRO 1
Eu quero investigar se pode haver, na ordem civil, alguma regra de
administração, legítima e segura, que tome os homens tais como são e as leis tais
como podem ser. Cuidarei de ligar sempre, nesta pesquisa, o que o direito
permite com o que o direito prescreve, a fim de que a justiça e a utilidade de
modo algum se encontrem divididas.
Entro na matéria sem provar a importância de meu assunto. Perguntar-se-me-á
se sou príncipe ou legislador, para escrever sobre política. Se eu fosse príncipe ou
legislador, não perderia meu tempo em dizer o que é preciso fazer; eu o faria ou
me calaria.
Nascido cidadão de um Estado Livre (1) e membro do soberano, por frágil que
seja a influência de minha voz nos negócios públicos, basta-me o direito de votar
para me impor o dever de me instruir no tocante a isso: feliz, todas as vezes que
medito sobre os governos, de achar sempre, em minhas pesquisas, novas razões
para amar o de meu país.
1 - Assunto deste primeiro livro.
O homem nasceu livre, e em toda parte se encontra sob ferros. De tal modo
acredita-se o senhor dos outros, que não deixa de ser mais escravo que eles.
Como é feita essa mudança? Ignoro-o. Que é que a torna legítima? Creio poder
resolver esta questão.
Se eu considerasse tão-somente a força e o efeito que dela deriva, diria:
Enquanto um povo é constrangido a obedecer e obedece, faz bem; tão logo ele
possa sacudir o jugo e o sacode, faz ainda melhor; porque, recobrando a
liberdade graças ao mesmo direito com o qual lha arrebataram, ou este lhe serve
de base para retomá-la ou não se prestava em absoluto para subtraí-la. Mas a
ordem social é um direito sagrado que serve de alicerce a todos os outros. Esse
direito, todavia, não vem da Natureza; está, pois, fundamentado sobre
convenções. Mas antes de chegar aí, devo estabelecer o que venho de avançar.
II - Das primeiras sociedades.
A mais antiga de todas as sociedades, e a única natural, é a da família. As
crianças apenas permanecem ligadas ao pai o tempo necessário que dele
necessitam para a sua conservação. Assim que cesse tal necessidade, dissolve-se
o laço natural. As crianças, eximidas da obediência devida ao pai, o pai isento dos
cuidados devidos aos filhos, reentram todos igualmente na independência. Se
continuam a permanecer unidos, já não é naturalmente, mas voluntariamente, e
a própria família apenas se mantém por convenção.
Esta liberdade comum é uma conseqüência da natureza do homem. Sua primeira
lei consiste em proteger a própria conservação, seus primeiros cuidados os
devidos a si mesmo, e tão logo se encontre o homem na idade da razão, sendo o
único juiz dos meios apropriados à sua conservação, torna-se por sí seu próprio
senhor.
É a família, portanto, o primeiro modelo das sociedades políticas; o chefe é a
imagem do pai, o povo a imagem dos filhos, e havendo nascido todos livres e
iguais, não alienam a liberdade a não ser em troca da sua utilidade. Toda a
diferença consiste em que, na família, o amor do pai pelos filhos o compensa dos
cuidados que estes lhe dão, ao passo que, no Estado, o prazer de comandar
substitui o amor que o chefe não sente por seus povos.
Grotius nega que todo poder humano seja estabelecido em favor dos governados.
Sua mais freqüente maneira de raciocinar consiste sempre em estabelecer o
direito pelo fato . Poder-se-ia empregar um método mais conseqüente, não
porém mais favorável aos tiranos. É, pois duvidoso, segundo Grotius, saber se o
gênero humano pertence a uma centena de homens, ou se esta centena de
homens é que pertence ao gênero humano, mas ele parece pender, em todo o
seu livro, para a primeira opinião. E este também o sentimento de Hobbes. Eis
assim a espécie humana dividida em rebanhos de gado, cada qual com seu chefe
a guardá-la, a fim de a devorar.
Assim como um pastor é de natureza superior à de seu rebanho, os pastores de
homens, que são seus chefes, são igualmente de natureza superior à de seus
povos. Desta maneira raciocinava, no relato de Fílon, o imperador Calígula,
concluindo muito acertadamente dessa analogia que os reis eram deuses, ou que
os povos eram animais.
O raciocínio de Calígula retorna ao de Hobbes e ao de Grotius. Aristóteles, antes
deles todos, tinha dito que os homens não são naturalmente iguais, e que uns
nascem para escravos e outros para dominar.
Aristóteles tinha razão, mas ele tomava o efeito pela causa. Todo homem nascido
escravo nasce para escravo, nada é mais certo: os escravos tudo perdem em seus
grilhões, inclusive o desejo de se livrarem deles; apreciam a servidão, como os
companheiros de Ulisses estimavam o próprio embrutecimento. Portanto, se há
escravos por natureza, é porque houve escravos contra a natureza. A força
constituiu os primeiros escravos, a covardia os perpetuou.
Eu nada disse do rei Adão, nem do imperador Noé, pai de três grandes monarcas
que partilharam entre si o Universo, como o fizeram os filhos de Saturno, nos
quais se acreditou reconhecer aqueles. Espero que me agradeçam por esta
moderação, porque, descendente que sou de um desses príncipes, quiçá do ramo
mais velho, quem sabe se, pela verificação dos títulos, eu não me sentiria de
algum modo como o legítimo rei do gênero humano? Seja como for, não se pode
deixar de convir em que Adão não foi soberano do mundo como Robinson o foi
em sua ilha, enquanto permaneceu o único habitante; e o que havia de cômodo
nesse império era o fato de que o monarca, seguro em seu trono, não tinha a
recear nem rebeliões, nem guerras, nem conspirações.
III - Do direito do mais forte.
0 mais forte não é nunca assaz forte para ser sempre o senhor, se não transforma
essa força em direito e a obediência em dever. Daí o direito do mais forte, direito
tomado ironicamente na aparência e realmente estabelecido em princípio. Mas
explicar-nos-ão um dia esta palavra? A força é uma potência física; não vejo em
absoluto que moralidade pode resultar de seus efeitos. Ceder à força constitui um
ato de necessidade, não de vontade; é no máximo um ato de prudência. Em que
sentido poderá ser um dever?
Imaginemos um instante esse suposto direito. Eu disse que disso não resulta senão
um galimatias inexplicável; porque tão logo seja a força a que faz o direito, o
efeito muda com a causa; toda força que sobrepuja a primeira sucede a seu
direito. Assim que se possa desobedecer impunemente, pode-se fazê-lo
legitimamente, e, uma vez que o mais forte sempre tem razão, trata-se de cuidar
de ser o mais forte. Ora, que é isso senão um direito que perece quando cessa a
força? Se é preciso obedecer pela força, não é necessário obedecer por dever, e
se não mais se é forçado a obedecer, não se é a isso mais obrigado. Vê-se, pois,
que a palavra direito nada acrescenta à força; não significa aqui coisa nenhuma.
Obedecei aos poderosos. Se isto quer dizer: cedei à força, o preceito é bom, mas
supérfluo; eu respondo que ele jamais será violado. Toda potência vem de Deus,
confesso-o; mas toda doença igualmente vem dele: quer isto dizer que se não
deva chamar o médico? Quando um assaltante me surpreende no canto de um
bosque, sou forçado a dar-lhe a bolsa; mas no caso de eu poder subtrai-la, sou em
sã consciência obrigado a entregar-lha?. Afinal a pistola que ele empunha é
também um poder.
Convenhamos, pois, que força não faz direito, e que não se é obrigado a obedecer
senão às autoridades legítimas. Assim, minha primitiva pergunta sempre retorna.
IV - Da escravidão.
Uma vez que homem nenhum possui uma autoridade natural sobre seu
semelhante, e pois que a força não produz nenhum direito, restam pois as
convenções como base de toda autoridade legítima entre os homens.
Se um particular diz Grotius, pode alienar a liberdade e tornar-se escravo de um
senhor, por que não poderia todo um povo alienar a sua e se fazer vassalo de um
rei? Há aqui excesso de termos equívocos, necessitados de explicação; mas
atenhamo-nos ao termo alienar. Alienar é dar ou vender. Ora, um homem que se
escraviza a outro não se dá, vende-se, pelo menos em troca da subsistência; mas
um povo, por que se vende ele? Longe se acha um rei de fornecer a subsistência
dos vassalos; ao contrário, deles é que tira a própria, e, segundo Rabelais, um rei
não vive de pouco. Os vassalos dão, portanto, suas próprias pessoas com a
condição de que se lhes tome também a fazenda. Não vejo o que lhes resta a
conservar.
Dir-se-á que o déspota assegura aos vassalos a tranqüilidade civil. Seja; mas que
ganham eles com isso, se as guerras, que a ambição do déspota ocasiona, se sua
insaciável avidez, se os vexames de seu ministério os aflige mais do que o fariam
as próprias dissensões? Que ganham eles aí, se essa mesma tranqüilidade
constitui uma de suas misérias? Vive-se igualmente tranqüilo nos calabouços;
basta isto para se viver bem? Os gregos encerrados no antro do ciclope ali viviam
tranqüilos, à espera de que chegasse a sua vez de serem devorados.
Dizer que um homem se dá gratuitamente é dizer coisa absurda e inconcebível;
um tal ato é ilegítimo e nulo, pelo simples fato de não se achar de posse de seu
juízo quem isto comete. Dizer a mesma coisa de todo um povo é supor um povo
de loucos: a loucura não faz direito.
Mesmo que cada qual pudesse alienar-se a si mesmo, não poderia alienar os
filhos: estes nascem homens e livres; sua liberdade pertence-lhes; ninguém,
exceto eles próprios, tem o direito de dela dispor. Antes de atingirem a idade da
razão, pode o pai estipular, em nome deles, condições para a sua conservação,
para o seu bem-estar, mas não os pode dar irrevogável e incondicionalmente,
porque tal dom é contrário aos fins da Natureza e sobrepuja os direitos da
paternidade. Portanto, para que um governo arbitrário fosse legítimo, seria
preciso que o povo, em cada geração, fosse senhor de o admitir ou rejeitar; mas
então tal governo já não seria arbitrário.
Renunciar à própria liberdade é o mesmo que renunciar à qualidade de homem,
aos direitos da Humanidade, inclusive aos seus deveres. Não há nenhuma
compensação possível para quem quer que renuncie a tudo. Tal renúncia é
incompatível com a natureza humana, e é arrebatar toda moralidade a suas
ações, bem como subtrair toda liberdade à sua vontade. Enfim, não passa de vã e
contraditória convenção estipular, de um lado, uma autoridade absoluta, e, de
outro, uma obediência sem limites. Não é claro não estar a gente a nada obrigada
em relação àquele de quem se tem o direito de tudo exigir? E esta simples
condição, sem equivalência, sem permuta, não arrasta a nulidade do ato? Que
direito teria meu escravo contra mim, uma vez que me pertence tudo quanto ele
possui, e, sendo meu o seu direito, esse meu direito contra mim mesmo não é
porventura um termo sem sentido?
Grotius e outros extraem da guerra uma outra origem do pretenso direito de
escravatura. Segundo eles, tendo o vencedor o direito de matar o vencido, pode
este resgatar a vida às expensas de sua liberdade, convenção tanto mais legítima
porque beneficia os dois.
Mas é claro que esse pretenso direito de matar os vencidos não resulta de
nenhuma maneira do estado de guerra, pelo simples fato de que os homens,
vivendo na sua primitiva independência, não possuem de modo algum relações
assaz freqüentes entre si para constituírem nem o estado de paz nem o estado de
guerra; naturalmente, não são em absoluto inimigos. É a relação das coisas, e não
dos homens, que constitui a guerra, e como o estado de guerra não pode nascer
de simples relações pessoais, mas unicamente de relações reais, a guerra
privada, ou de homem contra homem, não pode existir, nem no estado natural,
em que não há nenhuma propriedade constante, nem no estado social, em que
tudo se encontra sob a autoridade das leis.
Os combates particulares, os duelos, os encontros, são atos que de modo algum
constituem um estado; e, no que concerne às guerras privadas, autorizadas pelas
instituições de Luís IX, rei de França, e suspensas pela paz de Deus, trata-se de
abusos do governo feudal, sistema absurdo como jamais houve, contrário aos
princípios do direito natural e a toda organização política.
Não é, pois, a guerra uma relação de homem para homem, mas uma relação de
Estado para Estado, na qual os particulares apenas acidentalmente são inimigos,
não na qualidade de homens, nem mesmo como cidadãos, mas como soldados;
não como membros da pátria, mas como seus defensores. Enfim, cada Estado
não pode ter como inimigo senão outro Estado, nunca homens, entendido que
entre coisas de naturezas diversas é impossível fixar uma verdadeira relação.
Tal princípio está conforme as máximas estabelecidas no decorrer de todos os
tempos e a prática constante de todos os povos civilizados. As declarações de
guerra constituem advertências dirigidas menos às autoridades que a seus
vassalos. 0 estrangeiro, seja rei, particular, ou povo, que roube, mate ou detenha
os vassalos, sem declaração de guerra ao príncipe, não é um inimigo, é um
salteador. Mesmo em plena guerra, um príncipe justo apropria-se, em país
inimigo, completamente de tudo que pertence ao público, mas respeita a pessoa e
os bens dos particulares; respeita direitos sobre os quais estão alicerçados os seus.
Como o objetivo da guerra consiste em destruir o Estado inimigo, tem-se o direito
de matar os defensores enquanto estiverem com as armas na mão; mas tão logo
as deponham e se rendam, cessam de ser inimigos ou instrumentos do inimigo,
voltam a ser simplesmente homens, e não mais se dispõe de direito sobre suas
vidas. Pode-se por vezes matar o Estado sem matar um único de seus membros;
ora, a guerra não dá nenhum direito desnecessário ao seu objetivo. Estes
princípios não são os mesmos de Grotius; não estão alicerçados nas autoridades
de poetas, mas derivam da natureza das coisas e são baseados na razão.
A respeito do direito de conquista, não há outro fundamento afora a lei do mais
forte. Se a guerra não dá ao vencedor o direito de massacrar os povos vencidos, o
direito, que ele não possui, não pode estabelecer o de os escravizar. Só se tem o
direito de matar o inimigo quando não se pode escravizá-lo; o direito de o
escravizar não vem por conseguinte do direito de matá-lo; constitui, pois, uma
troca iníqua fazê-lo comprar, ao preço da liberdade, a vida, sobre a qual não se
possui nenhum direito. Estabelecendo-se o direito de vida e morte sobre o direito
de escravatura, e o direito de escravatura sobre o direito de vida e morte, não
está claro que tombamos no círculo vicioso?
Mesmo admitindo esse terrível direito de tudo matar, afirmo que um escravo
obtido na guerra, ou um povo conquistado, só é constrangido a obedecer ao
senhor enquanto a isto for forçado. Tomando-lhe um equivalente à sua vida, o
vencedor não lhe concedeu graça: ao invés de o matar sem proveito, matou-o
inutilmente. E não tendo adquirido nenhuma autoridade junto à força, o estado de
guerra subsiste entre eles como anteriormente; sua própria relação é o efeito
disso, e o uso do direito da guerra não supõe nenhum tratado de paz. Concluíram
uma convenção, quando muito; mas tal convenção, longe de destruir o estado de
guerra, supõe a sua continuidade.
Assim, por qualquer lado que se encarem as coisas, é nulo o direito de escravizar,
não só pelo fato de ser ilegítimo, como porque é absurdo e nada significa. As
palavras escravatura e direito são contraditórias, excluem-se mutuamente. Seja
de homem para homem, seja de um homem para um povo, este discurso será
igualmente insensato: "Faço contigo um contrato, todo em teu prejuízo e todo em
meu proveito, que eu observarei enquanto me aprouver, e que tu observarás
enquanto me aprouver."
V - É preciso remontar sempre a um primeiro convênio.
Mesmo se eu conciliasse tudo o que refutei até aqui, os favorecedores do
despotismo não estariam, a este respeito, mais avançados. Sempre haverá grande
diferença entre submeter uma multidão e reger uma sociedade. No fato de
homens esparsos serem sucessivamente subjugados a um único, independente do
número que constituam, não vejo nisto senão um senhor e escravos, e não um
povo e seu chefe; é, se se quiser, um ajuntamento, mas de modo algum uma
associação; não há nisto nem bem público, nem corpo político. Tal homem, tenha
embora escravizado a metade do mundo, não deixa de ser sempre um particular;
seu interesse, separado do interesse dos outros, não é senão um interesse privado.
Se esse mesmo homem vier a perecer, seu império, após si, ficará disperso e
desligado, como um carvalho que se desfaz e tomba reduzido a um montão de
cinzas, depois de consumido pelo fogo.
Um povo, diz Grotius, pode entregar-se a um rei. Segundo Grotius, um povo é,
pois, um povo antes de se entregar a um rei. Essa doação é um ato civil; supõe
uma deliberação pública. Antes, portanto, de examinar o ato pelo qual o povo
elege um rei, seria bom examinar o ato pelo qual o povo é um povo, porque esse
ato, sendo necessariamente anterior ao outro, constitui o verdadeiro fundamento
da sociedade.
Com efeito, se não houvesse em absoluto convênio anterior, onde estaria, a
menos que a eleição fosse unânime, a obrigação, por parte do pequeno número,
de submeter-se à escolha do grande número, e como cem indivíduos que
desejam um senhor podem ter um direito de votar por dez que de modo nenhum
o desejam? A lei da pluralidade dos sufrágios é por si mesma um
estabelecimento de convênio e supõe, ao menos uma vez, a unanimidade.
VI - Do pacto social.
Eu imagino os homens chegados ao ponto em que os obstáculos, prejudiciais à
sua conservação no estado natural, os arrastam, por sua resistência, sobre as
forças que podem ser empregadas por cada indivíduo a fim de se manter em tal
estado. Então esse estado primitivo não mais tem condições de subsistir, e o
gênero humano pereceria se não mudasse sua maneira de ser.
Ora, como é impossível aos homens engendrar novas forças, mas apenas unir e
dirigir as existentes, não lhes resta outro meio, para se conservarem, senão
formando, por agregação, uma soma de forças que possa arrastá-los sobre a
resistência, pô-los em movimento por um único móbil e fazê-los agir de comum
acordo.
Essa soma de forças só pode nascer do concurso de diversos; contudo, sendo a
força e a liberdade de cada homem os primeiros instrumentos de sua
conservação, como as empregará ele, sem se prejudicar, sem negligenciar os
cuidados que se deve? Esta dificuldade, reconduzida ao meu assunto, pode ser
enunciada nos seguintes termos.
"Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força
comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a
todos, não obedeça portanto senão a si mesmo, e permaneça tão livre como
anteriormente." Tal é o problema fundamental cuja solução é dada pelo contrato
social.
As cláusulas deste contrato são de tal modo determinadas pela natureza do ato,
que a menor modificação as tornaria vãs e de nenhum efeito; de sorte que,
conquanto jamais tenham sido formalmente enunciadas, são as mesmas em
todas as partes, em todas as partes tacitamente admitidas e reconhecidas, até que,
violado o pacto social, reentra cada qual em seus primeiros direitos e retoma a
liberdade natural, perdendo a liberdade convencional pela qual ele aqui
renunciou.
Todas essas cláusulas, bem entendido, se reduzem a uma única, a saber, a
alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, em favor de toda a
comunidade; porque, primeiramente, cada qual se entregando por completo e
sendo a condição igual para todos, a ninguém interessa torná-la onerosa para os
outros.
Além disso, feita a alienação sem reserva, a união é tão perfeita quanto o pode
ser, e nenhum associado tem mais nada a reclamar; porque, se aos particulares
restassem alguns direitos, como não haveria nenhum superior comum que
pudesse decidir entre eles e o público, cada qual, tornado nalgum ponto o seu
próprio juiz, pretenderia em breve sê-lo em tudo; o estado natural subsistiria, e a
associação se tornaria necessariamente tirânica ou inútil.
Enfim, cada qual, dando-se a todos, não se dá a ninguém, e, como não existe um
associado sobre quem não se adquira o mesmo direito que lhe foi cedido, ganhase o equivalente de tudo o que se perde e maior força para conservar o que se
tem.
Portanto, se afastarmos do pacto social o que não constitui a sua essência,
acharemos que ele se reduz aos seguintes termos:
"Cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda a sua autoridade, sob o
supremo comando da vontade geral, e recebemos em conjunto cada membro
como parte indivisível do todo."
Logo, ao invés da pessoa particular de cada contratante, esse ato de associação
produz um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quanto a
assembléia de vozes, o qual recebe desse mesmo ato sua unidade, seu eu
comum, sua vida e sua vontade. A pessoa pública, formada assim pela união de
todas as outras, tomava outrora o nome de cidade j, e toma hoje o de república
ou corpo político, o qual é chamado por seus membros: Estado, quando é passivo;
soberano, quando é ativo; autoridade, quando comparado a seus semelhantes. No
que concerne aos associados, adquirem coletivamente o nome de povo, e se
chamam particularmente cidadãos, na qualidade de participantes na autoridade
soberana, e vassalos, quando sujeitos às leis do Estado. Todavia, esses termos
freqüentemente se confundem e são tomados um pelo outro. É suficiente saber
distingui-los, quando empregados em toda a sua precisão.
VII - Do soberano.
Vê-se, por esta fórmula, que o ato de associação encerra um acordo recíproco
do público com os particulares, e que cada indivíduo, contratante, por assim dizer,
consigo mesmo, se acha obrigado sob uma dupla relação, a saber: como
membro do soberano para com os particulares, e como membro do Estado para
com o soberano. Mas não se pode aqui aplicar a máxima do direito civil, que
ninguém está obrigado aos acordos tomados consigo mesmo; porque há grande
diferença entre obrigar-se consigo mesmo ou com um todo de que se faz parte.
É necessário assinalar ainda que a deliberação pública, que pode obrigar todos os
vassalos ao soberano, em virtude de suas diferentes relações sob as quais cada
um deles é considerado, não pode, pela razão contrária, obrigar o soberano
consigo mesmo, e que, em conseqüência, é contra a natureza do corpo político o
soberano impor-se uma lei que não possa infringir. Podendo considerar-se sujeito
a uma só e mesma relação, encontra-se ele no caso de um particular contratante
consigo mesmo; por onde se observa que não há nem pode haver nenhuma
espécie de lei fundamental obrigatória para o corpo do povo, nem mesmo o
contrato social. O que não significa não possa esse corpo obrigar-se com outrem
no que de modo algum derrogue esse contrato porque, no tocante ao estrangeiro,
ele se torna um simples ser, um indivíduo.
Contudo, o corpo político ou o soberano, extraindo sua existência cinicamente da
pureza do contrato, não pode jamais obrigar-se, mesmo para com outrem, a
nada que derrogue esse ato primitivo, como alienar qualquer porção de si
mesmo, ou submeter-se a outro soberano. Violar o ato pelo qual existe seria
aniquilar-se, e o que nada é nada produz.
Tão logo se encontre a multidão reunida num corpo, não se pode ofender um dos
membros sem atacar o corpo, menos ainda ofender o corpo sem que os
membros disso se ressintam. Assim, o dever e o interesse obrigam igualmente as
duas partes contratantes a se auxiliarem de forma recíproca, e os próprios
homens devem procurar reunir sob essa dupla relação todas as vantagens que
disso dependem.
Ora, sendo formado o soberano tão-só dos particulares que o compõem, não há
nem pode haver interesse contrário ao deles; por conseguinte, não necessita a
autoridade soberana de fiador para com os vassalos, por ser impossível queira o
corpo prejudicar todos os membros, e por, como logo veremos, não lhe ser
possível prejudicar nenhum em particular. 0 soberano, somente pelo que é, é
sempre tudo o que deve ser.
Não sucede, porém, o mesmo com os vassalos em relação ao soberano, perante
o qual, malgrado o interesse comum, ninguém responderia por suas obrigações,
se ele não encontrasse os meios de fazer com que lhe fossem fiéis.
Com efeito, cada indivíduo pode, como homem, ter uma vontade particular
contrária ou dessemelhante à vontade geral que possui na qualidade de cidadão. 0
interesse particular pode faltar-lhe de maneira totalmente diversa da que lhe fala
o interesse comum: sua existência absoluta, e naturalmente independente, pode
fazê-lo encarar o que deve à causa comum como uma contribuição gratuita,
cuja perda será menos prejudicial aos outros que o pagamento oneroso para si; e,
olhando a pessoa moral que constitui o Estado como um ser de razão, pois que
não se trata de um homem, ele desfrutará dos direitos do cidadão, sem querer
preencher os deveres do vassalo: injustiça, cujo progresso causaria a ruína do
corpo político.
A fim de que não constitua, pois, um formulário inútil, o pacto social contém
tacitamente esta obrigação, a única a poder dar forças às outras: quem se recusar
a obedecer à vontade geral a isto será constrangido pelo corpo em conjunto, o
que apenas significa que será forçado a ser livre. Assim é esta condição:
oferecendo os cidadãos à pátria, protege-os de toda dependência pessoal;
condição que promove o artifício e o jogo da máquina política e que é a única a
tornar legítimas as obrigações civis, as quais, sem isso, seriam absurdas, tirânicas
e sujeitas aos maiores abusos.
VIII - Do estado civil.
A passagem do estado natural ao estado civil produziu no homem uma mudança
considerável, substituindo em sua conduta a justiça ao instinto, e imprimindo às
suas ações a moralidade que anteriormente lhes faltava. Foi somente então que a
voz do dever, sucedendo ao impulso físico, e o direito ao apetite, fizeram com
que o homem, que até esse momento só tinha olhado para si mesmo, se visse
forçado a agir por outros princípios e consultar a razão antes de ouvir seus
pendores. Embora se prive, nesse estado, de diversas vantagens recebidas da
Natureza, ganha outras tão grandes, suas faculdades se exercitam e
desenvolvem, suas idéias se estendem, seus sentimentos se enobrecem, toda a
sua alma se eleva a tal ponto, que, se os abusos desta nova condição, não o
degradassem com freqüência a uma condição inferior àquela de que saiu,
deveria abençoar incessantemente o ditoso momento em que foi dali
desarraigado para sempre, o qual transformou um animal estúpido e limitado
num ser inteligente, num homem.
Reduzamos todo este balanço a termos fáceis de comparar. 0 que o homem
perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo que o
tenta e pode alcançar; o que ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o
que possui. Para que não haja engano em suas compensações, é necessário
distinguir a liberdade natural, limitada pelas forças do indivíduo, da liberdade civil
que é limitada pela liberdade geral, e a posse, que não é senão o efeito da força
ou do direito do primeiro ocupante, da propriedade, que só pode ser baseada num
título positivo.
Poder-se-ia, em prosseguimento do precedente, acrescentar à aquisição do
estado civil a liberdade moral, a única que torna o homem verdadeiramente
senhor de si mesmo, posto que o impulso apenas do apetite constitui a escravidão,
e a obediência à lei a si mesmo prescrita é a liberdade. Mas já falei
demasiadamente deste assunto, e o sentido filosófico do termo liberdade não
constitui aqui o meu objetivo.
IX - Do domínio real.
Cada membro da comunidade dá-se a ela no instante em que esta se forma, tal
como se encontram no momento, ele e todas as suas forças; os bens que ele
possui dela fazem parte. Não quer dizer que, em virtude desse ato mude a posse
de natureza mudando de mãos e se torne propriedade em mãos do soberano; mas
como as forças da cidade são incomparavelmente maiores que as de um
particular, o domínio público está também no fato mais forte e irrevogável, sem
que o seja mais ou menos legítimo para os estrangeiros; porque o Estado, no
tocante a seus membros, é senhor de todos os seus bens, pelo contrato social, que,
no Estado, serve de base a todos os direitos; mas não o é, no que concerne às
outras autoridades, senão pelo direito de primeiro ocupante, recebido dos
particulares.
0 direito de primeiro ocupante, embora mais real que o direito do mais forte, só
se toma um direito verdadeiro após o estabeiecimento do direito de propriedade.
Todo homem tem naturalmente direito a tudo que lhe é necessário; mas o ato
positivo que o faz proprietário de algum bem o exclui de todo o resto. Feita a sua
parte, deve ele a isso limitar-se, e não mais tem nenhum direito na comunidade.
Eis por que o direito de primeiro ocupante, tão frágil no estado natural, é
responsável para todo homem civil. Nesse direito, respeita-se menos o que
pertence a outrem que o que não lhe pertence.
Em geral, para autorizar sobre um terreno qualquer o direito de primeiro
ocupante, são necessárias as seguintes condições: primeiramente, que esse
terreno ainda não se encontre habitado por ninguém; em segundo lugar, que
apenas seja ocupada a área de que se tem necessidade para subsistir; em
terceiro, que se tome posse dela, não em virtude de uma vã cerimônia, mas pelo
trabalho e pela cultura, único sinal de propriedade que, à falta de títulos jurídicos,
deve ser respeitado por outrem.
Com efeito, conciliar com a necessidade e o trabalho o direito de primeiro
ocupante, não significa estendê-lo tão longe quanto possa ir? Pode-se deixar de
impor limites a esse direito? Será o bastante pôr os pés num terreno comum para
logo se pretender a sua propriedade? Bastará ter a força de dele afastar os outros
homens, por um instante, para os privar do direito de aí jamais voltarem? Como
pode um homem ou um povo apropriar-se de um imenso território e dele privar
todo o gênero humano, graças a uma usurpação punível, uma vez que esta retira
aos demais homens a residência e os alimentos que a Natureza lhes oferece em
comum? Quando Nunez Balboa, pisando na praia, tomava posse do mar do Sul e
de toda a América meridional, em nome da coroa de Castela, era isso suficiente
para despojar todos os seus habitantes e deles excluir todos os príncipes do
mundo? Em razão disso, multiplicavam-se assaz inutilmente essas cerimônias, e o
rei católico, de seu gabinete, podia apossar-se de vez de todo o Universo, salvo
suprimir, em seguida, de seu império o que estava anteriormente de posse dos
outros príncipes.
Concebe-se como as terras dos particulares, reunidas e contínuas se transformam
em território público, e como o direito de soberania, estendendo-se dos vassalos
ao terreno por eles ocupado, se toma a um tempo real e pessoal, o que coloca os
possuidores numa maior dependência e faz de suas próprias forças os penhores
de sua fidelidade; vantagem que, parece, não foi bem compreendida pelos
antigos monarcas, os quais, atribuindo-se apenas os títulos de reis dos persas, dos
citas, dos macedônios, davam a impressão de que se olhavam, de preferência,
como os chefes de homens e não como senhores do país. Os monarcas de hoje
chamam-se a si mesmos, mais habilmente, reis de França, de Espanha, de
Inglaterra, etc. Conservando dessa maneira o terreno, sentem-se mais seguros
para conservar os habitantes.
0 que há de singular nessa alienação consiste em que, ao aceitar os bens dos
particulares, a comunidade os despoja, e outra coisa não faz senão assegurar-lhes
a posse legítima, mudar a usurpação num verdadeiro direito e a fruição em
propriedade. Então, os possuidores, considerados como depositários do bem
público, com seus direitos respeitados por todos os membros do Estado, e
mantidos por todas as suas forças contra o estrangeiro, em virtude de uma cessão
vantajosa ao público e mais ainda a si mesmos, adquirem, por assim dizer, o que
tinham dado: paradoxo facilmente explicável pela distinção dos direitos que o
soberano e o proprietário possuem sobre o mesmo solo, como veremos mais
adiante.
Pode também acontecer que os homens comecem a unir-se antes de nada
possuírem, e que, apropriando-se em seguida de um terreno suficiente para
todos, o desfrutem em comum ou o dividam entre si, seja em iguais porções,
seja segundo as proporções estabelecidas pela soberania. De qualquer modo que
se faça tal aquisição, o direito de cada particular sobre sua parte do solo está
sempre subordinado ao direito da comunidade sobre o todo, sem o que não
haveria solidez no laço social nem força real no exercício da soberania.
Terminarei este capítulo e este livro por uma observação que deve servir de base
a todo o sistema social: é que o pacto fundamental, ao invés de destruir a
igualdade natural, substitui, ao contrário, por uma igualdade moral e legítima a
desigualdade física que a Natureza pode pôr entre os homens, fazendo com que
estes, conquanto possam ser desiguais em força ou em talento, se tornem iguais
por convenção e por direito (4) .
LIVROII
1 - A soberania é inalienável.
A primeira e mais importante conseqüência dos princípios acima estabelecidos
está em que somente a vontade geral tem possibilidade de dirigir as forças do
Estado, segundo o fim de sua instituição, isto é, o bem comum; pois, se a oposição
dos interesses particulares tomou necessário o estabelecimento das sociedades,
foi a conciliação desses mesmos interesses que a tornou possível. Eis o que há de
comum nesses diferentes interesses fornecedores do laço social; e, se não
houvesse algum ponto em torno do qual todos os interesses se harmonizam,
sociedade nenhuma poderia existir. Ora, é unicamente à base desse interesse
comum que a sociedade deve ser governada.
Digo, pois, que outra coisa não sendo a soberania senão o exercício da vontade
geral, jamais se pode alienar, e que o soberano, que nada mais é senão um ser
coletivo, não pode ser representado a não ser por si mesmo; é perfeitamente
possível transmitir o poder, não porém a vontade.
Com efeito, se não é impossível fazer concordar uma vontade particular com a
vontade geral, em torno de algum ponto, é pelo menos impossível fazer com que
esse acordo seja durável e constante; porque a vontade particular, por sua
natureza, tende às preferências, e a vontade geral à igualdade. É ainda mais
impossível haja um fiador desse convênio; e mesmo quando sempre devesse
existir, não seria ele um efeito da arte, mas do acaso. 0 soberano pode
perfeitamente dizer: Desejo neste instante o que tal homem deseja, ou ao menos
o que ele diz desejar, mas não pode dizer: O que este homem desejar amanhã,
eu o desejarei ainda, visto ser absurdo entregar-se a vontade aos grilhões para o
futuro e não depender de nenhuma vontade consentir em nada que contrarie o
interesse do ser que deseja. Se o povo, portanto, promete simplesmente
obedecer, dissolve-se em conseqüência desse ato, perde sua qualidade de povo;
no instante em que houver um senhor, não mais haverá soberano, e a partir de
então o corpo político estará destruído.
Não quer isso dizer que as ordens dos chefes não possam ser consideradas como
vontades gerais, enquanto o soberano, livre para a isso se opor, não o faz. Em
semelhante caso, deve-se, do silêncio universal, presumir o consentimento do
povo, o que se explicará mais demoradamente.
II - A soberania é indivisível.
Pela mesma razão que a torna alienável, a soberania é indivisível, porque a
vontade é geral (5), ou não o é; é a vontade do corpo do povo, ou apenas de uma
de suas partes. No primeiro caso, essa vontade declarada constitui um ato de
soberania e faz lei; no segundo, não passa de uma vontade particular ou um ato
de magistratura: é, no máximo, um decreto.
Porém nossos políticos, não podendo dividir a soberania em seu princípio,
dividem-na em força e em vontade, em poder legislativo e em poder executivo,
em direitos de impostos, de justiça e de guerra, em administração interior e em
poder de tratar com o estrangeiro; ora confundem todas essas partes, ora as
separam; fazem do soberano um ser fantástico formado de peças ajustadas; é
como se compusessem o homem reunindo diversos corpos, um dos quais teria os
olhos, outro os braços, outro os pés, e nada mais. Os pelotiqueiros do Japão,
segundo dizem, despedaçam uma criança à vista da assistência; em seguida
lançam ao ar, um após outro, todos os membros, e fazem a criança voltar ao
chão viva e completamente reajuntada. Tais são aproximadamente os engodos
de nossos políticos: depois de haverem desmembrado o corpo social graças a
uma prestidigitação digna da feira, reúnem as peças não se sabe como.
Provém esse erro da inexistência de noções exatas a respeito da autoridade
soberana, e por se haverem tomado como partes dessa autoridade o que não era
mais que emanações da mesma. Assim, olhou-se, por exemplo, o ato da
declaração de guerra e o de assinar a paz como atos de soberania, o que é falso,
uma vez que cada um desses atos de modo algum constitui uma lei, mas tãosomente uma aplicação da lei, um ato particular que determina o caso da lei,
como se verá com clareza quando a idéia unida ao termo lei for fixada.
Observando igualmente as demais divisões, perceberíamos que todas as vezes
que imaginamos ver a soberania partilhada nos enganamos, que os direitos
tomados como partes dessa soberania lhe são todos subordinados e sempre
supõem vontades supremas, dos quais esses direitos só dão a execução.
Não se saberia dizer quanto essa inexatidão tem obscurecido as decisões dos
autores em matéria de direito político, quando pretenderam julgar os respectivos
direitos dos reis e dos povos, no tocante aos princípios estabelecidos. Todos
podem ver, nos capítulos III e IV do primeiro livro de Grotius, de que maneira
este sábio e Barbey rac, seu tradutor, se encabrestam e embaraçam em sofismas,
receosos de dizer muito ou de não dizer o suficiente, consoante seus intentos, e de
pôr em choque os interesses que tinham de conciliar. Grotius, refugiado em
França, descontente da pátria e querendo cair nas boas graças de Luís XIII, a
quem dedicou o livro, nada economiza no sentido de despojar os povos de todos
os direitos e revestir os reis com toda a arte possível. Foi também essa a atitude
de Barbey rac, que dedicava sua tradução ao rei da Inglaterra, Jorge I. Mas,
desgraçadamente, a expulsão de Jacques II, por ele chamada de abdicação,
forçava-o a manter reserva, a esquivar-se, a tergiversar, para não transformar
Guilherme num usurpador. Se esses dois escritores tivessem adotado os
verdadeiros princípios, todas as dificuldades seriam superadas e eles se teriam
mostrado sempre conseqüentes; mas, nesse caso, teriam, com tristeza, dito a
verdade e cortejado unicamente o povo. Ora, a verdade de nenhum modo
conduz à fortuna, e o povo não concede embaixadas, nem cátedras, nem
pensões.
III - A vontade geral pode errar.
Resulta do precedente que a vontade geral é sempre reta e tende sempre para a
utilidade pública; mas não significa que as deliberações do povo tenham sempre
a mesma retitude. Quer-se sempre o próprio bem, porém nem sempre se o vê:
nunca se corrompe o povo, mas se o engana com freqüência, e é somente então
que ele parece desejar o mal.
Há muitas vezes grande diferença entre a vontade de todos e a vontade geral:
esta olha somente o interesse comum, a outra o interesse privado, e outra coisa
não é senão a soma de vontades particulares; mas tirai dessas mesmas vontades
as que em menor ou maior grau reciprocamente se destroem (6), e resta como
soma das diferenças a vontade geral.
Se, quando o povo, suficientemente informado, delibera, não tivessem os
cidadãos nenhuma comunicação entre si, sempre resultaria a vontade geral do
grande número de pequenas diferenças, e a deliberação seria sempre boa.
Quando, porém, há brigas, associações parciais às expensas da grande, a vontade
de cada uma dessas associações torna-se geral em relação a seus membros, e
particular no concernente ao Estado; pode-se então dizer que já não há tantos
votantes quantos são os homens, mas apenas tantos quantas forem as associações;
as diferenças se tornam mais numerosas e fornecem um resultado menos geral.
Finalmente, quando uma dessas associações se apresente tão grande a ponto de
sobrepujar todas as outras, não mais tereis por resultado uma soma de pequenas
diferenças, porém uma diferença única; deixa de haver então a vontade geral, e
a opinião vencedora é tão-somente uma opinião particular.
Portanto, a fim de se ter o perfeito enunciado da vontade geral, importa não haja
no Estado sociedade parcial e que cada cidadão só manifeste o próprio
pensamento (7). Foi assim a única e sublime instituição do grande Licurgo. Pois
se houver sociedades parciais, será necessário multiplicar o seu número e
prevenir a desigualdade entre elas, como o fizeram Sólon, Numa e Servius. Tais
precauções são as únicas adequadas para que a vontade geral esteja sempre
esclarecida e o povo de modo nenhum se equivoque.
IV - Dos limites do poder soberano.
Se o Estado ou a cidade só constitui uma pessoa moral, cuja vida consiste na
união de seus membros, e se o mais importante de seus cuidados é o de sua
própria conservação, é necessário uma força universal e compulsória para
mover e dispor cada uma das partes da maneira mais conveniente para o todo.
Como a Natureza dá a cada homem um poder absoluto sobre todos os seus
membros, dá o pacto social ao corpo político um poder absoluto sobre todos os
seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, recebe, como eu
disse, o nome de soberania.
Contudo, além da pessoa pública, temos a considerar as pessoas privadas que a
compõem e cuja vida e liberdade são naturalmente independentes delas. Tratase, pois, de distinguir com acerto os respectivos direitos dos cidadãos e do
soberano (8), e os deveres a cumprir por parte dos primeiros, na qualidade de
vassalos, do direito natural que devem desfrutar na qualidade de homens.
Convém que tudo quanto cada qual aliene em virtude do pacto social de seu
poder, de seus bens, de sua liberdade, seja apenas a parte cujo uso interesse à
sociedade, todavia, é preciso igualmente convir que só o soberano pode ser juiz
desse interesse.
Todos os serviços que possa um cidadão prestar ao Estado, tão logo o soberano os
solicite, passam a constituir um dever; mas, de seu lado, o soberano não tem o
direito de sobrecarregar os vassalos de nenhum grilhão inútil à comunidade;
sequer o pode desejar: porque, sob a lei da razão, nada se faz sem causa, do
mesmo modo que sob a lei natural.
Os empenhos que nos ligam ao corpo social só são obrigatórios pelo fato de
serem recíprocos, e é tal sua natureza que, desempenhando-os, não se pode
trabalhar para outrem sem trabalhar também para si mesmo. Por que é sempre
reta a vontade geral, e por que desejam todos, constantemente, a felicidade de
cada um, se não pelo fato de não haver quem não se aproprie dos termos cada
um e não pense em si mesmo ao votar por todos? Isso prova que a igualdade de
direito e a noção de justiça que aquela produz derivam da preferência que cada
qual se atribui, e, por conseguinte, da natureza do homem; que a vontade geral,
por ser realmente conforme, deve existir no seu objeto, bem como na sua
essência; que deve partir de todos, para a todos ser aplicada; e que perde sua
retidão natural quando tende a algum objeto individual e determinado, porque
então, julgando do que nos é estranho, não temos nenhum real princípio de
eqüidade a conduzir-nos.
Com efeito, tão logo se trate de um fato ou de um direito particular, sobre ponto
não regulado por convenção geral e interior, o negócio se toma contencioso;
constitui um processo em que os particulares interessados representam uma das
partes e o público outra, mas no qual não vejo nem a lei a ser seguida nem o juiz
que deve pronunciar. Seria então ridículo remontar a uma expressa decisão da
vontade geral, que só pode ser a conclusão de uma das partes, e que, por
conseguinte, não passa para a outra de uma vontade estranha, particular, induzida
à injustiça e sujeita ao erro. Assim, do mesmo modo, como uma vontade
particular não pode representar a vontade geral, a vontade geral, por seu turno,
muda de natureza quando tem um objeto particular, e não pode, como geral,
decidir nem sobre um homem nem sobre um fato. Por exemplo, quando o povo
de Atenas nomeava ou destituía os chefes, tributava honras a um, impunha
castigos a outro, e, por infinidade de decretos particulares, exercia
indistintamente todos os atos do governo, não mais estava então de posse da
vontade geral propriamente dita, não mais agia como soberano, mas como
magistrado. Isto parecerá contrário às idéias comuns, mas é preciso me
concedam o tempo de expor as minhas.
Deve-se por aí conceber que o que generaliza a vontade é menos o número de
vozes que o interesse comum que as une; porque, numa instituição, cada qual se
submete necessariamente às condições que impõe aos outros: admirável acordo
do interesse e da justiça, que fornece às deliberações comuns um caráter
eqüitativo, o qual se vê desvanecer-se na discussão de todo negócio particular, à
falta de um interesse comum que una e identifique a regra do juiz com a da
parte.
Por qualquer dos lados que se remonte ao princípio, chega-se sempre à mesma
conclusão, a saber, que o pacto social estabelece tal igualdade entre os cidadãos,
que os coloca todos sob as mesmas condições e faz com que todos usufruam dos
mesmos direitos. Destarte, pela natureza do pacto, todo ato de soberania, isto é,
todo ato autêntico da vontade geral, obriga ou favorece todos os cidadãos, de
maneira que o soberano apenas conheça o corpo da nação e não distinga nenhum
dos corpos que a compõem. Que é, pois, na realidade, um ato de soberania? Não
é um convênio entre o superior e o inferior, mas uma convenção do corpo com
cada um de seus membros: convenção legítima, porque tem por base o contrato
social; eqüitativa, porque é comum a todos; útil, porque não leva em conta outro
intento que não o bem geral, porque possui como fiadores a força do público e o
poder supremo. Enquanto os vassalos estiverem apenas sujeitos a tais
convenções, não obedecerão a ninguém, mas unicamente à própria vontade; e
perguntar até aonde se estendem os respectivos direitos do soberano e dos
cidadãos é perguntar até que ponto podem estes empenhar-se consigo mesmos,
cada um com todos, e todos com cada um deles.
Vê-se por aí que o poder soberano, todo absoluto, todo sagrado, todo inviolável
que é, não passa nem pode passar além dos limites das convenções gerais, e que
todo homem pode dispor plenamente da parte de seus bens e da liberdade que lhe
foi deixada por essas convenções; de sorte que o soberano jamais possui o direito
de sobrecarregar um vassalo mais que outro, porque então, tornando-se o
negócio particular, deixa o seu poder de ser competente.
Uma vez admitidas essas distinções, é tão falso haver no contrato da parte dos
particulares, qualquer renúncia verdadeira, que sua situação, por efeito do
contrato, se torna realmente preferível à que tinha anteriormente, pois que, em
lugar de uma alienação, fizeram a troca vantajosa de uma maneira incerta e
precária por uma outra melhor e mais segura, da, independência natural pela
liberdade, do poder de causar dano a outrem por sua própria segurança, e da
força, que podia ser por outros sobrepujada, por um direito que a união social
transforma em invencível. A própria vida, consagrada por eles ao Estado, fica
continuamente protegida, e quando a expõem na defesa deste, que fazem então
senão devolver o que dele receberam? Que fazem eles além do que teriam
freqüentemente feito, e com maior perigo, no estado natural, quando,
entregando-se a inevitáveis combates, defendessem, com perigo de vida, o que
lhes serve para a conservar? Todos devem necessariamente lutar em defesa da
pátria, é verdade; mas também é verdade que ninguém necessita de combater
para a própria defesa. Com referência à nossa segurança, não ganhamos ainda,
quando nos dispomos a correr os riscos que seria necessário correr em nosso
favor tão logo fossemos dessa segurança despojados?
V - Do direito de vida e morte.
Pergunta-se como podem os particulares, desprovidos do direito de dispor de suas
vidas, transferir ao soberano esse mesmo direito que não possuem? Tal questão
só parece difícil de ser resolvida, porque está mal colocada. Todo homem tem o
direito de arriscar a própria vida a fim de a conservar. Alguma vez foi dito que
quem se lança por uma janela para escapar de um incêndio seja culpado de
cometer suicídio? Imputou-se alguma vez o mesmo crime a quem, embarcando,
sem conhecer o perigo, vem a morrer durante uma tempestade?
0 tratado social tem por objetivo a conservação dos contratantes. Quem quer o
fim quer também os meios, e esses meios são inseparáveis de alguns riscos,
inclusive de algumas perdas. Quem quer conservar a vida às expensas dos outros
deve dá-la por eles quando se faz necessário. Ora, o cidadão não é juiz do perigo
ao qual a lei o expõe; e quando o príncipe lhe diz: "Ao Estado é útil que morras",
ele deve morrer, pois não foi senão sob essa condição que viveu em segurança
até esse momento, e sua vida não é mais uma mercê da Natureza, mas um dom
condicional do Estado.
A pena de morte, imposta aos criminosos. pode ser de certa forma encarada sob
esse ponto de vista: para não ser vítima de um assassino é que se consente em
morrer, sendo o caso. Nesse tratado, longe de se dispor da própria vida, pensa-se
em garanti-la, e não é de presumir premedite então um contratante fazer-se
enforcar.
De resto, todo malfeitor, ao atacar o direito social, torna-se, por seus delitos,
rebelde e traidor da pátria; cessa de ser um de seus membros ao violar suas leis,
e chega mesmo a declarar-lhe guerra. A conservação do Estado passa a ser
então incompatível com a sua; faz-se preciso que um dos dois pereça, e quando
se condena à morte o culpado, se o faz menos na qualidade de cidadão que de
inimigo. Os processos e a sentença constituem as provas da declaração de que o
criminoso rompeu o tratado social, e, por conseguinte, deixou de ser considerado
membro do Estado. Ora, como ele se reconheceu como tal, ao menos pela
residência, deve ser segregado pelo exílio, como infrator do pacto, ou pela morte,
como inimigo público, pois um inimigo dessa espécie não é uma pessoa moral; é
um homem, e manda o direito da guerra matar o vencido.
Mas, dir-se-á, a condenação de um criminoso constitui um ato particular. De
acordo: essa condenação, também, não pertence em absoluto ao soberano; é um
direito que este pode conferir sem o poder exercer pessoalmente. Todas as
minhas idéias se coordenam, mas eu não saberia expô-las simultaneamente.
Ademais, a freqüência dos suplícios constitui sempre um sinal de fraqueza ou
indolência no governo: não existe malvado que não possa servir para alguma
coisa. Não se tem o direito de matar, mesmo para exemplo, senão aquele que se
não pode conservar sem perigo.
Quanto ao direito de agraciar ou isentar um culpado da pena imposta pela lei e
pronunciada pelo juiz, é da competência exclusiva de quem se encontra acima
do juiz e da lei, isto é, do soberano; seu direito no que a isto concerne não está
ainda bem nítido, e o uso dele tem sido muito raro. Num Estado bem governado,
há poucas punições, não porque se concedam muitas graças, mas pelo fato de
haver poucos criminosos; a quantidade de crimes assegura a impunidade, quando
o Estado se deteriora. Na República romana, jamais o Senado ou os cônsules
intentaram conceder graça; o próprio povo não a fazia, muito embora revogasse
algumas vezes a própria sentença. As graças freqüentes anunciam que breve os
delitos não mais necessitarão delas, e cada um pode ver aonde isso nos conduzirá.
Sinto, porém, que o coração murmura e me detém a pena; deixemos que discuta
esses problemas o homem justo, que jamais pecou e que nunca necessitou para
si mesmo de perdão.
VI - Da lei.
Pelo pacto social demos existência ao corpo político; trata-se agora de lhe dar o
movimento e a vontade por meio da legislação. Porque o ato primitivo, pelo qual
esse corpo se forma e se une, não determina ainda o que ele deve fazer para se
conservar.
O que é bom e conforme a ordem o é pela natureza das coisas e
independentemente das convenções humanas. Toda justiça vem de Deus; só Ele
é sua fonte; mas, se soubéssemos recebê-la de tão alto, não teríamos necessidade
nem de governo nem de leis. Está fora de dúvida a existência de uma justiça
universal, só da razão emanada; tal justiça, porém, para ser admitida entre nós,
deve ser recíproca. Considerando humanamente as coisas, à falta de sanção
natural, são vãs as leis da justiça entre os homens; fazem o bem do perverso e o
mal do justo, quando este as observa com todos, sem que ninguém as observe
consigo. É necessário, pois, haja convenções e leis para unir os direitos aos
deveres e encaminhar a justiça a seu objetivo. No estado natural, onde tudo é
comum, nada devo àqueles a quem nada prometi; só reconheço como sendo de
outrem o que me é inútil. Isso não ocorre no estado civil, onde todos os direitos
são fixados pela lei.
Mas que é enfim uma lei? Enquanto continuarmos ajuntar a esse termo somente
idéias metafísicas, prosseguiremos a raciocinar sem nada entender, e quando
tivermos dito o que é uma lei natural, não saberemos melhor o que é uma lei do
Estado.
Já tive ocasião de dizer que, de modo algum, havia vontade geral num objeto
particular. Esse objeto particular encontra-se, com efeito, no Estado ou fora do
Estado; uma vontade que lhe seja estranha não é em absoluto geral em relação a
ele; e se esse objeto está no Estado, dele faz parte, e então se forma entre o todo
e sua parte uma relação que os transforma em dois seres separados, cuja parte é
um, e o todo, menos esta mesma parte, constitui o outro. Mas o todo menos uma
parte, não é de nenhum modo o todo, e enquanto essa relação subsiste, não mais
há o todo, mas sim duas partes desiguais; de onde se conclui que a vontade de
uma não é também mais geral em relação à outra.
Mas quando todo o povo estatui sobre todo o povo, só a si mesmo considera; e se
se forma então uma relação, é do objeto inteiro sob um ponto de vista ao objeto
inteiro sob outro ponto de vista, sem nenhuma divisão do todo. Então, a matéria
sobre a qual estatuímos passa a ser geral, como a vontade que estatui. A esse ato
é que eu chamo uma lei.
Quando digo que o objeto das leis é sempre geral, entendo que a lei considera os
vassalos em corpo e as ações como sendo abstratas, jamais um homem como
indivíduo, nem uma ação particular. Destarte, pode a lei estatuir perfeitamente
que haverá privilégios, mas não pode ofertá-los nominalmente a ninguém; pode a
lei instituir diversas classes de cidadãos, assinalar inclusive as qualidades que
darão direito a essas classes; mas não pode nomear este ou aquele para ser nelas
admitido; pode estabelecer um governo real e uma sucessão hereditária, mas não
pode eleger um rei nem nomear uma família real: numa palavra, toda função
que se relacione com um objeto individual não pertence de nenhum modo ao
poder legislativo.
No tocante a esta idéia, vê-se imediatamente não mais ser preciso perguntar a
quem compete fazer as leis, pois que elas constituem atos da vontade geral; nem
se o príncipe se encontra acima das leis, pois que ele é membro do Estado; nem
se a lei pode ser injusta, pois que ninguém é injusto consigo mesmo; nem em que
sentido somos livres e sujeitos às leis, pois que estas são apenas registros de
nossas vontades.
Vê-se ainda que, reunindo a lei da universalidade da vontade e a do objeto, tudo
que um homem, seja quem for, ordena de sua cabeça não é em absoluto uma
lei; mesmo o que é ordenado pelo soberano acerca de um objeto particular não é
igualmente uma lei, mas um decreto; nem constitui um ato de soberania, mas de
magistratura.
Eu chamo, pois, república todo Estado regido por leis, independente da forma de
administração que possa ter; porque então somente o interesse público governa, e
a coisa pública algo representa. Todo governo legítimo é republicano . Explicarei
mais adiante o que é o governo.
As leis não são propriamente senão as condições de associação civil. O povo,
submetido às leis, deve ser o autor das mesmas; compete unicamente aos que se
associam regulamentar as condições de sociedade; mas de que maneira as
regulamentarão? Fá-lo-ão de comum acordo, como que por uma inspiração
sublime? Possui o corpo político um órgão qualquer para enunciar-lhe as
vontades? Quem lhe dará a previsão necessária para formar e publicar os atos
antecipadamente, ou como os pronunciará no momento de necessidade? De que
maneira uma turba cega, que em geral não sabe o que quer, porque raramente
conhece o que lhe convém, executará por si mesma um empreendimento de tal
importância e tão difícil como um sistema de legislação? 0 povo, de si mesmo,
sempre deseja o bem; mas nem sempre o vê, de si mesmo. A vontade geral é
sempre reta; mas o julgamento que a dirige nem sempre é esclarecido. E
necessário fazer-lhe ver os objetos tais como são, e muitas vezes tais como
devem parecer-lhe; é preciso mostrar-lhe o bom caminho que procura, protegêla da sedução das vontades particulares, aproximar de seus olhos os lugares e os
tempos, equilibrar o encanto das vantagens presentes e sensíveis com o perigo
dos males afastados e ocultos. Os particulares vêem o bem que rejeitam, o
público deseja o bem que não vê. Todos igualmente necessitam de guias; é
preciso obrigar uns a conformar suas vontades com sua razão; é necessário
ensinar outrem a conhecer o que pretende. Então, das luzes públicas resulta a
união do entendimento e da vontade no corpo social; dá o exato concurso das
partes e, finalmente, a maior força do todo. Eis de onde nasce a necessidade de
um legislador.
VII - Do legislador.
Para descobrir as melhores regras de sociedade convenientes às nações, far-seia preciso uma inteligência superior que visse todas as paixões e não provasse
nenhuma; que não tivesse nenhuma relação com nossa natureza e a conhecesse
no íntimo; cuja felicidade fosse independente de nós, e que, portanto. quisesse
ocupar-se da nossa; enfim que, no progresso dos tempos, procurando-se uma
glória longínqua, pudesse trabalhar em um século e usufruir em um outro (10).
Haveria necessidade de deuses para dar leis aos homens.
0 mesmo raciocínio que fazia Calígula com referência ao fato, fazia Platão no
tocante ao direito, a fim de definir o homem civil ou real, procurado por ele em
seu livro Do Reino; porém é verdade que um grande príncipe é também um
homem raro; como não há de sê-lo um grande legislador? Ao primeiro basta
seguir o modelo a ser proposto pelo outro; este representa o mecânico inventor da
máquina, aquele é apenas o operário que a monta e a faz funcionar. No
nascimento das sociedades, diz Montesquieu, encontram-se os chefes das
repúblicas que fazem as instituições, e é, em seguida, a instituição que forma os
chefes das repúblicas.
Aquele que ousa empreender a instituição de um povo deve sentir-se com
capacidade de, por assim dizer, mudar a natureza humana; de transformar cada
indivíduo, que, por si mesmo, constitui um todo perfeito e solidário, em parte de
um todo maior, do qual esse indivíduo recebe, de certa forma, a vida e o ser; de
alterar a constituição do homem a fim de reforçá-la; de substituir uma existência
parcial e moral à existência física e independente que todos recebemos da
Natureza. Numa palavra, é preciso que arrebate ao homem as forças que lhe são
inerentes, para lhe dar forças estranhas, das quais ele não possa fazer uso sem a
ajuda alheia. Quanto mais essas forças naturais estejam mortas e aniquiladas,
maiores e mais duráveis são as aquisições, e também mais sólida e perfeita é a
instituição; de sorte que, se cada cidadão nada é, nada pode ser sem a ajuda de
todos os outros, e a força adquirida pelo todo é igual ou superior à soma das
forças naturais de todos os indivíduos, pode-se dizer que a legislação se encontra
no ponto mais alto de perfeição que possa ser atingido.
O legislador, a todos os respeitos, é no Estado um homem extraordinário. Se o
deve ser por seu engenho, não o é menos por seu emprego; não é de modo algum
magistratura, não é de nenhum modo soberania. O emprego, que constitui a
república, não entra em absoluto em sua constituição; é uma função particular e
superior, que nada tem de comum com o império humano; porque, se quem
dirige os homens não deve dirigir as leis, quem dirige as leis não deve, pela
mesma razão, dirigir os homens; do contrário, suas leis, ministras de suas paixões,
perpetuariam muitas vezes suas injustiças, e ele jamais poderia evitar que intuitos
particulares alterassem a santidade de sua obra.
Ao dar leis à sua pátria, começou Licurgo por abdicar a realeza. Era costume da
maioria das cidades gregas confiar a estrangeiros o estabelecimento de suas leis.
As modernas repúblicas da Itália imitaram muitas vezes esse uso. A de Genebra
fez o mesmo e achou-se bem (11). Roma, em seus mais belos tempos, viu
renascer em seu seio todos os crimes da tirania e viu-se prestes a perecer, pelo
fato de haver reunido sobre as mesmas cabeças a autoridade legislativa e o poder
soberano.
Entretanto, os próprios decênviros jamais se arrogaram o direito de forçar a
introdução de nenhuma lei, partida de sua autoridade. "Nada do que propomos",
diziam eles ao povo, "pode transformar-se em lei sem vosso consentimento.
Romanos, sede vós mesmos os autores das leis incumbidas de promover a vossa
felicidade."
Quem redige as leis não tem, portanto, ou não deve ter nenhum direito legislativo,
e o próprio povo não pode, mesmo se o quisesse, despojar-se desse
incomunicável direito, porque, de acordo com o pacto fundamental, a vontade
geral é a única que obriga os particulares, e nunca se pode afirmar que uma
vontade particular está conforme a vontade geral, senão depois de havê-la
submetido aos livres sufrágios do povo. Já tive oportunidade de dizer tal coisa,
mas não me parece inútil repeti-la.
Assim, acham-se simultaneamente na obra da legislação duas coisas na
aparência incompatíveis: um empreendimento acima da força humana, e, para
executá-lo, uma autoridade que nada representa.
Outra dificuldade a merecer atenção: os sábios, desejosos de falarem ao vulgo a
sua linguagem, não a deste, não conseguiriam fazer-se entender. Ora, há mil
espécies de idéias impossíveis de traduzir na língua do povo. As intenções
bastante gerais e os objetos excessivamente distantes ficam, da mesma maneira,
fora de sua compreensão. Cada indivíduo, não apreciando outro plano de governo
que não o relacionado com seu interesse particular, dificilmente percebe as
vantagens a retirar das contínuas privações impostas pelas boas leis. Para que um
povo nascente possa saborear as salutares máximas da política e seguir as regras
fundamentais da razão do Estado, seria indispensável que o efeito pudesse tornarse a causa, que o espírito social, que deve constituir a obra da instituição,
presidisse a própria instituição, e que fossem os homens, antes das leis, o que
devem ser graças a elas. Assim, pois, já que o legislador não pode empregar
nem a força nem o raciocínio, é mister que recorra a uma autoridade de outra
ordem, que possa conduzir sem violência e persuadir sem convencer.
Eis o que forçou, em todos os tempos, os pais das nações a recorrer à intervenção
celeste e honrar os deuses por sua própria sabedoria, a fim de que os povos,
submetidos às leis do Estado como às da Natureza, e reconhecendo o mesmo
poder na formação do homem e na da cidade, obedeçam com liberdade e
aceitem docilmente o jugo da felicidade pública.
Essa sublime razão, que se eleva acima do entendimento dos homens vulgares, é
aquela pela qual o legislador põe as decisões na boca dos imortais, a fim de
conduzir, através da autoridade divina, os que não seriam abalados pela
prudência humana (12). Mas não é dado a todo homem fazer os deuses falarem,
nem ser acreditado quando se anuncia como intérprete deles. O elevado espírito
do legislador é o verdadeiro milagre que deve provar sua missão. Todo homem
pode gravar tábuas de pedra, ou comprar um oráculo, ou simular um comércio
secreto com alguma divindade, ou adestrar um pássaro que lhe fale ao ouvido, ou
encontrar outros meios grosseiros para se impor ao povo. Quem nada souber,
além disso, poderá inclusive reunir por acaso um bando de insensatos, mas
jamais fundará um império, e sua extravagante obra cedo perecerá consigo.
Vãos prestígios apenas formam um laço passageiro; não há senão a sabedoria
para torná-lo durável. A lei judaica, sempre subsistente, a do filho de Ismael, que
há dez séculos vem regendo a metade do mundo, proclamam ainda hoje os
grandes homens que as ditaram, e conquanto a orgulhosa filosofia ou o cego
espírito de partido não veja nelas senão felizes impostores, a verdadeira política
admira em suas instituições o grande e poderoso espírito que preside os
estabelecimentos duráveis.
Disso tudo não se deve concluir, juntamente com Warourton, que a política e a
religião tenham entre nós um objetivo comum; mas sim que, na origem das
nações, uma serve de instrumento à outra.
VIII - Do povo.
Assim como um grande arquiteto, antes de construir, observa e sonda o solo, para
ver se este tem condições de sustentar o peso, o sábio instituidor não começa por
redigir boas leis em si mesmas; mas examina anteriormente se o povo, ao qual
são destinadas, está apto para as aceitar. Foi por isso que Platão recusou dar leis
aos árcades e aos cirenaicos, sabendo que esses dois povos eram ricos e não
podiam admitir a igualdade; foi também por isso que se viram em Creta leis
perfeitas e homens perversos, porque Minos só havia disciplinado um povo
sobrecarregado de vícios.
Brilharam aqui na Terra milhares de nações que jamais teriam podido suportar
boas leis; e mesmo essas que elas teriam admitido não duraram senão um curto
espaço de tempo para isso. Os povos, assim como os homens, somente são dóceis
na juventude; ao envelhecerem, tornam-se incorrigíveis; uma vez estabelecidos
os costumes e enraizados os preconceitos, constitui empreendimento perigoso e
inútil pretender reformá-los; o povo sequer concorda que se lhe toque nos males
a fim de os destruir, à semelhança desses estúpidos e medrosos doentes que
estremecem com a presença do médico.
Não quer isso dizer que, do mesmo modo como certas enfermidades transtornam
a mente dos homens e nelas apagam a lembrança do passado, não se achem às
vezes, na duração dos Estados, épocas violentas em que as revoluções fazem no
povo o mesmo que determinadas crises fazem nos indivíduos, em que o horror do
passado substitui o esquecimento, e o Estado, incendiado pelas guerras civis,
renasce por assim dizer das cinzas e readquire o vigor da juventude, saindo dos
braços da morte. Foi assim Esparta no tempo de Licurgo, foi assim Roma após os
Tarquínios, e foram assim, entre nós, a Holanda e a Suíça, depois da expulsão dos
tiranos.
São raros, porém, esses acontecimentos, são exceções cujo motivo sempre se
acha na constituição particular do Estado excetuado. Não poderiam acontecer
duas vezes no seio do mesmo povo, o qual pode tornar-se livre enquanto bárbaro,
mas não o pode quando a alçada civil se apresenta gasta. As agitações, então,
podem destruí-lo, sem que as revoluções tenham possibilidades de o restabelecer;
e tão logo seus grilhões se rompam, tomba o povo disperso e deixa de existir. Daí
por diante, passa a necessitar de um senhor, não de um libertador. Povos livres,
recordai-vos desta máxima: Pode-se adquirir a liberdade, mas nunca recobrá-la.
Há para as nações, como para os homens, um tempo de maturidade, que é
preciso esperar, antes de as sujeitarmos às leis; mas a maturidade de um povo
não é fácil de conhecer, e se a antecipamos, aborta a obra. Certo povo pode ser
disciplinado ao nascer; outro não o será ao término de dez séculos. Os russos não
serão nunca verdadeiramente policiados, porque o foram muito cedo. Pedro o
Grande tinha o talento imitativo, não o verdadeiro gênio, o que cria e tudo faz do
nada. Algumas coisas que fez eram boas, a maioria delas indevida. Ele viu que
seu povo era bárbaro, mas não viu em absoluto que seu povo não estava
amadurecido para a polícia; ele desejou civilizá-lo, quando devia torná-lo
aguerrido; quis, de início, fazer deles alemães, ingleses, quando era preciso
começar por fazê-los russos; impediu seus vassalos de jamais se tornarem o que
poderiam realmente ser, persuadindo-os de que eram aquilo que são. É dessa
maneira que o preceptor francês educa o seu aluno, fazendo-o brilhar um
momento, durante a infância, para, em seguida, não vir a ser jamais ninguém. 0
império russo desejará subjugar a Europa, e acabará por ser subjugado. Os
tártaros, seus vassalos ou seus vizinhos, se tornarão seus senhores e nossos: esta
revolução parece-me infalível. Todos os reis da Europa trabalham de comum
acordo para acelerá-la.
IX - Continuação do capítulo precedente.
Assim como a Natureza estabeleceu limites à estatura de um homem bem
conformado, além dos quais só produz gigantes ou anões, fez o mesmo no tocante
à melhor constituição de um Estado, limitando-lhe a extensão, a fim de que não
venha a ser nem muito grande para poder ser bem governado, nem muito
pequeno para se poder manter por si mesmo. Em todo corpo político há um
máximo de força que ele não poderia ultrapassar, e do qual com freqüência se
afasta à medida que se expande. Quanto mais se estende o laço social, tanto mais
afrouxa; e, em geral, um pequeno Estado é proporcionalmente mais forte que
um grande.
Mil razões demonstram essa máxima. A administração, em primeiro lugar,
torna-se mais penosa nas grandes distâncias, assim como um peso qualquer se
torna mais pesado na ponta de uma alavanca maior. Torna-se mais onerosa à
medida que os degraus se multiplicam; porque cada cidade tem, de início, a sua
administração, que o povo paga; cada distrito a sua, paga ainda pelo povo; a
seguir, cada província, depois os grandes governos, as satrapias, os vice-reinados,
cuja administração se torna cada vez mais cara, à medida que se sobe, e sempre
à custa do inditoso povo; vem, por fim, a administração suprema, que tudo
esmaga: com tanta sobrecarga a exauri-los continuamente, os vassalos, longe de
serem melhor governados por essas diferentes ordens, acabam por sê-lo pior que
se tivessem um só desses governos a dirigi-los. Não obstante, apenas sobram
recursos para os casos extraordinários; e quando se faz preciso a eles recorrer, é
que se encontra o Estado às vésperas da ruína.
Isso não é tudo: não somente o governo possui menos vigor e rapidez para fazer
observar as leis, impedir os vexames, corrigir os abusos, prevenir os
empreendimentos sediciosos que possam ser promovidos nos pontos distantes,
como também o povo demonstra menor afeição aos chefes, os quais nunca vê, à
pátria, que a seus olhos se assemelha ao mundo, e aos concidadãos cuja maioria
lhe é estranha. As mesmas leis não podem convir igualmente a tantas províncias
diversas, com costumes diferentes, e climas opostos, e que não admitem a
mesma forma de governo. Leis diferentes engendram perturbação e confusão no
seio dos povos que, vivendo sob a direção dos mesmos chefes, em contínua
comunicação, transitam de um lado para outro ou se casam entre si, e que,
sujeitos a outros costumes, nunca sabem se o próprio patrimônio lhes pertence.
Em meio à multidão de homens que se desconhecem mutuamente, reunidos pela
sede da suprema administração num mesmo lugar, os talentos permanecem
ocultos, as virtudes ignoradas e os vícios impunes. Os chefes, sobrecarregados de
tarefas, nada vêem por si mesmos; comissários governam o Estado. Enfim, as
medidas necessárias à manutenção da autoridade geral, a que tantos oficiais
destacados em regiões longínquas desejam subtrair-se, quando não ludibriar,
absorvem todos os cuidados públicos; e nada mais resta para a felicidade do
povo, exceto o indispensável à sua defesa em caso de necessidade; e é assim que
um corpo muito grande, por sua constituição, definha e perece, esmagado pelo
próprio peso.
De outro lado, deve o Estado fornecer-se determinada base para contar com
solidez, para resistir aos sacolejos que não deixará de experimentar e aos
esforços que será obrigado a despender a fim de se manter; porque todos os
povos possuem uma espécie de força centrífuga, pela qual atuam seguidamente
uns sobre outros e tendem a engrandecer-se às expensas dos vizinhos, como os
turbilhões de Descartes. Destarte, correm os fracos o risco de ser engolidos, e
ninguém consegue conservar-se a não ser colocando-se em relação a todos
numa espécie de equilíbrio que torna a compreensão em toda parte mais ou
menos igual.
Vê-se por aí haver razões para alargar e razões para estreitar os limites do
Estado, e não constitui o menor aspecto do talento do político, encontrar, entre
umas e outras, a proporção mais vantajosa à conservação do Estado. Pode-se
dizer em geral que as primeiras, sendo apenas exteriores e relativas, devem ser
subordinadas às outras, que são internas e absolutas; uma sã e forte constituição é
a primeira coisa a pesquisar, e, de preferência, deve-se contar com o vigor
nascido de um bom governo que com os recursos fornecidos por um grande
território.
Ademais, viram-se Estados assim constituídos, cuja necessidade de conquistas
entrava nas próprias constituições, e que, a fim de se manterem, eram forçados a
ampliar-se sem cessar. Talvez muito se felicitassem por essa feliz necessidade,
que lhes mostrava, com o termo de sua grandeza, o inevitável momento de sua
queda.
X - Continuação.
Pode-se mensurar um corpo político de duas maneiras, a saber: pela extensão do
território, e pelo número da população; e entre uma e outra dessas medidas, há
uma relação conveniente para dar ao Estado sua verdadeira grandeza. São os
homens que fazem o Estado, e é o terreno que alimenta os homens; essa relação
consiste, pois, em que a terra baste para a manutenção de seus habitantes e haja
tantos habitantes quantos a terra possa nutrir. É nessa proposição que se acha o
maximum de força de um número dado de povo; porque, se houver terreno em
demasia, será oneroso protegê-lo, a cultura se mostrará insuficiente, o produto
supérfluo; e será a causa próxima de guerras defensivas. Se não houver terreno
suficiente, o Estado se achará, para o suprir, à discrição de seus vizinhos; e será a
causa próxima de guerras ofensivas. Todo povo que, por sua posição, se acha na
alternativa entre o comércio ou a guerra, é em si mesmo débil; depende de seus
vizinhos, depende dos acontecimentos; jamais terá senão uma existência incerta
e breve; subjuga e muda de situação, ou é subjugado e não será coisa alguma.
Não poderá manter-se livre a não ser à força de sua pequenez ou de sua
grandeza.
É impossível calcular uma relação fixa entre a extensão das terras e o número de
homens que se bastem mutuamente, não só por causa das diferenças existentes
nas qualidades do terreno, em seus graus de fertilidade, na natureza de suas
produções, na influência dos climas, como pelas assinaladas nos temperamentos
dos homens que as habitam, uns consumindo pouco num país fértil, e outros
consumindo muito num solo ingrato. É preciso ainda levar em conta a maior ou
menor fecundidade das mulheres, ao que pode ter o país de mais ou menos
favorável à população, à quantidade com a qual pode o legislador esperar aí
concorrer por seus estabelecimentos, de sorte que não deve ele fundar o
julgamento sobre o que vê, mas sobre o que prevê, nem tanto se deter no estado
atual da população, mas sim no que ela virá naturalmente a ser. Enfim, há mil
ocasiões em que os acidentes particulares do lugar exigem ou permitem que se
tome mais terreno que o que parece necessário. Assim, estender-nos-emos muito
num país montanhoso onde as produções naturais, isto é, os bosques, as pastagens,
demandam menos trabalho, onde a experiência ensina que as mulheres são mais
fecundas que nas planícies, e onde um grande solo inclinado só permite uma
pequena base horizontal, a única com que se pode contar para a vegetação.
Então, ao contrário, podemo-nos restringir à orla do mar, ou mesmo aos
rochedos e às areias quase estéreis, porque a pesca pode aí suprir em grande
parte as produções da terra, e os homens devem permanecer mais juntos para
repelir os piratas, e porque, de resto, temos maiores facilidades para
desembaraçar o país, por meio das colônias, dos habitantes que o sobrecarregam.
Nessas condições, para instituir um povo, é preciso ajuntar uma outra que não
pode suprir nenhuma outra, mas sem a qual todas se revelam inúteis: a de que se
desfrute de paz e abundância; porque o tempo durante o qual se ordena um
Estado é igual àquele em que se forma um batalhão, ao instante em que o corpo
tem menos capacidade de resistência e, portanto, é mais fácil de ser destruído.
Resistir-se-ia melhor em meio a uma desordem absoluta que num momento de
fermentação, quando cada qual se ocupa de sua classe e não do perigo. Se uma
guerra, uma crise de fome, uma sedição sobrevem em tempo de crise, o Estado
é infalivelmente derrubado.
Não quer isto dizer não haja muitos governos estabelecidos durante essas
tempestades, mas então são esses mesmos governos que destroem o Estado. Os
usurpadores conduzem ou escolhem sempre esses tempos de perturbações para
fazerem passar, graças ao espanto público, leis destruidoras que o povo não
adotaria jamais em situação normal. A escolha do momento da instituição é um
dos caracteres mais seguros pelos quais se pode distinguir a obra do legislador da
obra do tirano.
E qual é o povo apto a receber a legislação? Aquele que, estando já ligado
através de alguma união de origem, de interesse ou convenção, não foi ainda
submetido ao verdadeiro jugo das leis; aquele que não possui nem costumes nem
superstições bem arraigadas; aquele que não receia ser esmagado por uma
invasão súbita, que, sem entrar nas querelas de seus vizinhos, tem condições de
resistir sozinho a cada um deles ou obter a ajuda de um a fim de repelir o outro;
aquele em que cada membro pode ser conhecido de todos, e em que não se faz
necessário sobrecarregar um homem de um grande fardo que não possa
carregar; aquele que pode dispensar os outros povos, e do qual nenhum outro
povo deixa de necessitar (13); aquele que nem é rico, nem é pobre, e pode
bastar-se a si mesmo; enfim, aquele que reúne a consistência de um povo antigo
com a docilidade de um hodierno. 0 que torna penosa a obra da legislação não é
tanto o que é preciso estabelecer, mas sim o que é preciso destruir; e o que torna
o êxito tão raro é a impossibilidade de encontrar a simplicidade da Natureza junto
às necessidades da sociedade. Todas essas condições, é verdade, dificilmente se
encontram reunidas: eis por que se vêem poucos Estados bem constituídos.
Existe ainda na Europa um país digno de legislação: é a Ilha da Córsega. O valor
e a constância com as quais esse valente povo tem sabido reconquistar e
defender a liberdade bem mereceria que algum sábio lhe ensinasse a conservála. Tenho certo pressentimento de que um dia essa pequena ilha assombrará a
Europa.
XI - Dos diversos sistemas de legislação.
Se se procura saber em que consiste precisamente o maior dos bens, que deve
ser o objetivo de todo sistema de legislação, achar-se-á que se reduz a estes dois
objetos principais: a liberdade e a igualdade. A liberdade, porque toda
independência particular é outra tanta força subtraída ao corpo do Estado; a
igualdade, porque a liberdade não pode subsistir sem ela.
Já tive ocasião de dizer em que consiste a liberdade civil; a respeito da igualdade,
não se deve entender por essa palavra que os graus de poder e riqueza sejam
absolutamente os mesmos, mas que, quanto ao poder, esteja acima de toda
violência e não se exerça jamais senão em virtude da classe e das leis; e, quanto
à riqueza, que nenhum cidadão seja assaz opulento para poder comprar um
outro, e nem tão pobre para ser constrangido a vender-se 14: o que supõe, por
parte dos grandes, moderação de bens e de crédito, e, do lado dos pequenos,
moderação de avareza e ambição.
Essa igualdade, dizem, é uma quimera especulativa, que não pode existir na
prática; contudo, se o abuso é inevitável, segue-se que se não deve ao menos
regulamentá-lo? E precisamente porque a força das coisas tende sempre a
destruir a igualdade que a força da legislação deve sempre tender a conservá-la.
Todavia. esses generosos objetivos de toda boa instituição devem ser modificados
em cada país pelas relações nascidas tanto da situação local como do caráter dos
habitantes; e é com base nessas relações que cumpre destinar a cada povo um
sistema particular de instituição, que seja o melhor, não talvez em si mesmo, mas
sim para o Estado ao qual é destinado. Por exemplo: é ingrato e estéril o solo, ou
é o país excessivamente exíguo para os habitantes? Voltai-vos para a indústria e
as artes, cujas produções trocareis pelos gêneros de que necessitais. Ocupais, ao
contrário, ricas planícies e férteis encostas? Em um bom terreno, tendes carência
de habitantes? Empregai na agricultura todos os vossos cuidados, que ela
multiplica os homens, e afastai as artes, que acabarão por despovoar o país,
agrupando em alguns pontos do território os poucos habitantes que possui (15).
Ocupais extensas e cômodas praias? Cobri o mar de navios, cultivai o comércio e
a navegação, e tereis uma existência curta e brilhante. Não banha o mar em
vossas costas senão rochedos quase inacessíveis? Permanecei bárbaros e
ictiófagos; vivereis assim mais tranqüilos, quiçá sereis melhores, e certamente
mais felizes. Numa palavra, afora as máximas comuns a todos os povos, cada
um deles encerra em si alguma causa que as ordena de maneira particular e faz
com que sua legislação se torne exclusivamente sua. Foi assim que os hebreus
outrora, e recentemente os árabes, tiveram como matéria principal a religião; os
atenienses, as letras; Cartago e Tiro, o comércio; Rodes, a marinha; Esparta, a
guerra; e Roma, a virtude. 0 autor de 0 Espírito das Leis demonstrou, em
inúmeros exemplos, com que arte dirige o legislador a instituição para cada uma
dessas matérias.
O que torna a constituição de um Estado verdadeiramente sólida e durável é o
fato de as conveniências serem de tal modo observadas, que as relações naturais,
bem como as leis, tombam sempre, harmoniosamente, sobre os mesmos pontos,
e estas últimas assegurarem, acompanharem e retificarem as outras. Mas, se o
legislador, enganando-se em sua matéria, toma um princípio diverso daquele que
nasce da natureza das coisas, um que tenda para a servidão e outro para a
liberdade, um para as riquezas e outro para o povoamento, um para a paz e outro
para as conquistas, veremos as leis debilitarem-se insensivelmente, a constituição
alterar-se, e o Estado não cessar de ser agitado, até ser destruído ou mudado, e a
invencível Natureza retomar o seu império
XII - Divisão das leis.
Para ordenar o todo, ou dar a melhor forma possível à coisa pública, há que
considerar diversas relações. Primeiramente, a ação do corpo inteiro agindo
sobre si mesmo, isto é, a relação do todo com o todo ou do soberano com o
Estado; e essa relação é composta da dos termos intermediários, como o
veremos mais adiante.
As leis que regulamentam essas relações são denominadas leis políticas;
chamam-se também leis fundamentais, não sem alguma razão, no caso de
serem feitas com sabedoria; porque se em cada Estado, não há senão uma
maneira de o dirigir, o povo que a encontrou deve a ela ater-se; mas, no caso de
ser má a ordem estabelecida, por que se há de tomar por fundamentais as leis
que impedem de ser bom? De resto, em todo estado de causa, o povo é sempre
senhor de mudar suas leis, mesmo as melhores, porque, se lhe aprouver
prejudicar a si mesmo, quem terá o direito de impedi-lo?
A segunda relação é a dos membros entre si ou com o corpo inteiro, e essa
relação deve ser, no primeiro caso, tão pequena, e, no segundo, tão grande
quanto possível; de sorte que cada cidadão se sinta perfeitamente independente
de todos os outros e numa excessiva dependência da cidade, o que sempre se faz
através dos mesmos meios, uma vez que não há senão a força do Estado para
promover a liberdade de seus membros. E desta segunda relação que nascem as
leis civis.
Pode-se considerar uma terceira espécie de relação entre o homem e a lei: isto
é, a da desobediência ao castigo, e esta dá lugar ao estabelecimento das leis
criminais, que, no fundo, constituem menos uma espécie particular de leis que a
sanção de todas as outras.
A essas três espécies de leis acrescenta-se uma quarta, a mais importante de
todas, que não se grava nem no mármore nem no bronze, mas no coração do,cidadãos; que adquire diariamente forças novas; que reanima ou substitui as
outras leis quando envelhecem ou se extinguem, e retém o povo dentro do
espírito de sua instituição, e substitui insensivelmente a força do hábito à da
autoridade. Falo dos usos, dos costumes e, em especial, da opinião, parte
desconhecida de nossos políticos, mas da qual depende o êxito de todas as outras;
parte de que o grande legislador se ocupa em segredo, enquanto parece limitarse a regulamentos particulares, que outra coisa não são senão o cimbre da
abóbada, cujos costumes, mais lentos no nascer, compõem enfim a chave
imutável.
Entre essas diversas classes, as leis políticas que constituem a forma do governo
são as únicas que se relacionam com o meu assunto
LIVROIII
Antes de falar das diversas formas de governo, tratemos de fixar o sentido exato
desta palavra, não perfeitamente explicado ainda.
1 - Do governo em geral.
Advirto o leitor de que este capítulo deve ser lido pausadamente; desconheço a
arte de ser claro para quem não deseje ser atento.
Toda ação livre tem duas causas, que concorrem para produzi-la: uma, moral, a
saber, a vontade que determina o ato; outra, física, isto é, o poder que a executa.
Quando caminho na direção de um objeto, faz-se primeiramente necessário que
eu lá queira ir; em segundo lugar, que meus pés me levem. Que um paralítico
deseje correr e um homem ágil não queira, dá na mesma: ambos permanecerão
no mesmo sítio. 0 corpo político possui móbiles idênticos: distinguem-se
igualmente aí a força e a vontade, esta sob o nome de poder legislativo, a outra
sob o nome de poder executivo. Sem o concurso de ambas, nada se faz ou se
deve fazer.
Vimos que o poder legislativo pertence ao povo e só a ele pode pertencer. E, ao
contrário, é fácil ver pelos princípios anteriormente expostos, que o poder
executivo não pode pertencer ao maior número como legislador ou soberano,
pelo fato de este poder só consistir em atos particulares que não são de modo
algum da jurisdição da lei, e, por conseguinte, do soberano cujos atos não podem
ser senão leis.
Necessita, pois, a força pública de um agente próprio que a reuna e a ponha em
funcionamento segundo os rumos da vontade geral, que sirva à comunicação do
Estado e do soberano, e faça de alguma forma na pessoa pública o que a união
da alma e do corpo faz no homem. Eis em que consiste no Estado a razão do
governo, enganosamente confundida com o soberano, da qual não é senão
ministra.
Que é, portanto, o governo? Um corpo intermediário, estabelecido entre os
vassalos e o soberano, para possibilitar a recíproca correspondência, encarregado
da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil como política.
Os membros desse corpo chamam-se magistrados, ou reis, governadores, e o
corpo, em seu conjunto, recebe o nome de príncipe (16). Assim sendo, têm
muita razão os que pretendem que o ato pelo qual o povo se submete a chefes
não constitui um contrato. Tal coisa não passa de uma comissão, ou de um
emprego, através do qual simples oficiais do soberano exercem, em seu nome, o
poder de que são depositários, e que ele, soberano, pode limitar, modificar e
retomar, quando bem lhe aprouver; porque a alienação de um tal direito é
incompatível com a natureza do corpo social e contrária ao fim da associação.
Chamo, pois, governo, ou suprema administração, ao exercício legítimo do poder
executivo; e príncipe ou magistrado, ao homem ou ao corpo incumbido dessa
administração.
É no governo que se encontram as forças intermediárias cujas relações
compõem a do todo ao todo, ou a do soberano ao todo. Pode-se representar essa
última relação pela dos extremos de uma proporção contínua, cuja média
proporcional é o governo. Do soberano recebe o governo as ordens a serem
dadas ao povo, e para que o Estado se mantenha em perfeito equilíbrio, se faz
mister, tudo compensado, haja igualdade entre o produto ou o poder
governamental, tomado em si mesmo, e o produto ou o poder dos cidadãos, que,
de um lado, são soberanos, e vassalos de outro.
Além disso, não seria possível alterar nenhum dos três termos, sem
imediatamente romper a proporção. Se o soberano quiser governar, ou se o
magistrado quiser legislar, ou se os vassalos recusarem obedecer, a desordem
sucederá à regra, a força e a vontade não mais agirão de acordo, e o Estado,
uma vez desunido, tombará no despotismo ou na anarquia. Enfim, como não há
senão uma média proporcional entre cada relação, não há também senão um
bom governo possível num Estado. Entretanto, como acontecimentos mil podem
vir a mudar as relações de um povo, não apenas diferentes governos são
passíveis de serem bons para diversos povos, como também para o mesmo povo
em diferentes épocas.
A fim de dar uma idéia das diversas relações capazes de imperar entre esses dois
extremos, tomarei para exemplo a quantidade do povo, como uma relação mais
fácil de exprimir.
Suponhamos seja o Estado composto de dez mil cidadãos. 0 soberano não deve
ser considerado senão coletivamente e em corpo. Cada partícula; porém, na
qualidade de vassalo, é considerado como indivíduo. Assim, o soberano está para
o vassalo na proporção de dez mil para um, isto é, cada membro do Estado possuí
a décima milésima parte da autoridade soberana, embora esteja todo inteiro a
ela submetido. Seja o povo constituído de cem mil homens, o estado dos vassalos
não muda, e cada qual suporta igualmente todo o império das leis, ao passo que o
seu sufrágio, reduzido a um centésimo-milésimo, é dez vezes menos influente na
sua relação. Então, como o vassalo permanece sempre um, aumenta a relação
do soberano em razão do número dos cidadãos; de onde se segue que quanto
mais o Estado cresce, mais diminui a liberdade.
Quando eu digo que a relação aumenta, entendo que se afasta da igualdade. De
maneira que quanto maior é a relação, no conceito dos geômetras, menos
relação existe no conceito comum; no primeiro caso, a relação, considerada
consoante a quantidade, é medida pelo exponente; e no segundo, considerada
conforme a identidade, é avaliada pela similitude.
Ora, quanto menos as vontades particulares se relacionam com a vontade geral,
isto é, os costumes, as leis, tanto mais deve aumentar a força repressiva.
Portanto, para ser bom, deve o governo ser relativamente mais forte à medida
que o povo seja mais numeroso.
Por outro lado, dando o engrandecimento do Estado aos depositários da
autoridade pública maior número de tentações e meios de abusar de seu poder,
de mais força necessita o governo para conter o povo, e mais força requer o
soberano para conter o governo. Não falo aqui de uma força absoluta, mas da
força relativa das diversas partes do Estado.
Segue-se dessa dupla relação que a proporção contínua entre o soberano, o
príncipe e o povo, não constitui em absoluto uma idéia arbitrária, mas uma
conseqüência lógica da natureza do corpo político. Segue-se ainda que, estando
um dos extremos, isto é, o povo, na qualidade de vassalo, fixo e representado pela
unidade, todas as vezes que a razão duplicada aumenta ou diminui, a razão
simples, do mesmo modo, aumenta ou diminui, e, por conseguinte, o meio-termo
é mudado; o que demonstra não haver apenas uma constituição de governo único
e absoluto, mas tantos governos de distinta natureza quantos Estados de diferentes
grandezas.
Se, ridicularizando esse sistema, se dissesse que para achar a média proporcional
e formar o corpo do governo, é preciso, como entendo, extrair a raiz quadrada do
número do povo, eu responderia que não tomo aqui o número a não ser por um
exemplo, que as relações de que falo não se medem apenas pelo número de
homens, mas em geral pela quantidade de ação, que se combina por infinidades
de causas; que, de resto, se, para me expressar em menos palavras, tomo de
empréstimo alguns termos de Geometria, nem por isso ignoro que a precisão
geométrica não tem lugar nas quantidades morais.
O governo é, em pequena escala, o que o corpo político, que o encerra, é em
grande escala. Constitui uma pessoa moral, dotada de determinadas faculdades,
ativa como o soberano, passiva como o Estado, suscetível de ser decomposta em
outras relações semelhantes: de onde nasce, por conseguinte, uma nova
proporção, e ainda outra nesta aqui, segundo a ordem dos tribunais, até que se
chegue a um meio-termo indivisível, isto é, a um único chefe ou magistrado
supremo, que podemos representar. em meio dessa progressão, como a unidade
entre a série das frações e a dos números.
Sem nos embaraçarmos nessa multiplicação de termos, contentemo-nos de
considerar o governo como um novo corpo no Estado, distinto do povo e do
soberano, e intermediário entre um e outro.
Entre esses dois corpos ocorre esta diferença essencial: é que o Estado existe por
si mesmo, ao passo que o governo só existe devido ao soberano. Assim, a vontade
dominante do príncipe só é ou só deve ser a vontade geral da lei; sua força é a
força de todos concentrada em si; tão logo pretenda ele extrair de si mesmo
algum ato absoluto e independente, a ligação do todo começa a afrouxar. Se
enfim acontecesse ter o príncipe uma vontade particular mais ativa que a do
soberano para exigir obediência a essa vontade particular, fizesse uso da força
pública que tem em mãos, de sorte a que houvesse, por assim dizer, dois
soberanos, um de direito e outro de fato, a união social se esvaeceria no próprio
instante, e o corpo político seria dissolvido.
Todavia para que o corpo do governo tenha uma existência uma vida real que a
distinga do corpo do Estado, a fim de que todos os seus membros possam agir de
acordo e responder ao objetivo para o qual foi instituído, é-lhe necessário um eu
particular, uma sensibilidade comum a seus membros, uma força, uma vontade
própria, tendentes à sua conservação. Tal existência particular supõe
assembléias, conselhos, um poder de deliberar, de resolver, direitos, títulos,
privilégios exclusivos do príncipe, que tornam a condição do magistrado mais
honorável à proporção que mais penosa. As dificuldades estão na maneira de
ordenar, no todo, nesse todo subalterno, de forma a nada alterar na constituição
geral, em afirmando a sua; que distinga sempre sua força particular, destinada à
própria conservação, da força coletiva destinada à conservação do Estado, e que,
numa palavra, se mostre sempre prestes a sacrificar o governo ao povo, e não o
povo ao governo.
De resto, apesar de o corpo artificial do governo ser obra de um outro corpo
artificial, e, de algum modo, ter apenas uma vida emprestada e subordinada, isso
não impede possa ele agir com mais ou menos vigor ou celeridade; desfrutar, por
assim dizer, de uma saúde mais ou menos robusta; e, enfim, sem se afastar
diretamente do objetivo de sua instituição, dele se manter mais ou menos
distante, segundo a maneira por que está constituído.
É de todas essas diferenças que nascem as diversas relações do governo com o
corpo do Estado, conforme as relações acidentais e particulares pelas quais este
mesmo Estado vem a modificar-se; porque o melhor governo em si, se tornará
freqüentemente o mais vicioso, se as relações se tiverem alterado, de acordo
com os defeitos do corpo político a que pertencem.
II - Do princípio que constitui as diversas formas de governo.
A fim de expor a causa geral dessas diferenças, urge distinguir aqui o príncipe e
o governo, como distingui anteriormente o Estado e o soberano.
0 corpo do magistrado pode ser composto de um maior ou menor número de
membros. Dissemos já que a relação do soberano com os vassalos era tanto
maior quanto mais numeroso fosse o povo, e, por evidente analogia, o mesmo
podemos dizer do governo em relação aos magistrados.
Ora, desde que a força total do governo continue a ser do Estado, em absoluto
não varia; de onde se segue que, quanto mais ele use essa força sobre seus
próprios membros, menos força lhe resta para agir sobre todo o povo.
Portanto, os magistrados são tão mais numerosos quanto mais débil se mostre o
governo. E como esta máxima é fundamental, apliquemo-nos a melhor
esclarecê-la.
E possível distinguir na pessoa do magistrado três vontades essencialmente
diferentes. De início, a vontade própria do indivíduo, que só propende em favor
de seu interesse particular; em segundo lugar, a vontade comum dos magistrados,
que apenas se relaciona ao que ao príncipe interessa, ou se a, a vontade do corpo
como pode ser chamada, a qual é geral em relação ao governo, e particular
relativamente ao Estado, de que o governo faz parte; em terceiro lugar, a vontade
do povo ou a vontade soberana, que é geral não só em relação ao Estado,
considerado como um todo, como também em relação ao governo, considerado
como parte desse todo.
Numa legislação perfeita, a vontade particular ou individual deve ser nula; a
vontade do corpo, própria ao governo, bastante subordinada; e, por conseguinte, a
vontade geral ou soberana sempre dominante é a regra única de todas as outras.
Contrariamente, de acordo com a ordem natural, essas diversas vontades se
tornam mais ativas à medida que se concentram. Assim, a vontade geral revelase sempre a mais débil, a vontade do corpo a segunda em categoria, e a vontade
particular a primeira de todas; de sorte que, no governo, cada membro e, antes
de mais nada, ele mesmo, e depois magistrado, e em seguida cidadão, graduação
diretamente oposta à exigida pela ordem social.
Posto isto, ponha-se o governo por inteiro nas mãos de um só homem e eis
completamente reunidas a vontade particular e a vontade do corpo, e reunidas,
em conseqüência, no mais alto grau de intensidade que possa existir. Ora, como é
do grau da vontade que depende o uso da força, e como a força absoluta do
governo em nada varia, infere-se que o mais ativo dos governos é o exercido por
uma só pessoa.
Em sentido contrário, unamos o governo à autoridade legislativa, façamos o
príncipe soberano, e de todos os cidadãos outros tantos magistrados; então a
vontade do corpo, confundida com a vontade geral, não será mais ativa que esta
e deixará à vontade particular toda a sua força. 0 governo, desse modo, sempre
de posse da mesma força absoluta, se encontrará em seu minimum de força
relativa ou de atividade.
São incontestáveis essas relações, e outras considerações servem ainda para as
confirmar. Vê-se, por exemplo, que cada um dos magistrados é mais ativo em
seu corpo que cada cidadão no seu, e que, por conseguinte, a vontade particular
tem muito mais influência nos atos do governo que nos do soberano; isto pelo fato
de que cada um dos magistrados está quase sempre incumbido de alguma função
governamental, enquanto que cada cidadão, tomado à parte, não possui nenhuma
função de soberania. De resto, quanto mais o Estado se estende, mais sua força
real aumenta, embora não aumente por motivo de sua extensão; ao passo que,
permanecendo o Estado estacionário, por mais que se multipliquem os
magistrados, não adquire o governo maior força real, pois que esta força é a
força do Estado, cuja medida é sempre igual. Assim sendo, diminui a força
relativa ou a atividade do governo, sem que sua força absoluta ou real possa
aumentar.
É ainda certo que a expedição dos negócios se torna mais lenta, à medida que
maior número de pessoas é disso encarregada; que, fazendo-se maiores
concessões à prudência, não se concede o bastante à fortuna, e se permite que
fuja a oportunidade; e que, à força de deliberar, perde-se por vezes o fruto da
deliberação.
Venho de provar que o governo enfraquece à medida que os magistrados se
multiplicam, e demonstrei mais acima que quanto mais o povo é numeroso, mais
a força repressiva deve aumentar: infere-se daí que a relação entre os
magistrados e o governo deve ser o inverso das relações entre os vassalos e o
soberano, isto é, quanto mais se amplia o Estado, tanto mais deve o governo
restringir-se, da mesma maneira que o número de chefes diminui em razão do
aumento numérico do povo.
Ademais, não falo aqui senão da força relativa do governo, e não de sua retitude;
porque, ao contrário, quanto mais numerosos são os magistrados, mais a vontade
do corpo se aproxima da vontade geral; enquanto que, sob um magistrado único,
essa mesma vontade do corpo, como eu o disse, não é senão uma vontade
particular. Perde-se assim por um lado o que se vem a ganhar por outro, e a arte
do legislador consiste em saber fixar o ponto em que a força e a vontade do
governo, sempre em proporção recíproca, se combinem na relação que ofereça
mais vantagens ao Estado.
III - Divisão dos governos.
Vimos, no capítulo precedente, por que se distinguem as diversas espécies ou
formas de governos pelo número dos membros que os compõem; resta ver agora
em que momento se opera essa divisão.
0 soberano pode, de início, confiar o depósito do governo ao povo em conjunto ou
à maioria do povo, de modo a haver maior número de cidadãos magistrados que
simples cidadãos particulares. Dá-se a essa forma de governo o nome de
democracia.
Ou pode então restringir o governo entre as mãos de um pequeno número, de
sorte a haver maior número de cidadãos particulares que de magistrados, e esta
forma de governo recebe o nome de aristocracia.
Finalmente, pode o soberano concentrar todo o governo em mãos de um
magistrado único, do qual todos os demais recebem o poder. Esta terceira forma
é a mais comum de todas, e chama-se monarquia, ou governo real.
Devo assinalar que todas essas formas, ou ao menos as duas primeiras, são
suscetíveis de maior ou menor e mesmo de grande latitude, porque a democracia
pode abarcar todo o povo, ou então restringir-se até a metade. A aristocracia, por
sua vez, pode restringir-se da metade do povo até indeterminadamente ao menor
número. A própria monarquia é suscetível de alguma partilha. Esparta, de acordo
com sua constituição, sempre teve dois reis, e houve, no Império romano, até oito
imperadores simultaneamente, sem que por isso se pudesse dizer que o Império
estava dividido. Assim sendo, existe um ponto em que cada forma de governo se
confunde com a seguinte, e vê-se que apenas sob três formas de domínio já se
mostra o governo capaz de adquirir tantos aspectos diversos quantos cidadãos
possui o Estado.
Há mais: podendo um mesmo governo, subdividir-se, por diversos motivos, em
várias partes, uma administrada de certa maneira, outra de maneira diversa,
pode resultar dessas três formas combinadas uma infinidade de formas mistas,
cada uma das quais suscetível de ser multiplicável por todas as formas simples.
Discutiu-se em todos os tempos a melhor forma de governo, sem considerar que
cada uma delas é a melhor em determinados casos e a pior em outros.
Se, nos diferentes Estados, o número de supremos magistrados deve estar
constituído em razão inversa do número dos cidadãos, segue-se que, em geral, o
governo democrático é o que mais convém aos pequenos Estados; o aristocrático
aos Estados médios; e a monarquia aos grandes. Extrai-se esta regra
imediatamente do princípio; mas como contar a infinidade de circunstâncias
capazes de fornecer as exceções?
IV - Da democracia.
Quem faz a lei sabe melhor que ninguém como deve ser ela executada e
interpretada. Parece, pois, que não se poderia ter melhor constituição que essa
em que o poder executivo está unido ao legislativo; mas é justamente isso que
torna esse governo sob certos aspectos insuficiente, uma vez que as coisas que
deveriam ser diferenciadas não o são, e o príncipe e o soberano, sendo a mesma
pessoa, não formam, por assim dizer, senão um governo sem governo.
Não é conveniente que quem redija as leis as execute, nem que o corpo do povo
desvie a atenção dos alvos gerais para a concentrar nos objetos particulares.
Nada é mais perigoso que a influência dos interesses privados nos negócios
públicos; e o abuso das leis por parte do governo constitui um mal menor que a
corrupção por parte do legislador, continuação infalível dos alvos particulares.
Então, alterado o Estado em sua substância, toda reforma se torna impossível.
Um povo que jamais abusaria do governo, também jamais abusaria da
independência; um povo que sempre governasse bem, não teria necessidade de
ser governado.
Rigorosamente falando, nunca existiu verdadeira democracia nem jamais
existirá. Contraria a ordem natural o grande número governar, e ser o pequeno
governado. É impossível admitir esteja o povo incessantemente reunido para
cuidar dos negócios públicos; e é fácil de ver que não poderia ele estabelecer
comissões para isso, sem mudar a forma da administração.
Creio, com efeito, poder assentar em princípio que, quando as funções
governamentais são partilhadas entre diversos tribunais, os menos numerosos
adquirem cedo ou tarde a maior autoridade, se por outro motivo não fosse, pela
facilidade com que expedem os negócios, ali levados naturalmente.
Ademais, que de coisas difíceis de reunir não supõe tal governo? Primeiramente,
um Estado bastante pequeno, em que seja fácil congregar o povo, e onde cada
cidadão possa facilmente conhecer todos os outros; em segundo lugar, uma
grande simplicidade de costumes, que antecipe a multidão de negócios e as
discussões espinhosas; em seguida, bastante igualdade nas classes e nas riquezas,
sem o que a igualdade não poderia subsistir muito tempo nos direitos e na
autoridade; enfim, pouco ou nenhum luxo; porque ou o luxo é o efeito das
riquezas, ou as torna necessárias, já que corrompe ao mesmo tempo ricos e
pobres, uns pela posse, outros pela cobiça, vende a pátria à lassidão e à vaidade, e
afasta do Estado todos os cidadãos, submetendo-os uns aos outros, e todos à
opinião.
Eis por que um célebre autor afirmou que a virtude é o princípio da República,
pois todas essas condições não subsistiriam sem a virtude; mas, à falta de haver
feito as distinções necessárias, faltou por vezes a este belo talento precisão, e
inclusive clareza, pois não viu que, sendo a autoridade soberana em toda parte a
mesma, o mesmo princípio deve nortear qualquer Estado bem constituído, mais
ou menos, é certo, de acordo com a forma de governo.
Acrescentemos que não há governo tão sujeito às guerras civis e às agitações
intestinas como o democrático ou popular, pois que não há nenhum outro que
tenda tão freqüente e continuamente a mudar de forma, nem que demande mais
vigilância e coragem para se manter na sua. É sobretudo nessa constituição de
governo que o cidadão se deve armar de força e constância, e dizer em cada dia
de sua vida, no fundo do coração, o que dizia um virtuoso palatino na dieta da
Polônia: Malo periculosam libertatem quam quietum servitium.
Se houvesse um povo de deuses, ele se governaria democraticamente. Tão
perfeito governo não convém aos homens.
V - Da aristocracia.
Temos aqui duas pessoas morais distintas, a saber, o governo e o soberano, e, por
conseguinte, duas vontades gerais: uma, concernente a todos os cidadãos; outra,
apenas aos membros da administração. Assim sendo, embora possa o governo
regulamentar sua polícia interior como bem lhe aprouver, só poderá falar ao
povo em nome do soberano, isto é, em nome do próprio povo, coisa que jamais
se deve esquecer.
As primeiras sociedades governaram-se aristocraticamente. Os chefes de
família deliberavam entre si sobre os negócios públicos. Os jovens cediam sem
dificuldade perante a autoridade da experiência. Daí os nomes de padres,
anciãos, senado, gerontes. Os selvagens da América setentrional ainda assim se
governam em nossos dias, e são muito bem governados.
Mas, à medida que a desigualdade de instituição sobrepujou a desigualdade
natural, a riqueza ou o poder foi preferido à idade, e a aristocracia passa a ser
eletiva. Finalmente, o poder, transmitido juntamente com os bens dos pais aos
filhos, enobrecendo as famílias, torna o governo hereditário, e viram-se então
senadores de apenas vinte anos.
Há, pois, três espécies de aristocracia: natural, eletiva e hereditária. A primeira
não convém senão a povos simples; a terceira é o pior de todos os governos; a
segunda é a melhor: é a aristocracia propriamente dita.
Afora a vantagem da distinção dos dois poderes, possui a da escolha de seus
membros; porque, no governo popular, todos os cidadãos nascem magistrados,
mas este os limita a um pequeno número, o qual é escolhido através de eleição,
meio pelo qual a probidade, as luzes, a experiência, e todas as demais razões
preferenciais e de estima pública, constituem outras tantas novas garantias de que
seremos sabiamente governados.
Além disso, as assembléias se fazem mais comodamente, os negócios são
melhor discutidos, o expediente é executado com maior ordem e diligência; o
crédito do Estado é melhor garantido no estrangeiro por veneráveis senadores
que por uma multidão desconhecida e menosprezada.
Numa palavra, a ordem mais justa e natural é a em que os mais sábios
governem a multidão, quando estamos seguros de que a governarão em
benefício dela, e não em benefício próprio. Não é de nenhum modo necessário
multiplicar em vão as alçadas, nem fazer com vinte mil homens o que cem
homens escolhidos fazem ainda melhor. Deve-se, porém, assinalar que o
interesse do corpo começa aqui a dirigir com menos eficiência a força do
público no que tange à vontade geral, e que outro declive inevitável subtrai às leis
uma parte do poder executivo.
A respeito das conveniências particulares, não convém nem um Estado tão
pequeno, nem um povo tão simples e reto, que a execução das leis resulte
imediatamente da vontade pública, como numa boa democracia. Também não
convém uma tão grande nação em que os chefes esparsos para a governar
possam decidir à revelia do soberano, em seus respectivos departamentos, e
começar por se tornarem independentes e virem a ser, em seguida, os senhores.
Contudo, se exige a aristocracia menos virtudes que o governo popular, requer,
em troca, outras que lhe são próprias, tais como a moderação por parte dos ricos,
e o contentamento por parte dos pobres; porque, parece, uma rigorosa igualdade
estaria aí deslocada: nem mesmo Esparta a observou.
De resto, se esta forma de governo comporta certa desigualdade de riqueza, isto
acontece para que em geral a administração dos negócios públicos seja confiada
aos que vem dela cuidar, empregando todo o seu tempo, e não como pretende
Aristóteles, por serem os ricos sempre os preferidos. Ao contrário, é conveniente
que uma escolha oposta ensine por vezes ao povo que há, no mérito dos homens,
razões de preferência mais importantes que a riqueza.
VI - Da monarquia.
Até aqui, consideramos o príncipe como uma pessoa moral e coletiva, unida pela
força das leis, e depositária no Estado do poder executivo. Temos agora a
considerar este poder reunido em mãos de uma pessoa natural, de um homem
real, único investido do direito de dele dispor segundo as leis. É o que se chama
um monarca ou um rei.
Ao contrário das outras administrações, em que um ser coletivo representa um
indivíduo, nesta aqui é um indivíduo que representa um ser coletivo; desse modo,
a unidade moral que constitui o príncipe é simultaneamente uma unidade física,
na qual todas as faculdades que a lei reuniu na outra, com tantos esforços, se
achem naturalmente reunidas.
Assim, a vontade do povo, e a vontade do príncipe, e a força pública do Estado, e
a força particular do governo, tudo enfim responde ao mesmo móbil; todas as
molas da máquina estão na mesma mão, tudo caminha para o mesmo objetivo:
não há movimentos adversos que se destruam mutuamente, e não se pode
imaginar nenhuma espécie de constituição em que um esforço menor produza
uma ação mais considerável. Arquimedes, tranqüilamente sentado na praia,
sirgando sem dificuldade um grande navio, representa a meu ver um hábil
monarca, a dirigir de seu gabinete seus vastos Estados, e a fazer com que tudo se
mova dando a impressão de que permanece imóvel.
Mas se governo não há mais rigoroso que este, também outro não há em que a
vontade particular seja mais respeitada e mais facilmente domine as outras: tudo
caminha para o mesmo objetivo, é verdade, mas esse objetivo não é o da
felicidade pública; e a própria força da administração gira sem cessar em
prejuízo do Estado.
Os reis desejam ser absolutos, e de longe lhes bradamos que a melhor maneira
de o serem consiste em se fazerem amar por seus povos. Esta máxima é muito
bela e verdadeira em certo sentido. Infelizmente, sempre rirão disso nas cortes. 0
poder oriundo do amor dos povos é sem dúvida o maior, mas precário e
condicional; os príncipes jamais se contentarão com ele. Os melhores reis
desejam ser malvados, quando lhes apetece, sem cessarem de ser os senhores.
Por mais que se esforce um orador político em adverti-los de que a força do
povo é a sua própria e de que seu maior interesse deve consistir em que o povo
seja florescente, numeroso, temível, eles sabem perfeitamente que tal coisa não
é verdade.
Seu interesse pessoal está, antes de mais nada, em que o povo seja débil,
miserável, e jamais lhes possa resistir. Confesso que, imaginando os vassalos
sempre inteiramente submissos, me parece que o interesse dos príncipes residiria
na existência de um povo poderoso, a fim de que, sendo dele tal poder, o tornasse
temido de seus vizinhos; como, porém, tal interesse é secundário e subordinado, e
as duas suposições se mostram incompatíveis, é natural que os príncipes dêem
sempre preferência à sentença mais imediatamente útil para eles; é o que
Samuel, com vigor, apontava aos hebreus, é o que Maquiavel demonstrou com
evidência. Fingindo dar lições aos reis, deu-as ele, e grandes, aos povos. 0
Príncipe de Maquiavel é o livro dos republicanos.
Vimos, através das relações gerais, que a monarquia só é conveniente aos vastos
Estados, e o mesmo acharemos examinando-a em si mesma. Quanto mais
numerosa for a administração pública, mais a relação entre o príncipe e os
vassalos diminui e se aproxima da igualdade, de sorte que tal relação é uma ou a
própria igualdade na democracia. Essa mesma relação aumenta à medida que o
governo se contrai, e atinge o seu maximum quando o governo se acha em mãos
de uma única pessoa. Passa a haver então uma enorme distância entre o príncipe
e o povo, e o Estado carece de ligação. Para formá-la, são necessárias as ordens
intermediárias: príncipes, grandes, nobreza, que as devem preencher. Ora, nada
do que foi dito convém a um pequeno Estado, pois, antes, o arruínam.
Contudo, se é difícil que um grande Estado seja bem governado, é mais difícil
ainda sê-lo por um só homem, e todos sabemos o que sucede quando o rei
nomeia substitutos.
Um defeito essencial e inevitável, que sempre porá o governo monárquico
abaixo do republicano, está em que, neste, último, a voz pública quase nunca
eleva aos primeiros postos homens que não sejam esclarecidos e capazes e não
os ocupem com dignidade; ao passo que, nas monarquias os que se elevam são,
as mais das vezes, pequenos rixentos, pequenos velhacos, pequeno intrigantes,
cujos pequenos engenhos, que permitem, nas cortes, alcançar os grandes postos,
só lhes servem para demonstrar ao público o quanto são ineptos, tão logo aí
consigam chegar. No tocante a essa escolha, o povo se engana bem menos que o
príncipe, de sorte que é quase tão raro encontrar um homem de real mérito no
ministério quanto um tolo à testa de um governo republicano. Quando acontece,
por um desses felizes acasos, que um desses homens nascidos para governar
toma o timão dos negócios, numa monarquia quase arruinada por esses acervos
de belos regentes, fica-se surpreso dos recursos por ele encontrados, e tal coisa
faz época no país.
Para que um Estado monárquico possa ser bem governado, seria preciso que sua
grandeza ou extensão fosse mensurada conforme as faculdades de quem
governa. É mais fácil conquistar que administrar. Com uma alavanca adequada
pode-se abalar o mundo; mas, para o sustentar, são necessários os ombros de
Hércules. Por pequena que seja a grandeza de um Estado, o príncipe é sempre
demasiado pequeno. Quando, ao contrário, acontece de o Estado ser muito
pequeno para o porte de seu chefe, o que, de resto, é muito raro, é ainda assim
mal governado, porque o chefe, seguindo sempre a grandeza de seus alvos,
esquece os interesses dos povos, e não os faz menos infelizes, pelo abuso do
excessivo talento, que um chefe limitado, por carecer de talento. Seria preciso,
por assim dizer, que um reino se expandisse ou se restringisse, em cada reinado,
de acordo com a capacidade do príncipe; ao passo que os dotes de um senado,
tendo medidas mais fixas, podem impor ao Estado constantes limitações e não
prejudicar a administração.
0 inconveniente mais sensível do governo de uma única pessoa consiste na falta
dessa sucessão contínua, que forma nos dois outros uma ligação ininterrupta. As
eleições abrem intervalos perigosos; são tempestuosos; e a menos que os
cidadãos sejam de um desinteresse, de uma integridade acima dos méritos desse
governo, as disputas e a corrupção se misturam. É difícil que aquele, a quem o
Estado foi vendido, não o venda por seu turno, e não se indenize, à custa dos
fracos, do dinheiro, que os poderosos lhe extorquiram. Cedo ou tarde, tudo se
torna venal sob semelhante administração, e a paz de que se desfruta sob o
governo dos reis passa a ser então pior que a desordem dos interregnos.
Que foi feito para prevenir esses males? Fez-se com que, em certas famílias, as
coroas se tornassem hereditárias, e estabeleceu-se uma ordem de sucessão que
previne qualquer disputa em conseqüência da morte dos reis; isto é, substituindose o inconveniente das regências ao das eleições, preferiu-se uma aparência
tranqüila a uma administração sábia, e se achou melhor correr o risco de ter por
chefes crianças, monstros e imbecis, a ter de questionar sobre a escolha de bons
reis. Não se considerou que, expondo-se assim aos riscos da alternativa,
colocam-se quase todas as oportunidades contra si mesmo. Tratava-se de uma
idéia muito sensata, igual à do jovem Dionísio, a quem o pai, reprovando uma
ação vergonhosa, disse: "Dei-te o exemplo disso?" - "Ah! - respondeu o filho vosso pai não era rei!"
Tudo concorre para privar de justiça e razão um homem elevado ao comando
dos outros. Cansa demais, segundo se diz, ensinar os jovens príncipes a reinar, e
não me parece que tal educação lhes seja proveitosa. Far-se-ia melhor começar
por ensinar-lhes a arte de obedecer. Os maiores reis, já celebrados na História,
não foram educados para reinar. E esta uma ciência que tanto menos se possui
quanto mais se a aprendeu, e que melhor se adquire obedecendo que dirigindo.
Nam utilissimus idem ac brevissimus bonarum malarumque rerum delectus,
cogitare quid aut nolueris sub alio principe, aut volueris.
Uma seqüência dessa falta de coerência é a inconstância do governo real, que,
regulando-se, ora por um plano, ora por outro, segundo o caráter do príncipe que
reina ou dos que reinam por ele, não pode ter por muito tempo um objetivo fixo
nem uma conduta conseqüente, variação que faz o Estado flutuar
permanentemente de máxima em máxima, de projeto em projeto, e que não
tem lugar nas outras formas de governo em que o príncipe é sempre o mesmo.
Vê-se também, em geral, que, se há mais astúcia numa corte, há mais sabedoria
num senado, e que as repúblicas perseguem seus objetivos por meios mais
constantes e melhor seguidos; isso porque, cada revolução no ministério provoca
outra, e a máxima comum a todos os ministros e a quase todos os reis é a de
fazer em tudo o contrário de seu predecessor.
Dessa mesma incoerência tira-se ainda a solução dum sofisma muito familiar
aos políticos realistas: não apenas a de comparar o governo civil ao governo
doméstico, o príncipe ao pai de família, erro já refutado, como ainda a de dar
liberalmente a esse magistrado todas as virtudes de que ele necessitaria, e a de
sempre supor que o príncipe é de fato o que deveria ser, suposição com a ajuda
da qual o governo do rei é evidentemente preferível a qualquer outro, pois que é
sem contestação o mais forte, e, para ser também o melhor, só lhe falta uma
vontade de corpo mais conforme com a vontade geral.
Mas, se consoante Platão, o rei, por natureza, é um personagem tão raro, quantas
vezes concorrem a Natureza e a fortuna para o coroar? E se a educação real
corrompe necessariamente os que a recebem, que se deve esperar de uma
seqüência de homens distinguidos para reinar? É, portanto, querer iludir-se
confundir o governo real com o governo de um bom rei. Para ver o que é esse
governo em si mesmo, deve-se considerá-lo sob o mando de príncipes limitados
ou perversos, pois como tais chegarão ao trono ou o trono os tornará tais.
Essas dificuldades não escaparam aos nossos autores; mas eles não se
embaraçaram nisso. 0 remédio consiste, disseram eles, em obedecer sem
murmurar. Deus, em sua cólera, dá os maus reis, e é preciso suportá-los como
castigos do céu. Tal opinião é sem dúvida edificante; mas, parece-me, que
calharia melhor no púlpito que num livro de política. Que dizer de um médico
que promete milagres, e cuja arte reside apenas em exortar o doente à
paciência? Sabe-se perfeitamente que é preciso padecer um mau governo,
quando se o tem; a questão consistirá em encontrar um bom.
VII - Dos governos mistos.
Propriamente falando, não há governo simples. É necessário a um chefe único
possuir magistrados subalternos; é indispensável a um governo popular ter um
chefe. Assim, na partilha do poder executivo, há sempre gradação do grande
número ao menor, com a diferença que ora é o grande número que depende do
pequeno, ora é o pequeno que depende do grande.
Algumas vezes ocorre uma divisão igual, seja quando as partes constitutivas estão
em mútua dependência, como no governo da Inglaterra, seja quando a
autoridade de cada parte é independente, mas imperfeita, como na Polônia. Esta
última forma é má, pelo fato de não haver unidade no governo e de ao Estado
faltar ligação.
Qual é melhor, um governo simples ou um misto? E uma questão muito debatida
entre os políticos e à qual se deve dar a mesma resposta dada anteriormente a
propósito de toda forma de governo.
0 governo simples é melhor em si, pelo simples fato de ser simples. Entretanto,
quando o poder executivo pouco depende do legislativo, isto é, quando há mais
relação entre o príncipe e o soberano que entre o povo e o príncipe, é necessário
remediar essa falta de proporção dividindo o governo; porque, então, todas as
suas partes têm igual autoridade sobre os vassalos, e a divisão delas torna-as,
todas em conjunto. menos fortes contra o soberano.
Previne-se ainda o mesmo inconveniente estabelecendo magistrados
intermediários, que, deixando o governo em sua inteireza, servem apenas para
criar o equilíbrio entre os dois poderes e conservar seus respectivos direitos. 0
governo, então, deixa de ser misto, para ser temperado.
Pode-se remediar, por meios semelhantes, o inconveniente oposto, e quando o
governo é excessivamente frouxo, erigir tribunais a fim de o reforçar. Tal coisa
se pratica em todas as democracias. No primeiro caso, divide-se o governo para
o enfraquecer, e no segundo, para fortalecê-lo; porque o maximum de força e de
fraqueza encontra-se igualmente nos governos simples, enquanto que as formas
mistas produzem uma força média.
VIII - Nem toda forma de governo é apropriada a todos os países.
Não sendo a liberdade um fruto de todos os climas, não está ao alcance de todos
os povos. Quanto mais se medita sobre esse princípio estabelecido por
Montesquieu, mais se lhe percebe a veracidade. Quanto mais se a contesta, tanto
mais se lhe dá oportunidade para estabelecer-se através de novas provas.
Em todos os governos do mundo, a pessoa pública consome e nada produz. De
onde lhe vem, pois, a substância consumida? Do trabalho de seus membros. É o
supérfluo dos particulares que produz o necessário do público: segue-se daí que o
estado civil só pode subsistir enquanto o trabalho dos homens rende mais que as
suas necessidades.
Ora, esse excedente não é o mesmo em todos os países do mundo. Em inúmeros
deles, é considerável; em outros, medíocre, em outros ainda, nulo; em alguns,
negativo. Essa relação depende da fertilidade do clima, do tipo de trabalho
exigido pelo solo, da natureza de suas produções, da força de seus habitantes, da
maior ou menor consumição necessária, e de numerosas outras relações
semelhantes das quais são os países compostos.
Por outro lado, nem todos os governos possuem a mesma natureza; há os dotados
de maior ou menor voracidade, e as diferenças estão baseadas neste princípio:
quanto mais as contribuições públicas se distanciam de sua fonte, tanto mais se
tornam onerosas. Não é pela quantidade de imposições que se deve medir essa
carga, mas pelo caminho a ser feito por elas a fim de regressarem às mãos de
que saíram. Quando essa circulação é realizada e bem estabelecida, pague-se
pouco ou muito, o povo é sempre rico e as finanças caminham sempre a
contento. Quando, ao contrário, por pouco que contribua, esse pouco não retorna
às suas mãos, em contribuindo sempre o povo depressa se exaure; o Estado
jamais será rico, e o povo será sempre indigente.
Infere-se daí que quanto mais aumenta a distância entre o povo e o governo,
mais se tornam onerosos os tributos. Assim sendo, na democracia, o povo é o
menos sobrecarregado; na aristocracia, ele o é um pouco mais; na monarquia,
carrega o maior peso. A monarquia, portanto, só convém às nações opulentas; a
aristocracia, aos Estados medíocres em riqueza, bem como em tamanho; a
democracia, aos Estados pequenos e pobres.
Com efeito, na medida em que mais nisso refletimos, melhor vamos percebendo
a diferença entre os Estados livres e os monárquicos: nos primeiros, tudo é
empregado no sentido do interesse comum; nos segundos, as forças públicas e
particulares funcionam de maneira recíproca, e o aumento de uma corresponde
ao enfraquecimento da outra; enfim, ao invés de governar os vassalos para os
fazer felizes, o despotismo torna-os miseráveis a fim de os governar.
Eis, portanto, em cada clima, causas naturais, que permitem indicar a forma de
governo a que a força do clima conduz, e mesmo dizer que espécie de habitantes
deve ele possuir. Os sítios ingratos e estéreis, onde o produto não compensa o
trabalho, devem permanecer incultos e desertos, ou povoados unicamente por
selvagens; os lugares em que o trabalho dos homens não produz senão o
necessário devem ser habitados pelos povos bárbaros, pois qualquer política aí
seria impossível; as regiões em que o excesso do produto sobre o trabalho é
medíocre convém aos povos livres; e aquelas, cujo solo fértil e abundante
fornece grande quantidade de produtos em troca de pouco trabalho, devem ser
governadas monarquicamente, para que o luxo do príncipe consuma o excesso
do supérfluo dos vassalos; porque mais convém seja esse excesso absorvido pelo
governo a ser dissipado pelos particulares. Há exceções, eu o sei; mas justamente
essas exceções confirmam a regra, nisso em que, cedo ou tarde, produzem
revoluções, as quais reconduzem as coisas à ordem natural.
Distingamos sempre as leis gerais das causas particulares capazes de modificar o
efeito delas. Mesmo que todo o Meio-Dia estivesse coberto de repúblicas e todo o
Norte de Estados despóticos, não seria menos verdade que, por motivo do clima,
conviria o despotismo aos países quentes, a barbárie aos países frios, e a boa
civilização às regiões intermediárias. Vejo, igualmente, que, aceitando o
princípio, podemos discutir a sua aplicação; podemos dizer que há países frios
bastante férteis e meridionais muito ingratos. Mas tal dificuldade somente existe
para quem não examina o fato em todas as suas relações. É preciso, como já
deixei dito, contar com as de trabalho, de forças, de consumo, etc.
Suponhamos que, de dois terrenos iguais, um produza cinco e outro dez. Se os
habitantes do primeiro consumirem quatro e os do segundo nove, o excesso do
primeiro produto será um quinto, e o do segundo um décimo. A relação desses
dois excessos será, portanto, inversa da dos produtos, e o terreno que não
produzirá mais que cinco dará um duplo supérfluo do terreno que produzirá dez.
Mas não se trata de um produto duplo, e eu não creio haja alguém que ouse, em
geral, colocar a fertilidade dos países frios em confronto com a dos países
quentes. Todavia, admitamos essa igualdade: deixemos, se quisermos, a
Inglaterra em equilíbrio com a Sicília, e a Polônia com o Egito; mais ao MeioDia, teremos a África e as índias; mais ao Norte, nada mais teremos. Para essa
igualdade de produção, que diferença de cultura! Na Sicília, basta arranhar o
solo; na Inglaterra, que de cuidados para a trabalhar! Ora, no lugar em que se faz
necessário maior número de braços para se obter a mesma produção, o
supérfluo deve necessariamente ser menor.
Considerai, além disso, que a mesma quantidade de homens consome muito
menos nos países quentes. O clima exige que sejamos sóbrios para nos sentirmos
bem: os europeus que ali pretendem viver como em seus próprios países,
perecem todos de disenteria e indigestões. "Somos", diz Chardin, "feras
carniceiras, lobos comparados com os asiáticos. Alguns atribuem a sobriedade
dos persas ao fato de seu país ser menos cultivado; quanto a mim, creio, ao
contrário, que há ali menos abundância de gêneros, porque deles menos
necessitam os habitantes. Se sua frugalidade", contínua Chardin, "fosse um efeito
da penúria do país, então apenas os pobres comeriam pouco, em lugar de todos
geralmente jejuarem, e, em cada província, segundo a fertilidade do solo, seria
maior ou menor o consumo de gêneros, ao invés de a mesma sobriedade ser
idêntica em todo o reino. Os persas se vangloriam de sua maneira de viver,
dizendo que basta olhar-lhes a pele para reconhecer quanto é melhor que a dos
cristãos. Na verdade, a tez dos persas é lisa, é bela, fina e lustrosa; ao passo que a
dos armênios, seus vassalos, que vivem à maneira européia, é rude,
avermelhada, e eles têm o corpo grosso e pesado."
Quanto mais se aproximam do Equador, tanto mais vivem os povos com menos.
Raramente comem carne; o arroz, o milho, o cuscuz, a mandioca constituem
seus alimentos vulgares. Há na índia milhões de homens cuja alimentação não
custa um soldo por dia. Mesmo na Europa, vemos sensíveis diferenças, no que
concerne ao apetite, entre os povos do Norte e os do Meio-Dia. Um espanhol
viverá oito dias do jantar de um alemão. Nos países em que os homens são mais
vorazes, também o luxo se volta para as coisas de consumo. Na Inglaterra,
mostra-se numa mesa sobrecarregada de carnes; na Itália, sereis regalados com
açúcar e flores.
O luxo dos trajes também oferece semelhantes diferenças. Nos climas em que
as mudanças das estações são rápidas e violentas, usam-se roupas melhores e
mais simples; naqueles em que a gente se veste apenas para enfeitar-se, procurase mais efeito que utilidade; os próprios trajes constituem aí um luxo. Em
Nápoles, vereis todos os dias, no Posilipo, homens a passear em vestes douradas,
e sem meias. 0 mesmo acontece no tocante aos edifícios; tudo se emprega na
magnificência, quando nada se tem a temer das injúrias do ar. Em Paris, em
Londres, quer-se estar alojado cálida e comodamente; em Madri, têm-se salões
soberbos, mas nenhuma janela que feche, e dorme-se em ninhos de ratos.
Os alimentos são muito mais nutritivos e suculentos nos países quentes; é uma
terceira diferença que não pode deixar de influir sobre a segunda. Por que se
consomem tantos legumes na Itália? Porque são ali excelentes, nutritivos e
saborosos. Em França, onde apenas são nutridos de água, também não
alimentam quem os consome e são perfeitamente dispensáveis na mesa. Não
ocupam, portanto, menor extensão de terreno, e dão em todo caso tanto trabalho
para serem cultivados. Sabe-se, por experiências realizadas, que os trigos da
Barbaria, de resto inferiores aos de França, rendem muito mais em farinha, e
que os de França, por sua vez, dão maior rendimento que os trigos do Norte: de
onde se pode inferir que semelhante gradação é geralmente observada no
mesmo rumo do equador ao pólo. Ora, não constitui visível desvantagem haver
em igual produto uma menor quantidade de alimentos?
A todas essas diversas considerações posso acrescentar uma outra que delas
decorre e as fortifica: a de que os países quentes não necessitam de tantos
habitantes como os países frios, podendo alimentá-los por mais tempo, o que
produz um duplo supérfluo, sempre vantajoso para o despotismo. Quanto maior o
número de homens a ocupar uma grande superfície, mais difícil se tornam as
revoltas, porque não se as pode concertar nem pronta nem secretamente, sendo
sempre fácil ao governo descobrir os projetos e cortar as comunicações; mas,
quanto mais um povo numeroso se aproxima, menos pode o governo usurpar a
soberania. Os chefes também deliberam em seus gabinetes com a mesma
segurança com que os príncipes o fazem em seu conselho, e a turba reúne-se
com tanta presteza nas praças quanto as tropas em seus quartéis. A vantagem de
um governo tirânico está, pois, em agir a grandes distâncias.
Com a ajuda de pontos de apoio que a si mesmo se dá, sua força aumenta de
longe como a das alavancas (17). A do povo, ao contrário, só age quando
concentrada. Evapora-se e perde-se esta, se se estender, como o efeito da
pólvora espalhada por terra, que só pega fogo grânulo por grânulo. Os países
menos povoados são assim os mais apropriados à tirania, os animais ferozes
imperam somente nos desertos.
IX - Dos sinais de um bom governo.
Quando então se pergunta qual é o melhor governo, propõe-se uma questão
insolúvel e indeterminada; ou, se se quiser, que possui tantas boas soluções
quantas combinações possíveis nas posições absolutas, e relativas dos povos.
Mas, se se perguntasse por que sinais é possível conhecer se um determinado
povo está sendo bem ou mal governado, a coisa seria outra, e a questão de fato
poderia ser resolvida.
Entretanto, de nenhum modo a resolvemos, porque cada qual deseja resolvê-la à
sua maneira. Os vassalos elogiam a tranqüilidade pública, os cidadãos a liberdade
dos particulares; um prefere a segurança das possessões, e outro a das pessoas;
um pretende que o melhor governo é o mais severo, outro sustenta que é o mais
brando; este quer que se punam os crimes, e aquele que se os previnam; um é de
opinião que se deve ser temido dos vizinhos, outro prefere ser ignorado; um
mostra-se contente quando o dinheiro circula, outro exige que o povo tenha pão.
E mesmo no caso de se obter entendimento sobre esses e outros pontos
semelhantes, ter-se-ia avançado mais? Faltando a medida precisa às quantidades
morais, embora se concorde quanto ao sinal, como fazê-lo no tocante ao
julgamento?
De minha parte, sempre me assombro de que se desconheça um sinal tão
simples, ou de que se tenha a má fé de nisso não concordar. Qual é o objetivo da
associação política? É a conservação e a prosperidade de seus membros. E qual é
o mais seguro sinal de que eles se conservam e prosperam? É o seu número e a
sua população. Não busqueis, portanto, alhures esse sinal tão disputado. Sendo
todas as coisas semelhantes, o governo sob o qual, sem meios estranhos, sem
naturalização, sem colônias, os cidadãos habitam e se multiplicam por mais
tempos é infalivelmente o melhor; aquele sob o qual um povo diminui e perece, é
o pior. Calculadores, agora é vossa tarefa: contai, medi, comparai (18).
X - Do abuso do governo e de sua tendência a degenerar.
Assim como a vontade particular atua continuamente contra a vontade geral,
assim se esforça incessantemente o governo contra a soberania. Quanto mais
aumenta esse esforço, mais se altera a constituição, e como não há aqui outra
vontade de corpo que, resistindo à vontade do príncipe, faça equilíbrio com ela,
deve acontecer cedo ou tarde venha o príncipe oprimir enfim o soberano e
romper o tratado social. Está aí o vício inerente e inevitável que, desde o
nascimento do corpo político, tende sem afrouxamento a destruí-lo, assim como
a velhice e a morte destroem por fim o corpo do homem.
Há dois caminhos gerais que conduzem um governo à degenerescência, a saber:
quando se restringe ou quando o Estado se dissolve. Restringe-se o governo,
quando passa do grande número ao pequeno, isto é, da democracia à
aristocracia, e da aristocracia à realeza. É esse seu pendor natural (19). Se ele
retrogradasse do pequeno número ao grande, poder-se-ia dizer que se debilita;
mas tal progresso em sentido inverso é impossível.
0 governo, com efeito, só muda de forma quando, perdida a elasticidade da
mola, esta o deixa excessivamente enfraquecido para poder conservar aquela.
Ora, se se estendendo, ela afrouxasse mais ainda, sua força se tornaria
inteiramente nula e ela não teria condições de subsistir. É necessário, pois,
remontar e comprimir a mola, à medida que esta cede; de outro modo, o Estado
que ela sustém desabaria em ruína.
0 caso da dissolução do Estado pode-se dar de duas maneiras: primeiramente,
quando o príncipe não mais o administra conforme as leis, e usurpa o poder
soberano. Então, acontece uma mudança considerável: é que, não mais o
governo, mas o Estado se restringe. Quero dizer que o grande Estado se dissolve,
e que se forma um outro no seio daquele, apenas composto dos membros do
governo, e que nada mais é em relação ao resto do povo senão o senhor e o
tirano. De sorte que, no instante da usurpação da soberania por parte do governo,
é rompido o pacto social, e todos os simples cidadãos, recolados de direito em sua
liberdade natural, são forçados, mas não obrigados a obedecer.
O mesmo sucede também quando os membros do governo usurpam
separadamente o poder, que só devem exercer em conjunto, e que não constitui
menor infração das leis, e produz ainda maior desordem. Têm-se então, por
assim dizer, tantos príncipes quantos magistrados, e o Estado, não menos dividido
que o governo, perece ou muda de forma.
Quando o Estado se dissolve, seja qual for o abuso do governo, toma o nome de
anarquia. Fazendo a distinção: a democracia degenera em ociocracia, a
aristocracia em oligarquia: Posso ainda acrescentar que a realeza degenera em
tirania; mas este último termo é equívoco e exige explicação.
No sentido vulgar do termo, o tirano é um rei que governa com violência e sem
respeito à justiça e às leis. No sentido preciso, um tirano é um particular que se
arroga a autoridade real sem a ela ter direito. É assim que os gregos entendiam o
termo tirano: davam-no indiferentemente aos bons ou maus príncipes cuja
autoridade não era legítima (20). Assim sendo, tirano e usurpador são dois termos
perfeitamente sinônimos.
Para dar diferentes nomes a diferentes coisas, chamo tirano ao usurpador da
autoridade real, e déspota ao usurpador do poder soberano. 0 tirano é aquele que
se decide contra as leis a governar segundo as leis; o déspota é o que se põe
acima das leis. Assim, o tirano pode não ser déspota, mas o déspota é sempre
tirano.
XI - Da morte do corpo político.
Tal é o pendor natural e inevitável dos governos melhor constituídos. Se Esparta e
Roma pereceram, qual o Estado que pode esperar durar eternamente? Se
quisermos constituir um estabelecimento durável, não pensemos em absoluto em
fazê-lo eterno. Para sermos bem sucedidos, não devemos tentar o impossível,
nem nos vangloriarmos de dar à obra dos homens uma solidez que as coisas
humanas não comportam.
0 corpo político, bem como o corpo do homem, começa a morrer desde o
nascimento e contém em si mesmo as causas de sua destruição. Mas um e outro
podem ter uma constituição mais ou menos robusta e adequada a conservá-los
por um longo tempo. A constituição do homem é obra da Natureza; a do Estado é
obra da arte. Não depende dos homens a prolongação de sua vida; mas depende
deles prolongar a do Estado tanto quanto possível, dando-lhe a melhor
constituição que possa existir. O melhor constituído será mais duradouro que
outro, se nenhum incidente imprevisto provocar sua perda com o tempo.
0 princípio da vida política está na autoridade soberana. 0 poder legislativo é o
coração do Estado; o poder executivo é o cérebro que põe em movimento todas
as partes. 0 cérebro pode ser atingido pela paralisia e o indivíduo continuar a
viver ainda. 0 homem torna-se imbecil e vive ainda; mas tão logo o coração
deixe de funcionar, o animal perece. Não é em virtude das leis que o Estado
subsiste, mas devido ao poder legislativo. A lei de ontem não obriga o dia de hoje;
mas o consentimento tácito é presumido do silêncio, e o soberano confirma
implicitamente as leis que não revoga, podendo fazê-lo. Tudo quanto declarou
desejar uma vez, ele o deseja sempre, a menos que o invalide.
Por que, pois, atribuímos tanto respeito às antigas leis? Pelo fato mesmo de serem
antigas. Deve-se crer que somente à excelência das antigas vontades puderam
elas sobreviver tão longo tempo; se o soberano não as tivesse considerado
salutares, ele as teria mil vezes ab-rogado. Eis por que, longe de se
enfraquecerem, as leis adquirem de contínuo uma força nova em todos os
Estados bem constituídos; o preconceito da antigüidade torna-as mais veneráveis
a cada dia que passa; ao passo que, quando as leis se debilitam, envelhecendo, o
fato constitui uma prova da inexistência de poder legislativo e de que o Estado já
não vive.
XII - Como se mantém a autoridade soberana.
Não dispondo de outra força senão o poder legislativo, o soberano só atua pelas
leis; e, não sendo as leis mais que atos autênticos da vontade geral, não poderia o
soberano agir senão quando o povo se encontra reunido. 0 povo reunido, dir-se-á:
que quimera! Hoje é uma quimera, mas não o era há dois mil anos. Terão os
homens mudado de natureza?
Os limites do possível, nas coisas morais, são menos estreitos do que nós
pensamos; são nossas fraquezas, nossos vícios, nossos preconceitos que os
constringem. As almas mesquinhas não acreditam nos grandes homens; os vis
escravos sorriem com ar zombeteiro da palavra liberdade.
Pelo que foi feito consideremos o que se pode fazer. Não falarei das antigas
repúblicas gregas; mas a República romana, parece-me, era um grande Estado,
e a cidade de Roma uma grande cidade. 0 último recenseamento deu a Roma
quatrocentos mil cidadãos em armas, e o último censo do Império enumerou
mais de quatro milhões de cidadãos, sem contar os vassalos, os estrangeiros, as
mulheres, as crianças, e os escravos.
Que dificuldade não haveria para reunir em assembléia o povo imenso dessa
Capital e arredores? Entretanto, raramente passavam semanas sem que o povo
romano se reunisse, inclusive várias vezes.
0 povo não somente exercia os direitos de soberania, mas também uma parte dos
governamentais. Cuidava de certos negócios, julgava determinadas causas, e
permanecia na praça pública, freqüentemente, quase na qualidade de
magistrado, afora o ser na de cidadão.
Remontando aos primeiros tempos das nações, verificar-se-ia que a maior parte
dos antigos governos, inclusive os monárquicos, tais como os da Macedônia e dos
francos, possuía semelhantes conselhos. Seja como for, esse único fato
incontestável responde a todas as dificuldades; do existente ao possível, a
conseqüência parece-me boa.
XIII - Continuação.
Não basta que o povo reunido tenha uma vez fixado a constituição do Estado,
sancionando um corpo de leis; não basta que tenha constituído um governo
perpétuo, ou provido de uma vez por todas a eleição dos magistrados. Além das
assembléias extraordinárias, que casos imprevistos podem exigir, é necessário
havê-las fixas e periódicas que não possam ser abolidas nem adiadas, a fim de
que, em dia marcado, seja o povo legitimamente convocado pela lei, sem que se
faça preciso para tanto nenhuma outra convocação formal.
Contudo, afora essas assembléias jurídicas, por terem data certa, qualquer outra
assembléia popular não convocada pelos magistrados, nomeados para esse efeito
segundo as fórmulas prescritas, deve ser tida por ilegítima, e por nulo tudo quanto
nela se faça; porque a própria ordem de reunir-se deve emanar da lei.
Quanto aos retornos mais ou menos freqüentes das assembléias legítimas,
dependem de tantas considerações, que não saberíamos fornecer acerca disso
regras precisas. Podemos apenas dizer, generalizando, que quanto mais força
tem o governo, mais se deve mostrar o soberano.
Isto, dir-se-me-á, pode ser bom quando se trata de uma única cidade; mas que
fazer quando o Estado compreende numerosas? Dividir-se-á a autoridade
soberana, ou se deverá então concentrá-la numa única cidade e submeter todas
as outras?
Respondo que não se deve fazer nem uma nem outra coisa. Em primeiro lugar, a
autoridade soberana é simples e indivisa, e não se pode reparti-la sem a destruir.
Em segundo lugar, uma cidade, bem como uma nação, não pode ser
legitimamente submetida a uma outra, porque a essência do corpo político está
no acordo da obediência e da liberdade, e estes termos vassalo e soberano são
correlações idênticas cuja idéia se reúne sob um único conceito: cidadão.
Respondo ainda que sempre constitui um mal unir inúmeras cidades numa só
Cidade, e que, insistindo em realizar tal união, não nos poderemos vangloriar de
evitar os seus inconvenientes naturais. Não é necessário objetar o abuso dos
grandes Estados a quem só os deseja pequenos. Mas como dar aos pequenos
Estados força suficiente para resistir aos grandes, como resistiram outrora as
cidades gregas ao Grande Rei, e como, mais recentemente, a Holanda e a Suíça
resistiram à casa da Áustria?
Todavia, se não podemos reduzir o Estado aos justos limites, resta ainda um
recurso: é o de não impor uma Capital, sediando o governo alternativamente em
cada uma das cidades, e aí, também de modo alternado, reunir todos os Estados
do país.
Povoai por igual o território, estendei por toda parte os mesmos direitos, levai a
todos os lugares a vida e a abundância. É assim que o Estado se tornará a um
tempo o mais forte e o melhor governado possível. Recordai-vos de que as
muralhas da cidade se formam das minas das casas camponesas. Em cada
palácio construído na Capital creio ver todo um país transformado em ruínas.
XIV - Continuação.
No instante em que o povo está legitimamente reunido em corpo soberano, cessa
toda e qualquer jurisdição do governo, o poder executivo fica suspenso, e a
pessoa do último dos cidadãos é tão sagrada e inviolável quanto a do primeiro
magistrado, porque onde se encontra o representado deixa de haver o
representante. A maioria dos tumultos ocorridos em Roma, durante os comícios,
originou-se de se haver ignorado ou negligenciado essa regra. Os cônsules não
eram então senão os presidentes do povo; os tribunos, simples oradores 21; o
senado não era coisa alguma.
Esses intervalos de suspensão em que o príncipe reconhecia ou devia reconhecer
um superior atual, foram sempre temíveis, e as assembléias do povo, que são a
égide do corpo político e o freio do governo, foram em todos os tempos o horror
dos chefes, os quais também jamais economizam cuidados, objeções,
dificuldades ou promessas a fim de desanimarem os cidadãos. Quando estes são
avaros, frouxos, pusilânimes, mais amantes do repouso que da liberdade, não
resistem longamente aos redobrados esforços do governo; quando a força da
resistência aumenta de contínuo, a autoridade soberana por fim se dissipa, e a
maioria das cidades tomba e perece com o tempo.
XV - Dos deputados ou representantes.
Assim que o serviço público cessa de ser a principal preocupação dos cidadãos,
ao qual melhor preferem servir com a bolsa que pessoalmente, já se encontra o
Estado próximo da ruína. Se é preciso seguir para o combate, eles pagam as
tropas e permanecem em casa; se é preciso ir à assembléia, eles nomeiam os
deputados e continuam em casa. À força de dinheiro e preguiça, eles dispõem de
soldados para servir a pátria e de representantes para a venderem.
É a confusão do comércio e das artes, é o ávido interesse do ganho, é a lassidão e
o amor das comodidades que trocam os serviços pessoais por dinheiro. Cede-se
uma parte do lucro para aumentá-los a bel-prazer. Dai dinheiro e em breve tereis
grilhões. A palavra fazenda é um termo de escravo; é desconhecido na cidade.
Num Estado verdadeiramente livre, os cidadãos tudo fazem com seus próprios
braços, e nada com o dinheiro; longe de pagarem para se isentar de tais serviços,
pagarão para os executar pessoalmente. Estou bem distante das idéias comuns,
pois acho as borvéias menos contrárias à liberdade que as taxas.
Quanto melhor estiver o Estado constituído, tanto mais os negócios públicos
prevalecerão sobre os particulares no espírito dos cidadãos. Chega mesmo a
haver muito menor número de negócios privados, porque a soma de felicidade
comum fornece maior porção à felicidade de cada indivíduo, de modo que
menos lhe resta a procurar em suas ocupações particulares. Numa cidade, bem
dirigida, todos votam nas assembléias; sob um mau governo, ninguém aprecia
dar um passo para isso fazer, porque ninguém se toma de interesse pelo que se
faz, prevendo que a vontade geral não prevalecerá, e porque, enfim, os cuidados
particulares tudo absorvem. As boas leis permitem que se façam outras
melhores; as más conduzem às piores. Tão logo diga alguém, referindo-se aos
assuntos do Estado, que me importo? pode-se ter a certeza de que o Estado está
perdido.
0 entibiamento do amor à pátria, a atividade do interesse privado, a imensidade
dos Estados, as conquistas, os abusos do governo, fizeram imaginar a criação de
deputados ou representantes do povo nas assembléias da nação. E a isso que, em
certos países, se ousa chamar de terceiro estado. Assim, o interesse particular de
duas ordens é posto no primeiro e no segundo plano; o interesse público é
relegado ao terceiro.
A soberania não pode ser representada, pela mesma razão que não pode ser
alienada; ela consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade de modo
algum se representa; ou é a mesma ou é outra; não há nisso meio termo. Os
deputados do povo não são, pois, nem podem ser seus representantes; são quando
muito seus comissários e nada podem concluir definitivamente. São nulas todas
as leis que o povo não tenha ratificado; deixam de ser leis. 0 povo inglês pensa ser
livre, mas está completamente iludido; apenas o é durante a eleição dos
membros do Parlamento; tão logo estejam estes eleitos, é de novo escravo, não é
nada. Pelo uso que faz da liberdade, nos curtos momentos em que lhe é dado
desfrutá-la, bem merece perdê-la.
A idéia dos representantes é moderna; vem do governo feudal, desse iníquo e
absurdo governo, no qual a espécie humana é degradada e o nome de homem
constitui uma desonra. Nas antigas repúblicas, e inclusive nas monarquias, jamais
o povo teve representantes: não se conhecia sequer esse nome. É bastante
singular o fato de, em Roma, onde os tribunos eram tão sagrados, sequer se haver
imaginado pudessem eles usurpar as funções do povo, e, em meio de uma tão
grande multidão, nunca terem tentado passar um só decreto oriundo de sua
própria cabeça. Julgue-se, entretanto, pelo que acontecia no tempo dos Gracos, o
embaraço causado por vezes pela turba, quando uma parte dos cidadãos dava o
voto de cima dos telhados. Onde o direito e a liberdade tudo representam, os
inconvenientes nada são. No seio desse povo sábio, tudo estava posto em sua justa
medida; ele permitia aos lictores fazerem o que os tribunos não teriam ousado,
pois não receava daqueles a veleidade de o representar.
Todavia, para explicar de que forma os tribunos por vezes representavam o povo,
basta conceber como o governo representa o soberano. Não sendo a lei senão a
declaração da vontade geral, claro está que no poder legislativo não pode o povo
ser representado; mas pode e deve sê-lo no poder executivo, que outra coisa não
é senão a força aplicada à lei. Isto permite ver que, examinando-se bem as
coisas, muito pequeno número de nações possuem efetivamente leis: Seja como
for, é certo que, não dispondo os tribunos de nenhuma das partes do poder
executivo, não podem jamais representar o povo romano pelos direitos de seus
cargos, a não ser usurpando os do Senado.
Entre os gregos, tudo quanto o povo tinha a fazer, fazia-o por si mesmo; vivia
constantemente reunido na praça pública. Habitava ele um clima suave, não era
ávido, dispunha de escravos para os trabalhos; sua grande ocupação era a própria
liberdade. Não mais possuindo as mesmas regalias, como conservar os mesmos
direitos? Vossos climas mais duros vos impõem maiores necessidades (22);
durante seis meses do ano, a praça pública não é suportável; vossas línguas surdas
não se podem fazer entender ao ar livre; dais maior atenção ao vosso ganho que
à vossa liberdade, e receais menos a escravidão que a miséria.
Como! Só se mantém a liberdade graças ao apoio da servidão? Talvez. Os dois
excessos se tocam. Tudo que não se contém nos limites da Natureza tem os seus
inconvenientes, e a sociedade civil mais que tudo o resto. Há tais posições
infelizes nas quais é impossível conservar a liberdade, a não ser às expensas da
de outrem, e em que o cidadão só pode ser perfeitamente livre, se o escravo for
perfeitamente escravo: era assim a condição de Esparta. Quanto a vós, povos
modernos, não possuís escravos, porém o sois; e pagais a liberdade deles
sacrificando a vossa. Vós vos vangloriais dessa preferência, mas eu vejo nisso
mais covardia que humanidade.
Não concebo, pelo exposto, a necessidade de se ter escravos, nem que o direito
de escravatura seja legítimo, uma vez que provei o contrário. Exponho apenas as
razões pelas quais os povos modernos, que se acreditam livres, têm
representantes, e por que os povos antigos não os tinham. Seja como for, no
instante em que um povo se dá representantes, deixa de ser livre, cessa de ser
povo.
Tudo bem examinado, não vejo ser, daqui por diante, possível ao soberano
conservar entre nós o exercício de seus direitos, se a cidade não for pequena.
Mas, sendo muito pequena, será ela subjugada? Não. Demonstrarei em seguida
(23) como é possível reunir o poderio exterior de um grande povo com o fácil
policiamento e a boa ordem de um pequeno Estado.
XVI - Quando a instituição do governo não é um contrato.
Uma vez bem estabelecido o poder legislativo, trata-se de estabelecer igualmente
o poder executivo; porque este último, que só opera através de atos particulares,
não sendo a essência do outro, está naturalmente dele separado. Se fosse possível
que o soberano, como tal considerado, tivesse o poder executivo, o direito e o fato
seriam de tal modo confundidos que não mais se saberia o que é lei e o que não o
é; e o corpo político, assim desnaturado, cedo seria presa da violência contra a
qual havia sido instituído.
Sendo os cidadãos todos iguais em virtude do contrato social, todos podem
prescrever o que todos devem fazer, ao passo que ninguém tem o direito de
exigir que outro faça aquilo que ele mesmo não faz. Ora, é esse direito
propriamente, indispensável para fazer viver e mover o corpo político, que o
soberano outorga ao príncipe ao instituir o governo.
Muitos pretenderam que o ato desse estabelecimento constituía um contrato entre
o povo e os chefes por ele nomeados, contrato pelo qual se estipulava entre as
duas partes as condições que obrigavam um a comandar e outro a obedecer. Há
que convir, estou certo, que esta é uma estranha maneira de contratar. Mas
vejamos se esta opinião é sustentável.
De início, a autoridade suprema não pode modificar-se nem alienar-se; limitá-la
eqüivale a destruí-la. É absurdo e contraditório que o soberano se outorgue um
superior; obrigar-se a obedecer a um senhor, é repor-se em plena liberdade.
Além disso, é evidente que o contrato do povo com tais e tais pessoas seria um
ato particular; segue-se daí que tal contrato não poderia ser uma lei nem um ato
de soberania, e que, por conseguinte, se tornaria ilegítimo.
Vê-se ainda que as partes contratantes se encontrariam entre si sujeitas à única
lei natural e sem nenhum fiador de suas obrigações recíprocas, o que repugna de
todos os modos ao Estado civil. Quem tem a força na mão seria sempre o senhor
da execução; de pouco valeria, portanto, dar o nome de contrato ao ato de um
homem que poderia dizer a outrem: "Dou-te tudo o que possuo, com a condição
de que me restituas o que bem te aprouver."
Só há um contrato no Estado: é o da associação, que exclui qualquer outro. Não
seria possível imaginar nenhum contrato público que não constituísse uma
violação do primeiro.
XVII - Da instituição do governo.
Sob que idéia deve-se, pois, conceber o ato pelo qual o governo é instituído?
Assinalarei, de início, que tal ato é complexo ou composto de dois outros: o do
estabelecimento da lei e o da sua execução.
Para o primeiro, estatui o soberano que haverá um corpo de governo,
estabelecido sob esta ou aquela forma e está claro que este ato constitui uma lei.
Para o segundo, o povo nomeia seus chefes que serão encarregados do governo
estabelecido. Ora, sendo essa nomeação um ato particular, não constitui uma lei,
mas apenas uma continuação da primeira, e uma função do governo.
A dificuldade consiste em compreender como pode haver um ato de governo
antes de existir o governo, e como pode o povo, que só é soberano ou vassalo,
tornar-se príncipe ou magistrado em determinadas circunstâncias.
É ainda aqui que se descobre uma dessas surpreendentes propriedades do corpo
político, pelas quais este concilia operações contraditórias na aparência; isso é
feito em virtude de uma súbita conversão da soberania em democracia, de sorte
que, sem nenhuma mudança sensível, é somente através de uma nova relação de
todos a todos, os cidadãos, mudados em magistrados, passam dos atos gerais aos
atos particulares, e da lei à execução da mesma.
Essa mudança de relação não representa uma sutileza de especulação,
desprovida de exemplo na prática; tem lugar todos os dias no Parlamento da
Inglaterra, onde a Câmara baixa, em certas ocasiões, se reúne com todo o corpo
político, para melhor discutir os negócios, e, de corte soberana, que era no
instante precedente, se torna simples comissão, a qual em seguida, faz a si
mesma o relatório, como Câmara dos Comuns, do que vem de ajustar na
qualidade de comissão, e delibera novamente, sob um título, a respeito do que já
decidiu sob outro.
É esta a superioridade do governo democrático: poder estabelecer-se de fato por
um simples ato da vontade geral. Depois disso, esse governo é empossado, se tal
é a forma adotada ou estabelecida em nome do soberano, passa a prescrever a
lei, e tudo entra novamente na normalidade. Não é possível instituir o governo de
nenhuma outra maneira legítima, sem renunciar aos princípios acima referidos.
XVIII - Meios de prevenir as usurpações do governo.
Resulta desses esclarecimentos, confirmando o capítulo XVI, que o ato instituidor
do governo não constitui um contrato, mas uma lei; que os depositários do poder
executivo não são em absoluto os senhores do povo, mas apenas seus oficiais; que
o povo dispõe do direito de os nomear e os substituir quando bem lhe aprouver;
que o problema, para eles, não consiste em contratar, mas em obedecer, e que,
incumbindo-se das funções que lhes são impostas pelo Estado, outra coisa não
fazem senão cumprir com seu dever de cidadãos, sem terem de maneira alguma
o direito de discutir as suas condições.
Quando, pois, acontece que um povo institui um governo hereditário, seja
monárquico, numa família, seja aristocrático, numa ordem de cidadãos, não
constitui o fato uma obrigação assumida; trata-se de uma forma provisória dada
por ele à administração, até que se compraza em a substituir por outra.
É verdade que essas mudanças são sempre perigosas, e que não convém tocar
jamais no governo estabelecido, exceto quando este se torna incompatível com o
bem público; mas tal circunstância é uma máxima política e não uma regra de
direito, e o Estado não é mais constrangido a deixar a autoridade civil em mãos
de seus chefes ou a autoridade militar em mãos de seus generais.
É ainda verdade que, em semelhante caso, não seria possível observar com
excessivo cuidado todas as formalidades requeridas para se distinguir um ato
regular e legítimo de um tumulto sedicioso ou a vontade de todo um povo dos
clamores de uma facção. É sobretudo neste ponto que só se deve dar ao caso
odioso o que não se lhe pode recusar em todo o rigor do direito, e é também desta
obrigação que retira o príncipe a superioridade que lhe permite conservar o
poder, malgrado a oposição do povo, sem que se possa dizer que ele o tenha
usurpado; porque, parecendo fazer apenas uso de seus direitos, é muito fácil para
ele estender esses direitos, e impedir, sob o pretexto de tranqüilidade pública, as
assembléias destinadas a restabelecer a boa ordem, de forma a prevalecer-se de
um silêncio, que ele mesmo não permite se rompa, ou das irregularidades que
faz cometer a fim de mudar em seu favor a opinião dos que se calam por receio
e punir os que ousam falar. É assim que os decênviros, eleitos de início por um
ano, com mandato em seguida prorrogado por mais um ano, tentaram manter
perpetuamente seu poder, não permitindo que o povo se reunisse em comícios; e
é também por esse meio fácil que todos os governos do mundo, uma vez
revestidos da força do público, usurpam cedo ou tarde a autoridade soberana.
As assembléias periódicas, de que falei anteriormente, são apropriadas para
prevenir ou espaçar esse infortúnio, mormente se independem de convocação
formal; porque então o príncipe não pode impedi-las, sem se declarar
abertamente infrator das leis e inimigo do Estado.
A abertura dessas assembléias, cujo único objetivo é a manutenção do tratado
social, deve sempre fazer-se por duas proposições que não possam jamais ser
suprimidas e sejam separadamente sufragadas.
A primeira consiste em saber: Se apraz ao soberano conservar a presente forma
de governo; e a segunda: Se ao povo apraz deixar a administração aos que dela
estão atualmente incumbidos. Suponho nesta altura haver já demonstrado que
não existe no Estado nenhuma lei fundamental que não possa ser revogada, nem
mesmo o pacto social; porque, se todos os cidadãos se reunissem com o fim de
romper esse pacto, ninguém poderia duvidar de que tal rompimento não fosse
legítimo. Grotius chega mesmo a pensar que cada qual tem o direito de renunciar
ao Estado de que é membro e retomar sua liberdade natural e seus bens,
retirando-se do país (24). Ora, seria absurdo não poderem decidir os cidadãos
reunidos o que pode cada um deles separadamente.
LIVRO IV
1 - A vontade geral é indestrutível.
Enquanto numerosos homens reunidos se consideram como um corpo único, sua
vontade também é única e se relaciona com a comum conservação e o bemestar geral. Todas as molas do Estado são então vigorosas e simples, suas
sentenças são claras e luminosas; não há interesses embaraçados, contraditórios;
o bem comum mostra-se por toda parte com evidência e apenas demanda bom
senso para ser percebido. A paz, a união, a igualdade são inimigas das sutilezas
políticas. Os homens retos e simples são difíceis de enganar, justamente em
virtude de sua simplicidade; os engodos, os pretextos refinados, não se impõem a
eles, que, de resto, não são assaz sutis para serem tolos. Quando vemos, entre o
povo mais feliz do mundo, grupos de camponeses regularizarem, à sombra de
um carvalho, os negócios do Estado, e se conduzirem sempre com sabedoria,
podemos evitar o menosprezo dos refinamentos das outras nações, que se tornam
ilustres e desdenhadas com tantos artifícios e mistérios?
Um Estado assim governado necessita de bem poucas leis; à medida que se torne
necessário promulgar outras novas, todos percebem tal necessidade. 0 primeiro
que as propõe não faz senão dizer o que todos já sentiram,, e não haverá
problemas de disputas nem de eloqüência para transformar em lei o que cada
qual, individualmente, já tinha resolvido fazer, certo de que os demais o farão
como ele.
0 que engana os tagarelas é que, não vendo senão Estados, desde as suas origens,
mal constituídos, ficam aturdidos perante a impossibilidade de aí manter idêntica
administração. Riem de imaginar todas as tolices que um hábil impostor, um
palrador insinuante, poderia insinuar no povo de Paris ou de Londres. Ignoram
que Cromwell foi posto em ridículo pelo povo de Berna, e que o Duque de
Baufort foi disciplinado pelo de Genebra.
Mas, quando o vínculo social começa a afrouxar e o Estado a enfraquecer,
quando os interesses particulares principiam a fazer-se sentir e as pequenas
sociedades a influir sobre a grande, o interesse comum se altera e encontra
opositores; a Humanidade não reina mais nos votos; a vontade geral deixa de ser
a vontade de todos; erguem-se contradições, debates, e a melhor opinião não é
aceita sem disputas.
Enfim, quando o Estado, próximo de sua ruína, apenas subsiste através de uma
forma vã e ilusória, quando o laço social se rompe em todos os corações, quando
o mais vil interesse se adorna afrontosamente com o nome sagrado do bem
público, então a vontade geral emudece, todos, guiados por motivos secretos,
deixam de opinar como cidadãos, como se o Estado jamais houvesse existido, e
são aprovados falsamente, a título de leis, decretos iníquos cujo único fim é o
interesse particular.
Segue-se daí que a vontade geral esteja debilitada ou corrompida? Não; ela é
sempre constante, inalterável e pura; mas está subordinada a outras que a
subjugam. Cada qual, destacando o próprio interesse do interesse comum,
percebe que os não pode dividir completamente; mas parece-lhe insignificante
sua parte do mal público perto do bem exclusivo de que deseja apropriar-se.
Excetuado esse bem particular, cada qual pretende o bem geral em seu próprio
interesse, nisso empregando o mesmo ardor que os demais. Mesmo vendendo o
seu sufrágio a peso de ouro, não extingue em si a vontade geral; engana-a. 0
crime que comete está em mudar o estado do problema e em responder outra
coisa que não a que se lhe pergunta; de sorte que, ao invés de dizer, no
concernente ao seu sufrágio, é vantajoso ao Estado, diz: é vantajoso a tal homem,
a tal partido, ou a que seja aprovada esta ou aquela opinião. Assim sendo, a lei da
ordem pública nas assembléias não consiste quase em manter a vontade geral,
mas em fazer com que esta seja interrogada e que sempre responda.
Eu teria nesta altura muitas reflexões a fazer sobre o simples direito de votar em
todo ato de soberania, direito que ninguém pode subtrair ao cidadão, e sobre o
direito de opinar, de propor, de dividir, de discutir, que o governo, com grande
cuidado, sempre procura reservar apenas a seus membros; mas esta importante
matéria demandaria um tratado à parte, e eu neste não posso dizer tudo.
II - Dos sufrágios.
Vê-se pelo capítulo precedente que a maneira pela qual se tratam os negócios
gerais pode fornecer um índice assaz seguro do estado atual dos costumes e da
saúde do corpo político. Quanto maior a harmonia reinante nas assembléias, isto
é, quanto mais as opiniões se aproximam da unanimidade, tanto mais a vontade
geral se revela dominante; já os longos debates, as dissensões, o tumulto,
anunciam o ascenso dos interesses particulares e o declínio do Estado.
Isto parece pouco evidente quando duas ou mais ordens entram em sua
constituição, como os patrícios e os plebeus em Roma, cujas questões
perturbaram com freqüência os comícios, mesmo nos mais belos tempos da
República. Tal exceção, porém, é mais aparente que real, porque, então, em
virtude do vício inerente do corpo político, têm-se, por assim dizer, dois Estados
em um; e o que não é verdade no tocante a dois juntos é verdade no que respeita
a cada um separadamente. E, com efeito, inclusive nos tempos mais
tempestuosos, os plebiscitos do povo, quando o senado neles não se imiscuía,
realizavam-se sempre com tranqüilidade e com grande pluralismo de sufrágios,
pois, tendo os cidadãos um único interesse, não tinha o povo senão uma única
vontade.
Na outra extremidade do círculo, a unanimidade retorna: é quando os cidadãos,
tombados na servidão, perdem a liberdade e a vontade. Então o temor e a lisonja
transformam o sufrágios em aclamações; não mais se delibera, adora-se ou
amaldiçoa-se. Era esta a vil maneira de opinar do senado sob o governo dos
imperadores Isso fazia-se por vezes com precauções ridículas. Observa Tácito
que, reinando Otão, os senadores, cumulando Vitélio de execrações, promoviam
um ensurdecedor tumulto, a fim de que, se por acaso este viesse a se tornar o
senhor, não pudesse saber o que cada um deles tinha dito.
Dessas, diversas considerações nascem as máximas sobre as quais deve ser
regulamentada a maneira de contar os votos e comparar a opiniões, na
proporção em que a vontade geral é mais ou menos fácil de ser conhecida, e o
Estado se mostra mais ou menos em declínio.
Não há senão uma lei que, por sua natureza, exige um consentimento unânime: é
o pacto social; porque a associação civil é o mais voluntário de todos os atos do
mundo; uma vez que todo homem nasceu livre e senhor de si mesmo, não há
quem possa, sob qualquer pretexto, sujeitá-lo, sem sua permissão. Decidir que o
filho de um escravo nasce escravo é decidir que ele não nasce homem.
Se, pois, no momento do pacto social, houver opositores, sua oposição não
invalidará o pacto, mas os excluirá do mesmo; serão os estrangeiros entre os
cidadãos. Quando o Estado é constituído, a residência prova o consentimento;
habitar o território é submeter-se à soberania (25).
Fora desse contrato primitivo, a voz da maioria obriga sempre os demais; é uma
continuação do próprio contrato. Pergunta-se, contudo, como pode um homem
ser livre e, a um tempo, forçado a conformar-se com vontades que não são a
sua. De que maneira podem os opositores ser livres e, simultaneamente,
submetidos a leis que não foram por eles consentidas?
De minha parte respondo que a questão está mal colocada. 0 cidadão consente
todas as leis, mesmo as que são aprovadas sem o seu consentimento, inclusive as
pelas quais o punem quando ele ousa infringi-las. A vontade constante de todos os
membros do Estado constitui a vontade geral; devido a ela é que se tornam eles
cidadãos e livres (26).
Quando uma lei é proposta na assembléia do povo, o que se lhe pergunta não é
precisamente se todos aprovam a proposição ou se a rejeitam, mas sim se está
ou não conforme à vontade geral, que é a deles. Cada qual, dando o seu voto,
profere seu parecer, e do cálculo dos votos extrai-se a declaração da vontade
geral. Portanto, quando vence a opinião contrária à minha, tal coisa apenas prova
que eu me enganei, e que aquilo que eu imaginava ser a vontade geral não o era.
Se o meu particular modo de ver prevalecesse, eu teria feito o que não desejava,
e então eu não teria sido livre.
Isto supõe, é certo, que todos os caracteres da vontade geral estejam ainda na
pluralidade; quando cessam de estar, seja qual for o partido que se tome, deixa
de haver liberdade.
Demonstrando acima como era substituída a vontade geral pelas vontades
particulares nas deliberações públicas, indiquei suficientemente os meios
praticáveis de prevenir tal abuso, e disso falarei ainda mais adiante. A respeito do
número proporcional dos sufrágios necessários para se dar por declarada essa
vontade, forneci também princípios pelos quais é possível determiná-la. A
diferença de um único voto rompe a igualdade; um único opositor quebra a
unanimidade; mas, entre a unanimidade e a igualdade, há inúmeras divisões
desiguais, podendo-se a cada uma delas fixar esse número, segundo a situação e
as necessidades do corpo político.
Duas máximas gerais são o bastante para regulamentar essas relações: uma
consiste em que, quanto mais importantes e graves sejam as deliberações, tanto
mais a opinião vencedora deve estar próxima da unanimidade; a outra em que,
quanto mais presteza exige o negócio discutido, tanto mais se deve restringir a
diferença prescrita na divisão das opiniões: nas deliberações a serem encerradas
imediatamente deve bastar o excedente de uma única voz. A primeira dessas
máximas parece mais conveniente às leis, e a segunda aos negócios. De qualquer
maneira, é na base da combinação das duas que se estabelecem as melhores
relações sobre as quais deve a pluralidade pronunciar-se.
III - Das eleições.
A respeito das eleições do príncipe e dos magistrados, que constituem, como já
disse, atos complexos, há dois caminhos para os proceder, os seguintes: a escolha
e a sorte. Um e outro têm sido empregados em diversas repúblicas, e ainda vê-se
atualmente uma mistura bastante complicada de ambos na eleição do doge de
Veneza.
"O sufrágio por sorteio", diz Montesquieu, "é da natureza da democracia."
Concordo, mas por quê? "O sorteio", continua ele, "é um modo de eleger que não
aflige ninguém; deixa a cada cidadão uma razoável esperança de servir a pátria."
Isto não são razões suficientes.
Se se leva em consideração que a escolha dos chefes constitui uma função do
governo, e não da soberania, ver-se-á por que o caminho da sorte é mais
consentâneo com a natureza da democracia, na qual a administração é tanto
melhor quanto os atos sejam menos multiplicados.
Em toda verdadeira democracia, a magistratura não constitui um proveito, mas
sim uma carga onerosa que se pode impor a um particular de preferência a
outro. Somente a lei pode impor tal carga àquele a quem a sorte escolherá;
porque então, sendo igual para todos a condição, e não dependendo a escolha de
nenhuma vontade humana, não há qualquer aplicação particular que altere a
universalidade da lei.
Na aristocracia, o príncipe escolhe o príncipe, o governo se conserva por si
mesmo, e os sufrágios são bem colocados.
O exemplo da eleição do doge de Veneza confirma essa distinção, ao invés de a
destruir; essa forma misturada convém a um governo misto. Pois é um erro
tomar o governo de Veneza por uma verdadeira aristocracia. Se o povo não tem
ali nenhuma parte no governo, a nobreza, por seu turno, é ali o próprio povo.
Uma multidão de pobres barnabotenses jamais se acerca de nenhuma
magistratura, e só tem de sua nobreza o inútil título de Excelência e o direito de
assistir à reunião do grande Conselho. Sendo esse Conselho tão numeroso quanto
o nosso Conselho geral em Genebra, não possuem seus membros maiores
privilégios que os de nossos simples cidadãos. Tirando-se a extrema disparidade
das duas repúblicas, a burguesia de Genebra representa, sem dúvida, exatamente
o patriciado veneziano; nossos naturais e habitantes equivalem aos cidadãos e ao
povo de Veneza; nossos camponeses são como que os vassalos do continente;
enfim, de qualquer maneira que se considere essa república, abstração feita de
sua grandeza, não é seu governo mais aristocrático que o nosso. Toda a diferença
está em que, não havendo nenhum chefe à vista, nós não temos a mesma
necessidade de recorrer à sorte.
As eleições por sorteio teriam poucos inconvenientes numa verdadeira
democracia, onde, sendo todos iguais em costumes, dotes intelectuais, preceitos e
fortuna, a escolha se tornaria quase indiferente. Mas, como afirmei, não existe
verdadeira democracia.
Quando a escolha e o sorteio se mesclam, cabe à primeira preencher os postos
que demandam dotes apropriados, tais como os cargos militares; o segundo
convém aos postos aos quais bastam o bom senso, a justiça, a integridade, tais
como os cargos de judicatura, porque, num Estado bem constituído, essas
qualidades são comuns a todos os cidadãos.
0 sorteio e o sufrágio não têm nenhum lugar num governo monárquico. 0
monarca é de direito único, príncipe e magistrado único; a escolha de seus
auxiliares só a ele compete. Quando o abade de Saint-Pierre propunha
multiplicar os conselhos do rei de França e eleger os membros por escrutínio, não
percebia estar propondo a mudança da forma de governo.
Restar-me-ia falar da maneira de dar e recolher os votos na assembléia popular;
mas, possivelmente, o histórico da organização civil romana explicasse a este
respeito de modo mais sensível todas as máximas que eu poderia estabelecer.
Não é indigno de um leitor judicioso ver em pormenores como se cuidavam dos
negócios públicos e particulares num conselho de duzentos mil homens.
IV - Dos comícios romanos.
Não possuímos nenhum monumento digno de confiança dos primeiros tempos de
Roma; há mesmo grande probabilidade de não passarem de fábulas a maior
parte das coisas que nos contam (27) e, em geral, a parte mais instrutiva dos
anais dos povos, que é a história de seu estabelecimento é a que mais carece de
dados A experiência ensina-nos diariamente quais as causas que originam as
revoluções dos impérios; entretanto, como atualmente não mais se formam
novos povos, temos apenas conjeturas para explicar como outrora se formaram.
Os usos estabelecidos atestam ao menos ter havido uma origem para eles. As
tradições que remontam a essas origens, nas quais se apoiam as maiores
autoridades, confirmadas que são pelas mais fortes razões, devem ser aceitas
como as mais certas. Eis, portanto, os preceitos que eu tratei de seguir, em
pesquisando como o mais livre e poderoso dos povos da Terra exercia seu poder
supremo.
Após a fundação de Roma a república nascente, isto é, o exército do fundador,
composto de albaneses, sabinos e estrangeiros, foi dividido em três classes, que
dessa divisão tomaram o nome de tribos. Cada uma dessas tribos foi subdividida
em dez cúrias, e cada cúria em decúrias, à testa das quais foram postos chefes
denominados curiões e decuriões.
Além disso, tirou-se de cada tribo um corpo de dez cavaleiros ou cavalheiros,
chamado centúria; por onde se vê que essas divisões, pouco necessárias num
burgo, não eram de início senão militares. Parece, porém, que um instinto de
grandeza levava a pequena cidade de Roma a dar-se por antecipação uma
organização civil adequada à capital do mundo.
Dessa primeira partilha cedo resultou um inconveniente: a tribo dos albaneses
(28) e a dos sabinos (29) permaneciam sempre no mesmo estado, enquanto que
a dos estrangeiros (30) crescia sem cessar graças ao concurso destes, vindo em
pouco tempo a sobrepujar as outras duas. 0 remédio que Servius encontrou para
esse perigoso abuso foi mudar a divisão, e, a das raças, que aboliu, foi substituída
por outra, tirada dos lugares da cidade ocupados por cada tribo. Ao invés de três,
organizou quatro tribos, cada uma das quais ocupando uma das colinas de Roma
cujos nomes adotaram. Assim, remediando a desigualdade existente, ele a
preveniu para o futuro, e a fim de que essa divisão não fosse apenas de lugares,
mas de homens, proibiu Servius que os habitantes de um quartel se transferissem
para outro, o que impediu de as raças se confundirem.
Servius duplicou igualmente as três antigas centúrias de cavalaria, e acrescentou
a elas outras doze, sempre porém sob os antigos nomes; meio simples e judicioso
pelo qual acabou por separar o corpo dos cavaleiros do povo, sem dar motivo a
que este murmurasse.
A essas três tribos urbanas, ajuntou Servius ainda quinze outras, denominadas
tribos rústicas, por serem formadas de habitantes do campo, divididas em outros
tantos cantões. Em seguida, criaram-se novas tribos, de maneira que o povo
romano veio a encontrar-se dividido em trinta e cinco delas, número em que se
conservaram até o fim da República.
Dessa distinção de tribos citadinas e rurais resultou um efeito digno de ser
observado, mesmo porque não existe disso outro exemplo e porque Roma lhe
deve a um só tempo a conservação de seus costumes e o crescimento de seu
império. Acreditar-se-ia que as tribos urbanas cedo se arrogassem as honras e o
poder, e não tardassem em envilecer as tribos rústicas; no entanto, deu-se
exatamente o contrário. Conhece-se o gosto dos primeiros romanos pela vida
campestre. Vinha-lhes esse gosto do sábio instituidor que uniu à liberdade os
trabalhos rústicos e militares, e, por assim dizer, relegou à cidade as artes, os
ofícios, a intriga, a riqueza e a escravidão.
Desse modo, como tudo o que Roma tinha de ilustre vivesse no campo cultivando
a terra, acostumou-se a procurar aí os sustentáculos da República. Sendo esse
estado o preferido pelos mais dignos patrícios, acabou por ser também honrado
por todos; a vida simples e laboriosa dos camponeses veio a ser mais benquista
que a vida ociosa e frouxa dos burgueses de Roma, e muitos que, na cidade, não
passavam de infelizes proletários, transformados em cultivadores dos campos, se
tornaram cidadãos respeitáveis. Não foi sem motivo, dizia Varrão, que nossos
magnânimos ancestrais estabeleceram na aldeia o viveiro desses robustos e
intrépidos homens que os defendiam em tempo de guerra e os alimentavam em
tempo de paz. Diz Plínio, positivamente, que as tribos dos campos eram
cumuladas de honrarias em virtude dos homens que as compunham; ao passo
que se transferiam para as tribos da cidade os poltrões que se pretendiam
humilhar. 0 sabino Appius Claudius, indo estabelecer-se em Roma, ali foi
honrado e inscrito numa tribo rústica, que tomou em conseqüência o nome de sua
família. Enfim, todos os libertos entravam nas tribos urbanas, nunca nas rústicas,
e não existe, durante toda a República, um único exemplo de algum liberto que
tenha atingido a magistratura, embora fosse cidadão.
Esse preceito era excelente, todavia foi levado tão longe que dele resultou por
fim uma mudança e certamente um abuso na organização civil.
Em primeiro lugar, os censores, após se haverem por muito tempo arrogado o
direito de transferir arbitrariamente os cidadãos de uma tribo para outra,
permitiram que a maioria se inscrevesse na que melhor lhe aprouvesse,
permissão que, seguramente, de nada servia e subtraía uma das grandes alçadas
da censura. Além disso, como os grandes e poderosos se faziam escrever nas
tribos do campo, e os libertos, tornados cidadãos, permaneciam com o populacho
nas da cidade, as tribos, em geral, deixaram de possuir seus sítios e territórios e
acabaram todas por mesclar-se de tal modo que se fez impossível discernir os
membros de cada uma em particular, a não ser pelos registros. Destarte a
palavra tribo passou do real ao pessoal, ou então veio a tornar-se quase uma
quimera.
Sucedeu ainda que as tribos citadinas, mais bem localizadas, sentiram-se mais
fortes nos comícios e venderam o Estado aos que não hesitavam em comprar os
votos à canalha que as compunham.
A respeito das cúrias, havendo o seu instituidor determinado dez em cada tribo,
todo o povo romano, então encerrado nas muralhas da cidade, achou-se
organizado em trinta cúrias, cada qual com seus templos, seus deuses, seus
oficiais, seus sacerdotes e suas festas, chamadas compitalia, semelhantes às
paganalia, criadas mais tarde pelas tribos rústicas.
Com a nova partilha de Servius, não sendo possível repetir igualmente essas trinta
cúrias pelas quatro tribos, ele não quis tocar nisso, e as cúrias, independentes das
tribos, se tornaram outra divisão dos habitantes de Roma; mas a questão não girou
em torno de cúrias, nem das tribos rústicas, nem do povo que as compunha,
porque, havendo-se tornado as tribos um estabelecimento puramente civil, e
tendo sido introduzida outra polícia no referente ao levantamento das tropas, as
divisões militares de Rômulo passaram a ser supérfluas. Desta maneira, embora
todos os cidadãos estivessem inscritos numa tribo, não se fazia necessário que o
estivessem numa cúria.
Servius criou ainda uma terceira divisão, que não tinha nenhuma relação com as
duas precedentes e que se transformou, por seus efeitos, na mais importante de
todas. Ele distribuiu todo o povo romano em seis classes, as quais não se
distinguiam pelo lugar ou pelos homens, mas pelos bens que possuíam; de
maneira que as primeiras classes eram preenchidas pelos ricos, as últimas pelos
pobres, e as médias pelos que desfrutavam de medíocre fortuna. Essas seis
classes eram subdivididas em cento e noventa e três outros corpos, chamados
centúrias, e estes, por sua vez, eram distribuídos de tal forma que a primeira
classe compreendia, sozinha, mais da metade e a última formava apenas uma só.
Ocorria então que a classe menos numerosa em quantidade de homens era
maior em centúrias, e toda a última classe não era contada senão como uma
subdivisão, muito embora abrangesse, ela só, mais de metade dos habitantes de
Roma.
A fim de que o povo não percebesse as conseqüências desta última forma,
Servius fingiu que lhes dava um ar militar: inseriu na segunda classe duas
centúrias de armeiros, e duas de instrumentos de guerra na quarta classe; em
cada classe, excetuada a última, ele diferenciou os jovens e os velhos, isto é, os
que eram obrigados a carregar as armas e os que, pela idade, estavam disso
excluídos pela lei; distinção que, mais do que as referentes aos bens, resultou na
necessidade de recomeçar freqüentemente o recenseamento; finalmente,
desejou ele que a assembléia se realizasse no Campo de Marte, aonde todos os
que se encontravam em idade de servir viessem com suas armas.
A razão pela qual não foi estabelecida, na última classe, essa mesma divisão
entre jovens e velhos, residia no fato de não ser concedida ao populacho, de que
a mesma se compunha, a honra de empunhar armas em defesa da pátria. Era
preciso ter um lar para conseguir o direito de o defender; e dessas numerosas
tropas de indigentes que brilham hoje em dia nos exércitos reais, possivelmente
não haveria um só que não fosse rechaçado com desdém de uma coorte romana,
no tempo em que os soldados eram defensores da liberdade.
Distinguiam-se, pois, ainda, na última classe, os proletários dos que eram
chamados capite censi. Os primeiros, conquanto paupérrimos, forneciam ao
menos cidadãos ao Estado, algumas vezes até soldados, nas ocasiões mais
prementes. Quanto aos que realmente nada possuíam e eram computados apenas
por suas cabeças (31), eram considerados como inexistentes. Mário foi o
primeiro que se dignou alistá-los.
Sem decidir aqui se a terceira enumeração era boa ou má em si mesma,
acredito poder afirmar que somente os costumes singelos dos primeiros romanos,
seu desinteresse pessoal, sua paixão pela agricultura, seu desprezo pelo comércio
e pelo ardor do ganho é que a tornaram possível. Onde se encontra o povo
moderno no seio do qual a devoradora avidez, o espírito inquieto, a intriga, os
contínuos deslocamentos, as perpétuas revoluções da fortuna, permitem durar
vinte anos semelhante estado de coisas, sem que haja uma subversão do Estado
inteiro? É necessário, inclusive, assinalar que os costumes e a censura, mais
fortes que essa instituição, corrigiram o vício em Roma, e que alguns ricos se
viram relegados à classe dos pobres por haverem ostentado exageradamente sua
riqueza.
De tudo isso pode-se facilmente compreender porque quase sempre se tem feito
menção de apenas cinco classes, muito embora, na realidade, houvesse seis. A
sexta não fornecia soldados ao exército, nem eleitores no Campo de Marte (32),
não sendo quase aproveitada para nada na república.
Tais foram as diferentes divisões do povo romano. Vejamos agora o efeito
produzido nas assembléias. Essas assembléias, legitimamente convocadas,
denominavam-se comices. Realizavam-se ordinariamente na praça de Roma ou
no Campo de Marte, e se distinguiam por comícios por cúrias, comícios por
centúrias e comícios por tribos, segundo as três formas pelas quais eram
convocados. Os comícios por cúrias eram da instituição de Rômulo; os por
centúrias, de Servius; os comícios por tribos, dos tribunos do povo. Nenhuma lei
recebia a sanção, nenhum magistrado era eleito, a não ser nos comícios; e como
não houvesse nenhum cidadão que não fosse inscrito numa cúria, numa centúria
ou numa tribo, segue-se que nenhum cidadão era excluído do direito do sufrágio
e que o povo de Roma era verdadeiramente soberano de direito e de fato.
Para que os comícios fossem legitimamente convocados e o que ali se fizesse
tivesse força de lei, faziam-se necessárias três condições: primeira, que o corpo
ou o magistrado que os convocasse fosse revestido para isso da autoridade
indispensável; segunda, que a assembléia se realizasse num dia permitido pela lei
terceira, que os augúrios se revelassem favoráveis.
A razão da primeira exigência dispensa explicação. A da segunda é um
problema de polícia, de maneira a não se permitirem comícios em dias de feira,
quando os camponeses vinham a Roma a negócios e não dispunham de tempo
para passar a jornada na praça pública. A razão da terceira exigência estava em
que o senado procurava refrear um povo altivo e turbulento, temperando o ardor
dos tribunos sediciosos; estes, porém, sempre encontraram um meio de se
libertarem de tal constrangimento.
As leis e a eleição dos chefes não constituíam os únicos pontos submetidos ao
julgamento do governo; tendo o povo romano usurpado as mais importantes
funções do governo, pode-se dizer que a sorte da Europa era regulamentada em
suas assembléias. Essa variedade de assuntos dava lugar às diversas formas
tomadas por essas assembléias, de acordo com as matérias sobre as quais havia
que pronunciar-se.
A fim de se fazer o julgamento dessas diversas formas, é o bastante comparálas. Rômulo, instituindo as cúrias, tinha em vista conter o senado pelo povo e o
povo pelo senado, dominando igualmente sobre todos. Deu ele, pois, ao povo, por
essa forma, a inteira autoridade do número para contrabalançar a do poder e a
das riquezas, deixadas aos patrícios. Mas, segundo o espírito da monarquia,
deixou ele maiores vantagens aos patrícios, devido à influência de seus clientes
sobre a pluralidade dos sufrágios. Essa admirável instituição de patronos e
clientes foi uma obra-prima de política e humanidade, sem a qual o patriciado,
tão contrário ao espírito de república, não teria podido subsistir. Roma foi a única
a ter a honra de fornecer ao mundo esse belo exemplo, do qual jamais resultou
qualquer abuso, e que não foi, portanto, imitado nunca.
Essa mesma forma de cúrias subsistiu no tempo dos reis, até Servius, não se
aceitando a legitimidade do reinado de Tarquínio, e o fato fez com que se
distinguissem as leis reais pelo nome de leges curiatae.
Na república, as cúrias, sempre limitadas às quatro tribos urbanas, não contando
senão com a plebe de Roma, não podiam convir nem ao senado, que se mantinha
à testa dos patrícios, nem aos tribunos, que, conquanto plebeus, estavam à frente
dos cidadãos abastados. Elas tombaram, portanto, no descrédito e foi tal seu
aviltamento que seus trinta lictores, reunidos em assembléia, realizavam o que os
comícios por cúria deveriam fazer.
A divisão por centúrias era tão favorável à aristocracia que não se vê, de início, a
razão por que o senado não a levava sempre aos comícios que levavam seu
nome, e nos quais se elegiam os cônsules, os censores e os demais magistrados
curuis. Com efeito, das cento e noventa e três centúrias, formadoras das seis
classes que compunham todo o povo romano, noventa e oito constituíam a
primeira classe. Como os votos só se contavam por centúrias, esta primeira
classe sobrepujava em número de votos as demais. Quando todas as centúrias
estavam concordes, cessava a contagem dos sufrágios; aquilo que fora decidido
pelo menor número passava pelo arbítrio da multidão; e pode-se dizer que, nos
comícios por centúrias, os negócios se regravam mais pela pluralidade dos
escudos que pelo número de votos.
Contudo, essa extrema autoridade era temperada por duas maneiras.
Primeiramente, sendo grande número de plebeus da classe dos ricos, os tribunos,
de ordinário, contrabalançavam o crédito dos patrícios nessa primeira classe.
A segunda maneira consistia em que, ao invés de fazerem, de início, com que as
centúrias votassem segundo sua ordem, o que significaria começar sempre pela
primeira, determinava-se um sorteio, e a escolhida procedia sozinha à eleição
(33), após o que todas as centúrias, chamadas num outro dia segundo sua
categoria, repetiam a mesma eleição e geralmente a confirmavam. Subtraia-se
assim a autoridade do exemplo à graduação para a entregar à sorte, conforme o
princípio da democracia.
Desse uso resultava ainda outra vantagem: permitia aos cidadãos do campo
informarem-se, entre as duas eleições, do mérito do candidato provisoriamente
eleito a fim de lhe atribuírem o voto com consciência de causa. Entretanto, sob
pretexto de urgência, veio-se a abolir esse costume, e as duas eleições passaram
a ser feitas no mesmo dia.
Os comícios por tribos constituíam propriamente o conselho do povo romano.
Somente os tribunos os convocavam; neles eram estes eleitos e se tomavam as
deliberações. Não apenas o senado deixava de ter ali assento, como sequer tinha
o direito de a eles assistir; e, assim sendo, eram os senadores forçados a obedecer
às leis que não tinham podido votar, de maneira que, sob certo aspecto, passavam
a ser menos livres que os últimos dos cidadãos. Tal injustiça era mal-entendida e
bastaria, por si só, para invalidar os decretos de um corpo em que todos os
membros não tinham sido admitidos. Mesmo que todos os patrícios assistissem a
esses comícios, consoante o direito que possuíam na qualidade de cidadãos,
tornados então simples particulares, não poderiam influir em nada num processo
de eleição cujos votos eram recolhidos por cabeça, e no qual o mais humilde
proletário dispunha de tanto poder como o príncipe do senado.
Vê-se, pois, que, além da ordem resultante dessas diversas distribuições para o
recolhimento dos sufrágios de tão grande povo, não se reduziam tais distribuições
a formas em si mesmas indiferentes, mas sim que cada qual tinha efeitos
relativos em relação aos objetivos preferidos.
Sem entrar em mais longos pormenores, resulta dos esclarecimentos precedentes
que os comícios por tribos eram os mais favoráveis ao governo popular, e os
comícios por centúrias aos interesses da aristocracia. A respeito dos comícios por
cúrias, nos quais a plebe de Roma constituía a pluralidade, como apenas
servissem para favorecer a tirania e os maus desígnios, acabaram por cair no
descrédito, fazendo com que os próprios elementos sediciosos se abstivessem de
empregar um meio que lhes punha muito a descoberto seus projetos. Toda a
majestade do povo romano - está fora de dúvida - revelava-se nos comícios por
centúrias, os únicos completos, levando-se em conta que, nos comícios por cúrias
faltavam as tribos rústicas, e nos comícios por tribos eram excluídos o senado e
os patrícios.
Quanto à maneira de recolher os sufrágios, era o fato, entre os primeiros
romanos, coisa tão simples como seus costumes, malgrado não fosse tão simples
quanto o era em Esparta. Cada qual votava em voz alta, e um escrivão o anotava;
pluralidade de votos em cada tribo determinava o sufrágio do povo, e o mesmo
sucedia nas cúrias e centúrias. Este hábito era bom, tanto assim que reinava a
honestidade entre os cidadãos, e cada qual tinha vergonha de oferecer
publicamente seu voto a uma decisão injusta ou a um assunto indigno; entretanto,
quando o povo veio a corromper-se e os votos passaram a ser negociados,
convencionou-se que o sufrágio se tornasse secreto a fim de conter pela suspeita
os compradores, e fornecer aos velhacos o meio de não se tornarem traidores.
Sei que Cícero censura essa mudança e lhe atribui em parte a ruína da república.
Mas, embora eu sinta o peso que deve ter aqui a autoridade de Cícero, não posso
concordar com sua opinião. Penso, ao contrário, que pelo fato de não ter havido
em maior quantidade semelhantes mudanças é que foi acelerada a perda do
Estado. Como o regime das pessoas saudáveis não é conveniente aos enfermos,
não se deve querer governar um povo corrompido através das mesmas leis
apropriadas a um povo honesto. Nada comprova melhor esta máxima que a
duração da República de Veneza, cujo simulacro ainda existe, unicamente
porque suas leis não convêm senão a homens corruptos.
Distribuíram-se, pois, aos cidadãos canhenhos pelos quais cada qual podia votar
sem que se soubesse qual era sua opinião particular; estabeleceram-se, assim,
novas formalidades para o recolhimento dos canhenhos, o cômputo dos votos, a
comparação dos números, etc.; isso não impediu que a fidelidade dos oficiais
encarregados dessas funções fosse com freqüência tida por suspeita (34).
Procurou-se, enfim, impedir a cabala e o tráfico dos sufrágios e dos editos, cuja
quantidade demonstra a inutilidade.
Nos últimos tempos, era-se muitas vezes obrigado a recorrer a expedientes
extraordinários para suprir a insuficiência das leis. Logo imaginaram-se
prodígios; com isso iludia-se o povo, não os que o governavam; logo convocavase bruscamente uma assembléia, antes de os candidatos terem tempo de
prepararem suas manobras; ora consumia-se uma sessão inteira em conversa,
quando se via o povo ganho prestes a tomar um mau partido. Finalmente, a
ambição tudo frustrou, e o que há de inconcebível é que, em meio a tanto abuso,
esse povo imenso, em favor de seus antigos regulamentos, não deixava de eleger
os magistrados, de aprovar as leis, de julgar as causas, de expedir os negócios
particulares e públicos, quase com tanta facilidade como o teria feito o próprio
senado.
V - Do tribunato.
Quando não se pode estabelecer uma exata proporção entre as partes
constitutivas do Estado, ou quando causas indestrutíveis nelas alteram
continuamente as relações, institui-se então uma magistratura particular que não
se corporifica com as outras, que repõe cada termo em sua verdadeira relação, e
que estabelece uma ligação ou um meio-termo, seja entre o príncipe e o povo,
seja entre o príncipe e o soberano, ou ainda entre ambos os lados, em caso de
necessidade.
Esse corpo, que eu denominarei tribunato, é o conservador das leis do poder
legislativo, e serve, por vezes, para proteger o soberano contra o governo, como
faziam em Roma os tribunos do povo; como faz presentemente em Veneza o
Conselho dos Dez, para sustentar o governo contra as investidas do povo; e,
algumas vezes, para manter o equilíbrio entre ambas as partes, como o faziam os
éforos em Esparta.
O tribunato não constitui uma parte constitutiva da cidade, e não deve possuir a
menor porção do poder legislativo nem do executivo; mas é justamente nisso que
seu poder se torna grande, porque, nada podendo fazer, tudo pode impedir. É
mais sagrado e mais reverenciado como defensor das leis que o príncipe que as
executa e o soberano que as dá. Foi o que se viu com bastante clareza em Roma,
quando seus altivos patrício; que sempre menosprezaram todo o povo, foram
forçados a dobrar-se perante um simples oficial do povo que não tinha auspícios
nem jurisdição.
0 tribunato, sabiamente temperado, representa o mais firme apoio de uma boa
constituição; mas, por pouca força que tenha de mais, tudo subverte; no que
concerne à fraqueza, ele naturalmente a não possui, e, conquanto seja alguma
coisa, não é jamais menos que o necessário. O tribunato degenera em tirania
quando usurpa o poder executivo, do qual não passa de moderador, e quando
deseja dispensar as leis cuja proteção lhe compete. 0 enorme poder dos éforos,
que não ofereceu perigo enquanto Esparta conservou seus costumes, acelerou a
corrupção iniciada. O sangue de Agis, degolado por esses tiranos, foi vingado por
seu sucessor; o crime e o castigo dos éforos apressaram igualmente a ruína da
república; e, após Cleômenes, Esparta deixou de ter qualquer importância. Roma
pereceu ainda pela mesma via, e o excessivo poder dos tribunos, usurpado
gradualmente, serviu, enfim, com a ajuda das leis votadas para garantirem a
liberdade, de salvaguarda aos imperadores que a destruíram. Quanto ao Conselho
dos Dez, em Veneza, trata-se de um tribunal de sangue, horrível a um tempo aos
patrícios e ao povo, e que, longe de proteger altamente as leis, apenas serve,
depois de seu aviltamento, para aplicar nas trevas golpes que se não ousam
imaginar.
O tribunato enfraqueceu-se, à semelhança do governo, pela multiplicação de
seus membros. Quando os tribunos do povo romano, dois de início, depois cinco,
pretenderam duplicar esse número, o senado consentiu-o, certo de poder contêlos, uns pelos outros, o que de resto aconteceu.
A melhor maneira de prevenir as usurpações de tão temível corpo, maneira de
que nenhum governo se serviu até aqui, seria impedir que esse corpo se tornasse
permanente, regulamentando os intervalos durante os quais ele estaria suprimido.
Tais intervalos, que não devem ser muito grandes para evitar que os abusos se
afirmem, podem ser fixados por lei, de modo a serem facilmente abreviados,
quando necessário, por comissões extraordinárias.
Esse meio me parece desprovido de inconvenientes, uma vez que, como já o
disse, o tribunato, não fazendo parte da constituição, pode ser removido sem que
esta disto se ressinta. E parece-me eficaz, porque um magistrado, novamente
estabelecido, não parte do poder desfrutado por seu predecessor, mas sim do que
a lei lhe outorga.
VI - Da ditadura.
A inflexibilidade das leis, que as impede de se ajustarem aos acontecimentos,
pode, em determinados casos, torná-las perniciosas, e causar, por elas, a perda
do Estado num momento de crise. A ordem e a lentidão das formas requerem
um espaço de tempo que as circunstâncias muitas vezes recusam. Podem
apresentar-se mil casos não esperados pelo legislador, e constitui necessária
providência perceber que é possível tudo prever.
Não se deve, pois, querer consolidar as instituições políticas a ponto de levar o
poder a suspender o efeito delas. Esparta mesma deixou dormir suas leis.
Somente os maiores perigos podem contrabalançar o decorrente da alteração da
ordem pública, e não se deve jamais esmagar o sagrado poder proveniente das
leis senão quando se trata de salvar a pátria. Nesses casos raros e manifestos,
provê-se a segurança pública por meio de um ato particular que dela encarrega a
pessoa mais digna. Tal comissão pode ser outorgada de duas maneiras, consoante
a espécie do perigo.
Se, para isso remediar, é suficiente aumentar a atividade do governo, deve-se
concentrá-la em um ou dois de seus membros: assim sendo, o que se altera não é
a autoridade das leis, mas tão-somente a forma de sua administração. Se é tal o
perigo, que o aparelho das leis passa a constituir um obstáculo à sua garantia,
nomeia-se então um chefe supremo que faça emudecer todas as leis e suspenda
um momento a autoridade soberana. Em semelhante caso, a vontade geral não é
posta em, dúvida, e torna-se evidente que a primeira intenção do povo consiste
em que o Estado não venha a perecer. Dessa maneira, a suspensão de autoridade
legislativa não significa esteja a mesma abolida: o magistrado que a silencia não
pode fazê-la falar; ele a domina, sem que a possa representar; tudo pode fazer,
exceto legislar.
0 primeiro processo era empregado pelo senado romano quando encarregava os
cônsules, através de uma fórmula consagrada, de prover a salvação da república;
o segundo processo tinha lugar quando um dos dois cônsules nomeava um
ditador, cujo exemplo Roma recebeu de Alba.
No começo da república,, recorreu-se com bastante freqüência à ditadura pelo
fato de o Estado não possuir ainda um alicerce suficientemente fixo para se
poder suster por força exclusiva de sua constituição. Como os costumes
tornassem então supérfluas muitas das precauções necessárias em outros tempos,
não só não se receou que um ditador abusasse de sua autoridade, nem que
tentasse conservá-la além do termo. Parecia, ao contrário, que tão grande poder
constituía uma sobrecarga para quem dele estivesse revestido, tanto se apressava
seu possuidor em desfazer-se dela, como se tratasse de um posto bastante árduo e
perigoso esse de ocupar o lugar das leis.
Também, não é o perigo do abuso, mas o do aviltamento, que me leva a reprovar
o uso indiscreto dessa suprema magistratura nos primeiros tempos. Enquanto era
ela prodigalizada em eleições, em consagrações, em coisas puramente formais,
receava-se que se tomasse menos temível à necessidade e que nos
acostumássemos a olhar como um título vão esse que não empregávamos senão
em fúteis cerimônias.
Por volta do fim da república, os romanos, tornados circunspectos,
economizaram a ditadura com a mesma irracionalidade com que a tinham
prodigalizado anteriormente. Era fácil ver que seu receio estava mal
fundamentado: que a fraqueza da Capital constituía então sua segurança contra os
magistrados abrigados em seu seio; que um ditador, em determinado caso, podia
defender a liberdade pública, sem jamais atentar contra ela; e que os grilhões de
Roma de modo algum seriam forjados na própria Roma, mas em seus exércitos.
A pequena resistência de Mário frente a Sila, e de Pompeu frente a César,
demonstrou perfeitamente o que se podia esperar da autoridade de dentro contra
a força vinda de fora.
Esse erro levou-os a cometer grandes faltas, tal, por exemplo, a de não nomear
um ditador no caso Catilina, pois que, em se tratando de questão referente ao
interior da cidade, e, quando muito, a alguma província da Itália, com a
autoridade ilimitada que as leis atribuíam ao ditador, ele teria facilmente
dissipado a conjuração, esmagada apenas graças ao concurso de felizes acasos,
pelos quais a prudência humana jamais devia esperar.
Ao invés de tomar essa atitude, o senado contentou-se de remeter toda a sua
autoridade aos cônsules, de onde resultou que Cícero, para agir com eficácia, se
viu constrangido a transmitir esse poder num ponto capital. Se os primeiros
transportes de alegria constituíram uma aprovação de sua conduta, foi com
justiça que, em seguida, se lhe pediram contas do sangue dos cidadãos vertido
contra as leis, censura que não poderia ser feita a um ditador. Todavia, a
eloqüência do cônsul tudo sobrepujou; e ele mesmo, embora romano, amando
mais a própria glória que a pátria, não buscava de preferência o meio mais
legítimo e mais seguro de salvar o Estado, mas sim o de obter toda a honraria
dessa empresa (35). Daí ter sido justamente glorificado como o libertador de
Roma, e punido com justiça como infrator das leis. Por brilhante que tenha sido
seu apelo, o certo é que constituiu uma graça.
De resto, independente da maneira pela qual essa importante comissão possa ser
conferida, importa fixar-lhe a duração dentro de um prazo bastante curto e que
não deva jamais ser prolongado: no decorrer das crises que o fazem estabelecer,
o Estado é logo salvo ou destruído, e, passada a necessidade premente, a ditadura
toma-se tirânica ou inútil. Em Roma, os ditadores, nomeados apenas por seis
meses, em sua maioria, abdicaram antes de atingido esse termo. Se o prazo
tivesse sido mais longo, é possível que houvessem tentado prolongá-lo ainda mais,
como o fizeram os decênviros com o prazo de um ano. 0 ditador apenas dispunha
do tempo de prover a necessidade pela qual fora eleito; não lhe sobrava tempo
para sonhar com outros projetos.
VII - Da censura.
Assim como a declaração da vontade geral se faz através da lei, a declaração do
julgamento público se faz pela censura; a opinião constitui uma espécie de lei
cujo censor é o ministro, o qual, a exemplo do príncipe, somente a aplica aos
casos particulares.
Longe, pois, de ser o tribunal censório o árbitro da opinião pública; este não é
senão o declarador dessa opinião, e, tão logo dela se afaste, suas decisões passam
a ser vãs e sem efeito.
É inútil distinguir os costumes de uma nação dos objetos de sua estima, porque
tudo se contém no mesmo princípio e se confunde necessariamente. Entre todos
os povos do mundo, não é a natureza, mas a opinião que decide da escolha de
seus prazeres. Reparai as opiniões dos homens, e seus costumes se apurarão por
si mesmos. Amamos sempre o belo ou que consideramos tal; mas é justamente a
propósito deste julgamento que nos enganamos: portanto, é este julgamento que
deve ser ordenado. Quem julga os costumes julga a honra, e quem julga a honra
faz sua lei da opinião.
As opiniões de um povo nascem de sua constituição; embora a lei não
regulamente os costumes, é a legislação que lhes dá nascimento; quando a
legislação se debilita, os costumes degeneram; mas então o julgamento dos
censores não conseguirá fazer o que as leis não terão feito.
Segue-se daí que a censura pode ser útil à conservação dos costumes, não porém
para os restabelecer. Colocai censores durante a vigência das leis; tão logo
estejam estas perdidas, tudo descamba no desespero: nada de legítimo conserva
sua força, quando as leis deixam de existir.
A censura mantém os costumes impedindo que as opiniões se corrompam,
conservando sua inteireza através de sábias aplicações, por vezes mesmo
fixando-as, quando se mostram ainda incertas. O uso de segundos nos duelos,
levado até o furor no reino de França, foi aí abolido pelas seguintes palavras de
edito real: "Quanto aos que têm a covardia de chamar segundos..." Tal
julgamento, prevenindo o do público, decidiu-o de repente. Contudo, quando os
mesmos editos desejaram pronunciar que era igualmente covardia o bater-se em
duelo - o que de resto é verdade, mas contraria a opinião comum - o público
zombou dessa decisão sobre a qual já havia estabelecido o julgamento.
Eu disse alhures que, não estando a opinião pública submetida a constrangimento,
nenhum vestígio disso é necessário no tribunal estabelecido para a representar.
Nunca se admira o suficiente a arte pela qual esse expediente, inteiramente
perdido para os modernos, era posto em prática entre os romanos, e mais ainda
entre os lacedemônios.
Como um homem de maus costumes houvesse dado um bom conselho no
Conselho de Esparta, os éforos não o levaram em conta, mas fizeram com que a
mesma opinião fosse expendida por um cidadão virtuoso. Que honra para um, e
que infâmia para o outro, sem que se fizesse qualquer louvor ou qualquer censura
a nenhum deles! Certos ébrios de Samos (36) profanaram o tribunal dos éforos:
no dia seguinte, por edito público, era permitido aos cidadãos o direito de se
portarem como vilões Um verdadeiro castigo teria sido menos severo que
semelhante impunidade. Quando Esparta decidiu sobre o que era ou não honesto,
a Grécia não reclamou contra seus julgamentos.
VIII - Da religião civil.
Os homens, de início, não tiveram outros reis senão os deuses, nem outro
governo, a não ser o teocrático. Raciocinaram então como Calígula, e seu
raciocínio era justo. Fez-se necessária uma longa alteração de sentimentos e
idéias a fim de que se pudesse aceitar o semelhante por senhor e iludir-se
admitindo que o fato constituía um bem. Colocando-se Deus à testa de cada
sociedade política, resultou a existência de tantos deuses quantos povos havia.
Dois povos estranhos um ao outro, e quase sempre inimigos, não puderam,
durante longo tempo, reconhecer um senhor comum; dois exércitos empenhados
em combate não saberiam obedecer ao mesmo chefe. Assim, das divisões
nacionais originou-se o politeísmo, e do politeísmo a intolerância teológica e civil,
que naturalmente é a mesma, como o direi mais adiante.
Os gregos imaginaram reencontrar seus deuses entre os povos bárbaros; essa
idéia, porém, vinha do fato de se considerarem os soberanos naturais desses
povos. Todavia, é de nossos dias uma ridícula erudição que pretende identificar
os deuses de diversas nações, como se Moloce, Saturno e Cronos pudessem ser o
mesmo deus; como se o Baal dos fenícios, o Zeus dos gregos e o Júpiter dos
latinos fossem realmente um único; como se pudesse permanecer algo comum
em seres quiméricos, portadores de nomes diferentes!
Se me perguntarem por que, no paganismo, onde cada Estado possuía seu culto e
seus deuses, não havia guerras religiosas, eu responderei que era justamente por
isso, porque, tendo cada Estado seu próprio culto, identificado com seu próprio
governo, não distinguia seus deuses de suas leis. A guerra política era também
teológica; os departamentos dos deuses eram, por assim dizer, fixados pelos
limites das nações. 0 deus de um povo não possuía nenhum direito sobre os outros
povos. Os deuses dos pagãos não eram deuses ciumentos; eles dividiam entre si o
império do mundo. 0 próprio Moisés e o povo hebreu atribuíram-se algumas
vezes essa idéia, falando do deus de Israel. Consideravam, é certo, como nulos os
deuses dos cananeus, povos proscritos, destinados à destruição e cujo lugar
pretendiam ocupar; mas reparai como falavam das divindades dos povos vizinhos
que lhes era vedado atacar: "Não vos é legitimamente devida a posse do que
pertence a Chamos, vosso deus?" - dizia Jefté aos amonitas. "-Nós possuímos
graças a esse mesmo título as terras que nosso deus vitorioso adquiriu" (37). Era
isso, parece-me, uma paridade perfeitamente reconhecida entre os direitos de
Chamos e os do deus de Israel.
Mas quando os judeus, submetidos aos reis da Babilônia, e, em seguida aos reis
da Síria, quiseram obstinar-se em não reconhecer nenhum outro deus que não o
próprio, tal recusa, olhada como uma rebelião contra o vencedor, provocou as
perseguições lidas em sua história, e das quais não se conhecem outros exemplos
antes do cristianismo (38).
Estando cada religião circunscrita unicamente às leis do Estado que as
prescrevia, não havia outra maneira de converter um povo senão submetendo-o,
nem havia outros missionários além dos conquistadores; e, consistindo a lei dos
vencidos na obrigação de mudar de culto; fazia-se preciso começar por vencer
antes de pregar. Não quer isto dizer que os homens combatessem pelos deuses;
ao contrário, eram os deuses, como em Homero, que combatiam pelos homens;
cada qual pedia a seu deus a vitória e a pagava erigindo-lhe novos altares. Os
romanos, antes de tomarem uma praça, intimavam os deuses locais a abandonála; e quando deixavam aos tarentinos seus deuses irritados, faziam-no porque
olhavam então esses deuses como submetidos aos deles romanos, forçados
aqueles a prestar homenagens a estes. Permitiam que os vencidos conservassem
os seus deuses, assim como lhes permitiam reger-se por suas próprias leis. Em
geral, uma coroa ao Júpiter do Capitólio era o único tributo imposto aos vencidos.
Finalmente, havendo os romanos estendido, com o império, seu culto e seus
deuses, e, havendo eles mesmos, muitas vezes, adotado o culto e os deuses dos
vencidos, concedendo a uns e a outros o direito de cidade, os povos desse vasto'
império, insensivelmente, acabaram por possuir uma infinidade de deuses e de
cultos, quase sempre os mesmos em toda parte; e eis por que o paganismo veio a
tornar-se, enfim, em todo o mundo conhecido, uma única e idêntica religião.
Foi nessas circunstâncias que Jesus surgiu para estabelecer na Terra um reino
espiritual; o que, separando o sistema teológico do sistema político, fez com que o
Estado cessasse de ser uno, causando as divisões intestinas que jamais deixaram
de agitar os povos cristãos. Ora, essa idéia nova de um reino do outro mundo
nunca pode entrar na cabeça dos pagãos; estes sempre olharam os cristãos como
verdadeiros rebeldes, que, sob a aparência de uma falsa submissão, só
esperavam pelo instante de se tomarem independentes e senhores, usurpando
diretamente a autoridade que fingiam respeitar em sua debilidade. E foi essa a
causa das perseguições.
0 que os pagãos receavam chegou. Então, tudo mudou de face. Os humildes
cristãos mudaram de linguagem, e cedo se viu o pretendido mundo espiritual
transformar-se, sob a direção de um chefe visível, no mais violento despotismo
neste mesmo mundo.
Entretanto, como sempre houve um príncipe e leis civis, resultou desse duplo
poder um perpétuo conflito de jurisdição, o qual impossibilitou a existência de
toda boa política no seio dos Estados cristãos, onde jamais se pode saber a que
senhor ou sacerdote se estava obrigado a obedecer.
Não obstante, inúmeros povos, mesmo na Europa ou em suas cercanias,
quiseram conservar ou restabelecer o antigo sistema, porém sem lograr êxito; o
espírito do cristianismo a tudo venceu. 0 culto sagrado sempre permaneceu ou
veio a tornar-se independente do soberano, e sem ligação necessária com o
corpo do Estado. Maomé teve intenções muito sensatas; soube ligar bem seu
sistema político, e enquanto a forma de seu governo subsistiu, sob os califas, seus
sucessores, tal governo foi exatamente uno e bom nesse sentido. Mas os árabes,
vindo a florescer, letrados, polidos, lassos e poltrões, foram subjugados pelos
bárbaros; então recomeçou a divisão entre os dois poderes; muito embora seja
menos aparente entre os maometanos que entre os cristãos, ela existe, sobretudo
na seita de Ali. Há Estados, como a Pérsia, em que isso se faz sentir
continuamente.
Entre nós, os reis da Inglaterra estabeleceram-se como chefes da Igreja; o
mesmo fizeram os Césares, mas, com tal título, se tomaram mais ministros que
senhores dela; adquiriram mais o direito de a manter que o de modificá-la; não
são aí legisladores, mas apenas príncipes. Em toda parte onde o clero constitui
um corpo (39), é ele senhor e legislador dentro da pátria. Há, pois, dois poderes,
dois soberanos, na Inglaterra e na Rússia, como de resto alhures.
0 filósofo Hobbes é, de todos os autores cristãos, o único que viu perfeitamente o
mal e o remédio, e ousou propor a junção das duas cabeças da águia, criando a
unidade política, sem a qual o Estado e o governo jamais serão bem constituídos;
contudo, Hobbes deve ter visto que o espírito dominador do cristianismo era
incompatível com seu sistema, e que o interesse do sacerdote seria sempre mais
forte que o interesse do Estado. Não é tanto o que há de horrível e falso em sua
política, como o que há de justo e verdadeiro, que a tomou odiosa.
Acredito que, desenvolvendo sob esse ponto de vista os fatos históricos, refutarse-ão facilmente os sentimentos opostos de Bay le é Warburton, pretendendo o
primeiro que nenhuma religião é útil ao corpo político. e sustentando o segundo,
ao contrário, que o cristianismo constitui o seu mais firme apoio. Provar-se-ia ao
primeiro não ter havido Estado a que a religião não tenha servido de base, e ao
segundo, que a lei cristã é, no fundo, mais prejudicial que útil à forte constituição
do Estado. Para terminar minhas explicações, devo dar um pouco mais de
precisão às idéias bastante vagas de religião relativas ao meu assunto.
A religião, considerada em relação à sociedade, que é geral ou particular pode
também dividir-se em duas espécies, a saber: a religião do homem, e a do
cidadão. A primeira, desprovida de templos, altares, ritos, limitada unicamente
ao culto interior do Deus supremo e aos eternos deveres da moral, é a pura e
simples religião dos Evangelhos, o verdadeiro teísmo, é o que se pode denominar
de direito divino natural. A segunda, alicerçada num único país, fornece-lhe os
deuses, os patronos próprios e tutelares; possui seus dogmas, seus rituais, seu culto
exterior prescrito por leis; afora a única nação que a cultua, as demais são
consideradas infiéis, estrangeiras, bárbaras; é uma religião que não estende os
deveres e os direitos do homem além de seus altares. Foram assim todas as
religiões dos primeiros povos, às quais se pode dar a denominação de direito
divino civil ou positivo.
Há um terceiro tipo de religião, mais bizarro, que, dando aos homens duas
legislações, dois chefes, duas pátrias, os submete a deveres contraditórios e os
impede de ser a um só tempo devotos e cidadãos. Assim é a religião dos lamas, a
dos japoneses, e a do cristianismo romano. Esta última pode ser chamada a
religião dos padres. Dela resulta uma espécie de direito misto e insociável
inominado.
A considerar politicamente essas três espécies de religiões, verifica-se que todas
têm os seus defeitos. A terceira é tão evidentemente má, que constitui uma perda
de tempo ocupar-se de o demonstrar. Tudo quanto rompe a unidade social nada
vale; todas as instituições que põem o homem em contradição consigo mesmo
não servem para coisa alguma.
A segunda é boa naquilo em que reúne o culto divino e o amor das leis, e em que,
fazendo da pátria o objeto da adoração dos cidadãos, ensina-os que servir o
Estado é servir o deus tutelar. E uma espécie de teocracia, em que não se deve
ter outro pontífice além do príncipe, nem outros sacerdotes senão os magistrados.
Então, morrer por seu país é atingir o martírio, violar as leis é ser ímpio; e
submeter um culpado à execração pública é sacrificá-lo à ira dos deuses: sacer
esto.
Mas ela é má, porque, estando alicerçada sobre o erro e a mentira, engana os
homens, torna-os crédulos, supersticiosos, e asfixia o verdadeiro culto da
divindade num vão cerimonial. Ela ainda é má, quando, vindo a tornar-se
exclusiva e tirânica, leva um povo a fazer-se sanguinário e intolerante, de sorte a
que apenas respire assassínios e massacres, e creia cometer uma ação sagrada
ao matar quem não admita os seus deuses. Tal espécie de religião coloca tal povo
em estado natural de guerra contra todos os outros, o que é bastante prejudicial à
sua própria segurança.
Resta, pois, a religião do homem ou o cristianismo, não o de nossos dias, mas o
dos Evangelhos, que é de todo diferente. Por essa religião sagrada, sublime,
verdadeira, os homens, filhos do mesmo Deus, se reconhecem todos como
irmãos, e a sociedade que os une não se dissolve, nem na morte.
Mas esta religião, não tendo nenhuma relação particular com o corpo político,
deixa entregue às leis a única força que de si mesmas tiram, sem lhes
acrescentar nenhuma outra; e, devido a isso, um dos grandes laços da sociedade
particular fica sem efeito. Ainda mais, ao invés de unir os corações dos cidadãos
ao Estado, ela os afasta, como, aliás, de todas as coisas terrenas. De minha parte,
nada conheço mais contrário ao espírito social.
Costuma-se dizer que um povo constituído de verdadeiros cristãos formaria a
sociedade mais perfeita que se pode imaginar. Eu não vejo nessa suposição
senão uma grande dificuldade: é que uma sociedade de verdadeiros cristãos já
não seria uma sociedade de homens.
Posso mesmo afirmar que essa suposta sociedade não se revelaria, apesar de
toda a sua perfeição, nem a mais forte, nem a mais durável, porque, à força de
ser perfeita, necessitaria de ligação; seu vício destrutivo se encontraria em sua
própria perfeição.
Cada qual cumpriria o seu dever; o povo acataria as leis; os chefes mostrar-seiam justos, os magistrados íntegros, incorruptíveis; os soldados menosprezariam a
morte; não haveria vaidade nem luxo. Tudo isso é verdade, mas olhemos mais
distante.
0 cristianismo é uma religião toda espiritual, preocupada unicamente com as
coisas do céu. A pátria do cristão não é deste mundo. É certo que ele cumpre o
seu dever, mas ele o cumpre com uma profunda indiferença no que concerne ao
bom ou mau êxito de seus cuidados. Uma vez que nada se lhe tenha a reprovar, a
ele pouco importa irem as coisas bem ou mal aqui embaixo. Se o Estado
floresce, o cristão mal ousa desfrutar da felicidade pública; ele receia orgulharse da glória de que goza o seu país; se o Estado perece, ele abençoa a mão de
Deus que se abate sobre o povo.
Para que a sociedade fosse tranqüila e se mantivesse a harmonia, seria preciso
que todos os cidadãos, sem exceção, se revelassem igualmente bons cristãos;
porém, se por desgraça, houver entre eles um único ambicioso, um único
hipócrita, um Catilina, por exemplo, um Cromwell, este fará de seus piedosos
compatriotas o que bem entender. A caridade cristã não permite se pense
facilmente mal do próximo. Desde que tal indivíduo, graças a qualquer ardil,
haja encontrado um jeito de se impor a eles e apoderar-se de uma parte da
autoridade pública, ei-lo revestido de dignidade: Deus deseja que se o respeite.
Em breve torna-se um poder: Deus quer que se lhe obedeça. O depositário desse
poder talvez abuse dele: e isto é a vara com que Deus castiga os próprios filhos.
Se a consciência aconselha rechaçar o usurpador, faz-se preciso perturbar a
tranqüilidade pública, usar de violência, derramar sangue, e tudo isso não se
harmoniza com a doçura do cristão; e, finalmente, que importa ser escravo ou
livre neste vale de misérias? O essencial é atingir o paraíso, e a resignação não é
senão um meio de chegar a ele.
Se sobrevier alguma guerra estrangeira, os cidadãos marcharão sem dificuldade
para a luta; nenhum dentre eles pensará em fugir; todos farão o seu dever, mas
sem nenhum entusiasmo pela vitória. De preferência saberão morrer a triunfar.
Vencedores ou vencidos, que lhes importa? Não conhece a Providência, mais do
que eles, o que lhes convêm? Imagine-se, pois, que partido pode tirar de seu
estoicismo um inimigo altivo, impetuoso e apaixonado! Colocai à frente deles um
desses povos generosos, devorado pelo ardente amor da glória e da pátria;
suponde vossa república cristã à frente de Esparta ou Roma: os piedosos cristãos
serão batidos, esmagados, destruídos, antes de terem tido tempo de se
reconhecerem, ou então se salvarão graças. ao desprezo do inimigo. Constituía
um belo juramento, no meu modo de ver, o dos soldados de Fábio; não juravam
morrer ou vencer, mas juravam retornar vencedores e o faziam conforme o
juramento. Jamais os cristãos agiriam de modo semelhante, pois acreditariam
estar tentando a Deus.
Engano-me, porém, quando me refiro a uma república cristã: ambos os termos
se excluem. 0 cristianismo prega unicamente servidão e dependência. Seu
espírito é bastante favorável à tirania, para que esta se não sirva com freqüência
dele. Os verdadeiros cristãos são feitos para escravos; e eles o sabem e em
hipótese nenhuma se amotinam; esta vida breve tem muito pouco preço aos seus
olhos.
Dizem que as tropas cristãs são excelentes. Eu o nego. Onde estão as provas
disso? Citar-me-ão as Cruzadas. Sem discutir o valor das Cruzadas,' assinalarei
que, longe de serem cristãos, eram soldados do clero, cidadãos da Igreja;
batiam-se por seu país espiritual, que ela transformara em temporal, não se sabe
como. Bem pesando as coisas, era uma volta ao paganismo. Como os Evangelhos
não estabelecem uma religião nacional, toda guerra sacra é impossível entre os
cristãos.
Sob os imperadores pagãos, os soldados cristãos eram valentes; todos os autores
cristãos o asseguram, e eu o creio: tratava-se de uma emulação de honra contra
as tropas pagãs. Assim que os imperadores se tornaram cristãos, essa emulação
deixou de existir; e quando a cruz expulsou a águia, toda a coragem romana
desapareceu.
Mas deixando de lado as considerações políticas, retornemos ao direito, e
fixemos os princípios acerca deste importante ponto. 0 direito, dado pelo pacto
social ao soberano sobre os vassalos, não ultrapassa, como já o disse, os limites
da utilidade pública (40). Os vassalos não devem, portanto, prestar contas ao
soberano no que respeita às suas opiniões a não ser na medida em que essas
opiniões importem à comunidade. Ora, é conveniente ao Estado que cada
cidadão possua uma religião que o faça amar os seus deveres; todavia, os
dogmas dessa religião só interessam ao Estado e a seus membros enquanto se
relacionam com a moral e os deveres que aquele que a professa é forçado a
cumprir para com outrem. Cada qual pode ter, de resto, as opiniões que desejar,
sem que interesse ao soberano conhecê-las; porque, não tendo ele competência
no tocante ao outro mundo, não é de seu arbítrio preocupar-se com a sorte dos
vassalos na vida futura, desde que sejam bons cidadãos na vida terrena.
Há, pois, uma profissão de fé puramente civil cujos artigos compete ao soberano
fixar, não precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de
sociabilidade, sem os quais é impossível ser-se bom cidadão ou súdito fiel 41.
Conquanto não possa obrigar ninguém a crer, pode ele banir do Estado quem
neles não acreditar; pode bani-lo, não como ímpio, mas sim como insociável,
como incapaz de amar sinceramente as leis, a justiça, e de imolar à necessidade
a vida e o dever. E se alguém, depois de haver reconhecido publicamente esses
mesmos dogmas, se conduz como se os não aceitasse, seja punido de morte, pois
cometeu o maior dos crimes: mentiu perante as leis.
Os dogmas da religião civil devem ser simples, em pequeno número, enunciados
com precisão, sem explicações nem comentários. A existência da Divindade
poderosa, inteligente, benfazeja, previdente e providente, a vida futura, a
felicidade dos justos, o castigo dos perversos, a santidade do contrato social e das
leis: eis os dogmas positivos (42). Quanto aos dogmas negativos, reduzo-os a um
único: é a intolerância, implícita nos cultos que excluímos.
Na minha opinião, enganam-se os que distinguem a intolerância civil da
intolerância teológica. Essas duas intolerâncias são inseparáveis. É impossível
viver em paz com gente que se crê danada; amá-la seria odiar a Deus que a
castiga; é absolutamente necessário convertê-la ou puni-la. Onde quer que a
intolerância teológica seja admitida, toma-se impossível não haja algum efeito
civil; e tão logo este apareça deixa o soberano de ser soberano, mesmo em
relação ao poder temporal a partir de então, os sacerdotes passam a ser os
verdadeiros senhores, e os reis apenas seus oficiais.
Agora que não há mais nem pode haver religião nacional exclusiva, devemos
tolerar todas as que se mostram tolerantes com as outras, desde que seus dogmas
nada tenham de contrário aos deveres dos cidadãos. Contudo, quem quer que
ouse dizer: Fora da Igreja não há salvação, deve ser banido do Estado, a menos
que o Estado não seja a Igreja e o príncipe não seja o pontífice. Tal dogma só
pode ser útil sob um governo teocrático; sob qualquer outro, é pernicioso. 0
motivo pelo qual Henrique IV, conforme se diz, abraçou a religião romana
deveria ser deixado a todo homem de bem, e sobretudo a todo príncipe que
soubesse raciocinar (43).
IX - Conclusão.
Depois de ter exposto os verdadeiros princípios do direito político, e cuidado de
edificar o Estado em suas bases, restaria ampará-lo através de suas relações
externas, o que compreenderia o direito das gentes, o comércio, o direito da
guerra e das conquistas, o direito público, as ligas, as negociações, os tratados,
etc. Isso tudo, entretanto, constitui assunto novo e muito vasto para minha curta
vista; eu a deveria ter fixado sempre mais junto de mim.
NOTAS
1. Genebra.
2. As sábias pesquisas sobre o direito público são, com freqüência, apenas a
história doa antigos abusos, e nos preocupamos sem razão, quando nos damos ao
trabalho de muito os estudar. (Traité manuscrit des intéréts de Ia France avec ses
voislns, pelo Marquês d'Argenson). Eis precisamente o que fez Grotius.
3. 0 verdadeiro sentido desse termo está quase apagado entre os modernos. A
maioria das pessoas toma um burgo por uma cidade, e um burguês por um
cidadão. Não se sabe que as casas fazem o burgo, e os cidadãos a cidade. Esse
mesmo erro caro custou aos cartagineses. Jamais li que o título de civis tenha sido
dado alguma vez aos vassalos de um principe, nem mesmo antigamente aos
macedônios, e, em nossos dias, aos ingleses. embora muito mais perto da
liberdade que os outros todos. Somente os franceses tomam todos o nome de
cidadãos, porque não têm disso nenhuma verdadeira idéia, como podemos ver
em seus dicionários. Não fossem assim, cometeriam, usurpando-o, o crime de
lesa-majestade. Tal nome, entre eles, exprime uma virtude, e não um direito.
Quando Bodin desejou falar de nossos burgueses a cidadãos, praticou um grande
desacerto, tomando uns pelos outros. D'Alembert não se enganou nisso; distinguiu
perfeitamente, em seu artigo sobre Genebra, as quatro ordens de homens
(mesmo cinco, incluindo ai os simples estrangeiros) existentes em nosso burgo,
das quais apenas duas compõem a República. Nenhum autor francês, que eu
saiba, compreendeu o verdadeiro sentido do termo cidadão.
4. Sob os maus governos, essa igualdade é apenas aparente e ilusória: não serve
senão para manter o pobre em sua miséria, e o rico em sua usurpação. Na
realidade, as leis são sempre úteis aos que possuem bens, e prejudiciais aos que
nada têm: de onde se conclui que o estado social não é benéfico aos homens,
enquanto não tiverem todos alguma coisa, e nenhum deles o tenha em excesso.
5. Para que uma vontade seja considerada geral, nem sempre se faz necessário
que seja unânime; mas é indispensável que todos os votos sejam contados.
Qualquer exclusão formal rompe a generalidade
6. "Cada interesse, diz o Marquês d'Argenson, possui princípios diferentes. 0
acordo de dois interesses particulares forma-se por oposição ao de um terceiro."
Ele poderia ter acrescentado que o acordo de todos os interesses se forma por
oposição ao interesse de cada um. Se não houvesse interesses diferentes, apenas
seria percebido o interesse comum, o qual jamais encontraria obstáculo: tudo
caminharia por si mesmo, e a polltica deixaria de constituir uma arte.
7. "É certo, diz Maquiavel, haver divisões prejudiciais às Repúblicas, como as
haver que lhes são úteis: prejudicam as que se fazem acompanhar de seitas e
partidários, e se mostram úteis as que se conservam sem seitas nem partidários.
Não podendo, pois, o fundador de uma República impedir dentro dela inimizades,
há de ao menos prover que tão haja seitas." (História de Florença, livro VII).
8. Suplico-vos, leitores atentos, que não vos apresseis em me acusar aqui de
cometer contradições. Não me foi possivel evitá-las nas palavras, em virtude da
pobreza da língua, mas esperai.
9. Não entendo, por esse termo, uma aristocracia apenas ou uma democracia,
mas em geral todo governo dirigido pela vontade geral, que é a lei. Para ser
legítimo, não é necessário que o governo se confunda com o soberano, mas que
seja o seu ministro; assim sendo, a própria monarquia torna-se república.
10. Um povo só se torna célebre quando a sua legislação principia a declinar.
Ignora-se durante quantos séculos a instituição de Licurgo fez a felicidade dos
espartanos, antes que deles se falasse no resto da Grécia.
11. Os que apenas consideram Calvino como teólogo mal conhecem a extensão
de seu gênio. A redação de nossos sábios editos, em que ele participou, honra-o
tanto como a sua instituição. Independente de qualquer revolução que o tempo
venha a introduzir em nosso culto, enquanto o amor da pátria e da liberdade não
se extinguir entre nós, jamais a memória desse grande homem deixará de ser aí
abençoada.
12. "Na verdade - diz Maqulavel - nunca existiu legislador que estabelecesse leis
extraordinárias para um povo, sem recorrer a Deus, porque, de outra maneira,
não seriam aceitas; porque muitos bens são conhecidos do homem sensato, mas
não contêm em si razões evidentes para persuadirem a outrem." (Discorsi sopra
Tito Livio, t. 1, cap. XI)
13. Se, em havendo dois povos, um não pudesse passar sem o outro, isto
constituiria uma situação muito difícil para o primeiro e bastante perigosa para o
segundo. Toda nação civilizada, se esforçará, em caso semelhante, no sentido de
libertar rapidamente a outra dessa dependência. A República de Tlascala,
encravada no Império do México, preferia privar-se de sal a comprá-lo aos
mexicanos, e inclusive a aceitá-lo gratuitamente. Os sábios de Tlascala
perceberam a armadilha oculta sob tal liberalidade. Conservaram-se livres; e
esse pequeno Estado, encerrado num grande império, acabou por se tornar o
instrumento da ruína deste.
14. Desejais dar consistência ao Estado? Aproximai os graus extremos tanto
quanto possível; não tolereis nem homens opulentos nem mendigos. Esses dois
tipos de cidadãos, naturalmente inseparáveis, são por igual funestos ao bem
comum; de um se originam os fautores da tirania, e de outro os tiranos. É sempre
entre eles que se faz o tráfico da liberdade pública; um a compra, e o outro a
vende.
15. "Algum ramo do comércio exterior-diz, o Marquês d'Argenson - em geral
apenas serve para difundir no reino uma falsa utilidade: pode enriquecer alguns
particulares, inclusive algumas cidades; mas a nação em seu conjunto nada
ganha, e tampouco o povo."
16. Em Veneza, dá-se ao colégio o nome de Sereníssimo Príncipe, mesmo
quando o Doge a ele não assiste.
17. Isso não contradiz o que eu disse anteriormente (Livro II, cap. IX) a propósito
dos inconvenientes dos grandes Estados, porque ali se tratava da autoridade do
governo sobre seus membros, e aqui se trata de sua força contra os vassalos. Os
membros esparsos lhe servem de ponto de apoio para agir de longe sobre o povo,
mas não dispõe ele de nenhum outro ponto de apoio para agir diretamente sobre
seus próprios membros. Assim sendo, num dos casos o comprimento da alavanca
faz a sua fraqueza, e no outro a sua força.
18. Pelo mesmo princípio devem ser julgados os séculos merecedores da
prerrogativa de terem promovido a prosperidade do gênero humano. Admiramos
sobremaneira aqueles em que as artes e as letras floresceram, sem que
penetrássemos no objeto secreto de sua cultura e considerássemos o funesto
efeito: Idque apud imperitos humanitas vocabatur, cum pars servitutis esset.
Veremos um dia, nas máximas dos livros o grosseiro interesse que leva os
autores a falar? Não; digam o que disserem. Quando, malgrado o seu brilho, um
país se despovoa, não é verdade que tudo estivesse indo bem; não é suficiente
tenha um poeta cem mil libras de renda para que seu século seja o melhor de
todos. Deve-se cuidar menos do aparente repouso e da tranqüilidade dos chefes
que do bem-estar de nações inteiras, e sobretudo dos Estados mais numerosos. A
saraiva por vezes desola alguns cantões, mas raramente provoca a penúria. Os
motins, as guerras civis muito assustam os chefes, mas não são responsáveis
pelas verdadeiras desgraças dos povos, que podem até desfrutar de sossego
enquanto combatem os que os tiranizam. É de seu estado permanente que
nascem suas prosperidades ou suas reais calamidades; quando tudo é esmagado
pelo despotismo, é que tudo perece, e os chefes tudo destroem à sua vontade, ubi
solitudinem faciunt pacem appellant. Quando a intriga dos grandes agitava o
reino de França, e o coadjutor de Paris levava ao Parlamento um punhal no
bolso, nada impedia o povo francês de viver feliz e numeroso numa honesta e
livre abastança. Outrora,, a Grécia florescia em meio às guerras mais cruéis; o
sangue ali corria abundantemente, mas todo o país estava povoado. Parecia, diz
Maquiavel, que em meio aos assassínios, às proscrições, às guerras civis, nossa
república se tornava mais poderosa; a virtude dos cidadãos, os costumes, sua
independência, contribuiam mais para reforçá-la que todas as dissenções para
enfraquecê-la. Um pouco de agitação dá elasticidade às almas, e o que dá maior
prosperidade à espécie é menos a paz que a liberdade.
19. A lenta formação e o progresso da república de Veneza em suas lagunas
oferecem um notável exemplo desta sucessão; e é de admirar que, após mil e
duzentos anos, aparentem estar os venezianos ainda no segundo termo, o qual
começa no Serrar di Consiglio, em 1198. Quanto aos antigos duques, que se lhes
censure, independentemente do que possa dizer o Squitinio della Llbertà Veneta,
mas está provado que não foram seus soberanos.
Objetar-se-me-á que a república romana seguiu, como se dirá, um progresso
inteiramente contrário, passando da monarquia à aristocracia, e da aristocracia à
democracia. Mas eu estou bem longe de pensar assim.
O primeiro estabelecimento de Rômulo foi um governo misto, que prontamente
degenerou em despotismo. Em virtude de causas particulares, o Estado pereceu
antes do tempo, como se vê morrer um recém-nascido antes de chegar a ser
homem. A expulsão dos Tarquínios constituiu a verdadeira idade da república;
mas ela não adquiriu, de inicio, uma forma constante, porque a obra se foi pela
metade, não abolindo o patriciado. Dessa maneira, a aristocracia hereditária, que
é a pior das administrações legítimas, permaneceu em conflito com a
democracia, e a forma de governo, sempre incerta e flutuante não fixada, como
o provou Maquiavel, senão quando do estabelecimento dos tribunos. Somente
então houve um verdadeiro governo e uma verdadeira democracia. Na
realidade, o povo, então, não era apenas soberano, mas também magistrado e
juiz. 0 senado não passava de um tribunal subordinado, incumbido de temperar
ou concentrar o governo, e os próprios cônsules, conquanto patrícios, embora
primeiros magistrados, apesar de generais absolutos na guerra, não eram em
Roma senão os presidentes do povo.
Desde então. viu-se também o governo tomar seu pendor natural e tender
resolutamente para a aristocracia. Extinguindo-se o patriciado em si mesmo, a
aristocracia deixava de residir no corpo dos patrícios, como o é em Venera e em
Genebra, mas no corpo do senado, composto de patrícios e plebeus, ou então no
corpo dos tribunos, quando estes começaram a usurpar um poder ativo; de resto,
as palavras não mudam em nada as coisas, e quando o povo está sujeito a chefes
que governam em seu lugar, tenham o nome que tiverem esses chefes,
constituem sempre uma aristocracia.
Dos abusos da aristocracia nasceram as guerras civis e o triunvirato. Sila, Júlio
César, Augusto, tornaram-se de fato verdadeiros monarcas; e, enfim, sob o
despotismo de Tibério, o Estado foi dissolvido. A História romana não desmente,
portanto, o meu princípio, mas o confirma.
20. Omnes enin et habentur et dicuntur ty ranni, qui potestate utuntur perpetua in
ea civitate quae llbertate usa est. (Cornélio Nepos, Milcíades, no. 8.) É verdade
que Arlstóteles (Mor. Nicom., L. VIII, c. 10) distingue o tirano do rei, nisso em
que o primeiro governa em seu próprio proveito, e o segundo somente em
proveito dos vassalos; mas, ao contrário, geralmente todos os autores gregos
tomaram o termo tirano em sentido diferente, como se pode ver, em especial, no
Hieron de Xenofonte; inferia-se da distinção de Aristóteles que, desde o começo
do mundo, não teria existido ainda um só rei.
21. Mais ou menos no sentido em que esse nome é dado no Parlamento da
Inglaterra. A semelhança desses empregos criou conflito entre os cônsules e os
tribunos, ainda quando toda jurisdição tivesse sido suspensa.
22. Adotar nos países frios o luxo e a lassidão dos orientala é querer aceitar os
seus grilhões e a isso submeter-se necessariamente mais ainda que eles.
23. Foi o que me propus fazer na continuação desta obra, quando, ao tratar das
relações externas, eu chegasse às confederações: matéria inteiramente nova, e
em que os princípios ainda estão por estabelecer.
24. Bem entendido, desde que não se abandone a pátria para fugir ao dever e
esquivar-se de servi-la no momento em que ela de nós necessita. A fuga então
seria criminosa e punível; isso não seria retirada; mas deserção.
25. Deve-se sempre entender tal coisa num Estado livre; do contrário, a família,
os bens, a falta de asilo, a necessidade, a violência, podem reter um habitante no
país contra a sua vontade; e então sua permanência já não supõe consentimento
ao contrato ou à violação do contrato.
26. Lê-se em Genebra, no frontispício das prisões e nos grilhões dos condenados
esta palavra Libertas. A aplicação desta divisa é bela e justa. Não há, com efeito,
senão os malfeitores de todas as espécies que impedem o cidadão a ser livre.
Num país em que toda essa gente estivesse encarcerada, desfrutar-se-ia da mais
perfeita liberdade.
27. 0 nome de Roma. que se pretende provenha de Rômulo, é grego e significa
força; o nome de Numa também é grego e significa lei.
28. Ramnenses.
29 Tatienses.
30. Luceres.
31. Tradução das palavras capite censi.
32. Eu digo Campo de Marte, porque era ali que se realizavam os comícios por
centúrlas; no tocante às duas outras formas, o povo reunia-se no Forum ou
alhures, e então os capita censi dispunham de tanta influência e autoridade como
os principais cidadãos.
33. Essa centúria assim sorteada chamava-se praerogativa, pelo fato de ser a
primeira a ser solicitada para o voto; e veio daí a palavra prerrogativa.
34. Custodes, diribitores, rogatores suffragiorum.
35. Não podia ele responder-se propondo um ditador, não ousando nomear-se a si
mesmo, e não podendo assegurar-se de que seu colega o nomearia.
36. Eles eram de outra ilha, que a delicadeza de nossa língua impede nomear
nesta ocasião. (Nota na edição de 1782.).
37. Ignoro a força do texto hebreu, mas vejo que, na Vulgata, Jefte reconhece
positivamente o direito do deus Chamos, e que o tradutor francês debilita esse
reconhecimento por um segundo vós, que não se encontra no Latim.
38. É evidente que a guerra dos foceus, chamada guerra sagrada, não era em
absoluto uma guerra de religião, pois tinha como objetivo punir os sacrílegos, e
não submeter os incrédulos.
39. Deve-se assinalar que não são tanto as assembléias formais, como as de
França, que ligam o clero num corpo, mas a comunhão das igrejas. A comunhão
e a excomunhão constituem o pacto social do clero, graças ao qual ele será
sempre o senhor dos povos e dos reis. Todos os sacerdotes que comungam em
conjunto são concidadãos, localizem-se eles nas duas extremidades do mundo.
Tal invenção representa uma obra-prima em matéria de política. Nada havia de
semelhante entre os sacerdotes pagãos. Também jamais constituiram um corpo
clerical.
40. "Na República - diz o Marquês d'Argenson - cada qual é perfeitamente livre
naquilo em que não prejudica os outros." Eis ai o limite invariável. Não é possível
colocá-lo com maior exatidão. Não posso recusar-me o prazer de citar algumas
vezes esse manuscrito, embora desconhecido do público, a fim de honrar a
memória de um homem ilustre e respeitável, que conservou até no Ministério o
coração de um verdadeiro cidadão, e vistas retas e sãs no referente ao governo
de seu país.
41. César, pleiteando por Catilina, tratava de estabelecer o dogma da mortalidade
da alma; Catão e Cícero, para o refutarem, não se ocuparam de filosofia;
contentaram-se em demonstrar que César falava como mau cidadão, e
avançava uma doutrina perniciosa ao Estado. Na realidade, eis o que devia julgar
o senado romano, e não uma questão teológica.
42. Em todo Estado que pode exigir de seus membros o sacrifício de sua vida,
quem não crê na vida futura é necessariamente um covarde ou um louco; mas
não se sabe suficientemente até que ponto a esperança na vida futura pode
constranger um fanático a menosprezar esta terrena. Privai esse fanático de suas
visões, e dai-lhe essa mesma esperança como prêmio da virtude, e fareis dele
um cidadão.
43. É preciso pensar como eu para ser salvo. Eis o dogma horroroso que devora a
Terra. Nada tereis feito em favor da paz pública, se não riscardes este dogma
infernal. Quem não o achar execrável não pode ser cristão, nem cidadão, nem
homem é um monstro que deve ser imolado para tranquilidade do gênero
humano.